click to download - Bad Books don't E-zine! - Bad Books Don't Exist!
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Bem vindos ao primeiro E-<strong>zine</strong> do fórum <strong>Bad</strong> <strong>Books</strong> Don’t <strong>Exist</strong><br />
O E-<strong>zine</strong><br />
A publicação de um E-<strong>zine</strong> foi um passo lógico na caminhada do BBDE. Uma selecção de<br />
tex<strong>to</strong>s, que foram sendo colocados pelos utilizadores no fórum, compõem a espinha dorsal<br />
desta publicação. Dar a conhecer estes au<strong>to</strong>res a uma comunidade ainda maior é o nosso<br />
primeiro objectivo.<br />
Um fórum é apenas o reflexo dos seus participantes. Este E-<strong>zine</strong> é a imagem bonita que do<br />
BBDE vemos a um espelho.<br />
Em nome de <strong>to</strong>da a equipa coordenadora, esperamos que gostes deste nossa primeiro<br />
publicação, e que dês um pulinho ao nosso fórum para o conheceres ainda melhor!<br />
The Pickwick Society<br />
O nome do nosso E-<strong>zine</strong> surgiu de um ideia subjacente à obra de Charles Dickens, “The<br />
Pickwick Papers”. Nessa obra, um grupo de cavalheiros cria um clube, dedicado à filantropia<br />
e o estudo da natureza humana, que parte em viagem anotando <strong>to</strong>dos e quaisquer<br />
acontecimen<strong>to</strong>s que vão achando peculiares. Têm por hábi<strong>to</strong> ler as suas anotações aos<br />
restantes membros do clube, partilhando opiniões, experiências e, no fim de contas, o gos<strong>to</strong><br />
pela suas criações.<br />
A designação do E-<strong>zine</strong> é uma homenagem ao conhecido romancista e uma celebração ao<br />
gos<strong>to</strong> pela escrita, algo que é partilhado por <strong>to</strong>dos os au<strong>to</strong>res aqui publicados.<br />
A sugestão apareceu, curiosamente, do visionamen<strong>to</strong> de um filme, o “Little Women” (que por<br />
sua vez é baseado na obra literária homónima, de Louisa May Alcott), onde as protagonistas,<br />
um grupo de irmãs, ensaiavam, propositadamente, um comportamen<strong>to</strong> semelhante aos<br />
membros da “Pickwick Society”. A ideia veio da Henis, uma das au<strong>to</strong>ras que publicamos<br />
neste E-<strong>zine</strong>.<br />
A obra original está disponível online em: www.online-literature.com/dickens/, ou em:<br />
dickens.thefreelibrary.com/<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 2 de 117
O fórum BBDE – <strong>Bad</strong> <strong>Books</strong> Don’t <strong>Exist</strong> - www.bbde.org - bbde@bbde.org<br />
A ideia de criar um fórum dedicado somente a literatura surgiu, em finais de 2004, num<br />
outro fórum, o NGM – NewsGMovies (www.newsgmovies.com), dedicado à 7ª arte. O NGM<br />
tinha na altura (e ainda tem) uma secção denominada ‘Livros’ e num dos tópicos, mais<br />
precisamente numa crítica a um livro, o “The Blind Mand of Seville”, de Robert Wilson,<br />
alguém se lembrou de sugerir a criação de um fórum dedicado à literatura e ao gos<strong>to</strong> pela<br />
leitura. A ideia foi bem acolhida na comunidade e o projec<strong>to</strong> acabou por andar para a frente,<br />
contando com ajuda de alguns ilustres do NGM.<br />
Se o suporte técnico foi relativamente fácil e rápido de montar (contávamos com a experiência<br />
do outro fórum), faltava-nos decidir um nome apelativo para o projec<strong>to</strong> e criar uma estrutura<br />
lógica para acomodar as participações dos utilizadores.<br />
Aproveitámos uma das hipóteses de alojamen<strong>to</strong> de domínios, que era precisamente<br />
“dontexist.net”, e a ideia de lhe acrescentar “badbooks” foi unânime.<br />
Nos primeiros dias de actividade contámos com a ajuda de alguns utilizadores mais<br />
empenhados e definimos uma organização de categorias que ainda hoje subsiste.<br />
Após alguma promoção por essa net fora, os resultados começaram a surgir. Foi com alguma<br />
surpresa que registámos quase 10.000 posts num período de seis meses…<br />
O BBDE é um espaço onde se fala de livros e de literatura. É também um espaço onde os<br />
au<strong>to</strong>res podem publicar os seus trabalhos, quer sejam críticas literárias, opiniões, divulgação<br />
de novidades, poemas ou tex<strong>to</strong>s em prosa.<br />
Copyright<br />
Todos os trabalhos aqui publicados pertencem aos respectivos au<strong>to</strong>res. Qualquer reprodução<br />
<strong>to</strong>tal ou parcial é proibida sem o consentimen<strong>to</strong> dos mesmos.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 3 de 117
Entrevista a Daniela Pereira (Blueiela).<br />
Daniela Pereira publicou recentemente um livro de poemas, Cortar as Palavras num Só<br />
Golpe, que pode ser encomendado no endereço http://www.corposedi<strong>to</strong>ra.tk e através de um<br />
email.<br />
Mais trabalhos da au<strong>to</strong>ra podem ser visualizados no seu Blog “Devaneios Azuis”:<br />
http://devaneiosazuis.blogspot.com/<br />
BBDE: Antes de mais obrigado pela oportunidade concedida ao BBDE!, ao nos cederes esta<br />
entrevista.<br />
Para começar gostaria que nos contasses como e quando começou o fascínio pela poesia e<br />
pela palavra escrita. Houve algum acontecimen<strong>to</strong> ou livro marcante que despertasse esse<br />
gos<strong>to</strong> pelas palavras?<br />
Blue: Por estranho que pareça, a poesia só mui<strong>to</strong> recentemente começou a fazer parte do<br />
meu universo de leituras.<br />
Acho mesmo que posso afirmar que a poesia não passava pelos meus gos<strong>to</strong>s<br />
pessoais...tirando raras excepções, como é o caso da poesia de Florbela Espanca e Pablo<br />
Neruda.<br />
Mas as pessoas mudam e ainda bem que assim é, senão seria uma mono<strong>to</strong>nia. Não foi um<br />
livro que me desper<strong>to</strong>u para a poesia, mas sim um poeta não assumido. Foi a ler poemas de<br />
um amigo, que fazia das palavras turbilhões de sentimen<strong>to</strong>s, que despertei para a<br />
intensidade que uma folha de papel pode conter.<br />
Depois, seguiram-se várias noites a tentar encontrar um modo de exprimir os meus próprios<br />
sentimen<strong>to</strong>s, o que sentia naquele momen<strong>to</strong>.<br />
E nesse aspec<strong>to</strong>, a vida ajudou-me mui<strong>to</strong>, porque presenteou-me com muitas situações<br />
marcantes que foram a rampa de impulso para começar a escrever.<br />
BBDE: Na tua poesia, muitas vezes atribuis características alheias a diversas a partes do<br />
corpo humano. Reconheces ser esta uma marca pessoal do teu escrever ou é algo em que<br />
nem sequer reparas e que te surge naturalmente?<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 4 de 117
Blue: Essa é uma excelente pergunta ;)<br />
Julgo que inicialmente não surgiu como uma marca pessoal de escrita, mas com o tempo<br />
<strong>to</strong>rnou-se, sem dúvida, na minha assinatura.<br />
O fac<strong>to</strong> de eu recorrer constantemente, nos poemas que escrevo, a palavras referentes a<br />
objec<strong>to</strong>s cortantes ou a pedaços do corpo humano é, talvez, uma tentativa inconsciente de<br />
cortar com alguns momen<strong>to</strong>s do meu passado e faço-o por haver uma vontade mui<strong>to</strong> forte de<br />
mudar aspec<strong>to</strong>s na minha vida pessoal e na minha maneira de ser.<br />
Julgo também que o uso dessa marca pessoal <strong>to</strong>rna por vezes o sentido das palavras mais<br />
intenso, aguça os sentidos de quem lê o poema e é um modo de transferir os sentimen<strong>to</strong>s,<br />
quer seja a dor ou mesmo a paixão, para o papel...<br />
Porque se as emoções são fortes e intensas, as palavras que as vão descrever têm que ter<br />
obriga<strong>to</strong>riamente o mesmo grau de intensidade, senão não se está a ser verdadeiro.<br />
BBDE: Se alguém te pedisse conselhos para se iniciar na escrita e, mais concretamente, na<br />
poesia quais os que darias? Consideras que para escrever poesia não basta dominar a língua<br />
ou sentir uma <strong>to</strong>rrente de emoções indefiníveis? Ou por outro lado pensas que <strong>to</strong>da e<br />
qualquer pessoa pode ser um poeta?<br />
Blue: Se alguém me pedisse conselhos para se iniciar na escrita o que é que eu lhe diria?<br />
Na minha opinião ninguém tem a capacidade ou o direi<strong>to</strong> de dar conselhos ou de influenciar<br />
alguém na forma como essa pessoa se deve expressar. Até porque cada pessoa é diferente da<br />
outra que está sentada ao seu lado...<br />
Para mim a poesia é um modo de expressão como o é qualquer outro tipo de arte, como a<br />
pintura ou a dança são formas de sonhar e de fugir um pouco à realidade monó<strong>to</strong>na que<br />
muitas vezes nos cerca.<br />
O mais que lhe poderia dizer é que se escrever lhe dá prazer então que escreva sempre e que<br />
não pense nas regras literárias ou nas frases bem alinhadas e com bom aspec<strong>to</strong>, porque o<br />
que mais conta num poema (e is<strong>to</strong> é na minha sincera opinião) são as palavras e a liberdade<br />
que elas nos oferecem.<br />
Para além de que essa preocupação do "escrever bem" vai surgindo com o tempo; é um<br />
processo natural e é só preciso deixar que ele evolua ... <strong>to</strong>dos gostamos de melhorar e de nos<br />
fazer ouvir melhor.<br />
Por isso acho que para escrever poesia é apenas preciso ter uma alma, esteja ela ferida ou<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 5 de 117
simplesmente <strong>to</strong>talmente apaixonada.<br />
Mas é claro que também se pode escrever de um modo apaixonado sobre uma pedra; o que<br />
interessa é a forma como te entregas ao momen<strong>to</strong> que passas para o papel. É essa entrega<br />
que consegue fazer de qualquer pessoa um poeta...<br />
BBDE: Recentemente foi lançado Cortar as Palavras Num Só Golpe, pela Corpos Edi<strong>to</strong>ra.<br />
Qual foi o sentimen<strong>to</strong> que sentiste quando esse projec<strong>to</strong> se concretizou? Consideras a<br />
publicação uma meta em si ou apenas uma passagem? Pretendes continuar a publicar? E o<br />
blogue "Devaneios"? É uma outra faceta do desejo de ser lida ou surgiu como uma<br />
experiência?<br />
Blue: É complicado falar do que senti quando tive pela primeira vez o livro nas minhas mãos.<br />
Aconteceu tudo tão depressa que quase nem tive tempo para me aperceber daquilo que tinha<br />
alcançado.<br />
Acho que ainda hoje me belisco <strong>to</strong>das as manhãs para acreditar que o livro existe mesmo.<br />
A publicação do livro é um começo...ainda falta mui<strong>to</strong> caminho a percorrer. Primeiro é um<br />
choque teres o teu nome escri<strong>to</strong> na capa de um livro, depois surge a preocupação de teres<br />
conseguido, naqueles poucos poemas editados, passar as melhores palavras no meio de<br />
tantas que escreveste, e agora só pensas em fazer chegar essas palavras ao maior número de<br />
pessoas para te sentires realizado.<br />
Por isso acho que o lançamen<strong>to</strong> do livro foi um degrau superado, mas existem mui<strong>to</strong>s mais<br />
para subir, agora é esperar que a vida te deixe continuar a acreditar que podes ter asas para<br />
voar mais longe.<br />
Vontade não me falta.<br />
Se pretendo continuar a publicar? Se este livro for bem aceite e demonstrar que realmente<br />
tenho algum valor quando escrevo, acho que sim, que vou continuar a tentar espalhar mais<br />
palavras por aí.<br />
Agora o Devaneios é o meu cantinho... é o meu mundo de sonho.<br />
Comecei por brincadeira e por curiosidade de saber como é que funcionava o concei<strong>to</strong> de um<br />
blogue e até onde é que ele me deixaria ir.<br />
Fui escolhendo os poemas que mais gostava e mais bem aceites nos fóruns onde escrevo e<br />
procurei ilustrar cada um com uma imagem que fosse a sua segunda pele.<br />
A ideia foi crescendo, os poemas aumentando de número, os comentários fortalecendo cada<br />
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vez mais a vontade de continuar e foi mesmo com o blogue que surgiu a minha estrela da<br />
sorte.<br />
Foi o endereço do blogue que enviei a alguma edi<strong>to</strong>ras que me permitiu o contac<strong>to</strong> com a<br />
Corpos Edi<strong>to</strong>ra e a dar a conhecer o meu trabalho.<br />
O Devaneios Azuis foi a rampa de lançamen<strong>to</strong> deste livro.<br />
BBDE: Ainda sobre os poemas e o livro. Consideras cada poema teu como um filho que dás a<br />
conhecer ao mundo ou nem por isso? Nota-se que para ti os comentários te servem de<br />
motivação e a falta deles parece de certa forma que sentes não ter atingido o «público». Is<strong>to</strong><br />
sempre foi assim? Ou tens poemas que guardas só para ti?<br />
Blue: Se considero que cada poema é um filho meu?<br />
Se calhar podes dizer isso, já que cada um tem um pedaço de mim...uma lágrima dos meus<br />
olhos ou um sorriso da minha boca. Eles falam de sentimen<strong>to</strong>s e falam dos meus<br />
sentimen<strong>to</strong>s porque acho que <strong>to</strong>dos ou quase <strong>to</strong>dos os poemas estão ligados a mim e à minha<br />
maneira de ver o mundo.<br />
E são esses sentimen<strong>to</strong>s que partilho com quem os lê.<br />
Bem, os comentários servem e sempre serviram como um termómetro que mede o calor das<br />
minhas palavras.<br />
Se percebes que um determinado poema <strong>to</strong>cou alguém, então é porque o que sentiste no<br />
momen<strong>to</strong> que escreveste foi realmente importante, pelo menos para esse alguém que gos<strong>to</strong>u<br />
de o sentir.<br />
A falta de um comentário leva-te a pensar que ainda não conseguiste encontrar as melhores<br />
palavras e isso até é um incentivo para continuares a procurar a perfeição.<br />
Mas confesso que, no início, a falta de comentários podia ser um pouco desmotivadora<br />
apesar de tudo, porque te deixa um pouco à deriva.<br />
Não tenho mui<strong>to</strong>s poemas que guardo só para mim porque sin<strong>to</strong> uma necessidade enorme de<br />
os partilhar com as pessoas. Talvez porque essa partilha me acalme e me alivie.<br />
Mas apesar disso tenho alguns que só revelei à pessoa para a qual foram escri<strong>to</strong>s...à minha<br />
fonte inspiradora.<br />
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BBDE: A ideia com que fiquei ao longo desta entrevista e dos teus comentários era de que a<br />
maior parte dos teus poemas nascia de situações ou momen<strong>to</strong>s particularmente marcantes<br />
para ti. Agora leio que tens uma fonte inspiradora. Essa fonte é uma constante inspiração,<br />
ou, por outro lado, também a encontras em poesias que lês, músicas que ouves, cenários que<br />
contemplas? E no seguimen<strong>to</strong> da inspiração, tens algum mé<strong>to</strong>do específico de trabalho como<br />
por exemplo criar um ambiente propício à escrita? E escreves <strong>to</strong>dos os dias?<br />
Blue: Esta fonte de inspiração foi a que imperou nos meus poemas, principalmente nos que<br />
surgem no livro Cortar as palavras num só golpe.<br />
Mas é claro que também me inspiro noutras fontes. Acho que tudo depende do momen<strong>to</strong> que<br />
estiver a atravessar. Mas cer<strong>to</strong>, cer<strong>to</strong> é que necessi<strong>to</strong> sempre de algo que prenda os meus<br />
pensamen<strong>to</strong>s para ter inspiração.<br />
A música está quase sempre presente nos momen<strong>to</strong>s em que escrevo, principalmente se essa<br />
escrita é feita com o auxílio do teclado.<br />
Porque muitas vezes surge aquela música que te recorda um momen<strong>to</strong>, que te lembra um<br />
desejo ou mesmo algo que gostavas de esquecer e não resistes à tentação de teclar mais um<br />
poema.<br />
Mas não tenho um mé<strong>to</strong>do de trabalho, ou seja, não preparo o ambiente para iniciar um<br />
poema, porque escrevo mui<strong>to</strong> à base do impulso.<br />
Bate no pei<strong>to</strong> um sentimen<strong>to</strong> mais forte e deixo as palavras fluírem livremente.<br />
Tan<strong>to</strong> posso escrever com os olhos fixos num écran, como deitada na cama, ou mesmo a<br />
contemplar uma onda do mar, é um processo <strong>to</strong>talmente aleatório e que foge por comple<strong>to</strong> ao<br />
meu controlo.<br />
Talvez por isso, tenha fases em que consigo escrever dois e três poemas por dia como noutras<br />
nem sequer me lembro de levar a folha de papel comigo.<br />
BBDE: E para terminarmos, pensas que a leitura de outros poetas é importante para quem<br />
queira escrever? Além de Florbela e Neruda, que outros poetas lês e gostas? No<strong>to</strong> que, no teu<br />
blogue, juntas imagens (reproduções de quadros, fo<strong>to</strong>grafias) às tuas palavras, como uma<br />
"segunda pele" segundo um teu comentário; consideras que a poesia necessita de imagens ou<br />
que ambas se podem complementar?<br />
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Blue: Não sei se é tão importante assim, para quem quer escrever, ler uma cascata de poetas.<br />
Porque, como já disse anteriormente, cada pessoa tem a sua forma de escrever e não existem<br />
duas linhas iguais no universo da poesia.<br />
Ler é bom para aprender e para conhecer melhor o ser humano, as suas manhas, os seus<br />
medos, os seus encan<strong>to</strong>s e mesmo até a sua crueldade, que também existe.<br />
Quando lês viajas por outros mundos que não são teus, mas com os quais muitas vezes te<br />
identificas, ou porque é aquele mundo que ansiavas ter, ou mesmo por ser aquele que mais<br />
repudias.<br />
Quan<strong>to</strong> aos poetas que leio e aprecio, confesso que por agora não são mui<strong>to</strong>s, até porque só<br />
mui<strong>to</strong> recentemente despertei para o encan<strong>to</strong> das palavras em verso.<br />
Mas também aprecio os velhinhos Bocage e Fernando Pessoa pela ousadia das suas palavras<br />
e Herber<strong>to</strong> Helder pelo seu surrealismo cortante.<br />
No entan<strong>to</strong>, confesso que na minha prateleira dos livros a poesia está em minoria, por<br />
incrível que pareça...<br />
No diz respei<strong>to</strong> à minha opção de ilustrar os poemas no blogue com imagens, acho que é um<br />
modo de <strong>to</strong>rnar ainda mais envolvente as palavras que nele estão contidas.<br />
A arte da fo<strong>to</strong>grafia ou da imagem tem o condão de adicionar uma magia especial às palavras<br />
porque lhes dá um ros<strong>to</strong>.,<br />
BBDE: Resta-me agradecer a tua paciência para connosco e desejar-te os maiores sucessos.<br />
Blue: Eu é que queria agradecer esta oportunidade que me foi dada pelo fórum de me dar a<br />
conhecer um pouco melhor aos meus lei<strong>to</strong>res...se é que posso falar assim, porque prefiro<br />
mencioná-los como escri<strong>to</strong>res ou simplesmente como poetas da noite, porque <strong>to</strong>dos<br />
partilhamos o mesmo prazer da escrita.<br />
Um beijo mui<strong>to</strong> especial para <strong>to</strong>dos que fazem parte deste fórum Foi um prazer imenso<br />
participar em mais um projec<strong>to</strong> do <strong>Bad</strong> <strong>Books</strong> <strong>Don't</strong> <strong>Exist</strong> e, desde já, dou os parabéns a<br />
<strong>to</strong>dos os que fazem parte e iniciaram este projec<strong>to</strong>.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 9 de 117
Mulher Dragão<br />
1º Prémio no passatempo “Dragões”<br />
1<br />
Eu devia ter desconfiado mal a vi. Mas deixei-me hipnotizar pela suavidade do seu olhar, o<br />
seu corpo perfei<strong>to</strong> e o sorriso inconcebível com que me brindou.<br />
Confesso que não é normal, agora que a idade me fez nascer uns papos nos olhos e uma<br />
proeminência no abdómen, raparigas daquele calibre olharem para mim daquela maneira,<br />
desafiadora mas meiga. Mas iludi-me com o meu glamour e pensei que o fa<strong>to</strong> Armani pre<strong>to</strong><br />
sobre a t-shirt branca podia ajudar. A minha mulher, pelo menos, sempre gabara aquela<br />
combinação de distinção e informalidade.<br />
Para além do mais, a luz era difusa, o álcool pairava e mal me apercebi que sim, que não me<br />
enganara, que aquele olhar era mesmo para mim, não gastei mais que o tempo impos<strong>to</strong> pela<br />
inércia etilizada do meu corpo para me pôr em andamen<strong>to</strong> ao seu encontro.<br />
Num jogo do <strong>to</strong>ca e foge, dançou languidamente à minha frente, sem nunca me deixar de<br />
fitar nem nunca me permitir aproximar à distância do meu braço. Mais que uma vez esbocei<br />
um movimen<strong>to</strong> na sua direcção e vi a sua língua saltitar deliciosa por entre os dentes<br />
enquan<strong>to</strong> o corpo recobrava ao ritmo da música.<br />
Senti olhares gulosos de outros homens sobre ela e uns rápidos olhares de soslaio sobre<br />
mim, tentando perceber o porquê daquele milagre. Eu já nada mais quis saber e percebi sem<br />
querer saber o porquê, que antes do fim da noite aquela mulher me iria aquecer o corpo<br />
precocemente envelhecido pela mistura explosiva de stress, álcool e noites sem dormir.<br />
Nunca pensei, no entan<strong>to</strong>, até que pon<strong>to</strong> a palavra aquecer estava bem aplicada.<br />
Num repente deixou-se cair contra o balcão, num ges<strong>to</strong> felino e pediu uma tequilla. Com o<br />
copo a rodopiar na mão, virou-se para mim e atirou-me um beijo que me apanhou em cheio<br />
no ego.<br />
Já não me lembro quem <strong>to</strong>mou a iniciativa, ou quem a converteu em palavras, mas a verdade<br />
é que após vinte minu<strong>to</strong>s de carro, estacionámos jun<strong>to</strong> a um prédio de apartamen<strong>to</strong>s com<br />
vista para o mar. Senti-me desajeitado como um adolescente, quando a minha mão procurou<br />
a dela no interior do elevador e ela se esquivou. Apenas dentro de casa, me deixou <strong>to</strong>car-lhe,<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 10 de 117
o seu corpo esguio, uma pele de sonho. Já deitados, na cama, enquan<strong>to</strong> me levantava a t-<br />
shirt, vi um brilho estranho no seu olhar, um clarão vermelho.<br />
Debruçou-se sobre mim e senti a sua língua a entrar-me na boca e de repente uma <strong>to</strong>rrente<br />
de fogo e enxofre a sufocar-me enquan<strong>to</strong> os meus olhos atóni<strong>to</strong>s viam asas com escamas a<br />
nascerem-lhe das costas.<br />
Silêncio e escuridão.<br />
2<br />
Acordei numa cama estranha encharcado em suores frios, tremia dos pés à cabeça enquan<strong>to</strong><br />
o meu organismo se habituava a este meu novo estado. Sim, só me explicaram mais tarde,<br />
mas bas<strong>to</strong>u aquele beijo de fogo para eu me <strong>to</strong>rnar um homem-dragão.<br />
E na verdade, depois de me passarem aqueles tremores e de me ter levantado, encontrado a<br />
casa de banho e me metido debaixo de um duche frio, ao vê-la aparecer nua e a enroscar-se,<br />
debaixo do jac<strong>to</strong> do chuveiro, em mim, pensei que ser dragão não era assim tão mau. Os<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 11 de 117
meus sentidos estavam aguçados pelo que o <strong>to</strong>que da pele dela, o contac<strong>to</strong> dos seus dedos ou<br />
as carícias maliciosas com que me brindou, deram um novo sentido à palavra sexo.<br />
O pior estava para vir.<br />
Sentados na cama, eu já vestido e ela embrulhada no lençol, acabou por me contar o terrível<br />
segredo dos homens-dragão, é que apenas mantém a forma humana se converterem em novo<br />
dragão, um humano por mês.<br />
Não sem antes me despedir convenientemente, saí de casa dela um pouco a<strong>to</strong>rdoado.<br />
3<br />
E agora aqui es<strong>to</strong>u. Os dias passaram e converteram-se numa semana, depois noutra e<br />
noutra ainda e hoje é o meu último dia.<br />
Tenho de beijar uma mulher que me deseje intensamente, que me deixe despejar o fogo que<br />
carrego nas entranhas dentro dela ou as escamas cobrirão a minha pele.<br />
Para a Samira, assim se chamava a mulher-dragão, isso era fácil. Qualquer papalvo como eu<br />
ficaria de beiço caído pelo seu abanar de ancas.<br />
Mas eu…<br />
Sentado frente ao espelho, ainda de cuecas, olho para o guarda-fa<strong>to</strong> escancarado pensando<br />
no que hei de vestir. Pareço uma mulher. A minha mulher. A minha ex-mulher. A minha ex-<br />
mulher! É isso!<br />
Levan<strong>to</strong>-me num ápice e vis<strong>to</strong> cuidadosamente uma das últimas camisas que ela me ofereceu<br />
antes de sair de casa. Sei como é fácil uma recaída agora que o rapaz por quem se apaixonou<br />
se pôs na alheta levando os bolsos cheios e os testículos vazios.<br />
Desço as escadas e me<strong>to</strong>-me no carro. Guio velozmente até ao apartamen<strong>to</strong> onde mora e rezo<br />
a um deus em quem não acredi<strong>to</strong>, para que ela esteja em casa. De lábios entreaber<strong>to</strong>s de<br />
preferência.<br />
Deus ouve-me. É ela quem vem abrir a porta, vem acompanhada de umas olheiras e dos<br />
chinelos de quar<strong>to</strong>. Assim não dá – penso.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 12 de 117
É necessário que exista desejo entre os dois para que a língua de dragão funcione.<br />
- Estava com saudades tuas – acabo por lhe dizer.<br />
O sorriso abre-se, manda-me entrar e pede um momen<strong>to</strong>.<br />
Sen<strong>to</strong>-me num sofá de cabedal pre<strong>to</strong> e deixo o meu olhar varrer a sala. Ao chegar à porta,<br />
vejo-a na ombreira em contraluz. Com uma velocidade impressionante mudara de<br />
indumentária e oferecia-me um body pre<strong>to</strong> e um cin<strong>to</strong> de ligas.<br />
Desliga o interrup<strong>to</strong>r e apaga, assim, a celulite e as rugas na cara. A minha memória dá-me<br />
excer<strong>to</strong>s de momen<strong>to</strong>s bem passados, da sua sensualidade exorbitante e é com verdadeira<br />
volúpia que me entrego a ela.<br />
Rolamos os dois sobre o sofá pre<strong>to</strong> até as nossas bocas se <strong>to</strong>carem. Penetro-a com a língua o<br />
mais que posso e sin<strong>to</strong> que ela faz o mesmo. A falta de ar e a sensação de sufoco é inevitável<br />
e separamo-nos a olhar aturdidos um para o outro.<br />
O olhar dela em mim mostra-me que está a ver o mesmo que eu es<strong>to</strong>u a ver nela. Os olhos<br />
vermelhos, a pele a escamar-se, as garras a crescerem.<br />
Também para ela, hoje era a última oportunidade e ambos, velhos cansados e gas<strong>to</strong>s, apenas<br />
tínhamos conseguido fazer um simulacro de sedução um ao outro.<br />
4<br />
Vôo solitário para além dos confins do mundo que até hoje me era conhecido. Não sei para<br />
onde vou tal como não sei bem quem sou. Mas isso agora também já não interessa.<br />
-<br />
Pedro Farinha<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 13 de 117
Amar<br />
Amar é sentir alguém<br />
Amar-te é sentir-te dentro de mim<br />
Nascer e renascer no além<br />
É deleitar-me e beijar-te até ao fim…<br />
Amar é querer!… Te querer<br />
Como ninguém quis!<br />
Pois admi<strong>to</strong>: “Sou um infeliz!”<br />
Se estiver longe sem te ter<br />
Amar é dar!… É dar-te algo.<br />
Fazendo de mim gente nobre<br />
Talvez rei! Príncipe ou fidalgo<br />
Mas contigo sin<strong>to</strong>-me feliz sendo pobre<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 14 de 117
Amar é…<br />
Quem saberá?<br />
Não! Não sei o que é amar…<br />
…mas sei amar!<br />
Amar-te…<br />
-<br />
Da_Big_Ticket_21<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 15 de 117
Os Meus Pais<br />
Os meus pais nunca me deram nada para mostrar que me amavam e que ainda me amam.<br />
Nunca precisaram de me comprar presentes, de me satisfazer as vontades. Vejo que me<br />
amam em cada memória que recordo no silêncio da noite, quando deprimida penso nos que<br />
me rodeiam para me levantar de novo. Nunca precisaram de me dar aquela boneca que eu<br />
mais queria, aquele brinquedo com que tan<strong>to</strong> sonhei. Bas<strong>to</strong>u estarem sempre ao meu lado,<br />
quando precisei deles e sobretudo nas alturas em que julgava não precisar. Nada neste<br />
mundo poderia comprar aquele momen<strong>to</strong> em que aprendia a andar de bicicleta, com o meu<br />
pai atrás de mim segurando-a para eu manter o equilíbrio. Por nada seria eu capaz de trocar<br />
aqueles sorrisos, que sempre me ofereceram quando se sentiam orgulhosos de mim, mesmo<br />
que tivesse fei<strong>to</strong> uma coisa mínima. Só eles para se sentirem assim… alegres por me verem a<br />
nadar, correr, brincar… Viram-me dar os primeiros passos, tropeçar e cair, estiveram sempre<br />
lá estendendo a mão para me ajudarem a levantar mesmo que fosse para cair de novo. Ainda<br />
hoje o fazem e por isso es<strong>to</strong>u-lhes grata e sei que me amam. Ao ver o que sou hoje sei que me<br />
amam, sempre me amaram e com certeza me amarão. Se não me amassem, não me teriam<br />
educado com tan<strong>to</strong> carinho, zelando pelo meu futuro, ensinando-me que é a cair que se<br />
aprende a andar.<br />
-<br />
White Lady<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 16 de 117
Hoje Não Te Disse Adeus<br />
