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click to download - Bad Books don't E-zine! - Bad Books Don't Exist!

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Bem vindos ao primeiro E-<strong>zine</strong> do fórum <strong>Bad</strong> <strong>Books</strong> Don’t <strong>Exist</strong><br />

O E-<strong>zine</strong><br />

A publicação de um E-<strong>zine</strong> foi um passo lógico na caminhada do BBDE. Uma selecção de<br />

tex<strong>to</strong>s, que foram sendo colocados pelos utilizadores no fórum, compõem a espinha dorsal<br />

desta publicação. Dar a conhecer estes au<strong>to</strong>res a uma comunidade ainda maior é o nosso<br />

primeiro objectivo.<br />

Um fórum é apenas o reflexo dos seus participantes. Este E-<strong>zine</strong> é a imagem bonita que do<br />

BBDE vemos a um espelho.<br />

Em nome de <strong>to</strong>da a equipa coordenadora, esperamos que gostes deste nossa primeiro<br />

publicação, e que dês um pulinho ao nosso fórum para o conheceres ainda melhor!<br />

The Pickwick Society<br />

O nome do nosso E-<strong>zine</strong> surgiu de um ideia subjacente à obra de Charles Dickens, “The<br />

Pickwick Papers”. Nessa obra, um grupo de cavalheiros cria um clube, dedicado à filantropia<br />

e o estudo da natureza humana, que parte em viagem anotando <strong>to</strong>dos e quaisquer<br />

acontecimen<strong>to</strong>s que vão achando peculiares. Têm por hábi<strong>to</strong> ler as suas anotações aos<br />

restantes membros do clube, partilhando opiniões, experiências e, no fim de contas, o gos<strong>to</strong><br />

pela suas criações.<br />

A designação do E-<strong>zine</strong> é uma homenagem ao conhecido romancista e uma celebração ao<br />

gos<strong>to</strong> pela escrita, algo que é partilhado por <strong>to</strong>dos os au<strong>to</strong>res aqui publicados.<br />

A sugestão apareceu, curiosamente, do visionamen<strong>to</strong> de um filme, o “Little Women” (que por<br />

sua vez é baseado na obra literária homónima, de Louisa May Alcott), onde as protagonistas,<br />

um grupo de irmãs, ensaiavam, propositadamente, um comportamen<strong>to</strong> semelhante aos<br />

membros da “Pickwick Society”. A ideia veio da Henis, uma das au<strong>to</strong>ras que publicamos<br />

neste E-<strong>zine</strong>.<br />

A obra original está disponível online em: www.online-literature.com/dickens/, ou em:<br />

dickens.thefreelibrary.com/<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 2 de 117


O fórum BBDE – <strong>Bad</strong> <strong>Books</strong> Don’t <strong>Exist</strong> - www.bbde.org - bbde@bbde.org<br />

A ideia de criar um fórum dedicado somente a literatura surgiu, em finais de 2004, num<br />

outro fórum, o NGM – NewsGMovies (www.newsgmovies.com), dedicado à 7ª arte. O NGM<br />

tinha na altura (e ainda tem) uma secção denominada ‘Livros’ e num dos tópicos, mais<br />

precisamente numa crítica a um livro, o “The Blind Mand of Seville”, de Robert Wilson,<br />

alguém se lembrou de sugerir a criação de um fórum dedicado à literatura e ao gos<strong>to</strong> pela<br />

leitura. A ideia foi bem acolhida na comunidade e o projec<strong>to</strong> acabou por andar para a frente,<br />

contando com ajuda de alguns ilustres do NGM.<br />

Se o suporte técnico foi relativamente fácil e rápido de montar (contávamos com a experiência<br />

do outro fórum), faltava-nos decidir um nome apelativo para o projec<strong>to</strong> e criar uma estrutura<br />

lógica para acomodar as participações dos utilizadores.<br />

Aproveitámos uma das hipóteses de alojamen<strong>to</strong> de domínios, que era precisamente<br />

“dontexist.net”, e a ideia de lhe acrescentar “badbooks” foi unânime.<br />

Nos primeiros dias de actividade contámos com a ajuda de alguns utilizadores mais<br />

empenhados e definimos uma organização de categorias que ainda hoje subsiste.<br />

Após alguma promoção por essa net fora, os resultados começaram a surgir. Foi com alguma<br />

surpresa que registámos quase 10.000 posts num período de seis meses…<br />

O BBDE é um espaço onde se fala de livros e de literatura. É também um espaço onde os<br />

au<strong>to</strong>res podem publicar os seus trabalhos, quer sejam críticas literárias, opiniões, divulgação<br />

de novidades, poemas ou tex<strong>to</strong>s em prosa.<br />

Copyright<br />

Todos os trabalhos aqui publicados pertencem aos respectivos au<strong>to</strong>res. Qualquer reprodução<br />

<strong>to</strong>tal ou parcial é proibida sem o consentimen<strong>to</strong> dos mesmos.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 3 de 117


Entrevista a Daniela Pereira (Blueiela).<br />

Daniela Pereira publicou recentemente um livro de poemas, Cortar as Palavras num Só<br />

Golpe, que pode ser encomendado no endereço http://www.corposedi<strong>to</strong>ra.tk e através de um<br />

email.<br />

Mais trabalhos da au<strong>to</strong>ra podem ser visualizados no seu Blog “Devaneios Azuis”:<br />

http://devaneiosazuis.blogspot.com/<br />

BBDE: Antes de mais obrigado pela oportunidade concedida ao BBDE!, ao nos cederes esta<br />

entrevista.<br />

Para começar gostaria que nos contasses como e quando começou o fascínio pela poesia e<br />

pela palavra escrita. Houve algum acontecimen<strong>to</strong> ou livro marcante que despertasse esse<br />

gos<strong>to</strong> pelas palavras?<br />

Blue: Por estranho que pareça, a poesia só mui<strong>to</strong> recentemente começou a fazer parte do<br />

meu universo de leituras.<br />

Acho mesmo que posso afirmar que a poesia não passava pelos meus gos<strong>to</strong>s<br />

pessoais...tirando raras excepções, como é o caso da poesia de Florbela Espanca e Pablo<br />

Neruda.<br />

Mas as pessoas mudam e ainda bem que assim é, senão seria uma mono<strong>to</strong>nia. Não foi um<br />

livro que me desper<strong>to</strong>u para a poesia, mas sim um poeta não assumido. Foi a ler poemas de<br />

um amigo, que fazia das palavras turbilhões de sentimen<strong>to</strong>s, que despertei para a<br />

intensidade que uma folha de papel pode conter.<br />

Depois, seguiram-se várias noites a tentar encontrar um modo de exprimir os meus próprios<br />

sentimen<strong>to</strong>s, o que sentia naquele momen<strong>to</strong>.<br />

E nesse aspec<strong>to</strong>, a vida ajudou-me mui<strong>to</strong>, porque presenteou-me com muitas situações<br />

marcantes que foram a rampa de impulso para começar a escrever.<br />

BBDE: Na tua poesia, muitas vezes atribuis características alheias a diversas a partes do<br />

corpo humano. Reconheces ser esta uma marca pessoal do teu escrever ou é algo em que<br />

nem sequer reparas e que te surge naturalmente?<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 4 de 117


Blue: Essa é uma excelente pergunta ;)<br />

Julgo que inicialmente não surgiu como uma marca pessoal de escrita, mas com o tempo<br />

<strong>to</strong>rnou-se, sem dúvida, na minha assinatura.<br />

O fac<strong>to</strong> de eu recorrer constantemente, nos poemas que escrevo, a palavras referentes a<br />

objec<strong>to</strong>s cortantes ou a pedaços do corpo humano é, talvez, uma tentativa inconsciente de<br />

cortar com alguns momen<strong>to</strong>s do meu passado e faço-o por haver uma vontade mui<strong>to</strong> forte de<br />

mudar aspec<strong>to</strong>s na minha vida pessoal e na minha maneira de ser.<br />

Julgo também que o uso dessa marca pessoal <strong>to</strong>rna por vezes o sentido das palavras mais<br />

intenso, aguça os sentidos de quem lê o poema e é um modo de transferir os sentimen<strong>to</strong>s,<br />

quer seja a dor ou mesmo a paixão, para o papel...<br />

Porque se as emoções são fortes e intensas, as palavras que as vão descrever têm que ter<br />

obriga<strong>to</strong>riamente o mesmo grau de intensidade, senão não se está a ser verdadeiro.<br />

BBDE: Se alguém te pedisse conselhos para se iniciar na escrita e, mais concretamente, na<br />

poesia quais os que darias? Consideras que para escrever poesia não basta dominar a língua<br />

ou sentir uma <strong>to</strong>rrente de emoções indefiníveis? Ou por outro lado pensas que <strong>to</strong>da e<br />

qualquer pessoa pode ser um poeta?<br />

Blue: Se alguém me pedisse conselhos para se iniciar na escrita o que é que eu lhe diria?<br />

Na minha opinião ninguém tem a capacidade ou o direi<strong>to</strong> de dar conselhos ou de influenciar<br />

alguém na forma como essa pessoa se deve expressar. Até porque cada pessoa é diferente da<br />

outra que está sentada ao seu lado...<br />

Para mim a poesia é um modo de expressão como o é qualquer outro tipo de arte, como a<br />

pintura ou a dança são formas de sonhar e de fugir um pouco à realidade monó<strong>to</strong>na que<br />

muitas vezes nos cerca.<br />

O mais que lhe poderia dizer é que se escrever lhe dá prazer então que escreva sempre e que<br />

não pense nas regras literárias ou nas frases bem alinhadas e com bom aspec<strong>to</strong>, porque o<br />

que mais conta num poema (e is<strong>to</strong> é na minha sincera opinião) são as palavras e a liberdade<br />

que elas nos oferecem.<br />

Para além de que essa preocupação do "escrever bem" vai surgindo com o tempo; é um<br />

processo natural e é só preciso deixar que ele evolua ... <strong>to</strong>dos gostamos de melhorar e de nos<br />

fazer ouvir melhor.<br />

Por isso acho que para escrever poesia é apenas preciso ter uma alma, esteja ela ferida ou<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 5 de 117


simplesmente <strong>to</strong>talmente apaixonada.<br />

Mas é claro que também se pode escrever de um modo apaixonado sobre uma pedra; o que<br />

interessa é a forma como te entregas ao momen<strong>to</strong> que passas para o papel. É essa entrega<br />

que consegue fazer de qualquer pessoa um poeta...<br />

BBDE: Recentemente foi lançado Cortar as Palavras Num Só Golpe, pela Corpos Edi<strong>to</strong>ra.<br />

Qual foi o sentimen<strong>to</strong> que sentiste quando esse projec<strong>to</strong> se concretizou? Consideras a<br />

publicação uma meta em si ou apenas uma passagem? Pretendes continuar a publicar? E o<br />

blogue "Devaneios"? É uma outra faceta do desejo de ser lida ou surgiu como uma<br />

experiência?<br />

Blue: É complicado falar do que senti quando tive pela primeira vez o livro nas minhas mãos.<br />

Aconteceu tudo tão depressa que quase nem tive tempo para me aperceber daquilo que tinha<br />

alcançado.<br />

Acho que ainda hoje me belisco <strong>to</strong>das as manhãs para acreditar que o livro existe mesmo.<br />

A publicação do livro é um começo...ainda falta mui<strong>to</strong> caminho a percorrer. Primeiro é um<br />

choque teres o teu nome escri<strong>to</strong> na capa de um livro, depois surge a preocupação de teres<br />

conseguido, naqueles poucos poemas editados, passar as melhores palavras no meio de<br />

tantas que escreveste, e agora só pensas em fazer chegar essas palavras ao maior número de<br />

pessoas para te sentires realizado.<br />

Por isso acho que o lançamen<strong>to</strong> do livro foi um degrau superado, mas existem mui<strong>to</strong>s mais<br />

para subir, agora é esperar que a vida te deixe continuar a acreditar que podes ter asas para<br />

voar mais longe.<br />

Vontade não me falta.<br />

Se pretendo continuar a publicar? Se este livro for bem aceite e demonstrar que realmente<br />

tenho algum valor quando escrevo, acho que sim, que vou continuar a tentar espalhar mais<br />

palavras por aí.<br />

Agora o Devaneios é o meu cantinho... é o meu mundo de sonho.<br />

Comecei por brincadeira e por curiosidade de saber como é que funcionava o concei<strong>to</strong> de um<br />

blogue e até onde é que ele me deixaria ir.<br />

Fui escolhendo os poemas que mais gostava e mais bem aceites nos fóruns onde escrevo e<br />

procurei ilustrar cada um com uma imagem que fosse a sua segunda pele.<br />

A ideia foi crescendo, os poemas aumentando de número, os comentários fortalecendo cada<br />

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vez mais a vontade de continuar e foi mesmo com o blogue que surgiu a minha estrela da<br />

sorte.<br />

Foi o endereço do blogue que enviei a alguma edi<strong>to</strong>ras que me permitiu o contac<strong>to</strong> com a<br />

Corpos Edi<strong>to</strong>ra e a dar a conhecer o meu trabalho.<br />

O Devaneios Azuis foi a rampa de lançamen<strong>to</strong> deste livro.<br />

BBDE: Ainda sobre os poemas e o livro. Consideras cada poema teu como um filho que dás a<br />

conhecer ao mundo ou nem por isso? Nota-se que para ti os comentários te servem de<br />

motivação e a falta deles parece de certa forma que sentes não ter atingido o «público». Is<strong>to</strong><br />

sempre foi assim? Ou tens poemas que guardas só para ti?<br />

Blue: Se considero que cada poema é um filho meu?<br />

Se calhar podes dizer isso, já que cada um tem um pedaço de mim...uma lágrima dos meus<br />

olhos ou um sorriso da minha boca. Eles falam de sentimen<strong>to</strong>s e falam dos meus<br />

sentimen<strong>to</strong>s porque acho que <strong>to</strong>dos ou quase <strong>to</strong>dos os poemas estão ligados a mim e à minha<br />

maneira de ver o mundo.<br />

E são esses sentimen<strong>to</strong>s que partilho com quem os lê.<br />

Bem, os comentários servem e sempre serviram como um termómetro que mede o calor das<br />

minhas palavras.<br />

Se percebes que um determinado poema <strong>to</strong>cou alguém, então é porque o que sentiste no<br />

momen<strong>to</strong> que escreveste foi realmente importante, pelo menos para esse alguém que gos<strong>to</strong>u<br />

de o sentir.<br />

A falta de um comentário leva-te a pensar que ainda não conseguiste encontrar as melhores<br />

palavras e isso até é um incentivo para continuares a procurar a perfeição.<br />

Mas confesso que, no início, a falta de comentários podia ser um pouco desmotivadora<br />

apesar de tudo, porque te deixa um pouco à deriva.<br />

Não tenho mui<strong>to</strong>s poemas que guardo só para mim porque sin<strong>to</strong> uma necessidade enorme de<br />

os partilhar com as pessoas. Talvez porque essa partilha me acalme e me alivie.<br />

Mas apesar disso tenho alguns que só revelei à pessoa para a qual foram escri<strong>to</strong>s...à minha<br />

fonte inspiradora.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 7 de 117


BBDE: A ideia com que fiquei ao longo desta entrevista e dos teus comentários era de que a<br />

maior parte dos teus poemas nascia de situações ou momen<strong>to</strong>s particularmente marcantes<br />

para ti. Agora leio que tens uma fonte inspiradora. Essa fonte é uma constante inspiração,<br />

ou, por outro lado, também a encontras em poesias que lês, músicas que ouves, cenários que<br />

contemplas? E no seguimen<strong>to</strong> da inspiração, tens algum mé<strong>to</strong>do específico de trabalho como<br />

por exemplo criar um ambiente propício à escrita? E escreves <strong>to</strong>dos os dias?<br />

Blue: Esta fonte de inspiração foi a que imperou nos meus poemas, principalmente nos que<br />

surgem no livro Cortar as palavras num só golpe.<br />

Mas é claro que também me inspiro noutras fontes. Acho que tudo depende do momen<strong>to</strong> que<br />

estiver a atravessar. Mas cer<strong>to</strong>, cer<strong>to</strong> é que necessi<strong>to</strong> sempre de algo que prenda os meus<br />

pensamen<strong>to</strong>s para ter inspiração.<br />

A música está quase sempre presente nos momen<strong>to</strong>s em que escrevo, principalmente se essa<br />

escrita é feita com o auxílio do teclado.<br />

Porque muitas vezes surge aquela música que te recorda um momen<strong>to</strong>, que te lembra um<br />

desejo ou mesmo algo que gostavas de esquecer e não resistes à tentação de teclar mais um<br />

poema.<br />

Mas não tenho um mé<strong>to</strong>do de trabalho, ou seja, não preparo o ambiente para iniciar um<br />

poema, porque escrevo mui<strong>to</strong> à base do impulso.<br />

Bate no pei<strong>to</strong> um sentimen<strong>to</strong> mais forte e deixo as palavras fluírem livremente.<br />

Tan<strong>to</strong> posso escrever com os olhos fixos num écran, como deitada na cama, ou mesmo a<br />

contemplar uma onda do mar, é um processo <strong>to</strong>talmente aleatório e que foge por comple<strong>to</strong> ao<br />

meu controlo.<br />

Talvez por isso, tenha fases em que consigo escrever dois e três poemas por dia como noutras<br />

nem sequer me lembro de levar a folha de papel comigo.<br />

BBDE: E para terminarmos, pensas que a leitura de outros poetas é importante para quem<br />

queira escrever? Além de Florbela e Neruda, que outros poetas lês e gostas? No<strong>to</strong> que, no teu<br />

blogue, juntas imagens (reproduções de quadros, fo<strong>to</strong>grafias) às tuas palavras, como uma<br />

"segunda pele" segundo um teu comentário; consideras que a poesia necessita de imagens ou<br />

que ambas se podem complementar?<br />

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Blue: Não sei se é tão importante assim, para quem quer escrever, ler uma cascata de poetas.<br />

Porque, como já disse anteriormente, cada pessoa tem a sua forma de escrever e não existem<br />

duas linhas iguais no universo da poesia.<br />

Ler é bom para aprender e para conhecer melhor o ser humano, as suas manhas, os seus<br />

medos, os seus encan<strong>to</strong>s e mesmo até a sua crueldade, que também existe.<br />

Quando lês viajas por outros mundos que não são teus, mas com os quais muitas vezes te<br />

identificas, ou porque é aquele mundo que ansiavas ter, ou mesmo por ser aquele que mais<br />

repudias.<br />

Quan<strong>to</strong> aos poetas que leio e aprecio, confesso que por agora não são mui<strong>to</strong>s, até porque só<br />

mui<strong>to</strong> recentemente despertei para o encan<strong>to</strong> das palavras em verso.<br />

Mas também aprecio os velhinhos Bocage e Fernando Pessoa pela ousadia das suas palavras<br />

e Herber<strong>to</strong> Helder pelo seu surrealismo cortante.<br />

No entan<strong>to</strong>, confesso que na minha prateleira dos livros a poesia está em minoria, por<br />

incrível que pareça...<br />

No diz respei<strong>to</strong> à minha opção de ilustrar os poemas no blogue com imagens, acho que é um<br />

modo de <strong>to</strong>rnar ainda mais envolvente as palavras que nele estão contidas.<br />

A arte da fo<strong>to</strong>grafia ou da imagem tem o condão de adicionar uma magia especial às palavras<br />

porque lhes dá um ros<strong>to</strong>.,<br />

BBDE: Resta-me agradecer a tua paciência para connosco e desejar-te os maiores sucessos.<br />

Blue: Eu é que queria agradecer esta oportunidade que me foi dada pelo fórum de me dar a<br />

conhecer um pouco melhor aos meus lei<strong>to</strong>res...se é que posso falar assim, porque prefiro<br />

mencioná-los como escri<strong>to</strong>res ou simplesmente como poetas da noite, porque <strong>to</strong>dos<br />

partilhamos o mesmo prazer da escrita.<br />

Um beijo mui<strong>to</strong> especial para <strong>to</strong>dos que fazem parte deste fórum Foi um prazer imenso<br />

participar em mais um projec<strong>to</strong> do <strong>Bad</strong> <strong>Books</strong> <strong>Don't</strong> <strong>Exist</strong> e, desde já, dou os parabéns a<br />

<strong>to</strong>dos os que fazem parte e iniciaram este projec<strong>to</strong>.<br />

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Mulher Dragão<br />

1º Prémio no passatempo “Dragões”<br />

1<br />

Eu devia ter desconfiado mal a vi. Mas deixei-me hipnotizar pela suavidade do seu olhar, o<br />

seu corpo perfei<strong>to</strong> e o sorriso inconcebível com que me brindou.<br />

Confesso que não é normal, agora que a idade me fez nascer uns papos nos olhos e uma<br />

proeminência no abdómen, raparigas daquele calibre olharem para mim daquela maneira,<br />

desafiadora mas meiga. Mas iludi-me com o meu glamour e pensei que o fa<strong>to</strong> Armani pre<strong>to</strong><br />

sobre a t-shirt branca podia ajudar. A minha mulher, pelo menos, sempre gabara aquela<br />

combinação de distinção e informalidade.<br />

Para além do mais, a luz era difusa, o álcool pairava e mal me apercebi que sim, que não me<br />

enganara, que aquele olhar era mesmo para mim, não gastei mais que o tempo impos<strong>to</strong> pela<br />

inércia etilizada do meu corpo para me pôr em andamen<strong>to</strong> ao seu encontro.<br />

Num jogo do <strong>to</strong>ca e foge, dançou languidamente à minha frente, sem nunca me deixar de<br />

fitar nem nunca me permitir aproximar à distância do meu braço. Mais que uma vez esbocei<br />

um movimen<strong>to</strong> na sua direcção e vi a sua língua saltitar deliciosa por entre os dentes<br />

enquan<strong>to</strong> o corpo recobrava ao ritmo da música.<br />

Senti olhares gulosos de outros homens sobre ela e uns rápidos olhares de soslaio sobre<br />

mim, tentando perceber o porquê daquele milagre. Eu já nada mais quis saber e percebi sem<br />

querer saber o porquê, que antes do fim da noite aquela mulher me iria aquecer o corpo<br />

precocemente envelhecido pela mistura explosiva de stress, álcool e noites sem dormir.<br />

Nunca pensei, no entan<strong>to</strong>, até que pon<strong>to</strong> a palavra aquecer estava bem aplicada.<br />

Num repente deixou-se cair contra o balcão, num ges<strong>to</strong> felino e pediu uma tequilla. Com o<br />

copo a rodopiar na mão, virou-se para mim e atirou-me um beijo que me apanhou em cheio<br />

no ego.<br />

Já não me lembro quem <strong>to</strong>mou a iniciativa, ou quem a converteu em palavras, mas a verdade<br />

é que após vinte minu<strong>to</strong>s de carro, estacionámos jun<strong>to</strong> a um prédio de apartamen<strong>to</strong>s com<br />

vista para o mar. Senti-me desajeitado como um adolescente, quando a minha mão procurou<br />

a dela no interior do elevador e ela se esquivou. Apenas dentro de casa, me deixou <strong>to</strong>car-lhe,<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 10 de 117


o seu corpo esguio, uma pele de sonho. Já deitados, na cama, enquan<strong>to</strong> me levantava a t-<br />

shirt, vi um brilho estranho no seu olhar, um clarão vermelho.<br />

Debruçou-se sobre mim e senti a sua língua a entrar-me na boca e de repente uma <strong>to</strong>rrente<br />

de fogo e enxofre a sufocar-me enquan<strong>to</strong> os meus olhos atóni<strong>to</strong>s viam asas com escamas a<br />

nascerem-lhe das costas.<br />

Silêncio e escuridão.<br />

2<br />

Acordei numa cama estranha encharcado em suores frios, tremia dos pés à cabeça enquan<strong>to</strong><br />

o meu organismo se habituava a este meu novo estado. Sim, só me explicaram mais tarde,<br />

mas bas<strong>to</strong>u aquele beijo de fogo para eu me <strong>to</strong>rnar um homem-dragão.<br />

E na verdade, depois de me passarem aqueles tremores e de me ter levantado, encontrado a<br />

casa de banho e me metido debaixo de um duche frio, ao vê-la aparecer nua e a enroscar-se,<br />

debaixo do jac<strong>to</strong> do chuveiro, em mim, pensei que ser dragão não era assim tão mau. Os<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 11 de 117


meus sentidos estavam aguçados pelo que o <strong>to</strong>que da pele dela, o contac<strong>to</strong> dos seus dedos ou<br />

as carícias maliciosas com que me brindou, deram um novo sentido à palavra sexo.<br />

O pior estava para vir.<br />

Sentados na cama, eu já vestido e ela embrulhada no lençol, acabou por me contar o terrível<br />

segredo dos homens-dragão, é que apenas mantém a forma humana se converterem em novo<br />

dragão, um humano por mês.<br />

Não sem antes me despedir convenientemente, saí de casa dela um pouco a<strong>to</strong>rdoado.<br />

3<br />

E agora aqui es<strong>to</strong>u. Os dias passaram e converteram-se numa semana, depois noutra e<br />

noutra ainda e hoje é o meu último dia.<br />

Tenho de beijar uma mulher que me deseje intensamente, que me deixe despejar o fogo que<br />

carrego nas entranhas dentro dela ou as escamas cobrirão a minha pele.<br />

Para a Samira, assim se chamava a mulher-dragão, isso era fácil. Qualquer papalvo como eu<br />

ficaria de beiço caído pelo seu abanar de ancas.<br />

Mas eu…<br />

Sentado frente ao espelho, ainda de cuecas, olho para o guarda-fa<strong>to</strong> escancarado pensando<br />

no que hei de vestir. Pareço uma mulher. A minha mulher. A minha ex-mulher. A minha ex-<br />

mulher! É isso!<br />

Levan<strong>to</strong>-me num ápice e vis<strong>to</strong> cuidadosamente uma das últimas camisas que ela me ofereceu<br />

antes de sair de casa. Sei como é fácil uma recaída agora que o rapaz por quem se apaixonou<br />

se pôs na alheta levando os bolsos cheios e os testículos vazios.<br />

Desço as escadas e me<strong>to</strong>-me no carro. Guio velozmente até ao apartamen<strong>to</strong> onde mora e rezo<br />

a um deus em quem não acredi<strong>to</strong>, para que ela esteja em casa. De lábios entreaber<strong>to</strong>s de<br />

preferência.<br />

Deus ouve-me. É ela quem vem abrir a porta, vem acompanhada de umas olheiras e dos<br />

chinelos de quar<strong>to</strong>. Assim não dá – penso.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 12 de 117


É necessário que exista desejo entre os dois para que a língua de dragão funcione.<br />

- Estava com saudades tuas – acabo por lhe dizer.<br />

O sorriso abre-se, manda-me entrar e pede um momen<strong>to</strong>.<br />

Sen<strong>to</strong>-me num sofá de cabedal pre<strong>to</strong> e deixo o meu olhar varrer a sala. Ao chegar à porta,<br />

vejo-a na ombreira em contraluz. Com uma velocidade impressionante mudara de<br />

indumentária e oferecia-me um body pre<strong>to</strong> e um cin<strong>to</strong> de ligas.<br />

Desliga o interrup<strong>to</strong>r e apaga, assim, a celulite e as rugas na cara. A minha memória dá-me<br />

excer<strong>to</strong>s de momen<strong>to</strong>s bem passados, da sua sensualidade exorbitante e é com verdadeira<br />

volúpia que me entrego a ela.<br />

Rolamos os dois sobre o sofá pre<strong>to</strong> até as nossas bocas se <strong>to</strong>carem. Penetro-a com a língua o<br />

mais que posso e sin<strong>to</strong> que ela faz o mesmo. A falta de ar e a sensação de sufoco é inevitável<br />

e separamo-nos a olhar aturdidos um para o outro.<br />

O olhar dela em mim mostra-me que está a ver o mesmo que eu es<strong>to</strong>u a ver nela. Os olhos<br />

vermelhos, a pele a escamar-se, as garras a crescerem.<br />

Também para ela, hoje era a última oportunidade e ambos, velhos cansados e gas<strong>to</strong>s, apenas<br />

tínhamos conseguido fazer um simulacro de sedução um ao outro.<br />

4<br />

Vôo solitário para além dos confins do mundo que até hoje me era conhecido. Não sei para<br />

onde vou tal como não sei bem quem sou. Mas isso agora também já não interessa.<br />

-<br />

Pedro Farinha<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 13 de 117


Amar<br />

Amar é sentir alguém<br />

Amar-te é sentir-te dentro de mim<br />

Nascer e renascer no além<br />

É deleitar-me e beijar-te até ao fim…<br />

Amar é querer!… Te querer<br />

Como ninguém quis!<br />

Pois admi<strong>to</strong>: “Sou um infeliz!”<br />

Se estiver longe sem te ter<br />

Amar é dar!… É dar-te algo.<br />

Fazendo de mim gente nobre<br />

Talvez rei! Príncipe ou fidalgo<br />

Mas contigo sin<strong>to</strong>-me feliz sendo pobre<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 14 de 117


Amar é…<br />

Quem saberá?<br />

Não! Não sei o que é amar…<br />

…mas sei amar!<br />

Amar-te…<br />

-<br />

Da_Big_Ticket_21<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 15 de 117


Os Meus Pais<br />

Os meus pais nunca me deram nada para mostrar que me amavam e que ainda me amam.<br />

Nunca precisaram de me comprar presentes, de me satisfazer as vontades. Vejo que me<br />

amam em cada memória que recordo no silêncio da noite, quando deprimida penso nos que<br />

me rodeiam para me levantar de novo. Nunca precisaram de me dar aquela boneca que eu<br />

mais queria, aquele brinquedo com que tan<strong>to</strong> sonhei. Bas<strong>to</strong>u estarem sempre ao meu lado,<br />

quando precisei deles e sobretudo nas alturas em que julgava não precisar. Nada neste<br />

mundo poderia comprar aquele momen<strong>to</strong> em que aprendia a andar de bicicleta, com o meu<br />

pai atrás de mim segurando-a para eu manter o equilíbrio. Por nada seria eu capaz de trocar<br />

aqueles sorrisos, que sempre me ofereceram quando se sentiam orgulhosos de mim, mesmo<br />

que tivesse fei<strong>to</strong> uma coisa mínima. Só eles para se sentirem assim… alegres por me verem a<br />

nadar, correr, brincar… Viram-me dar os primeiros passos, tropeçar e cair, estiveram sempre<br />

lá estendendo a mão para me ajudarem a levantar mesmo que fosse para cair de novo. Ainda<br />

hoje o fazem e por isso es<strong>to</strong>u-lhes grata e sei que me amam. Ao ver o que sou hoje sei que me<br />

amam, sempre me amaram e com certeza me amarão. Se não me amassem, não me teriam<br />

educado com tan<strong>to</strong> carinho, zelando pelo meu futuro, ensinando-me que é a cair que se<br />

aprende a andar.<br />

-<br />

White Lady<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 16 de 117


Hoje Não Te Disse Adeus<br />

Hoje olhaste-me como se<br />

quisesses falar comigo.<br />

Hoje olhei-te como se<br />

quisesse falar contigo.<br />

As nossas bocas ficaram<br />

Caladas.<br />

Hoje olhaste-me e baixaste<br />

o olhar,<br />

Hoje olhei-te e baixei<br />

o olhar.<br />

Hoje acordamos de lados opos<strong>to</strong>s<br />

De um muro fei<strong>to</strong> de nada,<br />

Hoje bem tentamos<br />

Mas não passou nenhuma palavra.<br />

Hoje não te disse<br />

“adeus, até amanha”,<br />

Hoje não te disse nada.<br />

Hoje não te disse adeus.<br />

-<br />

Firewalker<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 17 de 117


Do Al<strong>to</strong><br />

Vindos do al<strong>to</strong> eram legião, mas uma legião branca, pura, imaculada.<br />

Algo os puxava.<br />

Algo os empurrava.<br />

Ao <strong>to</strong>carem nos limites superiores da atmosfera iluminaram-se de vermelho fulvo, depois<br />

amarelo e por fim branco. Consumiram-se na própria cor que os representava.<br />

