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Xenofobia e Participação Política nas Mídias Digitais - Confibercom

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<strong>Xenofobia</strong> e <strong>Participação</strong> <strong>Política</strong> <strong>nas</strong> Redes Sociais<br />

Resumo<br />

Mônica Rebecca Ferrari Nunes 1<br />

Marco Antonio Bin 2<br />

Este trabalho propõe analisar as reverberações xenofóbicas surgidas <strong>nas</strong> redes sociais, no<br />

contexto das eleições presidenciais 2010, tomando como referência o caso mais notável da estudante de<br />

direito Mayara Pet<br />

ruso.<br />

Com base <strong>nas</strong> pesquisas em mídias digitais, nos Estudos Culturais e na sociología de Zigmunt<br />

Bauman, a proposta discute a formação de narrativas identitárias que demonstram os jogos entre<br />

identidades de classes e identidades políticas na construção da subjetividade em face da cultura digital.<br />

As redes oferecem múltiplas perspectivas para que o medo do Outro, a dificuldade de amar o<br />

próximo, segundo a abordagem de Bauman, se materializem em discursos que, paradoxalmente, uma vez<br />

produzidos, são logo desconstruídos graças à convergência de mídias e plataformas que podem dissolver<br />

a hegemonia de visões de mundo pautadas no preconceito, revelando novos modos de participação<br />

política e comunicativa.<br />

Palavras-Chave: Cibercultura. Redes Socias. <strong>Xenofobia</strong>. Identidades. Subjetividades.<br />

Abstract<br />

This paper proposes to examine the xenophobic reverberations arising from the social networks<br />

in the context of the 2010 Presidential Election, using as a reference the most notable case: the law<br />

student Mayara Petruso.<br />

Based on research in digital media, in cultural studies and sociology of Zigmunt Bauman, the<br />

proposal discusses the formation of identity narratives that show the exchange between class<br />

identities and political identities in the construction of subjectivity in the face of digital culture.<br />

The social networks provide multiple perspectives for the fear of the Other, the difficulty of<br />

loving, according to Bauman's approach, materialize in speeches that, paradoxically, once produced, are<br />

then deconstructed through the convergence of media and platforms that can to remove the hegemony of<br />

world views guided by prejudice, revealing new ways of political and communicative participation.<br />

Keywords: Cyberculture, Social Networks, Xenophobia, Identity; Subjectivity.<br />

1 Mônica Rebecca Ferrari Nunes. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUCSP). Professora do curso<br />

de Comunicação e Marketing (FAAP-SP) e do curso de Biblioteconomia (Unifai-SP). Membro do Centro<br />

de Estudos da Oralidade (CEO/COS/PUCSP) e do Centro de Estudos em Música e Mídia<br />

(MusiMid/ECAUSP). Email: nunes.aureli@uol.com.br<br />

2 Marco Antonio Bin. Doutor em Ciências Sociais (PUCSP). Escritor e Professor do MBA Sustentare<br />

Escola de Negócios. Membro do Núcleo de Pesquisas Urba<strong>nas</strong> (NEPUR/PUCSP). Idealizador do blog<br />

sobre política, literatura e cinema cha<strong>nas</strong>montanhas.blogspot.com. Email: marcobin@gmail.com


Introdução<br />

O objetivo neste estudo é propor uma discussão sobre a xenofobia <strong>nas</strong> redes<br />

sociais, tendo em vista o discurso proferido por Mayara Petruso e por outros internautas,<br />

e abordar o preconceito social, cultural e linguístico que despontou com o desfecho das<br />

eleições presidenciais de 2010, a partir da vitória da candidata Dilma Roussef.<br />

Tais manifestações xenofóbicas ocorreram <strong>nas</strong> mídias sociais mais ágeis, de<br />

conexão imediata e integração rápida com múltiplas redes sociais, como o twitter e o<br />

facebook, proliferando o preconceito que ganhou forma e conteúdo como um rastilho de<br />

pólvora.<br />

Consideramos que essa foi a consequência de uma ação concatenada não <strong>nas</strong><br />

mídias sociais, mas na velha mídia, que preservando ainda a penetração de seu discurso<br />

hegemônico, e posicionada desde o início a favor de um dos candidatos, José Serra, do<br />

PSDB, conseguiu mobilizar a opinião pública com uma exposição metódica, buscando<br />

inviabilizar a candidatura Dilma Roussef, do PT.<br />

Contrapondo-se a esse discurso que ganhou uma formulação obsessiva por<br />

desautorizar um partido e uma candidatura, posicionou-se uma boa parcela das mídias<br />

sociais, surgidas como respostas espontâneas às sucessivas ondas de “escândalos” e, de<br />

certo modo, coordenadas pelas análises mais detidas de jornalistas independentes, ou,<br />

como ao final da campanha ficaram conhecidos, blogueiros sujos.<br />

Nossa proposta é, pois, apresentar esse quadro geral das eleições presidenciais<br />

de 2010, avaliando os respectivos discursos, dividindo o trabalho em duas partes, a<br />

saber:<br />

A parte 1. observa as consequências do enfrentamento ocorrido entre mídias<br />

hegemônicas versus mídias alternativas (redes sociais) e os principais endereços da<br />

hipermídia, onde foram tecidas as linhas de “contrainformação”; estrutura uma<br />

aproximação da organização semântica do discurso <strong>nas</strong> redes sociais, seja o que<br />

sustentou uma simpatia pela candidata Dilma, como o que resultou de sua vitória,<br />

eivado de preconceito contra as pessoas da região que lhe deu uma votação esmagadora,<br />

o Nordeste. Para tanto, selecionamos materiais jornalísticos publicados na grande mídia<br />

e <strong>nas</strong> redes sociais, assim como analisamos as diferenças entre estas linguagens com<br />

base em Lúcia Santaella (2010) e em Pollyana Ferrari (2010).<br />

A parte 2. analisa a xenofobia resultante da vitória de Dilma, por meio dos<br />

trabalhos de Zigmunt Bauman (2004), e discute as narrativas identitárias postas em cena


por meio da leitura de Stuart Hall (2003a; 2003b), Tadeu Silva (2009) e Manuel Castells<br />

(2008). Por fim, tecemos uma conclusão possível sobre os argumentos apresentados e<br />

discutidos.


