Gnose em Revista - Intranet - Uemg
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Ano I - n. 1 - Fevereiro 2011<br />
Barbacena, fevereiro 2011<br />
ISSN 2179-569X
Ano I - n. 1 - Fevereiro 2011<br />
ISSN 2179-569X<br />
Comissão Editorial / Editorial commission<br />
Comissão Editorial/ Editorial Commission<br />
Leila Maria Franco (UEMG – Campus de Frutal)<br />
Diego David dos Santos Silva (UEMG – Campus de Frutal)<br />
Ana Paula de Freitas Romão-Murari (UEMG – Campus de Frutal)<br />
Conselho Científico / Scientific advisory board<br />
Altair Alberto Fávero (UPF)<br />
Ailton Luiz Dias Siqueira Júnior (IFTM)<br />
Almiro Schulz (UFG)<br />
Ana Maria Zanoni da Silva (UEMG – Campus de Frutal)<br />
André Vinícius Martinez Gonçalves (UEMG- Campus de Frutal)<br />
Antônio Alberto Cristofalo de L<strong>em</strong>os (UEMG - Campus de Frutal)<br />
Arminda Rachel Botelho Mourão (UFAM)<br />
Celeste Antenore Rossi (FEF)<br />
Eliana Aparecida Panarelli (UEMG- Campus de Frutal )<br />
Evandro de Araújo Jardini (UEMG - Campus de Frutal)<br />
José Alberto Felipe Basílio (FEF)<br />
Lúcia Helena Ferreira Lopes (FTM)<br />
Lúcia Elena Pereira Franco Brito (UEMG - Campus de Frutal)<br />
Maria Batista da Cruz Silva (UEMG - Campus de Frutal)<br />
Marcelo Pessoa (UEMG - Campus de Frutal /IMES-FAFICA)<br />
Marcelo Leolino da Silva (UEMG - Campus de Frutal)<br />
Millôr Godoy Sabará (UEMG - Campus de Frutal)<br />
Patrícia Aurélia Del Nero (UFV)<br />
Paulo Custódio de Oliveira (UFGD)<br />
Paulo Henrique Costa Corgosinho (UNESCO/HIDROEX/UEMG - Campus de Frutal)<br />
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)<br />
Rodrigo Daniel Levoti Portari (UEMG - Campus de Frutal)<br />
Suzana Maria da Glória Ferreira (UEMG - Campus de Frutal /UNIRP)<br />
Wânia de Sousa Majadas (UNIVERSO)<br />
<strong>Gnose</strong> <strong>em</strong> revista / Universidade do Estado de Minas Gerais.<br />
Campus de Frutal – Ano 1, n. 1 (fev. 2011) – Barbacena,<br />
MG : EdUEMG, 2011.<br />
149 p.<br />
Anual.<br />
ISSN 2179-569X<br />
1. Conhecimento - Periódicos. 2. Abordag<strong>em</strong> interdisciplinar<br />
do conhecimento - Periódicos . I. Universidade do Estado de<br />
Minas Gerais. Campus Frutal. II. Título.<br />
CDU: 001<br />
Elaborada por: Marcos Antônio de Melo Silva - Bibliotecário CRB/6: 2461
Ano I - n. 1 - Fevereiro 2011<br />
ISSN 2179-569X
Governador do Estado de Minas Gerais<br />
Antônio Augusto Junho Anastasia<br />
Secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior<br />
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />
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Pró-Reitora de Extensão<br />
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Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-graduação<br />
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Pró-Reitor de Planejamento, Gestão e Finanças<br />
Giovânio Aguiar<br />
Diretor Geral do Campus de Belo Horizonte<br />
Rogério Bianchi Brasil<br />
EdUEMG - EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />
Coordenação e Revisão<br />
Daniele Alves Ribeiro<br />
Projeto Gráfico<br />
Diego David dos Santos Silva e Marco Aurélio Costa Santiago<br />
Diagramação<br />
Marco Aurélio Costa Santiago<br />
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edu<strong>em</strong>g@u<strong>em</strong>g.br<br />
(32) 3362-7385 - ramal 105
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS - CAMPUS DE FRUTAL<br />
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Coordenador da Empresa Júnior<br />
Celso Almeida de Carvalho<br />
Coordenador do Mestrado<br />
Millôr Godoy Sabará<br />
Coordenador do Curso de Administração<br />
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Coordenadora do Curso de Direito<br />
Cristina Veloso de Castro<br />
Coordenador do Curso de Ciência e Tecnologia de Laticínios<br />
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Coordenadora do Curso de Comunicação Social – Jornalismo, Publicidade e Propaganda<br />
Ana Carolina de Araújo Silva<br />
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Coordenadora do Curso Superior de Tecnologia <strong>em</strong> Produção Sucroalcooleira<br />
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Secretário Acadêmico<br />
Wanderley Assis de Melo Júnior<br />
Bibliotecária<br />
Yone da Silva
Apresentação<br />
A <strong>Gnose</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> é um periódico anual da Universidade do Estado de Minas<br />
Gerais, Campus de Frutal, e por seu caráter multidisciplinar, publica trabalhos<br />
científicos que cont<strong>em</strong>plam as seguintes áreas do conhecimento: Ciências Agrárias<br />
e Biológicas, Ciências Humanas, Ciências Sociais, Ciências Exatas e da Terra.<br />
Esperamos com este periódico dinamizar o processo de transferência e troca<br />
de informações. Nesse fluxo, pretend<strong>em</strong>os estreitar as relações interpessoais,<br />
b<strong>em</strong> como as interações entre grupos e instituições de pesquisa, uma dialética no<br />
processo de comunicação e de produção científica para o desenvolvimento e a<br />
construção do conhecimento.<br />
Agradec<strong>em</strong>os a todos que colaboraram com esta primeira edição, pois<br />
somente a participação ativa dos pesquisadores, dos professores e dos alunos<br />
pôde dar realidade e concretude a essa proposta, que fortalece a missão principal<br />
da universidade – o ensino, a pesquisa e a extensão.<br />
A Comissão Editorial
Sumário<br />
1. Alienação parental: quando não se elabora o luto da separação<br />
Adailson da Silva Moreira; Adriana Rafaela Ribeiro<br />
2. D<strong>em</strong>ocracia e sociedade: avanços e limites da cidadania no Brasil<br />
José Henrique Singolano Néspoli<br />
3. A influência do direito romano no direito ocidental: breves considerações<br />
André Gimenez; Sílvia Araújo Dettmer; Willian Diego de Almeida<br />
4. A responsabilidade ambiental da <strong>em</strong>presa no novo século<br />
Rúbia Spirandelli Rodrigues<br />
5. A televisão como cabo eleitoral<br />
Edwaldo Costa<br />
6. Uma retomada da obra Caos e cosmos, de Suzi Sperber – contradições e<br />
propostas<br />
Marcelo Pessoa<br />
7. Um estudo dos recursos persuasivos verbo-visuais nos outdoors do<br />
motel Cat´s, na cidade de Uberaba, Minas Gerais<br />
Aline Cristina da Cunha Inácio; Leila Maria Franco<br />
8. Espelhos d’água: reflexos filosóficos <strong>em</strong> Rosa, reflexos sociológicos <strong>em</strong> Cabral<br />
Ana Paula da Silva Santos; Cláudia Ferreira de Paula Borges<br />
9. Pegadas do fantástico <strong>em</strong> Os negros, de Monteiro Lobato<br />
Ana Maria Zanoni da Silva<br />
10. Literatura, raça, etnia: considerações sobre a literatura negra e<br />
sobre Lima Barreto, um intelectual sitiado<br />
Ana Paula de Freitas Romão-Murari<br />
11. Bioecologia dos crisopídeos e sua importância no controle biológico de pragas<br />
João Luís Ribeiro Ulhôa<br />
11<br />
23<br />
29<br />
39<br />
49<br />
57<br />
63<br />
73<br />
85<br />
93<br />
101
Sumário<br />
12. Um estudo sobre o amor romântico e sua representação<br />
para os gêneros f<strong>em</strong>inino e masculino<br />
Lara Franco Costa<br />
13. Ética e educação: questões de escolhas<br />
Maria Batista da Cruz Silva; Maíza Rodrigues da Silva; Denise Queiroz;<br />
Ana Lúcia de Paula Ferreira Nunes<br />
14. A produção do espaço urbano e centralidade na cidade de Frutal<br />
Adriano Reis de Paula e Silva; Vitor Ribeiro Filho<br />
15. Formação ética para o exercício da docência<br />
Almiro Schulz; Graziela Giusti Pachane<br />
107<br />
121<br />
129<br />
139
ALIENAÇÃO PARENTAL: QUANDO NÃO<br />
SE ELABORA O LUTO DA SEPARAÇÃO<br />
Adailson da Silva Moreira 1 ; Adriana Rafaela Ribeiro 2<br />
RESUMO: O presente estudo aborda a delicada questão da alienação parental, assunto que v<strong>em</strong> despertando a<br />
atenção de muitos pesquisadores das mais diversas áreas face aos resultados catastróficos que ocasiona às crianças<br />
e adolescentes vítimas desse fenômeno. São efeitos que pod<strong>em</strong> passar despercebidos, incluindo a instalação da<br />
chamada Síndrome da Alienação Parental, mas que ao se efetivar<strong>em</strong>, pod<strong>em</strong> gerar sequelas irreversíveis tanto à<br />
criança quanto aos pais, quer seja o alienador ou o alienado. Desse modo, apresentam-se os diversos aspectos<br />
característicos do processo de alienação desde a sua orig<strong>em</strong>, no contexto da separação e disputa pela guarda dos<br />
filhos, até a apresentação de medidas a ser<strong>em</strong> adotadas pelos juristas para que se efetive a proteção dos menores<br />
<strong>em</strong> meio aos conflitos ocasionados pelo processo.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Alienação parental; guarda dos filhos; separação; síndrome.<br />
Introdução<br />
Atualmente, o divórcio t<strong>em</strong> se tornado uma prática<br />
muito comum, uma vez que passou a ser aceito pela<br />
sociedade e regulado pelo ordenamento jurídico,<br />
recebendo a adesão de muitos casais que, já s<strong>em</strong> meios<br />
para salvar o casamento, decid<strong>em</strong> pôr um fim à vida<br />
matrimonial. Porém, o que parece ser o desfecho de<br />
uma fase probl<strong>em</strong>ática pode ser apenas o início de<br />
uma série de conflitos. Isso porque, com a dissolução<br />
conjugal, um dos cônjuges pode não aceitar o final<br />
do relacionamento ou pode acontecer a disputa pela<br />
guarda dos filhos, transformando a situação <strong>em</strong> uma<br />
verdadeira guerra. Nessa contenda, todos sa<strong>em</strong><br />
machucados, principalmente as crianças, pois elas não<br />
contam com a estrutura de ego totalmente formada e<br />
capaz de lhes proteger.<br />
O conflito pode ser exacerbado quando o final do<br />
relacionamento não se deu por mútuo consentimento,<br />
situação que costuma “evocar sentimentos profundos<br />
de tristeza, decepção, desespero, frustração, raiva e<br />
culpa” (PARISI, 2009, p. 384). Nesses casos, qualquer<br />
motivo pode ser pretexto para atacar o ex-cônjuge. Os<br />
filhos estão na linha de frente dessa guerra e passam a<br />
valer como moeda de troca e barganha seja na intenção<br />
de reconstruir o relacionamento desfeito ou como<br />
vingança ao ex-parceiro.<br />
Nesses casos, complicados por natureza, é bastante<br />
comum que a decisão sobre a guarda (quando<br />
permanece com apenas um dos genitores) propicie a<br />
visão de que as crianças sejam propriedade exclusiva.<br />
Isso gera a não aceitação da ideia de que o ex-cônjuge<br />
tenha o direito de participar também da vida dos filhos,<br />
principalmente, se este foi o responsável pelo fim da<br />
vida conjugal.<br />
Assim, inicia-se a chamada “alienação parental”,<br />
<strong>em</strong> que o genitor guardião - geralmente a mãe, mas<br />
também os avós ou aqueles que tenham a criança<br />
ou adolescente sob sua responsabilidade, guarda ou<br />
vigilância (FRANÇA, 2010) -, provido de um desejo de<br />
vingança, procura afastar as crianças do relacionamento<br />
com o não guardião. Para isso, programa e manipula<br />
as crianças a fim de convencê-las que o outro deve ser<br />
excluído de suas vidas, deve ser repudiado.<br />
Ao agir desse modo, o “genitor alienante” não<br />
percebe que os maiores prejudicados são os filhos, elos<br />
mais frágeis da relação. Estes, quando são submetidos<br />
a tal processo, passam a sentir uma profunda rejeição<br />
pelo “genitor alienado”. A essa conduta, estágio mais<br />
avançado do fenômeno, dá-se o nome de Síndrome da<br />
Alienação Parental.<br />
Esse fenômeno v<strong>em</strong> se espalhando como uma<br />
epid<strong>em</strong>ia silenciosa desde muito t<strong>em</strong>po, destruindo o<br />
vínculo entre a criança e seus genitores, que são afastados<br />
1 Professor mestre do curso de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) - Campus de Três Lagoas. Avenida Ranulpho Marques Leal,<br />
3484 – CEP 79620-080 – Três Lagoas – MS. E-mail: adailsonsm@hotmail.com.<br />
2 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) – Campus de Três Lagoas. Avenida Ranulpho Marques Leal, 3484<br />
– CEP 79620-080 – Três Lagoas – MS. E-mail: rafaelaribeiro3@hotmail.com.<br />
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12<br />
de sua convivência. Daí a extr<strong>em</strong>a importância de que o<br />
processo de alienação seja identificado precoc<strong>em</strong>ente,<br />
pois sendo reconhecido e reprimido a t<strong>em</strong>po, não chega<br />
ao estágio de síndrome. Assim, pod<strong>em</strong> ser revertidos<br />
antes de incutir na criança sequelas <strong>em</strong>ocionais que a<br />
acompanhariam por toda a vida.<br />
O presente trabalho aborda os principais aspectos<br />
que envolv<strong>em</strong> a Síndrome da Alienação Parental.<br />
Primeiramente, analisam-se as vertentes históricas<br />
e conceituais, tratando das modificações sofridas pelo<br />
ordenamento jurídico, como o surgimento da separação<br />
judicial e a disputa pela guarda dos filhos que acabam<br />
dando orig<strong>em</strong> à “alienação parental”.<br />
Em seguida, explica-se como se dá o processo<br />
de alienação, suas causas determinantes, efeitos e<br />
consequências, expondo assim os motivos que levam o<br />
“genitor alienante” a iniciar tal processo e seus inúmeros<br />
efeitos, podendo chegar à Síndrome da Alienação<br />
Parental. Além disso, o estudo trata da implantação<br />
de falsas m<strong>em</strong>órias - recurso muito utilizado pelos<br />
“genitores alienantes”-, da proteção e interesse do<br />
menor na disputa - que deve ser preservado acima<br />
de tudo - e da fundamentação legal - as respostas do<br />
judiciário a esse probl<strong>em</strong>a.<br />
Não há como falar da “alienação parental” s<strong>em</strong> antes<br />
tratar de suas origens, natureza, pois apesar de ser um<br />
t<strong>em</strong>a estudado apenas recent<strong>em</strong>ente, ele está enraizado<br />
há muito t<strong>em</strong>po, desde o surgimento da possibilidade<br />
legal da separação judicial e disputa pela guarda dos<br />
filhos. Sendo assim, segue breve histórico sobre essas<br />
duas questões desencadeadoras do processo alienante<br />
<strong>em</strong> terras brasileiras.<br />
1 Desdobramentos históricos<br />
Em matéria matrimonial, por muito t<strong>em</strong>po, o assunto<br />
esteve na competência da Igreja, sendo disciplinado<br />
pelo Direito Canônico (RODRIGUES, 1985). Ele previa<br />
a dissolução apenas por meio das nulidades, anulações<br />
ou morte de um dos cônjuges e admitia a separação<br />
pessoal (ou de corpos), o que não colocava fim ao<br />
casamento, mantendo a co-habitação (CAHALI, 1986).<br />
Devido a esse conservadorismo e à forte influência<br />
religiosa, o casamento não era passível de dissolução<br />
(ROSA, 2010).<br />
Em vários momentos da história, houve tentativas de<br />
instituir o divórcio, principalmente, após a proclamação<br />
da República, ocasião <strong>em</strong> que o Estado se dissociou da<br />
religião, tais como <strong>em</strong> 1890, por iniciativa do ministro<br />
Campos Sales; <strong>em</strong> 1893, pelo deputado Érico Marinho ao<br />
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Adailson da Silva Moreira; Adriana Rafaela Ribeiro<br />
Parlamento; <strong>em</strong> 1896 e 1899, houve tentativas na Câmara<br />
e no Senado; <strong>em</strong> 1900, Martinho Garcez ofereceu, no<br />
Senado, projeto de divórcio vincular (CAHALI, 1986).<br />
Com o Código Civil de 1916, no artigo 315, a situação<br />
praticamente não se alterou, exceto pela instituição<br />
do “desquite” (inciso III). Este apenas autorizava a<br />
separação de corpos, mas não desfazia o vínculo<br />
matrimonial. O artigo 317 enumerava os motivos que<br />
admitiam o desquite (BRASIL, 1916).<br />
Em 1934, houve um grande retrocesso com a<br />
promulgação da Constituição Federal. Esta estabelecia<br />
a indissolubilidade do vínculo conjugal no artigo 144 e<br />
mantinha, no parágrafo único, a possibilidade do desquite<br />
e da anulação (BRASIL, 1934). Nas Constituições<br />
seguintes, houve apenas a repetição desse preceito.<br />
Assim foi na de 1937, artigo 124 (BRASIL, 1937); na<br />
de 1946, artigo 163 (BRASIL, 1946); na de 1967, artigo<br />
167, § 1º (BRASIL, 1967).<br />
Com o t<strong>em</strong>po, a ideia da separação judicial foi<br />
conquistando sua aceitação legal e social, acompanhando<br />
a transformação dos costumes. Intensos debates<br />
parlamentares ocorreram no intervalo de 1951 a<br />
1977 (ARCHANJO, 2008). Finalmente, <strong>em</strong> 1977 foi<br />
promulgada a lei 6.515, que regulamentou o divórcio<br />
(BRASIL, 1977). “A admissão do divórcio no Brasil,<br />
<strong>em</strong>bora tardia, representou um grande progresso e veio<br />
r<strong>em</strong>ediar uma situação de fato de inegável existência e<br />
considerável importância” (RODRIGUES, 1985, p. 214).<br />
É fácil entender o motivo de tanta resistência da<br />
sociedade para a regularização do divórcio.<br />
A perda amorosa t<strong>em</strong> o poder de aniquilar uma<br />
pessoa, o rompimento amoroso representa a<br />
desestruturação e a ruína da organização psíquica<br />
que foi lentamente construída (CAROTENUTO,<br />
1994, p. 32).<br />
Além disso, abala também a estrutura mesma da<br />
sociedade.<br />
Essas transformações foram ocasionadas, dentre<br />
outros fatores, pelo processo de <strong>em</strong>ancipação f<strong>em</strong>inina.<br />
A mulher foi conquistando o seu espaço na sociedade,<br />
especialmente no mercado de trabalho, sendo essa<br />
uma das condições favoráveis ao surgimento da<br />
separação. Tal situação possibilitou à mulher, buscar sua<br />
independência financeira, algo inexistente na época <strong>em</strong><br />
que predominava o sist<strong>em</strong>a patriarcal 3 , fazendo com que<br />
o direito de família passasse por muitas modificações<br />
importantes e significativas (GRAÇAS NETO, 2001).<br />
Conforme a possibilidade da separação foi se<br />
propagando, os conflitos também foram aumentando,<br />
já que o final de um relacionamento s<strong>em</strong>pre produz<br />
traumas e situações difíceis de ser<strong>em</strong> vivenciadas<br />
3 A família era baseada na manutenção da propriedade e de interesses políticos, na constituição de um núcleo homogêneo, <strong>em</strong> que predominavam a<br />
dominação masculina, a submissão da mulher, o casamento entre parentes e a negação da diferenças (FIORELLI; MANGINI, 2009).
com bom senso e tranquilidade, mesmo quando há<br />
consenso. Quando este não existe, quando a separação<br />
não se dá <strong>em</strong> comum acordo entre o casal, os cônjuges,<br />
geralmente, não consegu<strong>em</strong> entrar <strong>em</strong> acordo quanto<br />
à guarda, cuidados, manutenção e educação dos filhos.<br />
Assim, cabe ao judiciário intervir na situação, buscando<br />
mitigar o sofrimento dos menores. A partir daí, visando<br />
d<strong>em</strong>onstrar que teria melhores condições para a<br />
detenção da guarda, os pais começam verdadeiras<br />
batalhas verbais, psicológicas e até físicas.<br />
Essa disputa era impensável até algum t<strong>em</strong>po atrás,<br />
devido à naturalização da função materna, que fazia<br />
com que os filhos ficass<strong>em</strong> sob a guarda da mãe.<br />
Ao pai restava somente o direito de visitas <strong>em</strong> dias<br />
predeterminados, não lhe competindo opinar sobre<br />
a educação dos filhos, já que se encontrava longe do<br />
universo doméstico e familiar, muitas vezes tendo<br />
formado outra família. Com a intensificação das<br />
estruturas de convivência familiar, surgiu uma maior<br />
aproximação da figura paterna com os filhos, além de<br />
uma equidade maior na responsabilização por cuidados<br />
e manutenção de guarda. Esta passou a caber tanto<br />
ao pai quanto à mãe e, <strong>em</strong> alguns casos, passou a ser<br />
repartida, como acontece na guarda compartilhada.<br />
Assim, quando da separação dos genitores, não são<br />
raros os casos <strong>em</strong> que existe disputa pela guarda da<br />
prole (DIAS, 2010).<br />
Para Souza (2010), tal disputa t<strong>em</strong> se tornado cada<br />
vez mais visível, porque atualmente os pais têm uma<br />
maior conscientização quanto à corresponsabilidade<br />
parental na educação dos filhos. Eles não se contentam<br />
<strong>em</strong> ser apenas um pagador de pensão ou um visitante de<br />
final de s<strong>em</strong>ana. Eles quer<strong>em</strong> agir de maneira que “pai”<br />
e/ou “mãe” signifique mais do que uma palavra vazia de<br />
conteúdo, para que venha a agregar os profundos afetos<br />
que a paternidade/maternidade responsável desperta.<br />
É importante destacar que não são todas as<br />
separações judiciais que geram esses conflitos. As<br />
que geram são as litigiosas (não-consensuais), <strong>em</strong> que<br />
a separação é proposta por apenas um dos cônjuges,<br />
podendo resultar assim <strong>em</strong> divergência também quanto<br />
à guarda. Isso não acontece na separação consensual,<br />
<strong>em</strong> que as partes acabam por definir se o exercício da<br />
guarda dos filhos ficará com um deles ou será distribuído<br />
entre os dois na forma compartilhada (DINIZ, 2007).<br />
Tais modalidades de separação vieram com a Lei<br />
do Divórcio (lei n. 6.515 de 1977), que substituindo o<br />
termo “desquite” por “separação judicial”, autorizava<br />
seu pedido por um só dos cônjuges ou por mútuo<br />
consentimento. Tais expressões foram mantidas pelo<br />
legislador no Código Civil de 2002.<br />
E é na separação não consensual que se destaca<br />
o conflito da disputa pela guarda. Ela é estabelecida<br />
Alienação parental: quando não se elabora o luto da separação<br />
atualmente nas seguintes formas: exclusiva, quando<br />
apenas o pai ou a mãe mantém a criança <strong>em</strong> seu lar,<br />
podendo ser visitada pelo que não detém a guarda;<br />
alternada, que é dividida entre pai e mãe, com<br />
mudanças periódicas do filho para a casa de cada um;<br />
e compartilhada, que é um acordo para que os filhos<br />
permaneçam sob autoridade igual de ambos os pais,<br />
ainda que a guarda física fique na maior parte do t<strong>em</strong>po<br />
com apenas um deles (FIORELLI; MANGINI, 2009).<br />
Apesar dessas espécies de guarda ter<strong>em</strong><br />
sido formuladas buscando melhor proteção e<br />
desenvolvimento do menor a fim de garantir-lhe a<br />
necessária convivência com ambos os genitores, <strong>em</strong><br />
muitos casos, ao invés de gerar a satisfação dos genitores<br />
e da criança, provocam mais descontentamento e<br />
divergência. Isso porque muitos pais acabam não<br />
aceitando as condições e, por vingança, jogam seus<br />
filhos contra o outro genitor, alienando-os ou usandoos<br />
como peças de um jogo (ROSA, 2010).<br />
A partir daqui, apresentados os processos sofridos<br />
pela separação e pela disputa de guarda, tornase<br />
possível discorrer sobre o probl<strong>em</strong>a que surge<br />
nesse contexto litigioso: a “alienação parental” e a<br />
consequente “síndrome”.<br />
2 A constelação arquetípica<br />
Um processo de separação, pela própria natureza,<br />
é gerador de traumas e sofrimento psíquico de grande<br />
envergadura, gerador de imagens e ideias que se<br />
aglomeram <strong>em</strong> torno de um núcleo arquetípico. Assim,<br />
formam um complexo que é caracterizado por uma<br />
tonalidade <strong>em</strong>ocional comum (SAMUELS; SHORTER;<br />
PLAUT, 1988). Um complexo “é a imag<strong>em</strong> de uma<br />
determinada situação psíquica de forte carga <strong>em</strong>ocional<br />
e, além disso, incompatível com as disposições ou<br />
atitude habitual da consciência” (JUNG, 1991, p. 99 – §<br />
201, VIII, O.C.).<br />
Evento da natureza de uma separação faz com que<br />
os complexos sejam ativados, ou seja, constelados,<br />
produzindo reações não de forma compatível com a<br />
personalidade, mas com o complexo vivenciado. Os<br />
complexos:<br />
Interfer<strong>em</strong> na intenção da vontade e perturbam<br />
o des<strong>em</strong>penho da consciência; produz<strong>em</strong><br />
perturbações na m<strong>em</strong>ória e bloqueios no<br />
processo das associações; aparec<strong>em</strong> e<br />
desaparec<strong>em</strong>, de acordo com as próprias leis;<br />
obsediam t<strong>em</strong>porariamente a consciência ou<br />
influenciam a fala e ação de maneira inconsciente...<br />
comportam-se como organismos independentes,<br />
fato particularmente manifestado <strong>em</strong> estados<br />
anormais (JUNG, 1991, p. 125 – § 253, VIII, O.C).<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
13
14<br />
Os traumas oriundos da separação vão se reunir <strong>em</strong><br />
torno de arquétipos, que são el<strong>em</strong>entos primordiais e<br />
estruturais da psique humana (SHARP, 1993). Trata-se da<br />
parte herdada da psique, são padrões de estruturação<br />
do des<strong>em</strong>penho psicológico ligados ao instinto; entidade<br />
hipotética que não pode ser representada <strong>em</strong> si mesma,<br />
mas pode ser evidenciada somente através de suas<br />
manifestações (SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988).<br />
Os arquétipos são sist<strong>em</strong>as de prontidão que<br />
são ao mesmo t<strong>em</strong>po imagens e <strong>em</strong>oções. São<br />
hereditários como a estrutura do cérebro. Na<br />
verdade são o aspecto psíquico do cérebro.<br />
Constitu<strong>em</strong>, por um lado, um preconceito<br />
instintivamente forte e, por outro lado, são<br />
os mais eficientes auxiliares das adaptações<br />
instintivas... aquela parte através da qual a psique<br />
está vinculada à natureza (JUNG, 1993, p. 35 – §<br />
53, X/3, O.C.).<br />
Assim, na análise das transformações observadas<br />
na identidade do casal que se separa, o referencial<br />
mitológico permite algumas amplificações significativas.<br />
Afrodite, deusa do amor e da paixão, se mostra<br />
bastante fragilizada, já que o amor acabou. A deusa<br />
perdeu sua batalha (MAGNO) especialmente como<br />
arquétipo f<strong>em</strong>inino. Afrodite, que é a deusa da beleza<br />
incomparável, pode se ver negligenciada, já que muitas<br />
mulheres acabam se descuidando <strong>em</strong> nome dos afazeres<br />
do lar, de ser esposa, mãe e dona de casa, como se<br />
tivesse perdido sua f<strong>em</strong>inilidade (PARISI, 2009).<br />
Outra deusa que também se vê bastante ferida é<br />
Hera, a deusa do casamento e guardiã ciumenta dos<br />
votos do matrimônio (MAGNO). Inconformismo, raiva<br />
e desejos de vingança e justiça são sentimentos surgidos<br />
por esse arquétipo influenciado pela ira vingativa da<br />
deusa que clama por justiça.<br />
Muitas vezes a ruptura da vida conjugal gera<br />
na mãe sentimento de abandono, de rejeição,<br />
de traição, surgindo uma tendência vingativa<br />
muito grande. Quando não consegue elaborar<br />
adequadamente o luto da separação, desencadeia<br />
um processo de destruição, de desmoralização,<br />
de descrédito do ex-cônjuge (DIAS, 2010, p. 1).<br />
Sentimentos de ira, mágoa e raiva pod<strong>em</strong> ser<br />
saudáveis e necessários para o fortalecimento do<br />
ego num primeiro momento dentro do processo de<br />
elaboração do luto pelo final do relacionamento. Mas se<br />
há a permanência nesse estado, tais sentimentos pod<strong>em</strong><br />
manter o indivíduo na posição de vítima, paralisando<br />
seu desenvolvimento (PARISI, 2009).<br />
Nessa circunstância de vitimização, o genitor<br />
guardião, ao ver o interesse do outro genitor - que às<br />
vezes até já constituiu outra família - <strong>em</strong> preservar a<br />
convivência com os filhos, quer vingar-se, afastando<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
Adailson da Silva Moreira; Adriana Rafaela Ribeiro<br />
as crianças dele num processo contínuo de alienação<br />
parental (DIAS, 2010).<br />
3 O que é alienação parental<br />
A “alienação parental” é um assunto pouco conhecido,<br />
discutido e difundido, que v<strong>em</strong> ganhando expressão<br />
no mundo jurídico por seus efeitos catastróficos às<br />
crianças (principalmente) e adolescentes vítimas desse<br />
mal. Consiste na tentativa de um genitor <strong>em</strong> denegrir,<br />
manchar a imag<strong>em</strong> do outro, criando uma hostilidade<br />
entre ele e seu descendente, impedindo a convivência<br />
do filho (que é de ambos) com o outro, promovendo<br />
um afastamento progressivo até torná-lo estranho,<br />
indiferente e agressivo (CABRAL, 2010).<br />
Ullmann define esse fenômeno da<br />
maneira pela qual o genitor que possui a guarda<br />
do menor, ou menores, de forma subliminar<br />
e implícita, sist<strong>em</strong>ática e constante, <strong>em</strong><br />
comportamentos do cotidiano, mata dia a dia,<br />
minuto a minuto, a figura do outro genitor na<br />
vida e no imaginário do filho – ou filhos. [...] O<br />
alienador provoca o afastamento intencional de<br />
um dos pais da vida do filho menor por meio<br />
de comportamentos específicos, inicialmente<br />
apresentando obstáculos ao convívio entre<br />
ambos, distorcendo fatos relativos às partes e<br />
manipulando a verdade da forma que lhe for mais<br />
favorável (ULLMANN, 2009, p. 31).<br />
Trata-se de “artifício utilizado por um genitor para<br />
coibir o direito à convivência familiar do outro genitor”<br />
(TEIXEIRA; BENTZEEN, 2010, p. 409) como forma<br />
de puni-lo pelo final do relacionamento, evidenciando,<br />
por parte do alienante, transtornos psicológicos graves<br />
constelados pelo arquétipo da vingativa deusa Hera<br />
(PARISI, 2009).<br />
A “alienação parental” surge <strong>em</strong> meio ao processo<br />
de dissolução matrimonial, <strong>em</strong> que a guarda dos filhos é<br />
atribuída a apenas um dos cônjuges, e o direito de visita<br />
é garantido ao outro. Porém, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre, as partes<br />
cumpr<strong>em</strong> o estabelecido. Não são raras as vezes <strong>em</strong><br />
que o guardião impõe diversas barreiras à realização<br />
das visitas, usando de vários artifícios e manobras para<br />
obstaculizar os encontros e a convivência do ex-cônjuge<br />
com os filhos. Para isso, o guardião usa de subterfúgios<br />
como doenças inexistentes, compromissos de última<br />
hora, viagens e até mudanças de cidade e/ou país,<br />
entre outros tantos impedimentos frutos exclusivos<br />
da animosidade que ainda reina entre os ex-consortes.<br />
Assim, entende-se que o genitor - geralmente o<br />
detentor da guarda -, que intenta afastar os filhos<br />
do outro genitor, promove a “alienação parental”,<br />
podendo dar ensejo ao aparecimento de uma síndrome
caracterizada pelo apego excessivo e exclusivo da<br />
criança a um dos genitores e o afastamento total ou<br />
parcial do outro (FONSECA, 2010).<br />
No Brasil, assim como na maioria dos países, <strong>em</strong> casos<br />
de separações, uma esmagadora maioria de decisões<br />
judiciais determina a genitora como guardiã dos filhos 4 .<br />
Isso explica a quantidade de casos relatados <strong>em</strong> que a<br />
mãe assume o papel de “agente alienador”. Porém, não<br />
são raros os casos de pais, tios, tias, avós ou padrastos<br />
que estão assumindo consciente ou inconscient<strong>em</strong>ente<br />
o papel de “alienador” (SAVAGLIA, 2009). Ao assumir<br />
a posição de “alienador”, o genitor passa a ter como<br />
principal objetivo, a destruição da imag<strong>em</strong> do outro<br />
diante da criança a fim de acabar com o valor afetivo<br />
que ele possui para com o filho. O “alienador” busca<br />
devastar o império para reinar sozinho, s<strong>em</strong> se importar<br />
a que preço conseguirá imperar sobre os filhos, mesmo<br />
que para isso desorganize o psiquismo deles, reinando<br />
sobre um império devastado (SILVA, 2009).<br />
Diante do exposto, fica evidente que, ao portar-se<br />
desse modo, o “genitor alienante” t<strong>em</strong> como único<br />
objetivo o afastamento entre os filhos e o ex-cônjuge<br />
até que este seja totalmente excluído de suas vidas. No<br />
entanto, são muitos os fatores determinantes de tal<br />
conduta, capazes de fazer com que um pai/mãe use os<br />
próprios filhos como instrumentos de guerra.<br />
3.1 Causas determinantes do<br />
processo de alienação<br />
São inúmeros os fatores que pod<strong>em</strong> levar alguém<br />
a se colocar como “alienador”, entre os principais: o<br />
inconformismo pela separação e/ou pelo sucesso do excônjuge<br />
<strong>em</strong> reconstruir uma nova relação, a divergência <strong>em</strong><br />
relação à divisão de bens ou da guarda dos filhos, ciúmes,<br />
vingança ou até mesmo algum tipo de psicopatologia da<br />
qual sofra a pessoa (SAVAGLIA, 2009). São el<strong>em</strong>entos<br />
constelados no arquétipo da vingança, que passa a nortear<br />
a conduta do alienador, expondo aspectos ocultos ou<br />
inconscientes de si mesmo. Nesse caso, aspectos negativos<br />
que o ego reprimiu ou jamais reconheceu, denominados<br />
“sombra” (SHARP, 1993, p. 149).<br />
A sombra constitui um probl<strong>em</strong>a de ord<strong>em</strong> moral<br />
que desafia a personalidade do eu como um<br />
todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência<br />
desta realidade s<strong>em</strong> despender energias morais<br />
(JUNG, 1982, p. 6 – § 14, IX/2, O.C.).<br />
Tais motivos também são pontuados de modo mais<br />
aprofundado por Fonseca.<br />
Muitas vezes o afastamento da criança v<strong>em</strong> ditado<br />
pelo inconformismo do cônjuge com a separação;<br />
Alienação parental: quando não se elabora o luto da separação<br />
<strong>em</strong> outras situações, funda-se na insatisfação<br />
do genitor alienante, ora com as condições<br />
econômicas advindas do fim do vínculo conjugal, ora<br />
com as razões que conduziram ao desfazimento do<br />
matrimônio, principalmente quando este se dá <strong>em</strong><br />
decorrência de adultério e, mais frequent<strong>em</strong>ente,<br />
quando o ex-cônjuge prossegue a relação com<br />
o parceiro da relação extra-matrimonial. Neste<br />
último caso, o alijamento dos filhos de um dos pais<br />
resulta de um sentimento de retaliação por parte do<br />
ex-cônjuge abandonado, que entrevê na criança o<br />
instrumento perfeito da mais acabada vindita. Pode<br />
suceder também que a exclusividade da posse dos<br />
filhos revele-se como conseqüência do desejo de<br />
não os ver partilhar da convivência com aqueles<br />
que vier<strong>em</strong> a se relacionar com o ex-cônjuge –<br />
independente de ter<strong>em</strong> sido eles os responsáveis<br />
pelo rompimento do vínculo matrimonial. Em<br />
outra hipótese, não de rara ocorrência, a alienação<br />
promovida apresenta-se como mero resultado da<br />
posse exclusiva que o genitor pretende ter sobre os<br />
filhos (FONSECA, 2010, p. 4).<br />
Essas reações e <strong>em</strong>oções vêm se manifestando <strong>em</strong><br />
muitas pessoas envolvidas <strong>em</strong> processos de separação,<br />
pois muitas vezes a ruptura da vida conjugal gera <strong>em</strong><br />
um dos pais, forte sentimento de rejeição, abandono<br />
e traição, surgindo então uma tendência vingativa<br />
muito grande. Assim, por não conseguir elaborar<br />
adequadamente o luto da separação, ao perceber que<br />
o outro está interessado <strong>em</strong> preservar a convivência<br />
com o filho, resolve vingar-se, desencadeando um<br />
processo de destruição, desmoralização, descrédito do<br />
ex-cônjuge, afastando-o das crianças (DIAS, 2010, p. 1).<br />
Nesse caso, os mecanismos inconscientes, que<br />
certamente contribuíram para a separação, se perpetuam,<br />
já que o luto não elaborado congela o desenvolvimento,<br />
e o abandono do(a) parceiro(a) permanece como uma<br />
sentença condenatória de fracasso e incapacidade, que<br />
ocasiona raiva e aprisiona a pessoa na posição de vítima<br />
injustiçada (PARISI, 2009, p. 388).<br />
Embora o objetivo da alienação seja s<strong>em</strong>pre o<br />
banimento do outro genitor da vida do filho, as razões<br />
para tal são bastante diversificadas. Elas pod<strong>em</strong> resultar<br />
das circunstâncias da separação e da constelação surgida<br />
pelo arquétipo do casamento desfeito; por assumir o<br />
“genitor alienante” a conduta exclusivista, que denota<br />
deformação de personalidade; ou ainda pela motivação<br />
de um espírito de vingança ou inveja. E não acabam por<br />
aí, pois os motivos que determinam essa prática são das<br />
mais distintas naturezas.<br />
Às vezes é a solidão a que se vê relegado o<br />
ex-cônjuge, especialmente quando não t<strong>em</strong><br />
familiares próximos, o que leva-o a não prescindir<br />
4 Culturalmente a responsabilidade pela criação e educação dos filhos ainda é da mãe, <strong>em</strong>bora haja mudanças à vista na estrutura familiar.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
15
16<br />
da companhia dos filhos; outras vezes é a falta de<br />
confiança, fundada ou infundada, <strong>em</strong> que o excônjuge<br />
titular da guarda nutre pelo ex-consorte<br />
para cuidar dos filhos. Em determinadas situações,<br />
a alienação representa mera conseqüência do<br />
desejo de o alienante deter, apenas para si, o amor<br />
do filho, algumas outras vezes resulta do ódio<br />
que o genitor alienante nutre pelo alienado, ou<br />
mesmo do simples fato de julgar o outro indigno<br />
do amor da criança (FONSECA, 2010, p. 4.).<br />
Nesses casos extr<strong>em</strong>os, mas não raros, a solidão pode<br />
ser el<strong>em</strong>ento desencadeador de todo o sofrimento.<br />
Ela sinaliza a perda de conexão com o self e a vivência<br />
do sentimento de perda relacionada aos conteúdos<br />
que foram projetados no(a) parceiro(a) e no vínculo<br />
conjugal. Não sendo raro o relato da sensação de<br />
“faltar um pedaço” e de desamparo que uma separação<br />
ocasiona (PARISI, 2009, p. 386).<br />
É de se considerar ainda que a depressão, da qual<br />
pode padecer o “progenitor alienante”, e a dificuldade<br />
de relacionamento entre os pais também são fatores<br />
motivadores da “alienação parental”, podendo ser<br />
causada até mesmo pela diversidade de estilos de vida.<br />
Esta última opção pode ocorrer devido ao receio por<br />
parte do “alienante”, de que a criança possa adotar ou<br />
preferir o modus vivendi por ele não adotado (FONSECA,<br />
2010, p. 4).<br />
O alienante d<strong>em</strong>onstra que a separação é uma situação<br />
<strong>em</strong>ocionalmente mal resolvida, sendo a verdadeira razão<br />
para seu comportamento (TEIXEIRA; BENTZEEN,<br />
2010, p. 410). O que sobra da conjugalidade leva os<br />
ex-cônjuges a se constituír<strong>em</strong> <strong>em</strong> homens e mulheres<br />
feridos, enganados, lesados e a esquecer<strong>em</strong>-se de que<br />
dessa relação assumiram o papel definitivo de pai e mãe,<br />
ao qual não há como renunciar (SOUZA, 2001, p. 29.).<br />
3.2 Efeitos e consequências<br />
A criança que é submetida à “alienação parental” e<br />
influenciada a odiar o outro genitor vai enfraquecendo<br />
aos poucos um vínculo que seria de extr<strong>em</strong>a importância<br />
<strong>em</strong> sua vida e que, com o t<strong>em</strong>po, torna-se irreparável.<br />
Isso acarreta graves consequências tanto para ela<br />
quanto para o genitor vítima.<br />
Isso acontece porque durante o processo, o “genitor<br />
alienado” passa a ser alguém totalmente estranho à<br />
criança, fazendo com que ela desenvolva diversos<br />
sintomas e transtornos psiquiátricos. Estes transtornos,<br />
não sendo tratados adequadamente, gerarão sequelas<br />
capazes de perdurar pelo resto de sua vida. Na fase<br />
adulta, tal criança poderá carregar um complexo de<br />
culpa e rejeição ou até mesmo repetir o processo<br />
alienatório ao qual foi submetida por considerar o<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
Adailson da Silva Moreira; Adriana Rafaela Ribeiro<br />
comportamento do “genitor alienante” como único<br />
modelo a ser seguido (ROSA, 2010, p. 15).<br />
É importante destacar que, consumadas a “alienação”<br />
e a desistência do “alienado” de estar com os filhos,<br />
t<strong>em</strong> lugar a Síndrome da Alienação Parental (SAP).<br />
Sendo assim, é certo que as sequelas de tal processo<br />
patológico comprometerão, definitivamente, o normal<br />
desenvolvimento da criança. A síndrome, uma vez<br />
instalada no menor, enseja que ele, quando adulto,<br />
desenvolva um grave complexo de culpa por ter sido<br />
cúmplice de uma grande injustiça contra o “genitor<br />
alienado”. Por outro lado, o “genitor alienante” passa a<br />
ter papel de principal e único modelo para a criança, que<br />
no futuro tenderá a repetir o mesmo comportamento<br />
(HIRONAKA; MONACO, 2010, p. 2).<br />
Os efeitos da “síndrome” pod<strong>em</strong> se manifestar nas<br />
perdas importantes, como na morte de familiares, já<br />
que a vivência, para a criança, é s<strong>em</strong>elhante a esse tipo<br />
de perda, pois a criança passa a apresentar diversos<br />
sintomas, mostrando-se ansiosa, deprimida, nervosa<br />
e principalmente agressiva. São relatados casos <strong>em</strong><br />
que as consequências são ainda mais graves, chegando<br />
a depressão crônica, transtornos de identidade,<br />
comportamento hostil, desorganização mental e, às<br />
vezes, suicídio. Não se esquecendo da tendência ao<br />
alcoolismo e ao uso de drogas que, como toda conduta<br />
inadequada, também pode acometer a pessoa vítima da<br />
“síndrome” (FONSECA, 2010, p. 6-7).<br />
Há casos extr<strong>em</strong>os <strong>em</strong> que o genitor alienante, não<br />
conseguindo atingir seu objetivo de afastar o ex-cônjuge,<br />
busca alcançá-lo através do “extermínio” do genitor que<br />
pretendia alienar ou mesmo do próprio filho.<br />
Verificam-se ainda casos de situação extr<strong>em</strong>a <strong>em</strong><br />
que a pressão psicológica é tanta que o pai-vítima<br />
acaba sucumbindo, como no trágico episódio de<br />
abril de 2009, <strong>em</strong> que jov<strong>em</strong> e ilustre advogado,<br />
autor de livros, Doutor e Professor da USP/Largo<br />
São Francisco, cotado para vaga de ministro<br />
do TSE, famoso pela calma e moderação, aos<br />
39 anos de idade, matou o próprio filho de 5<br />
anos e cometeu suicídio. Em levantamentos<br />
preliminares, restou apurado que os pais estavam<br />
<strong>em</strong> meio a uma acirrada disputa pela guarda da<br />
criança, e que a mãe tentava, a qualquer custo,<br />
afastar o filho do pai (PINHO, 2010, p. 3).<br />
Os efeitos aqui apresentados, que surg<strong>em</strong><br />
devido à alienação, são duradouros e se perenizam<br />
indefinidamente ou persist<strong>em</strong> próximo à independência<br />
<strong>em</strong>ocional da criança ao final da adolescência. Torna-se<br />
indispensável que os profissionais implicados tenham a<br />
sensibilidade de identificar e intervir adequadamente<br />
no conflito resultante das probl<strong>em</strong>áticas paternas e<br />
maternas da disputa pelos filhos (SILVA, 2009).
Por essas razões, instigar a “alienação parental” <strong>em</strong><br />
criança, atualmente, é uma prática considerada abusiva,<br />
comparada ao abuso sexual e físico, pois não apenas o<br />
“genitor alienado” irá sofrer com isso, mas todos os que<br />
faz<strong>em</strong> parte da vida da criança, incluindo os familiares 5 .<br />
4 Identificação da síndrome<br />
da alienação parental<br />
A síndrome não se confunde com a mera “alienação<br />
parental”, pois aquela geralmente é decorrente desta.<br />
Assim, entende-se que a “alienação parental” é o processo<br />
de afastamento do filho de um dos genitores provocado<br />
pelo outro. Enquanto a Síndrome da Alienação Parental<br />
refere-se às sequelas <strong>em</strong>ocionais e comportamentais que<br />
atingirão a criança vítima daquele afastamento. Desse<br />
modo, enquanto a síndrome diz respeito à conduta do<br />
filho que se recusa insistent<strong>em</strong>ente ao contato com<br />
um dos genitores, a “alienação parental” está ligada ao<br />
processo desencadeado pelo genitor que visa afastar o<br />
outro da vida do filho (FONSECA, 2010, p. 3).<br />
Buscando a identificação de uma criança alienada,<br />
percebe-se que o filho vítima desse processo, t<strong>em</strong>endo<br />
sofrer com castigos e ameaças por desobedecer ou<br />
desagradar o “genitor alienador”, passa a se submeter a tudo<br />
que ele determina. Assim, cria-se a situação de dependência<br />
e submissão às provas de lealdade, devido ao medo do filho<br />
de ser abandonado e perder o amor dos pais.<br />
É muito importante que aconteça a identificação da<br />
Síndrome da Alienação Parental, pois na maioria dos<br />
casos, o “alienante” pode acusar o outro de cometer<br />
abusos de natureza física, sexual e/ou psicológica,<br />
enquanto o “alienado” tenderá a acusá-lo de programar<br />
os filhos contra ele. Assim, <strong>em</strong> meio a esse conflito, o<br />
filho terá que decidir <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> irá acreditar e confiar,<br />
manifestando forte oposição, resistência ou rejeição a<br />
um dos seus pais e sofrendo consequencias gravíssimas<br />
à sua formação (ROSA, 2010, p. 20).<br />
O grande desafio é detectar quando a síndrome está<br />
efetivamente presente ou quando a repulsa do filho é<br />
justificada. A rejeição ao não-guardião pode resultar de<br />
uma programação mental realizada pelo “alienador”,<br />
mas pode refletir também uma conduta inadequada do<br />
próprio não-guardião. Isso porque atualmente a falsa<br />
denúncia de abuso sexual v<strong>em</strong> sendo uma estratégia<br />
muito utilizada pelos “genitores alienadores”. Porém,<br />
deve-se destacar que, do mesmo modo que pod<strong>em</strong><br />
existir falsas denúncias de abusos (sexuais, psicológicos,<br />
físicos), também exist<strong>em</strong> as falsas denúncias de<br />
Síndrome da Alienação Parental nos casos <strong>em</strong> que o<br />
Alienação parental: quando não se elabora o luto da separação<br />
genitor realmente comete abusos e, tentando justificar<br />
as acusações do outro genitor, contra-ataca, acusando-o<br />
falsamente de estar alienando os filhos (SOUZA, 2010).<br />
Souza (2002) compl<strong>em</strong>enta que, ao sofrer influências<br />
do genitor guardião, o filho fica tão “envenenado” que<br />
rejeita o “genitor alienado” de um modo muitas vezes<br />
irrecuperável, pois o próprio filho se envolve no processo<br />
de afastamento, distanciando-se afetivamente de um<br />
genitor que o ama devido a uma falsa compreensão<br />
da realidade. Desse modo, se a síndrome não for<br />
adequadamente identificada e tratada, pode ainda<br />
perdurar por várias gerações através de uma repetição<br />
incessante, seguindo os modelos de educação e de<br />
construção de afetos que foram assimilados pela criança<br />
durante o processo de manipulação (SOUZA, 2010).<br />
Percebe-se a grande relevância e periculosidade da<br />
“alienação parental” e o modo como pode influenciar<br />
negativamente na vida das pessoas atingidas por ela,<br />
principalmente, as crianças e adolescentes, que acabam<br />
sendo acometidos pela instalação da síndrome.<br />
Devido à gravidade dessa situação, é necessário<br />
que todos os profissionais que lidam com as famílias<br />
<strong>em</strong> ruptura fiqu<strong>em</strong> atentos à existência da Síndrome<br />
da Alienação Parental a fim de que possam identificar<br />
seus primeiros sintomas. Assim, é possível intervir<br />
rapidamente através de medidas como a fixação de<br />
visitas (monitoradas ou <strong>em</strong> locais públicos), advertências<br />
ao “alienador”, encaminhamento dos pais a tratamento<br />
psicológico ou psiquiátrico, arbitramento de multa (caso<br />
descumprida a visitação judicialmente regulamentada),<br />
inversão da guarda, ou ainda, suspensão ou destituição<br />
da autoridade parental, conforme a lei n. 12.318 de 26<br />
de agosto de 2010 (SOUZA, 2010, p. 1).<br />
4.1 Implantação de falsas m<strong>em</strong>órias<br />
Como apresentado no decorrer deste trabalho, o<br />
“genitor alienador”, buscando incansavelmente afastar<br />
o outro, vê a criança como peça de um jogo de vingança,<br />
manipulando-a a fim de atingir o ex-cônjuge, utilizandose<br />
dos mais variados recursos que o possibilit<strong>em</strong><br />
alcançar o seu objetivo.<br />
Esses recursos implicam <strong>em</strong> efeitos gravíssimos ao<br />
desenvolvimento da criança, pois o que começa com<br />
uma campanha difamatória ou imposição de obstáculos à<br />
convivência do outro genitor pode ser levado à gravidade<br />
extr<strong>em</strong>a quando passa a consolidar na mente da criança<br />
fatos, sensações e impressões que jamais existiram.<br />
Assim, o alienador fornece ao menor informações<br />
sobre o “alienado” que muitas vezes são falsas e que<br />
5 Conforme preconizado pela lei n. 12.318 de 26 de agosto de 2010, que dispõe sobre a alienação parental, alterando o artigo 236 do Estatuto da Criança e<br />
do Adolescente (ECA) e estabelecendo penalidades no artigo 6º, tais como multa (inciso III), alteração de guarda (inciso V), dentre outros.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
17
18<br />
sendo repetidas por dias, meses ou anos, acabam<br />
impregnando a mente e o imaginário infantil, que, <strong>em</strong><br />
muitos momentos, confunde realidade com fantasia. As<br />
falsas narrativas pod<strong>em</strong> ser referentes a maus-tratos,<br />
episódios inexistentes de descaso, abandono ou até<br />
falsas denúncias de abuso sexual (ULLMANN, 2009).<br />
A última é a forma mais grave e comprometedora e<br />
relata um lado mais pesado da vingança, pois sacrifica<br />
o próprio filho. Ela ocorre nos casos de separação mal<br />
resolvidos e mal elaborados <strong>em</strong> que surge uma tendência<br />
vingativa muito grande, constelada pelo mito arquetípico.<br />
Essa situação pode se tornar ainda mais grave quando<br />
a acusação é levada ao universo jurídico. Nesse caso,<br />
o juiz, buscando uma proteção integral à criança, toma<br />
medidas que obrigam o afastamento do acusado ou que<br />
o submeta a visitas monitoradas. Com isso, o “alienador”<br />
consegue uma vitória parcial, pois o t<strong>em</strong>po e a limitação<br />
de contato entre o “genitor alienado” e o filho jogam a<br />
seu favor (ROSA, 2010, p. 23).<br />
A essas informações inventadas dá-se o nome de<br />
“falsas m<strong>em</strong>órias” ou “implantação de m<strong>em</strong>ória”,<br />
processo <strong>em</strong> que a pessoa recorda-se de um fato ou uma<br />
experiência que nunca ocorreu (CALLEGARO, 2007).<br />
Segundo Ullmann (2009), essa m<strong>em</strong>ória consiste na<br />
recordação de fatos ocorridos na vida de uma pessoa. A<br />
“m<strong>em</strong>ória introduzida” ou a “falsa m<strong>em</strong>ória” é, portanto,<br />
aquela baseada <strong>em</strong> fatos que jamais ocorreram, calcada<br />
<strong>em</strong> sugestões e informações enganosas. Desse modo,<br />
quando uma pessoa que presenciou determinada<br />
situação é exposta a informações enganosas ou<br />
inverídicas sobre o fato, frequent<strong>em</strong>ente, ela produz<br />
m<strong>em</strong>órias distorcidas sobre tal, pois existindo um mero<br />
indício de veracidade, o resto se constrói, se reconstrói<br />
e se destrói. Isso acontece devido ao poder que as<br />
informações incorretas ou enganosas têm para invadir<br />
a m<strong>em</strong>ória e transformá-la ou corroê-la, dependendo<br />
da forma como são impostas ou colocadas. Valendo-se,<br />
assim, a máxima de que uma mentira repetida muitas<br />
vezes se transforma <strong>em</strong> verdade, podendo construir<br />
uma recordação inexistente (ULLMANN, 2009).<br />
Tal recurso passa a ser usado pelo “alienador” como<br />
uma arma <strong>em</strong> seu jogo de manipulações, convencendo o<br />
filho da existência de um fato, levando-o a repetir o que lhe<br />
é afirmado como se tivesse realmente acontecido. Exist<strong>em</strong><br />
casos <strong>em</strong> que a criança não percebe mais que está sendo<br />
manipulada, acreditando naquilo que lhe foi dito insistente e<br />
repetidamente, s<strong>em</strong> saber distinguir a realidade da fantasia.<br />
Com o t<strong>em</strong>po, n<strong>em</strong> mesmo o “alienador” consegue fazer<br />
essa distinção e a sua verdade passa a ser verdade para o<br />
filho, que começa a viver com falsas personagens de uma<br />
falsa existência (DIAS, 2010).<br />
Diante dessas informações que explicam <strong>em</strong><br />
que consiste e como se dá a implantação de falsas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
Adailson da Silva Moreira; Adriana Rafaela Ribeiro<br />
m<strong>em</strong>órias, fica evidente a gravidade de tal situação, pois<br />
o genitor, usando a criança como objeto, provoca-lhe<br />
sequelas de grande dimensão. Essas sequelas se tornam<br />
ainda mais profundas quando a implantação decorre<br />
na falsa acusação de abuso sexual, pois quando o juiz<br />
atribui a suspensão ou monitoramento das visitas ao<br />
acusado, acontece um afastamento enorme entre ele<br />
e o filho. Assim, ao poucos, vai cessando a convivência<br />
e a confiança, quebrando-se um vínculo que leva muito<br />
t<strong>em</strong>po para ser reconstruído, se houver a possibilidade.<br />
S<strong>em</strong> contar que ao se efetivar tal denúncia, a criança<br />
é exposta a um processo muito traumático, pois <strong>em</strong><br />
meio às investigações para apurar a veracidade da<br />
acusação, ela é submetida a inúmeros procedimentos<br />
– inquirição por psicólogos, policiais, parentes, amigos,<br />
exames ginecológicos, exames no Instituto Médico<br />
Legal, conversas com advogados e assistentes sociais e<br />
ainda oitiva do menor pelo Ministério Publico e juízes<br />
(ULLMANN, 2009).<br />
Evidencia-se então a imensa importância de que<br />
os operadores do direito e da psicologia, assim como<br />
as famílias, saibam diferenciar as falsas m<strong>em</strong>órias<br />
implantadas no processo alienatório dos casos de abuso<br />
ou descuido reais. É necessário tratar tal questão com<br />
muita cautela para que não se cometam injustiças que<br />
destruam a vida de muitas crianças, assim como a dos<br />
genitores acusados indevidamente.<br />
5 Proteção e interesse do<br />
menor nas disputas<br />
É incontestável que os filhos precisam de ambos os<br />
pais para que sua personalidade seja estruturada de<br />
forma saudável. Portanto, negar à criança a presença<br />
de um dos genitores, acaba condenando-a a uma<br />
amputação psíquica de consequências imponderáveis.<br />
Esse convívio deve ser garantido para que se resguarde<br />
o superior interesse das crianças <strong>em</strong> detrimento do<br />
interesse dos pais (SOUZA, 2010).<br />
Daí entende-se que no complexo universo da<br />
“alienação parental”, que se encontra s<strong>em</strong>pre<br />
relacionado com a separação e a disputa de guarda, é<br />
extr<strong>em</strong>amente necessário que haja uma efetiva proteção<br />
ao melhor interesse do menor, não o submetendo à<br />
vontade dos adultos, como se fosse objeto do desejo<br />
deles, garantindo que não seja afastado do convívio<br />
com qualquer dos pais. Tal necessidade é destacada por<br />
Lourenço (2001) ao explicar que garantir os melhores<br />
interesses da criança é permitir que ela se torne sujeito<br />
desejante, abandonando o lugar de assumir o desejo do<br />
outro e passando a assumir o seu próprio desejo.<br />
Considerando como interesse da criança, o interesse<br />
mediato (aquele interesse <strong>em</strong> resguardar e b<strong>em</strong>-
formar a sua personalidade) e não o imediato, que<br />
possa ter sido implantado <strong>em</strong> sua essência, dirigindo-se<br />
eventualmente a uma ou outra direção. Sendo assim, o<br />
interesse da criança fica entendido como um desejo da<br />
sociedade de que ela tenha uma boa formação, sendo<br />
necessário que, ao rompimento da família, ela continue<br />
recebendo cuidados e atenção plena de ambos os pais.<br />
Caso contrário, a criança será submetida a efeitos<br />
negativos como a Síndrome da Alienação Parental<br />
(HIRONAKA; MONACO, 2010).<br />
Essa continuidade de relacionamento a ser mantida<br />
consiste na efetiva garantia da proteção ao interesse do<br />
menor, sendo assim garantido pela legislação brasileira<br />
através do chamado direito de visita, fundamentado pelo<br />
artigo 1.589 do Código Civil de 2002. Este estabelece<br />
que o pai ou a mãe que não seja o detentor da guarda<br />
dos filhos poderá visitá-los ou tê-los <strong>em</strong> sua companhia<br />
conforme acordado entre os cônjuges ou fixado pelo juiz.<br />
Portanto, fica claro que a criança não pode ser<br />
privada do convívio sadio com ambos os pais, o que<br />
geralmente acontece no processo de “alienação”,<br />
quando o “genitor alienante” pensa estar ferindo apenas<br />
o ex-cônjuge, impedindo-o de ter contato com os<br />
filhos. Assim, ele comete um grande erro, pois o filho,<br />
o verdadeiro titular do direito de visita, acaba tendo o<br />
seu direito cerceado (SILVA, 2009).<br />
5.1 Fundamentação legal<br />
Em função dessa postura, entrou <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong> 26<br />
de agosto de 2010, a lei n. 12.318, que regulamenta<br />
a alienação parental, definindo-a e estabelecendo<br />
penalidades, b<strong>em</strong> como a conduta dos profissionais<br />
envolvidos na pesquisa e apuração desse fenômeno.<br />
Identificar a “alienação parental” e evitar que<br />
esse maléfico processo afete a criança e se converta<br />
<strong>em</strong> síndrome são tarefas que se impõ<strong>em</strong> ao Poder<br />
Judiciário, que para isso deve contar com o concurso<br />
de assistentes sociais e, principalmente, de psicólogos<br />
(FONSECA, 2010, p. 8).<br />
Assim, sendo identificado o processo de alienação, é<br />
necessário que o judiciário aborte seu desenvolvimento,<br />
impedindo a instalação da síndrome. Muitas vezes, até<br />
mesmo devido a uma inadequada formação, os juízes<br />
de família faz<strong>em</strong> vistas grossas a situações que, se<br />
examinadas com mais cautela, poderiam ser identificadas<br />
antes de se transformar<strong>em</strong> <strong>em</strong> tal distúrbio.<br />
Para que isso ocorra, Fonseca destaca alguns<br />
procedimentos que deveriam ser adotados e<br />
providenciados pelos juízes.<br />
É imperioso que os juízes se dê<strong>em</strong> conta dos<br />
el<strong>em</strong>entos identificadores da alienação parental,<br />
determinando, nesses casos, rigorosa perícia<br />
Alienação parental: quando não se elabora o luto da separação<br />
psicossocial, para então ordenar as medidas<br />
necessárias para a proteção do infante. Observese<br />
que não se cuida de exigir do magistrado - que<br />
não t<strong>em</strong> formação <strong>em</strong> Psicologia - o diagnóstico<br />
da alienação parental. No entanto, o que não se<br />
pode tolerar é que, diante da presença de seus<br />
el<strong>em</strong>entos identificadores, não adote o julgador,<br />
com urgência máxima, as providências adequadas,<br />
dentre elas, o exame psicológico e psiquiátrico das<br />
partes envolvidas (FONSECA, 2010, p. 7).<br />
Na verdade, a omissão e desinformação por parte dos<br />
juízes são apenas algumas das muitas barreiras encontradas<br />
na luta contra a “alienação parental” e a decorrente<br />
síndrome, uma vez que a maioria dos juristas não aceita<br />
ou desconhece tal fenômeno. Isso por ser um t<strong>em</strong>a que só<br />
atualmente v<strong>em</strong> ganhando discussão no mundo jurídico, o<br />
que dificulta imensamente a sua repressão.<br />
Porém, aos poucos, já se ve<strong>em</strong> algumas formas<br />
de manifestação como uma espécie de resposta do<br />
judiciário ao fenômeno da “alienação parental”. São<br />
manifestações advindas de uma minoria de juristas que<br />
já analisa e reconhece a existência e os graves efeitos de<br />
tal conduta. Eles vêm buscando meios que possibilit<strong>em</strong><br />
a detenção dessa alienação, tentando aos poucos inserir<br />
às legislações brasileiras medidas eficazes que possam<br />
ser aplicadas no combate a esse novo mal.<br />
É importante destacar que leis e artigos não são<br />
os únicos meios de proteção ao interesse da criança.<br />
Os próprios pais dev<strong>em</strong> ter consciência do que estão<br />
causando aos seus filhos ao utilizá-los como peças de<br />
um jogo de vingança. O pai ou a mãe, ao perceber que<br />
algum dos dois está prejudicando os filhos, deve buscar<br />
protegê-los, recorrendo ao judiciário para que interfira<br />
e resolva a situação (ROSA, 2010, p. 8).<br />
Conclusão<br />
Diante das informações apresentadas neste estudo,<br />
fica evidente como se dá o complexo processo da<br />
“alienação parental”, que surge <strong>em</strong> meio aos conflitos<br />
familiares, destruindo vínculos e dilacerando a vida de<br />
muitas crianças e seus pais.<br />
Percebe-se que o início dessa conduta alienante se<br />
dá, geralmente, após o fim da sociedade matrimonial,<br />
quando os ex-cônjuges, não conseguindo chegar a um<br />
acordo, iniciam uma disputa pela detenção da guarda<br />
dos filhos. Para isso, muitas vezes, eles usam meios<br />
obscuros e inconsequentes para alcançar<strong>em</strong> seus<br />
objetivos, gerando assim probl<strong>em</strong>as b<strong>em</strong> maiores do<br />
que os que já existiam. Isso acontece quando um dos<br />
cônjuges, não conseguindo elaborar o luto da separação,<br />
começa a cultivar um forte sentimento de vingança <strong>em</strong><br />
relação ao outro. Assim, busca atingir o outro de algum<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
19
20<br />
modo e acaba usando os filhos como instrumento para<br />
feri-lo, tentando aos poucos afastá-lo de sua vida, vendo<br />
essa conduta como a melhor forma de fazê-lo sofrer.<br />
Dessa maneira, inicia-se o processo de “alienação<br />
parental”, estando o genitor inconformado com a<br />
separação e não aceitando a ideia de dividir o convívio<br />
dos filhos com o outro. Para isso, o alienante usa dos<br />
mais diversos artifícios para causar o afastamento entre<br />
eles, destruindo a imag<strong>em</strong> do outro perante as crianças<br />
e implantando na m<strong>em</strong>ória delas fatos inexistentes,<br />
criando obstáculos à realização das visitas, chegando<br />
até mesmo a imputar a falsa acusação de abuso sexual<br />
ao genitor que está sendo alienado.<br />
Dessa forma, o “genitor alienador” vai alcançando o<br />
seu objetivo, aplicando os mais desprezíveis métodos para<br />
alcançar a definitiva separação entre o ex-cônjuge e os<br />
filhos. Porém, ainda pior que essa conduta por ele adotada,<br />
são os efeitos que ocasionam à criança, maior vítima desse<br />
conflito. Entre os piores está a instalação da Síndrome da<br />
Alienação Parental, que, ao se efetivar, atribui à criança<br />
sequelas que ela carregará por toda a vida.<br />
Evidencia-se, assim, o imenso mal que a “alienação<br />
parental” v<strong>em</strong> acarretando, destruindo o importante<br />
vínculo familiar existente entre pais e filhos, relação<br />
que se procurava cultivar mesmo após a separação,<br />
mas que v<strong>em</strong> se tornando cada vez mais impossível<br />
devido aos efeitos da “alienação”. Por isso, ressalta-se<br />
aqui, a extr<strong>em</strong>a importância de se combater este mal,<br />
necessitando que toda a sociedade se <strong>em</strong>penhe para<br />
combatê-lo, cobrando uma resposta do ordenamento<br />
jurídico para que se possa punir os responsáveis pela<br />
conduta alienante. Só identificando e punindo-a, é<br />
possível extingui-la, garantindo a proteção aos direitos<br />
das crianças e adolescentes.<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22<br />
21
22<br />
Adailson da Silva Moreira; Adriana Rafaela Ribeiro<br />
PARENTAL ALIENATION: WHEN NOT DESIGNS<br />
THE MOURNING OF SEPARATION<br />
ABSTRACT: This study addresses the delicate issue of parental alienation, a subject that is attracting the attention<br />
of many researchers from various fields, given the catastrophic effects that cause children and adolescents victims<br />
of this phenomenon that may go unnoticed, including the installation of so-called syndrome Parental Alienation,<br />
which to be effective, can cause irreversible consequences, both the child and parents, whether the or the seller<br />
sold. Thus, it presents the various characteristic features of the process of alienation, since its inception, beginning<br />
in the context of separation and dispute over the custody of the children, even the provision of measures to be<br />
taken by lawyers, in order to accomplish the protection of minors in the midst of conflicts caused by the process.<br />
KEYWORDS: Parental alienation; child custody; separation; syndrome.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 11-22
DEMOCRACIA E SOCIEDADE:<br />
AVANÇOS E LIMITES DA CIDADANIA NO BRASIL<br />
José Henrique Singolano Néspoli 1<br />
RESUMO: Na interpretação da história do Brasil, importantes intelectuais brasileiros concordam que a ideia<br />
de d<strong>em</strong>ocracia não t<strong>em</strong> grande enraizamento no país, n<strong>em</strong> nas relações cotidianas da sociedade e muito menos<br />
na condução das questões de Estado. No entanto, durante o período da Transição D<strong>em</strong>ocrática (1974-1989),<br />
ocorreram mudanças na sociedade brasileira que provocaram a <strong>em</strong>ergência de uma nova cultura política, formando<br />
um amplo consenso <strong>em</strong> torno do regime d<strong>em</strong>ocrático ao final daquele período. Contudo, o estudo da atual<br />
experiência d<strong>em</strong>ocrática brasileira t<strong>em</strong> confirmado o prognóstico de que a efetivação dos direitos e da cidadania<br />
que esse regime propõe encontra seus limites nas desigualdades sociais, que se configuram <strong>em</strong> obstáculos para a<br />
participação política da sociedade.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Ciência política; cultura política; d<strong>em</strong>ocracia no Brasil; relação Estado e sociedade.<br />
Introdução<br />
Duas décadas após ser instaurado, ainda hoje, pairam<br />
sérias dúvidas quanto à efetividade ou concretude do<br />
regime d<strong>em</strong>ocrático no Brasil. Vinte anos se passaram<br />
desde o retorno da d<strong>em</strong>ocracia e ainda é b<strong>em</strong> clara<br />
a distância que separa o Brasil legal do Brasil real. A<br />
reflexão sobre a experiência d<strong>em</strong>ocrática brasileira t<strong>em</strong><br />
levado muitos pesquisadores a afirmar<strong>em</strong> que para o<br />
bom funcionamento da d<strong>em</strong>ocracia num país, não basta<br />
uma legislação favorável à d<strong>em</strong>ocracia. Cada vez mais<br />
os pesquisadores se convenc<strong>em</strong> de que a efetivação do<br />
regime d<strong>em</strong>ocrático requer além de leis. É necessário<br />
um conjunto de condições e comportamentos que lhe<br />
seja afim. Em outras palavras, afirmam que para existir<br />
d<strong>em</strong>ocracia não basta o Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito,<br />
é necessário que haja também a cidadania.<br />
A reflexão sobre cidadania implica, portanto, numa<br />
ideia de d<strong>em</strong>ocracia que atribui papel fundamental à<br />
forma de relação que se estabelece entre sociedade<br />
e Estado. Essa concepção, segundo a qual o regime<br />
d<strong>em</strong>ocrático requer uma contrapartida da sociedade,<br />
está longe de ser uma novidade no pensamento político<br />
brasileiro. Na verdade, ela r<strong>em</strong>onta a uma longa tradição<br />
de interpretação do Brasil, expressa na preocupação<br />
que muitos intelectuais tiveram de estudar as relações<br />
entre d<strong>em</strong>ocracia e sociedade na história do país.<br />
Dos clássicos como Oliveira Vianna e Sérgio Buarque<br />
de Hollanda, passando por Florestan Fernandes e<br />
pela teoria da dependência de Fernando Henrique<br />
Cardoso até autores mais recentes como Octavio Ianni,<br />
José Álvaro Moisés e Francisco Werffot, todos eles<br />
abordaram, de maneira direta ou indireta, o t<strong>em</strong>a das<br />
bases sociais e políticas do regime d<strong>em</strong>ocrático no Brasil<br />
(MOTA, 2001). Tendo <strong>em</strong> vista as diversas ditaduras e<br />
tentativas de golpes que marcaram a política brasileira<br />
no século XX, esses pensadores preocupavam-se <strong>em</strong><br />
examinar as possibilidades da d<strong>em</strong>ocracia se consolidar<br />
no país ou, ao contrário, se seria a d<strong>em</strong>ocracia no Brasil<br />
uma ideia fora de lugar.<br />
Entre os clássicos da literatura política nacional,<br />
estabeleceu-se certo consenso quanto à ausência de<br />
uma cultura d<strong>em</strong>ocrática enraizada no Brasil. Afirmam<br />
que a cidadania brasileira teria sido imposta pelo Estado<br />
à sociedade, fruto de um lento e gradativo processo de<br />
concessão de direitos políticos e sociais ao longo das<br />
décadas de 1930 a 1960. Essa característica fundamental<br />
da forma de inclusão das camadas populares ao sist<strong>em</strong>a<br />
político brasileiro, o fato de a cidadania ter vindo “de<br />
cima para baixo”, trouxe como consequência um déficit,<br />
uma atrofia do componente participativo da cidadania<br />
brasileira, importando riscos para a institucionalização<br />
e consolidação da d<strong>em</strong>ocracia, b<strong>em</strong> como dificuldades<br />
para operacionalização e efetivação dos direitos que o<br />
regime d<strong>em</strong>ocrático postula (CARVALHO, 2OO2).<br />
A interpretação da história do Brasil que os clássicos<br />
apresentam caracteriza, por um lado, a sociedade<br />
brasileira como um ente “amorfo” e estático, incapaz<br />
de se organizar e, portanto, de definir o sentido de sua<br />
interação com a esfera pública, enquanto o Estado, por<br />
sua vez, desfrutaria de um alto grau de autonomia política<br />
e administrativa diante da sociedade (MOISÉS, 1995).<br />
A debilidade da cidadania brasileira decorreria,<br />
segundo essa interpretação, do modelo de<br />
1 Mestre <strong>em</strong> História pela Universidade do Estado de São Paulo (UNESP-Franca); professor de Sociologia no curso de Administração da Universidade do Estado<br />
de Minas Gerais (UEMG - Campus de Frutal), Avenida Professor Mário Palmério, 1001 – CEP 38200-000 – Frutal – MG – E-mail: josenespoli@hotmail.com<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 23-28<br />
23
24<br />
desenvolvimento do capitalismo adotado no Brasil 2 . Esse<br />
modelo caracteriza-se por duas tendências. Primeiro,<br />
pelo fortalecimento do Estado <strong>em</strong> detrimento da<br />
sociedade civil. Segundo, pela prática da “transformação<br />
pelo alto”, modalidade de desenvolvimento histórico<br />
que implica a exclusão das massas populares das<br />
decisões fundamentais. Assim, a sociedade brasileira<br />
sofreu o peso de uma ideologia autoritária fort<strong>em</strong>ente<br />
diss<strong>em</strong>inada por toda a população, manifesta num<br />
conjunto de práticas que combinam valores oligárquicos<br />
e estatais que limitaram a intervenção da sociedade<br />
civil na política (COUTINHO, 1988). Tal configuração<br />
político-cultural asseguraria aos dirigentes do Estado<br />
margens excessivamente amplas de atuação a salvo de<br />
mecanismos de controle da sociedade.<br />
Resultados e discussão<br />
Não obstante, importantes transformações<br />
ocorridas durante as últimas três décadas do século<br />
XX levaram alguns autores, ainda que comprometidos<br />
com a concepção de d<strong>em</strong>ocracia presente nos<br />
clássicos, a afirmar<strong>em</strong> alterações no comportamento<br />
dos brasileiros que levariam a vigência de um novo<br />
padrão de relacionamento entre Estado e sociedade.<br />
As transformações apontavam para um fortalecimento<br />
do nível de organização e mobilização da sociedade,<br />
fenômeno que foi interpretado como um grande<br />
incr<strong>em</strong>ento da cidadania no Brasil.<br />
Segundo os autores do final do século XX, como<br />
Carlos Nelson Coutinho (1988), Francisco Weffort<br />
(1992), Eder Sader (1988), Evelina Dagnino (2002), que<br />
acompanharam esse processo, as transformações pelas<br />
quais a sociedade brasileira passou naquele período<br />
teriam alterado o padrão tradicional de relacionamento<br />
entre Estado e sociedade no Brasil. Essa alteração teve<br />
início com fortalecimento da sociedade civil ocorrido<br />
durante a década de 1970, como fruto e reação ao projeto<br />
de desenvolvimento imposto pelo Regime Militar (1964-<br />
85), que consistia num amplo processo de modernização<br />
impl<strong>em</strong>entado sob uma forma política autoritária.<br />
As mudanças desencadeadas pelo Regime Militar,<br />
com destaque para o “milagre econômico” (1968-<br />
1974), alteraram significativamente e de forma bastante<br />
acelerada a morfologia da sociedade brasileira. A<br />
população se deslocou para as grandes e médias cidades,<br />
passando a estrutura d<strong>em</strong>ográfica do país de rural a<br />
urbana; a industrialização ganhou um impulso de grandes<br />
proporções, baseado na intervenção estatal e na entrada<br />
<strong>em</strong> massa das multinacionais, resultando no surgimento de<br />
novas camadas sociais; somando-se a isso, a experiência do<br />
terror de Estado despertou amplas camadas da população<br />
para as virtudes da d<strong>em</strong>ocracia e para a organização da<br />
sociedade civil. Enfim, o país se modernizou, tornando-se<br />
uma sociedade imensamente mais complexa do que era<br />
antes do Golpe de 64 (VIANNA, 1997).<br />
A ampliação da divisão social do trabalho e a<br />
urbanização decorrente do esforço modernizador<br />
do Regime Militar acarretaram um aumento da<br />
diversidade de interesses na vida política do país. Isso<br />
acabou se constituindo <strong>em</strong> fator de desestabilização<br />
do regime à medida que suscitava expectativas e<br />
d<strong>em</strong>andas novas, mais complexas e mais volumosas <strong>em</strong><br />
relação ao papel do poder público, e isso justamente<br />
a partir de um momento <strong>em</strong> que era declinante a<br />
capacidade de acomodação do sist<strong>em</strong>a econômico<br />
devido à crise do petróleo de 1973 3 . Sendo assim, o<br />
Regime Militar tornou-se incapaz de cooptar política<br />
ou economicamente os setores da sociedade que até<br />
então lhe havia dado sustentação, o que deu início a<br />
uma forte crise de legitimidade do regime.<br />
Por fora das instituições tradicionais de agr<strong>em</strong>iação da<br />
população, como partidos, câmaras legislativas, sindicatos<br />
e associações de massa, naquele período, começaram<br />
a surgir uma série de organizações independentes que<br />
buscavam manifestar as d<strong>em</strong>andas sociais reprimidas<br />
pelos militares. A <strong>em</strong>ergência desses movimentos sociais<br />
foi decorrente das condições de repressão extr<strong>em</strong>ada<br />
contra a expressão política dos interesses populares, sendo<br />
que o bloqueio dos canais institucionais de representação<br />
causou o aparecimento de múltiplas organizações isoladas<br />
e fragmentadas, porém espalhadas por todo o tecido da<br />
sociedade civil (SADER, 1988).<br />
O fato é que durante a década de 1970, surgiram<br />
ou renovaram-se centenas de associações não<br />
imediatamente vinculadas a partidos políticos, mas que<br />
articulavam e davam identidade a grupos de pessoas,<br />
influenciavam seus comportamentos e veiculavam<br />
interesses. Um olhar sociológico sobre essas<br />
associações permite perceber que nesse processo de<br />
organização da sociedade brasileira - ao contrário do<br />
que ocorreu na Europa, onde os movimentos sociais<br />
da década de 1970 foram heg<strong>em</strong>onizados por grupos<br />
de classe média, como o ecologista ou o hippismo -<br />
2 O padrão ou modelo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil recebeu diversas denominações. Florestan Fernandes denomina-o de Capitalismo<br />
Dependente, enquanto Carlos Nelson Coutinho e os gramscianos tratam-no como Modernização Conservadora. São apenas dois ex<strong>em</strong>plos dentre vários.<br />
No entanto, apesar das diferenças, mantêm certa unidade quanto aos aspectos acima citados.<br />
3 As elevações do preço do petróleo acarretaram uma severa recessão na economia mundial, diminuindo, sobr<strong>em</strong>aneira, o volume de reservas monetárias<br />
internacionais disponíveis para <strong>em</strong>préstimos. O Brasil, sendo o terceiro maior importador mundial de petróleo e o maior devedor entre os países <strong>em</strong><br />
desenvolvimento, foi atingido duramente por essa crise energética. Surgia assim, inevitavelmente, uma profunda ameaça ao crescimento econômico devido<br />
ao forte crescimento das despesas com a importação de petróleo.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 23-28<br />
José Henrique Singolano Néspoli
predominaram as organizações de cunho mais popular,<br />
como as comunidades eclesiais de base, os movimentos<br />
de bairro e o novo sindicalismo operário.<br />
Para Singer e Brant (1980), os movimentos sociais<br />
apresentaram-se como base para uma d<strong>em</strong>ocratização<br />
da sociedade devido às formas participativas de<br />
organização que conseguiam difundir e à noção ativa<br />
de cidadania que promoviam. O aparecimento dos<br />
movimentos sociais trouxe novas formas de atuação<br />
no campo da política brasileira, posicionamentos que<br />
apontavam no sentido de exigir maior d<strong>em</strong>ocratização<br />
tanto das instituições públicas como das práticas sociais<br />
cotidianas. Essa nova cultura política era identificada<br />
<strong>em</strong> atitudes e discursos que enfatizavam a ação e a<br />
participação coletivas, os procedimentos da “d<strong>em</strong>ocracia<br />
de base” e a luta pela efetivação dos direitos sociais<br />
básicos do cidadão (BRANT; SINGER, 1980).<br />
O Regime Militar, sobretudo depois do AI-5, buscou<br />
por todos os meios quebrar os organismos autônomos<br />
da sociedade civil, contribuindo para desequilibrar<br />
a relação entre Estado e sociedade civil <strong>em</strong> favor do<br />
primeiro. Entretanto, a sociedade civil - <strong>em</strong>bora por<br />
vezes duramente reprimida - conservou uma marg<strong>em</strong><br />
de autonomia diante do Estado, mais que isso, cresceu<br />
e se diversificou a partir de meados dos anos de 1970,<br />
quando um forte movimento de auto-organização<br />
envolveu os operários, camponeses, mulheres, jovens,<br />
camadas médias, intelectuais e até mesmo setores da<br />
burguesia (COUTINHO, 1988). Principalmente a partir<br />
do contexto de crise de legitimidade do Regime Militar,<br />
a sociedade civil brasileira voltou à luz heg<strong>em</strong>onizada<br />
por um amplo arco de forças antiditatoriais que abrangia<br />
da esquerda até alguns segmentos conservadores.<br />
A luta contra a ditadura se desdobrou num<br />
intenso movimento de organização da sociedade <strong>em</strong><br />
associações que <strong>em</strong>ergiram fora da tutela do Estado,<br />
sendo que o surgimento dos diversos movimentos<br />
sociais expressava a crescente heterogeneidade e<br />
complexidade da sociedade brasileira. O intenso<br />
associativismo que caracterizou o período da Transição<br />
D<strong>em</strong>ocrática (1974-85) trouxe uma nova forma de<br />
conceber a cidadania que muito colaborou para fundar<br />
uma relação mais equilibrada entre Estado e sociedade<br />
(COUTINHO, 1988; VIANNA, 1989).<br />
Contudo, nos anos de 1980, a sociedade brasileira<br />
deu grandes d<strong>em</strong>onstrações de sua nova capacidade<br />
de organização e mobilização. Durante tal período, o<br />
Brasil passa por uma profunda reformulação <strong>em</strong> sua<br />
vida partidária, extingui-se o bipartidarismo da ditadura<br />
e surg<strong>em</strong> novos partidos, muitos com profundo<br />
enraizamento <strong>em</strong> todo o território nacional. Com<br />
destaque especial para criação do PT <strong>em</strong> 1980, e do<br />
PSDB <strong>em</strong> 1988, partidos que atualmente heg<strong>em</strong>onizam<br />
D<strong>em</strong>ocracia e sociedade: avanços e limites da cidadania no Brasil<br />
o cenário político brasileiro. Além da organização<br />
de diversos partidos políticos, que são as principais<br />
