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PRINCÍPIOS GERAES<br />

DE<br />

DIREITO PUBLICO Ï CONSTITUCIONAL<br />

PELO<br />

Dr. José Soriano de Souza<br />

LENTE CATHEDRATICO NA FACULDADE DE DIREITO<br />

DO RECIFE<br />

The Constitution; in all its provisions,<br />

louks . lo an indestructible Union, composed<br />

of indestructible States.<br />

CHIEF JI STICK CHASE<br />

Cu.se of Texas<br />

CASA EDITORA<br />

Empreza d'A PROVÍNCIA<br />

r. do Imperador, 49 c 51<br />

-1893


4 AO LEITOR<br />

Se conhecesse alguma obra que podesse se adaptar ao meu<br />

intento, me teria abstido de publicar este manual, que talvez<br />

vá augmcntar o cathalogo dos livros desnecessários.<br />

Inspirada pela Constituição dos Estados-Unidos do Norte,<br />

e não poucas vezes delia copiada, a nossa não pôde ser estudada<br />

sem o auxilio do.s comrntntadores daquella célebre Constituição.<br />

Nelles, portanto, me fundei ordinariamente nas explicações<br />

que dou.<br />

Esforcei-me por ser claro e breve, evitando a um tempo<br />

a prolixidade dos tratados e a aridez das glosas; e ainda mais<br />

evitei ostentação de erudição, de que careço.<br />

Se fiz citações de autores, foi unicamente para dar a<br />

.conhecer aos meus discípulos as fontes aonde bebi, e nas quaes<br />

elles poderão beber conhecimentos mais amplos da materia.<br />

Dou-lhes neste pequeno livro apenas um guia, que poderá<br />

conduzil-os ao estudo aprofundado de um assumpto, que deve<br />

ser predilecto da mocidade estudiosa.<br />

Conhecer o organismo politico do seu paiz, os limites<br />

e attribuições dos poderes públicos, as liberdades e direitos dos<br />

cidadãos, as bases constitucionaes de um governo livre ; saber<br />

resolver as questões que podem surgir da pratica de uma<br />

Constituição nova, tudo isso é bem digno de attrahir a attençào<br />

de uma mocidade esperançosa, intelligente e amante de uma<br />

pátria independente e livre.<br />

Se, não obstante a deficiência do meu trabalho, poder elle<br />

despertar nos meus discípulos amor ao estudo do Direito constitucional<br />

pátrio, dar-me-hei por bem recompensado das lucubrações<br />

que elle me custou.


PRIMEIRA PARTE<br />

DE<br />

DIREITO PUBLICO<br />

CAPÍTULO I<br />

DO DIREITO EM GERAL E DE SUAS DIVISÕES<br />

I<br />

O direito é uma noção primitiva, simples e mais fácil de<br />

ser comprehendida pela intelligsncia, do que explicada por<br />

palavras, e tem, como já dizia o jurisconsiilto Paulus, diversas<br />

significações: Jus phiribus moãis dicitur.<br />

Originariam ente a palavra direito foi empregada para<br />

denotar o caracter ethico dos actos humanos, isto é, a rectidão<br />

moral desses actos. Assim como na ordem material chamamos<br />

recto ou direito o caminho seguido por um mobil, que não<br />

diverge do fim a que é destinado, assim também na ordem<br />

moral dizemos recto ou direito o acto que não se desvia do fim<br />

a que deve chegar.<br />

Na ordem jurídica a palavra direito tem principalmente<br />

dous significados: I." de lei ou complexo de leis, 2." de poder<br />

ou força moral. Quando dizemos — direito constitucional,<br />

direito administrativo — indicamos uma lei ou complexo de<br />

leis. Quando dizemos que o homem tem o direito de defender-se,<br />

de possuir, significamos um poder ou força moral inhérente<br />

ao homem,<br />

ò


6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Na natureza ha duas espécies de força ou de poder : força<br />

physica ou material e força moral ou immaterial. Como dotado<br />

de força material dizemos que o lobo pode devorar a ovelha,<br />

que o fogo pôde consumir o prédio, mas não dizemos que tem<br />

o direito. O direito, portanto, é uma força ou poder, mas de<br />

ordem immaterial, de ordem moral.<br />

A força material obra sobre os corpos, a moral sobre as<br />

faculdades intellectuaes do homem.<br />

A força moral do homem em suas manifestações no seio da<br />

sociedade, está sujeita a certas leis ou regras, c só é direita ou<br />

recta, quando se conforma com essas regras. Portanto, em<br />

sciencia jurídica só em dous sentidos empregamos a palavra<br />

direito; na significação de poder moral e de lei ou regra.<br />

II<br />

A indole da lingua latina evitava qualquer equivoco no<br />

emprego da palavra jus para significar poder e força do<br />

homem, ou regra e norma dessa força. Nas línguas modernas,<br />

porém, foi preciso recorrer a certos qualificativos para signifiera'<br />

o direito como poder e como lei.<br />

O direito como poder ou força foi denominado subjective),<br />

e como lei ou regra objectiva. As locuções direito subjectivo,<br />

direito objectivo, hoje communs nas escolas e nos livros, se<br />

achão, em sua idéa nos antigos jurisconsultes romanos. Assim<br />

o texto —Jus testamenti faciendi (Inst. lib. 2. tit. 12) indica o<br />

direito como poder; o fragmento — Quod quisque ob tutelam<br />

corpori sui fecerit, id jure fecisse existimatur ( Fr. 3. D. lib. I,<br />

tit. I ). exprime o direito como lei.<br />

Discordào os jurisconsultes acerca da origem do direito<br />

considerado como poder ; a mór parte délies porém, concorda<br />

em derival-o da natureza humana, fundando-se para isso na<br />

autoridade de Cicero, que em seu tratado de Legibus, diz :<br />

Natura juris... ab hominis repetenda natura.<br />

Também não concordão aquelles jurisconsultes a respeito<br />

da origem do direito considerado como lei ou regra. Querem<br />

uns que a vontade humana singular ou universal seja a única


h<br />

H CONSTITUCIONAL 7<br />

fonte da lei ou do direito regra. Cicero, porém, sustenta que<br />

a lei tem uma origem muito superior á vontade do homem, e diz<br />

que o povo sem um principio anterior ás suas determinações<br />

nada pôde prohibir, nem permittir, e que o direito não começou<br />

com a compilação das leis, mas com o mundo.<br />

Que principio será esse ? O philosopho romano responde :<br />

Lex vera apta atl jubendum et ad vetandiim ratio recta<br />

sinnmi Jouis. Leg. 1. 2.<br />

O direito poder, facultas agendi, é o poder de obrar,<br />

poder licito, util e inviolável. O direito lei, norma agendi,<br />

é a expressão das relações reciprocas dos homens. A lei é<br />

o verbo do direito; declara o direito, regula-lhe a modalidade,<br />

garante e protege o exercício do direito na vida social.<br />

III<br />

Como poder de ordem moral o direito só se pude conceber<br />

nas relações dos entes livres e intelligentes.<br />

O jurisconsulte Hermogeniano dizia: Homiuum causa<br />

oinne jus constitution esse. Fr. lib. I tit. 5.<br />

Destinado a regular unicamente as relações dos seres<br />

intelligentes, o sujeito e o termo do direito só podem ser a<br />

pessoa humana, ora como parte obrigante, ora como parte<br />

obrigada. Os irracionaes não podem ser sujeito, nem termo de<br />

direito. Si podessem ser sujeito de direito, nós teríamos deveres<br />

para com elles, porque não ha direito sem dever correspondente,<br />

e entre esses deveres oecuparia primeiro lugar o de respeitarmos<br />

a vida dos brutos. Mas a ordem cósmica, resultante das leis de<br />

hierarchia e finalidade dos entes, demonstra que os brutos são<br />

creados para o serviço do homem.<br />

Se é censurável maltratar os brutos, não é por que elles<br />

tenhão direitos, mas é porque as nossas precisões, ou os<br />

direitos dos nossos semelhantes, exigem que conservemos os<br />

animaes nas condições de nos serem úteis.


S NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

IV<br />

O homem, e a sociedade, reunião jurídica de homens, são<br />

os elementos fundamentaes do direito. Comparados entre si<br />

esses dous elementos produzem quatro relações: i." Relação<br />

entre homem e homem, 2." Relação entre homem e sociedade,<br />

3." Relação entre sociedade e homem, 4." Relação entre sociedade<br />

e sociedade.<br />

No organismo de todo ser complexo se descobrem aqmllas<br />

quatro relações : relações de um todo para outro todo, do todo<br />

para as partes, das partes para o todo c de uma parte para<br />

outra parte.<br />

Aquellas quatro ordens de relações são regidas por normas<br />

legislativas, são regradas.por leis, e podem ser comprehendidas<br />

em duas espheras de vida — vida interna ou privada e vida<br />

externa ou publica. D'ahi resulta uma divisão geral do direito :<br />

Direito interno ou privado, Direito externo ou <strong>publico</strong><br />

Seja qual for a condição cm que se supponha existirem os<br />

homens, quer seja na sociedade do gênero humano ( humana<br />

societas), quer seja na sociedade política particular de um<br />

povo ou de uma nação ( respublica) sempre elles precisão de<br />

um direito regra, que regule os seus actos. Ha, porém, nesse<br />

ponto uma differença, e é que no primeiro caso o direito vale<br />

igualmente para todos, quando no segundo, as causas que<br />

motivão a formação dos povos ou nações, motivão também<br />

différentes espécies de direito.<br />

A primeira classe de direito regala as relações dos homms<br />

como indivíduos, uti singuli, a segunda as regula como povo,<br />

■nti universi, pois, os povos ou as nações, sendo consideradas<br />

como outras tantas pessoas moraes, devem ser dirigidas por um<br />

direito regra, que trace entre ellas os limites da liberdade de<br />

cada uma.<br />

A lei ou complexo de leis reguladoras dos indivíduos e das<br />

sociedades se divide, pois, em direito privado c <strong>publico</strong>, os<br />

quaes o velho Ulpiano distinguia dizendo : Publicum jus est<br />

quod ad siatu­m reipublicœ spectat ; privatum quod ad singula<br />

ru m utiliia tem.


E CONSTITUCIONAL 9<br />

O direito privado, que regula os actos singulares da vida<br />

civil, é subdividido em três classes : I.* direito civil propriamente<br />

dito, 2." direito commercial, 3." direito processual.<br />

O direito <strong>publico</strong> por sua vez também se subdivide em duas<br />

classes : interno e externo.<br />

O direito <strong>publico</strong> interno é susceptive! de uma divisão,<br />

baseada nas relações dos cidadãos com o poder social. As<br />

relações entre o poder social e as liberdades dos cidadãos são<br />

reguladas pelo direito constitucional, propriamente dito ; as<br />

relações do mesmo p,oder social, como executivo, com os interesses<br />

geraes e collectivos dos cidadãos são reguladas pelo<br />

direito <strong>publico</strong> administrativo ; finalmente as relações do<br />

poder social, como punitivo, com os cidadãos delinqüentes são<br />

reguladas pelo direito penal.<br />

Temos, portanto, que o direito <strong>publico</strong> interno se subdivide<br />

em : l.° direito constitucional, 2.° direito administrativo, 3.°<br />

direito penal ( i ).<br />

No quadro S}-nthetico dessas diversas espécies de direito<br />

vê-se a posição occupada pelo direito, objecto de nosso estudo :<br />

é elle um dos três ramos do direito <strong>publico</strong> interno.<br />

Voltando ao direito <strong>publico</strong> externo, ordinariamente chamado<br />

internacional, que regula as relações reciprocas das<br />

sociedades políticas ou dos Estados, diremos que elle se divide<br />

em <strong>publico</strong> e privado ; o internacional <strong>publico</strong> regula as relações<br />

jurididas entre os Estados ; o internacional privado regula<br />

as relações reciprocas dos cidadãos dos différentes Estados,<br />

e constitue hoje um ramo especial da sciencia do direito,<br />

distincto do direito civil, o qual regula os actos singulares dos<br />

individuos no interior de um Estado ( 2 ).<br />

V<br />

O Poder soberano, cuja origem e caracteres estudaremos<br />

depois, contém em si poderes elementares, chamados poderes<br />

públicos, os quaes manifestão a sua acção na sociedade<br />

mediante órgãos especiaes.<br />

( 1 ) V. De Gioannis — Corso de diritto pubblico amministrativo, t. 1.<br />

( 2 ) V. Fiori — Dir. internacional privado, p. 3.<br />

2


IO NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Na analyse da personalidade individual descobrem-se os<br />

elementos do poder soberano, cujo organismo é como um<br />

reflexo do organismo daquella personalidade.<br />

No organismo da pessoa humana dous são os elementos<br />

da soberania individual, a vontade e a actividade externa, o<br />

querer e obrar. No homem a vontade, allumiada pela intelligencia,<br />

quer, e os órgãos exteriores executão.<br />

No organismo social a vontade se transforma no poder de<br />

manifestar as determinações da vontade geral, no poder de<br />

fazer a lei, isto c, o poder legislativo ; a actividade ou acção<br />

externa se transforma no poder de executar a lei, no poder<br />

executivo.<br />

Assim que, a soberania, que na pessoa individual compõe-se<br />

de vontade e de acção, na sociedade política se fôrma de poder<br />

legislativo e de poder executivo.<br />

Nota-se, porém, nesse simile uma grande differença, qual<br />

é, que na pessoa individual a vontade e a acção devem estar<br />

unidas no mesmo sujeito, para que o homem possa ser livre em<br />

seus actos, ao passo que na pessoa collectiva, no Estado, os<br />

poderes legislativo e executivo devem estar separados para que<br />

os cidadãos fiquem garantidos contra o despotismo. A união<br />

daquelles elementos no indivíduo constitue a liberdade moral,<br />

a separação no Estado constitue a liberdade política.<br />

No conceito do poder executivo se contém o de um outro<br />

poder que applica as leis aos factos, aos casos particulares, quer<br />

punindo as infracções das leis penaes, quer decidindo as contestações<br />

entre os cidadãos e entre estes e a sociedade ; eis o<br />

poder judiciário<br />

Se o poder judiciário é substancialmente distineto do poder<br />

executivo, como pretendem alguns, ou se esses dous poderes<br />

apenas se distinguem accidentalmente, como querem outros,<br />

veremos em outra oceasião.<br />

VI<br />

Ficou dito que no organismo de todo ser complexo, como é<br />

uma sociedade política, existião diversas relações : relações do<br />

todo para com outro todo, ( de uma sociedade para com outra )<br />

do todo para com as suas partes ( da sociedade para com os<br />

cidadãos ) das partes componentes para com o todo resultante


■■<br />

E CONSTITUCIONAL II<br />

délias ( dos cidadãos para com a sociedade ) e finalmente de<br />

uma parte para corn outra (do cidadão para com o cidadão ).<br />

Ora, dessas relações resultão muitos direitos e deveres, que<br />

os publicistas classificão em três grandes jordens, a saber : i/<br />

direitos individuaes, 2." direitos públicos, 3. a direitos políticos (i).<br />

Como dessas espécies de direitos se falia sempre em um<br />

curso de direito, convém definil­os.<br />

Mas antes de fazêl­o, não é inutil advertir que o direito<br />

considerado em sua essência é único, mas por força das relações<br />

em que o homem pôde achar­se, o direito toma em sua<br />

existência concreta diversas formas.<br />

Um só é o principio que se transforma nas multipliées<br />

relações da vida do homem, desde as relações individuaes de<br />

homem a homem, até as relações do homem com a sociedade<br />

política ( 2 ).<br />

Direitos individuaes são aquelles que resultão das relações<br />

puramente individuaes e familiares, e regulão as transacções<br />

privadas entre os homens, como o direito de comprar e de<br />

vender. Esses direitos, posto que se possão conceber sem a<br />

existência da sociedade politica, todavia recebem delia numerosas<br />

garantias.<br />

Direitos públicos ou sociaes são aquelles que, posto pertenção<br />

ao homem, como os primeiros, todavia quasi que não<br />

se podem conceber fora da sociedade politica, e são como a<br />

expressão do desenvolvimento das faculdades humanas no<br />

estado social, como é o direito de propriedade, o direito de<br />

publicar os pensamentos e outros.<br />

Os direitos públicos germinão da natureza humana, fonte de<br />

todos os direitos, mas não podem completamente desenvolver­se<br />

sem o auxilio do estado social. Não é que a sociedade seja a doadôra<br />

arbitraria desses direitos,mas ella os desenvolve e garante.<br />

Entrando para a sociedade o homem não perde os seus<br />

direitos humanos, como pretendia Rousseau, apenas esses<br />

direitos modificão­se no que é necessário para o bem social;<br />

conservando os direitos individuaes, estes desenvolvem­se na<br />

sociedade e tomão fôrmas sociaes ou publicas por força das<br />

relações sociaes. Na sociedade, longe do homem alienar os<br />

( 1 ) De Gioannis, loc. cií.<br />

( 2 ) Sobre isso V. a nossa Philosophia do Direito, pag. 105.


12 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

seus direitos naturaes, pelo contrario adquire garantias para<br />

melhor desenvolvel-os e exercital-os. Pelo que" dizia Romagnosi,<br />

que a sociedade é una macchina d'ajuto all'uomo, e non<br />

giá strumento de oppressione per i membri delia medesima.<br />

Se considerarmos, porém, a importância social dos direitos<br />

privados e dos públicos, não ha duvida que estes, em virtude<br />

mesmo do fim social, devem prevalecer. O velho principio de<br />

Papmiano é fundamental — Jus publicum pHvatorum pactis<br />

mutari non potest. A vontade dos individuos pôde formar<br />

milhares de contractus dos quaes resultão direitos e obrigações,<br />

mas desde que aquella vontade se encontra comum direito<br />

<strong>publico</strong>, deve ceder.<br />

Considerado subjectivamente os direitos públicos são em<br />

regra ao mesmo tempo deveres públicos. Quem pôde exercitar<br />

um direito de caracter <strong>publico</strong>, em regra é obrigado a exerci,<br />

tal-o; ao passo que pôde reiniciar o uso dos direitos privados ;<br />

estes procedem em grande parte da vontade individual, aquelles<br />

procedem do Estado em seus fins e interesses. A respeito dos<br />

direitos privados é principio geral que — jure suo nemo uti<br />

cogitur, sendo assim que ninguém é obrigado a casar-se, a<br />

comprar, a doar, a fazer testamento, etc. ; pelo contrario em<br />

geral somos obrigados a exercer os direitos públicos ; o juiz<br />

e obrigado a julgar, o jurado a comparecer ao tribunal.<br />

_ Resta fallar da terceira classe dos direitos, chamados políticos<br />

propriamente ditos. Estes resultão da participação dos<br />

cidadãos no poder <strong>publico</strong>.<br />

Alguns autores não distinguem os direitos públicos dos<br />

políticos. Mas Rossi, com razão, os distingue.<br />

Os direitos políticos, por mais amplos que sejão, implicão<br />

sempre^ a condição de capacidade. Jamais esses direitos forão<br />

concedidos ás creanças, aos loucos, e até as mulheres são ainda<br />

hoje geralmente privadas délies. Os direitos públicos, pelo<br />

contrario, podem ou não ser exercitados, mas de facto, por sua<br />

natureza, competem a todo homem, como membro da sociedade,<br />

e só pelo facto de sêl-o.<br />

Essas duas classes de direitos têm intimas relações entre si,<br />

porque intimas são as relações entre a organisação social de um<br />

Estado e a sua organisação política, mas não são idênticas (i).<br />

( 1 ) V. Rossi — Cours de droit const, prim. lie.


?-<br />

E CONSTITUCIONAL l3<br />

Para que em um lance d'olhos se possa ver as principaes<br />

divisões dos direitos, ordenei o seguinte quadro :<br />

QUADRO SYNOPTICO DAS DIVISÕES GERAES DO DIREITO<br />

Direito Natural ou Racional ( i ) Í N *°. tem sub­<br />

( divisões<br />

/ Direito Priva­ \ g|£|£ Commercial ( 6 )<br />

do < 3 ) (Processual (y)<br />

( Direito Constitucional<br />

(IO)<br />

'ri<strong>ï</strong>w ; ? S1 " ' L eterno ( 8 )•••■ ^ Direito Admi "<br />

\ ) nistrativo (x<br />

ireito Publi­1 fDireit.<br />

co (4) < \nal(i2)<br />

Externo ou í 1 ^* 0 ) 0 1<br />

Internacio­ Pubhco(i3)<br />

. mlíol y Internacional<br />

\ nal (9) I Privado (14)<br />

( 1 ) Complexo de princípios derivados da natureza racional, lendo por autor<br />

o Greador do homem, e por sancção os dictâmes da consciência, a estima e o desprezo<br />

do <strong>publico</strong>, e a afinal o juizo do Deus.<br />

(2) Complexo de regras estabelecidas pela autoridade humana, tendo a sua<br />

sancção na nullidade dos actos, contrários áquellas iegras, e em meios de repressão<br />

de que dispõe a autoridade publica.<br />

( 3 ) Complexo de regras reguladoras das relações entre cidadão e cidadão.<br />

( i ) Complexo de regras reguladoras das relações de cidadão com a sociedade<br />

em que vive.<br />

( 5 ) Complexo de regras relativas às pessoas, às cousas, e aos meios de<br />

adquirir a propriedade. A expressão direito civil on dos cidadãos, è opposta à direito<br />

das gentes ou dos estrangeiros, à direito eccksiastico e á direito criminal.<br />

( 6 ) Complexo de regras reguladoras das operações commerciaes na terra e no<br />

mar.<br />

( 7 ) Complexo de regras reguladoras das acções tendentes a reconhecer o direito<br />

contestado.<br />

(8) Regula as relações dos cidadãos com os poderes públicos.<br />

( 9 ) Regula as relações reciprocas da» nações.<br />

( 10 ) Complexo de regras concernentes à especificação, à divisão e à harmonia<br />

dos poderes públicos, e à garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos.<br />

(11) Complexo de regras relativas á acção do poder executiva, no tocante<br />

à applicação das leis aos serviços públicos.<br />

( 12 ) Complexo de regras concernentes ao delinqüente para defesa do direito<br />

e da justiça.<br />

( 13 ) Complexo de regras reguladoras das relações jurídicas entre as nações.<br />

( li ) Complexo de regras reguladoras das relações civis internas de um Estado<br />

entre cidadãos estrangeiros.


CAPÍTULO II<br />

CONSTITUIÇÕES E SUAS ESPÉCIES. O CONCRETO E O ABSTRA-<br />

CTO NO DIREITO CONSTITUCIONAL. FONTES DO NOSSO<br />

DIREITO CONSTITUCIONAL.<br />

I<br />

Em sentido amplo, constituição é o complexo de leis<br />

formativas da organisação de uma sociedade, reguladoras da<br />

vida dessa sociedade.<br />

Em sentido lato também se diz que os corpos physlcos tem<br />

sua constituição, isto é, leis que presidem á sua organisação e<br />

lhe regulão o movimento e a vida. Póde-se, pois, dizer que<br />

em sentido lato todo Estado ou toda sociedade política tem<br />

sua constituição, porque tudo o que existe, diz Rossi, tem um<br />

modo de existir bom ou mão.<br />

Em sentido estricto, porém, constituição é a lei fundamental<br />

dos povos livres ; é uma espécie de pacto estabelecido<br />

entre o poder <strong>publico</strong> de um Estado e os cidadãos, com o fim<br />

de garantir os direitos dos mesmos cidadãos e de regular o<br />

exercício do poder <strong>publico</strong>.<br />

O illustre publicista italiano Romagnosi diz que « constituição<br />

é a lei que um povo impõe aos que o governão, para<br />

garantir-se contra o despotismo délies ».<br />

Não ha duvida que tendo o poder absoluto, nos séculos<br />

passados, se tornado regra geral ; que o privilegio dominando<br />

a organisação dos Estados, operou-se uma grande reação contra<br />

aquella ordem de cousas, e d'ahi resultarão os pactos constitucionaes<br />

com o fim de garantir as liberdades naturaes dos cidadãos.<br />

Mas aquella definição tem o defeito de suppôr que os


i6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

governos e os governados vivem entre si em habitual estado de<br />

hostilidade ; de considerar o governo, não como o representante<br />

da sociedade na execução das leis, na administração dos<br />

públicos negócios, e sim como um inimigo <strong>publico</strong> dos cidadãos.<br />

Si as garantias das liberdades dos cidadãos são partes<br />

essenciaes de uma constituição, também o são os direitos do<br />

governo, sem os quaes não se conseguirá o fim da sociedade<br />

política.<br />

Já ficou dito precedentemente, que o direito constitucional<br />

era um ramo do direito <strong>publico</strong> interno de uma sociedade,<br />

tendente a regular a constituição da soberania ou do poder<br />

social, a divisão e coordenação dos poderes públicos, a participação<br />

dos cidadãos nesses poderes, os seus direitos, deveres<br />

e garantias de suas liberdades. Synthetisando, pois, essas<br />

idéas, póde-se definir o Direito constitucional — a ordenação<br />

dos poderes públicos de um Estado e dos direitos e liberdades<br />

dos cidadãos.<br />

Muitas outras definições se encontrão nos livros de direito<br />

constitucional; não tomarei, porém, o trabalho inutil e enfadonho<br />

de copial-as, pois são tantas, quantos os escriptores. Entre<br />

muitas destaca-se por sua brevidade e exactidão a de Mackintosh.<br />

Por constituição de um Estado, diz elle, entendo um<br />

corpo de leis fundamentaes, escriptas ou não escriptas, destinadas<br />

a regular os direitos dos altos funecionarios e as liberdades<br />

dos cidadãos ( I ).<br />

O publicista americano Walker, considerando que todas as<br />

constituições modernas são escriptas, define constituição —<br />

a manifestação escripta da vontade soberana de um povo,<br />

relativamente à fôrma e aos poderes do governo ( 2 ).<br />

Si em sentido lato se pôde dizer que todo Estado tenf sua<br />

constituição, isto é, certas regras de governo, não se segue por<br />

isso que todos sejão governos constitucionaes.<br />

A locução governo constitucional tem em direito <strong>publico</strong><br />

sentido especial, e é exclusivamente applicada aos governos<br />

que se regem por leis escriptas ou consuetudinarias reguladoras<br />

das attribuições e distribuição dos poderes públicos, e protectoras<br />

dos direitos e liberdades dos cidadãos.<br />

( 1 ) V. Study of the law of nature and nations.<br />

( 2 ) V. Introduction to american law, pag. 25.


Q<br />

■ ■<br />

E CONSTITUCIONAL I/<br />

A simples outorga de uma Constituição escripta, diz o<br />

publicista americano T. Cooley, não basta para que o governo<br />

dj um povo se possa dizsr governo constitucional. A outorga<br />

da Magna Carta não fez da monarchia ingleza um governo<br />

constitucional; somente depois de repetidas violações e confirmações<br />

daquelle instrumento, e quando a coroa se convenceu<br />

que aquellas violações lhe podião ser fataes, e as garantias<br />

constitucionaes dos cidadãos tornarão­se realidades, foi que se<br />

constituiu o governo constitucional inglez ( i ).<br />

II<br />

De diversos modos se podem formar as Constituições políticas<br />

de um povo; dahi a diversidade délias. Umas dizem­se<br />

históricas, outras dogmáticas; outras outorgadas.<br />

Chamão­se históricas aquellas Constituições que procedem<br />

do gradual desenvolvimento dos direitos dos cidadãos, confirmado<br />

pelos costumes, como é a ingleza, a qual em sua maxima<br />

parte não consta de um documento escripto.<br />

Os historiadores inglezes fazem derivar a sua Gonstituição<br />

dos primeiros séculos da era christã. Posta de parte a exageração,<br />

é certo que a fôrma dessa constituição não tem variado<br />

muito desde seiscentos annos. Hoje, sob o governo da rainha<br />

Victoria, como no tempo de Eduardo I, se vê uma monarchia<br />

limitada, um parlamento composto de pares temporaes e espirituaes,<br />

de representantes dos condados e dos burgos, cujo<br />

consentimento é indispensável para levantar imposto ou modificar<br />

a lei do paiz.<br />

Entretanto não se deve pensar que a Gonstituição ingleza<br />

seja absolutamente immutavel. Não, ella tem mudado accommodando­se<br />

á corrente das circumstaucias ; mas essa mudança<br />

é gradual, lenta, quasi insensível. A mudança da Constituição<br />

ingleza, diz o Conde de Franqueville, é um phenomeno análogo<br />

ao que se nota nos homens. Na pessoa a quem vemos todos os<br />

( 1 ) A treatise on the constitutional limitations, pag. 3.


18 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

dias as mudanças produzidas pelos annos são inperceptiveis,<br />

naquella a quem revemos depois de vinte ou trinta annos de<br />

ausência, a metamorphose é tão grande que mal a reconhecemos<br />

( i ),<br />

Dogmáticas, são aquellas constituições que emanão de um<br />

jacto dos representantes da soberania popular, como as francezas<br />

de 1791, de 1793, de 1795 e de 1848, a belgica de i83l,<br />

a americana de 1787, a helvetica de 1S48 e outras.<br />

A 'nossa constituição actual pôde também ser comprehendida<br />

nesta classe, posto que fosse em parte obra do poder<br />

dictatorial, e em parte do congresso constituinte.<br />

Os architectos políticos que formularão as constituições<br />

francezas, não tendo em consideração as condições históricas<br />

do paiz, arrastados pelas idéas de seus philosophos sobre a<br />

igualdade absoluta, sobre os direitos do homem, sobre o suffragio<br />

omnimodamente universal, fizerão constituições logicamente<br />

perfeitas talvez, mas sem elementos de duração.<br />

Critican do as constituições francezas dogmáticas De Maistre<br />

dizia judiciosamente : « As constituições modernas são<br />

feitas para o homem. Ora, no mundo não existe o homem; só<br />

vejo inglezes, francezes, hollandezes ; quanto ao homem nunca<br />

o vi, si existe em alguma parte, não sei. Uma constituição<br />

como a do anno III póde-se apresentar até na China. Uma<br />

constituição feita para todo mundo, não é feita para ninguém,<br />

é uma chimera e nada mais. » Quer isso dizer que as constituições<br />

devem estar em relação com as circumstancias de cada<br />

povo.<br />

Chamão-se outorgadas aquellas outras que emanão do<br />

depositário dâ soberania, como uma concessão generosa feita<br />

ao povo em reconhecimento de seus direitos. A esta ordem<br />

pertencem a nossa velha Carta de lei de 25 de Março de 1824,<br />

a de Portugal de 1826, a da Italia de i848e outras.<br />

As constituições podem ser ou totalmente escriptas, ou em<br />

parte escriptas, e em parte costumeiras.<br />

No primeiro caso está a nossa actual, a americana e todas<br />

as constituições modernas ; no segundo se acha a britânica, que<br />

( 1 ) Gouvernement et parlamcnt britanniques, t. 1, pag. 13.


ie<br />

E CONSTITUCIONAL 19<br />

em sua maxima parte é obra dos costumes e usos, e que na<br />

parte escripta é ainda uma confirmação de costumes e usos<br />

antiquissimos do povo. Com effeito, as leis constitucionaes<br />

inglezas escriptas, como o bill dos direitos, só apparecerão<br />

para affirmar as disposições das leis costumeiras, quando desconhecidas<br />

ou violadas.<br />

Dizem ser defeito das constituições não escriptas estarem<br />

sujeitas a continuas mudanças, dependentes da vontade do<br />

poder legislativo, e que pelo contrario é defeito inhérente ás<br />

constituições escriptas a rigidez dos princípios n'ellas estabelecidos,<br />

o que difficulta sua modificação no caso de necessidade.<br />

Sejão escriptas ou consuetudinarias, outorgadas, ou votadas<br />

em uma assembléa constituinte ; sejão sanccionadas por<br />

expressa e solemne deliberação dos representantes do povo, ou<br />

por tácita acceitação do mesmo povo, a legitimidade das<br />

constituições depende de sua relação com o fim a que se destinâo<br />

— garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos. Se esse<br />

fini é attíngido, a constituição é legitima e boa, se, porém, não<br />

se adapta ás circumst meias, aos desejos e ás aspirações do<br />

povo, se não contém elementos de estabilidade, e da segurança<br />

contra a desordem e a revolução, é claro que a constituição<br />

não pôde ser boa.<br />

III<br />

O direito constitucional pode ser considerado concreta,<br />

mente, isto é, como o organismo juridico-positivo de uma certa<br />

nação, ou abstractamente, isto é, como direito politico racional.<br />

No primeiro caso se funda aquelle direito unicamente nos<br />

factos históricos e nas tradições de um povo, no segundo nos<br />

principios absolutos da razão abstracta.<br />

D'ahi duas escholas de direito constitucional, a idealista<br />

e a histórica.<br />

Qual d'essas duas escholas deve ser preferida no estudo do<br />

direito constitucional ? Nenhuma d'ellas, exclusivamente considerada,<br />

pôde satisfazer ás exigências da boa razão política.<br />

Os principios abstractos e ideaes serão sempre da maior<br />

importância para os estudos ; são luz que illumina as intelligencias.<br />

As especulações dos sábios são poderoso co-efficiente


20 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

do progresso intellectual dos povos. Quem poderá avaliar<br />

devidameete a efficacia no adiantamento das sciencias resultante<br />

das especulações dos illustres pensadores, que tem propugnado<br />

pelas sciencias jurídicas, antes que as suas especulações<br />

fossem assimiladas pelas intelligencias de menor quilate<br />

e se traduzissem em leis positivas ?<br />

Asciencia especulativa investigando as relações necessárias,<br />

as razões e as leis de tudo o que nos circunda, tem a preciosa<br />

vantagem de aguçar, e de elevar a intelligencia acima das<br />

condições de tempo e de lugar, e assim preparal-a a antever<br />

a ordem futura e geral.<br />

Mas, por outro lado, o Estado, como observa Bluntschli,<br />

na qualidade de ser moral e orgânico, não é um producto da<br />

lógica, nem o direito do Estado uma collecçào de princípios<br />

especulativos. Por tanto o direito constitucional tem que<br />

consultar a experiência, as condições peculiares e as tradições<br />

do povo a que é applicado, sem todavia idolatrar as suas velhas<br />

instituições, porque isso seria desconhecer as precisões do<br />

movimento e do progresso da sociedade.<br />

Os francezes por esquecerem as suas condições históricas<br />

e formarem constituições theoricas, tem tido em cerca de<br />

oitenta annos, isto é, de 1791 a 1875 umas vinte constituições !<br />

Portanto, o verdadeiro methodo no estudo do direito<br />

constitucional é aquelle que combina o elemento racional com<br />

o histórico, que liga o passado ao presente, que vincula o<br />

desenvolvimento orgânico da vida de um povo aos principios<br />

da san razão ( 1 ).<br />

IV<br />

Si todas as sciencias estão ligadas mais ou menos entre si<br />

por laços de parentesco ou cognação, esse parentesco é todavia<br />

mais intimo entre os diversos ramos de uma mesma sciencia,<br />

os quaes em relação a ella são como outras tantas linhas<br />

tiradas da base de um cone indo todas confundir-se no vértice<br />

do mesmo cone.<br />

( 1 ) Palma— Corso di diritto cousütuziuiial, t. 1.


n<br />

E CONSTITUCIONAL M<br />

O direito constitucional é o vértice aonde vão ter todos os<br />

ramos das sciencias jurídicas e sociaes.<br />

São, pois, numerosas as relações da nossa sciencia com as<br />

outras ensinadas n'esta Faculdade, mas somente de algumas<br />

d'essas relações farei mensão.<br />

Em primeiro lugar, é intima a relação do direito constitucional<br />

com a política, que é a sciencia pratica do governo do<br />

Estado.<br />

O direito constitucional, isto é, a organisação politica do<br />

Estado e das liberdades dos cidadãos, é a mais alta expressão<br />

do direito <strong>publico</strong>. Ora, segundo Bluntschli, a politica está<br />

para o direito, como o movimento para o repôso ; é pois a<br />

politica que imprime movimento ao organismo constitucional,<br />

o qual sem ella permaneceria em perpetuo estado de repôso.<br />

O Estado vive, porque é uma colligação de direito e de<br />

politica. Sem o sopro vivificador da politica, diz ainda aquelle<br />

escriptor, o direito tornar-se-hia um cadaver, sem as bases e os<br />

limites do direito a politica caheria em desenfreado egoísmo,<br />

em ruinoso furor de destruição.<br />

Tem igualmente o direito constitucional intimas relações<br />

com o direito civil, não obstante gyrar cada um d'esses direitos<br />

em sua esphera particular.<br />

O direito civil regula as relações jurídicas entre cidadão<br />

e cidadão no tocante ao interesse privado e familiar; o constitucional,<br />

como parte do direito <strong>publico</strong> interno, regula as<br />

relações jurídicas, entre o Estado, os poderes públicos e os<br />

cidadãos. No direito constitucional domina o espirito do todo,<br />

no civil o dos indivíduos; aquelle é o direito da universalidade<br />

dos cidadãos do Estado, este é o direito das individualidades.<br />

D'aqui mesmo resultão as relações d'essas duas espheras de<br />

direito. Basta dizer que é o direito constitucional que determina<br />

as condições da lei civil.<br />

A economia politica, sciencia que investiga as leis da<br />

actividade humana no tocante a producção, circulação e consummo<br />

da riqueza, também sustenta grandes relações com o<br />

direito constitucional. Este direito tem tanta influencia sobre<br />

a economia politica, quanta tem a liberdade sobre a actividade<br />

humana e seus resultados.<br />

Com effeito, éno verdadeiro governo constitucional, governo<br />

no qual todos os cidadãos tem parte, em que os poderes


22 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

públicos estão separados e limitados, em que é garantida a<br />

■liberdade dos cidadãos, que se tornão fáceis a applicação e o<br />

livre desenvolvimento das faculdades do homem na producção<br />

dos bens, no trabalho, nas associações, na apropriação e troca<br />

dos productos.<br />

O direito penal e o administrativo, como já vimos, são<br />

partes orgânicas, do mesmo modo que o constitucional, do<br />

direito <strong>publico</strong> interno; são três ramos de um mesmo tronco><br />

e tanto basta para que entre elles existão grandes afinidades.<br />

Garantindo a liberdade da manifestação do pensamento<br />

por meio da imprensa, o direiro constitucional muito influio na<br />

propagação de princípios humanitários, e assim tornou as<br />

penas mais humanas, abolio a confiscaçâo, a pena de morte,<br />

e outras que infamavão a humanidade.<br />

No organismo judiciário é grande a influencia do direito<br />

constitucional. São os principios constitucionaes que regulão<br />

a inamovibilidade dos magistrados, a acção do poder judiciário,<br />

o julgamento pelo jury, as garantias da liberdade individual,<br />

do domicilio e da imprensa.<br />

Dictando leis que regulão a acção do poder executivo»<br />

tanto em relação ao interesse geral do Estado, como em relação<br />

aos direitos e interesses dos administrados, é claro que o<br />

direito constitucional está relacionado estreitamente com o<br />

direito administrativo.<br />

Se o direito constitucional nos dá a conhecer a organisação<br />

politica dopaiz,o administrativo nos expõe o organismo do poder<br />

executivo nas suas numerosas applicações, nos ensina a pôr em<br />

acção aquelle poder e a recolher os resultados d'essa acção.<br />

Tão estreita é a affinídade entre o direito constitucional<br />

e o administrativo, que Serrigny diz que elles estão na mesma<br />

escala, mas com différentes nomes; chama­se direito constitucional<br />

nos gráos superiores, e administrativo nos inferiores.<br />

Rossi observa que a differença que se nota entre a quelles dous<br />

direitos, é a que se vê entre o código e processo civil.<br />

Com o direito internacional, que é também um ramo do<br />

direito <strong>publico</strong>, e se occupa das relações jurídicas dos Estados,<br />

tem affmidades o direito constitucional. Se o direito constitucional<br />

define quem é o soberano, e quaes as suas attribuiçòes<br />

e limites, o internacional nos ensina quaes os direitos e deveres<br />

recíprocos dos soberanos, como pessoas internacionaes.


E CONSTITUCIONAL 23<br />

Finalmente, a philosophia do direito, como sciencia do<br />

justo, e base de toda a autoridade humana, cuja razão de ser<br />

é administrar a justiça, por força ha de ter as mais intimas<br />

relações com o direito constitucional.<br />

O ser do homem, fonte subjectiva de todos direitos humanos,<br />

sejão privados, públicos ou politicos, e a lei juridicoracional,<br />

fonte objectiva dos mesmos direitos, só podem ser<br />

conhecidos pelos princípios racionaes da philosophia do direito.<br />

D'ahi resulta a influencia que essa sciencia tem sobre todo o<br />

saber jurídico e portanto sobre o direito constitucional. E' das<br />

entranhas da philosophia, dizia Cicero, que ha de sahir a<br />

sciencia do direito : Ex intima philosophia liaurienda juris<br />

disciplina ( i ).<br />

V<br />

As fontes do nosso direito constitucional podem se reduzir<br />

a duas classes —fonte racional —fonte positiva.<br />

Fonte racional por exceilencia é o direito natural, o qual se<br />

funda nas relações necessárias das cousas, e d'onde originariamente<br />

dirivão as leis de todas as sociedades humanas, leis que<br />

são como conseqüências, mais ou menos remotas, dos primeiros<br />

princípios racionaes.<br />

Fonte positiva é o texto constitucional, são as leis, decretos<br />

e quaesquer actos interpretativos emanados da poder <strong>publico</strong>,<br />

sejão leis do congresso, ou sejão sentenças do Supremo Tribunal<br />

federal.<br />

No nosso actual regimen, as sentenças d'esse Tribunal<br />

hão de ser fontes autorisadas.<br />

Com effeito, a Constituição (Art. 59, § 1.0 ) conferindo<br />

a esse Tribunal a competência de julgar em gráo de recurso as<br />

questões de validade ou applicação de tratados e leis federaes,<br />

em face da Constituição, e implicitamente de julgar também<br />

da constitucionalidade das leis, constitui-o competente interpetre<br />

da mesma Constituição.<br />

Nos Estados-Unidos do Norte, cuja constituição deve<br />

J&<br />

( I ) V. a nossa. Philosophia do Direito, p. í.


2-1<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

também ser considerada como fonte positiva, ainda que subsidiaria,<br />

da nossa, o Supremo Tribunal é o ultimo interpetre<br />

não só das leis e tratados da União, mas também da propria<br />

Constituição. E' elle que decide em ultima instância se algnm<br />

acto ou estatuto é ou não compatível com a lei suprema do<br />

paiz. A lei judiciaria de 1789, que organisou o Supremo Tribunal,<br />

fez d'elle, na phrase de Ezra Seaman, o centro de gravidade<br />

do complicado systema de governo dos Estados-<br />

Unidos ( 1 ).<br />

E' em virtude da autoridade de que gosa esse tribunal que<br />

os escriptores de direito constitucional, e todos os commentadores<br />

da Constituição americana baseão suas doutrinas nas<br />

decisões dos tribunaes. Mas d'essa preponderância do poder<br />

judiciário opportunamente fallarei.<br />

O direito constitucional recebe também importante subsidio<br />

das manifestações da razão nacional, ainda que não<br />

tenhão caracter legal, mas simplesmente doutrinário. N'esse<br />

caso estão os discursos de eminentes estadistas, os escriptos<br />

dos publicistas doutos e os diários graves e sérios.<br />

Essas manifestações da razão douta constitue o que se<br />

pôde chamar sciencia constitucional, a qual ora reconhecej<br />

reforça e illustra o direito existente, ora lhe explica as razões><br />

e esclarece-lhe as obscuridades e incertezas, ora finalmente<br />

descobre-lhe as lacunas e propõe melhoramentos reclamados<br />

pelo progresso das ideas e pela consciência nacional.<br />

Aquellas manifestações são como a disputatio fori e responsa<br />

prudentum dos romanos, as quaes pelo seu valor scientifico<br />

tornarão-se fonte fecunda do direito civil, e por fim<br />

tiverão força de lei, quando os prudentes obtiverão o jus publiée<br />

respondendum.<br />

O direito, quer escripto, quer consuetudinano, do povo<br />

inglez tem justamente uma grande autoridade em todos os<br />

paizes constitucionaes representativos; sejão monarchicos,sejão<br />

republicanos.<br />

E' sabido que a Constituição dos Estados-Unidos do Norte<br />

tem as suas raizes na Constituição ingleza, e tão profundas são<br />

ellas que Sumner Maine, affirma que a Constituição americana<br />

( 1 ) The american system of government, ]>. 51.


j3<br />

E CONSTITUCIONAL 2.S<br />

na realidade nada mais é do que uma versão da Constituição<br />

britânica, tal qual esta podia se apresentar a um observador<br />

intelligente na ultima metade do século passado ( i ).<br />

A nossa Constituição federal é de hontem, não tem passado,<br />

está ainda por ser estudada e applicada. E' pois nas fontes<br />

estrangeiras, é na sciencia constitucional dos paizes regidos<br />

pelo mesmo systema que adoptamos, e especialmente nos<br />

publicistas dos Estados-Unidos, que devemos buscar subsidio<br />

para o estudo de nossa actual Constituição, a qual em muitos<br />

pontos, como terei occasião de mostrar, é cópia fiel da Constituição<br />

americana.<br />

Terminando o que occorre dizer sobre as fontes do direito<br />

constitucional, releva notar ainda que para o estudo do direito<br />

constitucional, como para todo o direito em geral, é a historia<br />

um auxiliar de primeira ordem. Não é possível aprofundar<br />

o espirito das instituições sociaes de um povo, explicar as<br />

mutações operadas na ordem social, sem conhecer a historia<br />

d'essas mutações. A historia do direito, quer seja a interna,<br />

que expõe as vicissitudes do direito estatuido, quer seja a<br />

externa, que nos ensina as causas sociaes e políticas que iníluirão<br />

na instituição do direito, deve sempre ser interrogada nas<br />

questões de direito. A historia, disse Giraud, é o olho<br />

do direito ( 2 ).<br />

( 1 ) Popular government, cap. S.<br />

( 2 ) V. Do Gioannis Gianquinto, Corso cit. t- 3, cap. 9.<br />

4


JM<br />

CAPITULO III<br />

A NOSSA CONSTITUIÇÃO, SEU PREÂMBULO E SEU ORGANISMO<br />

I<br />

Quando as colônias unidas da America do Norte tomarão<br />

a suprema resolução de se separarem da Inglaterra, de facto já<br />

vivião sob o regimen democrático, praticando o systema representativo,<br />

que havião aprendido da metrópole e gosavão do<br />

self-government local.<br />

A republica já existia nos costumes e nas instituições, antes<br />

que fosse consagrada na Constituição de 1787, a qual em<br />

substancia só fez reconhecer o estado de cousas preexistente.<br />

A anterior organisação das colônias era tal, diz T. Cooley,<br />

que a revolução pouco alterou ; modificou mais a fôrma, do que<br />

a substancia ( 1 ).<br />

Nos Estados-Unidos, portanto, as instituições republicanas<br />

assentão antes sobre o direito histórico, do que sobre a Constituição<br />

escripta pelos constituintes e ratificada pelo povo.<br />

No Brazil as cousas se passarão de modo contrario.<br />

Depois de mais de meio século de vida monarchica, durante<br />

a qual o centralismo lançou profundas e extensas raizes, mudouse<br />

rapidamente de instituições, substituindo-se á monarchia<br />

constitucional a republica federativa.<br />

O levante militar de 15 de Novembro de 1889 tendo pacifica<br />

e incruentamente triumphado, e recebido o assentimento tácito<br />

do povo, procurou logo o governo provisório, então estabele-<br />

( 1 ) The general principles of constitutional law, p. 40.