Parte 1 –<br />

A ação da mídia hegemônica<br />

Quando se fala em discurso midiático, nos referimos ao discurso dos grandes<br />

veículos de comunicação dominantes. Nos momentos mais decisivos <strong>nas</strong> eleições<br />

presidenciais brasileiras em 2010, esse discurso foi coeso, na medida em que se<br />

posicionava contra a candidata apoiada pelo governo, Dilma Roussef. Os grupos<br />

midiáticos hegemônicos mostraram um jornalismo progressivamente descolado dos<br />

anseios populares, que no último ano do governo Lula lhe dava índices de aprovação em<br />

torno de 80%, para manter sua voz em defesa de seus próprios interesses corporativos e<br />

dos setores mais privilegiados da sociedade, e dos quais se identificam ideologicamente.<br />

Em suma, no lugar de cumprir com suas funções como órgãos noticiosos,<br />

realizando a mediação entre os fatos sociais e a sociedade, os oligopólios midiáticos<br />

oferecem, através de um jornalismo cada vez mais opinativo e menos investigativo, a<br />

sua visão de mundo, editada em consonância com os seus interesses corporativos. Um<br />

processo de manipulação que impede a abordagem e o debate da realidade em suas<br />

nuanças, desdobrando-se em leituras sensacionalistas dos fatos, ou de acordo com as<br />

palavras de Marilena Chauí, “um jornalismo que está ficando cada vez mais rápido,<br />

inexato e barato” (CHAUÍ, 2006, p.13). É como se o jornalismo, longe de proporcionar<br />

a devida cobertura dos acontecimentos, em uma mediação equilibrada dos fatos, se<br />

dedicasse a distorcer a verdade ao limite, oferecendo uma interpretação parcial,<br />

imprecisa, ou até mesmo falseada da realidade, abrindo caminho para a desinformação<br />

ou, <strong>nas</strong> palavras de Ramonet, a censura democrática 3 .<br />

Retomando o contexto das eleições presidenciais de 2010, a imprecisão no relato<br />

– em outras palavras, a manipulação dos fatos – se ampliava na medida em que o dia 3<br />

de outubro, data em que se daria o primeiro turno das eleições, se avizinhava. O mês de<br />

setembro foi sintomático nesse sentido, como veremos a partir das manchetes dos<br />

jornais de maior circulação diária no Brasil, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo<br />

e O Globo, onde não só aprofundaram as distorções informativas, como estas foram<br />

orquestradas e reproduzidas em conjunto, para criar mais impacto na população,<br />

ganhando o cardápio principal das notícias da semana. O cidadão brasileiro, de maneira<br />

3 “La ocultación y la disimulación, en esa masa de información que se consume, son las formas de la<br />

censura de hoy. Y esa “censura invisible” es la que practican los grandes grupos mediáticos y los<br />

gobiernos”. (SERRANO, 2009, p.13).


profunda ao longo desse mês, foi submetido a um bombardeio de saturação, com<br />

denúncias que eram infladas e lançadas, antes mesmo de totalmente averiguadas,<br />

visando desestabilizar o governo 4 . Assim foi com a “crise” da violação do sigilo fiscal<br />

de Mônica Serra, por sua vez substituída pelo “escândalo” da ministra da Casa Civil,<br />

Erenice Guerra, e que foi substituído pela “polêmica” do aborto, já nos derradeiros dias<br />

do mês. Todas estas tensões, entremeadas por outras peque<strong>nas</strong> “crises, denúncias ou<br />

polêmicas”, apresentadas por este ou por aquele meio de comunicação: “Governador do<br />

Amapá e antecessor são presos”, Folha de SP, 09.09.10; “Governo usa capitalização da<br />

Petrobras para fechar contas”, Estado de SP, 10.09.10; “Dirceu: PT terá mais poder<br />

com Dilma do que com Lula”, O Globo, 15.09.10. Era o esforço por minar a vantagem<br />

da candidata apoiada por Lula, <strong>nas</strong> pesquisas de voto, e conduzir o candidato da<br />

oposição para um possível segundo turno.<br />

O assédio seguia a um padrão articulado: as edições dos jornais impressos<br />

alimentavam diariamente, em manchete, variantes do “escândalo” destacado na capa das<br />

revistas Veja ou Época, que chegavam às bancas no sábado anterior, e que por sua vez<br />

era esmiuçado nos pontos mais polêmicos, nos telejornais noturnos da Globo. O ciclo<br />

durava uma semana, até a nova edição da Veja, que dava o tom da semana seguinte,<br />

aprofundar o tema vigente ou mudar para outro. Em outras palavras,<br />

“a sucessão de invectivas montadas para expor e condenar o governo federal,<br />

delimita o componente cínico (porque se assume como parte do jogo<br />

democrático...) e dissimulado (porque mascara seus perversos objetivos...)<br />

que tem caracterizado o discurso midiático. Para o cidadão comum,<br />

acompanhar essas incongruências revela-se um fardo extenuante, que o<br />

desestimula em relação ao debate político. O cidadão urbano moderno, com<br />

todas as disponibilidades tecnológicas para o acesso à informação, não tem o<br />

menor interesse em se contaminar com tanto rancor e ódio” 5 .<br />

Ao se referir à prática da manipulação nos jornais, Bernardo Kucinski, em<br />

diálogo com Venício Lima, afirma que ela se deve “ao uso ideológico que os jornais<br />

fazem de si mesmo, em detrimento do uso informativo” (KUCINSKI, LIMA, 2009,<br />

p.81). Em outras palavras, o que interessa é a uniformidade ideológica no discurso,<br />

4 Segundo o jornalista Antonio Carlos Fon, em seu curso de jornalismo ele ensinava sobre “a técnica da<br />

mentira”, que ele mesmo explica: “Essa técnica é velha. Eu a expunha <strong>nas</strong> aulas do curso de jornalismo<br />

investigativo que ministrava no SESC no fim dos anos 90 como "a técnica da mentira". Antigamente ela<br />

era usada ape<strong>nas</strong> pelos serviços de inteligência e eu a explicava para que os jovens repórteres<br />

aprendessem a desmontá-la. Consiste, basicamente de contar uma mentira adaptando-a em torno de fatos<br />

reais. A mentira não pode ser comprovada, mas como os fatos parecem corroborá-la, ela acaba adquirindo<br />

ares de verdade. A forma de desmontá-la é fácil: basta checar todos os dados e não ser leviano ou ingênuo<br />

para formar opinião sólida baseado em evidências”.<br />

5 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/cinismo-e-dissimulacao, acesso em 28.06.11.


