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Concurso de Contos - Petros

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Petrobras na minha vida<br />

O chaveiro<br />

5º Lugar<br />

Autora: Sara Denise Schaquinich<br />

A Petrobras na minha vida<br />

6º Lugar<br />

Autor: Manoelito Pereira da Silva<br />

O melhor lugar do mundo<br />

7º Lugar<br />

Autor: Marcio 1Aurélio<br />

Martins


5º Lugar<br />

Autor: Sara Denise Schaquinich<br />

Mineira <strong>de</strong> Eugenópolis, adotou o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro como morada. Trabalhou no Edifício<br />

Se<strong>de</strong> da Petrobras (Edise) entre os anos <strong>de</strong> 1968<br />

a 1990, sempre na área <strong>de</strong> RH. Alinha o gosto<br />

pelo ofício literário a uma causa nobre: ler para<br />

pessoas cegas, hábito que adquiriu após a<br />

aposentadoria. Por dois anos, foi voluntária no<br />

Instituto Benjamin Constant. Hoje, grava a leitura<br />

em fita cassete para uma amiga que não enxerga.<br />

Já venceu alguns concursos <strong>de</strong> contos e <strong>de</strong><br />

poesias na Ampep, mas não esperava estar entre<br />

os finalistas. “Estou imensamente feliz.” Além da<br />

leitura, gosta <strong>de</strong> cinema e <strong>de</strong> viajar. Seus livros<br />

<strong>de</strong> cabeceira são ‘As vinhas da ira’, <strong>de</strong> Steinbeck,<br />

e ‘Ensaio sobre a cegueira’, <strong>de</strong> José Saramago.<br />

Admira o colombiano Gabriel García Márquez<br />

pelo conjunto da obra. Em breve, lançará uma<br />

publicação infanto-juvenil sob o título ‘Bisteca<br />

– a biografia <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>la’.<br />

O chaveiro<br />

Meu pai era eletricista dos bons, todo mundo<br />

na cida<strong>de</strong> dizia isso. Trabalhava na Prefeitura,<br />

mas fazia também serviços pra qualquer um que<br />

pedisse ajuda; precisou, ele estava lá,<br />

consertando, emendando, <strong>de</strong>sfazendo perigos.<br />

Era uma profissão arriscada, eu sabia, e em meus<br />

sonhos ele sempre aparecia pousando nos fios,<br />

feito os passarinhos.<br />

Uma vez eu estava tomando banho e levei um<br />

baita choque no chuveiro, meu <strong>de</strong>do até ficou<br />

agarrado, tive que puxar pra soltar a mão, tirou<br />

2<br />

uma lasca <strong>de</strong> carne, o cheiro <strong>de</strong> queimado veio<br />

grosso, cortante, minha mãe levou um susto<br />

daqueles. O acontecido arranhou um pouco a<br />

reputação do meu pai, a notícia correu pela<br />

cida<strong>de</strong>; imagine, como é que na casa <strong>de</strong> um<br />

eletricista um menino fica com o <strong>de</strong>do agarrado<br />

no chuveiro.<br />

Trabalhava muito, chegava em casa cansado,<br />

algumas vezes ficava bravo, mas era camarada,<br />

era nosso abrigo e segurança. Estava sempre por<br />

perto, era <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za sem fim com minha<br />

mãe. Sei que nem todo pai e mãe gostam <strong>de</strong><br />

criança, não acho <strong>de</strong>feito nisso, é que tem gente<br />

que tem osso no coração, e guarda o seu gostar<br />

pra outras coisas. Já tem gente que acha que filho<br />

dos outros é que nunca presta.<br />

Na minha casa aprendi que, mesmo levando<br />

beliscões ou ficando <strong>de</strong> castigo, eu era muito<br />

amado, e confiava nesse amor. Mas, embora<br />

amado e protegido, por vezes me sentia inseguro,<br />

ficava triste sem saber o motivo, pensava que ia<br />

<strong>de</strong>sabar, como um muro velho que não leva<br />

conserto, e tinha medo.<br />

Meus pais, eu percebia, careciam também <strong>de</strong><br />

ficar sozinhos <strong>de</strong> vez em quando, sentir a alma,<br />

sei lá. Acho que isso fazia bem pra gente, porque<br />

<strong>de</strong>pois que passava essa fome <strong>de</strong> silêncio, a casa<br />

ficava alegre, dava vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar junto. E aí<br />

meu pai dava um jeito <strong>de</strong> arranjar algum passeio,<br />

e saíamos pela rua exibindo o nosso querer bem.<br />

Um dia chegou um circo na cida<strong>de</strong>. Fomos nós<br />

três, arrumados e sorri<strong>de</strong>ntes, bem cedo, pra<br />

pegar os melhores lugares na arquibancada.<br />

Minha mãe, a mais linda <strong>de</strong> todas as mães, sorria<br />

<strong>de</strong> mansinho, numa felicida<strong>de</strong> que matava <strong>de</strong><br />

inveja as mães dos outros meninos.<br />

Tudo ali encantava: o palhaço, o trapézio, o<br />

domador corajoso, tudo. Mas nada se comparava<br />

à moça que dançava em cima do cavalo branco.<br />

Ela vestia um maiô vermelho, brilhante, os<br />

cabelos estavam presos com flores e fitas


coloridas... que visão, meus olhos não<br />

conseguiam se <strong>de</strong>sviar <strong>de</strong>la, a minha estrela guia.<br />

Chamava-se Isadora. Meu coração miúdo parecia<br />

estourar cada vez que o cavalo fazia a volta e ela<br />

ficava <strong>de</strong> frente pra mim, a boca vermelha<br />

querendo me engolir.<br />

À noite, sonhei com Isadora. Ela e meu pai, os<br />

dois, rodopiando nos fios. Acor<strong>de</strong>i sufocado, tirei<br />

meu pai do meu sonho e continuei, acordado, a<br />

sonhar com ela, meu corpo tremendo, a<br />

respiração difícil, e ela girando, girando, me<br />

levando com ela pra um lugar ainda<br />

<strong>de</strong>sconhecido pra mim, coitado <strong>de</strong> mim. Falei<br />

com meu pai da minha paixão, ele disse que isso<br />

ia passar, era coisa <strong>de</strong> criança, que um dia eu<br />

conheceria outra moça, que a vida nos leva sem<br />

erro, cada qual para o seu cada qual.<br />

Minha mãe não chegava muito perto <strong>de</strong>ssas<br />

conversas, estava sempre ocupada com a casa,<br />

com as costuras que fazia, com as freguesas, lá<br />

no quartinho dos fundos, pra on<strong>de</strong> ela corria<br />

sempre que alguma coisa a fazia ficar emburrada.<br />

Nessas horas meu pai tentava um carinho, roçava<br />

<strong>de</strong> leve o rosto <strong>de</strong>la com um beijo, e pronto, ela<br />

se encolhia como um animalzinho, o rosto ficava<br />

rosado e brilhante, parecendo sementes <strong>de</strong> romã.<br />

Meu pai dizia que minha mãe tinha porte <strong>de</strong><br />

princesa, que era altaneira, eu odiava essa<br />

palavra, não conseguia enten<strong>de</strong>r o que ela queria<br />

dizer. Altaneira, pra mim, parecia era nome <strong>de</strong><br />

árvore, imaginava minha mãe toda verdinha,<br />

com os galhos esticados, prontos para segurar e<br />

proteger.<br />

Uma tar<strong>de</strong> ele chegou com um envelope,<br />

dizendo que era uma carta do tio Nicanor, que<br />

morava no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Leu a carta muito sério,<br />