Hoje olhaste-me como se<br />
quisesses falar comigo.<br />
Hoje olhei-te como se<br />
quisesse falar contigo.<br />
As nossas bocas ficaram<br />
Caladas.<br />
Hoje olhaste-me e baixaste<br />
o olhar,<br />
Hoje olhei-te e baixei<br />
o olhar.<br />
Hoje acordamos de lados opos<strong>to</strong>s<br />
De um muro fei<strong>to</strong> de nada,<br />
Hoje bem tentamos<br />
Mas não passou nenhuma palavra.<br />
Hoje não te disse<br />
“adeus, até amanha”,<br />
Hoje não te disse nada.<br />
Hoje não te disse adeus.<br />
-<br />
Firewalker<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 17 de 117
Do Al<strong>to</strong><br />
Vindos do al<strong>to</strong> eram legião, mas uma legião branca, pura, imaculada.<br />
Algo os puxava.<br />
Algo os empurrava.<br />
Ao <strong>to</strong>carem nos limites superiores da atmosfera iluminaram-se de vermelho fulvo, depois<br />
amarelo e por fim branco. Consumiram-se na própria cor que os representava.<br />
Nas ruas da cidade milhões de pequenas penas voltejavam, envoltas na incomensurável<br />
leveza da sua existência. Os rapazes brincavam, saltando, pulando, tentando agarrar o maior<br />
número possível. Era para eles um jogo. As meninas faziam vestidinhos para as bonecas e<br />
lei<strong>to</strong>s macios onde as deitar. Os adul<strong>to</strong>s olhavam e abanavam a cabeça. E seguiam caminho.<br />
Porque ninguém percebera que a arder tinham caído <strong>to</strong>dos os anjos.<br />
-<br />
Thana<strong>to</strong>s<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 18 de 117
Miragem Musical<br />
Sin<strong>to</strong> algo diferente<br />
Despertando meus sentidos<br />
Que afecta minha mente<br />
E estimula os ouvidos.<br />
Da mais simples melodia<br />
À sublime sinfonia<br />
Minha vida alumia<br />
Pela noite, ou de dia.<br />
Entre graves e agudos<br />
As palavras bem sentidas<br />
Ou singelos gri<strong>to</strong>s mudos<br />
Em músicas das nossas vidas.<br />
Será sempre universal<br />
Não importa a linguagem<br />
A mensagem musical<br />
Que parece uma miragem!<br />
-<br />
Isabelucha<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 19 de 117
Este Meu Velho Lápis<br />
Escreverei… escreverei até que os dedos estejam tão martirizados que já não possam mais<br />
mover-se de modo a formar palavras. Já nada mais me resta do que este lápis gas<strong>to</strong> e ruído,<br />
fru<strong>to</strong> desta eloquência insana que me corrói. Se ao menos eu pudesse arranjar uma caneta,<br />
daquelas que contêm aquela tinta mágica, insólita e colorida, que transmite confor<strong>to</strong>. Mas<br />
que delírios me levam a escrever tais coisas? Tal caneta não existe, não passa de uma<br />
manobra de diversão da minha razão, mais uma maneira de me humilhar e de mostrar que<br />
até o meu próprio corpo se delicia com <strong>to</strong>da esta dor que me consome.<br />
Não sei que mecanismos me levam a ter estas atitudes grotescas e ridículas. Nem sequer sei<br />
quem sou, nem qual o porquê da minha existência. Pergun<strong>to</strong>-me se a minha vida terá algum<br />
significado ou objectivo. Ou se algum dia estas palavras terão algum significado para quem<br />
as ler, já que se tratam apenas de pequenos desabafos sem sentido. Palavras ocas que<br />
passam do meu coração para o papel através deste velho lápis. Palavras inúteis e frígidas que<br />
constituem as confissões deste coração jovem mas decrépi<strong>to</strong>.<br />
E agora pergun<strong>to</strong> a mim mesma. O que acontecerá se um dia este bocado de madeira com<br />
que escrevo deixar de poder escrever? E se nessa altura estiver tão só, que nem um lápis<br />
desgastado tenha para saciar esta minha fixação pela escrita? Não quero sequer pensar no<br />
que poderá acontecer, mas as imagens invadem desvairadamente a minha mente, sem<br />
piedade, forçando-me a ver aquilo que provavelmente será o dia do derradeiro fim desta<br />
insanidade e de <strong>to</strong>do este escreve, escreve…<br />
-<br />
Cerridwen<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 20 de 117
Poema de Merda<br />
Falta-me a veia poética<br />
para conseguir transmitir em versos<br />
o que o meu cérebro pensa em prosas.<br />
Falta-me a capacidade de mudar de linha<br />
(como mudei agora)<br />
para fazer daquilo que digo um poema.<br />
Falta-me a vontade de estilizar o que escrevo<br />
só porque é supos<strong>to</strong><br />
um poema ter figuras de estilo.<br />
É que eu não funciono assim.<br />
Soubesse eu fazer isso<br />
(quisesse eu fazer isso)<br />
e tinham aqui um belo poema.<br />
Como não quero,<br />
fiquem só com esta merda!<br />
-<br />
TRiiAd<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 21 de 117
Uma Última Lágrima<br />
Enfiei o pé descalço na areia, como ainda é cedo a areia está fria… sabe tão bem! O meu pé<br />
quente é engolido numa sensualidade irreal. Já es<strong>to</strong>u outra vez a imaginar coisas, me<strong>to</strong> o<br />
outro pé na areia, e vou caminhando, sei o que vim aqui fazer, deixei tudo preparado para<br />
isso… paguei as contas, e deixei em cima da mesa do telefone os multibancos com os<br />
códigos, e os cheques em branco, assinados com a data de ontem. Escrevi os e-mails que<br />
tinha que escrever, mas tive o cuidado de programar o seu envio para o meio dia… não quero<br />
que nada falhe. Entreguei as chaves de casa à vizinha, dizendo que as irás buscar mais<br />
tarde…<br />
Deixei tudo limpo e arrumado, organizei as minhas coisas <strong>to</strong>das, livrei-me do lixo que andava<br />
a amon<strong>to</strong>ar há anos. Engomei e arrumei <strong>to</strong>da a minha roupa, fui buscar a que ainda estava<br />
na lavandaria, coloquei a tua camisola num saquinho de papel, e deixei-a no chão, jun<strong>to</strong> à<br />
mesa do telefone. Arrumei os livros <strong>to</strong>dos na estante, por temas e au<strong>to</strong>res. Cheguei mesmo a<br />
arquivar <strong>to</strong>dos os meus papéis. As cartas estão em cima da mesa da sala, <strong>to</strong>das elas estão<br />
devidamente endereçadas, e têm o selo necessário, sei que as irás pôr ao correio amanhã.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 22 de 117
Vesti as minhas calças brancas, com aquela camisola azul-turquesa que sempre adoraste,<br />
não me calcei sequer, deixei as chaves do carro… não sei onde as deixei, mas devem estar<br />
dentro da minha mala, jun<strong>to</strong> com os documen<strong>to</strong>s e a declaração de venda assinada.<br />
Desci a rua descalça, sentindo o alcatrão a magoar-me a sola dos pés. Agora que es<strong>to</strong>u<br />
parada em frente ao mar, sin<strong>to</strong> os meus lábios começarem a aquecer, porque mesmo não<br />
estando mui<strong>to</strong> frio, eles gelaram, como sempre acontece quando fico mui<strong>to</strong> nervosa… desta<br />
vez não estás cá para os aquecer com um beijo, nem para me assegurares de que tudo ficará<br />
bem.<br />
Sen<strong>to</strong>-me um pouco na areia, brinco com ela na mão… ainda tenho tempo, o dia só agora<br />
nasceu, e só daqui a umas horas é que chegam os primeiros madrugadores com os seus cães<br />
enérgicos. Oiço o barulho das ondas, sin<strong>to</strong> o seu cheiro inebriante, vejo o branco da espuma,<br />
branco como as minhas calças, como a minha alma… não, hoje não irei mergulhar nelas.<br />
Olho o frasquinho que trouxe comigo… tiro-lhe a tampa e sin<strong>to</strong>-lhe o cheiro… podia cheirar a<br />
pêssego, mas não! Tem um cheiro acre, desencorajador… fecho-o novamente. Olho à volta,<br />
sabes que não temos recordações daqui? Que ridículo… por morarmos aqui tão per<strong>to</strong> sempre<br />
procurámos ir a sítios diferentes; agora que precisava que algo nesta praia me prendesse à<br />
realidade, descubro que não há… olho novamente para o frasquinho.<br />
Trouxe o meu bilhete de identidade, e um cartão com o teu número, quero que sejas o<br />
primeiro a saber, e quero que estejas com ela quando souberes, quero que chores e que<br />
partas os vidros das portas, as jarras, o telefone contra a parede, sim, esmurra a parede até<br />
ficares com os dedos cober<strong>to</strong>s do teu sangue doce… chora, chora a mesma dor que eu chorei<br />
por ti.<br />
Já quase imagino a cena… o encontrares a minha casa impecável, sem os meus habituais<br />
montes de livros e papéis espalhados, vais chorar, mais ainda do que eu chorei, porque eu<br />
tive a esperança de que tu voltasses, e eu, nem isso te deixo.<br />
Olho para o frasco, já quente na minha mão, mordo o lábio inferior… aqueceu uma última<br />
vez… retiro a tampa e sorrio, bebo de um trago, procurando não sentir o sabor, deixo-me cair<br />
de costas, e uma última lágrima escorre-me pelas faces ainda rosadas. Chora tu agora, que a<br />
minha fonte de lágrimas acabou de secar.<br />
-<br />
Drops<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 23 de 117
Requiem<br />
Hoje, há uma certa tristeza no ar<br />
O céu encheu-se de nuvens caladas.<br />
Gente amon<strong>to</strong>a-se pelas estradas,<br />
Fugindo da desgraça por chegar.<br />
Hoje, há um ven<strong>to</strong> gelado, soprando<br />
Aziago por estas casas vazias.<br />
Na calma, soam estranhas melodias:<br />
Lenta, a multidão avança, cantando.<br />
É o fim da tarde, a hora das aves<br />
Que recolhem lestas ao seu abrigo.<br />
Mas já não há aves no céu, só naves.<br />
É o fim da tarde, de um tempo antigo.<br />
À hora marcada, partem as naves,<br />
Res<strong>to</strong>s de um mundo levando consigo<br />
-<br />
anavicenteferreira<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 24 de 117
Lezíria<br />
O rio ficou para trás. A lezíria estende-se em <strong>to</strong>das as direcções, um bordado de castanhos,<br />
amarelos e verdes. Azinheiras e enormes eucalip<strong>to</strong>s ladeiam a estrada, uma fita negra, sem<br />
curvas, que corta os campos. O céu é de um cor-de-pérola uniforme, não se distingue a<br />
forma das nuvens, não se vislumbra o sol, não há sinal de chuva.<br />
O carro avança.<br />
Marta recosta-se no assen<strong>to</strong>, olhos fixos na paisagem que vão ultrapassando. Num dos<br />
campos, um trac<strong>to</strong>r abre a terra e é seguido por um bando de garças brancas que<br />
perscrutam os fundos sulcos na terra arenosa. No campo seguinte, três cegonhas fitam a<br />
água rasa de um canal, enquan<strong>to</strong> uma quarta levanta voo em direcção ao ninho massivo<br />
instalado sobre a velha caixa de água de uma quinta em ruínas. Marta desvia os olhos a<br />
tempo de ver qualquer coisa pequena apressar-se através do asfal<strong>to</strong>: uma lagartixa, talvez.<br />
Tan<strong>to</strong>s sinais de vida e o mundo continua a parecer-lhe mor<strong>to</strong>, dormente, pelo menos. Como<br />
se ainda não tivesse acordado de uma longa hibernação. Apesar do calor abafado que se faz<br />
sentir.<br />
Faz descer mais a janela. O ven<strong>to</strong> quente despenteia-lhe o cabelo. Olha-se no espelho da pala<br />
que baixou para se proteger do brilho branco do sol invisível. Há manchas escuras sob os<br />
seus olhos, linhas na testa e em redor da boca apertada.<br />
Sérgio ainda não se calou. Conduz com os olhos na estrada e ela nem precisa olhar para o<br />
lado para saber que as mãos dele estão tão apertadas em redor do volante que se pode traçar<br />
cada osso. Sempre adorou as mãos dele, são grandes e longas, com dedos elegantes e pele<br />
macia, dourada. Ele continua a falar, num <strong>to</strong>m mecânico, que ele quer fazer parecer alegre,<br />
sobre coisas que ela não ouve.<br />
Dói-lhe a cabeça. A vontade que tem é de tirar uma das latas de 7Up que estão no<br />
compartimen<strong>to</strong> refrigerado entre os bancos e encostá-la à testa. Mas não o faz. Sérgio já está<br />
quase à beira da histeria, qualquer sinal de dor da parte dela, agora, vai fazê-lo vir-se abaixo.<br />
Vai fazê-lo pensar que <strong>to</strong>maram a decisão errada.<br />
A dor insiste, latejando-lhe na têmpora direita. No pon<strong>to</strong> exacta onde ela sabe que aquilo<br />
está. Como se estivesse a crescer, pensa, como se a maldita coisa estivesse a crescer.<br />
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E está mesmo a crescer, embora o médico não o tenha di<strong>to</strong> por tantas palavras, está a<br />
crescer e vai continuar a crescer, ou ele não teria sugerido a cesariana. Marta pousa as mãos<br />
sobre a sua barriga de sete meses. O bebé está a começar a agitar-se. É da dor, es<strong>to</strong>u a ficar<br />
alterada e ele sente.<br />
As mãos rolam-lhe sobre a barriga em círculos que se entrecruzam. Sente um pé espetar-se<br />
contra o interior do seu ventre, uma pequena saliência contra a palma da sua mão. Mais dois<br />
meses, dois meses não vão fazer diferença. Dois meses só não vão fazer diferença.<br />
– Estás bem? – A voz de Sérgio treme só um pouco.<br />
Ela assente, mas desvia o olhar para a janela.<br />
– Está a dar pontapés.<br />
– É forte. Grande para um bebé de sete meses. Se quisesses, mesmo que estivesse alguns<br />
dias na incubadora, os dois meses não fariam diferença …<br />
– Eu vou começar a quimioterapia quando o bebé nascer. – A voz dela é calma, os olhos<br />
fixaram-se no pára-brisas onde alguns pingos leves de chuva começaram a cair. – Os dois<br />
meses não vão fazer diferença.<br />
A chuva engrossa, começa a fazer ruído no tejadilho do carro. Ela reclina um pouco o assen<strong>to</strong><br />
e olha para cima, através do tec<strong>to</strong> de abrir, as gotas parecem pequenas bolas de cristal que<br />
se dirigem ao carro. Sérgio fechou a janela do lado dela e está cada vez mais abafado.<br />
– Pára o carro!<br />
– Estás a sentir-te mal, voltamos a –<br />
– Não. Pára o carro.<br />
Abre a porta, ainda antes de estarem completamente imobilizados. Já livre do abraço do cin<strong>to</strong><br />
de segurança, corre para lá do renque de árvores onde as garças se abrigaram, para a lezíria,<br />
campo aber<strong>to</strong>.<br />
As pernas cedem e deixa-se cair de joelhos na erva nova. A chuva rodeia-a, cada vez mais<br />
forte, batendo-lhe na testa, desmanchando a dor. Água escorre-lhe pela cara e o sabor a sal<br />
brinca-lhe nos lábios. Um triângulo de azul irrompe no meio do cinzen<strong>to</strong>.<br />
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-<br />
anavicenteferreira<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 27 de 117
Consciência<br />
Olá!! Sou a tua consciência…<br />
É só para te dizer que es<strong>to</strong>u far<strong>to</strong> de ti.<br />
Far<strong>to</strong> que não me ligues,<br />
Far<strong>to</strong> que só penses nos outros.<br />
Olha para mim e vê como es<strong>to</strong>u…<br />
Não sentes nada??<br />
Talvez vergonha.<br />
Pois sabes que eu sou o que tu és.<br />
Olha para aquilo que tens fei<strong>to</strong>.<br />
Repara bem nos pormenores<br />
Sou aquilo que tu sempre foste na realidade<br />
Não acreditas??<br />
Então olha-te ao espelho,<br />
Mas desta vez abre os olhos.<br />
Respira fundo e repara bem…<br />
Assustaste-te?<br />
Pois eu tenho uma novidade!<br />
Tu és assim mesmo…<br />
Não falo de aparência nem de visual.<br />
Mas que fútil pensares assim…<br />
Abre-te..<br />
Vê do que és fei<strong>to</strong> por dentro.<br />
Rasga-te e pensa…<br />
Eu não quero que sofras.<br />
Apenas te digo is<strong>to</strong> para te lembrar que estas vivo…<br />
E ainda tens uma hipótese.<br />
Não desperdices esta oportunidade…<br />
Transforma-me naquilo que queres ser,<br />
E não naquilo que tu pensas ser…<br />
-<br />
NightCrawl<br />
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Vendo<br />
Era uma tarde como tantas outras, na centenária Rua Augusta. Luís estava habituado<br />
aquela azáfama das compras natalícias. Os seus ombros já estavam doridos de tan<strong>to</strong>s<br />
encontrões. O cheiro das castanhas, vendidas já fora de época empestava o ar. Luís gostava<br />
de castanhas, mas nesta altura do ano já irritava o cheiro. Turistas em mangas de camisa<br />
bebiam placidamente cervejas geladas, na explanada em pleno Inverno. Luís achava-os<br />
doidos. Como era possível com sete graus estar-se numa explanada ao cimo da rua augusta,<br />
bebendo alegremente uma cerveja gelada. Só mesmo um britânico de barba branca, e<br />
rechonchudas bochechas vermelhas.<br />
Luís avançava paulatinamente, chegando ao velho Rossio. Olha a pequena multidão que<br />
espera um au<strong>to</strong>carro amarelo e sujo da Carris. Tanta gente de olhar carrancudo e triste,<br />
esperando um transporte conduzido por alguém que provavelmente trás um olhar<br />
carrancudo e triste. Do outro lado do passeio, as cores alegres e garridas de um restaurante<br />
de comida rápida estrangeira. Nem o coração histórico da cidade que o vira crescer se<br />
mantinha fiel a si próprio. Passando em frente ao histórico Teatro D. Maria II, um sentimen<strong>to</strong><br />
de tristeza invade-o. Luís não percebia como era possível que nas escadarias de um nobre<br />
teatro alfacinha, agora imperassem sem-abrigo. Alguns deles mostravam pequenos letreiros.<br />
“Vende-se carteira.” “Vendo telemóveis.” Provavelmente material roubado, pensava ele. Esta<br />
gente metia-lhe nojo. Sujos, rudes e provavelmente criminosos, eram a escória da sociedade.<br />
Começava agora a subir para o Chiado, onde finalmente poderia comprar as suas prendas de<br />
Natal. No meio da subida um sem abrigo cap<strong>to</strong>u-lhe a atenção. Envergava roupas velhas e<br />
gastas, tal como tan<strong>to</strong>s outros sem abrigo. Tinha a barba grisalha por fazer, tal como tan<strong>to</strong>s<br />
outros sem abrigo. A sua pele parecia curtida pelo sol, e suja pelo ar, tal como tan<strong>to</strong>s outros<br />
sem abrigo. Mostrava um pequeno letreiro, tal como tan<strong>to</strong>s outros sem abrigo. A diferença<br />
era o que estava escri<strong>to</strong>. “Vendo uma coisa que <strong>to</strong>dos querem, mas não ousam. Por um preço<br />
simples, mas que ninguém paga.” Ninguém ligava ao velho e ao seu cartaz. Mas Luís ficou<br />
curioso e dirigiu-se a ele.<br />
– Desculpe amigo o que vende?<br />
– Aquilo que <strong>to</strong>dos querem, mas não têm muitas vezes coragem de ter.<br />
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– E isso é que custa o tal preço que ninguém paga? — Luís solta uma sonora gargalhada. —<br />
E que preço é esse?<br />
– Um croissant e um galão na Brasileira.<br />
Depois de pensar um pouco, Luís resolve pagar para ver onde o “bluff” do velho o levava.<br />
– Eu pago. Mas espero receber algo que <strong>to</strong>dos querem e que poucos ousam ter.<br />
E di<strong>to</strong> is<strong>to</strong> João, o velho sem abrigo, seguiu-o até à “Brasileira do Chiado”. João comia<br />
lentamente o seu bolo e bebia o seu galão, saboreando cada pedaço. Luís bebia friamente o<br />
seu café.<br />
– Sabe, eu nem sempre fui um vagabundo. Em tempos, eu era um empregado de um banco.<br />
Ganhava bem, vivia tranquilo e contente. Veja lá que até era casado.<br />
– Se tinha um bom emprego e uma família como está agora nesta situação?<br />
– A minha mulher meteu-me os cornos com um colega. Eu comecei a ir para a ba<strong>to</strong>ta e a<br />
andar nos copos. Daí a perder o emprego foi um passo. Comecei a beber cada vez mais. Perdi<br />
tudo e vim parar onde es<strong>to</strong>u.<br />
– A vender algo que <strong>to</strong>dos querem por um galão e um bolo neste café? Porque raio é este<br />
preço?<br />
– Quando era pu<strong>to</strong>, a minha mãe vinha a este café comigo. Foi aqui que lanchei pela primeira<br />
vez com a Filipa, a minha primeira namorada. Fico contente por vir aqui e saborear algo de<br />
quando fui feliz. — Comen<strong>to</strong>u João, enquan<strong>to</strong> pequenas lágrimas lhe escorriam pelo ros<strong>to</strong>.<br />
– Então e o que comprei eu?<br />
João levan<strong>to</strong>u-se, limpou as mãos às calças gastas e encaminhou-se para a saída.<br />
– Acabou de comprar a felicidade para um pobre e desgraçado velho. Uma felicidade que<br />
quando ele a tinha, não a ousou ter. Nunca deixe de ousar. Obrigado.<br />
-<br />
Sturm<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 30 de 117
Nocturno de Mim<br />
Quando a noite chega e meus olhos<br />
são uma sala vazia, quando a noite chega<br />
e olho meus livros, os meus utensílios<br />
com palavras na penumbra, é a hora da luz<br />
iluminar com a sua água sobre a mesa<br />
quando a noite chega<br />
quando chega num cigarro abortado<br />
antes da última cinza, quando a noite chega<br />
e as janelas transparentes no escuro<br />
quando chega a noite<br />
es<strong>to</strong>u cercado de perguntas, algumas<br />
respondo, outras cingem-me os ombros<br />
quando a noite chega sou como nuvens<br />
que procuram casa sem parar seu rumo.<br />
-<br />
j. t. parreira<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 31 de 117
Duas Conchas<br />
Não havia ven<strong>to</strong>, não havia ondas, nem uma brisa se sentia naquele recan<strong>to</strong> de mundo a que<br />
alguém um dia chamou de praia.<br />
Era cedo, mui<strong>to</strong> cedo, a manhã estava com um céu azul tão brilhante que o mar sentia-se<br />
envergonhado por naquele dia não ter semelhante cor, e ao mesmo tempo sentia-se<br />
protegido... mas não aquela concha que nessa manhã deu à praia (vamos chamar-lhe de A) .<br />
Não estava só ... lá ao longe outra concha (a que vamos chamar de G) vislumbrava aquele<br />
acontecimen<strong>to</strong> ... a chegada de mais uma concha àquela praia .<br />
Todos os anos este invulgar even<strong>to</strong> ocorria, este ano pertencia a A e a G .<br />
Elas (as conchas) eram lançadas no al<strong>to</strong> mar por alguém ( a que vamos chamar de destino) e<br />
as duas primeiras conchas a alcançar aquele aglomerado de <strong>to</strong>rrões de terra, viviam para<br />
sempre felizes . Mas desta vez e infelizmente as coisas não acabavam com um final feliz ...<br />
não desta vez .<br />
Para G era a primeira vez que acontecia esta aventura ... para A ... também .<br />
Contudo não seria a primeira vez que aquelas conchas se encontravam ... aquele olhar<br />
trocado entre ambas dizia tudo ... de certeza que em outra realidade já teriam partilhado<br />
confidências .<br />
Este dia foi marcado por alegrias mil entre as duas conchas . Foi um dia de sussurros, de<br />
brincadeiras, de alegria partilhada, de maneiras iguais de ver o mundo e até várias cusquices<br />
sobre ele e sobre a vida (a curta vida delas) . G transbordava de alegria, tanta ... tanta que<br />
poderia o mundo acabar ali aos seus pés que ele viveria para sempre feliz para onde quer que<br />
fosse.<br />
O dia passou num ápice (rápido demais mesmo ...) e G reparou que A estava quase<br />
desfalecida, o longo caminho percorrido até alcançar aquela praia era a razão.<br />
G na sua simplicidade/cortesia, segurou em A e delicadamente dei<strong>to</strong>u-a num lei<strong>to</strong> de algas<br />
verdes (construídas por si) ... umas lindas algas verdes que davam cor de esperança aquele<br />
lugar.<br />
Passaram-se vários dias e A não melhorava .<br />
O dia de G era preenchido a tentar animar aquela outra concha .<br />
Ele contava histórias, desenhava na areia lindas figuras só para a animar, procurava os<br />
melhores raios de sol para aquecê-la e quando ficavam fortes demais ... procurava a melhor<br />
sombra .<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 32 de 117
G sentia-se contente por estar a ajudar, sentia-se útil, preenchido, alegre como uma criança<br />
traquinas, mesmo não tendo de A ... qualquer ges<strong>to</strong> de ternura . Mas G não desistia,<br />
considerava que lhe estava destinado aquela sua maneira de ser útil .<br />
Que engano, que engano ele estaria a cometer, mas também ... não havia naquela imensidão<br />
de praia quem lhe ouvisse e ele não sabia falar nem com o mar nem com o ven<strong>to</strong>, habi<strong>to</strong>u-se<br />
a viver daquela forma .<br />
Certa manhã A acordou mui<strong>to</strong> melhor, G não viu ... foi a brisa que lhe disse porque ainda<br />
continuava a dormir. A noite passada à procura de pauzinhos de madeira secos para fazer<br />
uma pequena fogueira e aquecer A, havia-lhe <strong>to</strong>mado as forças .<br />
A levan<strong>to</strong>u-se e olhou para G, mas nem lhe <strong>to</strong>cou ... não sabendo bem porquê, retirou-se<br />
devagarinho sem barulho, nem mesmo amparou aquela man<strong>to</strong> de algas por cima de G para<br />
lhe aconchegar o sono ... como ele lhe fazia <strong>to</strong>das as manhãs .<br />
Sem destino caminhou sempre em frente e conseguiu sair daquele lugar , sem nunca olhar<br />
para trás ... como poderia ser ? Como ? Então não existiu nem um pingo de sentimen<strong>to</strong> ?<br />
O brilho do Sol a <strong>to</strong>car ligeiramente o mar fez desvanecer aquela figura aos poucos até ao<br />
ocaso <strong>to</strong>tal .<br />
Já o Sol estava al<strong>to</strong> quando G acordou e olhando para <strong>to</strong>dos os lados procurou por A mui<strong>to</strong><br />
preocupado ... tinha receio que o frio e o ven<strong>to</strong> da noite passada lhe tivessem levado, estando<br />
ela tão fraca .<br />
Mas com o decorrer do dia, das semanas, dos meses, reflectiu interiormente que nunca mais<br />
veria a sua alma gémea .<br />
Todo esse tempo fez com que aprende-se a falar com mar e mesmo com o ven<strong>to</strong> que lhe<br />
apresen<strong>to</strong>u à estrelas, mas também elas não sabiam o porquê de A ter partido .<br />
Por vezes tem a noção de a ouvir ao longe a dizer : “es<strong>to</strong>u aqui, es<strong>to</strong>u aqui” ... mas de seguida<br />
tal momen<strong>to</strong> desvanece-se com mais um pôr-de-Sol . É apenas um engano momentâneo .<br />
G passou a ser mais uma daquelas conchas a que nos habituámos a pisar quando<br />
percorremos a praia, foi apenas mais uma e ... ele que queria ser diferente ...<br />
Conta-se que ... ao luar ainda a procura ao longo daquela praia escrevendo frases banais na<br />
areia como : “Onde andas?”, “Não te escondas” ... à procura de uma saída daquele sítio<br />
porque sozinho não consegue, não consegue mesmo, porque ... falta-lhe um A .<br />
-<br />
Maloveci<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 33 de 117
Ri<strong>to</strong> de Passagem<br />
É só mais um amanhecer entre os dedos<br />
Além dos vas<strong>to</strong>s campos da lucidez<br />
Onde uma brisa suave afaga os cabelos<br />
Reluzindo os corpos empilhados ao som do mar<br />
Inspirando-nos um pouco de loucura.<br />
…<br />
É só mais um amanhecer<br />
Desta aurora a beira de uma navalha<br />
Ensanguentada por <strong>to</strong>dos os poros<br />
De onde culminam os mais lamen<strong>to</strong>sos<br />
Poemas.<br />
…<br />
Então tu virás em chamas<br />
Oh! Pequenino ser<br />
E me acompanharás de cima dos montes<br />
Ao som da flauta mágica dos seres nocturnos.<br />
Afogar-te-ás comigo nas cinzas fluorescentes<br />
Dos dias taciturnos onde se quebram os próprios espelhos<br />
Sem ao menos derramar uma lágrima sequer na face alheia.<br />
-<br />
Caninos Brancos<br />
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O Desenhador de Coisas que Ninguém Quer<br />
Havia um menino que morava numa pequena praceta no centro da Trofa. Era um menino<br />
como os outros meninos. Tinha um nome, como <strong>to</strong>dos os meninos têm. Mas tinha vergonha<br />
de o dizer. Era pequeno, como <strong>to</strong>dos os meninos são. Mas queria ser já gente grande. Gostava<br />
de doces, como <strong>to</strong>dos os meninos gostam. Mas a mãe gostava mais de sopa.<br />
O avô chamava-se Jerónimo. E como a mãe gostava mui<strong>to</strong> do avô, o nosso menino também<br />
se chamava Jerónimo. Ele achava que os meninos é que deviam escolher o seu próprio nome,<br />
quando já tivessem idade de escolher nomes. Se pudesse, chamava-se João ou Pedro ou<br />
Carlos como <strong>to</strong>dos os meninos se chamam. Mas como não podia, chamava-se Jerónimo.<br />
O Jerónimo tinha nome, era pequeno e gostava de doces, como os Joões, os Pedros e os<br />
Carlos. Mas esses, como <strong>to</strong>dos os meninos da Trofa, gostavam mui<strong>to</strong> de jogar à bola e o<br />
Jerónimo não. Gostava mais de ficar em casa a desenhar. Era o seu passatempo. Desenhava<br />
tudo o que via, mais o que não via. E no que não via, desenhava o que existia e o que não<br />
existia. No fundo, no meio disso tudo, desenhava o que queria. Chegava a pôr-se à janela do<br />
quar<strong>to</strong> a ver os meninos jogarem à bola, em vez de se lhes juntar. E os meninos na rua não<br />
percebiam:<br />
- Vem jogar à bola.<br />
- Não me apetece.<br />
E fechava a janela e desenhava os meninos a jogar à bola na praceta. Depois desenhava o<br />
quar<strong>to</strong>. A janela. Um avião. A cama. Uma árvore. O quadro da parede. Um dragão. Um<br />
animal que não existia, mistura de elefante com boi. E depois desenhava mais mil e uma<br />
coisas. Tinha uma gaveta na secretária cheia de folhas brancas sem nada e outra cheia de<br />
folhas brancas com os seus desenhos a lápis de carvão, nunca pintados.<br />