passando por cima dos debates mais abertos e democráticos, a notícia veiculada em<br />

forma de editorial, impositiva e tendenciosa.<br />

Ricardo Kotscho, a propósito de um comentário de um leitor, pronuncia-se a<br />

respeito da participação da mídia hegemônica no processo eleitoral:<br />

“(...) O citado JN no Ar, por exemplo, levanta todo dia a bola dos problemas<br />

das cidades brasileiras, onde falta de tudo e nada funciona. No mínimo, tem<br />

lugar onde falta homem e tem lugar onde falta mulher Logo em seguida,<br />

entra o programa do candidato José Serra para apresentar as soluções.<br />

Na outra metade do programa tucano, em tabelinha com os principais<br />

veículos de comunicação do país, são apresentadas as manchetes dos jornais<br />

e revistas com denúncias contra a candidata Dilma Rousseff, o governo Lula<br />

e o PT, numa sucessão de escândalos sem fim até o dia de disparar a tal "bala<br />

de prata” 6 .<br />

Referindo-se à força concentrada da hegemonia midiática, o deputado federal<br />

Brizola Neto comentou sobre a urgência da sociedade em promover mecanismos que<br />

rompessem “com o círculo vicioso da imprensa empresarial”, citando uma entrevista de<br />

Judith Brito, presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), que afirmou que os<br />

partidos políticos de oposição estariam fragilizados, e que cabia à imprensa ocupar essa<br />

função. Disse Brizola Neto,<br />

“A posição oficial da entidade que congrega os maiores jornais vem sendo<br />

seguida à risca por todos eles, que, apesar do conhecimento publico da<br />

posição que defendem, tentam se passar por imparciais.<br />

Nesse pequeno clube fechado, que não aceita vozes dissidentes, todos rezam<br />

pela mesma cartilha. Se há governo popular, sou contra. Os principais meios<br />

de comunicação do país são controlados por meia dúzia de famílias ricas, que<br />

defendem seus interesses de classe. Seu compromisso não é com a<br />

informação e sim com a manipulação das notícias para atingir seus<br />

propósitos” 7<br />

Diante deste quadro, seria razoável de se esperar uma resposta que, de algum<br />

modo, apresentasse uma abordagem mais comprometida com os anseios da sociedade, e<br />

ela viria, pela primeira vez de maneira tão significativa em uma campanha eleitoral,<br />

com a atuação das mídias sociais, com o desenvolvimento das narrativas hipertextuais,<br />

principalmente com os blogs, o twitter e o facebook. Antes de passarmos para as<br />

reações das redes sociais, seria oportuno registrarmos cronologicamente, e com os<br />

devidos comentários, algumas das manchetes dos grandes jornais brasileiros, no mês de<br />

setembro de 2010, para situarmos o contexto político pré-eleitoral.<br />

No primeiro dia do mês, a chamada principal da primeira página do Estado de<br />

São Paulo era “Governo usa „truques‟ para garantir metas de contas públicas”. Se não<br />

6 http://www.revistabrasileiros.com.br/secoes/balaio-do-kotscho/noticias/1818/, acesso em 28.06.11.<br />

7 http://www.tijolaco.com/page/123/, acessado em 29.06.2011.


chegava a ser o anúncio de um escândalo ou crise, era a chamada para um sério<br />

problema contábil no governo. Do dia 2 em diante, surgiram em sequência ininterrupta<br />

as manchetes da primeira “crise” coberta em rede midiática, por um tempo mais longo.<br />

A chamada “crise da Receita” seria alimentada por manchetes no Estadão por sete dias<br />

consecutivos.<br />

No dia 12, a fermentação de uma nova “crise”, em escala mais grave porque<br />

atingiria o centro do governo Lula, o caso Erenice Guerra, ministra da Casa Civil, que<br />

teria viabilizado negócios nos Correios, intermediados por uma empresa de consultoria<br />

de seu filho, Israel Guerra. A manchete do dia, no Estado de São Paulo: “Denúncia de<br />

lobby faz oposição pedir saída da ministra da Casa Civil”.<br />

Erenice não só ocupava um cargo no coração do governo, como tinha sido a<br />

secretária-executiva de Dilma, razões mais do que suficientes para que o caso se<br />

estendesse ao máximo na exposição da mídia. A denúncia, originalmente lançada como<br />

matéria de capa na edição da revista Veja de 11 de setembro, ganhava as redações dos<br />

jornais e telejornais, dentro do espírito de “denúncia em rede midiática”, envolvendo os<br />

principais veículos hegemônicos de comunicação.<br />

O Estado de São Paulo manteria o tema como destaque em suas primeiras<br />

pági<strong>nas</strong> do dia 12 até o dia 18, com única exceção para a manchete do dia 16, que<br />

retomava a “crise” da Receita: “Inquérito da Polícia Federal contraria tese de crime<br />

político na Receita”. No dia 17, Erenice deixa o cargo na Casa Civil e as manchetes<br />

prosseguem duras contra o governo, e mais diretamente contra Lula, como demonstram<br />

as dos dias 22, “TV de Lula contrata empresa que emprega filho de Franklin”, e 23 de<br />

setembro, “Manifesto ataca autoritarismo de Lula”.<br />

O candidato da oposição, José Serra, aparece de quando em vez, jamais na<br />

postura defensiva ou sob “investigação”, mas altivo, em tom de superioridade, tal como<br />

ocorre na manchete do dia 7, “Serra diz que Lula fez deboche com quebra de sigilo na<br />

Receita”. O tom agressivo se acentua nos últimos dias do mês, agora envolvendo a<br />

“polêmica” do aborto, como é a manchete do dia 30, “Polêmica do aborto faz Dilma se<br />

explicar a líderes cristãos”.<br />

A linha geral de ataques, seguindo o mesmo roteiro de “crises” e “escândalos”, é<br />

utilizada pelo jornal O Globo, embora variando um pouco mais as manchetes. O<br />

candidato José Serra surge mais vezes, encarnando a imagem do político incisivo e com<br />

iniciativa (um dos seus problemas, apontado pelos próprios correligionários à época) tal<br />

como na primeira página do dia 9, “Serra reage e diz que Lula serve à estratégia


„caixa-preta‟ do PT” e do dia 11, “Serra: Lula „deixa roubar‟ e Dilma é „envelope<br />

fechado‟”.<br />

A Folha de São Paulo será mais persistente <strong>nas</strong> manchetes de cada “crise”<br />

divulgada pela mídia hegemônica. Começa o mês de setembro com a quebra do sigilo<br />

da filha de José Serra pela Receita Federal. As manchetes perdurarão por dias com<br />

variações sobre o mesmo tema, no dia primeiro de setembro, “Dado da filha de Serra<br />

foi acessado na Receita”; dia 2, “Sigilo fiscal da filha de Serra foi violado com<br />

procuração falsa”; dia 3, “Serra diz ter feito alerta sobre ataques a sua filha” e dia 4<br />

