Xenofobia e Participação Política nas Mídias Digitais - Confibercom
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<strong>Xenofobia</strong> e <strong>Participação</strong> <strong>Política</strong> <strong>nas</strong> Redes Sociais<br />
Resumo<br />
Mônica Rebecca Ferrari Nunes 1<br />
Marco Antonio Bin 2<br />
Este trabalho propõe analisar as reverberações xenofóbicas surgidas <strong>nas</strong> redes sociais, no<br />
contexto das eleições presidenciais 2010, tomando como referência o caso mais notável da estudante de<br />
direito Mayara Pet<br />
ruso.<br />
Com base <strong>nas</strong> pesquisas em mídias digitais, nos Estudos Culturais e na sociología de Zigmunt<br />
Bauman, a proposta discute a formação de narrativas identitárias que demonstram os jogos entre<br />
identidades de classes e identidades políticas na construção da subjetividade em face da cultura digital.<br />
As redes oferecem múltiplas perspectivas para que o medo do Outro, a dificuldade de amar o<br />
próximo, segundo a abordagem de Bauman, se materializem em discursos que, paradoxalmente, uma vez<br />
produzidos, são logo desconstruídos graças à convergência de mídias e plataformas que podem dissolver<br />
a hegemonia de visões de mundo pautadas no preconceito, revelando novos modos de participação<br />
política e comunicativa.<br />
Palavras-Chave: Cibercultura. Redes Socias. <strong>Xenofobia</strong>. Identidades. Subjetividades.<br />
Abstract<br />
This paper proposes to examine the xenophobic reverberations arising from the social networks<br />
in the context of the 2010 Presidential Election, using as a reference the most notable case: the law<br />
student Mayara Petruso.<br />
Based on research in digital media, in cultural studies and sociology of Zigmunt Bauman, the<br />
proposal discusses the formation of identity narratives that show the exchange between class<br />
identities and political identities in the construction of subjectivity in the face of digital culture.<br />
The social networks provide multiple perspectives for the fear of the Other, the difficulty of<br />
loving, according to Bauman's approach, materialize in speeches that, paradoxically, once produced, are<br />
then deconstructed through the convergence of media and platforms that can to remove the hegemony of<br />
world views guided by prejudice, revealing new ways of political and communicative participation.<br />
Keywords: Cyberculture, Social Networks, Xenophobia, Identity; Subjectivity.<br />
1 Mônica Rebecca Ferrari Nunes. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUCSP). Professora do curso<br />
de Comunicação e Marketing (FAAP-SP) e do curso de Biblioteconomia (Unifai-SP). Membro do Centro<br />
de Estudos da Oralidade (CEO/COS/PUCSP) e do Centro de Estudos em Música e Mídia<br />
(MusiMid/ECAUSP). Email: nunes.aureli@uol.com.br<br />
2 Marco Antonio Bin. Doutor em Ciências Sociais (PUCSP). Escritor e Professor do MBA Sustentare<br />
Escola de Negócios. Membro do Núcleo de Pesquisas Urba<strong>nas</strong> (NEPUR/PUCSP). Idealizador do blog<br />
sobre política, literatura e cinema cha<strong>nas</strong>montanhas.blogspot.com. Email: marcobin@gmail.com
Introdução<br />
O objetivo neste estudo é propor uma discussão sobre a xenofobia <strong>nas</strong> redes<br />
sociais, tendo em vista o discurso proferido por Mayara Petruso e por outros internautas,<br />
e abordar o preconceito social, cultural e linguístico que despontou com o desfecho das<br />
eleições presidenciais de 2010, a partir da vitória da candidata Dilma Roussef.<br />
Tais manifestações xenofóbicas ocorreram <strong>nas</strong> mídias sociais mais ágeis, de<br />
conexão imediata e integração rápida com múltiplas redes sociais, como o twitter e o<br />
facebook, proliferando o preconceito que ganhou forma e conteúdo como um rastilho de<br />
pólvora.<br />
Consideramos que essa foi a consequência de uma ação concatenada não <strong>nas</strong><br />
mídias sociais, mas na velha mídia, que preservando ainda a penetração de seu discurso<br />
hegemônico, e posicionada desde o início a favor de um dos candidatos, José Serra, do<br />
PSDB, conseguiu mobilizar a opinião pública com uma exposição metódica, buscando<br />
inviabilizar a candidatura Dilma Roussef, do PT.<br />
Contrapondo-se a esse discurso que ganhou uma formulação obsessiva por<br />
desautorizar um partido e uma candidatura, posicionou-se uma boa parcela das mídias<br />
sociais, surgidas como respostas espontâneas às sucessivas ondas de “escândalos” e, de<br />
certo modo, coordenadas pelas análises mais detidas de jornalistas independentes, ou,<br />
como ao final da campanha ficaram conhecidos, blogueiros sujos.<br />
Nossa proposta é, pois, apresentar esse quadro geral das eleições presidenciais<br />
de 2010, avaliando os respectivos discursos, dividindo o trabalho em duas partes, a<br />
saber:<br />
A parte 1. observa as consequências do enfrentamento ocorrido entre mídias<br />
hegemônicas versus mídias alternativas (redes sociais) e os principais endereços da<br />
hipermídia, onde foram tecidas as linhas de “contrainformação”; estrutura uma<br />
aproximação da organização semântica do discurso <strong>nas</strong> redes sociais, seja o que<br />
sustentou uma simpatia pela candidata Dilma, como o que resultou de sua vitória,<br />
eivado de preconceito contra as pessoas da região que lhe deu uma votação esmagadora,<br />
o Nordeste. Para tanto, selecionamos materiais jornalísticos publicados na grande mídia<br />
e <strong>nas</strong> redes sociais, assim como analisamos as diferenças entre estas linguagens com<br />
base em Lúcia Santaella (2010) e em Pollyana Ferrari (2010).<br />
A parte 2. analisa a xenofobia resultante da vitória de Dilma, por meio dos<br />
trabalhos de Zigmunt Bauman (2004), e discute as narrativas identitárias postas em cena
por meio da leitura de Stuart Hall (2003a; 2003b), Tadeu Silva (2009) e Manuel Castells<br />
(2008). Por fim, tecemos uma conclusão possível sobre os argumentos apresentados e<br />
discutidos.