A mãe e o pai trabalhavam os dois, desde manhã cedo, depois de o deixarem na escola, até<br />
antes do jantar. Por isso tinha que almoçar na escola e só depois ia para casa, sozinho.<br />
Passava as tardes na companhia das suas folhas e do seu lápis. Os pais nunca deram grande<br />
importância aos seus desenhos. Ele também não se importava com isso. Os desenhos eram<br />
dele, ninguém precisava de os ver. Mas por vezes, o Jerónimo desenhava para as outras<br />
pessoas e não para si. Às vezes, à noite, a mãe arrumava a roupa que tinha passado a ferro e<br />
gritava com o pai:<br />
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- Mas onde é que meteste a gravata vermelha?<br />
- Jun<strong>to</strong> com o res<strong>to</strong> da roupa.<br />
- Mas ela não está aqui!<br />
O Jerónimo, no quar<strong>to</strong>, ouvia tudo e não demorava um minu<strong>to</strong> a aparecer na cozinha, onde<br />
estava a mãe, com um desenho de uma gravata na mão:<br />
- Toma mãe.<br />
- Não me enerves mais do que eu já es<strong>to</strong>u, Jerónimo!<br />
E nem sequer olhava para o desenho. Talvez porque a sua gravata era cinzenta e não<br />
vermelha. E o Jerónimo, triste, regressava ao quar<strong>to</strong>. A sua mãe não queria a gravata que ele<br />
fizera, mas ele não a dei<strong>to</strong>u fora. Guardou-a na sua gaveta de coisas que ninguém queria. E<br />
eram muitas as coisas que ninguém queria. O Jerónimo nem percebia mui<strong>to</strong> bem este<br />
fenómeno. Ele sabia que as pessoas queriam as coisas, ele ouvia-as dizerem-no. Mas quando<br />
ele chegava ao pé delas com os desenhos do que queriam, deixavam de as querer. Como se o<br />
quisessem apenas chatear.<br />
O Jerónimo gostava mui<strong>to</strong> dos seus desenhos. Eram tudo o que ele tinha e mais o que não<br />
tinha. Eram os seus amigos, as suas brincadeiras, os seus passeios. Naquela gaveta de<br />
sonhos não estavam desenhos apenas: estava um menino chamado Jerónimo, com a alma<br />
desenhada a carvão.<br />
Foi com o avô, de quem herdou o nome, que o Jerónimo aprendeu a desenhar. E sempre que<br />
o avô lá ia a casa, ficava mui<strong>to</strong> tempo com o ne<strong>to</strong> a ver os seus boni<strong>to</strong>s desenhos. Uma vez, ia<br />
o avô ver os desenhos do Jerónimo quando parou:<br />
- Onde deixei eu os meus óculos?<br />
E o Jerónimo reagiu de imedia<strong>to</strong>:<br />
- Aqui avô.<br />
E estendeu-lhe um desenho dos óculos do avô.<br />
- Ó Jerónimo, ajuda-me mas é a procurar os óculos.<br />
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E pôs o desenho de lado. O Jerónimo arrumou-o na gaveta das coisas que ninguém quer.<br />
Talvez fosse por o avô não ter os óculos que não sabia apreciar o seu ges<strong>to</strong>.<br />
O Jerónimo desenhava quase sempre para si e gostava sempre mui<strong>to</strong> dos seus desenhos.<br />
Mas quando desenhava para alguém, nunca queriam os desenhos. Será que eram maus os<br />
desenhos? Afinal, só ele é que gostava deles.<br />
Começou a desenhar menos. Um dia, até foi para a rua jogar à bola com os outros meninos.<br />
Disse-lhes que se chamava João e que queria jogar à bola. Eles deixaram. Mas a meio do jogo<br />
um dos meninos deu um chu<strong>to</strong> com força e a bola ficou num telhado. O Jerónimo disse que<br />
ia a casa e voltava já. E os meninos ficaram felizes:<br />
- Boa! Ele vai buscar uma bola.<br />
E esperaram ansiosamente que ele voltasse. E ele não os fez esperar. Apareceu logo de<br />
seguida com uma folha na mão, que lhes entregou:<br />
- Tomem.<br />
- Para que queremos is<strong>to</strong>?<br />
E rasgaram o desenho da bola que o Jerónimo fizera.<br />
A partir daí decidiu que afinal de contas, mesmo ninguém gostando dos seus desenhos, ele<br />
gostava. E era mui<strong>to</strong> melhor passar as tardes com eles do que com aqueles meninos mal-<br />
educados. Continuou a fazer os seus desenhos mágicos. Desenhava mundos, casas, bichos,<br />
amigos. Desenhava coisas só para si. Deixou de fazer desenhos para os outros. Isso só os<br />
chateava e irritava. Nunca queriam as coisas que desenhava.<br />
O avô começou a visitá-lo mais vezes. Talvez a mãe tivesse pedido que o fizesse. Numa dessas<br />
visitas o avô levou-lhe um bloco de folhas mui<strong>to</strong> boni<strong>to</strong>:<br />
- É para ti Jerónimo. Hoje vamos passear para o experimentares.<br />
- Passear?<br />
- Sim, vamos ao parque.<br />
E ajudou o Jerónimo a vestir o casaco.<br />
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Saíram, lado a lado. Nos olhos do Jerónimo notava-se um brilho de menino que vivia fechado<br />
no quar<strong>to</strong>. Um menino que era quase um desenho de menino. Os passeios que dava eram<br />
sempre de casa para a escola e da escola para casa. Por isso, aquele passeio ao parque foi<br />
como se tivesse entrado na sua gaveta de desenhos e passeado por <strong>to</strong>dos os desenhos que<br />
fez. Não. Aquele passeio ao parque era ainda melhor que isso. O Jerónimo sen<strong>to</strong>u-se num<br />
dos vários bancos, ao lado do avô:<br />
- Vá. Mostra-me se já desenvolveste a tua técnica.<br />
E o Jerónimo mostrou. Desenhou o menino que brincava com o cão. O senhor que jogava à<br />
bola com o filho. Os velhotes que passeavam e conversavam bem dispos<strong>to</strong>s. Os passarinhos<br />
que por ali voavam. Nunca tinha vis<strong>to</strong> tantas coisas para desenhar. Se pudesse, ficava o<br />
res<strong>to</strong> da vida naquele parque a desenhar <strong>to</strong>das as pessoas, animais e coisas que por lá<br />
passassem.<br />
O avô ficou mui<strong>to</strong> orgulhoso do ne<strong>to</strong>. Gos<strong>to</strong>u mui<strong>to</strong> dos seus desenhos. Prometeu que no dia<br />
seguinte o viria buscar de novo para irem ao parque. O Jerónimo ficou radiante. Passou o<br />
res<strong>to</strong> do dia e o início do seguinte, a desenhar mais e mais coisas que tinha vis<strong>to</strong> no parque.<br />
Estava ansioso por regressar lá e ver que coisas novas o parque lhe ofereceria para desenhar.<br />
Pouco depois do almoço o avô chegou a casa do Jerónimo:<br />
- Então Jerónimo, pron<strong>to</strong> para mais um passeio?<br />
- Claro! Vamos!<br />
E rapidamente se despachou para ir com o avô.<br />
Pelo caminho, combinaram qualquer coisa que incluía um gelado e um desenho do avô. Mas<br />
quando o Jerónimo chegou ao parque, esqueceu <strong>to</strong>da a conversa que tinha tido. Todo aquele<br />
verde, aquelas árvores, aqueles sons, aqueles cheiros, aquela alegria no ar. Tudo aquilo era<br />
mui<strong>to</strong> mais do que aquilo que a sua gaveta guardava. Mas podia sempre guardar nessa<br />
gaveta um pouco de <strong>to</strong>da aquela magia. Sen<strong>to</strong>u-se, pegou no seu bloco e no lápis e desenhou<br />
o casal de namorados que passeava de mão dada. O senhor que ensinava o filho a andar de<br />
bicicleta. A velhota que empurrava um carrinho de bebé onde o Jerónimo adivinhou que<br />
estava o seu ne<strong>to</strong>. E tantas outras coisas.<br />
O avô estava mesmo orgulhoso do seu ne<strong>to</strong> e lembrou-lhe o prometido:<br />
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- Então, fazes um retra<strong>to</strong> do avô?<br />
- Ah! Sim, sim, faço avô.<br />
E fez. O avô gos<strong>to</strong>u tan<strong>to</strong> que abraçou o ne<strong>to</strong>, emocionado. E cumpriu o acordo:<br />
- Fica aqui a desenhar que vou ali comprar-te o gelado. Não demoro nada.<br />
E foi andando no seu passo len<strong>to</strong>, que afinal até demorava um bocadinho. Mas o Jerónimo<br />
não se importava de esperar. Tinha tantas coisas para desenhar.<br />
Continuou ali sentado, concentrado nos desenhos, sem dar pelo tempo passar. Daí que,<br />
quando um senhor se aproximou do banco, o Jerónimo tivesse pensado que era o avô. Mas<br />
quando levan<strong>to</strong>u os olhos do bloco, para olhar nos olhos do senhor, surpreendeu-se.<br />
- Olá menino.<br />
E o Jerónimo ficou atrapalhado:<br />
- Olá.<br />
- Posso ver os teus desenhos?<br />
- Sim.<br />
E estendeu-lhe o bloco. O senhor folheou-o atentamente. Só então Jerónimo reparou que o<br />
senhor tinha umas roupas mui<strong>to</strong> velhas, esburacadas. E tinha um aspec<strong>to</strong> sujo, com uma<br />
barba grande por fazer. Mas, estranhamente, isso não lhe provocou nenhum medo.<br />
O senhor devolveu-lhe o bloco:<br />
- Sabes que desenhas mui<strong>to</strong> bem?<br />
- Obrigado.<br />
E corou ligeiramente.<br />
- A sério. Eu também desenho às vezes. Sen<strong>to</strong>-me aqui no parque e desenho o que vejo, como<br />
tu. Às vezes as pessoas pedem-me que as desenhe. Depois compram-me os desenhos que<br />
faço.<br />
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O Jerónimo achava aquele senhor mui<strong>to</strong> simpático, apetecia-lhe conversar com ele:<br />
- A mim ninguém me pede desenhos. E quando os ofereço não os querem. Por isso guardo-os<br />
<strong>to</strong>dos na minha gaveta secreta, no meu quar<strong>to</strong>.<br />
- Eu não tenho casa onde possa guardar desenhos.<br />
E sen<strong>to</strong>u-se ao lado do Jerónimo, abatido.<br />
O Jerónimo teve pena daquele senhor. Era tão simpático. Gostava de desenhar, tal como ele.<br />
Devia ter uma casa para poder guardar os seus desenhos. Não ter que os vender às pessoas.<br />
Então, pegou no bloco que o avô lhe dera, e começou a desenhar algo. Quando acabou, fez<br />
uma coisa que tinha decidido nunca mais fazer:<br />
- Tome.<br />
E estendeu o desenho ao senhor.<br />
Quando o senhor pegou no desenho e viu o que o Jerónimo lhe tinha desenhado, chorou.<br />
Não de tristeza, mas de alegria. De gratidão. O Jerónimo desenhara-lhe uma casa. A casa que<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 40 de 117
ele não tinha. Uma casa melhor que qualquer casa que ele pudesse ter. Limpou as lágrimas<br />
e, quase sem conseguir falar, abraçou o Jerónimo:<br />
- Obrigado.<br />
O Jerónimo também ficou mui<strong>to</strong> feliz. Nunca ninguém tinha aceitado os seus desenhos de<br />
presente. Aquele senhor não tinha casa e o Jerónimo deu-lhe uma. A melhor que lhe podiam<br />
ter dado. Estavam os dois eternamente gra<strong>to</strong>s um ao outro.<br />
Sem que dessem conta, o avô chegou:<br />
- Jerónimo!<br />
- Olá avô!<br />
O avô estava assustado:<br />
- Quem é o senhor?<br />
E o senhor levan<strong>to</strong>u-se:<br />
- Não se preocupe, estava só a ver os desenhos do seu ne<strong>to</strong>.<br />
- Vá-se embora! Vagabundo.<br />
O Jerónimo ficou chateado com o avô. Mas o senhor respondeu mui<strong>to</strong> calmamente:<br />
- O senhor tem um ne<strong>to</strong> com um coração gigante fei<strong>to</strong> de ouro. Talvez devesse aprender algo<br />
com ele.<br />
E virando-se para o Jerónimo:<br />
- Adeus Jerónimo.<br />
-<br />
TRiiAd<br />
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Viagem<br />
A noite caiu,<br />
E com ela caiu a solidão,<br />
Apesar de não estar só,<br />
O meu coração reclama por companhia.<br />
A minha mente confusa e a<strong>to</strong>rmentada<br />
Urge por paz e descanso.<br />
Onde estás tu agora que preciso de ti?<br />
Quero-te aqui,<br />
Quero sentir-te jun<strong>to</strong> a mim,<br />
Quero amar-te,<br />
Tocar-te,<br />
Sentir o teu perfume,<br />
Fundir-me contigo<br />
E gritar…<br />
Gritar de paixão, loucura e alegria<br />
Porque sou feliz,<br />
Porque és o meu refúgio.<br />
E depois…<br />
Depois dormir e sonhar,<br />
Para logo logo acordar,<br />
E ver que a noite continua aqui<br />
E eu continuo sozinha.<br />
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-<br />
Screams<br />
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Momen<strong>to</strong> de Inspiração Numa Aula de Física<br />
Movimen<strong>to</strong> à sua volta disse a Haeren que a venda cobrindo os seus olhos iria ser retirada.<br />
Cerrando os maxilares e adoptando uma expressão séria e forte, preparou-se para enfrentar<br />
os seus cap<strong>to</strong>res. Tal esforço provou ser em vão quando a luz do sol o cegou com o regresso<br />
da visão e os seus olhos se focaram não num grupo de homens, mas nas formas insinuantes<br />
de uma mulher, de pé à sua frente. O seu choque apenas aumen<strong>to</strong>u quando se juntaram a<br />
ela mais três, duas ainda bastante novas, e uma algo mais velha.<br />
“Oh-oh! E ele acorda!” Fora a primeira mulher que falara, com um sorriso impossivelmente<br />
largo na face ainda obscura pelo contraste da luz. “Olá! Dormiste bem?” Continuou numa voz<br />
alegre, como se ele fosse um amigo chegado que passara a noite em casa dela. Extremamente<br />
consciente das amarras fortes impossibilitando qualquer movimen<strong>to</strong> da parte dele, Haeren<br />
simplesmente não percebia de onde vinha o bom humor.<br />
“Quem és?” Pergun<strong>to</strong>u, esforçando-se por parecer frio e digno, enquan<strong>to</strong> ajoelhado a seus<br />
pés.<br />
“Hm… Não sabes?” Ela aproximou-se, ignorando completamente a hostilidade, o que irri<strong>to</strong>u o<br />
seu prisioneiro ainda mais. “Ora, ora, e eu aqui a pensar que era famosa.” Com um pequeno<br />
riso inclinou-se, flectindo as pernas e ficando cara a cara com Haeren, revelando as feições<br />
de uma face oval, ousadamente bela, onde os traços fortes eram pontuados por insinuações<br />
de uma doçura escondida. “Vendo bem….Tu és diferente. Será que?…” e ergueu-se de novo.<br />
“Tu não és daqui, pois não?”<br />
Haeren permaneceu calado.<br />
“Nem de per<strong>to</strong>, pois não?” Insistiu. “Tens um ar estranho.”<br />
Uma das jovens por trás dela falou pela primeira vez.<br />
“Tem cara de nobre.” disse, olhando fixamente o homem amarrado, esperando uma resposta.<br />
Este apenas repetiu a pergunta anterior.<br />
“Quem és?” disse de novo, dirigindo-se à mulher que parecia ser a líder do pequeno grupo.<br />
Esta sorriu, afas<strong>to</strong>u ligeiramente os pés, colocou as mãos na cintura e anunciou com uma<br />
voz triunfal:<br />
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“Sou Tabasha, a Bazouk.”<br />
Tabasha, a designada Bazouk parecia satisfeita. Haeren apenas pestanejou.<br />
“….Bazouk?…”<br />
“Precisamente.”<br />
“E o que é isso?”<br />
De novo o sorriso lhe curvou os lábios, mesmo antes de ela fechar os olhos e, para comple<strong>to</strong><br />
horror de Haeren, a pele esticar, <strong>to</strong>rnando-se lívida, e a cara alargar até se assemelhar a um<br />
insec<strong>to</strong>. Asas romperam das suas costas, de pele, negras como crude, e <strong>to</strong>do o corpo perdeu<br />
qualquer traço de humanidade. Em apenas momen<strong>to</strong>s a mulher na sua frente <strong>to</strong>rnara-se<br />
numa criatura tão horrenda quan<strong>to</strong> assustadora, e lançou-se na sua direcção. Um som de<br />
surpresa saiu-lhe dos lábios, e ele atirou-se para trás, numa tentativa fútil de lhe escapar.<br />
Incapaz de desviar o olhar, pôde apenas notar que garras aguçadas se aproximavam da sua<br />
face e, no momen<strong>to</strong> em que se preparava para sentir os seus olhos serem arrancados, o<br />
monstro desapareceu. Bem per<strong>to</strong> da sua face estavam apenas as mãos de Tabasha e a sua<br />
cara sorridente. Com uma palmadinha no queixo de Haeren e um risinho, afas<strong>to</strong>u-se um<br />
pouco, dando espaço para ele perceber que com o pânico acabara de costas, as mãos<br />
esmagadas pelo seu próprio peso e o peso de Tabasha, sentada confortavelmente nos seus<br />
abdominais, uma perna em cada lado do seu corpo.<br />
“E então? Medo?” Pergun<strong>to</strong>u ela, inclinando-se de novo para a frente, apoiando a cabeça nas<br />
mãos e os co<strong>to</strong>velos no pei<strong>to</strong> do homem que, perfeitamente imóvel por baixo dela, tentava<br />
digerir o choque. A mulher mais velha escolheu essa altura para se aproximar, observando o<br />
cenário com um sorriso trocista nos lábios finos.<br />
“Ele consegue fechar a boca, ou precisa de ajuda?”<br />
A is<strong>to</strong> Haeren fechou-a rapidamente com um bater de dentes audível, o que lançou o riso<br />
entre as duas mulheres. Sentindo-se humilhado e, agora que o choque passara, furioso,<br />
chamou a si as suas forças, fincou os co<strong>to</strong>velos no chão e usou-os como apoio para se lançar<br />
em frente, apanhando Tabasha de surpresa e colidindo as suas cabeças, fazendo a mulher<br />
cair para lá dos seus joelhos e ficar por terra, sem se mexer. Imediatamente uma espada<br />
embainhada bateu no lado da sua cabeça, rasgando-lhe a orelha, mas sem força o suficiente<br />
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para o fazer perder o equilíbrio. Conseguindo pôr-se de joelhos, Haeren virou-se para a nova<br />
ameaça esperando pelo próximo golpe quando uma voz os interrompeu.<br />
“Não, espera.” A mulher parou o movimen<strong>to</strong>, baixando a espada a contra-gos<strong>to</strong>. Tabasha<br />
sentara-se, uma mão na sua testa, a outra gesticulando para a guarda se afastar. “Deixa<br />
estar.”<br />
No entan<strong>to</strong>, Haeren não vira nada disso, ficando paralisado por algo que só os seus olhos<br />
podiam fitar. Uma visão, um fantasma, tentava a sua mente dizer, enquan<strong>to</strong> ele permanecia<br />
transfixo, vendo quase sem ver como a jovem que não podia estar ali sentada movia a sua<br />
mão para olhar o sangue que a manchava, o mesmo que corria livre pela face redonda e<br />
pequena, brotando do corte que lhe desfigurava a sobrancelha. O corte que ele fizera. Por<br />
mais que tentasse, a irrealidade do que estava a ver não era o suficiente para travar a dor<br />
familiar crescente no seu pei<strong>to</strong>, perda, raiva e culpa numa junção constri<strong>to</strong>ra que lhe<br />
roubava o ar dos pulmões.“Adhara…” Ela estava morta. Morrera. Mas estava ali, tristeza e<br />
dor no seu olhar de chocolate. Firmemente ele abanou a cabeça, forçando tal visão a<br />
desaparecer, tentando invocar a imagem de Tabasha, pois só podia ser ela ali no chão, fora<br />
ela que ele ferira e não Adhara, não ela. A jovem que lhe roubara a alma e o coração com um<br />
sorriso desarmante morrera há anos, mais dos que ele queria ter de recordar. Pálpebras<br />
abriram-se de novo. “Não és…não podes…”<br />
Adhara movera-se, aproximando-se, uma mão procurando <strong>to</strong>car-lhe. Tudo nela era<br />
dolorosamente real, desde a pele morena às feições sossegadas e inteligentes. Haeren sentiu<br />
os olhos arder com lágrimas há mui<strong>to</strong> suprimidas e ten<strong>to</strong>u uma última vez, sabendo que não<br />
resistiria se ela lhe <strong>to</strong>casse.<br />
“Estás morta..”<br />
A mão parou.<br />
“Es<strong>to</strong>u?” O ar surpreendido na face de Adhara permaneceu na face de Tabasha, mesmo<br />
depois de a visão se ter desvanecido. “Ela morreu?”<br />
Mesmo sabendo que o que vira não poderia ser real, ainda assim a confirmação da verdade<br />
foi como uma bofetada, e o conhecimen<strong>to</strong> que uma mulher tão diferente estivera <strong>to</strong>do esse<br />
tempo no lugar da aparição fez com que <strong>to</strong>da dor se <strong>to</strong>rnasse raiva, um sentimen<strong>to</strong> de<br />
invasão violadora de tal forma forte que Haeren se esqueçeu de si, o instin<strong>to</strong> levando-o a usar<br />
<strong>to</strong>das as suas forças na determinação de não deixar que Tabasha o <strong>to</strong>casse. De novo de<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 46 de 117
costas no chão, conseguiu afastar-se dela, desejando nada mais que fazê-la desaparecer da<br />
sua frente.<br />
Ela, por seu lado, estava petrificada no lugar, o conhecimen<strong>to</strong> do que fizera lentamente a<br />
definir-se. Era uma manobra de au<strong>to</strong>-preservação, tão treinada e usada durante <strong>to</strong>da a sua<br />
vida que nem sequer pensara antes de chamar a mente de Haeren, e escolher a figura<br />
feminina mais proeminente das memórias dele. Que afinal morrera, e se ela tivesse de<br />
adivinhar, diria em circunstâncias drásticas, provavelmente marcando o homem que tentava<br />
a <strong>to</strong>do o cus<strong>to</strong> manter a distância entre eles naquele momen<strong>to</strong>. Erguendo-se, deu um passo<br />
na sua direcção, apenas para parar abruptamente quando Haeren vociferou:<br />
“Afasta-te de mim!!”<br />
“Calma!” Contra sua vontade, Tabasha começava a sentir-se culpada. “Tem calma.”<br />
“Afasta-te!”<br />
“Ouve, não era a minha intenção m–”<br />
“Vai para o Vazio com as tuas intenções, filha de um Pharisma!”<br />
Ela ergueu as sobrancelhas, não apanhando o insul<strong>to</strong>.<br />
“De um Bazouk. Sou filha de um Bazouk.”<br />
Haeren ignorou-a, sentando-se a cus<strong>to</strong> de novo, a cabeça descaindo até quase <strong>to</strong>car nos<br />
joelhos. Tabasha por seu lado, ainda esboçou um passo, arrependimen<strong>to</strong> começando a notar-<br />
se nos seus olhos. Parou, esperou, e por fim desistiu, fazendo sinal à guarda e juntas<br />
afastaram-se.<br />
“Eu não sabia que ele ia ficar assim.” disse, falando baixo. “Coitado… Sphire, achas que–”<br />
“Ele não é nosso convidado, nem amigo, se queres saber o que eu acho.” re<strong>to</strong>rquiu ela,<br />
parando para fitar a sua líder. “Não es<strong>to</strong>u a ver porque estás tão preocupada.”<br />
“Não es<strong>to</strong>u.” suspirou. “Mas também não gos<strong>to</strong> de dar golpes baixos.”<br />
A cara que Sphire fez mostrava perfeitamente a noção que ela tinha de golpes baixos.<br />
“Enfim. Baixo ou não, o que fizeste resul<strong>to</strong>u, e acho que ele não se vai mexer tão cedo. Vou<br />
ajudar as gémeas, já venho.”<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 47 de 117
Tabasha anuiu distraidamente, a sua atenção focada na figura de Haeren, que permanecia<br />
sentado, a cabeça sobre os joelhos, e as mãos atadas cerradas em punhos.<br />
-<br />
Selenia<br />
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Abandono<br />
Se pudesse fugir para ti,<br />
se pudesse fugir de ti,<br />
mas já não há caminhos para descobrir.<br />
As estradas estão fechadas,<br />
não há razões para fugir<br />
nem as há para ficar.<br />
As razões foram-se com o ven<strong>to</strong><br />
as esperanças também.<br />
Ten<strong>to</strong> <strong>to</strong>car-te mas estás demasiado longe.<br />
Ten<strong>to</strong> <strong>to</strong>car-me mas já aqui não es<strong>to</strong>u,<br />
a minh’alma está longe<br />
tentando soltar-se de ti.<br />
Sigo o caminho mental<br />
dos teus passos ao longe<br />
mas nem por isso<br />
sin<strong>to</strong> o teu <strong>to</strong>que na face.<br />
Insis<strong>to</strong> em querer fugir<br />
para qualquer lugar,<br />
se lá estiveres ficarei<br />
quero a minh’alma para a abandonar.<br />
Quero-te,<br />
mas não te quero…<br />
quero ter liberdade para escolher,<br />
a relativa liberdade do tempo.<br />
Ter tempo para sair daqui,<br />
tempo para ver novos horizontes,<br />
para te amar sem pressas,<br />
para te odiar sem demoras.<br />
Este que aqui jaz<br />
e a porta pela qual entrei<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 49 de 117
só abre neste sentido,<br />
nesta minha casa sem janelas.<br />
Na minha cama,<br />
não repousa nenhum corpo.<br />
Nos meus pra<strong>to</strong>s,<br />
não come ninguém,<br />
pois eu já aqui não es<strong>to</strong>u…<br />
nem aqui nem em lugar algum.<br />
Não sou nada porque permaneço<br />
sem dor, amor, razão ou sentido!<br />
-<br />
Lyquid<br />
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A Última Noite<br />
3º Prémio no passatempo “Dragões”<br />
Ele fechou os olhos e sentiu a brisa. Fresca, leve… deixou-se ficar assim por uns minu<strong>to</strong>s.<br />
Quando finalmente se decidiu a abrir os olhos, já o céu se tinha tingido de <strong>to</strong>ns vermelhos,<br />
laranjas e amarelos. Do sítio onde ele estava sentado era um espectáculo avassalador. Picos<br />
brancos contrastavam com os <strong>to</strong>ns quentes do céu, e uma leve neblina prateada dava a<br />
ilusão de estarem suspensos no ar, como ilhas em mar al<strong>to</strong>.<br />
Respirou fundo e levan<strong>to</strong>u-se. Apesar de já repetir este ges<strong>to</strong> há eternidades sentia sempre<br />
uma vertigem, uma sensação de pressão no pei<strong>to</strong>. Por baixo dele estava um vale imenso<br />
onde, através da neblina, se conseguiam distinguir um rio serpenteante e um pequeno<br />
conjun<strong>to</strong> de pon<strong>to</strong>s - a sua aldeia.<br />
Enquan<strong>to</strong> olhava para a sua aldeia e pensava em <strong>to</strong>dos aqueles que lhe eram queridos, o céu<br />
escureceu. Os <strong>to</strong>ns vermelhos foram substituídos pelo negro, e pequenas estrelas foram<br />
aparecendo. Estava na altura.<br />
Quando a lua ficou <strong>to</strong>talmente a descober<strong>to</strong>, tudo começou. O seu corpo alongou-se até<br />
aparecer uma cauda, das suas costas brotaram duas asas, enormes e reptilianas, as suas<br />
mãos e pés transformaram-se em garras, e perdeu as feições humanas.<br />
O último passo desta fabulosa transformação foi o aparecimen<strong>to</strong> das escamas. Vermelhas,<br />
luzidias e espessas. E tudo is<strong>to</strong> se tinha passado em apenas alguns segundos, como uma<br />
explosão mágica. Era esta a sua bênção (ou maldição), <strong>to</strong>das as noites, ao aparecer a lua,<br />
perdia a forma humana transformava-se nesta criatura mítica. Sem dor ou perda da sua<br />
consciência humana.<br />
Endirei<strong>to</strong>u o corpo e distendeu as asas, mostrando <strong>to</strong>da a sua magnitude sob a luz do luar.<br />
Começou a movimentá-las, pouco a pouco, como que a testá-las. Quando parou, deu um<br />
passo em frente e deixou-se cair através da neblina. Emergiu um pouco mais à frente,<br />
planando suavemente.<br />
Adorava voar, sentir o ar fresco da noite no corpo. Ser livre e planar sobre o mundo. Mas esta<br />
seria a sua última noite. Tudo acabaria hoje.<br />
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Pensou em como tudo começara e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Na altura não passava<br />
de um jovem mimado e caprichoso. E o seu maior capricho era conseguir a imortalidade.<br />
Infelizmente esse capricho tinha-lhe sido concedido por uma maga de uma terra distante - a<br />
mesma que ele ia hoje visitar.<br />
Olhou em volta e viu que já estava na foz do rio. À sua frente estendia-se o oceano. O mesmo<br />
que há cem anos atrás tinha percorrido. Continuava belo e infini<strong>to</strong>. Só que agora a viagem<br />
seria mais rápida. As suas asas eram bem mais velozes que qualquer barco. E o aper<strong>to</strong> no<br />
seu coração mais forte.<br />
Deixou o verde dos campos e embrenhou-se no azul profundo. O azul do mar e o negro do<br />
céu fundiam-se, apenas distin<strong>to</strong>s pela lua e o seu reflexo.<br />
Enquan<strong>to</strong> percorria a vastidão que o separava do seu destino, apenas um pensamen<strong>to</strong> lhe<br />
ecoava na mente. As palavras da velha maga - “A imortalidade apenas existe sob a forma do<br />
dragão. Quando deixares de te transformar morrerás”. Na altura tinha rido, nunca tinha<br />
considerado a hipótese de morrer. Mas nesta altura parecia-lhe o único descanso possível.<br />
Vieram-lhe à memória pequenos flashes do ritual que o tinha transformado. Um punhal<br />
lívido manchado de vermelho carmim. A dor flamejante. E o medalhão. O medalhão de prata<br />
resplandecente, com um dragão entalhado a rodear o seu sangue cristalizado.<br />
Respirou fundo e concentrou-se no voo. Precisava de <strong>to</strong>dos os seus sentidos para atingir o<br />
seu objectivo. Perscru<strong>to</strong>u a escuridão durante horas até o encontrar: a <strong>to</strong>rre da maga.<br />
Resplandecia em <strong>to</strong>ns pálidos de azul, no coração do oceano, erguendo-se vários metros<br />
acima dele. Parecia ondular como uma miragem, uma ilusão.<br />
Rodeou-a várias vezes até encontrar a entrada, escondida pela rebentação das ondas. Ao<br />
entrar, pequenos fiapos de espuma branca caíam sobre ele. Encontrava-se agora numa<br />
ampla gruta iluminada pela luz bruxuleante dos archotes. Numa reentrância da rocha<br />
encontrava-se uma escada esculpida, que subia numa espiral apertada. Ele subiu. Pé ante<br />
pé, pouco a pouco, pois o espaço exíguo não lhe permitia voar. À medida que se distanciava<br />
da gruta o ambiente ficava gradualmente mais iluminado, com uma luz branca que o cegava.<br />
Sentiu o coração a ficar cada vez mais apertado. Estava a caminhar para a sua morte.<br />
No <strong>to</strong>po das escadas encontrava-se um salão imenso, sem janelas para o exterior, e de um<br />
branco resplandecente. As paredes estavam cobertas por medalhões que tremeluziam, cada<br />
um com um pequeno cristal colorido no seu centro - o selo de sangue. No centro do salão<br />
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estava um caldeirão negro e ao seu lado outro dragão. De cor negra, esbelta e altiva, tinha os<br />
olhos verdes-esmeralda fixos nele. Era a maga.<br />