“Dados sigilosos da filha de Serra foram obtidos por filiado ao PT”.<br />

Nos dois primeiros dias, a denúncia do dolo; no terceiro dia, Serra surge como o<br />

cidadão atento que aponta o grave problema, e no quarto dia, o envolvimento direto do<br />

PT no “escândalo”. Seguindo o padrão de estender ao máximo a notícia ruim para o<br />

governo, o caso Erenice persistirá <strong>nas</strong> manchetes do jornal de 12 a 19 de setembro,<br />

ininterruptamente, para no dia 23 destacar na primeira página, “Com escândalos, cai<br />

vantagem de Dilma, mostra o Datafolha”.<br />

O fato curioso se daria no 5º. dia do mês, um domingo, quando a manchete<br />

rompe com o assunto do sigilo fiscal de Mônica Serra, para um tema diretamente ligado<br />

à “incompetência da candidata Dilma”: “Consumidor de luz pagou R$ 1 bi por falha de<br />

Dilma”. Foi a essa altura que as redes sociais começaram a participar de modo mais<br />

atuante no jogo eleitoral, como um contrapeso à cobertura distorcida por parte da mídia<br />

hegemônica, com os blogs dos jornalistas independentes trazendo a lume um jornalismo<br />

mais sério e investigativo a respeito dos “escândalos” publicados. No caso da notícia do<br />

consumidor defraudado, a reação se deu em uma proporção mais ampla e imediata,<br />

promovendo uma integração de múltiplas redes, como veremos a seguir.<br />

A reação das mídias sociais<br />

A essa altura, as redes sociais tomaram a sequência tendenciosa de manchetes<br />

contra a candidatura Dilma, fazendo surgir no twitter uma brincadeira espontânea<br />

atribuindo todas as mazelas do mundo à Dilma. Segundo o site Brasil Atual,<br />

“Internautas reagiram no twitter à manchete deste domingo (5) do<br />

jornal Folha de S.Paulo. O "Dilma Factsby Folha" apresenta "sugestões" de<br />

novas abordagens ao veículo, atribuindo todo tipo de mazela à candidata à<br />

Presidência da República Dilma Rousseff (PT). Da derrota da seleção<br />

brasileira na Copa do Mundo de 1998 à Guerra do Iraque, passando por


tramas de novela, os simpatizantes da candidata governista levaram o tema a<br />

um dos mais citados da tarde deste domingo (5).<br />

A brincadeira alcançou a terceira posição entre os temas mais comentados na<br />

rede, segundo o ranking Trending Topics Brazil” 8 .<br />

Ao mesmo tempo, a ação da grande mídia em estender ao máximo as notícias<br />

negativas contra o governo Lula e contra Dilma, não passava despercebida pelas mídias<br />

sociais, a integração com múltiplas redes e plataformas. Surgiam respostas, buscando<br />

debater o procedimento midiático, e elas vinham silenciosas, porém contundentes,<br />

oferecendo a possibilidade de compreender as novas formas de produção de conteúdo, e<br />

no caso, da própria transformação do jornalismo. Em 2 de outubro, véspera do primeiro<br />

turno, no Portal do Luis Nassif, o internauta Alfredo Machado publica uma postagem:<br />

“Esta disputa, na realidade uma verdadeira guerra, foi desenvolvida durante<br />

três ou quatro anos, uma batalha diária fartamente documentada – a<br />

documentação, ao lado da informação instantânea é a grande vantagem da<br />

internet e, justamente por isto, a grande preocupação dos poucos grupos que<br />

dominam o setor no país, todos inteiramente desacostumados à prática do<br />

contraditório, todos historicamente habituados a fazer o que queriam e bem<br />

entendiam, a apoiar e a destruir governos, tudo de cima para baixo, isto é,<br />

sem precisar dar satisfação a ninguém quanto aos métodos por eles utilizados<br />

para convencer a população de suas verdades (...)”<br />

O jornalista Luiz Carlos Azenha, do blog Viomundo, destacou os problemas de<br />

cobertura das eleições presidenciais de 2010 pela grande mídia, processos de distorção<br />

das notícias que já ocorrera <strong>nas</strong> eleições de 2006, e comentou sobre o processo seletivo<br />

das capas das revistas, que iam ao ar na edição dos sábados, no Jornal Nacional da TV<br />

Globo. Para Azenha, “o Jornal Nacional repercute acriticamente as capas da Veja que<br />

trazem denúncias contra o governo Lula e aliados, dando “per<strong>nas</strong>” ao assunto e<br />

repercutindo-o nos dias seguintes” 9 .<br />

No mesmo dia, Nassif publica em seu portal de notícias uma postagem<br />

comentando sobre a estratégia noticiosa da velha mídia. Na ocasião, a expectativa <strong>nas</strong><br />

redes sociais era sobre a tal „bala de prata‟, já mencionada no comentário de Ricardo<br />

Kotscho, e que seria o golpe decisivo proveniente de uma “carta na manga”, que a mídia<br />

hegemônica estaria reservando para os momentos decisivos da campanha, com o intuito<br />

de desmoralizar a candidatura Dilma:<br />

“Como já relatei em minha série “O caso de Veja”, e tenho feito em relação<br />

a inúmeras “denúncias” plantadas especialmente pela Veja, tendo a Folha a<br />

reboque, o centro dessas matérias é a confusão informacional. Juntam-se<br />

alguns fatos verdadeiros, porém não centrais, com suposições graves, porém<br />

8 http://www.redebrasilatual.com.br/multimidia/blogs/blog-na-rede/no-twitter-internautas-fazem-piadacom-criticas-da-folha-a-dilma,<br />

acesso em 29.06.2011.<br />

9 http://www.bocadigital.net/2010/04/reprise-de-2006-agora-como-farsa.html, acesso em 28.06.11.


não comprováveis e explicações técnicas incorretas, para esquentar as<br />

denúncias. É a chamada "mixórdia informacional", em que se jogam tantas<br />

informações desencontradas, descosturadas (muito por incapacidade de<br />

repórteres de juntar dados), que prevalece ape<strong>nas</strong> a manchete.<br />