Parte 1 –<br />
A ação da mídia hegemônica<br />
Quando se fala em discurso midiático, nos referimos ao discurso dos grandes<br />
veículos de comunicação dominantes. Nos momentos mais decisivos <strong>nas</strong> eleições<br />
presidenciais brasileiras em 2010, esse discurso foi coeso, na medida em que se<br />
posicionava contra a candidata apoiada pelo governo, Dilma Roussef. Os grupos<br />
midiáticos hegemônicos mostraram um jornalismo progressivamente descolado dos<br />
anseios populares, que no último ano do governo Lula lhe dava índices de aprovação em<br />
torno de 80%, para manter sua voz em defesa de seus próprios interesses corporativos e<br />
dos setores mais privilegiados da sociedade, e dos quais se identificam ideologicamente.<br />
Em suma, no lugar de cumprir com suas funções como órgãos noticiosos,<br />
realizando a mediação entre os fatos sociais e a sociedade, os oligopólios midiáticos<br />
oferecem, através de um jornalismo cada vez mais opinativo e menos investigativo, a<br />
sua visão de mundo, editada em consonância com os seus interesses corporativos. Um<br />
processo de manipulação que impede a abordagem e o debate da realidade em suas<br />
nuanças, desdobrando-se em leituras sensacionalistas dos fatos, ou de acordo com as<br />
palavras de Marilena Chauí, “um jornalismo que está ficando cada vez mais rápido,<br />
inexato e barato” (CHAUÍ, 2006, p.13). É como se o jornalismo, longe de proporcionar<br />
a devida cobertura dos acontecimentos, em uma mediação equilibrada dos fatos, se<br />
dedicasse a distorcer a verdade ao limite, oferecendo uma interpretação parcial,<br />
imprecisa, ou até mesmo falseada da realidade, abrindo caminho para a desinformação<br />
ou, <strong>nas</strong> palavras de Ramonet, a censura democrática 3 .<br />
Retomando o contexto das eleições presidenciais de 2010, a imprecisão no relato<br />
– em outras palavras, a manipulação dos fatos – se ampliava na medida em que o dia 3<br />
de outubro, data em que se daria o primeiro turno das eleições, se avizinhava. O mês de<br />
setembro foi sintomático nesse sentido, como veremos a partir das manchetes dos<br />
jornais de maior circulação diária no Brasil, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo<br />
e O Globo, onde não só aprofundaram as distorções informativas, como estas foram<br />
orquestradas e reproduzidas em conjunto, para criar mais impacto na população,<br />
ganhando o cardápio principal das notícias da semana. O cidadão brasileiro, de maneira<br />
3 “La ocultación y la disimulación, en esa masa de información que se consume, son las formas de la<br />
censura de hoy. Y esa “censura invisible” es la que practican los grandes grupos mediáticos y los<br />
gobiernos”. (SERRANO, 2009, p.13).
profunda ao longo desse mês, foi submetido a um bombardeio de saturação, com<br />
denúncias que eram infladas e lançadas, antes mesmo de totalmente averiguadas,<br />
visando desestabilizar o governo 4 . Assim foi com a “crise” da violação do sigilo fiscal<br />
de Mônica Serra, por sua vez substituída pelo “escândalo” da ministra da Casa Civil,<br />
Erenice Guerra, e que foi substituído pela “polêmica” do aborto, já nos derradeiros dias<br />
do mês. Todas estas tensões, entremeadas por outras peque<strong>nas</strong> “crises, denúncias ou<br />
polêmicas”, apresentadas por este ou por aquele meio de comunicação: “Governador do<br />
Amapá e antecessor são presos”, Folha de SP, 09.09.10; “Governo usa capitalização da<br />
Petrobras para fechar contas”, Estado de SP, 10.09.10; “Dirceu: PT terá mais poder<br />
com Dilma do que com Lula”, O Globo, 15.09.10. Era o esforço por minar a vantagem<br />
da candidata apoiada por Lula, <strong>nas</strong> pesquisas de voto, e conduzir o candidato da<br />
oposição para um possível segundo turno.<br />
O assédio seguia a um padrão articulado: as edições dos jornais impressos<br />
alimentavam diariamente, em manchete, variantes do “escândalo” destacado na capa das<br />
revistas Veja ou Época, que chegavam às bancas no sábado anterior, e que por sua vez<br />
era esmiuçado nos pontos mais polêmicos, nos telejornais noturnos da Globo. O ciclo<br />
durava uma semana, até a nova edição da Veja, que dava o tom da semana seguinte,<br />
aprofundar o tema vigente ou mudar para outro. Em outras palavras,<br />
“a sucessão de invectivas montadas para expor e condenar o governo federal,<br />
delimita o componente cínico (porque se assume como parte do jogo<br />
democrático...) e dissimulado (porque mascara seus perversos objetivos...)<br />
que tem caracterizado o discurso midiático. Para o cidadão comum,<br />
acompanhar essas incongruências revela-se um fardo extenuante, que o<br />
desestimula em relação ao debate político. O cidadão urbano moderno, com<br />
todas as disponibilidades tecnológicas para o acesso à informação, não tem o<br />
menor interesse em se contaminar com tanto rancor e ódio” 5 .<br />
Ao se referir à prática da manipulação nos jornais, Bernardo Kucinski, em<br />
diálogo com Venício Lima, afirma que ela se deve “ao uso ideológico que os jornais<br />
fazem de si mesmo, em detrimento do uso informativo” (KUCINSKI, LIMA, 2009,<br />
p.81). Em outras palavras, o que interessa é a uniformidade ideológica no discurso,<br />
4 Segundo o jornalista Antonio Carlos Fon, em seu curso de jornalismo ele ensinava sobre “a técnica da<br />
mentira”, que ele mesmo explica: “Essa técnica é velha. Eu a expunha <strong>nas</strong> aulas do curso de jornalismo<br />
investigativo que ministrava no SESC no fim dos anos 90 como "a técnica da mentira". Antigamente ela<br />
era usada ape<strong>nas</strong> pelos serviços de inteligência e eu a explicava para que os jovens repórteres<br />
aprendessem a desmontá-la. Consiste, basicamente de contar uma mentira adaptando-a em torno de fatos<br />
reais. A mentira não pode ser comprovada, mas como os fatos parecem corroborá-la, ela acaba adquirindo<br />
ares de verdade. A forma de desmontá-la é fácil: basta checar todos os dados e não ser leviano ou ingênuo<br />
para formar opinião sólida baseado em evidências”.<br />
5 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/cinismo-e-dissimulacao, acesso em 28.06.11.
