Poesia - Academia Brasileira de Letras
Poesia - Academia Brasileira de Letras
Poesia - Academia Brasileira de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Poema<br />
Ó <strong>de</strong>âmbula alma inquieta<br />
Ó <strong>de</strong>âmbula alma inquieta,<br />
por que te moves às cegas<br />
nesse ermo que se enovela<br />
entre o que és e o que pareces?<br />
Por que te pões tão secreta,<br />
se <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> teus véus<br />
todos logo te percebem<br />
nos mil papéis que interpretas?<br />
Por que temes, alma inquieta,<br />
esse dia em que, perplexa,<br />
souberes que não te hospedam<br />
o paraíso ou o inferno?<br />
<strong>Poesia</strong><br />
Ivan Junqueira<br />
265<br />
Ocupante da<br />
Ca<strong>de</strong>ira 37<br />
na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>.
Ivan Junqueira<br />
Não te basta o que é terrestre<br />
e se dá à flor da pele?<br />
Por que buscas o mistério<br />
no abismo que <strong>de</strong>sconheces?<br />
É por angústia que o anelas<br />
ou só por gula das trevas<br />
que, profundas, te apetecem<br />
como as carcaças ao verme?<br />
É pela luz que, feérica,<br />
confias ver entre as vértebras<br />
da solidão que te cerca<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ao mundo vieste?<br />
Sê mais sábia, ó alma inquieta,<br />
e conce<strong>de</strong> que te levem<br />
as águas em que navegas<br />
sem bússola ou planisfério.<br />
Sê mais sábia – e não espera<br />
que te curem das mazelas<br />
esses <strong>de</strong>uses a quem rezas<br />
e que, surdos, te <strong>de</strong>sprezam.<br />
266
<strong>Poesia</strong>s<br />
I<br />
Luiz <strong>de</strong> Miranda<br />
“Quatro Cantos” <strong>de</strong> Luiz <strong>de</strong> Miranda do<br />
livro Rio <strong>de</strong> Janeiro, Canto <strong>de</strong> Amor e Esperança<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
caixa <strong>de</strong> esperança<br />
on<strong>de</strong> <strong>de</strong>posito<br />
tudo que tenho.<br />
Os ouvidos e duradouras<br />
ausências<br />
que perpassam<br />
na memória<br />
o que vira um enigma<br />
que transita<br />
por territórios inteiros<br />
da alma.<br />
Sem retorno,<br />
<strong>Poesia</strong><br />
267<br />
Nasceu em<br />
Uruguaiana, Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />
em 1945, e<br />
resi<strong>de</strong> em Porto<br />
Alegre. Membro<br />
da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
Riogran<strong>de</strong>nse <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>. É autor<br />
<strong>de</strong> vários livros<br />
<strong>de</strong> poesia, entre<br />
os quais se<br />
<strong>de</strong>stacam: Livro<br />
dos Meses, Amor <strong>de</strong><br />
Amar, Livro do<br />
Pampa e Trilogia<br />
do Azul, do Mar,<br />
da Madrugada e da<br />
Ventania (Prêmio<br />
<strong>de</strong> <strong>Poesia</strong> da<br />
<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />
<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Letras</strong>).