Depois, quando começa o questionamento sobre a veracidade das<br />

informações, apresentam-se os fatos verdadeiros, que não são suficientes para<br />

comprovar as acusações graves”.<br />

No que diz respeito à importância das mídias sociais no cenário eleitoral,<br />

trazendo ao debate as novidades na hipermídia e traçando uma perspectiva de ação e<br />

mobilização social, ocorreu o evento “Blogosfera: a imprensa alternativa do século<br />

XXI?”, realizado em 21 de setembro de 2010, no Centro Cultural do Banco do Brasil,<br />

no Rio de Janeiro, e divulgado pelo blog Fazendomedia 10 e pelo Portal Luis Nassif 11 ,<br />

com vários jornalistas atuantes na blogosfera presentes. Luiz Carlos Azenha comentou<br />

que<br />

“A blogosfera passou a representar a voz de muita gente que não se via<br />

representada na mídia brasileira. Nosso caminho é lutar por mais vozes,<br />

transformando atores sociais e beneficiando a mídia com a participação de<br />

pessoas que não faziam parte dos debates. O sentido da blogosfera hoje é<br />

mais ou menos o da imprensa alternativa, mas as ferramentas são diferentes.<br />

Requer uma mudança na relação do jornalista, que precisa aprender a<br />

conviver com isso, se tornando mediador dos debates”.<br />

E Mauro Santayana, jornalista decano com passagem em diversos meios de<br />

comunicação, destacava sua impressão,<br />

“Acabou-se o monopólio da informação e da opinião, estamos voltando à<br />

democracia direta grega. Mas com um bilhão de pessoas nessa ágora, talvez<br />

até com o surgimento de um novo idioma a longo prazo. Vamos ter uma<br />

anarquia total ou vamos ter um despotismo novo? O capitalismo vai tentar<br />

controlar isso, vai tentar tirar o máximo proveito econômico, mas desta vez<br />

não será possível”.<br />

No início do mês de setembro, antes dos ataques articuladas da mídia<br />

hegemônica, as pesquisas de opinião apontavam vitória da candidata Dilma Rousseff<br />

ainda no primeiro turno. O Vox Populi, em sua medição tracking (diária) indicava 53%<br />

para a Dilma, 24% para José Serra e 8% para Marina. No meio do mês (dia 17), o<br />

levantamento do instituto mostrava Dilma com 51%, Serra com 25% e Marina,<br />

iniciando sua ascensão, com 11%. A partir daí, de modo expressivo nos últimos dez<br />

dias, começam a circular mensagens em emails e vídeos no Youtube, estimulando o<br />

preconceito contra a candidatura de Dilma. Mais adiante, um vídeo com fina produção<br />

10 http://www.fazendomedia.com/blogosfera-a-imprensa-alternativa-do-seculo-xxi/, acesso em 28.06.11<br />

11 http://www.advivo.com.br/blog/luis<strong>nas</strong>sif/o-velho-e-o-novo-bom-jornalismo#more, acesso em 28.06.11


apareceria no site do candidato José Serra 12 , descrevendo a catástrofe que seria um<br />

governo Dilma Rousseff 13 . O acirramento dos ânimos começava também a ocupar as<br />

redes sociais. Se por um lado a ciberespaço ganhava com a participação democrática,<br />

difundindo as opiniões as mais divergentes e propondo um debate de ideias não<br />

disponível <strong>nas</strong> mídias tradicionais, percebeu-se também o contraponto a esse espírito,<br />

ou seja, o processo calunioso, desvelando rancor e preconceito.<br />

O twitter, também conhecido como microblog, ganhou destaque <strong>nas</strong> eleições de<br />

2010 ao conectar redes de maneira ágil e rápida, a partir de comentários breves, de até<br />

140 caracteres. Para Santaella e Lemos, “as RSIs 3.0 (a mais recente das redes sociais<br />

da internet, e o twitter como uma das plataformas) reconfiguram fundamentalmente a<br />

estrutura de interação das interfaces midiáticas, adaptando-se em função e a partir da<br />

mobilidade” (SANTAELLA, LEMOS, 2010, p. 61).<br />

A mobilidade, juntamente com a integração com múltiplas redes, plataformas e<br />

funcionalidades, torna-se um atrativo para as mensagens rápidas, e temos conexão<br />

aberta para todos os acessos, “e tão contínua a ponto de se perder o interesse pelo que<br />

aconteceu 2 minutos atrás” (idem, 2010, p.62).<br />

É possível imaginar a dinâmica <strong>nas</strong> comunicações e <strong>nas</strong> relações, pautadas por<br />

essa velocidade na produção de ideias, e suas consequências nem sempre devidamente<br />

consideradas. Em uma experiência midiática em que o passado não importa (e como<br />

passado, pensemos nesse momento imediatamente anterior), e o futuro o tempo todo<br />

visualizado por um presente onipresente, as mensagens embora de impacto circunscrito<br />

ao momento, carregam a certeza do registro permanente. Ou seja, uma ideia<br />

disseminada mais ao sabor da emoção do que da razão pode trazer sérias consequências<br />

ao internauta.<br />

Foi o caso de Mayara Petruso, que analisaremos mais detidamente na segunda<br />

parte deste trabalho, e todo o impressionante cenário de xenofobia, que durante dias<br />

envolveu o ciberespaço. No twitter, “deparamo-nos com uma ecologia complexa de<br />

veiculação de ideias. A pergunta, „o que você está fazendo agora?‟, se transformou em<br />

„No que você está pensando agora?‟” (idem, 2010, p. 67). A multiplicação do<br />

12 Mais tarde retirado do site, sendo que a coordenadora da área digital da campanha do PSDB, Soninha<br />

Francine, conforme se ouve pela voz over na introdução, afirma que “o vídeo foi divulgado sem que ela<br />

soubesse”.<br />

13 http://youtu.be/-JKLKT8Z-jc, acessado em 29.06.11.


preconceito imediato, em um pensamento rancoroso e irreversível, considerou a<br />

velocidade e a entrega ao sabor dos fluxos e dinâmicas imediatos da comunicação,<br />

esquecendo as marcas indeléveis impressas a ferro e fogo na memória das redes.<br />

Assim, movida pela desilusão da derrota do candidato José Serra, uma parcela<br />

frustrada de seus seguidores – que assimilara o discurso da mídia hegemônica,<br />

exaustivamente registrados sob a chancela de um jornalismo opinativo, e no mais das<br />

vezes agressivo e intolerante em relação à candidatura oponente – lançou-se à<br />

disseminação de mensagens xenófobas contra os nordestinos, os quais segundo a<br />

mesma mídia hegemônica, teriam sido os grandes responsáveis pela vitória de Dilma<br />