passando por cima dos debates mais abertos e democráticos, a notícia veiculada em<br />
forma de editorial, impositiva e tendenciosa.<br />
Ricardo Kotscho, a propósito de um comentário de um leitor, pronuncia-se a<br />
respeito da participação da mídia hegemônica no processo eleitoral:<br />
“(...) O citado JN no Ar, por exemplo, levanta todo dia a bola dos problemas<br />
das cidades brasileiras, onde falta de tudo e nada funciona. No mínimo, tem<br />
lugar onde falta homem e tem lugar onde falta mulher Logo em seguida,<br />
entra o programa do candidato José Serra para apresentar as soluções.<br />
Na outra metade do programa tucano, em tabelinha com os principais<br />
veículos de comunicação do país, são apresentadas as manchetes dos jornais<br />
e revistas com denúncias contra a candidata Dilma Rousseff, o governo Lula<br />
e o PT, numa sucessão de escândalos sem fim até o dia de disparar a tal "bala<br />
de prata” 6 .<br />
Referindo-se à força concentrada da hegemonia midiática, o deputado federal<br />
Brizola Neto comentou sobre a urgência da sociedade em promover mecanismos que<br />
rompessem “com o círculo vicioso da imprensa empresarial”, citando uma entrevista de<br />
Judith Brito, presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), que afirmou que os<br />
partidos políticos de oposição estariam fragilizados, e que cabia à imprensa ocupar essa<br />
função. Disse Brizola Neto,<br />
“A posição oficial da entidade que congrega os maiores jornais vem sendo<br />
seguida à risca por todos eles, que, apesar do conhecimento publico da<br />
posição que defendem, tentam se passar por imparciais.<br />
Nesse pequeno clube fechado, que não aceita vozes dissidentes, todos rezam<br />
pela mesma cartilha. Se há governo popular, sou contra. Os principais meios<br />
de comunicação do país são controlados por meia dúzia de famílias ricas, que<br />
defendem seus interesses de classe. Seu compromisso não é com a<br />
informação e sim com a manipulação das notícias para atingir seus<br />
propósitos” 7<br />
Diante deste quadro, seria razoável de se esperar uma resposta que, de algum<br />
modo, apresentasse uma abordagem mais comprometida com os anseios da sociedade, e<br />
ela viria, pela primeira vez de maneira tão significativa em uma campanha eleitoral,<br />
com a atuação das mídias sociais, com o desenvolvimento das narrativas hipertextuais,<br />
principalmente com os blogs, o twitter e o facebook. Antes de passarmos para as<br />
reações das redes sociais, seria oportuno registrarmos cronologicamente, e com os<br />
devidos comentários, algumas das manchetes dos grandes jornais brasileiros, no mês de<br />
setembro de 2010, para situarmos o contexto político pré-eleitoral.<br />
No primeiro dia do mês, a chamada principal da primeira página do Estado de<br />
São Paulo era “Governo usa „truques‟ para garantir metas de contas públicas”. Se não<br />
6 http://www.revistabrasileiros.com.br/secoes/balaio-do-kotscho/noticias/1818/, acesso em 28.06.11.<br />
7 http://www.tijolaco.com/page/123/, acessado em 29.06.2011.
chegava a ser o anúncio de um escândalo ou crise, era a chamada para um sério<br />
problema contábil no governo. Do dia 2 em diante, surgiram em sequência ininterrupta<br />
as manchetes da primeira “crise” coberta em rede midiática, por um tempo mais longo.<br />
A chamada “crise da Receita” seria alimentada por manchetes no Estadão por sete dias<br />
consecutivos.<br />
No dia 12, a fermentação de uma nova “crise”, em escala mais grave porque<br />
atingiria o centro do governo Lula, o caso Erenice Guerra, ministra da Casa Civil, que<br />
teria viabilizado negócios nos Correios, intermediados por uma empresa de consultoria<br />
de seu filho, Israel Guerra. A manchete do dia, no Estado de São Paulo: “Denúncia de<br />
lobby faz oposição pedir saída da ministra da Casa Civil”.<br />
Erenice não só ocupava um cargo no coração do governo, como tinha sido a<br />
secretária-executiva de Dilma, razões mais do que suficientes para que o caso se<br />
estendesse ao máximo na exposição da mídia. A denúncia, originalmente lançada como<br />
matéria de capa na edição da revista Veja de 11 de setembro, ganhava as redações dos<br />
jornais e telejornais, dentro do espírito de “denúncia em rede midiática”, envolvendo os<br />
principais veículos hegemônicos de comunicação.<br />
O Estado de São Paulo manteria o tema como destaque em suas primeiras<br />
pági<strong>nas</strong> do dia 12 até o dia 18, com única exceção para a manchete do dia 16, que<br />
retomava a “crise” da Receita: “Inquérito da Polícia Federal contraria tese de crime<br />
político na Receita”. No dia 17, Erenice deixa o cargo na Casa Civil e as manchetes<br />
prosseguem duras contra o governo, e mais diretamente contra Lula, como demonstram<br />
as dos dias 22, “TV de Lula contrata empresa que emprega filho de Franklin”, e 23 de<br />
setembro, “Manifesto ataca autoritarismo de Lula”.<br />
O candidato da oposição, José Serra, aparece de quando em vez, jamais na<br />
postura defensiva ou sob “investigação”, mas altivo, em tom de superioridade, tal como<br />
ocorre na manchete do dia 7, “Serra diz que Lula fez deboche com quebra de sigilo na<br />
Receita”. O tom agressivo se acentua nos últimos dias do mês, agora envolvendo a<br />
“polêmica” do aborto, como é a manchete do dia 30, “Polêmica do aborto faz Dilma se<br />
explicar a líderes cristãos”.<br />
A linha geral de ataques, seguindo o mesmo roteiro de “crises” e “escândalos”, é<br />
utilizada pelo jornal O Globo, embora variando um pouco mais as manchetes. O<br />
candidato José Serra surge mais vezes, encarnando a imagem do político incisivo e com<br />
iniciativa (um dos seus problemas, apontado pelos próprios correligionários à época) tal<br />
como na primeira página do dia 9, “Serra reage e diz que Lula serve à estratégia