Nas ruas da cidade milhões de pequenas penas voltejavam, envoltas na incomensurável<br />

leveza da sua existência. Os rapazes brincavam, saltando, pulando, tentando agarrar o maior<br />

número possível. Era para eles um jogo. As meninas faziam vestidinhos para as bonecas e<br />

lei<strong>to</strong>s macios onde as deitar. Os adul<strong>to</strong>s olhavam e abanavam a cabeça. E seguiam caminho.<br />

Porque ninguém percebera que a arder tinham caído <strong>to</strong>dos os anjos.<br />

-<br />

Thana<strong>to</strong>s<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 18 de 117


Miragem Musical<br />

Sin<strong>to</strong> algo diferente<br />

Despertando meus sentidos<br />

Que afecta minha mente<br />

E estimula os ouvidos.<br />

Da mais simples melodia<br />

À sublime sinfonia<br />

Minha vida alumia<br />

Pela noite, ou de dia.<br />

Entre graves e agudos<br />

As palavras bem sentidas<br />

Ou singelos gri<strong>to</strong>s mudos<br />

Em músicas das nossas vidas.<br />

Será sempre universal<br />

Não importa a linguagem<br />

A mensagem musical<br />

Que parece uma miragem!<br />

-<br />

Isabelucha<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 19 de 117


Este Meu Velho Lápis<br />

Escreverei… escreverei até que os dedos estejam tão martirizados que já não possam mais<br />

mover-se de modo a formar palavras. Já nada mais me resta do que este lápis gas<strong>to</strong> e ruído,<br />

fru<strong>to</strong> desta eloquência insana que me corrói. Se ao menos eu pudesse arranjar uma caneta,<br />

daquelas que contêm aquela tinta mágica, insólita e colorida, que transmite confor<strong>to</strong>. Mas<br />

que delírios me levam a escrever tais coisas? Tal caneta não existe, não passa de uma<br />

manobra de diversão da minha razão, mais uma maneira de me humilhar e de mostrar que<br />

até o meu próprio corpo se delicia com <strong>to</strong>da esta dor que me consome.<br />

Não sei que mecanismos me levam a ter estas atitudes grotescas e ridículas. Nem sequer sei<br />

quem sou, nem qual o porquê da minha existência. Pergun<strong>to</strong>-me se a minha vida terá algum<br />

significado ou objectivo. Ou se algum dia estas palavras terão algum significado para quem<br />

as ler, já que se tratam apenas de pequenos desabafos sem sentido. Palavras ocas que<br />

passam do meu coração para o papel através deste velho lápis. Palavras inúteis e frígidas que<br />

constituem as confissões deste coração jovem mas decrépi<strong>to</strong>.<br />

E agora pergun<strong>to</strong> a mim mesma. O que acontecerá se um dia este bocado de madeira com<br />

que escrevo deixar de poder escrever? E se nessa altura estiver tão só, que nem um lápis<br />

desgastado tenha para saciar esta minha fixação pela escrita? Não quero sequer pensar no<br />

que poderá acontecer, mas as imagens invadem desvairadamente a minha mente, sem<br />

piedade, forçando-me a ver aquilo que provavelmente será o dia do derradeiro fim desta<br />

insanidade e de <strong>to</strong>do este escreve, escreve…<br />

-<br />

Cerridwen<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 20 de 117


Poema de Merda<br />

Falta-me a veia poética<br />

para conseguir transmitir em versos<br />

o que o meu cérebro pensa em prosas.<br />

Falta-me a capacidade de mudar de linha<br />

(como mudei agora)<br />

para fazer daquilo que digo um poema.<br />

Falta-me a vontade de estilizar o que escrevo<br />

só porque é supos<strong>to</strong><br />

um poema ter figuras de estilo.<br />

É que eu não funciono assim.<br />

Soubesse eu fazer isso<br />

(quisesse eu fazer isso)<br />

e tinham aqui um belo poema.<br />

Como não quero,<br />

fiquem só com esta merda!<br />

-<br />

TRiiAd<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 21 de 117


Uma Última Lágrima<br />

Enfiei o pé descalço na areia, como ainda é cedo a areia está fria… sabe tão bem! O meu pé<br />

quente é engolido numa sensualidade irreal. Já es<strong>to</strong>u outra vez a imaginar coisas, me<strong>to</strong> o<br />

outro pé na areia, e vou caminhando, sei o que vim aqui fazer, deixei tudo preparado para<br />

isso… paguei as contas, e deixei em cima da mesa do telefone os multibancos com os<br />

códigos, e os cheques em branco, assinados com a data de ontem. Escrevi os e-mails que<br />

tinha que escrever, mas tive o cuidado de programar o seu envio para o meio dia… não quero<br />

que nada falhe. Entreguei as chaves de casa à vizinha, dizendo que as irás buscar mais<br />

tarde…<br />

Deixei tudo limpo e arrumado, organizei as minhas coisas <strong>to</strong>das, livrei-me do lixo que andava<br />

a amon<strong>to</strong>ar há anos. Engomei e arrumei <strong>to</strong>da a minha roupa, fui buscar a que ainda estava<br />

na lavandaria, coloquei a tua camisola num saquinho de papel, e deixei-a no chão, jun<strong>to</strong> à<br />

mesa do telefone. Arrumei os livros <strong>to</strong>dos na estante, por temas e au<strong>to</strong>res. Cheguei mesmo a<br />

arquivar <strong>to</strong>dos os meus papéis. As cartas estão em cima da mesa da sala, <strong>to</strong>das elas estão<br />

devidamente endereçadas, e têm o selo necessário, sei que as irás pôr ao correio amanhã.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 22 de 117


Vesti as minhas calças brancas, com aquela camisola azul-turquesa que sempre adoraste,<br />

não me calcei sequer, deixei as chaves do carro… não sei onde as deixei, mas devem estar<br />

dentro da minha mala, jun<strong>to</strong> com os documen<strong>to</strong>s e a declaração de venda assinada.<br />

Desci a rua descalça, sentindo o alcatrão a magoar-me a sola dos pés. Agora que es<strong>to</strong>u<br />

parada em frente ao mar, sin<strong>to</strong> os meus lábios começarem a aquecer, porque mesmo não<br />

estando mui<strong>to</strong> frio, eles gelaram, como sempre acontece quando fico mui<strong>to</strong> nervosa… desta<br />

vez não estás cá para os aquecer com um beijo, nem para me assegurares de que tudo ficará<br />

bem.<br />

Sen<strong>to</strong>-me um pouco na areia, brinco com ela na mão… ainda tenho tempo, o dia só agora<br />

nasceu, e só daqui a umas horas é que chegam os primeiros madrugadores com os seus cães<br />

enérgicos. Oiço o barulho das ondas, sin<strong>to</strong> o seu cheiro inebriante, vejo o branco da espuma,<br />

branco como as minhas calças, como a minha alma… não, hoje não irei mergulhar nelas.<br />

Olho o frasquinho que trouxe comigo… tiro-lhe a tampa e sin<strong>to</strong>-lhe o cheiro… podia cheirar a<br />

pêssego, mas não! Tem um cheiro acre, desencorajador… fecho-o novamente. Olho à volta,<br />

sabes que não temos recordações daqui? Que ridículo… por morarmos aqui tão per<strong>to</strong> sempre<br />

procurámos ir a sítios diferentes; agora que precisava que algo nesta praia me prendesse à<br />

realidade, descubro que não há… olho novamente para o frasquinho.<br />

Trouxe o meu bilhete de identidade, e um cartão com o teu número, quero que sejas o<br />

primeiro a saber, e quero que estejas com ela quando souberes, quero que chores e que<br />

partas os vidros das portas, as jarras, o telefone contra a parede, sim, esmurra a parede até<br />

ficares com os dedos cober<strong>to</strong>s do teu sangue doce… chora, chora a mesma dor que eu chorei<br />

por ti.<br />

Já quase imagino a cena… o encontrares a minha casa impecável, sem os meus habituais<br />

montes de livros e papéis espalhados, vais chorar, mais ainda do que eu chorei, porque eu<br />

tive a esperança de que tu voltasses, e eu, nem isso te deixo.<br />

Olho para o frasco, já quente na minha mão, mordo o lábio inferior… aqueceu uma última<br />

vez… retiro a tampa e sorrio, bebo de um trago, procurando não sentir o sabor, deixo-me cair<br />

de costas, e uma última lágrima escorre-me pelas faces ainda rosadas. Chora tu agora, que a<br />

minha fonte de lágrimas acabou de secar.<br />

-<br />

Drops<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 23 de 117


Requiem<br />

Hoje, há uma certa tristeza no ar<br />

O céu encheu-se de nuvens caladas.<br />

Gente amon<strong>to</strong>a-se pelas estradas,<br />

Fugindo da desgraça por chegar.<br />

Hoje, há um ven<strong>to</strong> gelado, soprando<br />

Aziago por estas casas vazias.<br />

Na calma, soam estranhas melodias:<br />

Lenta, a multidão avança, cantando.<br />

É o fim da tarde, a hora das aves<br />

Que recolhem lestas ao seu abrigo.<br />

Mas já não há aves no céu, só naves.<br />

É o fim da tarde, de um tempo antigo.<br />

À hora marcada, partem as naves,<br />

Res<strong>to</strong>s de um mundo levando consigo<br />

-<br />

anavicenteferreira<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 24 de 117


Lezíria<br />

O rio ficou para trás. A lezíria estende-se em <strong>to</strong>das as direcções, um bordado de castanhos,<br />

amarelos e verdes. Azinheiras e enormes eucalip<strong>to</strong>s ladeiam a estrada, uma fita negra, sem<br />

curvas, que corta os campos. O céu é de um cor-de-pérola uniforme, não se distingue a<br />

forma das nuvens, não se vislumbra o sol, não há sinal de chuva.<br />

O carro avança.<br />

Marta recosta-se no assen<strong>to</strong>, olhos fixos na paisagem que vão ultrapassando. Num dos<br />

campos, um trac<strong>to</strong>r abre a terra e é seguido por um bando de garças brancas que<br />

perscrutam os fundos sulcos na terra arenosa. No campo seguinte, três cegonhas fitam a<br />

água rasa de um canal, enquan<strong>to</strong> uma quarta levanta voo em direcção ao ninho massivo<br />

instalado sobre a velha caixa de água de uma quinta em ruínas. Marta desvia os olhos a<br />

tempo de ver qualquer coisa pequena apressar-se através do asfal<strong>to</strong>: uma lagartixa, talvez.<br />

Tan<strong>to</strong>s sinais de vida e o mundo continua a parecer-lhe mor<strong>to</strong>, dormente, pelo menos. Como<br />

se ainda não tivesse acordado de uma longa hibernação. Apesar do calor abafado que se faz<br />

sentir.<br />

Faz descer mais a janela. O ven<strong>to</strong> quente despenteia-lhe o cabelo. Olha-se no espelho da pala<br />

que baixou para se proteger do brilho branco do sol invisível. Há manchas escuras sob os<br />

seus olhos, linhas na testa e em redor da boca apertada.<br />

Sérgio ainda não se calou. Conduz com os olhos na estrada e ela nem precisa olhar para o<br />

lado para saber que as mãos dele estão tão apertadas em redor do volante que se pode traçar<br />

cada osso. Sempre adorou as mãos dele, são grandes e longas, com dedos elegantes e pele<br />

macia, dourada. Ele continua a falar, num <strong>to</strong>m mecânico, que ele quer fazer parecer alegre,<br />

sobre coisas que ela não ouve.<br />

Dói-lhe a cabeça. A vontade que tem é de tirar uma das latas de 7Up que estão no<br />

compartimen<strong>to</strong> refrigerado entre os bancos e encostá-la à testa. Mas não o faz. Sérgio já está<br />

quase à beira da histeria, qualquer sinal de dor da parte dela, agora, vai fazê-lo vir-se abaixo.<br />

Vai fazê-lo pensar que <strong>to</strong>maram a decisão errada.<br />

A dor insiste, latejando-lhe na têmpora direita. No pon<strong>to</strong> exacta onde ela sabe que aquilo<br />

está. Como se estivesse a crescer, pensa, como se a maldita coisa estivesse a crescer.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 25 de 117


E está mesmo a crescer, embora o médico não o tenha di<strong>to</strong> por tantas palavras, está a<br />

crescer e vai continuar a crescer, ou ele não teria sugerido a cesariana. Marta pousa as mãos<br />

sobre a sua barriga de sete meses. O bebé está a começar a agitar-se. É da dor, es<strong>to</strong>u a ficar<br />

alterada e ele sente.<br />

As mãos rolam-lhe sobre a barriga em círculos que se entrecruzam. Sente um pé espetar-se<br />

contra o interior do seu ventre, uma pequena saliência contra a palma da sua mão. Mais dois<br />

meses, dois meses não vão fazer diferença. Dois meses só não vão fazer diferença.<br />

– Estás bem? – A voz de Sérgio treme só um pouco.<br />

Ela assente, mas desvia o olhar para a janela.<br />

– Está a dar pontapés.<br />

– É forte. Grande para um bebé de sete meses. Se quisesses, mesmo que estivesse alguns<br />

dias na incubadora, os dois meses não fariam diferença …<br />

– Eu vou começar a quimioterapia quando o bebé nascer. – A voz dela é calma, os olhos<br />

fixaram-se no pára-brisas onde alguns pingos leves de chuva começaram a cair. – Os dois<br />

meses não vão fazer diferença.<br />

A chuva engrossa, começa a fazer ruído no tejadilho do carro. Ela reclina um pouco o assen<strong>to</strong><br />

e olha para cima, através do tec<strong>to</strong> de abrir, as gotas parecem pequenas bolas de cristal que<br />

se dirigem ao carro. Sérgio fechou a janela do lado dela e está cada vez mais abafado.<br />

– Pára o carro!<br />

– Estás a sentir-te mal, voltamos a –<br />

– Não. Pára o carro.<br />

Abre a porta, ainda antes de estarem completamente imobilizados. Já livre do abraço do cin<strong>to</strong><br />

de segurança, corre para lá do renque de árvores onde as garças se abrigaram, para a lezíria,<br />

campo aber<strong>to</strong>.<br />

As pernas cedem e deixa-se cair de joelhos na erva nova. A chuva rodeia-a, cada vez mais<br />

forte, batendo-lhe na testa, desmanchando a dor. Água escorre-lhe pela cara e o sabor a sal<br />

brinca-lhe nos lábios. Um triângulo de azul irrompe no meio do cinzen<strong>to</strong>.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 26 de 117


-<br />

anavicenteferreira<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 27 de 117


Consciência<br />

Olá!! Sou a tua consciência…<br />

É só para te dizer que es<strong>to</strong>u far<strong>to</strong> de ti.<br />

Far<strong>to</strong> que não me ligues,<br />

Far<strong>to</strong> que só penses nos outros.<br />

Olha para mim e vê como es<strong>to</strong>u…<br />

Não sentes nada??<br />

Talvez vergonha.<br />

Pois sabes que eu sou o que tu és.<br />

Olha para aquilo que tens fei<strong>to</strong>.<br />

Repara bem nos pormenores<br />

Sou aquilo que tu sempre foste na realidade<br />

Não acreditas??<br />

Então olha-te ao espelho,<br />

Mas desta vez abre os olhos.<br />

Respira fundo e repara bem…<br />

Assustaste-te?<br />

Pois eu tenho uma novidade!<br />

Tu és assim mesmo…<br />

Não falo de aparência nem de visual.<br />

Mas que fútil pensares assim…<br />

Abre-te..<br />

Vê do que és fei<strong>to</strong> por dentro.<br />

Rasga-te e pensa…<br />

Eu não quero que sofras.<br />

Apenas te digo is<strong>to</strong> para te lembrar que estas vivo…<br />

E ainda tens uma hipótese.<br />

Não desperdices esta oportunidade…<br />

Transforma-me naquilo que queres ser,<br />

E não naquilo que tu pensas ser…<br />

-<br />

NightCrawl<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 28 de 117


Vendo<br />

Era uma tarde como tantas outras, na centenária Rua Augusta. Luís estava habituado<br />

aquela azáfama das compras natalícias. Os seus ombros já estavam doridos de tan<strong>to</strong>s<br />

encontrões. O cheiro das castanhas, vendidas já fora de época empestava o ar. Luís gostava<br />

de castanhas, mas nesta altura do ano já irritava o cheiro. Turistas em mangas de camisa<br />

bebiam placidamente cervejas geladas, na explanada em pleno Inverno. Luís achava-os<br />

doidos. Como era possível com sete graus estar-se numa explanada ao cimo da rua augusta,<br />

bebendo alegremente uma cerveja gelada. Só mesmo um britânico de barba branca, e<br />

rechonchudas bochechas vermelhas.<br />

Luís avançava paulatinamente, chegando ao velho Rossio. Olha a pequena multidão que<br />

espera um au<strong>to</strong>carro amarelo e sujo da Carris. Tanta gente de olhar carrancudo e triste,<br />

esperando um transporte conduzido por alguém que provavelmente trás um olhar<br />

carrancudo e triste. Do outro lado do passeio, as cores alegres e garridas de um restaurante<br />

de comida rápida estrangeira. Nem o coração histórico da cidade que o vira crescer se<br />

mantinha fiel a si próprio. Passando em frente ao histórico Teatro D. Maria II, um sentimen<strong>to</strong><br />

de tristeza invade-o. Luís não percebia como era possível que nas escadarias de um nobre<br />

teatro alfacinha, agora imperassem sem-abrigo. Alguns deles mostravam pequenos letreiros.<br />

“Vende-se carteira.” “Vendo telemóveis.” Provavelmente material roubado, pensava ele. Esta<br />

gente metia-lhe nojo. Sujos, rudes e provavelmente criminosos, eram a escória da sociedade.<br />

Começava agora a subir para o Chiado, onde finalmente poderia comprar as suas prendas de<br />

Natal. No meio da subida um sem abrigo cap<strong>to</strong>u-lhe a atenção. Envergava roupas velhas e<br />

gastas, tal como tan<strong>to</strong>s outros sem abrigo. Tinha a barba grisalha por fazer, tal como tan<strong>to</strong>s<br />

outros sem abrigo. A sua pele parecia curtida pelo sol, e suja pelo ar, tal como tan<strong>to</strong>s outros<br />

sem abrigo. Mostrava um pequeno letreiro, tal como tan<strong>to</strong>s outros sem abrigo. A diferença<br />

era o que estava escri<strong>to</strong>. “Vendo uma coisa que <strong>to</strong>dos querem, mas não ousam. Por um preço<br />

simples, mas que ninguém paga.” Ninguém ligava ao velho e ao seu cartaz. Mas Luís ficou<br />

curioso e dirigiu-se a ele.<br />

– Desculpe amigo o que vende?<br />

– Aquilo que <strong>to</strong>dos querem, mas não têm muitas vezes coragem de ter.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 29 de 117


– E isso é que custa o tal preço que ninguém paga? — Luís solta uma sonora gargalhada. —<br />

E que preço é esse?<br />

– Um croissant e um galão na Brasileira.<br />

Depois de pensar um pouco, Luís resolve pagar para ver onde o “bluff” do velho o levava.<br />

– Eu pago. Mas espero receber algo que <strong>to</strong>dos querem e que poucos ousam ter.<br />

E di<strong>to</strong> is<strong>to</strong> João, o velho sem abrigo, seguiu-o até à “Brasileira do Chiado”. João comia<br />

lentamente o seu bolo e bebia o seu galão, saboreando cada pedaço. Luís bebia friamente o<br />

seu café.<br />

– Sabe, eu nem sempre fui um vagabundo. Em tempos, eu era um empregado de um banco.<br />

Ganhava bem, vivia tranquilo e contente. Veja lá que até era casado.<br />

– Se tinha um bom emprego e uma família como está agora nesta situação?<br />

– A minha mulher meteu-me os cornos com um colega. Eu comecei a ir para a ba<strong>to</strong>ta e a<br />

andar nos copos. Daí a perder o emprego foi um passo. Comecei a beber cada vez mais. Perdi<br />

tudo e vim parar onde es<strong>to</strong>u.<br />

– A vender algo que <strong>to</strong>dos querem por um galão e um bolo neste café? Porque raio é este<br />

preço?<br />

– Quando era pu<strong>to</strong>, a minha mãe vinha a este café comigo. Foi aqui que lanchei pela primeira<br />

vez com a Filipa, a minha primeira namorada. Fico contente por vir aqui e saborear algo de<br />

quando fui feliz. — Comen<strong>to</strong>u João, enquan<strong>to</strong> pequenas lágrimas lhe escorriam pelo ros<strong>to</strong>.<br />

– Então e o que comprei eu?<br />

João levan<strong>to</strong>u-se, limpou as mãos às calças gastas e encaminhou-se para a saída.<br />

– Acabou de comprar a felicidade para um pobre e desgraçado velho. Uma felicidade que<br />

quando ele a tinha, não a ousou ter. Nunca deixe de ousar. Obrigado.<br />

-<br />

Sturm<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 30 de 117


Nocturno de Mim<br />

Quando a noite chega e meus olhos<br />

são uma sala vazia, quando a noite chega<br />

e olho meus livros, os meus utensílios<br />

com palavras na penumbra, é a hora da luz<br />

iluminar com a sua água sobre a mesa<br />

quando a noite chega<br />

quando chega num cigarro abortado<br />

antes da última cinza, quando a noite chega<br />

e as janelas transparentes no escuro<br />

quando chega a noite<br />

es<strong>to</strong>u cercado de perguntas, algumas<br />

respondo, outras cingem-me os ombros<br />

quando a noite chega sou como nuvens<br />

que procuram casa sem parar seu rumo.<br />

-<br />

j. t. parreira<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 31 de 117


Duas Conchas<br />

Não havia ven<strong>to</strong>, não havia ondas, nem uma brisa se sentia naquele recan<strong>to</strong> de mundo a que<br />

alguém um dia chamou de praia.<br />

Era cedo, mui<strong>to</strong> cedo, a manhã estava com um céu azul tão brilhante que o mar sentia-se<br />

envergonhado por naquele dia não ter semelhante cor, e ao mesmo tempo sentia-se<br />

protegido... mas não aquela concha que nessa manhã deu à praia (vamos chamar-lhe de A) .<br />

Não estava só ... lá ao longe outra concha (a que vamos chamar de G) vislumbrava aquele<br />

acontecimen<strong>to</strong> ... a chegada de mais uma concha àquela praia .<br />

Todos os anos este invulgar even<strong>to</strong> ocorria, este ano pertencia a A e a G .<br />

Elas (as conchas) eram lançadas no al<strong>to</strong> mar por alguém ( a que vamos chamar de destino) e<br />

as duas primeiras conchas a alcançar aquele aglomerado de <strong>to</strong>rrões de terra, viviam para<br />

sempre felizes . Mas desta vez e infelizmente as coisas não acabavam com um final feliz ...<br />

não desta vez .<br />

Para G era a primeira vez que acontecia esta aventura ... para A ... também .<br />

Contudo não seria a primeira vez que aquelas conchas se encontravam ... aquele olhar<br />

trocado entre ambas dizia tudo ... de certeza que em outra realidade já teriam partilhado<br />

confidências .<br />

Este dia foi marcado por alegrias mil entre as duas conchas . Foi um dia de sussurros, de<br />

brincadeiras, de alegria partilhada, de maneiras iguais de ver o mundo e até várias cusquices<br />

sobre ele e sobre a vida (a curta vida delas) . G transbordava de alegria, tanta ... tanta que<br />

poderia o mundo acabar ali aos seus pés que ele viveria para sempre feliz para onde quer que<br />

fosse.<br />

O dia passou num ápice (rápido demais mesmo ...) e G reparou que A estava quase<br />

desfalecida, o longo caminho percorrido até alcançar aquela praia era a razão.<br />

G na sua simplicidade/cortesia, segurou em A e delicadamente dei<strong>to</strong>u-a num lei<strong>to</strong> de algas<br />

verdes (construídas por si) ... umas lindas algas verdes que davam cor de esperança aquele<br />

lugar.<br />

Passaram-se vários dias e A não melhorava .<br />

O dia de G era preenchido a tentar animar aquela outra concha .<br />

Ele contava histórias, desenhava na areia lindas figuras só para a animar, procurava os<br />

melhores raios de sol para aquecê-la e quando ficavam fortes demais ... procurava a melhor<br />

sombra .<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 32 de 117


G sentia-se contente por estar a ajudar, sentia-se útil, preenchido, alegre como uma criança<br />

traquinas, mesmo não tendo de A ... qualquer ges<strong>to</strong> de ternura . Mas G não desistia,<br />

considerava que lhe estava destinado aquela sua maneira de ser útil .<br />

Que engano, que engano ele estaria a cometer, mas também ... não havia naquela imensidão<br />

de praia quem lhe ouvisse e ele não sabia falar nem com o mar nem com o ven<strong>to</strong>, habi<strong>to</strong>u-se<br />

a viver daquela forma .<br />

Certa manhã A acordou mui<strong>to</strong> melhor, G não viu ... foi a brisa que lhe disse porque ainda<br />

continuava a dormir. A noite passada à procura de pauzinhos de madeira secos para fazer<br />

uma pequena fogueira e aquecer A, havia-lhe <strong>to</strong>mado as forças .<br />

A levan<strong>to</strong>u-se e olhou para G, mas nem lhe <strong>to</strong>cou ... não sabendo bem porquê, retirou-se<br />

devagarinho sem barulho, nem mesmo amparou aquela man<strong>to</strong> de algas por cima de G para<br />

lhe aconchegar o sono ... como ele lhe fazia <strong>to</strong>das as manhãs .<br />

Sem destino caminhou sempre em frente e conseguiu sair daquele lugar , sem nunca olhar<br />

para trás ... como poderia ser ? Como ? Então não existiu nem um pingo de sentimen<strong>to</strong> ?<br />

O brilho do Sol a <strong>to</strong>car ligeiramente o mar fez desvanecer aquela figura aos poucos até ao<br />

ocaso <strong>to</strong>tal .<br />

Já o Sol estava al<strong>to</strong> quando G acordou e olhando para <strong>to</strong>dos os lados procurou por A mui<strong>to</strong><br />

preocupado ... tinha receio que o frio e o ven<strong>to</strong> da noite passada lhe tivessem levado, estando<br />

ela tão fraca .<br />

Mas com o decorrer do dia, das semanas, dos meses, reflectiu interiormente que nunca mais<br />

veria a sua alma gémea .<br />

Todo esse tempo fez com que aprende-se a falar com mar e mesmo com o ven<strong>to</strong> que lhe<br />

apresen<strong>to</strong>u à estrelas, mas também elas não sabiam o porquê de A ter partido .<br />

Por vezes tem a noção de a ouvir ao longe a dizer : “es<strong>to</strong>u aqui, es<strong>to</strong>u aqui” ... mas de seguida<br />

tal momen<strong>to</strong> desvanece-se com mais um pôr-de-Sol . É apenas um engano momentâneo .<br />

G passou a ser mais uma daquelas conchas a que nos habituámos a pisar quando<br />

percorremos a praia, foi apenas mais uma e ... ele que queria ser diferente ...<br />

Conta-se que ... ao luar ainda a procura ao longo daquela praia escrevendo frases banais na<br />

areia como : “Onde andas?”, “Não te escondas” ... à procura de uma saída daquele sítio<br />

porque sozinho não consegue, não consegue mesmo, porque ... falta-lhe um A .<br />

-<br />

Maloveci<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 33 de 117


Ri<strong>to</strong> de Passagem<br />

É só mais um amanhecer entre os dedos<br />

Além dos vas<strong>to</strong>s campos da lucidez<br />

Onde uma brisa suave afaga os cabelos<br />

Reluzindo os corpos empilhados ao som do mar<br />

Inspirando-nos um pouco de loucura.<br />

…<br />

É só mais um amanhecer<br />

Desta aurora a beira de uma navalha<br />

Ensanguentada por <strong>to</strong>dos os poros<br />

De onde culminam os mais lamen<strong>to</strong>sos<br />

Poemas.<br />

…<br />

Então tu virás em chamas<br />

Oh! Pequenino ser<br />

E me acompanharás de cima dos montes<br />

Ao som da flauta mágica dos seres nocturnos.<br />

Afogar-te-ás comigo nas cinzas fluorescentes<br />

Dos dias taciturnos onde se quebram os próprios espelhos<br />

Sem ao menos derramar uma lágrima sequer na face alheia.<br />

-<br />

Caninos Brancos<br />

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O Desenhador de Coisas que Ninguém Quer<br />

Havia um menino que morava numa pequena praceta no centro da Trofa. Era um menino<br />

como os outros meninos. Tinha um nome, como <strong>to</strong>dos os meninos têm. Mas tinha vergonha<br />

de o dizer. Era pequeno, como <strong>to</strong>dos os meninos são. Mas queria ser já gente grande. Gostava<br />

de doces, como <strong>to</strong>dos os meninos gostam. Mas a mãe gostava mais de sopa.<br />

O avô chamava-se Jerónimo. E como a mãe gostava mui<strong>to</strong> do avô, o nosso menino também<br />

se chamava Jerónimo. Ele achava que os meninos é que deviam escolher o seu próprio nome,<br />

quando já tivessem idade de escolher nomes. Se pudesse, chamava-se João ou Pedro ou<br />

Carlos como <strong>to</strong>dos os meninos se chamam. Mas como não podia, chamava-se Jerónimo.<br />

O Jerónimo tinha nome, era pequeno e gostava de doces, como os Joões, os Pedros e os<br />

Carlos. Mas esses, como <strong>to</strong>dos os meninos da Trofa, gostavam mui<strong>to</strong> de jogar à bola e o<br />

Jerónimo não. Gostava mais de ficar em casa a desenhar. Era o seu passatempo. Desenhava<br />

tudo o que via, mais o que não via. E no que não via, desenhava o que existia e o que não<br />

existia. No fundo, no meio disso tudo, desenhava o que queria. Chegava a pôr-se à janela do<br />

quar<strong>to</strong> a ver os meninos jogarem à bola, em vez de se lhes juntar. E os meninos na rua não<br />

percebiam:<br />

- Vem jogar à bola.<br />

- Não me apetece.<br />

E fechava a janela e desenhava os meninos a jogar à bola na praceta. Depois desenhava o<br />

quar<strong>to</strong>. A janela. Um avião. A cama. Uma árvore. O quadro da parede. Um dragão. Um<br />

animal que não existia, mistura de elefante com boi. E depois desenhava mais mil e uma<br />

coisas. Tinha uma gaveta na secretária cheia de folhas brancas sem nada e outra cheia de<br />

folhas brancas com os seus desenhos a lápis de carvão, nunca pintados.<br />

A mãe e o pai trabalhavam os dois, desde manhã cedo, depois de o deixarem na escola, até<br />

antes do jantar. Por isso tinha que almoçar na escola e só depois ia para casa, sozinho.<br />

Passava as tardes na companhia das suas folhas e do seu lápis. Os pais nunca deram grande<br />

importância aos seus desenhos. Ele também não se importava com isso. Os desenhos eram<br />

dele, ninguém precisava de os ver. Mas por vezes, o Jerónimo desenhava para as outras<br />

pessoas e não para si. Às vezes, à noite, a mãe arrumava a roupa que tinha passado a ferro e<br />

gritava com o pai:<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 35 de 117