organizações representativas da sociedade, durante<br />
a década de 1980, ocorreu a formação de alguns<br />
movimentos sociais também articulados <strong>em</strong> todo o país<br />
e que são personagens constantes na vida política do<br />
Brasil: a organização da Central Única dos Trabalhadores<br />
(CUT) <strong>em</strong> 1983, da Central Geral dos Trabalhadores<br />
(CGT) <strong>em</strong> 1986, e do Movimento dos Trabalhadores<br />
Rurais S<strong>em</strong> Terra (MST) <strong>em</strong> 1984. Essas eram provas<br />
de que a força de mobilização da sociedade estava<br />
aumentando (RODRIGUES, 2OO1).<br />
Porém, <strong>em</strong> termos de mobilização, nada se compara<br />
à campanha “Diretas-já” ocorrida entre janeiro e abril de<br />
1984. Ela foi o maior movimento político de massas que<br />
o país vira e conseguiu agregar as insatisfações de diversos<br />
grupos sociais contra o Regime Militar, visando pressionar<br />
o governo e sua base congressista, o comitê nacional<br />
da campanha realizou diversos comícios nas capitais e<br />
principais cidades do Brasil, trazendo às ruas milhões de<br />
pessoas para exigir o retorno das eleições diretas para<br />
presidente da República. O movimento de massa <strong>em</strong><br />
favor das “Diretas” des<strong>em</strong>penhou um papel decisivo na<br />
derrota da ditadura militar e culminou no processo de<br />
afirmação de uma sociedade civil forte e autônoma, s<strong>em</strong><br />
a qual a elaboração da Constituição de 1988 teria ficado<br />
b<strong>em</strong> diferente (RODRIGUES, 2001). Ou seja, o sufrágio<br />
universal e outros mecanismos legais de participação<br />
do cidadão na gestão do Estado foram conquistas dessa<br />
nova configuração da sociedade, rompendo com as<br />
características autocráticas do Estado brasileiro.<br />
No Brasil, a transição do autoritarismo para a<br />
d<strong>em</strong>ocracia não durou menos do que 15 anos, se tomada<br />
como ponto de partida a liberalização iniciada pelo<br />
governo Geisel <strong>em</strong> 1974 e como ponto final as eleições<br />
presidenciais diretas de 1989. Acontece que realizada a<br />
transição para o atual regime d<strong>em</strong>ocrático, era a primeira<br />
vez na história republicana que se fazia possível a<br />
d<strong>em</strong>ocratização do espaço público com seus numerosos<br />
instrumentos de intervenção no econômico e no social.<br />
O amplo processo constituinte (1986-88) e o sufrágio<br />
universal romp<strong>em</strong> com a marca de modernização s<strong>em</strong><br />
participação da história política brasileira. E com isso,<br />
estabeleceu-se no Brasil uma relação mais equilibrada<br />
entre Estado e sociedade, sendo que a instauração do<br />
sufrágio universal tornou o Estado muito mais permeável<br />
aos interesses da comunidade nacional como um todo,<br />
diminuindo a autonomia do Estado.<br />
Não há dúvida de que a nova ord<strong>em</strong> institucional<br />
promoveu uma ampliação dos direitos sociais e<br />
políticos individuais. Os direitos políticos passaram a<br />
incluir a liberdade de se organizar <strong>em</strong> partidos políticos<br />
e a de utilizar os meios de comunicação <strong>em</strong> campanhas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 23-28<br />
25
26<br />
eleitorais. Os direitos sociais também foram estendidos,<br />
com a equiparação dos direitos dos trabalhadores rurais<br />
aos dos trabalhadores urbanos e, pela primeira vez na<br />
Constituição brasileira, o irrestrito direito de greve para<br />
os trabalhadores. Portanto, a despeito do desfecho<br />
conservador da transição d<strong>em</strong>ocrática brasileira, decidida<br />
no Colégio Eleitoral, a nova Constituição de 1988 criou<br />
as condições institucionais necessárias para uma profunda<br />
d<strong>em</strong>ocratização da esfera pública brasileira.<br />
O surgimento cada vez maior de uma série de<br />
organizações autônomas, como associações, sindicatos,<br />
partidos etc., que se constituíam <strong>em</strong> corpos intermediários<br />
de agr<strong>em</strong>iação de interesses, foram alterando o modelo<br />
de representação fundado na relação direta indivíduo/<br />
Estado. O poder, que havia ocupado quase exclusivamente<br />
o campo das instituições públicas (Estado), ganhou amplos<br />
espaços na sociedade, que aprende a se organizar nas mais<br />
variadas manifestações. Uma sociedade organizada é um<br />
sinal de maturidade política, sendo que um fenômeno típico<br />
das sociedades modernas é a <strong>em</strong>ancipação da sociedade<br />
civil diante do Estado (VIANNA, 1989).<br />
Dagnino (2002) concorda que a impl<strong>em</strong>entação<br />
do atual regime d<strong>em</strong>ocrático permitiu uma ampla<br />
participação de diferentes atores e forças sociais nas<br />
instituições políticas do país, de modo que a política<br />
brasileira na década de 1990 caracterizou-se pelos<br />
encontros e parcerias entre Estado e sociedade<br />
envolvidos no planejamento e na execução conjunta de<br />
políticas públicas (DAGNINO, 2002).<br />
Apesar de tais avanços, o moderno regime<br />
d<strong>em</strong>ocrático se sobrepôs a uma sociedade marcada<br />
pela extr<strong>em</strong>a desigualdade social. Uma característica<br />
presente na história da sociedade brasileira a ponto<br />
de dificultar a incorporação de importantes el<strong>em</strong>entos<br />
da cultura d<strong>em</strong>ocrática. O cientista político Hélio<br />
Jaguaribe, <strong>em</strong> 1986, estimava que dos 52,4 milhões de<br />
brasileiros que constituíam a população politicamente<br />
ativa, a maioria concentrava-se nas faixas salariais mais<br />
baixas. Incluindo-se os trabalhadores não assalariados,<br />
64% da população economicamente ativa vivia <strong>em</strong><br />
níveis que variavam da miséria (um salário mínimo ou<br />
menos) à extr<strong>em</strong>a pobreza (até dois salários mínimos)<br />
(WEFFORT, 1992).<br />
Buscando avaliar o impacto das condições sociais<br />
na vida política brasileira, José Álvaro Moisés analisa<br />
uma pesquisa de opinião pública realizada <strong>em</strong> 1989<br />
que indagava sobre “preferência por regime político<br />
no Brasil”. Em sua análise, Moisés salienta que, quando<br />
indagada sobre o regime político de preferência, as<br />
camadas mais pobres da população apresentaram uma<br />
posição de indiferença e passividade diante da questão.<br />
De tal forma que as respostas relativas ao regime<br />
político de preferência foram principalmente “tanto<br />
faz” e “não sabe”, opiniões que englobavam 37% do<br />
universo pesquisado (22% e 15% respectivamente)<br />
contra 43% a favor da d<strong>em</strong>ocracia e 18% a favor<br />
da ditadura 4 . Dessa forma, o consenso quanto ao<br />
regime d<strong>em</strong>ocrático evidenciava grande fragilidade na<br />
sociedade encarnada nas parcelas mais miseráveis da<br />
população, que, vivendo a incerteza quanto ao amanhã,<br />
estavam sendo lesadas nas suas condições básicas de<br />
exercício cidadão (MOISÉS, 1995).<br />
Essas mudanças políticas ocorridas durante o<br />
período da transição (1974-89) encontraram, assim,<br />
um limite b<strong>em</strong> claro nos efeitos das desigualdades da<br />
sociedade brasileira e nos resultados da ação claramente<br />
insuficiente das lideranças políticas que comandaram a<br />
d<strong>em</strong>ocratização do país. Esses fatores não impediram que<br />
as transformações político-culturais se desencadeass<strong>em</strong>,<br />
mas dificultaram sensivelmente a sua generalização na<br />
sociedade e enfraqueceram componentes importantes<br />
da cultura d<strong>em</strong>ocrática <strong>em</strong> formação no país, distanciando<br />
os segmentos mais pobres da população das atividades<br />
políticas relevantes (WEFFORT, 1992).<br />
Conclusão<br />
Weffort (1992) define o atual regime d<strong>em</strong>ocrático<br />
brasileiro como um “sist<strong>em</strong>a dual”. Para aqueles que estão<br />
dentro, isto é, para o grupo economicamente dominante,<br />
assim como para outros segmentos organizados da<br />
sociedade, há um regime político competitivo com ampla<br />
abertura e igualdade de oportunidades. Para os que ficam<br />
de fora, para os marginalizados que são muito pobres e<br />
incapazes de se organizar, resta apenas tornar<strong>em</strong>-se objeto<br />
de manipulação política. Não são marginalizados por<br />
nenhum tipo de restrição institucional, mas pelas próprias<br />
condições sociais, políticas e culturais <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong> e que<br />
os transformam <strong>em</strong> massas amorfas (WEFFORT, 1992).<br />
Segundo o mesmo autor, outro fator que debilita<br />
a intervenção da sociedade na política deve-se a uma<br />
concepção de participação associada basicamente<br />
ao processo eleitoral, uma concepção de cidadania<br />
diss<strong>em</strong>inada pela sociedade e que permite ainda um alto<br />
grau de distanciamento do Estado frente à sociedade<br />
- muito mais se observado num contexto de extr<strong>em</strong>a<br />
pobreza.<br />
Assim, os limites e os avanços da cidadania no Brasil<br />
passam pelo enfrentamento das profundas desigualdades<br />
que marcam a sociedade brasileira.<br />
4 Dados mais recentes, publicados pela instituição O Latinobarómetro, indicam que, <strong>em</strong> 2007, apenas 30% dos brasileiros declararam-se satisfeitos com a<br />
d<strong>em</strong>ocracia e apenas 43% apoiaram esse regime político.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 23-28<br />
José Henrique Singolano Néspoli
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D<strong>em</strong>ocracia e sociedade: avanços e limites da cidadania no Brasil<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 23-28<br />
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28<br />
DEMOCRACY AND SOCIETY:<br />
ADVANCES AND LIMITS OF CITIZENSHIP IN BRAZIL<br />
ABSTRACT: In the interpretation of Brazil, set up some agre<strong>em</strong>ent among leading Brazilian intellectuals of the<br />
fact that the idea of d<strong>em</strong>ocracy has no strong roots in country, nor in daily relations of society, much less in<br />
conducting the affairs of state. However, during the D<strong>em</strong>ocratic Transition (1974-1989) there were changes in<br />
Brazilian society that led to the <strong>em</strong>ergence of a new political culture in the country, forming the end of this period<br />
a broad consensus around the d<strong>em</strong>ocratic regime. However, the study of the current d<strong>em</strong>ocratic experience in<br />
Brazil has confirmed the prediction that the enforc<strong>em</strong>ent of rights and citizenship that this sch<strong>em</strong>e suggests, finds<br />
its limits in the social inequalities that constitute barriers to participation in political society.<br />
KEYWORDS: Political sience; political culture; d<strong>em</strong>ocracy in Brazil; state-society relationship.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 23-28<br />
José Henrique Singolano Néspoli
A INFLUÊNCIA DO DIREITO ROMANO NO DIREITO<br />
OCIDENTAL: BREVES CONSIDERAÇÕES<br />
André Gimenez 1 ; Sílvia Araújo Dettmer 2 ; Willian Diego de Almeida 3<br />
RESUMO: Ao buscar compreender os sist<strong>em</strong>as jurídicos atuais, torna-se essencial o estudo do direito romano.<br />
Verifica-se que os institutos jurídicos da civilização romana foram importantes para a feitura e desenvolvimento<br />
de ordens jurídicas de vários países que o incorporaram de forma expressa e sist<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> seu direito pátrio.<br />
Outros sist<strong>em</strong>as jurídicos oriundos de civilizações antigas surgiram s<strong>em</strong> exercer influências na legislação moderna.<br />
No tocante a doutrina jurídica, Lopes (2008), Giordani (1996) e Alves (1995) enfocam que não há outra legislação<br />
que se equipara ao direito romano como instrumento de educação jurídica, laboratório e notável campo de<br />
observação do fenômeno jurídico <strong>em</strong> todos os seus aspectos. Os autores destacam o legado jurídico romano que<br />
se organizou sob o império de Justiniano. Assim, este trabalho objetiva analisar a compilação de Justiniano, que<br />
continua a refletir-se nos sist<strong>em</strong>as jurídicos ocidentais como expressão da vida jurídico-social do povo que formou<br />
o mais organizado império do mundo antigo.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Direito; Roma; ocidente.<br />
Introdução<br />
Este trabalho busca analisar pontos relevantes do<br />
direito romano e seus aspectos históricos a partir da<br />
compilação do imperador Justiniano, no século VI da<br />
era cristã, precisamente entre 527 a 565 d.C. Essa<br />
obra legislativa conhecida universalmente como Corpus<br />
iuris civilis resultou da função pública de preservação da<br />
tradição romana pelos jurisconsultos no decorrer de<br />
todo o Império Romano e, de forma mais específica, da<br />
comissão dirigida por Triboniano.<br />
A preocupação com essa t<strong>em</strong>ática surgiu a partir da<br />
leitura da obra A construção da ord<strong>em</strong>, do historiador José<br />
Murilo de Carvalho, que ao discorrer sobre a formação<br />
do Estado imperial brasileiro no século XIX, retratou<br />
a influência do direito romano no primeiro código<br />
legal redigido na Europa: o Código Afonsino, de 1446.<br />
Ressalta-se aqui que na primeira metade do século XIX,<br />
<strong>em</strong> Portugal, na Universidade de Coimbra, encontravase<br />
uma elite brasileira sist<strong>em</strong>aticamente treinada,<br />
sobretudo, no curso de direito, sendo que o direito<br />
ensinado era profundamente influenciado pela tradição<br />
romanista trazida de Bolonha.<br />
Dessa forma, ao buscar compreender os sist<strong>em</strong>as<br />
jurídicos atuais, observa-se a indispensabilidade do estudo<br />
do direito romano. Verifica-se que os institutos jurídicos<br />
do passado, especificamente no que concerne à queda<br />
do Império Romano e a ascensão do Império Bizantino,<br />
foram importantes para a feitura e desenvolvimento de<br />
ordens jurídicas de vários países que o incorporaram<br />
de forma expressa e sist<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> seu direito pátrio.<br />
Assim, entende-se que o direito romano oferece um<br />
ciclo jurídico completo, constituindo até hoje a maior<br />
fonte originária de inúmeros institutos jurídicos. Roma<br />
é tida como síntese da sociedade antiga, representando<br />
um elo entre o mundo antigo e o moderno (PRADO;<br />
BITENCOURT, 1995, p. 20).<br />
Outros sist<strong>em</strong>as jurídicos oriundos de civilizações<br />
antigas surgiram s<strong>em</strong> exercer influências na legislação<br />
moderna. A compilação de Justiniano, ao contrário,<br />
continua a refletir-se nos sist<strong>em</strong>as jurídicos ocidentais<br />
como expressão da vida jurídico-social do povo que<br />
formou o mais organizado império do mundo antigo.<br />
Fundamenta-se este trabalho nos estudos realizados<br />
por Lopes (2008), Giordani (1996) e Alves (1995).<br />
Esses autores traz<strong>em</strong> <strong>em</strong> seu conteúdo que não há<br />
outra legislação que se equipara ao direito romano como<br />
instrumento de educação jurídica, laboratório e notável<br />
campo de observação do fenômeno jurídico <strong>em</strong> todos os<br />
seus aspectos, destacando o legado jurídico romano que<br />
se organizou sob o império de Justiniano.<br />
Generalidades<br />
A relevância da história volta a ter um lugar nos<br />
cursos jurídicos depois de várias décadas de abandono.<br />
1 Graduando <strong>em</strong> Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - Campus de Três Lagoas. Bolsista voluntário do PIBIC/CNPq. Avenida<br />
Ranulpho Marques Leal, 3.484. Cep: 79620-080. Três Lagoas - Mao Grosso do Sul. Email: andregimeneznet@hotmail.com;<br />
2 Professora mestre do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - Campus de Três Lagoas. Avenida Ranulpho Marques Leal,<br />
3.484. Cep: 79620-080. Três Lagoas - Mao Grosso do Sul. E-mail: silviadettmer@globo.com<br />
3 Graduado <strong>em</strong> Letras e Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - Campus de Três Lagoas. Bolsista do PIBIC/CNPq. Avenida<br />
Ranulpho Marques Leal, 3.484. Cep: 79620-080. Três Lagoas - Mao Grosso do Sul. E-mail: wdatls@bol.com.br.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
29
30<br />
A razão de ser desse interesse renovado v<strong>em</strong> da<br />
situação de mudanças sociais pelas quais passa a<br />
sociedade neste início do século XXI. E, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos<br />
de crise, uma sociedade volta seu olhar para o próprio<br />
passado, procurando algum sinal (LOPES, 2008, p. 2)<br />
Os processos de mudança social e seu impacto sobre<br />
o direito originaram um interesse crítico na civilização<br />
romana, especialmente nas instituições do direito<br />
romano. Nesse conjunto de normas jurídicas que<br />
regeram a sociedade romana desde a fundação de Roma<br />
até o ano de 565 d.C., quando ocorreu a morte do<br />
imperador Justiniano, está inserido horizontes habituais<br />
das pessoas. Sua autoridade reside na profunda revolução<br />
interna, na transformação completa que causou <strong>em</strong> todo<br />
pensamento jurídico (GIORDANI, 1968).<br />
O direito é uma constante <strong>em</strong> todo agrupamento<br />
humano, b<strong>em</strong> como na história de todos os povos<br />
que s<strong>em</strong>pre foram governados por um sist<strong>em</strong>a de lei.<br />
Embora o Império Romano tenha deixado de existir<br />
e, por consequência, suas normas tenham perdido a<br />
vigência, destaca-se a completude do legado jurídico<br />
romano compilado por Justiniano.<br />
Toda cultura possui um aspecto normativo que engloba<br />
os padrões, regras e valores que caracterizam modelos<br />
de conduta. Esse aspecto d<strong>em</strong>onstra a tentativa de cada<br />
sociedade de assegurar uma determinada ord<strong>em</strong> social,<br />
utilizando-se de normas de regulamentação.<br />
Vê-se então que o direito é “a forma específica de<br />
controle social nas sociedades complexas. Trata-se<br />
de um controle formal, determinado por normas de<br />
conduta [...]” (SABADELL, 2005, p. 147).<br />
Da mesma forma, certos modos de agir <strong>em</strong> sociedade<br />
transformam-se <strong>em</strong> condutas humanas valoradas<br />
historicamente e constitu<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> fundamento do existir<br />
comunitário, formando os el<strong>em</strong>entos constitucionais do<br />
grupo social, que se revelam como preceitos normativos<br />
fundamentais (SILVA, 2005, p. 39).<br />
Assim, a compilação de Justiniano, estudado <strong>em</strong> toda<br />
a Europa desde o século XII e aceito oficialmente na<br />
Al<strong>em</strong>anha <strong>em</strong> fins do século XV, teve grande influência<br />
na formação do direito atual e refletiu na redação dos<br />
modernos códigos, <strong>em</strong> especial no código civil francês<br />
(1804) e no al<strong>em</strong>ão (1900). Além disso, na Escócia e na<br />
África do Sul, até há pouco t<strong>em</strong>po, o direito romano<br />
encontrava-se quase integralmente aplicado.<br />
Salienta-se que todo estudo de direito comparado<br />
<strong>em</strong> nossa época é fundamentado <strong>em</strong> institutos que<br />
r<strong>em</strong>ontam à civilização romana. Caracterizando-se,<br />
dessa forma, como estudo indispensável para a formação<br />
do jurista, visto que <strong>em</strong> Roma, pontificaram-se alguns<br />
mestres do direito. E não se pode “desconsiderar a<br />
presença de um direito entre povos que possuíam<br />
formas de organização social e política primitivas s<strong>em</strong><br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
André Gimenez; Sílvia Araújo Dettmer; Willian Diego de Almeida<br />
o conhecimento da escrita” (WOLKMER, 1996, p. 18).<br />
Aplica-se aqui o entendimento de Holmes:<br />
O direito incorpora a história do desenvolvimento<br />
de uma nação no curso de muitos séculos [...].<br />
Para saber o que é direito, t<strong>em</strong>os de saber o<br />
que foi e o que tende a ser. Dev<strong>em</strong>os consultar<br />
a história e as teorias existentes sobre a legislação<br />
(HOLMES, 1967).<br />
Na atualidade, o direito ocidental é dividido <strong>em</strong> duas<br />
grandes famílias, dois grandes sist<strong>em</strong>as: o da tradição<br />
romano-germânica, também referida como civil law,<br />
baseado, sobretudo, <strong>em</strong> normas escritas no direito<br />
legislado. E o segundo é o common law ou direito<br />
costumeiro originário do direito inglês, que sofreu menor<br />
influência do direito romano e desenvolveu um sist<strong>em</strong>a<br />
baseado nas decisões de juízes e tribunais, consistindo<br />
o direito vigente no conjunto de precedentes judiciais.<br />
Nas últimas décadas, verificou-se a ascensão do papel<br />
da lei escrita nos países do common law e, do mesmo<br />
passo, a valorização da jurisprudência, isto é, dos<br />
precedentes judiciais no mundo romano-germânico,<br />
inclusive no Brasil (BARROSO, 2009).<br />
O direito <strong>em</strong> Roma<br />
A história de Roma abrange muitos séculos. São<br />
períodos consideráveis <strong>em</strong> que as mudanças e as<br />
particularidades são muitas. Desde aproximadamente<br />
o século II a.C. até o final do Império percorreram-se<br />
cerca de 700 anos. Mantendo-se entre o século II a.C. e<br />
a morte do último jurista citado no Digesto, t<strong>em</strong>-se um<br />
período de aproximadamente 450 anos, estendendose<br />
essa história até Justiniano, acrescenta-se uns 300<br />
anos (LOPES, 2008). Assim, retratar o direito <strong>em</strong> todos<br />
os seus detalhes no referido período não é pretensão<br />
deste trabalho. Contudo, coloca-se uma síntese com<br />
caracteres genéricos <strong>em</strong> que se registram aspectos<br />
importantes retratados na história.<br />
A herança romana parece enorme a qualquer jurista<br />
formado na tradição ocidental, pois o direito foi a área<br />
do conhecimento mais aperfeiçoada pelos romanos<br />
e uma de suas maiores contribuições para a cultura<br />
da civilização ocidental. Reale (1977) enfatiza que foi<br />
especialíssima a posição do direito <strong>em</strong> Roma, onde<br />
ele foi mais el<strong>em</strong>ento de vida do que objeto de pura<br />
especulação. Nele os romanos souberam organizar a<br />
sociedade juridicamente, traçando linhas mestras que,<br />
ainda hoje, são inabaláveis para a ciência do direito.<br />
Tradicionalmente, Roma conheceu três grandes<br />
regimes constitucionais com longas e frequentes crises:<br />
Realeza, República e Império. Durante a Realeza, a fonte<br />
exclusiva para a formação das instituições jurídicas era o
costume. Posteriormente, durante o período histórico<br />
conhecido como República, a fonte principal para a<br />
criação do direito era a lei.<br />
Finalmente, durante o Império, havia um destaque<br />
muito especial para a jurisprudência, como fonte do direito.<br />
Vale l<strong>em</strong>brar a distinção que existia <strong>em</strong> Roma com relação<br />
ao iurisconsultus e o orador. Ao primeiro cabia estudar o<br />
aspecto jurídico da controvérsia e indicar o melhor caminho<br />
a seguir no processo; o segundo é o que intervém <strong>em</strong> juízo<br />
a favor do cliente (GIORDANI, 1968).<br />
Roma, durante a República e o Império, erigiu toda a<br />
doutrina que serviu de base para o direito ocidental. Esse<br />
conjunto de princípios que regeram a sociedade romana<br />
<strong>em</strong> diversas épocas, desde sua orig<strong>em</strong> até a morte<br />
de Justiniano, revelam-se uma fonte de pesquisa que<br />
permite um seguimento das variações do direito romano.<br />
A importância histórica é inegável, uma vez que o direito<br />
atual do mundo ocidental é lastreado nas compilações<br />
romanas. A partir daí, até a queda de Constantinopla,<br />
<strong>em</strong> 1453, o direito sofre novas influências, passando a<br />
denominar-se romano-helênico, s<strong>em</strong> nunca deixar de<br />
exercer sua repercussão (VENOSA, 2006).<br />
Nos treze séculos da história romana, do século<br />
VIII a.C. ao século VI, vê-se uma mudança contínua<br />
no caráter do direito, acompanhando a evolução da<br />
civilização romana, alterações políticas, econômicas e<br />
sociais que a caracterizavam. Para melhor compreender<br />
essa evolução, costuma-se fazer uma divisão <strong>em</strong><br />
períodos que são: o arcaico (da fundação de Roma no<br />
século VIII a.C. até o século II a.C.), o clássico (até o<br />
século III) e o pós-clássico (até o século VI).<br />
Desaparecida a figura do rei, o poder político passa a ser<br />
exercido com el<strong>em</strong>entos representativos e oligárquicos. A<br />
convivência entre ass<strong>em</strong>bleias e poderes conservadores,<br />
como o Senado, modificam a vida pública e a constituição<br />
romana. O Senado exercia e simbolizava a auctoritas<br />
patrum dos pais fundadores. Em casos especiais, respondia<br />
a consultas (senatus consultus) e opinava sobre os negócios.<br />
Só no Principado, com o desuso das ass<strong>em</strong>bleias e as<br />
mudanças constitucionais, o senatus consultus passa a ser<br />
equiparado à lei (LOPES, 2008).<br />
No período Republicano, redige-se a Lei das<br />
XII Tábuas, por volta de 450 a.C., que foi perdida<br />
provavelmente no incêndio durante a invasão gaulesa<br />
de 390 a.C. Pelo fato de ser escrita, tornou o direito<br />
público acessível a qu<strong>em</strong> pudesse ler. Acredita-se na<br />
inspiração grega das XII Tábuas, quer pelo que se pode<br />
saber do estilo, quer porque contêm um mecanismo<br />
de mudança que é grego na sua orig<strong>em</strong> (BRETONE,<br />
1990). Outras leis são conhecidas nos primórdios do<br />
direito romano: Lex Canuleia, Leges Licinae Sextiae,<br />
Lex Ogulnia, Lex Hortênsia. Porém, sobretudo nesses<br />
períodos históricos, juntamente com a legislação, surgia<br />
A influência do direito romano no direito ocidental: breves considerações<br />
gradualmente um grupo de juristas profissionais.<br />
Registra-se que o direito começa a surgir e inicia<br />
seu desenvolvimento durante o período arcaico devido<br />
ao formalismo do direito quiritário aplicado por um<br />
processo especial e formal, tratava-se de um direito<br />
cheio de fórmulas que precisavam ser pronunciadas<br />
no lugar certo pelas pessoas certas. Os pontífices<br />
des<strong>em</strong>penhavam um papel nesses casos. Apesar desse<br />
direito ser reduzido a escrito, somente os pontífices<br />
poderiam interpretá-lo e aplicar o seu formalismo, pois<br />
tinham a função de peritos na lei (BRETONE, 1990).<br />
Esses sacerdotes peritos, quase s<strong>em</strong>pre senadores,<br />
fidalgos ou m<strong>em</strong>bros de grandes famílias, prestavam um<br />
serviço à cidade ao preservar<strong>em</strong> a tradição atrelada à<br />
religião, que s<strong>em</strong>pre foi o laço mais forte da civilização<br />
romana. Foi o t<strong>em</strong>po dos deuses domésticos e das<br />
divindades políadas, e a religião, com seus dogmas e<br />
cultos, gerou o direito: as relações entre os homens, a<br />
propriedade, o patrimônio e o processo estabeleceram<br />
um governo entre os homens como o do pai na família, a<br />
do rei ou magistrado na cidade. Tudo procedia da religião,<br />
e o t<strong>em</strong>or dos deuses era o princípio da sabedoria e o<br />
ponto de partida para toda a atividade romana.<br />
Acrescenta-se que, para alguns doutrinadores,<br />
pode-se proferir que o direito teve seu começo,<br />
despretensiosamente, nos ritos advindos da religião<br />
doméstica. Toda família possuía uma religião própria,<br />
a qual devia cultuar e seguir suas regras e tradições.<br />
Tamanha era a importância religiosa <strong>em</strong> suas vidas, que<br />
o grupo familiar era totalmente constituído e organizado<br />
conforme suas crenças. Assim:<br />
O que une os m<strong>em</strong>bros da família antiga é algo<br />
mais potente do que o nascimento, o sentimento,<br />
a força física: é a religião do lar e dos antepassados.<br />
Ela faz que família forme uma unidade nesta vida<br />
e na outra. A família antiga é uma associação<br />
religiosa, mais ainda do que uma associação<br />
natural. [...] a lei foi primeiro uma parte da religião.<br />
Os antigos códigos das cidades eram um conjunto<br />
de ritos, de protocolos litúrgicos, de preces, ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po que disposições legislativas. Neles,<br />
as normas do direito de propriedade e do direito<br />
de sucessão estavam dispersas no meio das regras<br />
sobre sacrifícios, sepulturas e culto dos mortos<br />
(COULANGES, 2009, p. 53 e 203).<br />
O formalismo do direito naquele período arcaico<br />
contribuiu para a sua laicização e para desligá-lo de<br />
considerações de caráter moral ou religioso. A partir do<br />
século IV a.C., a jurisprudência laiciza-se de vez. Nesse<br />
sentido, ressalta-se que somente graças a um lento<br />
processo de secularização, comandado pela divisão<br />
social do trabalho e pela especialização, quando o<br />
legista e o sacerdote vão passando a constituir diversas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
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32<br />
funções sociais, é que o direito se vai apartando,<br />
gradativamente, da religião e dos conceitos jurídicos<br />
dos religiosos (MACHADO NETO, 1987).<br />
A laicização não significa d<strong>em</strong>ocratização, de modo<br />
que são apenas alguns que se dedicavam ao direito e<br />
esses alguns, substitutos dos pontífices, eram os juristas,<br />
<strong>em</strong> geral, homens das classes superiores.<br />
Na vida moderna, observa-se um decréscimo da<br />
influência religiosa sobre a vida do direito, não menos<br />
exato é que essa influência está b<strong>em</strong> longe de se extinguir<br />
e que, quanto mais se recua no passado, mais e mais se<br />
acentua o poder da religião no fenômeno jurídico.<br />
Reporta-se que na gênese de todas as trajetórias<br />
históricas, encontram-se relatos de acontecimentos<br />
singulares e únicos, nos quais os deuses, s<strong>em</strong>ideuses,<br />
heróis e homens especiais participam de acontecimentos<br />
transcendentais e decisivos que modelam e determinam<br />
os acontecimentos posteriores. Como consequência da<br />
iniciativa e da ação divina, surg<strong>em</strong> os grandes modelos<br />
que marcam ou defin<strong>em</strong> o estilo de um povo ou de uma<br />
civilização (CRIPPA, 1975).<br />
Nesse sentido, considera-se a ideia mítica-poéticareligiosa<br />
referida à fundação de Roma (urbs) com<br />
reflexos na República e eternizada ao t<strong>em</strong>po da<br />
ascensão de Otaviano Augusto, na medida <strong>em</strong> que seus<br />
el<strong>em</strong>entos são assumidos pela compilação justinianeia<br />
e se projetam da segunda Roma para a Idade Média<br />
europeia e América Latina (POLETTI, 2007).<br />
Desde o início da República até virtualmente o fim da<br />
era Imperial, encontra-se a convicção do caráter sagrado<br />
da fundação, no sentido de que, uma vez fundada, ela<br />
permanece obrigatória para todas as gerações futuras.<br />
Participar na política significava, antes de tudo, preservar<br />
a fundação da cidade de Roma (ARENDT, 2007).<br />
A difusão dos cultos orientais e das religiões dos<br />
mistérios no Império Romano, além do sincretismo<br />
religioso que daí resultou sobretudo <strong>em</strong> Alexandria<br />
favoreceram o conhecimento das religiões exóticas e<br />
as investigações sobre as antiguidades religiosas dos<br />
diversos países (ELIADE, 1992). Entre os múltiplos<br />
deuses do paganismo, encontra-se o imperador como<br />
fiador da eternidade de Roma (HUBEÑÁK, 1997).<br />
Refloresce-se a religião nacional, promovida<br />
diretamente pelo soberano, que acumula <strong>em</strong> si<br />
diversos sacerdócios e que se propaga nos t<strong>em</strong>plos,<br />
no restabelecimento de antigas cerimônias, no<br />
preenchimento de cargos religiosos e na mobilização<br />
para que se busque inspiração nos motivos religiosos.<br />
Encontra-se a religião restaurada como meio de<br />
governo pelo imperador que passa a sancionar com<br />
práticas religiosas a obediência ao chefe de Estado.<br />
É significativo o fato da preocupação de restaurar<br />
as velhas crenças dos romanos numa época <strong>em</strong> que as<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
André Gimenez; Sílvia Araújo Dettmer; Willian Diego de Almeida<br />
elites primavam pelo ceticismo e pela descrença. Tendo<br />
<strong>em</strong> vista as classes populares, ele objetivou o uso político<br />
da religião e, assim, fortaleceu o el<strong>em</strong>ento religioso no<br />
sist<strong>em</strong>a político que instaurava (ROSTOVTZEFF, 1986).<br />
Observa-se que as tradições antigas foram sendo<br />
restauradas pela Dinastia Júlia e o ex<strong>em</strong>plo de<br />
grandeza dos antepassados foi sendo seguido pelas<br />
gerações futuras. A autoridade dos antepassados, que<br />
presenciaram e criaram a sagrada fundação, assume um<br />
cunho educacional (ARENDT, 2007).<br />
Assim, a religião tradicional dos romanos impregnou<br />
o direito romano nos t<strong>em</strong>pos primitivos, o qual era,<br />
como a religião, rígido e formalista (LIMA FILHO, 2006).<br />
Havia a interpretação do direito divino, enunciando<br />
fórmulas e indicando os ritos de sacrifício aos deuses,<br />
<strong>em</strong> uma sociedade <strong>em</strong> que o direito não era dirigido aos<br />
particulares, mas ao grupo e às famílias.<br />
Desse modo, ressalta-se a importância do religioso no<br />
direito romano. Essa presença do sagrado foi notada na<br />
área jurídica, durante a década de 1960, por Ulhoa Cintra.<br />
O autor fez um estudo sobre a sacralidade, analisando<br />
a s<strong>em</strong>ântica, etimologia do vocábulo, ontologia da<br />
sacralidade, religioso nas instituições romanas, laicização<br />
do direito romano com a Lei das XII Tábuas e, de forma<br />
mais específica, refere-se à coexistência da legis actio<br />
sacramenti no sist<strong>em</strong>a formulário previsto no Corpus<br />
Iuris, compilado por Justiniano (CINTRA, 1969).<br />
A legislação imperial no Dominato<br />
ou Baixo Império<br />
O Baixo Império, também conhecido como Dominato,<br />
estende-se de 284 a.C. a 565 d.C. e caracteriza-se<br />
pelo poder supr<strong>em</strong>o do imperador, que, ao assumir<br />
atribuições dos outros órgãos constitucionais, torna-se<br />
monarca absoluto, do tipo heleno-asiático, concentrando<br />
todos os poderes <strong>em</strong> suas mãos. Ad<strong>em</strong>ais,<br />
o último período da história da civilização<br />
romana é o do baixo Império (dominato), quando<br />
ocorre a cristianização do Império, e também a<br />
decadência política e cultural; a fonte de criação<br />
do direito passa a ser a constituição imperial<br />
(WOLKMER, 2006, p. 102).<br />
Durante o período da compilação de Justiniano, o<br />
jurista independente perde o seu lugar, mas pode ajudar<br />
na feitura da legislação, desenvolvendo-se dentro<br />
da burocracia. O centralismo do Dominato faz com<br />
que os jurisprudentes sejam encarregados de aplicar<br />
precedentes já solidificados e capazes de garantir a<br />
uniformidade e a submissão de todos ao poder central.<br />
Nessa fase do império romano, o papel da legislação é<br />
crescente e o dos juristas deixa de ser somente o de
dar conselhos para ser especialmente o de assessorar o<br />
príncipe ou imperador.<br />
Assim, avulta-se a necessidade de consolidar ou<br />
codificar a jurisprudência clássica com o objetivo de<br />
permitir o acesso às obras consideradas clássicas.<br />
Trata-se das primeiras consolidações t<strong>em</strong>áticas de<br />
fontes meramente privadas, como o Codex Gregorianus<br />
(291 d.C.) e o Codex Hermogenianus (295 d.C.). Essas<br />
consolidações pareciam gozar de muita autoridade,<br />
ainda que foss<strong>em</strong> desprovidas de caráter oficial.<br />
No decorrer daquele período, as constituições<br />
imperiais, ou leges, foram a única fonte do direito<br />
romano e “o conhecimento do Direito era considerado<br />
essencial para as autoridades imperiais, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre,<br />
porém, existiam facilidades para a sua aquisição”<br />
(RUNCIMAN, 1977, p. 65). Observa-se também que<br />
o Direito romano-bizantino estava <strong>em</strong><br />
transformação, e suas concepções fundamentais<br />
e <strong>em</strong>endas posteriores freqüent<strong>em</strong>ente eram<br />
desconhecidas, ou mal compreendidas, pelos<br />
cidadãos do império. Não obstante, continua<br />
sendo um aparte essencial da Constituição imperial,<br />
a única autoridade a que o próprio imperador se<br />
deveria curvar (RUNCIMAN, 1977, p 65-66).<br />
Trata-se, enfim, de um período <strong>em</strong> que o Império<br />
Romano encontrava-se subdivido <strong>em</strong> Império Romano<br />
do Ocidente e Império Romano do Oriente, sendo<br />
cada um desses blocos entregue a um imperador. Dessa<br />
forma:<br />
Após a época de Diocleciano e Constantino, o<br />
Império Romano continuou existindo por muitos<br />
séculos, dividido, porém, <strong>em</strong> duas partes: o<br />
Império Ocidental, tendo Roma como capital,<br />
Roma dos romanos; e o Império Oriental,<br />
comumente chamado “Bizantino”, porque sua<br />
capital, Constantinopla, ou Roma dos romaioi,<br />
fora fundada por Constantino no local da antiga<br />
Bizâncio (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 285).<br />
Em 438 d.C. é publicado o Código Teodosiano, por<br />
ord<strong>em</strong> de Teodósio II, imperador do Oriente, com as<br />
constituições imperiais desde o período de Constantino<br />
(312 d.C.). Dividia-se <strong>em</strong> 16 livros, reproduzindo cada<br />
constituição imperial, com o respectivo autor e sua data,<br />
seguida de uma interpretação <strong>em</strong> cada caso. Adotado<br />
no Ocidente veio a influenciar muitas compilações<br />
posteriores feitas nos reinos bárbaros a partir do século<br />
VI. No Oriente será revogado pela codificação de<br />
Justiniano que mandou fazer a grande obra de compilação<br />
dos clássicos <strong>em</strong> 530 d.C. Seria preciso esperar sua<br />
redescoberta pelos medievais para que o direito romano,<br />
já reiventado e reinterpretado pela universidade, voltasse<br />
a ter influência marcante na Europa ocidental.<br />
Essa redescoberta do texto de Justiniano deu-se no<br />
A influência do direito romano no direito ocidental: breves considerações<br />
universo eclesiástico, <strong>em</strong> que esses homens letrados,<br />
monges, religiosos ou agregados tinham familiaridade<br />
com os textos que lhes chegavam do passado e que<br />
para eles valiam muito (LE GOFF, 1989). Por ser objeto<br />
de respeito, admiração e assegurado por vontade<br />
divina, dificilmente o hom<strong>em</strong> primitivo questionava sua<br />
validade e sua aplicabilidade.<br />
Cabe ressaltar que os juristas romanos, preservadores<br />
de suas tradições, como <strong>em</strong> geral os romanos b<strong>em</strong>educados<br />
e cultos, eram helenizados. Não se trata de<br />
uma absorção completa da cultura grega. No entanto,<br />
não se pode esquecer que a expansão de Roma para<br />
o Oriente dá-se sobre territórios helenizados de longa<br />
data. Alexandria e Antioquia, as duas maiores cidades<br />
do Império depois da própria Roma, eram cidades<br />
helenizadas assim como Bizâncio, no tardio-império.<br />
A língua corrente internacionalmente era o grego (o<br />
latim divulga-se no Ocidente), o grego koiné (comum)<br />
ou d<strong>em</strong>ótikos (popular).<br />
Naquele ambiente, a educação formal incluía um<br />
mínimo de familiaridade com a tradição grega. Apesar<br />
dessa cultura e preservação da tradição romana,<br />
no Dominato, não se encontrava nenhum grande<br />
jurisconsulto. Os nomes dos juristas daquele período, na<br />
sua quase totalidade, foram esquecidos, a jurisprudência,<br />
na época de decadência, tornou-se anônima.<br />
A única fonte de direito desse período passou a ser<br />
as constituições imperiais baixadas pelo imperador e<br />
destinadas a qualquer funcionário. O princípio então<br />
reinante é o que agrada ao príncipe, t<strong>em</strong> força de lei. As<br />
constituições imperiais constitu<strong>em</strong>-se no direito positivo<br />
do Império e os jurisconsultos continuam a interpretar<br />
a doutrina jurídica por meio de seus pareceres, mas<br />
revistas e interpretadas e compl<strong>em</strong>entadas pelo<br />
imperador (FILIARDI LUIZ, 1999).<br />
Há o ressurgimento do estudo do direito nas escolas<br />
do Império Romano do Oriente, dentre os quais se<br />
destacam a de Constantinopla e Berito. Alguns dos<br />
mestres desse t<strong>em</strong>po ficaram célebres como Cirilo,<br />
Eudóssio e Patrício. Apesar desse reflorescimento,<br />
não se encontra, durante todo o Dominato, obra<br />
verdadeiramente criadora. Os professores dessas<br />
escolas de direito, <strong>em</strong> geral, dedicaram-se ao estudo<br />
das obras dos juristas clássicos para adaptá-las, por via<br />
de reelaboração, às necessidades de sua época.<br />
O centralismo do Dominato fazia com que os<br />
jurisprudentes foss<strong>em</strong> encarregados de aplicar<br />
precedentes consolidados capazes de submeter<br />
todos ao poder central. Desenvolvendo-se dentro da<br />
burocracia, surgiram inicialmente escolas de direito<br />
despersonalizadas que preparavam para a carreira<br />
burocrática, sendo as de Constantinopla e Berito as<br />
oficiais e públicas, cuja influência no Oriente dura<br />
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muitos séculos, ao lado de Roma e Alexandria. Assim,<br />
os juristas também mudaram de perfil e passaram a ser<br />
especialmente assessore do imperador (LOPES, 2008).<br />
Foi, porém, graças a essas escolas que Justiniano<br />
encontrou juristas e materiais para a elaboração<br />
do Corpus Iuris Civils, monumento jurídico legado à<br />
posteridade pelo direito Romano, originariamente é<br />
apenas Corpus Iuris. O adjetivo civilis foi acrescentado<br />
na época do Renascimento para fazer a devida distinção<br />
com o Corpus Iuris Canonici, o Código de Direito<br />
Canônico. Essa denominação foi acrescentada pelos<br />
glosadores da Escola de Bolonha, no século XII, para<br />
distinguir um direito do outro. Alguns atribu<strong>em</strong> a<br />
Dionísio Gotofredo, <strong>em</strong> 1583, a autoria dessa expressão<br />
(CRETELLA JÚNIOR, 1970, p. 69).<br />
Ocorre, no entanto, que a maior contribuição desse<br />
período e, certamente, um dos maiores legados deixados<br />
pela civilização romana corresponde ao Corpus Juris Civilis,<br />
obra que reúne o direito romanopropriamente dito.<br />
O direito romano de Justiniano<br />
O direito romano compreende o conjunto de<br />
normas que regeram a sociedade romana <strong>em</strong> suas<br />
diferentes fases, desde as origens (Roma foi fundada<br />
<strong>em</strong> 754 a.C.) até o ano de 565 d.C., com a morte de<br />
Justiniano. Engloba, portanto, um período que v<strong>em</strong><br />
antes da Lei das XII Tábuas (449 a.C.) e vai até os<br />
trabalhos de compilação que viriam a ser denominados<br />
Corpus Iuris Civilis (BARROSO, 2009). Trata-se, assim, da<br />
sist<strong>em</strong>atização do direito romano compilado no século<br />
VI d.C., por ord<strong>em</strong> de Justiniano e posta <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong><br />
todo o Império Romano.<br />
Destaca-se que naquele contexto, o imperador que<br />
deu o mais alto valor aos estudos e à sist<strong>em</strong>atização<br />
do direito romano não nasceu <strong>em</strong> Roma e não tinha o<br />
nome latino, mas era natural de Tauresium, na Ilíada -<br />
foi o grande governador de Roma entre 527 e 565 d.C.<br />
Justiniano, na fase de declínio do Império Romano,<br />
no Dominato, deixou o legado mais importante para o<br />
campo de Direito, o que deu orig<strong>em</strong> ao Corpus Júris Civilis<br />
ou Código de Justiniano ou Direito Justinianeu. Trata-se<br />
de um conjunto do direito romanocompilado no século<br />
VI da era cristã por ord<strong>em</strong> do imperador Justiniano e,<br />
logo a seguir, posto <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong> toda parte do império<br />
sob seu domínio (CRETELLA JÚNIOR, 1995).<br />
Os historiadores são unânimes no sentido de que<br />
Justiniano era um amante da passada glória romana.<br />
Reinando <strong>em</strong> Constantinopla, Império Romano do Oriente,<br />
sonhava com a tradição latina. Era um restaurador e talvez<br />
um reacionário (MERRYMAN, 1985).<br />
[...] era dotado de inteligência lúcida, autoritário,<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
André Gimenez; Sílvia Araújo Dettmer; Willian Diego de Almeida<br />
orgulhoso, amante da glória, do fausto, do<br />
prestígio da púrpura, da ord<strong>em</strong>, vaidoso,<br />
ciumento, hesitante, mesquinho, mas também<br />
piedoso. Recebeu, graças a seu tio Justino, uma<br />
sólida formação intelectual, é qual aliava um<br />
profundo interesse pelos probl<strong>em</strong>as teológicos.<br />
“Um Estado, uma Lei, uma Igreja”, eis a breve<br />
fórmula <strong>em</strong> que pode ser sintetizado todo o<br />
programa político do camponês macedônico<br />
elevado à culminância do trono dos Césares. Esse<br />
programa está profundamente vinculado com<br />
o t<strong>em</strong>peramento ambicioso, com a formação<br />
intelectual e a educação religiosa de Justiniano<br />
(GIORDANI, 1977, p. 47).<br />
A sua obra jurídica está intimamente vinculada<br />
ao plano da restauração do Império Romano na sua<br />
totalidade. Oriente mais Ocidente. Um Império, uma<br />
lei (GIORDANI, 1992). Observa-se que a codificação<br />
de Justiniano representa o el<strong>em</strong>ento estabilizador do<br />
processo histórico-jurídico cujo acúmulo de leis t<strong>em</strong><br />
orig<strong>em</strong> na fundação da urbs de Roma e r<strong>em</strong>onta aos<br />
t<strong>em</strong>pos de Rômulo.<br />
Nessa obra de codificação da jurisprudência clássica,<br />
o trabalho paciente e multissecular dos jurisconsultos foi<br />
imprescindível na feitura da compilação que resultou na<br />
legislação imperial. Esse grupo partiu de dados positivos,<br />
concretos e guiados pela equidade e utilidade social.<br />
Os jurisconsultos formavam uma categoria<br />
aristocrática, eram homens de classes superiores<br />
(senatorial), fidalgos que não exerciam uma profissão<br />
propriamente dita, des<strong>em</strong>penhavam função pública<br />
ao prestar um serviço à cidade e contribuir para a<br />
preservação da tradição. Não advogavam no foro, pois<br />
essa advocacia declamatória e retórica, <strong>em</strong>bora existisse<br />
<strong>em</strong> Roma, era considerada inferior. Des<strong>em</strong>penhavam<br />
uma honra, uma dignidade ao prestar o serviço de<br />
publicamente dar sua opinião e recebiam como<br />
r<strong>em</strong>uneração uma influência poderosa (LOPES, 2008).<br />
Porém, entre os jurisconsultos, Triboniano, professor<br />
de direito e alto funcionário do império, foi designado<br />
por Justiniano, pouco depois que este assumiu o<br />
poder, <strong>em</strong> 528 d.C. para presidir uma comissão com<br />
16 m<strong>em</strong>bros. A finalidade era salvar a herança clássica,<br />
compilando as constituições imperiais vigentes. Na<br />
jurisprudência da época criou-se, então, um conflito<br />
pautado na predominância dos textos dos jurisconsultos<br />
que eram m<strong>em</strong>bros dessa comissão sobre todos os<br />
d<strong>em</strong>ais. Com isso, Justiniano aboliu todos os livros dos<br />
juristas, salvou apenas os maiores do período clássico<br />
e mandou queimar os manuscritos dos jurisconsultos<br />
excluídos. Em 529 d.C. essa compilação estava pronta<br />
e foi intitulada Nouus Iustinianus Codex.<br />
Realizada a compilação das leges, era necessário<br />
resolver um probl<strong>em</strong>a com relação ao que não tinha
sido ainda compilado (iura), porque havia entre os<br />
jurisconsultos antigos uma série de controvérsias a<br />
solucionar. Diante dessa situação divergente, Justiniano<br />
expediu 50 constituições (as Quinquaginta Decisiones)<br />
e, nos fins de 530 d.C., encarrega Triboniano, <strong>em</strong>érito<br />
jusrisconsulto, de organizar comissão destinada a<br />
compilar os iura e uniformizar os debates. Para o<br />
término desse projeto grandioso, Justiniano previu<br />
prazo máximo de dez anos. No entanto, a comissão de<br />
16 m<strong>em</strong>bros, sob a presidência de Triboniano, depois de<br />
compulsar quase dois mil livros, concluiu o trabalho <strong>em</strong><br />
apenas três anos. Era o Digesto, também denominado<br />
Pandectas (ALVES, 1995).<br />
Terminada a elaboração do Digesto e antes de sua<br />
promulgação, Justiniano escolheu três dos compiladores<br />
(Triboniano, Doroteu e Teófilo) para a organização de<br />
um manual escolar que servisse aos estudantes como<br />
introdução ao direito compendiado no Digesto. Seguindo<br />
as Institutas de Gaio, essa comissão elaborou as Institutiones<br />
(Institutas). Ambos (Digesto e Institutas) entraram <strong>em</strong> vigor<br />
na mesma data, 30 de dez<strong>em</strong>bro de 533 d.C.<br />
A obra legislativa de Justiniano, denominada de<br />
Corpus Iuris, por conseguinte, consta de quatro partes:<br />
Institutas (texto didático e sist<strong>em</strong>ático, manual básico<br />
do ensino jurídico), Digesto (compilação dos iura: textos<br />
dos jurisconsultos, suas opiniões), Código (compilação<br />
das leges: constituições dos seus antepassados) e<br />
Novelas (reunião das constituições promulgadas,<br />
posteriormente, por Justiniano). Em 1538 a obra<br />
de Justiniano foi denominada por Corpus Iuris Civilis,<br />
designação universalmente adotada atualmente. Explica<br />
Cretella Júnior que:<br />
as Institutas são um Manual de Direito Privado<br />
Romano, el<strong>em</strong>entar para o uso dos estudantes de<br />
direito <strong>em</strong> Constantinopla. Os romanos achavam<br />
oportuno instituere, isto é, iniciar, educar. Daí,<br />
o aparecimento de vários livros chamados<br />
Institutiones, escritos por jurisconsultos romanos.<br />
O Código, de 534, verdadeira edição do Código<br />
de 529, é que chegou até nós e faz parte do<br />
Corpus Iuris Civilis. As Novelas são um conjunto<br />
de novas constituições imperiais, decretadas por<br />
Justiniano, nos últimos anos de seu reinado, para<br />
atender os novos casos que surgiam. O Digesto,<br />
a mais importante das obras de Justiniano é<br />
uma compilação dos escritos dos jurisconsultos<br />
(CRETELLA JÚNIOR, 1970, p. 72).<br />
No entanto, a aplicabilidade da legislação de<br />
Justiniano foi possível devido ao interesse prático e ao<br />
espírito codificador dos jurisconsultos e, de forma mais<br />
específica, ao trabalho de restauração dos m<strong>em</strong>bros da<br />
comissão dirigida por Triboniano. Nesse sentido, Alves<br />
ressalva:<br />
A influência do direito romano no direito ocidental: breves considerações<br />
Para que os iura e as leges constantes no Corpus<br />
Iuris Civilis pudess<strong>em</strong> ter aplicação na prática,<br />
foi preciso, muitas vezes, que os compiladores<br />
fizess<strong>em</strong> substituições, supressões ou acréscimos<br />
nos fragmentos dos jurisconsultos clássicos ou<br />
nas constituições imperiais antigas” (ALVES,<br />
1995, p. 49).<br />
Menciona-se que a melhor edição do Corpus Iuris<br />
Civilis é a devida aos al<strong>em</strong>ães Momms<strong>em</strong>, Krueger,<br />
Schoell e Kroll. O primeiro editou o Digesto; o segundo,<br />
as Institutas e o Código; e os dois últimos, as Novelas.<br />
Porém, dentre as obras de compilação dos escritos<br />
dos jurisconsultos, o Digesto é a mais importante. Ele<br />
foi publicado <strong>em</strong> 533, mais cedo do que se esperava,<br />
contém material de 39 juristas, desde Mucius Scaevola<br />
(o mais antigo, morto <strong>em</strong> 82 a.C.) até o mais recente<br />
Modestino, ainda <strong>em</strong> 244 d.C. Há 2.464 trechos de<br />
Ulpiniano, 2.081 de Paulo, 601 de Palpiniano, 578 de<br />
Pompônio e 535 de Gaio. Dos outros juristas somamse<br />
2.883 trechos. Dentre os mais citados, Pompônio é<br />
o mais antigo (morto <strong>em</strong> 138 d.C.) e Ulpiniano o mais<br />
recente (morto <strong>em</strong> 228 d.C.). Este sozinho responde<br />
por quase um terço do Digesto. Paulo e Ulpiniano<br />
juntos correspond<strong>em</strong> à, praticamente, metade da obra.<br />
Os trechos não poderiam contradizer-se, pois um dos<br />
objetivos da compilação era restaurar a clareza e a<br />
confiabilidade do direito clássico.<br />
Naturalmente que a comissão de Triboniano não<br />
eliminou todas as contradições e incertezas, seja por<br />
respeito aos textos, seja porque, supõe-se, trabalhou<br />
<strong>em</strong> subcomissões. Havia duas mil obras a consultar e<br />
n<strong>em</strong> todos os 16 m<strong>em</strong>bros usaram todas. A hipótese do<br />
historiador Bluhme (de 1818) é que uma subcomissão<br />
organizou os textos de Ulpiniano sobre o Edito<br />
Perpétuo (de Sálvio Juliano) e uma terceira ocupou-se<br />
de Papiniano e dos outros. Os compiladores deveriam<br />
organizar os textos e dar-lhes a fonte (autor e obra),<br />
como se vê até hoje no Digesto.<br />
No Oriente, <strong>em</strong>bora Justiniano, na constituição que<br />
promulgou o Digesto, tivesse proibido os comentários a<br />
essa obra - o que provavelmente se estendia às d<strong>em</strong>ais<br />
partes do Corpus Iuris Civilis - e apenas autorizado<br />
traduções literárias, índices e r<strong>em</strong>issões a dispositivos<br />
sobre o mesmo assunto colocados <strong>em</strong> lugares<br />
diferentes, essa proibição não foi observada. Entre os<br />
comentários ao Digesto, destaca-se os de Estéfano, os<br />
de Doroteu e os de Cirilo; ao Código, os de Taleleu e<br />
quanto às Institutas, os de Teófilo.<br />
Em 565 d.C., faleceu o imperador Justiniano e a<br />
data passou a se tradicionalmente considerada o termo<br />
final do direito romano. Assim, iniciou-se um período<br />
que se estende até 610 d.C. e é considerado, pelos<br />
historiadores, como o mais triste da história bizantina.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
35
36<br />
Isso devido à anarquia, miséria e calamidades que se<br />
desencadearam <strong>em</strong> todo o império. Para alguns, o fim<br />
do mundo se aproximava (GIORDANI, 1977, p. 54).<br />
Outros sist<strong>em</strong>as jurídicos oriundos de civilizações<br />
antigas nasceram, transformaram-se e morreram s<strong>em</strong><br />
exercer influências - a não ser raras e superficiais - nos<br />
sist<strong>em</strong>as modernos. A compilação de Justiniano, ao<br />
contrário, é perene e continua a refletir-se nos sist<strong>em</strong>as<br />
jurídicos ocidentais como expressão da vida jurídicosocial<br />
do povo que formou o mais organizado império<br />
do mundo antigo.<br />
Conclusão<br />
Em meados do século VI, Justiniano promoveu a<br />
compilação de textos jurídicos da tradição romana,<br />
compreendendo o Digesto (533 d.C.), que reunia as obras<br />
dos juristas clássicos; o Código (529 d.C.), que abrangia a<br />
legislação imperial de seus antecessores e as Instituições<br />
(530 d.C.), que constituíam um manual introdutório.<br />
Houve ainda uma compilação póstuma, as Novelas (565<br />
d.C.), com os atos do próprio Justiniano. Esse conjunto<br />
de livros recebeu, a partir do século XVI, o nome de<br />
Corpus Iuris Civilis, passando a constituir a m<strong>em</strong>ória<br />
medieval e moderna do direito romano (BARROSO,<br />
2009, p. 43). O monumento jurídico representado<br />
pelo direito romano e que atravessou os séculos foi a<br />
matriz imperecível do direito civil e o primado do direito<br />
privado se afirma através da difusão e da recepção do<br />
direito romano no Ocidente (BOBBIO, 1987; p. 21).<br />
Nesse sentido, a originalidade da tarefa dos juristas está<br />
justamente nos instrumentos gregos que se valeram para<br />
refinar, ampliar e flexibilizar sua herança romana. Diz-se<br />
que os gregos não desenvolveram um corpo de tradições<br />
legais, porque sua inquietude intelectual impedia que<br />
respeitass<strong>em</strong> os limites estreitos de um pensamento<br />
dogmatizante. E, ao contrário, o original dos juristas<br />
romanos foi sua capacidade de valer-se da retórica e da<br />
dialética, aceitando o limite da tradição. Conservadores<br />
e tradicionalistas, eles operaram mudanças pelo<br />
tratamento consistente e ordeiro de casos individuais<br />
s<strong>em</strong> fazer sínteses retóricas (DAWSON, 1953).<br />
Enfim, o direito romano era o direito de homens<br />
práticos, de casos concretos, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente<br />
jurisprudencial e nascido das necessidades da vida<br />
cotidiana. Não foi o fruto de elucubrações de homens<br />
de gabinete, desvinculados da realidade. Aliás, na sua<br />
formação e evolução, o direito romano está mais<br />
próximo do Commow law do que dos ordenamentos<br />
romanistas (LIMA FILHO, 2006). Assim, perante esse<br />
laboratório romano detentor de um complexo legado<br />
jurídico que, atualmente, não t<strong>em</strong> aplicabilidade <strong>em</strong><br />
nenhuma jurisdição, busca-se:<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
André Gimenez; Sílvia Araújo Dettmer; Willian Diego de Almeida<br />
a renovação crítica da historiografia do Direito,<br />
nascida e articulada na dialética da produção da<br />
vida material e das relações sociais concretas.<br />
Trata-se de pensar a historicidade do Direito,<br />
no que se refere à sua evolução histórica,<br />
suas idéias e suas instituições, a partir de<br />
uma reinterpretação das fontes do passado<br />
sob o viés da interdisciplinaridade (social,<br />
econômico e político) e de uma reordenação<br />
metodológica, <strong>em</strong> que o fenômeno jurídico seja<br />
descrito sob uma perspectiva desmistificadora.<br />
Naturalmente, para se alcançar esta condição<br />
histórico-crítica sobre determinado tipo de<br />
sociedade e suas instituições jurídicas, impõese,<br />
obrigatoriamente, visualizar o Direito como<br />
reflexo de uma estrutura pulverizada não só<br />
por um certo modo de produção da riqueza<br />
e por relações de forças societárias, mas,<br />
sobretudo, por suas representações ideológicas,<br />
práticas discursivas heg<strong>em</strong>ônicas, manifestações<br />
organizadas de poder e conflitos entre múltiplos<br />
atores sociais (WOLKMER, 2006, p. 12).<br />
Nesse contexto, conclui-se que o estudo do direito<br />
romano é essencial para a formação reflexiva do operador<br />
do direito no que tange às origens do ordenamento<br />
jurídico vigentes no território brasileiro. Dessa forma, nos<br />
momentos de mudança, esse conhecimento pode cumprir<br />
um papel crítico na interpretação cultural da legislação.<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
37
38<br />
THE INFLUENCE OF LAW IN ROMAM LAW WEST: BRIEF OBSERVATIONS<br />
ABSTRACT: In seeking to understand the current legal syst<strong>em</strong> is essential to study the Roman law. It appears that<br />
the legal institutions of Roman civilization were important to the making and development of legal syst<strong>em</strong>s of various<br />
countries that have incorporated explicitly and syst<strong>em</strong>atically in his paternal duty. Other legal syst<strong>em</strong>s derived<br />
from ancient civilizations <strong>em</strong>erged without exerting influence in modern legislation. In terms of legal doctrine,<br />
Lopes (2008), Giordano (1996) and Alves (1995) focus that there is no other legislation that equates to the Roman<br />
law, as an instrument of legal education, laboratory and field observation of the r<strong>em</strong>arkable phenomenon in all<br />
legal its aspects and highlight the legacy of Roman law which was organized un der the reign of Justinian. Thus, this<br />
paper aims to analyze the compilation of Justinian, which continues to be reflected in the Western legal syst<strong>em</strong>s as<br />
an expression of legal and social life of the people who formed the most organized <strong>em</strong>pire in the ancient world.<br />
KEYWORDS: Law; Rome; west.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 29-38<br />
André Gimenez; Sílvia Araújo Dettmer; Willian Diego de Almeida
A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL DA<br />
EMPRESA NO NOVO SÉCULO<br />
Rúbia Spirandelli Rodrigues 1<br />
RESUMO: O texto trabalha o compromisso das <strong>em</strong>presas ligadas à nova <strong>em</strong>presarialidade com a proteção e<br />
preservação do meio ambiente, que é um fator indispensável para o crescimento e desenvolvimento <strong>em</strong>presarial<br />
no mundo globalizado. O meio ambiente pede socorro e as novas técnicas de administração e gestão <strong>em</strong>presarial<br />
não pod<strong>em</strong> desconsiderar a importância deste, como fator de proteção e responsabilização social, fonte de<br />
matéria prima, crescimento e compromisso social. A qualificação das <strong>em</strong>presas no mercado mundial tende a ter<br />
uma classificação <strong>em</strong> razão do seu compromisso e da sua responsabilidade. Assim, não há mais saída diante da era<br />
da nova <strong>em</strong>presarialidade para aquelas <strong>em</strong>presas que quer<strong>em</strong> se manter e se destacar no mercado s<strong>em</strong> se ater ao<br />
compromisso e às necessidades de um meio ambiente saudável.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Empresa; proteção e preservação do meio ambiente; compromisso social.<br />
Introdução<br />
Desde os seus primórdios, a atividade <strong>em</strong>presarial<br />
estava ligada ao lucro e às necessidades dos<br />
consumidores, s<strong>em</strong> qualquer preocupação com a<br />
responsabilidade e a degradação ambiental.<br />
O novo perfil das <strong>em</strong>presas que estão vivas no<br />
mercado mundial já está mudando, pois a cada dia elas<br />
entend<strong>em</strong> mais a necessidade de renovação no modo<br />
de trabalho e produção.<br />
O desafio do desenvolvimento ambientalmente<br />
sustentável e socialmente justo, capaz de assegurar a<br />
sustentabilidade dos recursos naturais para as presentes<br />
e futuras gerações, foi definitivamente incorporado a<br />
agenda jurídica política e social do poder público e dos<br />
mais diferentes seguimentos da sociedade, inclusive as<br />
<strong>em</strong>presas.<br />
Na década de 1990, houve um grande impulso<br />
com relação à consciência ambiental na maioria dos<br />
países, aceitando-se pagar um preço pela qualidade<br />
de vida e mantendo-se limpo o ambiente. O termo<br />
qualidade ambiental passou a fazer parte do cotidiano<br />
das pessoas, as <strong>em</strong>presas passaram a se preocupar<br />
com a racionalização do uso da matéria-prima e com a<br />
degradação e qualidade do meio ambiente.<br />
As <strong>em</strong>presas passaram a entender a necessidade<br />
da dependência entre o desenvolvimento e um meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado, mudando o<br />
conceito do dia-a-dia. A meta passou a ser não apenas<br />
o lucro, mas também a participação <strong>em</strong> projetos<br />
voltados a preservação do meio ambiente e trabalhos<br />
sociais. Além disso, elas são os principais agentes do<br />
desenvolvimento econômico de um país, seus avanços<br />
tecnológicos e a grande capacidade de geração de<br />
recursos aumentam cada vez a necessidade de ações<br />
cooperativas e integradas através das quais possam<br />
desenvolver processos cujo objetivo é a gestão<br />
ambiental e a responsabilidade social.<br />
Quando as <strong>em</strong>presas são capazes de mudar seu perfil<br />
e com isso acrescentam nas suas funções básicas um<br />
comportamento ético e socialmente responsável, elas<br />
ganham o respeito da coletividade, sendo gratificadas<br />
com o reconhecimento dos consumidores.<br />
O meio ambiente entrou na agenda mundial, passou<br />
a ser t<strong>em</strong>a obrigatório na administração das <strong>em</strong>presas.<br />
Elas precisam colocar no seu planejamento uma forma<br />
de trabalho com a preocupação de trabalhar s<strong>em</strong> causar<br />
danos e ainda destinar parte de seus recursos para o<br />
cuidado e a preservação da natureza. Umas pensando<br />
na sua função social e ética, e outras ainda pensando<br />
mais a frente, ou seja, na própria matéria-prima que<br />
pode vir a ter fim.<br />
As <strong>em</strong>presas precisam conciliar a necessidade de<br />
crescimento econômico com outras razões de suma<br />
importância, como a preservação do ambiente de<br />
trabalho e a produção e criação de novos postos de<br />
trabalho com a exigência de conservar e preservar os<br />
recursos naturais.<br />
O papel do setor <strong>em</strong>presarial e industrial deverá<br />
ser o de buscar novos modelos de desenvolvimento<br />
e criatividade, mudando atitudes e valores através de<br />
processos que têm como princípio a sustentabilidade<br />
ambiental. Para isso, é preciso trabalhar <strong>em</strong> cima de<br />
uma política de gestão ambiental compromissada,<br />
1 Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus de Frutal; especialista <strong>em</strong> Direto Civil e Processo Civil pela Universidade de Franca<br />
(UNIFRAN), Docência e Gestão do Ensino Superior pela Faculdade do Noroeste de Minas (FINON) e mestranda <strong>em</strong> Direitos Coletivos, Cidadania e Função<br />
Social pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).<br />
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39
40<br />
pois hoje se descobriu que cuidado e sustentabilidade<br />
significam dinheiro <strong>em</strong> caixa e saúde do negócio.<br />
No Brasil observa-se uma mudança no comportamento<br />
<strong>em</strong>presarial. As <strong>em</strong>presas passaram a ter uma preocupação<br />
com o meio ambiente e a investir <strong>em</strong> seu des<strong>em</strong>penho<br />
ambiental. Isso porque uma <strong>em</strong>presa ética e socialmente<br />
responsável será aquela que obtiver os melhores processos<br />
de sustentabilidade e a melhor política de proteção ao<br />
meio ambiente <strong>em</strong> seus produtos, além de iniciativas para<br />
a contribuição e construção de uma sociedade mais justa,<br />
na qual o meio ambiente passa a ser dever de todos no<br />
sentido de preservar e conservar.<br />
Sendo assim, o presente trabalho visa esclarecer<br />
a necessidade das <strong>em</strong>presas ter<strong>em</strong> uma política de<br />
gestão ambiental compromissada com a proteção e<br />
preservação do meio ambiente.<br />
1 Medidas de proteção e<br />
preservação do meio ambiental<br />
As atividades <strong>em</strong>presariais de modo geral pod<strong>em</strong><br />
interferir no meio ambiente através de diversas<br />
maneiras. Primeiro <strong>em</strong> seus processos de produção,<br />
considerando a matéria-prima, a energia e a água<br />
utilizadas. Segundo na distribuição e comercialização da<br />
sua mercadoria.<br />
A defesa do meio ambiente ganha corpo na década<br />
de 1970 e a Declaração de Estocolmo (1972) constitui<br />
um marco nesse processo, uma vez que ela foi pioneira<br />
<strong>em</strong> introduzir a questão ambiental condicionada à<br />
ord<strong>em</strong> econômica.<br />
Para as <strong>em</strong>presas, necessário se faz um processo de<br />
conscientização e responsabilização. A <strong>em</strong>presa que<br />
t<strong>em</strong> por meta final o lucro não consegue se adequar<br />
ao novo quadro. A conscientização é importante,<br />
pois esse processo de produção voltado à proteção e<br />
preservação ambiental pode ser dispendioso, levando<br />
as <strong>em</strong>presas a investir<strong>em</strong> parte do seu capital social<br />
nas ações de preparação para o novo modelo a que<br />
a <strong>em</strong>presa precisa se adequar, isso da forma menos<br />
dispendiosa possível.<br />
O desenvolvimento sustentável requer mudanças<br />
nas práticas <strong>em</strong>presariais e nos costumes seguidos pelas<br />
<strong>em</strong>presas. O olhar precisa ter um novo foco, outra<br />
preocupação cuja meta fundamental seja a função social.<br />
Segundo Tomasevicius Filho:<br />
O termo função social da <strong>em</strong>presa constitui o<br />
poder-dever de o <strong>em</strong>presário e os administradores<br />
da <strong>em</strong>presa harmonizar<strong>em</strong> as atividades da<br />
<strong>em</strong>presa, segundo o interesse da sociedade,<br />
mediante a obediência de determinados deveres<br />
positivos e negativos (TOMASEVICIUS FILHO,<br />
2003, p. 40).<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
Rúbia Spirandelli Rodrigues<br />
As <strong>em</strong>presas precisam estar voltadas ao cumprimento<br />
de sua função social e ao compromisso com a proteção<br />
e responsabilidade ambiental. A partir daí, preparar sua<br />
administração para uma correta gestão das variáveis<br />
ambientais, permitindo a otimização do processo.<br />
Para colocar <strong>em</strong> prática um Sist<strong>em</strong>a de Gestão<br />
Ambiental eficaz e compromissado dentro da<br />
administração de uma <strong>em</strong>presa, faz-se necessário<br />
fixar parâmetros a ser<strong>em</strong> seguidos, preparando<br />
funcionários e destinando parte de seus recursos para<br />
esse fim específico. Assim, elabora-se um sist<strong>em</strong>a de<br />
política ambiental, fixando objetivos e metas a ser<strong>em</strong><br />
cumpridos.<br />
Esse compromisso com a proteção e preservação<br />
do meio ambiente no mundo globalizado volta <strong>em</strong><br />
benefício da própria <strong>em</strong>presa, pois os consumidores<br />
que a cada dia tornam-se mais conscientes ve<strong>em</strong> esse<br />
diferencial e acabam se comprometendo quando da<br />
escolha da mercadoria produzida por aquela <strong>em</strong>presa.<br />
As medidas de proteção ao meio ambiente precisam<br />
ser implantadas dentro do setor <strong>em</strong>presarial com a<br />
mais rápida urgência, pois o ganho é para a <strong>em</strong>presa e<br />
toda comunidade.<br />
A responsabilidade <strong>em</strong>presarial frente ao meio<br />
ambiente é centrada na análise de como as <strong>em</strong>presas<br />
interag<strong>em</strong> com o meio <strong>em</strong> que habitam e como<br />
praticam suas atividades. Dessa forma, uma <strong>em</strong>presa<br />
que se compromete com o processo de adoção de<br />
medidas de proteção ambiental está diretamente ligada<br />
e voltada à responsabilidade social.<br />
2 Porque uma <strong>em</strong>presa deve melhorar<br />
seu des<strong>em</strong>penho ambiental<br />
Uma <strong>em</strong>presa deve ter como meta principal o<br />
atendimento às necessidades dos seus consumidores<br />
a fim de sobreviver. O lucro, ao contrário do que<br />
muitos pensam, não é a finalidade da <strong>em</strong>presa e sim um<br />
resultado do seu trabalho. Diante da satisfação daquele<br />
que consome, as <strong>em</strong>presas vend<strong>em</strong> mais e passam a<br />
ter condições de trabalhar de diversas formas, tanto<br />
na valorização dos clientes como no sentido social,<br />
valorizando o meio <strong>em</strong> que está localizada.<br />
A <strong>em</strong>presa t<strong>em</strong> metas e regras para seguir e<br />
oferecer o que o consumidor busca. Primeiro, a<br />
satisfação da pessoa que está comprando; segundo, o<br />
preço; terceiro, as condições de entrega e hoje mais<br />
uma variável, o meio ambiente. Este está propiciando<br />
um novo relacionamento dos consumidores com os<br />
produtores. Nesse contexto, verifica-se que a proteção<br />
ambiental passou a ser uma necessidade das pessoas e<br />
clientes da <strong>em</strong>presa. Assim, para sobreviver, a <strong>em</strong>presa
precisa se reestruturar e se adequar às necessidades<br />
do mundo, pois o meio ambiente passou a ser a maior<br />
preocupação mundial.<br />
Uma melhoria na administração da <strong>em</strong>presa, com a<br />
sist<strong>em</strong>atização do gerenciamento ambiental integrandose<br />
ao sist<strong>em</strong>a de gestão do dia-a-dia, permite uma<br />
melhor definição de responsabilidades e auxilia na<br />
identificação de outros probl<strong>em</strong>as não somente<br />
ambientais e na solução destes com medidas que visam<br />
a proteção e o reparo.<br />
Sendo assim, uma <strong>em</strong>presa que se compromete com<br />
as necessidades de cuidado do meio ambiente passa a<br />
ter um diferencial. Por ser um t<strong>em</strong>a que está sendo<br />
visto pelo mundo todo, só com esse diferencial ela<br />
sobreviverá no mercado futuro.<br />
3 Fundamentos para a implantação<br />
da gestão ambiental<br />
A implantação de práticas de gestão ambiental correta na<br />
<strong>em</strong>presa é de grande valia e necessária. Os fundamentos,<br />
ou seja, a base de razões que levam a <strong>em</strong>presa a adotar e<br />
praticar a gestão ambiental são as mais variáveis, desde os<br />
procedimentos obrigatórios de atendimento da legislação<br />
ambiental até a fixação de políticas ambientais que vis<strong>em</strong> à<br />
conscientização de todo o grupo <strong>em</strong>presarial, da atividade<br />
mais simples até a administração.<br />
A busca de procedimentos gerenciais ambientalmente<br />
corretos, incluindo-se aí a adoção de um sist<strong>em</strong>a de<br />
gestão ambiental, na verdade, encontra inúmeras razões<br />
que justificam a sua adoção e diferencia a <strong>em</strong>presa no<br />
mercado de trabalho.<br />
Para a implantação do sist<strong>em</strong>a de gestão ambiental<br />
dev<strong>em</strong>-se cumprir basicamente três conjuntos de<br />
atividades. Primeiro, a análise da situação atual da<br />
<strong>em</strong>presa, o estabelecimento de metas e de métodos.<br />
Os fundamentos predominantes pod<strong>em</strong> variar de uma<br />
organização para outra.<br />
A preocupação com o meio ambiente sustentável<br />
envolve todos aqueles que faz<strong>em</strong> parte desse meio. É uma<br />
responsabilidade para todos, não só as indústrias precisam<br />
se conscientizar como também toda a população.<br />
A legislação ambiental exige cada vez mais respeito<br />
e cuidado com o meio ambiente. A preocupação vai<br />
da preservação até a reparação do dano, com medidas<br />
coercitivas, levando todos a uma maior preocupação<br />
com o meio ambiente.<br />
O poder público se depara a cada dia com mais<br />
probl<strong>em</strong>as e desrespeito com o aspecto ambiental e<br />
se coloca na posição de guardião desse meio por força<br />
da Constituição Federal. Diante disso, v<strong>em</strong> sofrendo<br />
pressões públicas de cunho local, nacional e mesmo<br />
A responsabilidade ambiental da <strong>em</strong>presa no novo século<br />
internacional com exigências cada vez maiores e com o<br />
dever de cobrar mais responsabilidades das <strong>em</strong>presas.<br />
3.1 As vantagens para as <strong>em</strong>presas<br />
socialmente responsáveis pelo meio<br />
ambiente saudável<br />
Grandes mudanças já vêm acontecendo no sentido<br />
da conscientização e responsabilidade de todos pelo<br />
meio ambiente saudável. Uma grande influência sobre<br />
esse aspecto v<strong>em</strong> da globalização, que t<strong>em</strong> trazido às<br />
<strong>em</strong>presas a necessidade de adaptar-se cada vez mais às<br />
novas exigências mercadológicas.<br />
Maior diss<strong>em</strong>inação de informação e maior<br />
conhecimento dos riscos à saúde e sobrevivência da<br />
humanidade farão com que as pessoas e sociedades<br />
pression<strong>em</strong> <strong>em</strong>presas e governos <strong>em</strong> busca de uma<br />
maior qualidade ambiental.<br />
As <strong>em</strong>presas que possu<strong>em</strong> essa preocupação e<br />
responsabilidade estão <strong>em</strong> vantag<strong>em</strong> no mundo dos<br />
negócios. Os bancos, financiadores e seguradoras dão<br />
privilégios a <strong>em</strong>presas ambientalmente sadias ou exig<strong>em</strong><br />
taxas financeiras e valores de apólices mais elevadas de<br />
<strong>em</strong>presas com caráter de poluidoras.<br />
O consumidor também está aprendendo a valorizar<br />
as <strong>em</strong>presas que não polu<strong>em</strong> e se preocupam com a<br />
natureza, passando a consumir com exclusividade e<br />
fidelidade seus produtos.<br />
A sociedade <strong>em</strong> geral está cada vez mais exigente<br />
e crítica no que diz respeito a danos ambientais, à<br />
poluição proveniente das <strong>em</strong>presas e de suas atividades<br />
e ao papel que essas vêm des<strong>em</strong>penhando para ajudar<br />
a cuidar da natureza, seja no âmbito local ou com<br />
campanhas de alcance maior.<br />
Não se pode deixar de lado as organizações nãogovernamentais<br />
e grupos de serviço que estão cada dia<br />
mais vigilantes. Eles exig<strong>em</strong> o cumprimento da legislação<br />
ambiental por parte das <strong>em</strong>presas, a minimização de<br />
impactos causados quando da produção de mercadoria<br />
e exercício de sua atividade, a reparação de danos<br />
ambientais e ainda vêm servindo de forte instrumento<br />
no sentido de impedir a implantação de novos<br />
<strong>em</strong>preendimentos ou atividades que possam causar<br />
danos ou prejuízos ao meio ambiente.<br />
A imag<strong>em</strong> de <strong>em</strong>presas ambientalmente saudáveis<br />
e responsáveis com a natureza v<strong>em</strong> sendo b<strong>em</strong> mais<br />
aceita por acionistas, investidores, consumidores,<br />
fornecedores e pelas autoridades públicas.<br />
Investidores e acionistas conscientes da<br />
responsabilidade ambiental buscam investir <strong>em</strong><br />
<strong>em</strong>presas lucrativas, mas que tenham também a conduta<br />
de ambientalmente responsáveis. Esse é um fator que<br />
diferencia a <strong>em</strong>presa e, diante dessa conscientização<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
41
42<br />
que v<strong>em</strong> sendo exigida, o mundo vai fazer com que essa<br />
<strong>em</strong>presa tenha seu lugar no mercado.<br />
A gestão ambiental <strong>em</strong>presarial está na ord<strong>em</strong> do<br />
dia, é o assunto do momento. Não há mais como fugir<br />
principalmente nos países industrializados e também já<br />
nos países considerados <strong>em</strong> vias de desenvolvimento e<br />
crescimento.<br />
A busca por produtos cultivados ou fabricados de<br />
forma ambientalmente compatível com a preservação e<br />
não degradação do ambiente cresce mundialmente <strong>em</strong><br />
especial nos países industrializados. Porém, os outros<br />
países não ficam de fora, pois essa é uma exigência de<br />
mercado tanto para investimento como para exportação<br />
e importação de produtos.<br />
A relação entre o mundo dos negócios e a natureza<br />
avançou drasticamente. Antes as <strong>em</strong>presas tinham <strong>em</strong><br />
suas listas de despesas que precisavam patrocinar o<br />
reflorestamento ou reciclar lixo. Hoje os custos dessas<br />
ações vão para a lista de investimento, porque significam<br />
lucro e crescimento dos negócios.<br />
Os consumidores estão voltados a dispensar<br />
produtos e serviços que agrid<strong>em</strong> o meio ambiente.<br />
Principalmente os importadores estão exigindo a<br />
certificação ambiental nos moldes da ISO 14.000 ou<br />
mesmo certificados ambientais específicos, como os<br />
selos que passaram a ser um diferencial para as <strong>em</strong>presas<br />
preocupadas com o meio ambiente e com a produção<br />
responsável. Esses selos fornec<strong>em</strong> uma certificação<br />
com grande valor no mercado dos negócios.<br />
3.2 Certificação ambiental<br />
A certificação ambiental v<strong>em</strong> como exigência para<br />
as <strong>em</strong>presas manter<strong>em</strong>-se vivas e confiáveis. Em razão<br />
disso, há a necessidade de criação de normas de caráter<br />
mais abrangente e de aceitação internacional que v<strong>em</strong><br />
qualificando o produto colocado no mercado.<br />
Além do fator <strong>em</strong>presa responsável, t<strong>em</strong> a característica<br />