Rousseff.<br />

em rede.<br />

Parte 2.<br />

Mayara Petruso seria o caso mais proeminente desta manifestação de xenofobia<br />

Os véus de Mayara: identidades e diferenças<br />

Em sânscrito, Maia designa a ilusão a que se reduz o mundo das aparências. O<br />

episódio Mayara Petruso, além do anagrama linguístico, pode revelar o preconceito e a<br />

xenofobia urdidos sutilmente em narrativas identitárias que favorecem a ilusão, véu<br />

protetor e isolante, de que o sujeito é uno.<br />

Do mesmo modo, o sujeito unificado acredita em que, no seu mundo, não<br />

existam fissuras ou diferenças que interpelam e descentram ininterruptamente suas<br />

certezas. Assim, sua biografia e seu hábitat ficariam protegidos contra as ameaças<br />

provocadas por aquilo que ele desconhece - rapidamente traduzido em algo estranho,<br />

estrangeiro 14 - lembrando que a etimologia de estrangeiro, segundo o Dicionário<br />

Etimológico da Língua Portuguesa (Machado, 2003), oferece-nos a origem latina,<br />

extraneu, que remete à “exterior”; “de fora”; “que não pertence à família; “estranho”;<br />

– um estrangeiro.<br />

14 O célebre texto de Sigmund Freud (1919), O estranho, aponta o retorno do que foi recalcado como uma<br />

das vias de acesso ao inconsciente. Sabe-se que a descoberta dos processos inconscientes estruturados<br />

como linguagem, por Freud, no final do século XIX, e relidos por Jacques Lacan, na segunda metade do<br />

XX, marcam uma ruptura importante na concepção de identidade como essencialista, bem definida,<br />

localizada e centrada nos processos racionais que caracterizaram o sujeito moderno, noções muito<br />

distintas das articulações contemporâneas sobre identidade (Hall,2003, p.23-46).


Os motivos pelos quais o estrangeiro/estranho assusta e é repelido com aversão 15<br />

não são invenções do ciberespaço, da sociedade reticular e midiática em que vivemos.<br />

Novo é o tom publicitário do brado xenofóbico de Mayara, como um dos resultados das<br />

articulações discursivas da grande mídia contrária à candidatura Dilma, retumbando em<br />

tempo real na internet: “Nordestisto não é gente. Faça um favor a SP, mate um<br />

nordestino afogado.” O apelo assertivo, o modo verbal imperativo da frase caracterizam<br />

o discurso autoritário (Orlandi, 1987) adensado pelo uso do humor chistoso e sacrificial<br />

revelados na aglutinação nordestino-quisto, nordestisto, que atribui significado<br />

simbólico negativo ao objeto de seu ódio.<br />

Nova é a velocidade do cantar entrecortado dos pássaros, sons curtos, agitados e<br />

agudos, isto é, twitter – na língua inglesa - que ecoa velhos e novos temores, como se<br />

pode perceber <strong>nas</strong> reverberações, na rede, do discurso de Mayara: “infelizmente quem<br />

decide a eleição não é quem lê jornal, e sim quem limpa a bunda com ele. Quem perdeu<br />

foi o Brasil! (@dilma_Bebada)”; “Sul/Sudeste vamos aguentar agora por 4 anos a<br />

escolha dos outros, viva a democracia/ o movimento O Sul é meu País (@CamiiMaia)”;<br />

“Tem gente que fala que todos os brasileiros são iguais discordo... Não quero e não sou<br />

igual ao povo do norte/nordeste... (@Merlinlipe)”; “Bem vou trabalhar porque não<br />

ganho bolsa família dos Nordestinos. Nem faço 2 filhos por ano pra ter mais bolsa<br />

família #Nordestisto (@ClaytonAmerico).” 16<br />

Poderíamos continuar a navegação ouvindo os ecos xenofóbicos e racistas que<br />

proliferaram na rede a partir da vitória de Dilma Rousseff, do PT e de Lula, nordestino,<br />

operário, barbudo, semiescolarizado, que não sabe falar inglês, considerações que se<br />

alastraram em emails coletivos, durante e depois das eleições.<br />

Destas ações discursivas, muitas observações podem ser feitas, a exemplo do<br />

efeito certeiro provocado pelas mídias tradicionais materializado no texto que propaga<br />

que os leitores dos grandes jornais, informados sobre o desenrolar da disputa política –<br />

tecido nos jornalões, como dito na parte 1 deste trabalho, não decidiram a eleição, mas<br />

sim os ignorantes, incautos, isto é, os nordestinos que não leem jornal. Do mesmo<br />

modo, o movimento O Sul é o meu País, a aversão a ser igual ao povo do<br />

Norte/nordeste ou a afirmação de que o sul trabalha, não ganha o bolsa família dos<br />

15 Vale dizer que, etimologicamente, a palavra xenofobia significa “ a aversão aos estrangeiros”, do<br />

grego xénos, “estrangeiro”, e phóbos, “temor” (Houaiss, 2009).<br />

16 Mais informações, consultar http://youtu.be/zYSUVVzccTg


nordestinos, põem em jogo inúmeras representações identitárias mobilizando uma<br />

constelação de significados simbólicos.<br />

Tomaz Tadeu da Silva (2009), em um texto seminal, apoiado em autores chaves<br />

da linguística estrutural e recorrendo também aos teóricos pós-estruturalistas, explica<br />

que as identidades são criadas por atos de linguagem, por nomeações, como faz a<br />

internauta ao se localizar como pertencente ao sul/sudeste do país. Entretanto a<br />

linguagem verbal, já disse o linguista Ferdinand de Saussure, no começo do século XX,<br />

é um sistema de diferenças, os signos sul/sudeste só podem ser compreendidos em<br />

conexão com os que não são sul/sudeste, isto é, os signos norte/nordeste. Isso significa<br />

que todo signo verbal só é entendido na relação e conexão com outro signo verbal<br />

gerando uma cadeia de produção de signos e de significações sempre incompletas, já<br />

que o significado de um signo é sempre outro signo ad infinitum. Esta condição da<br />

linguagem imprime ao conceito de identidade o traço da diferença, daquilo que o signo<br />

não é, por isso, “nenhum signo pode ser reduzido a si mesmo, à identidade” (SILVA,<br />