- Mas onde é que meteste a gravata vermelha?<br />

- Jun<strong>to</strong> com o res<strong>to</strong> da roupa.<br />

- Mas ela não está aqui!<br />

O Jerónimo, no quar<strong>to</strong>, ouvia tudo e não demorava um minu<strong>to</strong> a aparecer na cozinha, onde<br />

estava a mãe, com um desenho de uma gravata na mão:<br />

- Toma mãe.<br />

- Não me enerves mais do que eu já es<strong>to</strong>u, Jerónimo!<br />

E nem sequer olhava para o desenho. Talvez porque a sua gravata era cinzenta e não<br />

vermelha. E o Jerónimo, triste, regressava ao quar<strong>to</strong>. A sua mãe não queria a gravata que ele<br />

fizera, mas ele não a dei<strong>to</strong>u fora. Guardou-a na sua gaveta de coisas que ninguém queria. E<br />

eram muitas as coisas que ninguém queria. O Jerónimo nem percebia mui<strong>to</strong> bem este<br />

fenómeno. Ele sabia que as pessoas queriam as coisas, ele ouvia-as dizerem-no. Mas quando<br />

ele chegava ao pé delas com os desenhos do que queriam, deixavam de as querer. Como se o<br />

quisessem apenas chatear.<br />

O Jerónimo gostava mui<strong>to</strong> dos seus desenhos. Eram tudo o que ele tinha e mais o que não<br />

tinha. Eram os seus amigos, as suas brincadeiras, os seus passeios. Naquela gaveta de<br />

sonhos não estavam desenhos apenas: estava um menino chamado Jerónimo, com a alma<br />

desenhada a carvão.<br />

Foi com o avô, de quem herdou o nome, que o Jerónimo aprendeu a desenhar. E sempre que<br />

o avô lá ia a casa, ficava mui<strong>to</strong> tempo com o ne<strong>to</strong> a ver os seus boni<strong>to</strong>s desenhos. Uma vez, ia<br />

o avô ver os desenhos do Jerónimo quando parou:<br />

- Onde deixei eu os meus óculos?<br />

E o Jerónimo reagiu de imedia<strong>to</strong>:<br />

- Aqui avô.<br />

E estendeu-lhe um desenho dos óculos do avô.<br />

- Ó Jerónimo, ajuda-me mas é a procurar os óculos.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 36 de 117


E pôs o desenho de lado. O Jerónimo arrumou-o na gaveta das coisas que ninguém quer.<br />

Talvez fosse por o avô não ter os óculos que não sabia apreciar o seu ges<strong>to</strong>.<br />

O Jerónimo desenhava quase sempre para si e gostava sempre mui<strong>to</strong> dos seus desenhos.<br />

Mas quando desenhava para alguém, nunca queriam os desenhos. Será que eram maus os<br />

desenhos? Afinal, só ele é que gostava deles.<br />

Começou a desenhar menos. Um dia, até foi para a rua jogar à bola com os outros meninos.<br />

Disse-lhes que se chamava João e que queria jogar à bola. Eles deixaram. Mas a meio do jogo<br />

um dos meninos deu um chu<strong>to</strong> com força e a bola ficou num telhado. O Jerónimo disse que<br />

ia a casa e voltava já. E os meninos ficaram felizes:<br />

- Boa! Ele vai buscar uma bola.<br />

E esperaram ansiosamente que ele voltasse. E ele não os fez esperar. Apareceu logo de<br />

seguida com uma folha na mão, que lhes entregou:<br />

- Tomem.<br />

- Para que queremos is<strong>to</strong>?<br />

E rasgaram o desenho da bola que o Jerónimo fizera.<br />

A partir daí decidiu que afinal de contas, mesmo ninguém gostando dos seus desenhos, ele<br />

gostava. E era mui<strong>to</strong> melhor passar as tardes com eles do que com aqueles meninos mal-<br />

educados. Continuou a fazer os seus desenhos mágicos. Desenhava mundos, casas, bichos,<br />

amigos. Desenhava coisas só para si. Deixou de fazer desenhos para os outros. Isso só os<br />

chateava e irritava. Nunca queriam as coisas que desenhava.<br />

O avô começou a visitá-lo mais vezes. Talvez a mãe tivesse pedido que o fizesse. Numa dessas<br />

visitas o avô levou-lhe um bloco de folhas mui<strong>to</strong> boni<strong>to</strong>:<br />

- É para ti Jerónimo. Hoje vamos passear para o experimentares.<br />

- Passear?<br />

- Sim, vamos ao parque.<br />

E ajudou o Jerónimo a vestir o casaco.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 37 de 117


Saíram, lado a lado. Nos olhos do Jerónimo notava-se um brilho de menino que vivia fechado<br />

no quar<strong>to</strong>. Um menino que era quase um desenho de menino. Os passeios que dava eram<br />

sempre de casa para a escola e da escola para casa. Por isso, aquele passeio ao parque foi<br />

como se tivesse entrado na sua gaveta de desenhos e passeado por <strong>to</strong>dos os desenhos que<br />

fez. Não. Aquele passeio ao parque era ainda melhor que isso. O Jerónimo sen<strong>to</strong>u-se num<br />

dos vários bancos, ao lado do avô:<br />

- Vá. Mostra-me se já desenvolveste a tua técnica.<br />

E o Jerónimo mostrou. Desenhou o menino que brincava com o cão. O senhor que jogava à<br />

bola com o filho. Os velhotes que passeavam e conversavam bem dispos<strong>to</strong>s. Os passarinhos<br />

que por ali voavam. Nunca tinha vis<strong>to</strong> tantas coisas para desenhar. Se pudesse, ficava o<br />

res<strong>to</strong> da vida naquele parque a desenhar <strong>to</strong>das as pessoas, animais e coisas que por lá<br />

passassem.<br />

O avô ficou mui<strong>to</strong> orgulhoso do ne<strong>to</strong>. Gos<strong>to</strong>u mui<strong>to</strong> dos seus desenhos. Prometeu que no dia<br />

seguinte o viria buscar de novo para irem ao parque. O Jerónimo ficou radiante. Passou o<br />

res<strong>to</strong> do dia e o início do seguinte, a desenhar mais e mais coisas que tinha vis<strong>to</strong> no parque.<br />

Estava ansioso por regressar lá e ver que coisas novas o parque lhe ofereceria para desenhar.<br />

Pouco depois do almoço o avô chegou a casa do Jerónimo:<br />

- Então Jerónimo, pron<strong>to</strong> para mais um passeio?<br />

- Claro! Vamos!<br />

E rapidamente se despachou para ir com o avô.<br />

Pelo caminho, combinaram qualquer coisa que incluía um gelado e um desenho do avô. Mas<br />

quando o Jerónimo chegou ao parque, esqueceu <strong>to</strong>da a conversa que tinha tido. Todo aquele<br />

verde, aquelas árvores, aqueles sons, aqueles cheiros, aquela alegria no ar. Tudo aquilo era<br />

mui<strong>to</strong> mais do que aquilo que a sua gaveta guardava. Mas podia sempre guardar nessa<br />

gaveta um pouco de <strong>to</strong>da aquela magia. Sen<strong>to</strong>u-se, pegou no seu bloco e no lápis e desenhou<br />

o casal de namorados que passeava de mão dada. O senhor que ensinava o filho a andar de<br />

bicicleta. A velhota que empurrava um carrinho de bebé onde o Jerónimo adivinhou que<br />

estava o seu ne<strong>to</strong>. E tantas outras coisas.<br />

O avô estava mesmo orgulhoso do seu ne<strong>to</strong> e lembrou-lhe o prometido:<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 38 de 117


- Então, fazes um retra<strong>to</strong> do avô?<br />

- Ah! Sim, sim, faço avô.<br />

E fez. O avô gos<strong>to</strong>u tan<strong>to</strong> que abraçou o ne<strong>to</strong>, emocionado. E cumpriu o acordo:<br />

- Fica aqui a desenhar que vou ali comprar-te o gelado. Não demoro nada.<br />

E foi andando no seu passo len<strong>to</strong>, que afinal até demorava um bocadinho. Mas o Jerónimo<br />

não se importava de esperar. Tinha tantas coisas para desenhar.<br />

Continuou ali sentado, concentrado nos desenhos, sem dar pelo tempo passar. Daí que,<br />

quando um senhor se aproximou do banco, o Jerónimo tivesse pensado que era o avô. Mas<br />

quando levan<strong>to</strong>u os olhos do bloco, para olhar nos olhos do senhor, surpreendeu-se.<br />

- Olá menino.<br />

E o Jerónimo ficou atrapalhado:<br />

- Olá.<br />

- Posso ver os teus desenhos?<br />

- Sim.<br />

E estendeu-lhe o bloco. O senhor folheou-o atentamente. Só então Jerónimo reparou que o<br />

senhor tinha umas roupas mui<strong>to</strong> velhas, esburacadas. E tinha um aspec<strong>to</strong> sujo, com uma<br />

barba grande por fazer. Mas, estranhamente, isso não lhe provocou nenhum medo.<br />

O senhor devolveu-lhe o bloco:<br />

- Sabes que desenhas mui<strong>to</strong> bem?<br />

- Obrigado.<br />

E corou ligeiramente.<br />

- A sério. Eu também desenho às vezes. Sen<strong>to</strong>-me aqui no parque e desenho o que vejo, como<br />

tu. Às vezes as pessoas pedem-me que as desenhe. Depois compram-me os desenhos que<br />

faço.<br />

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O Jerónimo achava aquele senhor mui<strong>to</strong> simpático, apetecia-lhe conversar com ele:<br />

- A mim ninguém me pede desenhos. E quando os ofereço não os querem. Por isso guardo-os<br />

<strong>to</strong>dos na minha gaveta secreta, no meu quar<strong>to</strong>.<br />

- Eu não tenho casa onde possa guardar desenhos.<br />

E sen<strong>to</strong>u-se ao lado do Jerónimo, abatido.<br />

O Jerónimo teve pena daquele senhor. Era tão simpático. Gostava de desenhar, tal como ele.<br />

Devia ter uma casa para poder guardar os seus desenhos. Não ter que os vender às pessoas.<br />

Então, pegou no bloco que o avô lhe dera, e começou a desenhar algo. Quando acabou, fez<br />

uma coisa que tinha decidido nunca mais fazer:<br />

- Tome.<br />

E estendeu o desenho ao senhor.<br />

Quando o senhor pegou no desenho e viu o que o Jerónimo lhe tinha desenhado, chorou.<br />

Não de tristeza, mas de alegria. De gratidão. O Jerónimo desenhara-lhe uma casa. A casa que<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 40 de 117


ele não tinha. Uma casa melhor que qualquer casa que ele pudesse ter. Limpou as lágrimas<br />

e, quase sem conseguir falar, abraçou o Jerónimo:<br />

- Obrigado.<br />

O Jerónimo também ficou mui<strong>to</strong> feliz. Nunca ninguém tinha aceitado os seus desenhos de<br />

presente. Aquele senhor não tinha casa e o Jerónimo deu-lhe uma. A melhor que lhe podiam<br />

ter dado. Estavam os dois eternamente gra<strong>to</strong>s um ao outro.<br />

Sem que dessem conta, o avô chegou:<br />

- Jerónimo!<br />

- Olá avô!<br />

O avô estava assustado:<br />

- Quem é o senhor?<br />

E o senhor levan<strong>to</strong>u-se:<br />

- Não se preocupe, estava só a ver os desenhos do seu ne<strong>to</strong>.<br />

- Vá-se embora! Vagabundo.<br />

O Jerónimo ficou chateado com o avô. Mas o senhor respondeu mui<strong>to</strong> calmamente:<br />

- O senhor tem um ne<strong>to</strong> com um coração gigante fei<strong>to</strong> de ouro. Talvez devesse aprender algo<br />

com ele.<br />

E virando-se para o Jerónimo:<br />

- Adeus Jerónimo.<br />

-<br />

TRiiAd<br />

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Viagem<br />

A noite caiu,<br />

E com ela caiu a solidão,<br />

Apesar de não estar só,<br />

O meu coração reclama por companhia.<br />

A minha mente confusa e a<strong>to</strong>rmentada<br />

Urge por paz e descanso.<br />

Onde estás tu agora que preciso de ti?<br />

Quero-te aqui,<br />

Quero sentir-te jun<strong>to</strong> a mim,<br />

Quero amar-te,<br />

Tocar-te,<br />

Sentir o teu perfume,<br />

Fundir-me contigo<br />

E gritar…<br />

Gritar de paixão, loucura e alegria<br />

Porque sou feliz,<br />

Porque és o meu refúgio.<br />

E depois…<br />

Depois dormir e sonhar,<br />

Para logo logo acordar,<br />

E ver que a noite continua aqui<br />

E eu continuo sozinha.<br />

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-<br />

Screams<br />

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Momen<strong>to</strong> de Inspiração Numa Aula de Física<br />

Movimen<strong>to</strong> à sua volta disse a Haeren que a venda cobrindo os seus olhos iria ser retirada.<br />

Cerrando os maxilares e adoptando uma expressão séria e forte, preparou-se para enfrentar<br />

os seus cap<strong>to</strong>res. Tal esforço provou ser em vão quando a luz do sol o cegou com o regresso<br />

da visão e os seus olhos se focaram não num grupo de homens, mas nas formas insinuantes<br />

de uma mulher, de pé à sua frente. O seu choque apenas aumen<strong>to</strong>u quando se juntaram a<br />

ela mais três, duas ainda bastante novas, e uma algo mais velha.<br />

“Oh-oh! E ele acorda!” Fora a primeira mulher que falara, com um sorriso impossivelmente<br />

largo na face ainda obscura pelo contraste da luz. “Olá! Dormiste bem?” Continuou numa voz<br />

alegre, como se ele fosse um amigo chegado que passara a noite em casa dela. Extremamente<br />

consciente das amarras fortes impossibilitando qualquer movimen<strong>to</strong> da parte dele, Haeren<br />

simplesmente não percebia de onde vinha o bom humor.<br />

“Quem és?” Pergun<strong>to</strong>u, esforçando-se por parecer frio e digno, enquan<strong>to</strong> ajoelhado a seus<br />

pés.<br />

“Hm… Não sabes?” Ela aproximou-se, ignorando completamente a hostilidade, o que irri<strong>to</strong>u o<br />

seu prisioneiro ainda mais. “Ora, ora, e eu aqui a pensar que era famosa.” Com um pequeno<br />

riso inclinou-se, flectindo as pernas e ficando cara a cara com Haeren, revelando as feições<br />

de uma face oval, ousadamente bela, onde os traços fortes eram pontuados por insinuações<br />

de uma doçura escondida. “Vendo bem….Tu és diferente. Será que?…” e ergueu-se de novo.<br />

“Tu não és daqui, pois não?”<br />

Haeren permaneceu calado.<br />

“Nem de per<strong>to</strong>, pois não?” Insistiu. “Tens um ar estranho.”<br />

Uma das jovens por trás dela falou pela primeira vez.<br />

“Tem cara de nobre.” disse, olhando fixamente o homem amarrado, esperando uma resposta.<br />

Este apenas repetiu a pergunta anterior.<br />

“Quem és?” disse de novo, dirigindo-se à mulher que parecia ser a líder do pequeno grupo.<br />

Esta sorriu, afas<strong>to</strong>u ligeiramente os pés, colocou as mãos na cintura e anunciou com uma<br />

voz triunfal:<br />

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“Sou Tabasha, a Bazouk.”<br />

Tabasha, a designada Bazouk parecia satisfeita. Haeren apenas pestanejou.<br />

“….Bazouk?…”<br />

“Precisamente.”<br />

“E o que é isso?”<br />

De novo o sorriso lhe curvou os lábios, mesmo antes de ela fechar os olhos e, para comple<strong>to</strong><br />

horror de Haeren, a pele esticar, <strong>to</strong>rnando-se lívida, e a cara alargar até se assemelhar a um<br />

insec<strong>to</strong>. Asas romperam das suas costas, de pele, negras como crude, e <strong>to</strong>do o corpo perdeu<br />

qualquer traço de humanidade. Em apenas momen<strong>to</strong>s a mulher na sua frente <strong>to</strong>rnara-se<br />

numa criatura tão horrenda quan<strong>to</strong> assustadora, e lançou-se na sua direcção. Um som de<br />

surpresa saiu-lhe dos lábios, e ele atirou-se para trás, numa tentativa fútil de lhe escapar.<br />

Incapaz de desviar o olhar, pôde apenas notar que garras aguçadas se aproximavam da sua<br />

face e, no momen<strong>to</strong> em que se preparava para sentir os seus olhos serem arrancados, o<br />

monstro desapareceu. Bem per<strong>to</strong> da sua face estavam apenas as mãos de Tabasha e a sua<br />

cara sorridente. Com uma palmadinha no queixo de Haeren e um risinho, afas<strong>to</strong>u-se um<br />

pouco, dando espaço para ele perceber que com o pânico acabara de costas, as mãos<br />

esmagadas pelo seu próprio peso e o peso de Tabasha, sentada confortavelmente nos seus<br />

abdominais, uma perna em cada lado do seu corpo.<br />

“E então? Medo?” Pergun<strong>to</strong>u ela, inclinando-se de novo para a frente, apoiando a cabeça nas<br />

mãos e os co<strong>to</strong>velos no pei<strong>to</strong> do homem que, perfeitamente imóvel por baixo dela, tentava<br />

digerir o choque. A mulher mais velha escolheu essa altura para se aproximar, observando o<br />

cenário com um sorriso trocista nos lábios finos.<br />

“Ele consegue fechar a boca, ou precisa de ajuda?”<br />

A is<strong>to</strong> Haeren fechou-a rapidamente com um bater de dentes audível, o que lançou o riso<br />

entre as duas mulheres. Sentindo-se humilhado e, agora que o choque passara, furioso,<br />

chamou a si as suas forças, fincou os co<strong>to</strong>velos no chão e usou-os como apoio para se lançar<br />

em frente, apanhando Tabasha de surpresa e colidindo as suas cabeças, fazendo a mulher<br />

cair para lá dos seus joelhos e ficar por terra, sem se mexer. Imediatamente uma espada<br />

embainhada bateu no lado da sua cabeça, rasgando-lhe a orelha, mas sem força o suficiente<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 45 de 117


para o fazer perder o equilíbrio. Conseguindo pôr-se de joelhos, Haeren virou-se para a nova<br />

ameaça esperando pelo próximo golpe quando uma voz os interrompeu.<br />

“Não, espera.” A mulher parou o movimen<strong>to</strong>, baixando a espada a contra-gos<strong>to</strong>. Tabasha<br />

sentara-se, uma mão na sua testa, a outra gesticulando para a guarda se afastar. “Deixa<br />

estar.”<br />

No entan<strong>to</strong>, Haeren não vira nada disso, ficando paralisado por algo que só os seus olhos<br />

podiam fitar. Uma visão, um fantasma, tentava a sua mente dizer, enquan<strong>to</strong> ele permanecia<br />

transfixo, vendo quase sem ver como a jovem que não podia estar ali sentada movia a sua<br />

mão para olhar o sangue que a manchava, o mesmo que corria livre pela face redonda e<br />

pequena, brotando do corte que lhe desfigurava a sobrancelha. O corte que ele fizera. Por<br />

mais que tentasse, a irrealidade do que estava a ver não era o suficiente para travar a dor<br />

familiar crescente no seu pei<strong>to</strong>, perda, raiva e culpa numa junção constri<strong>to</strong>ra que lhe<br />

roubava o ar dos pulmões.“Adhara…” Ela estava morta. Morrera. Mas estava ali, tristeza e<br />

dor no seu olhar de chocolate. Firmemente ele abanou a cabeça, forçando tal visão a<br />

desaparecer, tentando invocar a imagem de Tabasha, pois só podia ser ela ali no chão, fora<br />

ela que ele ferira e não Adhara, não ela. A jovem que lhe roubara a alma e o coração com um<br />

sorriso desarmante morrera há anos, mais dos que ele queria ter de recordar. Pálpebras<br />

abriram-se de novo. “Não és…não podes…”<br />

Adhara movera-se, aproximando-se, uma mão procurando <strong>to</strong>car-lhe. Tudo nela era<br />

dolorosamente real, desde a pele morena às feições sossegadas e inteligentes. Haeren sentiu<br />

os olhos arder com lágrimas há mui<strong>to</strong> suprimidas e ten<strong>to</strong>u uma última vez, sabendo que não<br />

resistiria se ela lhe <strong>to</strong>casse.<br />

“Estás morta..”<br />

A mão parou.<br />

“Es<strong>to</strong>u?” O ar surpreendido na face de Adhara permaneceu na face de Tabasha, mesmo<br />

depois de a visão se ter desvanecido. “Ela morreu?”<br />

Mesmo sabendo que o que vira não poderia ser real, ainda assim a confirmação da verdade<br />

foi como uma bofetada, e o conhecimen<strong>to</strong> que uma mulher tão diferente estivera <strong>to</strong>do esse<br />

tempo no lugar da aparição fez com que <strong>to</strong>da dor se <strong>to</strong>rnasse raiva, um sentimen<strong>to</strong> de<br />

invasão violadora de tal forma forte que Haeren se esqueçeu de si, o instin<strong>to</strong> levando-o a usar<br />

<strong>to</strong>das as suas forças na determinação de não deixar que Tabasha o <strong>to</strong>casse. De novo de<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 46 de 117


costas no chão, conseguiu afastar-se dela, desejando nada mais que fazê-la desaparecer da<br />

sua frente.<br />

Ela, por seu lado, estava petrificada no lugar, o conhecimen<strong>to</strong> do que fizera lentamente a<br />

definir-se. Era uma manobra de au<strong>to</strong>-preservação, tão treinada e usada durante <strong>to</strong>da a sua<br />

vida que nem sequer pensara antes de chamar a mente de Haeren, e escolher a figura<br />

feminina mais proeminente das memórias dele. Que afinal morrera, e se ela tivesse de<br />

adivinhar, diria em circunstâncias drásticas, provavelmente marcando o homem que tentava<br />

a <strong>to</strong>do o cus<strong>to</strong> manter a distância entre eles naquele momen<strong>to</strong>. Erguendo-se, deu um passo<br />

na sua direcção, apenas para parar abruptamente quando Haeren vociferou:<br />

“Afasta-te de mim!!”<br />

“Calma!” Contra sua vontade, Tabasha começava a sentir-se culpada. “Tem calma.”<br />

“Afasta-te!”<br />

“Ouve, não era a minha intenção m–”<br />

“Vai para o Vazio com as tuas intenções, filha de um Pharisma!”<br />

Ela ergueu as sobrancelhas, não apanhando o insul<strong>to</strong>.<br />

“De um Bazouk. Sou filha de um Bazouk.”<br />

Haeren ignorou-a, sentando-se a cus<strong>to</strong> de novo, a cabeça descaindo até quase <strong>to</strong>car nos<br />

joelhos. Tabasha por seu lado, ainda esboçou um passo, arrependimen<strong>to</strong> começando a notar-<br />

se nos seus olhos. Parou, esperou, e por fim desistiu, fazendo sinal à guarda e juntas<br />

afastaram-se.<br />

“Eu não sabia que ele ia ficar assim.” disse, falando baixo. “Coitado… Sphire, achas que–”<br />

“Ele não é nosso convidado, nem amigo, se queres saber o que eu acho.” re<strong>to</strong>rquiu ela,<br />

parando para fitar a sua líder. “Não es<strong>to</strong>u a ver porque estás tão preocupada.”<br />

“Não es<strong>to</strong>u.” suspirou. “Mas também não gos<strong>to</strong> de dar golpes baixos.”<br />

A cara que Sphire fez mostrava perfeitamente a noção que ela tinha de golpes baixos.<br />

“Enfim. Baixo ou não, o que fizeste resul<strong>to</strong>u, e acho que ele não se vai mexer tão cedo. Vou<br />

ajudar as gémeas, já venho.”<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 47 de 117


Tabasha anuiu distraidamente, a sua atenção focada na figura de Haeren, que permanecia<br />

sentado, a cabeça sobre os joelhos, e as mãos atadas cerradas em punhos.<br />

-<br />

Selenia<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 48 de 117


Abandono<br />

Se pudesse fugir para ti,<br />

se pudesse fugir de ti,<br />

mas já não há caminhos para descobrir.<br />

As estradas estão fechadas,<br />

não há razões para fugir<br />

nem as há para ficar.<br />

As razões foram-se com o ven<strong>to</strong><br />

as esperanças também.<br />

Ten<strong>to</strong> <strong>to</strong>car-te mas estás demasiado longe.<br />

Ten<strong>to</strong> <strong>to</strong>car-me mas já aqui não es<strong>to</strong>u,<br />

a minh’alma está longe<br />

tentando soltar-se de ti.<br />

Sigo o caminho mental<br />

dos teus passos ao longe<br />

mas nem por isso<br />

sin<strong>to</strong> o teu <strong>to</strong>que na face.<br />

Insis<strong>to</strong> em querer fugir<br />

para qualquer lugar,<br />

se lá estiveres ficarei<br />

quero a minh’alma para a abandonar.<br />

Quero-te,<br />

mas não te quero…<br />

quero ter liberdade para escolher,<br />

a relativa liberdade do tempo.<br />

Ter tempo para sair daqui,<br />

tempo para ver novos horizontes,<br />

para te amar sem pressas,<br />

para te odiar sem demoras.<br />

Este que aqui jaz<br />

e a porta pela qual entrei<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 49 de 117


só abre neste sentido,<br />

nesta minha casa sem janelas.<br />

Na minha cama,<br />

não repousa nenhum corpo.<br />

Nos meus pra<strong>to</strong>s,<br />

não come ninguém,<br />

pois eu já aqui não es<strong>to</strong>u…<br />

nem aqui nem em lugar algum.<br />

Não sou nada porque permaneço<br />

sem dor, amor, razão ou sentido!<br />

-<br />

Lyquid<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 50 de 117


A Última Noite<br />

3º Prémio no passatempo “Dragões”<br />

Ele fechou os olhos e sentiu a brisa. Fresca, leve… deixou-se ficar assim por uns minu<strong>to</strong>s.<br />

Quando finalmente se decidiu a abrir os olhos, já o céu se tinha tingido de <strong>to</strong>ns vermelhos,<br />

laranjas e amarelos. Do sítio onde ele estava sentado era um espectáculo avassalador. Picos<br />

brancos contrastavam com os <strong>to</strong>ns quentes do céu, e uma leve neblina prateada dava a<br />

ilusão de estarem suspensos no ar, como ilhas em mar al<strong>to</strong>.<br />

Respirou fundo e levan<strong>to</strong>u-se. Apesar de já repetir este ges<strong>to</strong> há eternidades sentia sempre<br />

uma vertigem, uma sensação de pressão no pei<strong>to</strong>. Por baixo dele estava um vale imenso<br />

onde, através da neblina, se conseguiam distinguir um rio serpenteante e um pequeno<br />

conjun<strong>to</strong> de pon<strong>to</strong>s - a sua aldeia.<br />

Enquan<strong>to</strong> olhava para a sua aldeia e pensava em <strong>to</strong>dos aqueles que lhe eram queridos, o céu<br />

escureceu. Os <strong>to</strong>ns vermelhos foram substituídos pelo negro, e pequenas estrelas foram<br />

aparecendo. Estava na altura.<br />

Quando a lua ficou <strong>to</strong>talmente a descober<strong>to</strong>, tudo começou. O seu corpo alongou-se até<br />

aparecer uma cauda, das suas costas brotaram duas asas, enormes e reptilianas, as suas<br />

mãos e pés transformaram-se em garras, e perdeu as feições humanas.<br />

O último passo desta fabulosa transformação foi o aparecimen<strong>to</strong> das escamas. Vermelhas,<br />

luzidias e espessas. E tudo is<strong>to</strong> se tinha passado em apenas alguns segundos, como uma<br />

explosão mágica. Era esta a sua bênção (ou maldição), <strong>to</strong>das as noites, ao aparecer a lua,<br />

perdia a forma humana transformava-se nesta criatura mítica. Sem dor ou perda da sua<br />

consciência humana.<br />

Endirei<strong>to</strong>u o corpo e distendeu as asas, mostrando <strong>to</strong>da a sua magnitude sob a luz do luar.<br />

Começou a movimentá-las, pouco a pouco, como que a testá-las. Quando parou, deu um<br />

passo em frente e deixou-se cair através da neblina. Emergiu um pouco mais à frente,<br />

planando suavemente.<br />

Adorava voar, sentir o ar fresco da noite no corpo. Ser livre e planar sobre o mundo. Mas esta<br />

seria a sua última noite. Tudo acabaria hoje.<br />

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Pensou em como tudo começara e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Na altura não passava<br />

de um jovem mimado e caprichoso. E o seu maior capricho era conseguir a imortalidade.<br />

Infelizmente esse capricho tinha-lhe sido concedido por uma maga de uma terra distante - a<br />

mesma que ele ia hoje visitar.<br />

Olhou em volta e viu que já estava na foz do rio. À sua frente estendia-se o oceano. O mesmo<br />

que há cem anos atrás tinha percorrido. Continuava belo e infini<strong>to</strong>. Só que agora a viagem<br />

seria mais rápida. As suas asas eram bem mais velozes que qualquer barco. E o aper<strong>to</strong> no<br />

seu coração mais forte.<br />

Deixou o verde dos campos e embrenhou-se no azul profundo. O azul do mar e o negro do<br />

céu fundiam-se, apenas distin<strong>to</strong>s pela lua e o seu reflexo.<br />

Enquan<strong>to</strong> percorria a vastidão que o separava do seu destino, apenas um pensamen<strong>to</strong> lhe<br />

ecoava na mente. As palavras da velha maga - “A imortalidade apenas existe sob a forma do<br />

dragão. Quando deixares de te transformar morrerás”. Na altura tinha rido, nunca tinha<br />

considerado a hipótese de morrer. Mas nesta altura parecia-lhe o único descanso possível.<br />

Vieram-lhe à memória pequenos flashes do ritual que o tinha transformado. Um punhal<br />

lívido manchado de vermelho carmim. A dor flamejante. E o medalhão. O medalhão de prata<br />

resplandecente, com um dragão entalhado a rodear o seu sangue cristalizado.<br />

Respirou fundo e concentrou-se no voo. Precisava de <strong>to</strong>dos os seus sentidos para atingir o<br />

seu objectivo. Perscru<strong>to</strong>u a escuridão durante horas até o encontrar: a <strong>to</strong>rre da maga.<br />

Resplandecia em <strong>to</strong>ns pálidos de azul, no coração do oceano, erguendo-se vários metros<br />

acima dele. Parecia ondular como uma miragem, uma ilusão.<br />

Rodeou-a várias vezes até encontrar a entrada, escondida pela rebentação das ondas. Ao<br />

entrar, pequenos fiapos de espuma branca caíam sobre ele. Encontrava-se agora numa<br />

ampla gruta iluminada pela luz bruxuleante dos archotes. Numa reentrância da rocha<br />

encontrava-se uma escada esculpida, que subia numa espiral apertada. Ele subiu. Pé ante<br />

pé, pouco a pouco, pois o espaço exíguo não lhe permitia voar. À medida que se distanciava<br />

da gruta o ambiente ficava gradualmente mais iluminado, com uma luz branca que o cegava.<br />

Sentiu o coração a ficar cada vez mais apertado. Estava a caminhar para a sua morte.<br />

No <strong>to</strong>po das escadas encontrava-se um salão imenso, sem janelas para o exterior, e de um<br />

branco resplandecente. As paredes estavam cobertas por medalhões que tremeluziam, cada<br />

um com um pequeno cristal colorido no seu centro - o selo de sangue. No centro do salão<br />

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estava um caldeirão negro e ao seu lado outro dragão. De cor negra, esbelta e altiva, tinha os<br />

olhos verdes-esmeralda fixos nele. Era a maga.<br />

Ele aproximou-se sem quebrar o olhar e falou:<br />

“Desde a última vez que aqui estive, mui<strong>to</strong> mudou. Já vivi o suficiente para aprender que não<br />

quero viver para sempre. Já vi partir <strong>to</strong>dos aqueles que amei, já não tenho nada aqui. Quero<br />

parar de chorar e partir em paz. Quero quebrar o selo.”<br />

Ela anuiu. Se esse era o seu desejo não o iria impedir. Levan<strong>to</strong>u-se e dirigiu-se a uma das<br />

paredes, a um medalhão. Este tinha a pedra da mesma cor que as escamas dele, vermelho<br />

profundo. Vol<strong>to</strong>u para jun<strong>to</strong> dele e pôs-lho em volta do pescoço.<br />