do aumento da competitividade. Isso v<strong>em</strong> motivando<br />
os <strong>em</strong>presários para a necessidade de um melhor<br />
aprimoramento técnico e de qualidade na sua produção.<br />
Sendo assim, nos países desenvolvidos, surgiram<br />
várias entidades de certificação com suas normas. Vêm se<br />
destacando a Internacional Organization of Standarlization<br />
(ISO) e a Federação Mundial das Organizações Nacionais<br />
de Normalização - que lançou entre outros a ISO 9000,<br />
que é responsável pela qualificação do produto lançado<br />
e teve uma boa aceitação nos países desenvolvidos e<br />
<strong>em</strong> desenvolvimento.<br />
No Brasil muitas <strong>em</strong>presas buscaram essa certificação.<br />
Isso fez com que elas saíss<strong>em</strong> à frente na competição<br />
mercadológica, tendo <strong>em</strong> vista a rigidez de suas exigências.<br />
A Conferência sobre o Meio Ambiente e<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
Rúbia Spirandelli Rodrigues<br />
Desenvolvimento (Rio-92), que aconteceu na cidade<br />
do Rio de Janeiro, foi um grande marco relacionado às<br />
questões ambientais no Brasil, gerando a necessidade de<br />
normalizar os produtos <strong>em</strong> relação ao meio ambiente.<br />
Foi criada a ISO 14.000, que orienta na obtenção<br />
dos Certificados de Gestão Ambiental e v<strong>em</strong> sendo<br />
implantada cada vez mais pelas indústrias <strong>em</strong> quase<br />
todo o mundo, incluindo o Brasil.<br />
A conscientização quanto aos aspectos ambientais da<br />
sociedade onde a <strong>em</strong>presa está inserida faz com que aquelas<br />
que implantar<strong>em</strong> as normas da ISO <strong>em</strong> suas administrações<br />
tenham vantagens <strong>em</strong> relação às d<strong>em</strong>ais. A finalidade<br />
primordial é buscar um desenvolvimento sustentável com<br />
o mínimo de prejuízo possível ao meio ambiente.<br />
A ISO 14.000 traz muitas novidades <strong>em</strong> termos de<br />
processamento e qualificação dos produtos. Ela cria<br />
o selo verde, sendo um moderno instrumento de<br />
garantia de adaptação dos produtos danosos ao meio<br />
ambiente. As <strong>em</strong>presas que receber<strong>em</strong> a certificação<br />
ambiental terão vantagens como: pouco desperdício<br />
de matéria-prima, maior qualidade dos produtos,<br />
confiabilidade mercadológica, maior credibilidade nas<br />
licitações, melhores oportunidades de negócios, maior<br />
competitividade, menor impacto ambiental e mais<br />
oportunidades de investimentos.<br />
3.3 Os selos ecológicos<br />
Uma das formas encontradas para d<strong>em</strong>onstrar a<br />
adaptação das <strong>em</strong>presas às novas exigências do mercado<br />
e sua preocupação com o meio ambiente foi a criação<br />
de etiquetas ou selos ecológicos. Eles diferenciam<br />
produtos que passaram por um controle de qualidade<br />
ambiental e estão aptos a entrar no mercado com<br />
menor possibilidade de causar prejuízo ao ambiente.<br />
O selo ecológico passou a ser um incentivo e estimulo<br />
às <strong>em</strong>presas com boas perspectivas relacionadas ao<br />
mercado, b<strong>em</strong> como uma motivação ao consumidor na<br />
busca por produtos selecionados e que causam menos<br />
impacto ambiental.<br />
Os rótulos ambientais são selos de comunicação que<br />
visam dar informações ao consumidor sobre o produto<br />
caracterizado por um processo de seleção de matériasprimas<br />
produzidas de acordo com especificações<br />
ambientais.<br />
Diversos países criaram seus próprios selos, os quais<br />
passaram a ser um diferencial competitivo. Dentre os<br />
países pioneiros na utilização da rotulag<strong>em</strong> ambiental<br />
de produtos, destacam-se: Al<strong>em</strong>anha, Estados Unidos<br />
e a União Europeia.<br />
Probl<strong>em</strong>as surgiram com a crescente proliferação de<br />
rótulos ambientais até que a ISO 14.000 criou normas e<br />
critérios gerais para a rotulag<strong>em</strong>. A rotulag<strong>em</strong> ambiental,
de modo geral, ainda é objeto de estudo por parte do<br />
Subcomitê 03 da ISO. No Brasil, é representada pela<br />
ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).<br />
A ABNT - Qualidade Ambiental visa suprir as<br />
necessidades brasileiras na área de certificação ambiental<br />
para que as <strong>em</strong>presas coloqu<strong>em</strong> no mercado produtos<br />
com total qualidade e garantia para o consumidor. Com<br />
essa nova forma de garantia ecológica de produtos<br />
industrializados, é possível combater cada vez mais a<br />
degradação ambiental com medidas mais concretas e<br />
efetivas, propiciando a melhoria da qualidade de vida<br />
<strong>em</strong> um ambiente saudável.<br />
Ao considerar a gestão ambiental no contexto<br />
<strong>em</strong>presarial, percebe-se de imediato que ela pode<br />
ter, e geralmente t<strong>em</strong>, uma importância muito<br />
grande, inclusive estratégica. Dependendo do grau de<br />
sensibilidade para com o meio ambiente d<strong>em</strong>onstrado<br />
e adotado pela alta administração, é possível perceber<br />
e antever o potencial que existe para que uma gestão<br />
ambiental efetiva possa ser implantada a fim de que tal<br />
<strong>em</strong>presa obtenha sua certificação e possa colocar <strong>em</strong><br />
seus produtos os selos ecológicos, um diferencial já<br />
reconhecido pelos consumidores e mercados nacional<br />
e internacional.<br />
4 A gestão ambiental nas <strong>em</strong>presas<br />
A necessidade e importância da gestão ambiental<br />
para a <strong>em</strong>presa se dão <strong>em</strong> razão de possíveis danos e<br />
efeitos ambientais que pod<strong>em</strong> ocorrer durante o ciclo<br />
de produção. Este pode causar impactos sobre o meio<br />
ambiente, a saúde humana, a distribuição e comercialização<br />
dos produtos, da assistência técnica e destinação final dos<br />
bens. A adoção da gestão ambiental pela <strong>em</strong>presa só traz<br />
a ela benefícios, pois além do diferencial no mercado,<br />
envolve ainda o menor risco na produção de mercadorias<br />
e a aproximação com o consumidor.<br />
Várias políticas pod<strong>em</strong> servir de instrumentos de<br />
gestão com vistas a obter ou assegurar a economia e<br />
o uso racional de matérias-primas e insumos, deixando<br />
evidente a responsabilidade e o compromisso da<br />
<strong>em</strong>presa com o meio ambiente.<br />
As formas pod<strong>em</strong> ser as mais variadas, como orientar<br />
consumidores quanto à compatibilidade ambiental<br />
dos processos produtivos e dos seus produtos ou<br />
serviços; custear campanhas institucionais da <strong>em</strong>presa<br />
com destaque para a conservação e a preservação<br />
da natureza; disponibilizar material informativo,<br />
d<strong>em</strong>onstrando o des<strong>em</strong>penho da <strong>em</strong>presa na área<br />
ambiental e buscar a certificação dos seus produtos nos<br />
moldes das normas ISO 14.000.<br />
A responsabilidade ambiental da <strong>em</strong>presa no novo século<br />
Os objetivos e as finalidades inerentes a um<br />
gerenciamento ambiental nas <strong>em</strong>presas evident<strong>em</strong>ente<br />
dev<strong>em</strong> estar <strong>em</strong> consonância com o conjunto das<br />
atividades <strong>em</strong>presariais e o compromisso fiel de cuidar<br />
e zelar pela natureza.<br />
4.1 Empresas brasileiras<br />
No Brasil, na década de 1990, o movimento de<br />
valorização da responsabilidade social <strong>em</strong>presarial<br />
ganhou forte impulso por meio de ações de entidades<br />
não-governamentais, institutos de pesquisa e <strong>em</strong>presas<br />
sensibilizadas com a questão. As <strong>em</strong>presas passaram a<br />
se preocupar com a certificação, as normas da ISO e as<br />
estratégias para sua inclusão social no mercado.<br />
No momento, uma quantidade grande de <strong>em</strong>presas<br />
nacionais está d<strong>em</strong>onstrando preocupações e investindo<br />
<strong>em</strong> seu des<strong>em</strong>penho no setor ambiental. Muitas dessas<br />
<strong>em</strong>presas são filiais de multinacionais e se adequam a<br />
padrões corporativos com intuito de preservar o nome<br />
da companhia e evitar probl<strong>em</strong>as. Outras visam melhor<br />
des<strong>em</strong>penho por uma necessidade expressa dos clientes.<br />
As <strong>em</strong>presas pod<strong>em</strong> ser classificadas <strong>em</strong> quatro<br />
categorias: aquelas que não faz<strong>em</strong> nada pelo meio<br />
ambiente, pois suas atividades geram poucos impactos<br />
ambientais; as que atuam pouco apesar de gerar<strong>em</strong><br />
impactos; as que procuram ter uma atuação mais<br />
significativa e as que estão procurando obter a certificação<br />
segundo normas ambientais para o seu sist<strong>em</strong>a de gestão.<br />
O Índice Dow Jones Mundial de Sustentabilidade<br />
(DJSI) foi criado <strong>em</strong> 1999 e, naquele mesmo ano,<br />
81 <strong>em</strong>presas mundiais do setor de petróleo e gás<br />
e 20 brasileiras tentaram seu ingresso. A Petrobras<br />
conquistou o direito de compor o DJSI, o mais<br />
importante índice internacional de sustentabilidade,<br />
usado como parâmetro para análise dos investidores<br />
sócio e ambientalmente responsáveis.<br />
No Brasil integram o DJSI: Aracruz Celulose,<br />
Banco Bradesco, Banco Itaú, Companhia Energética<br />
de Minas Gerais (C<strong>em</strong>ig). No setor de petróleo e gás<br />
estão incluídas: BG Group, BP PLC, EnCana, Nexen<br />
Inc, Repsol YPF, Royal Dutch Shell, Shell Canada Ltd.,<br />
Statoil, Suncor Energy Inc., Total S.A. O levantamento<br />
da Market Analysis de 2007 aponta as dez melhores<br />
corporações <strong>em</strong> responsabilidade social atuantes no<br />
Brasil. Entre as melhores avaliadas estão Petrobras,<br />
Nestlé, Coca-Cola, Rede Globo, Unilever, Natura, Vale<br />
do Rio Doce, AmBev, Bom Preço e Azaléia 2 .<br />
Apesar do quadro apresentado acima, o Brasil<br />
ainda é visto pelo mundo como um país irresponsável<br />
do ponto de vista ambiental por não conseguir evitar<br />
2 GARNIER C. de A. Responsabilidade social e ambiental da <strong>em</strong>presa. São Paulo, 2008. Disponível <strong>em</strong> http:. Acesso <strong>em</strong>:<br />
04 jul. 2010.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
43
44<br />
queimadas, degradações ambientais, poluições etc.<br />
O comprometimento tanto do governo quanto<br />
da sociedade como um todo, envolvendo cidadão<br />
e <strong>em</strong>presa, ainda está muito longe de garantir a<br />
sobrevivência do meio ambiente.<br />
5 Da proteção constitucional<br />
do meio ambiente<br />
A preservação do patrimônio cultural brasileiro foi<br />
t<strong>em</strong>a introduzido pela Constituição Federal de 1988. Ela<br />
trouxe a regulamentação sobre o meio ambiente para<br />
a legislação, destinou um capítulo inteiro a questão do<br />
meio ambiente (Capítulo VI, do Título VIII), garantindo<br />
o caráter de direito fundamental.<br />
Diante dessa ord<strong>em</strong> constitucional, a preocupação<br />
ambiental tornou-se presente para todos os setores,<br />
tanto público como privado. Baracho Junior destaca:<br />
A discussão de probl<strong>em</strong>as ambientais só é<br />
possível <strong>em</strong> uma sociedade industrializada,<br />
seja porque nelas a organização de interesses<br />
metaindividuais se torna viável, seja porque<br />
os probl<strong>em</strong>as ambientais se tornam mais<br />
acentuados com a industrialização (BARACHO<br />
JUNIOR, 2000, p. 175).<br />
A Constituição Federal de 1988 veio tratando do<br />
meio ambiente de maneira esparsa, ora dispondo de<br />
instrumentos que visam protegê-lo, ora consolidando<br />
a divisão de atribuições entre os entes políticos<br />
integrantes da federação. Assim, o meio ambiente foi<br />
consagrado <strong>em</strong> muitos dos princípios constitucionais.<br />
O legislador brasileiro passou a criar mecanismos de<br />
proteção ambiental, destaque para a Lei dos Crimes<br />
Ambientais, lei n. 9.605 de 12 fevereiro de 1998; a lei n.<br />
6.938 de 31 de agosto de 1991, que instituiu a Política<br />
Nacional do Meio Ambiente; entre outras que visam à<br />
regulamentação e à proteção do meio ambiente.<br />
A Constituição Federal de 1988 consagrou a<br />
proteção ambiental <strong>em</strong> seu artigo 225 como proteção a<br />
um b<strong>em</strong> de uso comum do povo e essencial a uma boa<br />
qualidade de vida, ou seja, pertencente ao rol dos bens<br />
de interesse difusos.<br />
Artigo 225 - Todos têm direito ao meio ambiente<br />
ecologicamente equilibrado, b<strong>em</strong> de uso comum<br />
do povo e essencial à sadia qualidade de vida,<br />
impondo-se ao poder público e à coletividade<br />
o dever de defendê-lo e preservá-lo para os<br />
presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).<br />
Interpretando o artigo constitucional, observase<br />
que o meio ambiente é um direito de todos e<br />
oponível contra todos aqueles que o polu<strong>em</strong> e o<br />
degradam, sejam pessoas físicas ou jurídicas, públicas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
Rúbia Spirandelli Rodrigues<br />
ou privadas. O texto ainda traz a associação entre um<br />
meio ambiente ecologicamente equilibrado e uma sadia<br />
qualidade de vida, valorizando o princípio fundamental<br />
da constituição que é a dignidade da pessoa humana.<br />
Daí o conceito da nova <strong>em</strong>presarialidade voltado para<br />
a proteção ao meio ambiente saudável. Nele, a <strong>em</strong>presa<br />
institui <strong>em</strong> seu dia-a-dia o l<strong>em</strong>a da responsabilidade<br />
social, se destacando pela preocupação com um b<strong>em</strong><br />
que é de todos.<br />
Em 1998, o Conselho Mundial para o Desenvolvimento<br />
Sustentável (WBCSD), primeiro organismo internacional<br />
puramente <strong>em</strong>presarial com ações voltadas à<br />
sustentabilidade, definiu “responsabilidade socioambiental”<br />
como:<br />
o compromisso permanente dos <strong>em</strong>presários<br />
de adotar um comportamento ético e contribuir<br />
para o desenvolvimento econômico, melhorando,<br />
simultaneamente, a qualidade de vida de seus<br />
<strong>em</strong>pregados e de suas famílias, da comunidade local<br />
e da sociedade como um todo (WBCSD, 1998).<br />
Pode ser entendida também como um sist<strong>em</strong>a<br />
de gestão adotado por <strong>em</strong>presas públicas e privadas<br />
que t<strong>em</strong> por objetivo providenciar a inclusão social<br />
(responsabilidade social) e o cuidado ou conservação<br />
ambiental (responsabilidade ambiental).<br />
Com a internacionalização do capital, ou seja,<br />
a globalização, o uso dos recursos naturais pelas<br />
<strong>em</strong>presas passou a ser de maneira intensa e quase<br />
predatória, s<strong>em</strong> a devida preocupação com os<br />
possíveis danos. As <strong>em</strong>presas, no intuito de ganhar a<br />
confiança do novo público mundial - preocupado com<br />
a preservação e o possível esgotamento dos recursos<br />
naturais - procuraram se adaptar à nova tendência<br />
com programas de preservação ambiental e utilização<br />
consciente dos recursos naturais. Muitas buscam seguir<br />
as regras de qualidade idealizadas pelo programa ISO<br />
14.000 e pelo Instituto Ethos.<br />
Sendo assim, depois do enfoque especial tornando<br />
constitucional a matéria relacioanda ao meio ambiente<br />
e sua proteção, várias outras legislações surgiram para<br />
a regulamentação, fiscalização e proteção ambiental.<br />
Daí também a maior fiscalização tanto por parte dos<br />
poderes públicos e Ministério Público quanto por parte<br />
do próprio cidadão, que sabe da fundamentalidade do<br />
ambiente na vida de todos e também da necessidade<br />
de proteção com o condão de preservação do mundo.<br />
6 Considerações finais<br />
A economia mundial globalizada e suas consequências<br />
vêm trazendo às <strong>em</strong>presas oportunidades de expansão<br />
e o compromisso de gestão e cuidado com o meio
ambiente. Aquelas que consegu<strong>em</strong> perceber a nova<br />
tendência mundial e se adéquam a ela estão criando<br />
mercados cada vez maiores, graças às novas tecnologias<br />
da comunicação.<br />
Para isso, os <strong>em</strong>presários e as <strong>em</strong>presas precisam<br />
desenvolver uma nova filosofia e adequar seus parques<br />
industriais e seus produtos a um fator cada vez mais<br />
importante na comercialização: o fator ambiental. Isso<br />
porque a conscientização dos probl<strong>em</strong>as ambientais t<strong>em</strong><br />
feito com que os consumidores fiqu<strong>em</strong> mais exigentes<br />
quanto à qualidade dos produtos que adquir<strong>em</strong>.<br />
Assim, o fator ambiental v<strong>em</strong> mostrando a necessidade<br />
de adaptação das <strong>em</strong>presas e consequent<strong>em</strong>ente<br />
direciona novos caminhos na sua expansão. As<br />
<strong>em</strong>presas dev<strong>em</strong> mudar seus paradigmas, sua visão<br />
<strong>em</strong>presarial, objetivos, estratégia de investimentos e de<br />
marketing. Tudo isso voltado para o aprimoramento de<br />
seu produto, adaptando-o à nova realidade do mercado<br />
global, o corretamente ecológico.<br />
Prova dessa necessidade de melhoria da qualidade<br />
ambiental global é o crescente número de <strong>em</strong>presas<br />
que passaram a adotar as normas da série ISO 14.000<br />
- que tratam da qualidade ambiental da produção e do<br />
produto <strong>em</strong> si - b<strong>em</strong> como do crescente número de<br />
<strong>em</strong>presas <strong>em</strong> vários setores que passaram a adotar os<br />
selos de qualidade para que os consumidores possam<br />
identificar os produtos ecologicamente corretos.<br />
A globalização, a expansão das indústrias e a sua<br />
necessária adaptação ao referido fator ambiental para<br />
que haja menor agressão ao ambiente exig<strong>em</strong> do<br />
administrador de <strong>em</strong>presas moderno uma nova visão<br />
de trabalho e consequent<strong>em</strong>ente uma nova forma de<br />
administração, ou seja, uma administração voltada à<br />
constante preservação ambiental.<br />
Várias condutas pod<strong>em</strong> ser usadas pelas <strong>em</strong>presas<br />
com intuito de diminuir a degradação e o desrespeito<br />
com o meio ambiente. Além disso, a execução de<br />
programas internos de educação ambiental que visam<br />
à conscientização de seus <strong>em</strong>pregados sobre as novas<br />
diretrizes. Assim, é possível a adaptação das <strong>em</strong>presas<br />
às novas exigências do mercado a fim de ganhar<strong>em</strong><br />
espaço no mundo globalizado. Ainda é preciso levar <strong>em</strong><br />
consideração a proteção constitucional dada ao meio<br />
ambiente, que é um b<strong>em</strong> de todos e, portanto, é dever<br />
de todos protegê-lo.<br />
Sendo assim, não há outra alternativa às <strong>em</strong>presas<br />
a não ser se adaptaram às novas regras e ordens da<br />
<strong>em</strong>presarialidade moderna, que são voltadas não<br />
só ao lucro mais também para a responsabilidades<br />
sociais e ambientais. Não há como negar que o mundo<br />
dos negócios e o mundo natural estão intimamente<br />
ligados. O índice de sustentabilidade nas principais<br />
bolsas de valores do mundo reflete a valorização das<br />
A responsabilidade ambiental da <strong>em</strong>presa no novo século<br />
companhias verdes.<br />
O mercado v<strong>em</strong> deixando claro que a agenda<br />
socioambiental não pode ser ignorada pelas <strong>em</strong>presas<br />
que quer<strong>em</strong> prosperar e que preservar a natureza é<br />
definitivamente aumentar seus próprios lucros. O<br />
l<strong>em</strong>a da sustentabilidade do meio ambiente passa a<br />
ser: preservar é um bom negócio, significa lucro e<br />
respeitabilidade pelo mercado e pelo consumidor.<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
Rúbia Spirandelli Rodrigues
A responsabilidade ambiental da <strong>em</strong>presa no novo século<br />
ENVIRONMENTAL RESPONSIBILITY BUSINESS IN THE CENTURY<br />
ABSTRACT: The text examines the commitment of companies linked to new business with the protection and<br />
preservation of the environment, which is an indispensable factor for growth and business development in a<br />
globalized world. The environment calls for help and new manag<strong>em</strong>ent techniques and business manag<strong>em</strong>ent can<br />
not ignore its importance as a factor in protection and social responsibility, source of raw materials, growth and<br />
social commitment. The classification of companies in the world market tends to have a rating because of their<br />
commitment and responsibility. So there is no output before the era of new business for companies that want to<br />
maintain and stand out in the market without sticking to the commitment and the needs of a healthy environment.<br />
KEYWORDS: Company; protection and preservation of the environment; social commitment.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 39-47<br />
47
A TELEVISÃO COMO CABO ELEITORAL<br />
Edwaldo Costa 1<br />
RESUMO: Este artigo joga luz sobre esse momento da vida nacional, ao analisar uma das inovações que<br />
contribuíram para tornar a cobertura das eleições tão intrigante. Também nos ocupamos da análise de alguns<br />
fragmentos discursivos presentes nas reportagens, visando acentuar a constante formulação dos enquadramentos<br />
adotados no horário eleitoral e nas matérias produzidas <strong>em</strong> alguns telejornais. A literatura que busca discutir o<br />
cenário no qual repousam nossas dúvidas e incertezas sobre o futuro da d<strong>em</strong>ocracia representativa nas sociedades<br />
modernas já d<strong>em</strong>onstra uma das características desse cenário, b<strong>em</strong> visível e de fácil verificação: o ambiente<br />
d<strong>em</strong>ocrático atual está configurado <strong>em</strong> uma esfera pública fort<strong>em</strong>ente dependente da presença dos meios de<br />
comunicação de massa. Eles atuam seja para nos atualizar <strong>em</strong> relação aos acontecimentos que julgamos relevantes,<br />
inclusive quanto às suas implicações cotidianas e desdobramentos futuros, seja para nos colocar diante de ideias,<br />
plataformas eleitorais e modos de representação que eram restritos ao mundo convencional da política, mas que<br />
estão agora abrigados nesse novo espaço público, do qual a mídia passou não só a fazer parte, mas também a<br />
estabelecer a dinâmica.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; marketing político; televisão.<br />
Introdução<br />
Segundo Veiga (2001), a função da propaganda<br />
eleitoral gratuita na televisão é, primeiramente, a de<br />
mobilizar o eleitor para a disputa: é por meio dela<br />
que as pessoas despertam para a “hora política”. Em<br />
segundo lugar está a sua função de prover o eleitor de<br />
informações seguras para que possa decidir o voto,<br />
ainda que perceba que o horário eleitoral é isento de<br />
imparcialidade. Entretanto, é ali que o eleitor vai buscar<br />
informações: conhecer melhor os candidatos a fim de<br />
diminuir a incerteza que caracteriza a decisão eleitoral.<br />
Outra d<strong>em</strong>anda que se vê atendida pelos espectadores<br />
do horário eleitoral diz respeito à necessidade de<br />
segurança e estabilidade <strong>em</strong>ocional, pelo incr<strong>em</strong>ento<br />
da credibilidade <strong>em</strong> relação aos candidatos, obtido com<br />
o conhecimento adquirido e maior compreensão do<br />
cenário. Uma terceira d<strong>em</strong>anda, ainda segundo Veiga<br />
(2001), é atendida pelo horário gratuito: a de reforços<br />
da experiência estética e <strong>em</strong>otiva. A beleza e <strong>em</strong>oção<br />
dos programas têm efeito persuasivo, uma vez que<br />
ativam e retêm a atenção, deixando o espectador mais<br />
receptivo e menos crítico às mensagens. A propaganda<br />
eleitoral, portanto, é a maior referência para o eleitor<br />
decidir o seu voto.<br />
A televisão atinge todas as camadas sociais e a<br />
propaganda eleitoral televisiva pode ser considerada<br />
a forma mais eficiente de os candidatos e partidos<br />
levar<strong>em</strong> suas mensagens ao “público” <strong>em</strong> geral. Ao<br />
lado do papel informativo e esclarecedor, a propaganda<br />
busca persuadir/seduzir não apenas por meio de<br />
suas mensagens objetivas (plataformas ou programas<br />
políticos), mas, sobretudo, pela “imag<strong>em</strong>” que se deseja<br />
que o eleitor construa sobre os diversos concorrentes.<br />
E isso se dá por meio do somatório de diferentes<br />
linguagens: verbal, gestual, sonora e imagética.<br />
Apesar de ter sua orig<strong>em</strong> na década de 1960, a<br />
propaganda política no Brasil adquiriu relevância política<br />
apenas na metade da década de 1980. Isso porque no<br />
intervalo entre 1970 e 1980, vigorou um regime de<br />
exceção, sendo, portanto, o responsável direto pelo<br />
retardo no desenvolvimento da propaganda política<br />
televisiva <strong>em</strong> nosso país (LATTMAN-WELTMAN, 2003).<br />
As eleições presidenciais, <strong>em</strong> geral, e a campanha<br />
eleitoral, <strong>em</strong> particular, são cada vez mais um evento de<br />
exaustiva cobertura midiática. A cada eleição observamos<br />
nos meios de comunicação diversas discussões e<br />
análises políticas, tratando de previsões dos resultados<br />
eleitorais. Os profissionais da comunicação dão ênfase a<br />
aspectos da disputa eleitoral que, muitas vezes, passam<br />
ao largo da análise da ciência política. Geralmente,<br />
as análises realizadas nos meios de comunicação<br />
durante a campanha eleitoral atribu<strong>em</strong> grande peso às<br />
variáveis conjunturais como acontecimentos políticos,<br />
declarações dos políticos, des<strong>em</strong>penho no debate e o<br />
des<strong>em</strong>penho da economia. A ciência política confere<br />
maior importância às variáveis estruturais como a<br />
situação socioeconômica, identificação ideológica ou<br />
racionalidade dos agentes, destacando-se três grandes<br />
escolas do comportamento eleitoral: a sociológica, a<br />
psicossociológica e a econômica.<br />
Todo o processo eleitoral deveria assegurar a<br />
1 Professor mestre do curso de Comunicação Social, Universidade do Estado de Minas Gerias (UEMG) - Campus de Frutal. Avenida Professor Mário<br />
Palmério, 1001 – CEP 38200-000. Frutal – MG. e-mail: guga.aracatuba@terra.com.br.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 49-55<br />
49
50<br />
Edwaldo Costa<br />
legitimidade do regime s<strong>em</strong>, contudo, ameaçar as suas<br />
estruturas. Para isso, vários recursos foram utilizados,<br />
como o uso maciço da máquina governamental e a<br />
intimidação pura e simples. Quando tais medidas não<br />
se mostravam suficientes, recursos adicionais eram<br />
<strong>em</strong>pregados. Na época <strong>em</strong> que a d<strong>em</strong>ocracia foi<br />
interrompida no país, nossos meios de comunicação<br />
de massa encontravam-se <strong>em</strong> plena fase de transição.<br />
Beneficiados diretamente pela d<strong>em</strong>ocracia após a II<br />
Guerra Mundial e o Estado Novo e pela industrialização e<br />
desenvolvimento econômico, os grandes jornais da época<br />
avançavam num processo de profissionalização iniciado<br />
na década de 1950, ganhando contornos <strong>em</strong>presariais.<br />
A expansão da televisão pela sociedade e sua revolução<br />
interna acabaram reorganizando toda a distribuição de<br />
recursos de propaganda disponíveis no país. As revistas<br />
ilustradas e o rádio foram os mais atingidos com esse<br />
crescimento, causando prejuízos significativos para os<br />
dois meios. Após a fase de transição, contudo, a TV<br />
conseguiu manter sua participação <strong>em</strong> crescimento,<br />
enquanto todos os outros meios declinavam.<br />
O termo comunicação v<strong>em</strong> do latim communicatio,<br />
do qual distinguimos três el<strong>em</strong>entos: uma raiz<br />
munis, que significa “estar encarregado de”,<br />
que acrescido do prefixo co, o qual expressa<br />
simultaneidade, reunião, t<strong>em</strong>os a idéia de uma<br />
“atividade realizada conjuntamente”, completada<br />
pela terminação tio, que por sua vez reforça a<br />
idéia de atividade (MARTINO, 2001, p. 12-13).<br />
O interesse do público <strong>em</strong> adquirir informação,<br />
conhecer os argumentos e a amplitude dos setores nãointeressados<br />
são fatores diretamente relacionados ao<br />
êxito ou fracasso de uma campanha informativa. Quanto<br />
mais interessado num determinado assunto, maior a<br />
possibilidade do indivíduo ser atingido pela informação<br />
e quanto maior a exposição do indivíduo a determinado<br />
t<strong>em</strong>a, maior a probabilidade de ele tornar-se interessado<br />
pelo t<strong>em</strong>a, aumentando a motivação. De outro giro,<br />
a escassez de interesse e motivação, dificuldade de<br />
acesso à própria informação e apatia social prejudicam o<br />
processo de recepção de mensagens, de forma que, ao<br />
final de uma campanha, parte do público não irá possuir<br />
nenhum conhecimento sobre os assuntos tratados.<br />
Assim como o interesse <strong>em</strong> adquirir informações, os<br />
componentes do público também tend<strong>em</strong> a filtrá-las,<br />
expondo-se às mensagens que estão de acordo com<br />
suas atitudes e evitando as que não estão de acordo com<br />
essas atitudes. O público tende a se expor à informação<br />
correspondente à sua opinião e evitar as mensagens<br />
destoantes de seu ponto de vista.<br />
Além do interesse <strong>em</strong> obter informação e da<br />
exposição seletiva, outra característica psicológica da<br />
audiência apontada é a percepção ou interpretação<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 49-55<br />
seletiva das mensagens. A interpretação seletiva diz<br />
respeito ao fato de o público transformar e adaptar o<br />
conteúdo da informação recebida, chegando a modificar<br />
substancialmente o sentido da mensag<strong>em</strong>. Isso porque<br />
o público possui uma série de predisposições e opiniões<br />
preexistentes sobre uma variedade de t<strong>em</strong>as e recebe<br />
as mensagens da mídia, buscando reduzir tensões<br />
excessivas quando exist<strong>em</strong> opiniões divergentes de<br />
suas próprias. Desse modo, a mensag<strong>em</strong> pode “não<br />
ser compreendida” pelo receptor ou pode receber<br />
uma interpretação absolutamente distinta de seu<br />
conteúdo (decodificação aberrante). Finalmente, outro<br />
mecanismo psicológico referente à percepção seletiva é<br />
o efeito de assimilação. Ele se dá quando o destinatário<br />
capta as opiniões expressas na mensag<strong>em</strong> de uma<br />
forma mais próxima às suas do que são na realidade,<br />
ao passo que o efeito de contraste ocorre quando a<br />
mensag<strong>em</strong> é interpretada como mais distante da sua<br />
opinião do que realmente é; recebendo o conteúdo<br />
como propagandístico e inaceitável.<br />
Por fim, a m<strong>em</strong>orização seletiva é igualmente<br />
um mecanismo psicológico que afeta a absorção<br />
das mensagens pelo público. O destinatário tende a<br />
m<strong>em</strong>orizar os aspectos da mensag<strong>em</strong> <strong>em</strong> consonância<br />
com suas próprias opiniões <strong>em</strong> maior proporção do<br />
que aspectos destoantes. À medida que o t<strong>em</strong>po passa,<br />
tal efeito tende a se acentuar, fazendo com o que o<br />
indivíduo se l<strong>em</strong>bre dos el<strong>em</strong>entos mais próximos às<br />
suas opiniões <strong>em</strong> detrimento dos aspectos conflitantes.<br />
O efeito latente ocorre quando a eficácia persuasiva da<br />
mensag<strong>em</strong> é quase nula imediatamente após a exposição<br />
<strong>em</strong> virtude de uma barreira, mas à medida que o t<strong>em</strong>po<br />
passa, a m<strong>em</strong>orização seletiva atenua o efeito da barreira<br />
e a mensag<strong>em</strong> passa a produzir o efeito desejado.<br />
Os fatores relativos à audiência, como visto, deram<br />
azo a uma vasta pesquisa sobre a organização ótima<br />
das mensagens com fins persuasivos. Contudo, tão<br />
importante quanto os fatores ligados à audiência,<br />
estão os fatores relativos à mensag<strong>em</strong>, dentre os<br />
quais se destacam a credibilidade da fonte, a ord<strong>em</strong> e<br />
a integralidade da argumentação e a explicitação das<br />
conclusões. A reputação da fonte é um importante fator<br />
que influencia mudanças de opinião entre o público.<br />
Assim é que uma informação atribuída a uma<br />
fonte confiável provoca, num primeiro momento,<br />
mudança de opinião na audiência numa proporção<br />
significativamente maior do que informações atribuídas<br />
a fontes não credíveis. Contudo, após certo período<br />
de t<strong>em</strong>po, o efeito latente passa a atuar, atenuando<br />
a falta de credibilidade da fonte, gerando maior<br />
apreensão e assimilação dos conteúdos da mensag<strong>em</strong>.<br />
O efeito latente faz com que, <strong>em</strong> determinados casos,<br />
a mensag<strong>em</strong> se torne mais persuasiva após o decurso
de algum t<strong>em</strong>po. A escassez ou falta de credibilidade da<br />
fonte seleciona a aceitação da mensag<strong>em</strong> pelo público,<br />
de forma que, mensagens idênticas transmitidas por<br />
fontes diferentes apresentam efeitos distintos. Parte<br />
da pesquisa relativa à mensag<strong>em</strong> buscava identificar se<br />
numa mensag<strong>em</strong> que contém argumentos favoráveis<br />
e contrários a determinado t<strong>em</strong>a, a ord<strong>em</strong> de<br />
apresentação dos argumentos influencia a eficácia.<br />
Em geral, as pesquisas buscavam confirmar ou<br />
desmentir a lei da primacy, segundo a qual, a persuasão<br />
seria influenciada especialmente pelos argumentos<br />
iniciais da mensag<strong>em</strong>. De forma resumida, a lei de<br />
primacy diz respeito à saliência desproporcional obtida<br />
pelo conteúdo divulgado no início da mensag<strong>em</strong><br />
relativamente ao conteúdo apresentado no meio ou no<br />
final da mensag<strong>em</strong>. A integralidade da argumentação<br />
busca compreender se a apresentação de um único<br />
ponto de vista ou de vários pontos de vista sobre um<br />
t<strong>em</strong>a controverso causa impacto sobre a mudança de<br />
opinião da audiência.<br />
Finalmente, entre os fatores relativos à mensag<strong>em</strong>,<br />
buscou-se identificar se uma mensag<strong>em</strong> que apresenta<br />
explicitamente o fim persuasivo, ou seja, na qual são<br />
declaradas as conclusões que a mensag<strong>em</strong> pretende<br />
transmitir, são mais eficazes do que mensagens que<br />
não apresentam as conclusões, deixando implícitas para<br />
ser<strong>em</strong> extraídas pelos próprios destinatários. Segundo<br />
Wolf (2005):<br />
Confrontada com a teoria hipodérmica, a teoria<br />
da mídia, vinculada às pesquisas psicológicoexperimentais,<br />
redimensiona a capacidade<br />
indiscriminada dos meios de comunicação<br />
de manipular o púbico: caracterizando a<br />
complexidade dos fatores que intervêm<br />
na determinação da resposta ao estímulo,<br />
atenua-se a inevitabilidade de efeitos maciços;<br />
explicitando as barreiras psicológicas individuais<br />
que os destinatários ativam, evidencia-se a<br />
não-lineariedade do processo de comunicação;<br />
ressaltando a peculiaridade de cada receptor,<br />
analisam-se os motivos de ineficácia dessas<br />
campanhas (WOLF, 2005, p. 31).<br />
A grande expansão dos meios de comunicação social, sua<br />
participação ativa na sociedade e na opinião pública, e mais,<br />
sua presença marcante nos processos políticos eleitorais<br />
suscitaram interrogações que provocaram inúmeras teses<br />
e estudos sobre a influência da mídia no comportamento<br />
social, como também no comportamento dos eleitores,<br />
interesse maior desta obra.<br />
De acordo com (ALMEIDA, 2002), a midiatização da<br />
sociedade cont<strong>em</strong>porânea deve ser entendida como um<br />
processo no qual se amplia e se aprofunda a importância da<br />
mídia, sua extensão e seu alcance territorial para a economia,<br />
A televisão como cabo eleitoral<br />
política e d<strong>em</strong>ais áreas, b<strong>em</strong> como a televisão passa a ser<br />
o meio de comunicação dominante. Para caracterizar<br />
b<strong>em</strong> essa destacada importância da mídia atualmente,<br />
uma pesquisa revelou que um “adulto americano dedica<br />
6,43 horas diárias de atenção à mídia, enquanto apresenta<br />
apenas 14 minutos por dia para interação interpessoal<br />
familiar” (CASARTELLI, 2005, p. 75).<br />
Para se entender mais sobre essa importante<br />
participação dos meios de massa na sociabilidade<br />
cont<strong>em</strong>porânea - entendendo-se cont<strong>em</strong>poraneidade<br />
como uma complexa e tensa convergência de espaços<br />
geográficos e virtuais, convivências e televivências local<br />
e global - Rubim (2000) denomina tal fase de “Idade<br />
Mídia”, que pode ser detectada através de múltiplas<br />
dimensões marcantes da atualidade. Sendo elas: a<br />
gigantesca expansão quantitativa da comunicação; a<br />
proliferação e desenvolvimento de novas modalidades<br />
e sociotecnologias de comunicação; a consolidação da<br />
comunicação como modo expressivo de “experenciar” a<br />
realidade do mundo e a transformação cultural propiciada<br />
pela comunicação com as indústrias da cultura.<br />
Estudiosos da comunicação social, também<br />
preocupados <strong>em</strong> analisar o verdadeiro impacto que os<br />
meios de massa provocam na vida social e individual,<br />
desenvolveram uma teoria chamada de Agenda<br />
Setting. Segundo essa teoria, os t<strong>em</strong>as que aparec<strong>em</strong><br />
com frequência nos meios de comunicação de modo<br />
geral vão moldar as conversas e os pensamentos da<br />
sociedade, ou seja, aquilo que é noticia na mídia é o que<br />
constitui as conversas diárias entre amigos, familiares ou<br />
discussão <strong>em</strong> grupo. Assim, a mídia teria a capacidade<br />
de fixar os t<strong>em</strong>as sobre os quais dev<strong>em</strong>os pensar, logo,<br />
aquilo que não é tratado pela mídia também é ignorado,<br />
inexistente aos seus espectadores.<br />
A hipótese da Agenda Setting faz parte de estudos<br />
norte-americanos preocupados <strong>em</strong> analisar e detectar<br />
as funções dos meios de comunicação e os efeitos<br />
causados sobre sua audiência. Segundo Casartelli<br />
(2005), os primeiros estudos sobre essa teoria surgiram<br />
na década de 1970 e contrariaram a Teoria dos Efeitos<br />
Limitados, a qual defendia que os efeitos da mídia sobre<br />
os indivíduos não seriam grandes e sim limitados. Em<br />
contraponto, as correntes teóricas da Agenda Setting,<br />
divididas <strong>em</strong> dois paradigmas, faz<strong>em</strong> críticas explícitas<br />
ao modelo dos efeitos limitados. O grupo do paradigma<br />
crítico defende uma influência direta e poderosa dos<br />
meios sobre os cidadãos e o tecnológico aponta que a<br />
mídia t<strong>em</strong> o poder de dirigir como as pessoas dev<strong>em</strong><br />
pensar e a que grupo pertenc<strong>em</strong>.<br />
Agenda Setting trata-se de uma das formas<br />
possíveis de incidências da mídia sobre o público,<br />
consistindo num tipo de efeito social da mídia,<br />
onde esta, pela seleção, disposição e incidência de<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 49-55<br />
51
52<br />
Edwaldo Costa<br />
suas notícias v<strong>em</strong> determinar os t<strong>em</strong>as sobre os<br />
quais o público falará e discutirá” (CASARTELLI,<br />
2005, p. 51).<br />
Ainda na abordag<strong>em</strong> dos efeitos causados pela<br />
midiatização da sociedade, Sartori (2001) é mais<br />
complexo, analisando o caso desde as mudanças<br />
intrínsecas ao que constitui o ser humano e sua história,<br />
como também seu reflexo na política.<br />
Sartori (2001) trabalha com o termo “videopolítica”<br />
para explicar o papel central da televisão na esfera<br />
política cont<strong>em</strong>porânea, uma vez que a importância<br />
dos discursos <strong>em</strong> praças públicas e das ass<strong>em</strong>bleias<br />
transportou-se para a tela. Essa centralidade televisiva,<br />
a midiatização da sociedade, transformou o “fazer<br />
política”, e seus agentes precisaram se adaptar às<br />
linguagens e técnicas televisivas para manter<strong>em</strong>-se na<br />
arena política. O autor critica a perda da racionalização<br />
de conceitos e fatos com a midiatização da sociedade,<br />
porquanto as imagens receberam o caráter de<br />
autoridade do real. Logo, se crer naquilo que se vê.<br />
Sartori (2001) denomina o homo videns para explicar o<br />
estado do individuo frente ao novo meio televisivo, <strong>em</strong><br />
que o visível se sobrepõe ao inteligível. Ribeiro (2004)<br />
explica b<strong>em</strong> essa concepção de Sartori (2001).<br />
Sartori responde que o homo sapiens, formado<br />
pela palavra escrita, cujo conhecimento<br />
desenvolvia-se na dimensão do mudus intelligibilis<br />
por meio de conceitos abstratos e representações<br />
mentais, cede lugar ao homo videns, que retorna<br />
ao mundus sensibilis pré-Gut<strong>em</strong>berg, ou seja,<br />
ao mundo percebido pelos sentidos, <strong>em</strong> que<br />
o simples ver obstaculariza a capacidade de<br />
abstração e, <strong>em</strong> conseqüência, de compreensão.<br />
Enquanto o homo sapiens era capaz de<br />
compreender e de explicar a partir da abstração -<br />
bases da própria ciência - entendendo s<strong>em</strong> ver, o<br />
homo videns gerado pela televisão volta ao estagio<br />
pré-moderno <strong>em</strong> que tudo t<strong>em</strong> correspondência<br />
com coisas concretas, visíveis, observáveis, o que<br />
constitui imenso óbice a conceituação de noções<br />
necessariamente abstratas como “nação”,<br />
“soberania” ou “política” (RIBEIRO, 2004, p. 27).<br />
Sartori (2001) também alerta sobre os efeitos que a<br />
“videopolítica” provocou na d<strong>em</strong>ocracia representativa.<br />
Primeiro, ele l<strong>em</strong>bra que as mídias constitu<strong>em</strong> <strong>em</strong>presas<br />
com fins lucrativos, movidos por interesses econômicos<br />
e políticos e, ao ocupar<strong>em</strong> posição fundamental na<br />
influência da opinião pública, pod<strong>em</strong>, na verdade, gerir<br />
esse cenário para atender a objetivos próprios diante<br />
de uma sociedade vulnerável a manipulação <strong>em</strong> massa.<br />
Em segundo lugar, Sartori (2001) alerta para o poderoso<br />
instrumento modelador da opinião publica que os media<br />
se transformaram, principalmente, no ramo televisivo.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 49-55<br />
Para ele, a opinião pública de qu<strong>em</strong> a televisão se diz<br />
porta-voz é, na verdade, o eco da sua própria voz.<br />
Além disso, o autor é enfático <strong>em</strong> frisar que com a<br />
“videopolítica”, características fisionômicas e linguag<strong>em</strong><br />
<strong>em</strong>otiva se fizeram a frente de argumentos lógicos e<br />
discursos eloquentes, pois o <strong>em</strong>ocional sobrepõe o<br />
racional na era do homo videns, fato implicante quando<br />
se considera a d<strong>em</strong>ocracia um sist<strong>em</strong>a político de<br />
escolhas racionais e representativas.<br />
No entanto, essa centralidade dos meios de<br />
comunicação e, particularmente, da televisão na vida <strong>em</strong><br />
sociedade traz consequências culturais relevantes, as quais<br />
Lima (1994) faz questão de abordar: primeiro, a televisão<br />
quebra a necessidade da conexão entre presença física<br />
e experiência e isso lhe dá um poder incomensurável<br />
para construir o real, já que no mundo cont<strong>em</strong>porâneo<br />
não é possível está fisicamente presente <strong>em</strong> todos os<br />
acontecimentos referentes à nossa vida e às decisões que<br />
tomamos cotidianamente. Em segundo lugar, a televisão<br />
tornou as pessoas insensíveis ao texto escrito ou falado<br />
devido ao seu poder de desenvolver no espectador mais o<br />
<strong>em</strong>ocional do que o racional, criando uma ilusória sensação<br />
de intimidade com as pessoas e os fatos por mais distantes<br />
que eles estejam. Em terceiro, a televisão torna a distinção<br />
entre ficção e realidade cada vez mais difícil. E <strong>em</strong> quarto,<br />
a televisão é o espaço por excelência de construção da<br />
cultura mítica cont<strong>em</strong>porânea e dos imaginários sociais.<br />
Almeida (2002) ratifica o cenário de representação da<br />
política tratado por Lima (1994) e considera justamente<br />
que as representações que a mídia faz da realidade passam<br />
a constituir a própria realidade. Assim, as representações<br />
da política defin<strong>em</strong> e delimitam o próprio espaço da<br />
realidade política.<br />
Finalizando, os fatores como a identificação partidária,<br />
a ideologia, a avaliação de des<strong>em</strong>penho do governo e a<br />
condição socioeconômica são fundamentais para definição<br />
do voto. Todavia, a decisão pública é, indubitavelmente,<br />
influenciada pelas informações absorvidas e processadas pelo<br />
indivíduo, ou seja, por aquelas informações selecionadas<br />
e m<strong>em</strong>orizadas no amplo universo de informações<br />
disponíveis. S<strong>em</strong> dúvida, os meios de comunicação<br />
são, cada vez mais, responsáveis pela propagação de<br />
informações políticas ao eleitorado. Na medida <strong>em</strong> que<br />
informações são relevantes para a escolha do eleitor -<br />
que age racionalmente a partir de pouca informação -, a<br />
intensidade, o conteúdo, o enquadramento e a estratégia<br />
de comunicação influenciam o comportamento e, via de<br />
consequência, o resultado eleitoral.<br />
Material e métodos<br />
O projeto foi estruturado utilizando-se a seguinte<br />
metodologia: revisões bibliográficas extraídas de
doutrinas e fichamentos referentes ao t<strong>em</strong>a. Também<br />
foi feito um estudo comparativo com as literaturas já<br />
existentes. A metodologia teve por objetivo solucionar<br />
as questões relativas à classificação de dados, segundo<br />
critérios preestabelecidos, analisando e desenvolvendo<br />
observações a partir das relações de causa e efeito.<br />
Através desses métodos foi possível chegar à conclusão.<br />
Resultados e discussão<br />
O artigo consistiu <strong>em</strong> estruturar um modelo<br />
de análise que cont<strong>em</strong>ple um macro conceito de<br />
marketing eleitoral, suas dimensões, b<strong>em</strong> como os seus<br />
componentes e indicadores para proporcionar um<br />
entendimento dos conceitos de propaganda política.<br />
Conclusão<br />
Hoje os núcleos estratégicos das campanhas<br />
eleitorais estão cada vez mais focados na utilização<br />
racional dos recursos disponíveis. Já não se concebe<br />
uma disputa eleitoral s<strong>em</strong> as ferramentas do marketing.<br />
As estratégias vêm se aperfeiçoando e incorporando<br />
contribuições das mais diversas áreas do conhecimento.<br />
Noções de administração, ciência política, psicologia e<br />
ferramentas de aferição do des<strong>em</strong>penho de estratégias<br />
de marketing faz<strong>em</strong> parte do dia-a-dia do complexo<br />
mundo do marketing político.<br />
Sendo um esforço planejado para se atrair a atenção e<br />
desenvolver o interesse e a preferência de um mercado<br />
de eleitores, o marketing político utiliza-se de diversas<br />
ferramentas técnicas para alcançar esses objetivos. Apesar<br />
do aperfeiçoamento dos métodos utilizados, no entanto,<br />
grandes lacunas ainda se apresentam aos profissionais<br />
da área, como, por ex<strong>em</strong>plo, o desconhecimento do<br />
que acontece com o indivíduo nas suas mais profundas<br />
entranhas na hora de decidir seu voto.<br />
Compreender o que o motiva, quais as razões das<br />
suas preferências e o porquê das suas alternâncias<br />
de opinião têm sido, a cada dia, um desafio para os<br />
pesquisadores que se dedicam ao t<strong>em</strong>a eleições.<br />
Conhecer essas variáveis se faz mais imprescindível,<br />
entretanto, quando o que está <strong>em</strong> discussão é a<br />
definição de uma estratégia política, seja ela eleitoral -<br />
para servir como caminho a ser trilhado por candidatos<br />
até o poder, durante o período de disputa; ou mesmo<br />
de governança e governabilidade - para consolidar a<br />
manutenção desse poder nas mãos dos grupos que o<br />
estiver<strong>em</strong> exercendo.<br />
Com este artigo, procuramos mostrar que através<br />
da televisão muitas pessoas decid<strong>em</strong> seus votos. No<br />
entanto, conseguimos perceber fatores influenciadores<br />
do voto que são: os debates políticos, principalmente<br />
A televisão como cabo eleitoral<br />
<strong>em</strong> <strong>em</strong>issoras conceituadas; os noticiários sobre os<br />
candidatos veiculados <strong>em</strong> toda a mídia televisiva; a<br />
influência das pesquisas de intenção de voto divulgadas<br />
pelos diversos institutos; a ideologia pessoal e dos<br />
partidos políticos; o histórico dos candidatos; o contexto<br />
socioeconômico e cultural <strong>em</strong> que vive o eleitor; o<br />
próprio processo cognitivo de cada indivíduo e seu<br />
particular universo de mitos, signos e símbolos; além,<br />
é claro, das estratégias utilizadas por cada candidato<br />
nas suas campanhas para revelar ao eleitor qu<strong>em</strong> é,<br />
o que pensa, o que fez e faz e o que pretende fazer<br />
pela sociedade que quer representar. Com a pesquisa<br />
é possível verificar que exist<strong>em</strong> diversos fatores que<br />
ag<strong>em</strong> <strong>em</strong> curto, médio e longo prazo, influenciando de<br />
forma e intensidades diferentes.<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 49-55
TELEVISION AS CANVASSER<br />
ABSTRACT: This article throws light on this moment of national life, to analyze one of the innovations that helped<br />
to make the election coverage so intriguing. Also we are dealing with the analysis of some discursive fragments<br />
present in the reports, in order to enhance steady formulation of the frameworks adopted at election time and<br />
materials produced in some newscasts. The literature that discusses the scenario in which rest our doubts and<br />
uncertainties about the future of representative d<strong>em</strong>ocracy in modern societies have shown a characteristic of<br />
this scenario, visible and easy to check: the current d<strong>em</strong>ocratic environment is configured in a public sphere<br />
strongly dependent on the presence of mass media. They act, either to update us regarding events that we de<strong>em</strong><br />
relevant, including in relation to their everyday implications and future developments, or for putting us forth of<br />
ideas, election platforms and modes of representation that were restricted to the conventional world of politics,<br />
but are now housed in this new public space, which the media have become not only part, but also to establish<br />
the dynamics.<br />
KEYWORDS: Communication; political marketing; television.<br />
A televisão como cabo eleitoral<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 49-55<br />
55
UMA RETOMADA DA OBRA CAOS E COSMOS, DE<br />
SUZI SPERBER – CONTRADIÇÕES E PROPOSTAS<br />
Marcelo Pessoa 1<br />
RESUMO: Nosso trabalho propõe retomar a obra Caos e cosmos (1976), de Suzi Sperber. Nessa abordag<strong>em</strong>, por<br />
meio de uma pesquisa bibliográfica, traçamos considerações gerais sobre o texto de Caos e cosmos e, <strong>em</strong> seguida,<br />
iniciamos uma releitura dessa obra, apresentando alguns de seus pontos fortes e contradições. Finalmente, a partir<br />
de um provável encontro crítico-literário entre Brasil e Portugal, que Sperber (1976), e Galvão (2000) apenas<br />
suger<strong>em</strong> (representados aqui particularmente pelas obras de Guimarães Rosa e Aquilino Ribeiro), recuperamos<br />
parte do viés histórico orientado pela ideologia colônia e metrópole, a partir do que propomos que as teorias<br />
coloniais e pós-coloniais pod<strong>em</strong> melhor servir de substrato para as futuras análises das obras de Guimarães Rosa.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Aquilino Ribeiro; Caos e cosmos; pós-colonialismo; Guimarães Rosa; Suzi Sperber.<br />
Considerações sobre a obra Caos<br />
e cosmos, de Suzi Sperber<br />
A retomada que ora faz<strong>em</strong>os do texto de Sperber<br />
(1976) t<strong>em</strong>, como objetivo principal, um forte desejo<br />
de d<strong>em</strong>onstrar que a autora <strong>em</strong> questão, naquele<br />
momento, não se aprofundou nos assuntos que trouxe<br />
à tona <strong>em</strong> Caos e cosmos 2 .<br />
Diz<strong>em</strong>os isso, pois o que se observa nessa<br />
publicação é a presença de um método essencialmente<br />
comparativo, a partir do qual foram apresentados dados<br />
de um e outro autor, de um ou outro momento de seus<br />
textos, s<strong>em</strong> discuti-los, o que, a nosso ver, imprimiu<br />
ao seu trabalho um caráter tipicamente jornalístico.<br />
Pautado, portanto, pelo critério da imparcialidade e<br />
menos afeito às abordagens crítico-literárias, território<br />
<strong>em</strong> que normalmente se permit<strong>em</strong> maiores ilações e<br />
um maior vagar na seara das abstrações e conjecturas<br />
analíticas que nele se <strong>em</strong>preend<strong>em</strong>.<br />
Desse modo, o texto <strong>em</strong> voga, às vezes, parece<br />
tentar dissolver-se, por assim dizer, dessa aura de<br />
documentário que a esse volume foi assimilado.<br />
Contudo, o que se consegue, senão um efeito contrário<br />
do que se pretendia, promove-se um adensamento do<br />
probl<strong>em</strong>a inicial, já que trechos de Caos e cosmos se<br />
convert<strong>em</strong>, não raro, <strong>em</strong> longas paráfrases dos textos<br />
de Guimarães Rosa.<br />
Convém ressaltar que, apesar dessa nuance, a autora,<br />
ao recontar, a seu modo, alguns episódios roseanos,<br />
consegue efeitos interpretativos brilhantes, os quais,<br />
se pudéss<strong>em</strong>os, sugeriríamos que predominasse <strong>em</strong><br />
sua narrativa crítica. É digno de destaque também<br />
nesse ponto, que o que estamos fazendo aqui, não é<br />
uma resenha tardia de um texto já consagrado pela<br />
historiografia crítica como basilar no que tange aos<br />
estudos roseanos. O que pretend<strong>em</strong>os é retomar um<br />
momento <strong>em</strong>brionário da crítica literária para que<br />
a partir desse r<strong>em</strong><strong>em</strong>orar, se possam reacomodar<br />
paradigmas e conceitos, independent<strong>em</strong>ente do teor<br />
de validade ou contestação que se tenha dado a ele no<br />
decorrer do t<strong>em</strong>po.<br />
Portanto, a constatação de entrechos, que são, de fato,<br />
brilhantes, na obra de Sperber se justifica, sobretudo, no<br />
capítulo <strong>em</strong> que a autora apresenta ao leitor a obra do Padre<br />
Sertillanges. As ponderações críticas são extr<strong>em</strong>amente<br />
abrangentes nesse ponto, abarcando o corpo total da obra<br />
de Guimarães Rosa no cotejamento que se faz. Sperber<br />
ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que consegue solucionar probl<strong>em</strong>as<br />
significativos <strong>em</strong> partes isoladas dos textos roseanos a partir<br />
de Sertillanges, r<strong>em</strong>ete-nos a outros contextos relevantes<br />
para o confronto t<strong>em</strong>ático que no momento se realizava<br />
sob a pena de Sperber (1976).<br />
Nesse tocante, é válido comentar que no geral do<br />
procedimento comparativo realizado por Suzi Sperber,<br />
vimos que ela preferiu as obras de cunho religioso ou<br />
espiritualista 3 , pois, ao que lhe pareceu, supomos, seria<br />
essa a tônica predominante da ficcionalidade roseana 4 .<br />
Dentre os instantes menos controversos de Caos<br />
e cosmos, pod<strong>em</strong>os destacar o capítulo que trata das<br />
referências a Romano Guardini 5 . Na passag<strong>em</strong> há ocasiões<br />
1 Doutor <strong>em</strong> Letras, área de concentração, Estudos Culturais (UEL/Londrina). Professor do curso de Comunicação Social da Universidade do Estado de<br />
Minas Gerais - Campus de Frutal. Avenida Professor Mário Palmério, 1001 - CEP. 38.200-000, Frutal, MG. E-mail: mpmarcelopessoa@yahoo.com.br.<br />
2 Em seu livro Caos e cosmos, Suzi Sperber trata de encontrar reflexos dos textos de Guimarães Rosa nas leituras por ele feitas de obras de caráter religioso.<br />
3 Dos 2477 livros pesquisados por Sperber, talvez uns 500 possam ser enquadrados dentro das obras de reduzido interesse [...]. Desses quase 2000 livros<br />
restantes, ao redor de 200 pod<strong>em</strong> ser chamados de livros espirituais (SPERBER, 1976, p. 17).<br />
4 Notamos que houve um encaminhamento contrário ao experimentado pelo mundo ocidental: a narrativa roseana volta do logos ao mythos. Também oposta às<br />
tendências do mundo cont<strong>em</strong>porâneo é a sacralização crescente, da primeira à última obra de João Guimarães Rosa (SPERBER, 1976, p. 154).<br />
5 SPERBER, 1976, p. 91.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 57-61<br />
57
58<br />
Marcelo Pessoa<br />
interessantes de análise autoral por parte de Sperber.<br />
Há de ser salientado, porém, que alguns períodos<br />
de seu percurso de investigação seriam, no mínimo,<br />
passíveis de ser<strong>em</strong> mais b<strong>em</strong> explicados devido ora a<br />
prováveis imprecisões de abordag<strong>em</strong>, ora a possíveis<br />
incoerências textuais na construção de frases mesmo, as<br />
quais culminaram <strong>em</strong> contradições s<strong>em</strong>ânticas.<br />
À guisa de mero ex<strong>em</strong>plo do que diss<strong>em</strong>os acima,<br />
citamos apenas um ponto de contradição do texto de<br />
Caos e cosmos, mas, ainda a título de registro, deixamos<br />
claro que exist<strong>em</strong> outros:<br />
O esoterismo t<strong>em</strong> duas características<br />
fundamentais que se ass<strong>em</strong>elham um pouco aos<br />
fenômenos de assimilação das religiões <strong>em</strong> nível<br />
popular. [...] Caso o interesse de Guimarães Rosa<br />
pela doutrina se manifestasse intertextualmente,<br />
encontraríamos <strong>em</strong> Sagarana trechos que lhe<br />
poderiam ser relacionados. Nada encontramos,<br />
porém, que tivesse uma relação clara e imediata<br />
(SPERBER, 1976, p. 24).<br />
Na página seguinte, fazendo-se comentários<br />
relacionados exatamente sobre a mesma obra Sagarana,<br />
a autora se contradiz.<br />
O r<strong>em</strong>ate da estória é independente da vontade<br />
direta de Lalino. É a vontade divina que se<br />
manifesta. Como autor e destino se reconhec<strong>em</strong><br />
idênticos na omnisciência, constitu<strong>em</strong> uma<br />
unidade diferente da fábula [...] Se considerarmos,<br />
porém, os d<strong>em</strong>ais contos de Sagarana, notamos<br />
que não há apenas ironia no tratamento de acaso<br />
e destino: há simpatia também na apresentação<br />
das crendices nacionais e sobretudo das fórmulas<br />
populares de manipulação da divindade: [...]<br />
(SPERBER, 1976, p. 25).<br />
Desse modo, pensamos que a contradição se manifesta<br />
especialmente, na medida <strong>em</strong> que, num primeiro<br />
momento, a autora diz que “nada encontrou” que fizesse<br />
referência à “doutrina”. Em seu texto, Sperber dá-nos a<br />
entender que a palavra “doutrina” pode ser um vocábulo<br />
abrangente <strong>em</strong> sentidos, <strong>em</strong> cujos s<strong>em</strong>as pod<strong>em</strong>os<br />
encontrar referências que oscilam desde o universo dos<br />
rituais e das crenças populares, até aos cultos sagrados<br />
da Igreja. Num segundo momento, ela mesma diz que<br />
Sagarana praticamente se constrói sobre os pilares da<br />
“doutrina”, nos termos acima esclarecidos.<br />
Pod<strong>em</strong>os ponderar que talvez até a autora mesma<br />
tivesse consciência da necessidade de uma retórica mais<br />
refinada e por isso tentou compensar uma provável<br />
fragilidade argumentativa de matriz metodológica (o<br />
que poderia ser resolvido <strong>em</strong>pregando-se um método<br />
dialético ao invés de um método comparativo). Para<br />
isso, preencheu essa lacuna técnica com o declinar de<br />
um artifício <strong>em</strong>pírico, isto é, com um volume infindável<br />
de citações, selecionando excertos extensos da obra de<br />
Guimarães Rosa. Parece-nos que isso é para que o leitor,<br />
por si só, compl<strong>em</strong>entasse os sentidos simbólicos que<br />
ela via, mas que não explicou satisfatoriamente, e que<br />
seus interlocutores, então, fizess<strong>em</strong> as abstrações e as<br />
conjecturas racionais aparent<strong>em</strong>ente omitidas ou não<br />
realizadas pela isotopia proposta.<br />
Em linhas gerais, no que se refere a esse cotejamento<br />
da produção ficcional de Guimarães Rosa, o que fica<br />
evidente ao lermos Caos e cosmos, principalmente<br />
ao confrontarmos suas releituras com os inúmeros<br />
títulos apresentados por Sperber <strong>em</strong> seu texto 6 , é que<br />
menos inferências e digressões críticas sobre poucos<br />
títulos poderiam ter sido feitas <strong>em</strong> detrimento de<br />
muito mais comparações com outras das inúmeras<br />
obras da biblioteca estudada, pertencente ao espólio<br />
de Guimarães Rosa, já que essas comparações seriam,<br />
enfim, o principal objeto de sua busca 7 .<br />
Brasil e Portugal: um possível<br />
contraponto crítico-literário à luz<br />
de Suzi Sperber e Guimarães Rosa<br />
A obra Caos e cosmos, da autora Suzi Sperber se<br />
propõe a realizar um estudo da biblioteca de Guimarães<br />
Rosa. No acervo roseano, l<strong>em</strong>bra a autora, foram<br />
encontrados inúmeros livros com anotações de próprio<br />
punho feitas por Guimarães Rosa. A partir desses<br />
dados, Sperber supôs admissível encontrar alguns<br />
motivos essenciais, apreensíveis a partir da qualidade<br />
das anotações nas obras da biblioteca de Guimarães<br />
Rosa e que possivelmente tivess<strong>em</strong> inspirado ou sido<br />
incorporados na obra roseana, coadjuvando, portanto,<br />
a qualidade de seus textos ficcionais.<br />
Diz-nos Sperber que num dos conjuntos desses<br />
apontamentos, encontram-se intensa variedade de<br />
anotações <strong>em</strong> obras de natureza filosófica 8 . Parece-nos,<br />
pelos comentários de Sperber (1976), que as alusões<br />
filosóficas não dão conta de cumprir a contento o papel<br />
de dar uma unidade t<strong>em</strong>ática à obra de Guimarães.<br />
Tampouco isso parece ocorrer com as obras de cunho<br />
religioso e espiritualista, citadas e cotejadas pela autora.<br />
6 Nesse capítulo, Sperber (1976, p. 159) elenca alguns dos volumes da Biblioteca de João Guimarães Rosa e, tanto essa lista quanto os comentários a ela<br />
agregados nos pareceram s<strong>em</strong> bom propósito para a análise.<br />
7 “A base principal para o cotejo é a citação de textos destes filósofos ou doutrinas <strong>em</strong> Corpo de Baile [...]. O processo seria aquele <strong>em</strong>pregado por Benedito<br />
Nunes, o do cotejo entre dois itens lex<strong>em</strong>áticos” (SPERBER, 1976, p. 15 - 16).<br />
8 Desde a publicação de Sagarana, mas, sobretudo, depois de Corpo de baile e com Grande sertão: veredas surgiram estudos críticos destas obras, que as<br />
aproximaram a teorias filosóficas [...]. O próprio Guimarães Rosa não só confirmou tais influências, como propôs outras (SPERBER, 1976, p. 15).<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 57-61
Uma retomada da obra Caos e cosmos, de Suzi Sperber – contradições e propostas<br />
Outra questão que nos parece interessante diz respeito<br />
ao fato de que há também indícios prováveis de uma<br />
filiação da ficcionalidade de Guimarães Rosa à literatura<br />
portuguesa. Isso pod<strong>em</strong>os dizer, não apenas pela recente<br />
referência que Galvão (2000) 9 nos oferece, mas, sobretudo,<br />
pela anotação de Sperber (1976) quanto à presença de três<br />
títulos de ficção de autoria do escritor português Aquilino<br />
Ribeiro 10 na biblioteca particular de Guimarães Rosa, mas<br />
também por inferências realizáveis a partir do próprio<br />
texto de Caos e cosmos 11 .<br />
Esse viés de aproximação entre Brasil e Portugal também<br />
se deixa notar quando, ao esqu<strong>em</strong>atizar uma estrutura para<br />
os el<strong>em</strong>entos essenciais das influências religiosas, místicas<br />
ou esotéricas presentes na obra de Guimarães Rosa, a<br />
autora de Caos e cosmos faz referência ao Sebastianismo 12 .<br />
Esse elo simbólico que se constrói sob o signo<br />
messiânico de Antonio Conselheiro e D. Sebastião uniria<br />
alegoricamente o Brasil do Arraial de Canudos e da Guerra<br />
do Contestado à Portugal Sebastianista. A partir das<br />
funções sociais desse elo peculiar, poderia ser depreendida<br />
uma continuidade retórico-discursiva, a partir da relação<br />
dialética e histórica que coloca lado a lado colonizador e<br />
colonizado, isto é, Portugal e Brasil, e os (re)un<strong>em</strong> por meio<br />
da literariedade de Aquilino Ribeiro e Guimarães Rosa.<br />
Noutros termos, cr<strong>em</strong>os que seria possível reificar<br />
por meio dessa presentificação de Aquilino Ribeiro ou<br />
do Sebastianismo na obra de Guimarães Rosa, rastros<br />
da interdependência cultural do Brasil da época dos<br />
descobrimentos, a qual se revelaria sob o binomia<br />
colônia x metrópole.<br />
Conclusão: novos horizontes<br />
para a crítica de Guimarães Rosa<br />
A partir dessa breve retomada que ora realizamos<br />
da obra Caos e cosmos, o que perceb<strong>em</strong>os é que a<br />
busca de procedimentos críticos mais eficientes para<br />
as releituras e interpretações literárias ainda não se<br />
esgotaram. Pod<strong>em</strong>os irromper <strong>em</strong> novas análises<br />
com o já exaurido, <strong>em</strong>bora riquíssimo, universo das<br />
manipulações linguísticas roseanas (que nos lançariam<br />
rumo a considerações de natureza mais objetivas), que<br />
são de longe os procedimentos mais evidentes na obra<br />
de Guimarães Rosa 13 , ou ainda das alegorias que essas<br />
manipulações são capazes de engendrar (possibilidade<br />
que nos r<strong>em</strong>ete a uma abordag<strong>em</strong> mais subjetiva).<br />
Um desses vieses subjetivos ao qual pod<strong>em</strong>os<br />
nos apegar é aquele que nos conduz ao arcabouço<br />
teórico da corrente teórica do colonialismo e do póscolonialismo,<br />
repertório ao qual se alude exatamente no<br />
momento <strong>em</strong> que se evidencia a aproximação da obra de<br />
Guimarães Rosa com el<strong>em</strong>entos socioculturais como o<br />
Sebastianismo, o Messianismo latino-americano etc.<br />
A tipicidade híbrida do local de enunciação, notada<br />
pela figura simbólica do “sertão-mundo” e dos fatos<br />
e personagens-tipo construídos por Guimarães Rosa,<br />
parece constituir-se ainda uma teia de propósitos<br />
relacionados às venturas e desventuras do país <strong>em</strong><br />
construção: o Brasil e suas faces.<br />
A percepção de uma unidade t<strong>em</strong>ática de suas<br />
obras a partir de uma corrente teórica que trate das<br />
particularidades derivativas do colonialismo se comporia<br />
pelo conjunto da soma das diferenças presentes no<br />
cotejamento dos diferentes brasis 14 , pois o que se diz<br />
sobre Guimarães Rosa, dentre outras coisas, é que<br />
sua matéria-prima não seria o sertão de Minas Gerais,<br />
o interior, mas o ambiente introspectivo essencial da<br />
humanidade 15 .<br />
A força de ataque de sua retórica residiria não<br />
exclusivamente na manipulação linguística que ele<br />
habilmente <strong>em</strong>preende, mas nos significados criados<br />
e recriados a partir de sua alquimia linguística – e é<br />
nessa alquimia que ele se diferencia dos meros mortais.<br />
S<strong>em</strong>ânticas ainda às quais as palavras e suas sintaxes nos<br />
9 Um livro <strong>em</strong> particular constitui a fonte de uma enorme quantidade de cantigas, de folhetos de cordel, de figuras de folclore [...]. Trata-se de uma versão<br />
portuguesa de uma novela de cavalaria francesa, História do imperador Carlos Magno e dos doze pares de França. [...] Mesmo não sendo citado pelo título, esse<br />
livro reponta a cada momento <strong>em</strong> Grande sertão: veredas (GALVÃO, 2000, p. 38).<br />
10 Aquilino Gomes Ribeiro (Tabosa do Carregal, 13 de Set<strong>em</strong>bro de 1885 — Lisboa, 27 de Maio de1963) foi um escritor português. É considerado por<br />
alguns como um dos romancistas mais fecundos da primeira metade do século XX. Inicia a sua obra <strong>em</strong> 1907 com o folhetim A filha do jardineiro e depois<br />
1913 com os contos de Jardim das tormentas e com o romance A via sinuosa, 1918, e mantém a qualidade literária na maioria dos seus textos, publicados<br />
com regularidade e êxito junto do público e da crítica. De Aquilino Ribeiro, menciona-se as obras: Cinco réis de gente (s/d), Estrada de Santiago (1924), Uma<br />
luz ao longe (1948), (SPERBER, 1976, p. 193).<br />
11 “No texto (de Grande Sertão: Veredas), o mito da idade de ouro associa-se ao messianismo, ou possibilidade de messianização. [...] Esqu<strong>em</strong>atizar<strong>em</strong>os as<br />
características do judaísmo e do messianismo brasileiro: Judaísmo – idade de ouro, messianismo, [...]; Messianismo brasileiro – busca de salvação do indivíduo<br />
e de seu mundo através de um salvador com função político-social, sebastianismo” (SPERBER, 1976, p. 124).<br />
12 Por Sebastianismo pode-se entender, essencialmente, um conjunto de crenças populares que tratam da expectativa de retorno que o povo teria, ainda<br />
nos dias atuais, quanto à volta de D. Sebastião (1554-1578), rei de Portugal.<br />
13 Além da matéria do sertão, também a linguag<strong>em</strong> já é da maturidade – original, s<strong>em</strong> dúvida, a mais brilhante e estupenda das linguagens. E já, como s<strong>em</strong>pre<br />
seria baseada na oralidade sertaneja, com aproveitamento de regionalismos e de arcaísmos preservados no sertão, mas também adaptando estrangeirismos<br />
e criando neologismos. Essa mistura será marca registrada de toda a obra do autor (GALVÃ0, 2000, p. 53).<br />
14 Procuraram “a alma brasileira” nos primórdios da nossa história, no índio não “contaminado” pelos europeus e idealizado como “o bom selvag<strong>em</strong>”, e, como não era possível<br />
ignorar o colonizador n<strong>em</strong> reconhecer a qualidade humana do negro, ainda escravizado, construíram o mito da essência cabocla de nossa brasilidade. Foi só depois da Abolição<br />
(1888) e com a República (1889) que o negro passou a ser visto como um dos três el<strong>em</strong>entos componentes do “Brasil Mestiço” (FALIVENE, 1997, p. 97).<br />
15 “[...] o sertão-mundo corresponde ao cosmos, enquanto que o sertão satânico corresponde ao caos primordial. Sertão é ao mesmo t<strong>em</strong>po caos primordial<br />
e cosmos” (SPERBER, 1976, p. 113).<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 57-61<br />
59
60<br />
Marcelo Pessoa<br />
r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> numa espécie de sopro de vida nova que infla<br />
os pulmões de nossa compreensão de mundo.<br />
Se, a partir do cotejamento de obras da literatura<br />
portuguesa e a ficção de Guimarães Rosa, à luz das<br />
teorias colonialistas, poderíamos vislumbrar novos<br />
parâmetros de compreensão para a relação metrópole<br />
x colônia, quais seriam esses significados? E se eles são<br />
representativos, eles simbolizam o que? Diriam eles<br />
respeito a qual modelo de identidade cultural?<br />
Numa resposta s<strong>em</strong> investigação prévia de<br />
sua validade, poderíamos dizer que eles seriam<br />
representativos do entre-lugar, do trânsito, do incerto,<br />
nos quais se encontraria o Brasil desenhado por<br />
Guimarães Rosa.<br />
Angel Rama salienta que os artistas do trânsito, do<br />
intercurso, do incerto são aqueles que catalisam as<br />
experiências de regiões distintas: o rural e o urbano,<br />
por ex<strong>em</strong>plo. Dentro dessa categoria, poderíamos<br />
reclassificar parte da obra de Guimarães Rosa. Sobre<br />
o conto A terceira marg<strong>em</strong> do rio, Scarpelli diz:<br />
A circulação de bens simbólicos e culturais, prestes<br />
a desaparecer sob o impacto da modernidade, é<br />
representada no conto “A Terceira Marg<strong>em</strong> do Rio”,<br />
sob a perspectiva de um narrador transculturador,<br />
que se põe a tarefa de traduzir/atualizar, pelas<br />
margens do discurso, o silêncio do pai. Este, por seu<br />
turno, metaforiza a voz de uma tradição autoritária<br />
que, ensandecida, perdeu a capacidade de se<br />
expressar (SCARPELLI, 2003, p. 53).<br />
O que se vê a partir do trecho acima é que há mais<br />
ainda no horizonte da crítica colonialista que serviria<br />
para explicar el<strong>em</strong>entos da obra roseana. Os el<strong>em</strong>entos<br />
transculturadores da transição da sociedade patriarcal,<br />
a qual formou ou delimitou os pilares e alcances<br />
territoriais e simbólicos do Brasil atual.<br />
As questões da formação sociocultural do Brasil,<br />
da identidade nacional, da construção política e<br />
econômica e, mais ultimamente, da inserção do país<br />
no mundo globalizado como exportador de tecnologia,<br />
petróleo, de cultura e de ideologia, são tendências que<br />
justificariam uma reinterpretação dos Sertões humanos<br />
de Rosa, à luz dos paradigmas da mestiçag<strong>em</strong> cultural<br />
latino-americana, <strong>em</strong>preendidas primordialmente pelos<br />
estudos culturais colonialistas.<br />
Por essas razões, acreditamos que a retomada de<br />
Sperber é muito mais relevante, não necessariamente<br />
pelas contradições ou pelo brilhantismo ostentado<br />
<strong>em</strong> suas páginas de comparação. Mas, muito melhor,<br />
devido ao fato de que essa retomada nos permite<br />
visualizar novas possibilidades de análise de um objeto<br />
que, distante do esgotamento, ainda nos reserva muitas<br />
novidades sobre a compreensão que se deseja ter de<br />
nós mesmos e da humanidade.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 57-61<br />
Referências<br />
FALIVENE, J. Com que cara chegar<strong>em</strong>os ao terceiro<br />
milênio. In: KUPSTAS, M. (Org.). Identidade nacional<br />
<strong>em</strong> debate. São Paulo: Moderna, 1997. p. 97.<br />
GALVÃO, W. N. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha,<br />
2000.<br />
SCARPELLI, M. F. Heterogeneidade, transculturação,<br />
hibridismo: a terceira marg<strong>em</strong> da cultura latinoamericana.<br />
In: CHAVES, R.; MACÊDO, T. Literaturas<br />
<strong>em</strong> movimento. São Paulo: Arte & Ciência, 2003. p. 53.<br />
SPERBER, S. F. Caos e cosmos – leituras de Guimarães<br />
Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
Uma retomada da obra Caos e cosmos, de Suzi Sperber – contradições e propostas<br />
ONE RETAKEN OF THE WORKMANSHIP CHAOS AND THE COSMOS,<br />
SUZI SPERBER - CONTRADICTIONS AND PROPOSALS<br />
ABSTRACT: Our work if considers to retake the workmanship Chaos and the Cosmos (1976), of Suzi Sperber.<br />
In this boarding, by means of one it searches bibliographical, we trace general considerations on the text of Chaos<br />
and the Cosmos and, after that, we initiate a retake of this workmanship, presenting some of its strong points<br />
and contradictions. Finally, from a probable critical-literary meeting between Brazil and Portugal, that Sperber<br />
(1976), and Galvão (2000) only suggest (represented here particularly for the workmanships of Guimarães Rosa<br />
and Aquilino Ribeiro), recoup part of the historical bias guided by the ideology colony and to the metropolis, from<br />
what we consider that the colonial theories and after-colonials can more good serve of substratum for the future<br />
analyses of the workmanships of Guimarães Rosa.<br />
KEYWORDS: Aquilino Ribeiro; Caos e cosmos; after-colonialism; Guimarães Rosa; Suzi Sperber.<br />
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61
UM ESTUDO DOS RECURSOS PERSUASIVOS<br />
VERBO-VISUAIS NOS OUTDOORS DO MOTEL CAT’S 1<br />
Aline Cristina da Cunha Inácio 2 ; Leila Maria Franco 3<br />
RESUMO: Atualmente, os centros urbanos são invadidos por inúmeros gêneros textuais de domínio da mídia<br />
que se vale de estratégias verbais e não-verbais com o objetivo de persuadir e seduzir o leitor. Nesse sentido, a<br />
pesquisa pretende analisar os recursos persuasivos de outdoors do motel Cat´s, verificar como o texto não-verbal<br />
(imag<strong>em</strong>) completa o sentido do verbal e identificar as marcas linguísticas denotadoras de persuasão. As bases<br />
teóricas que norteiam a pesquisa são os estudos sobre linguag<strong>em</strong>, persuasão, discurso, propaganda, publicidade,<br />
texto visual e s<strong>em</strong>iótica. A metodologia de pesquisa <strong>em</strong>pregada é a de base qualitativa, utilizando a análise de texto<br />
como instrumento de análise de dados. Para compor o corpus do trabalho, analisamos seis outdoors do motel Cat´s<br />
localizados na cidade de Uberaba, Minas Gerais, expostos <strong>em</strong> locais estratégicos e lançados entre agosto de 2007<br />
e abril de 2008. Nessa análise, perceb<strong>em</strong>os que tanto no texto verbal quanto no não-verbal (imagens), o sentido<br />
<strong>em</strong>erge para estabelecer condições de diálogo com o seu leitor. Parece-nos que não há como o leitor escapar<br />
das armadilhas da linguag<strong>em</strong>. Os textos mobilizam marcas linguísticas como “coloque”, “vá”, “vamos”, “permitase”,<br />
as quais direcionam a orientação argumentativa da <strong>em</strong>presa, ou seja, convencer e levar à ação de frequentar<br />
o motel Cat’s. Portanto, o diferencial de comunicação dos outdoors desse motel é justamente a especificidade<br />
retórica dos discursos utilizados.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Gênero textual; s<strong>em</strong>iótica; publicidade; propaganda.<br />
Introdução<br />
Atualmente, os centros urbanos são invadidos por<br />
inúmeros gêneros textuais de domínio da mídia que<br />
se vale tanto das estratégias verbais quanto das nãoverbais<br />
com o objetivo de persuadir e seduzir o leitor.<br />
Nesse contexto, os anunciantes <strong>em</strong> geral, ao utilizar<br />
a linguag<strong>em</strong>, objetivam não somente transmitir uma<br />
dada informação ao outro, mas ao interagir, visam,<br />
sobretudo, a persuadir o seu interlocutor na tentativa<br />
de fazer esse outro crer naquele que enuncia. Por isso,<br />
não há discurso neutro, inocente.<br />
Como afirma Pêcheux e Fuchs, o discurso acontece<br />
“a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto<br />
é, numa certa relação de lugares no interior de um<br />
aparelho ideológico e inscrita numa relação de classes”<br />
(PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p.166-167). Logo, todo<br />
discurso é ideológico, uma vez que é determinado por<br />
fatores sociais. Como consequência, ninguém diz o<br />
que quer, quando e do modo que quer, mas o que é<br />
permitido dizer numa dada situação comunicativa.<br />
Em se tratando do gênero propaganda, a ideologia<br />
capitalista não se apresenta explicitamente. Seu resgate<br />
se dá na subjacência, nas entrelinhas, no espaço entre<br />
o dito e o não-dito, nos silêncios. Por isso, é preciso<br />
olhar com cuidado para, ao desvelar o texto, lançar<br />
sobre esse discurso um olhar plural, cuja trajetória nos<br />
permite sair da superfície textual e tornar evidente o<br />
diálogo instaurado com o outro: outros textos, outros<br />
discursos.<br />
Nesse sentido, o objetivo geral deste estudo é analisar<br />
os recursos persuasivos de textos do gênero propaganda 4<br />
do motel Cat’s, veiculados <strong>em</strong> outdoors expostos na cidade<br />
de Uberaba, Minas Gerais. Os objetivos específicos são:<br />
verificar como o texto não-verbal (a imag<strong>em</strong>) completa<br />
o sentido do verbal e identificar as marcas linguísticas<br />