„caixa-preta‟ do PT” e do dia 11, “Serra: Lula „deixa roubar‟ e Dilma é „envelope<br />
fechado‟”.<br />
A Folha de São Paulo será mais persistente <strong>nas</strong> manchetes de cada “crise”<br />
divulgada pela mídia hegemônica. Começa o mês de setembro com a quebra do sigilo<br />
da filha de José Serra pela Receita Federal. As manchetes perdurarão por dias com<br />
variações sobre o mesmo tema, no dia primeiro de setembro, “Dado da filha de Serra<br />
foi acessado na Receita”; dia 2, “Sigilo fiscal da filha de Serra foi violado com<br />
procuração falsa”; dia 3, “Serra diz ter feito alerta sobre ataques a sua filha” e dia 4<br />
“Dados sigilosos da filha de Serra foram obtidos por filiado ao PT”.<br />
Nos dois primeiros dias, a denúncia do dolo; no terceiro dia, Serra surge como o<br />
cidadão atento que aponta o grave problema, e no quarto dia, o envolvimento direto do<br />
PT no “escândalo”. Seguindo o padrão de estender ao máximo a notícia ruim para o<br />
governo, o caso Erenice persistirá <strong>nas</strong> manchetes do jornal de 12 a 19 de setembro,<br />
ininterruptamente, para no dia 23 destacar na primeira página, “Com escândalos, cai<br />
vantagem de Dilma, mostra o Datafolha”.<br />
O fato curioso se daria no 5º. dia do mês, um domingo, quando a manchete<br />
rompe com o assunto do sigilo fiscal de Mônica Serra, para um tema diretamente ligado<br />
à “incompetência da candidata Dilma”: “Consumidor de luz pagou R$ 1 bi por falha de<br />
Dilma”. Foi a essa altura que as redes sociais começaram a participar de modo mais<br />
atuante no jogo eleitoral, como um contrapeso à cobertura distorcida por parte da mídia<br />
hegemônica, com os blogs dos jornalistas independentes trazendo a lume um jornalismo<br />
mais sério e investigativo a respeito dos “escândalos” publicados. No caso da notícia do<br />
consumidor defraudado, a reação se deu em uma proporção mais ampla e imediata,<br />
promovendo uma integração de múltiplas redes, como veremos a seguir.<br />
A reação das mídias sociais<br />
A essa altura, as redes sociais tomaram a sequência tendenciosa de manchetes<br />
contra a candidatura Dilma, fazendo surgir no twitter uma brincadeira espontânea<br />
atribuindo todas as mazelas do mundo à Dilma. Segundo o site Brasil Atual,<br />
“Internautas reagiram no twitter à manchete deste domingo (5) do<br />
jornal Folha de S.Paulo. O "Dilma Factsby Folha" apresenta "sugestões" de<br />
novas abordagens ao veículo, atribuindo todo tipo de mazela à candidata à<br />
Presidência da República Dilma Rousseff (PT). Da derrota da seleção<br />
brasileira na Copa do Mundo de 1998 à Guerra do Iraque, passando por
tramas de novela, os simpatizantes da candidata governista levaram o tema a<br />
um dos mais citados da tarde deste domingo (5).<br />
A brincadeira alcançou a terceira posição entre os temas mais comentados na<br />
rede, segundo o ranking Trending Topics Brazil” 8 .<br />
Ao mesmo tempo, a ação da grande mídia em estender ao máximo as notícias<br />
negativas contra o governo Lula e contra Dilma, não passava despercebida pelas mídias<br />
sociais, a integração com múltiplas redes e plataformas. Surgiam respostas, buscando<br />
debater o procedimento midiático, e elas vinham silenciosas, porém contundentes,<br />
oferecendo a possibilidade de compreender as novas formas de produção de conteúdo, e<br />
no caso, da própria transformação do jornalismo. Em 2 de outubro, véspera do primeiro<br />
turno, no Portal do Luis Nassif, o internauta Alfredo Machado publica uma postagem:<br />
“Esta disputa, na realidade uma verdadeira guerra, foi desenvolvida durante<br />
três ou quatro anos, uma batalha diária fartamente documentada – a<br />
documentação, ao lado da informação instantânea é a grande vantagem da<br />
internet e, justamente por isto, a grande preocupação dos poucos grupos que<br />
dominam o setor no país, todos inteiramente desacostumados à prática do<br />
contraditório, todos historicamente habituados a fazer o que queriam e bem<br />
entendiam, a apoiar e a destruir governos, tudo de cima para baixo, isto é,<br />
sem precisar dar satisfação a ninguém quanto aos métodos por eles utilizados<br />
para convencer a população de suas verdades (...)”<br />
O jornalista Luiz Carlos Azenha, do blog Viomundo, destacou os problemas de<br />
cobertura das eleições presidenciais de 2010 pela grande mídia, processos de distorção<br />
das notícias que já ocorrera <strong>nas</strong> eleições de 2006, e comentou sobre o processo seletivo<br />
das capas das revistas, que iam ao ar na edição dos sábados, no Jornal Nacional da TV<br />
Globo. Para Azenha, “o Jornal Nacional repercute acriticamente as capas da Veja que<br />
trazem denúncias contra o governo Lula e aliados, dando “per<strong>nas</strong>” ao assunto e<br />
repercutindo-o nos dias seguintes” 9 .<br />
No mesmo dia, Nassif publica em seu portal de notícias uma postagem<br />
comentando sobre a estratégia noticiosa da velha mídia. Na ocasião, a expectativa <strong>nas</strong><br />
redes sociais era sobre a tal „bala de prata‟, já mencionada no comentário de Ricardo<br />
Kotscho, e que seria o golpe decisivo proveniente de uma “carta na manga”, que a mídia<br />
hegemônica estaria reservando para os momentos decisivos da campanha, com o intuito<br />
de desmoralizar a candidatura Dilma:<br />
“Como já relatei em minha série “O caso de Veja”, e tenho feito em relação<br />
a inúmeras “denúncias” plantadas especialmente pela Veja, tendo a Folha a<br />
reboque, o centro dessas matérias é a confusão informacional. Juntam-se<br />
alguns fatos verdadeiros, porém não centrais, com suposições graves, porém<br />
8 http://www.redebrasilatual.com.br/multimidia/blogs/blog-na-rede/no-twitter-internautas-fazem-piadacom-criticas-da-folha-a-dilma,<br />
acesso em 29.06.2011.<br />
9 http://www.bocadigital.net/2010/04/reprise-de-2006-agora-como-farsa.html, acesso em 28.06.11.