“Para quebrares o selo tens de o expor à luz do amanhecer. Quando o fizeres partirás para<br />

sempre. Não há volta possível”.<br />

Ele aper<strong>to</strong>u o medalhão com força e sorriu. Assim seria.<br />

Desceu as escadas e saiu da gruta, voando com crescente energia. Procurou terra o mais<br />

rápido possível, com o céu a <strong>to</strong>rnar-se gradualmente mais claro e o mar mais resplandecente.<br />

Quando alcançou a foz do seu rio os primeiros raios da manhã começavam a despontar,<br />

enchendo o céu de <strong>to</strong>ns pastel. Tinha de alcançar o cimo da montanha antes do amanhecer.<br />

Quando finalmente o alcançou olhou para a sua aldeia. Fechou os olhos e recordou <strong>to</strong>dos<br />

aqueles que amou. Não viu o nascer do sol, mas sentiu-o no seu corpo.<br />

E nesse momen<strong>to</strong>, enquan<strong>to</strong> no coração do oceano um dragão se transformava numa maga<br />

de longos cabelos negros e olhos verdes-esmeralda, ele desvanecia. Até que no final apenas<br />

restava um rastro cintilante de poeira avermelhada.<br />

-<br />

Bubbles<br />

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Con<strong>to</strong> Infantil – Dragão<br />

Era uma vez num reino distante<br />

um pequeno dragão de tamanho gigante.<br />

Por tudo e por <strong>to</strong>dos era temido<br />

mas tudo o que queria era ter um amigo.<br />

Na aldeia vizinha vivia um rapaz<br />

menino de rua de nome Tomás.<br />

Comparado com os outros era pequeno,<br />

o pequeno Tomás, magro e moreno.<br />

O dragão era verde como a relva do monte<br />

e voava ao longe no horizonte.<br />

O Tomás intrigado não percebia<br />

o que era aquilo que ali via.<br />

Curioso e animado dirigiu-se para o monte<br />

Subindo a rua, atravessando a ponte<br />

O dragão divertido sozinho voava<br />

sem fazer ideia do que lhe esperava.<br />

Cada vez mais se foi aproximando,<br />

alegre, contente e assobiando.<br />

O dragão, com boa audição<br />

parou de voar <strong>to</strong>cando no chão.<br />

“Que som é este” pensou o dragão<br />

vendo o que vinha na sua direcção.<br />

Depressa voou em direcção ao Tomás,<br />

que ousado era aquele rapaz!<br />

Tomás vendo o dragão<br />

riu-se e sen<strong>to</strong>u-se no chão.<br />

“O que és tu, grande animal?”<br />

O dragão intrigado achava aquilo anormal!<br />

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O menino não gritava nem fugia,<br />

não podia acreditar naquilo que via.<br />

“Eu sou o dragão verde do monte!<br />

Vôo sozinho no horizonte<br />

E tu quem és, menino ousado?<br />

Que fazes aqui despreocupado?”<br />

“Sou o Tomás, mui<strong>to</strong> prazer.<br />

Vim aqui para te ver!<br />

Não tenho amigos nem o que comer<br />

durmo na rua mesmo se chover.<br />

Vivo de esmolas e compaixão<br />

quero ser teu amigo meu grande dragão!”<br />

“Pequeno Tomás, meu rapazinho<br />

assim como tu eu vivo sozinho.<br />

Fico contente por falar contigo<br />

pois como tu não tenho um amigo.”<br />

O pequeno Tomás, alegre, contente<br />

tinha um novo amigo à sua frente.<br />

Um amigo gigante, fora do normal<br />

mas também um amigo não era habitual.<br />

“Grande dragão, quero ser teu amigo,<br />

pega em mim, leva-me contigo!”<br />

O grande dragão nem podia acreditar,<br />

o seu grande sonho prestes a se concretizar.<br />

Pegou no menino e bateu as asas<br />

voando bem al<strong>to</strong> por cima das casas.<br />

Com gargalhadas e mui<strong>to</strong>s sorrisos<br />

voaram felizes os dois amigos.<br />

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-<br />

Archie<br />

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Acordar<br />

Acordou, e de um momen<strong>to</strong> para o outro sentiu a água quente do chuveiro arrancar-lhe o<br />

ultimo vestígio de sono do seu corpo. Acordou sem dificuldades, sentiu o corpo seco debaixo<br />

de um roupão confortável. No quar<strong>to</strong> abriu a janela para um sol resplandecente que não lhe<br />

magoou os olhos, o ga<strong>to</strong> não lhe mordia as pernas, mas antes sentava-se ao seu lado<br />

ronronando levemente. A roupa e o seu corpo uniram-se. Estava confortável como nunca<br />

havia estado. Os livros estavam leves debaixo do seu braço, as palavras neles escritas não<br />

faziam sentido mas ele não se importava. O cabelo ao ven<strong>to</strong> não ia parar irritantemente à<br />

frente dos olhos, nesse dia permanecia no sítio que lhe era destinado. O café soube-lhe bem,<br />

não estava quente, não estava frio. A barriga não o incomodava quando estava sentado no<br />

café. O copo de água era fresco e não sabia a nada. O jornal não fazia sentido, mas ele lia-o<br />

religiosamente como se fosse algo normal. Não havia barulho no café senão o dos pássaros lá<br />

fora, carros passavam na rua mas o barulho não o irritava. Estava em paz. Levan<strong>to</strong>u-se sem<br />

dificuldade, o dinheiro apareceu no balcão, disse até logo ao velho e foi-se embora. Os sons<br />

soavam-lhe como musica e não como o som irritante e desconcertante que <strong>to</strong>dos os dias lhe<br />

moía o cérebro quando saia à rua. Não tinha dores nos pés, não tinha dores nas pernas, não<br />

se sentia fatigado, mas sim rejuvenescido, estranhamente não o estranhou. Caminhou<br />

solenemente com os olhos colados no sol que não o magoava. O ven<strong>to</strong> não lhe atirava a roupa<br />

para trás causando-lhe desconfor<strong>to</strong>. Não estava frio. Deu-lhe uma vontade de correr para<br />

uma praia só porque imaginou a frescura de um mergulho no mar. Fechou os olhos e lá<br />

estava ele, mergulhado no meio das ondas, o corpo fresco mas sem dor, as ondas eram<br />

enormes mas não perigosas sentiu algo nas pernas que não o deixava afundar-se mas não<br />

lhe ligou, era algo que o empurrava para cima, mas apenas o suficiente para ficar com a<br />

cabeça de fora da agua, ficou lá durante horas e horas, a pele não lhe ficou roxa, o corpo não<br />

teve frio, caminhou para fora da agua, abriu os olhos e encontrou-se de novo na rua.<br />

Continuou e pôs-se a pensar, enquan<strong>to</strong> caminhava quase de olhos fechados, que não houve<br />

necessidade de apanhar o au<strong>to</strong>carro nesse dia, nunca mais iria apanhar o au<strong>to</strong>carro. Is<strong>to</strong><br />

deu-lhe um sentimen<strong>to</strong> de alegria pois odiava o au<strong>to</strong>carro fechado onde <strong>to</strong>da a gente cheirava<br />

mal. Era abafado, escuro, poeiren<strong>to</strong>, barulhen<strong>to</strong> e apertado, odiava o au<strong>to</strong>carro e o seu<br />

condu<strong>to</strong>r. Odiava tudo o que lhe tirava o uso às pernas e lhe cortava a decisão de onde parar<br />

e onde andar. Sentiu-se de repente atrasado, cada vez mais atrasado, correu sem parar,<br />

correu mais do que <strong>to</strong>das as outras pessoas que corriam arrastando malas, crianças ao colo<br />

que não lhes ligavam nenhuma nem desejavam correr, algumas arrastavam carcaças<br />

desfiguradas de cônjuges, namorados ou namoradas enquan<strong>to</strong> gritavam desalmadamente<br />

que tinham de ir mais rápido, mui<strong>to</strong> rápido, tinham de lá chegar mais rápido. Correu mais<br />

rápido que eles <strong>to</strong>dos, saltando sem dificuldades sobre bancos e corpos deitados no passeio<br />

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que não aguentaram a correria e se <strong>to</strong>rnaram vagabundos. Chegou, sen<strong>to</strong>u-se para<br />

descansar e num segundo o seu corpo recuperou, perdeu o suor e o mau cheiro. Olhou para<br />

as pessoas que chegavam a correr e a sentarem-se, elas não recuperavam, ficavam<br />

molhadas, submersas no seu esforço e suor, correram tan<strong>to</strong> para apenas chegarem a um<br />

sítio que nunca iria a lado nenhum. Perguntaram-lhe aos gri<strong>to</strong>s se ele tinha vis<strong>to</strong>, se tinha<br />

lido, se tinha fei<strong>to</strong>, se tinha pensado, berravam-lhe na cara, quase cuspindo enquan<strong>to</strong><br />

gritavam. Tentaram agarrar-lhe o pescoço para o abanar e o obrigar a responder, mas havia<br />

uma barreira invisível que os impedia de lhe <strong>to</strong>carem. Calmamente fi<strong>to</strong>u-os, respondeu-lhes<br />

que não, que não havia fei<strong>to</strong> nada daquilo que eles queriam, ordenou-lhes que<br />

desaparecessem e eles desapareceram. Não se sentiu nunca intimidado com eles naquele dia.<br />

Naquele dia ele mandava, tudo lhe saia bem, tudo lhe corria bem. “Um bom dia”, pensou ele<br />

levantando-se da cadeira e saindo de novo para encontrar <strong>to</strong>da a gente parada à espera de<br />

uma voz que lhes dissessem para onde ir.<br />

De repente uma voz saiu de uma janela qualquer. Ordenou-lhes que se dirigissem para as<br />

aulas. Não sabia se teria sido uma voz tirana ou apenas um sinal sonoro, ou mesmo uma voz<br />

imaginária dentro das suas cabeças que lhes dizia as horas correctas para se moverem para<br />

os seus lugares. Neste dia a voz não o irri<strong>to</strong>u, pelo contrário a voz confor<strong>to</strong>u-o. Contente por<br />

ter ouvido algo que lhe dissesse o que ele queria, dirigiu-se à sala de aula. Estava a sala<br />

vazia, entrou, escolheu o lugar ao lado da janela onde uma brisa agradável entrava e o sol lhe<br />

batia apenas nas pernas. A brisa nesse dia não lhe cheirava mal, não tinha o cheiro das<br />

máquinas que lá fora costumavam trabalhar. O sol não o chateava nem lhe dava calor a<br />

mais. Pelo contrário, aquecia-o até ao pon<strong>to</strong> de ele ficar mole e descontraído.<br />

O professor era o mesmo de sempre, mas tinha perdido o ar malvado, andava descontraído,<br />

sorrindo para os alunos que tinham aparecido na sala sem mais nem menos.<br />

Para sua admiração o professor sen<strong>to</strong>u-se na mesa com as pernas cruzadas, falou<br />

alegremente aos alunos dizendo que naquele dia iriam descobrir algo que não sabiam.<br />

Iriam pensar por eles próprios disse o professor. Os alunos con<strong>to</strong>rceram-se<br />

desconfortavelmente nas suas cadeiras. Pensar por eles próprios, usar pensamen<strong>to</strong>s<br />

criativos, que ideia nova era esta que eles não compreendiam? O professor rindo-se das suas<br />

figuras como quem ri de um ga<strong>to</strong> que corre atrás de uma mosca acalmou-os.<br />

- Calma gente… é apenas para vocês descobrirem que podem pensar como aqueles que vocês<br />

estudam, nunca serão avaliados pelo vosso pensamen<strong>to</strong>, para dizer a verdade, vocês nunca<br />

foram em algum momen<strong>to</strong> da vossa vida avaliados pela maneira como pensam.<br />

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Imediatamente os alunos calaram-se e ficaram tranquilos à excepção de alguns sussurros de<br />

admiração.<br />

Acordado pela brisa agradável da janela, o rapaz alegrou-se, finalmente iria ser senhor dos<br />

seus pensamen<strong>to</strong>s, iria poder expor o que achava.<br />

O professor disse que deixaria os alunos escrever sobre o que quisessem, desde que fosse<br />

algo relacionado com algo que amassem.<br />

Com is<strong>to</strong> ainda mais contente o rapaz ficou, escrever algo sobre as coisas que amava não<br />

seria difícil para ele. Pôs-se direi<strong>to</strong> na cadeira e pegou na caneta para começar a escrever no<br />

papel. Olhou em frente e viu os outros alunos parados, a olharem uns para os outros sem<br />

saberem o que fazer. Pensou se eles amariam alguma coisa, pensou se eles estariam<br />

dispos<strong>to</strong>s a dizer no papel o que amavam no que amavam.<br />

Quando baixou a cabeça para o papel para começar a escrever sobre o que adorava e achava<br />

tão fascinante sobre mergulhos no mar, no<strong>to</strong>u pelo can<strong>to</strong> do olho uma rapariga que nunca<br />

tinha vis<strong>to</strong>. Sentada à janela a apanhar uma leve brisa enquan<strong>to</strong> o sol lhe aquecia as pernas,<br />

ela apoiava o cara na mão enquan<strong>to</strong> esperava que os outros acabassem de escrever. Ela tinha<br />

um molho de páginas escritas em cima da mesa. Ele pensou como é que ela poderia escrever<br />

sobre algo que amava tão rapidamente, o que será que ela amava tan<strong>to</strong> ao pon<strong>to</strong> de poder<br />

dizer rapidamente tantas coisas sobre o que quer que amasse!?<br />

Ele olhou para ela demoradamente. Tinha roupas que pareciam uma segunda pele de tão<br />

adequadas que eram, uma combinação da cor verde e da cor laranja nas roupas cobria-lhe o<br />

corpo. Os olhos verdes e grandes olhavam para a janela em direcção ao mar que se via da<br />

janela. O cabelo era ligeiramente encaracolado, ou talvez ondulado pelos ombros. Não parecia<br />

um cabelo normal, era vivo, se ela se mexia o cabelo mexia-se com ela, tinha uma cara vulgar<br />

mas linda, era uma daquelas caras que adquiria beleza quando fazia uma expressão, se ela<br />

sorria ou suspirava, a cara dela mudava e apareciam novos aspec<strong>to</strong>s que não tinham antes<br />

aparecido. Era como olhar e estar à espera que aparecessem umas covinhas na cara dela<br />

quando sorria e se espreguiçava por estar tão preguiçosa.<br />

O rapaz apaixonou-se logo ali, mas não era amor, era fascinação, paixão. Olhava-a sem<br />

conseguir desviar os olhos, ela deixou escapar um sorriso quando viu que ele a olhava.<br />

O rapaz decidiu escrever sobre ela, achou logo ali que se tinha apaixonado e que a amava. Se<br />

tinha que escrever sobre algo que amava então porque não escrever sobre ela, pensou ele.<br />

Concentrou-se e pousou a caneta no papel para começar a escrever. Mas quando ia para<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 59 de 117


começar a escrever lembrou-se que não sabia nada sobre ela, nem sequer o seu nome.<br />

Pensou que mesmo assim poderia escrever algo sobre ela, afinal de contas amava-a. Olhou<br />

de novo para ela e ficou de novo calmo e ten<strong>to</strong>u escrever. Lentamente o sol desapareceu da<br />

sua janela, a tarde avançava e o sol também. Sem o sol o ven<strong>to</strong> <strong>to</strong>rnou-se frio e ele fechou a<br />

janela, minu<strong>to</strong>s passaram e o papel estava em branco. O rapaz sentiu-se a ficar abafado<br />

naquele can<strong>to</strong>, tirou a camisola pois estava cheio de calor. Quando a tirou no<strong>to</strong>u que a T-<br />

shirt estava molhada de suor. Sentiu-se desconfortável. O suor incomodava-o, fazia com que<br />

se sentisse sujo, inaceitável. Ten<strong>to</strong>u mesmo assim escrever, olhou para a rapariga para se<br />

acalmar, mas quando levan<strong>to</strong>u a cabeça ela olhava-o com o olhar triste, o sol também tinha<br />

desaparecido da sua janela e o ven<strong>to</strong> <strong>to</strong>rnara-se frio.<br />

O professor entrara na sala com uma cara severa dizendo:<br />

- O sol desapareceu, o ven<strong>to</strong> <strong>to</strong>rnou-se frio, es<strong>to</strong>u chateado, espero que tenham escri<strong>to</strong><br />

alguma coisa que me agrade.<br />

O rapaz olhou para o seu papel onde inconscientemente escreveu sem parar “ Não conheço o<br />

que amo”. Escreveu is<strong>to</strong> em páginas e páginas e páginas. Entretan<strong>to</strong> o professor pedia as<br />

folhas de volta, <strong>to</strong>dos tinham escri<strong>to</strong> algo, a rapariga entregou uma folha com uma frase<br />

apenas e atirou as outras pela janela.<br />

O professor dirigiu-se a ele com uma cara severa dizendo:<br />

- Isso demora mui<strong>to</strong> ou queres escrever mais uma vez a mesma frase!?<br />

Entregou as folhas e correu lá para fora ouvindo o professor a gritar entre risos sádicos e<br />

gozões:<br />

- Para onde corres seu burro!? Até parece que tens algo à tua espera …<br />

Chegando lá fora pergun<strong>to</strong>u aos berros onde estava ela, para que lado tinha ido. Obrigou-os<br />

a responder quando os agarrou pelo pescoço. Apontaram-lhe a direcção certa e ele correu,<br />

correu ultrapassando <strong>to</strong>dos, até que a viu ao longe. Estranhou ter demorado tan<strong>to</strong> tempo a<br />

apanhá-la vis<strong>to</strong> que ela caminhava lentamente. Ten<strong>to</strong>u correr mais depressa, queria alcançá-<br />

la a <strong>to</strong>do o cus<strong>to</strong> mas quan<strong>to</strong> mais corria, quan<strong>to</strong> mais desejava <strong>to</strong>car-lhe, mais ela parecia<br />

distante. Desesperado ten<strong>to</strong>u puxá-la, estava a centímetros dela mas mesmo assim parecia<br />

não conseguir <strong>to</strong>car-lhe. Chorando ajoelhou-se e gri<strong>to</strong>u para que ela parasse e o ouvisse.<br />

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A rapariga vol<strong>to</strong>u-se para trás e pergun<strong>to</strong>u-lhe porque corria ele quando caminhar na<br />

direcção certa bastava. Porque gritava ele quando falar bastava.<br />

O rapaz levan<strong>to</strong>u-se lentamente sem nunca tirar os olhos da cara da rapariga dizendo-lhe<br />

que a amava, que a queria conhecer porque a amava, queria saber tudo sobre ela porque a<br />

amava.<br />

A rapariga desiludida respondeu com uma pergunta:<br />

- Como podes amar o que não conheces!? Como podes tu querer conhecer algo que dizes<br />

amar, quando podes vir a odiar quando passares a conhecer!? Tu não me amas, nem nunca<br />

me amarás, poderás vir a odiar-me, mas nunca me amarás porque o que amas não é eu, mas<br />

outra pessoa com a minha cara…<br />

O rapaz desiludido mas calmo, pergun<strong>to</strong>u à rapariga o que tinha ela escri<strong>to</strong> no papel que<br />

entregou ao professor. Ela respondeu que tinha escri<strong>to</strong> que amava quem se dava ao luxo de<br />

perder horas e horas a conhecer as coisas antes de as amar.<br />

Fechou os olhos zangado com as suas asneiras, quando os abriu já lá não estava a rapariga,<br />

ao longe ela caminhava debaixo do sol com a brisa a parecer que a empurrava para longe<br />

dele.<br />

Levan<strong>to</strong>u-se na sombra, uma nuvem teimava em tapar o sol por cima dele <strong>to</strong>rnando o ven<strong>to</strong><br />

frio, ven<strong>to</strong> que passou de uma brisa para um ven<strong>to</strong> tão forte que parecia querer arrancar-lhe<br />

tudo o que tinha.<br />

Olhou em volta e viu de novo as pessoas a correr, a arrastarem carcaças, e no meio de uma<br />

delas encontrou um homem triste, desesperado arrastando a carcaça desfigurada da sua<br />

mulher. Era horrível, ninguém dizia nada, <strong>to</strong>dos passavam a correr pelo pobre homem que<br />

carregava a carcaça, deambulando pelo fim de tarde escuro e ven<strong>to</strong>so, sem rumo o homem<br />

chorava.<br />

O rapaz dirigiu-se a ele e pergun<strong>to</strong>u se ele queria ajuda, o homem respondeu:<br />

- Que sabes tu!? Eu não sabia, eu não sabia. Ela morreu e eu não sabia, não sabia nada,<br />

como posso lembrar-me dela se não é dela que eu me lembro, se não posso carregar as suas<br />

memórias carrego a sua carcaça pois era isso apenas o que eu conhecia…<br />

Vol<strong>to</strong>u a casa e dei<strong>to</strong>u-se, adormeceu.<br />

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Acordou, levan<strong>to</strong>u-se e deu um passo, bateu com a perna na cadeira, injuriou tudo e <strong>to</strong>dos,<br />

enquan<strong>to</strong> abria a janela o ga<strong>to</strong> mordia-lhe os pés a dizer que queria brincar. Doíam-lhe os<br />

olhos da luz da janela, chovia lá fora. A sua mãe entrou no quar<strong>to</strong> a berrar com ele para ele<br />

se despachar para ir para as aulas. A água quente do chuveiro aleijava-lhe as costas, a roupa<br />

estava desconfortável e amarrotada porque não se tinha dado ao trabalho de a dobrar antes<br />

de se deitar na noite anterior.<br />

Levou a mão ao bolso onde encontrou a carta da sua agora ex-namorada, leu de relance mais<br />

uma vez as primeiras frases:<br />

Não me conheces, nunca me conheceste, nunca me compreendeste. Desculpa acabar contigo,<br />

- eu amo te mas tu nunca me amaste, pensaste que eu era outra coisa, outra pessoa…<br />

Foi para a porta de casa e procurou o guarda-chuva, não havia guarda-chuva. Tinha-se<br />

esquecido que o tinha perdido. Pensou para com ele:<br />

Devia ter ficado na cama, é mais agradável sair de casa no sonho do que hoje …<br />

Ancalagon<br />

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inúteis<br />

De que servem as palavras<br />

quando nada dizem?<br />

Todas as palavras deviam<br />

apenas trazer boas sensações.<br />

Deviam amar…<br />

Beijar…<br />

Cuidar…<br />

Sorrir…<br />

Podiam até saber chorar<br />

Desde que as suas lágrimas soubessem aliviar a nossa dor.<br />

Quando elas gritam<br />

e já não murmuram os sentimen<strong>to</strong>s<br />

<strong>to</strong>rnam-se incómodas<br />

acho que até mesmo obsessivas.<br />

Perdem a doçura<br />

e a simplicidade<br />

que as caracterizavam<br />

porque são mais intensas<br />

e essa intensidade<br />

está-lhes impregnada na voz<br />

por isso não a conseguem ocultar.<br />

Os dedos tremem<br />

quando as desenham nas folhas<br />

com receio do impac<strong>to</strong><br />

que elas provocam<br />

quando caem sem rede no papel.<br />

São como granadas<br />

que cobrem o corpo de estilhaços profundos<br />

em cada guerra travada<br />

nas catacumbas da alma.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 63 de 117


Têm tanta força<br />

mesmo quando as liber<strong>to</strong><br />

de uma garganta enfraquecida.<br />

Sabem reabrir <strong>to</strong>das as feridas<br />

mal saradas num simples ges<strong>to</strong><br />

só precisam de ser ditas<br />

com a mão cravada no pei<strong>to</strong>.<br />

Emocionam-se com um sorriso<br />

oferecido na madrugada.<br />

Quebram-se em mil pedaços<br />

com o silêncio<br />

que ecoa na noite.<br />

Então, porque nada dizem?<br />

Mesmo quando beijam as estrelas<br />

antes de adormecer<br />

e com o <strong>to</strong>que dos seus lábios<br />

tentam <strong>to</strong>rnar o céu num lençol sedoso.<br />

Quando cantam baixinho<br />

para velar o teu sono <strong>to</strong>das as noites<br />

e acordam bem cedo<br />

com mel pingando da boca.<br />

Quando pintam os teus sonhos<br />

com as imagens mais belas<br />

que os olhos podem desfrutar.<br />

Quando envoltas numa corrente salgada<br />

imaginam as mais loucas ilusões<br />

para atiçar os teus sentidos.<br />

Se as palavras conseguem dizer tan<strong>to</strong><br />

Porque ainda preferes sentir o meu silêncio?<br />

-<br />

Bluiela<br />

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Jack Bravo e os Ninjas do Rectângulo Dourado<br />

Los Angeles, Califórnia. 1986.<br />

A rua estava escura. A única luz provinha de um velho candeeiro que por vezes se<br />

apagava sozinho voltando passado uns segundos à vida.<br />

Manteve-se no escuro, incógni<strong>to</strong>, aten<strong>to</strong> ao mais pequeno pormenor. Os prédios<br />

abandonados e o lixo que voava com a pequena brisa da noite davam ao local um aspec<strong>to</strong><br />

assombrado. Fora Pigmeu que escolhera o local. Que raio de nome de código. Quem escolhia<br />

aquelas coisas? Um barulho! Passos. Preparou-se. Ele tinha chegado.<br />

- Tens lume?<br />

- Fumar mata.<br />

- Toda a gente sabe que isso é treta.<br />

Pigmeu cujo verdadeiro nome era Harvey Pfeifer (não mui<strong>to</strong> melhor que o seu código,<br />

na verdade) deu uma gargalhada nervosa enquan<strong>to</strong> acendia um cigarro. Curiosamente era<br />

bastante al<strong>to</strong> e mui<strong>to</strong> magro. Careca, podia dizer-se que era parecido com Telly Savalas, o<br />

célebre Kojak.<br />

- Eles sabem onde está. Vão recuperá-lo em breve. Tens de agir rapidamente.<br />

- Merda.<br />

- A Jade está…<br />

Ao longe alguém fazia mira à ponta incandescente do cigarro. Primeiro ouviu o silvar.<br />

Rápido e mortal. Um segundo mais tarde Harvey caía mor<strong>to</strong> ainda com o Marlboro na boca e<br />

uma seta enfiada no pescoço. Jack Bravo sabia o que aquilo significava. Eles estavam ali.<br />

- Eu disse-te que isso matava.<br />

Harvey estava mor<strong>to</strong> e a localização de Jade tinha ido com ele para o grande paraíso<br />

dos espiões. A informação que ele precisava. Raios. Mas também o que importava? Sabe<br />

Deus quan<strong>to</strong>s estavam ali à espera de o aniquilar também. A sua única esperança era o<br />

escuro. Começou a correr. Ouvia os “zzzt” quando as setas passavam a centímetros do seu<br />

pescoço ou pei<strong>to</strong>. Tinha de continuar a correr mas ninguém é assim tão rápido.<br />

- Não pode acabar assim!<br />

Sentiu o sangue a escorrer do braço onde a estrela de metal se cravara. Luz. Estava a<br />

sair do bairro. A voltar para o mundo. Duas luzes fortes. Mo<strong>to</strong>r.<br />

- Oh não!<br />

O carro bateu-lhe com força. Jack bateu no pára-brisas e rolou para o chão. Alguém<br />

saiu. Era novo. Um pu<strong>to</strong> gordo.<br />

- Temos que sair daqui!<br />

- Você está bem?<br />

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Jack agarrou o miúdo borbulhen<strong>to</strong> pela camisa e puxou-o para si.<br />

- JÁ!!!<br />

Levan<strong>to</strong>u-se e entraram os dois no carro. Nesse momen<strong>to</strong> uma seta reben<strong>to</strong>u com o<br />

vidro e cravou-se no banco do passageiro a uns centímetros do seu pei<strong>to</strong>.<br />

- Ouve bucha se não queres morrer virgem aconselho-te a carregares no pedal.<br />

O miúdo parecia estar bloqueado mas nesse momen<strong>to</strong> decidiu-se e o Ford Torino<br />

vermelho de 74 arrancou deixando um cheiro a borracha queimada…e o sangue de Jack<br />

Bravo no asfal<strong>to</strong>.<br />

II<br />

John Fattapollus era o clássico jovem desajustado cujos amigos eram outros<br />

desajustados como ele. Gozado no liceu pelos “atletas” e ignorado pelas raparigas,<br />

Fattapollus era tão pouco “fixe” que um olhar de uma “cheerleader”, mesmo que de desprezo,<br />

era o pon<strong>to</strong> al<strong>to</strong> do seu dia.<br />

- Tens alguma coisa na t-shirt.<br />

Mesmo ferido os sentidos de Bravo continuavam alerta.<br />

- É cerveja…<br />

Ligou o rádio. Bonnie Tyler começou a cantar “I Need A Hero”. Esta era agora<br />

oficialmente a pior noite da sua vida. Per<strong>to</strong> das 21:00 decidira que tinha de fazer algo. Agir!<br />

Mudar o seu estatu<strong>to</strong> no liceu. Per<strong>to</strong> das 22.30, depois de mui<strong>to</strong> pensar, roubara as chaves<br />

do Ford Torino enquan<strong>to</strong> os pais dormiam e saíra para a festa do ano em casa de Chad<br />

Lowell, o capitão da equipa de futebol. Às 23.00, exactamente cinco minu<strong>to</strong>s depois de<br />

chegar, fora expulso, mas não antes de Chad lhe despejar um jarro de cerveja em cima como<br />

punição por ter entrado à socapa. Uma curva errada tinha-o levado a este bairro. Agora tinha<br />

um tipo ensanguentado dentro do carro, uma seta no banco e o pára-brisas destruído.<br />

- Quem é você?<br />

- Não precisas de saber isso. Para onde vais?<br />

- Hospital!<br />

- Tu és retardado, não és, bucha?<br />

- O meu nome não é bucha, é…<br />

- Achas que vou aparecer no hospital com uma "shaken" no braço?<br />

- Então talvez o possa deixar aqui…<br />

- Pu<strong>to</strong> lamen<strong>to</strong> imenso mas tens de me arranjar um sítio. Eles não sabem quem tu és.<br />

É perfei<strong>to</strong>. Tenho de tratar dis<strong>to</strong>. Preciso de pensar.<br />

- Eu não…<br />

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- O meu nome é Jack Bravo. Sou agente secre<strong>to</strong>. Ajuda-me e estarás a ajudar o teu<br />

país. Confia em mim.<br />

- Eu não posso aparecer em casa com um tipo a sangrar a dizer que é da CIA.<br />

- Ouve miúdo tu atropelaste-me. E nunca mas nunca digas que eu sou da CIA. Esses<br />

tipos são uns maricas. Agora se não queres ter o governo atrás de ti arranja-me um sítio.<br />

- Se você é agente secre<strong>to</strong> não tem uma base ou algo do género.<br />

- Sim e também lá tenho uma russa com um grande par de mamas com um Martini<br />

preparado. É crucial que me mantenha fora de circulação. Pelo que aconteceu hoje é provável<br />

que haja um traidor entre nós. Conforma-te pu<strong>to</strong>. És tu e mais ninguém.<br />

Passado meia hora Fattapollus batia à porta de Zero. Zero era al<strong>to</strong> e doentiamente<br />

magro. Além disso era albino. Não era uma combinação atraente para o sexo opos<strong>to</strong>. Não era<br />

surpreendente que fosse o melhor amigo de Fattapollus. Abriu a porta num pijama “Star<br />

Wars”. Era fanático pela criação de George Lucas, que era para ele um Deus.<br />

- Fat? O que é que queres a esta hora?<br />

- Preciso da tua ajuda. Os teus pais?<br />

- Devem estar a chegar a Maui.<br />

- Óptimo.<br />

Depois de tentar explicar o mais rápido possível o que acontecera pediu a Zero para o<br />

ajudar a levar Jack para dentro. O bairro de Zero era respeitável e felizmente àquela hora<br />

<strong>to</strong>dos dormiam.<br />

- Vamos levá-lo para o quar<strong>to</strong> dos meus pais.<br />

Jack caiu na cama quase sem fôlego.<br />

- Branquinho traz-me uma garrafa de whisky, pensos e o es<strong>to</strong>jo de costura.<br />