e olhava meio enviesado para o animalzinho já<br />

encolhido, encostado na pare<strong>de</strong>. Meu tio<br />

chamava meu pai para ir ao Rio fazer uma prova<br />

que podia dar a ele um emprego muito bom numa<br />

gran<strong>de</strong> empresa, a melhor que tinha, ele não podia<br />

Petrobras na minha vida<br />

3<br />

per<strong>de</strong>r, era bem preparado, estudado, seria tiro e<br />

queda, ele passaria nas provas. Não gostei muito<br />

<strong>de</strong> todo aquele palavreado, <strong>de</strong>sconfiei logo, o<br />

bom emprego ia separar ele da gente.<br />

Tio Nicanor era o irmão mais velho, e muito<br />

engraçado. Sempre que ia à nossa casa gostava<br />

<strong>de</strong> reunir a meninada na praça pra falar bobagens,<br />

coisas <strong>de</strong> homem, ele dizia, e ia ensinando um<br />

monte <strong>de</strong> safa<strong>de</strong>zas mesmo, que ele garantia ia<br />

ser <strong>de</strong> muita precisão quando crescêssemos.<br />

Meu pai foi então ao Rio <strong>de</strong> Janeiro com os<br />

documentos que meu tio disse serem necessários<br />

e, quando voltou, veio cheio <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s: a<br />

cida<strong>de</strong> era linda, tinha ido à praia, viu muita<br />

mulher bonita, mas nenhuma tão bonita quanto<br />

a sua. Ora, <strong>de</strong>ixa disso, falou minha mãe, já<br />

virando romã. E quando é que você vai fazer a<br />

tal da prova, eles vão avisar, é só esperar o<br />

telegrama.<br />

Quando o aviso chegou, minha casa virou um<br />

alvoroço só. Meu pai, que já tinha começado a<br />

estudar feito um doido, caprichou nos<br />

preparativos. Levantava ainda mais cedo, dormia<br />

tar<strong>de</strong>, pedia ajuda quando alguma matéria era<br />

mais complicada. Minha mãe fazia a parte <strong>de</strong>la,<br />

rezava o terço, ia à igreja mesmo fora dos dias<br />

<strong>de</strong> missa. E não <strong>de</strong>scuidava da alimentação: ele<br />

precisava <strong>de</strong> comida forte, e dava <strong>de</strong> fazer<br />

mingau, banana amassada com melado, cada bife<br />

<strong>de</strong>sse tamanho! Ele até podia não passar nas<br />

provas, mas engordar uns bons quilos, ah, ia<br />

engordar.<br />

E ele passou nos exames. Foi um dia muito feliz<br />

pra nossa família, que até aquele momento não<br />

tinha pensado que o mal disso tudo ia ser viver<br />

sem a presença do meu pai. Esse dia chegou<br />

<strong>de</strong>pressa. Vi minha mãe arrumando as malas:<br />

leva essa camisa vermelha, pra ficar chique, e<br />

esse agasalho pra o caso <strong>de</strong> fazer frio, e essa<br />

calça, e essa meia... Sentia que toda aquela roupa<br />

ia no lugar que <strong>de</strong>via ser <strong>de</strong>la, a mulher <strong>de</strong>le, ela


é que estava sendo dobrada, colocada na mala,<br />

sem respiração, o corpo apertado da sauda<strong>de</strong> que<br />

já chegava.<br />

O ônibus partiu cedinho, sem ligar para as<br />

lágrimas <strong>de</strong> minha mãe, para o espanto em meu<br />

rosto. No peito, meu coração virou um lago, cheio<br />

<strong>de</strong> ondas subindo e <strong>de</strong>scendo, e eu não sabia o<br />

que fazer com elas. Aí, chorei. Como meu pai<br />

podia sair dali, um lugar on<strong>de</strong> a felicida<strong>de</strong> estava<br />

tão pertinho <strong>de</strong> nós? Minha mãe disse que agora<br />

ele ia se pendurar nos fios da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, que<br />

Deus ajudasse pra ele não se encantar <strong>de</strong>mais.<br />

Um dia eu volto, logo, logo, vocês vão ver. E<br />

voltou assim que teve a primeira folga no<br />

trabalho. Parecia que o Menino Jesus tinha<br />

entrado lá em casa, <strong>de</strong> tanta alegria que era. E a<br />

gente rodava, agarrado, apertado num abraço<br />

bem gran<strong>de</strong>. E aí veio a hora dos presentes: para<br />

minha mãe, ele trouxe uma sombrinha branca,<br />

com babados em volta, uma beleza <strong>de</strong> tão<br />

<strong>de</strong>licada. Nem no cinema, nem nas revistas eu<br />

nunca tinha visto uma sombrinha daquelas. Pra<br />

mim, ele trouxe um chaveiro. Mas não era um<br />

chaveiro furreca, sem graça. Não, era um chaveiro<br />

grandão, redondo, ver<strong>de</strong> e amarelo, com um<br />

vidro, eu acho que era vidro, bem no meio, e lá<br />

<strong>de</strong>ntro um líquido preto, sumarento, que me<br />

espantou. E então meu pai explicou, com voz <strong>de</strong><br />

quem sabe <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>sse mundo: isso é petróleo,<br />

é disso que se faz a gasolina. Meus olhos<br />

cresceram, minha mãe <strong>de</strong>u um gritinho, que só<br />

nós ouvimos: gasolina? A que faz o carro andar?<br />

Isso mesmo, bem na nossa frente estava um<br />

homem que nunca eu soube ter tantos tesouros<br />

escondidos, tinha pulado fora dos fios e postes<br />

da cida<strong>de</strong> pequena. Sim, senhora, gasolina, óleo<br />

para automóvel, querosene, a parafina! Aquela<br />

que faz velas, vocês acreditam? Minha mãe <strong>de</strong>u<br />

um risinho apertado, <strong>de</strong> orgulho do seu homem,<br />

e fez com a cabeça que sim.<br />

E sabem do que mais? Até no tecido do seu<br />

4<br />

vestido tem petróleo, ele disse. E continuou,<br />

falando como um professor lá da minha escola:<br />

tem petróleo nos remédios, nas tintas, no batom<br />

que você usa, mulher, nos perfumes, nas colas e<br />

nas borrachas. Talvez por cansaço ele parou um<br />

pouco com a aula, fez uma pausa, olhou pro teto,<br />

levantou o <strong>de</strong>do e disparou: “Ah, tem petróleo<br />

no piche!” Levei um susto, no piche era fácil<br />

adivinhar pelo negrume, imagine, eu já tinha<br />

visto o tal do petróleo, então!<br />

Fomos dormir cedo aquela noite, tinha sido<br />

muita emoção. No meu quarto, eu fiquei<br />

imaginando como meu pai fazia para tirar aquele<br />

rosado do rosto <strong>de</strong> minha mãe, ainda mais <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> tantos dias longe <strong>de</strong>la. Mas um homem que<br />