não comprováveis e explicações técnicas incorretas, para esquentar as<br />
denúncias. É a chamada "mixórdia informacional", em que se jogam tantas<br />
informações desencontradas, descosturadas (muito por incapacidade de<br />
repórteres de juntar dados), que prevalece ape<strong>nas</strong> a manchete.<br />
Depois, quando começa o questionamento sobre a veracidade das<br />
informações, apresentam-se os fatos verdadeiros, que não são suficientes para<br />
comprovar as acusações graves”.<br />
No que diz respeito à importância das mídias sociais no cenário eleitoral,<br />
trazendo ao debate as novidades na hipermídia e traçando uma perspectiva de ação e<br />
mobilização social, ocorreu o evento “Blogosfera: a imprensa alternativa do século<br />
XXI?”, realizado em 21 de setembro de 2010, no Centro Cultural do Banco do Brasil,<br />
no Rio de Janeiro, e divulgado pelo blog Fazendomedia 10 e pelo Portal Luis Nassif 11 ,<br />
com vários jornalistas atuantes na blogosfera presentes. Luiz Carlos Azenha comentou<br />
que<br />
“A blogosfera passou a representar a voz de muita gente que não se via<br />
representada na mídia brasileira. Nosso caminho é lutar por mais vozes,<br />
transformando atores sociais e beneficiando a mídia com a participação de<br />
pessoas que não faziam parte dos debates. O sentido da blogosfera hoje é<br />
mais ou menos o da imprensa alternativa, mas as ferramentas são diferentes.<br />
Requer uma mudança na relação do jornalista, que precisa aprender a<br />
conviver com isso, se tornando mediador dos debates”.<br />
E Mauro Santayana, jornalista decano com passagem em diversos meios de<br />
comunicação, destacava sua impressão,<br />
“Acabou-se o monopólio da informação e da opinião, estamos voltando à<br />
democracia direta grega. Mas com um bilhão de pessoas nessa ágora, talvez<br />
até com o surgimento de um novo idioma a longo prazo. Vamos ter uma<br />
anarquia total ou vamos ter um despotismo novo? O capitalismo vai tentar<br />
controlar isso, vai tentar tirar o máximo proveito econômico, mas desta vez<br />
não será possível”.<br />
No início do mês de setembro, antes dos ataques articuladas da mídia<br />
hegemônica, as pesquisas de opinião apontavam vitória da candidata Dilma Rousseff<br />
ainda no primeiro turno. O Vox Populi, em sua medição tracking (diária) indicava 53%<br />
para a Dilma, 24% para José Serra e 8% para Marina. No meio do mês (dia 17), o<br />
levantamento do instituto mostrava Dilma com 51%, Serra com 25% e Marina,<br />
iniciando sua ascensão, com 11%. A partir daí, de modo expressivo nos últimos dez<br />
dias, começam a circular mensagens em emails e vídeos no Youtube, estimulando o<br />
preconceito contra a candidatura de Dilma. Mais adiante, um vídeo com fina produção<br />
10 http://www.fazendomedia.com/blogosfera-a-imprensa-alternativa-do-seculo-xxi/, acesso em 28.06.11<br />
11 http://www.advivo.com.br/blog/luis<strong>nas</strong>sif/o-velho-e-o-novo-bom-jornalismo#more, acesso em 28.06.11
apareceria no site do candidato José Serra 12 , descrevendo a catástrofe que seria um<br />
governo Dilma Rousseff 13 . O acirramento dos ânimos começava também a ocupar as<br />
redes sociais. Se por um lado a ciberespaço ganhava com a participação democrática,<br />
difundindo as opiniões as mais divergentes e propondo um debate de ideias não<br />
disponível <strong>nas</strong> mídias tradicionais, percebeu-se também o contraponto a esse espírito,<br />
ou seja, o processo calunioso, desvelando rancor e preconceito.<br />
O twitter, também conhecido como microblog, ganhou destaque <strong>nas</strong> eleições de<br />
2010 ao conectar redes de maneira ágil e rápida, a partir de comentários breves, de até<br />
140 caracteres. Para Santaella e Lemos, “as RSIs 3.0 (a mais recente das redes sociais<br />
da internet, e o twitter como uma das plataformas) reconfiguram fundamentalmente a<br />
estrutura de interação das interfaces midiáticas, adaptando-se em função e a partir da<br />
mobilidade” (SANTAELLA, LEMOS, 2010, p. 61).<br />
A mobilidade, juntamente com a integração com múltiplas redes, plataformas e<br />
funcionalidades, torna-se um atrativo para as mensagens rápidas, e temos conexão<br />
aberta para todos os acessos, “e tão contínua a ponto de se perder o interesse pelo que<br />
aconteceu 2 minutos atrás” (idem, 2010, p.62).<br />
É possível imaginar a dinâmica <strong>nas</strong> comunicações e <strong>nas</strong> relações, pautadas por<br />
essa velocidade na produção de ideias, e suas consequências nem sempre devidamente<br />
consideradas. Em uma experiência midiática em que o passado não importa (e como<br />
passado, pensemos nesse momento imediatamente anterior), e o futuro o tempo todo<br />
visualizado por um presente onipresente, as mensagens embora de impacto circunscrito<br />
ao momento, carregam a certeza do registro permanente. Ou seja, uma ideia<br />
disseminada mais ao sabor da emoção do que da razão pode trazer sérias consequências<br />
ao internauta.<br />
Foi o caso de Mayara Petruso, que analisaremos mais detidamente na segunda<br />
parte deste trabalho, e todo o impressionante cenário de xenofobia, que durante dias<br />
envolveu o ciberespaço. No twitter, “deparamo-nos com uma ecologia complexa de<br />
veiculação de ideias. A pergunta, „o que você está fazendo agora?‟, se transformou em<br />
„No que você está pensando agora?‟” (idem, 2010, p. 67). A multiplicação do<br />
12 Mais tarde retirado do site, sendo que a coordenadora da área digital da campanha do PSDB, Soninha<br />
Francine, conforme se ouve pela voz over na introdução, afirma que “o vídeo foi divulgado sem que ela<br />
soubesse”.<br />
13 http://youtu.be/-JKLKT8Z-jc, acessado em 29.06.11.