Luiz <strong>de</strong> Miranda<br />
caminham os mantos<br />
sagrados das tuas ruas.<br />
Canto da cida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong> seu moinho <strong>de</strong> gente<br />
no meio sem nome<br />
on<strong>de</strong> passamos in<strong>de</strong>cifrados.<br />
Prefiro os bairros<br />
ao miolo do centro.<br />
As ruas quietas<br />
me dão mais sensibilida<strong>de</strong><br />
e vou alumbrando o futuro,<br />
vazando os altos muros.<br />
Procuro o que sei,<br />
mas o que <strong>de</strong>sconheço<br />
é que me surpreen<strong>de</strong><br />
e dirige o que escrevo<br />
no vento tardio<br />
que me encontra<br />
e me dá novo tempo.<br />
Entre o mar e a montanha,<br />
dança a cida<strong>de</strong><br />
para meu canto<br />
<strong>de</strong> amor e esperança.<br />
II<br />
Os convivas do Rio<br />
são eternos,<br />
longe ou perto,<br />
268
vamos juntos ao <strong>de</strong>serto<br />
para lavar a alma<br />
e seguir um <strong>de</strong>stino<br />
que me <strong>de</strong>ram<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que nasci,<br />
naquela Casa Preta<br />
na Rua Aquidaban<br />
à beira do Rio Uruguai,<br />
em Uruguaiana.<br />
O Rio é todo mundo.<br />
Encilho novamente<br />
meu cavalo, chamo o cão<br />
e vamos para a estrada,<br />
aquela que nunca termina,<br />
pois vem <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
nasce a solidão,<br />
mas germina a esperança<br />
<strong>de</strong> uma Escola <strong>de</strong> Samba<br />
que prolonga a vida<br />
e alonga o tempo<br />
naquilo que nos serve<br />
<strong>de</strong> seiva ver<strong>de</strong>,<br />
iluminada espuma do Rio.<br />
Os dias são contados<br />
como as estrelas<br />
que cobrem nossas cabeças.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro é a residência<br />
<strong>de</strong> tudo que amo.<br />
É a resistência<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
269
Luiz <strong>de</strong> Miranda<br />
on<strong>de</strong> refresco o corpo<br />
para a jornada que se inicia<br />
no aço da minha espada.<br />
III<br />
A vida inteira não é nada<br />
na longa estrada<br />
que o Rio dá aos olhos<br />
daquilo que nunca morre,<br />
caminham a angústia e mistério<br />
na vereda da tar<strong>de</strong>.<br />
A arte nos inventa<br />
e nos sustenta<br />
do trigo da palavra<br />
que alumbra<br />
on<strong>de</strong> esteja.<br />
Voa esta canção<br />
<strong>de</strong> lágrima e abandono.<br />
Nada se avista,<br />
a vista se per<strong>de</strong><br />
na lonjura<br />
o meigo abrir dos lábios,<br />
a loucura do beijo<br />
é o que eu quero<br />
e <strong>de</strong>sejo que some<br />
na noite do Rio,<br />
um pequeno amor<br />
que se adia na distância.<br />
270
IV<br />
Tom Brasileiro,<br />
feliz sabiá<br />
que sabia mais,<br />
eternida<strong>de</strong> nas mãos.<br />
Outro igual jamais,<br />
heranças gaúchas<br />
<strong>de</strong> pampa<br />
e solidão<br />
<strong>de</strong>rramadas<br />
em tuas veias.<br />
Assim falávamos<br />
e assim falaremos,<br />
a dor dos profetas<br />
em teu coração<br />
entre um chope<br />
no Luna Bar<br />
e outro no Plataforma<br />
em forma tua amiza<strong>de</strong><br />
que dorme sauda<strong>de</strong><br />
nestas minhas mãos<br />
já velhas mas lúcidas.<br />
Tom se anuncia<br />
no pó azul da poesia,<br />
naquilo que nasce<br />
da alma<br />
e se espalma<br />
na distância<br />
que envolve<br />
o abandono.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
271
Luiz <strong>de</strong> Miranda<br />
Tudo ressurge<br />
na alba <strong>de</strong> prata<br />
que a madrugada<br />
<strong>de</strong>sata<br />
com seu punhal<br />
afinado.<br />
Tudo é dor<br />
e mistério<br />
no silêncio<br />
<strong>de</strong> quem parte<br />
quando o bar<br />
fecha<br />
suas pesadas portas,<br />
lento arrastar<br />
diante do mar<br />
e da montanha,<br />
on<strong>de</strong> o pássaro<br />