sabia lidar com a eletricida<strong>de</strong> não ia saber tratar<br />

uma mulher? Pela manhã, olhando minha mãe,<br />

tive a certeza <strong>de</strong> que meu pai era mesmo um<br />

bamba.<br />

A partir <strong>de</strong> então, em todas as folgas meu pai<br />

reunia os amigos lá em casa pra falar do seu<br />

trabalho na Petrobras, a mais importante empresa<br />

do Brasil, que era orgulho dos brasileiros,<br />

etecétera e tal, e os vizinhos, por sua vez, se<br />

achavam também importantes por serem amigos<br />

<strong>de</strong> um alto funcionário.<br />

Eu e a Petrobras passamos a ter uma relação<br />

muito chegada mesmo, eu sabia <strong>de</strong> um tudo sobre<br />

ela, ajudado, é lógico, pelas leituras das revistas<br />

que meu pai trazia.<br />

Passei a ser o filho do Seu Osvaldo, aquele da<br />

Petrobras, diziam. Os moleques meus amigos<br />

agora tinham mais respeito, e o que eu falasse<br />

era lei pra eles. Comecei a inventar histórias, até<br />

<strong>de</strong> já ter visitado a casa “daquelas mulheres” eu<br />

inventei. E <strong>de</strong>screvia, tintim por tintim, como era<br />

a casa <strong>de</strong>las, eles pediam <strong>de</strong>talhes das minhas<br />

intimida<strong>de</strong>s, mas eu caía fora, dizia que tem<br />

coisas que um homem não <strong>de</strong>ve dizer, um dia eles<br />

iam saber.<br />

O Alberto então me contou que o pai <strong>de</strong>le era


todo sério, revista <strong>de</strong> mulher pelada não entrava<br />

na casa <strong>de</strong>le, filho <strong>de</strong>le nunca visitaria “aquelas”<br />

mulheres. Contou também que bem que viu o pai<br />

dando umas olhadas numa revista cheinha <strong>de</strong><br />

mulher pelada, naquelas poses <strong>de</strong> tentação, e que<br />

antes <strong>de</strong> jogar fora ele espiava, dizendo valhame<br />

Deus, franzindo a sobrancelha, disfarçando,<br />

safado, aquele velho.<br />

Com meu pai fora <strong>de</strong> casa tanto tempo, passei<br />

a me sentir mais perto <strong>de</strong> minha mãe, a notar<br />

como era bonito o jeito que ela fazia com as mãos<br />

quando falava, como era suave a voz <strong>de</strong>la, mesmo<br />

quando brigava comigo. Alta e magra, o cabelo<br />

era castanho e todo tingido pelo sol. Ao andar,<br />

parecia que estava acima <strong>de</strong> tudo, como se uma<br />

fumaça fininha andasse junto com ela.<br />

Lembro que quando os meninos me falaram<br />

pela primeira vez que as crianças nascem porque<br />

o pai e a mãe fazem “aquilo”, eu não conseguia<br />

imaginar minha mãe numa cena <strong>de</strong>ssas. Não, mãe<br />

é diferente, não podia acreditar, fiquei muitos<br />

dias amuado, quase doente mesmo. Aí eles<br />

disseram que mãe é igual a toda mulher,<br />

igualzinho, não vê quando o bebê chora? Elas<br />

não balançam o pobrezinho do mesmo jeito? E<br />

não enrolam o pobrezinho num monte <strong>de</strong><br />

cobertor, mesmo se não está frio, do mesmo jeito?<br />

Mas não é só mãe não, falou alguém, toda mulher<br />

age assim. Então, não é tudo igual? Acreditei.<br />

O tempo ia passando, chegou o dia <strong>de</strong> mais uma<br />

folga <strong>de</strong> meu pai, esperamos, ele não apareceu.<br />

Uma semana, outra, e nada. Um vizinho telefonou<br />

para o Rio procurando notícias, ele estava bem,<br />

tudo na normalida<strong>de</strong>, disseram. Ele se enjoou <strong>de</strong><br />

mim, ouvi a primeira queixa <strong>de</strong> minha mãe. E<br />

última, nunca mais ela disse essa boca é minha.<br />

Agora eu entendia o que queria dizer altaneira.<br />

Costurava, ganhava o dinheiro que sempre<br />

ganhou, ia à missa, usava a sombrinha branca,<br />

mas o rosado do rosto <strong>de</strong>smaiou, pra on<strong>de</strong> foram<br />

as sementinhas da romã?<br />

Petrobras na minha vida<br />

5<br />

Meu pai continuava a mandar dinheiro todo<br />

mês, e minha mãe achava justo que ele mandasse,<br />

era obrigação. Mas não falava mais nele, nem<br />

<strong>de</strong>ixava que ninguém falasse o nome <strong>de</strong>le perto<br />

<strong>de</strong>la.<br />

Às vezes eu ouvia ela chorando abafado no<br />

quarto, lembrava <strong>de</strong> como tinha felicida<strong>de</strong><br />

antigamente, e ficava muito triste. Minha mãe<br />

sofria pelo passado, acho que era pesado <strong>de</strong>mais<br />

pra ela carregar. O tempo torturava, era uma faca<br />

afiada, e ela <strong>de</strong>safiava o sofrimento colocando<br />

em cada gesto uma pitada <strong>de</strong> amor. Eu e ela,<br />

ligados pela mesma esperança, sem palavras.<br />

Comecei a imaginar meu pai em cada coisa lá<br />

<strong>de</strong> casa: ele estava presente no que tocou, no que<br />

espiou: a ca<strong>de</strong>ira, a mesa, a cama <strong>de</strong> casal, os<br />

pratos, os livros, a velha vitrola, o retrato do meu<br />

avô, tudo tinha um pouco do meu pai. E o<br />

chaveiro! O meu chaveiro com petróleo, era meu<br />

pai, aquele chaveiro. E em cada coisa feita <strong>de</strong><br />

petróleo meu pai estava, inteirinho.<br />

Uma vez eu li num livro que tudo po<strong>de</strong> viver<br />

para sempre, se a gente quiser, é só lembrar e<br />

pronto, até as pessoas vivem nos objetos. Foi<br />

assim que eu aprendi a ter meu pai por perto, não<br />

do jeito que era antes, mas <strong>de</strong> um jeito diferente,<br />

que enchia o vazio, que me dava coragem para<br />

fazer voltar a felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minha mãe, <strong>de</strong> não<br />

