os herdeiros do milenarismo do Contestado Celso Vianna ... - USP
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meio dele, no cristianismo, como partes<br />
<strong>do</strong> santo combate entre cristã<strong>os</strong> e infiéis.<br />
A dimensão imaginária subitamente se<br />
corporificava solidifican<strong>do</strong>-se na realidade<br />
e a transforman<strong>do</strong>. Dentro dessa questão,<br />
farem<strong>os</strong> um breve apanha<strong>do</strong> d<strong>os</strong> estud<strong>os</strong><br />
sobre o messianismo no Brasil, mais espe-<br />
cificamente <strong>do</strong> movimento <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>,<br />
para, então, introduzir na discussão a cate-<br />
goria de “imaginário social”.<br />
N<strong>os</strong> manuais mais divulgad<strong>os</strong> da histó-<br />
ria <strong>do</strong> Brasil, <strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> messiânic<strong>os</strong><br />
pouco aparecem. Quan<strong>do</strong> aparecem, vêm na<br />
forma de referências breves e quase sempre<br />
distorcidas. Tratan<strong>do</strong> d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> re-<br />
beldes em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, o historia<strong>do</strong>r Eric<br />
Hobsbawm (1978, p. 12) observou que<br />
“[...] nem podem eles ser simplesmente<br />
considerad<strong>os</strong> como marginais ou sem im-<br />
portância, embora historia<strong>do</strong>res antig<strong>os</strong> as-<br />
sim tivessem procedi<strong>do</strong> com frequência, em<br />
parte devi<strong>do</strong> à sua tendência racionalista e<br />
‘modernista’, e em parte porque a inclinação<br />
e o caráter polític<strong>os</strong> desses moviment<strong>os</strong> são,<br />
muitas vezes, indeterminad<strong>os</strong>, ambígu<strong>os</strong> ou<br />
mesmo <strong>os</strong>tensivamente ‘conserva<strong>do</strong>res’, em<br />
parte ainda porque <strong>os</strong> historia<strong>do</strong>res, sen<strong>do</strong><br />
em sua maioria homens cult<strong>os</strong> e urban<strong>os</strong>,<br />
não fizeram, até bem pouco tempo, um es-<br />
forço suficiente para compreender pessoas<br />
que não se assemelham a eles”.<br />
No Brasil, <strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> messiâni-<br />
c<strong>os</strong> eram considerad<strong>os</strong> como primitiv<strong>os</strong><br />
ou arcaic<strong>os</strong>; sempre foram interpretad<strong>os</strong><br />
como fruto <strong>do</strong> “fanatismo” entranha<strong>do</strong> no<br />
espírito das massas “atrasadas” que povoam<br />
o interior <strong>do</strong> país. “Afinal, pensavam <strong>os</strong> in-<br />
telectuais contemporâne<strong>os</strong>, só mesmo o iso-<br />
lamento dessas massas poderia explicar seu<br />
comportamento divergente em relação a<strong>os</strong><br />
padrões civilizad<strong>os</strong> da sociedade litorânea,<br />
e sua relativa imunidade frente às ondas de<br />
progresso que aportavam em n<strong>os</strong>sas c<strong>os</strong>tas<br />
no alvorecer <strong>do</strong> século XX” (Mendes Jr. &<br />
Maranhão, 1981, p. 168).<br />
Percebe-se claramente como tais movi-<br />
ment<strong>os</strong> tornaram-se, em parte pelo men<strong>os</strong>,<br />
uma “criação” da sociedade brasileira<br />
corroborada pel<strong>os</strong> intelectuais. No caso<br />
específico de Canud<strong>os</strong>, não seria incorreto<br />
dizer que o próprio Os Sertões de Euclides<br />
da Cunha faz parte daquilo que chamam<strong>os</strong><br />
de “Canud<strong>os</strong>”. Façam<strong>os</strong> uma citação desse<br />
clássico:<br />
“Esta justap<strong>os</strong>ição histórica calca-se sobre<br />
três sécul<strong>os</strong>. Mas é exata, completa, sem<br />
<strong>do</strong>bras. Imóvel o tempo sobre a rústica so-<br />
ciedade sertaneja, despeada <strong>do</strong> movimento<br />
geral da evolução humana, ela respira ainda<br />
na mesma atm<strong>os</strong>fera moral d<strong>os</strong> iluminad<strong>os</strong><br />
que encalçavam, <strong>do</strong>ud<strong>os</strong>, o Miguelinho ou<br />
o Bandarra. Nem lhe falta, para completar<br />
o símile, o misticismo político <strong>do</strong> sebas-<br />
tianismo. Extinto em Portugal, ele persiste<br />
to<strong>do</strong>, hoje, de mo<strong>do</strong> singularmente impres-<br />
siona<strong>do</strong>r, n<strong>os</strong> sertões <strong>do</strong> norte.<br />
Insistam<strong>os</strong> sobre esta verdade: a guerra<br />
de Canud<strong>os</strong> foi um refluxo em n<strong>os</strong>sa his-<br />
tória.<br />
Viven<strong>do</strong> quatrocent<strong>os</strong> an<strong>os</strong> no litoral vas-<br />
tíssimo, em que pelejam reflex<strong>os</strong> da vida<br />
civilizada, tivem<strong>os</strong> de improviso, como<br />
herança inesperada, a República. Ascende-<br />
m<strong>os</strong>, de chofre, arrebatad<strong>os</strong> na caudal d<strong>os</strong><br />
ideais modern<strong>os</strong>, deixan<strong>do</strong> na penumbra<br />
secular em que jazem, no âmago <strong>do</strong> país, um<br />
terço de n<strong>os</strong>sa gente. [...] tornam<strong>os</strong>, revo-<br />
lucionariamente, fugin<strong>do</strong> ao transigir mais<br />
ligeiro com as exigências da n<strong>os</strong>sa própria<br />
nacionalidade, mais fun<strong>do</strong> o contraste entre<br />
o n<strong>os</strong>so mo<strong>do</strong> de viver e o daqueles rudes<br />
patríci<strong>os</strong> mais estrangeir<strong>os</strong> nesta terra <strong>do</strong><br />
que <strong>os</strong> imigrantes da Europa. Porque não<br />
no-l<strong>os</strong> separa um mar, separam-no-l<strong>os</strong> três<br />
sécul<strong>os</strong>...” (Cunha, 1968, pp. 105 e 153).<br />
Foi somente a partir d<strong>os</strong> finais da década<br />
de 1950 que essa p<strong>os</strong>tura passou a ser criti-<br />
cada. Para o caso específico <strong>do</strong> movimento<br />
<strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>, ela se inicia com <strong>os</strong> estud<strong>os</strong><br />
de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Faça-<br />
m<strong>os</strong> um breve resumo das principais obras<br />
analíticas sobre esse movimento: além das<br />
de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1957,<br />
1972, 1977, 1993-94), a de Maurício Vinhas<br />
de Queiroz (1981) e as de Duglas Teixeira<br />
Monteiro (1974, 1977).<br />
O trabalho de Maurício Vinhas de<br />
Queiroz é de grande fôlego, fruto de uma<br />
REVISTA <strong>USP</strong>, São Paulo, n.82, p. 88-103, junho/ag<strong>os</strong>to 2009 95