denotadoras de persuasão.<br />
Assim, <strong>em</strong> um primeiro momento, a capacidade<br />
do usuário da língua de produzir e compreender<br />
textos <strong>em</strong> diferentes situações comunicativas justifica<br />
nossa escolha pelo t<strong>em</strong>a discutido neste estudo. Essa<br />
capacidade funciona como um bom recurso para o<br />
trabalho com a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> sala de aula, buscando a<br />
formação de leitores críticos.<br />
Num segundo momento, os outdoors do referido<br />
motel disponibilizam o gênero propaganda carregado<br />
de implícitos e consegu<strong>em</strong> atrair a atenção dos leitores<br />
com aquela “fisgada” de olhar tanto pelo texto verbal,<br />
quanto pelo jogo de cores que apresenta. Isso inquietounos.<br />
Daí o interesse <strong>em</strong> estudar tal recurso midiático<br />
- propagandas de um motel divulgadas <strong>em</strong> outdoor. A<br />
partir daquilo que o produtor pretende que seja lido<br />
1 Projeto financiado pelo Programa de Iniciação Científica das Faculdades Associadas de Uberaba (PIC/FAZU).<br />
2 Professora da educação infantil da rede municipal de Uberaba, Minas Gerais, e do ensino fundamental da rede estadual de Minas Gerais. Especialista no<br />
Ensino de Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).<br />
3 Professora mestre da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus de Frutal, e das Faculdades Associadas de Uberaba. Doutoranda <strong>em</strong> Estudos<br />
Linguísticos pela Universidade Estadual Paulista – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (UNESP/ IBILCE).<br />
4 Fundamentado <strong>em</strong> Sandmann (2005), o termo propaganda será usado aqui no sentido de publicidade - a venda de produtos e ou serviços.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 63-71<br />
63
64<br />
e percebido, os anúncios dos outdoors provocam a<br />
imaginação do leitor, levando-o a transformar desejos<br />
<strong>em</strong> realidade.<br />
De acordo com os objetivos propostos, a presente<br />
pesquisa se orientou, por um lado, pela vertente teórica<br />
da S<strong>em</strong>ântica Argumentativa (KOCH, 2000; CITELLI,<br />
2002). Tal vertente defende a proposta de que “o ato<br />
lingüístico fundamental é o ato de argumentar”.<br />
O ato de argumentar é visto como o ato<br />
de persuadir, que procura atingir a vontade,<br />
envolvendo a subjetividade, os sentimentos e<br />
a adesão do leitor, razão pela qual motivou este<br />
estudo” (KOCH, 2000, p. 12).<br />
Por outro lado, a pesquisa se orientou pela vertente<br />
s<strong>em</strong>iótica, o sincretismo entre o texto verbal e o<br />
não-verbal. (PIETROFORTE, 2003; SANTAELLA;<br />
NÖTH, 1999). Outras influências foram os estudos de<br />
Sandmann (2005), Carvalho (2006), Santaella (2002),<br />
Neder (1992), Travaglia (2000), Fernandes (2007),<br />
Marcuschi (2000; 2003) entre outros.<br />
Material e método<br />
A natureza da pesquisa é qualitativa, valendo-se da<br />
Análise Textual de Conteúdo como método de análise<br />
(SILVERMAN, 1993). O corpus de estudo é constituído<br />
de seis textos do gênero propaganda, do motel Cat’s,<br />
veiculados <strong>em</strong> outdoors, na cidade de Uberaba, Minas<br />
Gerais, entre agosto de 2007 e abril de 2008, na rua<br />
João Pinheiro e na avenida Leopoldino de Oliveira,<br />
locais de grande circulação de pessoas e automotivos.<br />
Assim, entend<strong>em</strong>os que o corpus de estudo<br />
apresenta-se como um universo discursivo, marcado<br />
pela interação entre os sujeitos principalmente quando<br />
se pretende analisar recursos persuasivos nos quais o<br />
produtor instiga o leitor a transformar desejos, fantasias<br />
e sonhos <strong>em</strong> realidade.<br />
Para efeito de visualização e retomada das peças<br />
publicitárias, durante a análise, as nomeamos como:<br />
TEXTO 1 - Coloque as segundas intenções <strong>em</strong> primeiro<br />
plano; TEXTO 2 - Esqueça as flores, vá direto ao ponto;<br />
TEXTO 3 - Vamos nos ver esta s<strong>em</strong>ana?; TEXTO 4 CATS<br />
precisa dizer mais alguma coisa?; TEXTO 5 - Permita-se<br />
e TEXTO 6 - Felizes noites felizes.<br />
Posteriormente, apresentamos o TEXTO 1 seguido da<br />
sua análise e assim respectivamente com os d<strong>em</strong>ais textos.<br />
Resultados e discussão de dados<br />
Levando <strong>em</strong> consideração que as propagandas<br />
analisadas foram veiculadas <strong>em</strong> outdoors, acreditamos<br />
ser pertinente retomar as considerações de Carvalho<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 63-71<br />
Aline Cristina da Cunha Inácio; Leila Maria Franco<br />
(2006). A autora salienta que esse suporte publicitário<br />
ocupa lugar de destaque <strong>em</strong> ruas de grande circulação<br />
de automóveis e pessoas. No caso deste estudo, a rua<br />
João Pinheiro e a avenida Leopoldino de Oliveira, na<br />
cidade de Uberaba, Minas Gerais.<br />
Além disso, o anúncio de outdoor é baseado na palavra<br />
escrita e, como consequência, direciona o sentido da<br />
imag<strong>em</strong>. Do mesmo modo, ele faz parte da máquina<br />
de criar desejos e de transformá-los <strong>em</strong> necessidades,<br />
no caso deste estudo, por ex<strong>em</strong>plo, realizar fantasias<br />
sexuais, sair da rotina, propiciar encontros amorosos<br />
fortuitos e saídas às ocultas.<br />
Nesse sentido, segundo Gaiarsa (2002), para<br />
depreendermos dos textos do gênero propaganda,<br />
o efeito de sentido que se espera, é preciso que o<br />
locutor-publicitário tenha conhecimento do público<br />
que deseja atingir, seus valores socioculturais, crenças<br />
e necessidades. No caso deste estudo, indivíduos do<br />
sexo masculino e f<strong>em</strong>inino que têm ou tiveram uma<br />
vida sexual ativa ou que pretend<strong>em</strong> iniciá-la.<br />
Conhecer as necessidades do público-alvo é, pois, um<br />
fator fundamental para a eficácia das peças publicitárias.<br />
E isso é o que ver<strong>em</strong>os aqui. Mostrar<strong>em</strong>os como o<br />
locutor-publicitário ousa tanto nos aspectos linguísticos<br />
quanto na imag<strong>em</strong>, uma tentativa de conquistar mentes<br />
e corações e, por consequência, vender um serviço.<br />
Abaixo, apresentamos os textos e suas análises.<br />
TEXTO 1 - Coloque as segundas intenções <strong>em</strong> primeiro<br />
plano - Agosto de 2007<br />
A linguag<strong>em</strong> é um modo de interação no qual os<br />
participantes do evento discursivo não somente faz<strong>em</strong><br />
uso da língua para traduzir ou transmitir informações,<br />
mas também realizar ações, agir, atuar sobre o<br />
interlocutor (TRAVAGLIA, 2000). Tal fato pode ser<br />
verificado no TEXTO 1. O produtor impõe ao leitor<br />
novas experiências, atitudes, enfim, novas ações. Assim,<br />
por meio da interação comunicativa entre o anunciante<br />
e o leitor, este é convidado a priorizar as segundas<br />
intenções, convocado a praticar uma ação que pode<br />
ser a realização de suas fantasias sexuais, encontros<br />
amorosos fortuitos.<br />
Verificamos que, de acordo com Citelli (2002),
o referido texto é carregado de raciocínio retórico,<br />
capaz de atuar junto a mentes e corações num<br />
eficiente mecanismo de envolvimento do receptor.<br />
Isso porque no momento <strong>em</strong> que ler a mensag<strong>em</strong>, o<br />
receptor se sentirá atraído por ela a ponto de querer<br />
realizá-la a qualquer custo. Nessa linha de raciocínio,<br />
compreend<strong>em</strong>os que o discurso utilizado no TEXTO 1<br />
é dotado de recursos retóricos, objetivando convencer<br />
o leitor pela palavra, como, por ex<strong>em</strong>plo, ao usar o<br />
verbo no imperativo (coloque). É uma tentativa de<br />
alterar atitudes e comportamentos já estabelecidos e<br />
levar o leitor a colocar <strong>em</strong> prática o que t<strong>em</strong> <strong>em</strong> mente:<br />
a concretização das fantasias sexuais e dos encontros<br />
casuais, entre outros.<br />
Outra característica presente é o estabelecimento<br />
de um nível de significação especial dos chamados<br />
el<strong>em</strong>entos abstratos (ou também plásticos) da<br />
imag<strong>em</strong>. Esses el<strong>em</strong>entos se manifestam no contraste<br />
das cores ou formas (SANTAELLA; NÖTH, 1999),<br />
tipografia branca sobre o fundo de colorido forte, e na<br />
homogeneidade dos caracteres, s<strong>em</strong>pre maiúsculos.<br />
As cores preta, branca, verde e laranja possu<strong>em</strong> um<br />
valor s<strong>em</strong>ântico próprio na composição da linguag<strong>em</strong>,<br />
essenciais para o conteúdo da mensag<strong>em</strong>, pois<br />
mobilizam no leitor efeitos de sentido. Sendo assim,<br />
no TEXTO 1, t<strong>em</strong>os o preto como cor de fundo,<br />
que, percebido como escuro e misterioso, poderia se<br />
relacionar com amor sexual: o que está distante de ser<br />
concretizado pode tornar-se próximo e presente do<br />
leitor enquanto sujeito discursivo.<br />
Isso está de acordo com Pietroforte (2007), ao<br />
salientar que quando se trata do plano de expressão<br />
plástica, a imag<strong>em</strong> (cores) do conteúdo é facilmente<br />
confundida com aquela que se vê por meio da<br />
expressão, e uma é tomada pela outra s<strong>em</strong> distinções.<br />
No outdoor também aparece a cor branca, que reflete<br />
todas as cores; verde, que atenua as <strong>em</strong>oções, além<br />
de atuar como um sinal para a renovação da vida, e<br />
ainda, o laranja, cor expansiva e afirmativa que reflete<br />
entusiasmo, vivacidade impulsiva e natural, por que não<br />
nos envolvimentos amorosos?<br />
TEXTO 2 - Esqueça as flores, vá direto ao ponto - Agosto<br />
de 2007.<br />
Um estudo dos recursos persuasivos verbo-visuais nos outdoors do motel Cat’s<br />
No TEXTO 2, veiculado <strong>em</strong> agosto de 2007, Esqueça<br />
as flores, vá direto ao ponto, perceb<strong>em</strong>os a princípio que<br />
o produtor do texto brinca com o público, valendose<br />
do discurso lúdico e b<strong>em</strong>-humorado para torná-lo<br />
inclusive mais receptivo. Secundariamente, t<strong>em</strong>os um<br />
texto autoritário que à s<strong>em</strong>elhança do primeiro faz uso<br />
de modalizadores – verbos no imperativo: esqueça e vá.<br />
Como consequência, há um caso de tensão: um<br />
“eu” impositivo (CITELLI, 2002), no qual o leitor<br />
está condenado a ser ouvinte e se identificar com a<br />
mensag<strong>em</strong>. Ou seja, esqueça as fórmulas prontas,<br />
economize com flores e gaste com o que interessa: o<br />
motel Cat’s, a pessoa que ama ou com qu<strong>em</strong> desejar.<br />
“Vá direto ao ponto” não se trata de uma fórmula<br />
grosseira, mas sinaliza e sugere ao outro que viva novas<br />
experiências. O uso da forma imperativa do mesmo<br />
modo ocorre aí justamente para que o leitor sinta-se<br />
levado a praticar a ação, ter disposição para realizar<br />
o solicitado: frequentar o motel Cat’s. O discurso foi<br />
apenas atenuado pela retórica usada.<br />
Nesse sentido, os sujeitos constitu<strong>em</strong>-se pela<br />
interação social; o “eu” e o “outro” enquanto seres<br />
sociais são inseparáveis e a linguag<strong>em</strong> possibilita-lhes<br />
a interação - encontros amorosos, casuais - segundo<br />
Fernandes (2007).<br />
Perceb<strong>em</strong>os que o uso dos recursos persuasivos soa<br />
como um convite “ao prazer” e chama a atenção do<br />
leitor, buscando convencê-lo e levá-lo à ação por meio<br />
da palavra, segundo Sandmann (2005). Portanto, sugere<br />
a conciliação de amor e sexo <strong>em</strong> amor sexual.<br />
O TEXTO 2 apresenta um slogan de sete palavras e<br />
obedece à teoria de Citelli (2002) acerca do conjunto<br />
de efeitos retóricos. Além disso, o texto utiliza uma<br />
mensag<strong>em</strong> curta e direta, associada à imag<strong>em</strong> igualmente<br />
simples e forte para falar com o inconsciente do leitor e<br />
convencê-lo a novas atitudes.<br />
No que diz respeito ao texto não-verbal, constatamos<br />
igualmente a presença de cores fortes e vibrantes,<br />
como o preto, o verde e o alaranjado. Aqui, merece<br />
destaque a figura de uma flor matizada com as cores<br />
laranja, azul e verde no canto esquerdo do outdoor,<br />
reiterável também no TEXTO 1, mas com menor<br />
expressividade.<br />
O formato arredondado - categoria eidética<br />
(SANTAELLA; NÖTH, 1999) - das pétalas da flor<br />
possui um valor s<strong>em</strong>ântico próprio na composição<br />
da linguag<strong>em</strong>, pois infere a ideia do que é cíclico e<br />
contínuo, dos envolvimentos e dos relacionamentos<br />
que precisam ser retomados pelos sujeitos do discurso<br />
na interação social. Então, a flor figura como o<br />
el<strong>em</strong>ento que mistifica o sentimento de amor. Isso é<br />
acentuado pelas cores laranja, azul e verde que por seus<br />
significados, supostamente estão relacionadas às trocas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 63-71<br />
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66<br />
de energia, reflexão e relaxamento, sentimentos que<br />
pod<strong>em</strong> abordar ou descrever o amor sexual. Assim,<br />
as cores relacionam-se muito mais com os el<strong>em</strong>entos<br />
da oposição sagrado e profano, como de fato pode ser<br />
tratado o sexo: um convite ao êxtase e à libido, como<br />
sugerido <strong>em</strong> “esqueça as flores, vá direto ao ponto”.<br />
TEXTO 3 - Vamos nos ver esta s<strong>em</strong>ana? - Fevereiro de<br />
2008.<br />
No TEXTO 3, veiculado <strong>em</strong> fevereiro de 2008,<br />
Vamos nos ver esta s<strong>em</strong>ana?, o conteúdo, b<strong>em</strong> como<br />
dos outros textos analisados, pode ser de caráter<br />
sugestivo, direcionado ao sexo casual. Sendo assim,<br />
a orientação sexual deixa de ser caracterizada pela<br />
exigência de envolvimento afetivo prévio à relação<br />
sexual e ocupa o espaço da permissividade quanto ao<br />
sexo casual - envolvimentos fortuitos que acontec<strong>em</strong><br />
por acaso. Logo, à s<strong>em</strong>elhança dos d<strong>em</strong>ais textos,<br />
t<strong>em</strong>os a expressão do discurso erótico que, de acordo<br />
com Pietroforte (2007), realiza a intensidade tônica da<br />
valorização existencial do sexo.<br />
É evidente que se trata de um recurso persuasivo,<br />
pois como nos l<strong>em</strong>bra Citelli (2002), qu<strong>em</strong> persuade<br />
leva o outro à aceitação de uma ideia, expressa aqui na<br />
forma de um convite (vamos): sair com alguém com ou<br />
s<strong>em</strong> envolvimento afetivo (sexo casual).<br />
Além disso, o produtor do texto faz uso da figura<br />
de retórica “associação” (CITELLI, 2002): o processo<br />
de associação subjetiva entre a significação própria e o<br />
efeito figurativo, ou seja, “vamos nos ver”, no sentido<br />
da significação própria de apenas se olhar<strong>em</strong> ou no<br />
efeito figurativo de se ver<strong>em</strong> totalmente nus, s<strong>em</strong><br />
nenhuma barreira.<br />
Dado que a propaganda mexe com os nossos desejos<br />
e na tentativa da <strong>em</strong>presa de conquistar consumidores<br />
- os quais buscam um local romântico, sedutor e<br />
aconchegante para encontros amorosos - a solução foi<br />
criar uma estratégia discursiva que levasse, por indução,<br />
à busca da concretização do desejo tanto da anunciante<br />
quanto dos prováveis consumidores que almejam a<br />
prestação de serviço que a ela se destina.<br />
O enunciado “Vamos nos ver esta s<strong>em</strong>ana?” é de<br />
fácil absorção, trata do t<strong>em</strong>a de um modo agradável<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 63-71<br />
Aline Cristina da Cunha Inácio; Leila Maria Franco<br />
a ponto de não provocar dúvidas quanto ao que está<br />
sendo anunciado (vamos). O texto também se utiliza<br />
da teoria de outdoors, que, segundo Carvalho (2006),<br />
faz parte da máquina de criar desejos, ou seja, de<br />
realizar fantasias sexuais e de transformar desejos <strong>em</strong><br />
necessidades. Portanto, esse texto sugere que o sexo<br />
é uma necessidade humana e pretende persuadir o<br />
leitor a colocar <strong>em</strong> prática sua sugestão.<br />
Os chamados contrastes cromáticos (laranja x<br />
preto), apesar de estar<strong>em</strong> no plano das cores quentes,<br />
possu<strong>em</strong> um valor s<strong>em</strong>ântico próprio na composição da<br />
linguag<strong>em</strong>: o preto está relacionado com a necessidade<br />
humana do sexo, e a cor laranja, à vitalidade, criatividade<br />
e alegria, assim como, confiança, corag<strong>em</strong>, animação e<br />
atitude positiva perante a vida que <strong>em</strong>ana das labaredas,<br />
línguas de fogo de cor laranja (GAIARSA, 2002).<br />
Novamente, t<strong>em</strong>os a tipografia do branco sobre fundo<br />
de colorido forte e a homogeneidade dos caracteres,<br />
s<strong>em</strong>pre maiúsculos.<br />
No processo de interação entre a <strong>em</strong>presa anunciante<br />
e o leitor, a associação palavra-imag<strong>em</strong> constrói uma<br />
representação discursiva e orienta a reação-resposta do<br />
leitor. Este é convocado a participar do jogo discursivo<br />
apesar da pergunta “Vamos nos ver esta s<strong>em</strong>ana?”<br />
contar inclusive com o não consentimento dele.<br />
TEXTO 4 - CAT’S precisa dizer mais alguma coisa? -<br />
Nov<strong>em</strong>bro de 2007.<br />
No TEXTO 4, veiculado <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro de 2007,<br />
“CAT’S precisa dizer mais alguma coisa?”, perceb<strong>em</strong>os<br />
o objetivo de chamar a atenção do leitor, colocando<br />
<strong>em</strong> primeiro plano a marca do produto anunciado.<br />
Isto é, basta dizer a palavra cat’s, e o inconsciente do<br />
leitor será acionado para posteriormente desfrutar do<br />
serviço disponibilizado pelo motel, que possui uma<br />
marca consolidada e o reconhecimento do públicoconsumidor,<br />
<strong>em</strong>presa prestadora de serviço. Aqui, a<br />
<strong>em</strong>presa anunciante estabelece uma personalidade para<br />
o produto, pela celebração do nome Cat’s.<br />
De acordo com Sandmann (2005), o papel da<br />
linguag<strong>em</strong> da propaganda é este, persuadir, convencer<br />
e levar os sujeitos do discurso, por meio da palavra, à<br />
ação. Nesse caso, a ação de frequentar e comprar os<br />
serviços do motel Cat’s.
Em “Precisa dizer mais alguma coisa?”, a construção<br />
de verbo modal (precisa) mais infinitivo (dizer) impõe<br />
uma obrigação forte ao leitor. Isso pressupõe, por um<br />
lado, que não há outro que se compare ao Cat’s e, por<br />
outro, promove o produto, os serviços disponibilizados<br />
pelo anunciante.<br />
Logo, também se faz presente o uso da linguag<strong>em</strong><br />
persuasiva, de convencimento, com forte apelo e<br />
engajamento do leitor. Do mesmo modo, a presença da<br />
linguag<strong>em</strong> sincrética, ou seja, constituída pelo texto verbal<br />
(a palavra) e o não-verbal (a imag<strong>em</strong>). Em se tratando da<br />
linguag<strong>em</strong> não-verbal, a presença de cores quentes (laranja,<br />
preta e vermelha), por ex<strong>em</strong>plo, está associada às chamas,<br />
labaredas, fogo e tomam quase a totalidade da superfície<br />
do outdoor. Exatamente para relacionar-se com a t<strong>em</strong>ática<br />
da sexualidade, paixão e erotismo.<br />
TEXTO 5 - Permita-se - Abril de 2008<br />
No TEXTO 5, veiculado <strong>em</strong> abril de 2008, a forma<br />
reflexiva “permita-se” é usada para sugerir que o sujeito<br />
do discurso, no processo de interação verbal, é aquele<br />
que faz e recebe a ação de permitir. Ou seja, consentir,<br />
delegar a si próprio um envolvimento amoroso, uma<br />
“escapada”, e dar consentimento para que alguém o faça.<br />
Logo, apesar de ser um texto curto e direto, a sua<br />
apreensão estética está fundamentada num conjunto de<br />
el<strong>em</strong>entos de percepção implícitos e subconscientes,<br />
como a vontade de permitir-se realizar as fantasias<br />
sexuais, por ex<strong>em</strong>plo. Além disso, contribui com<br />
sua estética para a criação de um ambiente humano,<br />
conforme explica Carvalho (2006). A força do texto<br />
linguístico está justamente na imprevisibilidade do seu<br />
conteúdo; por si só atrai e causa impacto.<br />
A retórica nesse texto substitui todos os el<strong>em</strong>entos<br />
linguísticos previsíveis num anúncio publicitário. Trata-se<br />
de uma argumentação <strong>em</strong> que a persuasão é feita a partir<br />
do <strong>em</strong>ocional, através do qual o interlocutor vai ser<br />
seduzido pelo psicológico, ou seja, vai ser despertada,<br />
no seu imaginário, a possibilidade de uma relação mais<br />
prazerosa, com maior liberdade, cujo clima ass<strong>em</strong>elha-se<br />
à permissão <strong>em</strong> realizar todas as suas fantasias eróticas.<br />
No que diz respeito à linguag<strong>em</strong> não-verbal, t<strong>em</strong>os o<br />
jogo de cores <strong>em</strong> formato de mosaico 5 .<br />
Constituído de partes, el<strong>em</strong>entos desarticulados, esse<br />
Um estudo dos recursos persuasivos verbo-visuais nos outdoors do motel Cat’s<br />
texto é representativo da cultura de mosaico, oposta à<br />
cultura huma-nística. Na cultura hu-manística (clássica), o<br />
raciocínio lógico consiste <strong>em</strong> proporcionar ao indivíduo um<br />
conjunto de conceitos sobre o qual ele projeta e ordena<br />
suas percepções do mundo exterior, dando uma coerência<br />
racional ao apreendido. Ao contrário, na cultura de<br />
mosaico (massa), esse conjunto de conhecimentos t<strong>em</strong><br />
um aspecto aleatório, porque se apresenta como um rol<br />
de fragmentos por justaposição, no qual nenhuma ideia<br />
é forçosamente geral. Daí o jogo linguístico ao escolher<br />
uma forma reflexiva - o sujeito do discurso enquanto<br />
agente e paciente - que é refletida na imag<strong>em</strong>, de<br />
modo a justificar os novos paradigmas que envolv<strong>em</strong> os<br />
relacionamentos amorosos entre hom<strong>em</strong> e mulher nas<br />
culturas de massa, quando esses se alternaram como<br />
caçador e caça<br />
Tal raciocínio é explicitado na composição aleatória<br />
das cores: a presença do vermelho, que está associado<br />
ao calor, excitação e disposição para agir. O laranja,<br />
que assim como o vermelho é expansivo e afirmativo.<br />
O amarelo, que se ass<strong>em</strong>elha ao sol, traz consigo o<br />
desejo de que tudo correrá b<strong>em</strong>. O verde, que atenua<br />
a <strong>em</strong>oção e atua como sinal para renovação da vida.<br />
O azul-turquesa, que irradia b<strong>em</strong>-estar. O azul, que<br />
promove confiança e sentimentos agradavelmente<br />
relaxantes. O marrom, que está ligado à estabilidade e<br />
é uma cor envolvida com o enraizamento. O branco,<br />
que reflete todas as cores e o preto, percebido como<br />
misterioso e ligado ao sexo (GAIARSA, 2002).<br />
TEXTO 6 - Felizes noites felizes - Dez<strong>em</strong>bro de 2007.<br />
No TEXTO 6, igualmente t<strong>em</strong>os o uso do raciocínio<br />
retórico (CITELLI, 2002), pois tenta envolver os<br />
leitores e atuar junto a mentes e corações. Pod<strong>em</strong>os<br />
verificar também o uso de uma importante figura<br />
retórica para prender a atenção do leitor.<br />
A figura usada é a metáfora (CITELLI, 2002),<br />
utilizando o processo de transferência ou transposição,<br />
ou seja, passando do plano de base (significação própria<br />
da expressão) para o plano simbólico (figurativo).<br />
Por ex<strong>em</strong>plo, quando sugere que na “noite de<br />
Natal”, ou seja, na “noite feliz”, você terá tudo que lhe<br />
5 Mosaico é a composição plástica que consiste <strong>em</strong> pequenas peças de várias cores, coladas sobre uma superfície (ENCICLOPÉDIA BARSA. São Paulo: Abril,<br />
v. 10, 1998. p.171).<br />
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68<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 63-71<br />
Aline Cristina da Cunha Inácio; Leila Maria Franco<br />
é de direito, como o champanha e os fogos de artifício,<br />
ao lado de alguém que lhe dê prazer e felicidade,<br />
assim como nos contos de fada. Assim, fica claro que<br />
o discurso persuasivo se dota de recursos retóricos,<br />
objetivando convencer ou alterar comportamentos e<br />
atitudes já estabelecidas.<br />
No paralelismo “Feliz Natal, felizes noites felizes”, o<br />
Natal deixa o vínculo com a religião e passa a fazer parte<br />
da cultura humana de festas e grandes com<strong>em</strong>orações.<br />
E por analogia com o Natal, uma data especial <strong>em</strong> que<br />
se busca aplacar desentendimentos, diminuir mágoas,<br />
aflorar as paixões e propiciar encontros. E o motel é um<br />
bom lugar para passar felizes noites de envolvimento<br />
amoroso. A estratégia argumentativa usada foi<br />
relacionar as atrações do Natal com as “atrações”<br />
que acontec<strong>em</strong> no cotidiano de um quarto de motel.<br />
Dessa forma, o acordo com o leitor, enquanto sujeito<br />
do discurso, está selado, pois ele vive um momento<br />
de envolvimento com a festa e se identifica com os<br />
el<strong>em</strong>entos natalinos, transferindo o sentido dessa festa<br />
para o motel.<br />
Assim, de acordo com Carvalho (2006), os termos<br />
utilizados são conhecidos e corriqueiros, pois o que<br />
valoriza e amplia seu significado são as relações que<br />
estabelec<strong>em</strong> com o duplo sentido.<br />
Na questão da linguag<strong>em</strong> não-verbal, verificamos<br />
igualmente a presença das cores quentes como<br />
vermelho, laranja, preto e branco. O preto como cor<br />
de fundo, fazendo alusão ao sexo, à festa. O laranja e o<br />
vermelho associados ao calor e a excitação, espelhando<br />
entusiasmo, vivacidade impulsiva e natural e o branco<br />
refletindo todas as cores.<br />
Considerando ainda os textos analisados, quer<strong>em</strong>os<br />
dar aqui um enfoque discursivo, tendo <strong>em</strong> vista o<br />
contexto de produção.<br />
Os outdoors analisados, produzidos entre agosto de<br />
2007 e abril de 2008, mostram-nos que atualmente a<br />
propaganda de motel não é apenas dirigida ao hom<strong>em</strong>,<br />
mas também à mulher. Os contextos de produção<br />
d<strong>em</strong>onstram que o hom<strong>em</strong> não assume somente o papel<br />
de “caçador”, ele também pode ser a “caça” perante<br />
mulheres independentes que se firmam e se posicionam<br />
profissionalmente e por consequência sexualmente.<br />
Assim, compreend<strong>em</strong>os que as condições de produção<br />
do discurso envolv<strong>em</strong> o enunciador inserido <strong>em</strong> uma<br />
formação discursiva e um coenunciador (enunciatário<br />
para qu<strong>em</strong> se destina a propaganda) inserido no<br />
contexto histórico, social, ideológico e vivencial. Para<br />
um melhor <strong>em</strong>basamento disso, retomamos Orlandi<br />
(1997). A autora pontua que o texto t<strong>em</strong> relação com<br />
a situação e com outros textos, o que lhe dá um caráter<br />
não acabado.<br />
O sujeito do discurso (leitor/leitora), no processo de<br />
interação verbal, é convidado a viver a sua sexualidade<br />
de forma eufórica, alegre, contagiante. Sendo assim,<br />
quando o anunciante sugere e convoca, ele quer criar<br />
situações, instigar nos sujeitos do discurso ações de<br />
envolvimentos amorosos felizes acerca daquilo que é<br />
permitido, do que é belo.<br />
As regularidades linguísticas estão instauradas, como<br />
vimos, pelos verbos imperativos que têm o objetivo<br />
de persuadir o leitor a frequentar o motel, fazendo<br />
referências à data com<strong>em</strong>orativa, de convidá-lo a<br />
colocar suas segundas intenções <strong>em</strong> primeiro plano,<br />
por meio de interação comunicativa, e também de<br />
promover a celebração do lugar certo para realizar<br />
suas fantasias sexuais – o motel Cat’s.<br />
As escolhas lexicais revelam também a presença<br />
de diferentes discursos que expressam o desejo de<br />
grupos de sujeitos acerca do t<strong>em</strong>a da sexualidade. Ou<br />
seja, as escolhas, no contexto de um anúncio de motel,<br />
direcionam como aquilo que foi dito deve ser lido.<br />
Adquir<strong>em</strong> outros sentidos que são determinados pelo<br />
gênero propaganda e pelo próprio suporte, o outdoor<br />
de um motel.<br />
Conclusão<br />
Neste estudo, fiz<strong>em</strong>os considerações sobre a<br />
s<strong>em</strong>ântica argumentativa, <strong>em</strong> especial da linguag<strong>em</strong><br />
persuasiva, <strong>em</strong> seis textos do gênero propaganda,<br />
do motel Cat’s, veiculados <strong>em</strong> outdoors, na cidade de<br />
Uberaba, Minas Gerais. Secundariamente, verificamos<br />
como o texto não-verbal (a imag<strong>em</strong>) completa o<br />
sentido do verbal e também identificamos as marcas<br />
linguísticas denotadoras de persuasão.<br />
Em se tratando do gênero propaganda, constatamos<br />
que são fenômenos sociais comunicativos que <strong>em</strong>anam<br />
dos processos de interação social para dizer o mundo,<br />
participar do jogo discursivo, agir sobre o mundo, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, vender os serviços e produtos do motel Cat’s.<br />
Nas propagandas analisadas, perceb<strong>em</strong>os que tanto<br />
no texto verbal quanto no não-verbal (imagens), o<br />
sentido <strong>em</strong>erge para estabelecer condições de diálogo<br />
com o seu leitor. Aqui, parece-nos que não há como<br />
o leitor escapar das armadilhas da linguag<strong>em</strong>, pois os<br />
textos mobilizam marcas linguísticas como “coloque”,<br />
“vá”, “vamos”, “permita-se”, as quais direcionam<br />
a orientação argumentativa da <strong>em</strong>presa. Isso para,<br />
através de palavras, convencer e levar à ação de<br />
frequentar o motel Cat’s. Portanto, o diferencial de<br />
comunicação dos outdoors do motel Cat’s é justamente<br />
a especificidade retórica dos discursos utilizados.<br />
Assim, entend<strong>em</strong>os que os textos analisados<br />
estabelec<strong>em</strong> relações com a poliss<strong>em</strong>ia, com a oposição<br />
e com o duplo sentido, enriquecendo seus sentidos
com palavras de expressividade sonora e s<strong>em</strong>ântica.<br />
Com relação à linguag<strong>em</strong> não-verbal (imagens),<br />
perceb<strong>em</strong>os que os recursos visuais utilizados nos<br />
textos foram essenciais para a composição do texto<br />
verbal. O jogo de cores utilizado nas propagandas<br />
analisadas sugere que a luz de diversas cores que<br />
entra pelos olhos pode afetar diretamente o centro<br />
das <strong>em</strong>oções. Isso é a presença cada vez maior da<br />
linguag<strong>em</strong> sincrética, ou seja, constituída pelo textoverbal<br />
(a palavra) e o texto não-verbal (a imag<strong>em</strong>), além<br />
de ser uma linguag<strong>em</strong> persuasiva, de convencimento,<br />
com forte apelo e engajamento do leitor.<br />
A propaganda adquire também uma importância<br />
fundamental no processo econômico, pois de um lado<br />
funciona como el<strong>em</strong>ento vital para que as <strong>em</strong>presas<br />
conquist<strong>em</strong> mais consumidores e expandam suas<br />
atividades e, de outro, para que os consumidores,<br />
homens e mulheres, estejam melhor informados e<br />
possam escolher adequadamente o tipo de prestação<br />
de serviço que desejam usufruir.<br />
Este estudo contribui para a formação de leitores<br />
críticos, estimulando a capacidade de produção e<br />
compreensão de textos <strong>em</strong> diferentes situações<br />
comunicativas. Isso se justifica por ser uma mídia de<br />
fácil acesso, não ter custos e oferecer a chance de<br />
ser trabalhada <strong>em</strong> diferentes disciplinas das quais o<br />
enfoque seja as questões do texto verbal e não-verbal.<br />
Assim, é possível mostrar como os efeitos de sentido<br />
se dão nesse tipo de evento discurso.<br />
Enfim, indicamos como futura pesquisa, a analise das<br />
peças publicitárias do mesmo motel Cat’s publicadas<br />
no Jornal de Uberaba e no Jornal da Manhã, ambos<br />
da cidade de Uberaba. A pretensão é comparar as<br />
propagandas veiculadas <strong>em</strong> outdoors com os anúncios<br />
publicados pelos jornais.<br />
Também sugerimos o desenvolvimento de uma<br />
pesquisa que compare propagandas de outdoors de<br />
motel entre estados e países diferentes.<br />
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Um estudo dos recursos persuasivos verbo-visuais nos outdoors do motel Cat’s<br />
A STUDY OF THE PERSUASIVE VERBO-VISUAL<br />
RESOURCES USED IN THE CAT’S MOTEL BILLBOARDS<br />
ABSTRACT: Nowadays, cities are invaded by numerous textual genres in the field of media that make use of both<br />
verbal and nonverbal strategies in order to persuade and attract the reader. In that sense, this research tries to<br />
analyze the persuasive features of the billboards of Cat’s motel, check how the non-verbal text (picture) completes<br />
the meaning of the verbal text and identify linguistic marks denoting persuasive language. The theory guiding this<br />
research are the studies on language, persuasion, speech, marketing, publicity, visual text and s<strong>em</strong>iotics. According<br />
to the purpose of this study, the research methodology has a qualitative basis, using Text Analysis as a tool for<br />
data analysis. To compose the corpus of the work, we analyzed six billboards of Cat’s Motel, located in Uberaba,<br />
MG, displayed in strategic locations throughout the city and released between August 2007 and April 2008. In this<br />
analysis, we noticed that in both verbal and non-verbal texts (pictures), the meaning <strong>em</strong>erges to set conditions for<br />
dialogue with the reader. Here, it se<strong>em</strong>s that there isn’t a way of escaping from the traps of the language, since<br />
language texts mobilize linguistic marks such as coloque (put), vá (go), vamos (let’s), permita-se (let yourself)<br />
which direct the argumentative orientation of the company. That means, to convince and lead clients to the action<br />
of going to Cat’s motel. Therefore, the communication differential of the billboards of that motel is, precisely, the<br />
rhetoric particularity of the speeches used.<br />
KEYWORDS: Textual gender; s<strong>em</strong>iotics; marketing; advertising.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 63-71<br />
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ESPELHOS D’ÁGUA: REFLEXOS FILOSÓFICOS EM ROSA,<br />
REFLEXOS SOCIOLÓGICOS EM CABRAL 1<br />
Ana Paula da Silva Santos 2 ; Cláudia Ferreira de Paula Borges 3<br />
RESUMO: Este trabalho objetivou confrontar dois textos da literatura modernista brasileira: O cão s<strong>em</strong> plumas, de<br />
João Cabral de Melo Neto e A terceira marg<strong>em</strong> do rio, de João Guimarães Rosa, partindo da perspectiva simbólica da<br />
“imag<strong>em</strong>-palavra rio” e alcançando abordagens filosóficas e sociológicas. Por meio desse objetivo geral, a pesquisa<br />
se propôs a investigar as implicações sociológicas no texto cabralino a partir do valor simbólico da “imag<strong>em</strong>palavra<br />
rio” e analisar a exploração da simbologia dessa “imag<strong>em</strong>-palavra” na constituição de princípios filosóficos<br />
<strong>em</strong> Rosa. Para isso, este estudo enquadrou-se nos parâmetros da abordag<strong>em</strong> qualitativa (CHIZZOTTI, 2005) ao<br />
utilizar a Análise de Conteúdo como ferramenta de análise (BARDIN, 1977) dos textos mencionados. A fim de<br />
se estruturar a fortuna crítica deste trabalho, foram utilizados os princípios conceituais de: Villaça (2003), Nadai<br />
(1982), Almeida [1970], Barbosa (2002), Bosi (1994), Coutinho (1986), Sperber (1982), Kaiser (1980), R<strong>em</strong>ak<br />
(1994), Carvalhal (2006), Chevalier e Gheerbrant (2007), Wellek e Waren (1955), Nunes (2002), Rée (2000),<br />
Cotrim (1999), Chinoy (1993) e Cândido (2000). Pesquisas como esta se propõ<strong>em</strong> a ampliar a cientificidade do<br />
universo da literatura comparada, b<strong>em</strong> como apontam caminhos para a realização de uma prática docente baseada<br />
na relação da dialética filosofia-literatura-sociologia.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; literatura; rio; símbolo; sociologia.<br />
Introdução<br />
Esta proposta investigativa pretendeu confrontar<br />
dois textos da literatura modernista brasileira, sendo<br />
eles O cão s<strong>em</strong> plumas, de João Cabral de Melo Neto<br />
e A terceira marg<strong>em</strong> do rio, de João Guimarães Rosa,<br />
por meio do estudo do simbolismo de “rio” presente<br />
<strong>em</strong> ambos os referenciados escritos e utilizando, para<br />
tanto, considerações filosóficas e sociológicas. Como<br />
objetivos subsequentes, foram elencados os seguintes:<br />
analisar a exploração da simbologia da “imag<strong>em</strong>-palavra<br />
rio” na constituição de princípios filosóficos <strong>em</strong> Rosa e<br />
investigar as implicações sociológicas no texto cabralino<br />
a partir do valor simbólico da “imag<strong>em</strong>-palavra rio”.<br />
Como toda arte, a literatura s<strong>em</strong>pre foi alvo<br />
de estudos diversos. Pode-se dizer que as obras<br />
literárias s<strong>em</strong>pre ofereceram um vasto campo de<br />
análise a estudiosos e professores. Além disso, muitos<br />
apontamentos conceituais compilados pela própria<br />
crítica literária vêm apontando caminhos mais propícios<br />
para a realização de análises coerentes que esboc<strong>em</strong><br />
um entendimento mais amplo e ao mesmo t<strong>em</strong>po mais<br />
criterioso dos textos pertencentes ao universo literário.<br />
Considerando as múltiplas possibilidades de<br />
enfrentamento que os escritos literários pod<strong>em</strong><br />
propor, surgiu o interesse de realizar um estudo que<br />
apresentasse a comunhão entre textos de excelência<br />
literária e outras áreas do conhecimento, já que a<br />
literatura se apropria da representação significativa<br />
da palavra e reflete, como um verdadeiro espelho,<br />
os pensamentos de uma época, as ideologias que são<br />
firmadas, a compreensão de mundo dos muitos sujeitos<br />
que nele habitam, de forma irrestringível, ou seja, de<br />
forma mais ampla e valorativa.<br />
Ao se fazer essas conexões entre a literatura,<br />
filosofia e sociologia, percebeu-se que esta pesquisa<br />
apresentou um enfoque próprio de uma área de estudo<br />
denominada literatura comparada. Sabe-se que essa<br />
vertente do conhecimento, no Brasil, foi difundida pelo<br />
crítico literário Antônio Cândido, quando o mesmo<br />
propôs a abertura da disciplina Literatura Comparada<br />
na Universidade de São Paulo (USP), na década de 1960.<br />
Dessa forma, esta proposta investigativa foi<br />
desenvolvida com a finalidade de se entrar <strong>em</strong> contato<br />
com estudos inseridos no universo da literatura<br />
comparada, visto que essa área do conhecimento<br />
ganhou, no século XXI, renovados conceitos que<br />
corroboraram para a sua sustentação científica.<br />
A partir da leitura prévia do po<strong>em</strong>a de Cabral e<br />
do conto de Rosa, pôde-se notar a existência de uma<br />
t<strong>em</strong>ática comum que perpassa os dois textos – o<br />
simbolismo de “rio”. Assim, sobre o estilo de Guimarães<br />
e de João Cabral, alguns autores renomados ofereceram<br />
uma base para a composição da fundamentação teórica<br />
1 Projeto desenvolvido no Programa Institucional de Iniciação Científica (PIC) das Faculdades Associadas de Uberaba (FAZU), com bolsa concedida pela<br />
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).<br />
2 Graduada pela FAZU. Av. do Tutunas, 720 – CEP: 38061-500 – Uberaba- MG – E-mail: silvasantos87@yahoo.com.br<br />
3 Professora mestre do curso de Letras da FAZU . Av. do Tutunas, 720 – CEP 38061-500 – Uberaba-MG – E-mail: claudiafazu@yahoo.com.br<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
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74<br />
desta pesquisa, tais como: Villaça (2003), Nadai (1982),<br />
Almeida [1970], Barbosa (2002), Bosi (1994), Coutinho<br />
(1986), Sperber (1982).<br />
Para adquirir conhecimento sobre os conceitos<br />
utilizados dentro dos parâmetros da literatura<br />
comparada, os autores Kaiser (1980), R<strong>em</strong>ak (1994) e<br />
Carvalhal (2006) foram utilizados. Sobre a simbologia<br />
de “rio”, foram consultados autores como Chevalier<br />
e Gheerbrant (2007) e Wellek e Waren (1955). No<br />
que diz respeito ao aspecto filosófico, utilizaram-se os<br />
fundamentos teóricos de Nunes (2002), Rée (2000)<br />
e Cotrim (1999). Todos fazendo menção à teoria do<br />
filósofo al<strong>em</strong>ão Heidegger (1889–1976). Sobre o<br />
aspecto sociológico, foram analisados os dizeres de<br />
Chinoy (1993) e de Cândido (2000).<br />
Material e métodos<br />
Este estudo é de natureza qualitativa e possui, como<br />
alicerce metodológico, os dizeres de Chizzotti (2005) e<br />
Bardin (1977) ao aplicar a Análise de Conteúdo como<br />
ferramenta de análise.<br />
De acordo com o pensamento de Chizzotti (2005),<br />
existe uma relação intrínseca e indissociável entre o<br />
mundo objetivo, onde estão os dados comumente<br />
coletados, e a subjetividade do sujeito observador. Assim<br />
sendo, tudo o que é observado, analisado, estudado,<br />
dentro das perspectivas da pesquisa qualitativa, possui<br />
significação e requer compreensão.<br />
Partindo da exploração da t<strong>em</strong>ática do simbolismo<br />
de “rio” <strong>em</strong> O cão s<strong>em</strong> plumas e <strong>em</strong> A terceira marg<strong>em</strong><br />
do rio, surgiram muitas inquietações que nortearam a<br />
busca de conceitos que eram externos à ótica literária.<br />
Observou-se que existe um forte traço filosófico no<br />
texto rosiano e que, no texto de Cabral, aspectos<br />
sociológicos são também fáceis de ser<strong>em</strong> detectados.<br />
Pensando nisso, tornou-se pertinente a busca por<br />
conceituações filosóficas para que houvesse o entendimento<br />
do texto de Guimarães como um todo. Assim como foi<br />
também necessária a busca de conceitos sociológicos para<br />
que houvesse a análise do texto de Cabral.<br />
Ainda sobre os aspectos da pesquisa qualitativa,<br />
Chizotti (2005) ressalta a importância da postura<br />
do pesquisador diante do corpus escolhido para a<br />
composição da investigação, isto é, o autor fala sobre<br />
a postura do pesquisador diante dos dados coletados:<br />
O pesquisador não se transforma <strong>em</strong> mero<br />
relator passivo. [...] a descrição minudente,<br />
cuidadosa e aliada é muito importante; uma vez<br />
que deve captar o universo das percepções,<br />
das <strong>em</strong>oções e das interpretações [...]<br />
(CHIZZOTTI, 2005, p. 82).<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
Ana Paula da Silva Santos; Cláudia Ferreira de Paula Borges<br />
Sendo assim, torna-se evidente a necessidade de o<br />
pesquisador analisar os seus dados, tendo uma postura<br />
que seja coerente e que apresente retidão científica.<br />
Considerando esse pensamento, o referente estudo<br />
apresentou uma estruturação teórica com a finalidade<br />
de se analisar os textos já citados a partir de uma lógica<br />
esqu<strong>em</strong>atizada e pautada nas observações realizadas<br />
pela leitura minuciosa desses textos.<br />
Segundo os pressupostos da pesquisa qualitativa,<br />
os dados não pod<strong>em</strong> ser analisados isoladamente.<br />
Portanto, o pesquisador precisa compreender que eles<br />
não pod<strong>em</strong> ser estudados superficialmente uma vez<br />
que compondo um trabalho científico, dev<strong>em</strong> instigar<br />
constatações mais complexas. De acordo com esse<br />
princípio, Chizzotti (2005) faz referência às técnicas<br />
que pod<strong>em</strong> conduzir uma pesquisa enquadrada nos<br />
parâmetros qualitativos. Tais técnicas não possu<strong>em</strong><br />
a função de mapear modelos para a realização das<br />
análises, mas aguçam a consciência do sujeito enquanto<br />
pesquisador, d<strong>em</strong>onstrando que cada pesquisa merece<br />
a aplicação de uma determinada metodologia.<br />
A pesquisa qualitativa pressupõe que a utilização<br />
dessas técnicas não deve construir um modelo<br />
único, exclusivo e estandartizado. A pesquisa é uma<br />
criação que mobiliza a acuidade do pesquisador,<br />
sua habilidade artesanal e sua perspicácia para<br />
elaborar a metodologia adequada ao campo de<br />
pesquisa [...] (CHIZZOTTI, 2005, p. 85).<br />
Para Bardin (1977), a análise de conteúdo representa<br />
um conjunto de técnicas de análise de comunicação,<br />
enquanto Chizzotti (2005) a vê como sendo um método<br />
de tratamento e análise de dados coletados.<br />
Então, o corpus utilizado nesta pesquisa foi composto<br />
de dois textos representativos da literatura modernista<br />
no Brasil: O cão s<strong>em</strong> plumas, de João Cabral de Melo<br />
Neto (1994) e o conto A terceira marg<strong>em</strong> do rio, de João<br />
Guimarães Rosa (2001).<br />
Escrito por João Cabral de Melo Neto, <strong>em</strong> Barcelona,<br />
o po<strong>em</strong>a O cão s<strong>em</strong> plumas foi publicado <strong>em</strong> 1950 e<br />
representou o início da escritura de po<strong>em</strong>as cabralinos<br />
dentro do panorama das poesias denominadas<br />
participativas, que possu<strong>em</strong> t<strong>em</strong>áticas voltadas para<br />
a denúncia social, poesias de engajamento. Assim,<br />
utilizando a imag<strong>em</strong> dos mangues lamacentos do<br />
Capibaribe, João Cabral retratou a castigada realidade<br />
dos homens que viviam do rio, na lama e na miséria.<br />
O conto A terceira marg<strong>em</strong> do rio foi escrito por João<br />
Guimarães Rosa e lançado como sendo um dos contos<br />
do livro Primeiras estórias, <strong>em</strong> 1962. Resumidamente,<br />
o referenciado texto conta a história de um hom<strong>em</strong><br />
que se desliga de toda a convivência familiar e social<br />
ao construir uma canoa, indo viver isolado no meio de<br />
um rio. O narrador-personag<strong>em</strong>, um de seus filhos,
acompanha o seu percurso na nova vida. Por isso, não<br />
constitui família e, no final do conto, não consegue<br />
seguir o mesmo destino do pai.<br />
Os dois textos foram escolhidos depois da feitura<br />
de um trabalho de conclusão de curso com o mesmo<br />
corpus. Na verdade, esta pesquisa representa um<br />
desdobramento desse trabalho de conclusão. Desse<br />
modo, optou-se por analisar novamente os dois<br />
textos mencionados com o intuito de se chegar a<br />
constatações mais amplas, uma vez que os textos<br />
possu<strong>em</strong> legitimidade literária e uma riqueza infindável<br />
de análises poderia ser suscitada.<br />
Tendo <strong>em</strong> vista que a comparação propicia o<br />
aguçamento do senso crítico e ainda permite que<br />
haja o enfrentamento dos textos literários de diversas<br />
formas possíveis, vale ressaltar que a relevância desta<br />
investigação residiu justamente no fato de ela apresentar<br />
um entrelaçamento conceitual não só entre diferentes<br />
estilos e formas de expressão literária, mas também<br />
entre diferentes universos vinculados ao conhecimento<br />
humano, sendo configurada nos liames da literatura<br />
comparada.<br />
O percurso de análise estruturado ganhou<br />
direcionamento por meio dos seguintes procedimentos<br />
metodológicos. Primeiro, a leitura de A terceira marg<strong>em</strong><br />
do rio e de O cão s<strong>em</strong> plumas foi realizada. Em seguida e<br />
de acordo com os teóricos apropriados, o simbolismo<br />
de “rio” foi analisado <strong>em</strong> O cão s<strong>em</strong> plumas <strong>em</strong> relação<br />
aos conceitos próprios da sociologia, assim como<br />
houve a estruturação do estudo comparativo entre o<br />
texto rosiano e os fundamentos filosóficos compilados<br />
anteriormente.<br />
Resultados e discussões<br />
Como objetivo primeiro deste estudo, definiu-se<br />
investigar as implicações sociológicas observadas no<br />
texto cabralino, tendo como ponto de partida o valor<br />
do simbolismo da “imag<strong>em</strong>-palavra rio”.<br />
Assim, de imediato, percebeu-se que no po<strong>em</strong>a<br />
O cão s<strong>em</strong> plumas, o título já revelava a t<strong>em</strong>ática<br />
de degradação da vida humana às margens do rio<br />
Capibaribe, explicitada pela simbologia de “rio”<br />
detectada no texto. Isso tendo <strong>em</strong> vista que a imag<strong>em</strong><br />
de um cão desprovido de plumag<strong>em</strong>, isto é, de pelag<strong>em</strong>,<br />
já d<strong>em</strong>onstra tal perspectiva que passou a ser ressaltada<br />
pelos versos que compõ<strong>em</strong> o referenciado po<strong>em</strong>a.<br />
João Cabral conseguiu ressaltar tais imagens de<br />
degradação humana, da não fluência do próprio viver, ao<br />
lançar mão de uma técnica que consistia <strong>em</strong> apresentar,<br />
nos versos do po<strong>em</strong>a, uma metáfora e depois justificá-la<br />
com uma série de símiles.<br />
Espelhos d’água: reflexos filosóficos <strong>em</strong> Rosa, reflexos sociológicos <strong>em</strong> Cabral<br />
Abre-se <strong>em</strong> flores<br />
pobres e negras<br />
como negros.<br />
Abre-se numa flora<br />
suja e mais mendiga<br />
como são os mendigos negros.<br />
Abre-se <strong>em</strong> mangues<br />
de folhas duras e crespos<br />
como um negro (MELO NETO, 1994, p. 106).<br />
Como se vê, Cabral denuncia uma realidade<br />
lastimável dentro do território brasileiro <strong>em</strong> plena<br />
década de 1950, século XX, apontando, a partir de<br />
sua composição concreta de imagens com visibilidade<br />
plástica, o retrato da estagnação miserável à qual a<br />
vivência às margens do Capibaribe se predispõe, <strong>em</strong><br />
cenário nordestino. Esse modo de escrever ratifica o<br />
simbolismo do “rio” que percorre um espaço. Porém,<br />
não apresenta um fluir solto: só representa estagnação,<br />
miséria, tentativa de sustentabilidade, inconsciência<br />
humana. Assim, o el<strong>em</strong>ento natural que faz parte<br />
da existência humana, o “rio”, transformou-se <strong>em</strong><br />
simbolismo, já que suscitou uma série de imagens<br />
simbólicas (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007).<br />
Sendo a literatura a expressão artística da palavra,<br />
configurando-a <strong>em</strong> um determinado t<strong>em</strong>po e espaço,<br />
percebeu-se claramente o jogo poético e ético citado<br />
por Villaça (2003) ao estudar a escritura de Cabral, uma<br />
vez que se constatou, a partir da leitura de O cão s<strong>em</strong><br />
plumas, o trabalho realizado com a palavra <strong>em</strong> parceria<br />
com o trabalho de, sobre o limpo, escancarar o sujo;<br />
sobre a aparente organização estética, imprimir as<br />
mazelas do caos. Os versos a seguir representam esse<br />
raciocínio:<br />
Algo da estagnação<br />
dos palácios cariados,<br />
comidos<br />
de mofo e erva-de-passarinho.<br />
Algo da estagnação<br />
das árvores obesas<br />
pingando os mil açúcares<br />
das salas de jantar pernambucanas<br />
por onde se veio arrastando (MELO NETO,<br />
1994, p. 107).<br />
Por meio dos versos registrados acima, notouse<br />
previamente uma crítica ofensiva à forma de<br />
organização da vida nos limites do rio Capibaribe.<br />
João Cabral descreve um rio que se arrasta, mas que,<br />
ao mesmo t<strong>em</strong>po, perpassa os “palácios cariados”,<br />
“comidos”. Palácios que protagonizaram a euforia<br />
econômica gerada pelo cultivo da cana-de-açúcar, uma<br />
euforia marcada pela ascensão e decadência, visto que<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
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a docilidade da expansão do açúcar desencadeou, mais<br />
tarde, as cáries, as mazelas derivadas de seu próprio<br />
declínio. As palavras <strong>em</strong> destaque – “cariados”,<br />
“comidos”- revelam ainda a indignação perante a<br />
desigualdade, perante o comodismo de uma pequena<br />
parcela social frente as realidades deprimentes:<br />
(É nelas,<br />
mas de costas para o rio,<br />
que as “grandes famílias espirituais” da cidade<br />
chocam os ovos gordos<br />
de sua prosa.<br />
Na paz redonda das cozinhas,<br />
ei-las revolver viciosamente<br />
seus caldeirões<br />
de preguiça viscosa) (MELO NETO, 1994, p.<br />
107).<br />
De acordo com Chinoy (1993), a Sociologia é vista<br />
como uma área competente para fazer a compreensão<br />
da realidade social <strong>em</strong> que os seres humanos conviv<strong>em</strong><br />
uns com os outros. Essa compreensão pode acrescentar<br />
ao hom<strong>em</strong> um conhecimento mais abrangente de<br />
si mesmo ou ainda pode corroborar para a solução<br />
dos tantos probl<strong>em</strong>as que rodeiam a vida humana.<br />
Assim sendo, Cabral, que pertenceu à geração de<br />
1945 - geração que surgiu depois daquela que teve<br />
como alvo as denúncias de âmbito social no Brasil -,<br />
conseguiu delinear sua poesia, partindo de O cão s<strong>em</strong><br />
plumas, dentro dos parâmetros do universo da poesia<br />
participativa. Tais apontamentos não foram feitos aqui<br />
gratuitamente, porque pela e na linguag<strong>em</strong>, observouse<br />
uma série de fatores voltados para o aspecto do<br />
engajamento social, culminando <strong>em</strong> crítica e denúncia<br />
como já se escreveu nesta seção.<br />
A última estrofe utilizada anteriormente apresentou<br />
versos que na verdade apontam uma organização social<br />
privilegiada que quase nada ou nada faz <strong>em</strong> relação<br />
aos “[...] homens s<strong>em</strong> pluma” (MELO NETO, 1994,<br />
p. 109), ou seja, aos homens que habitam as margens<br />
do Capibaribe – “É nelas, mas de costas para o rio<br />
[...]”. Os versos acima apresentam realidades que são,<br />
<strong>em</strong> primeira instância, antitéticas se levadas <strong>em</strong> conta<br />
as condições de vida daqueles que viv<strong>em</strong> na lama, no<br />
lodo: “[...] chocam os ovos gordos [...] Na paz redonda<br />
das cozinhas [...] ei-las revolver viciosamente seus<br />
caldeirões [...]” (MELO NETO, 1994, p.107).<br />
De maneira geral, as estrofes de O cão s<strong>em</strong> plumas<br />
apresentam uma seleção lexical que expõe as terríveis<br />
condições de vida daqueles que viv<strong>em</strong> às margens do<br />
Capibaribe, além de confrontá-las com a realidade<br />
oposta, a dos que se apresentam <strong>em</strong> condições<br />
privilegiadas. O ciclo da cana-de-açúcar, <strong>em</strong> cenário<br />
nordestino, revelou-se composto por um período de<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
Ana Paula da Silva Santos; Cláudia Ferreira de Paula Borges<br />
expansão, outro de estagnação e outro de decadência.<br />
Pensando na organização social exposta por Cabral,<br />
o percurso da vida dos homens do mangue apresentase<br />
marcado por um ciclo também, só que um ciclo que<br />
contém apenas os períodos de estagnação e decadência<br />
que caracterizaram a enlameada vivência no Capibaribe.<br />
Na paisag<strong>em</strong> do rio<br />
difícil é saber<br />
onde começa o rio;<br />
onde a lama<br />
começa do rio;<br />
onde a terra<br />
começa da lama;<br />
onde o hom<strong>em</strong>,<br />
onde a pele<br />
começa da lama;<br />
onde começa o hom<strong>em</strong><br />
naquele hom<strong>em</strong> (MELO NETO, 1994, p. 110).<br />
No trecho acima, percebe-se que não há noção de<br />
início, n<strong>em</strong> de fim <strong>em</strong> relação ao que é hom<strong>em</strong> e ao que<br />
é lama: “[...] difícil é saber/ onde começa o rio/ onde<br />
começa a lama [...]”. A precariedade das condições é<br />
tão intensa que passa a fazer do hom<strong>em</strong> lama e da lama<br />
aquele hom<strong>em</strong>.<br />
A exposição dessas condições foi realizada por meio<br />
de palavras e expressões específicas, pela reiteração<br />
do simbolismo de um “rio” que não é liso, que não<br />
apresenta águas límpidas, que não t<strong>em</strong> peixes saudáveis,<br />
que não apresenta uma vida calma e tranquila: um rio<br />
que é “lodo”, “ferrug<strong>em</strong>”, “lama”, “espesso”, “de águas<br />
densas e mornas”, que “jamais se abre <strong>em</strong> peixes”, que<br />
é “algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos<br />
asilos, da vida suja e abafada”.<br />
Tudo isso fez com que se notasse que a vida<br />
caracterizada por Cabral no po<strong>em</strong>a apresentava falta<br />
de perspectiva social, visto que, segundo os dizeres de<br />
Chinoy (1993), o ser humano busca criar mecanismos<br />
para interagir e transformar o meio que habita. E aos<br />
homens que não modificam o espaço que ocupam e que<br />
consegu<strong>em</strong> sobreviver com o mínimo possível <strong>em</strong> relação<br />
ao considerado normal para a manutenção da vida humana<br />
dá-se o nome de “homens selvagens”. Em O cão s<strong>em</strong><br />
plumas, percebeu-se que o poeta ressaltou a existência<br />
precária desses homens selvagens, comparando-os à<br />
existência lamentável de um cão s<strong>em</strong> plumas.<br />
Mas ele conhecia melhor<br />
os homens s<strong>em</strong> pluma.<br />
Estes<br />
secam<br />
ainda mais além<br />
de sua caliça extr<strong>em</strong>a;
ainda mais além<br />
de sua palha;<br />
mais além<br />
da palha de seu chapéu;<br />
mais além<br />
até<br />
da camisa que não têm;<br />
muito mais além do nome<br />
mesmo escrito na folha<br />
do papel mais seco (MELO NETO, 1994, p. 109).<br />
Nessa estrofe, é notória a função de lâmina afiada<br />
que a palavra exerce para caracterizar os homens que<br />
mais parec<strong>em</strong> animais, animalizados pela influência<br />
pesada, desgastante e seca que o meio exerce sobre<br />
suas vidas. Uma única palavra ocupa um verso inteiro e<br />
funciona como o corte aberto na consciência de qu<strong>em</strong><br />
lê ou identifica tal cenário, proporcionando ao ritmo do<br />
po<strong>em</strong>a, além de tudo, uma objetividade que causa dor –<br />
“[...] Estes / secam/ [...] até [...]” -, que particulariza uma<br />
coletividade que de tão vítima do próprio meio, perdeu<br />
a própria noção de individualismo e de identidade: “[...]<br />
muito mais além do nome/ mesmo escrito na folha/ do<br />
papel mais seco” (MELO NETO, 1994, p. 109).<br />
Desse modo, constatou-se ainda que os homens<br />
representados nas estrofes do po<strong>em</strong>a foram<br />
zoomorfizados. Assim, o po<strong>em</strong>a revela que eles viviam<br />
<strong>em</strong> condições de não organização social ou mesmo<br />
imersos <strong>em</strong> uma organização social muito precária,<br />
não podendo ter consciência dos próprios conceitos<br />
de sociedade e dos conjuntos de crenças, valores, leis,<br />
ou seja, não tinham consciência do conceito de cultura<br />
(CHINOY, 1993). Por tudo isso, Cabral retrata que os<br />
homens do mangue, por meio de uma inconsciência<br />
constante, haviam perdido aquilo que verdadeiramente<br />
os diferenciava dos animais, isto é, a capacidade de,<br />
pelo raciocínio, mudar<strong>em</strong> a perspectiva social que os<br />
rodeava: eles viviam do rio, para o rio, pelo rio. Essas<br />
afirmações são percebidas no seguinte trecho:<br />
Na água do rio,<br />
lentamente,<br />
se vão perdendo<br />
<strong>em</strong> lama; numa lama<br />
que pouco a pouco<br />
ganha os gestos defuntos<br />
da lama;<br />
o sangue de goma,<br />
olho paralítico<br />
da lama (MELO NETO, 1994, p. 110).<br />
Hom<strong>em</strong> e lama se fund<strong>em</strong> de acordo com o po<strong>em</strong>a.<br />
A existência foi praticamente anulada para dar vida à<br />
luta, apenas à luta pela sobrevivência, à luta contra o<br />
tornar-se mais “um defunto de lama”. A consciência<br />
Espelhos d’água: reflexos filosóficos <strong>em</strong> Rosa, reflexos sociológicos <strong>em</strong> Cabral<br />
social turva dos homens do Capibaribe, aliás a falta de<br />
consciência da própria dignidade humana fez com que<br />
tais homens perdess<strong>em</strong> a própria voz; viviam um dia<br />
após o outro, conformados com a fatalidade do próprio<br />
percurso.<br />
Um cão, porque vive,<br />
é agudo.<br />
O que vive<br />
não entorpece.<br />
O que vive fere.<br />
O hom<strong>em</strong>,<br />
porque vive,<br />
choca com o que vive.<br />
Viver<br />
É ir entre o que vive (MELO NETO, 1994, p. 114).<br />
João Cabral de Melo Neto, nos versos do<br />
referenciado texto, desumaniza totalmente os homens<br />
do Capibaribe ao construir um po<strong>em</strong>a <strong>em</strong> que eles<br />
perderam a capacidade de possuir um discurso, uma<br />
voz. Qu<strong>em</strong> ganha voz, de fato, é o rio, que, no po<strong>em</strong>a,<br />
encontra-se antropomorfizado a partir de sua própria<br />
personificação. O rio vê, sente, t<strong>em</strong> consciência de<br />
qu<strong>em</strong> vive às suas margens.<br />
O rio sabia<br />
daqueles homens s<strong>em</strong> plumas.<br />
Sabia<br />
de suas barbas expostas,<br />
de seu doloroso cabelo<br />
de camarão estopa [...] (MELO NETO, 1994, p. 108).<br />
Os homens do rio Capibaribe representam<br />
negações diante da vida, visto que são a negação de<br />
uma organização social digna, da consciência de uma<br />
cultura e da transformação da própria existência <strong>em</strong><br />
relação ao meio que ocupam. De afirmações possu<strong>em</strong><br />
apenas limitações e fatalidades. Em segunda instância,<br />
representam um verdadeiro paradoxo <strong>em</strong> referência<br />
àqueles que exist<strong>em</strong> e não apenas sobreviv<strong>em</strong>: “[...]<br />
como é muito mais espesso/ o sangue de um hom<strong>em</strong>/<br />
do que o sonho de um hom<strong>em</strong>” (MELO NETO, 1994,<br />
p. 115). De acordo com esse pensamento, vê-se que o<br />
simbolismo de rio <strong>em</strong> O cão s<strong>em</strong> plumas significa a falta<br />
de leveza, de fluidez, de transparência da própria vida<br />
humana, a falta do sonho. O rio possui um percurso<br />
natural que o arrasta para o mar, mas os seres humanos,<br />
que também são rios e nele habitam, possu<strong>em</strong> um<br />
percurso determinado pelas imposições de um espaço<br />
degradante, possu<strong>em</strong> um percurso arrastado que<br />
os leva às beiras da própria sociedade. O rio limita e<br />
restringe a vivência <strong>em</strong> suas margens.<br />
Para Chinoy (1993), a cultura de um lugar e a<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
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sociedade <strong>em</strong> si ganham contornos a partir do fato da<br />
existência dos indivíduos. Se essa existência passa a ser<br />
anulada, como se observou no mencionado po<strong>em</strong>a<br />
cabralino, os indivíduos passam a ser exclusivamente<br />
produtos do meio onde viv<strong>em</strong>. Em O cão s<strong>em</strong> plumas,<br />
a travessia dos homens do mangue prosseguia seu tino,<br />
restringindo, limitando o pensar e o agir, moldando por<br />
gerações as vidas que ali estavam: “Porque é muito mais<br />
espessa/ a vida que se desdobra/ <strong>em</strong> mais vida [...]”<br />
(MELO NETO, 1994, p. 116).<br />
Tomando por base todas as análises realizadas até<br />
aqui, observou-se que João Cabral de Melo Neto<br />
conseguiu, por meio do seu lógico, concreto e racional<br />
trabalho poético, objetivar os versos de O cão s<strong>em</strong><br />
plumas, limitando-os. Porém, dessa forma, fez com<br />
que as imagens intencionadas ganhass<strong>em</strong> amplitude<br />
e visibilidade. Desse movimento com a palavra, ele<br />
expressou fatores externos, sociais. Sendo assim,<br />
considerando uma logicidade dialética, o que era<br />
externo, ou seja, a realidade das mazelas nordestinas<br />
transformou-se <strong>em</strong> arte e o que representava um<br />
aspecto exterior passou a ser representado pelo que é<br />
interior, pela palavra (CANDIDO, 2000).<br />
Ao desnudar a triste realidade nordestina através<br />
da antropomorfização do rio e da zoomorfização do<br />
hom<strong>em</strong> das margens desse rio, João Cabral edificou,<br />
pelo processo de diferenciação, as diversidades que<br />
marcam a vida social.<br />
Como segundo objetivo específico desta pesquisa,<br />
estabeleceu-se a promoção da análise da exploração<br />
do simbolismo da “imag<strong>em</strong>-palavra rio” na constituição<br />
de princípios filosóficos <strong>em</strong> Rosa. Para tanto, procurouse<br />
associar o forte traço existencialista de A terceira<br />
marg<strong>em</strong> do rio com a teoria do filósofo al<strong>em</strong>ão<br />
existencialista Heidegger.<br />
Levando <strong>em</strong> consideração o eixo t<strong>em</strong>ático escolhido<br />
como alvo desta investigação, a análise do simbolismo da<br />
“imag<strong>em</strong>-palavra rio”, notou-se que Guimarães utiliza<br />
uma verdadeira alegoria, ou seja, vincula a significação<br />
da “imag<strong>em</strong>-palavra rio” à exposição de uma ideia a fim<br />
de atingir determinada representatividade por meio da<br />
suscitada “terceira marg<strong>em</strong>”. Partindo da narração do<br />
comportamento incomum de um pai que se isola dentro<br />
de uma canoa, no meio das águas de um rio, Rosa<br />
parece ter evidenciado a existência de uma realidade<br />
transcendente que possui a significação do que seria<br />
essa “terceira marg<strong>em</strong>”.<br />
Assim, percebeu-se com nitidez que o conto mencionado<br />
possui caráter existencial. De acordo com Cotrim (1999),<br />
o filósofo existencialista Heidegger, que estruturou sua<br />
linha de pensamento na análise da essência humana,<br />
desenvolveu a ideia de que o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> si representa um<br />
somatório do que ele denominou “ente” – o modo de ser<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
Ana Paula da Silva Santos; Cláudia Ferreira de Paula Borges<br />
do hom<strong>em</strong> no mundo, o Daisen – e do que ele chamou de<br />
“ser” – a essência de cada indivíduo.<br />
Por isso, quando, no conto rosiano, o personag<strong>em</strong><br />
pai rompe com a realidade social e a familiar, preferindo<br />
navegar sobre as águas do rio, constata-se que ele não<br />
mais dava importância ao seu estar no mundo, mas<br />
possuía o intento de fluir dentro dele mesmo:<br />
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma<br />
parte. Só executava a invenção de se permanecer<br />
naqueles espaços do rio, de meio a meio, s<strong>em</strong>pre<br />
dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais<br />
(ROSA, 2001, p. 80).<br />
Esse rompimento com o mundo social <strong>em</strong> busca do<br />
que há de essencial na própria existência apresenta uma<br />
relação com a negação da inautenticidade do modo de<br />
vida que o hom<strong>em</strong> leva quando é nada mais que um<br />
Daisen, quando somente está no mundo, de acordo<br />
com Heidegger.<br />
Essa negação do que é pré-estabelecido, do que<br />
é “estar-aí” no mundo, pôde ser constatada desde<br />
o início do conto, quando o personag<strong>em</strong> narrador,<br />
o filho, conta que o pai era um hom<strong>em</strong> comum, que<br />
cumpria com suas obrigações de hom<strong>em</strong> e de pai -<br />
isto é, praticava ações no mundo, habitava o mundo<br />
circundante como Daisen - , mas conta também que<br />
ele era muito introvertido, visto que a esposa era qu<strong>em</strong><br />
coordenava a família, cobrava os deveres dos filhos.<br />
Nosso pai era hom<strong>em</strong> cumpridor, ordeiro,<br />
positivo; e sido assim desde mocinho e menino,<br />
pelo que test<strong>em</strong>unhavam as diversas sensatas<br />
pessoas, quando indaguei a informação. [...] ele<br />
não figurava mais estúrdio n<strong>em</strong> mais triste do que<br />
os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa<br />
mãe era qu<strong>em</strong> regia, e que ralhava o diário com a<br />
gente [...] (ROSA, 2001, p. 79).<br />
Através desse fragmento, notou-se claramente que o<br />
pai, antes de tomar a atitude de construir a canoa e se<br />
refugiar no “rio”, era apenas mais um hom<strong>em</strong> lançado<br />
no mundo e que n<strong>em</strong> mesmo questionava esse mundo,<br />
era tido como sensato e positivo aos olhos das d<strong>em</strong>ais<br />
existências também apenas lançadas no mundo: esposa,<br />
filhos, parentes.<br />
Sendo assim, a negação de tal inautenticidade esteve<br />
vinculada, proporcionalmente pensando, à aceitação<br />
daquilo que Rée (2000), ao fazer a releitura da teoria<br />
heideggeriana, denominou autenticidade, ou seja,<br />
observou-se que o pai, no texto rosiano, representa,<br />
com a atitude de se isolar no meio do rio, dentro da<br />
canoa, a busca pela autenticidade da própria existência,<br />
por se encontrar com seu eu mais profundo.<br />
Nosso pai não dizia nada. Nossa casa, no t<strong>em</strong>po,<br />
ainda era mais próxima do rio, obra de n<strong>em</strong>
quarto de légua: o rio por aí se estendendo<br />
grande, fundo, calado como s<strong>em</strong>pre. Largo,<br />
de não se poder ver a forma da outra beira. E<br />
esquecer não posso, do dia <strong>em</strong> que a canoa ficou<br />
pronta (ROSA, 2001, p. 79-80).<br />
Como se vê, o próprio pai é comparado ao rio por<br />
meio da gradação “grande, fundo, calado”. Tudo isso<br />
reafirmando sua autenticidade já que, como o rio, não<br />
se podia ver a forma da sua outra beira, do personag<strong>em</strong><br />
como não sendo “ente” no mundo, mas como “ser”.<br />
Rosa, <strong>em</strong> seu texto, propagou a ideia de que a<br />
terceira marg<strong>em</strong> do rio nada mais é que o encontro<br />
com o lado mais complexo do ser humano, aquilo<br />
que Heidegger chamou de “ser”, que se compreende<br />
como essência a partir da estruturação do enredo do<br />
conto <strong>em</strong> questão. Dessa maneira, foi fácil notar que<br />
no momento <strong>em</strong> que o pai decidiu construir a canoa<br />
s<strong>em</strong> dar satisfações e ir <strong>em</strong> direção ao rio para lá se<br />
isolar, houve a conscientização da estreita relação entre<br />
o consciente e o inconsciente por meio da abertura do<br />
espírito para o infinito, para o desconhecido que seria a<br />
terceira marg<strong>em</strong> (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007).<br />
O simbolismo de rio, sendo aquele que possui<br />
vínculo com o curso da própria vida, foi utilizado por<br />
Rosa para que houvesse a estruturação do pensamento<br />
de que o ser humano é um rio que cursa no mundo,<br />
mas que principalmente cursa <strong>em</strong> um universo paralelo,<br />
se apresenta intrínseco à própria existência:<br />
[...] ou que, nosso pai, qu<strong>em</strong> sabe, por escrúpulo<br />
de estar com alguma feia doença, que seja, a<br />
lepra, se desertava para outra sina de existir,<br />
perto e longe de sua família dele. [...] da forma<br />
como cursava no rio, solto solitariamente (ROSA,<br />
2001, p. 81).<br />
Nesse universo introspectivo, de acordo com<br />
a teoria de Heidegger, encontram-se as áreas que<br />
se apresentam ao senso comum como verdadeiras<br />
incógnitas da realidade existencial. Para que essas áreas<br />
sejam iluminadas pela consciência humana, Cotrim<br />
(1999) expôs, ao escrever sobre Heidegger, que o<br />
mencionado filósofo elencou três dimensões que<br />
explicitam o movimento que é preciso ser feito a fim<br />
de que se estreite o contato com a existência pura e<br />
verdadeira de cada indivíduo: a dimensão denominada<br />
fato da existência, a do desenvolvimento da existência e<br />
a da destruição do próprio eu.<br />
No que se refere à primeira dimensão, o fato da<br />
existência, pode-se dizer que faz menção ao próprio<br />
nascimento, à própria oportunidade de se ter uma<br />
vida no mundo, ou seja, refere-se ao ser lançado no<br />
mundo. Sobre a segunda, a do desenvolvimento da<br />
existência, vê-se que deve ser relacionada ao primeiro<br />
parágrafo da narrativa, já citado nesta análise de dados,<br />
Espelhos d’água: reflexos filosóficos <strong>em</strong> Rosa, reflexos sociológicos <strong>em</strong> Cabral<br />
<strong>em</strong> que o narrador apresenta o personag<strong>em</strong> pai como<br />
um realizador de tarefas comuns ao seu estado de<br />
marido, hom<strong>em</strong>, trabalhador. Essa dimensão, segundo<br />
Heidegger, é aquela que expõe a relação do hom<strong>em</strong><br />
com o mundo, do hom<strong>em</strong> inautêntico, que age no<br />
mundo, que possui o caráter de “ente”, sendo Daisen.<br />
No que diz respeito à terceira dimensão, a da destruição<br />
do eu, Heidegger ressaltou que o Daisen desenvolvido<br />
no mundo pode ser capaz de se autoquestionar, se<br />
enfrentar, destruir o projeto firmado com os outros <strong>em</strong><br />
prol de conquistar a oportunidade de ser ele mesmo,<br />
transcendendo, iluminando suas próprias obscuridades.<br />
S<strong>em</strong> alegria n<strong>em</strong> cuidado, nosso pai encalcou o<br />
chapéu e decidiu um adeus para a gente. N<strong>em</strong><br />
falou outra palavra, não pegou matula e trouxa,<br />
não fez alguma recomendação. Nossa mãe, a<br />
gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu<br />
somente alva de pálida, mascou o beiço e<br />
bramou: “- Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”<br />
(ROSA, 2001, p. 80).<br />
Ainda a respeito do trecho anterior, constatou-se que<br />
a b<strong>em</strong> marcada seriedade do pai, sua característica de<br />
pouco falar e de praticamente não se deixar conhecer,<br />
isto é, seu profundo silêncio <strong>em</strong> relação às suas ações<br />
no mundo desencadeou o seu questionamento interno,<br />
visto que ao negar sua vivência social, ele foi impulsionado<br />
a desbravar sua porção transcendente, desvinculando-se<br />
daquilo que não julgava mais necessário à sua existência.<br />
Em contrapartida, o silêncio desse pai desencadeou<br />
também os tantos questionamentos do filho. Na<br />
verdade, por meio dos questionamentos do narrador,<br />
é possível inferir o constatado questionamento do<br />
personag<strong>em</strong> pai. Em relação a isso, chegou-se a perceber<br />
uma incisiva diferença entre as referidas indagações.<br />
Enquanto o pai, <strong>em</strong> seu silêncio, nega e questiona sua<br />
vivência no mundo circundante, almejando alcançar o<br />
seu universo transcendente, o filho faz questionamentos<br />
próprios de qu<strong>em</strong> ainda apenas é um “ente” no mundo,<br />
uma vez que põe <strong>em</strong> julgamento a sanidade do pai, a<br />
função dele como esposo e como pai, sofrendo até com<br />
o fato de passar a vida tentando compreender a postura<br />
daquele hom<strong>em</strong>.<br />
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às<br />
penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca<br />
se acostumou, <strong>em</strong> si, na verdade. Tiro por mim,<br />
que, no que queria, e no que não queria, só com<br />
nosso pai me achava: assunto que jogava para<br />
trás meus pensamentos. O severo que era, de<br />
não se entender, de maneira nenhuma, como ele<br />
agüentava (ROSA, 2001, p. 82).<br />
Nunes (2002), ao relatar algumas características da<br />
teoria de Heidegger, chegou a evidenciar que para se<br />
alcançar a destruição do eu, passando a fazer parte<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
79
80<br />
da terceira dimensão já apontada, é preciso haver a<br />
explosão do sentimento de angústia no que se refere à<br />
vivência do Daisen no mundo.<br />
Dessa maneira, no conto observado, notou-se<br />
que Guimarães não se preocupou <strong>em</strong> descrever os<br />
momentos de angústia do personag<strong>em</strong> pai pela voz do<br />
filho, o narrador. O próprio silêncio do personag<strong>em</strong> e<br />
sua int<strong>em</strong>pestiva atitude fizeram com que surgiss<strong>em</strong><br />
inferências a respeito desse sentimento. Já que o pai não<br />
interferia <strong>em</strong> nada dentro de sua vida familiar e acatava<br />
o que sua esposa estabelecia, subentendeu-se que o não<br />
ter voz seria tão angustiante como consequent<strong>em</strong>ente<br />
instigante. Angustiante pelo fato de ele perceber que<br />
o seu estar no mundo possuía uma representatividade<br />
mais rotineira do que significativa. E instigante porque<br />
a partir dessa quietude inquietante, o personag<strong>em</strong> de<br />
repente sentiu-se pronto para a mudança, a ruptura,<br />
a destruição daquele eu que era mais coletivo do que<br />
individual e para a busca de sua significância existencial.<br />
Nosso pai suspendeu a resposta. [...] Ele só<br />
retornou a olhar <strong>em</strong> mim, e me botou a bênção,<br />
com gesto me mandando para trás. Fiz que vim,<br />
mas ainda virei, na grota do mato, para saber.<br />
Nosso pai entrou na canoa e desamarrou pelo<br />
r<strong>em</strong>ar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por<br />
igual, feito um jacaré, comprida longa (ROSA,<br />
2001, p. 80).<br />
Pela tão imprevisível atitude do pai, compreendeu-se<br />
que tal personag<strong>em</strong>, ao angustiar-se, teve a sensação de<br />
não “ser”, de ser nada e, portanto, direcionou sua vida<br />
à aquisição desse “ser”. De acordo com Cotrim (1999),<br />
os indivíduos têm duas opções ao se encontrar<strong>em</strong> à<br />
beira do sentimento de angústia: a de fugir e voltar a<br />
se entregar à mera existência do Daisen ou superar o<br />
estado angustiante, deixando florescer o “ser” dentro<br />
de si. O pai, <strong>em</strong> A terceira marg<strong>em</strong> do rio, optou por<br />
fazer a travessia dentro de si e encontrar o seu “ser”,<br />
deixando <strong>em</strong>ergir a sua terceira marg<strong>em</strong>:<br />
De dia ou de noite, com sol ou aguaceiros, calor,<br />
sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano,<br />
s<strong>em</strong> arrumo, só com o chapéu velho na cabeça,<br />
por todas as s<strong>em</strong>anas, e meses, e aos anos – s<strong>em</strong><br />
fazer conta do se-ir do viver (ROSA, 2001, p. 82).<br />
Para o filho, o narrador, o personag<strong>em</strong> pai não se<br />
dava conta mais do viver que ele conhecia e que<br />
parecia julgar como sendo único, o viver no mundo<br />
social, dos “entes”. Agora, segundo os estudos de<br />
Heidegger, o pai estava desfrutando de um viver não<br />
limitado por determinações t<strong>em</strong>porais - e porque não<br />
dizer - espaciais. No mundo essencial do “ser”, tais<br />
limitações têm seus sentidos dissolvidos e existe apenas<br />
a tranquilidade da travessia que também não cobra<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
Ana Paula da Silva Santos; Cláudia Ferreira de Paula Borges<br />
n<strong>em</strong> trocas de roupas, n<strong>em</strong> de aquisições, n<strong>em</strong> de<br />
comportamento, mas apenas sugere a cont<strong>em</strong>plação.<br />
Dessa maneira, no comportamento do pai observouse<br />
também que o narrador ocupou importante papel<br />
dentro da trama, sendo um dos personagens principais.<br />
Assim, analisando seu comportamento pela ótica da<br />
teoria heideggeriana, percebeu-se que ao observar<br />
por toda a sua vida a diferente atitude de seu pai, o<br />
personag<strong>em</strong> narrador vivenciou com intensidade a sua<br />
condição de Daisen, de agir no mundo circundante. Essa<br />
constatação foi verificada visto que várias indagações<br />
foram feitas por ele, indagações de não aceitação<br />
daquela atitude de se refugiar no meio de um rio.<br />
N<strong>em</strong> queria saber de nós; não tinha afeto? Mas,<br />
por afeto mesmo, de respeito, s<strong>em</strong>pre que às<br />
vezes me louvavam, por causa de algum meu bom<br />
procedimento, eu falava: –“Foi pai que um dia me<br />
ensinou a fazer assim...[...] (ROSA, 2001, p. 83).<br />
A partir desse trecho, pôde-se perceber que as<br />
indagações que surgiam faziam correspondência apenas<br />
com o mundo do Daisen, com o que era cabível de<br />
ser cobrado <strong>em</strong> relação ao modo de ser do hom<strong>em</strong><br />
no mundo, <strong>em</strong> relação ao “ente”. O próprio discurso<br />
do narrador é prova de que aquilo que o pai ensinou<br />
antes de construir a canoa, antes de ir para o rio, era o<br />