<strong>de</strong>ixar que o tempo <strong>de</strong> solidão tirasse <strong>de</strong>la a<br />

beleza que eu tanto gostava.<br />

Dois anos já, e aquele povo linguarudo dizendo<br />

que com certeza meu pai tinha outra mulher. Até<br />

a mão-<strong>de</strong>-vaca da dona Pequitita escreveu no<br />

jornaleco da cida<strong>de</strong>, com todas as letras, que meu<br />

pai tinha arranjado amante. Ela tinha era olho<br />

gordo pra cima da minha mãe. Cida<strong>de</strong> pequena é<br />

assim, tem língua gran<strong>de</strong>. E minha mãe, firme. A<br />

solidão passava por cima dos meses, dos dias,<br />

das horas, mas não conseguia matar a fé que<br />

exalava dos olhos <strong>de</strong>la.<br />

Eu e meu chaveiro ficamos mais unidos, como


se a gente fosse uma pessoa, como se eu tivesse<br />

nascido com ele, parte do meu corpo. O chaveiro<br />

enorme, redondo, como um rosto a me espiar, era<br />

meu pai ali <strong>de</strong>ntro, olho <strong>de</strong>rramado, viscoso,<br />

negro, virando pra lá e pra cá, manso, escorrendo,<br />

sorrindo, a me dizer que um dia estará <strong>de</strong> volta,<br />

que será tudo como antigamente, a nossa casa,<br />

<strong>de</strong> novo nós três, com a alegria <strong>de</strong> sempre. E<br />

então, nos olhos <strong>de</strong> minha mãe, eu verei o<br />

perdão... e um punhado <strong>de</strong> estrelas. .<br />

6º Lugar<br />

Autor: Manoelito Pereira da Silva<br />

Baiano, 66 anos, entrou na Petrobras em 1958.<br />

Os 29 anos seguintes foram passados na Refinaria<br />

<strong>de</strong> Petróleo da Bahia (RPBA), como auxiliar <strong>de</strong><br />

enfermagem. Dessa trajetória tirou inspiração<br />

para escrever seu conto, que, em breve, po<strong>de</strong>rá<br />

se transformar num livro. “Já escrevi<br />

aproximadamente 600 páginas, nas quais faço um<br />

relato <strong>de</strong> tudo que vi e vivi em quase três décadas<br />

na RPBA.” Casado há 45 anos, com quatro filhas<br />

e sete netos, Manoelito acha o <strong>Concurso</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Contos</strong> uma iniciativa excelente. “É um incentivo<br />

à criação para pessoas que geralmente já estão<br />

paradas, é um estimulo à vida”, afirma o finalista<br />

que pela primeira vez participou <strong>de</strong> um concurso<br />

literário. Fã <strong>de</strong> autores clássicos nacionais, já leu<br />

toda a obra <strong>de</strong> Graciliano Ramos, Jorge Amado e<br />

Monteiro Lobato. “Só não terminei <strong>de</strong> ler a obra<br />

<strong>de</strong> Rachel <strong>de</strong> Queiroz, porque o romance ‘O<br />

Quinze’ me emocionou muito, não conseguia<br />

parar <strong>de</strong> chorar.”<br />

A Petrobras na minha vida<br />

Depois <strong>de</strong> tantas idas e vindas com exames pré-<br />

6<br />

admissionais e estágios, chegou o gran<strong>de</strong> dia em<br />

que começaria a trabalhar naquilo que eu julgava<br />

ser, como na realida<strong>de</strong> foi, o melhor em toda a<br />

minha vida.<br />

Quando me apresentei no dia 2 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />

1958, Doutor Lapa disse-me que eu iria trabalhar<br />

em Caravelas, mas mudou <strong>de</strong> idéia e mandoume<br />

para o campo <strong>de</strong> D. João; <strong>de</strong> lá me<br />

encaminharam ao Setor <strong>de</strong> Pessoal, on<strong>de</strong> fui<br />

recebido por Eliezer e Veiga, que preencheram a<br />

minha Carteira Profissional, fizeram todas as<br />

anotações, preencheram todas as fichas, me<br />

<strong>de</strong>ram a solicitação <strong>de</strong> passagem para Can<strong>de</strong>ias<br />

via Viação Férrea Fe<strong>de</strong>ral Leste Brasileira. Era a<br />

segunda viagem que estava fazendo <strong>de</strong> trem, só<br />

que esta era diferente.<br />

Quando saltei na Estação <strong>de</strong> Can<strong>de</strong>ias, me<br />

informaram que havia um caminhão com <strong>de</strong>stino<br />

a D. João. Foi aí que comecei a conhecer o<br />

ambiente no qual trabalharia. O motorista recebia<br />

o apelido <strong>de</strong> Lua Branca, o caminhão sem<br />

cobertura, estrada não havia, na realida<strong>de</strong> era um<br />

trilho por <strong>de</strong>ntro do canavial e o veículo atolando<br />

o tempo todo, e todos tendo que empurrá-lo; não<br />

sabia o que era melhor: ir <strong>de</strong> carro ou a pé, até<br />

que chegamos ao Campo. Um lugar bonito, que<br />

parecia um vilarejo típico do interior.<br />

Lá me apresentaram ao Sr. Dias, encarregado<br />

dos acampamentos, que me mostrou a cama, o<br />

armário etc. Fomos dormir, se é que se podia<br />

dormir, pois logo chegava o pessoal <strong>de</strong> turno e<br />

fazia uma bagunça terrível: tomava banho, e<br />

fazia o maior barulho, ligava o rádio no maior<br />

volume, até que dormia levado pelo cansaço.<br />

Mas às 5:00 lá estava o rádio a todo volume no<br />

programa ‘Vamos acordar’, do Jota Luna, no qual<br />

se recebiam recados e notícias <strong>de</strong> familiares<br />

distantes e que a turma não perdia a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvi-lo, mesmo assim não havia<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tanto volume.<br />

Nesse momento recomeçava o burburinho: o


povo levantando, e aqueles que insistiam em ficar<br />

dormindo logo eram acordados pelos parceiros<br />

<strong>de</strong> quarto. Eu era chamado <strong>de</strong> recruta e torneime<br />

a vítima predileta, para que me acostumasse:<br />

os homens eram pegos a “<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> cachorro”,<br />

como eles mesmos se tratavam. Eram pessoas<br />

recrutadas nas usinas <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar, sem<br />

nenhuma educação <strong>de</strong> berço ou <strong>de</strong> colégio.<br />

A essa altura não me imaginava naquele meio,<br />

on<strong>de</strong> só se ouviam palavrões, coisas a que não<br />

estava acostumado, e a tudo me calava ou ria<br />

porque até o fato <strong>de</strong> ficar sério era motivo <strong>de</strong><br />

mais piadas ou apelidos. Levantei-me e me<br />

preparei para o dia. Chegou a hora <strong>de</strong> ir ao<br />

escritório apresentar-me ao engenheiro Gilson<br />

Rocha que, obrigatoriamente, era chamado <strong>de</strong><br />

doutor. Deram-me uma comunicação <strong>de</strong><br />

apresentação para o Posto Médico.<br />

Mas o que seria o Posto Médico? Eram seis ou<br />

oito trilhos fincados no chão e uma casa <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira construída sobre eles. Mais parecia um<br />

pombal suspenso no ar, a mais ou menos um<br />

metro, com dois compartimentos: sala <strong>de</strong><br />

curativos e consultório médico. Uma escada <strong>de</strong><br />

ma<strong>de</strong>ira permitia o acesso às salas. Era um<br />

verda<strong>de</strong>iro balança-mais-não-cai: quando<br />

pisavam na sala do médico, tudo vinha abaixo<br />

na sala <strong>de</strong> curativos.<br />

Fui me apresentar ao então auxiliar José Firmo,<br />

que até a chegada do Dr. Humberto Carvalho, que<br />

me pareceu ótima pessoa, mandou que eu fosse<br />

trabalhar normalmente. Todos os empregados<br />

sofriam <strong>de</strong> fraqueza, cansaço nas pernas, dores<br />

lombares etc. Tudo aceitável; mas como ficar<br />

fraco se não havia nenhum limite para<br />

alimentação: pela manhã havia um café que era<br />

simplesmente escandaloso para qualquer padrão,<br />

consistia numa ban<strong>de</strong>ja com dois ovos cozidos,<br />

duas bananas-da-terra, um queijo <strong>de</strong> cuia<br />

dividido em oito pedaços, ofereciam também<br />

dois pães tipo cacetinho e um enorme pedaço <strong>de</strong><br />

Petrobras na minha vida<br />

7<br />

bolo, que eles apelidavam <strong>de</strong> engasga-gato,<br />

feitos ali mesmo no refeitório. Além <strong>de</strong> tanta<br />

varieda<strong>de</strong> e fartura, ainda havia um copo <strong>de</strong> um<br />