28 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cido, dar outra Constituição ao paiz em harmonia com a nova<br />

fôrma de governo proclamada. Para esse effeito nomeou a 3 de<br />

Dezembro d'aquelle anno, uma commissão de cinco membros<br />

para formular um projecto de Constituição.<br />

Essa commissão elaborou e entregou ao governo a 3o de<br />

Maio de 1890 o seu projecto, contendo 117 artigos e mais 9 de<br />

Disposições transitórias. Esse projecto redigido em sincero<br />

e leal espirito liberal, mereceu geral acolhimento da opinião<br />

publica. O governo, porém, não se conformou de todo com<br />

elle. Modificou a redacção, supprimio artigos, introduziu<br />

novos, e formulou diversos com doutrina opposta, e em muitos<br />

pontos contraria á liberdade religiosa dos cidadãos.<br />

Assim alterado, foi o projecto promulgado — como Constituição<br />

federal ad referendum — por decreto de 22 de Junho<br />

de 1890, que ao mesmo tempo convocou um congresso constituinte<br />

para 15 de Novembro do mesmo anno.<br />

O projecto do governo constava de 86 artigos e mais 12<br />

de Disposições transitórias.<br />

Apenas publicado, levantou elle em todo o paiz merecida<br />

critica.<br />

A opinião catholica bradou, com razão, contra a confiscação<br />

da liberdade religiosa claramente decretada n'aquelîe projecto,<br />

que deixava transparecer aqui e ali ódio á religião<br />

dominante no Brazil. Por sua parte a referida commissão<br />

redactora do projecto primitivo, sob a assignatura de quatro dos<br />

seus membros, em homenagem á verdade e á lealdade que<br />

devião ao nosso regimen, segundo disse, lavrou também o seu<br />

protesto pela imprensa em 26 de Janeiro de 1890.<br />

Coagido pela opinião publica o governo provisório reformou<br />

o seu projecto, e o fez em decreto de 23 de Outubro do<br />

dito anno concebido n'estes termos :<br />

« Considerando na conveniência de attender immediata-<br />

« mente ao sentimento nacional, contemplando algumas altera-<br />

« ções indicadas na Constituição da Republica dos Estados-<br />

« Unidos do Brazil, cujo texto, dependente da approvação do<br />

« futuro Congresso, se <strong>publico</strong>u pelo decreto de 22 de Junho<br />

« d'esté adno,<br />


J5<br />

E CONSTITUCIONAL 29<br />

« E, em conseqüência,<br />

« Decreta :<br />

« Artigo único. A Constituição dada ao <strong>publico</strong> no decreto<br />

« n. 510 de 22 de Junho de 1890, é substituída pela que com este<br />

« decreto se publica, nos termos seguintes. »<br />

Foi este afinal o projecto filtrado que se apresentou ao<br />

Congresso para ser discutido.<br />

Constituído o Congresso, elegeu este do seu seio uma<br />

commissão de vinte e um membros, representantes dos vinte<br />

Estados e do Município federal, para dar parecer sobre elle.<br />

Depois de uns quinze dias de estudos, a commissão dos 21<br />

apresentou um parecer, em que, a excepção de dous, todos os<br />

outros membros se assignárão com restricções; não havia, pois><br />

parecer.<br />

Entrou o projecto em discussão, e foi logo coberto de<br />

emendas.<br />

E' impertinente n'esta breve noticia fallar d'essas emendas<br />

e da sorte que tiverão no correr da discussão.<br />

Após uma primeira discussão, que versou sobre capitulo<br />

e a votação por artigos, e outra segunda que, assim como a<br />

votação, versou englobadamente sobre toda a Constituição,<br />

( salvo as emendas que forão votadas cada uma de per si ) foi<br />

a Constituição approvada, sendo em seguida enviada a uma<br />

commissão de redacção, que a apresentou redigida a 21 de<br />

Fevereiro, e foi finalmente approvada e promulgada a 24 do<br />

mesmo mez de Fevereiro de 1891 pela Mesa do Congresso,<br />

e assignada pelos membros d'esté.<br />

Três mezes e oito dias ( 15 de Novembro de 1890 a 24 de<br />

Fevereiro de 1891 ) durou, pois, o trabalho constituinte do<br />

Congresso.<br />

E' justo dizer que em tão pouco tempo e em um Congresso<br />

numeroso não era possível elaborar trabalho mais perfeito.<br />

A convenção constituinte de Philadelphia, apenas composta<br />

de 55 membros, discutindo a portas fechada?, gastou quasi<br />

cinco mezes na elaboração da Constituição de 1787.


3o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

II<br />

O fim e intenção que com esta Constituição se propuzerão<br />

os legisladores constituintes, se evidencião do seguinte Preâmbulo<br />

á referida Constituição — Nós, os representantes do povo<br />

brazileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organisar<br />

um regimen livre e democrático, estabelecemos, decre.<br />

tantos e promulgamos a seguinte Constituição.<br />

Nos Estados­Unidos do Norte os legisladores constituintes,<br />

quer da União, quer dos différentes Estados, derão­nos o<br />

exemplo de preceder o corpo da Constituição de preâmbulos,<br />

que annuncião em geral o fim da Constituição. Para servir de<br />

comparação trarei para aqui os preâmbulos de très d'aquellas<br />

Constituições.<br />

O da Constituição dos Estados­Unidos é este : « Nós, o<br />

povo dos Estados­Unidos, desejando formar uma união mais<br />

perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquillidade no<br />

interior, prover á defesa comraum, desenvolver o bem geral e<br />

garantir para nós e nossos filhos os benefícios da liberdade,<br />

decretamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados­<br />

Unidos da America. »<br />

A Constituição do Estado da Pensylvania é precedida d'esté<br />

Preâmbulo : « Nos, o povo da republica da Pensylvania,<br />

cheios de reconhecimento a Deus Todo Poderoso, pelos benefícios<br />

da liberdade civil e religiosa, e humildemente invocando a<br />

sua protecção, estabelecemos e decretamos a seguinte Constituição.<br />

»<br />

A Constituição do Estado da California, adoptada pela<br />

Convenção do Sacramento, e ractificada pelo povo em 1879 traz<br />

este Preâmbulo : «■ A r ós, o povo do Estado da California, reconhecido<br />

a Deus Omnipotente pela nossa liberdade, afim de<br />

assegurar e perpetuar esses sentimentos estabelecemos a presente<br />

Constituição. »<br />

Constituições de outros Estados, e cremos que de todos,<br />

são precedidas de seus preâmbulos, mais ou menos nos termos<br />

referidos.<br />

Comparando o Preâmbulo da nossa Constituição com os<br />

dos Estados americanos do Norte, desde logo se nota saliente<br />

differença.


JC<br />

E CONSTITUCIONAL 31<br />

Ali é o povo quem decreta e estabelece a Constituição ;<br />

aqui são os representantes do povo; ali as Constituições só<br />

tem vigor, depois de ractificadas pelo mesmo povo, que d'esse<br />

modo é o verdadeiro legislador da Constituição, sendo os<br />

representantes apenas os promulgado/es.<br />

As instituições americanas assentão todas na soberania do<br />

povo. « Aquelles que não estudão de perto a nossa organisação<br />

política, dizia o célebre publicista Wilson, poderão pensar<br />

que nos Estados-Unidos a autoridade suprema reside na Constituição,<br />

o que não é inteiramente a verdade: o poder soberano<br />

pertence ao povo. De facto e de direito o povo é tão superior<br />

ás nossas Constituições, quanto estas o são aos corpos legislativos.<br />

»<br />

O povo delega para certos effeitos a sua soberania, que<br />

elle não pôde exercitar dírectamente, mas nunca a aliena ; de<br />

sua natureza provisória, a delegação do povo não quer dizer<br />

abdicação de sua soberania; estabelece na Constituição as<br />

regras pelas quaes quer ser governado, mas não esgota o seu<br />

poder constituinte, fica-lhe sempre o direito de rever a obra de<br />

seus delegados e só depois d'essa revisão é que a Constituição,<br />

assim ractijicada, torna-se lei suprema do paiz. Podem, portanto,<br />

os preâmbulos das constituições americanas dizer — nós,<br />

o povo, etc.<br />

Mas, segundo a theoria americana o povo que estabelece e<br />

decreta as Constituições, não é a massa dos habitantes do paiz.<br />

a totalidade dos indivíduos, mas o corpo eleitoral ou o povo<br />

politicamente organisado.<br />

A soberania ou o supremo poder de legislar, diz John Hurd,<br />

nunca pertenceu ao povo, excepto como politicamente organisado,<br />

pois é facto incontestável que as palavras — nós, o povo<br />

dos Estados-Unidos — significão na Constituição a maioria dos<br />

votantes ou o corpo eleitoral politicamente organisado nos<br />

différentes Estados ( i ).<br />

D'esses dous modos de preambular, qual será mais correcto<br />

no ponto de vista das doutrinas democráticas ?<br />

O preâmbulo da nossa Constituição diz — Nós, os representantes<br />

do povo... estabelecemos, decretamos e promulgamos<br />

( 1 ) The Theory of oui national existence, p. 112.


32 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

a seguinte Constituição — O da dos Estados-Unidos diz—Nós,<br />

o povo dos Estados-Unidos... decretamos e estabelecemos esta<br />

Constituição — Haverá dífferença entre esses dous modos de<br />

dizer?<br />

Elegendo os seus representantes, e dando-lhes o mandato<br />

de constituir, o povo não abdica, como ficou dito, a sua soberania,<br />

mas continua a ser o único soberano, a possuir a soberania<br />

política ; seus representantes apenas tem, pro tempore,<br />

o direito de exercer aquella soberania. O acto da eleição é,<br />

pois, uma espécie de contractu emphyteutico, pelo qual o povo,<br />

sem alienar a sua soberania, e conservando, para assim dizer,<br />

o domínio directo, dá somente aos seus representantes o domínio<br />

util, isto é, o exercido temporário, mediante certas condições<br />

e para fins determinados.<br />

Por conseqüência o verdadeiro autor da Constituição é o<br />

povo; é elle que estabelece e decreta a Constituição. De<br />

accôrdo com essa doutrina, a Constituição americana não diz<br />

— Nós, os membros da Convenção de Philadelphia... mas—<br />

Nós, o povo ordenamos e estabelecemos, etc.<br />

Os Constituintes brazileiros, porém, suppozerão-se senhores<br />

directos da soberania, e por isso disserão — Nós, os representantes<br />

do povo brazileiro, estabelecemos e decretamos.<br />

O preâmbulo da nossa Constituição identificou o mandatário<br />

com o mandante, ou antes subrogou o delegado ao delegante,<br />

o representante ao povo, o poder temporário de constituir<br />

á perpetua soberania nacional.<br />

Imbuídos nas doutrinas da revolução franceza ; mais arraigados<br />

aos afamados princípios de 89, do que aos da Magna Carta<br />

e do Bill dos direitos de 1688, os nossos constituintes confundirão<br />

o mandatário com o mandante, e fallárão de si — nós, os<br />

representantes — esquecendo o povo.<br />

Penso, pois, que o Preâmbulo da Constituição americana<br />

é mais conforme com as doutrinas democráticas, do que o nosso.<br />

III<br />

Conhecida a origem da nossa Constituição, e o seu Preâmbulo,<br />

examinemos agora brevemente as partes que a compõe.<br />

O corpo da nossa Constituição é dividido em cinco partes<br />

principaes, chamadas — Títulos. O titulo primeiro inscreve-se


i><br />

E CONSTITUCIONAL 33<br />

— Da organisação federal — o segundo — Dos Estados —<br />

o terceiro — Do Município — o quarto — Dos cidadãos brasileiros<br />

— o quinto — Disposições geraes.<br />

O primeiro titulo é o mais extenso, e se subdivide em —<br />

Disposições preliminares — e em très Secções, correspondentes<br />

aos três poderes, e cada uma d'essas secções se subdivide em<br />

Capítulos e estes em artigos.<br />

As disposições preliminares tratão da fôrma do governo<br />

adoptada, do lugar em que se ha de fundar a capital da União,<br />

dos casos em que o governo federal pôde intervir nos negócios<br />

dos Estados, do que é da exclusiva competência d'estes, do que<br />

é da exclusiva competência da União, finalmente do que é<br />

vedado tanto aos Estados como á União.<br />

O primeiro capitulo da l. a secção versa sobre o poder<br />

legislativo, organisação das casas do Congresso, suas attribuições,<br />

direitos e immunidades de seus membros, incompatibilidades<br />

de seus membros, incompatibilidades d'estes e condições<br />

de elegibilidade. Em capítulos distinctos trata-se da câmara<br />

dos deputados, do numero d'estes e da iniciativa d'essa câmara,<br />

do senado, sua constituição, suas attribuições privativas, das<br />

leis e resoluções, sancção e promulgação das leis.<br />

A 2.-' secção tem cinco capitulos : o primeiro trata do<br />

Presidente e Vice-Presidente, condições de elegibilidade, duração<br />

do mandato e posse; o segundo versa sobre o processo da<br />

eleição do Presidente e do Vice-Presidente ; o terceiro das attribuições<br />

do poder executivo; o quarto dos ministros de Estado,<br />

suas relações com o Congresso e sua responsabilidade; o quinto<br />

trata especialmente da responsabilidade do Presidente da<br />

Republica.<br />

A 3. a secção não tem capitulos, e versa toda sobre o poder<br />

judiciário, tratando das bases do Supremo Tribunal Federal, da<br />

sua competência, dos juizes singulares e suas attribuições.<br />

O titulo segundo não tem secções, nem capitulos, e occupase<br />

com as Estados; o que lhes é facultado, o que lhes é defeso,<br />

e seu patrimônio, fôrma toda a materia d'esse titulo<br />

O titulo terceiro também não tem secções, nem capitulos,<br />

e consta de um só artigo estabelecendo que o municipio autônomo<br />

será a base da organisação dos Estedos.<br />

O titulo quarto trata dos cidadãos brazileiros; tem duas<br />

secções e nem um capitulo. A i. a secção falia das qualidades<br />

5


34<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

do cidadão brazileiro, define os que o são por nascimento e por<br />

naturalisação, diz quaes os eleitores e dos casos em que se<br />

suspendem ou se perdem os direitos de cidadão brazileiro-<br />

A 2." secção é intitulada — Declaração de direitos — concernentes<br />

à liberdade, á segurança individual e á propriedade. Ahi<br />

estão garantidos todos os direitos públicos do cidadão : a liber,<br />

dade religiosa, a igualdade civil, a liberdade do pensamento<br />

e da imprensa, de associação e de reunião, etc.<br />

O titulo quinto é de Disposições geraes, e contém materia<br />

que por sua natureza não quadrava bem em nenhum dos títulos<br />

anteriores, como a constituição do exercito, a creação de um<br />

Tribunal de contas, e do processo da reforma constitucional.<br />

Todos esses titulos são distribuidos em 91 artigos.<br />

Além das partes mencionadas, integrantes do corpo da<br />

Constituição, lhe é accidentalmente annexa uma parte de —<br />

Disposições transitórias — em oito artigos.


\$<br />

CAPITULO ÏV<br />

AS CONSTITUIÇÕES INGLEZA, AMERICANA E HELVETICA<br />

I<br />

Em um curso de Direito <strong>publico</strong> constitucional não se<br />

pôde preterir fallar da Constituição ingleza, mãi de todas as<br />

constituições modernas, ás quaes tem servido de modelo.<br />

Segundo ajudiciosa observação de Gneist aquella Constituição,<br />

em materia de direito <strong>publico</strong>, é para as outras nações, o que,<br />

em materia de direito privado, o direito romano é para os<br />

povos modernos.<br />

Quando se formou essa célebre Constituição, em que tempo<br />

começou a vigorar ?<br />

A origem e o desenvolvimento da 'Constituição ingleza<br />

perdem-se na antigüidade d'esse povo. Não sahio do cérebro<br />

de algum philosopho, nem das discussões de algum parlamento,<br />

nem em dia ou anno determinado.<br />

A actual Constituição da Inglaterra, diz Macauly, é para<br />

a Constituição sob a qual ella crescia ha quinhentos annos, o que<br />

a arvore é para o arbusto, o que o homem é para a criança-<br />

Por grandes alterações tem passado, mas não houve nunca um<br />

momento, em que a parte principal d'essa Constituição não<br />

fosse antiga. Uma construcção política formada d'esse modo<br />

deve ter muitas anomalias, mas para os males resultantes de<br />

anamolias temos amplas compensações. Outras sociedades<br />

possuem constituições escriptas mais symetricas, mas nenhuma<br />

como a nossa tem reunido a revolução com os direitos prescriptos,<br />

o progresso com a estabilidade, a energia da mocidade<br />

com a magestade de uma antigüidade immemorial ( I ).<br />

( 1 ) History of England L. 1. c. 1.


36 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Os inglezes nunca tentarão escrever a sua Constituição;<br />

tem algumas leis que se podem dizer constitucionaes, mas<br />

a mór parte de sua Constituição está nos costumes e nos usos;<br />

e aquellas mesmas leis escriptas só fizerão gravar disposições<br />

das leis costumeiras, quando desconhecidas ou violadas.<br />

O direito costumeiro, lex non scripta, isto é, o complexo de<br />

precedentes c usos, ao que os inglezes chamão common laiv,<br />

fôrma a parte principal d'essa monumental Constituição.<br />

Esse direito costumeiro estabeleceu desde séculos a fôrma<br />

monarchica do governo; regulou a ordem de successão á coroa;<br />

estabeleceu a irresponsabilidade d'csta, e seu direito de veto ;<br />

consagrou a existência do gabinete, transformação do conselho<br />

privado ; firmou a existência do parlamento e das duas assembléas<br />

que o compõe... Tudo isso é obra da common law, e não<br />

o resultado de nenhum texto de lei escripta ( I ).<br />

A parte costumeira do direito constitucional inglez regula<br />

questões tão numerosas e importantes que se pôde dizer, affirma<br />

Boutmy, que o direito constitucional escripto é quasi um<br />

direito de excepção ou uma legislação complementar. A excepção<br />

das garantias judiciarias, da liberdade religiosa, das<br />

grandes liberdades políticas, de imprensa, de associação e de<br />

reunião, a excepção da materia eleitoral, o mais, e principalmente<br />

a organisação, as attribuições, as relações reciprocas e<br />

o r.iechanismo dos poderes públicos ( realeza, gabinete, câmara<br />

alta, câmara dos communs ) ficão fora do direito escripto :<br />

todos esses importantes assumptos, que são como o centro e a<br />

alma do direito constitucional, regulão-se na Inglaterra pelos<br />

simples usos ( 2 ).<br />

A lex non scripta comprehende duas espécies de regras,<br />

diz o conde de Franqueville, as quaes apparentemente são<br />

semelhantes, mas na realidade distinctas ; umas fazem parte da<br />

lei consuetudinaria (common law) e tem sancção legal; outras<br />

resultão simplesmente do uso, e são privadas d'aquella sancção :<br />

os tribunaes podem garantir a execução das primeiras, mas não<br />

reconhecem as segundas. As regras relativas á ordem de successão<br />

á coroa, por exemplo, não resultão de um texto de lei<br />

( 1 ) V. Franqueville loc. cit.<br />

( '3 ) Eludes de droit constitutionnel, p. 2C, Paris, 1888.


13<br />

E CONSTITUCIONAL 37<br />

escripta, são precedentes, mas a jurisprudência reconhece-as e<br />

lhes dá valor jurídico. Pelo contrario, as regras segundo as<br />

quaes o Soberano demitte seus ministros, si não gosão da<br />

confiança da câmara dos communs, não tem sancção jurídica,<br />

de modo que um tribunal possa obrigar o Soberano, se elle<br />

entende não demittil-os. N'este e outros casos a sancção está<br />

na reprovação da opinião publica, poder supremo na Inglaterra<br />

( i ).<br />

Os documentos legislativos que versão sobre questões<br />

constitucionais são poucos ; os de maior valor são os seguintes :<br />

i.° A Magna Carta de 1215, espécie de tratado ou pacto*<br />

O rei João sem Terra commettêra muitos vexames e violências;<br />

seus barões levantarão-se, declararão-se desligados do juramento<br />

de obediência, e o rei foi obrigado a assignar aquelle<br />

tratado, em que se estabelecem garantias á liberdade individual,<br />

a necessidade do consenso do povo para poder ser<br />

tributado, etc. ( 2 ).<br />

2." A Petição de direitos de 1627, votada pelos communs<br />

e pelos pares, e sanccionada por Carlos I com a antiga formula:<br />

Soit droit fai.', comffi'il est désiré. Este estatuto confirmou<br />

garantias antigas.<br />

3.° O Bill dos direitos de 1688, que foi conseqüência da<br />

revolução d'aquelle anno, a qual os ingiezes ehamão a grande<br />

revolução. A occasião seria opportuna para redigir uma Constituição,<br />

mas os ingiezes não pensarão em tal; limitarão-se<br />

a affirmar como direitos históricos as velhas liberdades inglezas.<br />

Jacques II as tinha violado, os lords espirituaes e temporaes<br />

e os communs se reunirão, considerarão o rei deposto, e o<br />

throno vago ; chamarão para elle uma dynastia estrangeira,<br />

aproveitarão a occasião para reivindicar suas antigas liberdades,<br />

e pedirão se reconhecesse « que todos e cada um dos<br />

direitos e liberdades afirmadas e reclamadas erão os verdadeiros,<br />

antigos e incontestáveis direitos e liberdades do povo<br />

d'aquelle reino. »<br />

( [ ) Lnc. cit. t 1 p. G5 — 77.<br />

( 2 ) V. os nossos Apontamentos do direito constitucional. Ahi se encontra um<br />

resumo da famosa Magna Carta. Recite, 1883.


38 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

O bill dos direitos declara que os actos arguidos a Jaques II<br />

são illegaes, e estabelece os seguintes princípios : i.° que o<br />

parlamento se reunirá freqüentemente, 2." que as eleições parlamentares<br />

serão livres, 3." que a liberdade da palavra será<br />

garantida aos membros do parlamento, os quaes não poderão<br />

ir a juizo por causa de seus discursos, 4. 0 que nenhum imposto<br />

será lançado sem ser votado pelo parlamento, 5.0 que o rei não<br />

poderá levantar e sustentar exercito em tempo de paz sem o<br />

consentimento do parlamento, 6." que elle não poderá suspender<br />

as leis, nem dispensar na sua execução.<br />

4. 0 O acto de estabelecimento de 1701 : contém três disposições<br />

constitucionaes, ainda hoje em vigor: 1." que a coroa,<br />

depois da morte de Guilherme III, se não tivesse filhos, passaria<br />

para a princeza Sophia de Hanover e á seus herdeiros protestantes,<br />

2. 0 que o soberano deve pertencer á igreja protestante<br />

official, e não pôde ser catholico ou casar com catholico, pena<br />

de perder o throno, 3.° que os juizes não podem ser demittidos<br />

senão a pedido das duas câmaras do parlamento. O acto acaba<br />

com estas palavras « As leis da Inglaterra sendo o direito de<br />

nascimento (birthright) do povo, todos os soberanos devem<br />

governar de conformidade com essas leis. »<br />

No século actual algumas reformas constitucionaes tem<br />

sido feitas no direito eleitoral em sentido democrático. A reforma<br />

de i832 alterou profundamente o direiro eleitoral que<br />

existia á quatro séculos ; a de 1868 deu ás cidades o suffragio<br />

quasi universal ; a de 1884 ampliou esse suffragio a todos os<br />

collegios eleitoraes do Reino Unido.<br />

Eis quasi tudo quanto de principal ha escripto n'essa Constituição,<br />

nascida nos bosqties, na phrase de Montesquieu,<br />

e que hoje, relativamente ás suas origens, é, segundo diz<br />

Macaly, como o alteroso carvalho relativamente á glande que<br />

lhe deu nascimento.<br />

Acostumados a ver as Constituições modernas regular e<br />

symetricamente escriptas com seus títulos, seus capítulos, seus<br />

artigos, definindo todos os pontos de direito constitucional,<br />

custa-nos ver nos fragmentos acima indicados uma Constituição.<br />

Com effeito ella se parece muito pouco « com esses<br />

precipitados rapidamente formados, com essas crystahsações<br />

brilhantes e regulares que estamos acostumados a chamar<br />

constituições. » A Constituição ingleza se parece mais, segundo


olC<br />

E CONSTITUCIONAL 3ç<br />

a phrase de Boutmy, com um deposito lento e indefinido no<br />

fundo de um liquido turvo ( i ).<br />

Quando se diz a — Constituição ingleza — suppõe alguns<br />

que se trata de um documento regularmente escripto, assim<br />

como a nossa. Não ha tal. Palmerston, depois de ter feito<br />

o elogio d'essa Constituição, disse — Estou prompto a dar uma<br />

boa recompensa a quem me der um exemplar da Constituição<br />

ingleza ( 2 ).<br />

II<br />

Mais directa e proximamente, do que da Constituição<br />

ingleza, procede a nossa da Constituição americana. Cumpre,<br />

por isso, fallar também d'esta Constituição.<br />

Occurrentemente terei occasião de mostrar que em geral a<br />

nossa Constituição é uma versão mais ou menos livre da<br />

Constituição elaborada na Convenção de Philadelphia : artigos<br />

ha que são traducção littéral dos d'aquella Constituição. Não<br />

é para censurar que digo isso. Tendo de redigir uma constituição<br />

democratico-federal, como não tomar por modelo a<br />

americana,se o espirito, se o pensamento havia de ser escripto ?<br />

Fallando n'aquelles termos, tenho por fim justificar a necessidade<br />

de conhecer aquella Constituição.<br />

Quando os americanos, urgidos por toda sorte de males<br />

interiores, resolverão afinal, reformar a Constituição de 1778)<br />

que organisou a Confederação, procederão de modo muito<br />

diverso, do que fizemos ao proclamar a republica federativa.<br />

Em vez de confiarem a obra da revisão constitucional a um<br />

numeroso Congresso, confiárão-na a um pequeno numero de<br />

patriotas, entre os quaes sobresahião, por seu prestigio e<br />

serviços prestados á causa da independência, os nomes de<br />

Washington, Madison, Hamilton, Franklin, Morris, Randolph<br />

e outros.<br />

Delegados de onze Estados ( dous recusárão-se fazer representar<br />

) reunirão-se em numero de 55 em Philadelphia, a 14<br />

{ 1 ) Loc. cit. p. 79.<br />

( 2 ) Cit. por Girons, Manuel de D. C. p. 30.


-10<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

de Maio de 1787 e ahi formarão a Convenção constituinte, que<br />

elaborou a Constituição, que nos servio agora de exemplar.<br />

Não acreditando em novas descobertas em materia política,<br />

deixando de parte as theorias metaphysicas, e as utopias<br />

democráticas, procurão os constituintes americanos combinar<br />

elementos já conhecidos, tradições já provadas, e baseando-se<br />

nos eternos princípios da ordem e da justiça, formularão a sua<br />

obra constitucional.<br />

Adaptarão as doutrinas, desde muito praticadas nas colônias<br />

; fizerão uma Constituição conservadora.<br />

Cincoenta annos depois o insigne commenlador cl'essa<br />

Constituição dizia : « Não é mediocre titulo para a nossa Constituição<br />

ter tomado, não theorias novas, mas a verdade experimental,<br />

para base da organisação política dos Estados-Unidos<br />

» ( 1 ).<br />

Não foi fácil aos constituintes archítectar sua obra.<br />

O coniíicto entre os interesses de cada um dos Estados e<br />

os interesses geraes da União, por mais de uma vez pôz em<br />

risco a conclusão da obra. Dous partidos logo apparecerão no<br />

seio da Convenção ; uns querião de mais para a União, e outros<br />

para os Estados; estes querião conservar a independência dos<br />

Estados, aquelles querião um forte governo central, ou consolidado,<br />

como então dizião os americanos.<br />

Se a Convenção contasse muitos membros, se estes deliberassem<br />

em <strong>publico</strong>, é de presumir que não tivessem chegado<br />

á accôrdo ; mas os delegados dos Estados erão poucos, trabalhavão<br />

a portas fechadas, e resolverão que os debates seríão<br />

conservados em segredo. Uma pequena reunião trabalhando<br />

secretamente excluía qualquer temor pessoal, facilitava as concessões<br />

de opiniões sem exigir sacrifícios do amor próprio<br />

e tornava inutil as declamações, tão charas ás multidões, cuja<br />

força verdadeira reside na fraqueza d'aquclles que consentem<br />

em tudo para lhes ser agradáveis ( 2 ).<br />

Depois de cerca de cinco mezes de discussões reservadas,<br />

de concessões reciprocas, dictadas pelo patriotismo, a famosa<br />

assembléa <strong>publico</strong>u a sua Constituição, que foi assignada por<br />

( 1 ) Story. Commentaries, t. i p. 379.<br />

( 2 ) De Noailles. Cent ans de republique au* Etats-Unis, t. 1 p. 131. Paris, 1886.


Jí<br />

E CONSTITUCIONAL 41<br />

trinta e nove dos constituintes, cujo numero total era de cincoenta<br />

e cinco.<br />

Nenhum d'elles ficou satisfeito com ella ; todos a reputávão<br />

defeituosa, e alguns recusarão assignal-a. < Adhiro a esta<br />

Constituição, disse Franklin, ao assignal-a, porque não espero<br />

melhor, e não sei se ella não será com effeito a melhor possível.<br />

Ao bem <strong>publico</strong> faço o sacrifício de minhas opiniões manifestadas<br />

contra esta Constituição. A ninguém communiquei as criticas<br />

que lhe fiz n'este recinto, aonde ellas nascerão e morrerão.><br />

Nos Estados-Unidos as assembléas constituintes, chamadas<br />

constitutional conventions, além de não deliberarem sobre<br />

algum outro assumpto estranho ao objecto, para que são convocadas,<br />

obrão apenas como delegações, e por isso depois de<br />

deliberarem, submettem á approvação do povo a Constituição<br />

redigida.<br />

Dos onze Estados, representados em Philadelphia, nove<br />

adoptárão logo a Constituição. O Estado de Carolina do Norte<br />

e o de Rhode-Island só mais tarde a acceitárão.<br />

Assim se formou a célebre Constituição, que os americanos,<br />

como Seaman, dizem ser a mais perfeita de quantas se tem<br />

redigido para o governo das nações.<br />

Não obstante, logo depois de adoptada, muitas objecções<br />

se levantarão contra ella, entre as quaes sobrelevava a da falta<br />

de uma declaração de direitos, em que se affirmassem os princípios,<br />

do governo republicano e os direitos dos cidadãos,<br />

relativos á vida, á liberdade e á propriedade. Para satisfazer<br />

á opinião manifestada n'essas objecções, em sua primeira<br />

reunião, o Congresso votou dez emendas supplementares contendo<br />

uma declaração de direitos e outras disposições. Rectitificadas<br />

pelos Estados em 15 de Dezembro de 1791, forão ellas<br />

incorporadas á Constituição. Em 1794 outra emenda foi approvada<br />

pelo Congresso, e ractificada em 8 de Janeiro de 1798,<br />

foi também incorporada. Finalmente a 12 de Dezembro de i8o3<br />

nova emenda foi approvada e sendo ractificada em i8o4, ficou<br />

também fazendo parte da Constituição.<br />

Com essas doze emendas conservou-se inalterável a Constituição<br />

até o fim da guerra civil da secessão. Depois d'essa<br />

guerra a Constituição social da grande Republica passou por<br />

profunda alteração.<br />

Considerando que de facto e praticamente os Estados, que


42 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

se subievárão, ficarão fora da União e sujeitos ás leis dos<br />

Estados-Unidos como territórios conquistados, o Congresso<br />

edictou diversas leis conhecidas geralmente pelo nome de<br />

Actos de reconstrucção, cuja constitucionalidade, baseada<br />

n'aquella interpretação, foi muito contestada ( I ).<br />

Além d'esses actos, que modificarão a organisaçào do<br />

systema americano, mais três emendas constitucionaes, regulando<br />

os direitos civis e politico s dos negros, forão addicionadas á<br />

Constituição. Uma proposta e adoptada em 1865, outra proposta<br />

em 1866 e adoptada em 1868 e a terceira proposta emi869<br />

e adoptada em i87o.<br />

Taes são succintamente a origem e o desenvolvimento da<br />

Constituição dos Estados-Unidos.<br />

Depois d'essa succinta noticia, alguma cousa convém dizer<br />

sobre as relações d'aquella Constituição com a nossa.<br />

Não podem ser mais intimas essas relações.<br />

Redigindo a Constituição de 24 de Fevereiro os seus redactores<br />

tiverão diante de si a Constituição americana, de preferencia<br />

a qualquer outra, e apossarão-se, não só do pensamento<br />

geral, mas até muitas vezes de sua lettra.<br />

A's divisões em artigos, secções e paragraphos da Constituição<br />

imitada, substituirão a divisão em titulos, secções, capitulos<br />

e artigos. A nossa é mais methodica, mais symetrica na<br />

distribuição das matérias, mas substancialmente é uma traducção<br />

do outra.<br />

Durante o curso das lições farei constante referencia á<br />

Constituição americana, mas desde já, para que não pareça<br />

exageração o que fica dito tocante á semelhança das duas<br />

Constituições, abra-se a nossa e sem demora ver-se-ha que os<br />

arts. 3.°, 4.°, 6.° 8." e 9. 0 nos §§ 2." e 3.°, arts. 33, 49 nos §§ 11<br />

e 12, arts. 93, 94, etc., etc., são traducçòes do art. i.°§ 17, 4<br />

§ 3—1 § 4—1, § 9—6—5, § 10—2, § 3 —2, art. 2.0 § 2—2 art. 4. 0<br />

§ i.° etc. etc. da Constituição americana.<br />

( 1 ) V. Seaman, loc. cit. p. 65.


E CONSTITUCIONAL 43<br />

III<br />

O federalismo suisso imita, ainda que com differenças, o<br />

federalismo americano, mas a Constituição da Suissa está longe<br />

de igualar em mérito, valor politico e estabilidade á Constituição<br />

americana.<br />

A distincção tão cuidadosamente feita na lei fundamental<br />

americana entre os poderes executivo e judiciário, não se vê na<br />

Constituição suissa. Aqui o poder executivo exercita muitas<br />

funcções de caracter judiciário, ingerindo-se, por exemplo, em<br />

questões de direitos das associações religiosas ; em muitos<br />

casos o tribunal federal não pôde conhecer da constitucionalidade<br />

das leis edictadas pelo parlamento federal.<br />

Os cantões conservão ainda hoje, posto que excepcionalmente,<br />

o direito de concluir com Estados estrangeiros tratados<br />

sobre objectos concernentes á economia publica, ás relações<br />

de visinhança e de policia.<br />

Essa Constituição tem sido muitas vezes modificada.<br />

O Pacto de 1815 foi substituído pela Constituição de 12 de<br />

Setembro de 1848, que teve por fim apertar o laço federativo ;<br />

suas bases forão tiradas do systema federativo dos Estados-<br />

Unidos do Norte.<br />

Essa Constituição funccionou durante quinze annos. Em<br />

1869 a assembléa federal começou a discutir a sua reforma com<br />

vistas muito centralisadoras, discussão que continuou nas sessões<br />

de 1871 e 1872 e terminou votando-se a Contituição de 5 de<br />

Maio de 1872. Sendo sujeita, como ordenara a Constituição<br />

de 1848, ao voto dos cidadãos, a Constituição de 72 foi regeitada<br />

por 260,859 «ão, contra 255,606 sim; i3 cantões a repelliram<br />

contra 9 que a acceitárão.<br />

Em 1873 abrio-se nova discussão, e d'ella sahio a Constituição<br />

de 1874. Esta foi acceita a 29 de Maio por 34o, 199 sim<br />

contra i98,oi3 não ; 14 1/2 cantões a acceitárão, 7 1/2 a regeitárão.<br />

A Constituição de 29 de Maio de 1874,


44<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

substituio o art. da de 1848, que só extinguío essa pena em materia<br />

política ( I ).<br />

Segundo a Constituição suissa, as revisões constitucionaes,<br />

assim como todas as leis e regulamentos de interesse geral, são<br />

ractificadas pelo voto popular, ou plebiscito, alli chamado —<br />

referendum.<br />

Depois que o referendum foi admittido pela Constituição<br />

federal de 1874 quasi todos os annos tem havido appello ao<br />

povo.<br />

E' notável a actividade politica da Suissa em revisões<br />

constitucionaes.<br />

Segundo o Manuel statistique de la Suisse, de Chatelanat,<br />

de i83o a 1879 houve 15 revisões de constituições cantonaes,<br />

e 3 da Constituição federal. De i83o a 1849, 27 revisões<br />

tiverão por fim transformar as republicas aristocráticas em<br />

republicas democráticas. De 1846 a 1862, 22 revisões acabarão<br />

por estabelecer o regimen representativo. De 1862 a 1880,<br />

66 revisões se fizerão para estabelecer o governo popular<br />

directo ou o regimen plebiscitario ( 2 ).<br />

( 2 ) V. Darostc, Constitutions modernos, t. 1. p. ííO.<br />

( 3 ) E. Laveleye. Le gouvernement dans la démocratie, t. 2. p. 146, Paris, 1891


J-5<br />

CAPITULO V<br />

NAÇÃO, POVO, ESTADO E SOCIEDADE. A SOCIEDADE FACTO<br />

NATURAL E UNIVERSAL. RELAÇÕES DOS INDIVÍDUOS COM<br />

A SOCIEDADE.<br />

I<br />

Esses termos, e as noções, querepresentão, andão confusos<br />

em alguns livros de Direito <strong>publico</strong>.<br />

Certos escriptores os empregão como synonymos, para<br />

representar a idéa de uma sociedade politica. Essa confusão<br />

podendo dar lugar a equivocos, não é inutil precisar o sentido<br />

jurídico d'aquellas palavras.<br />

As sábias e amplas discussões levantadas modernamente<br />

sobre o principio das nacionalidades, particularmente na Italia<br />

e na Allemanha, muito contribuirão para a elucidação d'aquelles<br />

termos, que nas excellentes obras de Serrigny, de Vattel e<br />

de outros publicistas são indifferentemente empregados.<br />

Uma multidão de homens reunidos pela força ou accidentalmente,<br />

sem interesses communs, sem um fim também commum,<br />

querido e intentado por todos, não constitue um todo<br />

orgânico ; não pôde ter uma individualidade propria, uma<br />

personalidade distincta.<br />

Para que uma reunião de homens possa ser considerada um<br />

organismo, um povo, é preciso que aquelles homens, reunidos<br />

tenhão consciência de sua unidade moral, que deliberamente<br />

dirijão suas acções para um fim commum.<br />

A consciência de ser uma unidade moral, a deliberação na<br />

unidade de esforços para attingir um fim commum constituem<br />

a personalidade, d'aquella dirivão todos os direitos da pessoa,


46<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

dos quaes os principaes são — o direito de existir e o de<br />

conservar-se.<br />

Geralmente se chama nação ( palavra derivada de nascor,<br />

nascer) a reunião de homens, que vivem no mesmo território,<br />

fallando a mesma lingua, tendo a mesma tradição, os mesmos<br />

costumes, a mesma religião e o mesmo governo.<br />

Mas, diz Carnazza Amari, os elementos, território, lingua,<br />

tradição, costumes e religião podem ser condições objectivas<br />

de nacionalidade, porém, por si sós, não a constituem, não<br />

produzem o vinculo nacional ; falta o elemento subjectivo,<br />

que é a consciência da nacionalidade, o sentimento intimo^<br />

radicado no coração d'aquelles homens, e que lhes dá certeza<br />

de constituírem uma parte do gênero humano, distincta das<br />

outras, tendo vida separada, interesses especiaes, necessidades<br />

peculiares.<br />

Na Suissa os Cantões diversíficão em raça, lingua, religião,<br />

e não obstante os suissos constituem uma nação.<br />

Para o illustre professor de Catana, são condições essenciaes<br />

a uma nação: i.° uma multidão de famílias tendo consciência<br />

de sua nacionalidade, 2.° que essas famílias tenhão<br />

se reunido livre e espontaneamente e não pela força, 3.° que<br />

tenhão um governo livremente instituído e acceito. 4.0 que se<br />

achem lixadas em um território determinado ( 1 ).<br />

No sentido indicado Nação e Povo são palavras S3 r nonymas-<br />

Um povo é também uma aggremiação de homens, que tem<br />

consciência de sua unidade moral, e sentem necessidade de ser<br />

unidos para, mediante esforços communs, attingirem um fim<br />

também commum — o bem social.<br />

Mas além d'esse sentido moral, por força do qual dizemos<br />

indifferentemente nação ou povo, a palavra povo tem também<br />

um sentido politico.<br />

No primeiro caso povo exprime a totalidade das pessoas<br />

que formão uma nação, no segundo somente exprime as pessoas<br />

qualificadas, que tomão parte pelo voto nos negócios<br />

públicos ou políticos.<br />

Quando nas discussões políticas, e em direito constitucional<br />

dizemos — o povo, — intentamos fallar, escreve Cooley,<br />

( 1 ) Traité de droit internacional public, t. 1. cap. 2. Paris, 1880.


J>/<br />

E CONSTITUCIONAL 47<br />

dos cidadãos que tem parte no governo mediante o direito de<br />

voto de que se achão investidos. Assim, dizemos que o povo<br />

escolhe os seus representantes, ainda que os eleitores formem<br />

uma pequena minoria relativamente ao corpo da nação, mas<br />

como obrão por todos, e temporariamente representão a soberania,<br />

são considerados e chamados o povo soberano. Quando,<br />

porém, falíamos dos direitos e garantias do povo, entende-se a<br />

totalidade do povo, amassados cidadãos; e assim dizemos que<br />

o povo tem direito de reunião, de petição, etc. N'este caso<br />

não se falia somente dos eleitores, ou de uma classe do povo,<br />

mas da totalidade da communhão ( i ).<br />

Populações différentes em lingua, raça e tradições podem<br />

se achar em um mesmo território, sujeitas ao mesmo governo,<br />

que os dirige de conformidade com os interesses de todos, com<br />

os princípios da ordem social, e d'esse modo forma-se o prin.<br />

cipio da unidade moral das populações reunidas, cria-se uma<br />

individualidade fazendo d'essas populações um povo. Assim<br />

suecedeu na Suissa e nos Estados-Unidos.<br />

Outras vezes, porém, populações différentes estão sujeitas<br />

de facto ao mesmo poder politico, constituindo, não uma<br />

unidade moral, mas a unidade política : é o que se dá no vasto<br />

império da Russia e no da Turquia.<br />

Se essas aggregações humanas não tem o caracter de<br />

verdadeira individualidade, resultante da unidade moral, todavia<br />

tem uma certa individualidade resultante do facto da união,<br />

que as distingue das outras uniões, porque tem sua esphera de<br />

acção propria, em um território distineto, separado dos outros<br />

paizes limitrophes.<br />

Essas individualidades, quer resultem de um facto natural,<br />

quer de um facto histórico ou puramente politico, são personalidades<br />

distinetas, são organismos políticos différentes, em uma<br />

palavra, constituem Estados.<br />

Um Estado, pois, é um organismo político, formado de<br />

certa quantidade de homens, reunidos permanentemente em um<br />

território determinado, tendo um governo autônomo, meios<br />

sufficientes para garantir a ordem distribuir a justiça em seu<br />

seio e para assumir a responsabilidade de seus actos em suas<br />

relações com os outros Estados.<br />

( 1 ) Principles of constitutional Law, cit. p. 267.


48 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Do que fica dito se vê que Estado não é a mesma cousa<br />

que Nação. Nação é um ente moral, principalmente resultante<br />

de factores naturaes, como a identidade de origem, de lingua,<br />

de costumes, dos indivíduos que a fórmão, e sobre tudo do<br />

sentimento de nacionalidade ; pelo contrario o Estado é um<br />

ente jurídico e politico constituido principalmente pela unidade<br />

de governo autônomo.<br />

O Estado pôde ser a expressão visivel da Nação, mas isso<br />

nem sempre se dá, por quanto pôde acontecer que um Estado<br />

seja composto de porções de territórios habitados por populações<br />

de diversas nacionalidades, como o império allemão e a<br />

Austria-Hungria, e por outro lado povos de uma mesma nacionalidade<br />

podem ser divididos em dous ou mais Estados.<br />

A capacidade jurídica é attributo essencial á pessoa, e as<br />

nações só se tornão pessoas da família humana, e portanto<br />

capazes de exercer direitos e de contrahir obrigações internacionaes,<br />

quando são politicamente organisadas, isto é, quando<br />

existem como Estados. Quando um Estado é reconhecido pelos<br />

outros Estados adquire a personalidade internacional ( i ).<br />

Na opinião de C. Amari,o caracter distinctive entre Nação<br />

e Estado é a consciência da nacionalidade, isto é, a vontade<br />

nas famílias co-nacionaes de formar uma Nação ; pelo contrario,<br />

o Estado existe independentemente da vontade dos membros,<br />

que o compõe e da expontaneidade de sua organisação. Toda<br />

Nação, diz elle, é um Estado, porque se deve encontrar na<br />

Nação os elementos essenciaes, que constituem o Estado ; mas<br />

todo Estado não é uma Nação, porque para a existência da<br />

Nação se requer expontaneidade na reunião, e consciência da<br />

nacionalidade, o que nem sempre se encontra no Estado.<br />

Sociedade em sentido amplo e impróprio é a simples<br />

co-existencia de sêres que tem o mesmo fim, sejão ou não<br />

dotados de intelligencia, e de vontade, capazes de conhecer o<br />

fim e de conscientemente cooperarem para attingil-o.<br />

Em sentido restricto e próprio a idéa de sociedade só se<br />

applica aos sêres intelligentes, e se pôde dizer n'este caso que<br />

sociedade, em geral, é a reunião de sêres intelligentes, que<br />

concordão em procurar um bem conhecido e querido por todos.<br />

{ 1 ) Fiori, Droit international public, t, 1. cap. 1 e 2. Paris, 1885.


4S<br />

E CONSTITUCIONAL 49<br />

Em sentido jurídico toda sociedade contém três elementos<br />

constitutivos: l.° Pluralidade de pessoas, 2.° Vinculo jurídico,<br />

i." Fim commum.<br />

Sem pluralidade de pessoas, physicas ou moraes, é impossível<br />

a união, ainda que o numero d'ellas não possa ser determinado.<br />

Sem vinculo jurídico, isto é, sem direitos e deveres<br />

recíprocos e comrr ns, pôde haver mera convivência ou<br />

co-existencia de pessoas, mas não sociedade propriamente<br />

dita. Se dez ou vinte operários são chamados para um serviço<br />

em que trabalhão juntos, não diremos que elles formâo uma<br />

sociedade, porque falta o vinculo jurídico. Por outro lado, se<br />

algumas pessoas se unem, ainda que com obrigação, para obter<br />

mediante seu trabalho o proveito exclusivo ou de uma ou de<br />

outra, mas não de todas, teremos um contractu de locação<br />

de serviço, mas não uma sociedade, porque falta o fim commtim.<br />

Não se concebe sociedade sem união de intelligencias e de<br />

vontades dirigidas para um fim commum conhecido e querido<br />

por todos ; d'onde se segue que para a formação jurídica de<br />

uma sociedade se requer: i.° entes capazes de entender e de<br />

querer, 2.° que effectivamente entendão e queirão o fim, 3.° que<br />

o fim seja digno de entes intelligentes e livres, isto é, que seja<br />

honesto.<br />

Do que fica dito se infere que dos quatro termos, cujo<br />

sentido fica explicado, sociedade é o de maior extensão ; uma<br />

nação, um povo, um Estado são verdadeiras sociedades ( l ).<br />

II<br />

O homem è naturalmente social, e tende a viver effectivamente<br />

em sociedade.<br />

A limitação das forças intellectuaes e physicas dos indivíduos<br />

; a resistência que a natureza material oppõe em ser<br />

transformada para se tornar capaz de satisfazer ás nossas materiaes<br />

précisées; a desigualdade natural dos attributos do<br />

homem ; a differença de suas aptidões naturaes, e conseqüente<br />

( 1 ) V. a nossa Philosopliia do direito, p. 2G1.<br />

7


50 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

necessidade da troca de serviços na co-participação dos bens<br />

da vida; tudo isso nos convence da impossibilidade do homem<br />

viver fora da sociedade de seus semelhantes.<br />

A sociedade é, pois, o facto mais natural e universal de que<br />

a historia nos dá noticia, quer quanto ao espaço,quer quanto<br />

ao tempo.<br />

Em toda a parte e em todos os tempe,, a historia nos mostra<br />

reuniões humanas em famílias, tribus, e em sociedades civis.<br />

O estado selvagem, o estado de pura natureza, que o philosophismo<br />

diz ser a condição primitiva geral da humanidade<br />

é simples fabula. O homem não só é naturalmente sociavel,<br />

como de facto sempre viveu em sociedade.<br />

A prerogativa da palavra, de que o homem é dotado,<br />

também demonstra o seu caracter eminentemente sociavel.<br />

Fora da sociedade a palavra seria inutil, porque o homem não<br />

teria a quem communicar os seus pensamentos, confiar suas<br />

alegrias e seus pesares.<br />

« A historia de todas as epochas, diz C. Amari, de todas as<br />

civilisações, de todas as barbarías,a historia antiga, a moderna,<br />

obscura ou certa, sagrada ou profana, da raça branca ou da<br />

negra, dos christãos e dospagãos, nos mostra o homem sempre<br />

vivendo em sociedade. »<br />

Quaes são as i'elações dos indivíduos com a sociedade, de<br />

que fazem parte ?<br />

III<br />

Entrando para a sociedade o homem fica integralmente o<br />

que era d'antes ; adquire apenas novas relações que lhe augmentão<br />

a energia pessoal, mas não perde os seus direitos naturaes,<br />

os quaes pódc sempre fazer valer, especialmente quando<br />

correm risco de ser sacrificados.<br />

Aquelle que affirmasse que o direito individual é absorvido<br />

pelo direito social, diz o illustre Rosmini, daria a formula mais<br />

tyrannica de todas as sociedades.<br />

Não, a pessoa, nunca perde os seus direitos absolutos por<br />

fazer parte da sociedade, ainda quando não intervenha no seu<br />

governo, não deixa por isso de poder influir na gestão dos<br />

negócios públicos ; conserva o direito de conhecer como procede<br />

a administração social, na qual tem natural interesse.