Ele aproximou-se sem quebrar o olhar e falou:<br />
“Desde a última vez que aqui estive, mui<strong>to</strong> mudou. Já vivi o suficiente para aprender que não<br />
quero viver para sempre. Já vi partir <strong>to</strong>dos aqueles que amei, já não tenho nada aqui. Quero<br />
parar de chorar e partir em paz. Quero quebrar o selo.”<br />
Ela anuiu. Se esse era o seu desejo não o iria impedir. Levan<strong>to</strong>u-se e dirigiu-se a uma das<br />
paredes, a um medalhão. Este tinha a pedra da mesma cor que as escamas dele, vermelho<br />
profundo. Vol<strong>to</strong>u para jun<strong>to</strong> dele e pôs-lho em volta do pescoço.<br />
“Para quebrares o selo tens de o expor à luz do amanhecer. Quando o fizeres partirás para<br />
sempre. Não há volta possível”.<br />
Ele aper<strong>to</strong>u o medalhão com força e sorriu. Assim seria.<br />
Desceu as escadas e saiu da gruta, voando com crescente energia. Procurou terra o mais<br />
rápido possível, com o céu a <strong>to</strong>rnar-se gradualmente mais claro e o mar mais resplandecente.<br />
Quando alcançou a foz do seu rio os primeiros raios da manhã começavam a despontar,<br />
enchendo o céu de <strong>to</strong>ns pastel. Tinha de alcançar o cimo da montanha antes do amanhecer.<br />
Quando finalmente o alcançou olhou para a sua aldeia. Fechou os olhos e recordou <strong>to</strong>dos<br />
aqueles que amou. Não viu o nascer do sol, mas sentiu-o no seu corpo.<br />
E nesse momen<strong>to</strong>, enquan<strong>to</strong> no coração do oceano um dragão se transformava numa maga<br />
de longos cabelos negros e olhos verdes-esmeralda, ele desvanecia. Até que no final apenas<br />
restava um rastro cintilante de poeira avermelhada.<br />
-<br />
Bubbles<br />
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Con<strong>to</strong> Infantil – Dragão<br />
Era uma vez num reino distante<br />
um pequeno dragão de tamanho gigante.<br />
Por tudo e por <strong>to</strong>dos era temido<br />
mas tudo o que queria era ter um amigo.<br />
Na aldeia vizinha vivia um rapaz<br />
menino de rua de nome Tomás.<br />
Comparado com os outros era pequeno,<br />
o pequeno Tomás, magro e moreno.<br />
O dragão era verde como a relva do monte<br />
e voava ao longe no horizonte.<br />
O Tomás intrigado não percebia<br />
o que era aquilo que ali via.<br />
Curioso e animado dirigiu-se para o monte<br />
Subindo a rua, atravessando a ponte<br />
O dragão divertido sozinho voava<br />
sem fazer ideia do que lhe esperava.<br />
Cada vez mais se foi aproximando,<br />
alegre, contente e assobiando.<br />
O dragão, com boa audição<br />
parou de voar <strong>to</strong>cando no chão.<br />
“Que som é este” pensou o dragão<br />
vendo o que vinha na sua direcção.<br />
Depressa voou em direcção ao Tomás,<br />
que ousado era aquele rapaz!<br />
Tomás vendo o dragão<br />
riu-se e sen<strong>to</strong>u-se no chão.<br />
“O que és tu, grande animal?”<br />
O dragão intrigado achava aquilo anormal!<br />
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O menino não gritava nem fugia,<br />
não podia acreditar naquilo que via.<br />
“Eu sou o dragão verde do monte!<br />
Vôo sozinho no horizonte<br />
E tu quem és, menino ousado?<br />
Que fazes aqui despreocupado?”<br />
“Sou o Tomás, mui<strong>to</strong> prazer.<br />
Vim aqui para te ver!<br />
Não tenho amigos nem o que comer<br />
durmo na rua mesmo se chover.<br />
Vivo de esmolas e compaixão<br />
quero ser teu amigo meu grande dragão!”<br />
“Pequeno Tomás, meu rapazinho<br />
assim como tu eu vivo sozinho.<br />
Fico contente por falar contigo<br />
pois como tu não tenho um amigo.”<br />
O pequeno Tomás, alegre, contente<br />
tinha um novo amigo à sua frente.<br />
Um amigo gigante, fora do normal<br />
mas também um amigo não era habitual.<br />
“Grande dragão, quero ser teu amigo,<br />
pega em mim, leva-me contigo!”<br />
O grande dragão nem podia acreditar,<br />
o seu grande sonho prestes a se concretizar.<br />
Pegou no menino e bateu as asas<br />
voando bem al<strong>to</strong> por cima das casas.<br />
Com gargalhadas e mui<strong>to</strong>s sorrisos<br />
voaram felizes os dois amigos.<br />
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-<br />
Archie<br />
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Acordar<br />
Acordou, e de um momen<strong>to</strong> para o outro sentiu a água quente do chuveiro arrancar-lhe o<br />
ultimo vestígio de sono do seu corpo. Acordou sem dificuldades, sentiu o corpo seco debaixo<br />
de um roupão confortável. No quar<strong>to</strong> abriu a janela para um sol resplandecente que não lhe<br />
magoou os olhos, o ga<strong>to</strong> não lhe mordia as pernas, mas antes sentava-se ao seu lado<br />
ronronando levemente. A roupa e o seu corpo uniram-se. Estava confortável como nunca<br />
havia estado. Os livros estavam leves debaixo do seu braço, as palavras neles escritas não<br />
faziam sentido mas ele não se importava. O cabelo ao ven<strong>to</strong> não ia parar irritantemente à<br />
frente dos olhos, nesse dia permanecia no sítio que lhe era destinado. O café soube-lhe bem,<br />
não estava quente, não estava frio. A barriga não o incomodava quando estava sentado no<br />
café. O copo de água era fresco e não sabia a nada. O jornal não fazia sentido, mas ele lia-o<br />
religiosamente como se fosse algo normal. Não havia barulho no café senão o dos pássaros lá<br />
fora, carros passavam na rua mas o barulho não o irritava. Estava em paz. Levan<strong>to</strong>u-se sem<br />
dificuldade, o dinheiro apareceu no balcão, disse até logo ao velho e foi-se embora. Os sons<br />
soavam-lhe como musica e não como o som irritante e desconcertante que <strong>to</strong>dos os dias lhe<br />
moía o cérebro quando saia à rua. Não tinha dores nos pés, não tinha dores nas pernas, não<br />
se sentia fatigado, mas sim rejuvenescido, estranhamente não o estranhou. Caminhou<br />
solenemente com os olhos colados no sol que não o magoava. O ven<strong>to</strong> não lhe atirava a roupa<br />
para trás causando-lhe desconfor<strong>to</strong>. Não estava frio. Deu-lhe uma vontade de correr para<br />
uma praia só porque imaginou a frescura de um mergulho no mar. Fechou os olhos e lá<br />
estava ele, mergulhado no meio das ondas, o corpo fresco mas sem dor, as ondas eram<br />
enormes mas não perigosas sentiu algo nas pernas que não o deixava afundar-se mas não<br />
lhe ligou, era algo que o empurrava para cima, mas apenas o suficiente para ficar com a<br />
cabeça de fora da agua, ficou lá durante horas e horas, a pele não lhe ficou roxa, o corpo não<br />
teve frio, caminhou para fora da agua, abriu os olhos e encontrou-se de novo na rua.<br />
Continuou e pôs-se a pensar, enquan<strong>to</strong> caminhava quase de olhos fechados, que não houve<br />
necessidade de apanhar o au<strong>to</strong>carro nesse dia, nunca mais iria apanhar o au<strong>to</strong>carro. Is<strong>to</strong><br />
deu-lhe um sentimen<strong>to</strong> de alegria pois odiava o au<strong>to</strong>carro fechado onde <strong>to</strong>da a gente cheirava<br />
mal. Era abafado, escuro, poeiren<strong>to</strong>, barulhen<strong>to</strong> e apertado, odiava o au<strong>to</strong>carro e o seu<br />
condu<strong>to</strong>r. Odiava tudo o que lhe tirava o uso às pernas e lhe cortava a decisão de onde parar<br />
e onde andar. Sentiu-se de repente atrasado, cada vez mais atrasado, correu sem parar,<br />
correu mais do que <strong>to</strong>das as outras pessoas que corriam arrastando malas, crianças ao colo<br />
que não lhes ligavam nenhuma nem desejavam correr, algumas arrastavam carcaças<br />
desfiguradas de cônjuges, namorados ou namoradas enquan<strong>to</strong> gritavam desalmadamente<br />
que tinham de ir mais rápido, mui<strong>to</strong> rápido, tinham de lá chegar mais rápido. Correu mais<br />
rápido que eles <strong>to</strong>dos, saltando sem dificuldades sobre bancos e corpos deitados no passeio<br />
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que não aguentaram a correria e se <strong>to</strong>rnaram vagabundos. Chegou, sen<strong>to</strong>u-se para<br />
descansar e num segundo o seu corpo recuperou, perdeu o suor e o mau cheiro. Olhou para<br />
as pessoas que chegavam a correr e a sentarem-se, elas não recuperavam, ficavam<br />
molhadas, submersas no seu esforço e suor, correram tan<strong>to</strong> para apenas chegarem a um<br />
sítio que nunca iria a lado nenhum. Perguntaram-lhe aos gri<strong>to</strong>s se ele tinha vis<strong>to</strong>, se tinha<br />
lido, se tinha fei<strong>to</strong>, se tinha pensado, berravam-lhe na cara, quase cuspindo enquan<strong>to</strong><br />
gritavam. Tentaram agarrar-lhe o pescoço para o abanar e o obrigar a responder, mas havia<br />
uma barreira invisível que os impedia de lhe <strong>to</strong>carem. Calmamente fi<strong>to</strong>u-os, respondeu-lhes<br />
que não, que não havia fei<strong>to</strong> nada daquilo que eles queriam, ordenou-lhes que<br />
desaparecessem e eles desapareceram. Não se sentiu nunca intimidado com eles naquele dia.<br />
Naquele dia ele mandava, tudo lhe saia bem, tudo lhe corria bem. “Um bom dia”, pensou ele<br />
levantando-se da cadeira e saindo de novo para encontrar <strong>to</strong>da a gente parada à espera de<br />
uma voz que lhes dissessem para onde ir.<br />
De repente uma voz saiu de uma janela qualquer. Ordenou-lhes que se dirigissem para as<br />
aulas. Não sabia se teria sido uma voz tirana ou apenas um sinal sonoro, ou mesmo uma voz<br />
imaginária dentro das suas cabeças que lhes dizia as horas correctas para se moverem para<br />
os seus lugares. Neste dia a voz não o irri<strong>to</strong>u, pelo contrário a voz confor<strong>to</strong>u-o. Contente por<br />
ter ouvido algo que lhe dissesse o que ele queria, dirigiu-se à sala de aula. Estava a sala<br />
vazia, entrou, escolheu o lugar ao lado da janela onde uma brisa agradável entrava e o sol lhe<br />
batia apenas nas pernas. A brisa nesse dia não lhe cheirava mal, não tinha o cheiro das<br />
máquinas que lá fora costumavam trabalhar. O sol não o chateava nem lhe dava calor a<br />
mais. Pelo contrário, aquecia-o até ao pon<strong>to</strong> de ele ficar mole e descontraído.<br />
O professor era o mesmo de sempre, mas tinha perdido o ar malvado, andava descontraído,<br />
sorrindo para os alunos que tinham aparecido na sala sem mais nem menos.<br />
Para sua admiração o professor sen<strong>to</strong>u-se na mesa com as pernas cruzadas, falou<br />
alegremente aos alunos dizendo que naquele dia iriam descobrir algo que não sabiam.<br />
Iriam pensar por eles próprios disse o professor. Os alunos con<strong>to</strong>rceram-se<br />
desconfortavelmente nas suas cadeiras. Pensar por eles próprios, usar pensamen<strong>to</strong>s<br />
criativos, que ideia nova era esta que eles não compreendiam? O professor rindo-se das suas<br />
figuras como quem ri de um ga<strong>to</strong> que corre atrás de uma mosca acalmou-os.<br />
- Calma gente… é apenas para vocês descobrirem que podem pensar como aqueles que vocês<br />
estudam, nunca serão avaliados pelo vosso pensamen<strong>to</strong>, para dizer a verdade, vocês nunca<br />
foram em algum momen<strong>to</strong> da vossa vida avaliados pela maneira como pensam.<br />
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Imediatamente os alunos calaram-se e ficaram tranquilos à excepção de alguns sussurros de<br />
admiração.<br />
Acordado pela brisa agradável da janela, o rapaz alegrou-se, finalmente iria ser senhor dos<br />
seus pensamen<strong>to</strong>s, iria poder expor o que achava.<br />
O professor disse que deixaria os alunos escrever sobre o que quisessem, desde que fosse<br />
algo relacionado com algo que amassem.<br />
Com is<strong>to</strong> ainda mais contente o rapaz ficou, escrever algo sobre as coisas que amava não<br />
seria difícil para ele. Pôs-se direi<strong>to</strong> na cadeira e pegou na caneta para começar a escrever no<br />
papel. Olhou em frente e viu os outros alunos parados, a olharem uns para os outros sem<br />
saberem o que fazer. Pensou se eles amariam alguma coisa, pensou se eles estariam<br />
dispos<strong>to</strong>s a dizer no papel o que amavam no que amavam.<br />
Quando baixou a cabeça para o papel para começar a escrever sobre o que adorava e achava<br />
tão fascinante sobre mergulhos no mar, no<strong>to</strong>u pelo can<strong>to</strong> do olho uma rapariga que nunca<br />
tinha vis<strong>to</strong>. Sentada à janela a apanhar uma leve brisa enquan<strong>to</strong> o sol lhe aquecia as pernas,<br />
ela apoiava o cara na mão enquan<strong>to</strong> esperava que os outros acabassem de escrever. Ela tinha<br />
um molho de páginas escritas em cima da mesa. Ele pensou como é que ela poderia escrever<br />
sobre algo que amava tão rapidamente, o que será que ela amava tan<strong>to</strong> ao pon<strong>to</strong> de poder<br />
dizer rapidamente tantas coisas sobre o que quer que amasse!?<br />
Ele olhou para ela demoradamente. Tinha roupas que pareciam uma segunda pele de tão<br />
adequadas que eram, uma combinação da cor verde e da cor laranja nas roupas cobria-lhe o<br />
corpo. Os olhos verdes e grandes olhavam para a janela em direcção ao mar que se via da<br />
janela. O cabelo era ligeiramente encaracolado, ou talvez ondulado pelos ombros. Não parecia<br />
um cabelo normal, era vivo, se ela se mexia o cabelo mexia-se com ela, tinha uma cara vulgar<br />
mas linda, era uma daquelas caras que adquiria beleza quando fazia uma expressão, se ela<br />
sorria ou suspirava, a cara dela mudava e apareciam novos aspec<strong>to</strong>s que não tinham antes<br />
aparecido. Era como olhar e estar à espera que aparecessem umas covinhas na cara dela<br />
quando sorria e se espreguiçava por estar tão preguiçosa.<br />
O rapaz apaixonou-se logo ali, mas não era amor, era fascinação, paixão. Olhava-a sem<br />
conseguir desviar os olhos, ela deixou escapar um sorriso quando viu que ele a olhava.<br />
O rapaz decidiu escrever sobre ela, achou logo ali que se tinha apaixonado e que a amava. Se<br />
tinha que escrever sobre algo que amava então porque não escrever sobre ela, pensou ele.<br />
Concentrou-se e pousou a caneta no papel para começar a escrever. Mas quando ia para<br />
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começar a escrever lembrou-se que não sabia nada sobre ela, nem sequer o seu nome.<br />
Pensou que mesmo assim poderia escrever algo sobre ela, afinal de contas amava-a. Olhou<br />
de novo para ela e ficou de novo calmo e ten<strong>to</strong>u escrever. Lentamente o sol desapareceu da<br />
sua janela, a tarde avançava e o sol também. Sem o sol o ven<strong>to</strong> <strong>to</strong>rnou-se frio e ele fechou a<br />
janela, minu<strong>to</strong>s passaram e o papel estava em branco. O rapaz sentiu-se a ficar abafado<br />
naquele can<strong>to</strong>, tirou a camisola pois estava cheio de calor. Quando a tirou no<strong>to</strong>u que a T-<br />
shirt estava molhada de suor. Sentiu-se desconfortável. O suor incomodava-o, fazia com que<br />
se sentisse sujo, inaceitável. Ten<strong>to</strong>u mesmo assim escrever, olhou para a rapariga para se<br />
acalmar, mas quando levan<strong>to</strong>u a cabeça ela olhava-o com o olhar triste, o sol também tinha<br />
desaparecido da sua janela e o ven<strong>to</strong> <strong>to</strong>rnara-se frio.<br />
O professor entrara na sala com uma cara severa dizendo:<br />
- O sol desapareceu, o ven<strong>to</strong> <strong>to</strong>rnou-se frio, es<strong>to</strong>u chateado, espero que tenham escri<strong>to</strong><br />
alguma coisa que me agrade.<br />
O rapaz olhou para o seu papel onde inconscientemente escreveu sem parar “ Não conheço o<br />
que amo”. Escreveu is<strong>to</strong> em páginas e páginas e páginas. Entretan<strong>to</strong> o professor pedia as<br />
folhas de volta, <strong>to</strong>dos tinham escri<strong>to</strong> algo, a rapariga entregou uma folha com uma frase<br />
apenas e atirou as outras pela janela.<br />
O professor dirigiu-se a ele com uma cara severa dizendo:<br />
- Isso demora mui<strong>to</strong> ou queres escrever mais uma vez a mesma frase!?<br />
Entregou as folhas e correu lá para fora ouvindo o professor a gritar entre risos sádicos e<br />
gozões:<br />
- Para onde corres seu burro!? Até parece que tens algo à tua espera …<br />
Chegando lá fora pergun<strong>to</strong>u aos berros onde estava ela, para que lado tinha ido. Obrigou-os<br />
a responder quando os agarrou pelo pescoço. Apontaram-lhe a direcção certa e ele correu,<br />
correu ultrapassando <strong>to</strong>dos, até que a viu ao longe. Estranhou ter demorado tan<strong>to</strong> tempo a<br />
apanhá-la vis<strong>to</strong> que ela caminhava lentamente. Ten<strong>to</strong>u correr mais depressa, queria alcançá-<br />
la a <strong>to</strong>do o cus<strong>to</strong> mas quan<strong>to</strong> mais corria, quan<strong>to</strong> mais desejava <strong>to</strong>car-lhe, mais ela parecia<br />
distante. Desesperado ten<strong>to</strong>u puxá-la, estava a centímetros dela mas mesmo assim parecia<br />
não conseguir <strong>to</strong>car-lhe. Chorando ajoelhou-se e gri<strong>to</strong>u para que ela parasse e o ouvisse.<br />
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A rapariga vol<strong>to</strong>u-se para trás e pergun<strong>to</strong>u-lhe porque corria ele quando caminhar na<br />
direcção certa bastava. Porque gritava ele quando falar bastava.<br />
O rapaz levan<strong>to</strong>u-se lentamente sem nunca tirar os olhos da cara da rapariga dizendo-lhe<br />
que a amava, que a queria conhecer porque a amava, queria saber tudo sobre ela porque a<br />
amava.<br />
A rapariga desiludida respondeu com uma pergunta:<br />
- Como podes amar o que não conheces!? Como podes tu querer conhecer algo que dizes<br />
amar, quando podes vir a odiar quando passares a conhecer!? Tu não me amas, nem nunca<br />
me amarás, poderás vir a odiar-me, mas nunca me amarás porque o que amas não é eu, mas<br />
outra pessoa com a minha cara…<br />
O rapaz desiludido mas calmo, pergun<strong>to</strong>u à rapariga o que tinha ela escri<strong>to</strong> no papel que<br />
entregou ao professor. Ela respondeu que tinha escri<strong>to</strong> que amava quem se dava ao luxo de<br />
perder horas e horas a conhecer as coisas antes de as amar.<br />
Fechou os olhos zangado com as suas asneiras, quando os abriu já lá não estava a rapariga,<br />
ao longe ela caminhava debaixo do sol com a brisa a parecer que a empurrava para longe<br />
dele.<br />
Levan<strong>to</strong>u-se na sombra, uma nuvem teimava em tapar o sol por cima dele <strong>to</strong>rnando o ven<strong>to</strong><br />
frio, ven<strong>to</strong> que passou de uma brisa para um ven<strong>to</strong> tão forte que parecia querer arrancar-lhe<br />
tudo o que tinha.<br />
Olhou em volta e viu de novo as pessoas a correr, a arrastarem carcaças, e no meio de uma<br />
delas encontrou um homem triste, desesperado arrastando a carcaça desfigurada da sua<br />
mulher. Era horrível, ninguém dizia nada, <strong>to</strong>dos passavam a correr pelo pobre homem que<br />
carregava a carcaça, deambulando pelo fim de tarde escuro e ven<strong>to</strong>so, sem rumo o homem<br />
chorava.<br />
O rapaz dirigiu-se a ele e pergun<strong>to</strong>u se ele queria ajuda, o homem respondeu:<br />
- Que sabes tu!? Eu não sabia, eu não sabia. Ela morreu e eu não sabia, não sabia nada,<br />
como posso lembrar-me dela se não é dela que eu me lembro, se não posso carregar as suas<br />
memórias carrego a sua carcaça pois era isso apenas o que eu conhecia…<br />
Vol<strong>to</strong>u a casa e dei<strong>to</strong>u-se, adormeceu.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 61 de 117
Acordou, levan<strong>to</strong>u-se e deu um passo, bateu com a perna na cadeira, injuriou tudo e <strong>to</strong>dos,<br />
enquan<strong>to</strong> abria a janela o ga<strong>to</strong> mordia-lhe os pés a dizer que queria brincar. Doíam-lhe os<br />
olhos da luz da janela, chovia lá fora. A sua mãe entrou no quar<strong>to</strong> a berrar com ele para ele<br />
se despachar para ir para as aulas. A água quente do chuveiro aleijava-lhe as costas, a roupa<br />
estava desconfortável e amarrotada porque não se tinha dado ao trabalho de a dobrar antes<br />
de se deitar na noite anterior.<br />
Levou a mão ao bolso onde encontrou a carta da sua agora ex-namorada, leu de relance mais<br />
uma vez as primeiras frases:<br />
Não me conheces, nunca me conheceste, nunca me compreendeste. Desculpa acabar contigo,<br />
- eu amo te mas tu nunca me amaste, pensaste que eu era outra coisa, outra pessoa…<br />
Foi para a porta de casa e procurou o guarda-chuva, não havia guarda-chuva. Tinha-se<br />
esquecido que o tinha perdido. Pensou para com ele:<br />
Devia ter ficado na cama, é mais agradável sair de casa no sonho do que hoje …<br />
Ancalagon<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 62 de 117
inúteis<br />
De que servem as palavras<br />
quando nada dizem?<br />
Todas as palavras deviam<br />
apenas trazer boas sensações.<br />
Deviam amar…<br />
Beijar…<br />
Cuidar…<br />
Sorrir…<br />
Podiam até saber chorar<br />
Desde que as suas lágrimas soubessem aliviar a nossa dor.<br />
Quando elas gritam<br />
e já não murmuram os sentimen<strong>to</strong>s<br />
<strong>to</strong>rnam-se incómodas<br />
acho que até mesmo obsessivas.<br />
Perdem a doçura<br />
e a simplicidade<br />
que as caracterizavam<br />
porque são mais intensas<br />
e essa intensidade<br />
está-lhes impregnada na voz<br />
por isso não a conseguem ocultar.<br />
Os dedos tremem<br />
quando as desenham nas folhas<br />
com receio do impac<strong>to</strong><br />
que elas provocam<br />
quando caem sem rede no papel.<br />
São como granadas<br />
que cobrem o corpo de estilhaços profundos<br />
em cada guerra travada<br />
nas catacumbas da alma.<br />
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Têm tanta força<br />
mesmo quando as liber<strong>to</strong><br />
de uma garganta enfraquecida.<br />
Sabem reabrir <strong>to</strong>das as feridas<br />
mal saradas num simples ges<strong>to</strong><br />
só precisam de ser ditas<br />
com a mão cravada no pei<strong>to</strong>.<br />
Emocionam-se com um sorriso<br />
oferecido na madrugada.<br />
Quebram-se em mil pedaços<br />
com o silêncio<br />
que ecoa na noite.<br />
Então, porque nada dizem?<br />
Mesmo quando beijam as estrelas<br />
antes de adormecer<br />
e com o <strong>to</strong>que dos seus lábios<br />
tentam <strong>to</strong>rnar o céu num lençol sedoso.<br />
Quando cantam baixinho<br />
para velar o teu sono <strong>to</strong>das as noites<br />
e acordam bem cedo<br />
com mel pingando da boca.<br />
Quando pintam os teus sonhos<br />
com as imagens mais belas<br />
que os olhos podem desfrutar.<br />
Quando envoltas numa corrente salgada<br />
imaginam as mais loucas ilusões<br />
para atiçar os teus sentidos.<br />
Se as palavras conseguem dizer tan<strong>to</strong><br />
Porque ainda preferes sentir o meu silêncio?<br />
-<br />
Bluiela<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 64 de 117
Jack Bravo e os Ninjas do Rectângulo Dourado<br />
Los Angeles, Califórnia. 1986.<br />
A rua estava escura. A única luz provinha de um velho candeeiro que por vezes se<br />
apagava sozinho voltando passado uns segundos à vida.<br />
Manteve-se no escuro, incógni<strong>to</strong>, aten<strong>to</strong> ao mais pequeno pormenor. Os prédios<br />
abandonados e o lixo que voava com a pequena brisa da noite davam ao local um aspec<strong>to</strong><br />
assombrado. Fora Pigmeu que escolhera o local. Que raio de nome de código. Quem escolhia<br />
aquelas coisas? Um barulho! Passos. Preparou-se. Ele tinha chegado.<br />
- Tens lume?<br />
- Fumar mata.<br />
- Toda a gente sabe que isso é treta.<br />
Pigmeu cujo verdadeiro nome era Harvey Pfeifer (não mui<strong>to</strong> melhor que o seu código,<br />
na verdade) deu uma gargalhada nervosa enquan<strong>to</strong> acendia um cigarro. Curiosamente era<br />
bastante al<strong>to</strong> e mui<strong>to</strong> magro. Careca, podia dizer-se que era parecido com Telly Savalas, o<br />
célebre Kojak.<br />
- Eles sabem onde está. Vão recuperá-lo em breve. Tens de agir rapidamente.<br />
- Merda.<br />
- A Jade está…<br />
Ao longe alguém fazia mira à ponta incandescente do cigarro. Primeiro ouviu o silvar.<br />
Rápido e mortal. Um segundo mais tarde Harvey caía mor<strong>to</strong> ainda com o Marlboro na boca e<br />
uma seta enfiada no pescoço. Jack Bravo sabia o que aquilo significava. Eles estavam ali.<br />
- Eu disse-te que isso matava.<br />
Harvey estava mor<strong>to</strong> e a localização de Jade tinha ido com ele para o grande paraíso<br />
dos espiões. A informação que ele precisava. Raios. Mas também o que importava? Sabe<br />
Deus quan<strong>to</strong>s estavam ali à espera de o aniquilar também. A sua única esperança era o<br />
escuro. Começou a correr. Ouvia os “zzzt” quando as setas passavam a centímetros do seu<br />
pescoço ou pei<strong>to</strong>. Tinha de continuar a correr mas ninguém é assim tão rápido.<br />
- Não pode acabar assim!<br />
Sentiu o sangue a escorrer do braço onde a estrela de metal se cravara. Luz. Estava a<br />
sair do bairro. A voltar para o mundo. Duas luzes fortes. Mo<strong>to</strong>r.<br />
- Oh não!<br />
O carro bateu-lhe com força. Jack bateu no pára-brisas e rolou para o chão. Alguém<br />
saiu. Era novo. Um pu<strong>to</strong> gordo.<br />
- Temos que sair daqui!<br />
- Você está bem?<br />
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Jack agarrou o miúdo borbulhen<strong>to</strong> pela camisa e puxou-o para si.<br />
- JÁ!!!<br />
Levan<strong>to</strong>u-se e entraram os dois no carro. Nesse momen<strong>to</strong> uma seta reben<strong>to</strong>u com o<br />
vidro e cravou-se no banco do passageiro a uns centímetros do seu pei<strong>to</strong>.<br />
- Ouve bucha se não queres morrer virgem aconselho-te a carregares no pedal.<br />
O miúdo parecia estar bloqueado mas nesse momen<strong>to</strong> decidiu-se e o Ford Torino<br />
vermelho de 74 arrancou deixando um cheiro a borracha queimada…e o sangue de Jack<br />
Bravo no asfal<strong>to</strong>.<br />
II<br />
John Fattapollus era o clássico jovem desajustado cujos amigos eram outros<br />
desajustados como ele. Gozado no liceu pelos “atletas” e ignorado pelas raparigas,<br />
Fattapollus era tão pouco “fixe” que um olhar de uma “cheerleader”, mesmo que de desprezo,<br />
era o pon<strong>to</strong> al<strong>to</strong> do seu dia.<br />
- Tens alguma coisa na t-shirt.<br />
Mesmo ferido os sentidos de Bravo continuavam alerta.<br />
- É cerveja…<br />
Ligou o rádio. Bonnie Tyler começou a cantar “I Need A Hero”. Esta era agora<br />
oficialmente a pior noite da sua vida. Per<strong>to</strong> das 21:00 decidira que tinha de fazer algo. Agir!<br />
Mudar o seu estatu<strong>to</strong> no liceu. Per<strong>to</strong> das 22.30, depois de mui<strong>to</strong> pensar, roubara as chaves<br />
do Ford Torino enquan<strong>to</strong> os pais dormiam e saíra para a festa do ano em casa de Chad<br />
Lowell, o capitão da equipa de futebol. Às 23.00, exactamente cinco minu<strong>to</strong>s depois de<br />
chegar, fora expulso, mas não antes de Chad lhe despejar um jarro de cerveja em cima como<br />
punição por ter entrado à socapa. Uma curva errada tinha-o levado a este bairro. Agora tinha<br />
um tipo ensanguentado dentro do carro, uma seta no banco e o pára-brisas destruído.<br />
- Quem é você?<br />
- Não precisas de saber isso. Para onde vais?<br />
- Hospital!<br />
- Tu és retardado, não és, bucha?<br />
- O meu nome não é bucha, é…<br />
- Achas que vou aparecer no hospital com uma "shaken" no braço?<br />
- Então talvez o possa deixar aqui…<br />
- Pu<strong>to</strong> lamen<strong>to</strong> imenso mas tens de me arranjar um sítio. Eles não sabem quem tu és.<br />
É perfei<strong>to</strong>. Tenho de tratar dis<strong>to</strong>. Preciso de pensar.<br />
- Eu não…<br />
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- O meu nome é Jack Bravo. Sou agente secre<strong>to</strong>. Ajuda-me e estarás a ajudar o teu<br />
país. Confia em mim.<br />
- Eu não posso aparecer em casa com um tipo a sangrar a dizer que é da CIA.<br />
- Ouve miúdo tu atropelaste-me. E nunca mas nunca digas que eu sou da CIA. Esses<br />
tipos são uns maricas. Agora se não queres ter o governo atrás de ti arranja-me um sítio.<br />
- Se você é agente secre<strong>to</strong> não tem uma base ou algo do género.<br />
- Sim e também lá tenho uma russa com um grande par de mamas com um Martini<br />
preparado. É crucial que me mantenha fora de circulação. Pelo que aconteceu hoje é provável<br />
que haja um traidor entre nós. Conforma-te pu<strong>to</strong>. És tu e mais ninguém.<br />
Passado meia hora Fattapollus batia à porta de Zero. Zero era al<strong>to</strong> e doentiamente<br />
magro. Além disso era albino. Não era uma combinação atraente para o sexo opos<strong>to</strong>. Não era<br />
surpreendente que fosse o melhor amigo de Fattapollus. Abriu a porta num pijama “Star<br />