- Fat, este tipo não é mui<strong>to</strong> simpático.<br />

- Ainda não viste nada, branca de neve. Agora despacha-te – ordenou Bravo.<br />

Depois de Zero lhe dar o que pedira, Jack ordenou que o deixassem sozinho. Quando<br />

chegaram à cozinha Zero começou a preparar o café. Era óbvio que nenhum deles ia dormir<br />

naquela noite.<br />

sarilhos.<br />

momen<strong>to</strong>.<br />

- Es<strong>to</strong>u mor<strong>to</strong>. Viste o estado do carro?<br />

- Tirando a seta…ok não vale a pena escondê-lo, tens razão estás em grandes<br />

- Não sei o que vou fazer. Tenho de voltar para casa. Eles podem acordar a qualquer<br />

- Tenho uma ideia – exclamou zero subitamente.<br />

- Força!<br />

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Nesse momen<strong>to</strong> ouviram Jack a gritar, tendo o agente secre<strong>to</strong> entrado, de seguida,<br />

numa <strong>to</strong>rrente de insul<strong>to</strong>s supostamente ao seu braço. Nenhum deles teve coragem para se<br />

mexer.<br />

- O homem tem um vocabulário extenso – disse Zero, ainda mais pálido.<br />

- Zero, o carro!<br />

- Ah sim. Roubá-lo.<br />

- Eu já fiz isso!<br />

- Não, tu pediste-o emprestado! Vamos largá-lo em qualquer lado. Tiramos a seta<br />

claro. De manhã o teu pai acorda e tu estás no teu quar<strong>to</strong> a dormir como um bebé. Quando<br />

ele vir que o carro desapareceu vai concluir que o roubaram. Is<strong>to</strong> obviamente depois de<br />

colocares as chaves de onde as tiraste.<br />

má de <strong>to</strong>do.<br />

Zero era um tipo cheio de ideias. Nem sempre elas funcionavam mas esta não parecia<br />

- E como é que o recuperamos?<br />

- O teu pai irá chamar a polícia. Se deixarmos o carro convenientemente próximo da<br />

esquadra eles não vão ter de procurar mui<strong>to</strong>. Eu vou atrás de ti. Estacionas e eu depois levo-<br />

te a casa.<br />

- Vamos?<br />

- Tenho de me vestir.<br />

Passados dez minu<strong>to</strong>s, Zero saiu do seu quar<strong>to</strong> vestido <strong>to</strong>talmente de negro.<br />

- Preparado para uma missão – disse com orgulho.<br />

- É melhor verificarmos como ele está antes de irmos.<br />

Com cuidado abriram a porta do quar<strong>to</strong>. Bravo estava a dormir com a garrafa de<br />

whisky vazia na mão. Tinha um enorme penso no braço e o es<strong>to</strong>jo de costura estava caído no<br />

chão.<br />

Vader?<br />

- Achas que o podemos deixar sozinho? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />

- Claro que podemos. O que é que o tipo vai fazer? Roubar-te o cober<strong>to</strong>r do Darth<br />

- Está bem mas amanhã trata dis<strong>to</strong>. Este tipo é problema teu, Fat!<br />

Pela primeira vez naquela noite as coisas correram bem a Fattapollus. Largaram o<br />

carro bem per<strong>to</strong> da esquadra do bairro e depois Zero levou-o a casa no carro dos seus pais,<br />

um Ford Mustang de 81, cinzen<strong>to</strong>. Ninguém reparou neles. Devolveu as chaves ao bolso das<br />

calças do pai e dei<strong>to</strong>u-se na sua cama com o coração aos sal<strong>to</strong>s. Agentes secre<strong>to</strong>s, setas,<br />

assassinos! Parecia um filme! Um filme com maus ac<strong>to</strong>res, um argumentista fraco e sem<br />

orçamen<strong>to</strong>, mas mesmo assim um filme. Mas is<strong>to</strong> era a sua vida. Não fazia parte da<br />

imaginação de alguém. Fattapollus, Fat para os amigos e inimigos estava envolvido em algo<br />

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grande. Perigoso. E isso assustava-o…mas também o deixava excitado. Algo estava<br />

finalmente a acontecer.<br />

III<br />

Acordou com os gri<strong>to</strong>s do pai. Quando saíra para o trabalho vira que o seu Ford<br />

Torino desaparecera. Agora ele e a mãe de Fat gritavam em grego, amaldiçoando a sua sorte.<br />

Saiu cá para fora e pergun<strong>to</strong>u o que se passava.<br />

- O Ford! Foi roubado!<br />

- Lamen<strong>to</strong> pai. Temos de chamar a polícia!<br />

- Se eu descubro quem me fez is<strong>to</strong> ma<strong>to</strong>-o!<br />

Stellios Fattapollus era um homem baixo com uma barriga proeminente. Tinha óbvios<br />

problemas em controlar a ira. Fat sabia que ele era bem capaz de cumprir a ameaça. Calmo,<br />

Stellios era um tipo amigável, risonho, simpático. Irritado não o queriam conhecer.<br />

- Bandidos! Cambada de bandidos. Se apanho o canalha capo-o!<br />

Fat engoliu em seco. Sabia que se a verdade fosse descoberta o seu pai não o<br />

caparia…mas era sempre melhor não arriscar.<br />

Encontrou Zero no liceu. Aparentemente o desastre na festa de Chad já se tinha<br />

espalhado pois os risos de troça eram ainda maiores do que num dia normal. Ambos<br />

ignoraram, como sempre, os idiotas e, assim que puderam, trocaram impressões sobre o que<br />

acontecera. Estavam na aula de Mr. Jacobs, o professor de história. Jacobs não só parecia<br />

ter 150 anos como era fortemente surdo e distraído. Ninguém prestava atenção à aula e Fat<br />

começou por perguntar como estava Bravo.<br />

- A dormir.<br />

- Ainda?<br />

- A sério. O tipo apagou-se completamente. Quando sai hoje de manhã estava na<br />

mesma posição, ainda com a garrafa na mão.<br />

- Temos de o pôr fora. Hoje de tarde.<br />

- Concordo. Deixo isso contigo.<br />

- Tens de me ajudar.<br />

- Fat o tipo é agente secre<strong>to</strong>.<br />

- Ele pode estar a mentir.<br />

- Mesmo que esteja a mentir tem o dobro do nosso tamanho, e ontem pareceu-me<br />

estar mesmo lixado com a vida. Desculpa amigo mas esta é contigo.<br />

Por volta das 13:00 enquan<strong>to</strong> Zero e Fat almoçavam com o habitual grupo de nerds e<br />

geeks, Jack Bravo acordava finalmente. Ton<strong>to</strong>, mal se aguentando nas pernas, cambaleou até<br />

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à casa de banho. Lavou a cara com água fria e depois decidiu explorar a casa. Era tudo típico<br />

da classe média alta. A mãe do pu<strong>to</strong> do cabelo branco devia ser uma dona de casa exemplar.<br />

A única coisa a estragar-lhe o lar perfei<strong>to</strong> era o pálido. Abriu a porta do quar<strong>to</strong> de Zero e<br />

abriu a boca de espan<strong>to</strong>.<br />

- Este miúdo precisa de ajuda.<br />

O universo “Star Wars” era rei naquele espaço. Desde figuras de acção, a livros, a<br />

lancheiras, Zero tinha tudo o que era possível ter de Luke Skywalker e companhia.<br />

- Será que o branquinho sabe o que é uma mulher?<br />

Depois de um duche demorado viu-se ao espelho. Era um tipo bem parecido. Al<strong>to</strong> e<br />

musculado, tinha um ar arrogante que, na sua opinião, as fazia ficar loucas. O seu cur<strong>to</strong><br />

cabelo negro e os seus olhos castanhos davam-lhe uma imagem quase selvagem em conjun<strong>to</strong><br />

com a barba de dois dias. Dirigiu-se à cozinha. Preparou uns ovos mexidos e comeu vendo as<br />

notícias na pequena televisão em cima do balcão. Cheio, dei<strong>to</strong>u-se no sofá na sala e, pegando<br />

no telefone, ligou um número tão comprido que parecia não ter fim. Ao segundo <strong>to</strong>que<br />

atenderam-no.<br />

espera!<br />

- Sim – disse uma voz metálica do outro lado.<br />

- Eles sabiam do encontro. Temos um ra<strong>to</strong>.<br />

- O “ra<strong>to</strong>” é traidor?<br />

- Não raios!<br />

Amaldiçoou os nomes de código outra vez.<br />

- Temos um traidor. Não sei quem é. Mas eles estavam definitivamente à nossa<br />

- Tiveste sucesso?<br />

- Não. O Pigmeu fumou o seu último cigarro. Apanharam-no antes que falasse.<br />

- Merda.<br />

- Temos de nos encontrar.<br />

- Só quero passar por casa primeiro. Saber as novidades do Torino.<br />

---<br />

- Está bem mas a seguir corres com aquele gajo da minha casa. Imagina que os meus<br />

pais telefonam e ele atende!<br />

Zero parou o carro e os dois saíram. Fat ia a tirar a chave do bolso quando reparou<br />

que a porta estava aberta. Eram cinco da tarde e cheirava a verão. Estava uma brisa<br />

agradável mas, naquele momen<strong>to</strong>, Fat sentiu um arrepio. Entrou com Zero logo atrás.<br />

Nenhum disse uma palavra. A casa estava deserta, em silêncio. Encontrou o bilhete pregado<br />

por um punhal na parede da sala.<br />

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Entrega-nos o tesouro ou eles morrem.<br />

Tens 48 horas.<br />

Boa sorte Bravo. Vais precisar.<br />

Encontraram Jack ainda deitado no sofá. Estava a ver “Dallas”.<br />

- Aquele JR é mesmo lixado! Branca de neve, vou precisar do teu carro. Depois de<br />

hoje não me <strong>to</strong>rnam a ver.<br />

- Eles levaram a minha família.<br />

- De que raio estás a falar bucha?<br />

- Os meus pais. Desapareceram. Deixaram is<strong>to</strong>.<br />

Fat entregou a Bravo o punhal e o bilhete.<br />

- Tiveste azar pu<strong>to</strong>. Eles devem ter vis<strong>to</strong> a matrícula do carro.<br />

- Quem são eles?<br />

- Gente com quem não te queres meter. Desculpa pá mas há coisas mais importantes<br />

em jogo. Danos colaterais! A vida é lixada!<br />

ir!<br />

- Queres dizer que não os vais resgatar?<br />

- Tenho de cumprir a minha missão. Depois logo se vê.<br />

- E qual é a tua missão?<br />

- Podia dizer-te mas depois…tinha de te aleijar.<br />

- Não pode chamar o exérci<strong>to</strong> ou algo assim? – arriscou Zero.<br />

- Que diabo! Ouvimos sempre dizer que a CIA tem <strong>to</strong>dos os recursos! - gri<strong>to</strong>u Fat.<br />

- Eu não sou da CIA. Esses tipos não duravam dez minu<strong>to</strong>s naquilo que eu faço.<br />

- O que eu quero saber é quem levou os meus pais, e de que tesouro é que eles falam!<br />

- Pu<strong>to</strong>, não te preocupes. Eles estão a lidar com o melhor. Não têm hipótese. Tenho de<br />

- Onde?<br />

- Foi bom conhecer-te pu<strong>to</strong>. Ou nem por isso. Atropelaste-me! Foi doloroso. Seja como<br />

for…vemo-nos por aí.<br />

- Tu não sais daqui!<br />

Fat colocou-se à frente da porta de braços aber<strong>to</strong>s impedindo a passagem a Jack.<br />

- Ouve baleia estás a passar o limite.<br />

- Ou a bem ou a mal vais contar-me o que se passa. Nós somos dois. Tu estás sozinho<br />

e is<strong>to</strong> é o nosso território!<br />

- Fat o que queres dizer com “somos dois”? – pergun<strong>to</strong>u Zero nervoso.<br />

- Achas mesmo que podes comigo, badocha?<br />

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- Posso tentar. E não te enganes. O Zero é um cabrão louco. Quan<strong>to</strong> o gajo se passa<br />

da cabeça ninguém o consegue agarrar. O tipo é um psicopata. Diz-lhe Zero.<br />

- Sim…ele tem razão. Eu sou mau. Mui<strong>to</strong> mau.<br />

- Ouve Bucha tu deves ter uns doze anos. Estes tipos nem deitavam uma gota de suor<br />

para darem cabo de ti.<br />

- Tenho 16 anos e o meu nome não é Bucha. Chamo-me John Fattapollus.<br />

- Que raio de nome é Fattapollus?<br />

- Grego! Agora Zero!<br />

E ao dizer is<strong>to</strong> Fat lançou-se contra o agente secre<strong>to</strong> com <strong>to</strong>da a sua força. Zero ficou<br />

imóvel, surpreendido com a cena. Fattapollus era conhecido pelo seu problema de peso e por<br />

uma vez na vida isso deu-lhe uma vantagem. Bravo recuou com o impac<strong>to</strong>, tropeçou no<br />

tapete e estatelou-se contra uma pequena mesa de madeira. Fat caiu por cima dele. Ambos<br />

ficaram sem fôlego.<br />

- Agora diz-me em que sarilhos me meti!<br />

- Está bem pu<strong>to</strong>. Mas por favor…sai de cima dos meus <strong>to</strong>mates.<br />

- E tu pá! Porquê que te chamam Zero?<br />

IV<br />

Estavam sentados no sofá. Bebiam Coca-Cola gelada. Estava cada vez mais calor.<br />

Tinham estado em silêncio, recuperando forças.<br />

- Uma vez participei nos testes para a equipa de futebol. O treinador disse que eu era<br />

o pior jogador que tinha vis<strong>to</strong> em 30 anos de carreira. Um verdadeiro zero. A alcunha ficou.<br />

Bravo ficou em silêncio uns segundos.<br />

- E o que é que fizeste?<br />

- Nada!<br />

- Não leves a mal mas vocês são mesmo uns falhados. Já ouviste falar em máscaras e<br />

tacos de baseball? Uma noite escura? Furar uns pneus? Riscar a pintura do carro novo?<br />

Algo! Não aceites merdas de ninguém, branca de neve.<br />

- Por acaso agradecia que não me chamasses branca de…<br />

- Cala-te.<br />

- Ok.<br />

- Estás pron<strong>to</strong> a falar Jack? – pergun<strong>to</strong>u Fat.<br />

- Tu não tens muita paciência pois não?<br />

- Não quando a minha família está em perigo.<br />

- Pois bem. Então cá vai.<br />

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Lá fora o sol escondeu-se atrás das nuvens e subitamente ficou escuro.<br />

- Quem tem a tua família...<br />

- Sim?<br />

- São os ninjas do rectângulo dourado.<br />

- Ninjas?<br />

- Uma sociedade secreta de assassinos vindos do…<br />

- Japão – terminou Zero.<br />

- Exactamente. Estes tipos são uns animais. Sabem matar-te de mil maneiras só com<br />

as mãos. A própria Yakuza tem medo deles!<br />

- Acredita nele Fat. Eu já vi filmes sobre is<strong>to</strong>.<br />

- Os filmes são propaganda feita por Hollywood. A verdade é bem mais assustadora. O<br />

seu único objectivo é matar e eles estão cá nos nossos bairros pron<strong>to</strong>s a atacar.<br />

- E que raio querem eles?<br />

- O Dragão Vermelho. Uma peça de ouro. Tem andado perdido durante séculos. Foi<br />

encontrado há uma semana pela minha agência na Mongólia. E foi roubado logo que cá<br />

chegou.<br />

- Roubado?<br />

- Sim. Pela melhor que há. Jade. Ela não sabia para quem trabalhava. Quando<br />

descobriu que era para o rectângulo dourado desapareceu pois soube que assim que eles se<br />

apoderassem do “tesouro” ela seria morta para garantir o seu silêncio. A Jade é das poucas<br />

ao meu nível. Não há ras<strong>to</strong> dela. Aparecerá apenas quando quiser. Ontem um dos agentes<br />

infiltrados na direcção do Rectângulo encontrou-se comigo. Supostamente eles descobriram<br />

onde Jade estava. Não sei como. Há ouvidos em <strong>to</strong>da a parte, é possível. Mas eles mataram-<br />

no antes que ele me dissesse onde a encontrar. A esta hora era provável que ela já estivesse<br />

morta e o Dragão nas mãos deles, mas há algo que vai contra essa conclusão. O rap<strong>to</strong> dos<br />

teus pais. Eles não a apanharam.<br />

- Mas porque querem eles o Dragão? – pergun<strong>to</strong>u Zero fascinado.<br />

- Há uma lenda. Através de um ritual que só o chefe da ordem conhece, e que é<br />

passado de geração em geração, é possível obter um grande poder. Não se sabe exactamente<br />

o quê. Talvez a imortalidade. Talvez não ter de se levantar de noite para mijar! Talvez seja<br />

tudo treta quem sabe? Mas eles acreditam nisso. Seja como for o governo dos EUA prometeu<br />

entregar o Dragão ao Japão. Agora não só passamos por idiotas, como podemos danificar as<br />

relações diplomáticas com eles para além da reparação. O Dragão significa mui<strong>to</strong> para esses<br />

tipinhos e nós deixámo-lo cair nas mãos de uma das maiores organizações criminosas do<br />

mundo.<br />

- Qual é o plano agora?<br />

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- Penso que eles desistiram de perseguir a Jade. Querem que eu faça o trabalho sujo<br />

por eles em troca da vida dos…Fattabollus.<br />

- Fattapollus.<br />

- Pois isso. Eles sabem que se alguém a pode apanhar, então sou eu. Mas tenho de ter<br />

cuidado. Depois da emboscada de ontem, tenho a certeza que há um traidor. Vou-me<br />

encontrar com a única pessoa em que confio. O meu chefe. Stallion.<br />

- Ele chama-se Stallion? Tipo Italian Stallion, Rocky Balboa?<br />

- É o nome de código dele branquinho.<br />

- Fixe. Qual é o teu.<br />

- Não precisas de saber. Is<strong>to</strong> se gostas de viver.<br />

Ninguém disse nada por uns minu<strong>to</strong>s.<br />

- Eu vou contigo – disse Fat por fim.<br />

- Ouve bucha, is<strong>to</strong> está acima de ti. És um pu<strong>to</strong> porreiro. Foleiro mas porreiro, mesmo<br />

assim. Eu vou fazer o que puder para safar os teus pais.<br />

- Eu vou contigo ou então telefono para a polícia, para os jornais, para as televisões e<br />

repi<strong>to</strong> tudo o que acabaste de me contar. Achas que o Stallion ia gostar disso?<br />

- Pu<strong>to</strong>, estás-me a surpreender. Pois bem! Podes vir comigo, ver como as coisas<br />

funcionam. Suponho que mereces pelas merdas que te fiz passar. Mas quando chegar a hora<br />

de agir ficas de fora.<br />

- Combinado.<br />

Enquan<strong>to</strong> Zero ia a caminho do clube de vídeo do bairro alugar <strong>to</strong>dos os filmes de<br />

ninjas que encontrasse Fat e Bravo viajavam no Mustang ao encontro de Stallion.<br />

- Afinal como se chama a tua agência.<br />

- Não tem nome. Somos tão secre<strong>to</strong>s quan<strong>to</strong> isso.<br />

- Espera! Vocês não têm nome? Então chamam-se “sem nome”.<br />

- Não bucha. Não nos chamamos pon<strong>to</strong> final.<br />

- Isso é estranho.<br />

- Nós somos aqueles que não aparecem nas notícias. Aqueles que se chamam quando<br />

as coisas estão mesmo mal. Quando a CIA foge a gritar pela mamã, nós entramos. Homens<br />

sem identidade, sem medo.<br />

- Tu ensaiaste isso não foi?<br />

- Às vezes resulta com as miúdas.<br />

Chegaram ao seu destino. Um parque de estacionamen<strong>to</strong> abandonado. Tinha sete<br />

andares. Subiram ao último. Não tinha tec<strong>to</strong>. Via-se o céu estrelado. Um homem al<strong>to</strong> e magro<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 74 de 117


esperava-os com uma pasta no chão ao seu lado. Era negro. Elegante. Tinha uma voz<br />

hipnótica e um olhar frio.<br />

- Jack! Bem vindo. Quem é o gordo?<br />

- Digamos que é o meu parceiro. Não parece grande coisa mas safou-me ontem. Os<br />

ninjas apanharam-lhe a família. Querem que lhes entregue o Dragão em troca.<br />

nessa pasta.<br />

Stallion afas<strong>to</strong>u-se a pensar. Depois de costas para eles falou de novo.<br />

- A Jade contac<strong>to</strong>u-nos. Quer ver-te. Tens os detalhes e o equipamen<strong>to</strong> do costume<br />

- Mais alguém sabe disso?<br />

- Só eu e tu.<br />

- Óptimo. Alguma ideia quan<strong>to</strong> à identidade do ra<strong>to</strong>?<br />

- Não. O nosso segundo agente no rectângulo está a trabalhar nisso. Ele vai entrar em<br />

contac<strong>to</strong> contigo esta noite.<br />

tudo.<br />

- O que vão fazer quan<strong>to</strong> à minha família?<br />

O luar iluminava o ros<strong>to</strong> de Stallion.<br />

- Nada.<br />

- Não! Têm de os ajudar – implorou Fat.<br />

- Is<strong>to</strong> ultrapassa-te a ti, a mim, a <strong>to</strong>dos nós. Desculpa miúdo. Eles não têm hipóteses.<br />

- Eu vou à polícia.<br />

- Achas que não controlamos a polícia? Filho, nós somos o governo. Nós controlamos<br />

- Não podes fazer isso, Jack. Tens de os ajudar.<br />

- São ordens pu<strong>to</strong> – respondeu Bravo com uma expressão triste.<br />

- Arranjámos-te um carro. Podes ir – ordenou Stallion.<br />

Bravo virou-se e dirigiu-se para a sua nova viatura. Fat foi atrás dele.<br />

- Por favor Jack! Tu deves-me isso. Ontem salvei-te. Salvei-te a vida.<br />

- Desculpa bucha.<br />

O agente secre<strong>to</strong> arrancou e quando Fat olhou à sua volta viu que Stallion também<br />

desaparecera. Estava sozinho.<br />

V<br />

Alugara um quar<strong>to</strong> num hotel ranhoso onde ninguém pedia identificação, e se podia<br />

assinar He-Man no regis<strong>to</strong> sem ter de responder a perguntas. Tomou um duche rápido numa<br />

casa de banho infestada de baratas. Os civis tinham a ideia que ser agente secre<strong>to</strong> era comer<br />

gajas boas e andar de Ferrari. Se o vissem agora mudariam de opinião.<br />

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Quando saiu do duche soube imediatamente que não estava sozinho. Entrou no<br />

quar<strong>to</strong> usando apenas uma <strong>to</strong>alha à volta da cintura. Se fosse preciso usar o seu talen<strong>to</strong> de<br />

“karateca” estava preparado. Levava outra <strong>to</strong>alha na mão.<br />

- Tinha de te ver!<br />

Num movimen<strong>to</strong> rapidíssimo sacou a sua Glock 17, debaixo da <strong>to</strong>alha que segurava, e<br />

apon<strong>to</strong>u-a para a escuridão.<br />

- Tiveste sorte. Podia ter-te mor<strong>to</strong> sem sequer te deixar falar – disse calmamente.<br />

- Senti a tua falta Jack. O Stallion disse-me onde estavas.<br />

Foxy saiu da sombra e aproximou-se. Era linda. Alta com seios volumosos e uma<br />

longa cabeleira loura. Olhos azuis e lábios grossos completavam o quadro. Uma mulher<br />

irresistível.<br />

- É perigoso. Não devias ter vindo. Não queres acabar como o Pigmeu.<br />

- Calma Jack. Tenho tudo controlado.<br />

Foxy beijou-o levemente nos lábios. Bravo continuou com a arma apontada, agora<br />

contra o seu pei<strong>to</strong>.<br />

- Podes baixar isso agora, querido.<br />

- Posso?<br />

Subitamente Jack agarrou-a pela cintura e empurrou-a contra a parede. Foi violen<strong>to</strong><br />

e ela gos<strong>to</strong>u. Bravo encos<strong>to</strong>u o ros<strong>to</strong> ao dela. Sentia a sua respiração.<br />

fumar.<br />

- Alguém anda a cantar para o rectângulo. O Pigmeu conseguiu finalmente deixar de<br />

- Óptimo. Fumar mata.<br />

- Foi o que eu lhe disse. Desculpa mas depois de três anos infiltrada tenho de me<br />

interrogar se te passaste definitivamente para o lado deles.<br />

- Não confias em mim?<br />

- Eu não confio em ninguém. Mui<strong>to</strong> menos numa mulher bonita.<br />

Beijaram-se. Ele continuava com a arma contra as suas costelas.<br />

- E como sugeres que eu prove a minha lealdade?<br />

Estava com uma expressão sensual.<br />

- Tenho umas ideias.<br />

Bravo largou finalmente a arma e pegou em Foxy largando-a na cama.<br />

Sete minu<strong>to</strong>s e meio mais tarde, ofegantes olhavam para o tec<strong>to</strong>. A única luz no<br />

quar<strong>to</strong> vinha de um neon na rua, anunciando um qualquer produ<strong>to</strong>.<br />

- Não há nenhum como tu, Jack. És demais.<br />

- Eu sei querida.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 76 de 117


Era esta a vida de Jack Bravo. Per<strong>to</strong> da morte, per<strong>to</strong> do amor. Até ali, ao lado daquela<br />

mulher linda, não era capaz de deixar de pensar que talvez tivesse sido a última vez que<br />

fizera amor. Vivia no perigo. Gostava da sensação. Gostava e odiava-a.<br />

- Conseguiste descobrir alguma coisa?<br />

- Só Lótus sabe quem é o traidor – respondeu Foxy. - Lida directamente com ele.<br />

Es<strong>to</strong>u a fazer o melhor que posso.<br />

Jack pensou dizer-lhe para ter cuidado mas já conhecia Foxy há tempo suficiente<br />

para saber que ela era boa, mui<strong>to</strong> boa. Em <strong>to</strong>dos os sentidos.<br />

coisa?<br />

- Quero sair Jack. Es<strong>to</strong>u cansada. Acho que eles desconfiam.<br />

- Is<strong>to</strong> vai acabar em breve. Não te preocupes. Sabes alguma coisa dos Fatta, qualquer<br />

- Estão na base. Não consegues lá entrar Nem eu sei onde é. A única salvação<br />

possível é entregar o Dragão e esperar piedade.<br />

- Não posso fazer isso lourinha.<br />

- Eu sei. Tens alguma ideia de como o recuperar?<br />

- Sim.<br />

- A Jade contac<strong>to</strong>u-te?<br />

- É melhor não saberes mais. Para teu próprio bem.<br />

Beijaram-se de novo.<br />

- Es<strong>to</strong>u viciada em ti Jack Bravo.<br />

- Experimenta chocolate. Dizem que é quase tão bom. Agora está na hora de ires.<br />

Estava na estação de metro tal como lhe fora ordenado. Olhou à volta. Sentia que<br />

alguém o observava. Chegou o comboio. Era hora de ponta. Deixou-se ir no meio da<br />

confusão. Sabia que Jade planeara o encontro ao pormenor. Era provável que o rectângulo<br />

tentasse intervir.<br />

Subitamente, a meio da viagem, as luzes apagaram-se. Jack soube que estava em<br />

sarilhos. Mas ele fora preparado.<br />

O escuro durou dez segundos. Quando as luzes se acenderam Jack viu-se cercado<br />

por quatro ninjas. Os outros passageiros recuaram gritando. Jack ficou imóvel. Depois sacou<br />

a Glock. Bravo talvez fosse o gatilho mais rápido do mundo. Abateu um dos ninjas, mas as<br />

luzes apagaram-se de novo, desta vez por uns dois segundos. Jack virou-se e atingiu o<br />

segundo ninja. Tinha de economizar as balas. O comboio continuava a sua viagem. Is<strong>to</strong> teria<br />

sido obra de Jade? Tê-lo-ia traído? Um dos ninjas lançou uma "shaken" que atirou a Glock<br />

para o fundo da carruagem. Calmo Jack despiu o sobretudo negro e tirou a sua catana da<br />

bainha.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 77 de 117


- Óptimo! Preciso de exercício.<br />

O espaço era apertado. Restavam dois ninjas. Isso não era nada. Jack trocou alguns<br />

golpes com os homens de negro. Manteve-os à distância esperando a altura certa. Um<br />

espaço! A sua espada penetrou no pei<strong>to</strong> do inimigo. O homem dei<strong>to</strong>u sangue pela boca e caiu<br />

mor<strong>to</strong>. Restava um.<br />

- Precisas de treinar mui<strong>to</strong> rapaz.<br />

Jack partiu para cima do ninja. A máscara negra só lhe deixava ver os olhos<br />

confiantes. Jack sabia que outro tipo qualquer estaria agora a sujar as cuecas depois de ver<br />

três companheiros a caminho do inferno. Não um ninja. Depois de mais uns segundos de<br />

luta Jack desarmou-o e com um forte golpe projec<strong>to</strong>u-o contra a janela que se partiu. O<br />

assassino caiu para a linha e foi trucidado.<br />

- É só is<strong>to</strong> que têm?<br />

O comboio parou e <strong>to</strong>dos saíram a gritar. Jack ficou. Estava sozinho agora. Das<br />

outras carruagens veio a segunda vaga. Quatro ninjas de cada lado. Jack limpou a lâmina ao<br />

fa<strong>to</strong> de um dos ninjas mor<strong>to</strong>s e sorriu.<br />

- O Jack quer brincar.<br />

Preparou-se. As portas começaram-se a fechar. Vinda não se sabe de onde, uma<br />

mulher entrou no último segundo. Jack conhecia-a. Era Jade. Longos cabelos negros,<br />

asiática, alta, linda e letal! A maior ladra do mundo.<br />

- Levaste o teu tempo.<br />

- Estás velho, Jack. Tens medo de uns ninjas inofensivos?<br />

O comboio arrancou. Os ninjas sabiam que o seu prémio chegara. Eles queriam Jade.<br />

Lançaram-se ao ataque mais ferozes que nunca. Jade usava dois punhais “sai”. Eram ambos<br />

lutadores formidáveis. Mas os ninjas eram mais, mui<strong>to</strong>s mais. Em cinco minu<strong>to</strong>s de luta os<br />

cadáveres amon<strong>to</strong>aram-se, mas eles continuaram a aparecer. Cada vez mais. Jack tinha a<br />

vantagem do espaço exíguo. Não o podiam cercar. Mas era uma batalha perdida que não<br />

duraria mui<strong>to</strong> mais.<br />

- Estás preparado Amor?<br />

- Eu não sou o teu amor – respondeu Jack com desprezo.<br />

- Sempre o mesmo macho bru<strong>to</strong>. Agarra-te!<br />

Jade tirou um pequeno comando do bolso e carregou no botão vermelho. O comboio<br />

travou! Todos foram projectados. As luzes apagaram-se. Quando voltaram a brilhar Jack e<br />

Jade corriam pela linha no escuro. Os ninjas trocaram umas palavras em japonês, mas as<br />

suas presas já estavam bem longe.<br />

VI<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 78 de 117


Estava no bairro chinês. Incrível!<br />

- Chineses e japoneses não são propriamente amigos. Este local é perfei<strong>to</strong>.<br />

- Tu és doida. Ladra, mentirosa e doida.<br />

- Não disseste isso na Mongólia.<br />

- Usaste-me. Ninguém faz isso com Jack Bravo.<br />

Estavam num pequeno quar<strong>to</strong> no cimo de um restaurante. Jade tinha ligações mui<strong>to</strong><br />

fortes com o submundo asiático. Tinha sido a escolha óbvia para roubar o dragão.<br />

que desejavas.<br />

- Eu não sabia que estava a trabalhar para o rectângulo.<br />

- Não interessa para quem trabalhavas. Manipulaste-me para obteres a informação<br />