E CONSTITUCIONAL 5><br />

A sociedade não é mais do que um instrumento, mediante<br />

o qual o homem pôde mais facilmente conseguir o bem, ao qua'<br />

por natureza é destinado ; no dizer de Romagnosi, eiia é apenas<br />

uma macchina d'ajuto, para supprir a insufficiencia individual;<br />

é necessária ao homem, mas essa necessidade é uma<br />

necessidade de meio, o rim social é sempre o bem do homem.<br />

Em uma sociedade democrática não devemos perder de<br />

vista os direitos individuaes ; cumpre pugnar sempre pela<br />

integralidade d'elles.<br />

A sociedade deve deixar intacto o desenvolvimento das<br />

liberdades individuaes; a acção social só deve intervir para<br />

garantir o exercicio dos direitos individuaes, ou directamente<br />

lavorecendo aquelle exercicio, ou indirectamente removendo<br />

os obstáculos que se lhe oppõem.<br />

Não é raro ouvir dizer que entrando para a sociedade "<br />

homem perde a sua natural independência : são reminiscencias<br />

da velha eschola do absolutismo.<br />

Se entrando para a sociedade o homem perde a sua independência,<br />

devemos concluir que no estado de isolamento, no<br />

estado selvagem, que outr'ora imaginarão ser o estado natural<br />

do homem, elle é completamente independente. Independência<br />

em uma situação em que o homem é impotente, e escravo do<br />

contentamento fortuito das sensações !<br />

Quem poderá dizer, escreve o velho Romagnosi, que o<br />

homem escravisado de corpo e alma á rude natureza gosa da<br />

sua natural independência ?<br />

A idéa de independência, para ser convenientemente applicada,<br />

deve referir-se pelo menos ao que o homem costuma<br />

desejar, e ao que é determinado por sua constituição natural.<br />

Ora, o homem é racional por constituição natural, e a sua<br />

conservação é o objecto constante de seus desejos. Logo a sua<br />

independência natterai só se verificará n'aquelle estado em que<br />

elle possa effectivamente obter o aperfeiçoamento de sua racionalidade,<br />

e a sua melhor conservação, e elle tornar-se-ha tanto<br />

mais independente, quanto menos sujeito fôr ás circumstancias<br />

contrariantes d'aquelles bens. Esse é o estado social ; só<br />

n'elle pois se effectua a verdadeira independência natural do<br />

homem ( 1 ).<br />

( 1 ) V. Instituzioni dî civile filosofia, t. 1. p. 76.


52<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Longe da ordem social contrariar a independência, pelo<br />

contrario favorece o direito natural de independência, que<br />

compete a todo homem, sem destruir o dever jurídico de dependência.<br />

Não ha sociedade sem autoridade, nem autoridade sem<br />

dependência.<br />

E' nas relações entre os cidadãos e a autoridade social que<br />

o direito de independência adquire todo o desenvolvimento de<br />

que é capaz ; porque a autoridade civil, em seu verdadeiro<br />

aspecto, é affirmação do direito, emquanto compete-lhe fazer<br />

tudo o que é necessário para que os cidadãos obtenhão o seu<br />

bem individual no bem commum. Sendo esse o fim da autoridade<br />

social, prestar-lhe obediência é em ultima analyse auxiliar a<br />

tendência do próprio direito e usar da verdadeira independen"<br />

cia jurídica. De sorte que o que parece perda de independência<br />

a respeito das autoridades, não é senão o exercício da<br />

verdadeira independência ; porque o cidadão obedecendo, verdadeiramente<br />

só escravisa a ignorância, os vicios, as paixões<br />

e as violências, e não a sua independência. Obedecendo á<br />

autoridade, qual deve ser, o homem não obedece ao homem,<br />

mas á ordem racional ( I ).<br />

A sociedade, acabamos de dizel-o, não é uma abdicação<br />

da natureza humana, nem dos direitos que lhe são inhérentes :<br />

entrando para ella o homem fica sendo substancialmente o que<br />

era. Mas pelas novas relações que adquire no estado social,<br />

as suas forças avalorão-se, porque a união enfeixando as forças<br />

individuaes as multiplica.<br />

As sociedades, quer sejào necessárias, como a civil, quer<br />

sejão voluntárias como a conjugai, regem-se por leis que<br />

derivão da propria natura da sociedade.<br />

Dado um fim a que se quer atringir mediante uma sociedade<br />

os meios conducentes a elle são determinados pela razão<br />

social. As regras que regulão as acções dos associados encaminhando-as<br />

ao fim social, são leis sociaes. Essas leis são<br />

variadissimas, como as diversas espécies de sociedades, mas<br />

todas ellas devem ser dictadas pela razão, e baseadas na justiça,<br />

( J ) V. Nossa Philosophia do Direito, p. 137 e seg.


E CONSTITUCIONAL 53<br />

exprimindo assim as relações que ligão a sociedade ao direito,<br />

sem o que a sociedade se arruinará.<br />

Assim que, em uma sociedade uniquota dividir os proveitos<br />

e os encargos em partes iguaes, e em uma sociedade polyquota<br />

dar a cada um as vantagens proporcionalmente aos encargos<br />

sociaes, são principios ou leis que não se podem preterir sem<br />

dissolver o vinculo social ( i ).<br />

( 1 ) Os escriptores italianos usão freqüentemente das expressões uniquota<br />

e polyquota. Quando os membros de uma sociedade concorrem para ella igualmente<br />

com a mesma porção de força, forma-se uma sociedade em que todos os sócios são<br />

iguaes, tem iguaes direitos; diz-se então que a sociedade ê uniquota ; quando pelo<br />

contrario os sócios entrão com porções différentes, a sociedade 6 desigual e aos<br />

sócios competem quantidades différentes de direitos e vantagens, e diz-se que a<br />

sociedade é polyquota { * ).<br />

( * ) V. Rosmini — Filosofia dei Dirilto, I. 2. p. W


CAPITULO VI<br />

ESTADO. ESPÉCIES DE ASSOCIAÇÕES ESTADAES. DIREITOS<br />

E DEVERES DO ESTADO<br />

I<br />

Já ficou dito que o Estado é um organismo politico, formado<br />

de um certo numero de homens, reunidos em um mesmo<br />

território, tendo meios próprios para defender o.s direitos dos<br />

associados, e sendo capaz de assumir a responsabilidade de<br />

seus actos perante os outros Estados.<br />

Um organismo dotado d'esses attributos ; que tem o sentimento<br />

de sua unidade ; que é capaz de direitos e obrigações<br />

é sem duvida não só uma pessoa moral, mas também jurídica.<br />

A personalidade do Estado encontra-se na vida social, não<br />

só com as pessoas individuaes ou physicas dos cidadãos, mas<br />

também com a personalidade moral da sociedade. Cada uma.<br />

d'essas personalidades — indivíduo — sociedade — Estado —<br />

tem sua esphera de acção social, dentro da qual deve gyrar,<br />

sem invadir a esphera alheia. O Estado não deve absorver a<br />

sociedade, nem a sociedade o indivíduo.<br />

E' ponto essencialissimo em sciencia social a distincção<br />

entre Sociedade e Estado. Mas distinguir as espheras de acção<br />

d'essas duas personalidades, não é negar as relações que ellas<br />

tem entre si, nem sustentar que a sociedade pôde prescindir de<br />

um organismo estadual ; mas somente que a sociedade não deve<br />

ser absorvida no Estado, e que o Estado não deve intrometter-se<br />

nas espheras de actividade da vida humana, na esphera da<br />

religião, da moralidade, da sciencia, da industria, do commercio.<br />

I'm Estado dogmatisando em religião, constituindo-se


Sa<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

mestre de moral, pedagogo, industrial e commerciante, é o<br />

Estado omnipotente de Hegel, no qual o homem perde a sua<br />

personalidade individual.<br />

Por outro lado também, nem o Estado, nem a sociedade<br />

deve absorver a personalidade do indivíduo ; este é uma pessoa<br />

completamente distineta do corpo politico, de que faz parte.<br />

O indivíduo humano possue certas faculdades que constituem<br />

o seu patrimônio sagrado ; tem o direito natural de<br />

exercital-as, sem que lhe o possão impedir.<br />

Membro do Estado, o homem conserva a plenitude dos<br />

direitos pessoaes, não por ser membro do Estado, mas porque<br />

é homem ; tem o direito absoluto de exercitar e desenvolver as<br />

suas faculdades pessoaes, não por concessão do Estado, mas<br />

por effeito de sua propria vontade. Entretanto não devendo o<br />

homem, na livre pratica de seus actos, obstar nem a livre<br />

actividade das outras pessoas, com as quaes co-existe, nem os<br />

interesses geraes da communhão política, a que pertence, d'ahj<br />

procede o direito do Estado, como pessoa jnridica, de coordenar<br />

as acções individuaes.<br />

Essa funeção co-ordenadora do Estado dimana do seu<br />

destino social, de sua missão na sociedade, aonde representa-o<br />

papel de pessoa <strong>publico</strong>-juridica por excellencia.<br />

Dentro de sua esphera intervenha o Estado; mas respeite a<br />

esphera pessoal do indivíduo ; deixe que dentro de seu domínio<br />

a pessoa individual obre livremente ; só assim o cidadão se<br />

nobilita e nobilita-se o Estado.<br />

O que afinal de contas, diz Mill, faz o valor de um Estado,<br />

é o valor dos indivíduos que o compõe. Um Estado que sacrifica<br />

a elevação e a elasticidade intellectual dos cidadãos a ura<br />

pouco mais de habilidade administrativa ; um Estado que, ainda<br />

mesmo com intenção benéfica, amesquinha os individuos, para<br />

fazer d'elles instrumentos mais dóceis, verá depois que com<br />

pequenos homens não se fazem grandes cousas ; a perfeição<br />

mechanica, á qual o Estado immola tudo, acabará por não lhe<br />

servir de nada, porque falta-lhe o elemento vital que elle expellio<br />

para que a machina andasse mais facilmente ( i ).<br />

( 1 ) V. E. Laboulaje, L'Etat et ses limites, p. 67.


E CONSTITUCIONAL 57<br />

Depois d'essa breve noção acerca do Estado e sua personalidade<br />

em relação com as personalidades individuaes, vejamos<br />

como os organismos políticos podem formar associações.<br />

II<br />

Qs Estados, verdadeiros organismos vivos, dotados de<br />

propriedades semelhantes ás dos organismos naturaes, tendo<br />

direitos e deveres, podem formar entre si différentes espécies<br />

de associações, dando em resultado diversas sortes de organismos<br />

políticos compostos^ com existência independente da<br />

dos Estados simples que os compõe.<br />

Naõ~^évên3Õ""descer ao estudo dos direitos que podem<br />

competir a cada um dos Estados simples, porque esses direitos<br />

são variáveis, segundo o pacto de união que constitue o organismo<br />

composto, e formão objecto do direito <strong>publico</strong> interno ou<br />

privado, de cada uma das partes componentes, diremos somente<br />

em que consistem as diversas sortes das associações ou reuniões<br />

indicadas na épigraphe.<br />

A tinido real de Estados consiste na associação de dous<br />

ou mais Estados,' sujeitos por tempo indefinido ao mesmo poder<br />

soberano, tendo em commum certos serviços e instituições.<br />

Essa espécie de organismo composto pôde offerecer certas<br />

variedades, que todavia não influem no caracter predominante<br />

do typo. As partes unidas podem ter leis locaes différentes,<br />

podem gosar de maior ou menor autonomia, mas desde que o<br />

poder soberano é um, e a este compete exclusivamente a capacidade<br />

de representar a união perante os outros Estados,<br />

podendo com estes contrahir obrigações e exercitar direitos,<br />

temos a união real. Assim, a união dos reinos da Escócia, da<br />

Irlandia e da Inglaterra, constituindo o rei-unido da Gran-<br />

Bretanha ; a união da Austria e da Hungria formando a monarchia<br />

Austro-Hungara, são exemplos da união real ( i ).<br />

Distincta da precedente é a uniu^^ssoaL<br />

ia<br />

( 1 ) Na união ausfro-hungara ha certos serviços e instituições communs, como<br />

exercito, representação diplomática e finanças, e portanto três ministérios communs,<br />

estrangeiros, guerra e fazenda. Representantes em numero igual deliberão sobro<br />

os interesses communs. V. Lavcllcye, obr. cit. t. 1. pag, (i3.


5* NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Dá-se esta, quando os Estados se unem sob um soberano<br />

commum, mas conservão autonomias distinctas, tendo cada um<br />

o seu parlamento, sua legislação, suas finanças, sua administração,<br />

seu exercito, etc.<br />

Exemplo d'esse typo é a união da Suécia e da Noruega.<br />

Os negócios communs a esses dous reinos são tratados em um<br />

conselho de Estado mixto, composto de membros suecos e<br />

noruegos.<br />

h-união federal, que ordinariamente se opera entre Estados<br />

republicanos, consiste na reunião de Estados livres, mediante<br />

um pacto federal, conservando, porém, cada Estado a<br />

sua personalidade, quanto aos interesses territoriaes de cada<br />

um;.juntos organisão um governo central para tratar dos<br />

interesses communs da associação política : é uma societas<br />

civitatum sui jicris, e n'isso se distingue da confederação dos<br />

Estados, que é simplesmente uma civitas composita ( i ).<br />

N'essa sorte de organismo predomina a fôrma unitária,<br />

porque o governo central tem o summum imperium a respeito<br />

de tudo o que é do interesse commum da união; de modo que<br />

a personalidade política do Estado federal é única relativamente<br />

aos actos internacionaes, cujo sujeito é a união e não<br />

algum dos Estados. O typo mais completo de união federal<br />

é o dos Estados-Unidos da America do Norte.<br />

Mas esse typo pôde ter suas variedades, nas quaes conservando-se<br />

a fôrma unitária, quanto ao governo supremo federal,<br />

todavia as partes unidas também conservão certa capacidade<br />

sui juris, pelo próprio pacto federal, podendo contrahir obrigações<br />

internacionaes; de modo que a capacidade internacional<br />

dos Estados unidos não é completamente absorvida pela do<br />

governo federal.<br />

Exemplo d'essa variedade de Estado federativo foi a<br />

confederação suissa, tal qual a organisou a Constituição de 1815,<br />

a qual concedia aos Cantões fazer contractu aduaneiro com<br />

os Estados estrangeiros, sem offensa dos direitos constitucionaes<br />

dos outros Cantões. As constituições, que se seguirão<br />

a de 1815, tem dado á confederação suissa fôrma mais unitária,<br />

imitando os Estados-Unidos.<br />

( 1 ) Os allemães chamão Bundestaal a união federal ou Estado federativo,<br />

e Staatenbund a federação de Estados.


E CONSTITUCIONAL 59<br />

Entretanto, ainda hoje,pela Constituição de 1875 (art. 9. 0 ),<br />

conservâo os Cantões o direito de fazer com Estados estrangeiros<br />

tratados sobre certos objectos, com tanto que esses<br />

tratados nada contenhão de contrario á Constituição e aos<br />

direitos dos outros Cantões.<br />

Outra variedade do mesmo typo é o império allemão federativo.<br />

A confederação da Allemanha do Norte de 1867 e o<br />

império da Allemanha de 1871 não podem ser exactamente<br />

enquadrados em nenhuma das precedentes cathegorias em<br />

virtude das variedades de sua organisação.<br />

A confederação de Estados consiste em dous ou mais<br />

Estados se associarem para um fim determinado, como o da<br />

defesa commum, ou de interesse commercial, mas sem renunciarem<br />

a sua personalidade, ou sem confundil-a na da Confederação.<br />

A Confederação germânica organisada em l8i5póde servir<br />

de exemplo a esse typo de associação política, assim como a<br />

Confederação suissa anterior á revolução franceza de 1789, e a<br />

dos Estados americanos do Norte antes de 1787.<br />

Em 1643 quatro colônias inglezas na America se constituirão<br />

em Confederação com a denominação de colônias tinidas<br />

da nova Inglaterra : tal foi a origem da grande União federal.<br />

No organismo politico, chamado Confederação, é caracter<br />

distinetivo conservarem os Estados confederados a sua personalidade<br />

internacional, e por tanto a sua capacidade e responsabilidade<br />

nas relações com os outros Estados ; podendo entretanto<br />

o governo central representar a Confederação quando se<br />

tratar de interesses communs.<br />

No mesmo caso se achão as associações de Estados constituídas<br />

para um fim determinado de interesse commum, como,<br />

por exemplo, certas associações aduaneiras constituídas por<br />

diversos Estados, das quaes a mais conhecida é a chamada<br />

Zollverein, representada pela Prussia para defesa dos interesses<br />

commerciaes internacionaes. N'este caso lambem se acha a<br />

famosa Confederação das cidades allemães chamada liga<br />

hanseatica concluída em 1241 ( I ).<br />

! 1 ) V. Fiori, loc. cit. t. 1. c. 4.


6o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

III<br />

Os Estados, como ficou dito, são pessoas juridicas, são<br />

organismos, différentes, é verdade, dos organismos animaes e<br />

vegetaes, porque são organismos espirituaes, mas por isso<br />

mesmo são capazes de recolher em si as volições e sentimentos<br />

dos seus membros, para traduzil-os em leis, pactos ; são, em<br />

summa, capazes de exercer direitos e de contrahir deveres.<br />

Os direitos, subjectivamente considerados, são faculdades<br />

ou poderes da pessoa. Ora, os Estados, como pessoas que são,<br />

tem o direito ou a faculdade de exigir o respeito e a inviolabilidade<br />

de sua personalidade e de tudo o que lhes pertence ;<br />

e como a todo direito corresponde um dever, pois não ha<br />

credor sem devedor, segue-se que uns Estados tem o dever de<br />

respeitar os direitos dos outros.<br />

Os direitos dos Estados, como os da pessoa individual, são<br />

susceptíveis de uma divisão geral : uns são complemento essencial<br />

da pessoa, a qual sem elles não pôde subsistir ; outros<br />

resultão de leis positivas, tratados ou convenções livremente<br />

estabelecidas entre dous ou mais Estados; outros finalmente<br />

derivão de costumes longamente respeitados pelas nações : os<br />

primeiros são .direitos absolutos, os segundos condícionaes ou<br />

hypotheticos, os terceiros costumeiros.<br />

Os direitos essenciaes ou absolutos dos Estados, direitos<br />

invioláveis e inalienáveis, podem ser reduzidos aos seguintes :<br />

I.° direito de autonomia e de independência, 2.° de conservação<br />

e de livre desenvolvimento, 3.° de igualdade, 4. 0 de propriedade,<br />

5. 0 de dominio e jurisdicção. D'esses direitos primitivos derivão<br />

muitos outros, cujo estudo compete ao direito internacional.<br />

Vattel ( 1 ) e outros escriptores dividem os direitos das<br />

nações, como os dos indivíduos, em perfeitos e imperfeitos.<br />

Perfeito é aquelle direito ao qual está annexa a coacção, pela<br />

qual se pôde exigir o cumprimento do dever correspondente ;<br />

imperfeito é o que não é acompanhado de coacção.<br />

Rigoros?me ' ' " fallando não ha direito imperfeito; todo<br />

( í ) Droit cU'


Ji-<br />

E CONSTITUCIONAL 61<br />

direito é perfeito, porque é coactivo, e a todos correspondem<br />

deveres. Estes, porém, ou são jurídicos, ou simplesmente<br />

ethicos. O cumprimento d'aquelles pôde ser exigido pela<br />

coacção ou vias de facto, é verdade ; mas d'ahi não se segue<br />

que os deveres ethicos não obriguem, e não sejào de certo<br />

modo coactivos, se não physica, moralmente. O que são as<br />

persuasões incitativas da consciência, senão uma coacção<br />

moral? O que é remorso, senão a sancção do dever ethico ? (i)<br />

Os Estados podem também morrer, como as pessoas indivi"<br />

duaes, isto é, podem perder a sua personalidade juridica.<br />

Os effeitos jurídicos resultantes do desapparecimento dos<br />

Estados, não nos importão.<br />

Os principaes modos porque podem ac ib-i- os Estados são:<br />

i.° Por incorporação voluntária a outro Estado. Se dous<br />

Estados de commum accôrdo querem annexar-se, o antigo<br />

Estado perde a sua nacionalidade, como succedeu ao Texas<br />

annexando-se aos Estados-Unidos, e aos antigos Estados italianos<br />

annexando-se ao reino da Sardenha.<br />

2." Por incorpoiação forçada em virtude de conquista ; tal<br />

foi a sorte da Polônia.<br />

Pôde succéder que um Estado se diminua, sem perder a sua<br />

personalidade, cedendo voluntária ou forçadamente parte de<br />

seu território, como se deu com Nisa e Saboia cedidas pela<br />

Italia á França, com á America russa cedida pela Russia aos<br />

Estados-Unidos por 7.200,000 dollars e com Alsacia-Lorena<br />

cedida pela França a Allemanha. A diminuição de território<br />

não ataca a personalidade do Estado, do mesmo modo que<br />

também não ataca a diminuição da população, desde que a<br />

parte principal, que constitue o centro do Estado, continue a<br />

existir ( 2 ).<br />

( 1 ) V. Nossa Philosophia do Direito, p. 92.<br />

( 2 ( V. Fiori, obra cit. 1. 1. c. õ. A maior ou menor extensão de território<br />

e numero du habitantes, em nada influe na personalidade do Estado e nos direitos<br />

(jiie lhe são inhérentes. O Lnxembourgo, a republica do S. Marinho, a de Andorra<br />

e o município livre de Moresnet, entre a Bélgica e a Prussia, são pequenos Estados,<br />

autônomos e independentes, não obstante a pouquidade de território e de população.<br />

São fracos, mas não cobieão, nem são cobiçados. Sobre a felicidade dos pequenos<br />

Estados. V. Lavelleye. Le gouvernement dans la démocratie, t. 1. caps. 5 e 6. do L. 2


31<br />

CAPITULO VII<br />

NECESSIDADE DO ESTADO. ACÇÃO E LIMITES DO ESTADO.<br />

ESTADO ANTIGO E MODERNO<br />

I<br />

Erro fundamental em direito <strong>publico</strong> é confudir a sociedade<br />

com o Estado.<br />

A sociedade tem uma vida propria ; em seu seio se desenvolvem<br />

as sciencías, as artes e as industrias, os institutos de<br />

caridade, a religião, as relações de família e todos os outros<br />

elementos essenciaes ao movimento da associação humana.<br />

N'esse grande concerto social apparece também o Estado,<br />

como um instituto destinado a garantir o desenvolvimento<br />

pacifico e harmônico da vida social ; é um elemento externo,<br />

um co-efficiente extrinseco que intervém, que se justapõe no<br />

concerto social pela necessidade de manter incólumes a vida<br />

e o direito dos associados.<br />

Da confusão da sociedade com o Estado resulta necessariamente<br />

a absorpção de todas as actividades dps cidadãos pelo<br />

despotismo governamental. Cumpre não esquecer nunca que<br />

o individuo é o foco principal da vida social, que o homem é o<br />

fim da sociedade, e que o Estado é o meio e serve de garantia ao<br />

desenvolvimento das faculdades naturaes do homem.<br />

Rossi, fallando da necessidade do Estado, diz que « elle<br />

é meio indispensável á espécie humana, não só para a prosperidade<br />

material, mas também para aperfeiçoamento moral ; pois<br />

o homem é destinado á vida social, fora da qual só ha para elle<br />

embrutecimento e miséria. » N'estas palavras do illustre publicista<br />

ha manifesta confusão entre sociedade e Estado, attribuindo<br />

a este o que compete áquella.


64 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Certamente só na vida social, só em communhão com os<br />

seus semelhantes, pôde o homem encontrar civilisação, cultura<br />

e satisfação ás innumeraveis necessidades de sua natureza,<br />

quer animal, quer espiritual. A miséria e o embrutecimento<br />

são a partilha do homem selvagem e isolado.<br />

Ninguém hoje dá a Rousseau a honra de discutir os seus<br />

paradoxos acerca do homem no puro estado da natureza.<br />

Para demonstrar quanto é grande a influencia da sociedade<br />

sobre o homem, Bastiat mostra quanto trabalho, quanta industria,<br />

quantos achados engenhosos concorrem para produzir<br />

o mesquinho alimento de um pobre operário e a grosseira roupa<br />

que o cobre. Tomando por exemplo o pão « para que possa<br />

comêl-o todas as manhãs, é mister que outros tenhão destocado,<br />

cercado, laborado, amanhado, e semeado a terra ; é mister que<br />

a colheita tenha sido guardada contra os ladrões ; que o trigo<br />

seja colhido, pulverisado, amassado e cosinhado ; que o ferro,<br />

o aço, a madeira e a pedra tenhão sido convertidas pelo trabalho<br />

em instrumentos de trabalho ; que certos homens se assenhoriem<br />

das forças dos anirnaes, outros da força de uma queda<br />

d'agua: todas essas operações, consideradas cada uma de per<br />

si, suppõe uma quantidade incalculável de trabalho operado<br />

no espaço e no tempo ( i ).<br />

Se os benefícios de que se trata, não são produetos do<br />

Estado, nem por isso devemos concluir que o Estado não seja<br />

necessasio assim ao individuo, como á sociedade ; pelo contrario<br />

é uma instituição utilissima e muito concorre para o<br />

homem attingir ao seu destino.<br />

A garantia dos direitos do homem, a sua segurança individual,<br />

sem o que elle não poderia desenvolver-se e aperfeiçoarse,<br />

nos são dadas pelo Estado.<br />

E' um erro de graves conseqüências na sociedade, considerar<br />

o homem em abstracto, não attender sinão ao principio<br />

pessoal servido por faculdades que o põem em relação com o<br />

mundo externo, com o não-eu.<br />

O homem deve ser estudado em suas relações reaes e<br />

concretas, nas quaes necessariamente surgem os estímulos do<br />

interesse pessoal, muitas vezes contrários á lei da razão e ao<br />

( 1 ) V. Harmonies économiques, cap. 1.


33<br />

E CONSTITUCIONAL 65<br />

bem estar de seus semelhantes : estas é que são as condições<br />

effectivas e actuaes do homem. Ora, n'estas condições é<br />

impossível não reconhecer a necessidade do Estado, do qual<br />

procede a garantia dos direitos de todos.<br />

No seio da humanidade, abstractamente considerada, podemos<br />

conceber os indivíduos capazes de relações sociaes, de<br />

produzir, de trocar, de conservar-se ; mas isso é um puro idéal;<br />

o que a historia de todos os tempos nos mostra é que na realidade<br />

o homem em toda parte vive em sociedade politicamente<br />

organisada sob um regimen estadual.<br />

O Estado tem por fim o respeito exterior da personalidade<br />

humana, e esse fim não pôde ser attingido senão pela realisação<br />

do direito, que deve regular todas as manifestações da actividade<br />

humana. E' necessário por conseguinte que um órgão<br />

faça viver e garanta o império da lei ou do direito.<br />

E' indispensável que a sociedade civil, representando a<br />

união collectiva, se constitua com uma autoridade soberana,<br />

que presida a realisação da lei jurídica, que actue o direito,<br />

que formule a regra social e imponha a sua execução, estabelecendo<br />

as leis positivas, e assegurando a sua execução por<br />

meios coercitivos.<br />

E' também indispensável que essa autoridade, representativa<br />

da unidade social, defenda a existência e honra da sociedade<br />

perante as outras sociedades semelhantes.<br />

Ora, uma sociedade civil assim organisada constitue o<br />

Estado em um território determinado. Logo o Estado é necessário<br />

na ordem social.<br />

Só vemos, é verdade, os indivíduos humanos, os cidadãos,<br />

mas a razão concebe o Estado como uma necessidade, tendo<br />

interesses, direitos e deveres distinctos dos dos indivíduos que<br />

o formão. Na phrase feliz de Bluntschli, as arvores ( os indivíduos)<br />

não devem impedir que vejamos a floresta, isto é,<br />

o Estado ou a sociedade politicamente organisada.<br />

9


66 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

II<br />

Se o Estado é necessário, como fica estabelecido, não é<br />

menos necessário saber até onde se deve estender a sua acção<br />

na vida social, no seio da qual se dasenvolve a actividade<br />

pessoal dos indivíduos.<br />

Duas escholas disputão entre si acerca da extensão da<br />

ingerência do Estade no movimento social, e ambas tem mestres<br />

de grande valor scientifico.<br />

Querem uns que o indivíduo fique fora da acção do Estado,<br />

e circumscrevem esta acção dentro dos limites do direito e da<br />

Justiça.<br />

Segundo esta thcoria o fim único do Estado é garantir o<br />

direito dos cidadãos, de sorte que o Estado mais perfeito c<br />

aquelle, em que os indivíduos se desenvolvem por si mesmos<br />

sem intervenção da ingerência estadoal.<br />

Portanto o Estado não tem que pensar no bem positivo<br />

dos cidadãos ; o seu único papel é garantir-lhe o bem negativo<br />

isto é, a segurança, a garantia dos seus direitos; é impedir os<br />

actos que directa e immediatamente offendão o cidadão, tolhão<br />

o exercício de sua actividade; feito isso, o Estado deve deixar<br />

que os indivíduos se desenvolvão ; na obra do progresso intellectual,<br />

moral e econômico dos cidadãos nada lhe compete.<br />

Esta theoria, chamada do individualismo, tem como principal<br />

fautor Guilherme de Humbolt em sua obra Ensaio sobre<br />

os limites da acção do Estado.<br />

Outros sustentão theoria opposta, e pretendem que no<br />

progresso da sociedade e no desenvolvimento do homem o<br />

Estado é agente necessário, e portanto deve intervir em todas<br />

as espheras da vida humana, intellectual, moral, industrial e<br />

econômica. Para essa eschola o Estado não é somente instituto<br />

juridico, e politico, como ensina a primeira eschola, mas também<br />

um organismo ethico e econômico. Notável defensor d'esta<br />

theoria chamada do socialismo, é em França Dupont-White<br />

em seu livro — O indivíduo e o Estado ( i ).<br />

( 1 ) Lavelleye chama a theoria individualista — theoria do Estado-Gendarma,—<br />

e a socialista — theoria do Estado-Providencia, Le gouvernement dans la démocratie,<br />

t. 1. p. 23. Paris, 1891.


Vi<br />

E CONSTITUCIONAL 6?<br />

A questão que ahi fica enunciada, não pôde ser resolvida<br />

de modo absoluto, e sem attenção ás condições peculiares de<br />

uma sociedade; o grão de desenvolvimento das faculdades da<br />

população é elemento indispensável na questão dos limites da<br />

acção do Estado. A intervenção d'esté nas espheras da actividade<br />

humana hade ser maior ou menor, conforme o estado de<br />

cultura e civilisação da sociedade.<br />

Os homens não se organisão em sociedade, não constituem<br />

um Estado, somente para gosar da segurança, para ter garantias<br />

jurídicas no exercício de suas faculdades; mas também<br />

para poder melhor e mais efficazmente desenvolver a sua actividade<br />

individual.<br />

A lei moral, que deve sempre presidir ás acções dos<br />

homens individualmente considerados, deve também regularlhes<br />

as acções quando socialmente organisados constituindo<br />

Estado.<br />

Não é certamente missão do Estado a applicação da lei<br />

moral; um Estado mestre de costumes, exigindo o cumprimento<br />

de deveres de consciência, que não são susceptíveis de coerção<br />

exterior, seria intolerável. Mas, por outro lado, também um<br />

Estado, para o qual não existisse a lei moral seria uma obra de<br />

violência e de força bruta, seria a negação do direito e do bem><br />

e não um instituto auxiliador do homem no conseguimento de<br />

seu destino social.<br />

Também o Estado não formula as leis econômicas necessárias<br />

e naturaes, não é creador do mundo econômico, do<br />

commercio e das industrias.<br />

Ha leis econômicas tão naturaes e independentes do Estado<br />

como são as leis physicas e chimicas. Estão fora da acção dos<br />

poderes politicos as leis reguladoras da offerta e da procura, dos<br />

salários, dos lucros, dos preços e do consumo. Em uma palavra<br />

o Estado não é propriamente um organismo econômico.<br />

Ha, porém, outras leis que não são necessárias e naturaes,<br />

e sobre essas o Estado, como instituto politico e jurídico, como<br />

poder ordenador das diversas relações da actividade humana,<br />

não pôde deixar de influir, regulando juridicamente as relações<br />

econômicas.<br />

De três modos pôde o Estado intervir na ordem econômica ><br />

agindo directamente, impulsionando e regulamentando.<br />

Age directamente quando por si mesmo obra como produc-


68 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tor de um serviço, como quando se incumbe da instrucção,<br />

ou quando construe uma estrada de ferro ; intervém impulsionando,<br />

quando anima e dirige a actividade individual em um<br />

certo sentido, premiando, subvencionando os esforços individuaes<br />

; finalmente intervém regulamentando, quando mediante<br />

regulamentos de policia administrativa, previne males que<br />

podem occorrer no trabalho, na industria, no commercio ; por<br />

exemplo, quando detetermina as formalidades prévias necessárias<br />

á creação de estabelecimentos perigosos, incommodos ou<br />

insalubres, quando fixa o tempo de trabalho das crianças nos<br />

estabelecimentos manufatureiros ( i ).<br />

Um Estado, simples sentinella, mero guarda do direito,<br />

nunca existio, nem existe em parte alguma; quanto, porém, ao<br />

gráo de sua intervenção na vida social dos indivíduos, se deve<br />

intervir por acção, por impulsão ou por regulamentação, isso<br />

depende do gráo maior ou menor de cultura e civilisação da<br />

sociedade. A priori não è possível, pois, determinar limites<br />

fixos á acção do Estado.<br />

Das attribuições do Estado na esphera econômica urnas são<br />

necessárias ou nattcraes, e outras accidentaes ou. facultativas.<br />

São necessárias aquellas que se referem á conservação e ao<br />

progresso da sociedade, e constituem a missão directa e principal<br />

do Estado, como a segurança interna e externa, a organisação<br />

da policia, da justiça criminal e civil, etc. Pertencem<br />

também a essa classe aquelles serviços que são de interesse<br />

commum, e devem ser feitos em beneficio do progresso e do<br />

aperfeiçoamento da sociedade, e que por sua natureza não<br />

podem ser deixados á iniciativa individual, como, o padrão de<br />

pesos e medidas, typo da moeda, circulação fiduciaria, serviço<br />

postal, colonisação, etc.<br />

São facultativas aquellas outras attribuições que podem<br />

tanto competir ao Estado, como á iniciativa do indivíduo, conforme<br />

o gráo de actividade e adiantamento da sociedade, como<br />

o commercio, as industrias, as artes, as instituições de previdência,<br />

etc.<br />

N'esta ultima ordem de serviços se pôde estabelecer como<br />

principio a maxima de Mac-Culloch, a saber, que a intervenção<br />

do Estado deve ser excepção e a actividade privada a regra.<br />

( 1 ) V. Villey, Du rolo do l'Etat dans Tordre économique, cap. 3 Paris, 1882.


3?<br />

E CONSTITUCIONAL 69<br />

A perfeição das leis de um Estado, diz Romagnosi, consiste<br />

no far si che il governo abb ia il meno d'affari, nell'atto che<br />

a societá ha il massimo di faccende ( 1 ).<br />

III<br />

Com a palavra polis os gregos significavão tanto a cidaãe,<br />

como o Estado, porque só tinhào pequenos Estados, nem podiào<br />

conceber um Estado composto de muito povo, de muitas<br />

cidades, e provincias.<br />

Do mesmo que os gregos, também o c r manos chamavão<br />

civiias tanto á cidade propriamente dita, como ao Estado.<br />

Ao que hoje chamamos Estado, davão os romanos a denominação<br />

especial de Respubliea, que Cicero definia pouco<br />

mais ou menos como hoje definimos o Estado. Republica, dizia<br />

elle, é a organisação de um povo, constitutio populi, ligado<br />

pelos vínculos jurídicos do interesse commum e da justiça,<br />

populus autem non omnis hominum coetus mtdtitudo qnocunique<br />

modo congregatus, sed... juris consensu et utilitatis<br />

communione sociaiiis ( 2 ).<br />

Alas é o Estado sob o ponto de vista jurídico e ethico que<br />

aqui devemos considerar.<br />

O Estado grego, como o romano, são sob a relação júri"<br />

nica, a antithèse do Estado moderno.<br />

O indivíduo, assim como a sociedade, erão absorvidos pelo<br />

Estado omnipotente. Na Grécia, c em Roma o Estado era a<br />

fonte de todos os direitos ; não era o meio para o homem<br />

aperfeiçoar-se, mas o fim do homem. Os direitos naturaes do<br />

homem erão immolados ao idolo Estado, de cuja überalidade<br />

todos recebiào os seus direitos.<br />

A idéa moderna do Estado, única compatível com a dignidade<br />

pessoal, é que o Estado é creado e organisado para<br />

garantia dos direitas individuaes, é que o Estado é um meio<br />

para o homem aperfeiçoar-se, e não o fim do homem.<br />

( 1 ) Instit. di civile (ilosofia, orazione inaugurale.<br />

( 2 ) Rep. L. 1. c. 5 — 6.


7o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Portanto entre o Estado e os indivíduos, que o compõem<br />

existe relação teleologica, isto é, de meio para fim.<br />

Essa noção, laboriosamente formada pelas doutrinas do<br />

christianismo, nos tempos modernos só encontrou impugnação<br />

em Hegel, que considerava o Estado como o único objectivo<br />

real e racional, e negava que o homem tivesse objectividade por<br />

si mesmo, affirmando que tudo quanto elle é, o é como membro<br />

do Estado. E' esta exactamente a noção do Estado pagão,<br />

que o christianismo aniquilou.<br />

« Se interrogarmos a historia, diz Ahrens, a distincçào<br />

entre o Estado e a sociedade deve ser considerada um precioso<br />

fructo do christianismo, fructo que a sciencia deve amadurecer<br />

plenamente. Muitas vezes já se tem dito que a antigüidade<br />

clássica absorvia a humanidade no Estado, o homem no cidadão.<br />

O Estado na antigüidade, principalmente o Estado romano,<br />

era pois o regulador primeiro e supremo de todas as espheras<br />

da vida, e de todos os ramos da actividade social, o único<br />

centro commum de todos os cidadãos, de cujas necessidades<br />

devia ser provisor. O christianismo, porém, pondo o homem<br />

em immediata communicaçào com Deus, e elevando-o ao mais<br />

sublime gráo além do finito e do terrestre, collocou a humanidade<br />

acima do Estado, o homem acima do cidadão. Por outro<br />

lado, organisando insensivelmente a sociedade religiosa ou a<br />

Igreja, elle mesmo deu a prova de que os princípios ou os<br />

elementos de vida das associações, ou dos estabelecimentos<br />

permanentes podem subsistir sem dever nada ao Estado, e sem<br />

de modo algum serem estabelecimentos do Estado... Depois da<br />

restauração das sciencias, e sob a influencia de outras circumstancias,<br />

a velha idéa do Estado, com o principio de sua omnipotencia<br />

e de sua absoluta soberania, tem feito diariamente os<br />

maiores progressos, e finalmente chegou ao seu apogeu no<br />

systema philosophico de Hegel, o qual, posto que alguns comparem<br />

ao de Aristóteles, todavia excedeu muito a este » ( I ).<br />

( 1 ) Encyclopédie juridique, t. 1. p. 404, § 4.


jé<br />

CAPITULO VIII<br />

A SOBERANIA E SUA OEIGEM. SOBERANIA DO POVO E SOBERA­<br />

NIA NACIONAL. CARACTERES E DIRETTOS DA SOBERANIA<br />

I<br />

Nenhuma sociedade pôde existir sem uma autoridade soberana,<br />

que dirija os seus negócios interiores, e no exterior a<br />

represente perante as outras sociedades. Essa autoridade,<br />

em sentido abstracto, chama-se soberania.<br />

A soberania, poder supremo do Estado, é tão necessária<br />

á sociedade, quanto os indivíduos que a compõe. Sem um<br />

poder que unifique, sem um vinculo de união, poderá haver<br />

uma agglomeração de homens, uma multidão, mas não uma<br />

sociedade ; esta só se constitue com a existência de uma autoridade<br />

suprema, que estabeleça união entre os indivíduos e<br />

coordene as suas acções pelo vinculo jurídico. Mihi populus<br />

non est, dizia Cicero, ut tu optinie definisti, Scipio, nisi qui<br />

consensu juris continetur.<br />

Em todo organismo natural existe subordinação e harmonia<br />

entre as partes que o compõe.<br />

Apenas começa um organismo natural a formar-se, logo<br />

apparece uma subordinação, um centro ao redor do qual se<br />

opera a organisação. Assim também, nos organismos políticos,<br />

os homens não se constituem em sociedade, sem que logo<br />

appareça subordinação dos différentes indivíduos ao redor de<br />

um centro, de uma suprema potestas, que é como o principio<br />

vital, e na phrase de Viço, o animus reipublicœ, o qual congrega<br />

e subordina os elementos componentes do organismo<br />

social, torna a obediência obrigatória e faz com que todos os<br />

indivíduos harmonisem os seus actos com o fim commum social.


72 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Se tudo no mundo tem as suas leis, diz Palma, se o homem<br />

não pôde conseguir o seu fim senão na sociedade e no direitOj<br />

o poder soberano, inhérente ao conceito de sociedade e de<br />

direito, é tão legitimo em si mesmo, tão essencial ao desenvolvimento<br />

do homem, como as leis naturaes que presidem<br />

ao desenvolvimento dos outros seres ( i ).<br />

Se a respeito da necessidade e da utilidade da soberania no<br />

corpo social não é possível levantar-se questão, não succède<br />

o mesmo acerca da origem e da legitimidade do poder soberano,<br />

e das fôrmas que pôde elle tomar em seu exercício na<br />

ordem social pratica.<br />

A soberania do Estado não é a mesma cousa que o governo<br />

propriamente dito.<br />

Em sentido lato governo é a actuação da soberania na<br />

vida social, dirigindo as acções dos cidadãos ; em sentido<br />

estricto é uma corporação intermediária entre o poder soberano<br />

e os cidadãos, incumbida da execução das leis e da garantia<br />

das liberdades e dos direitos dos cidadãos.<br />

Quando em direito <strong>publico</strong> se trata da origem da soberania,<br />

não se quer fallar da soberania abstractamente considerada,<br />

mas da soberania em sentido concreto, como uma realidade na<br />

ordem social de facto.<br />

Considerada em si e de modo abstracto não ha duvida que<br />

a soberania provém da ordem natural das cousas, ou de Deus,<br />

legislador d'essa ordem; provém da natureza social do homem;<br />

e não de sua livre vontade.<br />

Mas aquella soberania, assim considerada, é puramente<br />

idéal, ao passo que a sociedade é um sêr real, e portanto só<br />

pôde ser governada por um sêr também real. Mister é, por<br />

conseqüência, que a soberania abstracta se realise, se encarne<br />

em uma pessoa physica ou moral. Essa pessoa chama-se<br />

soberano.<br />

E' da soberania considerada em concreto, conseqüência<br />

natural da existência da sociedade, que se disputa quando se<br />

indaga da natureza da soberania.<br />

D'onde procede ella ?<br />

Diversas soluções tem tido essa questão, e d'ahi différentes<br />

( 1 ) Corso di diritto constituzionale t. 1. c. 4.


E CONSTITUCIONAL V3<br />

escholas entre os publicistas. Resumirei em pouco o muito que<br />

a esse respeito se tem escripto.<br />

Em primeiro lugar, na ordem chronologica, se apresenta a<br />

eschola do direito divino.<br />

Ensinarão os mestres d'essa eschola que os soberanos recebião<br />

directamente de Deus o poder supremo, que essa divina<br />

investidura era perpetua, e passava a toda a dynastia do<br />

soberano. Os soberanos erão infalliveis como representantes<br />

de Deus na sociedade ; tinhão portanto um poder illimitado ;<br />

tudo lhes era sujeito, propriedade, direitos, cidadãos, familias.<br />

Possuído d'esse despotismo divino, Luiz XIV o synthetisou na<br />

famosa phrase : L'Etat, c'est moi. Reconhecendo no soberano<br />

social um poder illimitado, devia-se-lhe conceder a faculdade de<br />

crear arbitrariamente as leis, os códigos, o direito. Esses reis<br />

divinos, instituídos por graça de Deus, podião dispor a seu<br />

talante dos destinos da sociedade; a sua simples vontade era a<br />

lei fundamental do governo, e d'ahi o despotismo e a tyrannia,<br />

os maiores flagellos de uma nação.<br />

Essa eschola felizmente morreu, ninguém hoje lhe dá as<br />

honras de uma refutação, resta apenas como uma reminiscencia<br />

de outras epochas.<br />

Attribuir ao soberano a faculdade de dispor arbitrariamente<br />

dos cidadãos, é uma detestável violação da dignidade<br />

humana; nenhum homem pôde dominar o seu semelhante.<br />

A personalidade humana é inviolável, seus direitos tem<br />

uma existência independente e anterior a todas as declarações<br />

soberanas. Nenhum legislador pôde dar ou tirar direitos.<br />

Assim como a palavra não cria o pensamento, mas o suppõe,<br />

e o manifesta sensivelmente, assim também as leis emanadas<br />

do poder social, as quaes são a palavra do legislador, não<br />

criãom, mas suppõe os direitos inhérentes á personalidade<br />

humana ( I ).<br />

Conseqüência legitima da precedente theoria é a eschola<br />

da patriarchia de Filmer, segundo a qual o poder soberano<br />

deriva do pátrio poder.<br />

Ella considera o Estado como um desenvolvimento da<br />

3^<br />

( 1 ) V. Nossa Pbilosophia do Direito, cap 3 e passim.<br />

IO


74 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

família, o soberano como pai e o governo como autoridade<br />

paterna. Essa eschola não tem hoje discípulos, nem assenta<br />

em base racional.<br />

E' evidente, de facto, que o Estado é uma multidão de<br />

famílias, das quaes ninguém pôde dizer qual seja o primitivo<br />

estipite, nem determinar qual a pessoa que herdou d'aquelle o<br />

poder paterno originário.<br />

O soberano social não é o progenitor dos povos que<br />

governa, como um pai o é de seus filhos. Estes em attingindo á<br />

maioridade conservão, é certo, o dever de respeitar os pães,<br />

mas adquirem uma personalidade própria, distineta e independente<br />

do pai,e d'essa personalidade originão-se os seus direitos<br />

naturaes, pessoaes. Se o próprio poder paterno não pôde ser<br />

absoluto, tanto que a natureza incutio nos pães o amor natural<br />

aos filhos, como garantia contra os excessos do pátrio poder,<br />

como assemelhar esse poder ao dos soberanos para sustentar o<br />

absolutismo d'estes ?<br />

A theoria de Filmer, creada de propósito para sustentar o<br />

absolutismo dos Stuards, não tem portanto razão de ser.<br />

Não é mais acceitavel a eschola de Hobbes.<br />

Este escriptor sustenta que o estado natural do homem<br />

é viver em hostilidade uns com os outros, porque todos são<br />

máos e egoistas por indole. Dispersos sobre a terra, como não<br />

tem freio, todos tem direito a tudo, podem apjssar-se do que<br />

quizerem sem considerar na legitimidade dos meios.<br />

Se essa luta perpetua não fosse sustada, a humanidade se<br />

extinguida; para evitar, pois, esse resultado, foi precis > instituir<br />

um governo que supprimisse a anarchia.<br />

Convencidos d'essa necessidade, os homens instituirão<br />

a realeza, entregando-lhe as forças que cada um possuia, e<br />

sujeitando-se ao regimen da lei.<br />

De posse da força collectiva da sociedade, o governo pôde<br />

obrigar os homens a viverem em paz. Assim se estabeleceu o<br />

poder soberano na sociedade.<br />

Tal é em resumo a theoria hobbesiana, que funda a soberania<br />

na força.<br />

Não ha duvida que o direito precisa da força, mas a força<br />

desacompanhada do direito é um poder brutal, é o lobo que<br />

devora o rebanho ; unida ao direito ella torna-se digna da<br />

natureza moral do homem. Como bem adverte Ihering em sua


tf<br />

E CONSTITUCIONAL 75<br />

Luta pelo direito, « a espada sem a balança é pura violência,<br />

mas a balança sem a espada é a impotência do direito. »<br />

O justo e o injusto, a moralidade e a immoralidade não<br />

mudão de valor porque a força brutal pôde fazer respeital-os.<br />

A evidencia d'esta verdade basta para refutação da theoria de<br />

Hobbes.<br />

Muita parecida com a precedente theoria é a dos fados<br />

consummados, segunda a qual são aquelles factos a base da<br />

soberania.<br />

Sustenta essa eschola que a conquista, a violência, a astucia<br />

e a força são o fundamento da soberania.<br />

Se alguém, por algum d'aquelles meios, consegue apossar-se<br />

de uma sociedade, torna-se seu legitimo soberano. Essa theoria<br />

tornou-se célebre em nosso século.<br />

Mas c preciso repetir sempre, que o facto não constitue<br />

direito.<br />

Em uma nação o direito não reconhece outro poder, se não<br />

aquelle que é acceito pela vontade nacional dirigida pela razão<br />

e pela justiça. O poder que se funda na violência e na força<br />

não é jurídico, nem pôde durar, senão emquanto dura a violência<br />

em que se appoia.<br />

De todas as theorias acerca da soberania a mais famosa<br />

nos tempos actuaes é a da soberania do povo ; antes porém de<br />

estudal-a, e para que possa ser entendida em seu verdadeiro<br />

sentido, convém elucidar o ponto concernente á soberania<br />

absoluta.<br />

A mais sublime e valiosa das attribuições da soberania<br />

social é a de edictar leis, que coordenem e harmonisera as<br />

acções dos cidadãos dirigindo-as ao fim da sociedade. Ora,<br />

nenhuma lei deve apartar-se da lei suprema da justiça, da lei<br />

jurídica, norma primitiva de todas as leis positivas. Portanto<br />

a soberania na sociedade é naturalmeute limitada, nem pôde<br />

existir na terra, soberania absoluta, que seja a expressão arbitraria<br />

da vontade de quem quer que seja. A maxima dos<br />

legistas romanos — Quod principi placuit legis habet vigorem<br />

— é um absurdo jurídico.<br />

Anteriormente a toda lei human? existe a lei juridico.<br />

racional, que o homem não pdõe crear, nem mudar, nem destruir.<br />

A sociedade tem liberdade de c, nformar ou não os seus<br />

actos com aquella lei, mas se a viola, aparta-se do seu fim


76 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

natural. A violação da lei jurídica na ordem social é o despotismo,<br />

é a negação pratica da verdade, da justiça e da liberdade<br />

política.<br />

A soberania social é por tanto limitada e relativa, e não<br />

pertence a nenhum indivíduo certo e determinado, não é propriedade<br />

de uma classe privilegiada ; compete á pessoa collectiva<br />

do Estado, aos que governão, como aos que são governados,<br />

aos sábios, como aos ignorantes, aos bons, como aos<br />

máos. O exercicio, porém, da soberania se concreta na ordem<br />

pratica em pessoas determinadas, o que ver-se-ha melhor<br />

expondo e explicando a theoria da soberania popular.<br />

II<br />

Regeitada a theoria do direito divino, sendo inadmissível a<br />

confusão da soberania social com a autoridade paterna ; não<br />

passando de^um mero producto da phantasia o systema hobbesiono<br />

de tnutui belli omnium in omnes, basearemos a soberania<br />

na vontade geral da massa dos cidadãos ?<br />

A soberania do povo é o principio fundamental da democracia<br />

americana, segundo a qual, se as constituições são<br />

superiores aos parlamentos, o povo é superior ás constituições.<br />

Cumpre examinar essa célebre theoria da soberania do povo,<br />

base das instituições republicanas, para que fique bem estabelecido<br />

o que ella tem de verdadeiro.<br />

Antes de tudo convém assentar que essa soberania não é<br />

absoluta; excepto a justiça, nada mais é absoluto na terra.<br />

Por mais numerosa que seja a reunião dos homens, jamais<br />

poderá prevalecer sobre a justiça e o direito. A violação do<br />

direito é tão illegitima quando praticada pela vontade do povo><br />

como quando realisada pela vontade de um rei ou imperador.<br />

Pretender que o povo não precisa ter razão, e que o seu<br />

arbítrio constitue o direito e a justiça, é substituir o direito<br />

divino dos reis pelo direito divino do povo. « A soberania do<br />

povo, dizia Cousin, não converte a loucura em direito, e a<br />

iniqüidade em justiça ; é legitima quando tem por si o direito,<br />

e deixa de sêl-o quando o direito é contra elle. »<br />

A soberania existe virtualmente na sociedade politicamente<br />

organisada.


i5<br />

E CONSTITUCIONAL 77<br />

Apenas se fôrma um corpo social, logo natural e espontaneamente<br />

surge um poder soberano director ; apparecem o<br />

mando e a obediência. Mas não havemos de dizer por isso que<br />

aquelle poder é a somma das parcellas de poder existentes em<br />

cada um dos co-associados como moléculas inorgânicas, e que<br />

se organisão pelo facto dos cidadãos as terem depositado na<br />

pessoa do soberano, assim a maneira de uma sociedade em<br />

commandita, na qual os sócios depositào parte de seus haveres<br />

para uma empreza commum.<br />

A soberania é um todo orgânico, natural e único, não<br />

obstante a variedade de suas attribuições.<br />

E' na pessoa collectiva da sociedade que existe a soberania;<br />

por isso a sociedade é senhora de seus desiinuá, constitue-se e<br />

governa-se como quer. Mas não se deve crer que cada um dos<br />

associados tenha o direito de governar, como se a soberania<br />

fosse cousa inhérente á natureza do homem, quando apenas é<br />

uma conseqüência das relações sociaes. Do facto de ser a<br />

soberania necessária e essencial á sociedade constituída, e não<br />

haver razão para que ella pertença antes a um, do que a outro»<br />

porque todos são iguaes, inferem alguns que a republica é<br />

a única fôrma de governo legitima.<br />

Do principio verdadeiro que a soberania é propria da<br />

sociedade, não se segue que ella pertença individualmente a<br />

todos.<br />

Em uma sociedade commercial, escreve Carlos Augias,<br />

deve haver uma direcção, mas como nenhum dos cem associados,<br />

que a compõe, tem razão especial para ser o director,<br />

seguir-se-ha que todos os cem sócios devem ser directores ?<br />

Não. A conseqüência lógica d'aquelle principio é que em<br />

uma sociedade não ha razão intrínseca para que a soberania<br />

tenha esta ou aquella fôrma, e a priori pertença a um de<br />

preferencia a outro. A pantocracia, o governo de todos, é<br />

intrinsecamente impossível. O que compete a cada um membro<br />

da sociedade é o direito ao poder e não no poder; todos<br />

podem, isto é, tem a liberdade jurídica, que compete a todos,<br />

de exercer o governo, se os outros o reputão capaz e o<br />

acceitão ( i ).<br />

( 1 ) Del potere civile e de'suoi limit), cap. 3.