Wars”. Era fanático pela criação de George Lucas, que era para ele um Deus.<br />
- Fat? O que é que queres a esta hora?<br />
- Preciso da tua ajuda. Os teus pais?<br />
- Devem estar a chegar a Maui.<br />
- Óptimo.<br />
Depois de tentar explicar o mais rápido possível o que acontecera pediu a Zero para o<br />
ajudar a levar Jack para dentro. O bairro de Zero era respeitável e felizmente àquela hora<br />
<strong>to</strong>dos dormiam.<br />
- Vamos levá-lo para o quar<strong>to</strong> dos meus pais.<br />
Jack caiu na cama quase sem fôlego.<br />
- Branquinho traz-me uma garrafa de whisky, pensos e o es<strong>to</strong>jo de costura.<br />
- Fat, este tipo não é mui<strong>to</strong> simpático.<br />
- Ainda não viste nada, branca de neve. Agora despacha-te – ordenou Bravo.<br />
Depois de Zero lhe dar o que pedira, Jack ordenou que o deixassem sozinho. Quando<br />
chegaram à cozinha Zero começou a preparar o café. Era óbvio que nenhum deles ia dormir<br />
naquela noite.<br />
sarilhos.<br />
momen<strong>to</strong>.<br />
- Es<strong>to</strong>u mor<strong>to</strong>. Viste o estado do carro?<br />
- Tirando a seta…ok não vale a pena escondê-lo, tens razão estás em grandes<br />
- Não sei o que vou fazer. Tenho de voltar para casa. Eles podem acordar a qualquer<br />
- Tenho uma ideia – exclamou zero subitamente.<br />
- Força!<br />
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Nesse momen<strong>to</strong> ouviram Jack a gritar, tendo o agente secre<strong>to</strong> entrado, de seguida,<br />
numa <strong>to</strong>rrente de insul<strong>to</strong>s supostamente ao seu braço. Nenhum deles teve coragem para se<br />
mexer.<br />
- O homem tem um vocabulário extenso – disse Zero, ainda mais pálido.<br />
- Zero, o carro!<br />
- Ah sim. Roubá-lo.<br />
- Eu já fiz isso!<br />
- Não, tu pediste-o emprestado! Vamos largá-lo em qualquer lado. Tiramos a seta<br />
claro. De manhã o teu pai acorda e tu estás no teu quar<strong>to</strong> a dormir como um bebé. Quando<br />
ele vir que o carro desapareceu vai concluir que o roubaram. Is<strong>to</strong> obviamente depois de<br />
colocares as chaves de onde as tiraste.<br />
má de <strong>to</strong>do.<br />
Zero era um tipo cheio de ideias. Nem sempre elas funcionavam mas esta não parecia<br />
- E como é que o recuperamos?<br />
- O teu pai irá chamar a polícia. Se deixarmos o carro convenientemente próximo da<br />
esquadra eles não vão ter de procurar mui<strong>to</strong>. Eu vou atrás de ti. Estacionas e eu depois levo-<br />
te a casa.<br />
- Vamos?<br />
- Tenho de me vestir.<br />
Passados dez minu<strong>to</strong>s, Zero saiu do seu quar<strong>to</strong> vestido <strong>to</strong>talmente de negro.<br />
- Preparado para uma missão – disse com orgulho.<br />
- É melhor verificarmos como ele está antes de irmos.<br />
Com cuidado abriram a porta do quar<strong>to</strong>. Bravo estava a dormir com a garrafa de<br />
whisky vazia na mão. Tinha um enorme penso no braço e o es<strong>to</strong>jo de costura estava caído no<br />
chão.<br />
Vader?<br />
- Achas que o podemos deixar sozinho? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />
- Claro que podemos. O que é que o tipo vai fazer? Roubar-te o cober<strong>to</strong>r do Darth<br />
- Está bem mas amanhã trata dis<strong>to</strong>. Este tipo é problema teu, Fat!<br />
Pela primeira vez naquela noite as coisas correram bem a Fattapollus. Largaram o<br />
carro bem per<strong>to</strong> da esquadra do bairro e depois Zero levou-o a casa no carro dos seus pais,<br />
um Ford Mustang de 81, cinzen<strong>to</strong>. Ninguém reparou neles. Devolveu as chaves ao bolso das<br />
calças do pai e dei<strong>to</strong>u-se na sua cama com o coração aos sal<strong>to</strong>s. Agentes secre<strong>to</strong>s, setas,<br />
assassinos! Parecia um filme! Um filme com maus ac<strong>to</strong>res, um argumentista fraco e sem<br />
orçamen<strong>to</strong>, mas mesmo assim um filme. Mas is<strong>to</strong> era a sua vida. Não fazia parte da<br />
imaginação de alguém. Fattapollus, Fat para os amigos e inimigos estava envolvido em algo<br />
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grande. Perigoso. E isso assustava-o…mas também o deixava excitado. Algo estava<br />
finalmente a acontecer.<br />
III<br />
Acordou com os gri<strong>to</strong>s do pai. Quando saíra para o trabalho vira que o seu Ford<br />
Torino desaparecera. Agora ele e a mãe de Fat gritavam em grego, amaldiçoando a sua sorte.<br />
Saiu cá para fora e pergun<strong>to</strong>u o que se passava.<br />
- O Ford! Foi roubado!<br />
- Lamen<strong>to</strong> pai. Temos de chamar a polícia!<br />
- Se eu descubro quem me fez is<strong>to</strong> ma<strong>to</strong>-o!<br />
Stellios Fattapollus era um homem baixo com uma barriga proeminente. Tinha óbvios<br />
problemas em controlar a ira. Fat sabia que ele era bem capaz de cumprir a ameaça. Calmo,<br />
Stellios era um tipo amigável, risonho, simpático. Irritado não o queriam conhecer.<br />
- Bandidos! Cambada de bandidos. Se apanho o canalha capo-o!<br />
Fat engoliu em seco. Sabia que se a verdade fosse descoberta o seu pai não o<br />
caparia…mas era sempre melhor não arriscar.<br />
Encontrou Zero no liceu. Aparentemente o desastre na festa de Chad já se tinha<br />
espalhado pois os risos de troça eram ainda maiores do que num dia normal. Ambos<br />
ignoraram, como sempre, os idiotas e, assim que puderam, trocaram impressões sobre o que<br />
acontecera. Estavam na aula de Mr. Jacobs, o professor de história. Jacobs não só parecia<br />
ter 150 anos como era fortemente surdo e distraído. Ninguém prestava atenção à aula e Fat<br />
começou por perguntar como estava Bravo.<br />
- A dormir.<br />
- Ainda?<br />
- A sério. O tipo apagou-se completamente. Quando sai hoje de manhã estava na<br />
mesma posição, ainda com a garrafa na mão.<br />
- Temos de o pôr fora. Hoje de tarde.<br />
- Concordo. Deixo isso contigo.<br />
- Tens de me ajudar.<br />
- Fat o tipo é agente secre<strong>to</strong>.<br />
- Ele pode estar a mentir.<br />
- Mesmo que esteja a mentir tem o dobro do nosso tamanho, e ontem pareceu-me<br />
estar mesmo lixado com a vida. Desculpa amigo mas esta é contigo.<br />
Por volta das 13:00 enquan<strong>to</strong> Zero e Fat almoçavam com o habitual grupo de nerds e<br />
geeks, Jack Bravo acordava finalmente. Ton<strong>to</strong>, mal se aguentando nas pernas, cambaleou até<br />
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à casa de banho. Lavou a cara com água fria e depois decidiu explorar a casa. Era tudo típico<br />
da classe média alta. A mãe do pu<strong>to</strong> do cabelo branco devia ser uma dona de casa exemplar.<br />
A única coisa a estragar-lhe o lar perfei<strong>to</strong> era o pálido. Abriu a porta do quar<strong>to</strong> de Zero e<br />
abriu a boca de espan<strong>to</strong>.<br />
- Este miúdo precisa de ajuda.<br />
O universo “Star Wars” era rei naquele espaço. Desde figuras de acção, a livros, a<br />
lancheiras, Zero tinha tudo o que era possível ter de Luke Skywalker e companhia.<br />
- Será que o branquinho sabe o que é uma mulher?<br />
Depois de um duche demorado viu-se ao espelho. Era um tipo bem parecido. Al<strong>to</strong> e<br />
musculado, tinha um ar arrogante que, na sua opinião, as fazia ficar loucas. O seu cur<strong>to</strong><br />
cabelo negro e os seus olhos castanhos davam-lhe uma imagem quase selvagem em conjun<strong>to</strong><br />
com a barba de dois dias. Dirigiu-se à cozinha. Preparou uns ovos mexidos e comeu vendo as<br />
notícias na pequena televisão em cima do balcão. Cheio, dei<strong>to</strong>u-se no sofá na sala e, pegando<br />
no telefone, ligou um número tão comprido que parecia não ter fim. Ao segundo <strong>to</strong>que<br />
atenderam-no.<br />
espera!<br />
- Sim – disse uma voz metálica do outro lado.<br />
- Eles sabiam do encontro. Temos um ra<strong>to</strong>.<br />
- O “ra<strong>to</strong>” é traidor?<br />
- Não raios!<br />
Amaldiçoou os nomes de código outra vez.<br />
- Temos um traidor. Não sei quem é. Mas eles estavam definitivamente à nossa<br />
- Tiveste sucesso?<br />
- Não. O Pigmeu fumou o seu último cigarro. Apanharam-no antes que falasse.<br />
- Merda.<br />
- Temos de nos encontrar.<br />
- Só quero passar por casa primeiro. Saber as novidades do Torino.<br />
---<br />
- Está bem mas a seguir corres com aquele gajo da minha casa. Imagina que os meus<br />
pais telefonam e ele atende!<br />
Zero parou o carro e os dois saíram. Fat ia a tirar a chave do bolso quando reparou<br />
que a porta estava aberta. Eram cinco da tarde e cheirava a verão. Estava uma brisa<br />
agradável mas, naquele momen<strong>to</strong>, Fat sentiu um arrepio. Entrou com Zero logo atrás.<br />
Nenhum disse uma palavra. A casa estava deserta, em silêncio. Encontrou o bilhete pregado<br />
por um punhal na parede da sala.<br />
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Entrega-nos o tesouro ou eles morrem.<br />
Tens 48 horas.<br />
Boa sorte Bravo. Vais precisar.<br />
Encontraram Jack ainda deitado no sofá. Estava a ver “Dallas”.<br />
- Aquele JR é mesmo lixado! Branca de neve, vou precisar do teu carro. Depois de<br />
hoje não me <strong>to</strong>rnam a ver.<br />
- Eles levaram a minha família.<br />
- De que raio estás a falar bucha?<br />
- Os meus pais. Desapareceram. Deixaram is<strong>to</strong>.<br />
Fat entregou a Bravo o punhal e o bilhete.<br />
- Tiveste azar pu<strong>to</strong>. Eles devem ter vis<strong>to</strong> a matrícula do carro.<br />
- Quem são eles?<br />
- Gente com quem não te queres meter. Desculpa pá mas há coisas mais importantes<br />
em jogo. Danos colaterais! A vida é lixada!<br />
ir!<br />
- Queres dizer que não os vais resgatar?<br />
- Tenho de cumprir a minha missão. Depois logo se vê.<br />
- E qual é a tua missão?<br />
- Podia dizer-te mas depois…tinha de te aleijar.<br />
- Não pode chamar o exérci<strong>to</strong> ou algo assim? – arriscou Zero.<br />
- Que diabo! Ouvimos sempre dizer que a CIA tem <strong>to</strong>dos os recursos! - gri<strong>to</strong>u Fat.<br />
- Eu não sou da CIA. Esses tipos não duravam dez minu<strong>to</strong>s naquilo que eu faço.<br />
- O que eu quero saber é quem levou os meus pais, e de que tesouro é que eles falam!<br />
- Pu<strong>to</strong>, não te preocupes. Eles estão a lidar com o melhor. Não têm hipótese. Tenho de<br />
- Onde?<br />
- Foi bom conhecer-te pu<strong>to</strong>. Ou nem por isso. Atropelaste-me! Foi doloroso. Seja como<br />
for…vemo-nos por aí.<br />
- Tu não sais daqui!<br />
Fat colocou-se à frente da porta de braços aber<strong>to</strong>s impedindo a passagem a Jack.<br />
- Ouve baleia estás a passar o limite.<br />
- Ou a bem ou a mal vais contar-me o que se passa. Nós somos dois. Tu estás sozinho<br />
e is<strong>to</strong> é o nosso território!<br />
- Fat o que queres dizer com “somos dois”? – pergun<strong>to</strong>u Zero nervoso.<br />
- Achas mesmo que podes comigo, badocha?<br />
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- Posso tentar. E não te enganes. O Zero é um cabrão louco. Quan<strong>to</strong> o gajo se passa<br />
da cabeça ninguém o consegue agarrar. O tipo é um psicopata. Diz-lhe Zero.<br />
- Sim…ele tem razão. Eu sou mau. Mui<strong>to</strong> mau.<br />
- Ouve Bucha tu deves ter uns doze anos. Estes tipos nem deitavam uma gota de suor<br />
para darem cabo de ti.<br />
- Tenho 16 anos e o meu nome não é Bucha. Chamo-me John Fattapollus.<br />
- Que raio de nome é Fattapollus?<br />
- Grego! Agora Zero!<br />
E ao dizer is<strong>to</strong> Fat lançou-se contra o agente secre<strong>to</strong> com <strong>to</strong>da a sua força. Zero ficou<br />
imóvel, surpreendido com a cena. Fattapollus era conhecido pelo seu problema de peso e por<br />
uma vez na vida isso deu-lhe uma vantagem. Bravo recuou com o impac<strong>to</strong>, tropeçou no<br />
tapete e estatelou-se contra uma pequena mesa de madeira. Fat caiu por cima dele. Ambos<br />
ficaram sem fôlego.<br />
- Agora diz-me em que sarilhos me meti!<br />
- Está bem pu<strong>to</strong>. Mas por favor…sai de cima dos meus <strong>to</strong>mates.<br />
- E tu pá! Porquê que te chamam Zero?<br />
IV<br />
Estavam sentados no sofá. Bebiam Coca-Cola gelada. Estava cada vez mais calor.<br />
Tinham estado em silêncio, recuperando forças.<br />
- Uma vez participei nos testes para a equipa de futebol. O treinador disse que eu era<br />
o pior jogador que tinha vis<strong>to</strong> em 30 anos de carreira. Um verdadeiro zero. A alcunha ficou.<br />
Bravo ficou em silêncio uns segundos.<br />
- E o que é que fizeste?<br />
- Nada!<br />
- Não leves a mal mas vocês são mesmo uns falhados. Já ouviste falar em máscaras e<br />
tacos de baseball? Uma noite escura? Furar uns pneus? Riscar a pintura do carro novo?<br />
Algo! Não aceites merdas de ninguém, branca de neve.<br />
- Por acaso agradecia que não me chamasses branca de…<br />
- Cala-te.<br />
- Ok.<br />
- Estás pron<strong>to</strong> a falar Jack? – pergun<strong>to</strong>u Fat.<br />
- Tu não tens muita paciência pois não?<br />
- Não quando a minha família está em perigo.<br />
- Pois bem. Então cá vai.<br />
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Lá fora o sol escondeu-se atrás das nuvens e subitamente ficou escuro.<br />
- Quem tem a tua família...<br />
- Sim?<br />
- São os ninjas do rectângulo dourado.<br />
- Ninjas?<br />
- Uma sociedade secreta de assassinos vindos do…<br />
- Japão – terminou Zero.<br />
- Exactamente. Estes tipos são uns animais. Sabem matar-te de mil maneiras só com<br />
as mãos. A própria Yakuza tem medo deles!<br />
- Acredita nele Fat. Eu já vi filmes sobre is<strong>to</strong>.<br />
- Os filmes são propaganda feita por Hollywood. A verdade é bem mais assustadora. O<br />
seu único objectivo é matar e eles estão cá nos nossos bairros pron<strong>to</strong>s a atacar.<br />
- E que raio querem eles?<br />
- O Dragão Vermelho. Uma peça de ouro. Tem andado perdido durante séculos. Foi<br />
encontrado há uma semana pela minha agência na Mongólia. E foi roubado logo que cá<br />
chegou.<br />
- Roubado?<br />
- Sim. Pela melhor que há. Jade. Ela não sabia para quem trabalhava. Quando<br />
descobriu que era para o rectângulo dourado desapareceu pois soube que assim que eles se<br />
apoderassem do “tesouro” ela seria morta para garantir o seu silêncio. A Jade é das poucas<br />
ao meu nível. Não há ras<strong>to</strong> dela. Aparecerá apenas quando quiser. Ontem um dos agentes<br />
infiltrados na direcção do Rectângulo encontrou-se comigo. Supostamente eles descobriram<br />
onde Jade estava. Não sei como. Há ouvidos em <strong>to</strong>da a parte, é possível. Mas eles mataram-<br />
no antes que ele me dissesse onde a encontrar. A esta hora era provável que ela já estivesse<br />
morta e o Dragão nas mãos deles, mas há algo que vai contra essa conclusão. O rap<strong>to</strong> dos<br />
teus pais. Eles não a apanharam.<br />
- Mas porque querem eles o Dragão? – pergun<strong>to</strong>u Zero fascinado.<br />
- Há uma lenda. Através de um ritual que só o chefe da ordem conhece, e que é<br />
passado de geração em geração, é possível obter um grande poder. Não se sabe exactamente<br />
o quê. Talvez a imortalidade. Talvez não ter de se levantar de noite para mijar! Talvez seja<br />
tudo treta quem sabe? Mas eles acreditam nisso. Seja como for o governo dos EUA prometeu<br />
entregar o Dragão ao Japão. Agora não só passamos por idiotas, como podemos danificar as<br />
relações diplomáticas com eles para além da reparação. O Dragão significa mui<strong>to</strong> para esses<br />
tipinhos e nós deixámo-lo cair nas mãos de uma das maiores organizações criminosas do<br />
mundo.<br />
- Qual é o plano agora?<br />
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- Penso que eles desistiram de perseguir a Jade. Querem que eu faça o trabalho sujo<br />
por eles em troca da vida dos…Fattabollus.<br />
- Fattapollus.<br />
- Pois isso. Eles sabem que se alguém a pode apanhar, então sou eu. Mas tenho de ter<br />
cuidado. Depois da emboscada de ontem, tenho a certeza que há um traidor. Vou-me<br />
encontrar com a única pessoa em que confio. O meu chefe. Stallion.<br />
- Ele chama-se Stallion? Tipo Italian Stallion, Rocky Balboa?<br />
- É o nome de código dele branquinho.<br />
- Fixe. Qual é o teu.<br />
- Não precisas de saber. Is<strong>to</strong> se gostas de viver.<br />
Ninguém disse nada por uns minu<strong>to</strong>s.<br />
- Eu vou contigo – disse Fat por fim.<br />
- Ouve bucha, is<strong>to</strong> está acima de ti. És um pu<strong>to</strong> porreiro. Foleiro mas porreiro, mesmo<br />
assim. Eu vou fazer o que puder para safar os teus pais.<br />
- Eu vou contigo ou então telefono para a polícia, para os jornais, para as televisões e<br />
repi<strong>to</strong> tudo o que acabaste de me contar. Achas que o Stallion ia gostar disso?<br />
- Pu<strong>to</strong>, estás-me a surpreender. Pois bem! Podes vir comigo, ver como as coisas<br />
funcionam. Suponho que mereces pelas merdas que te fiz passar. Mas quando chegar a hora<br />
de agir ficas de fora.<br />
- Combinado.<br />
Enquan<strong>to</strong> Zero ia a caminho do clube de vídeo do bairro alugar <strong>to</strong>dos os filmes de<br />
ninjas que encontrasse Fat e Bravo viajavam no Mustang ao encontro de Stallion.<br />
- Afinal como se chama a tua agência.<br />
- Não tem nome. Somos tão secre<strong>to</strong>s quan<strong>to</strong> isso.<br />
- Espera! Vocês não têm nome? Então chamam-se “sem nome”.<br />
- Não bucha. Não nos chamamos pon<strong>to</strong> final.<br />
- Isso é estranho.<br />
- Nós somos aqueles que não aparecem nas notícias. Aqueles que se chamam quando<br />
as coisas estão mesmo mal. Quando a CIA foge a gritar pela mamã, nós entramos. Homens<br />
sem identidade, sem medo.<br />
- Tu ensaiaste isso não foi?<br />
- Às vezes resulta com as miúdas.<br />
Chegaram ao seu destino. Um parque de estacionamen<strong>to</strong> abandonado. Tinha sete<br />
andares. Subiram ao último. Não tinha tec<strong>to</strong>. Via-se o céu estrelado. Um homem al<strong>to</strong> e magro<br />
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esperava-os com uma pasta no chão ao seu lado. Era negro. Elegante. Tinha uma voz<br />
hipnótica e um olhar frio.<br />
- Jack! Bem vindo. Quem é o gordo?<br />
- Digamos que é o meu parceiro. Não parece grande coisa mas safou-me ontem. Os<br />
ninjas apanharam-lhe a família. Querem que lhes entregue o Dragão em troca.<br />
nessa pasta.<br />
Stallion afas<strong>to</strong>u-se a pensar. Depois de costas para eles falou de novo.<br />
- A Jade contac<strong>to</strong>u-nos. Quer ver-te. Tens os detalhes e o equipamen<strong>to</strong> do costume<br />
- Mais alguém sabe disso?<br />
- Só eu e tu.<br />
- Óptimo. Alguma ideia quan<strong>to</strong> à identidade do ra<strong>to</strong>?<br />
- Não. O nosso segundo agente no rectângulo está a trabalhar nisso. Ele vai entrar em<br />
contac<strong>to</strong> contigo esta noite.<br />
tudo.<br />
- O que vão fazer quan<strong>to</strong> à minha família?<br />
O luar iluminava o ros<strong>to</strong> de Stallion.<br />
- Nada.<br />
- Não! Têm de os ajudar – implorou Fat.<br />
- Is<strong>to</strong> ultrapassa-te a ti, a mim, a <strong>to</strong>dos nós. Desculpa miúdo. Eles não têm hipóteses.<br />
- Eu vou à polícia.<br />
- Achas que não controlamos a polícia? Filho, nós somos o governo. Nós controlamos<br />
- Não podes fazer isso, Jack. Tens de os ajudar.<br />
- São ordens pu<strong>to</strong> – respondeu Bravo com uma expressão triste.<br />
- Arranjámos-te um carro. Podes ir – ordenou Stallion.<br />
Bravo virou-se e dirigiu-se para a sua nova viatura. Fat foi atrás dele.<br />
- Por favor Jack! Tu deves-me isso. Ontem salvei-te. Salvei-te a vida.<br />
- Desculpa bucha.<br />
O agente secre<strong>to</strong> arrancou e quando Fat olhou à sua volta viu que Stallion também<br />
desaparecera. Estava sozinho.<br />
V<br />
Alugara um quar<strong>to</strong> num hotel ranhoso onde ninguém pedia identificação, e se podia<br />
assinar He-Man no regis<strong>to</strong> sem ter de responder a perguntas. Tomou um duche rápido numa<br />
casa de banho infestada de baratas. Os civis tinham a ideia que ser agente secre<strong>to</strong> era comer<br />
gajas boas e andar de Ferrari. Se o vissem agora mudariam de opinião.<br />
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Quando saiu do duche soube imediatamente que não estava sozinho. Entrou no<br />
quar<strong>to</strong> usando apenas uma <strong>to</strong>alha à volta da cintura. Se fosse preciso usar o seu talen<strong>to</strong> de<br />
“karateca” estava preparado. Levava outra <strong>to</strong>alha na mão.<br />
- Tinha de te ver!<br />
Num movimen<strong>to</strong> rapidíssimo sacou a sua Glock 17, debaixo da <strong>to</strong>alha que segurava, e<br />
apon<strong>to</strong>u-a para a escuridão.<br />
- Tiveste sorte. Podia ter-te mor<strong>to</strong> sem sequer te deixar falar – disse calmamente.<br />
- Senti a tua falta Jack. O Stallion disse-me onde estavas.<br />
Foxy saiu da sombra e aproximou-se. Era linda. Alta com seios volumosos e uma<br />
longa cabeleira loura. Olhos azuis e lábios grossos completavam o quadro. Uma mulher<br />
irresistível.<br />
- É perigoso. Não devias ter vindo. Não queres acabar como o Pigmeu.<br />
- Calma Jack. Tenho tudo controlado.<br />
Foxy beijou-o levemente nos lábios. Bravo continuou com a arma apontada, agora<br />
contra o seu pei<strong>to</strong>.<br />
- Podes baixar isso agora, querido.<br />
- Posso?<br />
Subitamente Jack agarrou-a pela cintura e empurrou-a contra a parede. Foi violen<strong>to</strong><br />
e ela gos<strong>to</strong>u. Bravo encos<strong>to</strong>u o ros<strong>to</strong> ao dela. Sentia a sua respiração.<br />
fumar.<br />
- Alguém anda a cantar para o rectângulo. O Pigmeu conseguiu finalmente deixar de<br />
- Óptimo. Fumar mata.<br />
- Foi o que eu lhe disse. Desculpa mas depois de três anos infiltrada tenho de me<br />
interrogar se te passaste definitivamente para o lado deles.<br />
- Não confias em mim?<br />
- Eu não confio em ninguém. Mui<strong>to</strong> menos numa mulher bonita.<br />
Beijaram-se. Ele continuava com a arma contra as suas costelas.<br />
- E como sugeres que eu prove a minha lealdade?<br />
Estava com uma expressão sensual.<br />
- Tenho umas ideias.<br />
Bravo largou finalmente a arma e pegou em Foxy largando-a na cama.<br />
Sete minu<strong>to</strong>s e meio mais tarde, ofegantes olhavam para o tec<strong>to</strong>. A única luz no<br />
quar<strong>to</strong> vinha de um neon na rua, anunciando um qualquer produ<strong>to</strong>.<br />
- Não há nenhum como tu, Jack. És demais.<br />
- Eu sei querida.<br />
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Era esta a vida de Jack Bravo. Per<strong>to</strong> da morte, per<strong>to</strong> do amor. Até ali, ao lado daquela<br />
mulher linda, não era capaz de deixar de pensar que talvez tivesse sido a última vez que<br />
fizera amor. Vivia no perigo. Gostava da sensação. Gostava e odiava-a.<br />
- Conseguiste descobrir alguma coisa?<br />
- Só Lótus sabe quem é o traidor – respondeu Foxy. - Lida directamente com ele.<br />
Es<strong>to</strong>u a fazer o melhor que posso.<br />
Jack pensou dizer-lhe para ter cuidado mas já conhecia Foxy há tempo suficiente<br />
para saber que ela era boa, mui<strong>to</strong> boa. Em <strong>to</strong>dos os sentidos.<br />
coisa?<br />
- Quero sair Jack. Es<strong>to</strong>u cansada. Acho que eles desconfiam.<br />
- Is<strong>to</strong> vai acabar em breve. Não te preocupes. Sabes alguma coisa dos Fatta, qualquer<br />
- Estão na base. Não consegues lá entrar Nem eu sei onde é. A única salvação<br />
possível é entregar o Dragão e esperar piedade.<br />
- Não posso fazer isso lourinha.<br />
- Eu sei. Tens alguma ideia de como o recuperar?<br />
- Sim.<br />
- A Jade contac<strong>to</strong>u-te?<br />
- É melhor não saberes mais. Para teu próprio bem.<br />
Beijaram-se de novo.<br />
- Es<strong>to</strong>u viciada em ti Jack Bravo.<br />
- Experimenta chocolate. Dizem que é quase tão bom. Agora está na hora de ires.<br />
Estava na estação de metro tal como lhe fora ordenado. Olhou à volta. Sentia que<br />
alguém o observava. Chegou o comboio. Era hora de ponta. Deixou-se ir no meio da<br />
confusão. Sabia que Jade planeara o encontro ao pormenor. Era provável que o rectângulo<br />
tentasse intervir.<br />
Subitamente, a meio da viagem, as luzes apagaram-se. Jack soube que estava em<br />
sarilhos. Mas ele fora preparado.<br />
O escuro durou dez segundos. Quando as luzes se acenderam Jack viu-se cercado<br />
por quatro ninjas. Os outros passageiros recuaram gritando. Jack ficou imóvel. Depois sacou<br />
a Glock. Bravo talvez fosse o gatilho mais rápido do mundo. Abateu um dos ninjas, mas as<br />
luzes apagaram-se de novo, desta vez por uns dois segundos. Jack virou-se e atingiu o<br />
segundo ninja. Tinha de economizar as balas. O comboio continuava a sua viagem. Is<strong>to</strong> teria<br />
sido obra de Jade? Tê-lo-ia traído? Um dos ninjas lançou uma "shaken" que atirou a Glock<br />
para o fundo da carruagem. Calmo Jack despiu o sobretudo negro e tirou a sua catana da<br />
bainha.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 77 de 117
- Óptimo! Preciso de exercício.<br />
O espaço era apertado. Restavam dois ninjas. Isso não era nada. Jack trocou alguns<br />
golpes com os homens de negro. Manteve-os à distância esperando a altura certa. Um<br />
espaço! A sua espada penetrou no pei<strong>to</strong> do inimigo. O homem dei<strong>to</strong>u sangue pela boca e caiu<br />
mor<strong>to</strong>. Restava um.<br />
- Precisas de treinar mui<strong>to</strong> rapaz.<br />
Jack partiu para cima do ninja. A máscara negra só lhe deixava ver os olhos<br />
confiantes. Jack sabia que outro tipo qualquer estaria agora a sujar as cuecas depois de ver<br />
três companheiros a caminho do inferno. Não um ninja. Depois de mais uns segundos de<br />
luta Jack desarmou-o e com um forte golpe projec<strong>to</strong>u-o contra a janela que se partiu. O<br />
assassino caiu para a linha e foi trucidado.<br />
- É só is<strong>to</strong> que têm?<br />
O comboio parou e <strong>to</strong>dos saíram a gritar. Jack ficou. Estava sozinho agora. Das<br />
outras carruagens veio a segunda vaga. Quatro ninjas de cada lado. Jack limpou a lâmina ao<br />
fa<strong>to</strong> de um dos ninjas mor<strong>to</strong>s e sorriu.<br />
- O Jack quer brincar.<br />
Preparou-se. As portas começaram-se a fechar. Vinda não se sabe de onde, uma<br />
mulher entrou no último segundo. Jack conhecia-a. Era Jade. Longos cabelos negros,<br />
asiática, alta, linda e letal! A maior ladra do mundo.<br />
- Levaste o teu tempo.<br />
- Estás velho, Jack. Tens medo de uns ninjas inofensivos?<br />
O comboio arrancou. Os ninjas sabiam que o seu prémio chegara. Eles queriam Jade.<br />
Lançaram-se ao ataque mais ferozes que nunca. Jade usava dois punhais “sai”. Eram ambos<br />
lutadores formidáveis. Mas os ninjas eram mais, mui<strong>to</strong>s mais. Em cinco minu<strong>to</strong>s de luta os<br />
cadáveres amon<strong>to</strong>aram-se, mas eles continuaram a aparecer. Cada vez mais. Jack tinha a<br />
vantagem do espaço exíguo. Não o podiam cercar. Mas era uma batalha perdida que não<br />
duraria mui<strong>to</strong> mais.<br />
- Estás preparado Amor?<br />
- Eu não sou o teu amor – respondeu Jack com desprezo.<br />
- Sempre o mesmo macho bru<strong>to</strong>. Agarra-te!<br />
Jade tirou um pequeno comando do bolso e carregou no botão vermelho. O comboio<br />
travou! Todos foram projectados. As luzes apagaram-se. Quando voltaram a brilhar Jack e<br />
Jade corriam pela linha no escuro. Os ninjas trocaram umas palavras em japonês, mas as<br />
suas presas já estavam bem longe.<br />
VI<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 78 de 117
Estava no bairro chinês. Incrível!<br />
- Chineses e japoneses não são propriamente amigos. Este local é perfei<strong>to</strong>.<br />
- Tu és doida. Ladra, mentirosa e doida.<br />
- Não disseste isso na Mongólia.<br />
- Usaste-me. Ninguém faz isso com Jack Bravo.<br />
Estavam num pequeno quar<strong>to</strong> no cimo de um restaurante. Jade tinha ligações mui<strong>to</strong><br />
fortes com o submundo asiático. Tinha sido a escolha óbvia para roubar o dragão.<br />
que desejavas.<br />
- Eu não sabia que estava a trabalhar para o rectângulo.<br />
- Não interessa para quem trabalhavas. Manipulaste-me para obteres a informação<br />
- Precisava de ti. Só tu sabias quando ele chegava aos EUA. Conforma-te. Nem foi a ti<br />
que o roubei. Foi a outro idiota qualquer. Tu só o tinhas encontrado. E não te faças de<br />
vitima. Quantas pessoas já manipulaste? Eu tenho ouvidos. Consta na rua que raptaram<br />
alguém. Alguém que significa algo para ti para que lhes entregues o dragão em troca.<br />
- Enganas-te querida. Nem sei o nome deles.<br />
- Sempre o Durão, Jack.<br />
- Nem fazes ideia, querida. Sim, já enganei, roubei até, mas não me dei<strong>to</strong> com o alvo.<br />
Tu sim. Suponho que isso faz de ti uma pu…<br />