que possuía importância e era considerado como sendo<br />
atitudes boas: “Foi pai que um dia me ensinou a fazer<br />
assim... [...]” (ROSA, 2001, p. 83).<br />
No desenvolvimento do conto rosiano, notou-se<br />
que o filho não aceitava a escolha do pai, porque não<br />
a compreendia. Essa não compreensão surgiu pelo<br />
fato de ele viver apenas no fato da existência e no<br />
desenvolvimento dessa existência, não tendo, portanto,<br />
sua subjetividade alterada. Preponderant<strong>em</strong>ente, o<br />
narrador do texto possui uma existência inautêntica,<br />
isto é, não se apropriou de seu Daisen a ponto de vencer<br />
seus próprios medos e encontrar sua essência, ele não<br />
possui a ele mesmo (RÉE, 2000). Em algumas passagens<br />
do texto, esse raciocínio ganha relevância:<br />
Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer<br />
me casar. Eu permaneci, com as bagagens da<br />
vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na<br />
vagação , no rio no ermo – s<strong>em</strong> dar razão de seu<br />
feito (ROSA, 2001, p. 84).<br />
De acordo com a ótica heideggeriana, a vida<br />
do personag<strong>em</strong> narrador do conto de Rosa foi<br />
absolutamente inautêntica, a ponto de ele carregar como<br />
fardo a escolha de ali ficar esperando pelo pai, cuidando<br />
do mesmo. Na verdade, a mensag<strong>em</strong> do pai era de<br />
libertação e não de condenação. Porém, para qu<strong>em</strong> vive<br />
dentro das imposições do mundo circundante e apenas<br />
“está-aí” nele, não há a possibilidade de rompimento
com o que é tradicionalmente imposto. Assim, a voz da<br />
consciência como essência transforma-se <strong>em</strong> um mero<br />
modo de se administrar o que se encontra no mundo<br />
do Daisen. É assim que surg<strong>em</strong> os sentimentos de culpa<br />
e de angústia. Tais sentimentos puderam ser notados<br />
no seguinte fragmento: “Sou um hom<strong>em</strong> de tristes<br />
palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?”<br />
(ROSA, 2001, p. 84).<br />
Diferent<strong>em</strong>ente do personag<strong>em</strong> pai, o personag<strong>em</strong><br />
filho, no referido texto, passa sua existência, enquanto<br />
“ente”, buscando uma explicação racional para a<br />
atitude de seu pai e consequent<strong>em</strong>ente fugindo de suas<br />
próprias constatações. Isso pelo motivo de s<strong>em</strong>pre<br />
negar para si, como o restante das pessoas de sua<br />
família, a possibilidade de seu pai estar louco, visto que<br />
a loucura seria racionalmente uma justificativa para<br />
aquela decisão que causava estranhamento:<br />
S<strong>em</strong> fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa<br />
casa a palavra doido não se falava, nunca mais se<br />
falou, os anos todos, não se condenava ninguém<br />
de doido, Ninguém é doido. Ou então, todos<br />
(ROSA, 2001, p. 84).<br />
Como se pode notar, no fragmento apresentado, os<br />
questionamentos e a culpa do filho já se apresentavam<br />
tão crônicos que, já mais velho, a dúvida sobre a<br />
sanidade recaía sobre ele mesmo. Porém, sendo assim,<br />
a justificativa mais plausível é a de que ninguém sofria<br />
com a loucura: n<strong>em</strong> seu pai, n<strong>em</strong> ele mesmo, ninguém. É<br />
evidente que a atitude do pai, como foi explicitado nesta<br />
seção, carregava consigo conotações de transcendência<br />
e superação, isto é, conotações relacionadas ao mundo<br />
essencial e não ao existencial. A indagação referente<br />
à loucura pairava, na verdade, no universo do mundo<br />
circundante, o mundo limitado e restrito dos “entes”.<br />
Levando <strong>em</strong> consideração os apontamentos feitos<br />
até aqui, chegou-se à constatação de que o personag<strong>em</strong><br />
filho, pela angústia, teve vontade de amenizar a situação<br />
do pai, oferecendo-se para tomar seu lugar. Ele<br />
conseguiu ler qual era o legado deixado por ele ao se<br />
isolar naquela canoa, naquele rio:<br />
Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava<br />
muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim,<br />
ele apareceu, aí e lá, o vulto. [...] Chamei umas<br />
quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e<br />
declarado, tive que reforçar a voz: –“Pai, o senhor<br />
está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor v<strong>em</strong>,<br />
não carece mais... O senhor v<strong>em</strong>, e eu, agora mesmo,<br />
quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu<br />
lugar, do senhor, na canoa!...” (ROSA, 2001, p. 85).<br />
O que não houve, já no fim do conto, foi a tomada de<br />
atitude que a superação da angústia exigiria para que se<br />
alcançasse a plenitude do “ser”, depois de se questionar<br />
Espelhos d’água: reflexos filosóficos <strong>em</strong> Rosa, reflexos sociológicos <strong>em</strong> Cabral<br />
e de se apropriar do Daisen no mundo circundante,<br />
determinando a própria existência (COTRIM, 1999):<br />
[...] E eu não podia... Por pavor, arrepiados os<br />
cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento<br />
desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir:<br />
da parte de além. E estou pedindo, pedindo, um<br />
perdão (ROSA, 2001, p. 85).<br />
O personag<strong>em</strong> filho, de acordo com os escritos<br />
compilados por Heidegger, nega o legado deixado pelo<br />
pai, pois seus medos foram maiores que sua própria<br />
decisão. Mais exatamente, a decisão de ficar no lugar<br />
do pai possuiu conexão com os sentimentos de culpa,<br />
de r<strong>em</strong>orso e não com os sentimentos de equilíbrio e<br />
de superação cravados na atitude paterna. Para o filho,<br />
o ato de estar no meio do rio, dentro da canoa seria um<br />
dever pesado, o que não desmereceu o peso de não ter<br />
trocado de lugar com seu pai.<br />
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que<br />
ninguém soube mais dele. Sou hom<strong>em</strong>, depois<br />
desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar<br />
calado. Sei que agora é tarde, e t<strong>em</strong>o abreviar<br />
com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então,<br />
ao menos, que, no artigo da morte, pegu<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />
mim, e me deposit<strong>em</strong> também numa canoinha de<br />
nada, nessa água que não pára, de longas beiras:<br />
e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro --- o rio<br />
(ROSA, 2001, p. 85).<br />
De acordo com Nunes (2002), para Heidegger, o<br />
contato com o “ser” requer a consciência do ser-paraa-morte.<br />
Porém, a morte, no contexto heideggeriano,<br />
possui referência com a finitude da existência como<br />
Daisen e início da existência como essência. O filho, não<br />
entrando <strong>em</strong> contato definitivo com o seu próprio “ser”,<br />
morreu <strong>em</strong> vida e fez da promessa da morte a sua única<br />
espera, isto é, viveu apenas para o finito, limitando a sua<br />
vida pelas margens rasas, superficiais. O seu cursar não<br />
possuiu águas lisas, inteiras e profundas como as de seu<br />
pai. O seu cursar foi limitado e desequilibrado.<br />
Conclusão<br />
Pensando <strong>em</strong> se fazer um trabalho que englobasse<br />
não só a Literatura, mas também outras áreas do<br />
conhecimento humano, foi proposto, a partir do<br />
simbolismo da “imag<strong>em</strong>-palavra rio”, o estudo do<br />
po<strong>em</strong>a O cão s<strong>em</strong> plumas <strong>em</strong> comunhão com princípios<br />
sociológicos, b<strong>em</strong> como a análise do texto A terceira<br />
marg<strong>em</strong> do rio relacionada a conceitos do universo<br />
filosófico. Dessas propostas, algumas considerações<br />
puderam ser constatadas.<br />
Sobre o simbolismo de “rio” e as ideias sociológicas,<br />
<strong>em</strong> O cão s<strong>em</strong> plumas, notou-se que de maneira geral o<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
81
82<br />
referido simbolismo foi edificado pela metáfora do cão<br />
s<strong>em</strong> plumas e representou, com concretude significativa,<br />
a estagnação da vida dos seres sobreviventes à beira do<br />
Capibaribe. Tais seres, praticamente desprovidos de<br />
consciência humana, passaram a ser o reflexo, o produto<br />
de um meio, passaram a ex<strong>em</strong>plificar comportamentos<br />
padronizados, limitados, restritos à condição de mera<br />
sobrevivência que os legitimou como sendo seres<br />
animalizados, os homens selvagens.<br />
No que se refere à análise do simbolismo de “rio” à<br />
luz dos preceitos filosóficos <strong>em</strong> A terceira marg<strong>em</strong> do rio,<br />
inferiu-se que, partindo da alegoria da terceira marg<strong>em</strong>,<br />
Guimarães escreveu um conto caracteristicamente<br />
marcado por conceitos filosóficos, sendo a criação<br />
da própria alegoria da terceira marg<strong>em</strong> um conceito<br />
basicamente proveniente do universo da filosofia:<br />
a terceira marg<strong>em</strong> seria a marg<strong>em</strong> da completude,<br />
da plenitude existencial, aquela porção humana que<br />
vai além dos aspectos triviais da existência e atinge a<br />
própria transcendência dessa existência.<br />
Assim sendo e diante do exposto nesta seção, foi<br />
possível se pensar <strong>em</strong> alguns eixos distintivos existentes<br />
na apresentada proposta comparativa. Desse modo,<br />
do ponto de vista t<strong>em</strong>ático, <strong>em</strong> O cão s<strong>em</strong> plumas,<br />
o “rio” está para o plano do concreto, que limita, é<br />
espesso, anula, ao passo que <strong>em</strong> A terceira marg<strong>em</strong> do<br />
rio, o simbolismo de “rio” carrega consigo a imag<strong>em</strong><br />
de expansão, libertação, transcendência, ocupando o<br />
mundo da realidade subjetiva. É por isso que no texto<br />
cabralino, o enfoque é de denúncia de uma castigada<br />
realidade, é objetivo, funcional, social. Já <strong>em</strong> Guimarães<br />
Rosa, o enfoque t<strong>em</strong>ático adquire conotações,<br />
representa o mundo das ideias, das concepções.<br />
Resumidamente, <strong>em</strong> Cabral, houve a exposição de<br />
consciências turvas, enlameadas. O simbolismo de<br />
“rio” no contexto cabralino mapeou interferências que<br />
se apresentaram de fora para dentro. Em Rosa, houve<br />
a exposição de uma consciência clarividente, de um<br />
cursar liso, solto, livre, o cursar do personag<strong>em</strong> pai. As<br />
influências do “rio” aconteceram de dentro para fora.<br />
As reflexões oriundas dos constructos teóricos<br />
apresentados proporcionaram o estudo verticalizado<br />
de duas reverenciadas obras do modernismo brasileiro.<br />
Portanto, o desenvolvimento dessa investigação<br />
apontou caminhos para a realização de uma prática<br />
docente baseada na relação dialética da tríade<br />
Sociologia-Literatura-Filosofia.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
Ana Paula da Silva Santos; Cláudia Ferreira de Paula Borges<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
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MIRRORS OF WATER: PHILOSOPHICAL REFLECTIONS<br />
IN ROSA, SOCIOLOGICAL REFLECTIONS IN CABRAL<br />
ABSTRACT: This study aimed to compare two texts of Brazilian modernist literature: O cão s<strong>em</strong> plumas, by João<br />
Cabral de Melo Neto, and A terceira marg<strong>em</strong> do rio, by João Guimarães Rosa, from the symbolic perspective of<br />
the image-word river and reaching philosophical and sociological approaches. Through this general objective, the<br />
research aimed to investigate the sociological implications in the Cabral’s text, from the symbolic value of imageword<br />
river and examined the operation of the symbolism of that image-word in the constitution of philosophical<br />
principles in Rosa. For this reason, this study fitted on the parameters of the qualitative approach (CHIZZOTTI,<br />
2005), by using content analysis as a tool of analysis (BARDIN, 1977) the texts mentioned. To structure the critical<br />
fortune of this research, we used the conceptual pronciples of: Villaça (2003), Nadai (1982), Almeida [1970],<br />
Barbosa (2002), Bosi (1994), Coutinho (1986), Sperber (1982), Kaiser (1980), R<strong>em</strong>ak (1994), Carvalhal (2006),<br />
Chevalier and Gheerbrant (2007), Wellek and Waren (1955), Nunes (2002), Ree (2000), Cotrim (1999), Chinoy<br />
(1993) and Cândido (2000). Research like this one proposing to expand the scientific universe of comparative<br />
literature, and suggest ways to teaching practice based on establishment of relations between philosophy, literature,<br />
sociology.<br />
KEYWORDS: Philosophy; literature; river; symbol; sociology.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 73-84<br />
Ana Paula da Silva Santos; Claudia Ferreira de Paula Borges
PEGADAS DO FANTÁSTICO EM<br />
OS NEGROS, DE MONTEIRO LOBATO<br />
Ana Maria Zanoni da Silva 1<br />
RESUMO: Este artigo discute a configuração do fantástico na trama ficcional do conto Os negros do escritor<br />
brasileiro Monteiro Lobato, objetivando d<strong>em</strong>onstrar a consciência estética do escritor <strong>em</strong> relação tanto à obtenção<br />
do efeito estético desejado, quanto à adaptação e atualização dos motivos e t<strong>em</strong>as mais propícios a irrupção do<br />
fantástico na narrativa.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Fantástico; consciência estética; atualização; Monteiro Lobato.<br />
Introdução<br />
Histórias de teor horripilantes e povoadas por<br />
vampiros, espectros e seres disformes compõ<strong>em</strong><br />
o imaginário popular desde os t<strong>em</strong>pos primitivos.<br />
Bordini (1987) afirma que vampiros e fantasmas<br />
são mencionados nos Vedas, na bíblia judaica e nos<br />
clássicos gregos. Na Idade Clássica as manifestações<br />
do sobrenatural vinculavam-se à cultura popular e ao<br />
paganismo religioso e, portanto, não geravam o horror.<br />
Porém, com a divisão do universo entre b<strong>em</strong> e mal,<br />
Deus e o d<strong>em</strong>ônio, luz e treva, feita pelo cristianismo<br />
durante a Idade Média, o el<strong>em</strong>entos sobrenaturais<br />
passaram a ser vistos como atuantes na organização<br />
do real. Naquela época, portanto, o sobrenatural não<br />
provocava o efeito de horror.<br />
Na concepção de Bordini (1987), o gênero horror<br />
efetivou-se durante os séculos XVIII e XIX, momento<br />
<strong>em</strong> que houve uma mudança nas formas de percepção<br />
do real, propiciada pelo ateísmo liberal e o materialismo<br />
capitalista. Naquele período, o hom<strong>em</strong> passou a crer<br />
na ciência e na razão e a desconfiar dos misticismos e<br />
da loucura. Mediante o descentramento e a alienação<br />
humana, que vieram à tona naquele período, surge o<br />
conto gótico, cujo efeito estético faz o leitor oscilar<br />
entre a explicação metafísica e física do universo que<br />
o cerca, permitindo assim a irrupção do sobrenatural.<br />
O marco da literatura gótica, ou seja, daquela <strong>em</strong> que<br />
há a irrupção do sobrenatural para provocar o efeito<br />
de horror, v<strong>em</strong> a ser o livro O castelo de Otranto, de<br />
Horace Walpole, publicado <strong>em</strong> 1764, obra <strong>em</strong> que entra<br />
<strong>em</strong> cena o castelo <strong>em</strong> estilo gótico, com escadarias,<br />
corredores labirínticos, catacumbas úmidas e trevosas,<br />
habitado por vilões movidos por forças malévolas e<br />
seres fantasmagóricos.<br />
Para Louis Vax, o fantástico presente nos romances<br />
góticos constitui um maravilhoso aterrorizante, porque<br />
<strong>em</strong>bora os castelos assombrados sejam inquietantes, eles<br />
são concebidos como imaginários, ou seja, irreais. Na<br />
concepção de Vax, o fantástico ocorre quando homens<br />
como nós, que habitam o real, são “colocados de repente<br />
na presença do inexplicável” (VAX, 1974, p.6).<br />
Na narrativa lobatiana, o medo frente ao inexplicável se<br />
faz notar no conto Os negros, cujas pegadas do fantástico,<br />
na configuração da trama, pod<strong>em</strong> ser observadas por<br />
meio da análise que realizar<strong>em</strong>os a seguir.<br />
1 A viag<strong>em</strong> de Jonas<br />
O brasileiro José Bento Monteiro Lobato (1882-<br />
1948) tornou-se conhecido pela crítica devido a<br />
uma diversificada produção literária geralmente<br />
dividida pela crítica <strong>em</strong> duas categorias distintas.<br />
Na primeira categoria estão as histórias voltadas ao<br />
público infantil como O pica-pau amarelo, Reinações<br />
de Narizinho, As caçadas de Pedrinho, Emília no país<br />
da gramática, M<strong>em</strong>órias da Emília, O poço do Visconde<br />
etc. Na segunda, enquadram-se as histórias de cunho<br />
nacionalista, ligadas ao regionalismo brasileiro, como<br />
Urupês, O Choque das Raças, Escândalo do Petróleo e<br />
Negrinha – coletânea que reúne contos do escritor, da<br />
qual extraímos o conto <strong>em</strong> apreço.<br />
O conto Os negros foi publicado por Monteiro Lobato<br />
<strong>em</strong> 1922 e retrata a viag<strong>em</strong> do narrador homodiegético<br />
e seu amigo Jonas pelas regiões <strong>em</strong> que há um<br />
século existia a cultura cafeeira. Em conformidade<br />
com Zilberman (1987), o narrador autodiegético ou<br />
homodiegético é uma escolha estética comum nos<br />
contos <strong>em</strong> que o fantástico se revela gradativamente.<br />
Em Os negros, o narrador homodiegético constitui uma<br />
peça fundamental na criação do efeito de fantástico,<br />
porque, além de revelar-se conhecedor dos “casos”<br />
contados pelos negros, ele não será o protagonista dos<br />
fatos narrados, mas a test<strong>em</strong>unha dos acontecimentos<br />
insólitos.<br />
Lobato não caracteriza o narrador de forma direta,<br />
1 Doutora <strong>em</strong> Estudos Literários (FCLAR/UNESP/Araraquara). Professora do curso de Comunicação Social, da Universidade do Estado de Minas Gerais<br />
(UEMG) - Campus de Frutal. Avenida Professor Mário Palmério, 1001 – CEP: 38.200-000, Frutal – MG, e-mail: anazanoni_@hotmail.com<br />
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pois o leitor não toma conhecimento de seu nome,<br />
profissão ou mesmo do motivo da viag<strong>em</strong> ao sertão. A<br />
caracterização ocorre de forma indireta e, por meio das<br />
falas do narrador, somos informados de que se trata de<br />
alguém experiente e conhecedor das histórias narradas<br />
pelos negros, tal como ele mesmo afirma neste trecho<br />
da trama: “– Dum preto velho que foi escravo do<br />
defunto capitão Aleixo, fundador da fazenda, ouvi coisas<br />
de arrepiar...” (LOBATO, 1987, p.46). As histórias dos<br />
negros provocam medo no narrador, porque estão<br />
vinculadas às irrupções do sobrenatural, integrando<br />
o quadro das superstições populares transmitidas de<br />
geração a geração, por meio da voz de um m<strong>em</strong>bro<br />
mais velho, cuja função era desfiar, <strong>em</strong> “causos”, as<br />
aparições de almas do outro mundo, do lobisom<strong>em</strong> etc.<br />
Jonas, companheiro do narrador, desdenha das<br />
histórias de fantasmas e seres espectrais, revelandose<br />
racional e incrédulo ao afirmar: “– De arrepiar a ti,<br />
que a mim, b<strong>em</strong> sabes, só me arrepiam correntes de<br />
ar...” (LOBATO, 1987, p. 46). A incredulidade de Jonas<br />
torna-se fundamental à existência do efeito de horror,<br />
porque, segundo afirma Zilberman, “não pode existir o<br />
efeito de horror enquanto há crença mítica ou religiosa,<br />
pagã ou cristã, na existência efetiva do sobrenatural”<br />
(ZILBERMAN, 1987, p. 12). Para que o fantástico se<br />
concretize, segundo Vax, faz-se necessária “a irrupção<br />
dum el<strong>em</strong>ento sobrenatural num mundo submetido à<br />
razão” (VAX, 1974, p. 14). O racionalismo de Jonas,<br />
permeado pela zombaria, compõe o terreno propício ao<br />
fantástico, pois o descrente, ironicamente, se tornará o<br />
elo entre dois mundos.<br />
Ao ser<strong>em</strong> pegos por um t<strong>em</strong>poral, Jonas e o<br />
narrador abrigam-se <strong>em</strong> uma antiga fazenda <strong>em</strong><br />
ruínas, de má nota, ou seja, com referências negativas<br />
e conhecidas, pelo povo, como “casa do inferno”. A<br />
fazenda pertenceu ao capitão Aleixo, t<strong>em</strong>ido pelos<br />
escravos devido à maldade no trato com os negros. A<br />
caracterização da casa grande retoma alguns traços dos<br />
castelos medievais, pois a construção ainda conserva o<br />
terreiro forrado a pedras e está envolta pelo matagal,<br />
como nos relata o narrador:<br />
Os esteios, da cabina eterna, tinham nabos á<br />
[sic] mostra – tantos enxurros correram por<br />
ali erodindo o solo. Por eles marinhava as<br />
caetaninhas, essa mimosa alcatifa dos tapumes,<br />
toda rosetada de flores amarelas e pingentada de<br />
milhõezinhos de bico, cor de canário.<br />
Também abobreiras viçavam na tapera, galgando<br />
vitoriosas pelos espeques para enfolhar<strong>em</strong><br />
no alto, entr<strong>em</strong>eio das ripas e caibros a nu.<br />
Suas flores grandalhudas, tão caras ás [sic]<br />
mamangavas, manchavam d’amarelo pálido o<br />
tom cru da folhag<strong>em</strong> verde-negra (LOBATO,<br />
1987, p. 46).<br />
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Ana Maria Zanoni da Silva<br />
Lobato introduz o cenário típico do sertão brasileiro,<br />
porque não se trata do castelo, mas da casa grande, local<br />
que retém <strong>em</strong> seu interior r<strong>em</strong>iniscências de um t<strong>em</strong>po<br />
<strong>em</strong> que a dor impingida sobre o negro e os mais fracos,<br />
revela-se mais horripilante que os espectrais habitantes<br />
dos castelos longínquos. A casa grande era o centro das<br />
atenções nas propriedades agrícolas brasileira. Tal como<br />
nos castelos medievais, a vida na fazenda se organiza <strong>em</strong><br />
torno do sinhô, o rei da casa grande. No sertão, os seres,<br />
cuja existência foi marcada pela maldade e tirania, são<br />
convertidos <strong>em</strong> fantasmas. Não é preciso a morte para<br />
convertê-los <strong>em</strong> espectros, pois foi durante a vida, por<br />
meio de atitudes e gestos de extr<strong>em</strong>a maldade de seus<br />
superiores, que o lado obscuro e horripilante do hom<strong>em</strong>,<br />
b<strong>em</strong> próximo à fera, vinha à tona.<br />
Na trama articulada por Lobato, o capitão Aleixo,<br />
dono da fazenda, revela-se um integrante do elenco<br />
típico de personagens do universo fantástico, pois é<br />
dado a conhecer como o vilão que exerce e compactua<br />
com a maldade dos brancos sobre os escravos.<br />
A tirania dos bancos torna-se motivo de chacota na<br />
voz do zombeteiro Jonas, pois ao se deparar<strong>em</strong> com um<br />
preto velho, ex-escravo do Capitão Aleixo, cujo nome era<br />
Tio Bento, ped<strong>em</strong> a ele pouso e comida. Ao indagar se há<br />
“angu” para se comer, Jonas faz o preto velho rir e dizer<br />
que o t<strong>em</strong>po “do angu com ‘bacalhau’, já havia acabado”. O<br />
substantivo bacalhau foi usado <strong>em</strong> sentido figurado, porque<br />
como nos informa o escritor <strong>em</strong> nota de rodapé, trata-se<br />
de um tipo de chicote com vários rabos, com o qual os<br />
feitores chibatavam os negros e os infratores.<br />
A ausência de espaço na choupana do preto velho<br />
motiva os viajantes a procurar<strong>em</strong> pouso na casa grande. À<br />
advertência do negro dos arrependimentos de se dormir<br />
na casa grande, Jonas responde com mais uma chacota:<br />
“– Arrepender-nos-<strong>em</strong>os também depois, amanhã, mas<br />
já com a dormida no papo, [...]” (LOBATO, 1987, p. 48).<br />
Entre advertências e chacotas, está o leitor,<br />
acompanhando o relato e começando sentir os primeiros<br />
efeitos da hesitação, que nessa sequência da narrativa<br />
revela-se mesclada à curiosidade, pois o narrador<br />
menciona a casa grande, descreve brev<strong>em</strong>ente seu<br />
exterior, mas direciona-se, juntamente com Jonas, para<br />
a casa do preto velho. A falta de espaço na choupana<br />
novamente os encaminha para a casa grande, espaço<br />
<strong>em</strong> que os acontecimentos permeados pela intrusão do<br />
irreal se desencadearão.<br />
A descrição da casa grande, nessa parte da trama, é<br />
feita pelo narrador de forma mais detalhada e aproxima<br />
o casarão ainda mais à arquitetura dos castelos medievais<br />
como pod<strong>em</strong>os constatar no trecho a seguir:<br />
Era o casarão clássico das antigas fazendas<br />
negreiras. Assobradado, erguido <strong>em</strong> alicerces e<br />
muramento de pedra até meia altura e daí por
diante de pau a pique. Esteios de cabreuva,<br />
entr<strong>em</strong>ostrando-se picados a enxó nos trechos<br />
donde se esboroara o reboco. Janelas e<br />
portas <strong>em</strong> arco, de bandeiras <strong>em</strong> pandarecos.<br />
Pelos interstícios da pedra amoitavam-se as<br />
samambaias. Num cunhal crescia anosa figueira,<br />
enlaçando as pedras na terrível cordoalha<br />
tentacular. Á [sic] porta de entrada ia ter uma<br />
escadaria dupla, com alpendre <strong>em</strong> cima e<br />
parapeito esbornicado (LOBATO, 1987, p. 49).<br />
A casa grande abandonada faz parte dos espaços<br />
mais propícios para o efeito de fantástico e, Lobato<br />
intensifica o estranhamento ao aproximar a arquitetura<br />
do casarão à dos castelos. Tal como os castelos, o<br />
casarão encontra-se incrustado <strong>em</strong> alicerces de pedra,<br />
com janelas <strong>em</strong> arco, cuja forma r<strong>em</strong>ete ao estilo<br />
gótico. A figueira gigantesca envolvendo a casa com<br />
tentáculos r<strong>em</strong>ete o leitor à figura de um espectro<br />
que se mantém na posição de possuidor de um espaço<br />
que fora glorioso <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos passados e do qual não<br />
deseja despregar-se. A figueira encapsula a metáfora da<br />
posse eterna, porque <strong>em</strong>bora morto, o capitão Aleixo<br />
se deixa notar pelos tentáculos da maldade com que<br />
envolvera aquele local anos atrás.<br />
A cont<strong>em</strong>plação da casa grande provoca saudades<br />
no narrador e mexe com o estado psíquico de Jonas,<br />
transformando-o de brincalhão <strong>em</strong> hom<strong>em</strong> sério, com<br />
olhos fixos na casa, tal como nos conta o narrador: “[...]<br />
de olhar pregado na casa como qu<strong>em</strong> recorda. Perdera<br />
o bom humor, o espírito brincalhão de inda há pouco.<br />
Emudecera” (LOBATO, 1987, p.49).<br />
A expressão figurada introduzida pela forma modal<br />
“como qu<strong>em</strong> recorda” estabelece o elo entre presente<br />
e passado, instaurando o nó desencadeador do<br />
fantástico. Serão l<strong>em</strong>branças que atormentam Jonas?<br />
Como ele poderia l<strong>em</strong>brar algo acontecido <strong>em</strong> um<br />
t<strong>em</strong>po tão longínquo?<br />
Os olhos pregados, fixos <strong>em</strong> um determinado ponto,<br />
na cultura popular, estão vinculados à questão do “mau<br />
olhado”. Porém, segundo Vax, “o olhar também pode<br />
representar um papel maléfico” (VAX, 1974, p. 38). Os<br />
olhos fixos de Jonas não transmit<strong>em</strong> indícios de mau<br />
olhado, mas revelam o lado maléfico da forma com que<br />
Aleixo concebia o mundo. Os olhos de Jonas enceram<br />
a consciência de Fernão, português que manipulou a<br />
mucama da filha do coronel para auxiliá-lo na conquista<br />
da sinhazinha. Na trama configurada por Lobato, amor<br />
e morte andam de mãos dadas, revelando a face<br />
obscura e fantástica que esse sentimento provoca.<br />
Jonas permanecera imóvel, no mesmo lugar, a<br />
cont<strong>em</strong>plar a casa. Diante da imobilidade do companheiro,<br />
o narrador pergunta: “– Estás louco, rapaz?” (LOBATO,<br />
1987, p. 50). Além de revelar-se desnorteado com a<br />
Pegadas do fantástico <strong>em</strong> Os negros, de Monteiro Lobato<br />
atitude do companheiro, o narrador também hesita<br />
entre a sanidade e a insanidade do amigo.<br />
Segundo Todorov, o âmago do fantástico reside no<br />
fato de que no mundo conhecido por nós, surge “um<br />
acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste<br />
mesmo mundo familiar” (TODOROV, 1992, p. 30). Ao ser<br />
surpreendido pela repentina mudança no comportamento<br />
zombeteiro de Jonas, sobretudo no aspecto que diz<br />
respeito aos fatos sobrenaturais, o narrador busca uma<br />
explicação para a alteração <strong>em</strong>ocional do companheiro.<br />
Como a visão de Jonas parado e imóvel não é uma ilusão de<br />
ótica, o narrador opta por uma solução explicável pelas leis<br />
do mundo que lhe é familiar, atribuindo o comportamento<br />
estranho à loucura.<br />
A caracterização do interior da casa grande intensifica<br />
a atmosfera de horror, pois ela está repleta de morcegos<br />
e suindaras. O termo suindara, <strong>em</strong> conformidade com<br />
o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2004, p.<br />
1891) é de orig<strong>em</strong> tupi u-in, e designa aves conhecidas<br />
popularmente como coruja-branca, coruja-das-torres<br />
e rasga-mortalha. A coruja rasga-mortalha recebe essa<br />
denominação devido ao ruído que suas asas produz<strong>em</strong><br />
durante o voo, s<strong>em</strong>elhante ao rasgar de tecidos. Na<br />
cultura popular, quando essa coruja pousa sobre um<br />
telhado <strong>em</strong>itindo o som s<strong>em</strong>elhante ao rasgar de<br />
tecidos, significa a morte de algum morador. A suindara,<br />
habitante da casa grande, anuncia o terror já acontecido,<br />
pois os antigos habitantes foram ceifados pela morte<br />
horripilante, proveniente da incompreensão, arrogância<br />
e tirania que ostentavam o lado espectral de Aleixo.<br />
Gradativamente, o narrador focaliza animais, aves e<br />
móveis despedaçados, caracterizando assim o espaço<br />
de forma mais adequada à irrupção do fantástico.<br />
Nas passagens <strong>em</strong> que há caracterização do cenário,<br />
o narrador funciona apenas como uma câmera,<br />
selecionando imagens e descrevendo-as ao leitor.<br />
Porém, a partir do momento que Jonas é tomado pelo<br />
alheamento, a voz passa a fazer intromissões irônicas.<br />
Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que Jonas revela-se alheado,<br />
há uma inversão de papéis, e o narrador adquire uma<br />
postura irônica perante a possibilidade da existência de<br />
aparições fantasmagóricas e afirma:<br />
– Tio Bento, disse eu, procurando iludir com<br />
palavras a tristeza do coração, isto aqui cheirame<br />
á [sic] sala nobre do sabá das bruxas. Que<br />
não venham hoje atropelar-nos, n<strong>em</strong> apareça<br />
a alma do capitão-mor a nos infernizar o sono<br />
(LOBATO, 1987, p. 51).<br />
A atitude irônica do narrador revela-se por meio da<br />
expressão capitão-mor, ou seja, aquele que manda e<br />
mostra o lado autoritário e t<strong>em</strong>ido de Aleixo, respeitado<br />
apenas pelo desejo desenfreado e opressor de mandar<br />
<strong>em</strong> tudo e <strong>em</strong> todos de forma tão ostensiva, a ponto de<br />
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infernizar até mesmo durante o sono.<br />
A inversão da postura do narrador intensifica-se, ainda<br />
mais na passag<strong>em</strong> <strong>em</strong> que ele critica a imaginação popular<br />
afirmando: “– E depois v<strong>em</strong> cá arrastar corrente pelos<br />
corredores, hein? Como é pobre a imaginação popular!<br />
S<strong>em</strong>pre e <strong>em</strong> toda parte a mesma ária das correntes<br />
arrastadas!” (LOBATO, 1987, p. 51). Lobato, por meio da<br />
crítica à imaginação popular, critica também um dos t<strong>em</strong>as<br />
mais comuns nas narrativas fantásticas, ou seja, o fantasma<br />
que arrasta corrente, presente <strong>em</strong> inúmeras narrativas.<br />
Além da crítica, constata-se também o conhecimento<br />
de Lobato sobre o fato de que o motivo fantasma não é por<br />
si só fantástico, uma vez que <strong>em</strong> uma narrativa, o fantasma<br />
pode des<strong>em</strong>penhar o papel de revelar circunstâncias<br />
ainda não devidamente explicadas, tal como ocorre <strong>em</strong><br />
Shakespeare, cujo fantasma do pai de Hamlet retorna<br />
para contar ao filho o nome de seu assassino. Não basta<br />
introduzir um fantasma na trama para se obter o efeito de<br />
fantástico, porque, segundo afirma Vax,<br />
o fantasma não é nada por si mesmo. É o contexto<br />
que torna precisa sua forma e faz ressoar <strong>em</strong> nós<br />
o tom efetivo que convém. Não é o motivo que<br />
faz o fantástico, é o fantástico que se desenvolve<br />
a partir do motivo (VAX, 1965, p. 39).<br />
Na trama configurada por Lobato, o fantástico<br />
não surge por meio da aparição do fantasma do<br />
capitão Aleixo, mas pela inexplicável mudança de<br />
comportamento de Jonas, com o qual o narrador tenta<br />
conversar, mas não consegue retirar nenhuma palavra,<br />
ao encontrá-lo imóvel e mudo “no terreiro, <strong>em</strong> face<br />
da antiga casa do tronco” (LOBATO, 1987, p. 52).<br />
Aleixo não retorna das trevas para aterrorizar os vivos.<br />
A fixação de Jonas <strong>em</strong> determinados pontos da casa<br />
grande cria o terreno propício ao fantástico, uma vez<br />
que esses locais encontram-se incrustados por cenas,<br />
cuja intensidade da crueldade ainda se manteve ao<br />
longo dos t<strong>em</strong>pos.<br />
Novamente, o narrador duvida da sanidade do<br />
amigo e declara-se assombrado mediante a estranha<br />
expressão ostentada por Jonas:<br />
Não parecia o mesmo – não era o mesmo. Deume<br />
a impressão de retesado no último arranco<br />
duma luta supr<strong>em</strong>a, com todas as energias<br />
crispadas numa resistência feroz [...]. Era um<br />
corpo largado da alma. Era um hom<strong>em</strong> “vazio de<br />
si próprio!” (LOBATO, 1987, p. 52).<br />
Jonas encontra-se <strong>em</strong> um espaço de transição entre<br />
o real e o sobrenatural, provocado pela cont<strong>em</strong>plação<br />
da casa do tronco. Ao se deparar com a casa do tronco,<br />
construção que resistiu às int<strong>em</strong>péries do t<strong>em</strong>po, Jonas<br />
foi tomado de súbito pela presença do inexplicável,<br />
2 PENZOLDT, P. The supernatural in fiction. Londres: Peter Nevill, 1952.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 85-91<br />
Ana Maria Zanoni da Silva<br />
transformando-se <strong>em</strong> um corpo s<strong>em</strong> alma, vazio de<br />
seu ser. Jonas metamorfoseia-se <strong>em</strong> um tipo espectro<br />
às avessas, uma vez que <strong>em</strong> seu corpo já não impera<br />
mais a sua alma. Não se trata mais da alma que vaga s<strong>em</strong><br />
corpo, mas do corpo largado pela alma.<br />
Na tentativa de auxiliar Jonas, o narrador e o preto<br />
velho o conduz<strong>em</strong> para a casa grande e, ao chegar à<br />
porta do quarto do capitão Aleixo, ele arregala os olhos<br />
e articula palavras incompreensíveis. Ao entrar no<br />
quarto, agarra-se ao retrato de Isabel, filha do t<strong>em</strong>ido<br />
capitão, beijando-o e chorando compulsivamente. São<br />
inúteis as tentativas do narrador de retirar de Jonas<br />
explicações para o que estava acontecendo e, portanto,<br />
ele tenta solucionar o mistério indagando ao preto velho<br />
a respeito da história da fazenda. Na trama narrativa,<br />
o preto velho funciona como a voz experiente e com<br />
autoridade o bastante para esclarecer os fatos.<br />
Ironicamente, o narrador comenta a construção da<br />
atmosfera de horror:<br />
Nesse entr<strong>em</strong>eio zangara de novo o t<strong>em</strong>po.<br />
As nuvens recobriam inteiramente o céu,<br />
transformando num saco de carvão. Os relâmpagos<br />
voltaram a fulgurar, longínquos, acompanhados de<br />
rebôos surdos. E para que ao horror do quadro<br />
nenhum tom faltasse, a ventania cresceu, uivando<br />
lamentosa nas casuarinas (LOBATO, 1987, p. 53).<br />
O tom irônico do narrador descrevendo a construção<br />
da trama narrativa retoma os conceitos de Edgar Allan<br />
Poe a respeito da configuração do conto, descritos na<br />
resenha crítica Os contos de Hawthorne, publicada na<br />
Godey’s Magazine and Lady’s Book, <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro de<br />
1847, na qual Poe afirma: “Em toda obra não deve<br />
haver uma palavra sequer cuja tendência – direta ou<br />
indireta – não obedeça ao pré-estabelecido desígnio”<br />
(POE, 1968, p. 52).<br />
A postura irônica do narrador frente à configuração<br />
da atmosfera de horror mostra a consciência estética de<br />
Lobato a respeito da gradação do efeito de fantástico,<br />
assim descrita por Penzoldt: “A estrutura da história<br />
de fantasmas ideal, [...] pode ser representada como<br />
uma linha ascendente, que leva ao ponto culminante.<br />
[...] O ponto culminante de uma história de fantasmas é<br />
evident<strong>em</strong>ente a aparição do espectro” (PENZOLDT 2 ,<br />
1952 apud TODOROV, 1992). Gradativamente, o<br />
narrador insere no campo visual do leitor el<strong>em</strong>entos<br />
que intensificam o horror como pod<strong>em</strong>os observar<br />
no trecho a seguir: “Estava escrito, entretanto, que ao<br />
horror dessa noite de trovoada e mistério não faltaria<br />
uma nota sequer. Assim foi que, altas horas, a luz<br />
principiou a esmorecer” (LOBATO, 1987, p. 54).<br />
Em Os negros a gradação ocorre por meio da<br />
introdução sucessiva de motivos propícios ao
fantástico, tais como a viag<strong>em</strong>, a t<strong>em</strong>pestade, a casa<br />
grande abandonada, o t<strong>em</strong>poral, a suposta d<strong>em</strong>ência e<br />
finalmente a treva promovida pela noite t<strong>em</strong>pestuosa<br />
somada à falta de azeite para alimentar os lampiões.<br />
Os motivos introduzidos de forma gradativa preparam<br />
a atmosfera de horror e propiciam a aparição de um ser<br />
espectral. Porém, a expectativa do leitor é frustrada,<br />
porque no conto <strong>em</strong> apreço não será a aparição do<br />
espectro o ponto culminante da atmosfera fantástica,<br />
mas o simples pronunciar do nome “Sinhazinha Zabé”,<br />
proferido pelo preto velho ao narrar a história da<br />
fazenda. A referência feita pelo preto velho ao caso de<br />
Liduina, mucama de Sinhazinha Zabé e protetora do<br />
namoro da sinhá com um português, faz Jonas entrar<br />
<strong>em</strong> convulsões e mencionar um nome: “– “Izabel”...”<br />
(LOBATO, 1987, p. 54).<br />
O estranhamento do real e o entrecruzar de dois<br />
mundos, real e sobrenatural, ocorr<strong>em</strong> por intermédio<br />
do personag<strong>em</strong> Jonas, cujo corpo encontra-se possuído<br />
por outro, segundo afirma o narrador:<br />
Mas aquela voz já não era a voz de Jonas. Era<br />
uma voz desconhecida. Tive a sensação plena de<br />
que um “eu” alheio lhe tomara de assalto o corpo<br />
vazio. E falava por sua boca, e pensava com seu<br />
cérebro. Não era Jonas, positivamente, qu<strong>em</strong><br />
estava ali. Era “outro”!... (LOBATO, 1987, p. 54).<br />
A metamorfose de Jonas se completa, ele<br />
transformou-se no espectro às avessas, um corpo<br />
animado por outra alma.<br />
Encaixada na história de alheamento de Jonas, está<br />
uma narrativa metadiegética com a função de descrever<br />
os fatos horripilantes que aconteceram na fazenda. E<br />
será por meio dela, e não pela narração iniciada pelo<br />
preto velho, que o leitor conhecerá o caso de Sinhazinha<br />
Zabé e seu namorado português.<br />
Ao escolher uma voz alheia para narrar os fatos,<br />
Lobato confere maior credibilidade ao relato, pois<br />
já não se trata mais de um dos casos contados pelos<br />
pretos velhos, mas uma história proferida por meio de<br />
um ser que se apoderou do corpo do incrédulo Jonas.<br />
Ao narrador homodiegético resta ordenar o relato<br />
ouvido para que se torne mais compreensível ao leitor,<br />
como pod<strong>em</strong>os constatar no seguinte trecho:<br />
Mil anos que viva e nunca se me apagará da<br />
m<strong>em</strong>ória o ressoar daquela voz de mistério. Não<br />
reproduzo suas palavras da maneira como as<br />
enunciou. Seria impossível, sobre nocivo á [sic]<br />
compreensão de qu<strong>em</strong> lê. O “outro” falava ao<br />
jeito de qu<strong>em</strong> pensa <strong>em</strong> voz alta, como a recordar.<br />
Linguag<strong>em</strong> taquigráfica, ponho-a aqui traduzida<br />
<strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> corrente (LOBATO, 1987,p. 55).<br />
No decorrer do relato “o outro” se apresenta como<br />
Pegadas do fantástico <strong>em</strong> Os negros, de Monteiro Lobato<br />
Fernão, um português, filho de pais incógnitos, cujo<br />
sonho era partir para o Brasil. Em busca de realizar o seu<br />
sonho, Fernão <strong>em</strong>barca <strong>em</strong> um navio, rumo ao Brasil.<br />
Ao chegar ao Brasil, conhece o capitão Aleixo, que o<br />
convida para trabalhar na fazenda:<br />
O capitão notou meu tipo, fez perguntas e ao cabo<br />
propôs-me serviço <strong>em</strong> sua fazenda. Aceitei e fiz a<br />
pé, <strong>em</strong> companhia do lote de negros adquiridos,<br />
essa viag<strong>em</strong> pelo interior do país onde tudo me<br />
era novidade (LOBATO, 1987, p. 56).<br />
A história de Fernão e Izabel começa <strong>em</strong> uma manhã<br />
de domingo, quando ele, a vadear, vê a sinhazinha e<br />
a mucama Liduina banhando-se nuas <strong>em</strong> um riacho.<br />
A visão do corpo escultural de Izabel impressionou o<br />
jov<strong>em</strong>, a ponto de ele buscar a ajuda da mucama para<br />
auxiliá-lo na conquista do coração da amada.<br />
A conquista se concretiza, Fernão e Izabel se<br />
encontram às escondidas, auxiliados por Liduina, até<br />
que <strong>em</strong> uma noite, ao r<strong>em</strong><strong>em</strong>orar o último encontro,<br />
o jov<strong>em</strong> português foi surpreendido pela mucama<br />
aos gritos, avisando-o de que t<strong>em</strong>ido capitão Aleixo<br />
havia descoberto o namoro. Aleixo é caracterizado<br />
por Fernão como “plenipotenciário de Sua Majestade<br />
a Estupidez”, cujo caráter, com o passar do t<strong>em</strong>po,<br />
passou da estupidez à crueldade imensa a ponto de<br />
gozar ao “ver a carne humana avergoar-se aos golpes<br />
do couro cru” (LOBATO, 1987, p. 68).<br />
Na caracterização, ficam evidentes os plenos poderes do<br />
mal e da estupidez sobre Aleixo, que movido pelo orgulho,<br />
ambição e poder pensa ser o senhor das redondezas.<br />
Ao entrar no quarto de Fernão, Aleixo afirma que<br />
lhe dará uma bela noivinha e ordena aos capangas<br />
que amarr<strong>em</strong> o rapaz. Fernão luta inutilmente e t<strong>em</strong><br />
sua cabeça rachada por pancadas. Porém, quando ele<br />
retoma a consciência, percebe que está amarrado no<br />
tronco ao lado do corpo de Liduina. A mais aterrorizante<br />
constatação ainda estava por vir, pois Fernão vê dois<br />
homens abrindo um rombo no espesso muro de taipa,<br />
enquanto o pedreiro preparava uma mistura de cal e<br />
areia próximo a uma pilha de tijolos. Ele compreende<br />
que seria <strong>em</strong>paredado vivo, quando ouve a voz<br />
sarcástica do capitão dizendo: “ – Olhe! A tua noivinha<br />
é aquela parede...” (LOBATO, 1987, p. 70). O corpo a<br />
decompor-se após a morte é uma visão terrível, mas a<br />
decomposição dele <strong>em</strong> vida constitui uma das formas<br />
de irrupção do sobrenatural na ord<strong>em</strong> natural dos fatos<br />
e foge à explicação racional a respeito da intensidade da<br />
maldade que habita Aleixo, vilão que compactua com<br />
as forças do mal. Enterrar Fernão vivo seria para Aleixo<br />
cont<strong>em</strong>plar o sofrimento, a debilitação e a impotência<br />
do português frente aos instintos de crueldade que<br />
alimentam a alma d<strong>em</strong>oníaca do capitão-mor.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 85-91<br />
89
90<br />
Fernão, o jov<strong>em</strong> herói dest<strong>em</strong>ido, enfrenta não<br />
o sobrenatural proveniente do outro mundo, mas a<br />
maldade sobrenatural que habita o capitão Aleixo. O mal<br />
no conto de Lobato não provém das regiões sombrias<br />
onde habitam seres espectrais, mas da sociedade, como<br />
pod<strong>em</strong>os constatar por meio do trecho a seguir: “A<br />
sociedade, as leis, os governos, as religiões, os juízes, as<br />
morais, tudo o que é força social organizada presta mão<br />
forte á [sic] Estupidez Onipotente” (LOBATO, 1987,<br />
p. 67). Mediante essa fala de Fernão, o leitor se depara<br />
com o real a apresentar-se de forma alheada, pois os<br />
el<strong>em</strong>entos sociais, considerados como instituições sociais<br />
sólidas, desmancharam-se pelo ar, revelando a sua outra<br />
face, ou seja, o lado cruel e sombrio que as governa.<br />
Em Os negros, Lobato explorou com maestria a<br />
concepção de que: “Não é outro universo que se ergue<br />
<strong>em</strong> frente do nosso, é o nosso que, paradoxalmente,<br />
se metamorfoseia, apodrece e se torna outro” (VAX,<br />
1974, p. 24).<br />
Conclusão<br />
A análise de Os negros d<strong>em</strong>onstrou a face crítica de<br />
Monteiro Lobato, pois foi possível constatar, ao longo<br />
da trama, trechos <strong>em</strong> que o autor contesta a tradição,<br />
realizando um exercício reflexivo a respeito da criação<br />
literária.<br />
A prática da atividade crítica exercida pelos próprios<br />
escritores constitui segundo Perrone-Moisés, “uma<br />
característica da modernidade” (PERRONE-MOISÉS,<br />
1987, p. 10). Portanto, Monteiro Lobato, ao refletir a<br />
respeito da pertinência de um t<strong>em</strong>a ou motivo por si<br />
só ser capaz de provocar o efeito de fantástico, ou seja,<br />
s<strong>em</strong> que haja a criação de uma atmosfera propícia para<br />
que o sobrenatural venha à tona, d<strong>em</strong>onstra a sua face<br />
moderna, a qual se encontra diretamente vinculada à<br />
atividade crítica.<br />
Referências<br />
BORDINI, M. da G. O t<strong>em</strong>or do além e a subversão do<br />
real. In: ZILBERMAN, R. (Org.). Os preferidos do público.<br />
Petrópolis: Vozes, 1987. p.11-22.<br />
LOBATO, M. Os negros. In: ______. Negrinha. São<br />
Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1987. p. 45-77.<br />
PERRONE-MOISÉS, L. Altas literaturas. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1998.<br />
POE, E. A. Os contos de Hawthorne. In:<br />
NOSTRAND VAN. Antologia de crítica literária. Rio de<br />
Janeiro:Lidador,1968. p. 41-53.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 85-91<br />
Ana Maria Zanoni da Silva<br />
RODRIGUES, S. C. O fantástico. São Paulo: Ática,<br />
1988.<br />
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São<br />
Paulo: Perspectiva, 1992.<br />
VAX, L. L’art et la littérature fantastiques. Paris: Presses<br />
Universitaires de France, 1974.<br />
VAX, L. Motivos, t<strong>em</strong>as e esqu<strong>em</strong>as. In: ______. La<br />
seduction de l’éstrange. Tradução de Pierini, F. L. Paris:<br />
PUF, 1965. p. 53-88.
Pegadas do fantástico <strong>em</strong> Os negros, de Monteiro Lobato<br />
MARKS OF THE FANTASTIC IN OS NEGROS, BY MONTEIRO LOBATO<br />
ABSTRACT: This article discusses the configuration of fantastic in fictional plot of the tale Os negros, by the<br />
Brazilan writer Monteiro Lobato in order to d<strong>em</strong>onstrate the aesthetic conscience of the writer in relation as<br />
much as to the obtaining the aesthetic effect desired as to the adaption and the up-dating achieved for the most<br />
propitious motives and eruption th<strong>em</strong>es of the fantastic in the tale.<br />
KEYWORDS: Fantastic; aesthetic conscience; up-dating; motives; Monteiro Lobato.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 85-91<br />
91
LITERATURA, RAÇA, ETNIA: CONSIDERAÇÕES<br />
SOBRE A LITERATURA NEGRA E SOBRE LIMA BARRETO,<br />
UM INTELECTUAL SITIADO<br />
Ana Paula de Freitas Romão-Murari 1<br />
RESUMO: O objetivo deste artigo é estabelecer o processo de construção e de contextualização do termo<br />
“literatura negra”. Partindo dos pressupostos teóricos de Bernd (1992), será oferecido um estudo do fazer literário<br />
de Lima Barreto no intuito de constatar como a vida - e nessa, a opressão e o fracasso - se converte <strong>em</strong> literatura.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Consciência histórica; etnia; literatura; literatura negra; raça.<br />
Introdução<br />
Este artigo utiliza como pressupostos teóricos os<br />
estudos de Bernd (1992) acerca da conceituação do<br />
termo “literatura negra”.<br />
Para tanto, foram apresentadas e investigadas as<br />
particularidades e as peculiaridades dos termos “raça” e<br />
“etnia”, no intuito de estabelecer as implicâncias entre<br />
os mesmos.<br />
Partindo da discussão teórica dos critérios necessários<br />
para o processo de construção da literatura negra, foi<br />
analisado como o fazer literário de Lima Barreto representa<br />
a voz de um “eu” enunciador que, fazendo obra de ficção,<br />
retratou nela o test<strong>em</strong>unho de toda uma vida.<br />
1. Definições<br />
Na tentativa de identificar as particularidades e<br />
peculiaridades dos termos “raça” e “etnia”, foram<br />
evocadas as seguintes definições:<br />
Raça: 3. Ascendência, orig<strong>em</strong>, estirpe, casta. 4.<br />
Descendência, progênie, geração. (FERREIRA,<br />
1838, p. 1.442).<br />
Raça: 1. Divisão tradicional e arbitrária dos grupos<br />
humanos, determinada pelo conjunto de caracteres<br />
físicos hereditários (cor da pele, formato da<br />
cabeça, tipo de cabelo etc.) Etimologicamente,<br />
a noção de raça é rejeitada por se considerar<br />
a proximidade cultural de maior relevância<br />
do que o fator racial, certas culturas de raças<br />
diferentes estão muito mais próximas do<br />
que outras da mesma raça. (HOUAISS; VILLAR, 2001,<br />
p. 2.372, grifo nosso)<br />
Raça: 1. Conjunto de indivíduos cujos caracteres<br />
físicos são s<strong>em</strong>elhantes e se transmit<strong>em</strong> por<br />
hereditariedade: raça branca. 2. Conjunto dos<br />
indivíduos da mesma espécie: a raça humana. 3.<br />
Conjunto de indivíduos de um mesmo povo ou<br />
família: a raça germânica (UNESP, 2004, p. 1163).<br />
Termos sinonímicos do termo “raça”:<br />
Ascendência: 1. Ascensão. 2. Superioridade,<br />
preponderância, ascendente. 3. Influência,<br />
prestígio. 4. Série de gerações anteriores a um<br />
indivíduo, progênie. 5. Os antepassados, os avôs<br />
(FERREIRA, 1838, p. 179).<br />
“Orig<strong>em</strong>: 1. Princípio, começo, procedência. 2.<br />
Naturalidade, nascimento. 3. Pátria. 4. Ascendência,<br />
progênie” (FERREIRA, 1838, p. 1.233) .<br />
“Estirpe: [...] 2. Orig<strong>em</strong>, tronco, linhag<strong>em</strong>, raça,<br />
ascendência, cepa” (FERREIRA, 1838, p. 723).<br />
Casta: 1. Camada social hereditária e endógama,<br />
cujos m<strong>em</strong>bros pertenc<strong>em</strong> à mesma raça, etnia,<br />
profissão ou religião. 2. O conjunto de uma<br />
espécie animal ou vegetal, com orig<strong>em</strong> comum<br />
e caracteres s<strong>em</strong>elhantes, transmissíveis por<br />
hereditariedade. 3. Raça, linhag<strong>em</strong>, classe. 4.<br />
Qualidade, espécie, gênero. 5. Série de coisas<br />
com as mesmas qualidades ou características<br />
(FERREIRA, 1838, p. 365).<br />
“Descendência: 1. Série de pessoas provenientes de<br />
um mesmo tronco, prole” (FERREIRA, 1838, p. 550).<br />
“Progênie: 1. Orig<strong>em</strong>, procedência, ascendência. 2.<br />
Geração, prole” (FERREIRA, 1838, p. 1.398).<br />
“Geração: [...] 3. Cada grau de filiação de pai a<br />
filho; posteridade, descendência. 4. Linhag<strong>em</strong>, estirpe,<br />
ascendência, genealogia” (FERREIRA, 1838, p. 847).<br />
Etnia: Antrop. 1. População ou grupo social<br />
que apresenta relativa homogeneidade cultural<br />
e linguística, compartilhando história e orig<strong>em</strong><br />
comuns. Neste sentido, também usado, a<br />
1 Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Campus de Frutal e do Centro de Estudos de Línguas (CEL), de Fernandópolis (Língua francesa).<br />
Mestranda <strong>em</strong> Literatura <strong>em</strong> Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (UNESP/IBILCE).<br />
E-mail: anapromao@yahoo.com.br<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
93
94<br />
partir do início do século XX, <strong>em</strong> substituição<br />
a termos como nação, povo e raça, para<br />
designar as sociedades e grupos até então ditos<br />
primitivos. 2. Grupo com relativa homogeneidade<br />
cultural, considerado como unidade dentro de um<br />
contexto de relações entre grupos similares ou<br />
do mesmo tipo, e cuja identidade é definida por<br />
contraste <strong>em</strong> relação a estes (FERREIRA, 1838, p.<br />
849, grifo nosso).<br />
Etnia: Antrop. Coletividade de indivíduos que se<br />
diferencia por sua especificidade sociocultural,<br />
refletida principalmente na língua, religião e<br />
maneira de agir; grupo étnico. Para alguns<br />
autores, a etnia pressupõe uma base<br />
biológica, podendo ser definida por uma<br />
raça, uma cultura ou ambas; o termo é<br />
evitado por parte da antropologia atual, por<br />
não haver recebido conceituação precisa<br />
(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1.272, grifo nosso).<br />
Etnia: 1. Grupo biológica e culturalmente<br />
homogêneo; grupo racial: as etnias indígenas.<br />
2. Mistura de raças caracterizada pela mesma<br />
cultura: a formação de uma etnia paulista (UNESP,<br />
2004, p. 568)<br />
2 Literatura negra<br />
Partindo das definições dos termos “raça” e “etnia” e<br />
dos pressupostos teóricos apontados por Bernd (1992),<br />
foi verificado que a diversidade cultural não t<strong>em</strong> relação<br />
direta com as raças, pois há muito mais culturas do que<br />
raças.<br />
Assim, quando falamos das contribuições das<br />
raças humanas à civilização, não quer<strong>em</strong>os dizer<br />
que os aportes culturais da Ásia ou da Europa,<br />
ou da América, tir<strong>em</strong> sua originalidade do fato<br />
destes continentes ser<strong>em</strong>, a grosso modo,<br />
povoados por habitantes de procedências raciais<br />
diferentes. Se esta originalidade existe, ela se<br />
origina de circunstâncias geográficas, históricas<br />
e sociológicas, não de atitudes distintas ligadas<br />
à constituição anatômica ou psicológica dos<br />
negros, dos amarelos ou dos brancos (LEVI-<br />
STRAUSS 2 citado por BERND, 1992, p. 268).<br />
Nesse sentido, é cientificamente inviável qualquer<br />
vinculação entre raça e produção de bens culturais.<br />
Portanto, não há correlações inerentes entre as<br />
características psicofísicas do negro e a cultura por ele<br />
produzida.<br />
Deste ponto de vista, fica excluída a hipótese de se<br />
conceituar literatura negra pelo critério da cor da<br />
2 LEVI-STRAUSS, C. Race et histoire. Paris: Gonthier, 1961.<br />
3 TODOROV, T. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1983.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
Ana Paula de Freitas Romão-Murari<br />
pele do autor, por não haver critérios científicos que<br />
sustent<strong>em</strong> a relação entre o fato de se pertencer<br />
a uma determinada etnia e a estruturação da<br />
sensibilidade (BERND, 1992, p. 268).<br />
Ainda sob a óptica dos estudos de Bernd (1992),<br />
excluído o critério da cor da pele, a segunda possibilidade<br />
para estabelecer o conceito de literatura negra seria<br />
eleger a “t<strong>em</strong>ática” como categoria.<br />
Esse critério seria igualmente enganoso na<br />
medida <strong>em</strong> que a figura do negro, como<br />
escravo ou como liberto, assim como os t<strong>em</strong>as<br />
associados à história e à cultura negras, afloram<br />
na literatura brasileira desde os seus primórdios<br />
até as produções mais recentes, ficando assim, o<br />
critério t<strong>em</strong>ático, completamente esvaziado de<br />
qualquer funcionalidade (BERND, 1992, p. 268).<br />
Salvas essas restrições, Bernd (1992), na tentativa de<br />
definir “literatura negra”, inferiu:<br />
<strong>em</strong> que medida seria legítima a utilização da<br />
expressão literatura negra e <strong>em</strong> que consistiria a<br />
especificidade que sustentaria esta denominação?;<br />
se o conceito da literatura negra não deve atrelarse<br />
n<strong>em</strong> à cor da pele do autor, n<strong>em</strong> à t<strong>em</strong>ática<br />
utilizada, qual seria o el<strong>em</strong>ento que lhe conferiria<br />
especificidade? (BERND, 1992, p. 269).<br />
Seguindo essa linha investigativa, Bernd (1992)<br />
concluiu que o único critério possível para se conceituar<br />
“literatura negra” seria dado pelas “características<br />
discursivas da obra”.<br />
Principais constantes discursivas<br />
da poesia negra<br />
a) Emergência do “eu enunciador”<br />
O processo de construção de uma “literatura negra”<br />
pode ser lido como um meio de os negros pleitear<strong>em</strong><br />
seu reconhecimento como sujeitos para impor sua<br />
efetiva participação num diálogo de culturas “onde<br />
ninguém tenha a última palavra, onde nenhuma das<br />
vozes reduza a outra ao estado de um mero objeto”<br />
(TODOROV 3 , 1983 citado por BERND, 1992, p. 270).<br />
Advém daí a importância para o negro do exercício da<br />
produção literária que representa, no limite, a busca<br />
da própria existência, que é reafirmada no ato de<br />
enunciação poética.<br />
Logo, é por meio do texto literário que se realiza<br />
a sua transmutação de objeto para sujeito. À medida<br />
que o poeta está interessado nesse ressurgimento, não<br />
apenas para si próprio, mas para o grupo ao qual se<br />
sente ligado e do qual se torna o porta-voz privilegiado,<br />
a distância entre o “eu” (sujeito enunciador) e o “tu”
Literatura, raça, etnia: considerações sobre a literatura negra e sobre Lima Barreto, um intelectual sitiado<br />
(sujeito destinatário) se reduz criando a unidade do<br />
“nós”. Nesse sentido, o surgimento do “eu-nós”<br />
assinala a ruptura com um discurso anterior que<br />
sist<strong>em</strong>aticamente o negava.<br />
b) Construção de uma “cosmogonia”<br />
Para Bernd (1992), a poesia se torna o espaço no<br />
qual são gerados os mitos compensatórios que supr<strong>em</strong><br />
os vazios que pontuam a presença do negro na América.<br />
Para suprir os vazios que pontuam a presença<br />
do negro na América, a poesia se torna o espaço<br />
gerador de mitos compensatórios. Os feitos de<br />
Ganga Zumba, de seu filho Zumbi do Palmares<br />
e de outros chefes quilombolas são mistificados<br />
e cantados <strong>em</strong> po<strong>em</strong>as épicos onde, de escravos<br />
rebeldes e fora da lei, transformam-se nos heróis<br />
de que o povo negro necessita para ter um<br />
modelo de identificação (BERND, 1992, p. 271).<br />
Sob essa ótica, a identificação com esses heróis e sua<br />
luta pela libertação é o primeiro passo para a construção<br />
da identidade.<br />
A transmissão e a r<strong>em</strong><strong>em</strong>oração do passado coletivo,<br />
das dificuldades, dos sucessos e dos fracassos do<br />
grupo, das condutas ex<strong>em</strong>plares de seus heróis...<br />
participam do processo de identificação cultural.<br />
A l<strong>em</strong>brança da história através de narrativas,<br />
de obras de arte, de cerimônias e rituais, assim<br />
como através da educação das jovens gerações,<br />
contribui para modelar a identidade de um grupo<br />
social (MUCCHIELLI 4 , 1986 citado por BERND,<br />
1992, p. 272).<br />
c) Ordenação de uma “nova ord<strong>em</strong> simbólica”<br />
Conforme discutido por Bernd (1992), a prática<br />
usual dos procedimentos da paródia e da carnavalização<br />
permite que o resgate operado no nível dos referentes<br />
históricos efetue-se paralelamente no nível da<br />
representação simbólica: “o princípio ordenador é o<br />
mesmo: a reversão, sendo a palavra de ord<strong>em</strong> pôr o<br />
mundo às avessas” (BERND, 1992, p. 272).<br />
Nessa perspectiva, as novas unidades culturais<br />
passam a representar o reencontro com as origens,<br />
caracterizando-se como os símbolos de uma nova<br />
ord<strong>em</strong> social injusta e revestindo-se, portanto, de um<br />
caráter positivo de alerta contra os atuais métodos de<br />
discriminação racial que reproduz<strong>em</strong>, <strong>em</strong> certo sentido,<br />
o modelo escravocrata.<br />
d) “Reversão dos valores e avaliação do outro”<br />
“A lei maior da Negritude, que consistiu <strong>em</strong> tornar<br />
positivo o que até então era considerado negativo,<br />
continua sendo o fio principal com que se tece a poesia<br />
negra” (BERND, 1992, p. 270).<br />
4 MUCCHIELLI, A. L’Identité. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.<br />
Configurando-se, portanto, como discurso da<br />
“destruição” e da afirmação de uma diferença, a poesia<br />
negra irá também produzir uma imag<strong>em</strong> do branco<br />
que, ocupando a terceira pessoa do discurso, se torna,<br />
por sua vez, o outro.<br />
Assim, a literatura é o lugar de convocação à<br />
resistência e à re-existência do negro. “De literatura de<br />
resistência, a literatura negra passa a ser literatura de reexistência”<br />
(BERND, 1992, p. 270).<br />
3 Lima Barreto: o drama<br />
do intelectual sitiado<br />
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922),<br />
escritor “militante”, título que ele mesmo timbrava<br />
<strong>em</strong> afirmar - cuja significação implicava por de lado<br />
o “bonito” pelo “real” - foi o romancista brasileiro<br />
do século XX que melhor reconheceu o poder de<br />
transfiguração da produção literária como obra de arte;<br />
caracterização expressa por suas próprias palavras:<br />
tendo passado por diversos meios os mais<br />
desencontrados possíveis, eu me julgo<br />
conhecedor bastante das coisas deste mundo,<br />
para, com os el<strong>em</strong>entos da vida comum,<br />
organizar uma outra, dos meus sonhos, com a<br />
qual a minore, só no criá-la, a mágoa eterna e<br />
inapagável que haja talvez <strong>em</strong> mim e me turve as<br />
alegrias íntimas [...] (BOSI, 1970, p. 340).<br />
o que mais se olhou a si mesmo para escrever, como<br />
observou Montenegro:<br />
[...] <strong>em</strong> Lima Barreto foi como se o sentimento<br />
constant<strong>em</strong>ente amargo da vida, a crua e<br />
penetrante consciência de vítima que tanto o<br />
torturava, tirasse de vez <strong>em</strong> quando ao escritor<br />
o que faz a força e a intensidade do escritor (sic)<br />
- a sua disponibilidade interior, indispensável a<br />
uma arte que se propõe representar as coisas <strong>em</strong><br />
termos de uma realidade mais real ainda do que<br />
a própria vida (MONTENEGRO, 1953, p. 146).<br />
Formada numa época <strong>em</strong> que morria a belle époque,<br />
a obra de Lima Barreto se constrói entre dois<br />
mundos: o mundo do tradicionalismo agrário,<br />
saudosista e reformador, e o mundo do novo século,<br />
seduzido pela vanguarda e pelo racionalismo,<br />
fecundado pelo dadaísmo e pelo cubismo,<br />
pela psicanálise e pelo relativismo de Einstein,<br />
pela Revolução Russa, anarquismo espanhol e<br />
sindicalismo fascista (BOSI, 1970, p. 341).<br />
Os desgostos domésticos e a revolta contra o<br />
preconceito de cor de que foi vítima somados à vida<br />
economicamente difícil de pequeno funcionário da<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
95
96<br />
Secretaria da Guerra e colaborador da imprensa, às<br />
constantes crises de depressão e ao alcoolismo fizeram<br />
desse escritor um crítico social severo, e, por vezes,<br />
panfletário. De sua ansiedade existencial <strong>em</strong>ergiu uma<br />
arte que, apesar de trazer a marca de um mulato pobre<br />
e marginalizado, representou um riquíssimo patrimônio<br />
analítico e descritivo de dominação burguesa calcado<br />
na construção de um espaço cultural que incorporava<br />
as aspirações e os protestos do oprimido por meio de<br />
uma literatura social e politicamente militante.<br />
Como num vasto painel que se desdobra<br />
<strong>em</strong> sucessivos quadros, lá estão os episódios<br />
culminantes da insurreição antiflorianista, a<br />
campanha contra a febre amarela, a ação de Rio<br />
Branco no Itamarati, a política da valorização do<br />
café, o governo do Marechal Hermes da Fonseca,<br />
a participação do Brasil na Primeira Guerra<br />
Mundial, o advento do f<strong>em</strong>inismo, as primeiras<br />
greves operárias, a S<strong>em</strong>ana de Arte Moderna, o<br />
delírio do futebol e do jogo-do-bicho, tudo isso<br />
<strong>em</strong> mistura com os nossos ridículos e as nossas<br />
misérias, mas também s<strong>em</strong> esquecer a grandeza<br />
e a doçura do nosso povo; a mania de ostentação,<br />
o vazio intelectual e a ganância dos políticos; <strong>em</strong><br />
suma, toda a crise das classes dirigentes, que se<br />
agravaria de modo alarmante com a queda do<br />
Império, isso de um lado: do outro, a bondade<br />
inata do brasileiro, a corag<strong>em</strong> do funcionário<br />
público humilde que luta por educar os filhos, o<br />
milagre da sobrevivência da população pobre do<br />
subúrbio carioca, que, <strong>em</strong> meio da miséria, canta<br />
e ri (BARBOSA, 1972, p. 8-9).<br />
Nessa perspectiva, Lima Barreto assim definiu a<br />
produção literária de seu t<strong>em</strong>po:<br />
A nossa <strong>em</strong>otividade literária só se interessa<br />
pelos populares do sertão, unicamente porque<br />
são pitorescos e talvez não se possa verificar<br />
a verdade de suas criações. No mais é uma<br />
continuação do exame de português, uma<br />
retórica mais difícil a se desenvolver por este<br />
t<strong>em</strong>a s<strong>em</strong>pre o mesmo (BOSI, 1970, p. 340).<br />
A grandeza literária tornou-se uma obsessão para<br />
Lima Barreto, sua única esperança de vingança contra<br />
uma sociedade cujas pretensões eurófilas, racismo e<br />
preconceitos de classe ele assimilara e sofria diariamente.<br />
Em 1909, ano <strong>em</strong> que publicou um romance pela<br />
primeira vez, seu diário registra desespero e esperança:<br />
Mulato, desorganizado, incompreensível, e<br />
incompreendido, era a única coisa que me<br />
encheria de satisfação, ser inteligente, muito e<br />
muito! A humanidade vive da inteligência, e eu,<br />
inteligente, entraria por força na humanidade,<br />
isto é, na grande Humanidade de que quero fazer<br />
parte (BOSI, 1970, p. 340).<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
Ana Paula de Freitas Romão-Murari<br />
Ao final de sua vida, a fé burguesa e europeia na<br />
mobilidade social por meio do sucesso intelectual<br />
continuava guiando Lima Barreto:<br />
o hom<strong>em</strong>, por intermédio da arte, não fica<br />
adstrito aos preconceitos e preceitos de seu<br />
t<strong>em</strong>po, de seu nascimento, de sua pátria, de sua<br />
raça; ele vai além disso, mais longe que pode, para<br />
alcançar a vida total do Universo e incorporar a<br />
sua vida na do Mundo (BOSI, 1970, p. 340).<br />
Lima Barreto <strong>em</strong>penhava-se <strong>em</strong> fazer obra atual<br />
e atuante, do seu t<strong>em</strong>po e do seu meio, s<strong>em</strong> a<br />
preocupação característica da época de “traduzir para<br />
o clássico” o pensamento e a <strong>em</strong>oção. Isso lhe conferiu<br />
a acusação de desleixado de linguag<strong>em</strong>, e, até mesmo,<br />
de subescritor. Entretanto, na verdade, é necessário<br />
afirmar que ele sabia jogar com as palavras para delas<br />
extrair os efeitos estéticos ou funcionais que a natureza<br />
do texto exigisse.<br />
Como notou Houaiss:<br />
Lima Barreto poderá ser reputado “incorreto”<br />
do ponto de vista “gramatical”, e de “mau gosto”,<br />
do ponto de vista estilístico - afinal de contas,<br />
o conceito de correção, na nossa gramática,<br />
mandarina e bizantina, pode apresentar tais<br />
e tantos planos de julgamento, que poucos,<br />
pouquíssimos escritores poderão enfrentar todas<br />
as sanções de todos os planos; e afinal de contas,<br />
ainda, o probl<strong>em</strong>a do “bom gosto” é intimamente<br />
flutuante, no espaço, no t<strong>em</strong>po, e no mesmo<br />
espaço e no mesmo t<strong>em</strong>po, não parecendo<br />
constituir uma questão modalmente estética<br />
[...] E correto ou incorreto, de bom ou mau<br />
gosto, foi incontestavelmente um escritor muito<br />
consciente dos móveis e fins, recursos e meios<br />
- inscrevendo-se como um dos maiores, senão o<br />
maior, dos escritores realistas desta fase crítica de<br />
nossa evolução social (HOUAISS, 1956, p. 22).<br />
Nesse sentido, também Prado afirma: “O narrador<br />
que nos fala não quer falar como literato, e a linguag<strong>em</strong><br />
propositalmente desleixada, sugere apenas o registro<br />
atento das pequenas vicissitudes do cotidiano” (PRADO,<br />
1989, p. 3).<br />
Nessa busca do acontecimento baseada na pesquisa<br />
do cotidiano, Lima Barreto inaugurou uma mobilidade<br />
narrativa <strong>em</strong> que o espaço e o t<strong>em</strong>po como que se<br />
desmistificam para se transformar<strong>em</strong> <strong>em</strong> circunstância<br />
integrada à experiência do leitor; o fluxo narrativo cede<br />
lugar ao tom improvisado que mistura reportag<strong>em</strong> e<br />
test<strong>em</strong>unho, aproximando-se da reprodução quase<br />
instantânea com que se multiplica o ritmo das coisas<br />
<strong>em</strong> movimento; os assuntos, não mais narrados, são<br />
apenas organizados, distanciando-se da plenitude do<br />
“acontecer” ficcional; as personagens são representadas
Literatura, raça, etnia: considerações sobre a literatura negra e sobre Lima Barreto, um intelectual sitiado<br />
por meio de personagens-símbolos, são caricaturas de<br />
líderes e intelectuais; trata-se de uma criação aleatória<br />
intencionalmente traçada para construir um panorama<br />
da mentalidade burguesa, predominante no Brasil, nos<br />
primeiros trinta anos de vida republicana.<br />
Fazendo obra de ficção, Lima Barreto penetrou<br />
fundo na ambiência de toda uma época, revelando por<br />
inteiro a sua mentalidade, o seu substractum social e<br />
humano.<br />
Considerações finais<br />
Orgulhoso de sua orig<strong>em</strong> modesta e da ascendência<br />
dos avós, antigos escravos, seu objetivo era expressar<br />
“os sofrimentos e sonhos do povo”, compreendendo<br />
sua vida e obra como um “contínuo protesto contra<br />
toda e qualquer injustiça”. Ele não deixava escapar<br />
nenhuma oportunidade de denunciar os desmandos<br />
sociais e ridicularizar os responsáveis, dando mais<br />
valor à radical veracidade do que ao refinamento de<br />
linguag<strong>em</strong> e composição.<br />
Revoltado contra as injustiças e os preconceitos de<br />
que também era vítima, dedica sua obra a desmascarar<br />
a falsidade dos poderosos: políticos, intelectuais,<br />
burocratas, jornalistas, militares etc.<br />
Nessa perspectiva, foi verificado que o fazer literário<br />
de Lima Barreto traz um “eu enunciador”, visto que<br />
ler os livros de Lima Barreto é um exercício de<br />
consciência histórica que conta com a vantag<strong>em</strong>,<br />
como poucas vezes noutro escritor brasileiro, de<br />
um difícil test<strong>em</strong>unho: constatar como a vida, e<br />
nesta a opressão e o fracasso, se converte <strong>em</strong><br />
literatura [...] Nele, a primeira impressão é uma<br />
espécie de desencanto preliminar: o narrador<br />
que nos fala não quer falar como literato, e a<br />
linguag<strong>em</strong>, propositalmente desleixada, sugere<br />
apenas o registro atento das pequenas vicissitudes<br />
do cotidiano (PRADO, 1989, p. 3).<br />
A biografia de Lima Barreto explica o húmus<br />
ideológico de sua obra: a orig<strong>em</strong> humilde, a cor,<br />
a vida penosa de jornalista pobre e de pobre<br />
amanuense, aliadas à viva consciência da própria<br />
situação social, motivaram aquele seu socialismo<br />
maxialista, tão <strong>em</strong>otivo nas raízes quanto<br />
penetrante nas análises (BOSI, 1970, p. 355).<br />
Com sua obra, Lima Barreto prestou homenag<strong>em</strong><br />
às pessoas humildes e até as mais abastadas do<br />
subúrbio – aquela fauna humana que satirizou com<br />
tanto carinho – com que ele não deixava de se sentir<br />
solidário, <strong>em</strong>bora elas mal reconhecess<strong>em</strong> seu talento<br />
literário e não pertencess<strong>em</strong> ao seu público leitor. O<br />
abismo entre personagens literários e leitores, entre<br />
o ambiente popular ficcional e o público real de classe<br />
média alta – fenômeno típico da literatura latinoamericana<br />
engajada, geralmente qualificado como<br />
heterogeneidade cultural – também caracteriza a obra<br />
de Lima Barreto. As pessoas que ganharam vida e voz<br />
<strong>em</strong> sua obra pertenciam àquele “mar de analfabetos”<br />
ao qual o poeta elitista Olavo Bilac – parnasiano e<br />
patrioteiro, <strong>em</strong>bora de certa popularidade e até hoje<br />
autor escolar – se referia com desprezo.<br />
Concluído <strong>em</strong> 1922, ano da morte de Lima Barreto,<br />
o romance Clara dos anjos é uma denúncia áspera do<br />
preconceito racial e social, vivenciado por uma jov<strong>em</strong><br />
mulher do subúrbio carioca.<br />
O grande historiador e crítico literário Sérgio<br />
Buarque de Holanda já apontava, escrevendo sobre<br />
Clara dos anjos, que é muito difícil “escrever sobre<br />
os livros de Lima Barreto s<strong>em</strong> incorrer um pouco no<br />
pecado do biografismo” (HOLANDA, 1964).<br />
Poucos escritores brasileiros foram tão obsessivos<br />
na investigação da t<strong>em</strong>ática do preconceito quanto<br />
Lima Barreto. Mulato, nasceu <strong>em</strong> 1881, mesmo ano<br />
<strong>em</strong> que o também mulato Machado de Assis introduzia<br />
o Realismo na literatura nacional com a publicação de<br />
M<strong>em</strong>órias póstumas de Brás Cubas e Aluísio Azevedo<br />
inaugurava a Naturalismo no Brasil com o romance O<br />
mulato. Não são apenas coincidências. A questão do<br />
preconceito contra a mestiçag<strong>em</strong>, já denunciada na obra<br />
de Aluísio Azevedo, seria fundamental no pensamento<br />
nacional entre a implantação do Naturalismo e a do<br />
Modernismo, <strong>em</strong> 1922, ano da morte de Lima Barreto.<br />
Por razões pessoais e por viver exatamente naquele<br />
período, s<strong>em</strong>pre o retratando de forma crítica e até<br />
ressentida, o autor de Clara dos anjos seria o escritor<br />
que mais sentiria (na pele) o preconceito e o retrataria<br />
com tintas mais ácidas na literatura brasileira. É ainda<br />
Sérgio Buarque de Holanda que melhor resume como<br />
essa t<strong>em</strong>ática se apresenta <strong>em</strong> Clara dos anjos:<br />
Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma<br />
pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio,<br />
que apesar das cautelas excessivas da família,<br />
é iludida, seduzida e, como tantas outras,<br />
desprezada, enfim, por um rapaz de condição<br />
social menos humilde do que a sua. É uma<br />
estória onde se tenta pintar <strong>em</strong> cores ásperas o<br />
drama de tantas outras raparigas da mesma cor<br />
e do mesmo ambiente. O romancista procurou<br />
fazer de sua personag<strong>em</strong> uma figura apagada,<br />
de natureza “amorfa e pastosa”, como se nela<br />
quisesse resumir a fatalidade que persegue tantas<br />
criaturas de sua casta: “A priori”, diz, “estão<br />
condenadas, e tudo e todos parec<strong>em</strong> condenar<br />
os seus esforços e os dos seus para elevar a sua<br />
condição moral e social”. É claro que os traços<br />
singulares, capazes de formar um verdadeiro<br />
“caráter” romanesco, dando-lhe relevo próprio<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
97
98<br />
e nitidez hão de esbater-se aqui para melhor se<br />
ajustar<strong>em</strong> à regra genérica. E Clara dos Anjos<br />
torna-se, assim, menos uma personag<strong>em</strong> do<br />
que um argumento vivo e um el<strong>em</strong>ento para a<br />
denúncia (HOLANDA, 1964, p. 10).<br />
A dilaceração também se revela com realismo<br />
carregado de vivência pessoal nas Recordações do<br />
Escrivão Isaías Caminha: “o meu sofrimento e as minhas<br />
dores não encontravam o menor eco fora de mim”<br />
(BARRETO, 1995).<br />
Recordações do escrivão Isaías Caminha é um romance<br />
narrado <strong>em</strong> primeira pessoa, autobiográfico, retrato da<br />
vida de um grande jornal da época. Sátira a figurões<br />
da imprensa e das letras. Extravasamento de suas<br />
decepções e revoltas.<br />
É a história de um rapaz inteligente, bom, honesto,<br />
ambicioso, possuidor todos os requisitos para vencer<br />
na vida, menos um - a cor. O jov<strong>em</strong> mulato Isaías<br />
Caminha sai do interior <strong>em</strong> busca de uma chance<br />
no Rio de Janeiro. Para e por isso, estuda com<br />
afinco, despertando admiração e esperanças <strong>em</strong> sua<br />
professora. Parte para o Rio de Janeiro, decepcionandose<br />
com a grande cidade e a vida que aí encontra. Não<br />
retorna ao interior apesar das dificuldades. Luta contra<br />
a fome e a discriminação. Sofre muito, mas consegue<br />
ocupar o lugar de contínuo <strong>em</strong> um considerado jornal:<br />
O Globo. A sua posição melhora, quando, após o<br />
suicídio de um funcionário do jornal, sai à procura<br />
do diretor Loberant e o encontra <strong>em</strong> um prostíbulo,<br />
participando de uma orgia. É elevado à condição<br />
de repórter, despertando inveja entre os colegas e<br />
bajulação entre os que precisam de seus préstimos.<br />
Enojado com tudo, sentindo-se alheio a essa vida de<br />
falsidades, retira-se da grande cidade, casa-se e leva<br />
uma vida simples de escrivão interiorano. Um dia,<br />
revoltado com um artigo de uma revista que coloca<br />
os negros e mestiços <strong>em</strong> condição de inferioridade,<br />
resolve escrever esse livro que pretende denunciar a<br />
discriminação e o preconceito racial:<br />
Se me esforço por fazê-lo [ao meu livro] literário<br />
é para que ele possa ser lido, pois quero falar<br />
das minhas dores e dos meus sentimentos ao<br />
espírito geral e no seu interesse, com a linguag<strong>em</strong><br />
acessível a ele. É este o meu propósito, o meu<br />
único propósito (BARRETO, 1995).<br />
Para Lima Barreto, a desmontag<strong>em</strong> de posições<br />
puristas e essencialistas de cultura nacional implica o<br />
reconhecimento da mestiçag<strong>em</strong> no Brasil, não apenas<br />
como resultado das origens do país, mas como processo<br />
permanente, devido também à abertura do Brasil <strong>em</strong><br />
relação ao mundo, que, por sua vez, naturalmente<br />
também é mestiço.<br />
É inferido que as considerações aqui apresentadas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
Ana Paula de Freitas Romão-Murari<br />
não têm pretensão alguma de esgotar os estudos acerca<br />
da literatura negra e do fazer literário de Lima Barreto.<br />
Referências<br />
BARBOSA, F. A. Lima Barreto: romance. 2. ed. Rio de<br />
Janeiro: Agir, 1972. 90 p.<br />
BARRETO, A. H. de L. Recordações do escrivão Isaías<br />
Caminha. São Paulo: Ática, 1995.<br />
BERND, Z. Literatura negra. In: JOBIM, J. L. (Org.).<br />
Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo da<br />
literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 267-275.<br />
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São<br />
Paulo: Cultrix, 1970.<br />
UNESP - Universidade Estadual Paulista. Dicionário<br />
Unesp do português cont<strong>em</strong>porâneo. São Paulo: UNESP,<br />
2004. 1470 p.<br />
FERREIRA, A. B. de H. Novo Aurélio século XXI: o<br />
dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1838. 2128 p.<br />
HOLANDA, S. B. de. Adolescênia. In: BARBOSA, F. de<br />
A. A vida de Lima Barreto (1881-1922). Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1964.<br />
HOUAISS, A. Prefácio de vida urbana. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1956.<br />
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss de<br />
lexicografia e banco de dados da língua portuguesa. Rio<br />
de Janeiro: Objetiva, 2001. 2.922 p.<br />
MONTENEGRO, O. Lima Barreto. In: O romance<br />
brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1953. p.<br />
143-158.<br />
PRADO, A. A. Lima Barreto: o crítico e a crise. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 1989.