preconceito imediato, em um pensamento rancoroso e irreversível, considerou a<br />
velocidade e a entrega ao sabor dos fluxos e dinâmicas imediatos da comunicação,<br />
esquecendo as marcas indeléveis impressas a ferro e fogo na memória das redes.<br />
Assim, movida pela desilusão da derrota do candidato José Serra, uma parcela<br />
frustrada de seus seguidores – que assimilara o discurso da mídia hegemônica,<br />
exaustivamente registrados sob a chancela de um jornalismo opinativo, e no mais das<br />
vezes agressivo e intolerante em relação à candidatura oponente – lançou-se à<br />
disseminação de mensagens xenófobas contra os nordestinos, os quais segundo a<br />
mesma mídia hegemônica, teriam sido os grandes responsáveis pela vitória de Dilma<br />
Rousseff.<br />
em rede.<br />
Parte 2.<br />
Mayara Petruso seria o caso mais proeminente desta manifestação de xenofobia<br />
Os véus de Mayara: identidades e diferenças<br />
Em sânscrito, Maia designa a ilusão a que se reduz o mundo das aparências. O<br />
episódio Mayara Petruso, além do anagrama linguístico, pode revelar o preconceito e a<br />
xenofobia urdidos sutilmente em narrativas identitárias que favorecem a ilusão, véu<br />
protetor e isolante, de que o sujeito é uno.<br />
Do mesmo modo, o sujeito unificado acredita em que, no seu mundo, não<br />
existam fissuras ou diferenças que interpelam e descentram ininterruptamente suas<br />
certezas. Assim, sua biografia e seu hábitat ficariam protegidos contra as ameaças<br />
provocadas por aquilo que ele desconhece - rapidamente traduzido em algo estranho,<br />
estrangeiro 14 - lembrando que a etimologia de estrangeiro, segundo o Dicionário<br />
Etimológico da Língua Portuguesa (Machado, 2003), oferece-nos a origem latina,<br />
extraneu, que remete à “exterior”; “de fora”; “que não pertence à família; “estranho”;<br />
– um estrangeiro.<br />
14 O célebre texto de Sigmund Freud (1919), O estranho, aponta o retorno do que foi recalcado como uma<br />
das vias de acesso ao inconsciente. Sabe-se que a descoberta dos processos inconscientes estruturados<br />
como linguagem, por Freud, no final do século XIX, e relidos por Jacques Lacan, na segunda metade do<br />
XX, marcam uma ruptura importante na concepção de identidade como essencialista, bem definida,<br />
localizada e centrada nos processos racionais que caracterizaram o sujeito moderno, noções muito<br />
distintas das articulações contemporâneas sobre identidade (Hall,2003, p.23-46).
Os motivos pelos quais o estrangeiro/estranho assusta e é repelido com aversão 15<br />
não são invenções do ciberespaço, da sociedade reticular e midiática em que vivemos.<br />
Novo é o tom publicitário do brado xenofóbico de Mayara, como um dos resultados das<br />
articulações discursivas da grande mídia contrária à candidatura Dilma, retumbando em<br />
tempo real na internet: “Nordestisto não é gente. Faça um favor a SP, mate um<br />
nordestino afogado.” O apelo assertivo, o modo verbal imperativo da frase caracterizam<br />
o discurso autoritário (Orlandi, 1987) adensado pelo uso do humor chistoso e sacrificial<br />
revelados na aglutinação nordestino-quisto, nordestisto, que atribui significado<br />
simbólico negativo ao objeto de seu ódio.<br />
Nova é a velocidade do cantar entrecortado dos pássaros, sons curtos, agitados e<br />
agudos, isto é, twitter – na língua inglesa - que ecoa velhos e novos temores, como se<br />
pode perceber <strong>nas</strong> reverberações, na rede, do discurso de Mayara: “infelizmente quem<br />
decide a eleição não é quem lê jornal, e sim quem limpa a bunda com ele. Quem perdeu<br />
foi o Brasil! (@dilma_Bebada)”; “Sul/Sudeste vamos aguentar agora por 4 anos a<br />
escolha dos outros, viva a democracia/ o movimento O Sul é meu País (@CamiiMaia)”;<br />
“Tem gente que fala que todos os brasileiros são iguais discordo... Não quero e não sou<br />
igual ao povo do norte/nordeste... (@Merlinlipe)”; “Bem vou trabalhar porque não<br />
ganho bolsa família dos Nordestinos. Nem faço 2 filhos por ano pra ter mais bolsa<br />
família #Nordestisto (@ClaytonAmerico).” 16<br />
Poderíamos continuar a navegação ouvindo os ecos xenofóbicos e racistas que<br />
proliferaram na rede a partir da vitória de Dilma Rousseff, do PT e de Lula, nordestino,<br />
operário, barbudo, semiescolarizado, que não sabe falar inglês, considerações que se<br />
alastraram em emails coletivos, durante e depois das eleições.<br />
Destas ações discursivas, muitas observações podem ser feitas, a exemplo do<br />
efeito certeiro provocado pelas mídias tradicionais materializado no texto que propaga<br />
que os leitores dos grandes jornais, informados sobre o desenrolar da disputa política –<br />
tecido nos jornalões, como dito na parte 1 deste trabalho, não decidiram a eleição, mas<br />
sim os ignorantes, incautos, isto é, os nordestinos que não leem jornal. Do mesmo<br />
modo, o movimento O Sul é o meu País, a aversão a ser igual ao povo do<br />
Norte/nordeste ou a afirmação de que o sul trabalha, não ganha o bolsa família dos<br />
15 Vale dizer que, etimologicamente, a palavra xenofobia significa “ a aversão aos estrangeiros”, do<br />
grego xénos, “estrangeiro”, e phóbos, “temor” (Houaiss, 2009).<br />
16 Mais informações, consultar http://youtu.be/zYSUVVzccTg
nordestinos, põem em jogo inúmeras representações identitárias mobilizando uma<br />
constelação de significados simbólicos.<br />