- Precisava de ti. Só tu sabias quando ele chegava aos EUA. Conforma-te. Nem foi a ti<br />

que o roubei. Foi a outro idiota qualquer. Tu só o tinhas encontrado. E não te faças de<br />

vitima. Quantas pessoas já manipulaste? Eu tenho ouvidos. Consta na rua que raptaram<br />

alguém. Alguém que significa algo para ti para que lhes entregues o dragão em troca.<br />

- Enganas-te querida. Nem sei o nome deles.<br />

- Sempre o Durão, Jack.<br />

- Nem fazes ideia, querida. Sim, já enganei, roubei até, mas não me dei<strong>to</strong> com o alvo.<br />

Tu sim. Suponho que isso faz de ti uma pu…<br />

Antes que acabasse Jade tinha um punhal na sua garganta.<br />

- Dizias?<br />

- Olha para baixo querida!<br />

Ela caiu no isco. Jack usou o pé para puxar o tapete por baixo dos seus pés. Jade<br />

caiu mas levou-o atrás. Ele agarrou-lhe a mão e fê-la largar o punhal. Estavam no chão. Ele<br />

sentia o seu corpo macio por baixo do seu.<br />

- Tu não me resistes querida. Nenhuma de vocês consegue.<br />

- És um porco Jack.<br />

- Agora é a minha vez…não disseste isso na Mongólia.<br />

- Estava a representar.<br />

- Então merecias um oscar.<br />

Bravo levan<strong>to</strong>u-se e foi até à janela. Jade sen<strong>to</strong>u-se na cama.<br />

- Preciso do dragão, Jade.<br />

- É o meu único trunfo.<br />

- Podemos proteger-te.<br />

- Não destes tipos.<br />

- Tens outra saída?<br />

- Não – respondeu Jade desanimada.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 79 de 117


- Bem me parecia.<br />

- Quero algo em troca. O rectângulo pagava-me três milhões. Como gos<strong>to</strong> do Tio Sam,<br />

só te cobro dois.<br />

Jack sorriu. Já esperara is<strong>to</strong>. Sentia o cheiro de especiarias e ouvia as vozes que<br />

vinham do restaurante.<br />

- Um milhão é a oferta final.<br />

- Suponho que não es<strong>to</strong>u em posição de negociar.<br />

Jack chegou-se per<strong>to</strong> dela.<br />

- Depois de me dares o dragão deixo-te ir, mas quero que saibas is<strong>to</strong>: um dia, quando<br />

menos esperares, eu estarei lá. Quando tudo is<strong>to</strong> acabar vou atrás de ti.<br />

inimigos.<br />

Jade levan<strong>to</strong>u-se e enfren<strong>to</strong>u-o.<br />

- Não és suficientemente bom.<br />

- Querida não fazes ideia.<br />

Bravo beijou-a. Um beijo cheio de paixão e de ódio.<br />

- Pelos velhos tempos.<br />

- Sim, pelos velhos tempos – concordou ela.<br />

Era cinco da tarde. Fizeram amor de forma selvagem. Louca. Dois amantes em breve<br />

Às cinco e um quar<strong>to</strong> Jack telefonou para uma linha segura de Stallion e ordenou o<br />

pagamen<strong>to</strong>. Depois da transferência, Jade confirmou o saldo da sua conta no estrangeiro.<br />

Bravo.<br />

- Acabaste de comprar o dragão dourado. Agora o problema é teu. Boa sorte Jack<br />

Era um bairro pobre e sujo. Havia pouco movimen<strong>to</strong> na rua. Era fim de tarde. Jack<br />

seguiu Jade até a um edifício com mau aspec<strong>to</strong>.<br />

mauzões.<br />

- Uma igreja?<br />

- Sim Jack. Mas digamos que não é uma igreja normal.<br />

- Pois não. É a igreja mais merdosa que já vi.<br />

Jack olhou para a enorme cruz no telhado antes de entrar. Começou a chover.<br />

- D., se estás por aí, vigia a entrada e manda um raio ou dois se vires uns ninjas<br />

Entraram. Os bancos de madeira eram velhos. Era um local escuro e com aspec<strong>to</strong> de<br />

cenário de filme de terror. Assombrado. Estava deser<strong>to</strong>. Parecera-lhe mais pequena vista de<br />

fora. Na verdade a igreja era até espaçosa. Procurou as saídas. Havia apenas uma porta ao<br />

lado do altar, que daria para as traseiras. De lá saiu um tipinho baixo e careca, usando uma<br />

batina negra, e que veio ter com eles. Tinha um bigode volumoso e aspec<strong>to</strong> de latino.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 80 de 117


- Padre Guerrero!<br />

- Bem vinda minha filha. Quem vem contigo?<br />

- É um amigo, Padre.<br />

- O nome é Jack, Jack Bravo.<br />

- Eu sou o Padre Guerrero. Sou o responsável por este humilde espaço.<br />

- Que tal passarmos ao negócio – exclamou Jade.<br />

- Claro que sim, minha filha.<br />

Guerrero passou para trás do altar. Colocou o indicador num pequeno espaço em<br />

relevo e aí Jack viu magia. As portas altas da igreja fecharam-se au<strong>to</strong>maticamente. O altar<br />

abriu-se revelando um painel de instrumen<strong>to</strong>s.<br />

- Detec<strong>to</strong>r de impressões? – pergun<strong>to</strong>u Jack.<br />

- Sim irmão.<br />

- Que raio de sítio é este?<br />

- O Padre Guerrero faz parte de uma organização dentro da igreja. Eles têm os seus<br />

próprios objectivos e grandes fundos. Tudo com a devida au<strong>to</strong>rização do Vaticano, claro.<br />

- Nem nós temos esta tecnologia – exclamou Jack.<br />

- Nós fazemos alguns trabalhos fora do nosso âmbi<strong>to</strong> normal. Assim conseguimos<br />

arranjar financiamen<strong>to</strong> para as nossas acções mais benevolentes. Esta é apenas uma das<br />

nossas bases.<br />

- Quer dizer que pagaste a estes gajos para te guardarem o Dragão?<br />

- Dez por cen<strong>to</strong>. São confidenciais e nunca ninguém ouviu falar deles senão alguns<br />

selec<strong>to</strong>s…como eu.<br />

Jack obviamente não estava nesse lote.<br />

- E quais são exactamente os vossos objectivos mais benevolentes? Algo me diz que<br />

não é cantar "We Are The World" com o Boss!<br />

- Isso, irmão, não precisas de saber. Agora vamos ao trabalho.<br />

Guerrero <strong>to</strong>cou habilmente nas teclas do teclado que se encontrava dentro do altar.<br />

Um metro à frente do altar o chão começou a tremer. Depois algo começou a subir.<br />

Um enorme cofre saiu do chão lentamente. Era de aço e com um aspec<strong>to</strong> de tal forma<br />

poderoso que qualquer ladrão fugiria com medo. Aquele era impossível arrombar, pensou<br />

Jack.<br />

- Tenho de admitir. Vocês têm aqui uma cabana porreira.<br />

- Obrigado irmão. Nós tentamos. Tem a sua chave?<br />

- Sim – respondeu Jade.<br />

Jack reparou que o cofre tinha uma fechadura em cada extremo. Tinha também um<br />

painel electrónico com números. Is<strong>to</strong> era mesmo alta tecnologia. Estas tipos tinham<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 81 de 117


contac<strong>to</strong>s e dinheiro, mui<strong>to</strong> dinheiro. O homenzinho pôs-se de um lado e Jade do outro.<br />

Guerrero já tinha a chave na mão. Jade tirou a sua de dentro do seu decote.<br />

dois, três.<br />

- Que mais surpresas tens aí dentro querida?<br />

- Por favor irmão, estamos numa igreja. Lembre-se, rodamos ao mesmo tempo. Um,<br />

Depois de rodarem as chaves, Guerrero chegou-se ao painel que ficava a meio do cofre<br />

e digi<strong>to</strong>u uns números.<br />

- Aleluia – exclamou visivelmente satisfei<strong>to</strong>.<br />

Como se de um milagre se tratasse o cofre abriu e Jack viu o tesouro que procurava.<br />

Tinha uns trinta centímetros de altura e vinte de largura. Era de ouro maciço. Os seus olhos<br />

eram duas esmeraldas verdes.<br />

- Olá de novo – disse Jack para o dragão.<br />

- Aqui está! Agora quan<strong>to</strong> ao pagamen<strong>to</strong>…<br />

Nesse momen<strong>to</strong> ouviu-se um alarme. Guerrero olhou para Jade e ela para Bravo.<br />

- O que se passa Paco?<br />

- O meu nome não é Paco, irmão e este barulho ensurdecedor quer dizer que não<br />

estamos sozinhos.<br />

emergência.<br />

- Já calculava isso. Há outra saída?<br />

- Pelas traseiras – disse Jade.<br />

- Eles já lá estão, querida. Não me digam que este sítio não tem uma saída de<br />

- Claro que tem irmão. Nós não somos estúpidos. Uma rede de túneis complexa. Eles<br />

nunca nos apanharão.<br />

por cen<strong>to</strong>.<br />

- Então, mano, aconselho-te a activá-la. Estes ninjas não são propriamente religiosos.<br />

- Ninjas??? – exclamou Guerrero chocado!<br />

- Suponho que a Jade se esqueceu de mencionar de quem estava a esconder o dragão.<br />

- Você trouxe o rectângulo para aqui sua idiota? O preço acabou de subir para vinte<br />

Jack tirou a sua catana e despiu o sobretudo.<br />

- Hey, Pablo, acredita em mim. Tu não és o James Dean e não vais fazer um cadáver<br />

lindo. Portan<strong>to</strong> trata de nos tirar daqui, já!!!!<br />

não…<br />

- Não se preocupe. As medidas de segurança foram activadas au<strong>to</strong>maticamente. Eles<br />

Nesse momen<strong>to</strong> as portas da igreja explodiram numa bola de fogo. Quando o fumo se<br />

dissipou Jack percebeu que esta talvez fosse a sua última aventura.<br />

- Eu não acredi<strong>to</strong> –exclamou Guerrero incrédulo.<br />

- Chico! AGORA!!!<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 82 de 117


- Pela última vez o meu nome é Guerrero…irmão!<br />

Eram pelo menos uns vinte ninjas. Posicionaram-se para o combate. Mas Guerrero<br />

tinha uma última surpresa. No <strong>to</strong>po de duas colunas da igreja, um de cada lado, abriu-se um<br />

espaço. Duas metralhadoras, comandadas sabe-se lá por que microchip, começaram a<br />

disparar em tudo o que se mexia. Mas isso não dissuadiu os ninjas. O primeiro batalhão<br />

sofreu fortes baixas mas eles vinham preparados. Dois rockets calaram as metralhadoras.<br />

E aí finalmente entrou quem Jack mais temia.<br />

- Lótus!<br />

- Jack Bravo. Encontramo-nos de novo.<br />

VII<br />

A líder do rectângulo dourado. Vestia um fa<strong>to</strong> de cabedal verde, a cor dos seus olhos,<br />

algo raro para uma asiática. Tinha cabelo cur<strong>to</strong>, negro como o seu coração. Ninguém sabia o<br />

seu passado. Havia rumores. Alguns sangren<strong>to</strong>s. Outros demasiado fantásticos para serem<br />

verdadeiros. Subira na organização derramando sangue que escorria pelas ruas de Tóquio.<br />

Já se encontrara com Jack antes e jurara que haveria de ter o seu coração numa bandeja.<br />

Bravo por seu lado tencionava mantê-lo no pei<strong>to</strong>.<br />

- Desiste Bravo.<br />

Todos estavam imóveis. Guerrero parecia incapaz de <strong>to</strong>car no teclado do altar.<br />

- Como é que eles costumam dizer? Nunca me apanharás vivo querida.<br />

- Pagarás pela tua insolência. Interferiste com o rectângulo pela última vez.<br />

- Diz a verdade. Is<strong>to</strong> ainda é por aquela noite em Okinawa? Desculpa, querida, mas<br />

eu não durmo com qualquer uma. Agentes duplos? Sim. Ladras? Porque não? Aberrações<br />

como tu, não. Mas sempre tens o Mr. Miyagi, ele anda sempre por lá.<br />

- Quem?<br />

- Daniel-San? Wax on? Esquece.<br />

- Entrega-nos o dragão e a tua morte será rápida!<br />

- Querida, dá o teu melhor.<br />

Uma seta voou pela sala e atingiu Guerrero. O homem caiu desamparado.<br />

- Jade, trata do Paqui<strong>to</strong>. Eu tenho umas contas a ajustar com os tipos das espadas.<br />

Jack lançou-se ao combate. A sua perícia era extraordinária. Os cadáveres sucediam-<br />

se. Lótus via a cena estranhamente excitada.<br />

Jade tirou a seta do ombro de Guerrero que gemeu com dores.<br />

- Vai, ajuda-o. Eu tiro-nos daqui.<br />

Jade tirou os seus punhais e partiu para os ninjas. Guerrero levan<strong>to</strong>u-se, a sangrar.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 83 de 117


- Tenho…de…conseguir…o código.<br />

Jade e Jack colocaram-se de costas um para o outro para não serem cercados.<br />

Embora com alguns ferimen<strong>to</strong>s, estavam a conseguir segurá-los.<br />

- CHEGA!<br />

A voz de Lótus ecoou pela igreja.<br />

- Tragam-na.<br />

Dois ninjas apareceram, trazendo Foxy prisioneira.<br />

- Acabou-se Jack Bravo. Larga a espada ou ela morre.<br />

Todos ficaram em silêncio enquan<strong>to</strong> esperavam a resposta de Bravo.<br />

- Por favor, Jack. Faz o que ela diz.<br />

Depois de alguns segundos, em que parecia pesar as suas opções, Bravo surpreendeu<br />

<strong>to</strong>dos com uma enorme gargalhada.<br />

- Jack, por favor!<br />

- Foxy, foxy, foxy. Eu sabia que eras tu.<br />

- Do que estás a falar?<br />

- Só o Stallion e tu sabiam que eu me iria encontrar com Jade. Primeiro atacaram-me<br />

no metro. Depois aqui. Só tu lhes podias ter di<strong>to</strong> onde me encontrar.<br />

Restas tu!<br />

- É mentira Jack. Acredita em mim. É o Stallion. Foi ele que me denunciou.<br />

- Desiste querida. Eu sei que o Stallion não é o traidor.<br />

- Como?<br />

- Porque o rectângulo ma<strong>to</strong>u-lhe a família. Ele é o único que os odeia mais que eu.<br />

- Maldi<strong>to</strong>!<br />

Foxy tirou a espada a um ninja e correu para Jack. Ele defendeu-se mas ela estava<br />

com uma raiva avassaladora. Os ninjas prepararam-se para atacar mas Lótus, com um<br />

ges<strong>to</strong>, impediu-os.<br />

- Quero vê-los lutar.<br />

Foxy era poderosa mas Jack era superior. A luta durou apenas uns minu<strong>to</strong>s. Jack<br />

desarmou-a e Foxy caiu aos seus pés. Ele encos<strong>to</strong>u a lâmina à sua garganta e sorriu. Nesse<br />

momen<strong>to</strong> Guerrero introduziu finalmente o código de emergência. Um enorme alçapão abriu-<br />

se au<strong>to</strong>maticamente atrás do altar.<br />

- Irmão!<br />

- Já ouvi Hernandez. Vês, Foxy? O velho Jack Bravo tem sempre uma saída<br />

preparada. Espero que eles te tenham pago bem. Estás acabada. Jade agarra no dragão.<br />

- Não tão rápido Bravo.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 84 de 117


Jack olhou para Lótus e pela primeira vez naquela noite surpreendeu-se. Fattapollus<br />

e Zero. Não era possível. Tinha pedido a Stallion para os proteger, mas já devia saber que<br />

nada detinha o rectângulo.<br />

- Este rapaz salvou-te a vida, Bravo. Tu deves-lhe. O que vais fazer agora? Prome<strong>to</strong>-te<br />

que o espera a morte mais terrível e dolorosa que possas imaginar. Entrega o Dragão e terei<br />

misericórdia.<br />

- Vamos Jack. Deixa o miúdo. – exclamou Jade.<br />

Jack estava finalmente num beco sem saída. Fattapollus e Zero tremiam de medo. O<br />

magricelas estava ainda mais pálido e Fat parecia ter perdido uns quilos só com o sus<strong>to</strong>.<br />

- Perdeste Bravo! – exclamou, com ódio, Foxy.<br />

- Irmão, Deus recompensa-os no além. Deixa-os.<br />

Jack sabia que era o que devia fazer. Tudo lhe dizia para correr pelos túneis que o<br />

anão mexicano lhe oferecia.<br />

- Não, querida. Não posso deixar o bucha com estes animais. Ele e o branquinho<br />

ajudaram-me. Agora é a minha vez.<br />

- Jack não sejas parvo. São uns miúdos. Deixa-os.<br />

- Já disse que não. Aquele gordo é um tipo porreiro. Não merece is<strong>to</strong>. E o trinca-<br />

espinhas do cabelo branco vai ficar vivo para ver <strong>to</strong>dos os "Star Wars" merdosos que o Lucas<br />

fizer.<br />

- Por acaso – disse Zero apavorado – a história acabou mesmo.<br />

- Acredita, branca de neve. O tipo vai querer mais dinheiro É sempre assim.<br />

- Basta – gri<strong>to</strong>u Lótus.<br />

- Pois bem, miúda, ganhaste. Mas só esta batalha.<br />

Jack largou a espada e os ninjas agarraram-no. Jade sabia que sozinha não tinha<br />

hipóteses e entregou o Dragão. Um ninja levou-o a Lótus, que deu uma gargalhada doentia.<br />

- Não percebes Bravo? A guerra acabou! – gri<strong>to</strong>u Lótus bem al<strong>to</strong>.<br />

- Diabos te levem Jack Bravo – disse Jade baixo.<br />

VIII<br />

Tinha sido drogado. Sentira uma picada nas costas quando Lótus ordenou aos seus<br />

lacaios que o levassem para a base. Acordou e ten<strong>to</strong>u focar a visão. Estava numa sala escura.<br />

Doíam-lhe os braços. Tinha as mãos amarradas e estava pendurado. Todo o peso do seu<br />

corpo nos seus dois membros. Tinham-lhe tirado a camisa. Estavam a preparar-se para a<br />

festa. Lótus queria divertir-se. Tinha várias feridas abertas dos cortes sofridos na batalha.<br />

Tinha também várias cicatrizes de outras vezes que escapara por pouco à morte.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 85 de 117


- Espero que estejas satisfei<strong>to</strong>.<br />

Olhou para o lado. Era Jade, pendurada tal como ele. Estava de biquíni. Cabedal<br />

vermelho, bem sensual. Óptimo. Ainda não estava mor<strong>to</strong>. Ainda sabia o que era bom. Sorriu.<br />

- Calma. Está tudo sob controlo.<br />

- Jack estamos prisioneiros da maior organização criminosa do mundo, sem armas,<br />

feridos e à espera de uma morte dolorosa. Chamas a is<strong>to</strong> sob controlo?<br />

- Onde está o bucha?<br />

- Estamos aqui – disse Zero.<br />

Olhou à volta. Fattapollus estava amarrado a uma cadeira tal como Zero ao seu lado.<br />

- E o Padre?<br />

- Chegou a um acordo com o rectângulo. Pagou o seu próprio resgate e deixou-os<br />

levarem-nos. Se eu sair daqui vai pagá-las.<br />

- É compreensível. Eu faria o mesmo.<br />

- Deu-te um pontapé nas costelas enquan<strong>to</strong> estavas inconsciente. Disse que era pelo<br />

sarilho em que o tinhas metido.<br />

sombrio.<br />

- Vai haver um padre com bigode a menos no mundo, mui<strong>to</strong> em breve – disse Jack<br />

- Então qual é o plano?<br />

- Calma querida. Es<strong>to</strong>u a tratar disso.<br />

Ficaram em silêncio uns momen<strong>to</strong>s.<br />

- Então pu<strong>to</strong> não dizes nada? Afinal, es<strong>to</strong>u aqui por tua causa.<br />

- Uh…Jack?<br />

- Sim branquinho?<br />

- O Fat não quer falar. Deixou-o sozinho e não fez qualquer tentativa para resgatar os<br />

pais dele. Além disso destruiu-lhe o carro e fez com que fosse raptado e esteja prestes a<br />

sofrer um destino demasiado terrível para traduzir em palavras. E hoje dá o Macgyver e ele<br />

vai perder. É a série favorita dele.<br />

- Desculpa lá isso do Macgyver, bucha. Isso está mal. Mas quan<strong>to</strong> aos teus pais não<br />

te preocupes. Eles estão algures por aqui.<br />

- Sim? E como tencionas salvá-los? – explodiu Fat.<br />

- Ele tem um plano.<br />

Era Foxy.<br />

- Ele tem sempre um plano. Mas desta vez…não há escape possível, Jack.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 86 de 117


Estava nos seus aposen<strong>to</strong>s. A decoração era tipicamente oriental, mas <strong>to</strong>do o<br />

ambiente era frio. Lótus ajoelhou-se e esperou que o enorme televisor de 71 centímetros se<br />

ligasse.<br />

- Mestre!<br />

Baixou o pescoço em sinal de respei<strong>to</strong>.<br />

- Lótus. Recuperaste-o?<br />

- Sim, mestre. Temos o dragão.<br />

Lótus encarou a televisão. Via-se apenas uma silhueta sentada a uma secretária. A<br />

transmissão desde o Japão tinha algumas interferências.<br />

- Perfei<strong>to</strong>. E Bravo?<br />

- É nosso prisioneiro.<br />

- Acaba com ele.<br />

- Sim mestre. Pelo rectângulo.<br />

- Traz-me o Dragão. Parte o mais rápido possível. Quero realizar o ritual.<br />

- Sim mestre.<br />

- Lótus?<br />

- Sim?<br />

segredinhos.<br />

- Bom trabalho, minha filha.<br />

Foxy deu um poderoso murro no ros<strong>to</strong> de Bravo.<br />

- És uma vergonha. Não admira que tenhas sido recusado pela CIA.<br />

- O quê? – disseram Fat e Zero ao mesmo tempo.<br />

- Ele não vos con<strong>to</strong>u? Chumbou nos exames de admissão. É um dos seus<br />

- Foxy, não encares is<strong>to</strong> mal, mas és uma cabra.<br />

- Eu sei, Jack, e adoro-o.<br />

Outro murro. Depois passou para Jade.<br />

- Deves estar a imaginar o porquê da fatiota nova. Pois bem. A Lótus planeia pôr-vos a<br />

lutar um contra o outro. Até à morte.<br />

- Vocês são loucos – gri<strong>to</strong>u Jade.<br />

- E a propósi<strong>to</strong>…estás gorda Jade.<br />

- Oh essa foi fria, Foxy. A Jade vai cobrar-te isso com juros.<br />

- Dou<strong>to</strong>r Chu????<br />

Um homem idoso, de cabelo grisalho e barba, usando uma bata branca e segurando<br />

uma pasta, entrou na sala.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 87 de 117


- Jack, apresen<strong>to</strong>-te Dr. Chu. Ele é um artista. Um artista na arte da dor. Antes da<br />

luta, vou-me divertir contigo.<br />

Foxy desferiu outro murro no ros<strong>to</strong> de Bravo e deu uma gargalhada.<br />

- Is<strong>to</strong> está a ficar cansativo, Foxy.<br />

- Ainda agora começou.<br />

Lótus era o ros<strong>to</strong> do rectângulo. Mas havia alguém nas sombras. O seu mestre.<br />

Ensinara-a. Fizera-a uma assassina letal, cruel sem remorsos. Mas agora o seu mestre<br />

perceberia que isso tinha sido um enorme erro. Vestiu o seu kimono negro e ajoelhou-se com<br />

o dragão à sua frente. Chegara a sua hora.<br />

- Criaste um monstro.<br />

Começou a declamar palavras há mui<strong>to</strong> esquecidas pelo mundo. O seu coração batia<br />

cada vez mais rápido. Seria a mais poderosa.<br />

Dois ninjas trouxeram uma pequena mesa de madeira e saíram. Chu abriu a pasta e<br />

começou a tirar os seus instrumen<strong>to</strong>s. Jack no<strong>to</strong>u que <strong>to</strong>dos tinham algo em comum. Eram<br />

cortantes.<br />

- Não tarda o chinês começa a perguntar-me se “é seguro”.<br />

- O quê?<br />

- Homem da Mara<strong>to</strong>na. 1976, Dustin Hoffman.<br />

- Vêm meninos? Este é outro dos seus segredos. O grande Jack Bravo é um enorme fã<br />

de cinema. Nos seus tempos livres, em vez de safaris ou despor<strong>to</strong>s radicais, como os seus<br />

colegas fazem, ele está enfiado num cinema como um geek qualquer. Porque na verdade é<br />

isso que tu és. Tira-se o corpo, as respostas idiotas e tu és tão foleiro como o gordo ou o<br />

albino. Metes-me nojo.<br />

Uma enorme estalada abanou o ros<strong>to</strong> de Bravo e ele cuspiu algo da boca.<br />

- Conheces-me bem, mas não tão bem, Foxy.<br />

- Ai não? E que tal eu dizer-lhes o teu nome de código? Gostavas disso?<br />

Chu baixou-se e apanhou o que Jack cuspira. Depois abriu os olhos surpreendido e<br />

gri<strong>to</strong>u em japonês para Foxy.<br />

- O quê?<br />

- O que ele te está a dizer querida é que aquilo é um localizador. Se is<strong>to</strong> fosse um<br />

filme, esta seria a altura em que o herói, eu, cuspia o enredo <strong>to</strong>do. Portan<strong>to</strong> cá vai. Tinha três<br />

problemas. Um traidor que tinha de obrigar a mostrar-se, resgatar os pais do gordo e<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 88 de 117


ecuperar o dragão. Mas o que eu queria mesmo era acabar de vez com o rectângulo e a<br />

Lótus. Estás a perceber até aqui?<br />

- Tu…is<strong>to</strong> é um truque.<br />

- Para fazer is<strong>to</strong> tudo cheguei à conclusão que era necessário penetrar no coração do<br />

rectângulo. A base secreta da qual ninguém sabia a localização.<br />

- Senão já não era secreta – acrescen<strong>to</strong>u Zero.<br />

- Obrigado, branquinho. Por isso, nada melhor do que ser capturado. Esse localizador<br />

estava implantado no meu dente e tem estado a transmitir a minha posição para o Stallion. É<br />

isso mesmo, querida. Ele vem aí e traz a cavalaria.<br />

matar.<br />

- Não é possível!!!<br />

- É querida. Perdeste e já não tens mais moedas para a máquina. Game Over.<br />

- Pois bem. Pode ser que fales verdade. Mas até ele chegar ainda tenho tempo de te<br />

- Também pensei nisso.<br />

Jack projec<strong>to</strong>u o seu corpo e atingiu Foxy em cheio no pei<strong>to</strong> com os pés. Ela<br />

desequilibrou-se e caiu. Chu avançou, mas Jack enrolou as pernas à volta do seu pescoço e<br />

estrangulou-o. Foxy levan<strong>to</strong>u-se confusa, deu um gri<strong>to</strong> de pânico e saiu a correr. Nesse<br />

momen<strong>to</strong> ouviu-se a primeira explosão e Chu caiu mor<strong>to</strong>.<br />

O ritual estava a terminar. O dragão elevou-se no ar. Os seus olhos verdes pareciam<br />

deitar chamas tal como os dela. Lótus continuou a recitar os encantamen<strong>to</strong>s. Estava a um<br />

passo de se <strong>to</strong>rnar invencível.<br />

- Ok, bucha. Esta é a nossa única oportunidade. Chega com o pé à mesa e puxa-a<br />

para ti. Tu, branquinho, vira-te de costas para ele. Quando ele <strong>to</strong>mbar a mesa certifica-te que<br />

apanhas algo para cortar as cordas. Is<strong>to</strong> se quiseres viver para poder pintar o cabelo de louro<br />

e comer <strong>to</strong>das gajas que quiseres. Acredita, pu<strong>to</strong>, is<strong>to</strong> de ser agente secre<strong>to</strong> compensa.<br />

Pergunta à Jade sobre hoje à tarde.<br />

- És um nojen<strong>to</strong>, Jack.<br />

- Mas tu gostas, querida.<br />

Fat engoliu em seco quando com o pé <strong>to</strong>mbou a mesa. Os instrumen<strong>to</strong>s de <strong>to</strong>rtura do<br />

falecido Chu caíram, e Zero fechou as mãos tentando apanhar algum. Conseguiu apanhar<br />

um estilete mas apenas pela ponta.<br />

- Força, branquinho. Es<strong>to</strong>u a falar de miúdas que punham a Farrah Fawcett a milhas.<br />

Zero concentrou-se e por fim conseguiu segurar na faca.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 89 de 117


- Agora corta isso e liberta-nos.<br />

Lá fora parecia a terceira guerra mundial. Depois de Zero cortar <strong>to</strong>das as cordas Jack<br />

olhou para Jade e deu uma gargalhada.<br />

ali.<br />

acabar.<br />

disseste.<br />

- Não estás nada gorda, querida. É só inveja.<br />

Jade deu-lhe um enorme estalo e, se o olhar matasse, o pobre Jack teria morrido logo<br />

- Is<strong>to</strong> é por me teres usado.<br />

- Is<strong>to</strong> está-se a <strong>to</strong>rnar um padrão. Bem, miúdos, vocês fiquem escondidos até is<strong>to</strong><br />

- Os meus pais, tenho de os salvar.<br />

- Eu tra<strong>to</strong> disso – respondeu Jack.<br />

- Tu tens que apanhar a Lótus. Is<strong>to</strong> é problema meu. É altura de agir. Foste tu que o<br />

- Bucha, deixas-me orgulhoso. És estúpido mas deixas-me orgulhoso. Jade, ajuda-os.<br />

- Eu vou é sair daqui, Jack.<br />

- Pensei que ainda tinhas umas contas a ajustar com a Foxy.<br />

- Vive para lutar outro dia. Adeus, Jack.<br />

Jade beijou-o apaixonadamente nos lábios e saiu para a confusão. Zero olhou Jack de<br />

olhos arregalados.<br />

pu<strong>to</strong>s.<br />

- Tu és mesmo o “homem”, Jack.<br />

- Eu sei, pu<strong>to</strong>. Eu sei. Bucha, não há maneira de te convencer a ficares aqui?<br />

- Não!<br />

- Pois bem. Boa sorte então. Eu tenho de apanhar uma japonesa marada. Desculpem,<br />

Jack saiu e surpreendeu um ninja por detrás. Com um golpe partiu-lhe o pescoço e<br />

pegou na sua espada. Depois passou-a a Fattapollus.<br />

- Tem cuidado pu<strong>to</strong>. Não te cortes.<br />

Estava mais próxima que nunca. Sentia a electricidade no ar. Lótus levi<strong>to</strong>u e uma luz<br />

verde, cegante, saiu do seu pei<strong>to</strong>. Ela gri<strong>to</strong>u e caiu. Estava morta.<br />

Havia ninjas por <strong>to</strong>do o lado. Homens com a farda do exérci<strong>to</strong> usavam um autêntico<br />

arsenal de metralhadoras, granadas e espingardas para os manter à distância. As coisas<br />

pareciam equilibradas. Fattapollus e Zero tentavam passar despercebidos. Viram um<br />

elevador e entraram.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 90 de 117


Farrah!<br />

- Qual é o andar?<br />

- Onde costumam ser as masmorras? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />

- Na cave?<br />

- Acho que sim. Carrega no último.<br />

O elevador desceu calmamente, ignorando o inferno de balas e sangue ao seu lado.<br />

- Não precisavas de ter vindo, Zero.<br />

- Sou teu amigo. Estás em apuros. Além disso não ouviste? Miúdas melhores que a<br />