Literatura, raça, etnia: considerações sobre a literatura negra e sobre Lima Barreto, um intelectual sitiado<br />
LITERATURE, RACE, ETHNICITY: CONSIDERATIONS ON THE BLACK<br />
LITERATURE AND ABOUT LIMA BARRETO, AN INTELLECTUAL SITIO<br />
ABSTRACT: The aim of this paper is to establish the process of building and contextualization of the term black<br />
literature. Drawing on the theoretical assumptions of Bernd (1992), will be offered a study of literary writing, Lima<br />
Barreto, in order to see how their lives, and this oppression and failure, becomes literature.<br />
KEYWORDS: Historical consciousness; ethnicity; literature; black literature; race.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
99
100
BIOECOLOGIA DOS CRISOPÍDEOS E SUA IMPORTÂNCIA<br />
NO CONTROLE BIOLÓGICO DE PRAGAS<br />
João Luís Ribeiro Ulhôa 1<br />
RESUMO: Este trabalho t<strong>em</strong> por objetivo descrever os aspectos bioecológicos dos crisopídeos e as características<br />
desse predador, visando associá-las ao controle biológico de insetos pragas. Considerando o grande potencial<br />
desses insetos, principalmente os pertencentes aos gêneros Chrysoperla, delineamos esta pesquisa de cunho<br />
bibliográfico a fim de reunir informações mais detalhadas a respeito dos aspectos bioecológicos, b<strong>em</strong> como do<br />
potencial de uso desses predadores <strong>em</strong> programas de controle biológico de pragas.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Agroecossist<strong>em</strong>a; inimigo natural; praga; predador.<br />
Introdução<br />
Os crisopídeos são inimigos naturais, predadores<br />
bastante eficientes, ocorrendo <strong>em</strong> diversos ambientes<br />
naturais e agrícolas. Lima (2004) verificou grande<br />
quantidade de crisopídeos na cultura do sorgo, podendo<br />
essas plantas ser<strong>em</strong> utilizadas como reservatório natural<br />
desses inimigos naturais.<br />
No Brasil, estudos avançados sobre a biologia desses<br />
insetos mostram que Chrysoperla externa (Neuroptera:<br />
Crysopidae) se destaca devido à grande voracidade<br />
de suas larvas. Observando os crisopídeos <strong>em</strong> suas<br />
diferentes fases do ciclo de vida é possível verificar<br />
a presença deles <strong>em</strong> variadas culturas de interesse<br />
econômico, como o citros, milho, soja, sorgo, alfafa,<br />
fumo, videira, algodão, macieira, seringueira, mangueira<br />
e videira, entre outras. Eles pod<strong>em</strong> se alimentar de<br />
ovos, lagartas, pulgões, cochonilhas, moscas-brancas,<br />
ácaros e vários outros artrópodes de pequeno<br />
tamanho (Embrapa, 2010). Ao ser<strong>em</strong> introduzidas nos<br />
agroecossist<strong>em</strong>as, essas espécies de inimigos naturais<br />
ajudam a manter a densidade populacional das pragas<br />
<strong>em</strong> níveis reduzidos.<br />
Esses predadores têm despertado atenções quanto<br />
ao seu uso no controle de insetos praga como: afídeos,<br />
cochonilhas, cigarrinhas, tripes, moscas-brancas,<br />
psilídeos, ovos e larvas de coleópteros, dípteros, entre<br />
outros. Ribeiro et al. (2007) constataram larvas de C.<br />
externa predando ovos e lagartas do minador-doscitros,<br />
Phyllocnistis citrella (Lepidoptera: Gracillariidae),<br />
d<strong>em</strong>onstrando a ação eficiente desse predador no<br />
controle biológico de pragas.<br />
Mediante essas constatações e considerando o<br />
grande potencial desses insetos, principalmente do<br />
gênero Chrysoperla, delineou-se esta pesquisa de cunho<br />
bibliográfico a fim de reunir informações mais detalhadas<br />
a respeito dos aspectos bioecológicos, b<strong>em</strong> como do<br />
potencial de uso desses predadores <strong>em</strong> programas de<br />
controle biológico de pragas.<br />
Aspectos bioecológicos dos crisopídeos<br />
Para algumas espécies de crisopídeos, tanto as larvas<br />
como os adultos pod<strong>em</strong> ser eficientes predadores de<br />
vários artropedes <strong>em</strong> diferentes agroecossist<strong>em</strong>as.<br />
Entretanto, pouco se conhece sobre os aspectos<br />
bioecológicos das espécies encontradas nas Américas<br />
Central e do Sul (Carvalho e Ciciola, 1996).<br />
A família Chrysopidae compreende um grande<br />
numero de espécies cujos adultos são de corpo delicado,<br />
geralmente de cor esverdeada, olhos dourados, antenas<br />
filiformes, asas hialinas e longas, com nervuras evidentes.<br />
As larvas desses insetos possu<strong>em</strong> um aparelho bucal<br />
composto por mandíbulas que funcionam como uma<br />
“pinça” e como peças sugadoras. Além disso, cada<br />
uma delas apresenta ao longo do lado ventral um sulco<br />
escavado do ápice a base, ao qual se adapta a maxila<br />
laminada que também é escavada longitudinalmente.<br />
Essas duas peças se un<strong>em</strong> formando um canal associado<br />
à cavidade bucal através do qual ocorre a passag<strong>em</strong> da<br />
h<strong>em</strong>olinfa sugada do hospedeiro (Lima, 1942). Outra<br />
característica marcante desses insetos é a presença<br />
de ovos pedicelados, conferindo-lhes proteção contra<br />
parasitóides e predadores. Seus ovos são de coloração<br />
esverdeada quando recém ovipositados e à medida que<br />
o <strong>em</strong>brião se desenvolve, torna-se escuro (Smith, 1921).<br />
Na fase jov<strong>em</strong> esses predadores passam por instares,<br />
sendo a duração do primeiro, segundo e terceiro de dois<br />
a sete, dois a cinco e quatro a dez dias, respectivamente<br />
(SMITH, 1922). A ocorrência de canibalismo entre os<br />
crisopídeos é comum entre larvas recém eclodidas, as<br />
quais se alimentam de ovos e mesmo de larvas de sua<br />
1 Professor mestre do curso de Administração de Empresas, Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG - Campus de Frutal). Avenida Professor Mário<br />
Palmério, 1.000 – CEP 38200 – 000, Frutal – MG – E-mail: joaoulhoaj@bol.com.br.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 101-106<br />
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João Luís Ribeiro Ulhôa<br />
própria espécie (New, 1975).<br />
Scopes (1969) observou <strong>em</strong> flores de crisânt<strong>em</strong>o<br />
cultivadas <strong>em</strong> casa de vegetação que o período larval<br />
de Chysoperla carnea (Neuroptera: Crysopidae) foi<br />
completado quando cada larva predou <strong>em</strong> média 385<br />
pulgões Myzus Persicae (H<strong>em</strong>íptera: Aphididae).<br />
Após o seu completo desenvolvimento, as larvas de<br />
crisopídeos tec<strong>em</strong> um casulo de seda, transformandose<br />
posteriormente <strong>em</strong> pupas. O casulo é confeccionado<br />
durante um período de 24 à 48 horas (Smith, 1922).<br />
Aun (1986) observou que o período pupal médio de<br />
C. externa criada a 25º C e alimentadas com ovos de<br />
Anagasta kuehniella (Lepidopera: Pyralidae) durante a<br />
fase larval foi de 10,5 dias, com uma viabilidade média<br />
de 79,5 %.<br />
No início da fase adulta ocorre o acasalamento, e<br />
a oviposição inicia-se poucos dias após a fecundação<br />
(New, 1975). O período de pré-oviposição é variável<br />
<strong>em</strong> função da espécie, das condições climáticas e do<br />
fornecimento de alimento aos adultos (Rosset, 1984).<br />
Comparando os aspectos reprodutivos de C. externa<br />
criada a uma t<strong>em</strong>peratura de 25°C, umidade relativa<br />
de 70-80% e fotofase de 14 horas com aqueles de<br />
Crysoperla mediterranea (Neuroptera: Crysopidae)<br />
obtidos <strong>em</strong> condições de 20° C, umidade relativa de<br />
70-80% e fotofase de 16 horas, Carvalho et al. (1996)<br />
verificaram para ambas as espécies que as fêmeas<br />
alimentadas com levedo de cerveja e mel na proporção<br />
de 1:1 apresentaram maior fecundidade do que aquelas<br />
alimentadas com outras dietas. Além disso, as fêmeas<br />
de C. externa ovipositaram <strong>em</strong> média 2.304 ovos<br />
durante 84,5 dias enquanto que as de C. mediterrânea<br />
colocaram 2.160 ovos <strong>em</strong> 103,3 dias.<br />
Venzon (1991) e Venzon e Carvalho (1993),<br />
trabalhando com Ceraeochrysa cubana (Neuroptera:<br />
Crysopidae), observaram que a duração da fase imatura<br />
aumentou quando a t<strong>em</strong>peratura foi reduzida de 30°<br />
para 20°C. Também foi verificado que dietas contendo<br />
lêvedo de cerveja e mel foram adequadas, permitiu<br />
uma alta produção de ovos. Ribeiro (1998) verificou<br />
que a dieta composta por levedo de cerveja, mel<br />
e pólen permitiu um incr<strong>em</strong>ento da oviposição <strong>em</strong><br />
C. externa, sendo a duração dos períodos de préoviposição,<br />
oviposição e pós-oviposição de 2,5; 7,9<br />
e 1,9 dia, respectivamente. Verificou também que o<br />
desenvolvimento larval foi acelerado quando as larvas<br />
do predador Aphis gossypii (Homoptera: Aphididae) foi<br />
oferecida como supl<strong>em</strong>ento alimentar.<br />
O desenvolvimento e o potencial de alimentação<br />
de C. carnea alimentada com diferentes insetos-praga<br />
do algodoeiro foram estudados por Balasubramani e<br />
Swamiappan (1994). Foi constatado que esse inseto<br />
apresentou um rápido desenvolvimento larval (8,2<br />
dias), consumindo ovos de piralídeo Corcyra cephalonica<br />
(Lepdoptera: Pyralidae), o qual se prolongou para 11,1<br />
dias utilizando, como fonte de alimento, lagartas do<br />
noctuídeo Heliothis armigera (Lepidoptera: Noctuidae).<br />
Klinger et al. (1996) constataram que a capacidade<br />
predatória de larvas de C. carnea alimentadas com<br />
ovos e lagartas de primeiro instar de Mamestra<br />
brassicae (Lepidopetra: Noctuidae) foi máxima no<br />
terceiro instar, com 87% e 85% do número total de<br />
ovos e lagartas, respectivamente, e que o ciclo total<br />
médio de desenvolvimento foi de 27,4 e 21,5 dias,<br />
respectivamente. Observaram uma mortalidade média<br />
de 10% para as larvas de C. carnea, quando alimentadas<br />
com ovos, e de 15%, quando alimentadas com lagartas<br />
de primeiro instar desse noctuídeo.<br />
Kabissa et al. (1995), trabalhando <strong>em</strong> condições<br />
de laboratório <strong>em</strong> t<strong>em</strong>peratura variando de 28-32°C<br />
e usando plantas de algodoeiro como substratos,<br />
acompanharam o desenvolvimento larval de Chrysoperla<br />
congrua (Neuroptera: Crysopidae) e constataram que<br />
ovos de H. armigera e ninfas de A. gossypii foram presas<br />
adequadas, mesmo tendo uma mortalidade de 25 e<br />
46,9% das larvas de terceiro instar quando alimentadas<br />
com as respectivas presas. Observaram ainda que as<br />
larvas consumiram 169,8 ovos de H. armigera e 171,8<br />
ninfas de A. gossypii.<br />
Maia (1998) e Maia et al. (2000), estudando os<br />
aspectos biológicos de C. externa alimentada com o<br />
pulgão Schyzaphis graminum (H<strong>em</strong>iptera: Aphididae),<br />
mencionaram que a duração da fase jov<strong>em</strong> diminuiu<br />
com o aumento da t<strong>em</strong>peratura, sendo que na faixa<br />
de 21 a 30°C houve um desenvolvimento normal das<br />
larvas. Isso evidencia que esse pulgão foi adequado ao<br />
desenvolvimento de C. externa.<br />
Fonseca (1999) e Fonseca et al. (2000) avaliaram<br />
a capacidade predatória de C. externa <strong>em</strong> diferentes<br />
t<strong>em</strong>peraturas e tendo S. graminum como alimento.<br />
Concluíram que t<strong>em</strong>peraturas mais elevadas<br />
provocaram aumento no consumo diário de pulgões<br />
e que a densidade de presas disponíveis interferiu no<br />
consumo e na intensidade de ataque desse predador.<br />
Controle biológico de<br />
pragas com crisopídeos<br />
Figueira (2002) relatou que os crisopídeos<br />
destacam-se pela facilidade de criação <strong>em</strong> ambientes<br />
de laboratórios, apresentando uma elevada taxa<br />
reprodutiva, além de não necessitar de presas quando<br />
ating<strong>em</strong> a fase adulta.<br />
As larvas e adultos de algumas espécies de crisopídeos<br />
são caracterizados como predadores eficientes de
pequenos insetos e ácaros <strong>em</strong> muitas culturas de<br />
interesse econômico (New, 1975). Núñez (1988)<br />
mencionou os crisopídeos como os mais importantes<br />
predadores da ord<strong>em</strong> Neuroptera, des<strong>em</strong>penhando<br />
papel significativo no controle de pragas. Freitas<br />
e Fernandes (1996) observaram que as larvas dos<br />
crisopídeos alimentam-se de pulgões, cochonilhas,<br />
ácaros, tripés, ovos e lagartas, e os adultos, que não<br />
são predadores, alimentam-se de néctar, pólen ou<br />
honeydew.<br />
A importância de algumas espécies de crisopídeos na<br />
redução populacional de insetos-praga do algodoeiro<br />
foi destacada por Gravena e Cunha (1991), os quais<br />
constataram a ocorrência natural de C. externa e<br />
C. cubana, reduzindo a densidade populacional do<br />
curuquerê-do-algodoeiro. Em condições de laboratório,<br />
Ribeiro (1988) observou que larvas de C. externa foram<br />
eficientes predadoras de ovos desse noctuídeo e<br />
também do pulgão A. gossypii.<br />
Liberações de larvas de C. carnea <strong>em</strong> algodoeiro<br />
reduziram <strong>em</strong> 96% as populações de Helicoverpa<br />
zea (Lepidoptera: Noctuidae) e Heliothis virescens<br />
(Lepidoptera: Noctuidae) (RIDGWAY; JONES, 1969).<br />
Hamilton et al. (1982) verificaram que larvas de C. carnea<br />
na cultura de sorgo exerceram um importante papel<br />
no controle de pulgão-verde S. graminum. Realizando<br />
liberação inundativa de 335 mil ovos de C. carnea por<br />
hectare de macieira anã, Hagley (1989) verificou uma<br />
redução significativa do número de ninfas e adultos<br />
ápteros de pulgão Aphis pomi (H<strong>em</strong>iptera: Aphididae),<br />
quando a relação predador/presa foi de 1:19 e 1:10,<br />
respectivamente.<br />
Hagley e Miles (1987) verificaram um controle<br />
eficiente do ácaro Tetranychus urticae (Acari:<br />
Tetranychidae) <strong>em</strong> pessegueiro, através de liberações<br />
de ovos de C. carnea <strong>em</strong> locais onde tratamentos com<br />
produtos fitossanitários foram ineficientes.<br />
Conclusão<br />
Observamos neste trabalho as características<br />
bioecológicas dos crisopídeos como, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
facilidade de criação <strong>em</strong> laboratório e manuseio, alta<br />
taxa reprodutiva e uma grande variedade de pragas<br />
predadas.<br />
O desenvolvimento de programas de controle<br />
biológico de insetos-praga pela pesquisa brasileira e a<br />
sua aplicação d<strong>em</strong>onstram a viabilidade da utilização<br />
de insetos predadores, como é o caso do crisopídeo<br />
descrito acima.<br />
A voracidade e a ampla distribuição desses insetos<br />
<strong>em</strong> diferentes espécies de plantas e ambientes indicam<br />
que eles são inimigos naturais adaptados à predação de<br />
Bioecologia dos crisopídeos e sua importância no controle biológico de pragas<br />
insetos-pragas.<br />
A mudança de comportamento da sociedade pela<br />
produção de alimentos orgânicos e saudáveis, o<br />
favorecimento à preservação da natureza e a busca pela<br />
melhoria de saúde humana reforçam a utilização dos<br />
crisopídeos e outros insetos predadores <strong>em</strong> programas<br />
de controle biológico.<br />
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103
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João Luís Ribeiro Ulhôa<br />
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Bioecologia dos crisopídeos e sua importância no controle biológico de pragas<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 101-106<br />
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106<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 101-106<br />
João Luís Ribeiro Ulhôa<br />
BIOECOLOGY OF CRISOPÌDEOS AND THEIR IMPORTANCE<br />
IN THE BIOLOGICAL CONTROL OF HARMFUL INSECTS<br />
ABSTRACT: This work has the objective of describing the bioecological aspects of Crisopideos and the characteristics<br />
of this predator and aims at associating th<strong>em</strong> to biological control of harmful insects. Taking into account the large<br />
potential of these insects, mainly those belonging to Chrysoperla, we delineate this research of the bibliographic<br />
character to obtain more detailed information about this aspect as well as the potential of the use of this predator<br />
in the biological control programs of harmful insects.<br />
KEYWORDS: Agroecosyst<strong>em</strong>; natural en<strong>em</strong>ies; pest; predators.
UM ESTUDO SOBRE O AMOR ROMÂNTICO<br />
E SUA REPRESENTAÇÃO PARA OS GÊNEROS<br />
FEMININO E MASCULINO<br />
Lara Franco Costa 1<br />
RESUMO: O presente trabalho apresenta uma investigação acerca do amor romântico e revela também os<br />
resultados da pesquisa realizada na tentativa de analisar como homens e mulheres perceb<strong>em</strong> esse sentimento.<br />
Este estudo justifica-se <strong>em</strong> razão das inúmeras controvérsias, alegrias e tristezas causadas pelo amor romântico<br />
na vida dos homens. Objetiva-se investigar a percepção dos gêneros acerca do amor romântico, as possíveis<br />
diferenças no modo de perceber e viver o amor entre homens e mulheres, b<strong>em</strong> como os fatores que influenciam<br />
o modo como os indivíduos compreend<strong>em</strong> esse sentimento. Vislumbra-se conhecer acerca do amor romântico<br />
e alguns t<strong>em</strong>as envolvidos nesse sentimento, tais como a sua orig<strong>em</strong>, química cerebral e características, incluindo<br />
também, a diferenciação entre amor e paixão. A base teórica que norteia a pesquisa está nos estudos sobre o<br />
amor romântico de Fisher (2008), Platão (1983), entre outros. A metodologia adotada consiste <strong>em</strong> pesquisa<br />
bibliográfica aliada a pesquisa de campo com a utilização de entrevista estruturada feita a 16 pessoas – oito homens<br />
e oito mulheres – residentes na cidade de Ituiutaba, Minas Gerais, com faixa etária entre 20 e 55 anos. Dentre os<br />
resultados obtidos, destaca-se a real diferença na forma como homens e mulheres defin<strong>em</strong> o amor, resumidas a<br />
maior racionalidade e objetividade masculina e o romantismo, a intensidade e a sensibilidade f<strong>em</strong>inina. Conclui-se<br />
também, além das diferenças entre os gêneros, o amor romântico como um sentimento comedido, incondicional<br />
e duradouro formado por vários outros sentimentos e que está acima de todos os outros sentimentos que<br />
permeiam a humanidade.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Amor romântico; homens; mulheres; sentimento.<br />
Introdução<br />
Há muito se busca uma definição que seja<br />
perfeitamente aceita para o amor e apesar de inúmeras<br />
tentativas de estudiosos, poetas, cientistas, entre<br />
outros, ainda não é possível mensurar e definir toda<br />
abrangência de tal sentimento.<br />
É importante considerar que cada vez mais o<br />
amor parece ser uma condição indispensável para<br />
a realização da vida dos seres humanos. Contudo,<br />
apesar de objetivar<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre um mesmo fim, homens<br />
e mulheres atribu<strong>em</strong> significados diferentes a esse<br />
sentimento, gerando, então, conflitos e controvérsias.<br />
A relevância da pesquisa consiste <strong>em</strong> satisfazer um<br />
interesse pessoal e constatar as diferentes percepções<br />
do amor entre os gêneros e a influência da sociedade<br />
como determinante comportamental. Posteriormente,<br />
visa conscientizar homens e mulheres acerca de suas<br />
diferenças, buscando um relacionamento <strong>em</strong> que haja<br />
respeito mútuo e reduzindo os desentendimentos<br />
causados por diferenças e percepções tão distintas.<br />
Objetiva-se ainda que a pesquisa contribua para o<br />
entendimento do fenômeno amor romântico para<br />
aqueles que buscam compreendê-lo.<br />
Nesse sentido, a proposta do estudo é verificar a<br />
percepção de homens e mulheres acerca do amor<br />
romântico e investigar possíveis diferenças nessas<br />
mesmas percepções, apontando prováveis causas. Fazse<br />
necessário um estudo sobre as principais diferenças<br />
orgânicas entre os gêneros e das diferenças impostas<br />
pela sociedade.<br />
Verifica-se também a necessidade de compreender<br />
acerca do amor romântico, sua orig<strong>em</strong> e evolução<br />
através das eras e suas principais características através<br />
de uma abordag<strong>em</strong> generalista, não focando <strong>em</strong> teorias<br />
específicas.<br />
Definindo o amor romântico<br />
Segundo Braga, amor “origina-se do latim, amor, que<br />
significa ‘dedicação, afeição e ternura’” (BRAGA, 2010,<br />
p. 25).<br />
No mito do andrógino, Platão apresenta uma bela<br />
definição para o sentimento e inicia a explanação<br />
mencionando que<br />
nossa natureza outrora não era a mesma que<br />
a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar,<br />
três eram os gêneros da humanidade, [...] o<br />
1 Psicóloga, bacharelada pela Fundação Educacional de Ituiutaba - FEIT/Universidade do Estado de Minas Gerais - Campus de Frutal. Rua 12, n. 1093 Bairro<br />
Setor Sul – Ituiutaba - MG. E-mail: larafc@hotmail.com.<br />
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masculino e o f<strong>em</strong>inino, mas também havia<br />
mais um terceiro [...] andrógino era então um<br />
gênero distinto, tanto na forma como no nome<br />
comum aos dois, ao masculino e ao f<strong>em</strong>inino [...]<br />
(PLATÃO, 1983, p. 22).<br />
Segundo Platão, antes, três eram os gêneros: o<br />
f<strong>em</strong>inino (mulher – mulher), o masculino (hom<strong>em</strong> –<br />
hom<strong>em</strong>) e o andrógino (hom<strong>em</strong> – mulher). Este ser<br />
era dotado de força e vigor; tinha duas cabeças, quatro<br />
braços, quatro pernas, dois sexos e quatro orelhas. O<br />
masculino era descendente do sol, o f<strong>em</strong>inino descendia<br />
da terra e o andrógino da lua, pois, esta é formada por<br />
sol e terra (PLATÃO, 1983).<br />
Contudo, <strong>em</strong> função de uma investida contra os<br />
deuses, Zeus castigou-os, cortando-os ao meio. Dessa<br />
forma, tornaram-se dois (PLATÃO, 1983). Desde<br />
então, os ser<strong>em</strong> viv<strong>em</strong> uma busca constante pela sua<br />
metade a fim de restaurar<strong>em</strong> a sua antiga natureza<br />
“<strong>em</strong> sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a<br />
natureza humana” (PLATÃO, 1938, p. 23).<br />
Portanto, o amor seria justamente a busca constante<br />
pela metade perdida a fim de restabelecer o todo<br />
original. Tal ponto de vista r<strong>em</strong>ete à ideia de que<br />
as pessoas são incompletas e dev<strong>em</strong> procurar seu<br />
parceiro ideal. Mas, é válido considerar que essa junção<br />
não se trata somente de união sexual, mas de algo mais<br />
profundo. Assim, ao desejo e à procura desse todo se<br />
dá o nome de amor.<br />
Para alguns estudiosos, o amor é um querer, uma<br />
necessidade. Desta feita, não se ama aquilo que já se<br />
possui. Com base nesse pressuposto Sócrates (apud<br />
PLATÃO, 1983) apresenta uma definição para o<br />
referido sentimento. Segundo ele, o amor é amor por<br />
algo, algo certamente desejado. Em contrapartida, o<br />
objeto amado pode somente ser desejado quando não<br />
o possui; assim, o que se ama é justamente aquilo que<br />
não se t<strong>em</strong>.<br />
Ainda, seguindo o discurso socrático, o amor não é<br />
belo e n<strong>em</strong> feio, ele se encontra entre esses extr<strong>em</strong>os,<br />
pois sendo o amor filho de “Pobreza e Recurso”, ele é<br />
s<strong>em</strong>pre pobre, está longe de ser belo por ter herdado<br />
características de sua mãe e vive uma vida de precisão e<br />
necessidade. Segundo o pai, ele é insidioso com o que é<br />
belo e bom, é corajoso decidido e energético. Portanto,<br />
o amor está no meio da sabedoria e da ignorância. Ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ele é engenhoso, firme, corajoso<br />
e provido de todos os recursos para ser feliz, possui<br />
também todas as deficiências herdadas de sua mãe, é<br />
duro, seco, s<strong>em</strong> lar e capaz de fazer sofrer.<br />
Então, ao notar o lado não tão belo do amor, é<br />
importante considerar que ele leva ainda à condição de<br />
doadores e não somente de ganhadores.<br />
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Dessa forma, Boff traz a ideia de amor como entrega<br />
e renúncia, pois para ele “a autenticidade do amor se<br />
mede na capacidade de sofrer por causa do amor, de<br />
sustentar a relação para além da satisfação imediata,<br />
[...] até fundir as vidas numa única direção [...]”(BOFF<br />
apud SHINYASHIKI; DUMÊT, 2006, p. 18).<br />
Santo Agostinho (apud BRANDELLERO, 2006) propõe<br />
que o amor é uma espécie de desejo, que para ele seria algo<br />
que inquieta o hom<strong>em</strong> a fim de movê-lo àquilo que lhe é<br />
distinto, tendo como objetivo a felicidade. Santo Agostinho<br />
entende ainda que “o amor está na própria natureza<br />
humana” (AGOSTINHO apud MONTAGNA, 2006, p.<br />
39). Dessa forma, o amor é um sentimento intrínseco ao<br />
ser humano, que leva o hom<strong>em</strong> a buscar aquilo que não se<br />
t<strong>em</strong>. É ainda capaz de levar o hom<strong>em</strong> a uma vida virtuosa<br />
que consequent<strong>em</strong>ente proporciona felicidade.<br />
Para Reik, “o amor é uma forma de esboçar um<br />
equlíbrio, já que as pessoas se apaixonam por aquelas<br />
que possu<strong>em</strong> as qualidades que faltam nelas e que<br />
mais admiram” (REIK apud LYNGZEIDETSON, 2007,<br />
p. 2). Assim, pode-se propor que o amor é um estado<br />
motivacional tão fundamental quanto a sede e a fome,<br />
pois é capaz de mover o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> direção àquilo que<br />
lhe falta. E quando se encontra a metade perdida, é<br />
possível manter um equilíbrio, já que as pessoas buscam<br />
um outro que tenha qualidades que lhes são distintas.<br />
O amor é dotado de sensações e características<br />
próprias que o circunda e que arrebatam o hom<strong>em</strong> e<br />
todo o seu ser. Esse raciocínio leva à ideia apresentada<br />
por Rodrigues, Assmar e Jablonski que aponta “o amor<br />
como sendo algo multidimensional” (RODRIGUES;<br />
ASSMAR; JABLONSKI 1999, p. 347), ou seja, o amor<br />
como um sentimento formado por uma variedade<br />
de características. Assim, o amor romântico se<br />
relaciona a vários outros sentimentos: “respeito,<br />
admiração, lealdade, gratidão, solidariedade, apreensão,<br />
acanhamento, nostalgia, r<strong>em</strong>orso, e até o senso de<br />
justiça” (FISHER, 2008, p. 128). Portanto, o amor é um<br />
sentimento complexo, dotado de um misto de outros<br />
sentimentos, <strong>em</strong>oções e sensações.<br />
Vale ressaltar que o amor romântico é um sentimento<br />
único porém, diferente para cada um que o vivencia. E<br />
ele será definido por cada amante, de acordo com sua<br />
subjetividade, experiências e expectativas. Seguindo<br />
essa ideia, é possível propor que se “se indagar a várias<br />
pessoas o que é amor, seguramente, ter<strong>em</strong>os uma<br />
quantidade tão diversificada de respostas de acordo<br />
com o número de respondentes” (ANGERAMI-<br />
CAMOM, 1998, p. 34). E essa diversidade de respostas<br />
se deve a vários fatores como cultura, experiências<br />
vividas e fatores orgânicos.<br />
Segundo Watson, todo comportamento dos<br />
seres humanos é “o resultado de condicionamento
Um estudo sobre o amor romântico e sua representação para os gêneros f<strong>em</strong>inino e masculino<br />
e aprendizag<strong>em</strong>; isto é, produtos das experiências<br />
passadas e das influências do meio” (WATSON apud<br />
HOCKENBURY, D. H.; HOCKENBURY, S. E., 2003, p.<br />
170). T<strong>em</strong>-se, então, que cada um se comporta e significa<br />
as coisas ao seu redor de acordo com suas experiências<br />
e com as influências exercidas pela sociedade.<br />
Outro fator importante a ser notado é que a maneira<br />
como o amor é abordado e vivenciado pode variar<br />
de acordo com a subjetividade de cada um, com o<br />
momento religioso, político, social, histórico e cultural<br />
vigentes. Isso v<strong>em</strong> de encontro com as ideias propostas<br />
por Sartre, visto que para ele “as coisas são desprovidas<br />
de sentido” (SATRE apud SILVA, 2010). Sendo assim,<br />
as coisas não têm significado e serão entendidas e<br />
significadas a apartir das vivências e experiências de<br />
cada um.<br />
Portanto, diante da multiplicidade de sentidos<br />
atribuídos ao amor, pode-se referir a ele como um<br />
sentimento voltado a out<strong>em</strong>. E de ele ser o mesmo<br />
sentimento para todos, a sua experiência resulta<br />
diferentes percepções de a cordo com qu<strong>em</strong> o vive.<br />
A orig<strong>em</strong> e a evolução do amor romântico<br />
A busca pela compreensão da orig<strong>em</strong> do amor<br />
esbarra <strong>em</strong> muitas descobertas sobre a evolução da<br />
espécie humana. Entretanto, pouco se sabe sobre os<br />
primeiros hominídeos, os quais, acredita-se, que tenham<br />
vivido há cerca de sete milhões de anos atrás. Contudo,<br />
é possível afirmar que esses hominídeos cortejavam,<br />
copulavam e consequent<strong>em</strong>ente procriavam.<br />
Seguindo essa linha de raciocínio, é importante<br />
levar <strong>em</strong> consideração que os homens descend<strong>em</strong> dos<br />
primitivos macacos, que não têm o hábito de viver<strong>em</strong><br />
aos pares. Todavia, na época de acasalamento, eles<br />
ficam cheios de energia e concentram atenção na busca<br />
por um parceiro ideal para perpetuar a espécie. Logo,<br />
partindo desse pressuposto, se homens descend<strong>em</strong><br />
dos macacos, os primeiros hominídeos também não<br />
viviam aos pares e provavelmente uniam-se apenas para<br />
procriação.<br />
É válido ressaltar, então, que mesmo antes da<br />
necessidade de união para a criação dos filhos, os<br />
primatas já realizavam o processo de corte. Apesar de<br />
não possuír<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong>, eles utilizavam de outros<br />
talentos para cortejar e conquistar parceiros para<br />
o acasalamento e procriação, pois o macho deveria<br />
diss<strong>em</strong>inar o seu material genético ao máximo, e as<br />
fêmeas buscariam o melhor provedor para garantir uma<br />
boa descendência.<br />
Assim sendo, são vários os fatores que contribuíram<br />
para que a espécie homo pudesse alcançar lenta<br />
e gradualmente a condição homo sapiens. Dentre<br />
esses fatores, acredita-se que o mais relevante seja<br />
a verticalização de sua postura, sendo a posição<br />
decisiva para a liberação das mãos, possibilitando<br />
assim, movimento de preensão (BRAZ, 2006). Com<br />
a liberação das mãos e do maxilar (das funções de<br />
preensão), a caixa craniana ficou isenta de atividades a<br />
quais era constant<strong>em</strong>ente submetida. Tal fator facilitou<br />
a expansão das dimensões cerebrais, ocasionando<br />
um processo de desenvolvimento da complexidade<br />
cerebral. A libertação das mãos e o aumento e<br />
desenvolvimento do cérebro permitiu aos primatas a<br />
utilização de sinais e mímicas faciais, os quais pod<strong>em</strong> ter<br />
contribuído para a aquisição da linguag<strong>em</strong> e facilitado a<br />
fluência do amor (BRAZ, 2006).<br />
Segundo Morin (1979 apud BRAZ, 2006), a evolução<br />
do hom<strong>em</strong> como criatura psicológica ocorreu após a<br />
mudança para a condição de bipedalismo. Essa alteração<br />
talvez tenha sido essencial para a transformação das<br />
relações entre machos e fêmeas. Assim, com a condição<br />
bípede, as fêmeas ficaram sobrecarregadas, pois devido<br />
ao fato de não carregar<strong>em</strong> a prole nas costas e sim nos<br />
braços, seus m<strong>em</strong>bros superiores ficaram ocupados<br />
e as impedia de cavar, colher e des<strong>em</strong>penhar outras<br />
atividades enquanto levavam o filho no colo. Talvez<br />
tenha sido a partir daí que as mulheres começaram a<br />
buscar aquilo que pudesse ajudá-la e protegê-la, não<br />
somente gerar descendentes. Então, pode-se dizer<br />
que a formação de pares “tornou-se essencial para<br />
as mulheres e tornou-se adequada para os homens”<br />
(FISHER, 2008, p. 169).<br />
Nesse diapasão, pode-se dizer que é realmente<br />
provável que a busca pelo outro tenha se tornado mais<br />
intensa à medida que homens e mulheres primitivos<br />
começaram a se unir para criar sua prole e não somente<br />
para copulação. Concomitante a essa ligação, é possível<br />
acreditar que gradualmente os sentimentos de ligação<br />
também tenham começado a surgir.<br />
Outro aspecto a ser considerado é o fato de que com<br />
a verticalização da postura, tornou-se possível o contato<br />
face a face durante a cópula. Com a possibilidade de<br />
coito frontal, comportamentos de aconchego e carícias,<br />
além do contato entre os lábios foram possíveis na<br />
relação macho-fêmea, possibilitando a troca de carícias<br />
e <strong>em</strong>oções durante o ato sexual (BRAZ, 2006). Dessa<br />
forma, elevou-se o grau de intimidade, foi possível<br />
a valorização do rosto e da aparência e o aumento<br />
do sentimento de atração. Sendo assim, o ato sexual<br />
“passou a ser mais pessoal, com intimidade e entrega<br />
profunda, onde os parceiros tornavam-se unos e<br />
cúmplices neste momento” (BRAZ, 2006).<br />
É possível notar que a cópula entre os humanos<br />
t<strong>em</strong> todos os fatores que pod<strong>em</strong> “facilitar o início de<br />
um estado de dependência entre os dois parceiros,<br />
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enquanto liberam seus opiácios naturais” (ODENT,<br />
2000 apud BRAZ, 2006). Dessa maneira, unindo-se aos<br />
pares, é provável que os hominídeos tenham se sentido<br />
mais gratificados. Assim, estariam menos propensos a<br />
procurar por outros parceiros.<br />
Então, sexualidade, erotismo, ternura e necessidade<br />
de alguém para ajudar a proteger a prole combinaramse<br />
e formaram a base psicoafetiva do casal. Assim, tais<br />
fatores pod<strong>em</strong> ter dado orig<strong>em</strong> ao amor romântico<br />
(BRAZ, 2006).<br />
É possível, então, destacar o amor como el<strong>em</strong>ento<br />
que contribuiu para a evolução humana, pois ele traz<br />
dentre os seus fins a preservação e a perpetuação da<br />
espécie. Assim, o amor é sumamente importante para<br />
o desenvolvimento do hom<strong>em</strong>. Talvez seja por isso<br />
que esse sentimento cada vez mais t<strong>em</strong> se tornado<br />
uma condição indispensável para uma vida satisfatória<br />
e realizada.<br />
Ainda é possível dizer que s<strong>em</strong> amor os seres<br />
humanos não estabeleceriam vínculos, s<strong>em</strong> os quais<br />
não existiriam sist<strong>em</strong>as sociais e consequent<strong>em</strong>ente<br />
não haveria socialização entre os seres humanos.<br />
Por outro lado, é válido considerar que para<br />
alguns estudiosos, a função da experiência amorosa<br />
vai além da mera perpetuação da espécie. Segundo<br />
Lyngzeidetson (2007), mesmo que a tecnologia garanta<br />
a perpetuação da espécie, e as transformações culturais<br />
inutiliz<strong>em</strong> o casamento, homens e mulheres buscarão<br />
relacionamentos amorosos. Assim, considera-se que<br />
com a evolução da espécie, o estabelecimento de<br />
vínculos afetivos arraigou-se à natureza humana, se<br />
tornou essencial e fonte de realização para a espécie<br />
humana. O amor passou a ser inerente à essência do<br />
hom<strong>em</strong>.<br />
Outro aspecto relevante que deve ser pontuado é<br />
o fato de que ao longo da história da evolução, o amor<br />
é entendido sob diversos aspectos, sendo influenciado<br />
por forças políticas, econômicas e culturais. Assim,<br />
com o advento do Cristianismo, o amor passou a<br />
ser entendido como o amor altruísta, bondoso e que<br />
aceita o outro tal como ele é (CHAVES, 2006).<br />
Na Idade Média, era comum a repreensão dos<br />
sentimentos. A relação entre homens e mulheres<br />
acontecia apenas com o ato do casamento e sua<br />
função era apenas reprodutora e estabilizadora da<br />
sociedade. Ainda naquele período, os casamentos eram<br />
arranjados pelos pais, de modo a atender os interesses<br />
econômicos, religiosos e sociais. Portanto, acreditavase<br />
que o amor era consequência do casamento e não<br />
a causa do mesmo.<br />
Chaves aponta que no Brasil, no final do século<br />
XIX, “a pluralidade do campo amoroso existente era<br />
vigiada e cercada <strong>em</strong> função dos interesses político-<br />
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econômicos e culturais determinados pelos grupos<br />
sociais” (CHAVES, 2006, p. 829).<br />
Porém, há qu<strong>em</strong> considere a existência de várias<br />
formas de amor nesse mesmo período, visto que havia<br />
o modelo predominante e aceitável pela sociedade, o<br />
amor burguês; os amores eróticos e românticos, os<br />
quais fugiam das normas de condutas impostas pela<br />
sociedade e o amor sexual das classes operárias e<br />
camponesas (CHAVES, 2006).<br />
É importante notar que o amor só se tornou<br />
romântico com “o movimento romântico europeu<br />
que se desenvolveu a partir do sentimentalismo do<br />
século XVIII” (CAMPBELL, 2001 apud CHAVES,<br />
2006), por ser uma época de intensa valorização da<br />
sensibilidade e sentimentos mais virtuosos, opondose<br />
ao racionalismo até então estimado. Desde então,<br />
foi aberta a passag<strong>em</strong> para que o amor pudesse ser<br />
vivido de maneira a cultuar os desejos e afetos. E com<br />
o romantismo, foi consagrada a interdependência<br />
entre sexualidade e amor. A vivência do amor tornouse,<br />
portanto, fonte de satisfação sexual e <strong>em</strong>ocional<br />
(CHAVES, 2006).<br />
De acordo com Chaves, no início do século XX,<br />
houve uma “tentativa de domesticar as paixões e os<br />
desejos vistos como pecaminosos” (CHAVES, 2006,<br />
p. 841). Por outro lado, é válido considerar que ainda<br />
naquela época “a ênfase maior era posta na associação<br />
entre sexualidade, amor e casamento” (CHAVES,<br />
2006, p. 842). Assim, é possível perceber que mesmo<br />
domados, as paixões, a concepção e os padrões sociais<br />
haviam mudado.<br />
Com o decorrer dos anos, o amor se tornou<br />
romântico e passou a ser associado ao poder e à busca<br />
pela felicidade.<br />
À medida que o comércio, a indústria, a<br />
comunicação e a educação penetraram <strong>em</strong> todo<br />
planeta, [...] homens e mulheres abandonaram o<br />
costume dos casamentos arranjados para escolher<br />
parceiros que amam (FISHER, 2008, p. 206).<br />
É bom notar também que na medida <strong>em</strong> que as<br />
mulheres conquistaram poder e acessão econômica,<br />
elas tornaram-se independentes e puderam escolher<br />
os seus próprios casamentos, ou seja, foi possível o<br />
casamento colocando o amor como peça fundamental<br />
da relação (CHAVES, 2006).<br />
Assim, com a consagração da revolução sexual,<br />
teve início a sensação de vazio, a falta de carinho,<br />
afeto e <strong>em</strong>oção, pois essa revolução rompeu o tabu<br />
da repressão sexual, tornando a sexualidade algo<br />
banal com um único fim: a obtenção de prazer e<br />
alívio das tensões. E hoje, de maneira consciente,<br />
“o sexo para os humanos, refere-se muito mais ao
Um estudo sobre o amor romântico e sua representação para os gêneros f<strong>em</strong>inino e masculino<br />
desenvolvimento de uma ligação do que à procriação”<br />
(TREES, 2009, p. 50). Portanto, com o advento da<br />
revolução sexual, foram colocados <strong>em</strong> segundo plano:<br />
o amor, o sentimento e o carinho, visto que o sexo<br />
estava liberado entre todos. Porém, é válido salientar<br />
que não se pode generalizar a banalização do amor;<br />
a revolução sexual rompeu tabus até então definidos.<br />
Hoje o amor é muitas vezes deixado de lado para viver<br />
uma vida composta por experiências satisfatórias com<br />
a obtenção do prazer sexual. Contudo, mesmo diante<br />
de tamanha transformação, o amor é valorizado por<br />
muitos, “o hom<strong>em</strong> e a mulher buscam o ideal do amor<br />
romântico” (BRAGA, 2010, p. 25) e a sexualidade<br />
tornou-se uma experiência que compõe o amor.<br />
Destarte, a concepção e a vivência do amor<br />
sofreram mudanças com o passar dos anos. Isso<br />
porque “a cultura de cada época delimita as<br />
possibilidades e impossibilidades, incentiva certas<br />
condutas e interdita outras para o convívio humano”<br />
(HADDAD, 2010, p. 32). Tais mudanças tornaram o<br />
relacionamento amoroso baseado <strong>em</strong> uma escolha<br />
relacionada à afetividade e não unicamente a interesses<br />
de sobrevivência. Assim, conclui-se que hoje o amor<br />
t<strong>em</strong> suas bases <strong>em</strong> uma relação que traga realização e<br />
b<strong>em</strong>-estar a ambos.<br />
A química do amor romântico<br />
Segundo Marinho (2009), <strong>em</strong> matéria publicada no<br />
jornal O Globo, apaixonar-se é tão inconsciente que<br />
pode até mesmo ser comparado às necessidades<br />
básicas do ser humano, tais como sentir fome ou sede.<br />
Assim, o ato de se apaixonar ativa processos vitais<br />
arraigados que acionam áreas profundas do cérebro<br />
responsáveis pela recompensa.<br />
Ribeiro propõe que “o fenômeno do ‘amor’ resulta<br />
de reações químicas que ocorr<strong>em</strong> no cérebro e<br />
provocam efeitos físicos e mentais” (RIBEIRO, 2005,<br />
p. 58). Consequent<strong>em</strong>ente, o amor é um fenômeno<br />
neurobiológico complexo e t<strong>em</strong> suas bases <strong>em</strong><br />
atividades cerebrais de confiança, crença, prazer e<br />
recompensa. Essas atividades envolv<strong>em</strong> um número<br />
elevado de mensageiros químicos.<br />
De acordo Young (2009), diversas pesquisas<br />
vêm sendo realizadas na tentativa de identificar<br />
os componentes neurais e genéticos do amor. Os<br />
resultados apontam uma ligação entre dopamina,<br />
norepinefrina ou noradrenalina e uma possível relação<br />
com a serotonina.<br />
Legato (2006) aponta que ao examinar o cérebro<br />
apaixonado, áreas com vários receptores de dopamina<br />
estavam ativadas, sendo esse um neurotransmissor<br />
responsável por evocar sensação de b<strong>em</strong>-estar e<br />
prazer. Os altos níveis de dopamina no cérebro causam<br />
uma atenção extr<strong>em</strong>amente concentrada, b<strong>em</strong> como<br />
motivação e comportamentos orientados a um foco.<br />
Não se deve esquecer ainda que a dopamina é muito<br />
importante no mecanismo de desejo e recompensa.<br />
Algumas pesquisas realizadas apontam que o êxtase e<br />
a preferência por um determinado parceiro também<br />
se relacionam a uma elevação no nível dessa mesma<br />
substância. Outro aspecto importante é que à medida<br />
que tal substância aumenta no cérebro, os níveis de<br />
testosterona (o hormônio sexual) são estimulados<br />
(FISHER, 2008).<br />
A norepinefrina <strong>em</strong> altos níveis também causa<br />
excitação, alegria, energia excessiva, insônia e perda<br />
de apetite. Essa mesma substância também aumenta a<br />
capacidade da m<strong>em</strong>ória, o que talvez explique porque<br />
os enamorados se l<strong>em</strong>bram de pequenos detalhes<br />
sobre o amado (FISHER, 2008).<br />
Quanto à serotonina, ainda não é possível afirmar<br />
com precisão que ela esteja relacionada ao amor.<br />
Entretanto, pesquisas recentes estabelec<strong>em</strong> uma<br />
possível relação entre baixos níveis de serotonina e<br />
o amor, pois à medida que os níveis de dopamina e<br />
norepinefrina aumentam, cai o nível da serotonina.<br />
Portanto, os baixos níveis de serotonina parec<strong>em</strong> estar<br />
associados à fixação no ser amado (FISHER, 2006).<br />
Segundo pesquisas realizadas, determinadas partes<br />
do cérebro, inclusive a ponta do núcleo caudado,<br />
ativaram-se quando os enamorados olharam para a<br />
foto do amado. Para Fisher “esta região do cérebro<br />
dirige o movimento corporal” (FISHER, 2008, p. 96).<br />
A mesma autora afirma que “recent<strong>em</strong>ente foi possível<br />
perceber que esse enorme motor é parte do ‘sist<strong>em</strong>a<br />
de recompensa’ do cérebro” (FISHER, 2008).<br />
Vale ressaltar que o entusiasmo inicial da paixão<br />
e as substâncias químicas associadas a ela não são<br />
permanentes. Estudos realizados apontam que os<br />
níveis de testosterona tanto <strong>em</strong> homens quanto <strong>em</strong><br />
mulheres tend<strong>em</strong> a diminuir cerca de dois anos após<br />
o início da paixão. Contudo, durante a transição<br />
da paixão para o amor, há um aumento de outras<br />
substâncias (endorfina e ocitocina) que acabam<br />
por fortalecer o vínculo do casal, provocando boas<br />
sensações (LEGATO, 2006).<br />
Seguindo esse pressuposto, Marinho (2009) relata<br />
que a ocitocina e a vasopresina são importantes<br />
substâncias relacionadas ao apego e à fidelidade. É<br />
importante considerar ainda que para muitos autores,<br />
a ocitocina é considerada o “hormônio do amor”,<br />
enquanto que a vasopresina, liberada durante o ato<br />
sexual, proporciona a sensação de b<strong>em</strong>-estar, fator<br />
que muito pode contribuir para a longevidade de um<br />
relacionamento.<br />
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Lara Franco Costa<br />
Dessa maneira, durante a paixão, as substâncias<br />
envolvidas provocam dependência, êxtase, excitação,<br />
enfim, sensações de maior efusividade que proporcionam<br />
o estabelecimento e o fortalecimento das bases de<br />
vínculo <strong>em</strong>ocional entre os casais. Com o passar do<br />
t<strong>em</strong>po, à medida que a paixão diminui e o amor se<br />
estabelece, entram <strong>em</strong> cena substâncias que se tornam<br />
mais ativas e que são capazes de fortalecer o vínculo<br />
entre os enamorados, proporcionando paz e b<strong>em</strong>-estar.<br />
Amor e paixão<br />
Segundo Matarazzo, não se deve confundir amor<br />
e paixão, pois “apaixonar-se [...] não é suficiente para<br />
construir um relacionamento a dois” (MATARAZZO,<br />
1992, p. 57). De acordo com as ideias da mesma<br />
autora, uma paixão pode durar até dois anos. Assim, os<br />
relacionamentos que continuam pod<strong>em</strong> se transformar<br />
<strong>em</strong> um vínculo maior, o amor maduro.<br />
No início, é comum que os enamorados pass<strong>em</strong><br />
s<strong>em</strong>anas e até meses se cortejando a fim de encantar<br />
e impressionar o amado, mas com o passar do t<strong>em</strong>po<br />
o contentamento romântico amadurece, tornando a<br />
união profunda e estabelecendo uma ligação de longo<br />
prazo. As sensações de extr<strong>em</strong>a vitalidade, êxtase<br />
e pensamento frequente diminu<strong>em</strong> e sed<strong>em</strong> lugar<br />
a sentimentos mais tranquilos que proporcionam<br />
segurança. Portanto, “a natureza nos deu a paixão.<br />
Depois ela nos deu a paz” (FISHER, 2008, p. 254), ou<br />
seja, inicialmente t<strong>em</strong>os o êxtase da paixão, <strong>em</strong> seguida<br />
v<strong>em</strong> a tranquilidade proporcionada pelo amor. Assim,<br />
a neurociência postula que a paixão é uma espécie de<br />
“antesala do amor” (MARINHO, 2009).<br />
O amor é um complexo sist<strong>em</strong>a que envolve<br />
cognições, <strong>em</strong>oções e comportamentos que na<br />
maioria das vezes relaciona-se à felicidade humana, e<br />
o que o difere da paixão é a sua maior permanência e<br />
menor efusividade. Enquanto na paixão é comum que<br />
haja a desativação de áreas ligadas ao juízo crítico e à<br />
identificação de ameaça no ambiente, fazendo com que<br />
a pessoa apaixonada enxergue menos defeitos na outra.<br />
Seguindo essa linha de raciocínio, Costa (2005)<br />
propõe que a paixão é um estado latente que polariza<br />
o indivíduo <strong>em</strong> direção a um determinado objeto.<br />
Stendhal propõe que “o amor-paixão opõe-se à razão”,<br />
contudo, “ele se encontra, <strong>em</strong> parte, na orig<strong>em</strong> do amor<br />
romântico” (STENDHAL, 1999 apud CHAVES, 2006,<br />
p. 836). Segundo o autor, o amor-paixão t<strong>em</strong> como<br />
características a intensa erotização e a curta duração. Ele<br />
é invasivo e oferece perigo a ord<strong>em</strong> social. Assim, t<strong>em</strong>se<br />
que a paixão é irracional e relaciona-se fort<strong>em</strong>ente à<br />
erotização. Porém, ela é capaz de incitar o amor.<br />
Vale ressaltar que amor e paixão acabam por<br />
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estipular uma relação de interdependência. Todavia,<br />
exist<strong>em</strong> diferenças fundamentais entre eles: paixão é<br />
euforia, enquanto amor é calmaria. Paixão t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<br />
det<strong>em</strong>inado, amor é duradouro. Paixão é subta, e o<br />
amor é lento e gradual.<br />
Fatores construtores dos<br />
estereótipos sexuais<br />
Vygotsky (apud REGO, 2007) propõe que são vários<br />
os fatores que influ<strong>em</strong> na atividade do hom<strong>em</strong>, tais<br />
como definições hereditárias, experiências individuais e<br />
a assimilação da experiência da humanidade transmitida<br />
no processo de aprendizag<strong>em</strong>.<br />
Para Ribeiro, homens e mulheres são realmente<br />
diferentes, “viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> mundos distintos, com valores<br />
diversos e sob regras muito diferentes” (RIBEIRO,<br />
2005, p. 3). Quanto à forma de amar, Fisher postula<br />
que “boa parte da literatura psicológica afirma que os<br />
dois sexos sent<strong>em</strong> o amor romântico apaixonado mais<br />
ou menos com a mesma intensidade” (FISHER, 2008,<br />
p. 147). Porém, “homens e mulheres com freqüência<br />
defin<strong>em</strong> e expressam esta proximidade de forma<br />
diferente” (FISHER, 2008, p. 247).<br />
Legato propõe que “a sociedade e a cultura nas quais<br />
educamos meninos e meninas exerc<strong>em</strong> uma grande<br />
influência sobre sua formação” (LEGATO, 2006, p.<br />
12). Assim, a maneira como homens e mulheres se<br />
comportam se deve ao fato de uma intensa aprendizag<strong>em</strong><br />
que os ensina a agir de acordo com as determinações<br />
imposta a cada gênero.<br />
Pease (2000) acredita que as pessoas são como<br />
são devido às atitudes daqueles que faz<strong>em</strong> e fizeram<br />
parte do convívio social de cada um. Então, a sociedade<br />
enfatiza que meninas se vest<strong>em</strong> de rosa, são acariciadas<br />
e ensinadas a cuidar do outros, ganham bonecas e<br />
utensílios de casinha, enquanto os meninos se vest<strong>em</strong><br />
de azul, ganham bolas e carrinhos, levam tapas nas<br />
costas e são ensinados que não dev<strong>em</strong> chorar.<br />
É de grande valia ressaltar que exist<strong>em</strong> forças sociais<br />
que também contribu<strong>em</strong> para moldar a identidade<br />
sexual das pessoas, tais como a religião, a divisão do<br />
trabalho, os meios de comunicação, a música, a dança,<br />
os jogos etc. (MATARAZZO, 1992). Portanto, de<br />
acordo com o gênero, há formas pré-estabelecidas de<br />
des<strong>em</strong>penhar todas as suas atividades.<br />
Para Shinyashiki e Dumêt,<br />
nós aprend<strong>em</strong>os a d<strong>em</strong>onstrar nossa afetividade,<br />
originalmente, expressando nossas sensações<br />
<strong>em</strong> relação aos nossos pais. Tiv<strong>em</strong>os como<br />
modelo, a maneira como eles manifestavam<br />
seu carinho e amor por nós” (SHINYASHIKI;<br />
DUMÊT, 2006, p. 37).
Um estudo sobre o amor romântico e sua representação para os gêneros f<strong>em</strong>inino e masculino<br />
Sendo assim, um tipo de aprendizag<strong>em</strong> muito comum<br />
nas relações é a aprendizag<strong>em</strong> observacional, na qual se<br />
aprende através da observação dos comportamentos<br />
de outras pessoas. E de acordo com Hockenbury<br />
e Hockenbury “os seres humanos desenvolv<strong>em</strong> a<br />
capacidade de aprender pela observação muito cedo”<br />
(HOCKENBURY, D. H.; HOCKENBURY, S. E., 2003,<br />
p. 193). Assim, é possível constatar que as relações<br />
estabelecidas na família tend<strong>em</strong> a ser repetidas pelos<br />
filhos na infância ou na vida adulta. Ou seja, a maneira<br />
pela qual os pais se relacionam entre si e com os filhos<br />
exerc<strong>em</strong> grande influência no comportamento dos<br />
filhos, que muito aprend<strong>em</strong> pela imitação.<br />
É importante considerar que desde o nascimento, os<br />
homens são educados para viver <strong>em</strong> sociedade, porém,<br />
de forma diferente caso seja menino ou menina.<br />
Portanto, as experiências e os modelos aos quais os<br />
indivíduos são submetidos exerc<strong>em</strong> grande influencia<br />
sobre o papel que irão adotar, visto que as vivencias<br />
modificam a estrutura e as funções cerebrais para<br />
criar<strong>em</strong> m<strong>em</strong>órias dessas experiências.<br />
Ribeiro (2005) propõe que no início, como os homens<br />
eram obrigados a caçar para alimentar a família, eles<br />
tornaram-se menos sensíveis a fim de tolerar as lutas<br />
com animais valentes. Assim, seu convívio com a família<br />
era menor, impedindo-o de compreender sinais nãoverbais<br />
de comunicação. Em contrapartida, as mulheres<br />
aprenderam a notar pormenores nos comportamentos<br />
alheios, pois como cuidadora da prole, precisavam<br />
perceber mudanças sutis nos comportamentos. Isso<br />
fez com que elas reconhecess<strong>em</strong> os sentimentos com<br />
mais facilidade.<br />
De acordo com Costa (2005), à medida que o hom<strong>em</strong><br />
começou a produzir seus próprios alimentos, iniciou-se<br />
a definição de papéis para homens e mulheres. Como<br />
consequência disso, a função reprodutora da mulher<br />
favoreceu a subordinação ao hom<strong>em</strong>, pois a mesma<br />
passa a ser considerada como frágil e incapaz de assumir<br />
a liderança da família. Em contrapartida, o hom<strong>em</strong> passa<br />
a ser associado à ideia de autoridade devido à sua força<br />
física, assumindo o poder dentro da sociedade.<br />
Outro aspecto a ser considerado é que há muitos<br />
anos a mulher é vista como sensível e destinada ao<br />
amor. É como se ela fosse valorizada pela sua ternura<br />
e dedicação a esse sentimento. Inicialmente a mulher<br />
era tida como submissa e dependente do hom<strong>em</strong>.<br />
Com o decorrer dos anos, ela começa a ser valorizada<br />
unicamente como mãe e esposa. Com as diversas<br />
transformações ocorridas no século XX, inicia-se<br />
a inserção das mulheres no mercado de trabalho,<br />
tornando-as independentes. Até mesmo os métodos<br />
contraceptivos contribuíram com tais mudanças,<br />
visto que a sexualidade f<strong>em</strong>inina pôde desligar-se da<br />
reprodução e ser vivida de maneira prazerosa.<br />
Sendo assim, Rego postula que “a cultura é, portanto,<br />
parte constitutiva da natureza humana” (REGO, 2007,<br />
p. 42). Portanto, a construção social determina papéis<br />
e comportamentos específicos para cada gênero.<br />
Esses parâmetros estabelecidos influ<strong>em</strong> de maneira<br />
significativa no modo como cada gênero deve agir,<br />
modificando a sua maneira de ser, de perceber e<br />
consequent<strong>em</strong>ente de comportar-se no mundo.<br />
É possível propor também que as diferenças sexuais<br />
são ainda baseadas nas diferenças biológicas. Assim,<br />
o organismo do hom<strong>em</strong> é diferente do organismo<br />
da mulher. Segundo Tress, a principal diferença entre<br />
os gêneros se deve ao fato de que “os cérebros não<br />
cresceram exatamente da mesma maneira, o que seria<br />
de esperar, tendo <strong>em</strong> vista que os sexos enfrentam<br />
desafios evolutivos diferentes” (TRESS, 2009, p. 81).<br />
Pode-se dizer que as diferenças biológicas entre<br />
homens e mulheres talvez tenham se iniciado desde<br />
o princípio da espécie, visto que s<strong>em</strong>pre tiveram<br />
obrigações diferentes. Assim, enquanto os homens<br />
iam à caça e protegiam a família, as mulheres, por sua<br />
vez, ficavam e cuidavam das crianças. Como resultado,<br />
“seus corpos e cérebros se transformaram para se<br />
adaptar melhor às suas funções específicas” (RIBEIRO,<br />
2005, p. 6).<br />
Ainda segundo Ribeiro, “o cérebro da mulher é<br />
um pouco menor que o do hom<strong>em</strong>”, porém tal fato<br />
não influi <strong>em</strong> seus comportamentos, o que realmente<br />
interfere é a maneira de funcionamento do cérebro de<br />
cada um (RIBEIRO, 2005, p. 27).<br />
Na visão de Trees (2009), homens têm maior<br />
capacidade para a mat<strong>em</strong>ática, enquanto as mulheres<br />
revelam mais facilidade com a linguag<strong>em</strong>. Contudo, isso<br />
não deve ser entendido como uma regra.<br />
As mulheres possu<strong>em</strong> cerca de 11% a mais de<br />
neurônios do que os homens na parte relacionada à<br />
linguag<strong>em</strong> e audição e ainda apresentam um aumento<br />
no hipocampo, região de grande importância que<br />
compõe o sist<strong>em</strong>a límbico. Em contrapartida, os<br />
homens geralmente têm áreas com maiores volumes<br />
voltadas à ação. Outro aspecto relevante é que “o<br />
cérebro masculino dedica um espaço 2,5 vezes maior<br />
que os das mulheres ao sexo” (TRESS, 2009, p. 82).<br />
Seguindo essa ideia, o programa Globo Repórter<br />
trouxe na reportag<strong>em</strong> sobre a química do amor (2010)<br />
que homens e mulheres processam as <strong>em</strong>oções de<br />
maneira diferente um do outro. Vale l<strong>em</strong>brar que a<br />
sede <strong>em</strong>oção, no hom<strong>em</strong>, se posiciona no h<strong>em</strong>isfério<br />
direito do cérebro, enquanto na mulher, a mesma está<br />
presente nos dois h<strong>em</strong>isférios cerebrais e pode estar<br />
<strong>em</strong> ação ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que outras funções<br />
cerebrais (RIBEIRO, 2005), justificando assim a maior<br />
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Lara Franco Costa<br />
<strong>em</strong>otividade f<strong>em</strong>inina.<br />
O hipotálamo é o principal centro da expressão<br />
<strong>em</strong>ocional e do comportamento sexual. Além disso,<br />
é responsável pelo controle da pressão sanguínea, das<br />
batidas do coração, da sede, da fome, entre outros. Nas<br />
mulheres, essa região é menor do que nos homens e por<br />
isso o “seu organismo produz b<strong>em</strong> menos testosterona”.<br />
Portanto, “o impulso sexual costuma ser menor, assim<br />
como as atitudes agressivas” (RIBEIRO, 2005, p. 65).<br />
Um fato interessante a se pensar é até que ponto<br />
as diferenças cerebrais são naturais e s<strong>em</strong>pre fizeram<br />
parte dos protótipos de homens e mulheres. E até onde<br />
a cultura e a sociedade estimulam essas diferenças,<br />
sendo capazes até mesmo de modificar<strong>em</strong> as estruturas<br />
cerebrais. Entretanto, no mais, o que se pode afirmar<br />
é que a natureza determina algumas diferenças e a<br />
sociedade reforça e estimula os comportamentos<br />
estereotipados para os gêneros.<br />
Material e método<br />
A pesquisa foi dividida <strong>em</strong> três momentos: a fase<br />
exploratória, na qual se buscou o referencial teórico;<br />
o trabalho de campo, fase <strong>em</strong> que foi preparada e<br />
consolidada a entrevista; e o terceiro momento foi a<br />
analise da pesquisa.<br />
Assim, após a elaboração da entrevista e com base<br />
no referencial teórico já estabelecido, os sujeitos foram<br />
escolhidos, respeitando os procedimentos éticos quanto<br />
aos esclarecimentos sobre a pesquisa, sendo então<br />
solicitado a todos os entrevistados que assinass<strong>em</strong> o<br />
termo de consentimento livre e esclarecido.<br />
A amostra da pesquisa foi composta por 16 sujeitos,<br />
sendo oito do sexo f<strong>em</strong>inino e oito do sexo masculino,<br />
numa faixa etária entre 20 e 55 anos de idade, na cidade<br />
de Ituiutaba, Minas Gerais. Os sujeitos foram escolhidos<br />
aleatoriamente, sendo a faixa etária estabelecida o<br />
único critério.<br />
Para a realização das entrevistas não havia lugar<br />
determinado, elas podiam ser feitas no ambiente<br />
escolhido pelo próprio entrevistado. As entrevistas<br />
foram realizadas individualmente e transcritas na íntegra.<br />
A pesquisa foi feita de forma exploratória, na qual<br />
se estimulava os entrevistados a pensar<strong>em</strong> livr<strong>em</strong>ente<br />
sobre o t<strong>em</strong>a. O instrumento utilizado foi a entrevista<br />
estruturada, ou seja, as perguntas feitas aos participantes<br />
eram as mesmas, estavam claramente definidas e<br />
seguiam uma ord<strong>em</strong> pré-estabelecida.<br />
O material obtido a partir das entrevistas foi avaliado<br />
com base na análise de quantidades e conteúdos, e os<br />
t<strong>em</strong>as abordados foram decompostos <strong>em</strong> categorias e<br />
examinados posteriormente. Em seguida, pretendeuse<br />
interpretar o fenômeno observado a fim de<br />
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compreender os significados atribuídos ao t<strong>em</strong>a pelos<br />
participantes da pesquisa.<br />
Buscou-se saber com cada sujeito entrevistado: 1)<br />
Para você, o que é amor? 2) Quais são as sensações<br />
experimentadas quando se ama? 3) Você acha que<br />
homens e mulheres perceb<strong>em</strong> e sent<strong>em</strong> o amor de<br />
forma igual ou diferente? Por quê? 4) Você acredita<br />
que existam diferenças entre amor é paixão? Em caso<br />
afirmativo, quais são elas?<br />
Resultados e discussão<br />
Conforme a proposta deste estudo, a análise de<br />
dados será orientada pelas perguntas de pesquisa. Em<br />
se tratando da pergunta 1 - “Para você, o que é amor?”<br />
- as respostas apresentadas foram as mais variadas<br />
e trouxeram à tona a ideia já proposta a cerca da<br />
diversidade de respostas que pod<strong>em</strong> ser encontradas<br />
ao questionar as pessoas sobre a definição do amor, já<br />
que cada indivíduo o percebe de uma maneira, sendo<br />
influenciado por fatores biológicos e culturais.<br />
Foi possível notar que as mulheres consegu<strong>em</strong> definir<br />
melhor a sua percepção acerca do amor. Elas são mais<br />
criativas e prolongam mais as suas respostas. Apesar<br />
de não mencionar<strong>em</strong>, grande parte das mulheres<br />
perceb<strong>em</strong> o amor como um sentimento formado por<br />
vários outros sentimentos ou o define com apenas um<br />
ou dois sentimentos.<br />
Assim, 18,75% das mulheres acreditam que o amor<br />
é “companheirismo”. Outras 12,5% o defin<strong>em</strong> como<br />
“cumplicidade”, e a mesma porcentag<strong>em</strong> (12,5%) se<br />
repete para “respeito, renúncia, doação e aceitação”.<br />
Observando esses resultados, é possível associá-los a<br />
de doação propiciada pelo amor, ou seja, o amor como<br />
entrega e renúncia.<br />
As mulheres que entend<strong>em</strong> que o amor é composto<br />
por vários outros sentimentos se dividiram <strong>em</strong> igual<br />
porcentag<strong>em</strong> (6,25%) nos seguintes grupos: “carinho,<br />
atração, afeto, tolerância, comprometimento”.<br />
Outras entend<strong>em</strong> que o amor é: “querer/desejar b<strong>em</strong><br />
ao outro” (6,25%); “algo que vai além da explicação”<br />
(6,25%); “quase irreal no mundo de hoje” (6,25%)<br />
e “sentimento que proporciona <strong>em</strong>oção quando<br />
recíproco” (6,25%).<br />
Ainda com 6,25% para cada uma das definições abaixo,<br />
o amor é visto como um sentimento “sublime, profundo,<br />
duradouro, incondicional e construído a cada dia”.<br />
Os homens d<strong>em</strong>onstram mais objetividade <strong>em</strong><br />
suas respostas. Eles foram racionais, e suas definições<br />
parec<strong>em</strong> estar mais relacionadas ao contato ou<br />
proximidade física. Talvez isso possa ser atribuído<br />
ao fato de que os homens têm áreas cerebrais com<br />
maiores volumes voltadas para a ação.