arranha<br />
seu vôo eterno,<br />
terno amanhecer<br />
sob o leito<br />
do amor<br />
ao leste<br />
da via-láctea.<br />
Tom é martírio<br />
<strong>de</strong> um piano<br />
entre flores e gerânios<br />
na agonia que se escreve<br />
o que se per<strong>de</strong>u<br />
ou <strong>de</strong>u no véu<br />
da lágrima.<br />
272
Tom é o agora<br />
que sangra na aurora<br />
nos seus viés<br />
<strong>de</strong> sonho e formosura<br />
altura<br />
on<strong>de</strong> chega a voz <strong>de</strong> Deus.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
273
<strong>Poesia</strong>s<br />
<strong>Poesia</strong><br />
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
Diáspora ou Aprendiz <strong>de</strong> Galego é um longo poema composto <strong>de</strong><br />
30 estrofes em forma <strong>de</strong> soneto, escrito no idioma galaico e<br />
acompanhado <strong>de</strong> versão em português, do próprio autor. As tradições<br />
culturais da Galiza somam-se às preocupações existenciais da<br />
poesia <strong>de</strong> nossos dias, em harmonia entre o texto e seus significados,<br />
em que transparecem a musicalida<strong>de</strong> e a beleza das imagens e metáforas<br />
oferecidas pelo léxico galego, rico <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong>s expressivas.<br />
A obra do autor, que tem raízes ibéricas, está integrada em três literaturas:<br />
a brasileira, a espanhola e a galega.<br />
275<br />
Publicou 38 livros <strong>de</strong><br />
poesia, ficção, ensaio<br />
e literatura<br />
infanto-juvenil.<br />
Participou <strong>de</strong><br />
numerosas antologias.<br />
Traduzido para o<br />
sueco, o italiano, o<br />
francês, o espanhol, o<br />
galego, o persa,<br />
o corso e o<br />
macedônio, foi<br />
premiado no Brasil,<br />
em Portugal, na Itália<br />
e no México, além <strong>de</strong><br />
editado em Portugal,<br />
na Suécia, na Itália,<br />
no Canadá e na<br />
Espanha. O livro<br />
Diáspora ou Aprendiz <strong>de</strong><br />
Galego reúne 30<br />
sonetos escritos em<br />
galego e traduzidos<br />
para o português pelo<br />
autor.
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
A chuva que não cessa é que o prepara<br />
A chuva que não cessa é que o prepara<br />
para a viscosa lama que há nas covas,<br />
enquanto vai, dos montes, às corcovas,<br />
em busca <strong>de</strong> uma vida estranha e rara,<br />
estimando os pardais e até a cara<br />
imagem que <strong>de</strong>scobre em coisas novas,<br />
qual um peixe que põe as suas ovas<br />
nas quietas águas <strong>de</strong> uma enseada clara,<br />
e assim segue ele a crer-se invicto e forte,<br />
no caminho do sul, buscando o norte,<br />
muito certo <strong>de</strong> tudo, mas no engano<br />
em que vão todos, até revelar-se<br />
que a cova vil é a última catarse<br />
<strong>de</strong>sse mar <strong>de</strong> paixões, o ser humano.<br />
276
A chuvia que non cesa é que o prepara<br />
A chuvia que non cesa é que o prepara<br />
para a viscosa lama que hai nas covas,<br />
mentres sobe dos montes as corcovas,<br />
á busca dunha vida estraña e rara,<br />
amando os gorrións e até a cara<br />
imaxe que <strong>de</strong>scobre en cousas novas,<br />
cal un peixe que bota as súas ovas<br />
nas quedas augas dunha enseada clara,<br />
e así vaise el a crerse invicto e forte,<br />
no camiño do sur, buscando o norte,<br />
moi ancho <strong>de</strong> certezas, mais no engano<br />
en que van todos, até <strong>de</strong>catarse<br />
que o foxo vil é a última catarse<br />
<strong>de</strong>se mar <strong>de</strong> paixóns, o ser humano.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
277
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
Uivam lobos até que chegue a aurora<br />
Uivam lobos até que chegue a aurora,<br />
entre árvores sombrias, em ignotos<br />
cimos selvagens, nos rincões remotos,<br />