Ambos se riram. Quando o elevador se abriu foram surpreendidos por Foxy. Ela<br />

puxou-os para fora e atirou-os para o chão.<br />

- Posso estar acabada mas vou levar alguém comigo.<br />

Fattapollus apanhou a espada e apon<strong>to</strong>u-a a Foxy.<br />

- Não te quero magoar mas…<br />

Foxy riu-se antes que ele acabasse.<br />

- És ridículo. Já te podia ter mor<strong>to</strong> se quisesse.<br />

Fat enfureceu-se e lançou-se contra a inimiga. Foxy não esperava e não se desviou a<br />

tempo. A lâmina cor<strong>to</strong>u o seu braço. Um corte profundo.<br />

- Vais pagar por is<strong>to</strong>!!!<br />

A espia deu um pontapé no ros<strong>to</strong> de Fattapollus que caiu quase inconsciente. Zero<br />

sal<strong>to</strong>u para cima de Foxy com <strong>to</strong>da a coragem que tinha. Enrolou as pernas à volta da sua<br />

cintura e ten<strong>to</strong>u fazer-lhe uma gravata bem ao estilo de Ted DiBiase, o seu wrestler favori<strong>to</strong>.<br />

Mas não havia hipóteses. Foxy recuou contra a parede e Zero bateu com as costas gritando<br />

de dor. Ao cair agarrou-se à camisa de Foxy e acabou por a rasgar.<br />

- Esta era a minha camisa preferida.<br />

- Desculpa?<br />

Quando Foxy se virou os seus volumosos pei<strong>to</strong>s abanavam num soutien pre<strong>to</strong>.<br />

- Ajuda se eu dizer que o pre<strong>to</strong> é a minha cor preferida? – arriscou Zero.<br />

Foxy olhou para o seu pei<strong>to</strong> e percebeu onde ele tinha os olhos.<br />

- Seu…<br />

- Larga o fininho, cabra!<br />

Foxy virou-se e viu Jade, no seu biquíni vermelho, a sair do elevador.<br />

- Eu vou gostar dis<strong>to</strong> – disse Foxy sorrindo.<br />

- Eu vou gostar mais – respondeu Jade.<br />

- E eu ainda mais – exclamou Zero.<br />

Ambas olharam para ele e Zero engoliu em seco.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 91 de 117


Jack chegou finalmente aos aposen<strong>to</strong>s de Lótus, depois de lutar com mais de uma<br />

dezena de ninjas. Quando entrou viu a sua catana pendurada na parede, em exposição.<br />

- Volta ao papá. Eu sei que tiveste saudades.<br />

Alerta, agora armado com a sua espada, explorou o res<strong>to</strong> do espaço. Foi então que<br />

reparou nela no chão, pálida. O dragão estava caído ao seu lado. Com cautela Jack baixou-se<br />

e verificou-lhe a pulsação. Depois levan<strong>to</strong>u-se algo desapontado.<br />

parede.<br />

representar!<br />

- É pena. Gostava de te ter enfrentado.<br />

- Vais ter a tua chance Jack Bravo. Morri para renascer com o poder!<br />

Sentiu a mão de Lótus na perna. Depois foi projectado com uma força brutal contra a<br />

- Vieste lutar contra uma assassina e encontraste uma Deusa!<br />

- Isso parece saído de um filme foleiro com um herói de acção que não sabe<br />

IX<br />

Jade e Foxy lutavam com uma raiva sem igual. Ambas sangravam da boca com os<br />

golpes recebidos. Tinham estilos diferentes. Jade era perita em Kung-Fu, enquan<strong>to</strong> Foxy<br />

tinha o talen<strong>to</strong> de um ninja. Zero e Fattapollus observavam, conforme os seus corpos<br />

abanavam e balouçavam ao ritmo da luta.<br />

- Fat, pá…is<strong>to</strong> é óptimo.<br />

- Eu sei.<br />

Os insul<strong>to</strong>s choviam. Era o jogo mental.<br />

- Não há nada melhor que uma miúda boa a falar mal.<br />

- Quando estás cer<strong>to</strong>, estás cer<strong>to</strong>, Zero.<br />

Numa paragem Jade virou-se para Fat quase sem fôlego mas com os olhos a faiscar.<br />

- E que tal ires salvar os teus pais bucha?<br />

- Ah, sim, tens razão. Vamos Zero.<br />

- Temos mesmo?<br />

- Zero… JÁ!<br />

- Sabes quan<strong>to</strong> tempo esperei por is<strong>to</strong>, Bravo?<br />

Os olhos verdes de Lótus brilhavam. Jack ten<strong>to</strong>u aplicar alguns golpes, mas era como<br />

se ela não os sentisse. Cada murro de Lótus despedaçava-o por dentro.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 92 de 117


- Os rumores são verdade. Há alguém acima de mim no rectângulo. O verdadeiro<br />

líder. Só ele sabia os encantamen<strong>to</strong>s para realizar o ritual. Mas ele cometeu um enorme erro.<br />

Confiou em mim.<br />

Lótus enviou Jack contra a parede e depois, com um pontapé, projec<strong>to</strong>u-o para o<br />

outro lado da sala.<br />

- Ele partilhou-os comigo. Agora eu tenho o poder. Sin<strong>to</strong>-o nas veias. Sou invencível.<br />

Sou imortal! Ajoelha-te perante o meu poder.<br />

Jack cuspiu sangue da boca e encarou-a.<br />

- Lótus, tu não passas de uma anormal.<br />

Fattapollus e Zero correram por um corredor apertado. Por fim encontraram uma<br />

cela. Fat bateu na porta de ferro e chamou pelo pai.<br />

cima.<br />

- John? És tu filho?<br />

- Sim pai. Estás bem?<br />

- Sim. Mas como chegaste aqui? Afinal o que se passa?<br />

- Eu depois explico tudo. Sabes onde está a chave?<br />

- Tínhamos um guarda, mas não o ouço desde que começou aquela confusão lá em<br />

Zero baixou-se e apanhou algo.<br />

- Fat acho que o guarda deser<strong>to</strong>u e deixou as chaves para nós.<br />

Fat abriu a pesada porta e abraçou os seus pais.<br />

- Está tudo bem filho.<br />

Stellios limpou uma lágrima e agarrou em Zero com emoção.<br />

- Anda cá também, pu<strong>to</strong>. Pron<strong>to</strong>… está tudo bem.<br />

- Uh…eu não consigo respirar. Mui<strong>to</strong>…forte…<br />

Jade olhou para os olhos dementes de Foxy. As suas mãos estrangulavam-na e o peso<br />

de Foxy, por cima de si, não a deixava mexer-se. Ten<strong>to</strong>u procurar algo, mas nada lhe veio às<br />

mãos.<br />

- Es<strong>to</strong>u a ver a vida a escoar-se do teu corpo Jade. Vais morrer.<br />

A sua visão começou a ficar turva. As forças abandonavam-na. Negro…<br />

Ouviu o barulho e a tensão no seu pescoço aliviou-se. Depois abriu os olhos e viu<br />

Foxy no chão inconsciente com terra a tapar-lhe a cara. Zero segurava o que restava de um<br />

vaso.<br />

- Nunca, mas nunca chateies um albino.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 93 de 117


Zero deu a mão a Jade a ajudou-a a levantar-se.<br />

- Obrigado.<br />

- Tudo num dia de trabalho – respondeu Zero orgulhoso.<br />

- Eu não acredi<strong>to</strong> nis<strong>to</strong> - disse Jade incrédula.<br />

Foxy levan<strong>to</strong>u-se e correu para o par mais improvável do mundo. Suja de terra,<br />

despenteada, a sangrar, Foxy era uma visão realmente assustadora. Menos para Jade. A<br />

ladra empurrou Zero para o lado e esquivou-se a Foxy. Esta bateu com o ros<strong>to</strong> na parede e<br />

recuou directamente para Jade que com um ges<strong>to</strong> rápido lhe partiu o pescoço.<br />

demorado.<br />

- Pareces nervosa! Que tal este valium, cabra?<br />

Zero olhou Jade absolutamente apaixonado.<br />

- Metes-me medo.<br />

- Ainda bem, pu<strong>to</strong>. Agora vamos sair daqui. Deus… preciso mesmo de um banho<br />

- Por acaso eu…<br />

- Não abuses miúdo.<br />

- Ok!<br />

Jack calculou que tinha hemorragias internas pela quantidade de sangue que cuspiu.<br />

Viu a sua espada caída a poucos metros.<br />

- Há uma coisa que eu não percebo.<br />

- Diz, mortal.<br />

- Suponho que um tipo para chegar ao <strong>to</strong>po do rectângulo tem de ser um bocadinho<br />

inteligente. Is<strong>to</strong> para não dizer uma besta cruel, sem sentimen<strong>to</strong>s.<br />

- Estás cer<strong>to</strong>. Continua.<br />

- Então porque é que um tipo que é tão “bom”, de tal forma que ninguém conhece<br />

sequer a sua existência, corre o risco de te mandar procurar o dragão tendo-te di<strong>to</strong> os seus<br />

segredos?<br />

- Porquê, mortal? Porque confia em mim.<br />

- Sabes o quê que eu acho? Eu acho que is<strong>to</strong> foi tudo um teste.<br />

Jack cuspiu mais sangue.<br />

- Esse tipo queria ver se tu eras leal. Dá-te o segredo do dragão e manda-te procurá-<br />

lo, mas tira uma sílaba aqui, outra ali… enfim muda qualquer coisa nos encantamen<strong>to</strong>s. Eu<br />

conheço a lenda, Lótus. Se alguém que “não merece” tentar efectuar o ritual o seu destino é a<br />

morte e a maldição eterna. Sabes tão bem quan<strong>to</strong> eu.<br />

- MENTES!<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 94 de 117


espada.<br />

ficou imóvel.<br />

Lótus deu um enorme pontapé no pei<strong>to</strong> de Jack. Ele estava agora ainda mais per<strong>to</strong> da<br />

- Pelos meus cálculos deves estar mesmo a dizer adeus, Lótus.<br />

- Eu sou imortal. Nasci para conquistar o mundo.<br />

Jack estava a um palmo da distância da sua arma. Lótus avançou mas subitamente<br />

- As minhas forças…não me consigo mexer.<br />

- Eu avisei-te. Estes tipinhos que lideram organizações criminosas são sempre um<br />

bocadinho mentirosos.<br />

- Não pode ser. Não é possível – gri<strong>to</strong>u Lótus.<br />

Jack agarrou a espada e levan<strong>to</strong>u-se. Lótus estava agora a levitar. Tinha um esgar de<br />

dor. Sentia-se a energia a devorá-la.<br />

- Só mais uma coisa, Lótus. A única coisa que vais conquistar é o inferno.<br />

Jack lançou a catana com <strong>to</strong>das as suas forças. A lâmina penetrou no pei<strong>to</strong> de Lótus<br />

a atravessou-a.<br />

- Não!!!!!!<br />

Lótus cuspiu sangue e depois deu um gri<strong>to</strong> terrível. A energia lançou-a contra a<br />

parede e o seu corpo explodiu com o impac<strong>to</strong>, desintegrando-se.<br />

rectângulo.<br />

- A escola acabou! Adeus, Lótus.<br />

Jack reparou que lá fora os tiros tinham parado. Stallion conquistara a base do<br />

- Lótus? Estás aí?<br />

Jack virou-se e viu a televisão ligar-se au<strong>to</strong>maticamente. O homem na sombra tentava<br />

contactar a sua protegida.<br />

- Lótus? O que se passa?<br />

Jack colocou-se bem em frente do aparelho. A câmara devia estar por ali. O homem<br />

sobressal<strong>to</strong>u-se com a sua presença.<br />

- Bravo!<br />

- É verdade. Ainda cá es<strong>to</strong>u. Guardem as vossas filhas.<br />

- A Lótus?<br />

- Neste momen<strong>to</strong> deve estar num sítio quente com um anfitrião divertido chamado<br />

Lúcifer. Ela vai sentir-se em casa.<br />

- Maldi<strong>to</strong> sejas.<br />

- Tu sabes o que fizeste. Deste-lhe o encantamen<strong>to</strong> errado.<br />

- Tens razão no que dizes, cão nojen<strong>to</strong>. Ela tinha de provar a sua lealdade.<br />

- Tu conhecia-la. Sabias que ela iria cair na tentação. Quiseste eliminá-la.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 95 de 117


Bravo?<br />

- Talvez, mas agora o caminho está livre. O que dizes a trabalhar para mim, Jack<br />

Jack deu uma gargalhada sonora.<br />

- Is<strong>to</strong> ainda agora começou Fu Manchu. Eu vou atrás de ti a seguir.<br />

- Podes ter-me derrotado nos EUA mas nunca o farás no meu território Bravo.<br />

- Não apostes nisso.<br />

- A casa ganha sempre – disse o homem envol<strong>to</strong> em escuridão.<br />

- Mas eu faço ba<strong>to</strong>ta.<br />

Jack pegou na televisão e lançou-a pelo ar. O aparelho fez um enorme estrondo ao<br />

cair, despedaçando-se.<br />

apanhar.<br />

- As sombras não duram sempre. O sol há-de nascer e eu vou estar lá para te<br />

Zero seguiu Jade até uma saída secundária.<br />

X<br />

- Vocês estão a salvo. Agora tenho de ir. A agência do Jack tem umas coisas para me<br />

perguntar e eu não quero responder, mesmo que eles perguntem com jeitinho. Se vires o<br />

Jack diz-lhe que, se ele vier, eu estarei preparada para ele.<br />

- Voltaremos a ver-nos? – pergun<strong>to</strong>u Zero timidamente.<br />

- Peço a Deus que não – respondeu ela friamente.<br />

Zero com uma expressão triste viu Jade a afastar-se. Virou-se para partir ao encontro<br />

de Fat mas sentiu um leve <strong>to</strong>que nos ombros. Vol<strong>to</strong>u-se e viu Jade atrás de si. Tremeu. Ela<br />

inclinou o pescoço e beijou-o nos lábios. Um beijo longo.<br />

- Mas eu e o grande homem lá em cima nunca nos demos mui<strong>to</strong> bem, por isso…<br />

quem sabe? Talvez um dia, noutras circunstâncias. Nunca me disseste o teu nome, pois não?<br />

- Chamam-me Zerom mas o meu nome verdadeiro é…<br />

- Sim?<br />

- Arnold Seagal.<br />

Zero fechou os olhos quando Jade o beijou de novo. Quando os abriu a ladra<br />

desaparecera. Nesse momen<strong>to</strong> ouviu o alarme.<br />

“Mecanismos de au<strong>to</strong>destruição activados. A Base Será Destruída em sessenta<br />

segundos. Cinquenta e nove…cinquenta e oi<strong>to</strong>”<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 96 de 117


Bravo encontrou Fattapollus.<br />

- Temos de sair daqui bucha. O miúdo pálido?<br />

- Es<strong>to</strong>u aqui – gri<strong>to</strong>u Zero.<br />

Stallion jun<strong>to</strong>u-se-lhes.<br />

- Está na hora de correr, Bravo. Consegues mexer-te?<br />

- Claro que sim. Os pais do gordo?<br />

- Já estão lá fora. Já evacuamos o nosso pessoal – explicou Stallion.<br />

- Eu quis voltar para vos procurar.<br />

- És um gordo porreiro. Agora corre – gri<strong>to</strong>u Jack.<br />

Saíram do edifício para a noite escura. Cinco segundos mais tarde a base secreta dos<br />

ninjas do rectângulo dourado explodiu, pintando o céu de laranja e vermelho. Estavam<br />

salvos.<br />

Stallion estava ao seu lado enquan<strong>to</strong> um médico que pertencia à organização o<br />

suturava. Estava sentado nas traseiras de uma ambulância.<br />

- A Lótus?<br />

- Reben<strong>to</strong>u – respondeu Jack.<br />

- Óptimo. O dragão também já está a salvo. Mais uma missão cumprida.<br />

- O que disseste ao comité era verdade, Stallion. Ela não era a verdadeira líder. O<br />

homem que ma<strong>to</strong>u a tua família continua à solta.<br />

- Agora é tempo de paz, Bravo. Demasiado sangue foi já derramado. Cura-te antes de<br />

voltares ao campo de batalha.<br />

Stallion afas<strong>to</strong>u-se. Um homem solitário, triste e com uma vingança para executar. O<br />

médico acabou a sutura na ferida e Jack levan<strong>to</strong>u-se.<br />

- Precisa de cuidados médicos.<br />

- Eu es<strong>to</strong>u bem pá. Só preciso de uma conversa com o meu amigo Johnnie Walker.<br />

Além disso tenho assun<strong>to</strong>s a tratar. Olha para aquela beleza.<br />

Bravo dirigiu-se a um Ferrari vermelho que se destacava no meio dos carros dos<br />

bombeiros e ambulâncias. Não estava trancado e tinha a chave na ignição. Jack sorriu.<br />

- O meu próprio Ferrari. Obrigado Lótus. Não vais precisar mais dele.<br />

Fattapollus e Zero aproximaram-se. Estavam em mau estado, sujos e com algumas<br />

feridas, mas pareciam excitados e, mais do que isso, vivos como nunca.<br />

- Bucha, ainda inteiro?<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 97 de 117


- E tu Jack! Pron<strong>to</strong> para outra?<br />

- Só depois de umas férias. Portaste-te bem miúdo. A tua família?<br />

- Estão a ser examinados pelos médicos. Está tudo bem.<br />

- Óptimo.<br />

Olharam à volta. Era o caos depois da luta. O sítio estava praticamente destruído.<br />

Nada se salvara.<br />

- Boni<strong>to</strong> Ferrari – disse Zero.<br />

- E é <strong>to</strong>do meu. Is<strong>to</strong> é que é vida, miúdo.<br />

- Jack, no fim de tudo is<strong>to</strong>, só quero agradecer-te. Salvaste-nos.<br />

- Sim, bucha, mas também fui eu que te meti nis<strong>to</strong>.<br />

- Mesmo assim, obrigado.<br />

Fattapollus estendeu-lhe a mão e Jack aper<strong>to</strong>u-a.<br />

- O que se segue? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />

- Múmias? Canibais? – arriscou Fattapollus.<br />

Jack deu uma gargalhada.<br />

- Agora até a tua avó dava cabo de mim.<br />

- Só há uma coisa que ainda não sabemos. Depois do que passámos, não nos podes<br />

dizer qual é o teu nome de código? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />

dois jovens.<br />

na noite.<br />

perigo o levar.<br />

- Vocês são porreiros, mas não tan<strong>to</strong>.<br />

- Voltaremos a cruzar-nos, Jack?<br />

- Há sempre a hipótese de haver uma sequela bucha. Até sempre.<br />

Jack entrou no Ferrari e ligou o mo<strong>to</strong>r potente. Depois abriu a janela e encarou os<br />

- Marilyn. Se contarem a alguém estão mor<strong>to</strong>s.<br />

Com habilidade con<strong>to</strong>rnou os obstáculos e arrancou a alta velocidade desaparecendo<br />

- Fat, esta foi um aventura de uma vida.<br />

- Eu sei, Zero. Eu sei.<br />

Jack Bravo. Agente secre<strong>to</strong> de uma organização sem nome. O seu destino? Aonde o<br />

FIM<br />

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Esta página foi intencionalmente deixada em branco<br />

(e quase ficou)<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 99 de 117


Deirdre (excer<strong>to</strong>)<br />

Era uma vez uma jovem rapariga que morava numa aldeia governada por um nobre e<br />

humilde rei. A cidade prosperava, o comércio era bom, a aldeia era animada em dias de festa<br />

e sossegada durante o res<strong>to</strong> do ano. Deirdre, a jovem rapariga, era mui<strong>to</strong> alegre e risonha.<br />

Gostava de sentir o ar fresco das manhãs quando abria as janelas da sua pequena casa, o sol<br />

brilhante aquecendo a sua pele branca quando vestia os seus vestidos simples e saía à rua.<br />

Era mui<strong>to</strong> simpática e gostava de contar histórias às crianças sobre os corajosos cavaleiros e<br />

os sábios antepassados do seu povo.<br />

Deirdre não era uma princesa. Não morava num castelo, não tinha grandes riquezas ou jóias<br />

brilhantes, nem criados que lhe penteassem o cabelo e lhe levassem água quente para o<br />

banho. Ela própria aprendera deste mui<strong>to</strong> cedo a prender os seus próprios cabelos numa<br />

longa e escura trança. Deirdre não se importava de fazer <strong>to</strong>das as coisas sozinha, sem<br />

ninguém por per<strong>to</strong> a oferecer ajuda, e não se sentia abandonada ou triste por isso. Mui<strong>to</strong><br />

pelo contrário, sentia-se bem consigo própria por ser capaz de resolver vários obstáculos e<br />

problemas. As princesas da sua aldeia tinham cabelos cor de ouro, eram mui<strong>to</strong> belas, ricas e<br />

não precisavam de fazer mui<strong>to</strong> para que os príncipes de outras aldeias e reinos olhassem<br />

para elas e se apaixonassem perdidamente. Mas Deirdre nunca quisera ser uma princesa;<br />

gostava da sua vida simples e alegre e nunca a teria trocado por qualquer outra coisa.<br />

Os anos passavam-se, as estações sucediam-se, as flores nasciam, perfumavam os campos,<br />

as ovelhas baliam nos verdes montes, o seu pêlo branco como a neve, celebravam-se festejos<br />

em honra dos deuses, em honra da fertilidade da terra, chegavam cavaleiros cheios de<br />

tesouros, as crianças cresciam correndo nas ruas, os Invernos chegavam, as árvores<br />

despiam-se, as ovelhas desapareciam, serviam-se jantares quentes e aconchegantes em casa,<br />

os cavaleiros partiam, a escuridão cobria os campos, a vida continuava e Deirdre <strong>to</strong>rnara-se<br />

uma jovem mulher.<br />

Quando o Verão estava já próximo, começaram uma vez mais os preparativos para a grande<br />

celebração da fertilidade em honra da deusa Brighid, a deusa que cuidava da terra,<br />

permitindo que os alimen<strong>to</strong>s crescessem saudáveis e em boa qualidade, e dos ventres das<br />

vacas, das ovelhas e de <strong>to</strong>das as mães da aldeia, para que quando os seus maridos<br />

chegassem das guerras sorrissem de alegria ao reparar em mais um berço em suas casas. As<br />

crianças pequenas não eram au<strong>to</strong>rizadas a assistir àquela celebração do princípio ao fim,<br />

ficando unicamente até ao acender das grandes Fogueiras. Nessa altura, os pais<br />

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empenhavam-se em ir deitar as suas crianças, pois o res<strong>to</strong> da Festa era apenas para os<br />

jovens mais crescidos, para os mais velhos e também para os anciãos da aldeia. Pela primeira<br />

vez em <strong>to</strong>da a sua vida, Deirdre poderia assistir à celebração integral, uma vez que nesse<br />

mesmo ano completara a idade mínima que era necessária para que nenhum adul<strong>to</strong> a<br />

mandasse para longe dos campos onde se acendiam Fogueiras em honra de Brighid.<br />

Deirdre olhava em seu redor, nessa noite. Todas as outras jovens dançavam em grandes<br />

grupos, rindo animadamente enquan<strong>to</strong> os seus vestidos e as suas sombras rodopiavam à luz<br />

das resplandecentes Fogueiras. Os longos cabelos presos em fitas coloridas, como cabia a<br />

qualquer mulher de boa educação e aprumo, davam as mãos aos seus respectivos pares ou<br />

formavam círculos em volta de uma Fogueira e cantavam ao som da música.<br />

— Dança comigo, Deirdre.<br />

Deirdre vol<strong>to</strong>u-se, apanhada de surpresa. Era Erling, um grande amigo seu, há mui<strong>to</strong> partido<br />

com as tropas do Rei para um guerra que prometia nunca mais acabar. Erling sempre a<br />

tratara mui<strong>to</strong> bem, sempre a respeitara como a uma irmã mais velha, apesar de não ser<br />

mui<strong>to</strong> mais novo. Deirdre sabia que o pequeno rapaz desenvolvera dissimuladamente por ela<br />

algo mais do que a forte amizade e cumplicidade que os unia, mas haviam passado bons<br />

momen<strong>to</strong>s jun<strong>to</strong>s, Deirdre ouvindo o amigo queixar-se das raparigas por quem se<br />

apaixonava, ainda que brevemente, e das zangas que tinha com outros rapazes nos treinos<br />

de espada. Era espan<strong>to</strong>so tê-lo ali na sua frente de novo. Tornara-se um jovem forte, boni<strong>to</strong>,<br />

provavelmente um óptimo guerreiro nas demandas do Rei. Deirdre deixou que um enorme<br />

sorriso lhe curvasse os lábios, enquan<strong>to</strong> abria os seus braços em <strong>to</strong>do o seu comprimen<strong>to</strong>.<br />

Erling retribuiu o forte abraço, sorrindo igualmente.<br />

— Não acredi<strong>to</strong> que voltaste, Erling!<br />

— Não podia deixar-te sozinha…<br />

Deirdre afas<strong>to</strong>u-o de si, sorrindo ainda. Continuava o mesmo desavergonhado, não havia<br />

dúvida. Deirdre pergun<strong>to</strong>u-se sobre qual das raparigas que rodopiava naquela festa viria a<br />

ser a mãe dos filhos do bravo e corajoso Erling, mas rapidamente esta ideia saiu do<br />

pensamen<strong>to</strong>. À sua frente, mais gente se juntava à dança, sempre os mesmos sorrisos de<br />

despreocupação e divertimen<strong>to</strong>. Mas houve um sorriso que cativou Deirdre mais do que<br />

qualquer outro, mais até do que o do jovem Erling dos cabelos claros e olhos cor-de-mel, que<br />

percebendo que a sua eterna amada centrara a sua atenção noutro lado, ten<strong>to</strong>u <strong>to</strong>car-lhe na<br />

mão, talvez para lhe recordar que ele estava ali e que tinha voltado para ela.<br />

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Parecia que o outro jovem também olhava para Deirdre, enquan<strong>to</strong> ambos se aproximavam<br />

um do outro. Deirdre nunca se apaixonara antes, mas aquele jovem al<strong>to</strong> e moreno, Fingal de<br />

seu nome, capturara de modo instantâneo e perigoso a sua atenção. Deirdre não soube dizer<br />

como tudo aconteceu, apenas sabia que dançara <strong>to</strong>da a noite com o mesmo jovem, que se<br />

divertira imenso, que ele era simpático e atencioso e que poderia mui<strong>to</strong> bem ser a encarnação<br />

do seu sonho mais profundo.<br />

No dia seguinte, Deirdre ainda se sentia feliz e pensava bastante em <strong>to</strong>das as palavras e<br />

<strong>to</strong>dos os ges<strong>to</strong>s de Fingal. Nunca antes se sentira tão leve, tão cheia de alegria, tão rica agora<br />

que o seu coração fora preenchido com um tão poderoso tesouro…Fingal tratava-a bem, era<br />

simpático e fazia-a rir, dava-lhe atenção e fazia-a sentir-me mui<strong>to</strong> bem. O seu coração não<br />

podia ter escolhido melhor, não poderia nunca estar enganado. Só mais tarde nesse dia<br />

Deirdre se recordou do seu amigo recém-chegado, Erling, e sentiu-se um pouco mal por não<br />

ter celebrado com ele o seu regresso. Bom, pensou Deirdre enquan<strong>to</strong> colocava na cabeça o<br />

pote com que costumava recolher água fresca do rio que passava per<strong>to</strong> de sua casa,<br />

provavelmente ele também se esquecera completamente dela e encontrara uma bela rapariga<br />

com quem passar a noite…<br />

Deirdre não cantarolava enquan<strong>to</strong> caminhava pelas ruas, como já vira as suas irmãs mais<br />

velhas e outras raparigas fazer quando estavam apaixonadas. Para Deirdre, esse era a mais<br />

preciosa das riquezas e portan<strong>to</strong> guardava para si o sorriso de Fingal gravado na sua mente.<br />

No entan<strong>to</strong>, o seu olhar brilhava e os seus lábios sorriam, mesmo contra a sua vontade em<br />

permitir que se <strong>to</strong>rnasse claro o que lhe ia no espíri<strong>to</strong>.<br />

As noites e os dias sucediam-se contínua e ininterruptamente e o Verão estava cada vez mais<br />

per<strong>to</strong>. Deirdre e Fingal passavam algumas tardes jun<strong>to</strong>s, passeando pelos campos verdes<br />

enquan<strong>to</strong> o Sol descia do pon<strong>to</strong> mais al<strong>to</strong> do céu até se perder no mar, sem nunca deixar de<br />

iluminar os cabelos morenos de ambos. Conversavam longamente, sentados per<strong>to</strong> da costa,<br />

sentindo o cheiro salgado a maresia e observando as gaivotas sobrevoando as suas cabeças e<br />

mergulhando nas águas do mar em busca de alimen<strong>to</strong>, tão prazenteiras na tarefa monó<strong>to</strong>na<br />

que lhes garantia a sobrevivência.<br />

Não se podia dizer que os dois jovens eram namorados, pois nunca tinham selado tal laço<br />

com nenhum ac<strong>to</strong> em especial, mas entendiam-se bem jun<strong>to</strong>s e conversavam sobre várias<br />

coisas. Deirdre não tinha pressa; só a companhia dele fazia dela uma rapariga feliz e<br />

contentava-se com isso. Quando não estava com o seu querido Fingall, Deirdre trabalhava na<br />

aldeia, ajudando nas tarefas das mulheres, cozendo pão, tecendo belas e longas tapeçarias,<br />

moldando barro, preparando medicamen<strong>to</strong>s e unguen<strong>to</strong>s para a gente ferida e amanhando o<br />

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peixe para os jantares em família. Deirdre não se considerava a ideal dona de casa, muitas<br />

destas tarefas eram feitas porque <strong>to</strong>das as filhas da sua mãe ajudavam e ela não poderia<br />

fugir à regra. Mas o que Deirdre mais gostava de fazer era passear pelos campos, observar o<br />

mar brilhante no Verão ou o fogo faiscante na lareira da sua casa, no Inverno. E inventar e<br />

contar novas histórias. Por vezes pegava nas suas irmãs mais novas e sentava-as gentilmente<br />

no seu colo, embalando-as docemente enquan<strong>to</strong> lhes contava as novas aventuras sobre<br />

Clodagh, uma rapariga corajosa que estava sempre na linha da frente das tropas do seu Rei e<br />

que era, portan<strong>to</strong>, uma feroz guerreira. Quan<strong>to</strong> a Erling, Deirdre falava pouco com ele. Ele<br />

andava sempre ocupado com qualquer coisa ou pouco dispos<strong>to</strong> a conversar durante mais do<br />

que alguns minu<strong>to</strong>s. Havia uma mulher na aldeia que lhe sorria sempre que ela passava e<br />

Deirdre sorria de volta, sabendo que a outra lhe sorria por ter percebido que brilho era aquele<br />

nos seus olhos claros. No entan<strong>to</strong>, Deirdre nunca parava para conversar com a mulher, pois<br />

ela dizia-lhe sempre uma frase que a deixava incomodada…”Ele está bem mais per<strong>to</strong> do que<br />

imaginas…E afasta-lo para cada vez mais longe”… Deirdre não entendia o que quereria<br />

aquilo dizer, mas era óbvio para si que Fingall não estava longe de si… De res<strong>to</strong>, estava tudo<br />

bem e a vida seguia, na mais completa da sua maravilha.<br />

Certa manhã, tão dourada e fresca como tantas outras naquele Verão delicioso, Deirdre<br />

pulou da cama, vestiu um dos seus vestidos preferidos, enrolou o cabelo brilhante com uma<br />

fita vermelha e correu para a costa, onde esperaria pela chegada de Fingall, como tantas<br />

outras vezes fizera. Mas, naquela manhã em que o ven<strong>to</strong> soprava um pouco mais forte do que<br />

o habitual, uma grande comitiva ali se juntara, as senhoras abanando pequenos lenços<br />

brancos em sinal de despedida. Deirdre olhou na direcção do horizonte e viu o enorme navio<br />

que partia. Provavelmente, tratava-se da partida de alguma princesa que partia com o seu<br />

marido para outros reinos ou talvez fosse apenas mais uma viagem da realeza. Deirdre nunca<br />

prestava atenção a coisas respeitantes à vida real, nunca sentia grande interesse por isso,<br />

mas resolveu perguntar a uma senhora que se encontrava a seu lado e que chorava<br />

perdidamente, assoando-se ruidosamente ao seu lencinho branco.<br />

— Desculpai, minha Senhora — ten<strong>to</strong>u Deirdre, <strong>to</strong>cando ao de leve no ombro da outra —<br />