Um estudo sobre o amor romântico e sua representação para os gêneros f<strong>em</strong>inino e masculino<br />
A resposta com maior incidência foi o amor como<br />
“zelo/cuidado”, representada por 12,5% dos indivíduos.<br />
Diferent<strong>em</strong>ente das f<strong>em</strong>ininas, as respostas<br />
masculinas não indicaram o amor como sendo formado<br />
por outros sentimentos, pois para eles o amor é: “uma<br />
mentira” (6,25%); “doar o melhor de si para o outro”<br />
(6,25%) - resposta que enfatiza o caráter de doação do<br />
amor; “algo que proporciona b<strong>em</strong>-estar e felicidade”<br />
(6,25%); “desejo” (6,25%); “querer ficar perto”<br />
(6,25%) e “atração por outra pessoa” (6,25%).<br />
Quando os homens mencionaram “atração por<br />
outra pessoa, desejo e querer ficar perto”, tornou-se<br />
possível relacionar tais características à necessidade de<br />
encontrar a sua metade e restabelecer o todo original<br />
através do contato físico.<br />
Durante a entrevista, um dos sujeitos entrevistados<br />
(6,25%) mencionou o amor como “uma forma cultural<br />
que inventaram antigamente de ganhar dinheiro e<br />
sobreviver”, ou seja, o amor como forma cultural de<br />
subsistência. Tal percepção não deixa de ser real, pois<br />
durante a Idade Média, o amor des<strong>em</strong>penhava uma<br />
função estabilizadora da sociedade, tendo <strong>em</strong> vista<br />
forças econômicas, políticas e religiosas. O mesmo<br />
entrevistado conclui dizendo que o amor “é hoje uma<br />
forma que as pessoas têm de viver juntas” (6,25%),<br />
trazendo <strong>em</strong> sua resposta uma definição já proposta<br />
que vê o amor como o estabelecimento de união<br />
<strong>em</strong>ocional com outr<strong>em</strong>.<br />
Para os homens, o amor foi definido também<br />
como o “sentimento mais puro na relação humana”<br />
(6,25%), “sentimento para si e para o outro” (6,25%),<br />
“sentimento destinado a uma pessoa que goste muito”<br />
(6,25%), “sentimento forte” (6,25%), “sentimento<br />
entre as pessoas” (6,25%) e ainda, um “sentimento que<br />
não se sabe mensurar a sua abrangência” (6,25%).<br />
Um dos entrevistados (6,25%) mencionou “que o<br />
amor é um sentimento que você t<strong>em</strong> para si e para com<br />
o outro; para com o outro é querer b<strong>em</strong> à pessoa assim<br />
como quer<strong>em</strong>os para nós mesmos”, ou seja, o amor<br />
romântico se inicia realmente quando as necessidades<br />
do outro se tornam tão importantes quanto às próprias.<br />
Portanto, t<strong>em</strong>-se aqui a ideia de amor como querer<br />
b<strong>em</strong> o amado.<br />
Assim, conclui-se que as mulheres d<strong>em</strong>onstram certa<br />
sensibilidade e <strong>em</strong>oção, expressando a percepção de<br />
um amor profundo, fantasioso e cheio de expectativas.<br />
Elas ainda conseguiram definir melhor sua percepção<br />
de amor <strong>em</strong> relação ao sexo oposto, enquanto os<br />
homens revelam mais praticidade, racionalidade e menos<br />
sensibilidade. Vale notar ainda a ideia nítida de um amor<br />
mais romântico para as mulheres do que para os homens.<br />
Na pergunta 2 - “Quais são as sensações<br />
experimentadas quando se ama?” - as mulheres<br />
d<strong>em</strong>onstraram viver o amor de maneira mais intensa, com<br />
sensações mais quentes e variadas. Sendo assim, 31,25%<br />
das respostas evidenciam a sensação de “tranquilidade”<br />
no amor. Outras 18,75% refer<strong>em</strong>-se ao “cuidado com o<br />
outro”, retomando a ideia de que durante anos a mulher<br />
foi preparada e dedicou-se exclusivamente a cuidar da<br />
casa, dos filhos e do marido e, ainda a hoje, t<strong>em</strong> arraigada<br />
<strong>em</strong> si essa preocupação e necessidade de cuidar do<br />
outro. Com base nesse resultado, chega-se a ideia da<br />
mulher valorizada pela sua ternura e dedicação ao amor<br />
e ao amado. O mesmo valor (18,75%) se repetiu para<br />
a sensação de “b<strong>em</strong>-estar” experienciadas no amor.<br />
Surgiram também as respostas “companheirismo”<br />
(12,5%) e “cumplicidade” (12,5%).<br />
Sentir-se amada, não estar sozinha, felicidade,<br />
alegria, entusiasmo, aceitação, doação, compreensão,<br />
dedicação, afeição, carinho, dúvida, realização, euforia,<br />
segurança, coração acelerado, rubor. Essas foram as<br />
respostas citadas, na proporção de 6,25% para cada,<br />
como sensações experimentadas pelas mulheres<br />
quando estão amando.<br />
Os homens d<strong>em</strong>onstraram mais sensações<br />
relacionadas à proteção com o outro, o que talvez<br />
possa se traduzir no papel estabelecido pela cultura<br />
do hom<strong>em</strong> como guardião e protetor. Dessa maneira,<br />
6,25% relataram “preocupação com o outro”, 6,25%<br />
focam sua “atenção no outro”, 6,25% mencionaram<br />
“trazer a felicidade do outro” e 6,25% mencionaram<br />
“ser você, mesmo tendo o outro para cuidar”.<br />
Dentre as respostas, 12,5% dos homens indicaram<br />
como sensação experimentada a “vontade” e o “gostar<br />
de ficar junto” e <strong>em</strong> mesma proporção, a sensação de<br />
“felicidade e prazer”.<br />
Ainda foram relatadas como sensações na proporção<br />
de 6,25% para cada: saudade, b<strong>em</strong>-estar, compl<strong>em</strong>ento,<br />
segurança, harmonia, sensação de não estar sozinho e<br />
calafrio. Aqui, a resposta “compl<strong>em</strong>ento” vai de encontro<br />
à necessidade de encontrar a metade perdida, pois<br />
seria como se homens e mulheres foss<strong>em</strong> incompletos<br />
até que encontrass<strong>em</strong> um parceiro especial para que os<br />
indivíduos não se sintam imperfeitos e solitários.<br />
Com 6,25% das respostas, apareceu a sensação<br />
de “<strong>em</strong>oção” vivenciada no amor, ressaltando as<br />
extraordinárias <strong>em</strong>oções propiciadas pelo sentimento.<br />
Mais uma vez os homens revelaram objetividade e<br />
maior racionalidade na vivência do amor. Enquanto as<br />
mulheres d<strong>em</strong>onstram viver um amor mais intenso e<br />
dotado de várias sensações e sentimentos. Vale notar<br />
que as mulheres possu<strong>em</strong> mais neurônios <strong>em</strong> áreas<br />
relacionadas à linguag<strong>em</strong>, ao que talvez se atribua o fato<br />
de elas estenderam mais as suas respostas <strong>em</strong> relação<br />
aos homens.<br />
Tanto as mulheres quanto os homens se referiram<br />
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à sensação de b<strong>em</strong>-estar propiciada pelo amor. Assim,<br />
t<strong>em</strong>-se o amor como uma inclinação a outra pessoa, o<br />
que é capaz de proporcionar b<strong>em</strong>-estar e equilíbrio à<br />
espécie humana.<br />
As mulheres parec<strong>em</strong> experimentar mais sensações<br />
<strong>em</strong> relação aos homens, indicando a vivência de um amor<br />
mais intenso e romântico. Portanto, elas d<strong>em</strong>onstraram<br />
sensações de maior entusiasmo e felicidade. Já as<br />
sensações experienciadas pelos homens são mais<br />
comedidas. Todavia, ambos os gêneros relacionam o<br />
amor à felicidade humana.<br />
Com relação à pergunta 3 - “Você acha que homens e<br />
mulheres percebam o amor de forma igual ou diferente<br />
um do outro? Por quê?” -, as mulheres pareceram<br />
enfatizar mais as diferenças entre os gêneros, atribuindo<br />
mais adjetivos aos homens do que a si próprias. De<br />
modo geral, as respostas apresentadas fizeram menção<br />
à percepção de homens como insensíveis.<br />
As respostas que enfatizaram a racionalidade do<br />
hom<strong>em</strong> e a sensibilidade e doação da mulher são<br />
comuns a ambos os sexos. Vale ressaltar, então, que<br />
talvez essa sensibilidade da mulher e a insensibilidade<br />
e maior racionalidade do hom<strong>em</strong> estejam relacionadas<br />
a heranças culturais. Isso porque no início, o hom<strong>em</strong><br />
caçava para alimentar a prole, então ele devia ser<br />
rude, agressivo e insensível para percorrer a mata e<br />
enfrentar animais ferozes; enquanto a mulher ficava<br />
<strong>em</strong> casa cuidando da prole, s<strong>em</strong>pre atenta às mudanças<br />
corporais dos filhos, sendo cuidadosa e perfeita. Outro<br />
fator relevante é o fato de que durante anos, a mulher<br />
era vista como sensível e destinada ao amor, sendo<br />
valorizada por tais características.<br />
Dessa maneira, 43,75% das mulheres acreditam que<br />
“homens e mulheres percebam e sintam o amor de forma<br />
diferente um do outro”. Segundo as entrevistadas, essas<br />
diferenças se atribu<strong>em</strong> aos seguintes fatores: 18,75%<br />
das mulheres acreditam que os “homens sejam mais<br />
racionais”. Outras apontaram que os “homens não sab<strong>em</strong><br />
d<strong>em</strong>onstrar” (6,25%), que “banalizam o sentimento da<br />
mulher” (6,25%), que “não cultivam o amor” (6,25%),<br />
que “são desligados” (6,25%), que são “grosseiros”<br />
(6,25%), que são “menos sensíveis” (6,25%), que são<br />
“fechados” (6,25%), que são “introspectivos” (6,25%)<br />
e que são “objetivos” (6,25%).<br />
As mulheres ainda atribuíram as seguintes<br />
características ao seu gênero: “a mulher é mais<br />
sentimental” (12,50%) e por isso a diferença; “mulher é<br />
frágil” (6,25%); as “mulheres doam-se mais” (6,25%),<br />
sugerindo que elas sejam destinadas ao amor; “a<br />
mulher espera e alimenta expectativas” (6,25%). Surgiu<br />
também, com 6,25% das respostas, que a diferença<br />
se deve ao fato “de homens e mulheres enxergar<strong>em</strong><br />
tudo de forma diferente” e ainda, com o mesmo valor<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 107-120<br />
(6,25%), a atribuição da diferença “devido ao fato de<br />
ser<strong>em</strong> homens e mulheres”, ou seja, a diferença se dá<br />
justamente por pertencer<strong>em</strong> a gêneros distintos.<br />
Apenas 6,25% das mulheres acreditam que “os<br />
gêneros percebam e sintam o amor de forma igual<br />
um do outro, porém eles têm maneiras diferentes<br />
de expressar o seu sentimento”. Exatamente como<br />
assevera Fisher (2008) ao mencionar que homens e<br />
mulheres geralmente defin<strong>em</strong> e expressam o amor de<br />
maneira diferente.<br />
Dos homens entrevistados, 31,25% julgam ser<br />
“diferente a forma de perceber e vivenciar o amor<br />
entre homens e mulheres”. Na percepção masculina,<br />
as diferenças são atribuídas de igual para igual, ou seja,<br />
os homens não atribu<strong>em</strong> às mulheres tantos adjetivos<br />
como elas lhe atribu<strong>em</strong>.<br />
As características atribuídas ao sexo masculino<br />
pelos próprios homens não se repet<strong>em</strong>, cada uma<br />
totaliza 6,25% nos seguintes grupos: hom<strong>em</strong> é prático,<br />
desligado de misticismo e contos de fadas, desligado do<br />
amor, esquisito e explosivo, racional e hom<strong>em</strong> leva mais<br />
para o lado físico.<br />
Na visão dos homens, “as mulheres são mais<br />
sentimentais/<strong>em</strong>ocionais” (12,5%), “buscam algo<br />
perfeito” (6,25%), “zelam muito (sufocam/apertam)”<br />
(6,25%), “são ligadas ao misticismo e a contos de fadas”<br />
(6,25%), “são mais sensíveis” (6,25%) e “se doam<br />
mais” (6,25%).<br />
Um dos entrevistados (6,25%) acredita que “a<br />
diferença se deve à construção social”, pois segundo<br />
ele, “a sensibilidade dos homens é bloqueada e a<br />
mulher é ensinada a ficar s<strong>em</strong>pre a espera do príncipe<br />
encantado”. Assim, conclui-se que os indivíduos são<br />
educados para viver <strong>em</strong> uma sociedade que estabelece<br />
padrões comportamentais diferentes para homens e<br />
para mulheres.<br />
A incidência de homens que acreditam na “igualdade<br />
no modo de perceber e viver o amor” entre os<br />
gêneros totaliza 18,75%. Desses, 6,25%, mesmo<br />
acreditando na igualdade, propuseram que exist<strong>em</strong><br />
diferenças entre o paradoxo “sensibilidade f<strong>em</strong>inina<br />
e racionalidade masculina”; 6,25% justificaram sua<br />
resposta mencionando que “a pessoa que ama a outra,<br />
realmente ama”, fazendo menção à ideia de que <strong>em</strong> se<br />
tratando de amor não há diferenças entre os gêneros, e<br />
outros 6,25% não justificam claramente a sua resposta<br />
ao dizer que “o que distingue entre eles é a paixão<br />
muitas vezes confundida com o amor”.<br />
É notório que os homens se julgam mais racionais<br />
e que as mulheres concordam com essa característica.<br />
As mulheres se julgam <strong>em</strong>ocionais e sensíveis e o<br />
sexo oposto também concorda com essa ideia. Assim,<br />
retomam-se as diferenças biológicas entre os gêneros.
Um estudo sobre o amor romântico e sua representação para os gêneros f<strong>em</strong>inino e masculino<br />
Tendo <strong>em</strong> vista que nas mulheres, o hipocampo é maior e<br />
sendo essa uma área de extr<strong>em</strong>a importância no sist<strong>em</strong>a<br />
límbico, é possível dizer que esse fator corrobore com<br />
a maior <strong>em</strong>otividade e sensibilidade f<strong>em</strong>inina. Outro<br />
fator importante é que no hom<strong>em</strong> a área relacionada<br />
à <strong>em</strong>oção posiciona-se mais no h<strong>em</strong>isfério direito,<br />
enquanto que nas mulheres ela é mais ampla.<br />
Os dados obtidos levam a acreditar que as mulheres<br />
atribu<strong>em</strong> aos homens as causas de seus desencontros<br />
e reforçam muito suas diferenças. Suas respostas<br />
denotam um desabafo. Na maioria dos casos, homens<br />
e mulheres se perceb<strong>em</strong> distintos e ambos têm<br />
consciência disso. Mesmo apresentando respostas<br />
diferentes, as percepções dos gêneros são s<strong>em</strong>elhantes<br />
<strong>em</strong> relação a si e ao outro, tendo s<strong>em</strong>pre a mulher como<br />
sensível, romântica, fantasiosa e cheia de expectativas e<br />
o hom<strong>em</strong> desligado, racional e insensível.<br />
Na pergunta 4 - “Você acredita que exist<strong>em</strong> diferenças<br />
entre amor e paixão? Em caso afirmativo, quais são elas?”<br />
- quanto ao amor e a paixão, as respostas foram unânimes<br />
para os dois gêneros. Assim, 100% dos entrevistados<br />
acreditam que “exist<strong>em</strong> diferenças entre amor e paixão”.<br />
Dentre as mulheres entrevistadas, 18,75% ve<strong>em</strong> a<br />
paixão como “agitada/conturbada”, e a mesma incidência<br />
(18,75%) aponta a paixão como “transitória/efêmera”.<br />
A característica “intensa” foi revelada com 12,5% das<br />
respostas para a paixão. A paixão ainda foi definida<br />
por 6,25% como “estado <strong>em</strong> que aparec<strong>em</strong> todas<br />
as <strong>em</strong>oções”. Outras características foram atribuídas<br />
à paixão, sendo elas: “instantânea/momentânea”<br />
(6,25%), “fogo” (6,25%), “dependência” (6,25%),<br />
“egoísta” (6,25%), “desejo” (6,25%), “atração”<br />
(6,25%) e “necessidade de estar perto” (6,25%).<br />
Uma resposta interessante foi a que propôs a paixão<br />
como “sentimento de euforia que antecede o amor”<br />
(6,25%), ou seja, a paixão seria a porta de entrada para<br />
o amor e pode ser capaz de propiciá-lo.<br />
Nessa mesma pergunta, na tentativa de diferenciar<br />
paixão e amor, o sexo f<strong>em</strong>inino apontou o amor como<br />
“tranquilo” (12,5%), um “estágio mais avançado/<br />
quando passa a paixão” (12,25%), “desejar o b<strong>em</strong><br />
do outro” (6,25%), “s<strong>em</strong> ansiedade” (6,25%), um<br />
sentimento que “resiste aos probl<strong>em</strong>as” (6,25%),<br />
“concreto” (6,25%), “suave” (6,25%), “profundo”<br />
(6,25%), “transcendente” (6,25%), “duradouro”<br />
(6,25%) e “construído a cada dia” (6,25%).<br />
Nas respostas masculinas, 37,5% dos entrevistados<br />
afirmaram que a paixão é “momentânea/passageira”.<br />
Outros 18,75% a ve<strong>em</strong> como “relacionada ao físico<br />
e a atração sexual”. E 12,5% acreditam que a paixão<br />
seja “intensa e comece grande”, ou seja, com um<br />
êxtase impetuoso. Para definir a paixão, várias outras<br />
características foram utilizadas, sendo que cada uma<br />
delas abrange 6,25% das respostas: “entusiasmo,<br />
intensa, <strong>em</strong>ocional, imediata, acessório” e que “não<br />
resiste às dificuldades”.<br />
“Irresponsável” (6,25%) foi também uma<br />
característica utilizada por um dos entrevistados para<br />
descrever a paixão. Pode-se justificar esse fato pela<br />
desativação de áreas relacionadas ao juízo crítico e à<br />
identificação de ameaça que ocorr<strong>em</strong> durante a paixão.<br />
Diferenciando o amor de paixão, 18,75% dos<br />
homens disseram acreditar que o amor seja “comedido/<br />
racional”; 12,5% o definiram como “durável” e também<br />
12,5% postularam que o amor “cresce e se consolida<br />
cotidianamente”. Uma resposta interessante, com<br />
6,25% de incidência, foi a que caracterizou o amor<br />
como “eterno”, contrapondo-se à ideia de que todos<br />
os homens sejam mais racionais e comedidos e não<br />
cri<strong>em</strong> expectativas tanto quanto as mulheres.<br />
O sexo masculino acredita, ainda, que o “amor resista<br />
às dificuldades” (6,25%), “envolva sentimentos além da<br />
atração física” (6,25%), seja o “principal” (6,25%) e que<br />
é também “querer” ficar junto mesmo fora da relação<br />
sexual (6,25%).<br />
Uma das respostas que muito chamou a atenção<br />
propõe que “o amor é o principal e a paixão é o<br />
acessório. Mas quando a gente ama e ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />
é apaixonado por alguém, a relação dura mais t<strong>em</strong>po”.<br />
Assim, é possível dizer que amor e paixão estabelec<strong>em</strong><br />
uma relação de compl<strong>em</strong>entaridade.<br />
Portanto, pode-se concluir que para homens e<br />
mulheres, a paixão parece estar mais relacionada com<br />
atração física, desejo, êxtase, enfim, sensações de maior<br />
efusividade e que a percepção de paixão <strong>em</strong> ambos os<br />
sexos é bastante s<strong>em</strong>elhante. De modo resumido, eles<br />
a ve<strong>em</strong> como intensa e transitória.<br />
Diferent<strong>em</strong>ente das respostas apresentadas para<br />
a primeira pergunta, na qual homens e mulheres<br />
conceituaram de maneira divergente o amor, aqui se<br />
percebe que ambos os gêneros atribuíram ao amor<br />
características b<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhantes, senão idênticas.<br />
Eles apontaram que o amor é centrado, duradouro<br />
e que supera as dificuldades impostas pelo cotidiano.<br />
Entretanto, tais respostas sobre o amor parec<strong>em</strong> não<br />
abranger suas reais percepções, pois nas respostas<br />
dadas a essa pergunta o amor aparece <strong>em</strong> um sentido<br />
mais figurado, pois, as respostas são generalizadas e<br />
ficaram restritas ao que já é estabelecido como amor<br />
seja pelo conhecimento científico, pela literatura ou<br />
ainda pelo senso comum.<br />
Conclusão<br />
A busca pelo amor é tão antiga quanto sua orig<strong>em</strong> e a<br />
tentativa de significá-lo. Há várias hipóteses que tentam<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 107-120<br />
117
118<br />
Lara Franco Costa<br />
justificar a orig<strong>em</strong> do amor. Uma das mais extraordinárias<br />
explicações é dada pela mitologia grega, propondo que<br />
o amor é a busca pelo outro, pela metade que lhe falta<br />
a fim de restabelecer o todo original. E apesar de toda a<br />
fantasia que envolve as ideias de Platão, essa é uma bela<br />
explicação, pois homens e mulheres buscam um alguém<br />
especial que lhes complete e quando esse alguém é<br />
encontrado, há uma imensa vontade de fundir<strong>em</strong>-se<br />
num só.<br />
Explicações científicas propõ<strong>em</strong> o amor como<br />
fator propiciante da evolução humana e da sociedade,<br />
pois s<strong>em</strong> ele não seriam estabelecidos vínculos e<br />
consequent<strong>em</strong>ente não haveria sociedade.<br />
Com o decorrer dos anos, foram atribuídos a esse<br />
sentimento vários significados que variam de acordo<br />
com os interesses vividos no momento. Hoje se t<strong>em</strong><br />
um amor vivido de forma livre, <strong>em</strong> função do qual<br />
homens e mulheres se un<strong>em</strong>. Cada vez mais o amor<br />
parece ser uma condição indispensável para o b<strong>em</strong>estar<br />
e a felicidade dos homens. Contudo, apesar do<br />
objetivo ser o mesmo para homens e mulheres, eles<br />
atribu<strong>em</strong> significados e expressam o amor de forma<br />
diferente um do outro.<br />
Nesse sentido, homens e mulheres têm modos<br />
diferentes de descrever<strong>em</strong> o amor romântico: as<br />
mulheres parec<strong>em</strong> viver um amor mais romântico,<br />
são mais sentimentais e detalhistas; enquanto os<br />
homens são racionais e objetivos. É bom considerar<br />
que essas diferenças se dev<strong>em</strong> indubitavelmente às<br />
diferenças biológicas e mais ainda à construção social<br />
que estabelece parâmetros a ser<strong>em</strong> seguidos pelos<br />
indivíduos. Assim, cada um se expressa da maneira<br />
como lhe é ensinado e consequent<strong>em</strong>ente aprendido.<br />
As experiências vividas por cada um também exerc<strong>em</strong><br />
uma influência crucial no modo de viver e perceber o<br />
amor, visto que cada um atribui significados às coisas do<br />
mundo de acordo com suas vivências.<br />
Nota-se que paixão e amor não se confund<strong>em</strong>. A<br />
paixão d<strong>em</strong>onstra mais irracionalidade e parece estar<br />
mais relacionada às <strong>em</strong>oções, é um estado agudo<br />
e transitório no qual o êxtase e o desejo ardente<br />
são latentes, b<strong>em</strong> como a sensação de dependência<br />
e a extr<strong>em</strong>a vontade de ficar junto com a metade<br />
encontrada. Contudo, a paixão parece abrir as portas<br />
para o amor. Já o amor é um sentimento duradouro,<br />
tranquilo, comedido e suave. Ele se relaciona a vários<br />
outros sentimentos e sensações; sua duração é maior,<br />
há qu<strong>em</strong> diga também que o amor seja eterno.<br />
Por outro lado, o amor romântico também se<br />
relaciona ao desejo sexual, atração física e necessidade<br />
de estar perto. Porém, nesse sentimento, tais<br />
sensações são comedidas, racionais e não tão intensas<br />
quanto na paixão.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 107-120<br />
Pode-se concluir que o amor romântico é um<br />
sentimento tranquilo, que proporciona equilíbrio<br />
e b<strong>em</strong>-estar ao amante e ao amado. Ele é capaz<br />
de completar aquele que o possui, haja vista que<br />
encontrando um alguém especial, é possível o casal<br />
tornar-se “uno” e completo. Ele é um sentimento único<br />
e construído a cada dia, mas é também muito diferente<br />
para cada um que o vivencia. O amor t<strong>em</strong> suas bases<br />
na incondicionalidade, pois não admite ou não supõe<br />
qualquer condição para que exista. Ele é grandioso e<br />
está acima de todos os outros sentimentos. E é com<br />
toda certeza o sentimento mais puro e sublime que<br />
permeia a humanidade.<br />
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Lara Franco Costa<br />
A STUDY OF THE ROMANTIC LOVE AND YOUR<br />
REPRESENTATION TO MALES AND FEMALES<br />
ABSTRACT: This paper presents an investigation about romantic love and also reveals the results of the survey<br />
in an att<strong>em</strong>pt to analyze how men and women perceive that feeling. This study is justified because of several<br />
controversies, joys and sorrows caused by romantic love in human life. It aims to investigate the perception of the<br />
genders about romantic love, the possible differences in how people perceive and experience the love between<br />
men and women, as well as the factors that influence how individuals understand that feeling. Envisions to know<br />
about romantic love and some issues involved in this feeling, such as its origin, brain ch<strong>em</strong>istry and characteristics,<br />
including also the differentiation between love and passion. The theoretical basis that guides the research is in<br />
studies of romantic love from Fisher (2008), Platão (1983), among others. The methodology consists of literature<br />
combined with field research with the use of structured interviews made to 16 people - eight men and eight<br />
women - living in the city of Ituiutaba MG, aged between 20 to 55 years. Among the results, there is a real<br />
difference in how men and women define love, summarized the most masculine rationality and objectivity and<br />
romance, intensity and f<strong>em</strong>ale sensibility. It is also, besides the differences between the genders, romantic love as<br />
a feeling restrained, unconditional and lasting formed by several other feelings and that is above all other feelings<br />
that pervade mankind.<br />
KEYWORDS: Romantic love; men; women; feeling.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 107-120
ÉTICA E EDUCAÇÃO: QUESTÕES DE ESCOLHAS<br />
Maria Batista da Cruz Silva 1 ; Maíza Rodrigues da Silva 2 ;<br />
Denise Queiroz 3 ; Ana Lúcia de Paula Ferreira Nunes 4<br />
RESUMO: O presente trabalho t<strong>em</strong> como objetivo d<strong>em</strong>onstrar a importância da ética nos relacionamentos<br />
interpessoais, nas famílias, nas escolas e nos d<strong>em</strong>ais grupos organizados da sociedade. Através da análise bibliográfica,<br />
foi possível reunir subsídios sobre a evolução da ética enquanto agente que promove a interação, a harmonia e os<br />
aspectos positivos e negativos nas relações entre as pessoas. Da mesma forma, foi possível perceber que o resgate<br />
dos conceitos éticos é imprescindível para a compreensão dos dil<strong>em</strong>as e das escolhas éticas. E isso é de suma<br />
importância para uma maior compreensão da ética enquanto agente que pode contribuir com as relações sociais<br />
e escolares principalmente do processo ensino-aprendizag<strong>em</strong>. Foi possível constatar que a ética está presente <strong>em</strong><br />
todos os espaços humanos e que é importante na criação, no fortalecimento e na aplicação da dimensão da ética<br />
nos aspectos políticos e nas articulações entre o dever, o saber, o poder e o querer.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Ética; relacionamentos interpessoais; dil<strong>em</strong>as e escolhas éticas.<br />
Introdução<br />
Nos últimos anos, pesquisadores vêm estudando<br />
a ética na educação e na cultura e concentram-se <strong>em</strong><br />
desvendá-la como expressão presente <strong>em</strong> todos os<br />
vínculos de conduta, padrões de comportamento e<br />
d<strong>em</strong>ais relacionamentos que reg<strong>em</strong> as instituições<br />
sociais privadas ou públicas.<br />
Como considera Lopes (1993), exist<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as<br />
na adoção de princípios éticos quanto à incorporação<br />
desses valores na administração, desvios de finalidade<br />
ou de poder, violação ideológica da lei.<br />
As discussões sobre ética e gestões na Educação<br />
Superior são imprescindíveis, pois, segundo o que<br />
afirma Lopes (1993), é necessário que os gestores e a<br />
própria comunidade acadêmica tenham consciência de<br />
que dentro dos princípios globais dos relacionamentos<br />
humanos e sociais, a ética deve ser singularizada ou<br />
pluralizada, tendo-se como objetivo o estabelecimento<br />
de princípios e valores morais e éticos.<br />
Deve-se entender, portanto, que a ética se presta<br />
para balizar, como um autêntico referencial, os valores<br />
básicos que orientam o comportamento do hom<strong>em</strong><br />
<strong>em</strong> sociedade. Daí se dizer que a ética é a ciência do<br />
comportamento moral dos homens <strong>em</strong> sociedade.<br />
Em um sentido mais geral, ética deve significar e/ou<br />
identificar-se como um conjunto de princípios de cunho<br />
moral para regular ou governar grupos e indivíduos<br />
inseridos num contexto social real.<br />
Se a ética é a ciência dos juízos de valor que permite<br />
qualificar os atos <strong>em</strong> bons ou maus, a escolha do t<strong>em</strong>a<br />
é justificada pela necessidade de discussão da ética<br />
enquanto processo de motivação e fortalecimento<br />
das relações interpessoais na ação educadora.<br />
Especificamente no que se refere às conexões entre<br />
os agentes administradores das Instituições de Ensino<br />
Superior (IES) e a comunidade acadêmica, entre alunos e<br />
segmentos sociais relacionados direta ou indiretamente<br />
com a instituição.<br />
Este trabalho t<strong>em</strong> como objetivo d<strong>em</strong>onstrar a<br />
abordag<strong>em</strong> da ética na educação, b<strong>em</strong> como a importância<br />
e as conseqüências da inserção desse t<strong>em</strong>a na educação.<br />
Isso porque a ética é constituída por princípios morais e<br />
pelos valores que norteiam os seres humanos nas suas<br />
ações com outros m<strong>em</strong>bros da coletividade.<br />
Os argumentos deste trabalho foram divididos <strong>em</strong>:<br />
resumo, introdução, desenvolvimento - que, por sua<br />
vez, foi dividido <strong>em</strong> algumas secções e subsecções -,<br />
conclusão e referências.<br />
Ética: conceitos, objetivos e finalidades<br />
No que se refere aos conceitos históricos da ética,<br />
pode-se afirmar que, conforme Vázquez (1995), depois<br />
de milhões de anos de existência sobre a Terra, a criatura<br />
humana continua a defrontar-se com os mesmos<br />
probl<strong>em</strong>as comportamentais que s<strong>em</strong>pre a afligiram:<br />
egoísmo, desrespeito, insensibilidade e inadmissível<br />
1. Mestre <strong>em</strong> Educação Superior pela UNITRI. Coordenadora pedagógica da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG - Campus de Frutal). Av.<br />
Professor Mário Palmério, 1001 - Cep: 38200-000. Frutal-MG. E-mail: mariabatistadacruzsilva@yahoo.com.br.<br />
2. Especialista <strong>em</strong> docência no Ensino superior pela UFU. Assistente de coordenação pedagógica da UEMG - Campus de Frutal. Av. Professor Mário Palmério,<br />
1001 - Cep: 38200-000. Frutal-MG. E-mail: maizasilvarod@yahoo.com.br.<br />
3. Especialista <strong>em</strong> Políticas Públicas e Planejamento Educacional pela Universidade Gama Filho. Assistente de coordenação pedagógica da UEMG - Campus<br />
de Frutal. Av. Professor Mário Palmério, 1001 - Cep: 38200-000. Frutal-MG. E-mail:denqueiroz@hotmail.com.<br />
4. Especialista <strong>em</strong> Pedagogia - Administração Escolar pela UNIRP. Professora e secretária executiva da direção da UEMG - Campus de Frutal. Av. Professor<br />
Mário Palmério, 1001 - Cep: 38200-000. Frutal-MG. E-mail: ananunesfrutal@hotmail.com.<br />
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prática da violência. Sendo assim, é importante<br />
compreender a evolução do pensamento humano, ou<br />
seja, a forma como a percepção da ética - enquanto<br />
agente que expressa o saber e o comportamento<br />
humano - v<strong>em</strong> sendo construída e percebida pelo<br />
hom<strong>em</strong> durante sua história.<br />
O termo ética procede do grego ethos, que<br />
etimologicamente significa a morada do hom<strong>em</strong>, o<br />
seu abrigo, derivando-se daí o uso metafórico ligado à<br />
tradução de costumes. A ética pode ser definida como<br />
“a teoria ou ciência do comportamento moral dos<br />
homens <strong>em</strong> geral” (VÁZQUEZ, 1995, p.12). Nesse<br />
sentido, a ética é a ciência da moral. Em geral, as<br />
pessoas confund<strong>em</strong> ética e moral, tomando-as como<br />
sinônimas. Cabe-se advertir que o estudo da ética é<br />
diferente do estudo da moral. A palavra moral deriva do<br />
latim mos ou mores e significa costumes, isto é, conjunto<br />
de normas ou regras destinadas a regular as relações<br />
dos indivíduos num determinado grupo social.<br />
O estudo da ética implica investigar os fundamentos<br />
e critérios que determinam o que é bom. Constata-se,<br />
por ex<strong>em</strong>plo, que faz parte dos costumes do hom<strong>em</strong><br />
moderno ocidental dar presentes na época do Natal.<br />
Pode-se falar <strong>em</strong> uma moral consumista. Essa constatação<br />
não implica necessariamente uma reflexão ética, que<br />
será o estudo da conveniência desse comportamento, ou<br />
seja, se ele é bom ou não e para qu<strong>em</strong>. Nesse sentido, a<br />
história das ideias morais pode ser objeto de disciplinas<br />
como a sociologia ou a antropologia. Por sua vez, a<br />
história da ética se assenta numa história da filosofia, pois<br />
busca uma justificativa racional para as ideias e normas<br />
adotadas, ou seja, procura fundamentar a razão de ser<br />
de determinados costumes para uma determinada<br />
coletividade. Pode-se dizer que a ética é teórica, é<br />
reflexão, ao passo que a moral é prática, é uma forma<br />
específica de comportamento humano.<br />
O termo ética pode ser definido como conjunto<br />
de normas que regulamentam o comportamento de<br />
um grupo particular de pessoas, como, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
advogados, médicos, psicólogos, psicanalistas etc.<br />
Assim, ela se diferencia da moral apenas pelo conteúdo<br />
menos especifico da última, que representaria a cultura<br />
de uma nação, religião ou época. Segundo essa visão, a<br />
ética diferencia-se da moral, pois ela é considerada mais<br />
adequada pela existência do livre arbítrio associado<br />
à coerência <strong>em</strong> oposição à inquestionabilidade dos<br />
princípios morais clássicos (VÁSQUEZ, 1995).<br />
Conforme o autor, ética e moral são os maiores valores<br />
do hom<strong>em</strong> livre. Ambos significam “respeitar e venerar<br />
a vida” (VASQUEZ, 1995, p. 20). O hom<strong>em</strong>, com seu<br />
livre arbítrio, forma ou destrói o seu meio ambiente, ou<br />
ele apoia a natureza e suas criaturas, ou ele subjuga tudo<br />
que pode dominar. Assim, ele mesmo se torna o b<strong>em</strong><br />
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Maria Batista da Cruz Silva; Maíza Rodrigues da Silva; Denise Queiroz; Ana Lúcia de Paula Ferreira Nunes<br />
ou o mal deste planeta. Desse modo, ética e a moral se<br />
formam numa mesma realidade (VASQUEZ, 1995).<br />
Filosofia: uma compreensão da realidade<br />
A filosofia não deve ser considerada como um saber<br />
que paira sobre as sociedades, assim como os valores<br />
não dev<strong>em</strong> ser vistos como significações estáticas,<br />
relacionadas a algo absoluto, imutável. (RIOS, 2005)<br />
Não é apenas no campo da moralidade que se<br />
encontram valores. Dize-se que existe valoração na<br />
medida <strong>em</strong> que qualquer interferência do hom<strong>em</strong> na<br />
realidade se dá na perspectiva de conferir significado a essa<br />
realidade. Quando se qualifica um comportamento como<br />
bom ou mau, t<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> vista um critério que é definido<br />
no espaço da moralidade. E isto interessa à filosofia, no<br />
plano da ética, buscar o fundamento dos valores que<br />
sustentam esse comportamento (RIOS, 2005).<br />
A ética se apresenta como uma reflexão crítica<br />
sobre a moralidade, sobre a dimensão moral do<br />
comportamento do hom<strong>em</strong>. Cabe a ela, enquanto<br />
investigação que se dá no interior da filosofia, procurar<br />
ver os valores e probl<strong>em</strong>atizá-los, buscar sua consciência<br />
(RIOS, 2005).<br />
Educação e política<br />
A especificidade do processo educativo que se<br />
desenvolve na escola reside no fato de que ele t<strong>em</strong><br />
como objetivo a socialização do conhecimento<br />
elaborado. Embora a escola agregue várias funções<br />
supletivas, como higiene, saúde, alimentação, entre<br />
outros, a função essencial é fazer a mediação para que as<br />
novas gerações se apropri<strong>em</strong> do saber historicamente<br />
acumulado pela sociedade.<br />
A criação de novos saberes, do ponto de vista técnico,<br />
implica a criação de conteúdos e técnicas que possam<br />
garantir a apreensão do saber pelos sujeitos e a atuação<br />
no sentido da descoberta e da invenção. Entretanto,<br />
os conteúdos e técnicas não são absolutamente<br />
el<strong>em</strong>entos neutros. Eles são selecionados, transmitidos<br />
e transformados <strong>em</strong> função de determinados interesses<br />
existentes na sociedade. O papel político da educação<br />
se revela aí, na medida <strong>em</strong> que ele se cumpre s<strong>em</strong>pre<br />
na perspectiva de determinado interesse. A escola está<br />
s<strong>em</strong>pre posicionada no âmbito da correlação de forças<br />
da sociedade <strong>em</strong> que se insere. Portanto, está s<strong>em</strong>pre<br />
servindo às forças que lutam para perpetuar e/ou<br />
transformar a sociedade (SAVIANI, 1980).<br />
Nesse sentido, falar <strong>em</strong> competência significa saber<br />
fazer b<strong>em</strong>. Apesar das diferenças entre as diversas<br />
concepções de educador e de escola presentes entre
nós, elas s<strong>em</strong> dúvida concordam <strong>em</strong> definir desse modo<br />
a competência. Afirma-se que o saber fazer b<strong>em</strong> t<strong>em</strong><br />
uma dimensão técnica, a do saber e do saber fazer,<br />
isto é, do domínio dos conteúdos de que o sujeito<br />
necessita para des<strong>em</strong>penhar o seu papel, aquilo que<br />
se requer dele socialmente articulado com o domínio<br />
das técnicas, das estratégias que permitam que ele “dê<br />
conta do recado” <strong>em</strong> seu trabalho (RIOS, 2005).<br />
A ideia de b<strong>em</strong> parece significativa na definição da<br />
competência, porque ela aponta para um valor que não<br />
t<strong>em</strong> apenas um caráter moral. O b<strong>em</strong> não se desvincula dos<br />
aspectos técnicos, n<strong>em</strong> dos aspectos políticos da atuação<br />
do educador. É nessa medida que se pode compreender a<br />
ética como mediação, porque ela está presente na definição<br />
e na organização do saber que será veiculado na instituição<br />
escolar e ao mesmo t<strong>em</strong>po na direção que será dada a esse<br />
saber na sociedade (RIOS, 2005).<br />
Com respeito à relação existente entre moral e<br />
política, frequent<strong>em</strong>ente se percebe que os próprios<br />
educadores não têm clareza da dimensão política de<br />
sua atividade. Na avaliação que faz<strong>em</strong> de seu trabalho,<br />
<strong>em</strong> geral os educadores, professores, afirmam-se<br />
comprometidos com os interesses dos alunos, mas<br />
não têm clareza quanto à implicação política desse seu<br />
“comprometimento”. Eles os ve<strong>em</strong> como fazendo parte<br />
de uma provável “essência” do educador, referindo-se<br />
à responsabilidade que deve estar presente <strong>em</strong> seu<br />
trabalho. Entre as mulheres educadoras, isso aparece<br />
de forma mais acentuada, contribuindo para o que<br />
Mello (1982, p.134) chama de a “face boazinha” da<br />
prática docente. Dá-se ênfase à dimensão afetiva, e<br />
o bom educador acaba sendo aquele “bonzinho”. A<br />
dimensão moral está aí exatamente porque é marcada<br />
pelo viés ideológico e considerada como “natural”, o<br />
que r<strong>em</strong>ete ao espontâneo (RIOS, 2005).<br />
Tal atitude d<strong>em</strong>onstra um desconhecimento do<br />
significado da presença do político na ação educativa,<br />
assim como do ético <strong>em</strong> sua forma autêntica, pois<br />
este aparece misturado com o sentimento, e a mistura<br />
contribui para reforçar o espontaneísmo e manter as<br />
falhas da instituição escolar (RIOS, 2005).<br />
Só pode falar <strong>em</strong> compromisso se mencionada<br />
a adesão a partir de uma escolha do sujeito, com<br />
a maneira certa de agir, e um certo caminho para a<br />
ação. Para que essa adesão seja significativa dev<strong>em</strong> se<br />
conjugadas a consciência, o saber e a vontade, que de<br />
nada val<strong>em</strong> s<strong>em</strong> a explicitação do dever e a presença do<br />
poder (RIOS, 2005).<br />
Numa sociedade <strong>em</strong> que os interesses são<br />
antagônicos, as vontades dirig<strong>em</strong>-se para objetivos<br />
conflitantes, apesar de o discurso “oficial” referir-se a um<br />
objetivo único: o chamado “b<strong>em</strong> comum”, a realização<br />
pessoal, a integração participante na sociedade.<br />
Ética e educação: questões de escolhas<br />
Assim, o que o educador decide fazer com o saber é<br />
exatamente relevante para que sua ação seja qualificada<br />
de competente.<br />
Escolhas éticas<br />
Segundo o Dicionário Aurélio, decidir significa<br />
“determinar, assentar, resolver, deliberar. Dar solução a;<br />
resolver, solucionar, desatar. Dar resolução” (FERREIRA,<br />
2006, p. 196). Nesse sentido, a tomada de decisão seria<br />
um processo que envolve desde o estabelecimento<br />
de uma política <strong>em</strong>presarial ou governamental até a<br />
execução de uma política já determinada, por meio do<br />
julgamento de dados e escolha de meios necessários<br />
para se alcançar um objetivo.<br />
A decisão é parte da vida, do dia-a-dia, e é praticada<br />
constant<strong>em</strong>ente. Em muitas situações, tomam-se<br />
decisões automaticamente, elas ocorr<strong>em</strong> por hábito,<br />
decide-se s<strong>em</strong> qualquer constrangimento, s<strong>em</strong> causar<br />
qualquer anormalidade. A escolha pode ser simples,<br />
como decidir entre tomar água com ou s<strong>em</strong> gás. Porém,<br />
com frequência, a pessoa depara-se com situações <strong>em</strong><br />
que decidir é complexo e sério, poderá envolver como<br />
resultado não só o destino, a vida de qu<strong>em</strong> decide, mas<br />
de muitas outras pessoas, tratando-se, por ex<strong>em</strong>plo, de<br />
decisões no âmbito da política e da economia (SCHULZ;<br />
NERY, 2005).<br />
O primeiro passo no processo de tomada de decisão<br />
consiste <strong>em</strong> reconhecer que a questão ética exige que<br />
a pessoa ou o grupo de trabalho escolha entre vários<br />
tipos de ação que precisam ser avaliadas como certos e<br />
errados. A gravidade da questão ética, portanto, pode<br />
ser definida como a sua relevância ou importância para<br />
a pessoa, o grupo de trabalho e/ou a <strong>em</strong>presa. Assume<br />
caráter pessoal e t<strong>em</strong>poral no sentido de ter que levar<br />
<strong>em</strong> conta valores, crenças, necessidades, maneiras de<br />
ver as coisas, características especiais da situação e<br />
pressões pessoais que faz<strong>em</strong> sentir <strong>em</strong> base contínua<br />
ou <strong>em</strong> um determinado lugar ou ocasião (FERREL;<br />
FRAEDRICH, 2001).<br />
Os valores, as crenças, a história e a forma de lidar<br />
com seu ambiente interno e externo representam<br />
a cultura de uma organização e defin<strong>em</strong> sua missão.<br />
O grau de interação entre os m<strong>em</strong>bros de uma<br />
organização fortalece sua cultura e lhe imprime<br />
identidade. A cultura organizacional se apresenta<br />
<strong>em</strong> três diferentes níveis: artefatos visíveis, valores<br />
que governam o comportamento das pessoas e os<br />
pressupostos inconscientes. Os fundadores de uma<br />
organização incut<strong>em</strong> os valores e crenças aos quais os<br />
novos m<strong>em</strong>bros vão se integrando através do processo<br />
de assimilação. Para conhecer a cultura de uma<br />
organização, é necessário identificar seus valores desde<br />
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o que é explícito e visível até o que é oculto e entender<br />
de que forma seus recursos humanos se adaptam<br />
a eles. Conforme alguns autores, a cultura de uma<br />
organização pode ser mudada, adequando-se a novos<br />
paradigmas. Nesse processo, o gestor t<strong>em</strong> fundamental<br />
papel. Também as organizações escolares possu<strong>em</strong><br />
uma cultura construída ao longo de sua história, com<br />
valores e crenças que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre condiz<strong>em</strong> com<br />
as propostas definidas <strong>em</strong> seu projeto pedagógico<br />
(FERREL; FRAEDRICH, 2001).<br />
Seja centralizada ou descentralizada, a estrutura<br />
da organização e os funcionários aprend<strong>em</strong> condutas<br />
éticas com m<strong>em</strong>bros de grupos e colegas no ambiente<br />
de trabalho. Decisões do indivíduo sobre como reagir<br />
aos probl<strong>em</strong>as diários são profundamente influenciadas<br />
pela observação do comportamento dos colegas.<br />
Empresas centralizadas enfatizam normas, diretrizes e<br />
procedimentos formais, usando sist<strong>em</strong>as de controle<br />
detalhados. Esse tipo de organização certifica-se que<br />
os trabalhadores sab<strong>em</strong> como realizar tarefas que lhe<br />
são designadas. Como as decisões éticas são tomas<br />
cotidianamente nas <strong>em</strong>presas centralizadas, a ética é<br />
aprendida com os chefes e com os colegas (FERREL;<br />
FRAEDRICH, 2001).<br />
Geralmente essas questões surg<strong>em</strong> devido a<br />
conflitos entre as filosofias morais pessoais e os valores<br />
do indivíduo, os valores e as atitudes da organização <strong>em</strong><br />
que ele trabalha e da sociedade <strong>em</strong> que ele vive. As<br />
principais causas de conduta antiética nas <strong>em</strong>presas são<br />
pressões, as diretrizes e os objetivos das mesmas.<br />
Nenhuma discussão sobre tomada de decisões<br />
estaria completa, portanto, s<strong>em</strong> falar sobre ética,<br />
pois as contribuições éticas dev<strong>em</strong> ser um critério<br />
importante na orientação do processo decisório de<br />
uma organização (ROBBINS, 2002).<br />
Ética: um corpo teórico<br />
Tendo <strong>em</strong> vista que este trabalho procura oferecer<br />
uma compreensão do conceito de ética, torna-se<br />
apropriado analisar como ela influência as decisões<br />
pessoais e mais precisamente as organizacionais. Sendo<br />
assim, é necessário ater-se a teorias enquanto um corpo<br />
de conhecimentos, regras e valores que orientam as<br />
atitudes das pessoas ou mesmo as decisões pautadas<br />
pela ética ou não.<br />
O estudo da ética é assim valioso por várias razões.<br />
Note-se que esse campo não é meramente um<br />
prolongamento da própria ética pessoal do indivíduo.<br />
Muitas pessoas pensam que se uma <strong>em</strong>presa contrata<br />
bons <strong>em</strong>pregados com fortes valores éticos, ela será<br />
uma <strong>em</strong>presa-cidadã. Porém, como este trabalho terá<br />
a oportunidade de mostrar, os valores pessoais e a<br />
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Maria Batista da Cruz Silva; Maíza Rodrigues da Silva; Denise Queiroz; Ana Lúcia de Paula Ferreira Nunes<br />
filosofia moral do indivíduo constitu<strong>em</strong> apenas um fator<br />
no processo de tomada de decisões éticas (FERREL;<br />
FRAEDRICH, 2001).<br />
Profissionais <strong>em</strong> todos os campos de atividade,<br />
incluindo as IES, têm que lidar com dil<strong>em</strong>as morais<br />
pessoais, uma vez que eles afetam a sua capacidade de<br />
funcionar no trabalho. Só quando as preferências ou<br />
os valores da pessoa influenciam o seu des<strong>em</strong>penho<br />
no trabalho é que a ética individual des<strong>em</strong>penha um<br />
papel importante na avaliação das decisões (FERREL;<br />
FRAEDRICH, 2001).<br />
Embora os preconceitos raciais e sexuais da pessoa<br />
sejam assunto do interesse da ética individual, a<br />
discriminação racial e sexual no local de trabalho cria<br />
um probl<strong>em</strong>a ético no mundo do trabalho.<br />
Ser uma boa pessoa e, <strong>em</strong> sua própria opinião, ter<br />
uma boa ética pessoal talvez não seja suficiente para<br />
enfrentar questões desse tipo que surg<strong>em</strong> nas <strong>em</strong>presas.<br />
É importante reconhecer a relação entre decisões legais<br />
e éticas. Embora virtudes abstratas, ligadas aos grandes<br />
princípios morais, como a veracidade, a honestidade,<br />
a lealdade, a franqueza, sejam frequent<strong>em</strong>ente<br />
consideradas evidentes por si mesmas e aceitas por<br />
todos os <strong>em</strong>pregados, decisões de estratégia das<br />
<strong>em</strong>presas envolv<strong>em</strong> discussões complexas e detalhadas<br />
(FERREL;FRAEDRICH, 2001).<br />
A filosofia moral é um conjunto de princípios ou<br />
regras que os indivíduos aplicam para decidir o que é<br />
certo ou errado. No contexto da educação superior,<br />
os gestores frequent<strong>em</strong>ente têm que avaliar a “justeza”<br />
ou a moralidade de ações alternativas <strong>em</strong> termos de<br />
seus próprios princípios e valores. As filosofias morais<br />
fornec<strong>em</strong> diretrizes para solucionar conflitos e para<br />
otimizar o benefício mútuo de pessoas que viv<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />
grupos (FERREL; FRAEDRICH, 2001).<br />
Concepções de dil<strong>em</strong>as e suas<br />
relações com a decisão ética<br />
Desde o momento que passaram a viver <strong>em</strong> grupo,<br />
os homens relacionam-se uns com os outros e nessa<br />
relação social estabeleceu-se consequências como<br />
o conflito. A todo o momento, o hom<strong>em</strong>, <strong>em</strong> sua<br />
tomada de decisões, se depara com dil<strong>em</strong>as, ou seja,<br />
escolhas a ser<strong>em</strong> feitas, as quais pod<strong>em</strong> ou não estar<br />
<strong>em</strong> consonância com suas convicções. Nesse sentido,<br />
o presente trabalho faz uma análise de como a ética<br />
intervém na tomada de decisão de gestores, e como<br />
estes enfrentam as questões do dia-a- dia.<br />
Sendo assim, falar no que gestores, seja do setor<br />
<strong>em</strong>presarial ou da educação superior, consideram como<br />
dil<strong>em</strong>as, é pensar as questões éticas enfrentadas no<br />
dia-a-dia, ou seja, as decisões que dev<strong>em</strong> ser tomadas.
Um vendedor, por ex<strong>em</strong>plo, deve omitir fatos sobre<br />
a medíocre história de segurança do produto <strong>em</strong> uma<br />
apresentação de vendas ao cliente? Um contador deve<br />
comunicar inexatidões descobertas <strong>em</strong> um trabalho<br />
de auditoria feito na firma de um cliente, quando sabe<br />
que provavelmente perderá o <strong>em</strong>prego se fizer isso?<br />
(FERREL; FRAEDRICH, 2001).<br />
Como as questões éticas frequent<strong>em</strong>ente surg<strong>em</strong> de<br />
conflitos, é útil examinar as causas dos conflitos éticos.<br />
Gestores e funcionários muitas vezes sofr<strong>em</strong> os efeitos<br />
de uma tensão entre suas convicções éticas pessoais e<br />
as obrigações que assumiram para com as instituições<br />
<strong>em</strong> que trabalham.<br />
As pesquisas pod<strong>em</strong> proporcionar uma visão geral<br />
bastante útil de muitas questões éticas pendentes de<br />
solução nas <strong>em</strong>presas. Um passo construtivo que se<br />
poderia dar para identificá-las e solucioná-las seria<br />
classificar as que são relevantes para a maioria das<br />
<strong>em</strong>presas. Assim, classifica-se aqui tais questões<br />
no tocante a conflito de interesses, honestidade e<br />
equidade, comunicações e relacionamentos dentro da<br />
organização. Embora não seja exaustiva, a classificação<br />
fornece de fato uma ideia geral de algumas das questões<br />
enfrentadas por gestores.<br />
Quanto aos aspectos dos conflitos de interesses,<br />
observa-se que existe um conflito de interesse quando o<br />
indivíduo t<strong>em</strong> que optar entre promover seus próprios<br />
interesses, os da instituição ou os de algum outro grupo.<br />
E quanto à honestidade e equidade, implica veracidade,<br />
integridade e confiabilidade. Equidade é a capacidade<br />
de ser justo e imparcial. Ambas dev<strong>em</strong> fazer parte dos<br />
atributos morais dos gestores. No mínimo, espera-se<br />
que eles cumpram todas as leis e regulamentos aplicáveis.<br />
Nas comunicações, enquanto transmissão de<br />
informações e compartilhamento de significados,<br />
pode-se afirmar que o conflito ocorre frequent<strong>em</strong>ente<br />
quando há tensão entre dois ou mais indivíduos. Um<br />
tipo especialmente interessante de conflito é o dil<strong>em</strong>a<br />
social, no qual a ação mais benéfica para o indivíduo,<br />
se escolhida pela maioria das pessoas, produzirá efeitos<br />
prejudiciais para todos. Um dil<strong>em</strong>a social b<strong>em</strong> estudado<br />
é o dil<strong>em</strong>a do prisioneiro, no qual duas pessoas têm<br />
de decidir se vão cuidar apenas de seus interesses ou<br />
também dos interesses do parceiro. A estratégia de<br />
pagar na mesma moeda é um jeito útil de lidar com o<br />
conflito, permitindo ao indivíduo responder de maneira<br />
cooperativa ou competitiva, dada a resposta da outra<br />
pessoa. Criar um clima de confiança é fundamental para<br />
solucionar esse tipo de conflito.<br />
Outros tipos de dil<strong>em</strong>as sociais são o do b<strong>em</strong> público<br />
e o da posse comum, no qual cada um retira de um<br />
fundo público de bens que se recomporá por si mesmo<br />
se usado moderadamente, mas que desaparecerá<br />
Ética e educação: questões de escolhas<br />
com excesso de uso. Por fim, as condições <strong>em</strong> que as<br />
hostilidades tenderão a aumentar ou diminuir, incluindo<br />
o uso de ameaças e a incapacidade de comunicarse,<br />
pod<strong>em</strong> exarcebar o conflito. Na negociação é<br />
importante procurar uma solução integrativa, na qual<br />
cada parte conceda o máximo <strong>em</strong> assuntos que são s<strong>em</strong><br />
importância para ela, mas muito importante para outra<br />
parte (ARONSON, 2000).<br />
Qual desses valores t<strong>em</strong> maior peso relativo: a<br />
liberdade de expressão ou o direito à privacidade<br />
(principalmente quando combinado com o respeito à<br />
intimidade)? Uma resposta possível consistiria <strong>em</strong> traçar<br />
uma clara fronteira entre o interesse privado e o público.<br />
O direito à privacidade cessaria quando a ação praticada<br />
tivesse relevância pública. É o caso dos governantes,<br />
somente os aspectos de sua vida privada que pudess<strong>em</strong><br />
afetar o interesse público seriam divulgados - mas<br />
não se aplicaria às celebridades cuja intimidade é tão<br />
abusivamente devassada pela curiosidade de parte da<br />
população - porque as relações privadas que mantêm<br />
diz<strong>em</strong> apenas respeito a elas mesmas (SROUR, 2003).<br />
A relação moral beneficia e prejudica qu<strong>em</strong>? Essa<br />
situação delicada pode ser chamada de “dil<strong>em</strong>a dos<br />
destinatários”, porque quaisquer formas de solvê-lo<br />
afetam desigualmente os agentes envolvidos, afinal, não<br />
é fácil beneficiar todos o t<strong>em</strong>po todo. Isso significa dizer<br />
que ter s<strong>em</strong>pre a humanidade por referência primeira e<br />
última constitui um desafio louvável, porém muito difícil<br />
de cumprir (SROUR, 2003).<br />
As decisões e ações, ainda que consideradas morais<br />
e legítimas por alguns, não o são necessariamente<br />
por outros, porque fer<strong>em</strong> interesses alheios; põ<strong>em</strong><br />
<strong>em</strong> litígio coletividades diferentes e despertam<br />
velhos rancores, estereótipos e preconceitos. Aliás,<br />
quanto menor for a coletividade beneficiada <strong>em</strong><br />
detrimento das d<strong>em</strong>ais coletividades, mais acirradas<br />
serão as divergências e maiores serão as distâncias<br />
que as separam (SROUR, 2003).<br />
Em suma, toda decisão e ação que seja portadora<br />
de implicações morais tende a colocar à frente agentes<br />
coletivos, cujos interesses diverg<strong>em</strong> e pod<strong>em</strong> provocar<br />
verdadeiros confrontos entre eles, confrontos que se<br />
reflet<strong>em</strong> nos discursos morais pregados (SROUR, 2003).<br />
Como resolver dil<strong>em</strong>a tão cruciante? A ética<br />
da convicção sugere que se estabeleça um código<br />
convencionado de princípios ou de ideais que seja<br />
estalão de valor, dirima as dúvidas e arbitre as diferenças.<br />
Contudo, diante dos interesses contraditórios que<br />
opõ<strong>em</strong> os vários agentes coletivos - alguns antagônicos<br />
e, portanto, inconciliáveis, outros não antagônicos e por<br />
isso mesmo administráveis - é muito difícil estabelecer<br />
o consenso. Restam-se ainda os caminhos apontados<br />
pela ética da responsabilidade (SROUR, 2003).<br />
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126<br />
A vertente utilitarista obedece à lógica do máximo<br />
de b<strong>em</strong> para o maior número e implica dois fatores:<br />
a) o fator intensidade (máximo/mínimo), instruído<br />
pelo critério da qualidade ou eficácia (fazer o<br />
b<strong>em</strong> ou gerar felicidade); e b) o fator quantidade<br />
(maior/menor número), informado pelo critério da<br />
equidade (abrangência da população alcançada e nãodiscriminação).<br />
No dil<strong>em</strong>a dos meios, para cumprir prescrições (leis<br />
morais e ideais) ou para levara diante propósitos (fins<br />
e consequências), é preciso lançar mão de meios. Eles<br />
pod<strong>em</strong> ser legítimos e aceitos virtualmente por todos,<br />
principalmente por aqueles à qu<strong>em</strong> se aplicam, ou<br />
pod<strong>em</strong> ser meios ilegítimos, controversos, rejeitados<br />
principalmente por aqueles à qu<strong>em</strong> se aplica. Imaginese<br />
a violência física ou a simbólica, a fraude ou a<br />
manipulação, o sacrifício de alguns para salvar muitos<br />
ou a mentira deliberada. É fácil ver que o probl<strong>em</strong>a não<br />
se resume a meios “lícitos” ou não se cinge ao caráter<br />
jurídico - político dos meios - mas se resume também<br />
à validação moral - de caráter simbólico - que o uso<br />
desses meios supõe (SROUR, 2003).<br />
Na hierarquia dos valores, o fervor dos ideais<br />
ou a pureza dos princípios despreza os meios a<br />
ser<strong>em</strong> acionados para sua efetivação. Desse modo,<br />
contrariamente à crença popular, não apenas os fins<br />
ilegítimos são usados indistintamente para materializar<br />
ideais, impl<strong>em</strong>entar princípios ou até para alcançar o<br />
máximo de b<strong>em</strong> para o maior número, isto é, todas<br />
as vertentes éticas chegam a justificar o uso de meios<br />
espúrios (SROUR, 2003).<br />
O dil<strong>em</strong>a ético da moral reflexiva e os critérios<br />
de decisão, estruturantes morais que decorr<strong>em</strong> das<br />
relações submersas a cultura da formação ética para<br />
o exercício da docência, ganham sentido d<strong>em</strong>ocrático<br />
quando d<strong>em</strong>andam um esforço de construção coletiva,<br />
no qual dil<strong>em</strong>as morais e conflitos estão a desafiar<br />
a partir de juízos de fato e de valor. Juízos de fato<br />
diz<strong>em</strong> como as coisas são. Os juízos de valor avaliam<br />
coisas, pessoas, ações e experiências, acontecimentos,<br />
sentimentos, intenções e decisões como boas ou más.<br />
Os juízos éticos de valor são também normativos,<br />
isto é, enunciam normas que determinam o vir a ser<br />
de sentimentos, atos, comportamentos. São juízos<br />
que enunciam obrigações e avaliam intenções e<br />
ações segundo o critério do correto e do incorreto.<br />
Os juízos éticos de valor diz<strong>em</strong> o que são o b<strong>em</strong>, o<br />
mal, a felicidade. Qual a orig<strong>em</strong> da diferença entre os<br />
dois tipos de juízos? A diferença é que um se refere à<br />
natureza e o outro se origina da cultura.<br />
Dil<strong>em</strong>as éticos implicam tarefas de solução de<br />
probl<strong>em</strong>as, cujas regras de decisão são muitas vezes<br />
vagas ou conflitantes. Não há substituto para o<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 121-128<br />
Maria Batista da Cruz Silva; Maíza Rodrigues da Silva; Denise Queiroz; Ana Lúcia de Paula Ferreira Nunes<br />
pensamento crítico e a capacidade do indivíduo de<br />
assumir responsabilidade por suas decisões (FERREL;<br />
FRAEDRICH, 2001).<br />
As oportunidades e o conflito são importantes<br />
fatores de influência na tomada de decisões éticas nos<br />
relacionamentos interpessoais. Uma vez descoberta a<br />
oportunidade, surge frequent<strong>em</strong>ente o dil<strong>em</strong>a ético<br />
de explorá-la ou não. A oportunidade é um conjunto<br />
de condições que limitam a conduta condenável ou<br />
recompensa a conduta digna de um elogio. Com<br />
grande frequência, é uma situação com potencial de<br />
produzir um resultado ou recompensa positivos. As<br />
recompensas pod<strong>em</strong> ser internas: o sentimento de<br />
ser uma pessoa boa e merecedora ou externas, como<br />
aumento de salário ou elogio por trabalho b<strong>em</strong> feito<br />
(FERREL; FRAEDRICH, 2001).<br />
Às vezes, a oportunidade leva a - ou decorre de - um<br />
conflito entre os valores do indivíduo que toma as decisões<br />
e os colegas, a <strong>em</strong>presa ou a sociedade. O conflito não<br />
significa que objetivos ou valores têm precedência- os<br />
do indivíduo, da firma ou sociedade. Quando t<strong>em</strong> que<br />
escolher entre dois objetivos igualmente meritórios,<br />
sobretudo quando um pode resultar <strong>em</strong> recompensas<br />
mais positivas do que o outro, a pessoa se defronta<br />
com um dil<strong>em</strong>a. O inverso pode também ocorrer, ou<br />
seja, a escolha entre duas alternativas igualmente ruins<br />
(FERREL; FRAEDRICH, 2001).<br />
O conflito entre indivíduos e <strong>em</strong>presa ocorre<br />
quando os valores individuais da pessoa e dos métodos<br />
que ela usa para alcançar objetivos desejáveis difer<strong>em</strong><br />
dos métodos adotados pela firma ou por um grupo<br />
dela. Com frequência, os funcionários enfrentam<br />
essas situações especialmente antes de estar<strong>em</strong><br />
socializados e adaptados à <strong>em</strong>presa. Muita gente<br />
luta tanto para conseguir um <strong>em</strong>prego que não leva<br />
<strong>em</strong> conta os valores da <strong>em</strong>presa. Atitudes e valores<br />
relativos à bebida alcoólica, jogo, sexo e religião são<br />
assuntos morais pessoais. Qu<strong>em</strong> acredita que beber<br />
é errado pode se sentir constrangido trabalhando <strong>em</strong><br />
uma <strong>em</strong>presa <strong>em</strong> que alguns negócios são fechados<br />
após o expediente, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> um bar próximo<br />
(FERREL; FRAEDRICH, 2001).<br />
O conflito entre pessoa e sociedade ocorre quando<br />
os valores do indivíduo deca<strong>em</strong> dos valores aprovados<br />
pela sociedade. Esses valores são frequent<strong>em</strong>ente<br />
expressos <strong>em</strong> forma de leis e regulamentos promulgados<br />
pelos governos. Valores como o desejo de ter ar e<br />
água puros pode ser transformado <strong>em</strong> regulamentação<br />
de comportamento. Um conflito ético pode surgir<br />
quando comunidades diferentes impõ<strong>em</strong> regulamentos<br />
ou valores diferentes. O consumo de álcool, certos<br />
tipos de divertimentos e trabalho nos domingos são<br />
outros ex<strong>em</strong>plos de comportamento tratados de
modo distintos por diferentes comunidades (FERREL;<br />
FRAEDRICH, 2001).<br />
O conflito entre <strong>em</strong>presa e sociedade aparece<br />
quando as normas e valores da organização se opõ<strong>em</strong><br />
de maneira geral aos valores e normas da sociedade. A<br />
comercialização de novos produtos com frequência põe<br />
a <strong>em</strong>presa <strong>em</strong> conflito com a sociedade especialmente<br />
quando os produtos criam questões morais para certos<br />
grupos (FERREL;FRAEDRICH, 2001).<br />
Material e método<br />
Este trabalho foi uma revisão bibliográfica na qual se<br />
fez uma comparação entre Ferrel e Fraedrich, Srour,<br />
Robbins, Rios, Saviani, Vázquez, Schulz e Nery, Lopes,<br />
Aronson para perceber que a valorização e a interação<br />
entre pessoas e/ou grupos sociais serão b<strong>em</strong> mais<br />
consistentes, pois a dimensão ética está cada vez mais<br />
ligada aos diferentes momentos da vida <strong>em</strong> sociedade<br />
tanto na articulação do saber, do dever, do poder, como<br />
dos suportes culturais e políticos que norteiam todas as<br />
relações interpessoais.<br />
Conclusão<br />
Se cada momento histórico apresenta aos homens<br />
um desafio peculiar, é necessário verificar que<br />
características têm as crises que reclamam das pessoas<br />
uma superação através de uma ação competente. Falase<br />
numa crise ética na sociedade cont<strong>em</strong>porânea. Talvez<br />
seja o grande desafio que se apresenta à competência.<br />
Entretanto, é preciso verificar que significado t<strong>em</strong> falarse<br />
numa crise ética, ou melhor, numa crise moral, que<br />
provoca uma reflexão de caráter ético.<br />
Enfim, a dimensão ética não está presente apenas na<br />
competência do educador. Ela faz parte da competência<br />
profissional, qualquer que seja o espaço de atuação<br />
dos indivíduos. Em que medida a “descoberta” da<br />
perspectiva ética presente na competência profissional<br />
pode contribuir para uma melhoria na qualidade do<br />
trabalho d cada um? (RIOS, 2005).<br />
Com certeza, os frutos serão muitos. Entre eles, a<br />
valorização das ações e a interação entre pessoas e/ou<br />
grupos sociais que serão b<strong>em</strong> mais consistentes, uma<br />
vez que a dimensão ética está cada vez mais ligada aos<br />
diferentes momentos da vida <strong>em</strong> sociedade. E essa<br />
ligação acontece tanto na articulação do saber, do dever,<br />
do poder, como dos suportes culturais e políticos que<br />
norteiam todas as relações interpessoais.<br />
Ética e educação: questões de escolhas<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 121-128<br />
127
128<br />
ETHICS AND EDUCATION: ISSUES OF CHOICES<br />
ABSTRACT: This paper aims to d<strong>em</strong>onstrate the importance of ethics in interpersonal relationships, families,<br />
schools and other organized groups of society. Through literature review, it was possible to gather el<strong>em</strong>ents<br />
on the evolution of ethics as an agent that promotes interaction, harmony and positive and negative aspects<br />
in relationships between people. Likewise, it was observed that the rescue of ethical concepts is essential to<br />
understanding the dil<strong>em</strong>mas and ethical choices. And it is of paramount importance for further understanding<br />
of ethics as an agent that can contribute to the social relationships and school, especially the teaching-learning<br />
process. It was found that ethics is present in all the human and what is important in the creation, strengthening<br />
and impl<strong>em</strong>entation of the ethical dimension, on both the political and joints between duty, knowledge, power<br />
and want.<br />
KEYWORDS: Ethics; interpersonal relationships; dil<strong>em</strong>mas and ethical choices.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 121-128<br />
Maria Batista da Cruz Silva; Maíza Rodrigues da Silva; Denise Queiroz; Ana Lúcia de Paula Ferreira Nunes
A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO E<br />
CENTRALIDADE NA CIDADE DE FRUTAL<br />
Adriano Reis de Paula e Silva 1 ; Vitor Ribeiro Filho 2<br />
RESUMO: Este trabalho busca analisar a formação do espaço urbano e centralidade, verificando as características que este<br />
possui nas pequenas e médias cidades. A partir do desenvolvimento do modo capitalista de produção, da concretização do<br />
processo de industrialização e através dos avanços tecnológicos, percebe-se a intensificação do processo de urbanização.<br />
A discussão da produção do espaço e centralidade na cidade de Frutal, Minas Gerais, localizada no Triangulo Mineiro,<br />
é importante para uma melhor compreensão da estruturação e da funcionalidade dentro da região. O planejamento<br />
tanto intraurbano quanto interurbano se resume num instrumento que norteia as ações dos municípios, no qual se faz<br />
uma avaliação das potencialidades locais, buscando mais oportunidades de <strong>em</strong>prego e geração de renda para os seus<br />
moradores. Sua localização potencializa uma atração para o setor industrial e educacional. Constata-se o crescimento<br />
no setor da construção civil, com surgimento de diversos bairros e loteamentos, e a aquisição de terrenos para obras<br />
públicas. O município exerce centralidade na microrregião, com a sua estrutura interna, advento do surgimento de<br />
serviços especializados que atend<strong>em</strong> todos os municípios vizinhos. Isso v<strong>em</strong> proporcionando uma maior visibilidade do<br />
crescimento socioeconômico e suas potencialidades do município.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Centralidade; espaço urbano; Frutal; pequenas cidades.<br />
O estudo contribuirá na divulgação do município e<br />
<strong>em</strong> políticas de planejamento, proporcionando uma<br />
maior visibilidade do crescimento socioeconômico<br />
e de suas potencialidades. Sua localização provoca<br />
atração para o setor industrial e a afirmação de pólo<br />
educacional possibilita ao município uma expansão<br />
urbana e socioeconômica. A produção do espaço e<br />
centralidade relativa à microrregião localizada na região<br />
do Triângulo Mineiro, antigo Sertão da Farinha Podre,<br />
t<strong>em</strong> uma área de 2.436,6 km². Em 5 de outubro de 1885,<br />
de acordo com lei n. 3.325, o distrito foi <strong>em</strong>ancipado<br />
e elevado à categoria de vila, denominada Carmo do<br />
Fructal, desm<strong>em</strong>brando-se de Uberaba. Sua elevação à<br />
categoria de cidade se deu <strong>em</strong> 04 de outubro de 1887,<br />
através da lei n. 3.464, já com o nome de Frutal.<br />
FIGURA 01- Mapa do estado de Minas Gerais, Brasil<br />
Fonte: IBGE, 2010 (Adaptação do autor).<br />
No Censo D<strong>em</strong>ográfico de 2000, feito pelo IBGE,<br />
verifica-se que mais de 80% da população brasileira<br />
vive <strong>em</strong> áreas urbanas como cidades e vilas, as quais<br />
se mostram num contínuo processo de crescimento.<br />
A partir do desenvolvimento do modo capitalista<br />
de produção, da concretização do processo de<br />
industrialização e através dos avanços tecnológicos,<br />
percebe-se a intensificação do processo de urbanização.<br />
Assim, no dizer de Carlos (2005), as cidades, como<br />
produto da divisão social do trabalho e do poder nela<br />
centralizado, assum<strong>em</strong> dinâmicas diferenciadas, com<br />
formas e funções distintas <strong>em</strong> cada período histórico.<br />
A partir dos últimos anos do século XX e início do<br />
século XXI, vêm ocorrendo profundas transformações<br />
sociais e econômicas decorrentes da concretização<br />
de desenvolvimentos tecnológicos que estimulam o<br />
processo de reestruturação do sist<strong>em</strong>a capitalista de<br />
produção principalmente na organização das cidades e<br />
de seus espaços intraurbanos (CASTELLS, 1999). De<br />
acordo com Castells, as transformações <strong>em</strong> curso se<br />
dão da seguinte maneira:<br />
[...] individualização e diversificação cada vez maior<br />
das relações de trabalho; incorporação maciça<br />
das mulheres na força de trabalho r<strong>em</strong>unerada,<br />
geralmente <strong>em</strong> condições discriminatórias;<br />
intervenção estatal para desregular os mercados<br />
de forma seletiva e desfazer o estado do<br />
b<strong>em</strong>-estar social com diferentes intensidades<br />
e orientações, dependendo da natureza das<br />
forças e instituições políticas de cada sociedade;<br />
1 Professor do curso de Administração da Universidade do Estado de Minas Gerais - Campus de Frutal. Avenida Professor Mário Palmério, 1001 – CEP<br />
38200-000, Frutal – MG. E-mail: eng_adrianoreis@u<strong>em</strong>gfrutal.org.br;<br />
2 Professor doutor da Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Geografia. Coordenador do Projeto de Pesquisa. Avenida João Naves de Ávila, 2.160.<br />
Santa Mônica, Bloco 1H. E-mail: vitor.f@terra.com.br.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 129-138<br />
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aumento da concorrência econômica global <strong>em</strong><br />
um contexto de progressiva diferenciação dos<br />
cenários geográficos e culturais para a acumulação<br />
e a gestão de capital (CASTELLS, 1999, p. 21-22).<br />
Nesse processo, as formas de produção e expansão<br />
física da cidade têm se modificado, gerando novas<br />
morfologias. Whitacher (2003) destaca a necessidade<br />
de se considerar o centro e a centralidade:<br />
Não existe cidade s<strong>em</strong> centralidade, por isso se<br />
compreende que a única categoria que pode ser<br />
utilizada para definir a cidade <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos<br />
é o centro. Mas deve-se procurar compreender<br />
o conteúdo da centralidade nos diferentes<br />
momentos históricos e recortes <strong>em</strong>preendidos<br />
para sua apreensão, na perspectiva de se entender<br />
como ela se realiza no âmbito de diferentes<br />
formações sociais (WHITACHER, 2003, p. 128).<br />
A centralidade abrange várias escalas, organizando<br />
e articulando a cidade <strong>em</strong> redes tanto no intraurbano<br />
quanto no interurbano e provocando o surgimento de<br />
terrenos vazios no momento <strong>em</strong> que se expand<strong>em</strong> os<br />
seus limites, que será abordada como difusa. Às vezes, de<br />
forma especulativa, esses vazios, áreas recém loteadas,<br />
serão beneficiados com a implantação de infraestrutura,<br />
o que propicia uma valorização imediata do local <strong>em</strong><br />
função da acessibilidade criada. Dessa forma, a maioria<br />
das cidades ainda está passando por um processo de<br />
reestruturação urbana, adaptando-se ao surgimento<br />
de novas centralidades e apresentando estruturas<br />
intraurbanas diferenciadas de acordo com as diversas<br />
categorias hierárquicas - pequena, média e grande.<br />
A discussão da centralidade na cidade de Frutal<br />
se faz importante para que o município tenha uma<br />
melhor compreensão de sua estruturação a respeito<br />
da funcionalidade dentro da microrregião, <strong>em</strong> torno<br />
de questões setoriais e t<strong>em</strong>áticas relacionadas com o<br />
seu desenvolvimento. Outras dinâmicas dev<strong>em</strong> ser<br />
pensadas como novas formas produtivas que alteram<br />
tanto as formas urbanas quanto o assentamento urbano<br />
<strong>em</strong> todos os níveis da sociedade.<br />
(Re)Estruturação do espaço urbano<br />
Antes de abordar a re-estruturação do espaço<br />
urbano, é importante compreender a estruturação<br />
urbana na sua concepção. Para Sposito (2004), o<br />
conceito de estrutura diz respeito a um momento do<br />
processo de estruturação, à forma como se encontram<br />
e se articulam os usos do solo <strong>em</strong> um determinado<br />
momento. Segundo a autora, essa é a estruturação<br />
da ideia de processo, fenômeno responsável pelo<br />
desenvolvimento de formas produtivas.<br />
A expressão estrutura urbana dá ênfase aos processos<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 129-138<br />
Adriano Reis de Paula e Silva; Vitor Ribeiro Filho<br />
urbanos como um todo. Já a estrutura da cidade prioriza<br />
as formas, a morfologia da cidade propriamente dita. Em<br />
se tratando da reestruturação, Sposito (2004) diz que o<br />
termo deve ser utilizado como referência aos períodos<br />
<strong>em</strong> que é vasta e profunda a adaptação às mudanças<br />
que orientam os processos de estruturação urbana e<br />
das cidades. Sendo assim, a reestruturação urbana é o<br />
termo mais adequado para se tratar das dinâmicas mais<br />
recentes nos âmbitos regionais ou referentes às redes<br />
urbanas e à reestruturação das cidades. Para a autora,<br />
é o termo mais compatível às análises dos espaços da<br />
cidade, ou seja, do intraurbano.<br />
Durante as décadas de 1980, 1990 e 2000, a<br />
discussão sobre a re-estruturação urbana adquiriu<br />
maior vigor na análise geográfica. Isso aconteceu <strong>em</strong><br />
função das transformações por que vêm passando as<br />
cidades. No entanto, como destaca Villaça (2001), as<br />
especificidades da re-estruturação têm um âmbito nos<br />
níveis intraurbano e interurbano. Segundo o autor,<br />
O que comumente se chama estruturação urbana<br />
não é estruturação (ou reestruturação) urbana, mas<br />
estruturação (ou reestruturação) regional, pois não<br />
aborda o el<strong>em</strong>ento urbano da estrutura regional,<br />
o processo de urbanização enquanto processo do<br />
espaço regional” (VILLAÇA, 2001, p. 19).<br />
Historicamente, no caráter urbano, t<strong>em</strong>-se a visão<br />
distorcida do que é periferia, associada ao local onde<br />
as famílias de baixa renda resid<strong>em</strong>. No processo de<br />
estruturação da cidade, era comum que as famílias<br />
tradicionais, mais conceituadas e com maior poder<br />
econômico residiss<strong>em</strong> no centro e as d<strong>em</strong>ais na<br />
periferia. Nesse contexto, Sposito (2004) argumenta que<br />
as cidades brasileiras tiveram suas estruturas urbanas<br />
orientadas por uma relação <strong>em</strong> que as áreas centrais<br />
detinham melhores estruturas físicas e de acessibilidade,<br />
e a periférica de uso residencial para a população com<br />
menor poder aquisitivo. Na realidade, percebe-se uma<br />
complexidade maior quanto à ocupação desta área. O<br />
autor expõe que no processo de reestruturação cria-se à<br />
periferia de status. Ela seria um tipo de autossegregação,<br />
onde as classes médio-altas resid<strong>em</strong>: loteamentos<br />
planejados, condomínios fechados, entre outros, agora<br />
distantes do centro da cidade, visando-se o isolamento e<br />
na procura de resguardar<strong>em</strong>-se da violência.<br />
Nessa perspectiva, o planejamento urbano deixa<br />
de ser um mero instrumento de controle do uso do<br />
solo para se tornar um instrumento que introduz o<br />
desenvolvimento das cidades. Deverá assegurar os<br />
espaços adequados para a provisão de novas moradias<br />
que atendam à d<strong>em</strong>anda da população e preveja<br />
condições atraentes para <strong>em</strong>presas, conforme as<br />
características locais e regionais, itens vitalmente<br />
importantes para a produção do espaço equilibrado.