mais para lá, on<strong>de</strong> a sauda<strong>de</strong> mora.<br />
Enquanto a noite, entre soluços, chora,<br />
os maltrapilhos fogem. Vão, <strong>de</strong>votos,<br />
cheios <strong>de</strong> medo, a murmurar seus votos<br />
<strong>de</strong> que não sofram nenhum mal nessa hora.<br />
Mu<strong>de</strong>-se o olhar agora para as ruas<br />
sem lobos pelas noites, mas <strong>de</strong> cruas<br />
explosões <strong>de</strong> uma raiva que assassina.<br />
Eis aqui a colheita <strong>de</strong> perigos:<br />
são todos a fugir, não só mendigos.<br />
Mais que o lobo, é o homem que extermina.<br />
278
Oulea o lobo até que chegue a aurora<br />
Oulea o lobo até que chegue a aurora,<br />
entre árbores sombrías, entre os cotos<br />
fragosos e altos, nos rincóns remotos,<br />
máis aló on<strong>de</strong> a señarda<strong>de</strong> mora.<br />
Mentres a noite, entre saloucos, chora,<br />
foxen mendigos nos seus traxes rotos,<br />
cheos <strong>de</strong> medo, a murmurar os votos<br />
<strong>de</strong> que non sufran ningún mal nesa hora.<br />
Mú<strong>de</strong>se o ollar agora para as rúas<br />
sen lobos polas noites, mais <strong>de</strong> crúas<br />
explosións dunha rabia que asasina.<br />
Velaquí a colleita <strong>de</strong> perigos:<br />
son todos a fuxir, non só mendigos.<br />
Máis cal lobo que oulea, o home extermina.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
279
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
As negras tumbas <strong>de</strong> hoje são as leiras<br />
As negras tumbas <strong>de</strong> hoje são as leiras<br />
que hão <strong>de</strong> mostrar-se ver<strong>de</strong>s amanhã.<br />
O dia esten<strong>de</strong> a mão à sua irmã,<br />
a noite, em seu viajar <strong>de</strong> asas ligeiras.<br />
As palavras noturnas, verda<strong>de</strong>iras,<br />
já não o serão mais pela manhã.<br />
Quem faz não fará mais, é coisa vã,<br />
fechada a porta muda nas soleiras.<br />
Maior do que os caprichos <strong>de</strong> alguns poucos<br />
será o anseio dos ouvidos moucos,<br />
cansados <strong>de</strong> esperar em dias idos.<br />
Tal como existe a noite em cada cova,<br />
sempre haverá a aurora, rosa e nova,<br />
germinando nos olhos dos caídos.<br />
280
As negras tumbas <strong>de</strong> hoxe son as leiras<br />
As negras tumbas <strong>de</strong> hoxe son as leiras<br />
que han <strong>de</strong> amosarse ver<strong>de</strong>s no mañá.<br />
O día esten<strong>de</strong> a man a súa irmá,<br />
a noite, que viaxa en ás lixeiras.<br />
As palabras nocturnas, verda<strong>de</strong>iras,<br />
xa non o serán máis pola mañá.<br />
Quen fai agora, axiña non fará,<br />
cando as portas pecharen, silan<strong>de</strong>iras.<br />
Pois meiran<strong>de</strong> que antollos dalgúns poucos,<br />
será a arela para ouvidos moucos,<br />
cansos da longa espera en días idos.<br />
Ao igual que unha noite en cada cova,<br />
sempre haberá unha aurora, rosa e nova,<br />
xerminando nos ollos dos caídos.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
281
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
Não pergunteis aos que andam no caminho<br />
Não pergunteis aos que andam no caminho<br />
por que se foram cedo <strong>de</strong> suas casas<br />
e andam agora a suportar as brasas<br />
<strong>de</strong> um martírio cruel, ru<strong>de</strong> e mesquinho.<br />
Antes <strong>de</strong>veis <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado o vinho<br />
e olhar bem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssas almas rasas,<br />
que se arrastam na rua, aves sem asas,<br />
à procura <strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong> carinho.<br />
Des<strong>de</strong> a aurora, a chorar. Até a noite<br />
não há, para ajudá-las, quem se afoite<br />
e infortunadas vão, tão infelizes.<br />
Eis aí quanto horror há nessas vidas,<br />
a matar-se entre si, enlouquecidas,<br />
reabrindo as fechadas cicatrizes.<br />