litro <strong>de</strong> mingau <strong>de</strong> aveia ou milho. O que mais<br />

me <strong>de</strong>ixava encabulado é que ainda tinha gente<br />

à procura <strong>de</strong> sobras nas ban<strong>de</strong>jas. Às nove horas<br />

era servida uma feijoada, o almoço do pessoal<br />

que trabalhava no mar e só chegava às oito e<br />

meia. Iam direto para o banho, e em seguida para<br />

o refeitório e, por último, dormir. E mesmo os que<br />

haviam tomado aquele café da manhã ainda iam<br />

pegar o almoço. Os homens seguiam para o<br />

acampamento, que era dividido em<br />

acampamento técnico para engenheiros,<br />

intermediário para capatazes, ‘puscher’ <strong>de</strong> sonda,<br />

e o pessoal, que era a turma dos trabalhadores<br />

braçais. Fiquei alojado no acampamento pessoal.<br />

Nele havia os funcionários que eram do extinto<br />

Conselho Nacional <strong>de</strong> Petróleo, geralmente<br />

pessoas idosas que carimbavam o polegar para<br />

receber o pagamento. Desempenhavam pequenas<br />

funções, como o Barbosa, que era servente do<br />

Posto Médico.<br />

À tar<strong>de</strong> muitas vezes eu parava e me<br />

perguntava: on<strong>de</strong> estou?, pois era como um<br />

pesa<strong>de</strong>lo. Se me mandassem embora e não me<br />

indicassem o caminho, eu jamais acertaria ir a<br />

lugar algum, e muitas vezes me peguei chorando!<br />

Com o tempo também <strong>de</strong>scobri que ali era<br />

consi<strong>de</strong>rado o campo <strong>de</strong> concentração da<br />

Petrobras, para on<strong>de</strong> só iam recrutas como eu,<br />

ou então elementos vindos <strong>de</strong> outros campos por<br />

mau comportamento, ali era a escala final: ou se<br />

comportava ou era <strong>de</strong>mitido.<br />

Enfrentei noites e noites sem dormir pela falta<br />

<strong>de</strong> educação e respeito, pois quando o pessoal<br />

do administrativo que não iria revezar chegava,<br />

às 17:30, o pessoal que ia trabalhar as 23:00 já<br />

estava acordando para se preparar, com todo o<br />

barulho a que tinha direito. Saía às 22:30. Quando<br />

eram 23:30 já chegavam aqueles que haviam


trabalhado no turno anterior, e aí a bagunça era<br />

geral até o romper do dia. O enfermeiro, então,<br />

nem se fala, pois era obrigado a fazer curativos,<br />

injeções, até quando eles queriam. Sempre havia<br />

uma viagem a Salvador para socorrer alguém. Eu,<br />

que já havia me situado no tempo e no espaço,<br />

às vezes viajava para prestar algum socorro <strong>de</strong><br />

lancha ou <strong>de</strong> ambulância, o problema era que a<br />

última estava sempre quebrada e por isso, às<br />

vezes, ela se tornava pior que o aci<strong>de</strong>nte, pois<br />

era um jipe transformado em ambulância.<br />

Quando chegávamos ao <strong>de</strong>stino, motorista,<br />

enfermeiro e paciente estavam queimados<br />

<strong>de</strong>vido ao calor do veículo.<br />

Nessas idas, sempre que podia, pedia ao Dr.<br />

Lapa que me transferisse para outro campo, e ele,<br />

sempre brincando comigo, dizia:<br />

– Eu sei o que se passa com você, pois ninguém<br />

suporta trabalhar com o Firmo.<br />

Era a mais pura verda<strong>de</strong>: nunca ele me dava<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> folgar, pois era quem ditava as<br />

normas, e eu acumulando folgas, que eram<br />

apenas aos domingos. Embora todos trabalhados,<br />

folgar quando? Foi então que <strong>de</strong>scobri o porquê<br />

da fama <strong>de</strong> que petroleiro é rico, tem dinheiro<br />

etc.: naquela época, todo mês recebíamos o<br />

salário sem ter on<strong>de</strong> gastar. Alguns já bancavam<br />

mulheres na Vila, como era chamada São<br />

Francisco do Con<strong>de</strong>. Eram explorados à vonta<strong>de</strong><br />

e aproveitadores faziam empréstimos que eram<br />

cobrados com juros no final do mês e que todo<br />

mundo já sabia <strong>de</strong> antemão. Outros, por falta <strong>de</strong><br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir alguém, pois as<br />

mulheres eram disputadas, quando saíam <strong>de</strong><br />

folga, se trancavam num dos prostíbulos mais<br />

famosos <strong>de</strong> Salvador, o chamado Meia Três na<br />

la<strong>de</strong>ira da montanha. O local era freqüentado por<br />

petroleiros e marinheiros, e a primazia das<br />

mulheres era <strong>de</strong> quem chegasse primeiro. Ali eles<br />

<strong>de</strong>ixavam todo o salário <strong>de</strong> meses e meses <strong>de</strong><br />

sacrifício, presenteavam com roupas, jóias e<br />

8<br />

farras monumentais, voltavam contando todas as<br />

histórias do Tabaris, um cassino que havia atrás<br />

do Cine Guarani, do Rumba Dancing, o que para<br />

mim era novida<strong>de</strong>. Eles sabiam tudo: só não<br />

sabiam que estavam sujeitos a tantas doenças<br />

venéreas.<br />

Havia também os conservadores, que<br />

economizavam todo o dinheiro ganho e<br />

aplicavam em imóveis e até em fazendas,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da cultura <strong>de</strong> cada um. Conheço<br />