Antes que acabasse Jade tinha um punhal na sua garganta.<br />
- Dizias?<br />
- Olha para baixo querida!<br />
Ela caiu no isco. Jack usou o pé para puxar o tapete por baixo dos seus pés. Jade<br />
caiu mas levou-o atrás. Ele agarrou-lhe a mão e fê-la largar o punhal. Estavam no chão. Ele<br />
sentia o seu corpo macio por baixo do seu.<br />
- Tu não me resistes querida. Nenhuma de vocês consegue.<br />
- És um porco Jack.<br />
- Agora é a minha vez…não disseste isso na Mongólia.<br />
- Estava a representar.<br />
- Então merecias um oscar.<br />
Bravo levan<strong>to</strong>u-se e foi até à janela. Jade sen<strong>to</strong>u-se na cama.<br />
- Preciso do dragão, Jade.<br />
- É o meu único trunfo.<br />
- Podemos proteger-te.<br />
- Não destes tipos.<br />
- Tens outra saída?<br />
- Não – respondeu Jade desanimada.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 79 de 117
- Bem me parecia.<br />
- Quero algo em troca. O rectângulo pagava-me três milhões. Como gos<strong>to</strong> do Tio Sam,<br />
só te cobro dois.<br />
Jack sorriu. Já esperara is<strong>to</strong>. Sentia o cheiro de especiarias e ouvia as vozes que<br />
vinham do restaurante.<br />
- Um milhão é a oferta final.<br />
- Suponho que não es<strong>to</strong>u em posição de negociar.<br />
Jack chegou-se per<strong>to</strong> dela.<br />
- Depois de me dares o dragão deixo-te ir, mas quero que saibas is<strong>to</strong>: um dia, quando<br />
menos esperares, eu estarei lá. Quando tudo is<strong>to</strong> acabar vou atrás de ti.<br />
inimigos.<br />
Jade levan<strong>to</strong>u-se e enfren<strong>to</strong>u-o.<br />
- Não és suficientemente bom.<br />
- Querida não fazes ideia.<br />
Bravo beijou-a. Um beijo cheio de paixão e de ódio.<br />
- Pelos velhos tempos.<br />
- Sim, pelos velhos tempos – concordou ela.<br />
Era cinco da tarde. Fizeram amor de forma selvagem. Louca. Dois amantes em breve<br />
Às cinco e um quar<strong>to</strong> Jack telefonou para uma linha segura de Stallion e ordenou o<br />
pagamen<strong>to</strong>. Depois da transferência, Jade confirmou o saldo da sua conta no estrangeiro.<br />
Bravo.<br />
- Acabaste de comprar o dragão dourado. Agora o problema é teu. Boa sorte Jack<br />
Era um bairro pobre e sujo. Havia pouco movimen<strong>to</strong> na rua. Era fim de tarde. Jack<br />
seguiu Jade até a um edifício com mau aspec<strong>to</strong>.<br />
mauzões.<br />
- Uma igreja?<br />
- Sim Jack. Mas digamos que não é uma igreja normal.<br />
- Pois não. É a igreja mais merdosa que já vi.<br />
Jack olhou para a enorme cruz no telhado antes de entrar. Começou a chover.<br />
- D., se estás por aí, vigia a entrada e manda um raio ou dois se vires uns ninjas<br />
Entraram. Os bancos de madeira eram velhos. Era um local escuro e com aspec<strong>to</strong> de<br />
cenário de filme de terror. Assombrado. Estava deser<strong>to</strong>. Parecera-lhe mais pequena vista de<br />
fora. Na verdade a igreja era até espaçosa. Procurou as saídas. Havia apenas uma porta ao<br />
lado do altar, que daria para as traseiras. De lá saiu um tipinho baixo e careca, usando uma<br />
batina negra, e que veio ter com eles. Tinha um bigode volumoso e aspec<strong>to</strong> de latino.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 80 de 117
- Padre Guerrero!<br />
- Bem vinda minha filha. Quem vem contigo?<br />
- É um amigo, Padre.<br />
- O nome é Jack, Jack Bravo.<br />
- Eu sou o Padre Guerrero. Sou o responsável por este humilde espaço.<br />
- Que tal passarmos ao negócio – exclamou Jade.<br />
- Claro que sim, minha filha.<br />
Guerrero passou para trás do altar. Colocou o indicador num pequeno espaço em<br />
relevo e aí Jack viu magia. As portas altas da igreja fecharam-se au<strong>to</strong>maticamente. O altar<br />
abriu-se revelando um painel de instrumen<strong>to</strong>s.<br />
- Detec<strong>to</strong>r de impressões? – pergun<strong>to</strong>u Jack.<br />
- Sim irmão.<br />
- Que raio de sítio é este?<br />
- O Padre Guerrero faz parte de uma organização dentro da igreja. Eles têm os seus<br />
próprios objectivos e grandes fundos. Tudo com a devida au<strong>to</strong>rização do Vaticano, claro.<br />
- Nem nós temos esta tecnologia – exclamou Jack.<br />
- Nós fazemos alguns trabalhos fora do nosso âmbi<strong>to</strong> normal. Assim conseguimos<br />
arranjar financiamen<strong>to</strong> para as nossas acções mais benevolentes. Esta é apenas uma das<br />
nossas bases.<br />
- Quer dizer que pagaste a estes gajos para te guardarem o Dragão?<br />
- Dez por cen<strong>to</strong>. São confidenciais e nunca ninguém ouviu falar deles senão alguns<br />
selec<strong>to</strong>s…como eu.<br />
Jack obviamente não estava nesse lote.<br />
- E quais são exactamente os vossos objectivos mais benevolentes? Algo me diz que<br />
não é cantar "We Are The World" com o Boss!<br />
- Isso, irmão, não precisas de saber. Agora vamos ao trabalho.<br />
Guerrero <strong>to</strong>cou habilmente nas teclas do teclado que se encontrava dentro do altar.<br />
Um metro à frente do altar o chão começou a tremer. Depois algo começou a subir.<br />
Um enorme cofre saiu do chão lentamente. Era de aço e com um aspec<strong>to</strong> de tal forma<br />
poderoso que qualquer ladrão fugiria com medo. Aquele era impossível arrombar, pensou<br />
Jack.<br />
- Tenho de admitir. Vocês têm aqui uma cabana porreira.<br />
- Obrigado irmão. Nós tentamos. Tem a sua chave?<br />
- Sim – respondeu Jade.<br />
Jack reparou que o cofre tinha uma fechadura em cada extremo. Tinha também um<br />
painel electrónico com números. Is<strong>to</strong> era mesmo alta tecnologia. Estas tipos tinham<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 81 de 117
contac<strong>to</strong>s e dinheiro, mui<strong>to</strong> dinheiro. O homenzinho pôs-se de um lado e Jade do outro.<br />
Guerrero já tinha a chave na mão. Jade tirou a sua de dentro do seu decote.<br />
dois, três.<br />
- Que mais surpresas tens aí dentro querida?<br />
- Por favor irmão, estamos numa igreja. Lembre-se, rodamos ao mesmo tempo. Um,<br />
Depois de rodarem as chaves, Guerrero chegou-se ao painel que ficava a meio do cofre<br />
e digi<strong>to</strong>u uns números.<br />
- Aleluia – exclamou visivelmente satisfei<strong>to</strong>.<br />
Como se de um milagre se tratasse o cofre abriu e Jack viu o tesouro que procurava.<br />
Tinha uns trinta centímetros de altura e vinte de largura. Era de ouro maciço. Os seus olhos<br />
eram duas esmeraldas verdes.<br />
- Olá de novo – disse Jack para o dragão.<br />
- Aqui está! Agora quan<strong>to</strong> ao pagamen<strong>to</strong>…<br />
Nesse momen<strong>to</strong> ouviu-se um alarme. Guerrero olhou para Jade e ela para Bravo.<br />
- O que se passa Paco?<br />
- O meu nome não é Paco, irmão e este barulho ensurdecedor quer dizer que não<br />
estamos sozinhos.<br />
emergência.<br />
- Já calculava isso. Há outra saída?<br />
- Pelas traseiras – disse Jade.<br />
- Eles já lá estão, querida. Não me digam que este sítio não tem uma saída de<br />
- Claro que tem irmão. Nós não somos estúpidos. Uma rede de túneis complexa. Eles<br />
nunca nos apanharão.<br />
por cen<strong>to</strong>.<br />
- Então, mano, aconselho-te a activá-la. Estes ninjas não são propriamente religiosos.<br />
- Ninjas??? – exclamou Guerrero chocado!<br />
- Suponho que a Jade se esqueceu de mencionar de quem estava a esconder o dragão.<br />
- Você trouxe o rectângulo para aqui sua idiota? O preço acabou de subir para vinte<br />
Jack tirou a sua catana e despiu o sobretudo.<br />
- Hey, Pablo, acredita em mim. Tu não és o James Dean e não vais fazer um cadáver<br />
lindo. Portan<strong>to</strong> trata de nos tirar daqui, já!!!!<br />
não…<br />
- Não se preocupe. As medidas de segurança foram activadas au<strong>to</strong>maticamente. Eles<br />
Nesse momen<strong>to</strong> as portas da igreja explodiram numa bola de fogo. Quando o fumo se<br />
dissipou Jack percebeu que esta talvez fosse a sua última aventura.<br />
- Eu não acredi<strong>to</strong> –exclamou Guerrero incrédulo.<br />
- Chico! AGORA!!!<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 82 de 117
- Pela última vez o meu nome é Guerrero…irmão!<br />
Eram pelo menos uns vinte ninjas. Posicionaram-se para o combate. Mas Guerrero<br />
tinha uma última surpresa. No <strong>to</strong>po de duas colunas da igreja, um de cada lado, abriu-se um<br />
espaço. Duas metralhadoras, comandadas sabe-se lá por que microchip, começaram a<br />
disparar em tudo o que se mexia. Mas isso não dissuadiu os ninjas. O primeiro batalhão<br />
sofreu fortes baixas mas eles vinham preparados. Dois rockets calaram as metralhadoras.<br />
E aí finalmente entrou quem Jack mais temia.<br />
- Lótus!<br />
- Jack Bravo. Encontramo-nos de novo.<br />
VII<br />
A líder do rectângulo dourado. Vestia um fa<strong>to</strong> de cabedal verde, a cor dos seus olhos,<br />
algo raro para uma asiática. Tinha cabelo cur<strong>to</strong>, negro como o seu coração. Ninguém sabia o<br />
seu passado. Havia rumores. Alguns sangren<strong>to</strong>s. Outros demasiado fantásticos para serem<br />
verdadeiros. Subira na organização derramando sangue que escorria pelas ruas de Tóquio.<br />
Já se encontrara com Jack antes e jurara que haveria de ter o seu coração numa bandeja.<br />
Bravo por seu lado tencionava mantê-lo no pei<strong>to</strong>.<br />
- Desiste Bravo.<br />
Todos estavam imóveis. Guerrero parecia incapaz de <strong>to</strong>car no teclado do altar.<br />
- Como é que eles costumam dizer? Nunca me apanharás vivo querida.<br />
- Pagarás pela tua insolência. Interferiste com o rectângulo pela última vez.<br />
- Diz a verdade. Is<strong>to</strong> ainda é por aquela noite em Okinawa? Desculpa, querida, mas<br />
eu não durmo com qualquer uma. Agentes duplos? Sim. Ladras? Porque não? Aberrações<br />
como tu, não. Mas sempre tens o Mr. Miyagi, ele anda sempre por lá.<br />
- Quem?<br />
- Daniel-San? Wax on? Esquece.<br />
- Entrega-nos o dragão e a tua morte será rápida!<br />
- Querida, dá o teu melhor.<br />
Uma seta voou pela sala e atingiu Guerrero. O homem caiu desamparado.<br />
- Jade, trata do Paqui<strong>to</strong>. Eu tenho umas contas a ajustar com os tipos das espadas.<br />
Jack lançou-se ao combate. A sua perícia era extraordinária. Os cadáveres sucediam-<br />
se. Lótus via a cena estranhamente excitada.<br />
Jade tirou a seta do ombro de Guerrero que gemeu com dores.<br />
- Vai, ajuda-o. Eu tiro-nos daqui.<br />
Jade tirou os seus punhais e partiu para os ninjas. Guerrero levan<strong>to</strong>u-se, a sangrar.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 83 de 117
- Tenho…de…conseguir…o código.<br />
Jade e Jack colocaram-se de costas um para o outro para não serem cercados.<br />
Embora com alguns ferimen<strong>to</strong>s, estavam a conseguir segurá-los.<br />
- CHEGA!<br />
A voz de Lótus ecoou pela igreja.<br />
- Tragam-na.<br />
Dois ninjas apareceram, trazendo Foxy prisioneira.<br />
- Acabou-se Jack Bravo. Larga a espada ou ela morre.<br />
Todos ficaram em silêncio enquan<strong>to</strong> esperavam a resposta de Bravo.<br />
- Por favor, Jack. Faz o que ela diz.<br />
Depois de alguns segundos, em que parecia pesar as suas opções, Bravo surpreendeu<br />
<strong>to</strong>dos com uma enorme gargalhada.<br />
- Jack, por favor!<br />
- Foxy, foxy, foxy. Eu sabia que eras tu.<br />
- Do que estás a falar?<br />
- Só o Stallion e tu sabiam que eu me iria encontrar com Jade. Primeiro atacaram-me<br />
no metro. Depois aqui. Só tu lhes podias ter di<strong>to</strong> onde me encontrar.<br />
Restas tu!<br />
- É mentira Jack. Acredita em mim. É o Stallion. Foi ele que me denunciou.<br />
- Desiste querida. Eu sei que o Stallion não é o traidor.<br />
- Como?<br />
- Porque o rectângulo ma<strong>to</strong>u-lhe a família. Ele é o único que os odeia mais que eu.<br />
- Maldi<strong>to</strong>!<br />
Foxy tirou a espada a um ninja e correu para Jack. Ele defendeu-se mas ela estava<br />
com uma raiva avassaladora. Os ninjas prepararam-se para atacar mas Lótus, com um<br />
ges<strong>to</strong>, impediu-os.<br />
- Quero vê-los lutar.<br />
Foxy era poderosa mas Jack era superior. A luta durou apenas uns minu<strong>to</strong>s. Jack<br />
desarmou-a e Foxy caiu aos seus pés. Ele encos<strong>to</strong>u a lâmina à sua garganta e sorriu. Nesse<br />
momen<strong>to</strong> Guerrero introduziu finalmente o código de emergência. Um enorme alçapão abriu-<br />
se au<strong>to</strong>maticamente atrás do altar.<br />
- Irmão!<br />
- Já ouvi Hernandez. Vês, Foxy? O velho Jack Bravo tem sempre uma saída<br />
preparada. Espero que eles te tenham pago bem. Estás acabada. Jade agarra no dragão.<br />
- Não tão rápido Bravo.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 84 de 117
Jack olhou para Lótus e pela primeira vez naquela noite surpreendeu-se. Fattapollus<br />
e Zero. Não era possível. Tinha pedido a Stallion para os proteger, mas já devia saber que<br />
nada detinha o rectângulo.<br />
- Este rapaz salvou-te a vida, Bravo. Tu deves-lhe. O que vais fazer agora? Prome<strong>to</strong>-te<br />
que o espera a morte mais terrível e dolorosa que possas imaginar. Entrega o Dragão e terei<br />
misericórdia.<br />
- Vamos Jack. Deixa o miúdo. – exclamou Jade.<br />
Jack estava finalmente num beco sem saída. Fattapollus e Zero tremiam de medo. O<br />
magricelas estava ainda mais pálido e Fat parecia ter perdido uns quilos só com o sus<strong>to</strong>.<br />
- Perdeste Bravo! – exclamou, com ódio, Foxy.<br />
- Irmão, Deus recompensa-os no além. Deixa-os.<br />
Jack sabia que era o que devia fazer. Tudo lhe dizia para correr pelos túneis que o<br />
anão mexicano lhe oferecia.<br />
- Não, querida. Não posso deixar o bucha com estes animais. Ele e o branquinho<br />
ajudaram-me. Agora é a minha vez.<br />
- Jack não sejas parvo. São uns miúdos. Deixa-os.<br />
- Já disse que não. Aquele gordo é um tipo porreiro. Não merece is<strong>to</strong>. E o trinca-<br />
espinhas do cabelo branco vai ficar vivo para ver <strong>to</strong>dos os "Star Wars" merdosos que o Lucas<br />
fizer.<br />
- Por acaso – disse Zero apavorado – a história acabou mesmo.<br />
- Acredita, branca de neve. O tipo vai querer mais dinheiro É sempre assim.<br />
- Basta – gri<strong>to</strong>u Lótus.<br />
- Pois bem, miúda, ganhaste. Mas só esta batalha.<br />
Jack largou a espada e os ninjas agarraram-no. Jade sabia que sozinha não tinha<br />
hipóteses e entregou o Dragão. Um ninja levou-o a Lótus, que deu uma gargalhada doentia.<br />
- Não percebes Bravo? A guerra acabou! – gri<strong>to</strong>u Lótus bem al<strong>to</strong>.<br />
- Diabos te levem Jack Bravo – disse Jade baixo.<br />
VIII<br />
Tinha sido drogado. Sentira uma picada nas costas quando Lótus ordenou aos seus<br />
lacaios que o levassem para a base. Acordou e ten<strong>to</strong>u focar a visão. Estava numa sala escura.<br />
Doíam-lhe os braços. Tinha as mãos amarradas e estava pendurado. Todo o peso do seu<br />
corpo nos seus dois membros. Tinham-lhe tirado a camisa. Estavam a preparar-se para a<br />
festa. Lótus queria divertir-se. Tinha várias feridas abertas dos cortes sofridos na batalha.<br />
Tinha também várias cicatrizes de outras vezes que escapara por pouco à morte.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 85 de 117
- Espero que estejas satisfei<strong>to</strong>.<br />
Olhou para o lado. Era Jade, pendurada tal como ele. Estava de biquíni. Cabedal<br />
vermelho, bem sensual. Óptimo. Ainda não estava mor<strong>to</strong>. Ainda sabia o que era bom. Sorriu.<br />
- Calma. Está tudo sob controlo.<br />
- Jack estamos prisioneiros da maior organização criminosa do mundo, sem armas,<br />
feridos e à espera de uma morte dolorosa. Chamas a is<strong>to</strong> sob controlo?<br />
- Onde está o bucha?<br />
- Estamos aqui – disse Zero.<br />
Olhou à volta. Fattapollus estava amarrado a uma cadeira tal como Zero ao seu lado.<br />
- E o Padre?<br />
- Chegou a um acordo com o rectângulo. Pagou o seu próprio resgate e deixou-os<br />
levarem-nos. Se eu sair daqui vai pagá-las.<br />
- É compreensível. Eu faria o mesmo.<br />
- Deu-te um pontapé nas costelas enquan<strong>to</strong> estavas inconsciente. Disse que era pelo<br />
sarilho em que o tinhas metido.<br />
sombrio.<br />
- Vai haver um padre com bigode a menos no mundo, mui<strong>to</strong> em breve – disse Jack<br />
- Então qual é o plano?<br />
- Calma querida. Es<strong>to</strong>u a tratar disso.<br />
Ficaram em silêncio uns momen<strong>to</strong>s.<br />
- Então pu<strong>to</strong> não dizes nada? Afinal, es<strong>to</strong>u aqui por tua causa.<br />
- Uh…Jack?<br />
- Sim branquinho?<br />
- O Fat não quer falar. Deixou-o sozinho e não fez qualquer tentativa para resgatar os<br />
pais dele. Além disso destruiu-lhe o carro e fez com que fosse raptado e esteja prestes a<br />
sofrer um destino demasiado terrível para traduzir em palavras. E hoje dá o Macgyver e ele<br />
vai perder. É a série favorita dele.<br />
- Desculpa lá isso do Macgyver, bucha. Isso está mal. Mas quan<strong>to</strong> aos teus pais não<br />
te preocupes. Eles estão algures por aqui.<br />
- Sim? E como tencionas salvá-los? – explodiu Fat.<br />
- Ele tem um plano.<br />
Era Foxy.<br />
- Ele tem sempre um plano. Mas desta vez…não há escape possível, Jack.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 86 de 117
Estava nos seus aposen<strong>to</strong>s. A decoração era tipicamente oriental, mas <strong>to</strong>do o<br />
ambiente era frio. Lótus ajoelhou-se e esperou que o enorme televisor de 71 centímetros se<br />
ligasse.<br />
- Mestre!<br />
Baixou o pescoço em sinal de respei<strong>to</strong>.<br />
- Lótus. Recuperaste-o?<br />
- Sim, mestre. Temos o dragão.<br />
Lótus encarou a televisão. Via-se apenas uma silhueta sentada a uma secretária. A<br />
transmissão desde o Japão tinha algumas interferências.<br />
- Perfei<strong>to</strong>. E Bravo?<br />
- É nosso prisioneiro.<br />
- Acaba com ele.<br />
- Sim mestre. Pelo rectângulo.<br />
- Traz-me o Dragão. Parte o mais rápido possível. Quero realizar o ritual.<br />
- Sim mestre.<br />
- Lótus?<br />
- Sim?<br />
segredinhos.<br />
- Bom trabalho, minha filha.<br />
Foxy deu um poderoso murro no ros<strong>to</strong> de Bravo.<br />
- És uma vergonha. Não admira que tenhas sido recusado pela CIA.<br />
- O quê? – disseram Fat e Zero ao mesmo tempo.<br />
- Ele não vos con<strong>to</strong>u? Chumbou nos exames de admissão. É um dos seus<br />
- Foxy, não encares is<strong>to</strong> mal, mas és uma cabra.<br />
- Eu sei, Jack, e adoro-o.<br />
Outro murro. Depois passou para Jade.<br />
- Deves estar a imaginar o porquê da fatiota nova. Pois bem. A Lótus planeia pôr-vos a<br />
lutar um contra o outro. Até à morte.<br />
- Vocês são loucos – gri<strong>to</strong>u Jade.<br />
- E a propósi<strong>to</strong>…estás gorda Jade.<br />
- Oh essa foi fria, Foxy. A Jade vai cobrar-te isso com juros.<br />
- Dou<strong>to</strong>r Chu????<br />
Um homem idoso, de cabelo grisalho e barba, usando uma bata branca e segurando<br />
uma pasta, entrou na sala.<br />
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- Jack, apresen<strong>to</strong>-te Dr. Chu. Ele é um artista. Um artista na arte da dor. Antes da<br />
luta, vou-me divertir contigo.<br />
Foxy desferiu outro murro no ros<strong>to</strong> de Bravo e deu uma gargalhada.<br />
- Is<strong>to</strong> está a ficar cansativo, Foxy.<br />
- Ainda agora começou.<br />
Lótus era o ros<strong>to</strong> do rectângulo. Mas havia alguém nas sombras. O seu mestre.<br />
Ensinara-a. Fizera-a uma assassina letal, cruel sem remorsos. Mas agora o seu mestre<br />
perceberia que isso tinha sido um enorme erro. Vestiu o seu kimono negro e ajoelhou-se com<br />
o dragão à sua frente. Chegara a sua hora.<br />
- Criaste um monstro.<br />
Começou a declamar palavras há mui<strong>to</strong> esquecidas pelo mundo. O seu coração batia<br />
cada vez mais rápido. Seria a mais poderosa.<br />
Dois ninjas trouxeram uma pequena mesa de madeira e saíram. Chu abriu a pasta e<br />
começou a tirar os seus instrumen<strong>to</strong>s. Jack no<strong>to</strong>u que <strong>to</strong>dos tinham algo em comum. Eram<br />
cortantes.<br />
- Não tarda o chinês começa a perguntar-me se “é seguro”.<br />
- O quê?<br />
- Homem da Mara<strong>to</strong>na. 1976, Dustin Hoffman.<br />
- Vêm meninos? Este é outro dos seus segredos. O grande Jack Bravo é um enorme fã<br />
de cinema. Nos seus tempos livres, em vez de safaris ou despor<strong>to</strong>s radicais, como os seus<br />
colegas fazem, ele está enfiado num cinema como um geek qualquer. Porque na verdade é<br />
isso que tu és. Tira-se o corpo, as respostas idiotas e tu és tão foleiro como o gordo ou o<br />
albino. Metes-me nojo.<br />
Uma enorme estalada abanou o ros<strong>to</strong> de Bravo e ele cuspiu algo da boca.<br />
- Conheces-me bem, mas não tão bem, Foxy.<br />
- Ai não? E que tal eu dizer-lhes o teu nome de código? Gostavas disso?<br />
Chu baixou-se e apanhou o que Jack cuspira. Depois abriu os olhos surpreendido e<br />
gri<strong>to</strong>u em japonês para Foxy.<br />
- O quê?<br />
- O que ele te está a dizer querida é que aquilo é um localizador. Se is<strong>to</strong> fosse um<br />
filme, esta seria a altura em que o herói, eu, cuspia o enredo <strong>to</strong>do. Portan<strong>to</strong> cá vai. Tinha três<br />
problemas. Um traidor que tinha de obrigar a mostrar-se, resgatar os pais do gordo e<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 88 de 117
ecuperar o dragão. Mas o que eu queria mesmo era acabar de vez com o rectângulo e a<br />
Lótus. Estás a perceber até aqui?<br />
- Tu…is<strong>to</strong> é um truque.<br />
- Para fazer is<strong>to</strong> tudo cheguei à conclusão que era necessário penetrar no coração do<br />
rectângulo. A base secreta da qual ninguém sabia a localização.<br />
- Senão já não era secreta – acrescen<strong>to</strong>u Zero.<br />
- Obrigado, branquinho. Por isso, nada melhor do que ser capturado. Esse localizador<br />
estava implantado no meu dente e tem estado a transmitir a minha posição para o Stallion. É<br />
isso mesmo, querida. Ele vem aí e traz a cavalaria.<br />
matar.<br />
- Não é possível!!!<br />
- É querida. Perdeste e já não tens mais moedas para a máquina. Game Over.<br />
- Pois bem. Pode ser que fales verdade. Mas até ele chegar ainda tenho tempo de te<br />
- Também pensei nisso.<br />
Jack projec<strong>to</strong>u o seu corpo e atingiu Foxy em cheio no pei<strong>to</strong> com os pés. Ela<br />
desequilibrou-se e caiu. Chu avançou, mas Jack enrolou as pernas à volta do seu pescoço e<br />
estrangulou-o. Foxy levan<strong>to</strong>u-se confusa, deu um gri<strong>to</strong> de pânico e saiu a correr. Nesse<br />
momen<strong>to</strong> ouviu-se a primeira explosão e Chu caiu mor<strong>to</strong>.<br />
O ritual estava a terminar. O dragão elevou-se no ar. Os seus olhos verdes pareciam<br />
deitar chamas tal como os dela. Lótus continuou a recitar os encantamen<strong>to</strong>s. Estava a um<br />
passo de se <strong>to</strong>rnar invencível.<br />
- Ok, bucha. Esta é a nossa única oportunidade. Chega com o pé à mesa e puxa-a<br />
para ti. Tu, branquinho, vira-te de costas para ele. Quando ele <strong>to</strong>mbar a mesa certifica-te que<br />
apanhas algo para cortar as cordas. Is<strong>to</strong> se quiseres viver para poder pintar o cabelo de louro<br />
e comer <strong>to</strong>das gajas que quiseres. Acredita, pu<strong>to</strong>, is<strong>to</strong> de ser agente secre<strong>to</strong> compensa.<br />
Pergunta à Jade sobre hoje à tarde.<br />
- És um nojen<strong>to</strong>, Jack.<br />
- Mas tu gostas, querida.<br />
Fat engoliu em seco quando com o pé <strong>to</strong>mbou a mesa. Os instrumen<strong>to</strong>s de <strong>to</strong>rtura do<br />
falecido Chu caíram, e Zero fechou as mãos tentando apanhar algum. Conseguiu apanhar<br />
um estilete mas apenas pela ponta.<br />
- Força, branquinho. Es<strong>to</strong>u a falar de miúdas que punham a Farrah Fawcett a milhas.<br />
Zero concentrou-se e por fim conseguiu segurar na faca.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 89 de 117
- Agora corta isso e liberta-nos.<br />
Lá fora parecia a terceira guerra mundial. Depois de Zero cortar <strong>to</strong>das as cordas Jack<br />
olhou para Jade e deu uma gargalhada.<br />
ali.<br />
acabar.<br />
disseste.<br />
- Não estás nada gorda, querida. É só inveja.<br />
Jade deu-lhe um enorme estalo e, se o olhar matasse, o pobre Jack teria morrido logo<br />
- Is<strong>to</strong> é por me teres usado.<br />
- Is<strong>to</strong> está-se a <strong>to</strong>rnar um padrão. Bem, miúdos, vocês fiquem escondidos até is<strong>to</strong><br />
- Os meus pais, tenho de os salvar.<br />
- Eu tra<strong>to</strong> disso – respondeu Jack.<br />
- Tu tens que apanhar a Lótus. Is<strong>to</strong> é problema meu. É altura de agir. Foste tu que o<br />
- Bucha, deixas-me orgulhoso. És estúpido mas deixas-me orgulhoso. Jade, ajuda-os.<br />
- Eu vou é sair daqui, Jack.<br />
- Pensei que ainda tinhas umas contas a ajustar com a Foxy.<br />
- Vive para lutar outro dia. Adeus, Jack.<br />
Jade beijou-o apaixonadamente nos lábios e saiu para a confusão. Zero olhou Jack de<br />
olhos arregalados.<br />
pu<strong>to</strong>s.<br />
- Tu és mesmo o “homem”, Jack.<br />
- Eu sei, pu<strong>to</strong>. Eu sei. Bucha, não há maneira de te convencer a ficares aqui?<br />
- Não!<br />
- Pois bem. Boa sorte então. Eu tenho de apanhar uma japonesa marada. Desculpem,<br />
Jack saiu e surpreendeu um ninja por detrás. Com um golpe partiu-lhe o pescoço e<br />
pegou na sua espada. Depois passou-a a Fattapollus.<br />
- Tem cuidado pu<strong>to</strong>. Não te cortes.<br />
Estava mais próxima que nunca. Sentia a electricidade no ar. Lótus levi<strong>to</strong>u e uma luz<br />
verde, cegante, saiu do seu pei<strong>to</strong>. Ela gri<strong>to</strong>u e caiu. Estava morta.<br />
Havia ninjas por <strong>to</strong>do o lado. Homens com a farda do exérci<strong>to</strong> usavam um autêntico<br />
arsenal de metralhadoras, granadas e espingardas para os manter à distância. As coisas<br />
pareciam equilibradas. Fattapollus e Zero tentavam passar despercebidos. Viram um<br />
elevador e entraram.<br />
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Farrah!<br />
- Qual é o andar?<br />
- Onde costumam ser as masmorras? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />
- Na cave?<br />
- Acho que sim. Carrega no último.<br />
O elevador desceu calmamente, ignorando o inferno de balas e sangue ao seu lado.<br />
- Não precisavas de ter vindo, Zero.<br />
- Sou teu amigo. Estás em apuros. Além disso não ouviste? Miúdas melhores que a<br />
Ambos se riram. Quando o elevador se abriu foram surpreendidos por Foxy. Ela<br />
puxou-os para fora e atirou-os para o chão.<br />
- Posso estar acabada mas vou levar alguém comigo.<br />
Fattapollus apanhou a espada e apon<strong>to</strong>u-a a Foxy.<br />
- Não te quero magoar mas…<br />
Foxy riu-se antes que ele acabasse.<br />
- És ridículo. Já te podia ter mor<strong>to</strong> se quisesse.<br />
Fat enfureceu-se e lançou-se contra a inimiga. Foxy não esperava e não se desviou a<br />
tempo. A lâmina cor<strong>to</strong>u o seu braço. Um corte profundo.<br />
- Vais pagar por is<strong>to</strong>!!!<br />
A espia deu um pontapé no ros<strong>to</strong> de Fattapollus que caiu quase inconsciente. Zero<br />
sal<strong>to</strong>u para cima de Foxy com <strong>to</strong>da a coragem que tinha. Enrolou as pernas à volta da sua<br />
cintura e ten<strong>to</strong>u fazer-lhe uma gravata bem ao estilo de Ted DiBiase, o seu wrestler favori<strong>to</strong>.<br />
Mas não havia hipóteses. Foxy recuou contra a parede e Zero bateu com as costas gritando<br />
de dor. Ao cair agarrou-se à camisa de Foxy e acabou por a rasgar.<br />
- Esta era a minha camisa preferida.<br />
- Desculpa?<br />
Quando Foxy se virou os seus volumosos pei<strong>to</strong>s abanavam num soutien pre<strong>to</strong>.<br />
- Ajuda se eu dizer que o pre<strong>to</strong> é a minha cor preferida? – arriscou Zero.<br />
Foxy olhou para o seu pei<strong>to</strong> e percebeu onde ele tinha os olhos.<br />
- Seu…<br />
- Larga o fininho, cabra!<br />
Foxy virou-se e viu Jade, no seu biquíni vermelho, a sair do elevador.<br />
- Eu vou gostar dis<strong>to</strong> – disse Foxy sorrindo.<br />
- Eu vou gostar mais – respondeu Jade.<br />
- E eu ainda mais – exclamou Zero.<br />
Ambas olharam para ele e Zero engoliu em seco.<br />
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Jack chegou finalmente aos aposen<strong>to</strong>s de Lótus, depois de lutar com mais de uma<br />
dezena de ninjas. Quando entrou viu a sua catana pendurada na parede, em exposição.<br />
- Volta ao papá. Eu sei que tiveste saudades.<br />
Alerta, agora armado com a sua espada, explorou o res<strong>to</strong> do espaço. Foi então que<br />
reparou nela no chão, pálida. O dragão estava caído ao seu lado. Com cautela Jack baixou-se<br />
e verificou-lhe a pulsação. Depois levan<strong>to</strong>u-se algo desapontado.<br />
parede.<br />
representar!<br />