78 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

E' um facto attestado pela historia de todos os povos que<br />

o poder, seja qual fôr a sua fôrma, é sempre aítribuiçào de<br />

poucos comparativamente com a massa dos cidadãos.<br />

Nos Estados-Unidos do Norte, aonde é corrente a theoria<br />

one a soberania pertence ao povo, aonde, no dizer de Curtis,<br />

« a innovação capital, no momento da separação das colônias,<br />

foi substituir a autoridade directa do povo á da coroa da<br />

Inglaterra » quantos de facto governão ?<br />

Em uma população de sessenta milhões, apenas dez ou<br />

onze milhões tem voto no governo, e este por sua vez é<br />

exercido por um pequeno numero de cidadãos.<br />

E' um facto positivo de nossa historia, diz Story, que as<br />

nossas instituições foram fundadas sem o assentimento expresso<br />

ou implicito da totalidade do povo, e que devem sua existência<br />

e ?viithoridade ao consentimento de urna simples maioria de<br />

votantes qualificados. Não ha um só Estado da União, cuja<br />

constituição não tenha .sido adoptada contra as opiniões e<br />

desejos de uma grande minoria do eleitorado, e é notório que<br />

algumas das constituições forão adoptadas por pequena maio.<br />

ria ( I ).<br />

Em theoria a soberania pertence á pessoa collectiva da<br />

nação, na qual estão comprehendidos governo e governados,<br />

sábios e ignorantes, bons e máos, mas na pratica é exercida por<br />

um pequeno numero de pessoas reputadas capazes ; e essa<br />

realidade do systema é muito conforme com os dictâmes da<br />

razão esclarecida.<br />

Quantas pessoas do povo estão no caso de redigir uma lei<br />

sobre propriedade, sobre sociedades commerciaes, etc. ? Quem<br />

confiará a um sapateiro ou a um logista uma negociação diplomática,<br />

ou o commando de um exercito no campo da batalha ?<br />

« A mór parte dos homens, no estado da actual civi<strong>ï</strong>isaçâo,<br />

diz Carnazza Amari, é de ignorantes e incultos, e seja qual fôr<br />

o progresso que se realise na vulgarisação da instrucção publica,<br />

o maior numero será o dos ignorantes ; as pessoas capazes poi<br />

sua instrucção de dirigir o timão do Estado, sempre serão poucas,<br />

e mesmo d'essas, quantas não carecerão de aptidão natural<br />

para o governo da nação ? »<br />

( 1 ) Commentaries, t. 1. p. 228— 29. Boston. 1873.


9v<br />

E CONSTITUCIONAL 79<br />

A soberania do povo, isto é, o concurso de todos os cidadãos<br />

na formação das leis e na direcção do governo de um<br />

Estado é impossível ; por necessidade intrínseca das cousas<br />

o povo, theoricamente soberano, tem que transferir a sua soberania<br />

a um certo numero de pessoas, que o represente ; em<br />

outros termos, a vontade soberana se converte em direito de<br />

eleger.<br />

A soberania virtualmente considerada, pois, compete a<br />

todos os cidadãos, isto é, todos podem exercel-a ; mas na<br />

realidade não a exercem; têm o poder de se tomar capazes de<br />

exercel-a, porque não ha classes privilegiadas para o poder ;<br />

todos tem direito ao poder, mas não no poder ; o que pertence<br />

a todos é o direito de liberdade jurídica, em virtude da qual<br />

pode cada um tornar-se capaz de occupar o governo.<br />

III<br />

Depois do que fica dito a respeito da soberania do povo,<br />

pouco resta a dizer da soberania nacional.<br />

Applicada a um Estado, soberania é o poder supremo,<br />

absoluto, incontrastavel que tem o Estado de governar-se.<br />

Esse poder residindo virtualmente em todo o povo do<br />

Estado, ou em toda a nação, tem por isso o nome de nacional.<br />

E' em virtude d'essa soberania que todo povo ou toda nação<br />

tem o direito de escolher a sua constituição. A soberania nacional<br />

não reside nos poderes públicos constituídos, n.as na totalidade<br />

da nação, á qual é inhérente o poder constituinte.<br />

Cada povo tem o direito de autonomia, isto é, o direito de<br />

existir em um território, ao qual se liga constituindo a patr.ia<br />

a terra de seus pães.<br />

Esse é o primeiro facto constitutivo da nação, e é também<br />

a origem de sua soberania, e de suas instituições políticas.<br />

Esse direito de constituir-se, de organisar-se politicamente,<br />

distingue-se do seu exercício, como toda potência ou faculdade<br />

se distingue do seu acio.<br />

A soberania reside essencialmente na collectividade dos<br />

membros da nação, mas não podendo todos elles actuar o seu<br />

direito, delegão o exercício d'esse direito áquelles que lhes<br />

apraz: estes, como mandatários ou delegados do corpo nacional,<br />

exercem a soberania nacional.


8o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Mas a delegação não é a alienação. Delegando o exercício<br />

da soberania, a communhão nacional não aliena, não abdica o<br />

seu direito soberano : este continua in potentiel a residir na<br />

nação ; é em nome d'esta que os mandatários exercem a soberania.<br />

Portanto o que a nação delega não é a soberania ; esta<br />

inhere natural e necessariamente na communhão nacional ;<br />

delega somente o exercício da soberania.<br />

Da necessidade da delegação do exercício do poder soberano,<br />

diz Pomeroy, resulta a necessidade de estabelecerem-se<br />

regras, pelas quaes os mandatários da nação, isto é, todos os<br />

que funecionão no governo d'ella, pautem os seus actos ; em<br />

outros termos, d'aquella necessidade segue-se a possibilidade<br />

de uma constituição no seniido jurídico d'esta palavra. O poder<br />

governamental não possuindo por si mesmo a soberania, mas<br />

a tendo por delegação, não pôde ser illimitado e absoluto ;<br />

d'onde a necessidade de se lhe traçar limites e regras. Na<br />

Constituição dos Estados-Unidos esses limites e regras estão<br />

formalmente expressos, mas não assim na Inglaterra ( i )<br />

IV<br />

Cumpre não esquecer o que ficou dito a respeito da soberania<br />

absoluta e relativa ou limitada.<br />

Nenhum poder humano é absoluto ; resida elle na nação ou<br />

em uma assembléa de representantes. Uma soberania absoluta<br />

e illimitada facilmente se corrompe, torna-se despotica e nouva<br />

á sociedade. Não é ao depositário do poder absoluto que<br />

devemos aceusar, diz B. Constant, é contra a arma, e não contra<br />

o braço, que devemos combater: ha massas muito pesadas para<br />

as mãos dos homens ( 2 ).<br />

São caracteres da soberania :<br />

i.° A unidade ou indivisibilidade. Com effeito, ella é um<br />

todo orgânico, não obstante a variedade de suas attribuições,<br />

e só existe com a condição de sua unidade indecomponivel.<br />

( 1 ) An introduction to the constitutional law of the United States, p. 6.<br />

New-York, 1888.<br />

( 2 ) Cours de politique constitutionnelle, Nota A.


u<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

« Tentar fraccional-a em moléculas, diz certo publicista, é destruil-a,<br />

do mesmo modo que o physiologista, que em um corpo<br />

vivo tentasse decompor e separar os órgãos para descobrir a<br />

vida, veria esta desapparecer sob o seu escalpello. »<br />

Já Cicero havia dito : Imperium, nisi unuin sit, esse<br />

nullum potest ( 1 ).<br />

Para affirmar a individualidade da soberania basta pensar<br />

na hypothèse contraria Se a soberania de um Estado fosse<br />

dividida por todos os cidadãos ou por alguns, cada um d'elles<br />

possuiria igual poder soberano, e n'este caso não havendo um<br />

superior coramum, o governo seria impossível.<br />

O exercicio, porém, da soberania pôde pertencera diversos<br />

órgãos do corpo politico, os quaes coordenados e harmônicos<br />

desempenhão as funcções da soberania.<br />

2. 0 A inalienabilidade, isto é, não pôde ser delegada ou<br />

cedida, pois, sendo essencialmente inhérente ao Estado, não<br />

pôde sahir d'elle, sem que o Estado deixe de existir. O exercício<br />

da soberania, porém, pôde ser delegado, como já ficou dito,<br />

e essa delegação é da essência do governo representativo.<br />

3." A inviolabilidade e irresponsabilidade, porque sendo o<br />

Estado independente pôde obrar como melhor convenha ao fim<br />

social, sem que nenhum outro Estado possa obstar o seu exercicio,<br />

nem pedir-lhe contas de seus actos, desde que respeite<br />

a justiça.<br />

D'estas notas da soberania resultão os seus direitos, os<br />

quaes os velhos publicistas dividião em jura regalia immanentia<br />

e jura regalia iranseuntia, e d'elles fazião longa<br />

enumeração.<br />

Todos esses direitos podem ser reduzidos a dous, dos quaes<br />

dimanào muitos outros.<br />

l.° Direito de autonomia externa, que comprehsnde principalmente<br />

o jus legationis et foederis, isto é, o direito de estabelecer<br />

agentes diplomáticos nos Estados estrangeiros, gosando<br />

do direito de inviolabilidade, o de fazer tratados, e o jus belli<br />

et pacis ;<br />

2° Direito de autonomia interna, que consiste em poder<br />

estabelecer a fôrma de seu governo, e leis garantidoras dos<br />

direitos dos cidadãos ; de julgar e terminar questões entre os<br />

( 1 ) De Rep. 1. 1. c. 8.<br />

II<br />

81


82 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cidadàos ; em uma palavra, o direito de constituir-se politicamente<br />

e de governar-se, sem precisar do consentimento dos<br />

outros Estados.<br />

Entre os direitos inhérentes á soberania está o de domínio<br />

e de jurisdicção sobre todo o território do Estado, e portanto<br />

sobre todos os bens, quer públicos, quer particulares, n'elle<br />

comprehendidos. Ao complexo d'esses direitos chama-se em<br />

geral dominio eminente, dominium eminens ; que se pôde<br />

definir — o direito que tem a soberania nacional de dispor, no<br />

caso de necessidade publica, de todos os bens contidos no<br />

Estado. Alguns exagerão esse direito até o ponto de convertel-o<br />

em direito senhoril sobre os indivíduos e seus bens: 6 o<br />

absolutismo do poder.<br />

A verdadeira doutrina a respeito d'esté ponto se infere do<br />

que ficou dito acerca da soberania absoluta.<br />

A soberania não pôde desconhecer a personalidade jurídica<br />

dos indivíduos, e das sociedades menores que se organisão no<br />

seio do Estado. Ella tem certamente o direito de estabelecer<br />

leis civis, penaes, commerciaes e administrativas sobre todo o<br />

seu território ; de regular os direitos dos cidadãos e seus bens<br />

moveis e immoveis; todo esse poder decorre da autonomia<br />

nacional.<br />

Mas as leis positivas devem suppôr sempre a lei juridicoracional,<br />

reguladora dos direitos naturaes da personalidade<br />

humana. O dominio eminente, entendido no sentido despotico,<br />

é um absurdo jurídico, é o direito feudal antigo, é a negação<br />

da propriedade individual ( I ).<br />

Em França, no tempo do regimen feudal, era principio de<br />

direito, que todas as propriedades erão concessões do rei.<br />

Este podia, pois, retomar o que havia dado, quando julgava<br />

necessário. Então era maxima : Que veut le roi, si veut<br />

la loi.<br />

O soberano era, portanto o único proprietário; os particulares<br />

erão, quando muito, meros usufructuarios.<br />

Hoje é principio incontroverso a inviolabilidade da propriedade<br />

individual. Só a necessidade ou a utilidade publica pôde<br />

autorisar o Estado a dispor da propriedade particular, mediante<br />

prévia indemnisação ao proprietário.<br />

' ! ) ilelío Regime constitutionnel, lit. 5 § 2.


CAPITULO IX<br />

LIBERDADE E SUAS ESPÉCIES. LIBERDADE JURÍDICA. LIBER­<br />

DADE NOS TEMPOS ANTIGOS E MODERNOS<br />

I<br />

Não deve parecer fora de propósito e inopportuno em um<br />

livro de direito <strong>publico</strong> e constitucional um capitulo a respeito<br />

da liberdade.<br />

Qual é o fim de todo o direito constitucional, senão garantir<br />

a liberdade dos cidadãos, em suas diversas manifestações,<br />

contra as usurpações do poder ?<br />

Qual é o principal mérito dos governos livres modernos,<br />

senão ter realisado a conciliação de duas cousas que os antigos,<br />

reputarão inconciliáveis, no dizer de Tácito —res dissocia biles,<br />

firincipatum ac libertatem ?<br />

Acaso os direitos públicos, qne a lei fundamental garante,<br />

são outra cousa senão manifestações da liberdade civil ?<br />

A liberdade humana se traduz por actos interiores ou exteriores.<br />

Os actos de ordem interna estão fora da competência<br />

do poder social ; mas aquelles que se realisão exteriormente,<br />

estes cahem todos sob a accção do poder <strong>publico</strong>, e todo o<br />

direito constitucional se propõe a regulal-os e garantil-os.<br />

A liberdade dos actos que o homem pratica em sua vida><br />

privada, no exercício de sua actividade, sem receio de ser<br />

perturbado ; a liberdade dos actos que se referem ao pensamento<br />

e aos affectos moraes, as manifestações pela imprensa,<br />

ou por outro modo, de nossas 1 !éas; o exercício dos actos da<br />

religião de cada um; os actos de liberdade pelos quaes procuramos<br />

o necessário a vida material, e que se referem á propriedade,<br />

á industria e ao commercio : finalmente os actos pelos


84<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

quaes os cidadãos participão do exercicio do poder social, tudo<br />

isso é materia regulada pelo direito constitucional.<br />

Mas essas três classes de actos, individuaes propriamente<br />

ditos, públicos e políticos, e que constituem outras tantas<br />

classes de direitos, são applicações, são manifestações da liberdade<br />

humana.<br />

Portanto não é descabido em um curso de direito constitucional<br />

algum estudo sobre a liberdade, a qual é o fundamento;<br />

a raiz de todos os actos da vida de um povo livre ( i ).<br />

O que é liberdade ?<br />

Ainda mesmo deixando de lado as disputas dos nietaphysicos<br />

e dos moralistas, as quaes não cabem no nosso propósito,<br />

e não tomando aquella palavra senão no sentido social, é difficil<br />

dar definição precisa, nem tentarei fazel-o.<br />

Alguns a definem o direito de fazer tudo. Cícero escrevera<br />

: Quid est libertas ? Potestas vivendi ut velis.<br />

Evidentemente são falsas semelhantes definições.<br />

A liberdade de fazer o que se quer, é a liberdade do selvagem.<br />

A liberdade social é naturalmente limitada pelos direitos<br />

dos outros.<br />

Segundo Montesquieu « liberdade é o direito de fazer<br />

tudo o que a lei não prohibe. » Essa definição também é falsa.<br />

Criticando-a, Hello diz : Subditos da lei, desconfiai d'essa<br />

liberdade, desconfiai principalmente vós que fazeis a lei; tal<br />

definição contém em si o mais irremediável dos despotismos,<br />

o despotismo legal ; quando o despotismo consegue envolver-se<br />

com o manto da legalidade, torna-se senhor de tudo e senhor<br />

perpetuo ( 2 ).<br />

No conceito de liberdade social, única de que aqui trato,<br />

se incluem a coordenação dos direitos e deveres dos co-associados,a<br />

idéa de direito, de justiça, de propriedade, de harmonia<br />

de interesses, de responsabilidade individual, de concurso de<br />

todos ao bem social, conforme a aptidão e capacidade de<br />

cada um.<br />

Em seu verdadeiro conceito a liberdade implica também a<br />

existência de um poder que faça respeitar as leis e os direitos<br />

( 1 } V. Rossi, Cours oit. Lie. 25.<br />

( 2 ) V. Ragime const, part. 1,


"A<br />

E CONSTITUCIONAL S5<br />

de todos, que proveja os interesses communs, refreie e puna os<br />

excessos. A verdadeira liberdade não repelle, antes reclama,<br />

as garantias legaes ; ella só tem um inimigo a combater —<br />

o arbitrio — um mal a evitar — a oppressão — um bem a conseguir<br />

— o direito.<br />

Não defino a liberdade, mas ahi ficão os elementos que se<br />

contém no seu verdadeiro conceito.<br />

A liberdade, posto que uma em si mesma, se manifesta sob<br />

três principaes aspectos — liberdade moral — liberdade civil —<br />

liberdade política.<br />

A liberdade moral, faculdade que te'" alva, que em si<br />

mesma não é criminosa, nem innocente ; torna-se, porém, boa<br />

ou má, é a felicidade ou infelicidade do povo, conforme a<br />

direcção que se lhe dá.<br />

D'aqui resulta que deve ser regulada em seu exercicio para


86 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

ser util, e a regra do exercício da liberdade é a lei ; aonde não<br />

ha lei, não ha liberdade, mas licença; não ha liberdade racional,<br />

mas actividade brutal. Portanto a liberdade suppõe como condição<br />

essencial a lei, que é regra do direito.<br />

Rigorosamente a liberdade não é direito, mas é requisito<br />

essencial ao exercício de todos os direitos e de todos os deveres<br />

; os direitos e os deveres são funcções úteis á actividade<br />

humana, e devem ser livres para poderem existir e produzir<br />

o seu effeito.<br />

O direito, pois, é como a direcção da liberdade, e esta é<br />

condição para o exercício d'aquelle. Sem a liberdade o direito,<br />

regra das relações sociaes, não poderia effectuar-se ; mas também<br />

a liberdade, não merece este nome, se não quando se<br />

actua de conformidade com o direito. Portanto a verdadeira<br />

liberdade deve ser jurídica. N'este sentido todos os direitos são<br />

manifestações da liberdade.<br />

Já ficou dito que a liberdade suppõe a lei. Sem uma regra<br />

á qual a livre actividade do homem se conforme em suas manifestações,<br />

a liberdade torna-se licenciosa e nociva aos direitos<br />

dos outros. Por isso Cicero dizia : Legum servi sumus, ut<br />

liberi esse possimus.<br />

Alguns autores exprimem essa mesma idéa dizendo que a<br />

liberdade suppõe a ordem, ou que sem autoridade não ha verdadeira<br />

liberdade.<br />

De facto, ordem e liberdade não são termos antagônicos ;<br />

pelo contrario são correlativos e harmonísão-se perfeitamente.<br />

A ordem sem a liberdade seria oppressâo, e a liberdade<br />

sem a ordem anarchia ; a liberdade vive da ordem, porque só na<br />

ordem ella se desenvolve legitimamente sendo respeitada por<br />

todos, e a ordem por sua vez vive da liberdade, porque só ha<br />

vida aonde a actividade humana não é arbitrariamente vin"<br />

culada.<br />

Quem diz ordem, diz liberdade, e quem diz liberdade diz<br />

ordem ; se desapparece a ordem, as liberdades entrando em<br />

conflicto reciproco, está perdida a liberdade legitima ; se desapparece<br />

a liberdade, a ordem torna-se tyrannia.<br />

Portanto, a liberdade não é inimiga da ordem, ner.i a<br />

ordem inimiga da liberdade. Algumas vezes, escreve J. Simon,<br />

considera-se a liberdade e a autoridade como inimigas ; admiráveis<br />

inimigas, pois, não pôde viver uma sem a outra,


*V<br />

K CONSTITUCIONAL<br />

III<br />

As liberdades políticas exi stem para garantia das liberdades<br />

îndividuaes. Um governo não é verdadeiramente livre, só pelo<br />

facto dos cidadãos tomarem parte no exercicio do poder <strong>publico</strong>.<br />

Livre é o governo em que os cidadãos podem praticar seguramente<br />

os seus direitos individuaes,os direitos que lhe competem<br />

em sua qualidade de homens, e não só na qualidade de<br />

cidadãos,<br />

A liberdade política é um instrumento necessário ao<br />

exercicio das liberdades essenciaes ao homem; é um meio, mas<br />

não é o fim, não é o bem supremo de um povo.<br />

De que vale a este ter parte no poder, se vê immoladas<br />

a sua consciência, o seu pensamento, a sua palavra, os producde<br />

sua actividade individual, de sua industria, de seu engenho<br />

artístico ?<br />

Convém não confundir essas duas espécies de liberdades.<br />

A primeira era sobre tudo cara aos antigos povos chamados<br />

livres, a segunda é o constante objectivo dos modernos.<br />

Na antigüidade só o Estado era grande, o indivíduo pouco<br />

ou nada valia ; o Estado era tudo, o indivíduo quasi nada.<br />

Nas democracias modernas é o contrario.<br />

Nos Estados-Unidos do Norte, verdadeiro berço da democracia<br />

moderna, as liberdades individuaes são tudo ; ellas dominão<br />

nos toivonships ; os freemen dictão alei. E' n'essas pequenas<br />

republicas que está o centro vital da grande republica ;<br />

esses municípios americanos são como o cellula germinal do<br />

Estado, de modo que o Estado ali vive da vida que lhe dão os<br />

municípios; por isso, diz com razão Laboulaye,que nos Estados-<br />

Unidos « o Estado é pequeno e o indivíduo é grande ».<br />

Um illustre apóstolo das liberdades individuaes, ha muitos<br />

annos, salientava a grande differença entre a liberdade dos<br />

antigos e a dos modernos. O tempo em nada diminuio a verdade<br />

e valor de suas apreciações.<br />

Quereis saber, perguntava Benjamin Constant, o que um<br />

inglez,um habitante dos Estados-Unidos entendem pela palavra<br />

liberdade ? Elles crêm que é o direito de só estar sujeito ás<br />

leis, de não poderem ser presos, nem detentos, nem mortos,


88 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

nem maltratados de modo algum, por arbítrio de um ou mais<br />

indivíduos. Estão persuadidos que liberdade é o direito de<br />

cada qual dizer a sua opinião, de escolher a sua industria e<br />

exercel-a; de dispor de sua propriedade, e até de abusar d'ella;<br />

de locomover-se sem precisar de licença e sem dar contas de<br />

seus movimentos. Pensão que é o direito de cada qual se<br />

reunir a outros, quer para conferenciar acerca de seus interesses,<br />

quer para praticar a sua religião, quer simplesmente<br />

para passar os dias e as horas, do modo mais conforme ás suas<br />

inclinações e á seus gostos. Finalmente, pensão que a liberdade<br />

é o direito que cada qual tem de influir na administração<br />

e no governo, quer nomeando todos ou alguns funecionarios,<br />

quer dirigindo representações, petições as quaes a autoridade<br />

é mais ou menos obrigada a tomar em consideração.<br />

A liberdade dos antigos... consistia em exercitar collectivamente,<br />

mas de modo directo, alguma parte da soberania total,<br />

em deliberar na praça publica a respeito da paz e da guerra, em<br />

concluir tratados de alliança com os estrangeiros, em votar as<br />

leis, em examinar os actos dos magistrados, em fazel-os comparecer<br />

perante o povo, e accusal-os...<br />

Mas ao mesmo tempo que chamavão a isso liberdade,<br />

julgavão que essa liberdade collectiva era compatível com a<br />

sujeição completa do indivíduo á autoridade collectiva...<br />

A' severa vigilância d'essa autoridade erão sujeitas todas as<br />

acções privadas ; nada se concedia á independência individual,<br />

em materia de opiniões, de industria, e principalmente de religião.<br />

A faculdade de escolher uma religião, faculdade que hoje<br />

é um precioso direito, pareceria aos antigos um crime, um<br />

sacrilégio. Nas cousas mais futeis a autoridade do corpo social<br />

se interpunha e vexava a vontade dos indivíduos : Terpandre<br />

entre os espartanos não podia augmentar uma corda na sua<br />

lyra, sem que os Ephoros se julgassem offendidos. O indivíduo<br />

quasi habitualmente soberano nos negócios públicos, era escravo<br />

nas relações privadas ( i ).<br />

( 1 ) Œuvres politiques, paît. 4. cap. 5.


K<br />

CAPITULO S<br />

THEORIA DA DIVISÃO DOS PODERES. HARMONIA E INDEPEN­<br />

DÊNCIA DOS PODERES. PODER CONSTITUINTE<br />

I<br />

A soberania é uma e indivisível, como já ficou dito ; ou é<br />

toda, ou não é. Se, porém, a soberania em si mesma é indecomponivel,<br />

as suas funcções sociaes, podem ser desempenhadas<br />

por órgãos ou agentes différentes.<br />

Seria, portanto, mais correcto fallar de divisão de funcções,<br />

do que de divisão de poder.<br />

O poder do Estado é único ; não ha muitos poderes, mas<br />

sim muitas funcções, desempenhadas por órgãos différentes.<br />

Tem razão, pois, os escríptores americanos de, em vez da<br />

expressão três poderes, usarem de preferencia da locução três<br />

ramos ou três Departamentos do poder, mostrando assim que<br />

é da essência do poder ser um e indivisível, seja qual fôr a fôrma<br />

de governo.<br />

Supposto isto, a theoria da divisão dos poderes consiste<br />

em mostrar que as três grandes funcções sociaes do Estado,<br />

a de legislar, a de executar e a de julgar, devem achar-se em<br />

mãos différentes, devem ser exercidas por agentes distinctos.<br />

Essa distincção é um dos pontos fundamentals do direito constitucional.<br />

Em substancia essa theoria é antiguissima, pois, em sua<br />

Política já Aristóteles ensinava que em todo governo havia ires<br />

partes essenciaes, a cada uma das quaes todo legislador devia<br />

attender de modo conveniente. « A primeira d'essas partes<br />

é a que delibera sobre os negócios do Estado ; a segunda comprehende<br />

as magistraturas constituídas ; a terceira é a judicatura.<br />

»<br />

12


go NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Na idade média reappareceu essa doutrina, que é claramente<br />

exposta por S. Thomaz d'Aquino e outros escriptores<br />

d'aquelle tempo ( i ).<br />

Antes de Montesquieu também Lock occupou-se com a<br />

divisão dos poderes, divisão que hoje é um axioma politico na<br />

vida dos governos modernos.<br />

Mas, sem duvida, foi o autor do Espirito das leis quem<br />

mais aprofundou aquella doutrina.<br />

A distincção dos três poderes, diz Barni, não é certamente<br />

uma descoberta de Montesquieu ; procede de Aristóteles, existia<br />

de facto na constituição ingleza, c Lock já a tinha firmado ;<br />

o que pertence a Montesquieu é ter completamente illustrado<br />

o principio da separação dos poderes como garantia da liberdade,<br />

fazendo d'esse modo que ella entrasse na sciencia<br />

política ( 2 ).<br />

Muitas razões dá Montesquieu para illustrar essa doutrina.<br />

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistrados<br />

o poder legislativo está unido ao poder executivo, não ha<br />

liberdade ; porque é de receiar que o mesmo monarcha ou o<br />

mesmo senado faça leis tyrannicas para executal-as tyrannicamente.<br />

Também não ha liberdade, accrescenta o autor do Esprit<br />

des lois, se o poder de julgar não se acha separado do poder<br />

legislativo e do executivo ; se estivesse unido ao poder legislativo,<br />

o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria<br />

arbitrário, porque o juiz seria legislador; se estivesse unido ao<br />

poder executivo, o juiz poderia ter a força de um oppressor.<br />

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou a mesma<br />

corporação, exercitasse os três poderes, o de fazer as leis, o de<br />

executar as resoluções publicas e o de julgar os crimes e questões<br />

particulares.<br />

Eis aqui em summa as razões com que Montesquieu justifica<br />

a necessidade da separação dos poderes.<br />

Mais do que razões, e do que os melhores raciocínios, diz<br />

Story, vale a experiência, que tem demonstrado que a theoria<br />

da divisão dos poderes assenta em uma justa apreciação da<br />

( 1 ) V. S. T. I. II, quaest. 95.<br />

( 2 ) Hist, des idées morales et politiques, t. 1. p. 174.


Hi<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

natureza do governo, da garantia e da liberdade dos cidadãos ;<br />

e não é pequeno elogio para a Constituição dos Estados Unidos<br />

dizer que em vez d'ella adoptar uma theoria nova, tomou a<br />

verdade pratica para base de sua organisação, pondo em mãos<br />

différentes os poderes legislativo, executivo e judiciário ( I ).<br />

Pensão alguns publicistas que a precedente enumeração de<br />

poderes não é completa.<br />

B. Constant, além d'aquelles três poderes, admitte mais<br />

dous — o poder real ou moderador e o poder municipal.<br />

Hello aos três poderes de Montesquieu acerescenta o administrativo<br />

e o constituinte.<br />

Por sua parte Bluntschli pretende que não bastão os poderes<br />

das constituições modernas, e diz: « Exame attento mestra<br />

mais dous grupos de órgãos e de funeções, que posto dependentes<br />

do governo, devem todavia ser distinetos d'elle, e são :<br />

l.° a vigilância e cuidado dos elementos civilisadores — a<br />

cultura publica, 2." a administração e cuidado dos interesses<br />

materiaes — a economia política ( 2 ).<br />

Outros adroittem um poder eleitoral, como se a eleição não<br />

fosse antes o exercício da soberania nacional.<br />

Finalmente em França muitos escriptores fallão de um<br />

poder constittiinte distineto dos outros.<br />

Mas se bem considerarmos, veremos que a clássica divisão<br />

em três poderes é a melhor, e que os outros chamados poderes<br />

estão implícitos em algum dos três.<br />

II<br />

Muitas objecções se tem levantado contra a theoria da<br />

divisão dos poderes.<br />

Ora se allega que ella implica um mechanismo de equilibrio,<br />

impossível em um corpo da natureza do Estado ; ora se<br />

diz que, ou um dos poderes predomina, e a divisão 6 illusoria,<br />

ou não predomina, e ha immobilidade, e que o Estado não<br />

pôde ficar immoveí, porque é um organismo vivo o tem que<br />

( 1 ) Commentaries, t. 1. p. 379 § 525.<br />

( 2 ) V. Theoria do Estado, Liv. 7. c. 5.<br />

9 j


92<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

desenvolver-se livremente ; ora, finalmente que o poder supremo<br />

é simples, carece de partes e não pôde portanto ser dividido.<br />

Todas essas objecções se resolvem desde que dermos á<br />

palavra divisão o sentido que ella deve ter na theoria do s<br />

poderes políticos.<br />

Essa divisão é uma simples distincção 'mental, c não uma<br />

separação effectiva na soberania. Distinguir é designar mentalmente<br />

os caracteres próprios de um certo objecto, ou o seu<br />

modo de existir e de obrar ; separar é dar existência propria,<br />

real e quasi independente áquelles caracteres ; é fazel-os obrar<br />

como se fossem poderes existentes por si. E' como simples<br />

distincção mental que devemos entender a tricotomia dos<br />

attributos da soberania ( i ).<br />

A divisão dos poderes, tomada em sentido real, de facto<br />

não existe, nem pôde existir em nenhum governo ; nunca um<br />

d'aquelles poderes pertenceu exclusivamente a certos agentes<br />

da soberania, nunca nenhum d'elles foi dado inteiramente a um<br />

dos corpos do Estado.<br />

O poder legislativo é exercido pelos dous ramos d'esse<br />

poder, e ainda ordinariamente pelo poder executivo, este é<br />

exercido em parte pelos agentes do poder administrativo, e em<br />

parte por funccionarios do poder judiciário, no exercício d'esté<br />

intervém os outros dous poderes, ora edictando regras, pelas<br />

quaes os juizes se hão de guiar, ora nomeando os próprios<br />

juizes e exercendo o poder de agraciar.<br />

E' assim que os mais distinctos publicistas entendem a<br />

tricotomia política.<br />

Quando, diz Story, falíamos da separação dos três grandes<br />

departamentos do governo ( of the threes great departments<br />

of government ), e sustentamos que essa separação é indispensável<br />

ás liberdades publicas, entendemos essa maxima em<br />

sentido limitado. Não pretendemos affirm ar que elles sejão<br />

inteiramente separados e distinctos, sem laço algum de connexão<br />

ou de dependência entre elles. Nosso verdadeiro pensamento<br />

é que a totalidade dos poderes de um d'esses departamentos<br />

não deve ser confiada ás mesmas mãos, que possuem<br />

! 1 ) V. Roraagnosi, Instil, di civile filosofia, t. 1 p. 560.


U-<br />

B CONSTITUCIONAL 93<br />

a totalidade dos poderes de outro departamento: esta confusão<br />

seria subversiva dos princípios de uma constituição livre ( 1 ).<br />

Bluntschli, partindo da comparação dos organismos vivos<br />

e naturaes com os organismos políticos, diz que no organismo<br />

natural cada órgão tem a sua funcção especial. No homem os<br />

olhos são feitos para verem, os ouvidos para ouvirem, a bocca<br />

para fallar, a mão para pegar e agir. Imitando a natureza, o<br />

estadista considera o Estado como um organismo vivo, tendo<br />

órgãos e funcções especificas. A expressão usada — separação<br />

de poderes — accrescenta o illustre professor de Heidelberg,<br />

induz a falsas applicações ; a separação completa resolveria<br />

a unidade, romperia o corpo social. No corpo animal os membros,<br />

posto que distinctos, são ligados entre si ; assim também<br />

o Estado exige distincção e ligação de poderes, mas não supporta<br />

separação. Deve, pois, haver unidade de soberania, e<br />

distincção de órgãos, mas não separação ( 2 ).<br />

III<br />

Do'que fica dito se segueque os poderes públicos do Estado,<br />

co.ao os órgãos do corpo animal, devem funccionar harmonica<br />

e coordenadamente, para poderem attingir o fim do Estado,<br />

que é a garantia do direito.<br />

Á constituição de um Estado é um problema de mechanica<br />

política, cuja solução está nas leis fundamentaes ; ali tudo deve<br />

ser harmonicamente pre-ordenado ; os poderes devem funccionar<br />

independentemente, sim, mas de modo harmônico ; se um<br />

invade a esphera dos outros, apparecem a luta, o pugilato politico,<br />

que é a maior calamidade de uma sociedade constitucional!<br />

n ente organisada.<br />

A nossa Constituição proclama a existência dos três poderes<br />

como órgãos da soberania nacional, e os quer harmônicos<br />

e independentes entre si. Art. 15.<br />

Esse é também o systema de todas as constituições democráticas.<br />

í I } Commentaries, t. 1. p. 380 g 52ò<br />

( 2 ) Theoria do Estado, L. 7. c 7


94<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A dos Estados Unidos do Norte, admiítindo os três poderes,<br />

decidio que elles seriào « coordenados e independentes ;<br />

ou, segundo uma sentença da Supreme Court, os ramos do<br />

governo são coordenados na proporção dos poderes delegados<br />

a cada um d'elles, de modo que no exeicicio de suas attribuições<br />

cada um seja independente dos outros, e que os actos praticados<br />

por um d'elles, nos limites da legalidade, sejão obrigatórios<br />

para os outros». D'esse modo, cada um dos poderes<br />

res exerce um contrôle constitucional sobre os outros, e assim<br />

nenhum d'elles c preponderante. Tal é o pensamento das<br />

constituições dos goveruos democráticos,<br />

A esse pensamento ?c referem os termos balança, equilíbrio<br />

e freios dos poderes, termos dos quaes fazem os publicistas<br />

freqüente uso.<br />

O nosso systema de governo, diz Cooley, é um elaborate<br />

system of checks and balance. Esses freios se podem reduzir<br />

aos seguintes : l.° Os Estados rofreião os excessos do governo<br />

central ; 2.° A câmara dos deputados refreia os excessos do<br />

senado, e este os d'aquelia câmara ; 3/» O poder executivo<br />

refreia as exorbitâncias do legislativo com o direito do veto ;<br />

4.° O poder legislativo refreia os abusos do executivo com o<br />

direito de impeachment ; 5. 0 O poder judicial é refreiado pela<br />

ac^ão do legislativo, que pôde estabelecer regra aos tribunaes e<br />

restringir a autoridade d'elles; 6.° O poder legislativo por sua<br />

vez ■■':. também refreiado pelo judicial mediante o direito de não<br />

executar as leis por inconstitucionaes e declaral­as de nenhum<br />

effeito ; 7. 0 O senado refreia os abusos do Presidente na nomeação<br />

dos funccionarios, podendo negar a sua appro va ção :<br />

8.° O povo refreia o poder dos deputados mediante eleições<br />

periódicas; 9.» Os Estados, por meio dos seus representantes,<br />

refreião os excessos dos senadores pelas eleições sexenaes ;<br />

10. Os eleitores refreião o povo pela escolha do Presidente e<br />

do vice­Presidenie ( 1 ).<br />

Eis aqui ei;, que consiste a balança dos poderes na democracia<br />

americana, invenção suggerida aos constituinte americanos<br />

pela constituição ingleza.<br />

Depois do que fica dito, é supérfluo entrar em maior<br />

( 1 ) Const. Law, c. 7 e Treatise on the constitutional limitations, ç. 3 § 35.


H<br />

E CONSTITUCIONAL 95<br />

desenvolvimento a respeito dos órgãos do poder soberano do<br />

Estado.<br />

Esse poder se exercita na socieda.de por muitos órgãos<br />

cujas funcções são numerosíssimas e constituem a vida pratica<br />

da nação. Mas de todos esses órgãos três são principaes —<br />

o congresso com os seus dous ramos, cujas funcções são legislativas<br />

; o Presidente da Republica e seus ministros, cujas<br />

funcções são executivas ; e o corpo da magistratura, tribunaes<br />

e juizes, cujas funcções são judiciaes. Esses órgãos e suas<br />

respectivas funcções serão depois devidamente estudados.<br />

IV<br />

Entre os principaes poderes de uma nação alguns publicistas,<br />

especialmente francezes, enumerão o poder constituinte.<br />

E' indubitavel que o poder constituinte é a mais immediata<br />

das emanações da soberania nacional; nem se pôde conceber<br />

a sociedade sem o poder de constituir-se do modo que melhor<br />

convenha á natureza e ás condições do povo. Portanto, logicamente<br />

o poder constituinte precede a todos os outros poderes<br />

ou funcções da autocracia nacional.<br />

Mas cumpre distinguir entre a nação a constituir-se, e<br />

nação Constituída.<br />

A questão que se suscita a respeito do poder constituinte<br />

e do poder legislativo é — se entre os poderes constituídos<br />

devemos contar o poder constituinte •, em outros termos, se<br />

para reformar a constituição de um Estado é mister recorrer ao<br />

poder constituinte, ou se basta o poder legislativo ordinário.<br />

« Quando a constituição de um povo está estabelecida,<br />

disse Portalis, o poder constituinte desapparece ; elle é como a<br />

palavra do Creador, que manda uma vez para governar sempre ;<br />

é a mão omnipotente que descança para deixar obrar as causas<br />

segundas, depois de ter dado movimento e vida a tudo o que<br />

existe ».<br />

Segundo o direito inglez a omnipotencia do parlamento<br />

é um axioma ; pôde, pois, fazer todas as leis, assim as orgânicas,<br />

como as constitucionaes ; o mesmo poder que faz as leis<br />

ordinárias, faz as extraordinárias ou constitucionaes, e fazendo-as<br />

fica sempre com o poder de revel-as e emendal-as.


96 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Em these essa doutrina é verdadeira. Se a soberania, como<br />

disse Balbo, é « o direito de reger o Estado segundo as leis, e<br />

de mudar as leis segundo a necessidade, » não ha razão para<br />

distinguir uma soberania ordinária e outra extraordinária.<br />

O poder constituinte reside na nação e nos órgãos de sua<br />

vontade, nos seus representantes ; outra também não é a fonte<br />

do poder legislativo ordinário. Ora, se a origem e os órgãos<br />

dos dous poderes são substancialmente os mesmos, o poder<br />

constituinte racionalmente não é distincto do poder legislativo.<br />

Tem portanto razão Bonghi, q uar.do diz que é mais vantajoso,<br />

mais regular, e, para assim dizer, mais conforme á moral,<br />

ter como a Inglaterra um só poder de fazer lei e uma só espécie<br />

de lei; uma lei reputada mais sagrada, torna as outras menos<br />

sagradas.<br />

A corrente dos publicistas francezes, porém, sem duvida<br />

pelo receio de rápidas mutações constitucionaes, opina pela<br />

necessidade de um poder constitucional extraordinário, distincto<br />

do poder legislativo ordinário. « O maior mal que se pôde fazer<br />

a uma sociedade, como a nossa, diz Hello, é tirar-lhe a idéa de<br />

uma regra suprema, inviolável, collocada acima do movimento<br />

diário dos negócios, tendo alguma cousa, se não de eterno, pois<br />

nas obras humanas tudo é temporário, pelo menos de fixo e de<br />

estável, quanto possivel, e na qual não se possa tocar sem<br />

que o solo trema (, i ).<br />

D'aqui se infere que a theoria do poder constituinte é<br />

especial para a França. « Somos uma nação viva e inquieta,<br />

diz o referido escriptor, as revoluções tornarão as mudanças<br />

habícuaes, entre nós despacha-se expeditamente um golpe de<br />

Estado, e a mobilidade de nossas leis tem diminuido em nosso<br />

espirito a força moral d'ellas ». Portanto a distineção do poder<br />

constituinte e do poder legislativo em um Estado já constituído,<br />

não é doutrina de direito <strong>publico</strong> universal, mas especialmente<br />

de direito <strong>publico</strong> francez.<br />

Um só é o poder que constitue, que legisla, que julga e que<br />

executa; esse poder constituinte, ou creador desapparece desde<br />

que a creação social está operada, desde que o Estado se acha<br />

constituido ; para as mudanças constitucionaes, necessárias á<br />

nação constituída, basta o poder legislativo ordinário.<br />

{ 1 ) Du regime const, tit. 1. c. 1.


