A cidade e as serras - a casa do espiritismo
A cidade e as serras - a casa do espiritismo
A cidade e as serras - a casa do espiritismo
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente,<br />
escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o<br />
saturava. O seu cuida<strong>do</strong> realmente e o seu esforço consistiram então em sondar<br />
e formular esse tédio – na esperança de o vencer logo que lhe conhecesse bem<br />
a origem e a potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu a comédia pouco<br />
divertida dum Melancólico que perpetuamente raciocina a sua Melancolia! Nesse<br />
raciocínio, ele partia sempre <strong>do</strong> fato irrecusável e maciço – que a sua vida<br />
especial de Jacinto continha to<strong>do</strong>s os interesses e tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> facilidades, possíveis<br />
no século XIX, numa vida de homem que não é um Gênio, nem um Santo. Com<br />
efeito! Apesar <strong>do</strong> apetite embota<strong>do</strong> pôr <strong>do</strong>ze anos de Champanhes e molhos<br />
ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz da sua inteligência<br />
não aparecera nem tremor nem morrão; a boa terra de Portugal, e algum<strong>as</strong><br />
Companhi<strong>as</strong> maciç<strong>as</strong>, pontualmente lhe forneciam a sua <strong>do</strong>ce centena de<br />
contos; sempre ativ<strong>as</strong> e sempre fiéis o cercavam <strong>as</strong> simpati<strong>as</strong> duma Cidade<br />
inconstante e ch<strong>as</strong>quea<strong>do</strong>ra; o 202 estourava de confortos; nenhuma amargura<br />
de coração o atormentava; - e todavia era um Triste. Pôr que?... E daqui<br />
saltava, com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse<br />
cinzento burel em que a sua alma andava amortalhada, não provinha da sua<br />
individualidade de Jacinto – m<strong>as</strong> da Vida, <strong>do</strong> lamentável, <strong>do</strong> des<strong>as</strong>troso fato de<br />
Viver! E <strong>as</strong>sim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhi<strong>do</strong> Jacinto tombara<br />
no Pessimismo.<br />
E um Pessimismo irrita<strong>do</strong>! Porque (segun<strong>do</strong> afirmava) ele n<strong>as</strong>cera para ser<br />
tão naturalmente otimista como um pardal ou um gato. E, até aos <strong>do</strong>ze anos,<br />
enquanto fora um bicho superiormente amima<strong>do</strong>, com a sua pele sempre bem<br />
coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira fadiga, ou melancolia, ou<br />
contrariedade, ou pena – e <strong>as</strong> lágrim<strong>as</strong> eram para ele tão incompreensíveis que<br />
lhe pareciam vicios<strong>as</strong>. Só quan<strong>do</strong> crescera, e da animalidade penetrara na<br />
humanidade, despontara nele esse fermento de tristeza, muito tempo<br />
indesenvolvi<strong>do</strong> no tumulto d<strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> curiosidades, e que depois al<strong>as</strong>trara, o<br />
invadira to<strong>do</strong>, se lhe tornara consubstancial e como o sangue d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> vei<strong>as</strong>.<br />
Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos<br />
diferentes da Vida. Na turba <strong>do</strong>s humanos é a angustiada luta pelo pão, pelo<br />
teto, pelo lume; numa c<strong>as</strong>ta, agitada pôr necessidades mais alt<strong>as</strong>, é a amargura<br />
d<strong>as</strong> desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocan<strong>do</strong> contra o<br />
obstáculo; nele, que tinha os bens to<strong>do</strong>s e desejos nenhuns, era o tédio. Miséria<br />
<strong>do</strong> Corpo, tormento da Vontade, f<strong>as</strong>tio da Inteligência – eis a Vida! E agora aos<br />
trinta e três anos a sua ocupação era bocejar, correr com os de<strong>do</strong>s desalenta<strong>do</strong>s<br />
a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira.<br />
Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o<br />
Eclesi<strong>as</strong>tes até Schopenhauer, to<strong>do</strong>s os líricos e to<strong>do</strong>s os teóricos <strong>do</strong><br />
Pessimismo. Nest<strong>as</strong> leitur<strong>as</strong> encontrava a reconfortante comprovação de que o<br />
seu mal não era mesquinhamente “Jacíntico” – m<strong>as</strong> grandiosamente resultante<br />
duma Lei Universal. Já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a Vida, mesmo<br />
n<strong>as</strong> delíci<strong>as</strong> mais triunfais, se resumia em Ilusão. Já o Rei incomparável, de<br />
60