muitos que até hoje têm alguma coisa proveniente<br />

<strong>de</strong>ssas economias.<br />

Durante alguns meses sofri todas as penas a<br />

que tinha direito, até que um dia chegou <strong>de</strong> folga<br />

um colega chamado Joselito, auxiliar <strong>de</strong><br />

escritório, e perguntou:<br />

– Você é casado?<br />

– Sim – repondi.<br />

Ele me contou que a minha esposa havia<br />

chegado no vapor, como era chamado o ‘Navio<br />

João das Botas’, que fazia a linha Salvador–Santo<br />

Amaro.<br />

Eu não quis acreditar, mas conhecendo a<br />

mulher que tinha não dava para duvidar, e<br />

fazer o quê? O problema agora era on<strong>de</strong><br />

acomodá-la, já que não havia nem hotel,<br />

nem casa conhecida na cida<strong>de</strong>. Depois <strong>de</strong><br />

receber essa notícia, que era um misto <strong>de</strong><br />

tristeza e alegria, a única saída eram umas<br />

casas <strong>de</strong> taipa na entrada da cida<strong>de</strong>, as<br />

quais eu já havia pedido a preferência <strong>de</strong><br />

uma. Não tinha como mandá-la <strong>de</strong> volta<br />

para Salvador, pois, ainda que houvesse<br />

alguma condição, só podia ser feito no dia<br />

seguinte.<br />

Foi aí que pedi ao Dr. Humberto que me<br />

dispensasse. Ele então or<strong>de</strong>nou que me levassem<br />

até a Vila, on<strong>de</strong> a encontrei sentada na praça<br />

principal da cida<strong>de</strong>. Peguei a mala e fui com ela<br />

direto para a casa do senhor que havia me<br />

prometido a casa. Ele me disse que não podia


ce<strong>de</strong>r a casa, pois ainda estava por terminar.<br />

Como não tinha outra opção, disse-lhe que não<br />

havia problema:<br />

– O senhor po<strong>de</strong> hospedá-la em sua casa e<br />

pagarei até que as obras terminem.<br />

De início ele não aceitou, pois a fama <strong>de</strong><br />

petroleiro era a pior possível. Não podia hospedar<br />

quem não conhecia, além do que a Vila era mais<br />

ou menos uma al<strong>de</strong>ia indígena, com pouca gente<br />

e um pouco <strong>de</strong> conhecimento. Depois <strong>de</strong> muita<br />

insistência, ele então me <strong>de</strong>u a chave da primeira<br />

casa, que ainda estava toda cheia <strong>de</strong> barro com<br />

homens batendo barro, na pare<strong>de</strong>, e duas portas,<br />

uma na frente e outra nos fundos, as janelas ainda<br />

por colocar. Tomei uma cama <strong>de</strong> solteiro com<br />

colchão emprestada na empresa, e estávamos<br />

instalados.<br />

Incrível como éramos felizes naquele tempo,<br />

nada mais nos preocupava, <strong>de</strong> nada<br />

reclamávamos. O difícil era a comida: nas<br />

mercearias vendiam apenas feijão, farinha, arroz<br />

e conservas. Nada mais havia para comer. Mas<br />

mesmo assim estava bom, só o fato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r estar<br />

fora daquele acampamento já valia a pena: pela<br />

manhã pegava o caminhão para trabalhar e<br />

voltava à noite.<br />

Passei um ano no campo <strong>de</strong> D. João. Saí <strong>de</strong><br />

férias, e retornei já para o campo <strong>de</strong> Taquipe,<br />

campo pioneiro na administração. Naquela época<br />

o assistente administrativo era Adilson Mesquita,<br />

eu era o único e primeiro auxiliar <strong>de</strong> enfermagem,<br />

não havia médico. Em compensação, eu<br />

trabalhava 24 horas por dia, porque <strong>de</strong> repente a<br />

cida<strong>de</strong> virou um formigueiro humano: a<br />

Petrobras recebendo em média 500 a 700 homens<br />

por semana e as outras empreiteiras (Tecquinte,<br />

Terrabrás, Cunha Gue<strong>de</strong>s etc.) recebendo também<br />

a mesma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhadores. O que não<br />

faltavam eram aci<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong> todos os tipos. E a<br />

Petrobras ainda fez um acordo com a Prefeitura<br />

local para prestar assistência médica a 10% da<br />

Petrobras na minha vida<br />

9<br />

população, o que na verda<strong>de</strong> não eram 10%, mas<br />

100%, eu mesmo só dormia <strong>de</strong>ntro da<br />

ambulância, os aci<strong>de</strong>ntes eram muito freqüentes.<br />

Nesse momento percebi que estava fazendo<br />

enfermagem <strong>de</strong> guerra.<br />

7º Lugar<br />

Autor: Marcio Aurélio Martins<br />

Cartas <strong>de</strong> amor. Essa foi a inspiração que<br />

Marcio Aurélio Martins buscou para escrever o<br />

conto “O melhor lugar do mundo”. Ex-integrante<br />

da Frota Nacional dos Petroleiros (Fronape),<br />

durante oito anos ele escreveu regularmente<br />

poemas e <strong>de</strong>clarações à esposa. “Como<br />

trabalhava em alto-mar, via muito pouco minha<br />

mulher. Quando a sauda<strong>de</strong> batia, e não pensava<br />

duas vezes, escrevia para ela.” Hoje, quase 25<br />

anos <strong>de</strong> Petrobras e lotado em terra firme – mais<br />

precisamente no Edise –, Marcio tem várias<br />

outras paixões: a família, a fotografia e a<br />

literatura. “O hábito <strong>de</strong> ler já é bem antigo e a<br />

arte <strong>de</strong> clicar nasceu porque meu pai era<br />

fotógrafo.” Admirador <strong>de</strong> João Ubaldo Ribeiro,<br />

Gabriel García Márquez e Marcel Proust, esse<br />

carioca <strong>de</strong> 48 anos não <strong>de</strong>scarta a idéia <strong>de</strong> lançar<br />

um livro. “Está tudo guardado na minha cabeça;<br />

lembranças, histórias. O difícil é passar para o<br />

papel, mas quem sabe um dia?!”<br />

O melhor lugar do mundo<br />

Meu quintal, por muitos anos, foi a Quinta da<br />

Boa Vista. Passei ali, em seus lagos, alamedas,<br />

jardins, árvores centenárias e a presença<br />

circunspecta da família imperial, o melhor da<br />

minha infância. Quando, no entanto, mudamos


para a Baixada Fluminense, <strong>de</strong>u-se início ao meu<br />

exílio. Pelos anos 70, o lugar não era dos mais<br />

aprazíveis, o que talvez tenha criado em mim o<br />

sentimento <strong>de</strong> reaver a liberda<strong>de</strong> que imaginei<br />

tolhida, representado por um forte <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver<br />

o mundo, <strong>de</strong> conquistar o gran<strong>de</strong> amor que, por<br />

conta <strong>de</strong> um coração triste e tímido, me parecia<br />

muito distante.<br />

Morador <strong>de</strong> Duque <strong>de</strong> Caxias, tinha <strong>de</strong>, a<br />

caminho do trabalho no centro da cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>morada viagem pela congestionada<br />