282
Non pregunte<strong>de</strong>s aos que fan camiño<br />
Non pregunte<strong>de</strong>s aos que fan camiño<br />
por que se foron cedo <strong>de</strong> súas casas<br />
e andan agora a soportar as brasas<br />
dun martirio cruel, rudo e mesquiño.<br />
Antes <strong>de</strong>be<strong>de</strong>s pór <strong>de</strong> lado o viño<br />
e ollar ben <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sas almas rasas,<br />
que se arrastran nas rúas, pernas lasas,<br />
á procura dun pouco <strong>de</strong> cariño.<br />
Den<strong>de</strong> a aurora que choran. Deica a noite<br />
non hai quen amparalas queira ou adoite<br />
e malpocadas van, tan infelices.<br />
Velaí canto horror hai nesas vidas,<br />
a matarse entre si, enlouquecidas,<br />
reabrindo as pechadas cicatrices.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
283
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
Esse passar do tempo, essa miséria<br />
Esse passar do tempo, essa miséria<br />
dos dias submergidos, essas horas<br />
que escorrem <strong>de</strong>vagar, essas auroras,<br />
o amanhecer tardio, essa matéria<br />
feita <strong>de</strong> lodo e espuma, essa bactéria<br />
no mais fundo do estômago, essas floras<br />
<strong>de</strong> flores más, fanadas e inodoras,<br />
o sangue <strong>de</strong>rramado pela artéria,<br />
todas as coisas que o caruncho come,<br />
mais o mal <strong>de</strong>ntro do homem, qual a fome,<br />
vertendo-se nas taças do ódio fero,<br />
revelam cada um vivendo um drama,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o pare a mãe em sua cama<br />
até que veja em si não mais que um zero.<br />
284
Ese pasar do tempo, esa miseria<br />
Ese pasar do tempo, esa miseria<br />
dos días anegados, esas horas<br />
que escorren amodiño, esas auroras,<br />
ese amencer tardío, esa materia<br />
feita <strong>de</strong> lodo e escuma, esa bacteria<br />
no curruncho do estómago, esas floras<br />
<strong>de</strong> flores malas, feas e inodoras,<br />
o sangue <strong>de</strong>rramado pola arteria,<br />
todas as cousas que o caruncho come,<br />
e aínda o mal oculto en cada home,<br />
verténdose nas cuncas do odio fero,<br />
amosan cada un vivindo un drama,<br />
<strong>de</strong>n<strong>de</strong> que o pare a nai na súa cama<br />
até que vexa en si non máis que un cero.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
285
Reynaldo Valinho Alvarez<br />
Contam os ventos lendas que, na rua<br />
Contam os ventos lendas que, na rua,<br />
não são mais que verda<strong>de</strong>. Aí vai com fome<br />
o homem que <strong>de</strong>sconhece o próprio nome,<br />
mas, com freqüência, exibe sua alma nua.<br />
Cada homem tem, na rua, o palco e atua<br />
sem atingir a glória do renome<br />
e vai comendo o seu <strong>de</strong>serto abdome,<br />
seu celeiro sem grão da vida crua.<br />
Voam pássaros livres sobre o asfalto,<br />
mas o homem segue escravo, em sobressalto,<br />
catando níqueis e fingindo o riso.<br />
Enquanto aspira os gases dos motores,<br />
<strong>de</strong>ixa na rua um rastro mau <strong>de</strong> dores,<br />
abandona a esperança e per<strong>de</strong> o siso.<br />
286
Contan os aires lendas que, na rúa<br />
Contan os aires lendas que, na rúa,<br />
non son máis que verda<strong>de</strong>. Aí vai o home<br />
que <strong>de</strong>scoñece até o propio nome,<br />
pero, acotío, amosa a súa alma núa.<br />
Cada home ten, na rúa, a escena e actúa,<br />
sen atanguer a gloria do renome,<br />
e vai coméndose o <strong>de</strong>serto abdome,<br />
hórreo baleiro da existencia crúa.<br />
Voan paxaros ceibes sobre o asfalto,<br />
mais o home segue escravo, en sobresalto,<br />
catando cartos e finxindo o riso.<br />
Mentres aspira o fume dos motores,<br />
<strong>de</strong>ixa na rúa o seu ronsel <strong>de</strong> dores,<br />
abandona a esperanza e per<strong>de</strong> o siso.<br />
<strong>Poesia</strong>s<br />
287