13<br />

E CONSTITUCIONAL 97<br />

Para obstar as revisões constitucionaes precipitadas, e<br />

refreiar os ímpetos dos innovadores é sufficiente que nas reformas<br />

constitucionaes se empreguem certas garantias especiaes<br />

taes como votações successivas de duas legislaturas, como na<br />

Bélgica, ou approvação por dous terços, e não por simples<br />

maioria, como na Allemanha e na Austria. Esse é também,<br />

pouco mais ou menos, o processo adoptado pela nossa Constituição<br />

( art. 90 ), como em tempo veremos.<br />

A soberania comprehende, pois, o poder de constituir-se<br />

de estabelecer regras ás diversas relações privadas e publicas<br />

e de rever a constituição acompanhando o desenvolvimento da<br />

vida da sociedade. Se o Estado para reger-se deve ter órgãos<br />

de sua vontade, não pôde haver diversidade de órgãos para<br />

essa vontade manifestar-se a respeito das leis chamadas constitucionaes.<br />

e das ordinárias ou orgânicas.<br />

V<br />

Nos Estados-Unidos também não se admitte um poder<br />

constituinte, propriamente dito. O caracter federal da Constituição<br />

pede que a soberania dos Estados dê a sua ultima palavra<br />

sobre emendas constitucionaes, iniciadas no Congresso<br />

Nacional, approvando-as por três quartos dos Congressos dos<br />

mesmos Estados. Mas a reforma é iniciada e consummadí'<br />

por poderes constituídos.<br />

Ali o poder de constituir, isto é, de emendar as constituições<br />

dos Estados, ou de redigir projectos de novas Constituições,<br />

é confiado a pequenas e selectas corporações, chamadas —<br />

Constitutional conventions.<br />

Essas convenções, porém, não são propriamente corpos<br />

legislativos, mas apenas preparadores ou redactores de um<br />

projecto constitucional, que é sujeito á approvação ou rejeição<br />

do povo ; não são, nem se considerão de posse da soberania<br />

nacional, como as assembléas constituintes ordinárias. Estas<br />

reputâo-se omnipotentes, como tendo recebido do povo a soberania,<br />

e portanto exercem o poder constituinte e legislativo<br />

ordinário, e obrão desde então de modo verdadeiramente<br />

despotico.<br />

Nas convenções americanas não ha nada d'isso.<br />

Sendo doutrina corrente nos Estados Unidos, escripta em<br />

13


98 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

todas as constituições, que a soberania é inhérente á sociedade<br />

politica, ao povo, segue-se que é inalienável, e não pode ser<br />

delegada incondicional e illimitadamente. O povo não pôde<br />

abdicar a sua soberania, como o homem individual não pódc<br />

alienar a sua liberdade.<br />

Em virtude d'essa doutrina, nem os corpos legislativos<br />

ordinários, nem as convenções constituintes são soberanos ;<br />

tanto aquelles, como estas, reconhecem limitações ao seu poder.<br />

O poder soberano do povo permanece sempre « in their<br />

primary and sovereign capacity » como dizem os publicistas<br />

americanos.<br />

As convenções tem uma missão determinada, um fim certo<br />

e conhecido — preparar um projecto constitucional — que, se<br />

fôr ractificado pelo povo, será constituição.<br />

Seus membros não sahem dos partidos, como partidários,<br />

mas como capazes para aquelle mister ; por conseguinte discutem<br />

sem paixão, sem calor politico ; seu fim é, não captar popularidade,<br />

mas produzir trabalho patriótico, que elles desempenhão<br />

sem as preoecupações de uma assembléa politica, e sem a<br />

multiplicidade de negócios de ordinário a cargo de um grande<br />

corpo legislativo.<br />

Ao lado das convenções constituintes trabalhão as assembléas<br />

ordinárias desempenhando as suas attribuições privativas.<br />

Uma convenção é de tal sorte circumscripta ás suas funeções,<br />

que nem sequer tem o direito de votar meios para imprimir as<br />

suas resoluções e as suas actas.<br />

Esse systema. que já existia antes da Constituição de 1787<br />

( a qual também sahio da Convenção de Philadelphia ) se acha<br />

consagrado no art. 5. 0 d'aquella Constituição, e é admittido em<br />

todos os Estados.<br />

Ao passo que em outros paizes a formação de uma constituição,<br />

ou a sua reforma, agita os espiritos, e produz uma crise,<br />

nos Estados Unidos se réalisa quasi todos os annos, suave e<br />

tranquillamente sem a menor agitação no paiz. Segundo<br />

Jameson, de 1775 a 1875 tem-se realisado nos Estados Unidos<br />

192 convenções constituintes ( 1 ).<br />

( 1 ) A Treatise, on constitutional conventions, p. 643. Chicago, 1887. N'essa<br />

excellente obra, rica em doutrina constitucional, se acha um extenso quadro analytico<br />

de todas as Convenções com suas datas, lugares em que se reunirão c resultados<br />

finaes.


sO<br />

E CONSTITUCIONAL 99<br />

A theoria do poder constituinte, parallelo ao poder legislativo,<br />

admittida nos Estados Unidos, é pois muito différente da<br />

theoria revolucionaria franceza.<br />

A nossa theoria, de poder constituinte, diz Laboulaye><br />

assenta em um erro e em um sophisma : o erro é a delegação<br />

da soberania ; a soberania não se delega ; o sophisma é a identidade<br />

do povo com os seus representantes, é a confusão cio<br />

mandatário com o mandante. Debalde faremos pomposos discursos,<br />

e proclamaremos que o mundo tem as vistas em nós,<br />

nem por isso a nossa concepção de poder constituinte deixa de<br />

ser negação da soberania do povo. Para os partidos essa theoria<br />

é meio infallivel de escarnecer da vontade nacional e de sujeitar<br />

o paiz ao despotismo de uma minoria.<br />

Os constituintes sendo considerados como o próprio povo,<br />

em virtude da delegação que receberão, e sendo o povo a fonte<br />

de todo poder, concluem os nossos políticos, continua Laboulaye,<br />

que a assembléa possue todos os direitos da soberania, e<br />

que esses direitos são illimitados : portanto a autoridade da<br />

assembléa é absoluta. Vida, liberdade, propriedade, religião,<br />

tudo está nas mãos d'esse resumo da nação; por outros termos,<br />

é ao despotismo que confiamos a missão de crear a liberdade •<br />

Somente a força do habito nos pôde cegar a ponto de não<br />

vermos a falsidade e o perigo de semelhante invenção... Em<br />

virtude do mesmo sophisma, quando a assembléa acaba a sua<br />

obra, não a sujeita á approvação do povo. Para que consultar<br />

o povo, se foi elle que fallou pela bocea cie seus deputados?...<br />

Para um americano tudo isso é uma usurpação da soberania,<br />

é um crime de lesa magestade nacional ( i ).<br />

Ontro publicista francez diz também :<br />

Menos avisados do que os inglezes e os americanos, não<br />

temos sabido distinguir entre poder constituinte e poder legislativo.<br />

Em vez de reformas duradoras, temos somente favorecido<br />

o espirito revolucionário. Sempre constituindo, nunca<br />

constituída, tal tem sido a sorte da França desde 1789. Fizemos<br />

uma constituição segundo princípios, uma constituição humana,<br />

em vez de uma constituição franceza (2 ).<br />

( 1 ) RP\UG îles ilnux mondes de 15 de Outubro de 1871.<br />

( 2 ) V. Girons. Separation des pouvoirs, p. 186.


_ ■ • ■ '<br />

■ -


CAPITULO XI<br />

FORMAS DE GOVERNO. FEDERALISMO E UNITARISMO<br />

I<br />

Não falta quem considere ociosa e inutil a questão das<br />

fôrmas de governo, porque não é d'ellas que procedem o bem<br />

estar do povo e a felicidade de um Estado. São bem conhecidos<br />

os versos de Pope :<br />

The forms of government let fools contest y<br />

What er is best administeret is best<br />

Sim; não é da formado governo que provém a prosperidade<br />

social de um povo ; a maneira de constituir o governo é apenas<br />

u-m meio para que o Estado chegue melhor ao seu fim — o<br />

reconhecimento e defesa dos direitos dos cidadãos; de modo<br />

que não ha uma fôrma que seja absolutamente a melhor de<br />

todas.<br />

O valor da fôrma de governo é relativo, é um valor de<br />

opportunidade, dependente da civilisação de um povo, dos seus<br />

antecedentes, de seus costumes, e do gráo de amor que elle tem<br />

aos negócios públicos. Portanto á questão — qual é a melhor<br />

fôrma de governo ? — deve responder-se, ser aquella que, em<br />

um dado povo, é a mais adequada ao conseguimento do seu<br />

bem estar ( I ).<br />

( 1 ) As constituições nem sempre são respostas a este problema: sendo dado<br />

a população, os costumes, a religião, a situação geograpbica, as relações políticas,<br />

a riqueza, as boas ou mas qualidades de um povo, achar as leis que lhecouvèm.<br />

Assim pensa J. de Maistre.


I02 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Mas como não é indifférente aos cidadãos de um Estado<br />

terem boas leis, verem garantidos os seus direitos naturaes-e<br />

civis, a sua liberdade, a sua propriedade, não pôde ser ociosa a<br />

investigação da maneira porque o Estado deve ser constituído ;<br />

pois é d'essa constituição que resultarão maior ou menor garantia<br />

para os direitos dos cidadãos, assim como as relações jurídicas<br />

d'estes com o governo estabelecido.<br />

A fôrma de governo, isto é, a determinação do modo pelo<br />

qual a soberania legitimamente se exercita na sociedade, é tão<br />

necessária ao Estado, quanto é a soberania. D'aquella determinação<br />

resultão relações diversas entre os cidadãos e a soberania,<br />

e não pouco influe no exercício dos direitos dos mesmos<br />

cidadãos.<br />

Para intelligencia da materia sujeita, convém saber o que é<br />

governo, pois, da noção de governo depende a de sua fôrma.<br />

A palavra governo umas vezes é applicada para significar<br />

o effectivo exercício da soberania ou dos poderes públicos ;<br />

outras vezes significa o complexo de pessoas que a exercem.<br />

Tratando-se de fôrma de governo, entende-se esta palavra no<br />

primeiro sentido, e pôde dizer-se que fôrma de governo, em geral,<br />

é o modo pelo qual se exercita a soberania relativamente á<br />

pessoa physica ou moral que a possue e a exercita.<br />

A pessoa physica ou moral, a quem juridicamente competem<br />

a posse e o exercício da soberania, diz-se soberano. O complexo<br />

de determinações relativas ao exercício da soberania<br />

é estabelecido pela Constituição do Estado.<br />

Em todos os Estados o exercício da soberania é confiado<br />

originariamente a uma ou a mais pessoas. Portanto toda fôrma<br />

de governo é monarchica ou polyarchica ; monarchia e polyarchia<br />

são, pois, as fôrmas simplices elementares de governo, as<br />

quaes, podendo combinar-se de diversas maneiras, dão em<br />

resultado outras fôrmas compostas ou mixtas.<br />

A aristocracia, a republica e a monarchia constitucional<br />

são verdadeiras polyarchias.<br />

Laveleye, para especificar as fôrmas de governo, pa r te do<br />

exercicio da soberania e da factura das leis,<br />

Quem dá a lei ? O soberano ou a nação ? Se é o soberano,<br />

o governo é autocratico, haja ou não vim parlamento. Se é a<br />

nação, o governo é popular, haja ou não um monarcha. Uma<br />

monarchia, diz elle, em que todos os cidadãos votão, é mais


fs.<br />

E CONSTITUCIONAL 103<br />

democrática, do que uma republica em que o suffragio é restricto.<br />

Na Prussia ha um parlamento, mas o regimen, é autocratico,<br />

porque a nação não pôde impor a sua vontade, obrigando,<br />

peles seus representantes, o monarcha a escolher ministros<br />

que se inspirem no voto popular, e, no caso de necessidade,<br />

recuse o imposto ; porque o rei, apoiado no exercito,<br />

continuará a cobral-o e a fazer o que quizer, sem embargo das<br />

câmaras ( i ).<br />

Das fôrmas simplices e compostas qual a preferível ?<br />

Desde Aristóteles se discute sobre a melhor fôrma de<br />

governo, e é notável que desde aquelle tempo os talentos mais<br />

priviligiados se tenhão manifestado pela fôrma mixta.<br />

« Alguns pensão, dizia Aristóteles, que a melhor fôrma<br />

é a que resulta da mistura das outras, e por isso louvão a de<br />

Lacedemonia, a qual é um mixto de ofygarchia, de monarchia<br />

e de democracia ; a primeira exercitada pelo senado, a segunda<br />

pelo rei c a terceira pelos Eforos, sahidos do povo... E na<br />

verdade ; a fôrma mixta é a melhor de todas, pois quando se<br />

quer que um Estado seja de longa duração, é preciso interessar<br />

todas as suas partes na sua conservação e fazer com que a<br />

desejem ( 2 ).<br />

Cicero seguio a mesma doutrina. Para elle « a fôrma política<br />

digna de elogio é a que resulta da mixtura e temperamento<br />

das outras três : Itaque quartum quoddam genus re<strong>ï</strong>publicœ<br />

maxime probandum esse censeo, quod est ex his quœ prima<br />

dixi moderatum et permixtum tribus... Esta fôrma tem a<br />

grande vantagem de ser estável... porque não ha causa para<br />

revolução, aonde cada qual está seguro no seu posto, sem que,<br />

por assim dizer, possa ser derribado ou decahido d'elle : Non<br />

est emim cansa conveysionis, ubi in suo quisque est gradu<br />

firiniter collocatas, et non subest quo prœcipitet ac decideb<br />

( 3 ).<br />

Eis aqui a famosa balança dos poderes, attribuida a Montesquieu,<br />

claramente ensidada por Cicero, aconselhando que<br />

o exercício da soberania se divida entre o príncipe, os notáveis<br />

e o povo.<br />

{ 1 ) V. Le gouvernement dans la démocratie, t. 1. p. 197.<br />

( 2 ) Política, L. 2. c, 6, 9.<br />

( 3 ) De Republica, L. 1.


104<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Da antigüidade passou a doutrina dos governos mixtos<br />

para a idade média.<br />

O principe dos escriptores políticos d'essa epocha, dissertando<br />

sobre as três fôrmas aristotelicas, diz que < acerca de<br />

uma boa organisação do poder em uma cidade ou em uma<br />

nação, a duas cousas se deve attender, sendo a primeira que<br />

todos os cidadãos participem da soberania ; porque d'esse modo<br />

o povo se conserva em paz, ama e respeita a organisação que<br />

todos estabelecerão... Circa bonam ordinationem principum<br />

in aliqiia civitate vel gente duo sunt attendenda ; quorum<br />

unum est tit omnes aliquant partem habeant in principatu ;<br />

per hoc enim conservatur pax populi ; et omnes talem ordinationem<br />

amant ei custodiunt... D'esse modo o poder<br />

pertence a todos, ou porque todos os cidadãos são elegiveis,<br />

ou porque todos são eleitores... Talis principatus ad omnes<br />

pertinet,tum quia ex omnibus elegi possunt, turn quia etiam<br />

ab omnibus eliguntur. Tal é, conclue S. Thomaz, o regimen<br />

de todo governo mixto. Talis vero est omnis politia bene<br />

commixta ( i ).<br />

Eis aqui em summa a theoria do regimen democrático dos<br />

modernos.<br />

Partindo do principio qne todos devem participar do<br />

exercício da soberania, maxima capital em democracia, Heeren<br />

admitte duas fôrmas fundamentaes de governo, republica e<br />

monarchia. « O que caractérisa os governos de fôrma republicana,<br />

diz o publicista allemão, é que elles emanão completamente<br />

da eleição ; o que distingue a fôrma monarchica é que só<br />

em parte ella deixa á sociedade o exercício da soberania constituinte<br />

( 2 ).<br />

A fôrma polyarchica que é aquella em que todos os cidadãos<br />

tem parte na soberania da nação, omnes aliquant partent<br />

habeant in principatu, é a mais consentanea á humanidade, e<br />

para ella tendem todos os povos modernos, ou pelo regimen<br />

monarchico constitucional, ou pelo regimen republicano.<br />

( 1 ) S. T. 1. 2. qusest. 105. a. 1.<br />

( 2 ) Cit. por l'aima, Corso t. 1. p. 211.


*3<br />

E CONSTITUCIONAL 105<br />

II<br />

Na vida dos Estados o principio federal offerece dous typos<br />

principaes; a federação propriamente dita e a confederação.<br />

Esses dous typos do federalismo forão bem accentuados pelos<br />

publicistas allemães por occasião do estabelecimento da confederação<br />

germânica. Chamarão staatenbund a confederação<br />

dos Estados, e bundssstaat o Estado federal.<br />

Esses dous typos de federação podem variar, conforme a<br />

maior ou menor amplitude da autonomia dos Estados unidos,<br />

traçada pelo pacto de união.<br />

Na confederação de Estados as partes unidas conservão<br />

quasi toda a sua autonomia interna e externa em relação com<br />

os Estados estrangeiros, salvo algumas attribuições da competência<br />

do Estado federal ; fazem a paz e a guerra e tratão<br />

perante o estrangeiro como Estados separados. Os Estados<br />

confederados são como- aluados permanentes, mas carecem de<br />

um poder executivo central, que execute as medidas geraes<br />

decretadas pelo corpo federal; são os Estados particulares que<br />

por suas autoridades locaes as executâo.<br />

Na federação ou Estado federal a autoridade é mais centralisada<br />

; as partes perdem sua personalidade perante os Estados<br />

estrangeiros ; não tem por tanto representação diplomática,<br />

não declarão guerra, nem fazem a paz; essas attribuições<br />

competem ao Estado collective. O poder federal, por seus<br />

agentes, executa as suas decisões nos Estados confederados.<br />

A confederação germânica, desde 1815 até 1867 era uma<br />

verdadeira confederação de Estados, na qual o poder federal<br />

era exercido por uma dieta composta dos representantes de<br />

todos os Estados confederados. Hoje, porém, a constituição<br />

federal de i867 creou um poder federal forte, a cuja competência<br />

suprema pertencem amplas e geraes attribuições. As relações<br />

exteriores são reguladas pelo artigo 11 da Constituição,<br />

que dispõe : « A presidência da confederação compete á coroa<br />

da Prussia, e n'essa qualidade tem o direito de representar a<br />

confederação nas relações internacionaes, de declarar guerra<br />

e de acceitar a paz em nome da confederação, de concluir tratados<br />

de alliança com os Estados estrangeiros e de receber<br />

ministres públicos >.<br />

14


io6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A constituição americana de 1787 fez dos Estados Unidos<br />

da America do Norte um verdadeiro Estado federal, unindo<br />

os Estados com vinculo mais apertado, do que a primeira vista<br />

parece, e esse vinculo de união tende a tornar-se mais estreito ;<br />

a federação caminha para a unidade, especialmente depois da<br />

guerra da secessão, e das mudanças politicas que se lhe<br />

seguirão durante o período chamado de reconstmcção ( 1S66<br />

a 1868 ) ( I ).<br />

Como quer que seja, os Estados da União, em virtude do<br />

pacto federal, não tem personalidade jurídica perante os paizes<br />

estrangeiros, aonde são representados pelo Estado federal, e<br />

mesmo quanto ao exercício dos poderes locaes, elles encontrão<br />

certas limitações na autoridade federal.<br />

Os Estados, diz um publicista americano, não tem nenhum<br />

dos caracteres que competem a uma nação. Nenhum d'elles<br />

é independente, capaz de formar uma sociedade política separada<br />

; nem lhes é inhérente o poder absoluto de legislar; as<br />

funcções dos seus legisladores são limitadas, não só pela constituição<br />

local, mas também pela da União... Carecem dos<br />

attributos da soberania, e longe de serem sociedades politicas<br />

separadas, estão em posição de permanente subordinação ( 2 ).<br />

A constituição federal da Suissa é um t)'po intermédio<br />

entre a germânica e a americana ; alguns publicistas chamão-na<br />

confederação mixta, porque, se por um lado parece ser um<br />

Estado federativo, por outro constitue uma confederação de<br />

Estados.<br />

O pacto federal suisso tem passado por muitas reformas ;<br />

a ultima de 29 de Maio de 1874 approximou muito a organisação<br />

federal da dos Estados Unidos da America do Norte. Mas<br />

não obstante, existem entre esses dous Estados federativos, ao<br />

lado dos pontos de semelhança, differenças bem pronunciadas.<br />

Assemelhão-se em três pontos capitães :<br />

( 1 ) Como symptoma curioso da actual tendência dos Estados Unidos para a<br />

centralisaeão, diz o Duc de Noailles, citão o uso novo de fazer do termo — Estados<br />

1'nidos — um substantivo do sifigular, dizendo — The UnitedStaies is—em vez de<br />

— The United States are —conforme o texto constitucional ea corroerão grammatical-<br />

0 artigo inglez sendo invariável, permitte essa liberdade de construceão intradusivel<br />

em nossa lingua. V. Cent ans de republique aux Etats-Unis, t. 1. p. 205.<br />

{ 2 ) Pomeroy. A introduction to the const, law, p. 31 § 43. Boston 1888.


H<br />

E CONSTITUCIONAL I07<br />

i.° Em ambos a creação do Estado federativo foi o resultado<br />

da vontade dos Estados e dos Cantões, e não da força.<br />

2." Tanto nos Estados Unidos, como na Suissa, proclamou-se<br />

como principio a independência local dos Estados e dos Cantões,<br />

não podendo ser restringida essa independência senão<br />

quanto baste para a existência da união. 3.° Na Suissa, como<br />

na America, ha duas câmaras, uma representando o povo, e<br />

outra os Cantões ou os Estados.<br />

As principaes differenças são :<br />

i.° A constituição americana, partindo da existência dos<br />

direitos inhérentes á qualidade de homem, e por conseguinte<br />

inalienáveis, apenas estabeleceu regras fundamentaes, procurando<br />

evitar muitas restricçòes á legislação ordinária, e assim<br />

estabeleceu um governo de poderes limitados, sendo as limitações<br />

mais em detriment-) do poder federal, do que do poder dos<br />

Estados. D'ahi a affirmaçào de Cooley, a saber « que uma<br />

constituição escripra é sempre uma limitação dos poderes do<br />

governo, confiados aos agentes nacionaes... e gradua os poderes<br />

dos governantes, mas não os dos governados » ( 1 ).<br />

Pelo contrario na constituição suissa as restricçòes são<br />

numerosas e cahem principalmente sobre os Cantões em virtude<br />

dos poderes directos e discricionários concedidos á confederação<br />

em materia de lsgislação. Em um pequeno paiz, de cerca<br />

de três milhões de habitantes, a confederação pôde facilmente<br />

f?zer sentir a sua influencia em todos os pontos; não é, porém,<br />

assim na vasta republica americana tendo uma população de<br />

cerca de sessenta milhões : aqui os governos locaes podem em<br />

geral tratar de seus negócios com maior intelligencia e zelo, do<br />

que o governo central distante.<br />

2. 0 O processo de reforma constitucional é différente nos<br />

dous paizes. Na Suissa quando uma parte da assembléa federal<br />

decreta a revisão da Constituição, e outra parte não consente,<br />

ou quando 50,000 cidadãos pedem a revisão, a questão é sujeita<br />

por sim ou não á votação do povo ; se a maioria se pronuncia<br />

affirmativamente, os dous conselhos se renovão para trabalhar<br />

na revisão, e esta vigora quando é acceita pela maioria dos<br />

( 1 ) Constitutional limitations, p, 36, Boston 1883.


Io8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cidadãos e pela maioria dos Estados, sendo a votação popular<br />

em cada Cantão considerada como voto do Estado ( i ).<br />

Nos Estados Unidos o processo é différente. A propria<br />

Constituição estabelece o modo de sua reforma no art. 5. 0<br />

Quundo dous terços dos membros das duas câmaras propõem<br />

emendas á Constituição, ou as assembléas dos dous terços dos<br />

Estados assim pedem, o Congresso convoca uma convenção<br />

para propor as emendas, e estas ficão incorporadas á Constituição,<br />

se forem ractificadas pelas assembléas dos três quartos dos<br />

Estados, ou pelos três quartos das convenções para esse fim<br />

reunidas em cada um dos mesmos Estados.<br />

3.° As duas câmaras suissas ( conselho nacional e conselho<br />

dos Estados ) gosão dos mesmos direitos ; o senado americano,<br />

porém, possue poderes importantes, que não competem a outra<br />

câmara, como, por exemplo, o de ractificar os tratados, e o de<br />

confirmar ou regeitar as nomeações feitas pelo Presidente. Os<br />

membros do senado americano são eleitos pelas assembléas de<br />

cada Estado por seis annos ; os do conselho dos Estados suissos<br />

algumas vezes são pela assembléa, outras directamente pelo<br />

povo por tempo indeterminado, que cada cantão tem o direito<br />

de fixar como quer.<br />

4. 0 Quanto ao poder executivo são profundas as differenças.<br />

Não pôde haver comparação entre o Presidente dos Estados<br />

Unidos e o da Suissa ; aquelle tem amplos poderes, este apenas<br />

desempenha certas formalidades no conselho federal, de que é<br />

membro. Todo o poder executivo é da competência d'esse<br />

conselho. Com este, pois, e não com o Presidente, para bem<br />

dizer, titular, é que se deve comparar o presidente dos Estados<br />

Unidos.<br />

O presidente dos Estados Unidos é eleito por eleitores<br />

esptciaes por quatro annos, e é reelsgivel ; o conselho federal<br />

suisso é eleito pelas câmaras por três annos, sendo os seus<br />

membros reelegiveis. Ali o presidente é representante de um<br />

dos partidos, e com a subida de um novo presidente operão-se<br />

grandes mudanças no pessoal da administração ; aqui o conselho<br />

federal não representa partido, e em regra os funecionarios<br />

conservão os seus lugares.<br />

( 1 ) V. us arts. 120 — 121 da Const, de 187'..


E CONSTITUCIONAL IO9<br />

O Presidente dos Estados Unidos tem direito de veto sobre<br />

todas as leis votadas pelo Congresso, e posto não possa adiar,<br />

prorogar, nem dissolver as câmaras, todavia gosa de grande<br />

poder pessoal, commandando a armada e o exercito, nomeando<br />

seus ministros, assignando tratados com as potências estrangeiras,<br />

agraciando os crimes contra as leis federaes, etc.<br />

O gabinete americano é um simples conselho administrativo da<br />

pura confiança do presidente, e não tem relações com o Congresso.<br />

O conselho federal, composto de sete membros, é eleito<br />

pelas duas câmaras por três annos ; os seus membros podem<br />

tomar assento nas câmaras para apresentar projectos, e discutil-os,<br />

mas não tem voto deliberativo.<br />

Em summa, o poder executivo suisso diífere dos outros<br />

poderes executivos, em que: i." é eleito pela assembléa legislativa,<br />

toma parte nos debates das duas câmaras, mas não pôde<br />

ser demittido por ellas durante o periodo triennal para que<br />

é eleito; 2. 0 Posto que eleito pela assembléa, não tem direito de<br />

dissolvel-a ; 3. ü Não é governo de partido, nem um verdadeiro<br />

poder executivo, e sim uma commissão destinada a dar expediente<br />

aos negócios.<br />

5." Quanto ao poder judiciário ha também notáveis diiferenças.<br />

Na Suissa, como nos Estados Unidos, ha um supremo<br />

tribunal de justiça, cujos membros aqui são nomeados pelo<br />

Presidente, com approvação do senado e são vitalícios; ali são<br />

eleitos pela assembléa federal e apenas por seis annos, podendo<br />

ser reeleitos.<br />

O juiz do supremo tribunal nos Estados Unidos tem direito<br />

de considerar nullas as leis quer do Congresso, quer das<br />

assembléas dos Estados, que contrariarem a Constituição, que<br />

é a supreme law of the land; pelo contrario o tribunal federal<br />

suisso não cura da inconstitucionalidade das leis; é obrigado a<br />

acceital-as e applical-as ; e a razão é porque as leis preparadas<br />

pelo conselho federal e votadas pela assembléa, são adopíadas<br />

pelo povo com ou sem referendum, e assim recebem a sancçào<br />

popular, que as torna constitucionaes e invioláveis ; portanto<br />

não resta ao tribunal senão o dever de obedecer á decisão do<br />

povo (. 1 ).<br />

( 1 ) V. La confédération suisse bar Adams, caps. í e 19, Gene\e 1SÍJ0.


HO NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

III<br />

Dísputão os publicistas a respeito do valor politico respectivo<br />

das fôrmas fedcraes e unitárias, e como de ordinário, as<br />

opiniões dividem-se.<br />

Pretendem uns que a fôrma federal é de todas a mais<br />

natural e consentanea com o gênio das sociedades modernas ;<br />

que o unitarismo, centralisando toda a vitalidade nacional em<br />

um ponto, paralysa e atrophia os membros do corpo social e<br />

mata a actividade local ; que o federalismo é a idéa dos tempos<br />

modernos e tomar-se-ha a fôrma universal das nações.<br />

Os unitaristas, pelo contrario, sustentào que a federação<br />

é incapaz de realisar as grandes obras nacionaes, que sô podem<br />

ser feitas pela concentração de todas as forças da nação ; que<br />

a unidade fazendo desapparecer as divisões federaes, e tornando<br />

uniformes os principaes actos da vida de um povo,<br />

desperta os sentimentos nacionaes em todos os indivíduos, que<br />

reconhecem como pátria o todo nacional, e não os pequenos<br />

Estados ou os limitados Canrões.<br />

Na realidade a divergência entre os unitaristas e os federalistas<br />

não é tão profunda como parece, e tiradas as exagerações<br />

de uns e de outros, bem pôde ser que em substancia estejão de<br />

accôrdo.<br />

O que os federalistas detestão é a centralisação desmedida,<br />

que abdorve todos os interesses particulares e indivíduaes,<br />

supprime a vida local e produz a omnipotcncia do Estado ; por<br />

outro lado, o que os unitaristas combatem é essa federação que<br />

retalha a pátria em pequenos Estados divididos e separados,<br />

sem laços communs de vida nacional, e que em vez da pátria<br />

grande e unida, produz as pequenas pátrias separadas e rivaes ;<br />

elles admirão essa federação typo da America do Norte, em<br />

que as vantagens do unitarismo se allião ás do federalismo;<br />

em que conjunctamente com a actividade e autonomia da vida<br />

local, subsiste a unidade da vida nacional.<br />

A nossa Constituição consagrando o regimen federativo<br />

inspirou-se nas idéas dos nossos /empos de liberdade. Não ha<br />

nada de mais contrario ás liberdades individuaes, do que os<br />

grandes impérios centralisados.<br />

Emilio de Laveleye, em sua recente obra — O governo na<br />

democracia — sustenta o federalismo, dando razões convin-


SC<br />

E CONSTITUCIONAL III<br />

centes, e robustecidas pela experiência e historia de alguns<br />

paizes.<br />

Do capitulo relativo ao ponto, resumo as seguintes razões :<br />

I.* Não se deve temer um despotismo durável em um<br />

Estado federativo. O chefe do Estado não dispõe de meios<br />

para os golpes de Estado, porque cada um dos Estados federados<br />

torna-se centro de resistência ; senhor da capital, o<br />

usurpador não poderá tornar-se senhor do paiz. Nos Estados<br />

Unidos e na Suissa ninguém pôde imaginar como o presidente<br />

se constituiria pela força um poder absoluto. Em um Estado<br />

centralisado, ainda que seja republica, o triumpho do absolutisme»<br />

é fácil. Bastou uma sedição victoriosa em Paris, para<br />

derribar Carlos X e Luiz Filippe.<br />

2.i> O regimen federativo simplifica as funeções do poder<br />

central, reduzindo-as aos poucos negócios de ordem geral.<br />

3." N'esse regimen os fermentos revolucionários são pouco<br />

de receiar, porque a situação política e os sentimentos populares<br />

são différentes nos Estados unidos.<br />

4. a Também esse regimen mata o espirito de aggressão e de<br />

conquista, porque os Estados federados tem inclinações e interesses<br />

différentes : a annexação querida por um, não converia<br />

a outros.<br />

5.* A federação resolve o problema que os antigos reputavão<br />

insoluvsl — constituir um grande Estado com fôrma republicana.<br />

6. - ' A federação facilita as guerras defensivas, porque cada<br />

Estado se torna um ponto de resistência, ao passo que no<br />

Estado unitário e centralisado, tomada a capital, a resistência<br />

está acabada.<br />

7." Finalmente o federalismo é o systema que mais favorece<br />

o desenvolvimento de um paiz novo, porque permitte aos<br />

Estados federados adaptarem as leis e as instituições ás circumstancias<br />

locaes. A uniformidade de regimen difficulta o progresso,<br />

a diversidade favorece-o ( 1 ).<br />

O fim principal do federalismo é conciliar o poder e a<br />

unidade nacional com a existência de Estados dotados de poderes<br />

particulares; para esse effeito o methodo adoptado é a<br />

(4 ) V. obra citaria, t. 1. c, ".


112 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

formação de uma constituição, na qual os poderes ordinários<br />

da soberania nacional sejão convenientemente divididos entre<br />

o governo commum e o governo dos Estados. As constituições<br />

federaes podem variar cm detalhes, mas essa é a idéa fundamental<br />

do federalismo.<br />

Da constituição deriva a existência dos Estados federados,<br />

do mesmo modo que a existência de uma sociedade anonyma,<br />

ou outra, deriva da lei que a crcou. D'ahi resulta que os<br />

poderes legislativo, executivo ou judicial, quer pertenção á<br />

nação, quer aos Estados particulares, são subordinados á Constituição.<br />

A supremacia da Constituição é doutrina familiar aos americanos<br />

; todos a reconhecem como — the supreme law of the<br />

land.<br />

O principio básico do federalismo, a saber, que a Constituirão<br />

é a lei suprema do paiz, é garantido pelo supremo tribunal,<br />

que é o interprete final da constituição, e pode declarar<br />

nullas as leis contrarias á mesma Constituição. « Todos os<br />

actos do congresso federal, assim como os dos Estados, diz<br />

Kent, que estão em opposição com a Constituição dos Estados<br />

Unidos, são necessariamente nullos. Isto é um principio certo<br />

e claro de nossa jurisprudência constitucional. »<br />

Segundo Dicey o que distingue o unitarismo do federalismo,<br />

é que no unitarismo o poder supremo de legislar compete<br />

a um poder central, o qual na unitária Inglaterra é o parlamento<br />

; pelo contrario no federalismo americano os poderes<br />

legislativo, executivo e judiciário são limitados, e distribuídos<br />

por corpos políticos independentes e coordenados (, I ).<br />

( 1 ) Introduction to the study of the láw of the constitution, cap. 3. London<br />

1839, Ahi o autor compara a sobernaia parlamentar da Inglaterra com o federalismo<br />

em geral e especialmente com o Jos Estados L'nidos.


5-f<br />

CAPITULO Xi<strong>ï</strong><br />

GOVERNO ANTIGO E MODERNO. GOVERNO DIRECTO K REPRE­<br />

SENTATIVO. AS REPUBLICAS ANTIGAS<br />

I<br />

As differenças de fôrmas de governo procedem todas do<br />

maior ou menor gráo de participação do povo no exercício da<br />

soberania e na gestão dos negócios públicos. Ora, essa maior<br />

ou menor participação dos cidadãos na vida do Estado está<br />

sujeita ao gráo de civilísação da sociedade e á diffusâo de<br />

educação política das classes sociaes. D'ahi proven: as differenças<br />

que a historia nos mostra entre os governos antigos e<br />

os modernos.<br />

Os povos, como os indivíduos, tem os seus estados de<br />

infância, de virilidade e de decrepitude, e a esses estados naturalmente<br />

correspondem organisações políticas diííerentes.<br />

Na infância das nações predomina o poder do un us ; no<br />

período da virilidade, o dos panei, e a medida que a civilísação<br />

cresce e a massa social alcança certo gráo de cultura, começa a<br />

predominar o poder dos filurimi, ou a ponderada mixtura<br />

d'aquelles três elementos.<br />

Nas republicas da antigüidade o poder pertencia a poucos,<br />

o maior numero dos cidadãos não participava dos negócios<br />

públicos.<br />

Na Grécia nunca houve o que hoje chamamos democracia,<br />

< Em Athenas, diz Passy, republica considerada pelos antigos<br />

como democrática por excellencia, a população livre, participante<br />

da administração dos negócios, nunca excedeu a um<br />

quinto da totalidade dos habitantes do território nacional > (i).<br />

[ I ) Des tonnes de gouvernement, p. 127.<br />

15


114<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

Em todos os Estados antigos o systema de governo consistia,<br />

na predominância de um pequeno numero de cidadãos<br />

na gestão dos negócios públicos e na exclusão do maior<br />

numero. D'ahi as incessantes lutas entre o grande e o pequeno<br />

numero, lutas violentas, no rim das quaes os vencedores tratavão<br />

os vencidos com implacável dureza.<br />

Na idade média as republicas unitárias italianas succumbirào<br />

ás lutas intestinas, suscitadas entre os nobres, que pretendião<br />

exclusivamente governar, e o povo, que aspirava participar<br />

do exercicio dos poderes públicos.<br />

Não íoi diversa a sorte das duas republicas federaes da<br />

Europa d'aquelles tempos : a Hollanda e a Suissa.<br />

Nas províncias confederadas da União de Utrecht reinava<br />

a desigualdade dos direitos políticos e civis ; a nobreza vivia<br />

habitualmente em luta com o povo.<br />

O governo pertencia a um pequeno numero de famílias,<br />

que constituião uma aristocracia, envestida de todas as vantagens<br />

provenientes da administração dos negócios públicos;<br />

a massa dos cidadãos mal supportava a sujeição, e preparava-se<br />

para as guerras, que por fim derão cabo das Províncias-Unidas,<br />

as quaes se transformarão definitamente em monarchia.<br />

Mais feliz, a Suissa conservou a sua fôrma de governo;<br />

mas somente devido ao triumpho do principio democrático, que<br />

na pratica nivelou os Cantões aristocráticos com os Cantões<br />

populares.<br />

Anteriormente os habitantes de muitos Cantões vivião na<br />

maior sujeição e impacíentemente supportava o a dominação<br />

que os humilhava. Nos Cantões aristocráticos,jdiz Passy, e erão<br />

elles os mais importantes, a população dos campos e a maior<br />

parte das cidades espreitavão occasião de acabar com um<br />

regimen que lhes tirava toda participação no governo do Estado.<br />

Em Berne, aonde a soberania se concentrara em proveito de<br />

algumas famílias, assim como em Lucerna, Basiléa e Zuric<br />

notavão-se grandes irritações nas massas, que se vião privadas<br />

do direito de intervir nos negócios públicos ( i ),<br />

Na Inglaterra, cujo systema constitucional, na phrase de<br />

Montesquieu, fora achado nos bosques, aonde habitavão os<br />

( 1 ) Loc. cit. p. 352.


çr<br />

E CONSTITUCIONAL 115<br />

germanos, reputados pães do constitucionalismo, as lutas pela<br />

democracia são conhecidas.<br />

Por muito tempo dominou no governo do Estado a câmara<br />

dos lords, a plutocracia, que segundo Cicero ( 1 ) é a peior das<br />

fôrmas de governo, e os burgos dos opulentos lords decidião da<br />

sorte da representação no parlamento. Depois de longos annos<br />

de lutas pela democracia, operou-se a reforma eleitoral de i832,<br />

que, alargando o eleitorado, chamou um grande numero de<br />

cidadãos á participação do governo, e leis ulteriores tem successivamente<br />

ampliado o suffragio.<br />

Devido aos triumphos da idéa democrática, a monarchia<br />

ingleza é en- substancia uma republica com um presidente<br />

hereditário. Hoje a autoridade da coroa é quasi nulla, e a da<br />

câmara dos lords insignificante; o poder pertence á câmara dos<br />

communs, representantes das classes populares; a democracia<br />

augmenta na mesma proporção em que decresce a influencia<br />

da aristocracia no corpo eleitoral.<br />

Em conclusão, o que distingue os governos antigos dos<br />

modernos é que n'aquelles predominava o poder dos pauefa<br />

n'estes impera* a autoridade dos plurimi.<br />

II<br />

Rousseau negava a legitimidade da representação politica<br />

com o seguinte especioso raciocínio :<br />

« A soberania não pôde ser representada, pela mesma razão<br />

porque não pôde ser alienada ; consiste na vontade geral, e a<br />

vontade não se representa : ou é a mesma, ou é outra, não ha<br />

meio. Os deputados do povo não podem ser seus representantes,<br />

apenas são seus commissarios. Toda lei que o povo<br />

não ractifica em pessoa, é nulla. O povo inglez pensa ser livre,<br />

mas engana-se muito ; só o é durante as eleições dos membros<br />

do parlamento, apenas eleitos estes, elle é escravo » ( 2 ).<br />

Quando os cidadãos elegem seus representantes não delegão<br />

a sua vontade, delegão o poder de promover seus interesses,<br />

de procurar satisfação ás suas legitimas necessidades, o<br />

( 1 ) Nee ulla doformior species eat civitatis quain ilia, in qua opuknlissimi<br />

optimi putanlur. Rep. L. 1. c. 34.<br />

( 2 ) Cont. sue. L. 3. c. 15.


II6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

que é muito différente de representar a vontade : o que o povo<br />

não pôde fazer por si mesmo, quer que os seus representantes<br />

facão por elle.<br />

O governo directo do povo nas praças publicas, se era<br />

possivel nos pequenos Estados da antigüidade, como nas republicas<br />

gregas, nos grandes Estados é materialmente impossível.<br />

Como reunir o povo brazileiro, e fazer que elle discuta scientemente<br />

os altos negócios de um Estado tão vasto ?<br />

A massa popular em parte alguma é idônea para governar<br />

directamente, nem mesmo o é para escolher os seus representantes.<br />

Por isso todos os povos modernos tem admittido, não<br />

só o principio de representação, mas também o da qualificação<br />

dos eleitores, attribuindo só a certas classes da communhão<br />

social o direito de escolher representantes.<br />

Essa limitação ao direito de escolha é perfeitamente justificada<br />

pela sabedoria política; o suffragio universal, no rigoroso<br />

sentido da palavra, não existe em parte alguma, nem nunca<br />

existio. A restricção ao direito de voto, diz Brougham, tem<br />

duas grandes vantagens : garantir melhor escolha de representantes<br />

e impedir a corrupção. Nem a intelligencia, nem a<br />

virtude do povo em massa pôde inspirar confiança ( i ).<br />

A representação política é um invento dos nossos tempos ;<br />

os antigos, se aqui e ali a simulavão, nunca mostrarão comprehender<br />

o grande principio representativo.<br />

O governo directo existia na Grécia, como em Roma.<br />

Nem os gregos, nem os romanos praticarão o systema representativo.<br />

Devido ao pequeno numero dos cidadãos e a pouca extensão<br />

do Estado, diz S. Girons, os gregos não precisarão da<br />

representação, que repugnaria aos seus costumes politicos.<br />

Esse systema, que consiste em extrahir do paiz uma aristocracia<br />

natural, envestida do direito de dirigir a nação, lhes teria parecido<br />

um instrumento de servidão, e os teria privado da participação<br />

que elles tinh.ão no governo... O systema representativo<br />

repugnava também ás ideas e aos costumes dos ramanos. Os<br />

hábitos do governo directo, os usos de uma republica municipal,<br />

os distanciava invencivelmente das idéas políticas contem-<br />

( 1 ) Filosofia política, íradotta da Busaca, P. 3, p. 102.


$5<br />

E CONSTITUCIONAL 117<br />

poraneas : convinha uma nação para applicar o systema representativo,<br />

e Roma, depois de ter conquistado o mundo, continuous<br />

ser uma cidade ( 1 ).<br />

Em alguns Estados antigos o povo escolhia quem os governava,<br />

fazia a lei, e administrava a justiça ; mas esses delegados<br />

erão antes commissarios, do que representantes ; erão espécies<br />

de embaixadores enviados para tratar com outros acerca dos<br />

interesses de seus committentes ; differião muito do que hoje<br />

chamamos representantes.<br />

A essência da representação consiste em que o povo se<br />

priva do exercício do próprio poder, e o communica, por tempo<br />

limitado, ao deputado que elle elege, e assim o deputado representa<br />

no governo a parte que, sem aquella communicação seria<br />

representada pelo próprio povo.<br />

Na representação ha, pois : i.° Renuncia do exercício do<br />

poder e transferencia para outro; de modo que os eleitores<br />

podem communicar suas opiniões e desejos ao eleito, podem<br />

advertil-o e até ameaçal-o de não reelegel-o ; mas é o eleito<br />

quem obra, e não os eleitores ; obra em vez d'elles, mas não são<br />

elles que obrào direciameute por si. 2. 0 Transferencia do<br />

exercício do poder por tempo limitado; pois se a delegação<br />

fosse perpetua, ou se o eleito podesse transferir a outro o poder<br />

que lhe é delegado, o corpo dos representantes tornar-se-hia<br />

uma olygarchia, electiva, é verdade, mas em todo caso olygar.<br />

chia, e não um corpo de representantes ( 2 ).<br />

III<br />

Do que fica dito logo se vê que nos tempos antigos não<br />

existirão republicas representativas, propriamente ditas.<br />

Se em algumas havia eleições, se o povo tinha parte no<br />

governo, se os agentes d'estes erão temporários, por toda parte<br />

se estendia o governo directo do povo sobre o povo. Verdadeira<br />

representação, distincção de poderes, como hoje temos,<br />

em parte alguma existia. Entre as antigas republicas três são<br />

famosas; Athenas, Esparta e Roma, e nenhuma d'ellas merece<br />

ser comparada com as modernas republicas.<br />

[ 1 ] Essai sur la separation dis pouvoirs, Introd. p. 12 — 2'i.<br />

( 2 ) V. Brougham, loc. cit. fort. 3. c, G.


Il8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Governada a principio por um só cabeça, Athenas chegou<br />

a ter uma constituição mais ou menos democrática. A assembléa<br />

do povo exercia o poder legislativo, nomeava e demittia os<br />

magistrados, proferia decisões judiciarias, governava em uma<br />

palavra ; pelo que os oradores diziào com razão que o povo<br />

era o soberano.<br />

A soberania do povo encontrava limites no Areopago><br />

espécie de senado conservador, composto dos archontes. Ao<br />

lado da assembléa do povo havia um conselho legislativo)<br />

creado por Solon, chamado o senado dos quinhentos, os quaes,<br />

devendo ter de idade pelos menos trinta annos, erão eleitos por<br />

um anno dentre as classes mais respeitadas, e depois passarão<br />

a ser sorteados.<br />

O senado preparava as deliberações da assembléa do povo<br />

e era um verdadeiro poder administrativo, fiscalisava os magistrados<br />

e tinha também attribuições judiciarias. O senado e o<br />

Areopago representavão verdadeiros poderes moderadores, e<br />

segundo Plutarco, erão como duas âncoras que não deixavão o<br />

navio do Estado a mercê dos ventos e das ondas. Apezar de<br />

tudo a assembléa do povo era omnipotente, nem reconhecia<br />

direito capaz de obstar ás suas decisões. Todas as phantasias<br />

populares erào convertidas em leis, e executadas. « O despotismo<br />

mais absoluto, diz Girons, exercitado por todos os cidadãos,<br />

tal era o regimen politico de Athenas. »<br />

Esparta não experimentou os effeitos da demogagia atheniense,<br />

porque fundou um governo aristocrático, exercido pelos<br />

principaes espartanos, que trocavão a calma e a tranqüilidade<br />

pela servidão.<br />

O povo não tinha parte importante no poder <strong>publico</strong>, que<br />

pertencia aos dous reis, ao senado vitalício de vinte e oito<br />

membros e aos cinco ephoros. Estes representavão uma conquista<br />

da parte democrática da aristocrática Esparta, e tendo<br />

sido a principio nomeados annualmçnte, sendo irresponsáveis e<br />

destinados a fiscalisât os reis e o senado, depressa tornárão-se<br />

senhores.<br />

O governo de Esparta era « uma olygarchia despotica e<br />

electiva. » O poder soberano, escreve-Passy, residia todo em<br />

uma raça privilegiada, que tinha na sua dependência duas<br />

classes distinctas de população : a dos laconics, vassala e tributaria,<br />

três ou quatro vezes mais numerosa que os seus senhores j


60<br />

E CONSTITUCIONAL 119<br />

e a dos ilotas, ainda mais numerosa, reduzida á servidão da<br />

gleba e vassala ou escrava do Estado ( I ).<br />

Finalmente os romanos, que a principio tiverão uma realeza<br />

electiva, estabelecerão depois uma republica aristocrática temperada<br />

pela democracia.<br />

Os magistrados, envestidos pelo poder popular, tinhão<br />

grande força, podião oppôr o seu veto aos actos dos outros<br />

iunccionarios, mas erão por sua vez limitados em suas funcções<br />

por out"as autoridades. Os comícios nada podião sem o senado,<br />

e este também não podia praticar actos de maior importância<br />

sem intervenção dos comicios ; a estas duas autoridades pertencia<br />

o poder legislativo.<br />

A lei era proposta pelo magistrado, deliberada pelo senado<br />

e votada pelos comicios. O poder executivo pertencia aos<br />

mencionados iunccionarios e mais aos edis e aos questores_<br />

Os romanos « mostrarão verdadeiro gênio para conservar a<br />

constituição republicana e assegurar a prosperidade do Estado :<br />

as garantias contra os abusos dos poderes erão numerosos e<br />

variados. »<br />

O império, que succedeu a republica, inaugurou o despotismo<br />

legal, e fez da vontade do príncipe o summo poder legislativo.<br />

Quod principi placuii legis habet vigorem.<br />

Eis em summa o que forão as republicas antigas : em todas<br />

prevaleceu o governo directo, o principio representativo não<br />

apparece em nenhuma. Nada se vê na antigüidade que se possa<br />

comparar com as nossas republicas representativas.<br />

O respeito ás liberdades individuaes, desapparece diante<br />

do poder do Estado, que é o grande tyranno de todos os governos<br />

antigos ; a esse Deus erão sacrificadas todas as liberdades<br />

individuaes na antigüidade, qualquer que fosse a fôrma de<br />

governo.<br />

O governo, diz Fustel de Coulanges, mudou muitas vezes<br />

de fôrma, mas a noção de Estado ficou quasi a mesma e sua<br />

omnipotencia não diminuio... Ter direitos políticos, votar,<br />

nomear magistrados, poder ser archonte, era o que se chamava<br />

liberdade, mas o homem nem por isso deixava de ser escravisado<br />

do Estado ( 2 ).<br />

( 1 ) Loc. cit. p. 128.<br />

( 2 ) La cité antique. L. 3. c. 17. p, 367'


I20 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Hoje o conceito que formamos do Estado é muito différente<br />

do que formavão os gregos e os romanos.<br />

O Estado não é o senhor dos cidadãos, mas o protector<br />

dos interesses moraes e materiaes de todos : a sua existência<br />

longe de ser um perigo, é uma garantia das liberdades<br />

Todos podem ter parte no governo. A aristocracia e a<br />

democracia se consorcião, mediante o direito de representação.<br />

Não é da aristocracia da nobreza, e ainda menos da do<br />

dinheiro, que, como já vimos, é no dizer de Cicero a peior das<br />

fôrmas de governo, que aqui falíamos. A píutocracia não<br />

é compatível com as liberdades dos cidadãos.<br />

A aristocracia propria das sociedades modernas, natural e<br />

compatível com a igualdade «é aquella que é fundada no talento<br />

e na virtude. » O systema representativo é o meio de extrahir<br />

do paiz essa aristocracia.<br />

O povo não podendo directamente tomar parte no<br />

governo, sendo impossivel que elle vote directamente as leis,<br />

escolhe os indivíduos que reputa mais capazes por seus talentos<br />

e por suas virtudes, e assim apparece aquella aristocracia<br />

natural que em toda parte governa as sociedades. N'este sentido<br />

toda sociedade é essencialmente aristocrática, isto é, dirigida<br />

por um pequeno numero de homens reputados capazes.<br />

Em toda sociedade ha desigualdades naturaes entre os<br />

homens ; uns são mais capazes, do que outros, e esses formão o<br />

elemento aristocrático que necessariamente se encontra no seio<br />

da sociedade.<br />

O elemento democrático, a massa dos cidadãos, mediante<br />

a eleição, participa do governo dando-o aos mais capazes;<br />

e d'esse modo a aristocracia e a democracia se consorcião no<br />

governo das sociedades modernas, mediante a pratica do<br />

grande principio da representação. A democracia representativa,<br />

diz Bluntschli, não e somente uma democracia temperada,<br />

é também uma democracia ennobrecida, porque apropria-se de<br />

certos elementos da fôrma aristocrática ( i ).<br />

{ 1 ) Thiorie de l'Etat, L. (i. c. 23.