- É pena. Gostava de te ter enfrentado.<br />
- Vais ter a tua chance Jack Bravo. Morri para renascer com o poder!<br />
Sentiu a mão de Lótus na perna. Depois foi projectado com uma força brutal contra a<br />
- Vieste lutar contra uma assassina e encontraste uma Deusa!<br />
- Isso parece saído de um filme foleiro com um herói de acção que não sabe<br />
IX<br />
Jade e Foxy lutavam com uma raiva sem igual. Ambas sangravam da boca com os<br />
golpes recebidos. Tinham estilos diferentes. Jade era perita em Kung-Fu, enquan<strong>to</strong> Foxy<br />
tinha o talen<strong>to</strong> de um ninja. Zero e Fattapollus observavam, conforme os seus corpos<br />
abanavam e balouçavam ao ritmo da luta.<br />
- Fat, pá…is<strong>to</strong> é óptimo.<br />
- Eu sei.<br />
Os insul<strong>to</strong>s choviam. Era o jogo mental.<br />
- Não há nada melhor que uma miúda boa a falar mal.<br />
- Quando estás cer<strong>to</strong>, estás cer<strong>to</strong>, Zero.<br />
Numa paragem Jade virou-se para Fat quase sem fôlego mas com os olhos a faiscar.<br />
- E que tal ires salvar os teus pais bucha?<br />
- Ah, sim, tens razão. Vamos Zero.<br />
- Temos mesmo?<br />
- Zero… JÁ!<br />
- Sabes quan<strong>to</strong> tempo esperei por is<strong>to</strong>, Bravo?<br />
Os olhos verdes de Lótus brilhavam. Jack ten<strong>to</strong>u aplicar alguns golpes, mas era como<br />
se ela não os sentisse. Cada murro de Lótus despedaçava-o por dentro.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 92 de 117
- Os rumores são verdade. Há alguém acima de mim no rectângulo. O verdadeiro<br />
líder. Só ele sabia os encantamen<strong>to</strong>s para realizar o ritual. Mas ele cometeu um enorme erro.<br />
Confiou em mim.<br />
Lótus enviou Jack contra a parede e depois, com um pontapé, projec<strong>to</strong>u-o para o<br />
outro lado da sala.<br />
- Ele partilhou-os comigo. Agora eu tenho o poder. Sin<strong>to</strong>-o nas veias. Sou invencível.<br />
Sou imortal! Ajoelha-te perante o meu poder.<br />
Jack cuspiu sangue da boca e encarou-a.<br />
- Lótus, tu não passas de uma anormal.<br />
Fattapollus e Zero correram por um corredor apertado. Por fim encontraram uma<br />
cela. Fat bateu na porta de ferro e chamou pelo pai.<br />
cima.<br />
- John? És tu filho?<br />
- Sim pai. Estás bem?<br />
- Sim. Mas como chegaste aqui? Afinal o que se passa?<br />
- Eu depois explico tudo. Sabes onde está a chave?<br />
- Tínhamos um guarda, mas não o ouço desde que começou aquela confusão lá em<br />
Zero baixou-se e apanhou algo.<br />
- Fat acho que o guarda deser<strong>to</strong>u e deixou as chaves para nós.<br />
Fat abriu a pesada porta e abraçou os seus pais.<br />
- Está tudo bem filho.<br />
Stellios limpou uma lágrima e agarrou em Zero com emoção.<br />
- Anda cá também, pu<strong>to</strong>. Pron<strong>to</strong>… está tudo bem.<br />
- Uh…eu não consigo respirar. Mui<strong>to</strong>…forte…<br />
Jade olhou para os olhos dementes de Foxy. As suas mãos estrangulavam-na e o peso<br />
de Foxy, por cima de si, não a deixava mexer-se. Ten<strong>to</strong>u procurar algo, mas nada lhe veio às<br />
mãos.<br />
- Es<strong>to</strong>u a ver a vida a escoar-se do teu corpo Jade. Vais morrer.<br />
A sua visão começou a ficar turva. As forças abandonavam-na. Negro…<br />
Ouviu o barulho e a tensão no seu pescoço aliviou-se. Depois abriu os olhos e viu<br />
Foxy no chão inconsciente com terra a tapar-lhe a cara. Zero segurava o que restava de um<br />
vaso.<br />
- Nunca, mas nunca chateies um albino.<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 93 de 117
Zero deu a mão a Jade a ajudou-a a levantar-se.<br />
- Obrigado.<br />
- Tudo num dia de trabalho – respondeu Zero orgulhoso.<br />
- Eu não acredi<strong>to</strong> nis<strong>to</strong> - disse Jade incrédula.<br />
Foxy levan<strong>to</strong>u-se e correu para o par mais improvável do mundo. Suja de terra,<br />
despenteada, a sangrar, Foxy era uma visão realmente assustadora. Menos para Jade. A<br />
ladra empurrou Zero para o lado e esquivou-se a Foxy. Esta bateu com o ros<strong>to</strong> na parede e<br />
recuou directamente para Jade que com um ges<strong>to</strong> rápido lhe partiu o pescoço.<br />
demorado.<br />
- Pareces nervosa! Que tal este valium, cabra?<br />
Zero olhou Jade absolutamente apaixonado.<br />
- Metes-me medo.<br />
- Ainda bem, pu<strong>to</strong>. Agora vamos sair daqui. Deus… preciso mesmo de um banho<br />
- Por acaso eu…<br />
- Não abuses miúdo.<br />
- Ok!<br />
Jack calculou que tinha hemorragias internas pela quantidade de sangue que cuspiu.<br />
Viu a sua espada caída a poucos metros.<br />
- Há uma coisa que eu não percebo.<br />
- Diz, mortal.<br />
- Suponho que um tipo para chegar ao <strong>to</strong>po do rectângulo tem de ser um bocadinho<br />
inteligente. Is<strong>to</strong> para não dizer uma besta cruel, sem sentimen<strong>to</strong>s.<br />
- Estás cer<strong>to</strong>. Continua.<br />
- Então porque é que um tipo que é tão “bom”, de tal forma que ninguém conhece<br />
sequer a sua existência, corre o risco de te mandar procurar o dragão tendo-te di<strong>to</strong> os seus<br />
segredos?<br />
- Porquê, mortal? Porque confia em mim.<br />
- Sabes o quê que eu acho? Eu acho que is<strong>to</strong> foi tudo um teste.<br />
Jack cuspiu mais sangue.<br />
- Esse tipo queria ver se tu eras leal. Dá-te o segredo do dragão e manda-te procurá-<br />
lo, mas tira uma sílaba aqui, outra ali… enfim muda qualquer coisa nos encantamen<strong>to</strong>s. Eu<br />
conheço a lenda, Lótus. Se alguém que “não merece” tentar efectuar o ritual o seu destino é a<br />
morte e a maldição eterna. Sabes tão bem quan<strong>to</strong> eu.<br />
- MENTES!<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 94 de 117
espada.<br />
ficou imóvel.<br />
Lótus deu um enorme pontapé no pei<strong>to</strong> de Jack. Ele estava agora ainda mais per<strong>to</strong> da<br />
- Pelos meus cálculos deves estar mesmo a dizer adeus, Lótus.<br />
- Eu sou imortal. Nasci para conquistar o mundo.<br />
Jack estava a um palmo da distância da sua arma. Lótus avançou mas subitamente<br />
- As minhas forças…não me consigo mexer.<br />
- Eu avisei-te. Estes tipinhos que lideram organizações criminosas são sempre um<br />
bocadinho mentirosos.<br />
- Não pode ser. Não é possível – gri<strong>to</strong>u Lótus.<br />
Jack agarrou a espada e levan<strong>to</strong>u-se. Lótus estava agora a levitar. Tinha um esgar de<br />
dor. Sentia-se a energia a devorá-la.<br />
- Só mais uma coisa, Lótus. A única coisa que vais conquistar é o inferno.<br />
Jack lançou a catana com <strong>to</strong>das as suas forças. A lâmina penetrou no pei<strong>to</strong> de Lótus<br />
a atravessou-a.<br />
- Não!!!!!!<br />
Lótus cuspiu sangue e depois deu um gri<strong>to</strong> terrível. A energia lançou-a contra a<br />
parede e o seu corpo explodiu com o impac<strong>to</strong>, desintegrando-se.<br />
rectângulo.<br />
- A escola acabou! Adeus, Lótus.<br />
Jack reparou que lá fora os tiros tinham parado. Stallion conquistara a base do<br />
- Lótus? Estás aí?<br />
Jack virou-se e viu a televisão ligar-se au<strong>to</strong>maticamente. O homem na sombra tentava<br />
contactar a sua protegida.<br />
- Lótus? O que se passa?<br />
Jack colocou-se bem em frente do aparelho. A câmara devia estar por ali. O homem<br />
sobressal<strong>to</strong>u-se com a sua presença.<br />
- Bravo!<br />
- É verdade. Ainda cá es<strong>to</strong>u. Guardem as vossas filhas.<br />
- A Lótus?<br />
- Neste momen<strong>to</strong> deve estar num sítio quente com um anfitrião divertido chamado<br />
Lúcifer. Ela vai sentir-se em casa.<br />
- Maldi<strong>to</strong> sejas.<br />
- Tu sabes o que fizeste. Deste-lhe o encantamen<strong>to</strong> errado.<br />
- Tens razão no que dizes, cão nojen<strong>to</strong>. Ela tinha de provar a sua lealdade.<br />
- Tu conhecia-la. Sabias que ela iria cair na tentação. Quiseste eliminá-la.<br />
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Bravo?<br />
- Talvez, mas agora o caminho está livre. O que dizes a trabalhar para mim, Jack<br />
Jack deu uma gargalhada sonora.<br />
- Is<strong>to</strong> ainda agora começou Fu Manchu. Eu vou atrás de ti a seguir.<br />
- Podes ter-me derrotado nos EUA mas nunca o farás no meu território Bravo.<br />
- Não apostes nisso.<br />
- A casa ganha sempre – disse o homem envol<strong>to</strong> em escuridão.<br />
- Mas eu faço ba<strong>to</strong>ta.<br />
Jack pegou na televisão e lançou-a pelo ar. O aparelho fez um enorme estrondo ao<br />
cair, despedaçando-se.<br />
apanhar.<br />
- As sombras não duram sempre. O sol há-de nascer e eu vou estar lá para te<br />
Zero seguiu Jade até uma saída secundária.<br />
X<br />
- Vocês estão a salvo. Agora tenho de ir. A agência do Jack tem umas coisas para me<br />
perguntar e eu não quero responder, mesmo que eles perguntem com jeitinho. Se vires o<br />
Jack diz-lhe que, se ele vier, eu estarei preparada para ele.<br />
- Voltaremos a ver-nos? – pergun<strong>to</strong>u Zero timidamente.<br />
- Peço a Deus que não – respondeu ela friamente.<br />
Zero com uma expressão triste viu Jade a afastar-se. Virou-se para partir ao encontro<br />
de Fat mas sentiu um leve <strong>to</strong>que nos ombros. Vol<strong>to</strong>u-se e viu Jade atrás de si. Tremeu. Ela<br />
inclinou o pescoço e beijou-o nos lábios. Um beijo longo.<br />
- Mas eu e o grande homem lá em cima nunca nos demos mui<strong>to</strong> bem, por isso…<br />
quem sabe? Talvez um dia, noutras circunstâncias. Nunca me disseste o teu nome, pois não?<br />
- Chamam-me Zerom mas o meu nome verdadeiro é…<br />
- Sim?<br />
- Arnold Seagal.<br />
Zero fechou os olhos quando Jade o beijou de novo. Quando os abriu a ladra<br />
desaparecera. Nesse momen<strong>to</strong> ouviu o alarme.<br />
“Mecanismos de au<strong>to</strong>destruição activados. A Base Será Destruída em sessenta<br />
segundos. Cinquenta e nove…cinquenta e oi<strong>to</strong>”<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 96 de 117
Bravo encontrou Fattapollus.<br />
- Temos de sair daqui bucha. O miúdo pálido?<br />
- Es<strong>to</strong>u aqui – gri<strong>to</strong>u Zero.<br />
Stallion jun<strong>to</strong>u-se-lhes.<br />
- Está na hora de correr, Bravo. Consegues mexer-te?<br />
- Claro que sim. Os pais do gordo?<br />
- Já estão lá fora. Já evacuamos o nosso pessoal – explicou Stallion.<br />
- Eu quis voltar para vos procurar.<br />
- És um gordo porreiro. Agora corre – gri<strong>to</strong>u Jack.<br />
Saíram do edifício para a noite escura. Cinco segundos mais tarde a base secreta dos<br />
ninjas do rectângulo dourado explodiu, pintando o céu de laranja e vermelho. Estavam<br />
salvos.<br />
Stallion estava ao seu lado enquan<strong>to</strong> um médico que pertencia à organização o<br />
suturava. Estava sentado nas traseiras de uma ambulância.<br />
- A Lótus?<br />
- Reben<strong>to</strong>u – respondeu Jack.<br />
- Óptimo. O dragão também já está a salvo. Mais uma missão cumprida.<br />
- O que disseste ao comité era verdade, Stallion. Ela não era a verdadeira líder. O<br />
homem que ma<strong>to</strong>u a tua família continua à solta.<br />
- Agora é tempo de paz, Bravo. Demasiado sangue foi já derramado. Cura-te antes de<br />
voltares ao campo de batalha.<br />
Stallion afas<strong>to</strong>u-se. Um homem solitário, triste e com uma vingança para executar. O<br />
médico acabou a sutura na ferida e Jack levan<strong>to</strong>u-se.<br />
- Precisa de cuidados médicos.<br />
- Eu es<strong>to</strong>u bem pá. Só preciso de uma conversa com o meu amigo Johnnie Walker.<br />
Além disso tenho assun<strong>to</strong>s a tratar. Olha para aquela beleza.<br />
Bravo dirigiu-se a um Ferrari vermelho que se destacava no meio dos carros dos<br />
bombeiros e ambulâncias. Não estava trancado e tinha a chave na ignição. Jack sorriu.<br />
- O meu próprio Ferrari. Obrigado Lótus. Não vais precisar mais dele.<br />
Fattapollus e Zero aproximaram-se. Estavam em mau estado, sujos e com algumas<br />
feridas, mas pareciam excitados e, mais do que isso, vivos como nunca.<br />
- Bucha, ainda inteiro?<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 97 de 117
- E tu Jack! Pron<strong>to</strong> para outra?<br />
- Só depois de umas férias. Portaste-te bem miúdo. A tua família?<br />
- Estão a ser examinados pelos médicos. Está tudo bem.<br />
- Óptimo.<br />
Olharam à volta. Era o caos depois da luta. O sítio estava praticamente destruído.<br />
Nada se salvara.<br />
- Boni<strong>to</strong> Ferrari – disse Zero.<br />
- E é <strong>to</strong>do meu. Is<strong>to</strong> é que é vida, miúdo.<br />
- Jack, no fim de tudo is<strong>to</strong>, só quero agradecer-te. Salvaste-nos.<br />
- Sim, bucha, mas também fui eu que te meti nis<strong>to</strong>.<br />
- Mesmo assim, obrigado.<br />
Fattapollus estendeu-lhe a mão e Jack aper<strong>to</strong>u-a.<br />
- O que se segue? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />
- Múmias? Canibais? – arriscou Fattapollus.<br />
Jack deu uma gargalhada.<br />
- Agora até a tua avó dava cabo de mim.<br />
- Só há uma coisa que ainda não sabemos. Depois do que passámos, não nos podes<br />
dizer qual é o teu nome de código? – pergun<strong>to</strong>u Zero.<br />
dois jovens.<br />
na noite.<br />
perigo o levar.<br />
- Vocês são porreiros, mas não tan<strong>to</strong>.<br />
- Voltaremos a cruzar-nos, Jack?<br />
- Há sempre a hipótese de haver uma sequela bucha. Até sempre.<br />
Jack entrou no Ferrari e ligou o mo<strong>to</strong>r potente. Depois abriu a janela e encarou os<br />
- Marilyn. Se contarem a alguém estão mor<strong>to</strong>s.<br />
Com habilidade con<strong>to</strong>rnou os obstáculos e arrancou a alta velocidade desaparecendo<br />
- Fat, esta foi um aventura de uma vida.<br />
- Eu sei, Zero. Eu sei.<br />
Jack Bravo. Agente secre<strong>to</strong> de uma organização sem nome. O seu destino? Aonde o<br />
FIM<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 98 de 117
Esta página foi intencionalmente deixada em branco<br />
(e quase ficou)<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 99 de 117
Deirdre (excer<strong>to</strong>)<br />
Era uma vez uma jovem rapariga que morava numa aldeia governada por um nobre e<br />
humilde rei. A cidade prosperava, o comércio era bom, a aldeia era animada em dias de festa<br />
e sossegada durante o res<strong>to</strong> do ano. Deirdre, a jovem rapariga, era mui<strong>to</strong> alegre e risonha.<br />
Gostava de sentir o ar fresco das manhãs quando abria as janelas da sua pequena casa, o sol<br />
brilhante aquecendo a sua pele branca quando vestia os seus vestidos simples e saía à rua.<br />
Era mui<strong>to</strong> simpática e gostava de contar histórias às crianças sobre os corajosos cavaleiros e<br />
os sábios antepassados do seu povo.<br />
Deirdre não era uma princesa. Não morava num castelo, não tinha grandes riquezas ou jóias<br />
brilhantes, nem criados que lhe penteassem o cabelo e lhe levassem água quente para o<br />
banho. Ela própria aprendera deste mui<strong>to</strong> cedo a prender os seus próprios cabelos numa<br />
longa e escura trança. Deirdre não se importava de fazer <strong>to</strong>das as coisas sozinha, sem<br />
ninguém por per<strong>to</strong> a oferecer ajuda, e não se sentia abandonada ou triste por isso. Mui<strong>to</strong><br />
pelo contrário, sentia-se bem consigo própria por ser capaz de resolver vários obstáculos e<br />
problemas. As princesas da sua aldeia tinham cabelos cor de ouro, eram mui<strong>to</strong> belas, ricas e<br />
não precisavam de fazer mui<strong>to</strong> para que os príncipes de outras aldeias e reinos olhassem<br />
para elas e se apaixonassem perdidamente. Mas Deirdre nunca quisera ser uma princesa;<br />
gostava da sua vida simples e alegre e nunca a teria trocado por qualquer outra coisa.<br />
Os anos passavam-se, as estações sucediam-se, as flores nasciam, perfumavam os campos,<br />
as ovelhas baliam nos verdes montes, o seu pêlo branco como a neve, celebravam-se festejos<br />
em honra dos deuses, em honra da fertilidade da terra, chegavam cavaleiros cheios de<br />
tesouros, as crianças cresciam correndo nas ruas, os Invernos chegavam, as árvores<br />
despiam-se, as ovelhas desapareciam, serviam-se jantares quentes e aconchegantes em casa,<br />
os cavaleiros partiam, a escuridão cobria os campos, a vida continuava e Deirdre <strong>to</strong>rnara-se<br />
uma jovem mulher.<br />
Quando o Verão estava já próximo, começaram uma vez mais os preparativos para a grande<br />
celebração da fertilidade em honra da deusa Brighid, a deusa que cuidava da terra,<br />
permitindo que os alimen<strong>to</strong>s crescessem saudáveis e em boa qualidade, e dos ventres das<br />
vacas, das ovelhas e de <strong>to</strong>das as mães da aldeia, para que quando os seus maridos<br />
chegassem das guerras sorrissem de alegria ao reparar em mais um berço em suas casas. As<br />
crianças pequenas não eram au<strong>to</strong>rizadas a assistir àquela celebração do princípio ao fim,<br />
ficando unicamente até ao acender das grandes Fogueiras. Nessa altura, os pais<br />
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empenhavam-se em ir deitar as suas crianças, pois o res<strong>to</strong> da Festa era apenas para os<br />
jovens mais crescidos, para os mais velhos e também para os anciãos da aldeia. Pela primeira<br />
vez em <strong>to</strong>da a sua vida, Deirdre poderia assistir à celebração integral, uma vez que nesse<br />
mesmo ano completara a idade mínima que era necessária para que nenhum adul<strong>to</strong> a<br />
mandasse para longe dos campos onde se acendiam Fogueiras em honra de Brighid.<br />
Deirdre olhava em seu redor, nessa noite. Todas as outras jovens dançavam em grandes<br />
grupos, rindo animadamente enquan<strong>to</strong> os seus vestidos e as suas sombras rodopiavam à luz<br />
das resplandecentes Fogueiras. Os longos cabelos presos em fitas coloridas, como cabia a<br />
qualquer mulher de boa educação e aprumo, davam as mãos aos seus respectivos pares ou<br />
formavam círculos em volta de uma Fogueira e cantavam ao som da música.<br />
— Dança comigo, Deirdre.<br />
Deirdre vol<strong>to</strong>u-se, apanhada de surpresa. Era Erling, um grande amigo seu, há mui<strong>to</strong> partido<br />
com as tropas do Rei para um guerra que prometia nunca mais acabar. Erling sempre a<br />
tratara mui<strong>to</strong> bem, sempre a respeitara como a uma irmã mais velha, apesar de não ser<br />
mui<strong>to</strong> mais novo. Deirdre sabia que o pequeno rapaz desenvolvera dissimuladamente por ela<br />
algo mais do que a forte amizade e cumplicidade que os unia, mas haviam passado bons<br />
momen<strong>to</strong>s jun<strong>to</strong>s, Deirdre ouvindo o amigo queixar-se das raparigas por quem se<br />
apaixonava, ainda que brevemente, e das zangas que tinha com outros rapazes nos treinos<br />
de espada. Era espan<strong>to</strong>so tê-lo ali na sua frente de novo. Tornara-se um jovem forte, boni<strong>to</strong>,<br />
provavelmente um óptimo guerreiro nas demandas do Rei. Deirdre deixou que um enorme<br />
sorriso lhe curvasse os lábios, enquan<strong>to</strong> abria os seus braços em <strong>to</strong>do o seu comprimen<strong>to</strong>.<br />
Erling retribuiu o forte abraço, sorrindo igualmente.<br />
— Não acredi<strong>to</strong> que voltaste, Erling!<br />
— Não podia deixar-te sozinha…<br />
Deirdre afas<strong>to</strong>u-o de si, sorrindo ainda. Continuava o mesmo desavergonhado, não havia<br />
dúvida. Deirdre pergun<strong>to</strong>u-se sobre qual das raparigas que rodopiava naquela festa viria a<br />
ser a mãe dos filhos do bravo e corajoso Erling, mas rapidamente esta ideia saiu do<br />
pensamen<strong>to</strong>. À sua frente, mais gente se juntava à dança, sempre os mesmos sorrisos de<br />
despreocupação e divertimen<strong>to</strong>. Mas houve um sorriso que cativou Deirdre mais do que<br />
qualquer outro, mais até do que o do jovem Erling dos cabelos claros e olhos cor-de-mel, que<br />
percebendo que a sua eterna amada centrara a sua atenção noutro lado, ten<strong>to</strong>u <strong>to</strong>car-lhe na<br />
mão, talvez para lhe recordar que ele estava ali e que tinha voltado para ela.<br />
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Parecia que o outro jovem também olhava para Deirdre, enquan<strong>to</strong> ambos se aproximavam<br />
um do outro. Deirdre nunca se apaixonara antes, mas aquele jovem al<strong>to</strong> e moreno, Fingal de<br />
seu nome, capturara de modo instantâneo e perigoso a sua atenção. Deirdre não soube dizer<br />
como tudo aconteceu, apenas sabia que dançara <strong>to</strong>da a noite com o mesmo jovem, que se<br />
divertira imenso, que ele era simpático e atencioso e que poderia mui<strong>to</strong> bem ser a encarnação<br />
do seu sonho mais profundo.<br />
No dia seguinte, Deirdre ainda se sentia feliz e pensava bastante em <strong>to</strong>das as palavras e<br />
<strong>to</strong>dos os ges<strong>to</strong>s de Fingal. Nunca antes se sentira tão leve, tão cheia de alegria, tão rica agora<br />
que o seu coração fora preenchido com um tão poderoso tesouro…Fingal tratava-a bem, era<br />
simpático e fazia-a rir, dava-lhe atenção e fazia-a sentir-me mui<strong>to</strong> bem. O seu coração não<br />
podia ter escolhido melhor, não poderia nunca estar enganado. Só mais tarde nesse dia<br />
Deirdre se recordou do seu amigo recém-chegado, Erling, e sentiu-se um pouco mal por não<br />
ter celebrado com ele o seu regresso. Bom, pensou Deirdre enquan<strong>to</strong> colocava na cabeça o<br />
pote com que costumava recolher água fresca do rio que passava per<strong>to</strong> de sua casa,<br />
provavelmente ele também se esquecera completamente dela e encontrara uma bela rapariga<br />
com quem passar a noite…<br />
Deirdre não cantarolava enquan<strong>to</strong> caminhava pelas ruas, como já vira as suas irmãs mais<br />
velhas e outras raparigas fazer quando estavam apaixonadas. Para Deirdre, esse era a mais<br />
preciosa das riquezas e portan<strong>to</strong> guardava para si o sorriso de Fingal gravado na sua mente.<br />
No entan<strong>to</strong>, o seu olhar brilhava e os seus lábios sorriam, mesmo contra a sua vontade em<br />
permitir que se <strong>to</strong>rnasse claro o que lhe ia no espíri<strong>to</strong>.<br />
As noites e os dias sucediam-se contínua e ininterruptamente e o Verão estava cada vez mais<br />
per<strong>to</strong>. Deirdre e Fingal passavam algumas tardes jun<strong>to</strong>s, passeando pelos campos verdes<br />
enquan<strong>to</strong> o Sol descia do pon<strong>to</strong> mais al<strong>to</strong> do céu até se perder no mar, sem nunca deixar de<br />
iluminar os cabelos morenos de ambos. Conversavam longamente, sentados per<strong>to</strong> da costa,<br />
sentindo o cheiro salgado a maresia e observando as gaivotas sobrevoando as suas cabeças e<br />
mergulhando nas águas do mar em busca de alimen<strong>to</strong>, tão prazenteiras na tarefa monó<strong>to</strong>na<br />
que lhes garantia a sobrevivência.<br />
Não se podia dizer que os dois jovens eram namorados, pois nunca tinham selado tal laço<br />
com nenhum ac<strong>to</strong> em especial, mas entendiam-se bem jun<strong>to</strong>s e conversavam sobre várias<br />
coisas. Deirdre não tinha pressa; só a companhia dele fazia dela uma rapariga feliz e<br />
contentava-se com isso. Quando não estava com o seu querido Fingall, Deirdre trabalhava na<br />
aldeia, ajudando nas tarefas das mulheres, cozendo pão, tecendo belas e longas tapeçarias,<br />
moldando barro, preparando medicamen<strong>to</strong>s e unguen<strong>to</strong>s para a gente ferida e amanhando o<br />
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peixe para os jantares em família. Deirdre não se considerava a ideal dona de casa, muitas<br />
destas tarefas eram feitas porque <strong>to</strong>das as filhas da sua mãe ajudavam e ela não poderia<br />
fugir à regra. Mas o que Deirdre mais gostava de fazer era passear pelos campos, observar o<br />
mar brilhante no Verão ou o fogo faiscante na lareira da sua casa, no Inverno. E inventar e<br />
contar novas histórias. Por vezes pegava nas suas irmãs mais novas e sentava-as gentilmente<br />
no seu colo, embalando-as docemente enquan<strong>to</strong> lhes contava as novas aventuras sobre<br />
Clodagh, uma rapariga corajosa que estava sempre na linha da frente das tropas do seu Rei e<br />
que era, portan<strong>to</strong>, uma feroz guerreira. Quan<strong>to</strong> a Erling, Deirdre falava pouco com ele. Ele<br />
andava sempre ocupado com qualquer coisa ou pouco dispos<strong>to</strong> a conversar durante mais do<br />
que alguns minu<strong>to</strong>s. Havia uma mulher na aldeia que lhe sorria sempre que ela passava e<br />
Deirdre sorria de volta, sabendo que a outra lhe sorria por ter percebido que brilho era aquele<br />
nos seus olhos claros. No entan<strong>to</strong>, Deirdre nunca parava para conversar com a mulher, pois<br />
ela dizia-lhe sempre uma frase que a deixava incomodada…”Ele está bem mais per<strong>to</strong> do que<br />
imaginas…E afasta-lo para cada vez mais longe”… Deirdre não entendia o que quereria<br />
aquilo dizer, mas era óbvio para si que Fingall não estava longe de si… De res<strong>to</strong>, estava tudo<br />
bem e a vida seguia, na mais completa da sua maravilha.<br />
Certa manhã, tão dourada e fresca como tantas outras naquele Verão delicioso, Deirdre<br />
pulou da cama, vestiu um dos seus vestidos preferidos, enrolou o cabelo brilhante com uma<br />
fita vermelha e correu para a costa, onde esperaria pela chegada de Fingall, como tantas<br />
outras vezes fizera. Mas, naquela manhã em que o ven<strong>to</strong> soprava um pouco mais forte do que<br />
o habitual, uma grande comitiva ali se juntara, as senhoras abanando pequenos lenços<br />
brancos em sinal de despedida. Deirdre olhou na direcção do horizonte e viu o enorme navio<br />
que partia. Provavelmente, tratava-se da partida de alguma princesa que partia com o seu<br />
marido para outros reinos ou talvez fosse apenas mais uma viagem da realeza. Deirdre nunca<br />
prestava atenção a coisas respeitantes à vida real, nunca sentia grande interesse por isso,<br />
mas resolveu perguntar a uma senhora que se encontrava a seu lado e que chorava<br />
perdidamente, assoando-se ruidosamente ao seu lencinho branco.<br />
— Desculpai, minha Senhora — ten<strong>to</strong>u Deirdre, <strong>to</strong>cando ao de leve no ombro da outra —<br />
Podeis dizer-me quem parte naquele navio rumo ao horizonte e porque se aglomerou aqui<br />
tanta gente para o ver partir? É o nosso Rei que parte?<br />
— Oh não, pequena — disse a senhora, limpando mais uma vez o seu nariz enorme e<br />
secando as lágrimas — Quem parte é a minha menina…Cuidei dela até crescer e ela agora<br />
abandona-me! Mas não posso repreendê-la, pois é a lei natural das coisas…<br />
Deirdre sentiu pena da pobre senhora que perdia agora a sua filha querida.<br />
— Não tendes mais filhos? Mais ninguém que preencha o vosso tempo e de quem possais<br />
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cuidar com o mesmo amor com que cuidastes da vossa filha que vedes partir?<br />
— Oh não, ela não é minha filha — disse a senhora, olhando para Deirdre — Trata-se de uma<br />
das filhas mais novas do Rei, que parte com o seu marido para outras terras. Eu eduquei-a,<br />
contei-lhe histórias, penteei-lhe os cabelos dourados…<br />
Deirdre pensou por instantes. No dia anterior tinha realmente sido realizada uma festa no<br />
castelo do Rei, mas apenas as suas irmãs mais velhas tinham comparecido, pois algumas já<br />
tinham idade para casar e estas ocasiões permitiam arranjar maridos. Deirdre tinha ficado<br />
em casa, velando o sono da sua irmãzinha mais nova que fora atingida por uma súbita<br />
doença.<br />
— Pelo menos poderei dormir descansada — continuou a outra, falando com Deirdre —<br />
Scarlett fez um bom casamen<strong>to</strong>. Ele é um jovem hones<strong>to</strong>, de sangue real e puro e <strong>to</strong>mará<br />
bem conta da minha pequena. Ela é apenas um pouco mais velha do que tu.<br />
— Fico contente por si e pela princesa — disse Deirdre sorrindo simpaticamente para a<br />
mulher.<br />
— Talvez encontres também tu um Fingall Coghlan, se bem que as raparigas do povo não<br />
podem nunca esperar casar tão bem quan<strong>to</strong> as…<br />
Deirdre já não a ouvia. O seu coração disparara de repente e parecia querer rebentar-lhe no<br />
pei<strong>to</strong>, tal era a força com que batia. Sentiu o seu corpo ficar rígido e imóvel e deixou de ouvir<br />
o que quer que fosse que estivesse à sua volta. O próprio chão parecia ter-se aber<strong>to</strong> num<br />
enorme e escuro buraco e Deirdre pensava vir a ser engolida por ele a qualquer momen<strong>to</strong>.<br />
Não era uma coincidência. Não havia nenhum outro Fingall Coghlan naquela pequena aldeia<br />
onde <strong>to</strong>dos se conheciam e se falavam. E Fingall ainda não aparecera. Nem iria aparecer.<br />
Nesse mesmo momen<strong>to</strong>, Deirdre sentiu estilhaçar-se em pedaços qualquer coisa dentro de si,<br />