Tomaz Tadeu da Silva (2009), em um texto seminal, apoiado em autores chaves<br />
da linguística estrutural e recorrendo também aos teóricos pós-estruturalistas, explica<br />
que as identidades são criadas por atos de linguagem, por nomeações, como faz a<br />
internauta ao se localizar como pertencente ao sul/sudeste do país. Entretanto a<br />
linguagem verbal, já disse o linguista Ferdinand de Saussure, no começo do século XX,<br />
é um sistema de diferenças, os signos sul/sudeste só podem ser compreendidos em<br />
conexão com os que não são sul/sudeste, isto é, os signos norte/nordeste. Isso significa<br />
que todo signo verbal só é entendido na relação e conexão com outro signo verbal<br />
gerando uma cadeia de produção de signos e de significações sempre incompletas, já<br />
que o significado de um signo é sempre outro signo ad infinitum. Esta condição da<br />
linguagem imprime ao conceito de identidade o traço da diferença, daquilo que o signo<br />
não é, por isso, “nenhum signo pode ser reduzido a si mesmo, à identidade” (SILVA,<br />
2009, p.79). Dada a incompletude do signo, a identidade será sempre uma sutura, um<br />
constructo, entretanto vazado, fragmentado, que contém o que não é.<br />
De outro modo, a linguagem verbal não é ape<strong>nas</strong> um sistema linguístico, é<br />
heteróclita, necessita das relações sociais para existir, “o signo e a situação social em<br />
que se insere estão indissoluvelmente ligados. O signo não pode ser separado da<br />
situação social sem ver alterada sua natureza semiótica” (BAKHTIN, 1988, p.62). A<br />
produção da identidade e da diferença, resultado dos liames entre linguagem e<br />
sociedade, contempla igualmente relações de poder, vetores de força impressos nos<br />
sistemas sociais e culturais/simbólicos, gerando estruturas classificatórias que, por seu<br />
turno, engendram a ordenação da vida de relação em grupos, classes, e promovem as<br />
distinções entre o fora e o dentro, entre “nós” e “eles”. Classificar, dividir significa<br />
hierarquizar, de onde a atribuição de valores ao que foi classificado, dividido, posto<br />
acima ou abaixo no eixo das importâncias recrudescendo as marcas de poder na<br />
produção das identidades e da diferença (Silva, 2009).<br />
Além de representadas, as identidades são disputadas e seus significados<br />
negociados na urdidura social. Os atos discursivos em análise neste trabalho, revelam,<br />
além da valorização negativa atribuída às representações identitárias<br />
norte/nordeste/nordestino, a tentativa de fixar uma identidade cultural local como sendo<br />
a norma, a do sul/sudeste, versus a identidade norte/nordeste, avaliada como a diferença<br />
a ser destruída, afinal o nordestino se transforma em nordestisto, um quisto a ser
extirpado. Vale notar que este chiste adquiriu o estatuto de um hashtag, #Nordestisto, “o<br />
aperto de mão secreto do Twitter” 17 – uma maneira dos usuários desta rede social<br />
organizarem e pesquisarem mensagens. Normaliza-se a identidade local, sul/sudeste,<br />
como sendo a verdadeira e mais importante, normaliza-se, pela ciberclassificação, a<br />
identidade local norte/nordeste como sendo o quisto a ser retirado do país, já que foi o<br />
Brasil quem perdeu com a vitória de Dilma, parafraseando uma das mensagens racistas.<br />
Se as identidades devem ser disputadas no tecido social, as colocações xenofóbicas<br />
impedem qualquer negociação.<br />
O episódio também nos leva a pensar sobre as narrativas identitárias erigidas em<br />
torno da identidade nacional entremeada à identidade local, de classe e de gênero.<br />
Vociferam as internautas: “Sul/Sudeste vamos aguentar agora por 4 anos a escolha dos<br />
outros, viva a democracia/ o movimento O Sul é meu País (@CamilMaia)”; “Tem gente<br />
que fala que todos os brasileiros são iguais discordo... Não quero e não sou igual ao<br />
povo do norte/nordeste... (@Merlinlipe)”(...) “Nem faço 2 filhos por ano pra ter mais<br />
bolsa família #Nordestisto (@ClaytonAmerico).”<br />
Ainda que o processo da globalização tenha contribuído para desestabilizar as<br />
narrativas que sustentam a crença de uma cultura nacional unificada, graças aos fluxos<br />
de informação que rapidamente convidam à montagem e à remontagem de<br />
representações de identidade impedindo sua homogeneização e ao próprio processo de<br />
hibridismo contido em todas as nações moder<strong>nas</strong> (Hall, 2003), pode-se observar <strong>nas</strong><br />
mensagens acima, velhos estereótipos que tentam unificar a identidade nacional, “o meu<br />
país”, em torno das características, muito provavelmente físicas, do percurso intelectual<br />
e da posição econômicas das pessoas “do Sul”, adensando a identidade local. Fácil<br />
supor que esta unicidade é tramada a partir da ideia, sem qualquer validade científica, de<br />
raça, compreendida aqui como categoria discursiva (Hall, 2003), e também pela<br />
identidade de classe e de gênero.<br />
Na afirmação que reconhece as diferenças no Brasil, mas que as rejeita com<br />
veemência, pressupõe-se que o seu país, o sul, seja uma gentil comunidade de brancos,<br />
loiros, de olhos claros, de cabelos lisos, altos, inteligentes, escolarizados, cumpridores<br />
de seus deveres como trabalhadores, consequentemente de classe social abastada<br />
economicamente, plenos de bens materiais, tecnológicos e modernos. Somado ao fato<br />