Avenida Brasil, passar diariamente pela<br />

Rodrigues Alves. Esse era o ponto sempre<br />

esperado da viagem, momento em que acordava<br />

da hibernação necessária para tão enfadonha<br />

travessia e, talvez, por conta <strong>de</strong>sse estado, em<br />

que a mente ainda presa aos pensamentos do<br />

sono embaralha a realida<strong>de</strong>, aquele local tanto<br />

me encantava. A avenida la<strong>de</strong>ia o porto do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro e seus velhos armazéns. O gran<strong>de</strong><br />

mistério <strong>de</strong>sse lugar era o cais que, por sua<br />

posição, os armazéns nos impediam <strong>de</strong> ver. Da<br />

janela do ônibus, observavam-se, atracados,<br />

misteriosos navios cargueiros e, dado a<br />

velocida<strong>de</strong> com que passávamos e a pequenos<br />

intervalos existentes entre um armazém e outro,<br />

os navios pareciam enormes e disformes. Viamse<br />

a proa <strong>de</strong> um, o costado <strong>de</strong> outro, o começo e<br />

o fim <strong>de</strong> muitas viagens e homens dando<br />

indicações, conferindo pranchetas, embarcando<br />

arcas com misteriosos segredos em viagens<br />

fabulosas que levavam a terras fascinantes e<br />

tomadas <strong>de</strong> enormes paixões; com certeza, muito<br />

distinta do <strong>de</strong>stino a que me levava o meu<br />

“Caxias-Praça Mauá” <strong>de</strong> cada dia. Logo ao<br />

término do porto, abriam-se aos olhos do<br />

adolescente a encantada e gloriosa Praça Mauá<br />

e suas inúmeras casas noturnas. Era comum ver<br />

mesas tomadas por filipinos, chineses, coreanos<br />

sempre acompanhados por suas poliglotas índias<br />

tropicais, seus cigarros, bebidas, serpentes,<br />

10<br />

escorpiões e dragões, corações partidos, rosas<br />

vermelhas, índios, tatuagens que só faziam<br />

recru<strong>de</strong>scer em meu peito <strong>de</strong> menino o <strong>de</strong>sejo<br />

por essa aventura, partilhar das lendas e venturas<br />

<strong>de</strong>ssa tribo.<br />

Meu trabalho como ‘office-boy’ consistia em<br />

entregar passagens nos escritórios dos clientes<br />

da Viagens Gulliver. Aquelas ruas do centro e<br />

zona sul, repletas <strong>de</strong> elegância com seus altos<br />

prédios, me alar<strong>de</strong>avam o frenesi <strong>de</strong> caminhar<br />

por Nova York; a Cinelândia, com sua arquitetura,<br />

me <strong>de</strong>ixava embevecido a pensar em como seria<br />

a Europa; os Arcos da Lapa me arrepiavam com<br />

a presença <strong>de</strong> Roma; então vinham os bondinhos<br />

<strong>de</strong> Santa Teresa <strong>de</strong>scendo pela la<strong>de</strong>ira, era uma<br />

sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecida <strong>de</strong> uma San Francisco<br />

nunca visitada. Quando então caminhava pelos<br />

lados da Praça Quinze, podia, ao cruzar o Arco<br />

do Teles, me sentir entrando em Portugal. Sempre<br />

existiu em mim esta enorme paixão, um<br />

sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterro como se em meu DNA<br />

morasse um estrangeiro cheio <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.<br />

Este forte <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver o mundo, com certeza<br />

misturou-se às minhas orações e, realmente,<br />

<strong>de</strong>vemos ter muito cuidado com elas. Nós, em<br />

nossos <strong>de</strong>sejos diários, po<strong>de</strong>mos nos contentar<br />

com o que a realida<strong>de</strong> apresenta aos nossos<br />

sonhos, mas, ao que aparenta, os sonhos não se<br />

contentam com a realida<strong>de</strong> e mesmo a mais<br />

adversa trabalha para transformá-la à mercê <strong>de</strong><br />

nossa atitu<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sejo. Tanto que hoje, aqui <strong>de</strong>ntro<br />

do navio, percebo que o tempo conspira a nosso<br />

favor in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da qualida<strong>de</strong> do que<br />

sonhamos.<br />

Oficial da Marinha Mercante e viajando pela<br />

Frota Nacional <strong>de</strong> Petroleiros, prestei serviços<br />

durante oito anos em vários <strong>de</strong> seus navios<br />

(‘Juruá, Horta Barbosa, Norma, Maisa, Jurupema,<br />

Aracaju, Nara, Bauru e Amapá’). Cruzei as<br />

Américas, naveguei pelo Mediterrâneo, fiz a rota<br />

<strong>de</strong> Vasco da Gama, vi quase perto do toque o vôo


do albatroz seguindo a esteira do navio pelo Cabo<br />

das Tormentas. Do Japão ao Golfo Pérsico, com<br />

parada na China ou Cingapura, gente <strong>de</strong> todas as<br />

cores e atitu<strong>de</strong>s eu vi, entretanto, só Deus sabe,<br />

em tantas distâncias, por on<strong>de</strong> andou meu<br />

coração.<br />

Minha opção em embarcar pela Fronape <strong>de</strong>use<br />

pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> trabalhar na Petrobras, e estava<br />

ciente <strong>de</strong> que seus navios eram os mais complexos<br />

em termos operacionais e ofereciam maiores<br />

riscos à segurança <strong>de</strong>vido ao tipo <strong>de</strong> carga, o que<br />

gera outro inconveniente, pois seus navios<br />

aportam, quase que exclusivamente, em<br />

terminais, sempre posicionados em locais<br />

afastados da cida<strong>de</strong>, cujo acesso se dá por conta<br />

<strong>de</strong> lanchas ou através <strong>de</strong> longas caminhadas.<br />

Meu último porto no exterior foi a Síria.<br />

Estamos em viagem <strong>de</strong> retorno ao Rio, e será a<br />

minha última, não mais embarcarei, pois estou<br />

sendo transferido para o quadro <strong>de</strong> terra, on<strong>de</strong><br />

vou assumir dando apoio aos navios.<br />

O telefone toca, o oficial <strong>de</strong> máquinas <strong>de</strong><br />

serviço me informa que faltam quinze minutos<br />

para a meia-noite. Sentado na cama sinto em meus<br />

pés o tremor do chão, que me informa que o motor<br />

principal está em operação. Olho pela vigia e<br />

como por encanto a paisagem com imagens dos<br />

campos da Síria foi substituída por uma linha <strong>de</strong><br />

horizonte. Fecho a cortina e ainda sentado<br />

começo a colocar o macacão, calço as botas,<br />

penduro no ombro a lanterna, no bolso a chave<br />

inglesa. Enxugo o rosto me olhando no espelho,<br />

mais um quarto <strong>de</strong> serviço.<br />

A rotina <strong>de</strong> trabalho se constitui <strong>de</strong> quartos <strong>de</strong><br />

serviço com duração <strong>de</strong> quatro horas por oito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scanso, e isto se repete <strong>de</strong> segunda a segunda,<br />

sábado, domingo e feriado, até que as férias os<br />

separem.<br />

Já no acesso à praça <strong>de</strong> máquinas do NT ‘Horta<br />

Barbosa’, sou recebido pelo calor e o forte ruído<br />

das máquinas; a sala <strong>de</strong> controle continua com<br />

Petrobras na minha vida<br />

11<br />

seus 39°C, e sentado na ca<strong>de</strong>ira sem po<strong>de</strong>r me<br />

encostar por estar muito quente, fico ouvindo o<br />

oficial que sai <strong>de</strong> serviço falando sobre as<br />

condições da máquina, dizendo que está<br />

aquecendo muito ali, com vazamento lá, e vai<br />

falando e falando. Meus pensamentos voam<br />

distantes, olho o relógio e vejo que são três horas<br />

da tar<strong>de</strong> em casa, o que estará fazendo Teresa,<br />

como será quando eu voltar; talvez Teresa esteja<br />

dormindo. A porta da sala <strong>de</strong> controle se abre<br />

trazendo junto o aumento do ruído, é o condutor,<br />

meu auxiliar, que retorna do seu primeiro giro<br />

pela praça <strong>de</strong> máquinas e me informa que está<br />

tudo em or<strong>de</strong>m. Observo os indicadores, as<br />

pressões, quinze para uma da manhã, a cal<strong>de</strong>ira<br />

já está regulando bem, mas a pressão continua<br />

caindo, vou ajustando e o tempo passando quase<br />

<strong>de</strong>spercebido, meus olhos seguem os ponteiros<br />

como que hipnotizados. Pego a lanterna e vou<br />

conferir no local o funcionamento dos<br />

equipamentos. O motor me recebe ruidoso,<br />

aborrecido pela minha <strong>de</strong>mora, <strong>de</strong>sço o primeiro<br />