2009, p.79). Dada a incompletude do signo, a identidade será sempre uma sutura, um<br />

constructo, entretanto vazado, fragmentado, que contém o que não é.<br />

De outro modo, a linguagem verbal não é ape<strong>nas</strong> um sistema linguístico, é<br />

heteróclita, necessita das relações sociais para existir, “o signo e a situação social em<br />

que se insere estão indissoluvelmente ligados. O signo não pode ser separado da<br />

situação social sem ver alterada sua natureza semiótica” (BAKHTIN, 1988, p.62). A<br />

produção da identidade e da diferença, resultado dos liames entre linguagem e<br />

sociedade, contempla igualmente relações de poder, vetores de força impressos nos<br />

sistemas sociais e culturais/simbólicos, gerando estruturas classificatórias que, por seu<br />

turno, engendram a ordenação da vida de relação em grupos, classes, e promovem as<br />

distinções entre o fora e o dentro, entre “nós” e “eles”. Classificar, dividir significa<br />

hierarquizar, de onde a atribuição de valores ao que foi classificado, dividido, posto<br />

acima ou abaixo no eixo das importâncias recrudescendo as marcas de poder na<br />

produção das identidades e da diferença (Silva, 2009).<br />

Além de representadas, as identidades são disputadas e seus significados<br />

negociados na urdidura social. Os atos discursivos em análise neste trabalho, revelam,<br />

além da valorização negativa atribuída às representações identitárias<br />

norte/nordeste/nordestino, a tentativa de fixar uma identidade cultural local como sendo<br />

a norma, a do sul/sudeste, versus a identidade norte/nordeste, avaliada como a diferença<br />

a ser destruída, afinal o nordestino se transforma em nordestisto, um quisto a ser


extirpado. Vale notar que este chiste adquiriu o estatuto de um hashtag, #Nordestisto, “o<br />

aperto de mão secreto do Twitter” 17 – uma maneira dos usuários desta rede social<br />

organizarem e pesquisarem mensagens. Normaliza-se a identidade local, sul/sudeste,<br />

como sendo a verdadeira e mais importante, normaliza-se, pela ciberclassificação, a<br />

identidade local norte/nordeste como sendo o quisto a ser retirado do país, já que foi o<br />

Brasil quem perdeu com a vitória de Dilma, parafraseando uma das mensagens racistas.<br />

Se as identidades devem ser disputadas no tecido social, as colocações xenofóbicas<br />

impedem qualquer negociação.<br />

O episódio também nos leva a pensar sobre as narrativas identitárias erigidas em<br />

torno da identidade nacional entremeada à identidade local, de classe e de gênero.<br />

Vociferam as internautas: “Sul/Sudeste vamos aguentar agora por 4 anos a escolha dos<br />

outros, viva a democracia/ o movimento O Sul é meu País (@CamilMaia)”; “Tem gente<br />

que fala que todos os brasileiros são iguais discordo... Não quero e não sou igual ao<br />

povo do norte/nordeste... (@Merlinlipe)”(...) “Nem faço 2 filhos por ano pra ter mais<br />

bolsa família #Nordestisto (@ClaytonAmerico).”<br />

Ainda que o processo da globalização tenha contribuído para desestabilizar as<br />

narrativas que sustentam a crença de uma cultura nacional unificada, graças aos fluxos<br />

de informação que rapidamente convidam à montagem e à remontagem de<br />

representações de identidade impedindo sua homogeneização e ao próprio processo de<br />

hibridismo contido em todas as nações moder<strong>nas</strong> (Hall, 2003), pode-se observar <strong>nas</strong><br />

mensagens acima, velhos estereótipos que tentam unificar a identidade nacional, “o meu<br />

país”, em torno das características, muito provavelmente físicas, do percurso intelectual<br />

e da posição econômicas das pessoas “do Sul”, adensando a identidade local. Fácil<br />

supor que esta unicidade é tramada a partir da ideia, sem qualquer validade científica, de<br />

raça, compreendida aqui como categoria discursiva (Hall, 2003), e também pela<br />

identidade de classe e de gênero.<br />

Na afirmação que reconhece as diferenças no Brasil, mas que as rejeita com<br />

veemência, pressupõe-se que o seu país, o sul, seja uma gentil comunidade de brancos,<br />

loiros, de olhos claros, de cabelos lisos, altos, inteligentes, escolarizados, cumpridores<br />

de seus deveres como trabalhadores, consequentemente de classe social abastada<br />

economicamente, plenos de bens materiais, tecnológicos e modernos. Somado ao fato<br />

17 Aposto contido no título da matéria jornalística publicada pela Folha de São Paulo, 29 de junho de<br />

2011. Caderno TEC: “Hashtag, o aperto de mão secreto do Twitter, se difunde”.


de que como homem escolarizado e educado “não faz dois filhos por ano” em troca do<br />

bolsa-família. Marcas simbólicas valorizadas positivamente pela ideologia hegemônica,<br />

em detrimento “dos outros”, nordestinos, que deram a vitória à Dilma: pretos ou pardos,<br />

morenos, de olhos negros, cabelos crespos, baixos, ignorantes, grosseiros, analfabetos e<br />

despossuídos de qualquer signo de modernidade. Nestas narrativas xenofóbicas, o Brasil<br />

se unifica no Sul idealizado.<br />

Interessante notar que o discurso em torno do recrudescimento identitário<br />

demonstrado parece incompatível com a pluralidade de vozes materializadas pelas redes<br />

de informação em suas múltiplas combinações de tempo-espaço, desprezando as<br />

fronteiras, as linearidades típicas das sociedades presas às soberanias dos territórios<br />

cujos rastros apontam para o medo do forasteiro, estrangeiro e estranho – o que está em<br />

causa na xenofobia voltada ao eixo norte/nordeste do país.<br />

Já dissemos que a aversão ao que vem de fora não é nova. Zigmunt Bauman<br />

(2004) retorna à concepção das cidades pré-moder<strong>nas</strong> para demonstrar que, naquele<br />

momento, não era permitido permanecer estranho por muito tempo, ou as pessoas que<br />

vinham de fora, estranhas à cidade, eram expulsas ou domesticadas. O mesmo pode-se<br />

ler em Duby (1998), ao contar que os vikings ao invadirem a Europa Medieval,<br />

chegavam, saqueavam e, durante a má estação, instalavam-se permanentemente,<br />

construíam acampamentos na foz dos rios e hibernavam. Os acampamentos se tornavam<br />

mercados e “os períodos de agressividade e os de negociação se alternavam” (Duby,<br />