17 Aposto contido no título da matéria jornalística publicada pela Folha de São Paulo, 29 de junho de<br />
2011. Caderno TEC: “Hashtag, o aperto de mão secreto do Twitter, se difunde”.
de que como homem escolarizado e educado “não faz dois filhos por ano” em troca do<br />
bolsa-família. Marcas simbólicas valorizadas positivamente pela ideologia hegemônica,<br />
em detrimento “dos outros”, nordestinos, que deram a vitória à Dilma: pretos ou pardos,<br />
morenos, de olhos negros, cabelos crespos, baixos, ignorantes, grosseiros, analfabetos e<br />
despossuídos de qualquer signo de modernidade. Nestas narrativas xenofóbicas, o Brasil<br />
se unifica no Sul idealizado.<br />
Interessante notar que o discurso em torno do recrudescimento identitário<br />
demonstrado parece incompatível com a pluralidade de vozes materializadas pelas redes<br />
de informação em suas múltiplas combinações de tempo-espaço, desprezando as<br />
fronteiras, as linearidades típicas das sociedades presas às soberanias dos territórios<br />
cujos rastros apontam para o medo do forasteiro, estrangeiro e estranho – o que está em<br />
causa na xenofobia voltada ao eixo norte/nordeste do país.<br />
Já dissemos que a aversão ao que vem de fora não é nova. Zigmunt Bauman<br />
(2004) retorna à concepção das cidades pré-moder<strong>nas</strong> para demonstrar que, naquele<br />
momento, não era permitido permanecer estranho por muito tempo, ou as pessoas que<br />
vinham de fora, estranhas à cidade, eram expulsas ou domesticadas. O mesmo pode-se<br />
ler em Duby (1998), ao contar que os vikings ao invadirem a Europa Medieval,<br />
chegavam, saqueavam e, durante a má estação, instalavam-se permanentemente,<br />
construíam acampamentos na foz dos rios e hibernavam. Os acampamentos se tornavam<br />
mercados e “os períodos de agressividade e os de negociação se alternavam” (Duby,<br />
1998, p.55).<br />
Entretanto, na modernidade líquida, estimulados pela insegurança gerada pela<br />
flexibilidade de todos os vínculos, dos afetivos aos de trabalho, há um apelo, quase<br />
universalizado, à desconfiança, à vigilância, consequentemente, à clausura e ao medo do<br />
outro, especialmente daquele não contemplado na comunidade de semelhança. Para<br />
Bauman (2004), a procura pela comunidade da mesmice significa um recuo em relação<br />
à alteridade externa e à interação interna, o que também podemos articular ao<br />
recrudescimento de certos investimentos identitários impulsionados pelo medo, uma<br />
emoção social, e propagadores de uma agressividade destruidora, à procura de culpados<br />
por todas as intranquilidades pós-moder<strong>nas</strong>, a exemplo da morte aos nordestinos<br />
estimulada por Mayara Petruso.<br />
Se a pós-modernidade nos inquieta com sua velocidade e seus processos e fluxos<br />
caóticos, ela também possibilita rearticulações das marcas e das representações<br />
identitárias, descartando algumas, criando outras. Será esta a causa da xenofobia pós
eleições 2010? Os nordestinos estariam atravessando os espaços interditos e<br />
enclausurados das camadas superiores globalizadas, da qual seguramente tantas jovens<br />
como Mayara se incluem como partícipes? Nos saguões dos aeroportos, <strong>nas</strong> praças da<br />
alimentação de alguns shoppings centers, <strong>nas</strong> salas de cinema, nos grandes magazines,<br />
<strong>nas</strong> grandes livrarias da cidade, mudando o ambiente? Sim, parece justa a resposta.<br />
Ainda este ano, Fábio Marão, diretor de marketing da empresa aérea Azul,<br />
concebida para atender a nova classe média – em grande parte trazendo, em seu bojo,<br />
nordestinos ou seus descendentes – narrou 18 em palestra para um grupo de estudantes<br />
universitários, em São Paulo, um episódio exemplar: ao transportar um caminhoneiro<br />
vestido de shorts, chinelos, com barba por fazer e banho por tomar, as comissárias de<br />
bordo, com muita delicadeza, convidaram o novo consumidor do espaço aéreo a se<br />
retirar da aeronave, dirigir-se aos banheiros do aeroporto e tomar banho. Sugerindo que<br />
em suas próximas viagens ele se banhasse e se vestisse adequadamente para a situação.<br />
Podemos relacionar este caso à descrição dos ritos de passagem, estudados por<br />
Victor Turner (apud Bauman, op.cit), necessários para que um indivíduo ingresse em<br />
um novo status social. Bauman (op.cit:154), aproxima esta situação ao <strong>nas</strong>cimento de<br />
um indivíduo <strong>nas</strong> ordens do Estado: “antes que os recém-chegados em busca de<br />
admissão a um locus social ganhem acesso(...) eles precisam despir-se de todos os<br />
adornos de seu encargo anterior.”<br />
Não será esta a condição dos nordestinos achincalhados pelos paletós e gravatas?<br />
Para serem incluídos e assumirem a identidade de consumidor, as elites dominantes os<br />
convidam a se despirem de todas as suas outras marcas de identidade. Nus, em<br />
quarentena nos banheiros dos aeroportos, para assim serem aceitos sob uma nova<br />
representação identitária e, quem sabe, libertarem-se das vozes autoritárias e<br />
excludentes que ainda navegam por ai.<br />
18 “A nova classe média”. Palestra proferida na Faap – Faculdade de Comunicação e Marketing da<br />
Fundação Armando Álvares Penteado, por Fábio Marão, diretor de marketing da empresa aérea Azul.
Conclusão<br />
Procuramos demonstrar em nosso trabalho a ocorrência de uma poderosa onda<br />
xenofóbica, propulsada pelas mídias sociais logo após a vitória de Dilma Rousseff ao<br />
cargo de presidenta do Brasil. Manifestações que <strong>nas</strong>ceram de um caldo de rancor e<br />
intolerância nos discursos da mídia hegemônica, e que logo ganharam a agilidade e a<br />
portabilidade das redes sociais.<br />
Redes sociais que acolheram também, e principalmente, a oportunidade de<br />
oferecer um contraponto de ideias, graças aos jornalistas-blogueiros e internautas<br />
comuns, que se propuseram a esclarecer os pontos não devidamente investigados das<br />
denúncias sucessivamente produzidas pelos veículos hegemônicos de comunicação.<br />
Em um tempo líquido-moderno, para utilizar a expressão consagrada de<br />
Bauman, o preconceito étnico, social, cultural, tende a surgir como uma forma<br />
desesperada de defesa contra o outro desconhecido. Desprovidos do Estado social e<br />
envolvidos por uma globalização negativa, seletiva, geramos o medo e ficamos à mercê<br />
da desconfiança, cada vez mais distantes da compreensão de um tempo generoso, onde<br />
encontraríamos a solidariedade e o prevalecimento das virtudes morais.<br />
As mídias sociais terão uma presença cada vez mais ativa em nosso cotidiano,<br />
oferecendo a oportunidade de que todas as vozes invisibilizadas <strong>nas</strong> mídias<br />
hegemônicas, possam tecer suas redes e recompor a harmonia e a beleza da diversidade<br />
humana.
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