qualquer coisa que até então não soubera ser frágil.<br />
Durante três dias, Deirdre não foi a rapariga alegre e despachada que <strong>to</strong>dos conheciam.<br />
Alguns pensaram que ela havia adoecido, talvez tivesse sido apanhada pela mesma doença<br />
que afectara a pequena Fiona, a mais nova das irmãs, que de igual a tinha deixado pálida,<br />
apática e sem apetite pelo que quer que fosse. Outros diziam que os Espíri<strong>to</strong>s do mar lhe<br />
tinham reclamado a alma por ela passar mui<strong>to</strong> do seu tempo livre observando a ondulação e<br />
a beleza das águas, e outros ainda inventavam razões mirabolantes para tão grande<br />
mudança. Deirdre não sorria, não falava sem ser preciso que uma das suas irmãs mais<br />
velhas perdesse a paciência com ela e lhe dirigisse um gri<strong>to</strong>, numa vã tentativa de vê-la<br />
reagir, não <strong>to</strong>cava no pra<strong>to</strong> na hora das refeições. A sua mãe não lhe pedia que a ajudasse<br />
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nas tarefas domésticas e parecia não reparar que a sua filha saía de manhã e voltava à noite,<br />
não lhe impondo qualquer objecção, na secreta esperança que ela voltasse a ser mesma.<br />
No terceiro dia após a partida da princesa, ao fim da tarde, Deirdre vol<strong>to</strong>u para casa com um<br />
pouco mais de cor no ros<strong>to</strong>. Ao jantar, acei<strong>to</strong>u um pouco de vinho quente com especiarias<br />
que lhe serviu o pai e elogiou a comida preparada pela sua mãe. Uma das suas irmãs mais<br />
velhas pediu licença para se levantar da mesa e ausen<strong>to</strong>u-se durante um momen<strong>to</strong>, voltando<br />
pouco depois com uma flor de pétalas compridas e de cor viva, prendendo-a no cabelo de<br />
Deirdre. Parecia que o espíri<strong>to</strong> risonho da jovem Deirdre fora voltando a pouco e pouco a<br />
habitar o corpo. Deirdre voltara a sorrir, voltara a fiar e a tecer belos e quentes cober<strong>to</strong>res,<br />
voltara a narrar as aventuras de Clodagh, a guerreira. No entan<strong>to</strong>, algo parecia ser<br />
irremediável e incurável até para o tempo: Deirdre <strong>to</strong>rnara-se um pouco fria, um pouco<br />
distante, um pouco rígida e mui<strong>to</strong> mais séria do que fora alguma vez.<br />
Ninguém prestava muita atenção a este pormenor. Ela cresceu, diziam as pessoas. Tornou-se<br />
numa verdadeira mulher. Afirmavam também que não se espera de alguém que atinge tal<br />
maturidade as mesmas coisas que caracterizaram a sua infância. De fac<strong>to</strong>, a própria Deirdre<br />
sentia que algo em si mudara e que crescera. Mas sabia que se tratava de bem mais do que<br />
isso. Sentia que algo se perdera para sempre. “Não há nada que o Tempo não cure”, parecia<br />
ser a nova frase preferida da mulher da aldeia, que tinha especial talen<strong>to</strong> para a fazer sentir<br />
incomodada.<br />
Alguns anos se passaram. Duas das irmãs mais velhas haviam casado, ambas tendo direi<strong>to</strong> a<br />
belas cerimónias, ainda que simples, e Deirdre sentia-se mui<strong>to</strong> feliz pelas irmãs. Fiona<br />
crescia saudável, forte e bonita, uma pequena cópia da irmã Deirdre. Com o tempo deixara-<br />
se encantar por um jovem pescador da aldeia e passava o tempo <strong>to</strong>do a cantarolar e a<br />
assobiar alegremente. Deirdre pensou, aliviada, que o que quer que a impedisse de um<br />
caminho semelhante não parecia afligir o destino e a felicidade das irmãs, pois estas eram<br />
felizes e tudo prosperava. No entan<strong>to</strong>, Deirdre também era feliz à sua maneira. Fazia as<br />
coisas de que gostava e isso encantava-a.<br />
Erling, o jovem dos olhos cor-de-mel, partira e voltara à aldeia inúmeras vezes desde aquela<br />
vez em que reencontrara Deirdre. Os dois tinham alguns momen<strong>to</strong>s em que conversavam<br />
durante algum tempo, o que deixava Deirdre contente por ter de volta o seu amigo de<br />
sempre. Sentia-se protegida por ele, sentia que ele tinha em si um grande valor, o que por<br />
sua vez a fazia sentir-se bem. Deirdre costumava pensar para si própria, divertida, que ele<br />
acabara por se <strong>to</strong>rnar o seu Guardião. Mas não passava tan<strong>to</strong> tempo com ele quan<strong>to</strong> isso;<br />
Deirdre preferia passar <strong>to</strong>do o seu tempo ocupada com as coisas de que gostava de fazer e<br />
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que lhe mantinham a mente desocupada de problemas e coisas tristes. Por fim, conseguira<br />
sentir-se bem consigo própria, com a sua vida, com as suas tarefas. Não iria nunca estragar<br />
semelhante equilíbrio com o que quer que fosse.<br />
Numa das vezes em que caminhava pela aldeia, Deirdre, após se escapulir de per<strong>to</strong> da<br />
estranha mulher, que dessa vez se limitara a deitar-lhe um olhar profundo e tão incómodo<br />
quan<strong>to</strong> as suas palavras, decidiu procurar por Erling e convidá-lo para um passeio. Mas<br />
Erling partira novamente, para mais uma das suas viagens sob comando do Rei. Deirdre não<br />
gostava que o amigo fosse um guerreiro; temia pela sua vida, temia vê-lo regressar estropiado<br />
ou pior que isso, derrotado e de espíri<strong>to</strong> destruído, pois Deirdre sabia da enorme vontade e<br />
empenho de Erling em ser o melhor dos guerreiros. Mas o que mais assustava Deirdre era a<br />
possibilidade de Erling não voltar sequer. Repleta de pensamen<strong>to</strong>s escuros sobre a segurança<br />
do melhor dos seus amigos, Deirdre deu meia volta e vol<strong>to</strong>u para casa, para os seus bordados<br />
e cozinhados. Mas durante os dias seguintes, para seu espan<strong>to</strong>, as suas tarefas foram<br />
incapazes de a distrair de pensamen<strong>to</strong>s relacionados com Erling.<br />
Com o passar do tempo, Deirdre descobriu que não conseguia parar de pensar no amigo, nos<br />
momen<strong>to</strong>s que passaram jun<strong>to</strong>s durante <strong>to</strong>dos aqueles anos e em como desejava com <strong>to</strong>das<br />
as suas forças que ele voltasse. No entan<strong>to</strong>, Deirdre sabia o que isso poderia significar e não<br />
gostava nem um pouco da ideia. Na verdade, assustava-a de morte. Mas Deirdre não<br />
conseguia impedir que certas coisas que lhe assomassem ao pensamen<strong>to</strong>, não conseguia<br />
deixar de pensar o quan<strong>to</strong> gostava dele, o quan<strong>to</strong> se preocupava com ele, o quan<strong>to</strong> lhe fazia<br />
falta o olhar tímido que ele tinha por vezes, quando estava com ela. Deirdre estava<br />
assustada; não queria sentir o mesmo que sentira por Fingall, sentir o mesmo que quase lhe<br />
roubara a alegria natural que ela tinha. Tinha lutado tan<strong>to</strong> por se manter forte, íntegra, tinha<br />
combatido tanta tristeza e escuridão para manter o seu espíri<strong>to</strong> puro e sorridente. Não podia<br />
cair na mesma armadilha de novo, não podia, tinha de lutar com <strong>to</strong>das as suas forças. Não<br />
Erling, que só se preocupava com os treinos de batalha e com imensas raparigas que lhe<br />
dirigiam olhares melosos quando ele passava na rua. Não Erling, que não mostrava o mínimo<br />
interesse pelas coisas de que Deirdre gostava. Não Erling que se <strong>to</strong>rnara isolado nos próprios<br />
problemas e que era demasiado orgulhoso para os partilhar. Não Erling, que já não tinha<br />
nela o amor da sua vida. Os dias foram passando e Deirdre tentava com <strong>to</strong>das as suas forças<br />
convencer-se de que tudo aquilo eram apenas saudades e temor pelo velho amigo, e nada<br />
mais. Nunca nada mais. Mas a sua ausência magoava-a acima de tudo.<br />
Erling vol<strong>to</strong>u numa manhã de Ou<strong>to</strong>no, mesmo a tempo de uma pequena festa levada a cabo<br />
pelos aldeões. Por vezes era preciso dar às ruas alguma animação e nada melhor do que<br />
enchê-las de música e pessoas a dançar. Assim, depois do habitual abraço forte que Deirdre<br />
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sempre fizera questão de dar ao amigo aquando dos seus regressos, Deirdre ficou à espera<br />
que Erling lhe pegasse na mão e a convidasse para dançar. Mas Erling não <strong>to</strong>cou sequer no<br />
assun<strong>to</strong>. Deirdre pensou que talvez ele estivesse cansado da viagem e trouxe-lhe uma caneca<br />
com vinho quente, que servia sempre para aquecer o corpo em dias frios como aquele. Mas<br />
Erling não elogiou a sua gentileza, não lhe elogiou os cabelos ou o sorriso, mal olhava para<br />
ela sequer, ocupado a pegar ao colo os irmãos mais novos ou a cumprimentar velhos amigos.<br />
Deirdre observava-o de per<strong>to</strong>. Não se importava realmente com a indiferença dele, tê-lo ali,<br />
com o seu sorriso tão boni<strong>to</strong>, os seus cabelos claros e os seus olhos cor de mel já lhe bastava.<br />
Mas Deirdre sentiu uma enorme dor no pei<strong>to</strong> e soube que <strong>to</strong>dos os dias em que pensara nele<br />
e tentara combater o que quer que fosse que pretendesse ocupar o seu espíri<strong>to</strong> haviam sido<br />
em vão. Deirdre falhara. Correspondera demasiado tarde ao afec<strong>to</strong> que tantas outras vezes<br />
lhe havia sido cautelosamente enviado por debaixo de sorrisos meigos e palavras simpáticas<br />
da parte de Erling. Deirdre fora incapaz de vencer a coisa estranha que a assaltara e a<br />
vencera e isso era agora irremediável.<br />
A jovem pegou nas saias do seu vestido e correu, o mais veloz que conseguia ser, embora não<br />
soubesse para onde ia. Simplesmente, continuou a correr como se fugisse de um monstro<br />
horrendo e mortífero, e só parou quando já não havia fôlego que lhe valesse. Felizmente,<br />
assim parecia, ninguém tinha reparado na aflição e profundo desgos<strong>to</strong> no seu olhar quando<br />
fugira da aldeia. Deirdre sentia-se aliviada por ninguém a ter seguido e por não ter de<br />
explicar o que lhe ia no espíri<strong>to</strong>. O seu coração sangrava, não havia como esconder isso, nem<br />
de si própria. Durante <strong>to</strong>do aquele tempo sentira nascer dentro de si algo que tentara matar,<br />
mas que crescera mais e mais. No entan<strong>to</strong>, era como se essa mesma coisa tivesse estado<br />
sempre ali, como se já fizesse parte dela há mui<strong>to</strong> tempo, nas conversas que tinha com ele,<br />
nos abraços fortes que lhe dirigia, nas palavras de confiança e encorajamen<strong>to</strong>, no mais<br />
inocente dos seus sorrisos, na alegria que a inundava quando ele voltava, nas festas que a<br />
sua mão lhe fazia nos cabelos claros, que até então estivera sempre disfarçado de carinho de<br />
irmã mais velha.<br />
Como pudera ser tão cega? Como pudera ser tão insensível ao que era tão óbvio e ao que<br />
estava mesmo a seu lado, claramente estampado nuns olhos cor de mel que iluminavam o<br />
caminho, mesmo quando não estavam ali, a olhar por ela. Mas agora era demasiado tarde.<br />
Demasiado tarde para ela. Demasiado tarde para Erling. Demasiado tarde para tentar<br />
recuperar fosse o que fosse do passado e salvar o futuro.<br />
Deirdre olhou em volta. Estava per<strong>to</strong> de um lago mui<strong>to</strong> boni<strong>to</strong> que costumava visitar algumas<br />
vezes, quando precisava de algum sossego para pôr os seus pensamen<strong>to</strong>s em ordem. Dizia-se<br />
que não era um lago comum, que as suas águas encerravam mistérios ilimitados e<br />
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inalcançáveis pela raça humana, mas Deirdre nunca pensara mui<strong>to</strong> na veracidade de<br />
semelhante lenda e, portan<strong>to</strong>, aproximou-se da água cintilante das estrelas que reflectia,<br />
<strong>to</strong>da a sua alma ocupada unicamente por um enorme desgos<strong>to</strong> e intricada dor. Diziam as<br />
histórias que aquelas águas tinham o poder de <strong>to</strong>rnar realidade mui<strong>to</strong>s desejos, o que não<br />
era necessariamente uma coisa boa, já que mui<strong>to</strong>s desejos são pedidos de ânimo leve e<br />
irresponsabilidade e mais tarde se vêem a revelar grandes pesadelos. Assim, à beira daquele<br />
lago, mui<strong>to</strong>s cavaleiros, reis, princesas e príncipes, mulheres, homens e crianças haviam<br />
tan<strong>to</strong> ganho grande felicidade, como perecido irremediavelmente.<br />
Perdida na sua mágoa, a jovem caiu de joelhos per<strong>to</strong> da água e, de cabeça baixa, não<br />
conseguiu evitar que os seus olhos se enchessem de lágrimas. Deirdre aprendera com o<br />
tempo a engolir as lágrimas que por vezes chegavam sem aviso, mas naquele momen<strong>to</strong>,<br />
permitiu-se extravasar um pouco da angústia que a a<strong>to</strong>rmentava. Ao fim de algum tempo,<br />
alguns dos seus cabelos estavam colados ao ros<strong>to</strong> de tan<strong>to</strong> que os seus olhos choraram, mas<br />
Deirdre parecia ser uma fonte inesgotável de água, como se <strong>to</strong>das as lágrimas outrora retidas<br />
se tivessem agarrado àquela oportunidade única de se verem livres de uma vez por <strong>to</strong>das.<br />
Soluçando amargamente, Deirdre levan<strong>to</strong>u ligeiramente a cabeça e espan<strong>to</strong>u-se por ver ali<br />
um bando de cisnes, flutuando gracilmente na superfície da água. Eram lindos, magníficos<br />
na sua brancura alva, quase de pérola, o olhar plácido e seguro, como se nada no mundo os<br />
preocupasse, como se estivessem conscientes da sua presença plena de encan<strong>to</strong> e serenidade<br />
num mundo tão injus<strong>to</strong> e doloroso.<br />
— Uma rapariga tão bonita não devia chorar dessa maneira…— disse uma voz feminina e<br />
calma. Deirdre virou a cabeça e de um dos seus lados, a alguma distância, estava uma<br />
mulher mui<strong>to</strong> bonita, que parecia saída das mais belas histórias de povos imaginários ou que<br />
outrora tinham ocupado aquela mesma terra, saudando a água, o ar, a terra, o céu, as<br />
árvores, <strong>to</strong>da a natureza, dedicando-lhes <strong>to</strong>da a sua alma. Eram inúmeras essas histórias e<br />
Deirdre contara muitas delas à pequena Fiona, agora já crescida.<br />
A mulher tinha longos cabelos ruivos, qual fogo flamejante no man<strong>to</strong> escuro do céu, uma pele<br />
mui<strong>to</strong> clara e um porte majes<strong>to</strong>so, no seu vestido cor de areia. Os seus olhos verdes<br />
brilhavam como safiras e reflectiam a míriade de estrelas do céu como se fossem fei<strong>to</strong>s a<br />
partir de um espelho. Deu alguns passos em frente, mas manteve-se a uma certa distância<br />
de Deirdre, que a olhava com grande espan<strong>to</strong>, numa mistura de medo, respei<strong>to</strong> e<br />
incredulidade. A outra tinha um olhar calmo, semelhante ao dos cisnes que se moviam<br />
lentamente pela água do lago.<br />
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— Quem és tu? — pergun<strong>to</strong>u Deirdre, enxugando rapidamente com as costas da mão as<br />
lágrimas que ameaçavam cair. Por momen<strong>to</strong>s, esquecera-se das suas boas maneiras.<br />
— Não temas, Deirdre — disse a mulher, num leve e breve curvar dos seus lábios.<br />
Deirdre não sabia o que dizer ou fazer. Sentia-se mui<strong>to</strong> só na sua dor, mas aquela não seria<br />
certamente a companhia que desejara. Era uma estranha, não sabia ao que vinha nem<br />
porque vinha. No entan<strong>to</strong>, Deirdre não conseguia arranjar forças para se levantar e procurar<br />
um outro lugar para tentar descansar o coração. Era como se, mesmo contra sua vontade,<br />
aquela figura exercesse um cer<strong>to</strong> poder e fascínio sobre ela, mantendo-lhe as saias presas ao<br />
chão.<br />
— Eu sei porque choras — disse a mulher, as mãos entrelaçadas na sua frente e poisadas no<br />
vestido. Parecia uma rainha, um ser poderoso de um outro povo. — Tiveste-o sempre tão<br />
per<strong>to</strong> de ti, mas não lhe deste o tipo de atenção que ele queria. Tiveste sempre os olhos dele<br />
poisados em ti, mas os teus fixavam outros horizontes. E agora tudo mudou. O que esperas<br />
conseguir?<br />
— Não sei — respondeu Deirdre, desviando brevemente o seu olhar incrédulo daquela<br />
mulher, portadora de uma verdade que ela já conhecia e que estava a destruir-lhe a pouco e<br />
pouco as entranhas. Deirdre não se sentiu melhor por ela ter falado daquela forma. — É<br />
tarde. Ele já não é meu nem vai voltar para mim.<br />
— Então sabes…— disse a outra. Dessa vez, Deirdre, que pensava que não poderia sofrer<br />
ainda mais do que já sofria, sentiu uma dor aguda e intensa picar-lhe o pei<strong>to</strong>, como um gri<strong>to</strong><br />
arrepiante que tentava sair das profundezas do seu ser. Deirdre pensou que a dor a iria<br />
dividir em duas, tal era o seu vigor e poder. Parecia-lhe que era demasiado cruel para ser<br />
provocado apenas por um homem, e então ocorreu-lhe que aquela era dor que emanavam de<br />
uma ferida antiga, que a cus<strong>to</strong> fechara, mas que agora se abria de par em par, jorrando <strong>to</strong>da<br />
a angústia no seu corpo.<br />
— Não tens culpa, filha — disse a mulher — Podemos escolher o nosso caminho, mas não<br />
podemos prever as curvas e voltas que ele segue, nem como fazer desaparecer os obstáculos<br />
com que nos deparamos.<br />
— Seria mais fácil se pudéssemos fazer desaparecer o que nos desagrada ou o que nos magoa<br />
— murmurou Deirdre, de cabeça baixa.<br />
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— No entan<strong>to</strong>, nem sempre é fácil livrarmo-nos de algo que nos fere, quando esse algo<br />
também nos dá alegria. É um mal que afecta, e sempre afectará, o mundo. É algo que nem o<br />
mais talen<strong>to</strong>so dos poetas conseguiria pôr em palavras, nem o mais habilidoso dos bardos<br />
transformaria em música; é uma sombra que escurece os nossos dias e um raio de sol que<br />
faz brilhar <strong>to</strong>do o nosso ser. É um mal sem corpo e um bem sem voz. A culpa não é tua,<br />
Deirdre.<br />
— Eu ignorava-o — chorou Deirdre, não conseguindo manter a voz controlada. Esta saía-lhe<br />
embargada e carregada de emoção, mas Deirdre já não se importava com o que pensaria dela<br />
a estranha mulher. — Eu amava-o como a um irmão, mas ignorava-o, porque não era assim<br />
que ele me queria.<br />
— A culpa não é tua, Deirdre.<br />
— Como foi possível? Como pode mudar tan<strong>to</strong> o meu amor? É uma mudança demasiado<br />
trágica, demasiado acentuada para ser possível! As mulheres falam…falam em maldições. Eu<br />
fui amaldiçoada! Eu não sei porque razão, eu limi<strong>to</strong>-me a seguir com as minhas tarefas, jurei<br />
que não voltaria a deixar-me levar por semelhante…ilusão…<br />
— Não é uma ilusão, Deirdre, é uma verdade. É algo tão natural quan<strong>to</strong> a sede de um<br />
homem, quan<strong>to</strong> a necessidade que uma criança tem do amor de uma mãe. Sentes-te presa,<br />
encurralada. Queres fugir. Mas também queres ficar. Também queres que as coisas se<br />
mostrem doces e felizes, tu e ele. Não podes combater a réstia de esperança que tens dentro<br />
de ti. E é isso que te magoa mais do que o simples fac<strong>to</strong> de não o poderes ter para ti. Mais do<br />
que reconhecer que é tarde para que o seu amor volte a ser-te dirigido, dói-te mais admitir<br />
que mesmo assim tens uma pequena luz que te mostra aquilo que poderia ser…<br />
-<br />
Henis<br />
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Au<strong>to</strong>res e Au<strong>to</strong>ras<br />
Drops<br />
Nome: Rita Sousa<br />
Idade: 21<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Ericeira<br />
Anavicenteferreira<br />
Nome: Ana Vicente Ferreira<br />
Idade: 29<br />
Ocupação: Professora e tradu<strong>to</strong>ra<br />
Local: Torres Vedras<br />
Archie<br />
Nome: José Miguel Silva<br />
Idade: 23<br />
Ocupação: Estudante de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, ramo de Energia<br />
Local: Por<strong>to</strong><br />
Bubbles<br />
Idade: 21<br />
Ocupação: Estudante de Biologia Ambiental, variante Marinha<br />
Local: Alhandra, Vila Franca de Xira<br />
da_big_ticket_21<br />
Idade: 20<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Vila do Conde<br />
Firewalker<br />
Nome: Filipe Ferreira<br />
Idade: 19<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Lisboa<br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 111 de 117
Pedro Farinha<br />
Idade: 38<br />
Ocupação: Engº Electrotécnico<br />
Local: Queluz - Sintra<br />
Bluiela<br />
Nome: Daniela Pereira<br />
Idade: 30<br />
Ocupação: Estudante – Pós-graduação em Ciências, ramo Biomateriais<br />
Local: Ovar<br />
Isabelucha<br />
Nome: Isabel Sanches<br />
Idade: 22<br />
Ocupação: Estudante – Engenharia Química<br />
Local: Por<strong>to</strong><br />
TRiiAd<br />
Nome: Gonçalo Mira<br />
Idade: 19<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Setúbal<br />
Caninos Brancos<br />
Nome: Jean Michel<br />
Idade: 21<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Rio de Janeiro - Brasil<br />
Fat Boy<br />
Nome: João Jorge<br />
Idade: 25<br />
Ocupação: Estudante - Direi<strong>to</strong><br />
Local: Lisboa<br />
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Cerridwen<br />
Nome: Carina Daniel<br />
Idade: 18<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Lisboa<br />
White Lady<br />
Nomes: Carla Barroso<br />
Idade: 20<br />
Ocupação: Estudante - História, variante de Arqueologia<br />
Local: Lisboa<br />
Screams<br />
Nomes: Sofia Costa<br />
Idade: 22<br />
Profissão: Estudante de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, Ramo de Energia<br />
Localização: Por<strong>to</strong><br />
E ainda:<br />
NightCrawl<br />
Maloveci<br />
j.t. Parreira<br />
Lyquid<br />
Sturm<br />
Selenia<br />
Henis<br />
Ancalagon<br />
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Equipa<br />
STAFF<br />
Ideia<br />
- Archie<br />
- Thana<strong>to</strong>s<br />
Coordenação Geral<br />
- Acrisalves<br />
- Archie<br />
- Cerridwen<br />
- Gokuu<br />
- Samwise<br />
- Thana<strong>to</strong>s<br />
Suporte Técnico e Programação<br />
- Gokuu<br />
Entrevistador<br />
- Thana<strong>to</strong>s<br />
--------<br />
Acrisalves<br />
Nome: Ana Cristina Alves<br />
Idade: 23<br />
Ocupação: Estagiária<br />
Local: Lisboa<br />
Archie<br />
Nome: José Miguel Silva<br />
Idade: 23<br />
Ocupação: Estudante de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, ramo de Energia<br />
Local: Por<strong>to</strong><br />
The Pickwick Society - vol. I Pág. 114 de 117
Cerridwen<br />
Nome: Carina Daniel<br />
Idade: 18<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Lisboa<br />
Gokuu<br />
Nome: Pedro Miguel Rodrigues<br />
Idade: 23<br />
Ocupação: Engenheiro Informático<br />
Local: Por<strong>to</strong><br />
Samwise<br />
Nome: Ricardo Turnes<br />
Idade: 29<br />
Ocupação: Técnico Informático<br />
Local: Lisboa<br />
Thana<strong>to</strong>s<br />
Nome: Ricardo Loureiro<br />
Idade: 36<br />
Ocupação: Funcionário Público<br />
Local: Alentejo<br />
ThUnDDeR<br />
Nome: Hugo Almeida<br />
Idade: 19<br />
Ocupação: Estudante<br />
Local: Linda-a-Velha<br />
OUTSIDERS<br />
Selecção de Tex<strong>to</strong>s<br />
- Isabelucha (poesia)<br />
- ThUnDDeR (prosa)<br />
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Arte<br />
- Ricardo Rodrigues – Ilustrações<br />
- TRiiAd – Capa da versão .pdf<br />
Agradecimen<strong>to</strong>s<br />
O BBDE gostaria de agradecer a <strong>to</strong>dos os utilizadores do fórum, aos au<strong>to</strong>res dos trabalhos<br />
aqui publicados e a <strong>to</strong>dos os que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para que este<br />
projec<strong>to</strong> fosse concretizado.<br />
Gostaríamos de agradecer em particular às seguintes pessoas:<br />
Ao Fat Boy, pelo apoio necessário ao nascimen<strong>to</strong> do BBDE;<br />
À Henis, que sugeriu a ideia para o título do E-<strong>zine</strong>;<br />
Ao TRiiAd , que desenvolveu a capa da versão “papel”;<br />
Ao ThUnDDeR e à Isabelucha, pela disponibilidade na leitura dos trabalhos;<br />
Ao Ricardo Rodrigues. Para além do profissionalismo e espectacularidade das ilustrações,<br />
este au<strong>to</strong>r demonstrou uma dedicação e uma atenção raras nos dias que correm. Já não há<br />
pessoas assim (julgávamos nós…).<br />
Mui<strong>to</strong> Obrigado a <strong>to</strong>dos! Sem a vossa colaboração, nada dis<strong>to</strong> teria sido possível.<br />
THE END<br />
Brevemente – E-<strong>zine</strong> BBDE – 2ª Edição<br />
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Índice<br />
O E-<strong>zine</strong>..............................................................................................................................2<br />
Entrevista a Daniela Pereira (Blueiela)..................................................................................4<br />
Mulher Dragão ..................................................................................................................10<br />
Amar.................................................................................................................................14<br />
Os Meus Pais ....................................................................................................................16<br />
Hoje Não Te Disse Adeus ...................................................................................................17<br />
Do Al<strong>to</strong>..............................................................................................................................18<br />
Miragem Musical ...............................................................................................................19<br />
Este Meu Velho Lápis ........................................................................................................20<br />
Poema de Merda................................................................................................................21<br />
Uma Última Lágrima .........................................................................................................22<br />
Requiem............................................................................................................................24<br />
Lezíria...............................................................................................................................25<br />
Consciência.......................................................................................................................28<br />
Vendo ...............................................................................................................................29<br />
Nocturno de Mim...............................................................................................................31<br />
Duas Conchas...................................................................................................................32<br />
Ri<strong>to</strong> de Passagem ..............................................................................................................34<br />
O Desenhador de Coisas que Ninguém Quer ......................................................................35<br />
Viagem..............................................................................................................................42<br />
Momen<strong>to</strong> de Inspiração Numa Aula de Física .....................................................................44<br />
Abandono..........................................................................................................................49<br />
A Última Noite...................................................................................................................51<br />
Con<strong>to</strong> Infantil – Dragão......................................................................................................54<br />
Acordar .............................................................................................................................57<br />
inúteis...............................................................................................................................63<br />
Jack Bravo e os Ninjas do Rectângulo Dourado..................................................................65<br />
Deirdre (excer<strong>to</strong>) ..............................................................................................................100<br />
Au<strong>to</strong>res e Au<strong>to</strong>ras............................................................................................................111<br />
Equipa ............................................................................................................................114<br />
Agradecimen<strong>to</strong>s...............................................................................................................116<br />
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