Si<br />

SEGUNDA PARTE<br />

ORGANISAÇÃO DOS PÜDERES PÚBLICOS<br />

«o»—<br />

CAPITULO Î<br />

ORGANISAÇÃO FEDERAL. DIREITOS DOS ESTADOS E DA UNIÃO<br />

I<br />

A organisação politica, adoptada pela Constituição de 24<br />

de Fevereiro de 1891, é fundada no principio federal.<br />

As antigas províncias transmudadas em Estados, a certos<br />

respeitos autônomos e independentes, e unidos perpetua e<br />

indissoluvelmente, constituindo um Estado federal, eis em<br />

summa em que consiste a nossa organisação federal.<br />

A natureza d'essa união se acha declarada no art. i.° da<br />

Constituição ; é uma união perpetua e indissolúvel. Não é<br />

portanto um pacto, um tratado ou uma alliança formada entre<br />

as antigas províncias, podendo uma d'ellas separar-se do todo<br />

quando lhe aprouver.<br />

Desde que o povo brazileiro, mediante seus representantes,<br />

reunidos em congresso constituinte, como diz o Preâmbulo da<br />

Constituição, estabeleceu, decretou e promulgou a mesma<br />

Constituição, não é licito a uma parte d'esse povo renunciar os<br />

direitos e as obrigações que lhe competem em virtude do acto<br />

solemne da união constitucional, para viver fora d'essa união.<br />

Somente o mesmo povo, no qual originariamente reside a<br />

soberania nacional, e portanto o jus constituendi, pôde desfazer<br />

essa união, porque estabelecendo o actual pacto federal,<br />

elle não abdicou o direito de constituir-se de outra sorte,<br />

quando assim lhe aprouver. A Constituição formou-se pela<br />

vontade do povo politico brazileiro, logo só elle, e não uma de<br />

suas partes, pôde alteral-a ou mudal-a ( 1 ).<br />

( 1 ) A jurisprudência romana diz : Nihiliatn natural? est qmm co modo quüquhl<br />

dissolvi quo colligatum est. L. 35. I). de reg. jur.<br />

l6


122 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Mas qual é o povo do qual emana a soberania nacional ?<br />

E' o povo federal ou o povo dos Estados ?<br />

E' difficil saber qual é o povo federal, que parece não ser<br />

senão uma ficção política. Na realidade não existe senão o<br />

povo dos Estados. Mas o povo de cada um dos Estados,<br />

o povo pernambucano, por exemplo, só é soberano nos limites<br />

do seu Estado, e na fôrma prescripta pela Constituição, a sua<br />

soberania não pôde ir além d'esses limites ; n'elle não reside,<br />

pois, a soberania nacional. Esta só pôde estar na maioria do<br />

povo dos Estados formando um só todo, o povo nacional ou<br />

federal ; a este somente compete constituir a nação, reformar a<br />

Constituição e mudar a fôrma de governo.<br />

Como conseqüência da organisação federal resultão duas<br />

soberanias ; a soberania nacional, que delega limitadamente os<br />

poderes soberanos á União, e a soberania dos Estados, a qual,<br />

a certos respeitos, é inferior e subordinada á primeira.<br />

Resultão também duas espécies de cidadãos ; o cidadão da<br />

União e o de cada Estado ; ou, para melhor dizer, o cidadão é<br />

a um tempo cidadão federal e cidadão estadano. Em nosso<br />

Estado o cidadão pernambucano é também cidadão brazileiro.<br />

e é a um tempo sujeito a dous governos, ao governo nacional,<br />

e ao governo do Estado a que pertence ; deve obediência e<br />

lealdade ao governo geral e ao governo local.<br />

O systema de governo federal é portanto dualista : duas<br />

sortes de soberanias coordenadas e gyrando em suas espheras<br />

proprias; duas espécies de subditos obedecendo a dous governos.<br />

O Estado brazileiro, pois, consta hoje de uma união de<br />

Estados, mas união federal, isto é, em que cada una dos elementos<br />

unidos conserva uma certa autonomia, e não união<br />

mixta ou fusão, em a qual o ser politico de cada uma das<br />

partes desapparece, para dar lugar a uma só entidade. Dizemos<br />

certa autonomia, porque é impossível verdadeira federação<br />

com os Estados completamente autônomos e independentes.<br />

A natureza da organisação federal pede que os Estados<br />

cedão alguma cousa de sua autoridade autônoma em favor da<br />

União ; é preciso, v. g. que o poder diplomático pertença exclusivamente<br />

ao executivo federal, de modo que nenhum dos<br />

Estados possa fazer um tratado, ou contrahir uma alliança com<br />

um paiz estrangeiro.<br />

Desde os primeiros tempos da independência constitucional


E CONSTITUCIONAL<br />

dos Estados Unidos do Norte existe ali uma eschola politica,<br />

de que Jefferson foi fundador, a qual exagera a autonomia dos<br />

Estados a custa da unidade da soberania nacional. Essa eschola,<br />

que no período da guerra da secessão revigorou-se, é conhecida<br />

pelo nome de « States Rights School. » A eschola dos direitos<br />

dos Estados pretende que a constituição federal é um simples<br />

tratado de alliança entre Estados soberanos, e que portanto<br />

quando um dos Estados alliados se sente prejudicado, pôde<br />

romper o vinculo de união e retirar-se.<br />

Essa eschola não reconhece a existência do povo federal<br />

ou nacional ; para ella só existe o povo dos Estados e só n'elle<br />

reside a soberania.<br />

No tempo da adopção da Constituição americana, Patrick<br />

Henry foi campião famoso d'essa eschola. « Como assim,<br />

dizia elle, impugnando a Constituição. Com que direito os<br />

redactores da Constituição dizem em seu preâmbulo — Nós, o<br />

povo dos Estados Unidos ? — Quando devião dizer — Nós, os<br />

listados ? Porquanto os Estados são a alma da confederação.<br />

Não ha povo americano, mas trese Estados soberanos. F aliando<br />

em nome d'esse povo usurpaes a soberania dos Estados ( i ).<br />

Sem embargo da dualidade de governo, e do cidadão ser a<br />

um tempo membro de duas sociedades políticas distinctas, todo<br />

cidadão de um Estado é cidadão brazileiro, e todo cidadão<br />

brazileiro é cidadão de qualquer Estado, aonde vá residir, e ahi,<br />

salvo pequenas restricções de tempo, impostas pelos regulamentos<br />

locaes, gosa de todos os direitos civis e politicos.<br />

O direito de cidade, as qualidades do cidadão brazileiro<br />

são conferidas pela Constituição federal, que garante e protege<br />

a todos os nacionaes nascidos, naturalisados ou residentes em<br />

qualquer Estado.<br />

O mesmo systema é adoptado nos Estados Unidos, cuja<br />

Constituição (Emenda XIV) dispõe : .,


124 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A constituição federal diz que « todo cidadão de um cantão<br />

é cidadão suisso » Art. 43. Mas não se pôde dizer que todo<br />

cidadão suisso é cidadão do cantão em que fixar o seu domicilio<br />

; porque, em virtude da instituto do indigenato suisso,<br />

o cidadão é primeiramente burguez ou indígena de uma communa<br />

e cidadão do cantão, em que se acha a sua communa<br />

Esse direito de burguezia passa de pai a filho, e se conserva,<br />

ainda que o indigena vá residir em outra parte, pôde em todo<br />

tempo, se cahe cm indigencia, voltar e reclamar soccorro de<br />

sua communa.<br />

Nos Estados Unidos do Norte, como no Brazil, o direito de<br />

cidade vem de cima para baixo, do todo para as partes ; na<br />

Suissa vai debaixo para cima, das partes para o todo, pela<br />

posse da burguezia, base do indigenato suisso. Este instituto,<br />

diz Marsauche, é o que mais contribue para dar particular<br />

physionomia á Suissa, e imprimir aos costumes e á vida social<br />

da nação caracteres particulares ( I ).<br />

II<br />

O art. i.° da Constituição diz que « a Nação brazileira<br />

adopta como fôrma de governo, sob o regimen representativo,<br />

a republica federativa proclamada a 15 de Novembro de 1889 ».<br />

Já sabemos o que é uma nação, o que é fôrma de governo,<br />

em que consiste a representação política e finalmente o que é<br />

uma republica federativa e em que se distingue da republica<br />

unitária. Todas essas noções ficarão estabelecidas na Primeira<br />

Parte d'esté livro. Agora só resta ver de que modo a nação<br />

adoptou a actual fôrma de governo.<br />

Toda nação tem incontestável direito á sua autonomia,<br />

isto é, a existir em seu território e a constituir-se como lhe<br />

apraz. Essa autonomia é a fonte perenne de suas instituiçõeSj<br />

e do poder <strong>publico</strong> que lhes serve de fundamento. Em virtude<br />

d'esse direito natural e imprescriptivel das nações, ellas podem<br />

mudar as suas instituições, e estabelecer outras, que mais se<br />

harmonisem com as suas aspirações e os progressos da civilisaçào.<br />

( I ) La Confédération helvétique, p. [ÍO e seguintes. Paris, 1S9I.


&y<br />

E CONSTITUCIONAL U$<br />

D'esse direito usou a Nação brazileira mudando em 15 de<br />

Novembro de 1889 de forma de governo, trocando a monarchia<br />

constitucional pela republica federativa.<br />

Mas como manifestou a Nação a sua vontade na adopção<br />

d'essa nova fôrma de governo ?<br />

Não temos que investigar aqui a legitimidade do facto, do<br />

qual se originou aquella mudança. O que nos cumpre saber<br />

é se aposteriori a Nação legitimou-a, ractificando-a. Sobre<br />

isso não pôde haver duvida.<br />

Podem as nações manifestar o seu consenso a respeito de<br />

um grande acontecimenro social, de dous modos : tácita e<br />

expressamente. Manifesta o seu consenso de modo tácito, se<br />

podendo pronunciar-se em sentido contrario, por qualquer<br />

modo, não o faz, e antes acceita o facto sem de modo algum<br />

agir contra elle. Manifesta-se expressamente, se por eleição<br />

deliberada, por actos positivos, declara querer o mesmo facto.<br />

Ora, de ambos esses modos a Nação brazileira adoptou a<br />

nova fôrma de seu governo, sahida dos acontecimentos de 15<br />

de Novembro ; nos primeiros dias calando-se, não reagindo de<br />

modo algum contra elles, e antes tacitamente acceitando-os ;<br />

e depois, quando directamente consultada, de modo expresso,<br />

mediante os seus representantes, manifestou a sua vontade<br />

soberana consagrando por solemne pacto a mudança, que se<br />

tinha operado. Esse pacto solemne é a Constituição de 24 de<br />

Fevereiro de I89I.<br />

III<br />

Antes de fallar dos direitos, que, pelo pacto da união,<br />

competem aos Estados e á Nação, incidentemente diremos<br />

algumas palavras sobre o conteúdo do art. 3.° que dispõe :<br />

« Fica pertencendo á União, no planalto central da Republica,<br />

uma zona de 14.400 kilometros quadrados, que será opportunamente<br />

demarcado, para n'ella estabelecer-se a futura capital<br />

federal ».<br />

Qual a intenção do legislador constituinte n'aquella disposição<br />

?<br />

Os redactores da constituição federal americana, segundo<br />

observa Story, não incluirão em seu projecto original disposição<br />

alguma a respeito da sede do governo federal ; mas a commissão<br />

de redacção occupou-se do ponto, e sem contestação


I2Ó NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

estabeleceu-se no art. i. a secç. 8. a § 17 que o Congresso poderia<br />

« l.° exercer exclusivamente o poder legislativo, em qualquer<br />

circumstancia, em um districto, de extensão não inferior de dez<br />

milhas quadradas, o qual districto, por cessão de algum Estado,<br />

acceita pelo Congresso, poderia tornar-se a sede do governo<br />

dos Estados Unidos... »<br />

Em virtude d'essa disposição constitucional Washington<br />

escolheu aquelle local á margem do Potomac, sendo o terreno<br />

cedido pelos Estados de Maryland e de Virginia, e ahi se<br />

estabeleceu o districto de Columbia. Em 1846 se restituio ao<br />

Estado de Virginia o território que elle cedera, ficando o<br />

cedido por Maryland, no qual se acha a cidade de Washington<br />

( 1 ). Eis aqui a fonte do nosso art. 3."<br />

Os publicistas americanos justificão com muitas razões a<br />

necessidade de um território neutro para a sede do governo.<br />

As grandes capitães tornão-se centros de grande actividade,<br />

porque para ellas corre o que o paiz tem de mais notável<br />

em política, em scicncias, em lettras e industrias ; grandes<br />

populações accumulão-se ali, e portanto as paixões populares,<br />

as rivalidades políticas, os ódios e ciúmes facilmente se superexcitão,<br />

e podem determinar perturbações na marcha do governo,<br />

e até produzir revoluções, como se deu entre nós, e como<br />

se tem dado mais de uma vez em Paris.<br />

E' preciso, pois, que o governo se ache em um território<br />

neutro, longe do tumulto das paixões.<br />

Além d'isso, se a sede do governo geral estiver em um dos<br />

Estados, surgirão ciúmes e inveja nos outros. Fidalmente o<br />

governo geral, deve estar fora da influencia e da jurisdicção de<br />

todos os Estados.<br />

Quando em 1783 o Congresso americano se achava reunido<br />

em Philadelphia, foi perturbado por a^-otinadores, e vendo-se<br />

ameaçado em sua independência, recorreu ás autoridades do<br />

Estado, e como não encontrasse n'ellas franco apoio, foi obrigado<br />

a retirar-se para Princeton em New-Jersey ( 2 ).<br />

Esse facto inuuio muito no espirito dos americanos para<br />

formar o districto neutro de Columbia, cujos habitantes não<br />

( 1 ) V. Story, Commentaries. L. 3. cap. 23.<br />

( 2 ) V. Walker, Introduction to american law. Lecture 9. § 62.


**<br />

E CONSTITUCIONAL 127<br />

tem direitos políticos, não tem representantes, nem governo<br />

municipal próprio, e vivem sob a exclusiva jurisdicção do Congresso.<br />

As proprias capitães políticas dos Estados, em regra, são<br />

cidades pequenas. New-York não é capital do grande Estado<br />

d'esse nome, mas Albany ; Springfield, e não Chicago, é a<br />

capital do Estado de Illinois ; Sacramento, e não S. Francisco,<br />

é a capital do Estado de California; Columbus, e não Cincinnati,<br />

é a capital do Ohio ; Harrisburg, e não Philadelphia,<br />

é a capital da Pennsylvania.<br />

O que fica dito explica bastante a intenção do nosso<br />

legislador promettendo no art. 3.° uma futura capital política<br />

no planalto central da Republica.<br />

IV<br />

Nos termos do art. 2." da Constituição cada uma das antigas<br />

províncias passou a formar um Estado, e o antigo município<br />

neutro a constituir o actual districto federal, que continuará a<br />

ser capital da União, até que se execute o art. 3.° da mesma<br />

Constituição.<br />

Vejamos os direitos que forào concedidos a cada um dos<br />

novos Estados, comparados com os direitos da União.<br />

A organísaçâo federal não poderia operar-se sem que os<br />

Estados, entrando para a União, renunciassem parte de sua<br />

soberania ; aliás poderia haver uma confederação de Estados<br />

independentes e soberanos, mas não um Estado federal.<br />

Como factores de um governo nacional, os Estados tem a<br />

sua autonomia relativa e determinada pela Constituição : n'esses<br />

limites elles são soberanos e independentes.<br />

Segundo o systema federal, os direitos da soberania são<br />

distribuídos, pertencendo uns á União, e outros aos Estados.<br />

Em relação a certos objectes a União possue direitos amplos<br />

em todos os Estados unidos, emquanto estes, em seus respecti.<br />

vos limites, a respeito de outros objectos, são também soberanos.<br />

Portanto, ainda que ordinariamente se diga que os Estados<br />

federados são autônomos, soberanos e independentes, todavia<br />

essas expressões só podem ser tomadas em sentido restricto.


128 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Fallando da soberania dos Estados da grande União americana,<br />

Cooley, observa que, posto na Declaração da independência<br />

se diga que os Estados são soberanos e independentes,<br />

todavia, em relação aos altos poderes da soberania, sempre<br />

forão sujeitos ao controle de uma autoridade commum, e nunca<br />

separadamente forão reconhecidos como membros da família<br />

das nações ( I ).<br />

Os poderes outorgados pela Constituição ao governo<br />

nacional e ao dos Estados, e os que lhes são vedados, podem<br />

ser classificados assim :<br />

l.° Poderes exclusivamente outorgados á União.<br />

2." Poderes exclusivamente outorgados aos Estados.<br />

3.° Poderes cumulativamente outorgados á União e aos<br />

Estados.<br />

4." Poderes vedados á União e aos Estados.<br />

Comecemos pelos poderes concedidos aos Estados.<br />

Poderá os Estados :<br />

l.° Encorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se<br />

para se annexar a outro, ou formar novo Estado, mediante<br />

acquiescencia das respectivas assembléas legislativas em duas<br />

sessões annuaes successivas e approvaçào do Congresso nacional<br />

( Art. 4 ).<br />

2.0 Decretar impostos sobre exportação de mercadorias de<br />

sua propria producção ; sobre immoveis ruraes e urbanos ; sobre<br />

transmissão de propriedade; sobre industrias e profissões;<br />

decretar também taxa de sello sobre os actos emanados de<br />

seus governos e negócios de sua economia ; sobre o serviço de<br />

seus telegraphos e correios ( Art. 9 §§ I a 6 ).<br />

3.° Reger-se por Constituições e leis que adoptarem, respeitados<br />

os principios constitucionaes da União ( Art. 62 ).<br />

4. 0 Explorar como proprias as minas e terras devolutas<br />

situadas nos seus territórios, cabendo á União somente a porção<br />

de território que fôr indispensável para a defesa das fronteiras,<br />

fortificações, construcções militares e estradas de ferro fcderaes<br />

( Art. 64 ).<br />

5. 0 Celebrar entre si ajustes e convenções, sem caracter<br />

politico ( Art. 65 § I ).<br />

( 1 ) General Principio?, cap. 1. p. 17.


ÍS"<br />

E CONSTITUCIONAL 129<br />

6." Finalmente todo e qualquer poder ou direito que aos<br />

Estados não fôr negado expressa ou implicitamente pela Constituição,<br />

pertence aos Estados ( Art. 65 § 2 ).<br />

Taes são os direitos de que a Constituição exclusiva e<br />

explicitamente investio os Estados.<br />

Os direitos ou poderes que a mesma Constituição negou<br />

explicitamente aos Estados são os seguintes.<br />

Não podem os Estados.<br />

1.0 Tributar bens e rendas federaes ou serviços a cargo da<br />

União, nem mercadorias estrangeiras ; se tributar estas, quando<br />

destinadas ao consu.nmo do seu território, o producto do<br />

imposto reverterá para o thesouro federal ( Art. 9 § 3 e art. 10 ).<br />

2." Recusar fj aos documentos públicos de natureza legislativa,<br />

administrativa ou judiciaria da União ou de qualquer<br />

dos Estados ( Art. 66 § 1 ).<br />

3." Rejeitar a moeda ou emissão bancaria em circulação<br />

por acto do governo federal ( Ibid. § 2 ).<br />

4. 0 Fazer ou declarar guerra entre si e usar de represálias<br />

( Ibid. § 3 ).<br />

5." Denegar a extradição de criminosos, reclamados pelas<br />

justiças de outros Estados, ou do Districto federal, segundo as<br />

leis da União, porque essa materia se reger ( Ibid. § 4 ).<br />

6,° Crear impostos de transito pelo território de um<br />

Estado, ou na passagem de um para outro, sobre productos de<br />

Estados da Republica ou estrangeiros, e bem assim sobre os<br />

vehiculos de terra e água que os transportarem ( Art. 11 § 1 )<br />

7.» Estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercicio de<br />

cultos religiosos ( Ibid. § 2 ).<br />

8/ Prescrever leis retroactivas ( Ibid. § 3 ).<br />

As prohibições constantes dos ns. 6, 7, 8, são communs aos<br />

Estados e á União.<br />

Passando á classe de poderes cumulativamente outorgados<br />

á União, e aos Estados, temos que estes podem :<br />

l.° Crear outras fontes de receita, além das especificadas,<br />

com tanto que não contravenhão o disposto nos arts. 7 e 11<br />

§ 1 ( Art. 12 ).<br />

2. 0 Animar o desenvolvimento das lettras, artes e sciencias,<br />

da immigração, da agricultura, da industria e do commercio.<br />

3.° Crear instituições de ensino superior e secundário.<br />

Posto que a Constituição não conceda, nem negue aos<br />

17


J3o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Estados de modo explicito o direito de desapropriar por necessidade<br />

ou utilidade publica, todavia esse direito compete também<br />

cumulativamente á União e aos Estados ; não só porque os<br />

termos do art. 72 § i7 são amplos, e portanto applicaveis a<br />

todos os casos de utilidade publica nacional, estadana e municipal<br />

; como também em virtude do principio geral estabelecido<br />

no art. 65 § 2 « todo e qualquer poder ou direito que não fôr<br />

negado aos Estados por clausula expressa ou implicitamente<br />

contida nas cláusulas expressas da Constituição, é facultado<br />

aos Estados ». Ora, o direito de desapropriação por utilidade<br />

ou necessidade publica não é negado aos Estados, nem por<br />

clausula expressa, nem por implicação em clausula expressa ;<br />

logo podem os Estados usar d'esse direito, como a União, sem<br />

outra condição além da estabelecida no citado § 17 do art. 72, a<br />

saber — mediante indemnísação prévia.<br />

Nos negócios peculiares aos Estados, e em tudo o que<br />

explicita ou implicitamente derivar dos poderes de que a Constituição<br />

os envestio, como seja o de regerem-se pela Constituição<br />

que adoptarem, sem offensa dos princípios constitucionaes<br />

da União, não pôde o governo federal intervir, salvo nos<br />

quatro seguintes casos especificados no art. 6.<br />

i.° Para repellir invasão estrangeira ou de um Estado em<br />

outro ;<br />

2." Para manter a forma republicana federativa ;<br />

3.» Para restabelecer a ordem e a tranqüilidade nos Estados,<br />

á requisição dos respectivos governos ;<br />

4." Para assegurar a execução das leis e sentenças federaes.<br />

Na hypothèse 3.-' a intervenção só pôde dar-se, se o governo<br />

do Estado a requisitar, por não ter força para restabelecer a<br />

ordem e a tranqüilidade interna. Mas porque não exigir a<br />

mesma condição de requisição por parte do governo do Estado<br />

na hypothèse i."?Se o Estado tem força para repellir a inv?são<br />

estrangeira, ou a de outro Estado, a que vem a espontânea<br />

intervenção do governo federal ?


St<br />

E CONSTITUCIONAL l3l<br />

V<br />

E' impossível unidade nacional sem uma autoridade central<br />

forte, envestida de certos poderes essenciaes á personalidade<br />

jurídica de uma nação. Assim, a independência é attributo<br />

essencial de toda nação. Mas para manter a independência,<br />

é necessário que a autoridade nacional possa dispor de todos<br />

os meios de defesa : logo as forças de terra e mar devem<br />

pertencer ao governo da nação.<br />

A unidade nacional deve ter uma personalidade jurídica<br />

internacional, deve poder tratar de igual a igual com as outras<br />

nações; portanto compete-lhe o direito diplomático.<br />

O poder de edictar leis geraes, que obriguem a todos os<br />

cidadãos, não é menos essencial á unidade nacional.<br />

Conciliar essa unidade com as liberdades locaes é a<br />

questão capital de um Estado federal ; deixar aos Estados<br />

unidos os direitos indispensáveis á autonomia local, sem prejudicar<br />

a unidade nacional ; tal é a base da federação ( i ).<br />

E' da essência das constituições federaes estabelecer e<br />

definir os direitos ou poderes do governo nacional ou federal)<br />

e os dos governos locaes; assim fazem as Constituições dos<br />

Estados Unidos do Norte, e da Confederação Suissa, e assim<br />

fez a nossa. Tendo já indicado os direitos dos Estados, agora<br />

mencionaremos os da União.<br />

Cumpre desde logo notar que os poderes conferidos á<br />

União são estnctamente definidos pela Constituição, ao passo<br />

que os poderes dos Estados, póde-se dizer, são indefinidos.<br />

De facto ainda que alguns dos poderes dos Estados sejão<br />

enumerados positiva ou negativamente, todavia do principio<br />

do art. 65 § 2. 0 , que confere aos Estados todos os direitos que<br />

não lhes forem negados por clausula expressa ou implicitamente<br />

contida nas cláusulas expressas da Constituição, pode-se<br />

inferir: i.° que a União ou o governo nacional não pôde<br />

pretender outros direitos além dos indicados na Constituição e<br />

e os que n'elles estejão directa ou implicitamente contidos,<br />

2. 0 que cada um dos Estados da União pede exercer não só os<br />

( 1 ) V. Laboulaye, Const, des Etats-Unis, 3. Leçon.


132 **OÇÕES DE DIRÏ5IT0 PUBLICO<br />

direitos indicados na Constituição e os que n'elles estejão<br />

directa ou implicitamente contidos, mas também todos os outros<br />

não indicados, uma vez não sejão directa ou indirectamente<br />

negados pela Constituição ( I ).<br />

Os direitos positiva e exclusivamente conferidos ao governo<br />

nacional são os de decretar :<br />

l.° Impostos sobre importação de procedência estrangeira<br />

( Art. 7 § I )<br />

2.° Direitos de entrada, sahida e estada de navios, sendo<br />

livre o commercio de cabotagem ás mercadorias nacionaes,<br />

bem como ás estrangeiras que já tenhão pago imposto de<br />

importação ( Ibid. § 2 ).<br />

3.° Taxas de sello ( não sobre os actos emanados dos<br />

governos dos Estados e sobre negócios da economia d'estes )<br />

( Ibid. § 3 )<br />

4." Taxas dos correios e telegraphos federaes ( Ibid. § 4 ).<br />

5. 0 A creação de bancos emissores ( Ibid. § 6 ).<br />

Além d'estes poderes terminantemente outorgados ao governo<br />

federal, outros ha que competem á cada um dos ramos,<br />

que compõe o mesmo governo. Por ex. ao poder executivo<br />

compete conceder ou negar licença para o cidadão brazileiro<br />

acceitar emprego ou pensão de governo estrangeiro ( Art. 71<br />

§ 2 n. 6 ).<br />

As palavras governo federal, governo nacional, União, são<br />

na Constituição perfeitamente synonymas, e applicaveís não ao<br />

poder executivo, como algumas vezes se usa, mas ao conjuncto<br />

dos poderes nacionaes legislativo, executivo e judiciário.<br />

D'aquelles direitos fallaremos quando tratar de cada um dos<br />

ramos do poder nacional.<br />

Passando aos poderes negados a União, não pôde ella:<br />

I." Crear, de qualquer modo, distincções e preferencias em<br />

favor dos portos de uns contra os de outros Estados ( Art. 8 ).<br />

2.° Crear impostos de transito pelo território de um Estado,<br />

ou na passagem de um para outro, sobre productos de outros<br />

Estados da Republica, ou estrangeiros, e bem assim sobre os<br />

vehiculos de terra e água, que os transportarem (Art. 11 § 1 ).<br />

3." Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de<br />

cultos religiosos ( Ibid. § 2 ).<br />

( 1 ) Dicey, Introduction cit. p. 402.


E CONSTITUCIONAL i33<br />

4. 0 Prescrever leis retroactivas ( Ibid. § 3 ).<br />

Estabelecidas assim as respectivas espheras de acção dos<br />

Estados e da União, ficão garantidos os poderes iederaes e os<br />

estadaes. Dentro dos limites traçados pela Constituição, tão<br />

independente é a Nação, como cada um dos Estados, tão sagrados<br />

e invioláveis são os direitos da União, como os dos Estados<br />

; atacar a um d'estes é atacar a União, cuja existência,<br />

como corpo politico, depende essencialmente da existência dos<br />

Estados.<br />

Os Estados desunidos poderião continuar a existir, mas<br />

sem os Estados organisados em União o co v po politico, chamado<br />

— Estados Unidos, deixaria de ter existência.<br />

A união perpetua e indissolúvel, em que assenta a organisação<br />

federal, só se pôde manter gyrando as entidades políticas,<br />

União e Estados, dentro dos seus respectivos limites<br />

constitucionaes.<br />

A doutrina que acabamos de expender é corrente entre os<br />

publicistas americanos ; e depois da guerra da secessão recebeu<br />

a sancção do poder judicial no famoso case of Texas, que tomamos<br />

para épigraphe de nosso livro, porque n'elle se acha em<br />

synopse a essência do systema federal. O juiz Chase, Presidente<br />

do Supremo Tribunal, relatando aquelle caso terminou o<br />

seu jurídico relatório dizendo — The Constitution, in all its<br />

provisions, looks to an indestructible Union, composed of<br />

indestructible States ( 1 ).<br />

( 1 ) l'ode so lor boa parte d'esse noüivol rolatorio na obra de Hurd — The<br />

theory of our national existence, p. 0 e se^- Boston, 1881,


£«<br />

CAPITULO II<br />

ÓRGÃOS DA SOBERANIA NACIONAL. ÓRGÃO PREPONDERANTE.<br />

INDEPENDÊNCIA DOS REPRESENTANTES. DUALIDADE DE<br />

CÂMARAS. VERIFICAÇÃO E DURAÇÃO DOS PODERBS.<br />

I<br />

Uma, indivisível e inalienável, a soberania nacional se<br />

manifesta por meio de órgãos distinctos, dotados de funcções<br />

especificas, os quaes ordinariamente se chamão poderes, e são<br />

três — Poder legislativo, executivo e judiciário, Esses órgãos,<br />

nos termos da Constituição ( Art. 15 ) são harmônicos e inde.<br />

pendentes entre si.<br />

Depois do que ficou dito na Primeira Parte a respeito da<br />

divisão dos poderes, do numero d'estes e de suas respectivas<br />

funcções, agora cabe fallar somente das attribuições, que pela<br />

Constituição competem a cada um d'esses poderes.<br />

Adoptando a opinião commum dos publicistas, a Constituição<br />

só reconhece três poderes ; aquelle que faz a lei, o que a<br />

executa e o que julga e pune as transgressões das leis.<br />

Na opinião de Kant os três poderes são três proposições<br />

de um syllogismo pratico. A maior é a lei, expressão de uma<br />

vontade ; a menor é a ordem de executar essa lei ; emfim a<br />

conclusão é a sentença que decide do direito, dizendo se a lei,<br />

foi observada ou violada ( 1 ).<br />

Qnalquer que seja a opinião que se possa ter acerca do<br />

conceito de Kant, o que é incontestável é que a divisão dos<br />

três poderes é um axioma politico, inscripto em todas as consti-<br />

( 1 ) Principes métaphysiques du Droit, p. 2 § 65.


136 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tuições modernas, tendo por fim corrigir a viciosa tendência da<br />

natureza humana de abusar do poder.<br />

Basta saber quanto o amor do poder e a inclinação para<br />

abusar d'elle são naturaes ao coração do homem, disse Wash"<br />

ington, para nos convencer da necessidade de ponderar os<br />

poderes públicos com a divisão e distribuição d'elles, entre<br />

depositários différentes, que defendão essa propriedade publica<br />

das invasões reciprocas. A experiência dos passados e modernos<br />

tempos nos ministra exemplos da excellencia d'esse<br />

systema; e d'isso temos provas tanto em nosso paiz, como em<br />

outros. E' tão necessário instituir os poderes, como contêl-os<br />

( 2 ).<br />

Nossa Constituição consagra a mesma doutrina, e acerescenta<br />

que esses poderes hão de ser harmônicos e independentes.<br />

Se cada um dos poderes pretendesse exercitar as suas<br />

funeções invadindo as espheras dos outros, se, por ex. o poder<br />

legislativo fizesse a lei e pretendesse executal-a, não teríamos<br />

systema constitucional ; pois este se basêa no principio da<br />

separação dos poderes. A harmonia consiste em que cada um<br />

dos poderes se desenvolva dentro de sua orbita, sem perturbar<br />

o desenvolvimento do outro ; a independência, em que cada<br />

um dos poderes exerça as funeções que lhe são delegadas pela<br />

Constituição sem dependência de outro poder.<br />

Os actos praticados por um dos poderes, quando o são<br />

legalmente, isto é, quando dentro dos limites constitucionaes,<br />

são obrigatórios para os outros poderes. Para que o governo<br />

representativo, republicano ou monarchico, seja um regimen<br />

de liberdade, para que não surja a dictadura unitária ou collectiva,<br />

convém que os poderes sejão independentes e harmônicos.<br />

II<br />

O poder legislativo é exercido pelo Congresso nacional,<br />

composto da câmara dos deputados e do senado, com a saneção<br />

do Presidente da Republica. Assim o dispõe a Constituição<br />

( Art. 16 § i ).<br />

Sem embargo da theoria do equilibrio e balança dos pode-<br />

( 2 ) Adresse d adieu au peuple des Etats-Unis, 17 de Setembro. 179G.


63<br />

E CONSTITUCIONAL i37<br />

res, theoria que não pôde contrariar a natureza das cousas, um<br />

dos poderes torna-se na pratica necessariamente preponderante.<br />

No conflicto possível de um dos poderes com outro, qual<br />

deve predominar; á qual d'elles incumbe resolver os conflictos?<br />

O poder legislativo, respondem uns, deve ter o direito<br />

absoluto de superintender os outros e dirimir os conflictos<br />

possíveis.<br />

Nas monarchias representativas a supremacia do poder<br />

está no parlamento.<br />

Na Inglaterra a autoridade do parlamento não tem limites,<br />

salvo, talvez, na opinião publica, manifestada na imprensa<br />

e nos meetings. Segundo Paley um acto do parlamento nunca<br />

pôde ser inscontitucional na expressão propria d'essa palavra ;<br />

e De Lolme significava essa omnipotencia, dizendo que o parlamento<br />

« pôde fazer tudo, excepto de um homem uma mulher,<br />

e de uma mulher um homem ».<br />

Não ha, diz Dicey, lei alguma que o parlamento não possa<br />

mudar; ou por outras palavras, as leis fundamentaes, chamadas<br />

constitucionaes, são, conforme a nossa Constituição, mudadas<br />

pela mesma corporação e do mesmo modo que as outras leis,<br />

isto é, pelo parlamento obrando pela fôrma seguida para a<br />

legislação ordinária : não ha distineção entre as leis fundamentaes<br />

ou constitucionaes e aqutllas que o não são The one<br />

fundamental dogma of English constitutional law, diz o<br />

mesmo escriptor, is the absolute legislative sovereignty or<br />

despotisme of the King in Parliament ( I ).<br />

A lei, n'esse systema, é simples acto da vontade, puro<br />

arbítrio das maiorias; o que eqüivale a dizer que o poder legislativo<br />

não precisa ter razão.<br />

Não, dizia Quizot, a vontade do indivíduo não cria nem<br />

impõe leis obrigatórias. O homem as recebe de mais alto; as<br />

leis lhe advem de uma esphera mais elevada, aonde o debate<br />

se trava, não entre o que se quer e o que não se quer, mas<br />

entre o justo e o injusto, entre o que é conforme e o que é<br />

contrario a razão ( 2 j.<br />

O absolutismo legislativo do constitucionismo inglez é<br />

( 1 ) Loc. cit. c, 2 G 3.<br />

2 Hist, du gover. repres, t. 2 p. 1Í2.<br />

I8


138 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

incompatível com o systerna federal, segundo o qual a Constituição<br />

é lei suprema do paiz, e cada um dos poderes deve regular­se<br />

por ella, desempenhando suas funcções dentro dos limites<br />

que ella traçou.<br />

E' verdade que o poder judiciário, segundo o federalismo,<br />

é arbitro supremo nos conflictos entre os direitos individuaes e<br />

as leis inconstitucionaes. Mas aquelle poder não é por isso<br />

superior a nenhum dos outros dous ; detém somente os excessos<br />

do poder legislativo, mas sempre dentro dos limites constitucionaes,<br />

porquanto é a propria Constituição que lhe dá tal<br />

poder, determinando que « o poder judiciário se estenda a<br />

todas as causas de direito que resultarem, quer da Constituição,<br />

quer das leis dos Estados Unidos » ( Art. 3 secç. 2. a § 3 )■<br />

Os différentes departamentos do governo, diz Cooley, são<br />

iguaes em dignidade, e autoridade coordenada, e nenhum<br />

pôde sujeitar o outro a sua jurisdicção, nem usurpar parte<br />

alguma de seus poderes constitucionaes. Mas o poder judiciário<br />

é a autoridade final na interpretação da constituição e das leis,<br />

e suas decisões interpetrativas devem ser seguidas e acceitas<br />

pelos outros poderes ( i ).<br />

O poder legislativo, pois, no systema federal, no qual se<br />

inspirou a nossa Constituição, não tem a plenitude de poder<br />

como nas monarchias constitucionaes : e no caso de conflicto<br />

entre os actos dos outros poderes, ao judiciário, como interprete<br />

final da Constituição, incumbe solvel­o.<br />

III<br />

Se o Congresso legislativo é constituído pela câmara dos<br />

deputados e pelo senado, para que cada um d'esses ramos do<br />

poder legislativo por sua vez ss constitua, de modo que o<br />

Congresso se ache em condições de desempenhar a sua missão<br />

representativa, muitos requisitos são necessários. D'estes iremos<br />

occurrentemente tratando.<br />

Presentemente nos occuparemos de algumas das questões<br />

que suscita o capitulo i." da Secção I.' da Constituição.<br />

Para garantir a independência dos representantes, em relação<br />

ao poder executivo, nossa Constituição, imitando outras,<br />

( 1 ) Principies cit. p. 139­


¥><br />

E CONSTITUCIONAL i39<br />

estabeleceu no art. 23 que «nenhum membro do Congresso,<br />

desde que tenha sido eleito, poderá celebrar contractus com o<br />

poder executivo, nem d'elle receber commissões ou empregos<br />

remunerados.<br />

Esse principio geral prohibitivo não tem senão três excepções*,<br />

as quaes se achão especificadas no citado artigo, c são:<br />

l.° as missões diplomáticas, 2.° as commissões ou commandos<br />

militares, 3.° os cargos de accessos e as promoções legaes.<br />

Essas excepções tem fácil justificação.<br />

Aquelle principio prohibitivo é dictado pelo amor ao bem<br />

<strong>publico</strong>, ao qual não pôde convir representantes sujeitos ao<br />

poder executivo, que com a promessa de empregos pôde corromper<br />

o deputado ou o senador. Mas, attendendo a que é<br />

sempre pequeno o numero de homens de valor intellectual e de<br />

consummada experiência, o mesmo bem <strong>publico</strong> pôde exigir que<br />

se tire do parlamento alguma pessoa n'aquellas condições, para<br />

desempenhar uma missão diplomática ou umacommissão militar.<br />

Mas o membro do Congresso não pôde acceitar nomeação,<br />

nos dous precedentes casos, sem licença da respectiva câmara,<br />

se da acceitação resultar privação das funeções legislativas,<br />

salvo nos casos de guerra, ou n'aquelles em que a honra e<br />

integridade da União se acharem empenhadas. Assim dispõe<br />

o Art. 23 § 2.<br />

Quanto a terceira hypothèse, seria demasiado rigor privar<br />

o representante das conseqüências legaes de um direito já<br />

adquirido. Um accesso ou uma promoção legal não é um dom<br />

do poder executivo feito ao representante, mas cffeito de uma<br />

causa legalmente reconhecida.<br />

Também não pôde o deputado ou senador ( Art. 34 ) « ser<br />

presidente ou fazer parte de directorias de bancos, companhias<br />

ou empregas, que gosem dos favores do governo federal<br />

definidos em lei ( I ).<br />

A razão d'esta disposição é a mesma da anterior, isto é, a<br />

independência do representante perante o poder executivo.<br />

( 1 ) Aquellcs favores forão definidos pela Lei n. 35 de 26 de Janeiro de 1892,<br />

que estabeleceu o processo para as eleições federaes, e são os seguintes :<br />

1. garantia de juros ou outras subvenções ;<br />

2. privilegio para emissão de notas ao portador, com lastro em ouro ou não ;<br />

3. isenção de direitos ou taxas federaes ou reducção délies em leis ou contractus;<br />

S. privilegiu de 2011a, de na- ugaoSo, contractus de tarifas ou concessão de terras.


I-|0 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

E' preciso que o voto do deputado, ou do senador, seja dictado<br />

pelo bem <strong>publico</strong>, e não pela esperança de vantagens pessoaes,<br />

que possa auferir cte um banco ou companhia favorecido pelo<br />

governo.<br />

A inobservância dos preceitos estatuidos nos arts. 23 e 24<br />

importa, segundo o paragrapho único do cit. art. 24, a perda do<br />

mandato.<br />

Mas, perguntar-se-ha : o representante que perde o seu<br />

mandato por infracçào dos referidos artigos, poderá ser reeleito ?<br />

A Constituição não o diz. Mas deve admittir-se que, se o<br />

emprego remunerado não é d'aquelles que tornão incompatível<br />

o cidadão para as funeções de representante, elle pôde appellar<br />

para o eleitorado, e desde que este o reeleja, fica readquerida a<br />

confiança, e sem razão de ser a exclusão do representante.<br />

O eleitorado diz : confio tanto na pureza e independência do<br />

vosso caracter, que não obstante haverdes acceitado ura emprego<br />

remunerado, celebrado um contractu com o poder executivo, ou<br />

recebido um lugar em uma companhia favorecida pelo governo,<br />

vosreelejo; nada perdestes no meu conceito.<br />

O que se poderá dizer contra esse procedimento ?<br />

Tratando da acceitação do cargo de ministro de Estado, a<br />

Constituição diz que o deputado ou senador perderá o mandato,<br />

e logo acerescenta que na eleição que se fizer para a vaga não<br />

poderá ser votado ( Art. 50 paragrapho único ). A razão d'essa<br />

incapacidade para uma nova eleição é evidente ; a influencia do<br />

ministro seria efficaz na sua reeleição. Mas, a respeito dos<br />

casos previstos nos arts. 23 e 24, nem milita a mesma razão da<br />

influencia no voto do eleitorado, nem a Constituição prohibe a<br />

reeleição.<br />

Segundo a Constituição do Império allemão de 1871, art. 21<br />

« quando um membro do Reichstag acceita um emprego remunerado<br />

do Império ou de um dos Estados da confederação, ou<br />

quando é investido pelo Império ou por um dos Estados de uma<br />

funeção que importa uma cathegoria ou vencimentos mais<br />

elevados, do que a que tinha, perde o seu lugar e só pôde voltar<br />

a elle por força de nova eleição ».<br />

Também na Inglaterra, o deputado que acceita um emprego<br />

da Coroa ou do lord Lugartenente da Irlanda, perde o seu<br />

lugar, mas pôde ser reeleito ( 1 ).<br />

( 1 ) V. Fichei. Com4. d'Angicrra t. 2. p. 2GG.


E CONSTITUCíOXAL I4l<br />

A lei constitucional de 3o de Novembro de i875, da Republica<br />

franceza, dispõe no art. 11 que « o deputado nomeado ou<br />

promovido para uma funcção publica retribuída deixa de pertencer<br />

á câmara pelo facto da acceitação, mas pôde ser reeleito,<br />

se a funcção que occupa é compatível com o mandato de<br />

deputado ».<br />

Como se vê, a constituição franceza não exceptua, como a<br />

nossa, o caso de promoção, nem comprehende em sua prohibi -<br />

ção os senadores, o que parece não ser de fácil justificação, não<br />

obstante o senado francez não ser todo de origem popular<br />

immediata.<br />

IV<br />

Com o ponto da independência dos representantes tem connexào<br />

o da gratuidade ou retribuição do mandato legislativo.<br />

.Sobre esse ponto as opiniões divergem, sendo uns pela<br />

gratuidade e outros pela retribuição.<br />

Aquelles dizem que a gratuidade favorece o desinteresse e<br />

a independência do representante, que servindo gratuitamente<br />

mostra não precisar nem do voto do eleitor para viver, nem do<br />

poder executivo para pedir favores. Outros, porém, pensão<br />

que a falta de retribuição affastará do parlamento os pobres, os<br />

quaes precisando do trabalho para viver, não quererão deixar<br />

as suas occupações para servir sem remuneração, e que assim<br />

ficará a representação do paiz privada de talentos e capacidades,<br />

que em grande numero se encontrão nas classes pobres.<br />

Aquelles que opinão pela retribuição dizem que o barato<br />

sake caro, e que a falta de subsidio fará que os representantes,<br />

por meios tortuosos e indecentes, procure o que correcta e<br />

decentemente se lhes nega.<br />

Theoricamente a questão não é susceptível de solução.<br />

-• O valor moral, e não a riqueza, é que dá independência ao<br />

homem: a honestidade política vem do homem, e não do<br />

dinheiro ».<br />

Praticamente a questão tem soluções diversas.<br />

A gratuidade do mandato legislativo existe de facto na<br />

Inglaterra, na Allemanha, na Austria, na Italia e na Hespanha.<br />

A retribuição é admittida na Prussia, na Dinamarca, na França,<br />

na Noruega, na Bélgica, em Portugal. Na America prevalece<br />

a pratica do subsidio.


142 NOÇÕES DE DIRlilTO PUBLICO<br />

Nos Estados Unidos do Norte é um principio que all public<br />

•work ought to be paid for. Assim, não só os membros do<br />

Congresso nacional, como também os dos Estados, são retribuídos<br />

de conformidade com o disposto na Constituição ( i ).<br />

A nossa actual Constituição adoptou, com razão, o principio<br />

da retribuição, e assim dispôz no art. 22 que « durante as<br />

sessões vencerão os senadores e os deputados um subsidio<br />

pecuniário igual, e ajuda de custo, que serão fixados pelo<br />

Congresso, no fim de cada legislatura, para a seguinte ;>.<br />

A antiga Constituição consagrava a mesma doutrina, mas,<br />

sem justificação possível, dava maior subsidio ao senador, além<br />

do privilegio da vitaliciedade do mandato !<br />

V<br />

A independência do deputado e do senador a respeito do<br />

corpo eleitoral não é menos necessária, do que a respeito do<br />

poder executivo. Contra aquella independência apresenta-se o<br />

mandato imperativo. Chama-se assim o acto pelo qual os<br />

eleitores, antes da eleição, impõem aos representantes o modo<br />

de votar e de proceder no parlamento.<br />

Algumas Constituições modernas, como a da actual Republica<br />

franceza, na lei constitucional de 3o de Novembro de 1875,<br />

art. i3, a d'Áustria, lei de 21 de Dezembro de 1867, art. 16, a<br />

da Allemanha de 16 de Abril de 1871, art. 9. 0 , expressamente<br />

prohibem o mandato imperativo, contra o qual se manifesta<br />

também a maior parte dos publicistas modernos.<br />

A nossa Constituição nada diz a esse respeito, nem precisava<br />

dizer, porque a theoria moderna da representação é contraria<br />

á theoria do mandato imperativo. Esta instituição era<br />

reconhecida pelo direito <strong>publico</strong> da idade média. Na historia<br />

parlamentar da velha França figurão os cahiers, compêndio de<br />

vœux, plaintes et doléances, que os deputados dos Estados<br />

devião apresentar ao parlamento.<br />

Segundo a theoria da representação aquelle mandato é um<br />

absurdo.<br />

( 1 ] Os ssnadores e deputados íederaes lem igual subsidio, a saber 5.000<br />

dolars por sessão; o speaker, porém, lem 8,000. Tem também ajuda de custo.


