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O mais perigoso<br />
de todos<br />
Zack, veterano sargento do exército americano, perde a paciência<br />
depois que um menino sul-coreano que o acompanhava é morto<br />
por um franco-atirador, e atira à queima-roupa em um desarmado<br />
oficial norte-coreano. Morte ou assassinato? Talvez não faça diferença<br />
em uma guerra, no caso, a da Coréia, nos anos 50. Ou faz?<br />
O que contam as regras? O que pensa o sargento? O que diz seu<br />
comandante? O mundo é um lugar abarrotado de perguntas em um<br />
filme de Samuel Fuller, e embora cada um de nós tenha o direito<br />
inalienável de buscar suas próprias repostas, uma enormidade de<br />
regras e códigos nos conforma. Viver é esbarrar a cada esquina com<br />
uma contradição insuperável. Atordoado, confuso, cansado, Zack<br />
grita para o prisioneiro em Capacete de Aço (The Steel Helmet,<br />
1951): “Se você morrer, eu te mato!”<br />
Fuller faz cinema sem meias palavras. Atém-se aos fatos, aos<br />
detalhes mais mundanos, porém não menos cruciais, sem distinção<br />
aparente entre o pessoal e o político. Sua decupagem é algo excessiva,<br />
assim como o uso da música. Os planos são instáveis. A trama<br />
se desenvolve em saltos, como se fosse narrada por alguém absolutamente<br />
transtornado, afogado no mundo contraditório do qual<br />
faz parte e ao qual dá vida. São filmes diretos, bruscos, brutos, pouco<br />
elegantes. Eles refletem o temperamento passional do cineasta,<br />
sua urgência incontida, seu olhar objetivo, porém sempre disposto<br />
a perder-se na emoção. Em um longa de Fuller, o movimento é um<br />
misto de precisão dramática e emoção.<br />
Fuller foi repórter policial. Lutou na Segunda Guerra. Fez suas<br />
primeiras imagens em um campo de concentração. Voltou com a<br />
convicção de que o tempo do cinema é o presente e travou um confronto<br />
franco com a sociedade de sua época. Embora filmasse de<br />
dentro dos estúdios hollywoodianos, sempre esteve à margem. Fuller<br />
pertence a outro lugar. Ele mostra outro lado. “Entra pela porta<br />
dos fundos”, conta Inácio Araújo. Seus personagens são anarquistas,<br />
apegados com unhas e dentes ao seu livre arbítrio. Eles não acredi-<br />
tam em códigos pré-estabelecidos e estão dispostos a pagar altos<br />
preços por isso. São covardes apaixonados, heróis assassinos, prostitutas<br />
regeneradas, jornalistas inescrupulosos, homens em guerra.<br />
Eles estão inevitavelmente em rotas de colisão violentas e dissolvem-se<br />
em emoção. Somos todos Jekyll e Hyde, ao mesmo tempo,<br />
para todo o sempre.<br />
A guerra é como a metáfora fundamental ou o princípio organizador<br />
desse cinema. É o que Fuller, em uma participação especial,<br />
diz ao personagem de Jean-Paul Belmondo em O Demônio<br />
das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), de Jean-Luc Godard, quando<br />
ele o pergunta o que é o cinema: “É um campo de batalha. É amor,<br />
ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção”. Em Fuller,<br />
um corte, um plano-sequência, um close, um movimento, a câmera<br />
subjetiva presidem um conjunto de perspectivas e proposições não<br />
negociáveis. O que torna cada um de seus gestos uma espécie de ato<br />
de ruptura, de resistência, diante de um mundo injusto e absurdo,<br />
sem Deus. Como disse certa vez Francis Vogner dos Reis, Fuller talvez<br />
tenha sido o cineasta mais perigoso da história. Samuel Fuller:<br />
Se você morrer, eu te mato! é uma retrospectiva dedicada a exibir<br />
e fomentar a discussão a respeito desse que é um dos cineastas mais<br />
originais e influentes da história do cinema.<br />
Uma boa mostra a todos.<br />
Julio Bezerra<br />
Curador<br />
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