lance <strong>de</strong> escada, passo pelos geradores, faço<br />

alguns reajustes e observo o vazamento <strong>de</strong> que<br />

o oficial me falara. O calor aumenta, minhas mãos<br />

estão sujas <strong>de</strong> óleo e meus olhos ar<strong>de</strong>m com o<br />

suor que escorre pela minha da testa.<br />

O navio é uma ilha e você uma ilha a bordo;<br />

tamanho isolamento faz parecer as coisas objetos<br />

animados, <strong>de</strong> forma que por vezes sentia os<br />

espectros dos equipamentos a me observarem em<br />

seu ininterrupto vozerio. O ouvido treinado a essa<br />

multidão ruidosa percebe quando um está em<br />

<strong>de</strong>satino, e é o que acontece agora, lá embaixo.<br />

Desço o segundo lance <strong>de</strong> escada, a bomba do<br />

<strong>de</strong>stilador parece enfurecida, vibrando e jogando<br />

água em cima dos outros motores; para reajustála,<br />

fico encharcado. Não me lembro mais on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixei a lanterna, a sirene do telefone está<br />

tocando já há algum tempo, o condutor, na certa,<br />

<strong>de</strong>u uma fugida na minha ausência. Pelo telefone


do piso inferior, eu atendo, estão precisando da<br />

bomba <strong>de</strong> carga. Dentro da cabine aproveito para,<br />

com uma estopa, enxugar o rosto e o pescoço.<br />

Nesta parte da praça <strong>de</strong> máquinas o ar é cheio do<br />

cheiro <strong>de</strong> óleo quente, o suor brota da pele como<br />

uma nascente, meus olhos ar<strong>de</strong>m, minha cabeça<br />

começa a ficar tonta, procuro respirar junto à<br />

boca da ventilação por algum tempo, me<br />

preparando para voltar. Olho o relógio e vejo que<br />

são cinco e trinta da tar<strong>de</strong>, duas e meia da manhã<br />

aqui, me pergunto se faz sol no Rio, imagino<br />

Teresa tomando banho, me lembro <strong>de</strong> tantas<br />

pequenas coisas, mesmo assim não me foge da<br />

atenção o motor em seu ininterrupto compasso,<br />

garoto mimado, com seus dois andares <strong>de</strong> altura<br />

e porte <strong>de</strong> potro vaidoso, todo malhado, sujo do<br />

óleo que escorre por suas laterais.<br />

Começo a voltar; preciso abrir o vapor para dar<br />

início ao aquecimento da bomba <strong>de</strong> carga, meus<br />

pés parecem mais pesados com as meias<br />

molhadas. Os geradores saúdam ruidosamente<br />

minha passagem, a escada tornou-se longa,<br />

interminável. A válvula <strong>de</strong> vapor fica a dois<br />

lances <strong>de</strong> escada além da sala <strong>de</strong> controle; minha<br />

respiração está ofegante; com a chave volante<br />

começo a abrir a válvula <strong>de</strong> comunicação<br />

principal <strong>de</strong> vapor e, após dois trancos, ela<br />

começa a abrir. Recordo do dia que cheguei em<br />

casa sem avisar e encontrei Teresa se arrumando<br />

para sair, foi estranho, pois já <strong>de</strong>ra três voltas e<br />

meia e nenhum sinal <strong>de</strong> vapor. Junto com este<br />

pensamento veio o som da explosão. A se<strong>de</strong> da<br />

válvula estava presa e sem o apoio da haste foi<br />

lançada sobre o castelo, pu<strong>de</strong> sentir meu corpo<br />

sendo projetado para trás, impelido pelo que<br />

voou da válvula, batendo com violência na<br />

antepara, e um jato <strong>de</strong> vapor superaquecido, que<br />

acompanhava meu movimento, me atingindo o<br />

corpo inteiro. Podia ver nos olhos <strong>de</strong> Teresa que<br />

ela não gostou nada daquilo; o fato foi que o<br />

12<br />

navio, tendo saído <strong>de</strong> São Sebastião para<br />

Salvador amanheceu fun<strong>de</strong>ado no Rio, on<strong>de</strong> me<br />

acordaram para ir pra casa, e <strong>de</strong> tão afobado não<br />

tive ação <strong>de</strong> avisar. Teresa me olhava com a<br />

mesma perplexida<strong>de</strong> que eu para a válvula diante<br />

<strong>de</strong> mim que permanecia intacta, ela resistiu à<br />

explosão, quando tentei fechar para diminuir o<br />

choque térmico na re<strong>de</strong> minhas mãos ainda<br />

tremiam, como as <strong>de</strong> Teresa quando me abraçou.<br />

Retorno à sala <strong>de</strong> controle que agora, apesar<br />

dos seus quarenta graus, parece mais agradável,<br />

o condutor está <strong>de</strong> volta, e com cara <strong>de</strong> quem não<br />

foi a lugar nenhum, peço a ele que prepare a<br />

bomba que o bombeador pediu e aviso que o<br />

vapor já está comunicado.<br />

Das três às quatro, não sei, sei que há oito meses<br />

não vou em casa nesse ir-e-vir do caralho, sei<br />

que aqui o tempo toma sua <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> máxima e<br />

você o sente diferente; me sinto <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, num<br />

segundo estou, em outro já voltei, sempre<br />

esperando que ele passe, que ele pare, que ele<br />

adiante ou que atrase. Esperar o fim <strong>de</strong> uma<br />

viagem, marca do início <strong>de</strong> outra, passar o tempo;<br />

um quarto, uma cama, uma mesa. Depois é andar<br />

a contar os passos, é ler e esquecer o tempo <strong>de</strong><br />

chegar, a hora <strong>de</strong> partir e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar. Fico<br />

pensando num tempo que <strong>de</strong>ixei, que não é o meu<br />

tempo, sempre querendo roubar <strong>de</strong>le um segundo<br />

pra ficar junto com o meu.<br />

Na verda<strong>de</strong>, a solidão foi tudo o que restou, e<br />

que se havia paixão, a que me levou não voltou,<br />

assim como o estrangeiro, <strong>de</strong>sapareceu,<br />

<strong>de</strong>sembarcou em algum porto e eu nem percebi,<br />

quanto à paixão que <strong>de</strong>ixei esperando, por muito<br />

esperar me <strong>de</strong>ixou, mas o Rio, já o vejo, a Ilha<br />

Rasa, o Forte <strong>de</strong> Santa Cruz, o Pão <strong>de</strong> Açúcar, o<br />

Aterro, a Ponte, o Cristo, o cais, o terminal, nossos<br />

navios e as instalações da Petrobras, on<strong>de</strong> será<br />

meu novo local <strong>de</strong> trabalho.<br />

A Petrobras nunca me <strong>de</strong>ixou.

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