U<br />

E CONSTITUCIONAL 14-3<br />

Os eleitores elegem, sim, os deputados, porque é impossível<br />

o exercício directo da soberania, mas os eleitos ficão naturalmente<br />

com o poder de deliberar por si ; sem isso o governo<br />

representativo é impossível.<br />

A essência d'esse governo consiste na divisão e harmonia<br />

dos poderes do Estado ; ora o mandato imperativo unifica todos<br />

os poderes, e principalmente o legislativo, no corpo eleitoral, e<br />

desde que os órgãos d'esse poder não resolverem de acordo<br />

com as discussões, não ha harmonia possível : tantos representantes,<br />

quantos os mandatos; a confusão substituirá á harmonia.<br />

O systema representativo, diz Girons, suppõe essencialmente<br />

a superioridade do eleito sobre o eleitor. Toda eleição<br />

popular é ao mesmo tempo uma selecção. O eleitor é incumbido<br />

pela Constituição de escolher, na parte do paiz que elle<br />

habita, ou em outra parte, um homem superior, que por sua<br />

intelligencia e experiência possa fazer aquillo que o eleitor não<br />

pôde fazer por lhe faltar capacidade... Se o eleito é superior<br />

em direito e em valor pessoal ao eleitor, é absurdo que o deputado<br />

aprenda do eleitor a lição que deve recitar no parlamento.<br />

E' essencial que o representante falle em seu nome, vote o que<br />

lhe parece justo e util, e o faça com independência igual á sua<br />

responsabilidade. Aquelle que ignora a medicina poderá incumbir<br />

a um medico de represental-o junto a cama de um<br />

doente? E porque então, diz Scolari, o que é verdade nas<br />

scienciás, nas lettras e nas artes não o será na política ? ( i ).<br />

O povo não é capaz de discutir leis e assumptos políticos,<br />

por isso se inventou o systema representativo ; a sua funeção<br />

constitucional, o seu direito consiste em indicar aquelles que<br />

elle julga mais capazes de fazer o que elle não sabe.<br />

O mandato imperativo em substancia eqüivale ao corpo<br />

eleitoral dizer aos representantes: — Ide á câmara, mas discuta-se<br />

o que se discutir, produzão-se as razões que se produzirem,<br />

fechai os ouvidos, e quando chegar a oceasião de votar,<br />

votai como eu, corpo eleitoral, vos digo. E assim o deputado,<br />

como um escravo ou um autômato, votará contra a sua consciência<br />

e contra o resultado da discussão. N'esse caso seria<br />

mais fácil, diz um publicistas italiano o sim ou o não pelo<br />

telegrapho, e fechar o parlamento.<br />

{ I } Droit Con-;!, p. 11G c Separation des pouvoirs p. 1G0.


144 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

VI<br />

A dualidade de câmara é hoje um axioma de sciencia política,<br />

baseado na experiência.<br />

Presentemente quasi todas as monarchias constitucionaes,<br />

como todas as republicas democráticas, tem duas câmaras.<br />

Bem avisado, pois, andou o nosso legislador constituinte dividindo<br />

o poder legislativo em dous ramos.<br />

« Em todo paiz livre, escreve Laboulaye, é necessário uma<br />

segunda câmara. Porque ? Porque uma só câmara é um poder<br />

sem limites, e um poder sen" limites é o despotismo ; é um<br />

poder que só se inspira em si e que aos seus interesses subordina<br />

os do paiz ».<br />

Na Europa, a excepção da Grécia e da Servia, quasi que<br />

não se pôde citar outro paiz aonde seja adoptada a unidade de<br />

câmara.<br />

Na America a dualidade é admittida em toda parte. Em<br />

1874 o Mexico, que fazia uma excepção, renunciou a unidade<br />

de câmara. Temos, pois, um quod semper, quod iibique, quod<br />

ab omnibus.<br />

Nos Estados Unidos do Norte não só a União, como também<br />

os seus quarenta e dous Estados, adoptárão o systema<br />

bicamerario. Ali os dous ramos do poder legislativo existião<br />

desde longa data.<br />

Havia quinhentos annos, diz Curtis, que os americanos<br />

tinhão aprendido de seus antepassados, e por experiência propria,<br />

que a existência de uma câmara é pouco favorável á<br />

factura de boas leis e á liberdade. Das trese colônias, que<br />

existião ao tempo da formação da União, somente duas, a<br />

Pensylvania e a Georgia, possuiâo uma camara^só, todas as<br />

outras tinhão seus conselhos e suas assembléas.<br />

Nós começamos a existir politicamente com duas câmaras,<br />

e os legisladores do Acto addicional á nossa primeira Constituição<br />

conferirão ao poder legislativo geral a faculdade de criar<br />

uma segunda câmara legislativa em qualquer província, a<br />

pedido de sua assembléa, podendo essa segunda câmara ter<br />

maior duração, do que a primeira ( Art. 3.° ). De sorte que para<br />

nós também a existência de duas câmaras é uma tradição.<br />

Presentemente na Europa só a eschola revolucionaria fran-


f3<br />

E CONSTITUCIONAI. 145<br />

ceza ainda sustenta a doutrina da unidade de câmara, não<br />

obstante as lições amargas da constituinte de 1789 e da republica<br />

de 1848 ( 1 ).<br />

Um senado é garantia de liberdade, diz um publicista francez.<br />

De certo, outras precauções se podem tomar para limitar<br />

o poder e impedir o despotismo; mas nenhuma pôde substituir<br />

um senado. Se este por sua organisaçào gosa de autoridade<br />

pelo menos igual a da outra câmara, presta immensos serviços<br />

ao paiz, representando o papel de conciliador. Uma segunda<br />

câmara teria obstado o duelo de morte, que foi conseqüência<br />

necessária da Constituição monarchica de 1791 e da Constituição<br />

republicana de 1848 ( 2 ).<br />

O argumento achiles formulado de vários modos pelos<br />

defensores da câmara única, é o do celebre Sieyés que dizia :<br />

« A lei 6 a vontade do povo, um povo não pôde ter a um tempo<br />

duas vontades différentes sobre o mesmo objecto; logo o corpo<br />

legislativo, que o representa, deve ser essencialmente um. Para<br />

que duas câmaras) Se estão acordes, uma d'ellas é inutil, se<br />

são descordes, deve haver uma, que, não só não representa a<br />

vontade do povo, mas por força ha de impedir que essa vontade<br />

prevaleça, o que é a coníiscação da soberania ».<br />

O raciocinio de Sieyés, observa Laboulaye, fez fortuna,<br />

tornou-se o credo dos espíritos falsos e curtos. Para elles<br />

tocar na unidade do corpo legislativo, é tentar contra a unidade<br />

nacional; entretanto aquelle argumento assenta em um equivoco.<br />

Sieyés confundio a lei feita com a preparação da lei, cousas<br />

profundamente différentes ( 3 ).<br />

Uma segunda câmara produz o inestimável beneficio de<br />

obrigar a primeira a estudar melhor as questões sujeitas á sua<br />

deliberação, porque vê diante de si a outra câmara, que pôde<br />

desapprovar suas deliberaçõss precipitadas ou apaixonadas.<br />

As assembléas únicas tendem a concentrar em si todo o<br />

poder do Estado, e facilmente se corrompem pelo excesso de<br />

poder.<br />

Uma segunda câmara, principalmente se é constituída de<br />

( 1 ) Bluntschli observa que pelos cálculos feitos o systema de duas câmaras<br />

rege sò nû Europa, uma população


i46 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

modo différente da outra, re-examina as resoluções da primeira,<br />

modera-lhe os enthusiasmos, corrige os erros das discussões<br />

apaixonadas e esfria o calor natural de uma câmara que se<br />

reputa omnipotente ( i ).<br />

A necessidade de um poder intermédio, que harmonise o<br />

poder executivo com a assembléa única é uma condição essencial<br />

de paz na sociedade.<br />

VII<br />

A constituição do Congresso suppõe que todos os seus<br />

membros fôrão eleitos de conformidade com as leis e regulamentos<br />

eleitoraes.<br />

Para reconhecer a legalidade da eleição existe o processo<br />

chamado verificação de poderes, o qual consiste no exame<br />

procedido pelas assembléas acerca da regularidade da eleição<br />

de seus membros.<br />

A quem deve pertencer o juizo da validade de um diploma<br />

politico ?<br />

E' incontestável que a verificação de poderes é um acto<br />

essencialmente judiciário, porque é a applicação de uma lei a<br />

um facto, e que portanto deveria pertencer aos juizes ou aos<br />

tribunaes, especialmente nos casos de eleições contestadas.<br />

Mas, não obstante, em quasi todos os paizes, as constituições<br />

conferem ás assembléas a attribuição de verificar o poder de<br />

seus membros. A nossa não se apartou d'essa regra. No<br />

paragrapho único do art. 18 dispõe que «a cada uma das<br />

câmaras compete verificar e reconhecer os poderes de seus<br />

membros... ».<br />

Por essa disposição fica o Congresso garantido contra a<br />

intervenção do poder judiciário.<br />

Mas não será licito duvidar da imparcialidade de suas decisões<br />

em eleições contestadas ?<br />

Quem diz câmara, ou senado, diz maioria. Portanto o<br />

poder de verificar eleições contestadas é de facto conferido a<br />

( 1 ) Jefferson, almoçando com Washington, censurava a este ter consentido na<br />

creação do senado americano, e emquanto censurava passava o café da chicara para<br />

o pires. Para que essa operação, perguntou-lhe Washington. Para resfriar, que<br />

cstà quente. Pois o mesmo fizemos nõs. disse-lhe Washington ; passamos os actos<br />

legislativos para o pires senatorial, que lhes serve de rosfriador. V. De Noailles,<br />

loc. cit. t. 1. p. 32C.


■ft<br />

E CONSTITUCIONAL I47<br />

uma maioria politica, que movida pela força irresistível do<br />

espirito partidário, do véhémente desejo de conservar o poder,<br />

procurará fechar os olhos ás irregularidades das eleições dos<br />

amigos, e os ahrirá, quando se tratar da eleição de um<br />

adversário. A historia dos parlamentos registra mais de uma<br />

d'essas sentenças políticas, dictadas pela parcialidade dos<br />

affectos partidários.<br />

Para obstar esses resultados, politicos sinceros tem lembrado<br />

vários expedientes.<br />

Na Inglaterra desde 1770 lord Grenville tentou uma reforma<br />

transferindo a verificação de poderes para uma commissão de<br />

deputados com caracter de tribunal de justiça, tendo a faculdade<br />

de ouvir testemunhas, deferir juramentos, etc. Varias<br />

outras tentativas, com o mesmo fim, se fizerão n'aquelle paiz,<br />

até que em 1868, sob o ministério Disraeli, votarão uma lei<br />

transferindo do parlamento para os juizes dos tribunaes superiores<br />

de Westminster o poder de decidir sobre eleições contestadas<br />

( 1 ).<br />

Essa corajosa resolução de um poderoso corpo politico,<br />

qual o parlamento inglez, de demittir­se, por mero sentimento<br />

de justiça, de tão importante attribuição, para dal­a a um poder<br />

estranho, é admirável e digna de ser imitada pelos paizes que<br />

possuirem uma magistratura da ordem da ingleza.<br />

No importante Estado da Pensilvania, conforme dispõe o<br />

art. S.° secç. i7 de sua Constituição, de i873, também as eleições<br />

contestadas são decididas pelos tribunaes de direito —<br />

courts of law.<br />

Mas produzirá ali o expediente os mesmos resultados que<br />

n? Inglaterra ? Na União americana a magistratura dos Estados<br />

sahindo das eleições, naturalmente partilhará das paixões inhérentes<br />

ás lutas dos partidos, e por conseguinte não offerecera<br />

as mesmas garantias de imparcialidade.<br />

Uma vez reconhecido o deputado, ou senador, deve, nos<br />

termos do art. 21 da Constituição ­t Contratar compromisso<br />

formal, em sessão publica, de bem cumprir os seus deveres »•<br />

( I ) EISPS tribunaes, que funecionão no palácio de Westminster são três — o<br />

banco ria rainha ( court queen's bench ) a corte de justiça financeira [ court 1 f<br />

échiquier ) e côrte de pleitos communs ( court ol common pleas ), cada um composto<br />

de cinco juizes, cuja jurisdicção se estende ao paiz inteiro. V. Fischel, loc. citt.<br />

1. p. 366.


I48 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Como se vê. a Constituição substituio o juramento pela<br />

simples promessa.<br />

A Constituição americana adoptou uma formula mais liberal,<br />

estabelecendo que « os senadores e os deputados, os membros<br />

dos congressos dos Estados e todos os funccionarios do<br />

poder executivo e do poder judiciário... deverão obrigar-se por<br />

juramento ou affirmação a defender a Constituição ». Assim,<br />

aquelles que crêm em Deos podem invocal-o por testemunha<br />

jurando ; aquelles, porém, que não crêm na ordem sobrenatural,<br />

promettem simplesmente.<br />

Commentando esse artigo Story diz : « A sociedade tem<br />

direito de exigir dos funccionarios garantia de escrupuloso cumprimento<br />

de seus deveres. O juramento é uma sagrada obrigação<br />

para os homens sérios, e principalmente para aquelles que<br />

tem profundo sentimento de sua responsabilidade para com<br />

Deus. Si na administração da justiça, si quando se trata apenas<br />

de direitos privados e de reclamações individuaes, se exige<br />

juramento dos juizes e das testemunhas, como cautela contra a<br />

malícia e o falso testemunho, com maior veras se deve exigir de<br />

funccionarios que tém á sua guarda interesses públicos e em<br />

suas mãos o bem estar e a segurança da communhão social» (D-<br />

Na Inglaterra sempre se exigio juramento dos membros do<br />

parlamento.<br />

A formula antiga era muito longa, e terminava assim —<br />

faço essa declaração sob a verdadeira fé de christão. Mas<br />

como essas palavras não permittião aos judeos jurarem, nem<br />

por conseguinte tomarem assento no parlamento, a lei de 1868<br />

estabeleceu a seguinte formula — « Juro que serei fiel e guardai-ei<br />

verdadeira obediência a S. M. a Rainha Victoria, e a seus<br />

herdeiros e suecessores, na fôrma da lei. Assim DeUvS me<br />

ajude ».<br />

Em França o juramento politico foi supprimido em 1848,<br />

restabelecido em 1858 c de novo supprimido em 1870.<br />

VIII<br />

O art. 17 §§ 1." e 2.° preceituão acerca do tempo da reunião<br />

do Congresso, da prorogação e adiamento de suas sessões e da<br />

duração do mandato legislativo.<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2. p. 5SB.


4Ç<br />

E CONSTITUCIONAL 149<br />

« O Congresso reunir-se-ha na capital federal, independentemente<br />

de convocação, a 3 de Maio de cada anno, se a le 1<br />

não designar outro dia, e funccionará quatro mezes da data da<br />

abertura, podendo ser prorogado, adiado ou convocado extraordinariamente<br />

>.<br />

Algumas constituições, como a italiana e a ingleza, commettem<br />

ao poder executivo a faculdade de designar o mez e o<br />

dia da reunião do parlamento, em vez de determinar uma epo"<br />

cha fixa ; e assim procedem, por que no decurso do anno podem<br />

occorrer circumstancias que não permittão a reunião em um<br />

tempo fixo.<br />

Esse expediente é hoje sem perigo, porquanto não é crivei<br />

que o poder executivo deixe correr um anno sem satisfazer o<br />

preceito constitucional da reunião annual. Passarão os tempos<br />

em que dependia do arbítrio real convocar ou não os parlamentos<br />

; d'onde se originavão lutas entre os reis e as assembléas,<br />

como tantas vezes succedeu na Inglaterra.<br />

Entretanto nossa Constituição julgou melhor, não só dispensar<br />

a convocação feita pelo poder executivo, como também<br />

fixar um tempo certo ; deixando, porém, ao poder legislativo a<br />

faculdade de em lei ordinária designar outro dia, se a experiência<br />

mostrar ser inconveniente o dia fixado. Assim também<br />

procedeu a Constituição americana ( Art. 1." secç. 4. a § 2 ).<br />

Quatro mezes devem durar as sessões annuaes, a partir do<br />

dia da abertura do Congresso.<br />

Um Congresso permanente a produzir leis um anno inteiro,<br />

a agitar questões políticas, a alterar a administração publica,<br />

só teria inconvenientes. Entretanto o principio da permanência<br />

dos parlamentos tem sido advogados na democracia avançada,<br />

e foi admittido em França mediante uma commissão permanente<br />

sahida do seio do parlamento. Esse expediente, tendo<br />

sido ali admittido de 1789 até o anno III. e de 1848 a 1852, não<br />

é reconhecido pela actual Constituição franceza.<br />

Além da França admittirão também essas commissões permanentes<br />

o Mexico, Const, art. j3 ; a Saxonia, Canst, art. 414 ;<br />

o Wurtemberg, Const, art. 81 ; o Grão Ducado de Bade, Constart.<br />

5(1).<br />

Para que a reunião do Congresso não ficasse á discrição<br />

( I ) V. Dtire^te ->- Constitutions muderues— Paris, 1883.


ISO NOÇÕES DE DIREITO PüDLICO<br />

do poder executivo, que poderia convocal-o, ou não, a Constituição<br />

dispôz que no tempo determinado elle se reuna independente<br />

de convocação.<br />

Para maior garantia da sua independência, para que o<br />

poder executivo não possa livrar-se de um Congresso importuno,<br />

adiando-o, nem por arbítrio do mesmo poder elle funccione<br />

além do tempo constitucional, commetteu a Constituição<br />

ao mesmo Congresso a competência exclusiva de deliberar a<br />

respeito da prorogação e adiamento de suas sessões, sendo que<br />

quanto ao adiamento a deliberação deve iniciar-se na câmara<br />

dos deputados, segundo dispõe o art. 29.<br />

Pôde, porém, o poder executivo convocar extraordinariamente<br />

o Congresso ( Art. 48 § 10 ). E é justo, por quanto no<br />

intervallo das sessões pôde occorrer na vida do Estado algum<br />

acontecimento grave, que exija prompto remédio, e que seja<br />

este da ordem d'aquelles que só o corpo legislativo pôde<br />

ministrar.<br />

O adiamento, isso é, a suspensão da sessão, para continual-a<br />

em outra epocha, não pôde ir além de um anno, porque<br />

a Constituição quer que o Congresso se reuna annualmente<br />

( Art. 17 ).<br />

Sendo da competência exclusiva do Congresso deliberar<br />

sobre a prorogação e adiamento de suas sessões (Art. 17 § i.°)<br />

é claro que nenhuma das câmaras por si só pôde votar alguma<br />

d'aquellas medidas ; a de prorogação, porém, pôde ser iniciada<br />

por qualquer d'ellas ; e assim se uma das câmaras não approvar<br />

o adiamento ou a prorogação, não se realisarão.<br />

A Constituição americana conferio a cada uma das câmaras<br />

o direito de adiar os seus trabalhos até três dias ; alem d'esse<br />

tempo não pôde uma câmara adiar-se sem o consentimento da<br />

outra ( Art. r." secç. V § 4.0 ").<br />

E se as duas câmaras não acórdão quanto ao tempo do<br />

adiamento, pôde o Presidente da Republica adial-as para epocha<br />

que lhe parecer conveniente ( Art. 2. 0 secç. 3.* ). Mas esse<br />

adiamento não pôde ser sine die, nem, segundo adverte Walker,<br />

exceder o período annual das sessões ( 1 ).<br />

E' escusado dizer que o Congresso não pôde ser dissolvido,<br />

nem d'isto cogita o corpo da Constituição (2 ),<br />

( 1 ) Loc. cit. p. S9 § 3õ.<br />

( 2 ) 0 § -í do art. 1 (1.1= Disposições transitórias, diz qne '1 Congresso cousti


H<br />

E CONSTITUCIONAL 151<br />

Em uma republica federativa a dissolução é acto absurdo, e<br />

ante democrático.<br />

Na republica unitária e parlamentar, qual é agora a fôrma<br />

de governo na França, a dissolução é admissível, e a lei constitucional<br />

de 25 de Fevereiro de 1875 ( art. 4. 0 ) confere ao Presidente<br />

da republica a faculdade de dissolver a câmara dos deputados,<br />

mediante consulta approbativa do senado. Segundo<br />

Julio Ferry « o direito de dissolução é da essência da republiea<br />

parlamentar ».<br />

Pôde também o Presidente d'essa republica ( Lei const,<br />

de 16 de Julho de 1875, art. 2.») adiar as câmaras, com tanto<br />

que o adiamento não exceda um mez, nem se dê por mais de<br />

duas vezes na mesma sessão. Pensão publicistas francezes que<br />

o direito de adiamento é justificado, por que pôde ter por fim<br />

pacificar os espíritos, ou pelo menos obrigal­os a recolherem­se<br />

ao silencio ( 1 ).<br />

O mandato legislativo do deputado dura três annos, não<br />

que a Constituição directamente o diga, como o fez a respeito<br />

do mandato de senador, dizendo no art. 3i que elle durará<br />

nove annos. Mas indirectamente segundo se infere do disposto<br />

no § 2. 6 do cit. art. 17 que diz: « Cada legislatura durará três<br />

annos ». Ora, a legislatura é o periodo de tempo durante o<br />

qual uma câmara legislativa existe constitucionalmente. Portanto,<br />

durando cada legislatura três annos, é claro que esse é o<br />

tempo do mandato legal do deputado.<br />

Na eschola democrática americana é um principio que<br />

deve ser breve a duração do mandato legislativo. *■ As eleições<br />

freqüentes, diz Story, são o melhor meio, se não o único, de<br />

tornar efficazes a dependência, a sympathia e a responsabilidade<br />

dos representantes perante para com o povo ».<br />

A Constituição americana, inspirando­se n'aquelle principio,<br />

deu ao mandato do deputado a duração de dous annos, e<br />

ao do senador seis, duração que aquelle publicista considera<br />

razoável. Entretanto, observa elle, se nos reportarmos á epocha<br />

tuinte. terminada a sua missão de constituir, separado em câmara e senado, pasaaria<br />

a exercer suas funcções norrnaes, o em hypothèse alguma poderia ser dissolvido. Esta<br />

cautelosa disposição previa a possibilidade do golpe de Estado, que se effectuou em 3<br />

de Novembro de 1891. Promulgada a Constituição em 2í de Fevereiro de í?l a 3 de<br />

Novembro do mesmo anno o primeiro Congresso foi dissolvido !<br />

( 1 ) Gir ms, Droit. Const, p. 199.


152 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

do estabelecimento da Constituição, admira-se que o povo<br />

tenha levantado clamores contra aquelle tempo, que reputava<br />

longo, e bradava — que eleições biennaes erão perigosas para<br />

as liberdades publicas ; que d'esse modo o Congresso se perpetuava<br />

no poder e reinaria como senhor absoluto sobre a<br />

nação. Aquelles que querião assemblca annual dizião — Aonde<br />

acaba o eleição annual, ahi começa a tyrannia. Where annual<br />

elections end, tyranny begins ( i ).<br />

O tempo para a renovação do mandato legislativo não pôde<br />

ser determinado como principio universal, applicavel a todos os<br />

tempos e a todas as nações; as condições e as circumstancias<br />

dos paizes varião muito, e são ellas que devem determinar a<br />

particularidade do tempo do mandato legislativo.<br />

Entretanto,não é possivel deixar de considerar muito longo<br />

o período de nove annos, fixado pela nossa Constituição para<br />

o mandato senatorial: é quasi uma vitaliciedade. Quantas<br />

mudanças não se operão na opinião publica do Estado durante<br />

nove annos ! Seis annos seria tempo muito razoável para esse<br />

mandato senatorial, como nos Estados Unidos do Norte.<br />

O longo período de nove annos começa a despertar entre<br />

nós a cobiça do senado. Por essa razão as cadeiras senatoriaes<br />

estão sendo preferidas ás da câmara dos deputados, exactamente<br />

como no tempo da monarchia, em que se reputava o<br />

senado o céo da política.<br />

( 1 ) Commentaries, t. 1. p. 422, §§ ns. ÕS7 — 88.


CAPITULO III<br />

CÂMARA DOS DEPUTADOS. SUAS ATTRIBUIÇÕES. DIREITO<br />

DE INICIATIVA<br />

I<br />

A câmara dos deputados é um dos dous ramos do poder<br />

legislativo, delegado ao Congresso com a sancção do Presidente<br />

da Republica ( Art. 16 § l.° ).<br />

Os americanos considerão o Presidente da Republica como<br />

o terceiro ramo d'aquelle poder, posto que a sua Constituição e<br />

o modo geral de faltar attribuão o poder legislativo ao Congresso.<br />

Essa consideração não é destituída de fundamento, por<br />

quanto nenhuma lei pôde ser estabelecida sem o consentimento<br />

do Presidente, excepto se as duas câmaras, depois do Presidente<br />

negar sancção, appro varem o projecto de novo por dous<br />

terços, depois de uma só discussão e por votação nominal<br />

( Art. 37 § 3." ).<br />

Mas nos casos ordinários, não ha duvida que o Presidente<br />

legisla com as duas câmaras. A resolução affirmativa ou negativa<br />

do Presidente, diz Pomeroy, no processo da formação da<br />

lei, é decisiva ; por isso, posto que de facto o poder legislativo<br />

se componha da câmara e do senado, formalmente e pelos<br />

termos da Constituição, elle consta de três ramos — Presidente,<br />

Senado e Câmara ( I ).<br />

Quando adiante fallarmos do poder eleitoral, diremos de<br />

que modo os deputados são eleitos e como a minoria será repre-<br />

( 1 ) Const, taw, p. lií § l"i.<br />

20


154<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

sentada. Por agora fallaremos do numero dos deputados e de<br />

sua proporcionalidade com a população do paiz.<br />

« O numero dos deputados, diz a Constituição, será fixado<br />

por lei em proporção que não excederá de um por setenta mil<br />

habitantes, não devendo esse numero ser inferior a quatro por<br />

Estado ( Art. 28 § 1.0 ).<br />

Em todos os parlamentos o numero dos deputados é mais<br />

ou menos arbitrário, ainda que se procure dar-lhe uma base fixa.<br />

Essa base ora é a circumscripção eleitoral do território do<br />

paiz, ora é o numero de seus habitantes, ora finalmente é uma<br />

combinação dos dous primeiros elementos.<br />

Se se divide o paiz em um certo numero de districtos, e se<br />

determina que cada um d'elles dê tantos deputados, temos o<br />

primeiro caso ; se calculando a população se estabelece uma<br />

proporção entre aquella e o numero dos representantes, como<br />

no citado art. 28, temos o segundo caso ; finalmente se se combinão<br />

os dous precedentes casos, temos a ultima <strong>ï</strong>rypothese que<br />

é a da Constituição franceza de 1875, a q ua ^ admittio o principio<br />

de um deputado por arrondissement administrativo, e mais<br />

um por fracçâo de cem mil habitantes para cada arrondissement<br />

( 1 ).<br />

Faltando-nos estatística da população exacta do paiz, é<br />

claro que a base de 70,000 para um deputado é arbitraria.<br />

Supposto que tivéssemos 14,000,000 de habitantes, como alguns<br />

computarão, deveríamos ter 200 deputados, quando actualmente<br />

temos 205 ( 2 ). O arbítrio torna-se ainda mais sensível,<br />

porque não se conhece o numero de habitantes de cada um dos<br />

Estados, para se poder dizer — tal Estado, tendo tantos habitantes,<br />

na razão du 70,000 para um deputado, deverá dar tantos<br />

deputados. Finalmente, para contentar os Estados de pequena<br />

população, a Constituição diz que nenhum dará menos de<br />

quatro deputados.<br />

Também nos Estados Unidos do Norte, ao tempo da Constituição,<br />

e até que se fizesse o primeiro recenseamento, deliberou-se<br />

arbitrariamente o numero de deputados que cada um dos<br />

( 1 ) A lei do 2í do Março de 1885. que restabeleceu o e=crutinio de lista<br />

tomou por base 70.000 para um deputado. V. Girons, Droit Const, ps. 252 e 704.<br />

( 2 ) Reg. mandado obseivar polo Dec. 11, 511 de 23 de Junho de 1890.


H<br />

E CONSTITUCIONAL 155<br />

trese Estados deveria eleger, devendo cada Estado dar pelo<br />

menos um ( Art. i.° secç. 2. a ).<br />

Ali a Constituição, depois de grande discussão, tomou a<br />

base de 3o,ooo habitantes por um deputado. Acontecendo,<br />

porém, que a população cresceu mui rapidamente, e sendo os<br />

americanos infensos ás assemblêas numerosas, leis ordinárias<br />

tem alterado a disposição constitucional. Assim, a lei de 22 de<br />

Junho de 1842 fixou a priori o máximo dos deputados e os<br />

distribuiu entre os Estados, de modo que a base constitucional<br />

de 3o,ooo elevou-se a 70,680.<br />

A progressão ascendente da população obrigou ainda o<br />

Congresso em 1872 a modificar de novo a proporção primitiva.<br />

O acto de 3o de Maio d'aquelle anno fixou o numero dos deputados<br />

em 292 para uma população de 38,n3,253 habitantes.<br />

Em 1880 novo recenseamento tendo accusado a existência<br />

de uma população de 50,155,783, o Congresso, sobre esta base,<br />

em 3 de Março de i883, elevou o numero dos deputados a 325,<br />

e os repartio proporcionalmente pelos Estados, ficando assim<br />

um deputado por 154,326 habitantee. E como, segundo a lei,<br />

cada novo Estado, que é admittido á União, tem direito a dar<br />

logo um deputado, e depois de 3 de Março de i883 fôrão admittidos<br />

quatro novos Estados, actualmente o numero dos deputados<br />

é de 329.<br />

Alguns publicistas americanos, atacarão por inconstitucional<br />

a fixação a -priori do numero de deputados ( I ). Mas, tendo<br />

hoje os Estados Unidos uma população de cerca de 62 milhões<br />

de habitantes ( 2 ), se rigorosamente se observasse a base constitucional<br />

de um deputado por 3o,000 habitantes, a câmara<br />

devia ter cerca de dous mil deputados !<br />

A câmara popular dos Estadhs Unidos é, pois, relativamente<br />

pouco numerosa. A França, tendo actualmente cerca<br />

de 38,ooo,ooo de habitantes, a sua câmara de deputados compõe-se<br />

de 576 membros. A Inglaterra com uma população<br />

de 39,000,000, a câmara dos communs conta 670 membros.<br />

Uma assembléa muito reduzida não pôde ter intelligencias<br />

necessárias para illustrai* as suas resoluções ; muito numerosa,<br />

( I ) V. Walker, American law, p. SO.<br />

{ 2 ) V. Almanacu de Gotha de 1890 p. 551.


I56 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

torna-se indócil ás intelligencias directoras, toma facilmente o<br />

caracter faccioso, e em vez de possuir a calma e a circumspecção<br />

necessárias ás deliberações, torna-se theatro de assuadas,<br />

em que as mediocridades dominão os homens de valor intellectual.<br />

E' evidente, dizia Hamilton, que tanto maior é o numero<br />

dos representantes, quanto mais considerável é a proporção dos<br />

membros ignorantes e inexperientes. A apparencia do governo<br />

pôde ser mais democrática, mas o espirito, que o anima, tornase<br />

mais olygarchico. A machina é maior, mas as molas que lhe<br />

dirigem os movimentos, são em menor numero e mais secretas<br />

( I ).<br />

Pelo § 2.° do art. 28, de que nos occupamos, é o governo<br />

federal autorisado a fazer o recenseamento da população da<br />

Republica, o qual será revisto decennalmente. Só depois de<br />

satisfeito esse preceito constitucional, será possível saber a<br />

proporção exacta entre a nossa população e o numero dos<br />

deputados.<br />

A' câmara dos deputados, assim como á dos senadores,<br />

compete ( Art. 18 ) : 1." verificar e reconhecer o poder de seus<br />

membros, 2.' eleger a sua mesa, 3.° organisar o seu regimento<br />

interno, 4.0 regular o serviço de sua policia interna, 5. 0 nomear<br />

os empregados de sua secretaria.<br />

Da primeira d'essas faculdades já nos occupamos; a respeito<br />

das três ultimas, não se suscita questão. Só algumas<br />

palavras é preciso dizer a respeito da eleição da mesa.<br />

Mesa é ajunta ou commissão de deputados da confiança da<br />

câmara e que dirige seus trabalhos ; é o corpo director da<br />

câmara. Compõe-se de um presidente, e quatro secretários,<br />

eleitos pela câmara para funccionar um mez. Para substituil-os<br />

ha dous vice-presidentes e dous secretários supplentes. O presidente<br />

é o primus inter pares, é o órgão da câmara, todas as<br />

vezes que ella tem de pronunciar-se collectivamente.<br />

São principaes attribuições do presidente da câmara : abrir<br />

e encerrar as sessões; dar a palavra aos deputados; dirigir as<br />

discussões e votações ; annunciar o resultado d'estas ; manter a<br />

ordem ; suspender e levantar as sessões ; formular ordem do<br />

dia, etc.<br />

( I ) Federalist, 11. 38.


v$<br />

E CONSTITUCIONAL 157<br />

Nos Estados Unidos do Norte, além d'aquellas attribuições,<br />

communs a todos os parlamentos, tem o presidente (speacker)<br />

a importantíssima funcção de nomear os membros das commissões<br />

permanentes (standing committees).<br />

Esse privilegio do presidente é criticado. Entretanto pôde<br />

ser justificado primeiramente pela economia de tempo, que se<br />

perderia com tantas eleições, ( lá existem cincoenta e duas<br />

d'essas commissões ), em segundo lugar pelo acerto da escolha.<br />

O presidente, sendo de ordinário distincto chefe de partido,<br />

conhece as aptidões e capacidade dos deputados melhor, do<br />

que estes, que se renovando de dous em dous annos, mal se<br />

conhecem uns aos outros.<br />

Entre nós as commissões permanentes são apenas dez ( 1 )•<br />

São eleitas pela câmara annuahnente, e não tem, a fallar a<br />

verdade, a importância das standing committees, as quaes,<br />

com o speaker, quasi que constituem a câmara, tamanha é a<br />

influencia que exercem em toda ella.<br />

Deixando o que occorre dizer sobre as commissões, para<br />

quando tratarmos do mechanismo do Congresso, estudemos<br />

agora á natureza das funcções da câmara dos deputados.<br />

Essas funcções se dividem em legislativa, politica e judiciaria.<br />

II<br />

A mais importante das funcções da câmara é sem duvida a<br />

de fazer as leis sempre conjunctamente com o senado, e ordinariamente<br />

com a cooperação do Presidente da Republica.<br />

As leis, sendo a expressão da vontade racional do povo organisado<br />

politicamente, e não como multidão inorgânica, elevem<br />

ser feitas pelos representantes do mesmo povo, inspirando-se na<br />

razão, nos principios da justiça e nas regras da utilidade social.<br />

Se ás câmaras compete fazer as leis, serão ellas também<br />

capazes de preparal-as ?<br />

Escriptores da maior competência sustentão que os corpos<br />

legislativos, sahidos do voto popular, não são capazes de fazer<br />

boas leis. Sempre oecupados em negócios occurrentes, em<br />

( 1 ) V. o actual Regimento, caj». \).


I58 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

questões de politica geral, em as leis orçamentarias, que tanto<br />

tempo absorvem, não são elles os mais aptos para preparar as<br />

grandes leis, os sábios trabalhos de codificação. O maiornurnero<br />

dos representantes sahe das urnas, não porque elles sejão os<br />

mais capazes da sociedade, ou porque se recommendem por seu<br />

saber jurídico, por seus conhecimentos de direito <strong>publico</strong> e<br />

privado, mas porque pertencem a um partido dominante, ou<br />

porque tem o favor official.<br />

O parlamento pôde discutir os projectos de lei, votal-os ou<br />

rejeital-os ; isto é da sua competência; mas para preparar esses<br />

projectos elle carece de capacidade.<br />

O sábio jurisconsulte Laurent diz : « Ha um velho provérbio<br />

que não devemos desprezar, ainda que seja vulgar — cada<br />

qual em seu officio. Se convém homens especiaes para applicar<br />

as leis, e outros para ensinal-as, com maioria de razão é preciso<br />

que os haja para preparal-as. O trabalho legislativo não é<br />

negocio de theoria ; o direito é uma face da vida, e as exigências<br />

da vida real muitas vezes são inteiramente différentes<br />

do que se ensina na cadeira ->.<br />

Pensa também Stuart Mill que a preparação das leis deve<br />

ser feita por um conselho legislativo composto de homens especiaes,<br />

o qual seja um como laboratório legislativo em que ellas<br />

se preparem. Em materia de legislação, como de administração,<br />

diz elle, o único trabalho de que é capaz uma assembléa é,<br />

não redigir leis, ou administrar directamente, mas mandar<br />

fdzel-as, decidir a quem deve ser confiado o trabalho, e a este<br />

conceder ou negar a saneção nacional... Ninguém quererá que<br />

esse conselho, preparador da lei, tenha por si o poder de<br />

fazel-as ; elle representa o elemento da intelligencia, o parlamento<br />

o da vontade. Nenhuma proposta d'esse conselho tornar-se-ha<br />

lei, se não fôr approvada pelo parlamento ( 1 ).<br />

Rossi, discursando sobre a codificação do direito penal,<br />

também sustenta a incapacidade das câmaras legislativas para<br />

os grandes trabalhos de codificação ( 2 ).<br />

Não obstante a procedência d'essas reflexões, geralmente<br />

os membros dos parlamentos, ou suas commissões, preparào os<br />

( 1 ) Gouvernement íepres. cap. õ.<br />

( 2 ) Droit, penal, L. 4 .cap. 3.


®<br />

E CONSTITUCIONAL 159<br />

projectos de lei, os discutem e approvão, sendo assim a um<br />

tempo preparadores e legisladores ( i ).<br />

As funcções politicas da câmara dos deputados, no actual<br />

regimen, são quasi nullas.<br />

Abolido, como está, o systema parlamentar, e consequentemente<br />

a responsabilidade ministerial, o poder executivo vive<br />

por si, e duTante o tempo do seu mandato, elle e seus ministros<br />

não estão sujeitos á mobilidade resultante das moções de confiança,<br />

das interpellações, dos requerimentos e ordens do dia,<br />

admittidas nos governos parlamentares, e de que as maiorias<br />

lanção mão para mudar a administração do paiz.<br />

Só em sentido lato se pôde dizer que a câmara dos deputados<br />

tem funcção política, considerando-a como interprete do<br />

paiz, e principal órgão de suas precisòes e de seus sentimentos.<br />

Mediante as suas discussões, a câmara influe necessariamente<br />

nas idéas politicas dos cidadãos, fazendo que elles pensem<br />

de um certo modo e nas eleições traduzão praticamente<br />

essas idéas e assim se mude o governo do Estado. D'esse modo<br />

as discussões da câmara fazem que os cidadãos participem da<br />

vida política do Estado e formem governos a seu contento.<br />

Essa funcção da câmara dos deputados, funcção altamente<br />

política, Bagehot a chama educadora. Um grande conselho,<br />

diz esse illustre escriptor, formado de homens de consideração,<br />

e cujas deliberações são publicas, não pôde existir em uma<br />

nação sem influir nas idéas dos nacionaes. E' seu dever modiíical-as<br />

para o bem, e ensinar ao paiz o que sabe-, assim pôde a<br />

câmara instruir a nação ( 2 ).<br />

Cifra-se a funcção judiciaria da câmara em aceusar e<br />

decretar a procedência ou improcedencia da aceusação contra<br />

o Presidente da Republica e contra os ministros de Estado nos<br />

crimes connexos com os do Presidente ( Art. 29 ).<br />

O direito da câmara dos deputados de aceusar os membros<br />

do governo é geralmente admittido em todas as constituições.<br />

Da constituição ingleza tirou a dos Estados Unidos do Norte o<br />

seu impeachment, dispondo que «só a câmara dos representantes<br />

terá o poder de aceusar por causa política ( impeachment )<br />

( Art. l.° secç. 2." § 5. 0 ).<br />

( 1 ) V. Saint Girons, Droit. Cons', p. 41<br />

( 2 ) La constitution anglaise, cap. 6.


16o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Nas monarchias constitutionaés a accusação política, arma<br />

terrível das maiorias contra seus adversários, tem caindo em<br />

desuso.<br />

Na Inglaterra os últimos impeachments forão de Warren<br />

Hastings em i786, processo que durou sete annos, sendo aceusadores<br />

Burke, Fox e Sheridan e que concluio pela absolvição<br />

do aceusado ; e o de lord Melville em 1805.<br />

Hoje ninguém falia mais ali em impeachment. A este<br />

suecedeu o pacifico processo do voto de desconfiança. Depois<br />

da queda de Walpole, diz Macaulay, é de pratica, senão estrictamente<br />

conforme á theoria do nosso direito constitucional,<br />

considerar a perda do cargo e a desapprovação publica como<br />

sufficiente castigo para os erros da administração, não imputaveis<br />

afactos pessoaes de corrupção ( 1 ).<br />

Também nos Estados Unidos do Norte o impeachment é<br />

arma política pouco usada. Desde 1789 até hoje, só um Presidente<br />

( Andrew Johnson em 1868 ) e um só ministro ( General<br />

Belknap, secretario da guerra em 1876 sob a presidência de<br />

Grant) forão sujeitos a impeachment.<br />

O impeachment americano não produz penalidade propriamente<br />

dita, n"as apenas a disqtialijication do aceusado,<br />

isto é, a declaração « de não poder exercer emprego algum<br />

honorífico, de confiança ou lucrativo no governo federal ».<br />

III<br />

A iniciativa, isto é, o direito de propor á discussão do corpo<br />

legislativo um projecto de lei, nas monarchias constitucionaes<br />

compete, tanto ao poder legislativo, como ao executivo ; mas<br />

praticamente raro é o projecto de lei iniciado pelos membros<br />

do corpo legislativo que chega a vingar, se não tem o placet<br />

do ministério. E' este o iniciador ordinário das leis.<br />

Na republica parlamentar de França pela Constituição<br />

actual ( Lei const, de 25 de Fevereiro de 1875, art. 3.° ) a iniciativa<br />

é commum ao presidente e ás duas câmaras ; o que é um<br />

progresso no governo representativo francez, pois pela Carta<br />

de 1814, só o rei tinha direito de propor as leis,e essa iniciativa<br />

exclusiva do chefe do Estado foi restabelecida na Constituição<br />

de 1852.<br />

( 1 ) V Fischel, loc. cit- t. 2 p. ilO,


E CONSTITUCIONAL 161<br />

Segundo a nossa Constituiçào o direito de propor leis<br />

compete unicamente ao poder legislativo ; o chefe do poder<br />

executivo pôde apenas « indicar ao Congresso nacional as providencias<br />

e reformas urgentes em mensagem dirigida ao secretario<br />

do senado no dia da abertura da sessão legislativa ( Artigo<br />

48 § 9-° )•<br />

A' regra geral, de que ambas as câmaras tem iniciativa, a<br />

Constituição faz excepções a respeito de certas matérias, cuja<br />

iniciativa deu privativamente á câmara dos deputados. Assim,<br />

compete a esta câmara a iniciativa : i.° do adiamento da sessão<br />

legislativa, 2." de todas as leis de impostos, 3." das leis de fixação<br />

das forças de terra e mar, 4." da discussão aos projectos<br />

offerecidos pelo poder executivo, 5. 0 da declaração da procedência<br />

ou improcedencia da accusação contra o Presidente da<br />

Republica e contra os ministros de Estado nos crimes connexos<br />

com os do Presidente da Republica ( Art. 29 ).<br />

Antes de fallar do fundamento das precedentes excepções<br />

occorre dizer alguma cousa sobre a 4/ excepção.<br />

Compete também á câmara a iniciativa da discussão dos<br />

projectos offerecidos pelo poder executivo.<br />

Pôde então o poder executivo, isto é, o Presidente da<br />

Republica, propor projectos de lei?<br />

O principio da separação dos poderes autorisa resposta<br />

negativa, e a propria Constituição, em outros artigos, parece<br />

vedar ao poder executivo a competência de ot<strong>ï</strong>erecer ou iniciar<br />

projectos de lei.<br />

De facto, diz o art. 36 que « salvas as excepções do art. 295<br />

os projectos de lei podem ter origem indistinctamente na<br />

câmara ou no senado, sob a iniciativa de qualquer de seus<br />

membros ». Logo o direito de iniciativa só compete aos membros<br />

do Congresso nacional.<br />

Accresce que, segundo a mesma Constituição ( art. 48 § 9. 0 )<br />

ao poder executivo, quanto ás suas relações com o Congresso,<br />

só compete « dar annualmente conta ao Congresso da situação<br />

do paiz, indicando-lhe as providencias e reformas urgentes em<br />

mensagem, que remetterá ao secretario do senado no dia da<br />

aberrura da sessão legislativa ».<br />

Ora, indicar em uma mensagem providencias, reformas?<br />

não é offerecer ou iniciar projectos de lei.<br />

Da natureza das relações dos principaes agentes do poder<br />

21


162 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

executivo, também não se pôde inferir que esse poder tenha<br />

competência para offerecer projectos ao Congresso.<br />

Com effeito o art. 51 diz que « os ministros de Estado não<br />

poderão comparecer ás sessões do Congresso, e só se communicarào<br />

com elle por escripto ou pessoalmente em conferências<br />

com as commissões das câmaras.<br />

Se os ministros não podem comperecer ás sessões, nem<br />

por tanto entrar no recinto da câmara, e apenas conferencião<br />

com as commissões em suas respectivas salas, como poderão<br />

offerecer projectos por parte do poder executivo?<br />

No regimen anterior, segundo a Constituição ( art. 37 n. 2 )<br />

era também da privativa iniciativa da câmara dos deputados a<br />

discussão das propostas, feitas pelo poder executivo. Mas,<br />

então, essas propostas não só estavão na natureza do systema,<br />

como a propria Constituição expressamente dava ao poder<br />

executivo o direito de propor ( Art. 53 ).<br />

Mas, ainda assim, as propostas do poder executivo, só<br />

depois de examinadas por uma commissão da câmara dos deputados,<br />

podião ser convertidas em projectos dejei, e o erão pela<br />

commissão ( Ibid ).<br />

Entretanto a Constituição actual, republicana e federal,<br />

falia de projectos offerecidos pelo poder executivo, o que não<br />

está de accôrdo com o final do citado art. 36.<br />

Aquella expressão constitucional não pôde ser, em minha<br />

humilde opinião, entendida litteralmente.<br />

Dou-lhe, portanto, interpetração lógica, dizendo que o seu<br />

verdadeiro sentido parece ser o seguinte.<br />

Em sua mensagem o Presidente pôde pedir ou lembrar a<br />

adopção de certas leis ; um doputado amigo, de posse do pensamento<br />

do poder executivo, redige um projecto, e o offerece<br />

como seu ; pôde mesmo recebel-o já preparado por algum dos<br />

agentes d'aquelle poder, e inicial-o em seu nome. Assim se<br />

pratica nos Estados Unidos ( 1 ).<br />

Um sábio expositor da Constituição d'aquelle paiz, fallando<br />

das funcções legislativas do Presidente, diz que a todos os<br />

respeitos são inferiores ás do senado e da câmara dos deputados.<br />

Esta inferioridade consiste : primo, em que no caso do<br />

( 1 ) V. Chíimbrun. Pouvoir executif aux Etats-Unis, p. 112.


u<br />

E CONSTITUCIONAL l63<br />

veto presidencial pôde este ser inutilisado pelos dous terços do<br />

Congresso, ou, em outras palavras, a maioria de dous terços<br />

praticamente dispensa o concurso do Presidente na formação da<br />

lei ; secundo em que o Presidente não pôde iniciar medidas<br />

legislativas. Elle pôde, é verdade, ministrar informações,<br />

recommendar medidas á consideração do Congresso, mas não<br />

directamente apresentar projectos de lei ( I ).<br />

Voltando ao assumpto, em outra parte de sua excellente<br />

obra, Pomeroy, diz: O Presideute não pôde iniciar (originate)<br />

medida legislativa, nem expressamente dar opinião sobre<br />

ella, excepto quando tem de sanccional-a... Tal é o espirito<br />

da Constituição, do qual não é possivel separar-se sem destruir<br />

um dos principaes fundamentos dos governos livres e constitucionaes<br />

— a independência dos poderes executivo e legislativo •<br />

A pratica contrária daria em resultado a concentração de todo<br />

o poder governamental nas mãos do chefe do executivo, ficando<br />

assim o Congresso virtualmente apeado de sua posição de ramo<br />

independente e coordenado d'aquelle poder e convertido em<br />

mere registrar of the President's informal decrees ( 2 ).<br />

Portanto, senão foi uma inadvertencia dos redactores da<br />

nossa Constituição, a excepção 4." do art. 29, manifestamente<br />

contradictoria com o espirito e com a lettra dos arts. 36 e 51,<br />

só pôde ser entendida no sentido que lhe damos.<br />

Voltando agora ao direito de iniciativa da câmara dos<br />

deputados, perguntaremos : que fundamento teem esse direito ?<br />

Emanando as duas câmaras do mesmo corpo eleitoral, será<br />

razoável que o senado tenha direito de iniciativa menos amplo,<br />

do que a câmara dos deputados ?<br />

Essa desigualdade de direitos entre as duas câmaras representativas,<br />

eleitas do mesmo modo, é combatida, com boas<br />

razões, por muitos publicistas.<br />

As câmaras sendo igualmente nacionaes e representativas,<br />

tendo ambas a mesma origem devem ter igual direito da fallar<br />

em nome do paiz. Se a Constituição escripta admitte entre<br />

ellas qualquer desigualdade, é um erro, que praticamente se<br />

traduz em uma injustiça, porque ambas sahem dos mesmos elementos<br />

sociaes.<br />

( 1 ) V. Pomeroy, Introd. to the constitutional law, p. 114, § 175.<br />

( 2 ) Ibid. p. 587 § 702,


164 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Nos paizes em que as câmaras não tem a mesma origem, e<br />

sahe uma do voto popular, e outra da vontade do chefe da<br />

nação, comprehende-se aquelle privilegio.<br />

E assim é que na Inglaterra a câmara dos communs reclamou<br />

sempre o direito de iniciativa em lei de impostos. A nação<br />

não pôde ser tributada senão pela representação dos contribuintes<br />

e na fôrma por elles estabelecida. Tal é o principio de<br />

direito constitucional inglez. A tradição constitucional nega<br />

aos lords a iniciativa, e até o direito de emenda das leis orçamentarias,<br />

e só lhe reconhece o direito de regeitar o bills que<br />

crião ou supprimera impostos.<br />

Ali o direito de prioridade em favor da câmara dos communs<br />

se explica, porque ella é eleita, ao passo que a câmara<br />

dos lords não o é.<br />

Mas entre nós, ambas as casas do parlamento sahindo das<br />

urnas populares, porque a iniciativa em certos casos é privativa<br />

da câmara dos deputados ? Só uma resposta se pôde dar —<br />

é porque a Constituição assim o prescreveu.<br />

Nos Estados Unidos do Norte a Constituição também estabelece<br />

que « todo projecto de lei autorisando percepção de<br />

impostos deve originar-se na câmara dos deputados », mas logo<br />

accrescenta que « o senado poderá n'elle collaborar apresentando<br />

propostas em fôrma de emendas, do mesmo modo que<br />

em relação aos outros projectos de lei » (Art. i.° secç. 7.* § l.°).<br />

Essa disposição é uma reminiscencía da tradição ingleza ;<br />

mas também não é satisfactoriamente explicável, porque ali<br />

ambas as câmaras são electivas, ainda que o processo eleitora]<br />

tenha differenças.<br />

Commentando aquella disposição, Pomeroy diz que ella é<br />

substancialmente copiada da Constituição ingleza, e que não<br />

havia razão para trazel-a para Constituição americana ; porque<br />

a organisação official é différente da organisaçào da administração<br />

ingleza. « Entre nós, diz elle, não ha razão para que a<br />

câmara dos deputados seja mais cuidadosa dos dinheiros públicos,<br />

do que o senado. Os constituintes de ambas as câmaras<br />

sào afinal de contas os mesmos e supportão igualmente o peso<br />

dos impostos. Vai sendo opinião geral, creio eu, que aquella<br />

disposição constitucional não somente é inutil, mas é também<br />

um embaraço na formação das leis » ( I ).<br />

( 1 ) Constitutional law p. lii g 222.