1998, p.55).<br />

Entretanto, na modernidade líquida, estimulados pela insegurança gerada pela<br />

flexibilidade de todos os vínculos, dos afetivos aos de trabalho, há um apelo, quase<br />

universalizado, à desconfiança, à vigilância, consequentemente, à clausura e ao medo do<br />

outro, especialmente daquele não contemplado na comunidade de semelhança. Para<br />

Bauman (2004), a procura pela comunidade da mesmice significa um recuo em relação<br />

à alteridade externa e à interação interna, o que também podemos articular ao<br />

recrudescimento de certos investimentos identitários impulsionados pelo medo, uma<br />

emoção social, e propagadores de uma agressividade destruidora, à procura de culpados<br />

por todas as intranquilidades pós-moder<strong>nas</strong>, a exemplo da morte aos nordestinos<br />

estimulada por Mayara Petruso.<br />

Se a pós-modernidade nos inquieta com sua velocidade e seus processos e fluxos<br />

caóticos, ela também possibilita rearticulações das marcas e das representações<br />

identitárias, descartando algumas, criando outras. Será esta a causa da xenofobia pós


eleições 2010? Os nordestinos estariam atravessando os espaços interditos e<br />

enclausurados das camadas superiores globalizadas, da qual seguramente tantas jovens<br />

como Mayara se incluem como partícipes? Nos saguões dos aeroportos, <strong>nas</strong> praças da<br />

alimentação de alguns shoppings centers, <strong>nas</strong> salas de cinema, nos grandes magazines,<br />

<strong>nas</strong> grandes livrarias da cidade, mudando o ambiente? Sim, parece justa a resposta.<br />

Ainda este ano, Fábio Marão, diretor de marketing da empresa aérea Azul,<br />

concebida para atender a nova classe média – em grande parte trazendo, em seu bojo,<br />

nordestinos ou seus descendentes – narrou 18 em palestra para um grupo de estudantes<br />

universitários, em São Paulo, um episódio exemplar: ao transportar um caminhoneiro<br />

vestido de shorts, chinelos, com barba por fazer e banho por tomar, as comissárias de<br />

bordo, com muita delicadeza, convidaram o novo consumidor do espaço aéreo a se<br />

retirar da aeronave, dirigir-se aos banheiros do aeroporto e tomar banho. Sugerindo que<br />

em suas próximas viagens ele se banhasse e se vestisse adequadamente para a situação.<br />

Podemos relacionar este caso à descrição dos ritos de passagem, estudados por<br />

Victor Turner (apud Bauman, op.cit), necessários para que um indivíduo ingresse em<br />

um novo status social. Bauman (op.cit:154), aproxima esta situação ao <strong>nas</strong>cimento de<br />

um indivíduo <strong>nas</strong> ordens do Estado: “antes que os recém-chegados em busca de<br />

admissão a um locus social ganhem acesso(...) eles precisam despir-se de todos os<br />

adornos de seu encargo anterior.”<br />

Não será esta a condição dos nordestinos achincalhados pelos paletós e gravatas?<br />

Para serem incluídos e assumirem a identidade de consumidor, as elites dominantes os<br />

convidam a se despirem de todas as suas outras marcas de identidade. Nus, em<br />

quarentena nos banheiros dos aeroportos, para assim serem aceitos sob uma nova<br />

representação identitária e, quem sabe, libertarem-se das vozes autoritárias e<br />

excludentes que ainda navegam por ai.<br />

18 “A nova classe média”. Palestra proferida na Faap – Faculdade de Comunicação e Marketing da<br />

Fundação Armando Álvares Penteado, por Fábio Marão, diretor de marketing da empresa aérea Azul.


Conclusão<br />

Procuramos demonstrar em nosso trabalho a ocorrência de uma poderosa onda<br />

xenofóbica, propulsada pelas mídias sociais logo após a vitória de Dilma Rousseff ao<br />

cargo de presidenta do Brasil. Manifestações que <strong>nas</strong>ceram de um caldo de rancor e<br />

intolerância nos discursos da mídia hegemônica, e que logo ganharam a agilidade e a<br />

portabilidade das redes sociais.<br />

Redes sociais que acolheram também, e principalmente, a oportunidade de<br />

oferecer um contraponto de ideias, graças aos jornalistas-blogueiros e internautas<br />

comuns, que se propuseram a esclarecer os pontos não devidamente investigados das<br />

denúncias sucessivamente produzidas pelos veículos hegemônicos de comunicação.<br />

Em um tempo líquido-moderno, para utilizar a expressão consagrada de<br />

Bauman, o preconceito étnico, social, cultural, tende a surgir como uma forma<br />

desesperada de defesa contra o outro desconhecido. Desprovidos do Estado social e<br />

envolvidos por uma globalização negativa, seletiva, geramos o medo e ficamos à mercê<br />

da desconfiança, cada vez mais distantes da compreensão de um tempo generoso, onde<br />

encontraríamos a solidariedade e o prevalecimento das virtudes morais.<br />

As mídias sociais terão uma presença cada vez mais ativa em nosso cotidiano,<br />

oferecendo a oportunidade de que todas as vozes invisibilizadas <strong>nas</strong> mídias<br />

hegemônicas, possam tecer suas redes e recompor a harmonia e a beleza da diversidade<br />

humana.


Referências Bibliograficas<br />

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BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. SP: Hucitec, 1988.<br />

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Abramo, São Paulo, 2006.<br />

DUBY, G. Ano 1000, ano 2000: na pista dos nossos medos. SP: Fundação editora da<br />

UNESP, 1998.<br />

FREUD, S. (1919). O Estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas<br />

Volume. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.<br />

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. - 7ª.ed.- Rio de Janeiro: DP&A,<br />

2003.<br />

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,<br />

2009.<br />

KUCINSKI, B. & LIMA, V. Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a<br />

mídia. Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2009<br />

MACHADO, J.P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. - 8ª.ed.- Lisboa:Livros<br />

Horizonte, 2003.<br />

ORLANDI, E.P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. - 2ª.ed.-<br />

Campi<strong>nas</strong>, SP: Pontes, 1987.<br />

SANTAELLA, L. & LEMOS, R. Redes Sociais <strong>Digitais</strong>. Paulus, São Paulo, 2010.<br />

SERRANO, P. Desinformación – como los médios ocultan el mundo. Ediciones<br />

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http://www.fazendomedia.com/blogosfera-a-imprensa-alternativa-do-seculo-xxi/,<br />

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acessado em 28.06.11

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