A cidade e sua nova funcionalidade<br />
Para a compreensão da funcionalidade das cidades<br />
no mundo moderno, é preciso considerar os vários<br />
el<strong>em</strong>entos que se relacionam <strong>em</strong> diversas parcelas do<br />
território, uma vez que são múltiplas as determinações<br />
do processo de urbanização, como argumenta Weber:<br />
Toda cidade, no sentido que aqui damos a essa<br />
palavra, é um “local de mercado”, quer dizer, conta<br />
como centro econômico do estabelecimento<br />
com um mercado local e no qual <strong>em</strong> virtude de<br />
uma especialização permanente da produção<br />
econômica, também a população não-urbana se<br />
abastece de produtos industriais ou de artigos<br />
de comércio ou de ambos e, como é natural, os<br />
habitantes da cidade trocam os produtos especiais<br />
de suas economias respectivas e satisfaz<strong>em</strong> desse<br />
modo suas necessidades (WEBER,1979, p. 69).<br />
Ao tratar da questão de como pode fundar-se uma<br />
cidade, Weber (1979) sugere que seria de dois modos:<br />
a) através da indústria <strong>em</strong> regime de especialização e<br />
b) pelo intercâmbio regular de mercadorias. Enfim,<br />
num local de mercado ou num estabelecimento de<br />
mercado. Nesse momento, a relação campo-cidade<br />
não é homogênea, o autor fala de componentes<br />
predominantes de uma ou de outra situação, ou<br />
seja, mistos. Então, conceitua-se que a denominação<br />
de cidade não é apenas um local de produção e<br />
comercialização de bens, mas é um local onde pessoas<br />
se organizam e interag<strong>em</strong> com base <strong>em</strong> interesses e<br />
valores, formando grupos de afinidade e de interesse.<br />
A vida econômica, a sofisticação dos bens e serviços<br />
ofertados, que pode ser definida como um centro de<br />
gestão do espaço urbano, não é diversificado somente<br />
pelo tamanho d<strong>em</strong>ográfico, mas também pela renda<br />
média das pessoas, além de fatores histórico-culturais.<br />
Compreende-se assim, que o tamanho das cidades,<br />
tanto <strong>em</strong> termos populacionais quanto territoriais não<br />
pode ser unicamente determinante para a existência de<br />
probl<strong>em</strong>as. A postura assumida pelos planejadores e as<br />
condições econômicas, sociais e espaciais estabelecidas<br />
é que irão determinar a intensidade desses probl<strong>em</strong>as.<br />
Com o desenvolvimento industrial no século XX,<br />
o processo de mudanças no campo brasileiro se<br />
intensificou e a divisão territorial do trabalho, tendo o<br />
modelo urbano-industrial como norte, transformou a<br />
atividades processadas no campo.<br />
Diante desse contexto, parte considerável das áreas<br />
de cerrados no Brasil passou a ser configurada segundo<br />
o modelo agrícola moderno, ou seja, logo após 1970,<br />
rompendo gradativamente com a “antiga” estrutura<br />
da fazenda autossuficiente, engrenando nas relações<br />
tipicamente capitalistas e estabelecendo vínculos<br />
A produção do espaço urbano e centralidade na cidade de Frutal<br />
com a indústria, com a agroindústria e com o capital<br />
financeiro. Com base nesses três eixos de ação, o Estado<br />
financiou a modernização da agricultura e a implantação<br />
de infraestrutura de estradas, armazenamento,<br />
eletrificação rural, formação de mão-de-obra, entre<br />
outros (SOARES, 2007).<br />
Com os projetos para o desenvolvimento econômico<br />
das áreas do cerrado associado ao capital privado, vários<br />
municípios dos estados de Goiás, Mato Grosso e Minas<br />
Gerais ingressaram na economia agrícola moderna,<br />
ocuparam áreas agricultáveis com o cultivo de soja.<br />
A presença de homens no campo praticamente só é<br />
verificada <strong>em</strong> períodos pré-estabelecidos, como no<br />
cultivo, na colheita e quando hom<strong>em</strong> e máquina faz<strong>em</strong><br />
a pulverização de produtos químicos, entre outros.<br />
A partir desse fenômeno, iniciam-se a descentralização<br />
industrial e a modernização agrícola, que promoveram<br />
mudanças no padrão da divisão territorial do trabalho<br />
no país, favorecendo o crescimento das cidades,<br />
especificamente das pequenas e médias, e modificando<br />
para a atual rede urbana brasileira.<br />
Para Soares (2007), a descontinuidade na forma<br />
de ocupação do território está associada ao caráter<br />
dinâmico do mercado da habitação e da afirmação do<br />
setor imobiliário. Esse processo de urbanização t<strong>em</strong><br />
seguido muitas vezes um modelo difuso que gera não<br />
só modelos insustentáveis de organização territorial<br />
nomeadamente face à gestão dos recursos, à dotação<br />
de infraestruturas básicas e à prestação de serviços.<br />
O difuso é uma espécie de resultado da<br />
interpenetração da condição rural na condição urbana<br />
ou vice-versa, com processos de construção diferentes<br />
ao longo do t<strong>em</strong>po. A urbanização difusa permite a cohabitação<br />
entre o rural e o urbano, entre a cidade e<br />
o campo, de uma forma que não é necessariamente<br />
caótica ou desordenada, mas antes um modelo de<br />
ocupação territorial que não cont<strong>em</strong>pla amplos espaços<br />
vazios (SOARES, 2007).<br />
A complexidade da definição dos limites urbanos foi<br />
ainda mais intensificada com o surgimento da sociedade<br />
<strong>em</strong> rede e o seu desdobramento no espaço dos fluxos<br />
tão precisamente descrito por Castells (1999). São as<br />
<strong>em</strong>presas, os grupos sociais, os projetos de comunicação<br />
e culturais que modificam os pré-existentes mediante<br />
mecanismos de competência econômica, eficiência<br />
organizativa e inovação cultural. Analisar esses novos<br />
processos equivale a entender as fontes de poder,<br />
riqueza e influência na sociedade atual.<br />
De acordo com a história, o pensamento do<br />
desenvolvimento local atua, na maioria das vezes,<br />
com um aspecto competitivo, ou seja, os planejadores<br />
pensavam apenas <strong>em</strong> questões financeiras, tributárias<br />
e de geração de receitas. Entretanto, como o<br />
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131
132<br />
crescimento da ocupação urbana v<strong>em</strong> justamente<br />
reforçar a importância do desenvolvimento local<br />
na ampliação do regional, cria-se a necessidade da<br />
formação de identidades e de diferenciação das regiões<br />
e das comunidades para enfrentar<strong>em</strong> um mundo de<br />
extr<strong>em</strong>a competitividade, reforçando a necessidade<br />
de ajustes estruturais na economia e nas organizações,<br />
adaptando-se ao novo contexto globalizado.<br />
As pequenas e médias cidades, com a população<br />
entre 50 e 500 mil habitantes, tiveram significativa<br />
importância no crescimento urbano brasileiro no<br />
período de 1950 a 1991. Com a globalização, podese<br />
observar que as relações entre as cidades vêm se<br />
tornando cada vez mais complexas, frente a uma nova<br />
dinâmica na ocupação territorial. Assim, o comércio<br />
internacional v<strong>em</strong> se tornando importante para essas<br />
cidades da mesma forma que os investidores nacionais<br />
devido às instalações que movimentam o comércio<br />
local, enquanto os centros metropolitanos tend<strong>em</strong> a<br />
produzir serviços especializados e gerenciais.<br />
Nesse contexto, as pequenas e médias cidades vêm<br />
se tornando verdadeiras fronteiras entre processos<br />
rurais e urbanos, absorvendo um pouco dos processos<br />
acumulativos próprios da cont<strong>em</strong>poraneidade<br />
modernidade. A influência de cada cidade é <strong>em</strong> função<br />
de seu tamanho e na caracterização de uma rede<br />
urbana equilibrada, definindo o desenvolvimento<br />
regional e do país. Assim, o planejamento territorial<br />
v<strong>em</strong> caracterizando-se como estratégico, envolvendo<br />
redes de cidades num elo direto, s<strong>em</strong> intermediações<br />
assentadas nas hierarquias (SANTOS, 1989).<br />
É claro que o processo modernizador não se<br />
realiza da mesma forma <strong>em</strong> todos os lugares e nas<br />
pequenas cidades se apresenta mais residualmente.<br />
A divisão social do trabalho se desdobra numa divisão<br />
territorial, <strong>em</strong> que momentos diferentes do processo<br />
estão se realizando <strong>em</strong> diferentes lugares, criando<br />
diferenças sociais e econômicas. T<strong>em</strong>poralidades e<br />
espacialidades diversas são tidas como essenciais,<br />
sendo que as grandes cidades concentrariam os<br />
el<strong>em</strong>entos dinâmicos desse processo.<br />
[...] uma sociedade pode instituir tanto a repartição<br />
social de facilidades urbanas (equipamentos,<br />
serviços, ambientes), quanto a apropriação social<br />
do espaço, para fins de trabalho, de moradia,<br />
etc., b<strong>em</strong> como a localização das atividades<br />
econômicas e seus diferentes efeitos sociais<br />
(NYGAARD, 2005, p. 193).<br />
Nessa perspectiva, o planejamento tanto intraurbano<br />
quanto interurbano é um instrumento que irá nortear<br />
as ações dos municípios por um determinado período<br />
no qual se faz uma avaliação das potencialidades<br />
locais, revelando suas contradições para a partir daí,<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 129-138<br />
Adriano Reis de Paula e Silva; Vitor Ribeiro Filho<br />
estabelecer diretrizes, prioridades e estratégias a fim<br />
de se alcançar os objetivos definidos.<br />
A cidade de Frutal<br />
Frutal está localizada na região do Triângulo Mineiro<br />
do estado de Minas Gerais e na microrregião de mesmo<br />
nome. Conforme denominação do Instituto Brasileiro<br />
de Geografia e Estatística (IBGE), a mesorregião<br />
do Triângulo Mineiro compreende 33 municípios<br />
distribuídos entre as microrregiões de Itutiutaba,<br />
Uberlândia, Frutal e Uberaba. A microrregião de<br />
Frutal conta com os municípios de Campina Verde,<br />
Carneirinho, Comendador Gomes, Fronteira, Frutal,<br />
Itapagipe, Iturama, Limeira do Oeste, Pirajuba, Planura<br />
e São Francisco de Sales.<br />
FIGURA 02 - Vista da Igreja da Matriz (Frutal)<br />
Fonte: Prefeitura Municipal de Frutal (2009).<br />
De acordo com o IBGE, a população de Frutal está<br />
com 53 mil e 474 habitantes, um crescimento regular<br />
conforme a média do estado (TAB. 01).<br />
Fonte: IBGE, 2010.<br />
TABELA 01<br />
Evolução populacional de Frutal<br />
ANO<br />
1991<br />
1996<br />
2000<br />
2007<br />
POPULAÇÃO<br />
41.424<br />
45.329<br />
46.566<br />
51.766<br />
A constituição do município foi relatada por vários<br />
autores sertanistas da comunidade. Segundo Mata<br />
(1982), o povoamento da região onde hoje se localiza<br />
o município teve início no século XVIII, <strong>em</strong> especial,<br />
a partir de 1736, quando por ord<strong>em</strong> do governador
Martinho de Mendonça, foi aberta a Picada de Goiás no<br />
trecho que saía de Pitangui rumo a noroeste. Naquela<br />
ocasião, foram concedidas sesmarias para localização<br />
de estâncias ao longo da Picada, onde também foram se<br />
formando pontos de parada e abastecimento. Na época<br />
das bandeiras, a região, que hoje é conhecida como<br />
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, foi denominada de<br />
Sertão da Farinha Podre pelo fato de que alimentos<br />
estocados pelos comboios eram encontrados<br />
deteriorados quando eles regressavam. Até 1816, o<br />
Sertão da Farinha Podre pertencia à capitania de Goiás,<br />
quando então passou à capitania das Minas Gerais<br />
através de alvará do rei D. João VI.<br />
Na pesquisa Original História de Frutal, Ferreira<br />
(2002) descreve que Antônio de Paula e Silva construiu<br />
uma capela dedicada à Nossa Senhora do Carmo.<br />
Ao redor dela se formou um povoado, passag<strong>em</strong><br />
obrigatória para os que transitavam de São Paulo para<br />
Goiás e Mato Grosso. Em seus primórdios, o lugar tinha<br />
como atividade econômica fundamental a pecuária,<br />
sendo que o povoamento da região teve como móvel<br />
principal a agropecuária para abastecimento de<br />
bandeirantes, viajantes e localidades de exploração<br />
aurífera. O grande número de frutos silvestres na<br />
região inspirou o nome do atual município. Suas origens<br />
estão ligadas a um modesto rancho, onde <strong>em</strong> 1835 o<br />
pioneiro Antônio de Paula e Silva fixou sua residência.<br />
A chegada de numerosas pessoas que se fixaram no<br />
povoado favoreceu o rápido crescimento, passando à<br />
categoria de arraial <strong>em</strong> 1850. Em 1854, foi incorporado<br />
ao município de Uberaba e <strong>em</strong> 14 de maio de 1858,<br />
elevado à condição de Distrito de Paz. Sua elevação à<br />
categoria de cidade se deu <strong>em</strong> 4 de outubro de 1887.<br />
O modo de transporte predominante na região é<br />
o rodoviário. A cidade está situada no centro de uma<br />
grande malha viária formada pelas BR’s 050, 153,<br />
262, e 364 e MG’s 255 e 427. Essas estradas ligam<br />
Frutal, por via asfáltica, aos principais centros do país,<br />
b<strong>em</strong> como às mais importantes cidades do Triângulo<br />
Mineiro e aos municípios situados <strong>em</strong> seu entorno,<br />
assim como aos povoados e distritos. O município<br />
está situado à 628 km da capital Belo Horizonte, 138<br />
km de Uberaba (Minas Gerais), 175 km de Uberlândia<br />
(Minas Gerais), 200 km de Itumbiara (Goiás), 78 km<br />
de Barretos (São Paulo), 110 km de São José do Rio<br />
Preto (São Paulo) e 500 km da capital paulista. Outras<br />
importantes estradas são a rodovia BR 153, que faz a<br />
ligação entre as regiões do sul e norte do país, e a BR<br />
364, que liga o interior de São Paulo e a região norte<br />
do país, destaques do mapa da malha rodoviária da<br />
Região Sudeste.<br />
Exist<strong>em</strong> outras concentrações populacionais fora do<br />
perímetro urbano como os povoados de Pradolândia,<br />
A produção do espaço urbano e centralidade na cidade de Frutal<br />
Boa Esperança, Água Santa, Garimpo do Bandeira e Vila<br />
Barroso, além do distrito de Aparecida de Minas. Este<br />
último conta com uma população de aproximadamente<br />
2,8 mil habitantes entre área urbana e rural e está<br />
situado a 13 km da Rodovia BR 153, no acesso A-900,<br />
entre as cidades de Frutal e Fronteira (Minas Gerais),<br />
distando 24 km da divisa com estado de São Paulo.<br />
A sua localização e o entroncamento rodoviário<br />
colaboram logisticamente para o setor industrial,<br />
contribuindo diretamente para o início da expansão<br />
do comércio varejista. O município conta ainda com<br />
aeroporto perfeitamente apropriado com iluminação<br />
noturna e que atende aos requisitos do Governo Federal<br />
para receber aeronaves com objetivos de realização de<br />
comércio e até mesmo transporte aéreo comercial.<br />
FIGURA 03 - Malha Rodoviária da Região Sudeste (Brasil)<br />
Fonte: Ministério dos Transportes, 2010 (Adaptação do<br />
autor).<br />
A cidade de Frutal conta com uma pista de pouso para<br />
aviões de pequeno e médio porte, <strong>em</strong> 2009 recebeu<br />
do Departamento de Obras Públicas de Minas Gerais<br />
a ampliação, melhoramento e balizamento noturno,<br />
os investimentos somaram R$ 3,5 milhões. Foram<br />
realizados serviços de ampliação e reforço da pista de<br />
pouso e decolag<strong>em</strong> com 1.320 metros por 30 metros,<br />
taxiway, pátio de estacionamento para aeronaves,<br />
sinalização horizontal e balizamento noturno, o que<br />
permitira atender a d<strong>em</strong>anda da aviação aérea comercial<br />
regional. Na reinauguração, o aeroporto foi nomeado<br />
como Aeroporto Risoleta Neves. Coordenadas: latitude:<br />
-20º 00’ 33” S / Longitude: -48º 56’ 17” W. Distância<br />
aérea de Belo Horizonte: 523 km, de Brasília: 484 km,<br />
de São Paulo: 458 km e Porto Alegre: 1.136 km.<br />
O aeroporto integra o Programa Aeroportuário<br />
de Minas Gerais (Proaero), que t<strong>em</strong> como objetivo<br />
permitir que 100% dos municípios mineiros estejam<br />
localizados a uma distância máxima de 100 quilômetros<br />
de um aeroporto público, com funcionamento diurno e<br />
noturno, acessado por meio de rodovia pavimentada,<br />
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134<br />
como d<strong>em</strong>onstra a figura abaixo.<br />
FIGURA 04 - Aeroporto Risoleta Neves<br />
Fonte: SECOM-MG, 2010.<br />
O comércio é impulsionado pelas indústrias, pelo<br />
agronegócio do abacaxi, milho, soja e cana-de-açúcar, é<br />
b<strong>em</strong> diversificado, atraindo grande número de pessoas<br />
da microrregião que se desloca diariamente para<br />
usufruir do comércio local. A força do setor industrial<br />
se concentra nas indústrias do leite e seus derivados,<br />
doces, confecções, vestuário, bijuterias, acessórios<br />
infantis, produtos alimentícios e produções artesanais.<br />
Cont<strong>em</strong>poraneamente, foram implantadas indústrias<br />
do setor sucroalcoleiro, usinas de açúcar e álcool e do<br />
setor cervejeiro.<br />
Em 23 de nov<strong>em</strong>bro de 2009, a multinacional<br />
Bungue publicou a aquisição da unidade Frutal, com um<br />
projeto de se tornar uma das maiores companhias do<br />
agronegócio do mundo, assinando contrato de compra<br />
do Grupo Mo<strong>em</strong>a, consolidando sua participação no<br />
setor sucroalcooleiro. De acordo com fontes próximas<br />
à negociação, pelo acordo assinado, a Bunge teria<br />
adquirido as participações que o Grupo Mo<strong>em</strong>a possui<br />
nas seis usinas que formam o conglomerado. A Usina<br />
Frutal t<strong>em</strong> 56% da Bungue e 44% de participação de<br />
acionistas minoritários. Pelo planejamento da <strong>em</strong>presa,<br />
a produção será de 650 mil toneladas/ano, chegando a<br />
dois milhões de toneladas <strong>em</strong> 2011.<br />
FIGURA 05 - Usina Frutal Açúcar e Álcool S. A.<br />
Fonte: Usina Frutal Açúcar e Álcool S/A (2010).<br />
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Adriano Reis de Paula e Silva; Vitor Ribeiro Filho<br />
A <strong>em</strong>presa Usina Cerradão Ltda foi criada <strong>em</strong> 01<br />
de junho de 2006, através da união de dois grupos<br />
ligados ao agronegócio, o grupo Queiroz de Queiroz<br />
e o Pitangueiras. A família Queiroz possui uma história<br />
de mais de 200 anos de trabalho no Triângulo Mineiro.<br />
Em 1974 foi iniciado o Grupo Queiroz de Queiroz, que<br />
v<strong>em</strong> trabalhando com pecuária de corte, pecuária de<br />
leite, cultivo de grãos como milho, sorgo e soja, além<br />
de fornecer cana-de-açúcar para usinas já instaladas<br />
na região, como a Usina Mo<strong>em</strong>a e a Itapagipe. Com a<br />
grande expansão da cana-de-açúcar, a disponibilidade de<br />
terras da família e o grande potencial de produção do<br />
Triângulo Mineiro, o grupo decidiu <strong>em</strong> 2006 procurar<br />
um sócio que possuísse grande conhecimento e tradição<br />
na área industrial de açúcar e álcool para a fundação de<br />
uma usina que pudesse agregar valor ao seu produto<br />
agrícola e gerar desenvolvimento <strong>em</strong> toda a região.<br />
Desde 1975, o Grupo Pitangueiras trabalha na<br />
industrialização de cana-de-açúcar através da <strong>em</strong>presa<br />
Pitangueiras Açúcar e Álcool, localizada no município de<br />
Pitangueiras, estado de São Paulo, na região de Ribeirão<br />
Preto. Desde a fundação da unidade industrial, o grupo<br />
veio expandindo os negócios. Em 2006, acreditando<br />
no grande futuro do etanol brasileiro e na produção de<br />
energia elétrica através da biomassa, ele resolveu iniciar<br />
a construção de uma nova unidade, procurando para<br />
a instalação uma região com potencial produtivo e um<br />
grupo com disponibilidade de terras e conhecimento<br />
agrícola para associar-se ao novo <strong>em</strong>preendimento.<br />
Em operação desde o dia 14 de julho de 2009, a<br />
Usina Cerradão conta com mais de mil colaboradores,<br />
produzindo álcool e cogerando energia. A partir da<br />
safra 2010/11 está produzindo também açúcar e outros<br />
derivados da cana-de-açúcar.<br />
A Usina Cerradão e seus fornecedores já têm<br />
contratados e implantados mais de 16 mil hectares de<br />
cana-de-açúcar, cuja capacidade de moag<strong>em</strong> da safra<br />
referida pode chegar a 1,5 milhão de toneladas. Abaixo<br />
se observa a indústria <strong>em</strong> fase de implantação:<br />
FIGURA 05 - Usina Cerrão Ltda<br />
Fonte: Usina Cerradão Ltda (2010).
O Grupo Aralco de Santo Antônio do Aracanguá (São<br />
Paulo), região de Araçatuba, que é respeitado por sua longa<br />
história de tradição no setor sucroalcooleiro, resolveu<br />
investir no setor cervejeiro brasileiro. Proprietário das<br />
<strong>em</strong>presas Usinas Aralco, de Santo Antônio do Aracangu;<br />
Generalco, <strong>em</strong> General Salgado (São Paulo) e Alcoazul<br />
de Araçatuba, estado de São Paulo. Em 10 de agosto<br />
de 2005, esse grupo inaugurou sua primeira unidade de<br />
produção da nova cerveja Fass, Cervejaria Pr<strong>em</strong>ium,<br />
localizada na Rodovia BR 364, Km 26,6, no município de<br />
Frutal. A cerveja, tipo pilsen, com graduação alcoólica de<br />
4,8%, chega ao mercado inicialmente com a marca Fass,<br />
que significa barril <strong>em</strong> al<strong>em</strong>ão, envasada <strong>em</strong> garrafas de<br />
600ml, distribuída nas principais regiões dos estados de<br />
São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul.<br />
Para isso, foi montanda uma estrutura própria de logística<br />
e comercialização do produto.<br />
Em sua primeira fase de produção, a Cervejaria<br />
Pr<strong>em</strong>ium estima colocar no mercado 35 milhões de<br />
litros/ano. A indústria possui capacidade de ampliação<br />
de produção de mais 100 milhões de litros/ano. O<br />
grupo investiu R$ 68 milhões na construção e instalação<br />
da indústria. A <strong>em</strong>presa contratou 160 funcionários e<br />
prevê oferecer outros 350 <strong>em</strong>pregos diretos.<br />
FIGURA 05 - Cervejaria Pr<strong>em</strong>ium<br />
Fonte: Cervejaria Pr<strong>em</strong>ium (2010).<br />
Hoje, a Cervejaria Pr<strong>em</strong>ium conta mais quatro<br />
marcas, entre as mais conhecidas as cervejas Bella e<br />
Bauhaus, vendidas <strong>em</strong> garrafa e lata.<br />
O município exerce centralidade na microrregião,<br />
com a sua estrutura interna <strong>em</strong> constante processo de<br />
transformação e readequação, advento da implantação<br />
de novos loteamentos e o surgimento de serviços<br />
especializados como Unidade do Corpo de Bombeiros,<br />
Unidades Regionais do INSS, Receita Federa, Receita<br />
Estadual e a instalação da nova vara judicial na comarca,<br />
<strong>em</strong> que são distribuídos mensalmente cerca de 920<br />
processos e quase 23 mil ações <strong>em</strong> andamentos,<br />
segundo as estatísticas de janeiro a abril de 2010. No<br />
setor saúde, o município atende todos os municípios<br />
vizinhos através do Hospital Municipal Frei Gabriel.<br />
A produção do espaço urbano e centralidade na cidade de Frutal<br />
A qualidade do ensino ministrado na rede municipal<br />
de ensino, comprovada pelos bons índices alcançados<br />
no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica<br />
(IDEB) e apresentada pelo Instituto Nacional de<br />
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP)<br />
<strong>em</strong> 2010, e a instalação da Universidade do Estado de<br />
Minas Gerais (UEMG) - Campus de Frutal configuram<br />
o município <strong>em</strong> um pólo educacional frente à sua<br />
microrregião.<br />
Em fase de implantação está a Cidade Universitária,<br />
que abrigará duas instituições de ensino e pesquisa de<br />
porte nacional e internacional, a UEMG e o do Instituto<br />
de Águas (Hidroex). Isso provocará uma notória<br />
mudança de hábitos de consumo e de comportamento,<br />
implicando diretamente numa reorganização funcional<br />
da cidade e coerência da transformação urbana.<br />
FIGURA 06 – UEMG – Campus de Frutal (MG)<br />
Fonte: UEMG (2010).<br />
Quanto à ocupação urbana, constata-se que há uma<br />
realocação das populações, separação que ocorre tanto<br />
pela valorização de terrenos, que dificulta o acesso à<br />
qu<strong>em</strong> dispõe de pouco poder aquisitivo, como também<br />
a aquisição de terrenos para obras públicas, como as<br />
políticas habitacionais que são usadas como mecanismo<br />
de valorização de áreas periféricas e não urbanizadas.<br />
Consultas feitas à Secretaria de Obras de Frutal<br />
apontam que o processo do planejamento urbano está<br />
<strong>em</strong> fase de estudos e o poder público o reconhece como<br />
um importante instrumento para o desenvolvimento<br />
ordenado da cidade.<br />
Considerações finais<br />
A partir dos últimos anos do século XX e inicio do<br />
século XXI, vêm ocorrendo profundas transformações<br />
sociais e econômicas decorrentes da concretização<br />
de desenvolvimentos tecnológicos que estimulam o<br />
processo de re-estruturação do sist<strong>em</strong>a capitalista de<br />
produção, principalmente na organização das cidades e<br />
de seus espaços intraurbanos.<br />
A expansão urbana das pequenas e médias cidades<br />
está associada ao acentuado processo de urbanização. A<br />
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136<br />
partir desse fenômeno, iniciam-se a descentralização<br />
industrial e a modernização agrícola, além da promoção<br />
de mudanças no padrão da divisão territorial do trabalho<br />
no país, o que favoreceu o crescimento das cidades,<br />
especificamente das pequenas e médias, modificando<br />
para a atual rede urbana brasileira. A reprodução do<br />
capital refletiu na descentralização econômica e no<br />
desenvolvimento de atividades, colaborando de forma<br />
efetiva para o surgimento de novas configurações<br />
comerciais.<br />
De acordo com a história, o pensamento do<br />
desenvolvimento local atua na maioria das vezes com um<br />
aspecto competitivo, ou seja, os planejadores pensavam<br />
apenas <strong>em</strong> questões financeiras, tributárias e de geração<br />
de receitas. Entretanto, como o crescimento da<br />
ocupação urbana v<strong>em</strong> justamente reforçar a importância<br />
do desenvolvimento local na ampliação do regional,<br />
cria-se a necessidade da formação de identidades e<br />
de diferenciação das regiões e das comunidades para<br />
enfrentar<strong>em</strong> um mundo de extr<strong>em</strong>a competitividade,<br />
reforçando a necessidade de ajustes estruturais na<br />
economia e nas organizações, adaptando-se ao novo<br />
contexto globalizado.<br />
Nesse contexto, as pequenas e médias cidades vêm<br />
se tornando verdadeiras fronteiras entre processos<br />
rurais e urbanos, absorvendo um pouco os processos<br />
acumulativos próprios da cont<strong>em</strong>poraneidade,<br />
modernidade. A influência de cada cidade é <strong>em</strong> função<br />
de seu tamanho e da caracterização de uma rede urbana<br />
equilibrada, definindo o desenvolvimento regional<br />
e do país. Assim, o planejamento territorial v<strong>em</strong><br />
caracterizando-se como estratégico, envolvendo redes<br />
de cidades num elo direto, assegurando os espaços<br />
adequados para a provisão de novas moradias que<br />
atendam à d<strong>em</strong>anda da população e preveja condições<br />
atraentes para <strong>em</strong>presas, conforme as características<br />
locais e regionais.<br />
A localização de Frutal potencializa uma atração<br />
para o setor industrial. Sobretudo, a transformação do<br />
município <strong>em</strong> pólo educacional, possibilitará ao município<br />
uma notória expansão urbana e socioeconômica.<br />
Constata-se o crescimento no setor da construção<br />
civil, com surgimento de diversos bairros e loteamentos<br />
tanto para classe média quanto para qu<strong>em</strong> dispõe<br />
de pouco poder aquisitivo, e também a aquisição<br />
de terrenos para obras públicas, como as políticas<br />
habitacionais.<br />
O município exerce centralidade na microrregião,<br />
com a sua estrutura interna, advento do surgimento<br />
de serviços especializados, que atend<strong>em</strong> todos os<br />
municípios vizinhos.<br />
A compreensão da produção e centralidade da<br />
cidade de Frutal contribui na divulgação do município<br />
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Adriano Reis de Paula e Silva; Vitor Ribeiro Filho<br />
e políticas de planejamento, proporcionando uma<br />
maior visibilidade do crescimento socioeconômico e<br />
as potencialidades do município. Ela serve ainda como<br />
parâmetros para estudos acadêmicos futuros na busca<br />
pela compreensão da relação entre o intraurbano e o<br />
interurbano para melhor identificação da ocupação do<br />
uso do solo dessa cidade.<br />
Enfim, a discussão do estudo <strong>em</strong> questão envolve<br />
a estruturação interna da cidade, desde a nova<br />
localização dos equipamentos de comércio e de<br />
serviços; a redefinição do centro e sua região periférica;<br />
a criação de núcleos habitacionais e condomínios; a<br />
especulação imobiliária e as medidas adotadas pela<br />
gestão municipal.<br />
A pesquisa ainda encontra-se <strong>em</strong> andamento e<br />
levantará dados sobre a política habitacional através<br />
de uma análise socioeconômica e espacial e sobre as<br />
redes <strong>em</strong>presariais e industriais que corroboram para<br />
melhorias destinadas às pequenas e médias cidades.<br />
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USINA FRUTAL. Usina Frutal Açúcar e Álcool S/A.<br />
Frutal, 2010.<br />
USINA CERRADÃO. Usina Cerradão Ltda. Frutal,<br />
2010.<br />
WHITACHER, A. M. Reestruturação urbana e<br />
centralidade <strong>em</strong> São José do Rio Preto. 2003. 238f. Tese<br />
(Doutorado <strong>em</strong> Geografia) - Faculdade de Ciências<br />
e Tecnologia, Universidade Estadual de São Paulo,<br />
Presidente Prudente, 2003.<br />
A produção do espaço urbano e centralidade na cidade de Frutal<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 129-138<br />
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138<br />
THE PRODUCTION OF URBAN SPACE AND<br />
CENTRALITY IN THE CITY OF FRUTAL<br />
ABSTRACT: This paper seeks to analyze the formation of urban space and centrality, checking the features<br />
that this has on small and medium-sized cities. From the development of the capitalist mode of production and<br />
impl<strong>em</strong>entation of the industrialization process, and through technological advances sees the intensification of<br />
the urbanization process. The discussion of production space and centrality in the city of Frutal (MG), located<br />
in the Triangulo Mineiro region, is important for a better understanding of the structure and functionality within<br />
the region. The planning, both the intra-urban and interurban the technique, is an instrument that guides the<br />
actions of municipalities, in which he makes an assessment of potential sites, looking for more job opportunities<br />
and generating income for its residents. Its location enhances an attraction to industry and education. There is<br />
growth in the construction industry, with the appearance of several neighborhoods and subdivisions, as well as the<br />
acquisition of land for public works. The council has centrality in the micro, with its internal structure, the advent<br />
of the <strong>em</strong>ergence of specialized services that meet all the neighboring counties, which is providing greater visibility<br />
of the socio-economic growth and its potential in the city.<br />
KEYWORDS: Centralization; urban space; Frutal; small towns.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 129-138<br />
Adriano Reis de Paula e Silva; Vitor Ribeiro Filho
FORMAÇÃO ÉTICA PARA O EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA<br />
Almiro Schulz 1 ; Graziela Giusti Pachane 2<br />
RESUMO: O texto t<strong>em</strong> por objetivo socializar preocupações e resultados de pesquisas sobre a formação ética<br />
para o exercício da docência, considerando que se trata de uma atividade complexa e com grandes desafios. O<br />
trabalho t<strong>em</strong> por base uma revisão bibliográfica sobre a dimensão ética, a partir de textos considerados clássicos,<br />
<strong>em</strong> suas diferentes perspectivas. Também t<strong>em</strong> por referência algumas pesquisas <strong>em</strong>píricas que foram desenvolvidas<br />
com alunos de iniciação científica e com alunos de um curso de mestrado <strong>em</strong> educação superior. Salienta-se que<br />
no processo da formação, estão implicados paradigmas e métodos e que a razão como único critério da ética já<br />
não responde mais ao t<strong>em</strong>po atual, sendo preciso incluir o sensitivo. Conclui-se que a formação ética se dá no<br />
processo da ação docente (práxis) de uma forma circular, mesclando-se entre conhecimento e sabedoria, pela<br />
prática das virtudes, num intercâmbio do desenvolvimento cognitivo e <strong>em</strong>ocional/moral.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Docência; competência; ética; formação; método.<br />
Introdução<br />
Atualmente, a formação de professores é objeto de<br />
muitos estudos, pesquisas e publicações. Da mesma<br />
forma, verifica-se que também a ética está <strong>em</strong> pauta,<br />
as traduções de textos e as publicações sobre o assunto<br />
têm aumentado e se diversificado.<br />
Considerando a formação docente, a ética é uma das<br />
competências que se espera do profissional da educação.<br />
Diante disso, t<strong>em</strong>-se o objetivo de socializar algumas<br />
preocupações sobre a ética no exercício da docência,<br />
pois a atividade do professor é complexa e pressupõe<br />
desafios como, por ex<strong>em</strong>plo, as relações intersubjetivas<br />
entre os pares, com os discentes, com os gestores etc.,<br />
nas quais há implicações éticas. Este artigo pretende,<br />
então, destacar aspectos sobre a formação ética para o<br />
exercício da docência, mostrando a importância que é<br />
dada a ela; apresentar uma noção sobre a competência<br />
ética, tecer comentários sobre critérios para uma<br />
decisão ética e apontar procedimentos metodológicos.<br />
O estudo t<strong>em</strong> por base uma revisão bibliográfica,<br />
sob a dimensão ética, de textos considerados clássicos<br />
<strong>em</strong> suas diferentes perspectivas como Instrução pública<br />
e formação moral, de Condorcet; A educação moral,<br />
de Durkeim; Formação moral <strong>em</strong> Rawls, de Sidney.<br />
De publicações cont<strong>em</strong>porâneas, como A construção<br />
da personalidade moral, de Puig; O livro das virtudes de<br />
s<strong>em</strong>pre, de Marques e, sobretudo, textos de José Maria<br />
Quintana Cabanas como A pedagogia moral: el desarrollo<br />
moral integral e Pedagogia axiológica - la educación ante<br />
los valores. Também t<strong>em</strong> como referência algumas<br />
pesquisas que foram desenvolvidas e de iniciação<br />
científica e com alunos de um curso de mestrado <strong>em</strong><br />
educação superior.<br />
A abordag<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>a está estruturada <strong>em</strong> três eixos<br />
principais. Primeiro, chama-se a atenção para a relevância<br />
e pertinência do assunto ora <strong>em</strong> pauta. A seguir, situase<br />
a ética no âmbito das competências da docência.<br />
Em terceiro lugar, destacam-se alguns aspectos sobre<br />
a formação no processo da profissionalização para o<br />
exercício de um profissionalismo ou profissionalidade<br />
com ética. Esse terceiro eixo dá uma noção sobre<br />
o sentido de profissionalização e profissionalismo,<br />
faz considerações sobre o agir de forma ética e uma<br />
apresentação sobre a questão das metodologias no<br />
processo da formação ética.<br />
1 A importância da ética<br />
para a formação docente<br />
Há mais de uma década, o impacto da ética<br />
não cessa de crescer <strong>em</strong> profundidade,<br />
invadindo as mídias, fornecendo matéria para<br />
reflexão filosófica, jurídica e deontológica,<br />
gerando instituições e práticas coletivas inéditas<br />
(LIPOVETSKY, 2005, p. xxvii).<br />
Constata-se, pois, que a ética ocupa hoje um ponto<br />
de destaque, considera-se até que a sociedade vive a<br />
“era da ética”. Percebe-se que o seu uso se amplia cada<br />
vez mais para diferentes âmbitos e instâncias, tais como<br />
no “mundo” corporativo, no qual a ética <strong>em</strong>presarial ou<br />
organizacional está <strong>em</strong> alta. Muitas são as publicações<br />
1 Doutor <strong>em</strong> Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). R.T 29, 660, apto. 1.202, Setor<br />
Bueno, Goniânia - GO. E-mail: almiroschulz@yahoo.com.br.<br />
2 Doutora <strong>em</strong> Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora adjunta da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Rua Cândida<br />
Mendonça Bilharinho, 627, apto. 102, Bl 02, Mercês. Cep: 38060-159. Uberaba-MG. E-mail: grazielagp@yahoo.com.br<br />
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140<br />
sobre o assunto, por ex<strong>em</strong>plo: Ética <strong>em</strong>presarial, de<br />
Srour; Ética <strong>em</strong>presarial, de Forrell, Fraedrich e Forrell<br />
e muitos outros. Isso abre espaço para uma nova função<br />
profissional: os consultores de ética organizacional e<br />
associações de assessoramento.<br />
Segundo Amôedo (2007), hoje a sociedade vive a<br />
pós-qualidade, buscando e enfatizando a qualidade<br />
ética. Para o autor, a “exigência ética agora não é apenas<br />
por produtos ou serviços de qualidade, mas também de<br />
natureza ética” (AMÔEDO, 2007, p. 89).<br />
Não é menor a ênfase <strong>em</strong> outras áreas como, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, as abordagens <strong>em</strong> torno da bioética, a ética<br />
ecológica etc. É só colocar como palavra-chave o termo<br />
“ética” <strong>em</strong> um site de busca e t<strong>em</strong>-se uma enorme lista de<br />
publicações de textos e debates disponíveis para estudo.<br />
Também está <strong>em</strong> alta a questão da formação<br />
docente. Verifica-se que o interesse pelo assunto é<br />
grande, bastando para isso observar os congressos ou<br />
eventos promovidos pela área da educação, na qual<br />
se concentra o maior número de interessados. Tal<br />
interesse também pode ser percebido pelas t<strong>em</strong>áticas<br />
ou probl<strong>em</strong>as de estudo e pesquisa nas pós-graduações<br />
<strong>em</strong> educação. Em um levantamento de dissertações<br />
e teses feito através de um projeto de pesquisa - As<br />
condições do ensino de filosofia no estado de Goiás (2009)<br />
- constatou-se que grande número t<strong>em</strong> como foco a<br />
formação do professor.<br />
Se ética e formação docente são hoje assuntos que<br />
estão <strong>em</strong> um pedestal, é preciso considerar como eles<br />
se pertenc<strong>em</strong> no processo da formação e na prática<br />
docente, isso é, que relação há entre a educação, o<br />
ensino e a ética?<br />
Em uma das pesquisas sobre dil<strong>em</strong>as éticos da prática<br />
da docência, realizada com 230 professores de oito<br />
instituições de educação superior, constatou-se que os<br />
professores se deparam com uma série de situações<br />
que consideram dil<strong>em</strong>as éticos, as quais ocorr<strong>em</strong> com<br />
relativa frequência e que têm incidência ou impacto<br />
sobre suas vidas. Como ex<strong>em</strong>plo desses dil<strong>em</strong>as, podese<br />
citar a necessidade dos professores de cumprir<br />
certas exigências da parte de gestores das instituições<br />
educacionais, mesmo não concordando, apenas para<br />
não perder<strong>em</strong> o <strong>em</strong>prego (SCHULZ, 2007).<br />
Em outras duas pesquisas, procurou-se verificar<br />
qual a importância dada à ética na formação docente<br />
<strong>em</strong> cursos de licenciaturas. Nesse sentido, constatouse<br />
que os vários segmentos ou atores da comunidade<br />
do ensino superior dão grande importância à formação<br />
ética dos professores. Numa delas, realizada com 514<br />
sujeitos (alunos, professores e coordenadores de curso),<br />
<strong>em</strong> instituições de ensino superior no Alto Paranaíba<br />
(Minas Gerais), <strong>em</strong> oito cursos de licenciaturas, dos 459<br />
alunos pesquisados, 94,99% consideram que a ética é<br />
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Almiro Schulz; Graziela Giusti Pachane<br />
importante para sua formação. Entre os professores,<br />
dos 47 entrevistados, 97,87% julgaram que ela é<br />
importante. E todos os oito coordenadores envolvidos<br />
consideram que a ética é uma questão importante<br />
(SCHULZ; DELZA, 2004).<br />
Percebe-se, portanto, que seja do ponto de vista da<br />
literatura da área ou do ponto de vista dos próprios<br />
docentes, gestores e estudantes, os t<strong>em</strong>as relativos a<br />
questões éticas são considerados relevantes. É preciso,<br />
no entanto, não ser ingênuo, mas perguntar de que<br />
ética se está falando, pois segundo Lipovetsky no texto<br />
A sociedade pós-moralista – o crepúsculo do dever e a<br />
ética indolor dos novos t<strong>em</strong>pos d<strong>em</strong>ocráticos:<br />
a sedução tomou lugar do dever, o b<strong>em</strong>-estar<br />
tornou-se Deus, e a publicidade é seu profeta. O<br />
reino do consumo e da publicidade exprime muito<br />
b<strong>em</strong> o sentido coeso da cultura pós-moderna. [...]<br />
Eis como avança a era do pós-dever: projeta-se<br />
<strong>em</strong> tecnicolor o direito individualista de não se<br />
interessar pelos d<strong>em</strong>ais (LIPOVETSKY, 2005,<br />
p.31/33).<br />
Segundo o autor, a ênfase da ética hoje não se<br />
centra no dever ser, mas t<strong>em</strong> como base o b<strong>em</strong>-estar<br />
individual, <strong>em</strong> nome do qual se age e se decide. O<br />
dever está circunscrito pelo b<strong>em</strong>-estar, diante dele se<br />
abre mão de compromissos e deveres, assum<strong>em</strong>-se<br />
responsabilidades ou deixam-as, etc.<br />
2 Competência ética<br />
da profissão docente<br />
“Competência” e “profissão” são duas categorias n<strong>em</strong><br />
s<strong>em</strong>pre b<strong>em</strong> vistas pela comunidade pedagógica, pois<br />
uma parte dela entende que elas têm um viés ideológico<br />
do mundo mercadológico, corporativista. O uso do<br />
termo “competência” tende a responsabilizar o sujeito,<br />
o educando, pelo seu sucesso e fracasso, diminuindo o<br />
papel político e social do processo educativo. Do outro<br />
lado, o termo “profissão”, segundo alguns autores,<br />
atribui maior peso ao “mundo” produtivo, ao trabalho,<br />
voltando-se mais para a ideia de uma formação técnica<br />
e de instrumentalização. Contudo, o que se constata é<br />
que ambos os termos são cada vez mais de uso comum,<br />
mesmo na área da educação, s<strong>em</strong>, no entanto, atribuirlhes<br />
o mesmo significado ideológico.<br />
N<strong>em</strong> todo trabalho que é realizado é considerado ou<br />
qualificado como profissão. As profissões são resultado<br />
de uma construção histórica e social, elas são ampliadas,<br />
são modificadas e pod<strong>em</strong> até desaparecer. Uma<br />
profissão se caracteriza por alguns critérios, dentre eles<br />
padrões de des<strong>em</strong>penho, especialização, identidade<br />
e missão central (GARDNER; CSIKSZENTMIHALYI;
DAMON, 2004). Nesse sentido, apreende-se dessas<br />
pressuposições que a profissão docente consiste <strong>em</strong>:<br />
ensinar, pesquisar e formar.<br />
Ao discutir competência profissional, entra-se <strong>em</strong><br />
questão a que profissão pertence o profissional, pois<br />
cada uma delas se caracteriza por determinada essência,<br />
diferente das d<strong>em</strong>ais. Segundo Gardner, Scikszentmihalyi<br />
e Damon “todos profissionais dev<strong>em</strong> ser capazes de<br />
verbalizar a missão essencial tradicional de seu campo”<br />
(GARDNER; SCIKSZENTMIHALYI; DAMON, 2004,<br />
p. 26). Mesmo que haja similaridades, cada profissão<br />
requer competências específicas do profissional.<br />
Em seu texto Compreender e ensinar – por uma<br />
docência da melhor qualidade, Rios (2001) refere-se a<br />
quatro dimensões de competência relativas ao fazer<br />
docente: técnica, estética, política e ética. Perrnoud<br />
(2000) relaciona uma lista de dez competências, sendo<br />
uma delas “enfrentar os deveres e dil<strong>em</strong>as éticos da<br />
profissão”. Há, portanto, maneiras diversas de delimitar<br />
e compreendê-las. No entanto, <strong>em</strong> síntese, destacam-se<br />
quatro níveis básicos de competências: a) cognitiva, b)<br />
técnica, c) <strong>em</strong>ocional/social e d) ética/moral.<br />
A “competência cognitiva” compreende o domínio<br />
no âmbito do conhecimento, ter as informações e<br />
conhecimentos necessários que envolv<strong>em</strong> e d<strong>em</strong>andam<br />
as profissões. No caso da docência, ter domínio sobre a<br />
área do saber objeto da sua docência. A “competência<br />
técnica” é entendida como a capacidade da realização,<br />
do fazer as coisas b<strong>em</strong> feitas; não é só saber, mas saber<br />
fazer. No caso da docência, pod<strong>em</strong> ser entendidos todos<br />
os aspectos didáticos. Naturalmente, há profissões que<br />
são mais práticas, enquanto outras são mais teóricas. A<br />
“competência <strong>em</strong>ocional/social” refere-se à capacidade<br />
de dominar os próprios sentimentos, de lidar com<br />
situações de pressão <strong>em</strong>ocional e de tratar as relações<br />
intersubjetivas; t<strong>em</strong> a ver com o relacionamento com o<br />
outro, conforme abordag<strong>em</strong> de Gol<strong>em</strong>an (2006). Nesse<br />
caso, a competência <strong>em</strong>ocional e social do professor se<br />
manifesta no âmbito e na forma do relacionamento que<br />
ele estabelece com os alunos, com os pares e como age<br />
e reage quando pressionado etc.<br />
Considerando que o foco deste texto é a formação<br />
ética do professor, dar-se-á um pouco mais atenção a<br />
alguns aspectos implicados na “competência ética”. A<br />
rigor teria que se discutir mais sobre a ética, uma vez<br />
que essa categoria n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é usada com um mesmo<br />
significado ou conceito. O termo “ética” muitas vezes,<br />
é focado a partir do locus de onde se olha e se fala: da<br />
política, da psicologia, da religião, da filosofia etc.<br />
Para Vazquez (1982), a “ética é ciência da moral”.<br />
Porém, é importante l<strong>em</strong>brar que sua própria<br />
concepção pode ser dimensionada como ética filosófica<br />
ou científica. Nesse sentido, Srour l<strong>em</strong>bra, <strong>em</strong> relação<br />
Formação ética para o exercício da docência<br />
à ética filosófica ou filosofia moral, que ela:<br />
tende a ter um caráter normativo e de prescrição,<br />
ansiosa por estabelecer uma moral universal,<br />
cujos princípios eternos deveriam inspirar os<br />
homens, malgrado as contingências de lugar e de<br />
t<strong>em</strong>po (SROUR, 2002, p. 39).<br />
Em relação à ética científica, ele menciona que ela<br />
tende a ter um caráter descritivo e explicativo<br />
porque centra sua atenção no conhecimento<br />
das regularidades que os fenômenos morais<br />
apresentam, malgrado sua diversidade cultural<br />
e apesar da variedade de seus pressupostos<br />
normativos (SROUR, 2002, p. 39).<br />
Diante dessas considerações, importa apontar duas<br />
concepções sobre a competência ética: a primeira<br />
diz respeito ao uso do conhecimento com sabedoria,<br />
quando se produz conhecimento e ele se aplica de<br />
forma virtuosa; isto é, saber usar o conhecimento<br />
para o b<strong>em</strong> (STEPKE; DRUMOND, 2007). Nesse<br />
sentido, a competência ética do professor consiste <strong>em</strong><br />
saber direcionar o uso do conhecimento produzido e<br />
o que produz, como uma autodeterminação pela sua<br />
consciência moral, de forma que suas decisões e ações<br />
contribuam para uma vida mais feliz.<br />
Numa outra perspectiva, a competência ética é o<br />
alinhamento entre princípios, valores morais e a conduta,<br />
ou seja, ter a capacidade de viver e se comportar de<br />
acordo com seus princípios morais. Kiel e Lennick<br />
defin<strong>em</strong> a inteligência moral como “a capacidade mental<br />
de determinar como princípios humanos universais<br />
dev<strong>em</strong> ser aplicados aos nossos valores, objetivos e<br />
ações” (KIEL; LENNICK, 2005, p.xvii).<br />
É comum constatar que há uma distância entre o<br />
juízo e a ação. Segundo Taille e Menin,<br />
ao perguntar para uma pessoa se ela valoriza a<br />
honestidade, provavelmente ela responderá que<br />
sim. Porém, mesmo na hipótese de ela não estar<br />
optando por um juízo moral <strong>em</strong> razão de sua<br />
aceitabilidade social, mesmo na hipótese, portanto,<br />
de ela ser sincera, tal juízo não garantiria que, <strong>em</strong><br />
uma situação na qual a desonestidade trouxesse-lhe<br />
alguma vantag<strong>em</strong> desejada, ela não agisse de forma<br />
desonesta (TAILLE; MENIN, 2009, p. 11).<br />
Tal atitude ou comportamento não estaria de acordo<br />
com a concepção de competência ética, do alinhamento,<br />
pois, ter competência ética é agir, se comportar de acordo<br />
com os princípios, com os valores, de forma alinhada.<br />
De acordo com essa concepção, a competência<br />
ética do docente está mais relacionada ao seu caráter,<br />
à sua personalidade moral, quando diante de situações<br />
decide e age mais por autodisciplina, ou seja, pela ética<br />
da virtude.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 139-146<br />
141
142<br />
3. Formação ética no processo da<br />
profissionalização para o exercício<br />
de um profissionalismo com ética<br />
Considera-se importante antes de discutir sobre o<br />
processo da formação ética, esclarecer um pouco as<br />
duas categorias, profissionalização e profissionalismo.<br />
Esses termos são, hoje, amplamente utilizados <strong>em</strong><br />
textos que discut<strong>em</strong> a docência, havendo também<br />
qu<strong>em</strong> faça uma crítica ao seu uso.<br />
O uso desses conceitos representa uma mudança<br />
de paradigma <strong>em</strong> relação ao conceito de docência,<br />
deixando de lado a ideia de vocação, que traz, inclusive,<br />
uma conotação religiosa. No entanto, os termos<br />
profissionalidade e profissionalismo pod<strong>em</strong> provocar o<br />
risco da perda da dimensão humanística do ser professor.<br />
Buscando definir o termo de forma b<strong>em</strong> simples,<br />
“profissionalismo” refere-se à qualidade do trabalho<br />
desenvolvido, ou seja, se o trabalho é realizado dentro<br />
de padrões de qualidade requeridos da profissão e não<br />
feito de forma amadora. Já Veiga, Araujo e Kapuziniak<br />
refer<strong>em</strong>-se ao profissionalismo<br />
[...] como as características e capacidades<br />
específicas da profissão. É a complexa variedade<br />
a que um profissional se deve submeter para<br />
des<strong>em</strong>penhar o trabalho com dignidade,<br />
justiça e responsabilidade (VEIGA; ARAUJO;<br />
KAPUZINIAK, 2005, p. 27).<br />
Enquanto que “profissionalização” t<strong>em</strong> a ver com a<br />
formação, o preparo, seja inicial ou continuado, com a<br />
qualificação para o exercício de uma profissão, o estudo, a<br />
experiência, tudo aquilo que v<strong>em</strong> agregar para o exercício<br />
de um trabalho com profissionalismo. Segundo Veiga,<br />
Araujo e Kapuziniak é “o processo socializador de aquisição<br />
das características e capacidades específicas da profissão”<br />
(VEIGA; ARAUJO; KAPUZINIAK, 2005, p. 31).<br />
Se a docência é uma profissão, ela precisa ser<br />
aprendida. Ninguém nasce professor, aprende-se ao<br />
longo do exercício e estudo, sobretudo, num mundo<br />
<strong>em</strong> constantes mudanças, no qual é preciso estar<br />
s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> processo de aprender e reaprender.<br />
Tratar da formação ética no âmbito da profissionalização<br />
docente é penetrar <strong>em</strong> um terreno bastante movediço,<br />
mas não por isso s<strong>em</strong> importância ou impossível de ser<br />
discutido. Aliás, o assunto já v<strong>em</strong> sendo objeto de discussão<br />
por alguns anos e mostra-se bastante divergente entre a<br />
própria categoria de docentes, principalmente quando<br />
se trata da sua materialização ou objetivação. Outra vez,<br />
Veiga, Araujo e Kapuziniak (2005) abordam a questão da<br />
criação ou não de um conselho ou ord<strong>em</strong> profissional,<br />
b<strong>em</strong> como a formalização ou não de um código de ética<br />
para a classe, mostrando a complexidade desse assunto.<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 139-146<br />
Almiro Schulz; Graziela Giusti Pachane<br />
Neste texto, no entanto, não se t<strong>em</strong> por objetivo<br />
discutir a deontologia profissional dos docentes, ou<br />
seja, o código de ética para os professores, mas a<br />
formação ética do profissional da docência. Não que<br />
aquele deixe de ser um t<strong>em</strong>a pertinente, s<strong>em</strong> relação<br />
com a t<strong>em</strong>ática tratada neste estudo, mas é que este<br />
t<strong>em</strong> a subjetividade do professor como foco.<br />
Pensar na formação ética é considerar sua<br />
especificidade, conteúdo, metodologia. Diante disso,<br />
pretende-se chamar a atenção, ao menos, para<br />
algumas questões significativas como critérios básicos<br />
do processo da formação ética. Essas questões<br />
diz<strong>em</strong> respeito ao paradigma ou critérios éticos e à<br />
metodologia enquanto processo da formação ética.<br />
As questões d<strong>em</strong>andariam, a rigor, uma longa<br />
discussão e análise sobre as várias perspectivas relativas<br />
aos fundamentos da ética, sobre as diferentes concepções<br />
pedagógicas do processo do ensino e formação ética<br />
no decorrer do t<strong>em</strong>po. Porém, neste estudo, faz-se<br />
um recorte, tomando aqui apenas alguns aspectos<br />
considerados fundamentais à abordag<strong>em</strong> pretendida.<br />
Em relação à primeira questão, dos paradigmas,<br />
destacam-se dois aspectos que parec<strong>em</strong> ser pertinentes:<br />
um baseado na razão e outro no sensitivo.<br />
a) A razão como único critério:<br />
Segundo Felipe,<br />
[...] razão, linguag<strong>em</strong>, consciência e pensamento<br />
têm sido, desde Aristóteles, características<br />
essenciais aceitas pela filosofia moral para<br />
estabelecer a linha divisória que define qu<strong>em</strong><br />
pertence à comunidade moral e têm direitos<br />
morais e qu<strong>em</strong> dela fica excluído (FELIPE, 2004,<br />
p. 174).<br />
Ao longo do t<strong>em</strong>po, considerou-se, basicamente,<br />
que o sujeito humano era o único ser que tinha direitos<br />
e deveres morais. Só suas ações tinham implicações<br />
éticas tanto na sua forma ativa como na passiva, isto<br />
é, tanto o que praticava, seus atos, como a prática do<br />
outro, da qual era alvo. Os outros seres (animais) não<br />
se enquadravam n<strong>em</strong> na moral passiva.<br />
Nós últimos anos, o movimento ecológico e<br />
ambiental, com o desenvolvimento da bioética, coloca<br />
<strong>em</strong> questão a razão como único parâmetro, pois já não<br />
responde à atualidade ou às questões bioéticas e ética<br />
da ecologia. Assim, aponta-se para a necessidade de<br />
inclusão do aspecto sensitivo.<br />
b) Sensitivo como critério ético:<br />
Até pouco t<strong>em</strong>po, o sensitivo, dor e prazer, estava<br />
subordinado à razão. Atualmente, como dito, devido
às novas preocupações com o ecossist<strong>em</strong>a, com a<br />
sustentabilidade, evoca-se a necessidade da inclusão do<br />
sensitivo para medir as ações dos seres humanos. Na<br />
verdade, ele ganhou força no âmbito do utilitarismo<br />
cont<strong>em</strong>porâneo, com destaque pela crítica de Peter Singer<br />
aos parâmetros morais tradicionais (FELIPE, 2004).<br />
Dor e prazer eram parâmetros para qualificar ações<br />
que envolviam o ser humano ou a espécie humana, que<br />
era capaz de tomar consciência do sensitivo. Singer<br />
tece uma crítica ao critério racional, qualificando-o<br />
como sendo biológico e pertencente à espécie humana<br />
<strong>em</strong> detrimento a outras espécies animais, vivas. Ele<br />
considera que os animais ag<strong>em</strong> segundo suas sensações,<br />
dor e prazer, mas o fato de não se ter medidas<br />
claras sobre a mente animal impede que estes sejam<br />
excluídos dos que têm direitos morais passivos. T<strong>em</strong>se<br />
consciência de que a inclusão do sensitivo como<br />
critério ético, da forma como Singer postula, implica<br />
numa reeducação e apresenta riscos de elevar seres<br />
vivos não-humanos e reduzir seres humanos para um<br />
estágio não-humano, afetando os valores culturais, b<strong>em</strong><br />
como a economia (SINGER, 1998). Entretanto, o que<br />
se pretende é colocar <strong>em</strong> questão a razão como único<br />
critério ético, até porque novas pesquisas apontam<br />
para além da inteligência racional, para uma inteligência<br />
<strong>em</strong>ocional, social (GOLRMSN, 2006) e até moral (KIEL;<br />
LENNICK, 2005), entre outras que d<strong>em</strong>andam novos<br />
el<strong>em</strong>entos no processo formativo.<br />
É importante que o professor, enquanto mediador<br />
do processo da formação de seus alunos, seja capaz de<br />
balizar e fundamentar suas decisões e ações e que use<br />
de critérios que contribuam e garantam sua ética no<br />
exercício da tarefa docente.<br />
A segunda grande questão implicada no processo<br />
formativo t<strong>em</strong> a ver com a metodologia, ou seja, como<br />
formar para a ética? Outra vez não é uma questão simples,<br />
resolvida numa reflexão durante uma palestra ou artigo.<br />
Contudo, quer-se, <strong>em</strong> síntese, indicar três abordagens:<br />
formação para as virtudes, desenvolvimento do juízo<br />
moral e formação integral, que é chamada por Cabanas<br />
(1995) também de máxima ou antinômica.<br />
No caso da primeira posição, considerada idealista,<br />
o processo da educação ética e moral leva <strong>em</strong> conta e<br />
centra seu foco na formação do caráter. Entende que,<br />
por natureza, o ser humano está predisposto para fazer<br />
o b<strong>em</strong>, mas há deficiências naturais que precisam ser<br />
corrigidas e aperfeiçoadas. Essa concepção t<strong>em</strong> sua<br />
matriz <strong>em</strong> Aristóteles, cuja preocupação com a formação<br />
está voltada para a formação das virtudes por meio do<br />
hábito, para se atingir uma vida feliz, que é o b<strong>em</strong>.<br />
A segunda concepção, considerada por Cabanas<br />
(1995) e Marques (2001) como positivista ou<br />
cognitivista, centra sua preocupação na formação<br />
Formação ética para o exercício da docência<br />
da moral, na reflexão, na consciência ou cognição. A<br />
matriz dessa posição pode ser localizada <strong>em</strong> Sócrates,<br />
mas especialmente <strong>em</strong> Kant. Entre os principais<br />
representantes estão Piaget, Kohlberg e atualmente<br />
Habermas. O foco principal do cognitivismo está<br />
voltado para o desenvolvimento da consciência ou do<br />
juízo moral. Nesse caso, a moralidade depende de se<br />
ter consciência do que é certo e errado ou do que é<br />
mal e b<strong>em</strong>. Piaget (apud FREITAS, 2003) e Kohlberg<br />
(apud BIAGGIO, 2002) vão mostrar isso por meio do<br />
desenvolvimento dos diferentes estágios de consciência.<br />
A terceira posição, a teoria antinômica, é representada<br />
por Cabanas e por Marques, cujos textos tec<strong>em</strong> uma<br />
crítica às posições anteriores <strong>em</strong> relação à formação<br />
ética – valores e moral. Sobretudo Cabanas propõe uma<br />
concepção que considera a formação integral, chamada<br />
também de moral máxima, que busca incluir na formação<br />
todos os domínios e níveis da moralidade e da ética.<br />
Cabanas (1995), numa crítica também aceita<br />
por Marques (2001), aponta como limite da teoria<br />
cognitivista o fato de que a educação da moral é<br />
reduzida à formação do juízo moral, desconsiderando<br />
a formação dos sentimentos, atitudes e hábitos morais.<br />
Em razão de ser formal, não quer inculcar princípios<br />
e normas, n<strong>em</strong> promover tipos de condutas morais.<br />
Também, por se apresentar como d<strong>em</strong>ocrática, confiase<br />
na iniciativa dos educandos.<br />
Segundo Cabanas, para que se atinja uma formação<br />
moral máxima, é preciso que simultaneamente<br />
ocorram a instrução teórica - por meio do ensino<br />
moral, como fruto do conhecimento (cognitivismo) - e<br />
o desenvolvimento do hábito - por meio da disciplina<br />
e prática, como uma forma da iniciação na prática<br />
do b<strong>em</strong> (CABANAS,1995). Isso porque as ideias<br />
<strong>em</strong> si são impotentes para determinar s<strong>em</strong>pre um<br />
comportamento ético e para isso, é preciso incluir na<br />
formação moral o campo pessoal e o social e, <strong>em</strong> ambos,<br />
superar o que chama de moral mínima. Sendo assim,<br />
a formação envolve relações interpessoais através de<br />
atividades de compartilhamento, de experiências que<br />
exig<strong>em</strong> disciplina para a formação do caráter.<br />
Naturalmente, Cabanas não está discutindo<br />
especificamente a formação ética/moral de professores<br />
ou de adultos, porém observa dizendo:<br />
[...] La edad adulta no es ya ti<strong>em</strong>po de educación<br />
sino de acción. Pero <strong>em</strong> realidad – y como decía<br />
Kant – La educación es algo que no se termina<br />
nunca: de ahí que, segun M. Vidal (1990:836),<br />
‘la educación moral es um proceso que dura<br />
toda La vida’. Hoy día se habla de da Educación<br />
P<strong>em</strong>anente, que va siendo uma realidad cada<br />
vez mayor, aplicándose a lo profesional y alo<br />
cultural; de lo moral nada se dice, pelo es outra<br />
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143
144<br />
posibilidad suya. Cada uno de nosotros simpre<br />
tiene <strong>em</strong> esto algo que aprender, y sobre doto<br />
algo que mehorar (CABANAS, 1995, p. 604).<br />
Em relação à busca da autonomia, o autor avalia que<br />
ocorre uma inversão, pois ela passa a ser vista como um<br />
fim, enquanto é apenas um meio que pode tanto ser<br />
usado para o b<strong>em</strong> como para o mal. Marques l<strong>em</strong>bra<br />
que, na visão de Cabanas,<br />
[...] vale mais uma moralidade heterônoma,<br />
numa pessoa capaz de uma boa conduta moral,<br />
do que um discurso ético pós-convencional s<strong>em</strong><br />
correspondência com uma conduta reveladora<br />
do respeito pelos outros, preocupação com o<br />
b<strong>em</strong>-estar dos outros e orientada para o amor<br />
(CABANAS, 2001, p. 55).<br />
Dessa maneira, ao se discutir uma metodologia, o<br />
como formar para o “ser” e não apenas para o “fazer”,<br />
entende-se que não exista uma receita que possa ser<br />
aplicada e que terá um resultado certo. No entanto, para<br />
este estudo, o importante é chamar a atenção para dois<br />
aspectos e dois níveis que Amoêdo (2007) considera<br />
importantes no processo da formação ética para<br />
qualquer profissional: o primeiro, um fator subjetivo,<br />
do próprio sujeito <strong>em</strong> formação, aspectos individuais. O<br />
segundo, um fator externo, institucional, na dimensão<br />
da cultura organizacional. Como salienta o autor,<br />
quanto aos fatores individuais, estes englobam<br />
a percepção que as pessoas têm de si mesmas<br />
<strong>em</strong> seus <strong>em</strong>pregos. Tais percepções enfocam as<br />
exigências das tarefas, as percepções sobre o papel<br />
des<strong>em</strong>penhado, a disponibilidade de escolha e o<br />
interesse pelo trabalho (AMOÊDO, 2007, p. 43).<br />
No caso do docente, significa adquirir consciência clara<br />
da sua tarefa e sobre as implicações éticas no processo do<br />
desenvolvimento delas como, por ex<strong>em</strong>plo, l<strong>em</strong>brando<br />
novamente sua relação com seu aluno, seus pares, o<br />
comprometimento com o ensino etc. Esse seu papel<br />
que pode ser explícito, mas normalmente é delineado<br />
formalmente como implícito, de natureza subjetiva. O<br />
segundo fator pertinente no processo da formação ético/<br />
moral do profissional é o externo, o institucional. Nesse<br />
sentido, Amoêdo chama atenção:<br />
já a cultura, representada pelos valores e pelo estilo<br />
operacional, expressada pela forma de viver, de<br />
conversar, de vestir, de definir o t<strong>em</strong>po, de comer<br />
ou de estabelecer metas para o sucesso, exerce<br />
um potente efeito sobre o que os funcionários<br />
identificam como preocupação de natureza ética e<br />
de conduta a ser adotada (AMOÊDO, 2007, p. 43).<br />
Atualmente, é comum que as organizações explicit<strong>em</strong><br />
sua missão e valores. Algumas instituições de ensino<br />
também o faz<strong>em</strong>, além de instituír<strong>em</strong> a chamada<br />
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Almiro Schulz; Graziela Giusti Pachane<br />
ética <strong>em</strong>presarial ou organizacional (FORRELL, O.<br />
C.; FRAEDRICH; FORRELL L., 2001). S<strong>em</strong> entrar na<br />
discussão sobre a relevância disso, sabe-se que muitas<br />
vezes ocorre conflito ético entre princípios pessoais e<br />
institucionais, conforme feito referência neste texto sobre<br />
a pesquisa: Dil<strong>em</strong>as éticos dos docentes. Contudo, é dada<br />
relevância à cultura, ambiência e/ou clima organizacional<br />
como fator influenciador para o modo de se agir.<br />
Como se vê, o processo da formação moral é complexo<br />
e contínuo, mesmo que ele se dê prioritariamente<br />
na fase da infância até a adolescência, não significa<br />
necessariamente que seja fechado. Ele se dá por meio<br />
de múltiplas experiências e de situações educativas<br />
formais e informais <strong>em</strong> espaços sociais, familiares e<br />
escolares. Portanto, pretender que professores tenham<br />
competência ética significa também educar.<br />
Considerações finais<br />
A formação ética se dá no processo da ação docente<br />
(práxis), de uma forma circular, mesclando-se entre<br />
conhecimento/sabedoria, pela prática das virtudes,<br />
num intercâmbio do desenvolvimento cognitivo e<br />
<strong>em</strong>ocional/moral. Envolve o desenvolvimento da<br />
consciência moral, da personalidade moral e do caráter.<br />
Há a necessidade de uma formação da competência<br />
ético/moral do docente até porque, além dos novos<br />
desafios, o professor se vê, muitas vezes, solitário <strong>em</strong><br />
sala de aula para tomar decisões. Isso se torna mais<br />
complexo uma vez que o resultado do seu trabalho não<br />
é um objeto, mas um sujeito (aluno) de cuja formação<br />
é partícipe, tornando-se responsável pelas possíveis<br />
consequências dessa formação.<br />
Diante da nova dimensão do que t<strong>em</strong> implicação<br />
ética, de direito e dever, do que v<strong>em</strong> sendo considerado<br />
assédio moral, descriminação etc., o docente passa por<br />
situações <strong>em</strong> que se vê muitas vezes “encurralado”,<br />
exigindo dele prudência, sabedoria, justiça, tolerância,<br />
ou seja, as chamadas virtudes capitais.<br />
Vale l<strong>em</strong>brar ainda que honestidade, justiça,<br />
responsabilidade, integridade etc. não são apenas<br />
exigências para os outros, mas dev<strong>em</strong> fazer parte do<br />
caráter e conduta de todo ser humano. Portanto, <strong>em</strong><br />
especial do docente. Há um provérbio popular: “diga<br />
com qu<strong>em</strong> tu andas e eu te direi qu<strong>em</strong> tu és...” que<br />
expressa a ideia da influência pelo convívio. Schaff (1995)<br />
ao discutir sobre os valores, diz que eles contribu<strong>em</strong> no<br />
processo das inter-relações, dependendo dos valores,<br />
as pessoas se afastam ou se aproximam <strong>em</strong> suas<br />
relações. Isso quer dizer que o ex<strong>em</strong>plo do professor,<br />
seus valores e suas atitudes influenciam.<br />
Procurou-se, nos limites do presente texto, focar<br />
aspectos relativos aos objetivos anunciados. Porém,
outros tópicos são relevantes, entre eles, questões<br />
relativas ao conteúdo da formação ética do docente,<br />
diferentes dimensões da práxis ética: a “subjetiva”,<br />
como ação de um indivíduo; a “intersubjetiva”, na<br />
sua realização numa coletividade com o outro; e a<br />
“objetiva”, que envolve o “dever ser” e o “dever fazer”<br />
na perspectiva normativa. São questões que merec<strong>em</strong><br />
um aprofundamento e pod<strong>em</strong> tornar-se objeto de<br />
estudo e de publicações de outros textos.<br />
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v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 139-146<br />
145
146<br />
ETHICAL EDUCATION FOR THE EXERCISE OF TEACHING<br />
ABSTRACT: The text has the objective of socializing concerns and results of research regarding ethical education<br />
for the exercise of teaching, considering that it is a complex activity with great challenges. The text is based on a<br />
bibliographical review regarding the ethical dimension of texts considered to be the most classical in their different<br />
perspectives. It also refers to some <strong>em</strong>pirical research which was developed among students in scientific initiation<br />
and students in the Master’s Degree course in Higher Education. Paradigms and methods are involved in the<br />
process of ethical education. Reason as the only criteria no longer responds to the current situation; it is necessary<br />
to include the sense aspects. Ethical education occurs in the process of the act of teaching (praxis) in a circular<br />
way, moving between knowledge and wisdom, through the practice of the virtues, in an exchange of cognitive and<br />
<strong>em</strong>otional/moral development.<br />
KEYWORDS: Teaching; competence; ethics; training; method.<br />
v. 1 - n. 1 - Nov<strong>em</strong>bro 2010 - p. 139-146<br />
Almiro Schulz; Graziela Giusti Pachane
<strong>Gnose</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> - Normas gerais para submissão de artigos<br />
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como um instrumento de divulgação científica. Por seu caráter multidisciplinar, essa revista faz chamadas, para a publicação, de<br />
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<strong>Gnose</strong> <strong>em</strong> <strong>Revista</strong> - Normas para publicação<br />
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da página. Deverá conter no máximo 15 palavras.<br />
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TEXTO: O artigo deverá ter no mínimo 5 (cinco) e no máximo 15 (quinze) páginas. Todo o texto do artigo deverá ser digitado<br />
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margens direita e esquerda: 1,8 cm. O texto deverá ser apresentado <strong>em</strong> apenas uma coluna.<br />
Resumo/Abstract: Digitados <strong>em</strong> caixa alta, <strong>em</strong> negrito, <strong>em</strong> um único bloco paragráfico, precedido da palavra RESUMO/<br />
ABSTRACT, contendo até 250 palavras, sendo que o RESUMO deverá ser apresentado logo após a identificação da autoria,<br />
e o ABSTRACT, no final das referências, precedido do título do artigo também <strong>em</strong> inglês. Recomenda-se que esses dois<br />
tópicos sejam revistos por falantes nativos dos respectivos idiomas. O RESUMO e o ABSTRACT dev<strong>em</strong> ser seguidos de<br />
quatro PALAVRAS-CHAVE/KEYWORDS, respectivamente, sendo precedidos por esses termos, que também dev<strong>em</strong> ser<br />
grafados <strong>em</strong> negrito.<br />
Todos os títulos (INTRODUÇÃO, MATERIAL E MÉTODOS, RESULTADOS E DISCUSSÕES, CONCLUSÕES E<br />
REFERÊNCIAS) deverão ser digitados <strong>em</strong> caixa-alta, <strong>em</strong> negrito, justificados à esquerda, times New Roman, letra 10. Os<br />
subtítulos deverão ser digitados com apenas a letra inicial maiúscula, <strong>em</strong> negrito e justificados à esquerda. O espaçamento<br />
entre títulos, subtítulos e o texto será de uma linha. Cada título deverá ser separado dos textos que o preced<strong>em</strong> e o suced<strong>em</strong><br />
por espaços simples.<br />
INTRODUÇÃO: A introdução deverá conter uma breve explanação do probl<strong>em</strong>a, b<strong>em</strong> como da pertinência e relevância do<br />
mesmo. No último parágrafo, deverão ser destacados, preferencialmente, os objetivos do trabalho.<br />
MATERIAL E MÉTODOS: Nesse tópico, deverão ser referenciadas as técnicas e os procedimentos <strong>em</strong>pregados na realização<br />
do referido estudo. Não poderão ser utilizados subtítulos nesse tópico. O mesmo poderá comportar figuras, tabelas e
equações, as quais deverão ser nomeadas e numeradas.<br />
RESULTADOS E DISCUSSÕES: Os resultados poderão ser descritos como el<strong>em</strong>entos do texto e apresentados também na<br />
forma de gráficos, tabelas, quadros e figuras. Os mesmos deverão permitir ao leitor a interpretação dos dados da pesquisa.<br />
No caso da inserção de fotografias, as mesmas deverão respeitar o tamanho de 10x15cm e apresentar uma visualização nítida.<br />
As discussões deverão interpretar, de forma clara e concisa, os resultados da pesquisa.<br />
EQUAÇÕES: Dev<strong>em</strong> ser escritas alinhadas à esquerda com o início do parágrafo. As equações dev<strong>em</strong> ser numeradas<br />
cronologicamente, com os números entre parênteses e colocados rente à marg<strong>em</strong> direita. As equações dev<strong>em</strong> ser separadas<br />
por um espaço do texto anterior e posterior. Quando fragmentadas <strong>em</strong> mais de uma linha, por falta de espaço, dev<strong>em</strong> ser<br />
interrompidas antes do sinal de igualdade ou depois dos sinais de adição, subtração, multiplicação e divisão. Ex<strong>em</strong>plo:<br />
x2 + y2 = z2 (1)<br />
(x2 + y2)/4 = n (2)<br />
CONCLUSÕES: As considerações feitas nesse tópico não deverão ser muito extensas, n<strong>em</strong> tampouco ser apresentadas na forma<br />
de tabelas, quadros, figuras e equações, como mera repetição dos resultados. Sendo assim, nesse tópico, deverão ser ressaltadas a<br />
importância e a aplicação dos resultados do ponto de vista do autor, não sendo recomendável a citação de outros autores.<br />
Nota: O tópico AGRADECIMENTOS é opcional e deve aparecer logo após as conclusões.<br />
REFERÊNCIAS: A apresentação das REFERÊNCIAS deverá estar de acordo com as normas da ABNT- Associação Brasileira<br />
de Normas Técnicas NBR 6023:2002 - Informação e Documentação - Referências - Elaboração, disponíveis <strong>em</strong>: NBR 6023:<br />
2002<br />
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Humanst521 BT, corpo 11 entrelinha 14, capa <strong>em</strong> papel Supr<strong>em</strong>a 250 g, <strong>em</strong> fevereiro de 2011.