Podeis dizer-me quem parte naquele navio rumo ao horizonte e porque se aglomerou aqui<br />

tanta gente para o ver partir? É o nosso Rei que parte?<br />

— Oh não, pequena — disse a senhora, limpando mais uma vez o seu nariz enorme e<br />

secando as lágrimas — Quem parte é a minha menina…Cuidei dela até crescer e ela agora<br />

abandona-me! Mas não posso repreendê-la, pois é a lei natural das coisas…<br />

Deirdre sentiu pena da pobre senhora que perdia agora a sua filha querida.<br />

— Não tendes mais filhos? Mais ninguém que preencha o vosso tempo e de quem possais<br />

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cuidar com o mesmo amor com que cuidastes da vossa filha que vedes partir?<br />

— Oh não, ela não é minha filha — disse a senhora, olhando para Deirdre — Trata-se de uma<br />

das filhas mais novas do Rei, que parte com o seu marido para outras terras. Eu eduquei-a,<br />

contei-lhe histórias, penteei-lhe os cabelos dourados…<br />

Deirdre pensou por instantes. No dia anterior tinha realmente sido realizada uma festa no<br />

castelo do Rei, mas apenas as suas irmãs mais velhas tinham comparecido, pois algumas já<br />

tinham idade para casar e estas ocasiões permitiam arranjar maridos. Deirdre tinha ficado<br />

em casa, velando o sono da sua irmãzinha mais nova que fora atingida por uma súbita<br />

doença.<br />

— Pelo menos poderei dormir descansada — continuou a outra, falando com Deirdre —<br />

Scarlett fez um bom casamen<strong>to</strong>. Ele é um jovem hones<strong>to</strong>, de sangue real e puro e <strong>to</strong>mará<br />

bem conta da minha pequena. Ela é apenas um pouco mais velha do que tu.<br />

— Fico contente por si e pela princesa — disse Deirdre sorrindo simpaticamente para a<br />

mulher.<br />

— Talvez encontres também tu um Fingall Coghlan, se bem que as raparigas do povo não<br />

podem nunca esperar casar tão bem quan<strong>to</strong> as…<br />

Deirdre já não a ouvia. O seu coração disparara de repente e parecia querer rebentar-lhe no<br />

pei<strong>to</strong>, tal era a força com que batia. Sentiu o seu corpo ficar rígido e imóvel e deixou de ouvir<br />

o que quer que fosse que estivesse à sua volta. O próprio chão parecia ter-se aber<strong>to</strong> num<br />

enorme e escuro buraco e Deirdre pensava vir a ser engolida por ele a qualquer momen<strong>to</strong>.<br />

Não era uma coincidência. Não havia nenhum outro Fingall Coghlan naquela pequena aldeia<br />

onde <strong>to</strong>dos se conheciam e se falavam. E Fingall ainda não aparecera. Nem iria aparecer.<br />

Nesse mesmo momen<strong>to</strong>, Deirdre sentiu estilhaçar-se em pedaços qualquer coisa dentro de si,<br />

qualquer coisa que até então não soubera ser frágil.<br />

Durante três dias, Deirdre não foi a rapariga alegre e despachada que <strong>to</strong>dos conheciam.<br />

Alguns pensaram que ela havia adoecido, talvez tivesse sido apanhada pela mesma doença<br />

que afectara a pequena Fiona, a mais nova das irmãs, que de igual a tinha deixado pálida,<br />

apática e sem apetite pelo que quer que fosse. Outros diziam que os Espíri<strong>to</strong>s do mar lhe<br />

tinham reclamado a alma por ela passar mui<strong>to</strong> do seu tempo livre observando a ondulação e<br />

a beleza das águas, e outros ainda inventavam razões mirabolantes para tão grande<br />

mudança. Deirdre não sorria, não falava sem ser preciso que uma das suas irmãs mais<br />

velhas perdesse a paciência com ela e lhe dirigisse um gri<strong>to</strong>, numa vã tentativa de vê-la<br />

reagir, não <strong>to</strong>cava no pra<strong>to</strong> na hora das refeições. A sua mãe não lhe pedia que a ajudasse<br />

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nas tarefas domésticas e parecia não reparar que a sua filha saía de manhã e voltava à noite,<br />

não lhe impondo qualquer objecção, na secreta esperança que ela voltasse a ser mesma.<br />

No terceiro dia após a partida da princesa, ao fim da tarde, Deirdre vol<strong>to</strong>u para casa com um<br />

pouco mais de cor no ros<strong>to</strong>. Ao jantar, acei<strong>to</strong>u um pouco de vinho quente com especiarias<br />

que lhe serviu o pai e elogiou a comida preparada pela sua mãe. Uma das suas irmãs mais<br />

velhas pediu licença para se levantar da mesa e ausen<strong>to</strong>u-se durante um momen<strong>to</strong>, voltando<br />

pouco depois com uma flor de pétalas compridas e de cor viva, prendendo-a no cabelo de<br />

Deirdre. Parecia que o espíri<strong>to</strong> risonho da jovem Deirdre fora voltando a pouco e pouco a<br />

habitar o corpo. Deirdre voltara a sorrir, voltara a fiar e a tecer belos e quentes cober<strong>to</strong>res,<br />

voltara a narrar as aventuras de Clodagh, a guerreira. No entan<strong>to</strong>, algo parecia ser<br />

irremediável e incurável até para o tempo: Deirdre <strong>to</strong>rnara-se um pouco fria, um pouco<br />

distante, um pouco rígida e mui<strong>to</strong> mais séria do que fora alguma vez.<br />

Ninguém prestava muita atenção a este pormenor. Ela cresceu, diziam as pessoas. Tornou-se<br />

numa verdadeira mulher. Afirmavam também que não se espera de alguém que atinge tal<br />

maturidade as mesmas coisas que caracterizaram a sua infância. De fac<strong>to</strong>, a própria Deirdre<br />

sentia que algo em si mudara e que crescera. Mas sabia que se tratava de bem mais do que<br />

isso. Sentia que algo se perdera para sempre. “Não há nada que o Tempo não cure”, parecia<br />

ser a nova frase preferida da mulher da aldeia, que tinha especial talen<strong>to</strong> para a fazer sentir<br />

incomodada.<br />

Alguns anos se passaram. Duas das irmãs mais velhas haviam casado, ambas tendo direi<strong>to</strong> a<br />

belas cerimónias, ainda que simples, e Deirdre sentia-se mui<strong>to</strong> feliz pelas irmãs. Fiona<br />

crescia saudável, forte e bonita, uma pequena cópia da irmã Deirdre. Com o tempo deixara-<br />

se encantar por um jovem pescador da aldeia e passava o tempo <strong>to</strong>do a cantarolar e a<br />

assobiar alegremente. Deirdre pensou, aliviada, que o que quer que a impedisse de um<br />

caminho semelhante não parecia afligir o destino e a felicidade das irmãs, pois estas eram<br />

felizes e tudo prosperava. No entan<strong>to</strong>, Deirdre também era feliz à sua maneira. Fazia as<br />

coisas de que gostava e isso encantava-a.<br />

Erling, o jovem dos olhos cor-de-mel, partira e voltara à aldeia inúmeras vezes desde aquela<br />

vez em que reencontrara Deirdre. Os dois tinham alguns momen<strong>to</strong>s em que conversavam<br />

durante algum tempo, o que deixava Deirdre contente por ter de volta o seu amigo de<br />

sempre. Sentia-se protegida por ele, sentia que ele tinha em si um grande valor, o que por<br />

sua vez a fazia sentir-se bem. Deirdre costumava pensar para si própria, divertida, que ele<br />

acabara por se <strong>to</strong>rnar o seu Guardião. Mas não passava tan<strong>to</strong> tempo com ele quan<strong>to</strong> isso;<br />

Deirdre preferia passar <strong>to</strong>do o seu tempo ocupada com as coisas de que gostava de fazer e<br />

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que lhe mantinham a mente desocupada de problemas e coisas tristes. Por fim, conseguira<br />

sentir-se bem consigo própria, com a sua vida, com as suas tarefas. Não iria nunca estragar<br />

semelhante equilíbrio com o que quer que fosse.<br />

Numa das vezes em que caminhava pela aldeia, Deirdre, após se escapulir de per<strong>to</strong> da<br />

estranha mulher, que dessa vez se limitara a deitar-lhe um olhar profundo e tão incómodo<br />

quan<strong>to</strong> as suas palavras, decidiu procurar por Erling e convidá-lo para um passeio. Mas<br />

Erling partira novamente, para mais uma das suas viagens sob comando do Rei. Deirdre não<br />

gostava que o amigo fosse um guerreiro; temia pela sua vida, temia vê-lo regressar estropiado<br />

ou pior que isso, derrotado e de espíri<strong>to</strong> destruído, pois Deirdre sabia da enorme vontade e<br />

empenho de Erling em ser o melhor dos guerreiros. Mas o que mais assustava Deirdre era a<br />

possibilidade de Erling não voltar sequer. Repleta de pensamen<strong>to</strong>s escuros sobre a segurança<br />

do melhor dos seus amigos, Deirdre deu meia volta e vol<strong>to</strong>u para casa, para os seus bordados<br />

e cozinhados. Mas durante os dias seguintes, para seu espan<strong>to</strong>, as suas tarefas foram<br />

incapazes de a distrair de pensamen<strong>to</strong>s relacionados com Erling.<br />

Com o passar do tempo, Deirdre descobriu que não conseguia parar de pensar no amigo, nos<br />

momen<strong>to</strong>s que passaram jun<strong>to</strong>s durante <strong>to</strong>dos aqueles anos e em como desejava com <strong>to</strong>das<br />

as suas forças que ele voltasse. No entan<strong>to</strong>, Deirdre sabia o que isso poderia significar e não<br />

gostava nem um pouco da ideia. Na verdade, assustava-a de morte. Mas Deirdre não<br />

conseguia impedir que certas coisas que lhe assomassem ao pensamen<strong>to</strong>, não conseguia<br />

deixar de pensar o quan<strong>to</strong> gostava dele, o quan<strong>to</strong> se preocupava com ele, o quan<strong>to</strong> lhe fazia<br />

falta o olhar tímido que ele tinha por vezes, quando estava com ela. Deirdre estava<br />

assustada; não queria sentir o mesmo que sentira por Fingall, sentir o mesmo que quase lhe<br />

roubara a alegria natural que ela tinha. Tinha lutado tan<strong>to</strong> por se manter forte, íntegra, tinha<br />

combatido tanta tristeza e escuridão para manter o seu espíri<strong>to</strong> puro e sorridente. Não podia<br />

cair na mesma armadilha de novo, não podia, tinha de lutar com <strong>to</strong>das as suas forças. Não<br />

Erling, que só se preocupava com os treinos de batalha e com imensas raparigas que lhe<br />

dirigiam olhares melosos quando ele passava na rua. Não Erling, que não mostrava o mínimo<br />

interesse pelas coisas de que Deirdre gostava. Não Erling que se <strong>to</strong>rnara isolado nos próprios<br />

problemas e que era demasiado orgulhoso para os partilhar. Não Erling, que já não tinha<br />

nela o amor da sua vida. Os dias foram passando e Deirdre tentava com <strong>to</strong>das as suas forças<br />

convencer-se de que tudo aquilo eram apenas saudades e temor pelo velho amigo, e nada<br />

mais. Nunca nada mais. Mas a sua ausência magoava-a acima de tudo.<br />

Erling vol<strong>to</strong>u numa manhã de Ou<strong>to</strong>no, mesmo a tempo de uma pequena festa levada a cabo<br />

pelos aldeões. Por vezes era preciso dar às ruas alguma animação e nada melhor do que<br />

enchê-las de música e pessoas a dançar. Assim, depois do habitual abraço forte que Deirdre<br />

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sempre fizera questão de dar ao amigo aquando dos seus regressos, Deirdre ficou à espera<br />

que Erling lhe pegasse na mão e a convidasse para dançar. Mas Erling não <strong>to</strong>cou sequer no<br />

assun<strong>to</strong>. Deirdre pensou que talvez ele estivesse cansado da viagem e trouxe-lhe uma caneca<br />

com vinho quente, que servia sempre para aquecer o corpo em dias frios como aquele. Mas<br />

Erling não elogiou a sua gentileza, não lhe elogiou os cabelos ou o sorriso, mal olhava para<br />

ela sequer, ocupado a pegar ao colo os irmãos mais novos ou a cumprimentar velhos amigos.<br />

Deirdre observava-o de per<strong>to</strong>. Não se importava realmente com a indiferença dele, tê-lo ali,<br />

com o seu sorriso tão boni<strong>to</strong>, os seus cabelos claros e os seus olhos cor de mel já lhe bastava.<br />

Mas Deirdre sentiu uma enorme dor no pei<strong>to</strong> e soube que <strong>to</strong>dos os dias em que pensara nele<br />

e tentara combater o que quer que fosse que pretendesse ocupar o seu espíri<strong>to</strong> haviam sido<br />

em vão. Deirdre falhara. Correspondera demasiado tarde ao afec<strong>to</strong> que tantas outras vezes<br />

lhe havia sido cautelosamente enviado por debaixo de sorrisos meigos e palavras simpáticas<br />

da parte de Erling. Deirdre fora incapaz de vencer a coisa estranha que a assaltara e a<br />

vencera e isso era agora irremediável.<br />

A jovem pegou nas saias do seu vestido e correu, o mais veloz que conseguia ser, embora não<br />

soubesse para onde ia. Simplesmente, continuou a correr como se fugisse de um monstro<br />

horrendo e mortífero, e só parou quando já não havia fôlego que lhe valesse. Felizmente,<br />

assim parecia, ninguém tinha reparado na aflição e profundo desgos<strong>to</strong> no seu olhar quando<br />

fugira da aldeia. Deirdre sentia-se aliviada por ninguém a ter seguido e por não ter de<br />

explicar o que lhe ia no espíri<strong>to</strong>. O seu coração sangrava, não havia como esconder isso, nem<br />

de si própria. Durante <strong>to</strong>do aquele tempo sentira nascer dentro de si algo que tentara matar,<br />

mas que crescera mais e mais. No entan<strong>to</strong>, era como se essa mesma coisa tivesse estado<br />

sempre ali, como se já fizesse parte dela há mui<strong>to</strong> tempo, nas conversas que tinha com ele,<br />

nos abraços fortes que lhe dirigia, nas palavras de confiança e encorajamen<strong>to</strong>, no mais<br />

inocente dos seus sorrisos, na alegria que a inundava quando ele voltava, nas festas que a<br />

sua mão lhe fazia nos cabelos claros, que até então estivera sempre disfarçado de carinho de<br />

irmã mais velha.<br />

Como pudera ser tão cega? Como pudera ser tão insensível ao que era tão óbvio e ao que<br />

estava mesmo a seu lado, claramente estampado nuns olhos cor de mel que iluminavam o<br />

caminho, mesmo quando não estavam ali, a olhar por ela. Mas agora era demasiado tarde.<br />

Demasiado tarde para ela. Demasiado tarde para Erling. Demasiado tarde para tentar<br />

recuperar fosse o que fosse do passado e salvar o futuro.<br />

Deirdre olhou em volta. Estava per<strong>to</strong> de um lago mui<strong>to</strong> boni<strong>to</strong> que costumava visitar algumas<br />

vezes, quando precisava de algum sossego para pôr os seus pensamen<strong>to</strong>s em ordem. Dizia-se<br />

que não era um lago comum, que as suas águas encerravam mistérios ilimitados e<br />

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inalcançáveis pela raça humana, mas Deirdre nunca pensara mui<strong>to</strong> na veracidade de<br />

semelhante lenda e, portan<strong>to</strong>, aproximou-se da água cintilante das estrelas que reflectia,<br />

<strong>to</strong>da a sua alma ocupada unicamente por um enorme desgos<strong>to</strong> e intricada dor. Diziam as<br />

histórias que aquelas águas tinham o poder de <strong>to</strong>rnar realidade mui<strong>to</strong>s desejos, o que não<br />

era necessariamente uma coisa boa, já que mui<strong>to</strong>s desejos são pedidos de ânimo leve e<br />

irresponsabilidade e mais tarde se vêem a revelar grandes pesadelos. Assim, à beira daquele<br />

lago, mui<strong>to</strong>s cavaleiros, reis, princesas e príncipes, mulheres, homens e crianças haviam<br />

tan<strong>to</strong> ganho grande felicidade, como perecido irremediavelmente.<br />

Perdida na sua mágoa, a jovem caiu de joelhos per<strong>to</strong> da água e, de cabeça baixa, não<br />

conseguiu evitar que os seus olhos se enchessem de lágrimas. Deirdre aprendera com o<br />

tempo a engolir as lágrimas que por vezes chegavam sem aviso, mas naquele momen<strong>to</strong>,<br />

permitiu-se extravasar um pouco da angústia que a a<strong>to</strong>rmentava. Ao fim de algum tempo,<br />

alguns dos seus cabelos estavam colados ao ros<strong>to</strong> de tan<strong>to</strong> que os seus olhos choraram, mas<br />

Deirdre parecia ser uma fonte inesgotável de água, como se <strong>to</strong>das as lágrimas outrora retidas<br />

se tivessem agarrado àquela oportunidade única de se verem livres de uma vez por <strong>to</strong>das.<br />

Soluçando amargamente, Deirdre levan<strong>to</strong>u ligeiramente a cabeça e espan<strong>to</strong>u-se por ver ali<br />

um bando de cisnes, flutuando gracilmente na superfície da água. Eram lindos, magníficos<br />

na sua brancura alva, quase de pérola, o olhar plácido e seguro, como se nada no mundo os<br />

preocupasse, como se estivessem conscientes da sua presença plena de encan<strong>to</strong> e serenidade<br />

num mundo tão injus<strong>to</strong> e doloroso.<br />

— Uma rapariga tão bonita não devia chorar dessa maneira…— disse uma voz feminina e<br />

calma. Deirdre virou a cabeça e de um dos seus lados, a alguma distância, estava uma<br />

mulher mui<strong>to</strong> bonita, que parecia saída das mais belas histórias de povos imaginários ou que<br />

outrora tinham ocupado aquela mesma terra, saudando a água, o ar, a terra, o céu, as<br />

árvores, <strong>to</strong>da a natureza, dedicando-lhes <strong>to</strong>da a sua alma. Eram inúmeras essas histórias e<br />

Deirdre contara muitas delas à pequena Fiona, agora já crescida.<br />

A mulher tinha longos cabelos ruivos, qual fogo flamejante no man<strong>to</strong> escuro do céu, uma pele<br />

mui<strong>to</strong> clara e um porte majes<strong>to</strong>so, no seu vestido cor de areia. Os seus olhos verdes<br />

brilhavam como safiras e reflectiam a míriade de estrelas do céu como se fossem fei<strong>to</strong>s a<br />

partir de um espelho. Deu alguns passos em frente, mas manteve-se a uma certa distância<br />

de Deirdre, que a olhava com grande espan<strong>to</strong>, numa mistura de medo, respei<strong>to</strong> e<br />

incredulidade. A outra tinha um olhar calmo, semelhante ao dos cisnes que se moviam<br />

lentamente pela água do lago.<br />

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— Quem és tu? — pergun<strong>to</strong>u Deirdre, enxugando rapidamente com as costas da mão as<br />

lágrimas que ameaçavam cair. Por momen<strong>to</strong>s, esquecera-se das suas boas maneiras.<br />

— Não temas, Deirdre — disse a mulher, num leve e breve curvar dos seus lábios.<br />

Deirdre não sabia o que dizer ou fazer. Sentia-se mui<strong>to</strong> só na sua dor, mas aquela não seria<br />

certamente a companhia que desejara. Era uma estranha, não sabia ao que vinha nem<br />

porque vinha. No entan<strong>to</strong>, Deirdre não conseguia arranjar forças para se levantar e procurar<br />

um outro lugar para tentar descansar o coração. Era como se, mesmo contra sua vontade,<br />

aquela figura exercesse um cer<strong>to</strong> poder e fascínio sobre ela, mantendo-lhe as saias presas ao<br />

chão.<br />

— Eu sei porque choras — disse a mulher, as mãos entrelaçadas na sua frente e poisadas no<br />

vestido. Parecia uma rainha, um ser poderoso de um outro povo. — Tiveste-o sempre tão<br />

per<strong>to</strong> de ti, mas não lhe deste o tipo de atenção que ele queria. Tiveste sempre os olhos dele<br />

poisados em ti, mas os teus fixavam outros horizontes. E agora tudo mudou. O que esperas<br />

conseguir?<br />

— Não sei — respondeu Deirdre, desviando brevemente o seu olhar incrédulo daquela<br />

mulher, portadora de uma verdade que ela já conhecia e que estava a destruir-lhe a pouco e<br />

pouco as entranhas. Deirdre não se sentiu melhor por ela ter falado daquela forma. — É<br />

tarde. Ele já não é meu nem vai voltar para mim.<br />

— Então sabes…— disse a outra. Dessa vez, Deirdre, que pensava que não poderia sofrer<br />

ainda mais do que já sofria, sentiu uma dor aguda e intensa picar-lhe o pei<strong>to</strong>, como um gri<strong>to</strong><br />

arrepiante que tentava sair das profundezas do seu ser. Deirdre pensou que a dor a iria<br />

dividir em duas, tal era o seu vigor e poder. Parecia-lhe que era demasiado cruel para ser<br />

provocado apenas por um homem, e então ocorreu-lhe que aquela era dor que emanavam de<br />

uma ferida antiga, que a cus<strong>to</strong> fechara, mas que agora se abria de par em par, jorrando <strong>to</strong>da<br />

a angústia no seu corpo.<br />

— Não tens culpa, filha — disse a mulher — Podemos escolher o nosso caminho, mas não<br />

podemos prever as curvas e voltas que ele segue, nem como fazer desaparecer os obstáculos<br />

com que nos deparamos.<br />

— Seria mais fácil se pudéssemos fazer desaparecer o que nos desagrada ou o que nos magoa<br />

— murmurou Deirdre, de cabeça baixa.<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 109 de 117


— No entan<strong>to</strong>, nem sempre é fácil livrarmo-nos de algo que nos fere, quando esse algo<br />

também nos dá alegria. É um mal que afecta, e sempre afectará, o mundo. É algo que nem o<br />

mais talen<strong>to</strong>so dos poetas conseguiria pôr em palavras, nem o mais habilidoso dos bardos<br />

transformaria em música; é uma sombra que escurece os nossos dias e um raio de sol que<br />

faz brilhar <strong>to</strong>do o nosso ser. É um mal sem corpo e um bem sem voz. A culpa não é tua,<br />

Deirdre.<br />

— Eu ignorava-o — chorou Deirdre, não conseguindo manter a voz controlada. Esta saía-lhe<br />

embargada e carregada de emoção, mas Deirdre já não se importava com o que pensaria dela<br />

a estranha mulher. — Eu amava-o como a um irmão, mas ignorava-o, porque não era assim<br />

que ele me queria.<br />

— A culpa não é tua, Deirdre.<br />

— Como foi possível? Como pode mudar tan<strong>to</strong> o meu amor? É uma mudança demasiado<br />

trágica, demasiado acentuada para ser possível! As mulheres falam…falam em maldições. Eu<br />

fui amaldiçoada! Eu não sei porque razão, eu limi<strong>to</strong>-me a seguir com as minhas tarefas, jurei<br />

que não voltaria a deixar-me levar por semelhante…ilusão…<br />

— Não é uma ilusão, Deirdre, é uma verdade. É algo tão natural quan<strong>to</strong> a sede de um<br />

homem, quan<strong>to</strong> a necessidade que uma criança tem do amor de uma mãe. Sentes-te presa,<br />

encurralada. Queres fugir. Mas também queres ficar. Também queres que as coisas se<br />

mostrem doces e felizes, tu e ele. Não podes combater a réstia de esperança que tens dentro<br />

de ti. E é isso que te magoa mais do que o simples fac<strong>to</strong> de não o poderes ter para ti. Mais do<br />

que reconhecer que é tarde para que o seu amor volte a ser-te dirigido, dói-te mais admitir<br />

que mesmo assim tens uma pequena luz que te mostra aquilo que poderia ser…<br />

-<br />

Henis<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 110 de 117


Au<strong>to</strong>res e Au<strong>to</strong>ras<br />

Drops<br />

Nome: Rita Sousa<br />

Idade: 21<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Ericeira<br />

Anavicenteferreira<br />

Nome: Ana Vicente Ferreira<br />

Idade: 29<br />

Ocupação: Professora e tradu<strong>to</strong>ra<br />

Local: Torres Vedras<br />

Archie<br />

Nome: José Miguel Silva<br />

Idade: 23<br />

Ocupação: Estudante de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, ramo de Energia<br />

Local: Por<strong>to</strong><br />

Bubbles<br />

Idade: 21<br />

Ocupação: Estudante de Biologia Ambiental, variante Marinha<br />

Local: Alhandra, Vila Franca de Xira<br />

da_big_ticket_21<br />

Idade: 20<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Vila do Conde<br />

Firewalker<br />

Nome: Filipe Ferreira<br />

Idade: 19<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Lisboa<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 111 de 117


Pedro Farinha<br />

Idade: 38<br />

Ocupação: Engº Electrotécnico<br />

Local: Queluz - Sintra<br />

Bluiela<br />

Nome: Daniela Pereira<br />

Idade: 30<br />

Ocupação: Estudante – Pós-graduação em Ciências, ramo Biomateriais<br />

Local: Ovar<br />

Isabelucha<br />

Nome: Isabel Sanches<br />

Idade: 22<br />

Ocupação: Estudante – Engenharia Química<br />

Local: Por<strong>to</strong><br />

TRiiAd<br />

Nome: Gonçalo Mira<br />

Idade: 19<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Setúbal<br />

Caninos Brancos<br />

Nome: Jean Michel<br />

Idade: 21<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Rio de Janeiro - Brasil<br />

Fat Boy<br />

Nome: João Jorge<br />

Idade: 25<br />

Ocupação: Estudante - Direi<strong>to</strong><br />

Local: Lisboa<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 112 de 117


Cerridwen<br />

Nome: Carina Daniel<br />

Idade: 18<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Lisboa<br />

White Lady<br />

Nomes: Carla Barroso<br />

Idade: 20<br />

Ocupação: Estudante - História, variante de Arqueologia<br />

Local: Lisboa<br />

Screams<br />

Nomes: Sofia Costa<br />

Idade: 22<br />

Profissão: Estudante de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, Ramo de Energia<br />

Localização: Por<strong>to</strong><br />

E ainda:<br />

NightCrawl<br />

Maloveci<br />

j.t. Parreira<br />

Lyquid<br />

Sturm<br />

Selenia<br />

Henis<br />

Ancalagon<br />

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Equipa<br />

STAFF<br />

Ideia<br />

- Archie<br />

- Thana<strong>to</strong>s<br />

Coordenação Geral<br />

- Acrisalves<br />

- Archie<br />

- Cerridwen<br />

- Gokuu<br />

- Samwise<br />

- Thana<strong>to</strong>s<br />

Suporte Técnico e Programação<br />

- Gokuu<br />

Entrevistador<br />

- Thana<strong>to</strong>s<br />

--------<br />

Acrisalves<br />

Nome: Ana Cristina Alves<br />

Idade: 23<br />

Ocupação: Estagiária<br />

Local: Lisboa<br />

Archie<br />

Nome: José Miguel Silva<br />

Idade: 23<br />

Ocupação: Estudante de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, ramo de Energia<br />

Local: Por<strong>to</strong><br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 114 de 117


Cerridwen<br />

Nome: Carina Daniel<br />

Idade: 18<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Lisboa<br />

Gokuu<br />

Nome: Pedro Miguel Rodrigues<br />

Idade: 23<br />

Ocupação: Engenheiro Informático<br />

Local: Por<strong>to</strong><br />

Samwise<br />

Nome: Ricardo Turnes<br />

Idade: 29<br />

Ocupação: Técnico Informático<br />

Local: Lisboa<br />

Thana<strong>to</strong>s<br />

Nome: Ricardo Loureiro<br />

Idade: 36<br />

Ocupação: Funcionário Público<br />

Local: Alentejo<br />

ThUnDDeR<br />

Nome: Hugo Almeida<br />

Idade: 19<br />

Ocupação: Estudante<br />

Local: Linda-a-Velha<br />

OUTSIDERS<br />

Selecção de Tex<strong>to</strong>s<br />

- Isabelucha (poesia)<br />

- ThUnDDeR (prosa)<br />

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Arte<br />

- Ricardo Rodrigues – Ilustrações<br />

- TRiiAd – Capa da versão .pdf<br />

Agradecimen<strong>to</strong>s<br />

O BBDE gostaria de agradecer a <strong>to</strong>dos os utilizadores do fórum, aos au<strong>to</strong>res dos trabalhos<br />

aqui publicados e a <strong>to</strong>dos os que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para que este<br />

projec<strong>to</strong> fosse concretizado.<br />

Gostaríamos de agradecer em particular às seguintes pessoas:<br />

Ao Fat Boy, pelo apoio necessário ao nascimen<strong>to</strong> do BBDE;<br />

À Henis, que sugeriu a ideia para o título do E-<strong>zine</strong>;<br />

Ao TRiiAd , que desenvolveu a capa da versão “papel”;<br />

Ao ThUnDDeR e à Isabelucha, pela disponibilidade na leitura dos trabalhos;<br />

Ao Ricardo Rodrigues. Para além do profissionalismo e espectacularidade das ilustrações,<br />

este au<strong>to</strong>r demonstrou uma dedicação e uma atenção raras nos dias que correm. Já não há<br />

pessoas assim (julgávamos nós…).<br />

Mui<strong>to</strong> Obrigado a <strong>to</strong>dos! Sem a vossa colaboração, nada dis<strong>to</strong> teria sido possível.<br />

THE END<br />

Brevemente – E-<strong>zine</strong> BBDE – 2ª Edição<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 116 de 117


Índice<br />

O E-<strong>zine</strong>..............................................................................................................................2<br />

Entrevista a Daniela Pereira (Blueiela)..................................................................................4<br />

Mulher Dragão ..................................................................................................................10<br />

Amar.................................................................................................................................14<br />

Os Meus Pais ....................................................................................................................16<br />

Hoje Não Te Disse Adeus ...................................................................................................17<br />

Do Al<strong>to</strong>..............................................................................................................................18<br />

Miragem Musical ...............................................................................................................19<br />

Este Meu Velho Lápis ........................................................................................................20<br />

Poema de Merda................................................................................................................21<br />

Uma Última Lágrima .........................................................................................................22<br />

Requiem............................................................................................................................24<br />

Lezíria...............................................................................................................................25<br />

Consciência.......................................................................................................................28<br />

Vendo ...............................................................................................................................29<br />

Nocturno de Mim...............................................................................................................31<br />

Duas Conchas...................................................................................................................32<br />

Ri<strong>to</strong> de Passagem ..............................................................................................................34<br />

O Desenhador de Coisas que Ninguém Quer ......................................................................35<br />

Viagem..............................................................................................................................42<br />

Momen<strong>to</strong> de Inspiração Numa Aula de Física .....................................................................44<br />

Abandono..........................................................................................................................49<br />

A Última Noite...................................................................................................................51<br />

Con<strong>to</strong> Infantil – Dragão......................................................................................................54<br />

Acordar .............................................................................................................................57<br />

inúteis...............................................................................................................................63<br />

Jack Bravo e os Ninjas do Rectângulo Dourado..................................................................65<br />

Deirdre (excer<strong>to</strong>) ..............................................................................................................100<br />

Au<strong>to</strong>res e Au<strong>to</strong>ras............................................................................................................111<br />

Equipa ............................................................................................................................114<br />

Agradecimen<strong>to</strong>s...............................................................................................................116<br />

The Pickwick Society - vol. I Pág. 117 de 117

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