*i<br />

E CONSTITUCIONAL 165<br />

O direito de prioridade nas leis de finanças, com que a<br />

Constituição americana quiz distinguir a câmara dos deputados,<br />

na pratica, longe de ter aquelle resultado, pelo contrario é<br />

causa da inferioridade de sua influencia em materia de finanças.<br />

De facto, dando aquella Constituição ao senado, como<br />

vimos, o direito de emendar as leis de orçamento, succède que<br />

o senado usa amplamente d'esse direito. Ora, é de regra não<br />

tomar a câmara conhecimento das emendas do senado ; repelle-as<br />

a priori. Então, de accôrdo com a lei regimental, vai o<br />

bill emendado a uma commissão mixta, composta de três deputados<br />

e três senadores, chamada de conferência (committee of<br />

conference) e ahi se discute, em reservado, e elabora-se um<br />

relatório, cujas conclusões exprimem o resultado da transacção.<br />

Essas conclusões são submettidas ás duas câmaras, que<br />

as acceitão ou regeitão, sem emendal-as,<br />

Basta, pois, que os três senadores, membros da commissão,<br />

mostrem certa tenacidade, para que as emendas do senado<br />

prevaleçâo. Por isso um distincto estadista americano disse<br />

em 1880, que todos os esforços empregados pela câmara dos<br />

deputados em i832, 1856 e 1870 em defesa de seu direito de<br />

iniciativa contra as invasões do senado,tem sido em detrimento<br />

de sua igualdade legislativa ; de mouo que aquella câmara<br />

teria lucrado abrindo mão de um privilegio, cujo beneficio real<br />

pertence ao senado ( 1 )<br />

O sábio Story, procurando justificar o direito de iniciativa<br />

da câmara dos deputados, apenas diz que ella representa mais<br />

dirtetamente as opiniões e sentimentos do povo, c estando<br />

ella mais na dependência d'esté, deve ser mais cautelosa e<br />

attenta em lançar imposto sobre o povo, do que o senado, que<br />

emana dos Estados em sua capacidade política ; mas logo<br />

acerescenta que os senadores representando também o povo,<br />

convinha que tivesse o direito tanto de rejeitar, como de emendar<br />

as leis de impostos ( 2 ).<br />

Nossa Constituição, dando expressamente á câmara dos<br />

deputados o direito de iniciativa de todas as leis de impostos,<br />

não diz, como fez a Constituição americana, que o senado<br />

possa emendal-as ; de modo que se o senado não se conformar,<br />

( 1 \ V. Boutmy, Etudes de droit const. ]>. 1-12 e seg.<br />

( 2 ) Commentaries, t. I p. 620 § 876.


i66 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

n'esse ponto, com o projecto da câmara, só tem direito de<br />

rejeital-o, e se se propuzer a emcndal-o, correrá risco de abrir<br />

lucta com a outra câmara.<br />

E' verdade que a Constituição (Art. 34) dando ao Congresso<br />

nacional a competência de « orçar a receita, fixar a<br />

despeza, tomar contas da receita e despeza, de legislar sobre a<br />

divida publica e estabelecer os meios para seu pagamento »<br />

implicitamente deu ao senado o direito de emendar o projecto<br />

de orçamento para mais ou para menos, isto é, de augmentai'<br />

ou de diminuir impostos. Mas teria sido melhor que aquelle<br />

direito lhe tivesse sido explicitamente outhorgado.<br />

As outras excepções do cit. art. 29 estão no mesmo caso<br />

da precedente.<br />

Desde que o senado emana da mesma fonte que a câmara<br />

dos deputados, porque não poderá iniciar resoluções sobre<br />

adiamento da sessão legislativa, sobre fixação de forças de terra<br />

e mar, sobre projectos ojferecidos pelo poder executivo ?<br />

Quanto á iniciativa relativa á accusação contra o Presidente<br />

da Republica, esta é justificável. Aqui trata-se de<br />

diversidade de attribuições ; uma câmara accusa e a outra<br />

julga.<br />

O accusador não deve ser juiz ; se uma das câmara accusa<br />

a outra deve julgar. N'este caso as câmaras não obrão como<br />

corpos co-legislativos, mas como tribunaes de justiça ; principalmente<br />

o senado, que na hypothèse, devendo ser presidido<br />

pelo Presidente do Supremo Tribunal federal, proferindo sentença,<br />

e impondo pena, é um verdadeiro tribunal de justiça,<br />

e não câmara legislativa.


9'!<br />

CAPITULO IV<br />

O SENADO. MODOS DE SUA CONSTITUIÇÃO. RENOVAÇÃO. PRE­<br />

SIDÊNCIA DO SENADO. FUNCÇÕES LEGISLATIVA, JUDICIA­<br />

RIA, POLÍTICA E EXECUTIVA DO SENADO.<br />

I<br />

Já mostramos que o concurso de duas câmaras é uma<br />

necessidade nos governos representativos.<br />

Todos os povos livres dos tempos passados tiverão mais<br />

de uma assembléa. As antigas republicas de Athenas e de<br />

Esparta, as de Cathargo e de Roma, além da assembléa popular,<br />

tiverão areopagos, geroncios e senados. Nas monarchias<br />

da idade médias existião três assembléas ; as republicas italianas<br />

d'aquelle tempo, a aristocrática Veneza, como a democrática<br />

Florença, também tiverão, não só os grandes conselhos,<br />

mas também os pequenos e os senados.<br />

Os antigos germanos, que alguns reputão pae do constitucionalismo,<br />

além da assembléa dos principes, a qual curava<br />

das cousas menores, de minorions rebus principes consultant,<br />

tinhão, segundo Tácito, outra composta de todos os cidadãos,<br />

a qual deliberava acerca das cousas de maior importância, de<br />

majorions omnes ( i ).<br />

Em nossos dias bem raro é o paiz, regularmente constituido,<br />

que não tenha senado. A nossa Constituição constituio<br />

o Congresso com duas câmaras, e os próprios Estados, em sua<br />

maioria, tem sua câmara de deputados e seu senado.<br />

O senado, porém, para não ser uma superfetação, uma<br />

( 1 ) V. Palma, Corso di dir. cost. t. 2 c. 5 e t. 1 c. 9.


i68 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

mera duplicação de câmara, deve ter origem e organisação différentes<br />

da câmara dos deputados.<br />

Com effeito, a segunda câmara, sendo destinada a rebater<br />

e moderar os Ímpetos do ramo popular do Congresso, se fôr<br />

constituída com elementos idênticos não poderá desempenhar o<br />

seu papel; terá por força as mesmas tendências, as mesmas<br />

paixões, e em vez de moderadora, será excitadora, como a<br />

outra; em vez de exprimir o espirito conservador da sociedade,<br />

revelará o mesmo espirito reformador, o mesmo desejo de innovação.<br />

N'este caso o dualismo parlamentar será pelo menos<br />

inutil, quando não fôr perigoso para o paiz, que verá as duas<br />

secções do parlamento se batendo para obter popularidade,<br />

mediante projectos de leis, cada qual mais adiantado ( I ).<br />

Especialmente em uma sociedade democrática, o senado<br />

deve ser nacional, representativo, em outros termos, deve sahir<br />

do voto nacional, para que tenha a precisa autoridade; mas<br />

deve também ser constituído com requisitos différentes dos da<br />

câmara dos deputados.<br />

Nossa Constituição não attendeu bastante a este ponto.<br />

Segundo ella para ser eleito senador basta estar na posse dos<br />

direitos de cidadão brazileiro, ser alistavel como eleitor e ser<br />

maior de 35 annos ( Art. 26 e 3o ).<br />

Os senadores, como os deputados, sahem do mesmo corpo<br />

eleitoral, e não se distinguem senão ; em que: i.° o deputado<br />

pôde ser eleito com 21 annos e o senador com 35, 2. 0 seu mandato<br />

dura apenas três annos, quando o de senador dura nove<br />

3.° o naturalisado é elegivel deputado depois de quatro annos<br />

de naturalisação e senador depois de seis annos.<br />

Eis aqui as únicas differenças, que em verdade não são<br />

bastantes para constituir duas câmaras différentes.<br />

Nos Estados Unidos do Norte a camar? dos deputados ou<br />

dos representantes e a dos senadores são constituídas de modo<br />

mais congruo ao fim a que se destinão.<br />

Os senadores sahem de eleição indirecta, porque são eleitos<br />

pelos legisladores dos Estados, ao passo que os representantes<br />

são eleitos directamente pelo corpo eleitoral; devem ter 3o<br />

annos de idade, e os representantes 25 ; devem ser cidadãos dos<br />

( 1 ) V. Girons, Separation des pouvoirs, p. 197.


f<br />

E CONSTITUCIONAL 169<br />

Estados Unidos desde nove annos, e os representantes desde<br />

sete ; devem além d'isso residir no Estado que os escolhe ;<br />

finalmente o mandato dos senadores dura seis annos, e o dos<br />

representantes dous ( I ).<br />

D'essas differenças resulta a notável distincção que todos<br />

reconhecem entre aquellas duas câmaras.<br />

Tocqueville attribue a grande superioridade do senado<br />

americano, em comparação da câmara dos representantes,<br />

principalmente ao systema eleitoral de dous gráos. Seja devido<br />

á eleição indirecta só, ou conjunctamente aos outros requisitos<br />

senatoriaes, o certo é que o senado americano passa por uma<br />

das mais illustres e notáveis corporações.<br />

No regimen federal o senado representa a federação dos<br />

Estados, e a câmara dos deputados a união nacional ; esta<br />

representa directamente o povo da União proporcionalmente<br />

ao numero dos habitantes do paiz, aquelle representa os Estados<br />

em igual proporção, sem attenção ao numero de seus respectivos<br />

habitantes<br />

II<br />

O numero dos nossos senadores foi fixado pela Constituição<br />

em três por cada Estado e três pelo Districto federal, eleitos<br />

pelo mesmo modo porque o forem os deputados ( Art. 20),<br />

e montão portanto em 63.<br />

Os americanos não gostão de assembléas numerosas.<br />

A grande União contando hoje 42 Estados, com uma população<br />

de mais de 60 milhões, o seu senado apenas tem 84 membros,<br />

na razão de dous para cada Estado, como dispõe a Constituição,<br />

cujos autores com muita sabedoria resistirão a opinião<br />

d'aquelles que querião um senado capaz, pelo numero, de<br />

conter a câmara popular.<br />

Madison, um dos mais distinctos d'aquelles autores dizia :<br />

«A funcção do senado consiste em proceder com calma, com<br />

moderação e prudência, em mais alto gráo, do que o ramo<br />

( 1 ) Em 1881 apresentou-se no Congresso um projecto de emenda à Constituição,<br />

para que os senadores fossem eleitos pelo voto popular. Foi rejeitado.<br />

A eleição dos senadores pelo povo tem nos Estados Unidos muitos partidários.<br />

V. J. Bryce, loc. cit. t. 1 p. 9G — nota-<br />

22


17o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

popular do Congresso. Se augmentardes o numero de seus<br />

membros, lhe communicareis todos os vicios que elle tem por<br />

missão corrigir; isso não lhe dará mais valor; pelo contrario<br />

sua autoridade será na razão inversa do numero de seus membros.<br />

Quando o valor de um grupo de homens depende somente<br />

do caracier pessoal de cada um d'elles, quanto maior for o<br />

numero, maior será a sua autoridade moral; mas, quando, pelo<br />

contrario, aquelle valor depende do gráo do poder politico<br />

outhorgado a esse grupo, quanto menos numeroso fôr, mais<br />

considerável será a sua influencia ».<br />

A igualdade da representação no senado, isto é, três senadores<br />

por cada Estado, não pôde ser alterada nem mesmo em<br />

revisão constitucional. Com effeito, nenhum projecto tendente<br />

a abolir essa igualdade pôde ser admittido, conforme a Constituição,<br />

como objecto de deliberação no Congresso (Art. 90 § 4).<br />

A Constituição americana contém disposição idêntica. Ahi<br />

se diz que nenhuma emenda á Constituição será feita tendo<br />

por fim privar qualquer Estado, sem seu consentimento, da<br />

igualdade de suffragio no senado ( Art. 5. 0 in fine ).<br />

Esta disposição não foi escripta na Constituição dos Estados<br />

Unidos do Norte sem grande dificuldade, porque os pequenos<br />

Estados não querião ser absorvidos pelos grandes, e estes<br />

gritavão que a igualdade de voto entre os Estados, seria o<br />

governo da maioria pela minoria, visto que a população dos<br />

grandes Estados era numerosa, e a dos pequenos fraca.<br />

Triuir.phou o principio federal, isto é, a igualdade da<br />

representação na composição do senado.<br />

Entre nós o principio triumphou sem contestação possível.<br />

O Congresso constituinte liberalmente outhorgou aos pequenos<br />

Estados a mesma representação que aos grandes, e uns e<br />

outros silenciosamente acceitárão a liberalidade.<br />

III<br />

Os senados se constituem por diversos modes, que se<br />

podem reduzir a quatro : i.° Por nomeação do chefe do Estado<br />

2." Por designação de lei, 3." Por eleição, 4." De modo mixto,<br />

isto é, por eleição e nomeação do chefe do Estado.<br />

Quanto a duração o senado pôde ser : i.° hereditário,<br />

2." vitalício, 3.° temporário.


&<br />

E CONSTITUCIONAL I7I<br />

O systema de nomeação dos senaderes pelo chefe do Estado<br />

é sustentado por alguns publicistas ; outros, porém, a censurão<br />

com muito boas razões.<br />

Um senado de nomeação só representa a vontade de quem<br />

o nomeou, e não pôde, por isso, ter a necessária autoridade ;<br />

esta só pôde originar-se do voto nacional.<br />

Dizem que esse modo de constituir o senado é muito util,<br />

porque fortifica o poder executivo.<br />

Com effeito, um poder executivo fraco é cousa deplorável<br />

em um regimen social bem constituído. Dizia Hamilton que a<br />

qualidade dos governos se mede pela força do seu executivo.<br />

Mas é illusão acreditar que um senado nomeado fortifique o<br />

poder executivo.<br />

D'onde : tirará elle força para fortificar a quem o nomeou ?<br />

Creatura do chefe do Estado, o senado difficilmente opporá<br />

embaraços aos seus actos ; complacente com a vontade que lhe<br />

deu o ser, irá perdendo o conceito na opinião publica, e acabará<br />

por não ser senão uma espécie de conselho privado, sem<br />

força e sem caracter nacional. Napoleão I dizia do seu senado :<br />

« Um simples signal era uma ordem para o senado, que fazia<br />

sempre mais, do que se queria que se fizesse ».<br />

A esse modo de constituir o senado anda annexa a hereditariedade,<br />

pela qual os filhos mais velhos dos senadores ou<br />

pares herdão as funcções senatoriaes. Este systema existe na<br />

Inglaterra, na Prussia, na Austria, na Hungria, na Baviera,<br />

no Wurtemberg.<br />

Na Inglaterra, porém, o senado não é totalmente hereditário<br />

; alguns senadores são electivos. Os senadores irlandezes<br />

são eleitos vitaliciamente pelos seus pares, e os da Escócia o<br />

são somente pela duração de uma legislatura, isto é, por sete<br />

annos ( 1 ).<br />

O systema de designação por lei consiste em a lei estabelecer<br />

as classes sociaes, das quaes devem sahir os senadores.<br />

N'esta hypothèse os altos funccionarios do Estado, como gene-<br />

( 1 ) Fonblanquc L'Angleterre, son gouvernement, ses institutions, p. 24.<br />

0 estatuto sotennal de Jorge I fixou a duração da legislatura em sete annos, mas<br />

esse maximum raras vezes ë esgotai] 1. N'este século sú ires vezes o parlamento<br />

durou sete annus — a primeira de 1820 a 1826, a segunda de ISi 1 a 1847, a terceira<br />

de 1859 a 1865, V. Franqueville, obra oit, t. 3 p. 52.


172 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

raes, magistrados, ecclesiasticos do alto clero tornâo-se senadores<br />

de direito. Essas summidades do exercito, da magistratura,<br />

do clero, etc, sendo nomeadas pelo chefe do Estado,<br />

e por lei devendo sahir d'aquellas classes, é claro que os senadores<br />

indirectamente são designados pelo poder executivo ; e por<br />

conseguinte este systema na realidade não diffère muito do<br />

precedente.<br />

Com o systema de senadores por direito de cathegoria de<br />

funcções, póde-se constituir uma assembléa de sábios, um<br />

excellente conselho de governo, mas nunca, diz Palma, um<br />

poder politico composto de homens independentes, capazes de<br />

partilhar do exercício do poder soberano conjunetamente com<br />

o chefe do Estado, rei ou presidente, com uma câmara de deputados,<br />

principalmente eleita por suffragio universal ( i ).<br />

Esse systema, de modo puro, não existe em parte alguma.<br />

Na Italia o senado é de nomeação regia, em numero illimitado,<br />

mas tirado de certos classes de funecionarios, que a Consti,<br />

tuição ( art. 33 ) enumera, em numero de vinte e uma ( 2 ).<br />

Em França, quando em 1875 se discutio a actual Constituição,<br />

o mesmo systema foi proposto para metade do senadores,<br />

mas não vingou.<br />

O modo de constituir o senado por eleição é de todos o<br />

melhor, e o único compatível com os princípios democráticos ;<br />

é adoptado na mór parte dos paizes regidos pelo systema constitucional<br />

representativo. O modo de eleger, porém, é variável,<br />

assim como as condições de censo, e a duração do mandato-<br />

O S}-stema de eleição se encontra em alguns paizes combinado<br />

com a escolha do chefe do Estado. Assim, na Hespanha<br />

o senado se compõe em metade de senadores de direito, e de<br />

senadores vitalícios nomeados pelo rei, sendo a outra metade<br />

eleita.<br />

E' sabido que entre nós, no regimen passado, o senado<br />

provinha a um tempo da eleição e do chefe do Estado, que os<br />

nomeava vitaliciamente de uma lista triplice formada pelo voto<br />

popular, a principio indirecto, especial ou por eleição de dous<br />

gráos, e depois directamente pelos mesmos eleitores dos deputados.<br />

( 1 ) Corso cit. t. 2 p. 2tí6.<br />

( 2 ) V. Darest, Const, modernes, t. 1 p. 550.


n<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

IV<br />

Não podendo quadrar a um paiz democrático um senado<br />

■nomeado e vitalício, mas convindo ao mesmo tempo dar­lhe<br />

uma certa estabilidade relativa em contraposição da outra<br />

câmara, que em certos períodos se renova integralmente, se<br />

adoptou a theoria da renovação parcial, theoria de origem<br />

americana.<br />

Assim, eleito o senado por um certo numero de annos, para<br />

que a tradição e a continuidade se mantenhão no governo do<br />

Estado, e ao mesmo tempo as idéas novas sejão representadas,<br />

a corporação é dividida em classes ou tuimas, as quaes vão<br />

sendo successivamente mudadas mediante eleição.<br />

Este systema, praticado nos Estados Unidos do Norte, na<br />

Bélgica e na França, foi o adoptado pela Constituição para o<br />

nosso senado. O mandato senatorial dura nove annos, mas o<br />

senado renova­se pelo terço triennalmente í Art. 3i ).<br />

No primeiro anno da primeira legislatura discriminão­se os<br />

senadores em três classes correspondentes aos três terços, por<br />

ordem da votação respectiva. Assim, os três senadores mais<br />

votados formão uma turma, e esta durará nove annos ; a segunda<br />

turma será formada dos immediatos em votação, e durará<br />

sei­ annos ; finalmente os menos votados formão a terceira<br />

tu: ia, que durará três annos. No fim do primeiro triennio<br />

ces ia o mandato da turma dos menos votados, e elegem­se<br />

novos ; no fim do segundo triennio cessa o da turma dos médios<br />

em votação, e elegem­se outros; finalmente no termo do terceiro<br />

triennio cessa o mandato da turma dos mais vatados.<br />

No caso de empate, por igualdade de votação, são preferidos<br />

os mais velhos, decidindo­se por sorteio, quando a idade fôr<br />

igual ( Disposições Transitórias Art. i.° §§ 5. 0 , 6." 7. 0 ).<br />

Isto posto, dos actuaes senadores uns terminarão o seu<br />

mandato no fim de três annos, outros no fim de seis, e somente<br />

outros, ( os mais votados ) terão o mandato constitucional de<br />

nove annos. Depois todos terão mandato por nove annos.<br />

No caso de vaga, o senador eleito, para preenchel­a, exerce<br />

o mandato pelo tempo que restava ao substituído ( Art. 3i<br />

paragrapho único ).<br />

De outro modo se procede nos Estados Unidos, cuja Con­<br />

I73


174<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

stituição dispõe, que, no caso de vaga senatorial, podendo<br />

esta occorrer no intervallo das sessões do Congresso estadal,<br />

para que o Estado não fique, mesmo por pouco tempo, sem<br />

representação completa no Congresso nacional, se nomeie provisoriamente<br />

um senador. « Se alguma vaga se der no senado,<br />

diz o art. i.° secç. 3." § 2.°, por demissão, ou qualquer outra<br />

causa, no intervallo das sessões do Congrenso do Estado, o<br />

o poder executivo d'esté fará uma nomeação provisória, até<br />

que o mesmo Congresso possa preencher a vaga ».<br />

Ali o mandato senatorial é de seis annos. O senado renova-se<br />

por terço biennalmeute, sendo os senadores discriminados<br />

em três classes ; mas essa discriminação se fez á sorte,<br />

e não, como entre nós, na ordem da votação. Na primeira legislatura<br />

a primeira classe sorteada exerceu as funcções por dous<br />

annos, a segunda por quatro, e a terceira por seis, tempo completo<br />

do mandato.<br />

Entretanto, attendendo ás exigências do federalismo, a<br />

renovação biennal tem praticamente sido regulada de modo que<br />

os dous senadores de um Estado nunca são simultaneamente<br />

eleitos ( I ).<br />

Mediante o systema da renovação o senado póde-se considerar<br />

perpetuo, do mesmo modo, escreve Laboulaye, que as Academias,<br />

nas quaes tudo se renova insensivelmente e assim se considerão<br />

immortaes. Os individuos passão, a corporação fica. D'esta<br />

maneira o senado tem a vantagem das aristocracias, sem<br />

o egoísmo d'ellas ; procede de eleição, sem ter a mobilidade<br />

d'esta. .Se o senado contraria as idéas populares, nada impede<br />

que o povo envie um terço de dovis em dous annos de novos<br />

senadores e este terço mudará a face da assembléa. Por esse<br />

expediente souberão os americanos, diz a citado Laboulaye,<br />

instituir no seio de uma democracia um poder electivo e permanente<br />

( 2 ).<br />

Na Bélgica também o senado é electivo e se renova.<br />

O mesmo corpo eleitoral que elege os deputados, elege os<br />

senadores, variando somente as condições de elegibilidade<br />

( 1 ) Carlier, loc. cit. t. 2 p. 39. Pode-se ver em Story, Commentaries t. 1<br />

p. 519, § 72ti, como na primeira sessão do Congresso se fez essa classificação.<br />

( 2 ) líist. des Etats-Unis, t. 3 p. 392.


n<br />

E CONSTITUCIONAL 175<br />

quanto a idade ( 40 annos ), e quanto ao censo ( 1000 florins ).<br />

O tempo do mandato é de oito annos, e se renova por metade<br />

de quatro em quatro annos ; mas no caso de dissolução o<br />

senado se renova integralmente ( Const. Arts. 53, 54, 55 ).<br />

O mesmo systema de renovação foi adoptado na Constituição<br />

da actual republica franceza. Em 3oo membros, que<br />

compõe o senado, 75 são inamoveis e 225 eleitos por nove annos,<br />

e renováveis por terço de três em três annos. Os senadores<br />

inamoviveis forão na primeira vez eleitos pela assembléa nacional<br />

vitaliciamente ; e as vagas que vão occorrendo o senado as<br />

prove elegendo de seu seio o substituto. Em parte, pois,<br />

realisa-se no senado francez o systema da cooptatio dos senados<br />

aristocráticos da idade média, adoptado pelas constituições<br />

napoleonicas de 1709 e 1804. Em França o senado não é dissoluvel,<br />

e os terços renováveis, são tirados á sorte.<br />

V<br />

« O vice-Presidente da Republica será Presidente do senado,<br />

onde só terá voto de qualidade, e será substituído, nas<br />

ausências e impedimentos, pelo vice-Presidente da mesma<br />

câmara ». Assim dispõe o art. 32 de nossa Constituição.<br />

Que pensar de semelhante disposição ?<br />

Geralmente os presidentes das câmaras sahem, e devem<br />

sahir, da propria corporação, por votação d'esta. Entretanto<br />

os americanos, sempre guiados pela tradição ingleza, disposerão<br />

em sua constituição que o presidente do senado seria o<br />

vice-Presidente da Republica.<br />

Com effeito, o art. i.° secç. 3." §§ 4. 0 e 5.0 d'aquella Constituição<br />

diz « que o vice-Presidente dos Estados Unidos será<br />

presidente do senado, mas não terá o direito de votar, excepto<br />

no caso de empate ; que o senado nomeará os outros seus<br />

emprega^ >s, assim como um presidente pro tempore, que presidirá<br />

na ausência do vice-presidente, ou quando este estiver<br />

exercendo as funcções de Presidente dos Estados Unidos »<br />

Eis aqui a fonte do nosso art. 32.<br />

Na Inglaterra, ao passo que o presidente da câmara dos<br />

communs (speaker ) é de eleição, d'esta, o presidente da câmara<br />

dos lords é ex-officio o lord alto chancelier ou lord guarda<br />

do grande sello. D'essa anomalia resulta que nem sempre esta


176 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

assembléa é presidida por um membro do parlamento, embora<br />

seja de praxe que n'esses casos o chanceler seja logo elevado á<br />

dignidade de par. Posto que presida a câmara, si não é pan<br />

não tem direito de votar, e a sua autoridade é igual a de qualquer<br />

outro membro. Não decide questões de ordem, e se dá<br />

sobre elias sua opinião individual, os outros podem combatel-a.<br />

Os oradores dirigem-se á câmara e não ao presidente, e quando<br />

mais de um lorde levantão-se a um tempo para fallar, só a<br />

assembléa, e não o presidente, decide qual deve fallar primeiro.<br />

Tomando por exemplo a Inglaterra, os americanos fizerão<br />

do vice-Presidente da Republica o presidente ex-officio do<br />

senado. Sem essa attribuição constitucional, aquelle funccionario<br />

seria uma nullidade política ; estai'ia de parte como simples<br />

peça de sobresalente á espera da successão do de cujus.<br />

Segundo observa Story, os constituintes americanos a principio<br />

tinhão votado um artigo autorisando o senado a escolher<br />

seu presidente ; mas depois resolverão confiar ao vice-Presidente<br />

da Republica a presidência d'aquella assembléa.<br />

Alguns escriptores americanos censurão esse expediente, e<br />

Tucker chegou até a dizer que se o adoptou, porque não havia<br />

o que fazer do vice-Presidente ( 1 ).<br />

Entretanto são procedentes as razões que lá havia para<br />

que a presidência do senado não fosse confiada a um de seus<br />

membros.<br />

Os senadores erão em pequeno numero, e os Estados tendo<br />

igual representação, nenhum d'elles queria ficar inferior aos<br />

outros. Ora, se o presidente sahisse da corporação, naturalmente<br />

teria o direito de votar, e n'esta hypothèse, elle gosaria<br />

de maior autoridade, do que os outros membros, e o Estado a<br />

que o presidente pertencesse teria mais influencia, porque um<br />

dos seus representantes diria a ultima palavra nas questões<br />

empatadas, mediante o voto de qualidade ; assim esse Estado<br />

teria afinal três votos, quando os outros só terião dou^-, Se por<br />

outro lado se privasse o presidente do direito de votar, o seu<br />

Estado ficaria só com um voto, o que nenhum queria. O ciúme<br />

dos Estados e a igualdade de sua representação no senado<br />

determinarão, pois, o expediente adoptado.<br />

( 1 ) St517. Loc. cit. § 735.


«5<br />

E CONSTITUCIONAL 177<br />

Os mesmos motivos determinarião os nossos constituintes<br />

a adoptarem o systema americano ?<br />

Quem conhece a historia da convenção de Philadelphia,<br />

e a do nosso Congresso constituinte, quem sabe que a grande<br />

União americana se organisou de baixo para cima, que foi a<br />

célula estadoal que produzio aquelle organismo, e que, pelo<br />

contrario a União brazileira se formou de cima para baixo,<br />

cabendo aos Estados, não o que elles disputarão palmo á palmo,<br />

mas só o que os organisadores da União lhe quizerão dar, quem<br />

sabe d'isso, não pôde crer na paridade do motivo.<br />

O funccionario que a Constituição americana chama presidente<br />

pro tempore, e a nossa vice-presidente, desempenha a<br />

mesma funcção do presidente constitucional do senado nas<br />

faltas e impedimentos d'esté.<br />

Mas os americanos a respeito de seu presidente temporário<br />

previdentemente adoptárão um expediente desde muito tempo<br />

ali usado.<br />

E' de costume que ao terminar-se a sessão o vice-presidente<br />

do Republica se ausente, afim do senado escolher em seu<br />

seio um Presidente pro tempore, que permanece no goso de<br />

seus direitos no intervallo da sessão ; de modo que se, durante<br />

esse tempo, o vice-presidente fôr chamado a substituir por<br />

qualquer motivo o Presidente da Republica, o senado não ficará<br />

sem cabeça, nem será obrigado a eleger uma no estado de crise<br />

e de agitação política, que sempre apparece, quando occorre a<br />

mudança do chefe da nação. Fali ando d'essa pratica, Story<br />

diz que, assim como é util no tempo de paz tomar providencias<br />

para o tempo de guerra, assim também o é nos tempos de<br />

socego e tranqüilidade providenciar para o tempo de agitação<br />

política que perturba a harmonia publica ( 1 ).<br />

A vista do systema que adoptamos e da propria lettra da<br />

Constituição, o cargo de senador é incompatível com o de<br />

Presidente e vice-Presidente da Republica.<br />

O art. 3o estabeleceu a igualdade de representação dos<br />

Estados no senado ; e deu a Constituição tanto valor a essa<br />

igualdade, que chegou a subtrahil-a á acção do poder revisor.<br />

( 1 ) Commentaries, í. 1 p. 527, § 741.<br />

23


178 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

O § 4. 0 do Art. 90 dispõe que « não pôde ser admittido como<br />

objecto de deliberação no Congresso projecto tendente a abolir<br />

a igualdade da representação dos Estados no senado ( 1 ).<br />

VI<br />

Salvas as excepções do art. 29, todos os projectos de lei<br />

podem ter origem indistinctamente na câmara ou no senado,<br />

sob a iniciativa de qualquer de seus membros. Assim dispõe a<br />

Constituição no art. 36.<br />

D'aquellas excepções já assás dissemos. Agora, fallaremos<br />

das funcções do senado, as quaes podem ser de caracter<br />

legislativo, judiciário, politico e executivo.<br />

As funcções legislativas do senado, salvas as mencionadas<br />

restricções, são iguaes as da câmara dos deputados : vota todas<br />

as leis com a câmara ; como esta, verifica e reconhece os poderes<br />

de seus membros ; elege a sua mesa ; organisa o seu regimento<br />

interno ; regula o serviço de sua policia ; nomeia os<br />

empregados de sua secretaria ; emfim desempenha todas as<br />

funcções de que geralmente gosão as assembléas dos parlamentos<br />

de todos os paizes, com excepção da nomeação de seu<br />

presidente, que, segundo a Constituição, como já ficou dito,<br />

é de direito o vice-Presidente da Republica.<br />

Além das attribuições legislativas, tem o senado funcções<br />

judiciarias exclusivas.<br />

Conforme a Constituição « compete privativamente ao<br />

senado julgar o Presidente da Republica e os demais funccionarios<br />

federaes designados pela Constituição, nos termos e pela<br />

fôrma que ella prescreve ; e quando delibera como tribunal de<br />

( 1 ) Não obstante, tendo o senador pelo Estado de Alagoas, FlorianoPeixoto,<br />

sido eleito vice-Presidente da Republica, e consequentemente sendo de direito presidente<br />

do senado, continuou a occupar a cadeira de senador, privando assim aquelle<br />

Estado de um voto no senado. Ainda mais. Assumio o exercício de Presidente da<br />

Republica, em 24 de Novembro de 1891, e ainda hoje, ha mais de um anno, continua a<br />

ser senador ! E quando o senado, despertando de seu lethargo, declarou a cadeira<br />

vaga, e mandou fazer eleição para restabelecer a igualdade da representação, o governador<br />

de Alagoas desobedeceu, allegando não ter o senador, vice-Presidente da<br />

Republica, renunciado o seu mandato, como se este não tivesse desapparecido pela<br />

incompatibilidade constitucional dos dous cargos !


Ω<br />

E CONSTITUCIONAL I79<br />

justiça é presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal,<br />

e não profere sentença condemnatoria senão por dous<br />

terços dos membros presentes ». Art. 33 §§ l.° e 2. 0<br />

A Constituição dos Estados Unidos do Norte também confere<br />

ao seu senado a attribuição privativa de julgar o Presidente,<br />

o vice-Presidente e todos os funccionarios civis da União<br />

( Art. i.° secç. 3." § 6.° e Art. 2." secç. 4.'' ). Mas, se na causa<br />

de impeachment o accusado é o Presidente, só n'este caso, o<br />

senado, convertido em Tribunal de Justiça, é presidido pelo<br />

Chief Justice, tomando assim o mesmo senado um caracter<br />

mais claramente judiciário. Ainda mais, quando o senado é<br />

tribunal de impeachment aquella Constituição exige que os<br />

senadores, na qualidade de juizes, e para lembrar-lhes a responsabilidade<br />

que assumem, prestem juramento solemne ou<br />

affirmação.<br />

A nossa Constituição, porém, não exige promessa especial<br />

ao caso, nem faz distineção entre accusados, e simplesmente<br />

diz que « quando o senado deliberar como Tribunal de Justiça<br />

será presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal ».<br />

Na qualidade de Tribunal de Justiça não pôde o senado<br />

impor outras penas mais que a perda do cargo e a incapacidade<br />

de exercer qualquer outro, sem prejuízo da acção da justiça<br />

ordinária contra o condemnado. Art. cit. § 3.°<br />

Infere-se da precedente disposição que o senado, na hypothèse,<br />

não é rigorosamente um Tribunal de Justiça em toda a<br />

extensão da palavra, pois o fim de sua attribuição judiciaria é<br />

antes livrar o Estado, a sociedade, de um funccionario incapaz,<br />

do que castigar um criminoso ; na pessoa e nos bens do accusado<br />

não toca o senado ; a sua missão é somente garantir a boa<br />

gestão dos negócios públicos.<br />

A mesma disposição consagra a Constituição americana,<br />

que se inspirou na da Inglaterra, aonde a câmara dos lords também<br />

se converte em Tribunal de Justiça, sendo a accusação dos<br />

lords desenvolvida pelo Speaker.<br />

Mas na Inglaterra a câmara dos lords é juiz em toda a<br />

extensão da palavra, porque julga da criminalidade de todos os<br />

factos imputados ao accusado, e lhe applica as penas do direito<br />

commurn ; ao passo que nos Estados Unidos a criminalidade<br />

commum é separada da política, só competindo ao senado impor<br />

a pena de demissão e de incapacidade para de futuro exercer


18o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

funcção publica, ficando a criminalidade, no ponto de vista do<br />

direito commum, para a competência dos tribunaes ordinários.<br />

Além d'isso o senado inglez, constituído em tribunal de<br />

impeachment, julga dos crimes de todos os funccionarios de<br />

ordem civil, sem excepção dos membros de ambas as câmaras ;<br />

só o rei escapa á sua jurisdicção. Nos Estados Unidos, porém,<br />

o Presidente e o vice-Presidente são sujeitos á accusação e a<br />

julgamento, mas não assim os membros do Congresso, os quaes<br />

só estão sujeitos á sentença do corpo eleitoral — a repulsão das<br />

urnas.<br />

Nossa Constituição dispõe que < compete privativamente<br />

ao senado julgar o Presidente da Republica e os demais funccionarios<br />

federaes designados pela Csnstituição 3> Art. 33.<br />

Ora, os fuuccionarios designados na Constituição,para o effeito<br />

de que se trata, são, além do Presidente da Republica, os<br />

ministros de Estado nos crimes de responsabilidade connexos<br />

com os do Presidente, e os membros do Supremo Tribunal<br />

Federal. Portanto, os deputados e senadores não estão sujeitos<br />

nos crimes de responsabilidade ao julgamento do senado.<br />

Que pensar da attribuição judiciaria conferida pela Constituição<br />

ao senado ? Não seria melhor confiar aquelles julgamentos<br />

ao Supremo Tribunal ? Não converia antes constituir um<br />

tribunal ad hoc ? Essa questão é muito controvertida e tem<br />

sido diversamente resolvida.<br />

Os constituintes americanos disputarão muito, antes que<br />

acordassem no que se acha escripto em sua Constituição.<br />

A principio assentarão provisoriamente em conferir aquella<br />

attribuição ao Supremo Tribunal ; mas depois, considerando<br />

que a acção era toda de natureza política, entenderão que não<br />

devia ser julgada por juizes ordinários.<br />

Além d'isso, se estes sentenciassem contra as conclusões da<br />

câmara dos deputados, ficarião expostos aos ódios dos políticos.<br />

Finalmente, os membros do tribunal, sendo nomeados pelo<br />

Presidente, poderião não ter a precisa independência para<br />

julgal-o, se elle fosse o accusado, e se o accusado fosse um dos<br />

membros do mesmo tribunal, a posição seria mais difficil, porque<br />

se absolvessem, a sentença seria attribuida ao colleguismo,<br />

e se condemnassem, dir-se-hia que o condemnado fora victima<br />

de ciúmes e de rivalidades de seus collegas.


9f<br />

E CONSTITUCIONAL l8l<br />

Um tribunal especial, para o caso, devendo ser numeroso e<br />

composto de homens especiaes em talento, experiência e caracter,<br />

e difficil de ser constituído, porque não são muitos os homens<br />

d'aqueîle quilate, e além d'isso, os casos de impeachment<br />

send i raros, o tribunal seria uma sinecura.<br />

Contra o senado também se levantarão sérias objecções.<br />

E' um corpo essencialmente politico, e por i?so julgará por<br />

considerações alheias á justiça; animado sempre do espirito<br />

partidário, se o accusado pertencer a partido contrario ao da<br />

maioria do senado, os membros d'esté não serão verdadeiros<br />

juizes, mas adversários.<br />

Não obstante aquella e outras objecço^, os constituintes<br />

americanos decidirào-se a favor do senado, não tanto porque o<br />

considerassem um verdadeiro tribunal de justiça, mas porque<br />

era impossível achar outro melhor.<br />

Os adversários do senado, como tribunal de justiça, diz<br />

Storv, não podem dizer que os constituintes fizessem uma<br />

imprudente innovação, porque tiverão o exemplo da Inglaterra)<br />

e os partidários contrários por seu lado também não podem sustentar<br />

que aquella instituição esteja isenta de critica plausível.<br />

O S3'stema ingiez, que converte o senado em tribunal de<br />

jus iça, é admittido, além dos Estados Unidos, em vários paizes,<br />

em França, Italia, Portugal e em outras partes. Em alguns<br />

outros, porém, assim não é.<br />

Na Bélgica a accusação dos ministros parte da câmara dos<br />

deputados, mas são julgados pelo Tribunal de cassação, reunidas<br />

as duas câmaras de que se compõe esse Tribunal. Coramentando<br />

essa disposição da Constituição belga, Thomissen a considera<br />

sábia e racional ; faz sobresahir a imparcialidade d'esse<br />

tribunal e sua isenção de paixões politicas, e que o senado<br />

sendo electivo, e os senadores temporários, seria perigoso conferir-lhes<br />

o poder de julgar os ministros ( I 1.<br />

Na Austria a accusação compete a qualquer das câmaras,<br />

mas o julgamento cabe a um tribunal composto de vinte e quatro<br />

juris-peritos, não deputados, nem senadores, escolhidos<br />

entre os jurisconsultos, doze pela câmara dos deputados e doze<br />

pelo senado.<br />

( 1 ) Const, belge annotée p. 3 y 3 e seg.


182 NOÇÕES DE DIR O PUBLICO<br />

Nenhum d'esses systemas é isento de objecções, c tudo<br />

bem considerado, parece que o senado é sempre melhor tribu,<br />

nal de justiça para os crimes políticos.<br />

Antes de passar ao estudo das funcções políticas do senado,<br />

cumpre delucidar um ponto, concernente ás funcções judiciarias.<br />

A Constituição diz que o senado « não poderá impor outras<br />

penas mais que a perda do cargo e a incapacidade de exercer<br />

qualquer outro. Art. 33 § 3." ».<br />

Esse qualquer outro será unicamente de ordem federal, ou<br />

também estadal ? A Constituição não o diz.<br />

Mais explicita e completa n'esse ponto é a Constituição<br />

americana. Ella dispõe que « a pena, quando se tratar do julgamento<br />

de um funccionario <strong>publico</strong> ( caso of impeachment )<br />

não poderá ir além da perda do emprego e da incapacidade de<br />

exercer qualquer outro, dependente dos Estados Unidos<br />

( Under the United States. Art. i.° secç. 3." § J.° ).<br />

Diante de tão clara disposição não ha duvida, que o Presidente<br />

condemnado pôde exercer cargos sob a jurisdicção dos<br />

Estados ; a sua incapacidade é unicamente para cargos federaes­<br />

Entre nós, porém, como se deverá entender aquelle qualquer<br />

otitro ? Em sentido amplo, abrangendo cargos federaes e<br />

estadaes, ou em sentido restricto aos cargos federaes ?<br />

Parece­nos que a sentença conûemnatoria do senado incapacita<br />

unicamente para cargo de ordem federal.<br />

Quando a Constituição estatue para a União e para os<br />

Estados, quer outorgando, quer denegando, costuma assim o<br />

declarar.<br />

Assim é que, descriminando os poderes federaes e estadaes'<br />

no art. II diz: E' vedado aoi Estados, como a União, etc.<br />

Se o direito pôde cumulativamente ser exercido tanto pelos<br />

Estados, como pela União, a Constituição usa da expressão —<br />

■mas não privativamente. E' o caso do art. 35.<br />

Portanto, se a Constituição intentasse incapacitar absolutamente<br />

o ex­Presidente da Republica, teria dito — de exercer<br />

qualquer outro cargo tanto na União, como nos Estados.<br />

Não se pôde dizer que na disposição do § 3.° do art. 33<br />

esteja implicitamente contida a incapacidade para exercer<br />

cargo em algum dos Estados, porque essa incapacidade não<br />

é meio necessário para a execução do citado artigo.


E CONSTITUCIONAL l83<br />

Além d'isso, como o direito de um dos Estados de nomear<br />

um ex-presidente para algum cargo de sua jurisdicção, não foi<br />

negado por clausula expressa ou tacitamerite contida em clausula<br />

constitucional expressa ; segue-se que aquelle direito lhe<br />

é facultado pela Constituição, nos termos do art. 65 § 2°<br />

Se da parte do governo dos Estados nada obsta que elle<br />

nomeie um ex-presidente condemnado politico, também da<br />

parte d'esté nada obsta ; por quanto a sentença condemnatoria<br />

do senado não tem caracter criminal propriamente dito, é simplesmente<br />

um acto administrativo, que tem por fim, não infamar a<br />

pessoa do condemnado, mas assegurar a gestão regular dos<br />

negócios públicos.<br />

N'isto se distingue o impeachment americano do inglez,<br />

O senado inglez impõe a pena que a lei commum commina,<br />

e assim pôde infringir até a pena capital.<br />

Inutilisar o cidadão de exercer qualquer emprego <strong>publico</strong>,<br />

em qualquer ponto do território nacional, fosse emprego de<br />

caracter federal, ou estadal, seria prival-o da qualidade de<br />

cidadão brazileiro, seria uma quasi morte civil.<br />

Ora, quem dirá que ha proporcionalidade entre um crime<br />

politico, isto é, um erro de administração e tão grave penalidade<br />

?<br />

Voltemos á funcção política do senado.<br />

A palavra Política pôde tomar-se em dous sentidos ; ou<br />

como sciencia de Estado, isto é, a doutrina do governo do<br />

Estado segundo os princípios da justiça e do bem social, ou<br />

como arte, isto é, como o complexo de meios práticos de<br />

governar o Estado, segundo as condições de civilisação de uma<br />

sociedade. No primeiro caso domina a razão especulativa, no<br />

segundo a razão pratica.<br />

Seja qual fôr o sentido em que se tome aquella palavra,<br />

não ha duvida que o senado exerce funcções políticas da mais<br />

alta importância, porque pelas attribuições que a Constituição<br />

lhe confere, tem de pronunciar-se nas altas questões do governo<br />

e da administração do paiz.<br />

Representantes dos Estados da União, os senadores naturalmente<br />

se inspirão nos sentimentos da maioria dos eleitores<br />

de seus Estados, e no exercicio de suas attribuições constitucionaes<br />

traduzem aquelles sentimentos na administração ger?l<br />

da Nação.<br />

%


184<br />

NOÇÕES DE DÏREITO PUBLICO<br />

O pensamento politico do senado .se manifesta praticamente<br />

no exercício das suas attribuições executivas.<br />

Estas attribuições são importantíssimas, e conferindo-as ao<br />

senado a Constituição fez d'esse corpo politico uma espécie de<br />

conselho executivo.<br />

Das attribuições executivas do senado, uma lhe é privativa,<br />

a outra lhe é commum com a câmara dos deputados.<br />

A primeira consiste em approvar ou não a nomeação dos<br />

membros do Supremo Tribunal Federal, dos ministros diplomáticos<br />

e dos membros do Tribunal de Contas, conforme dispõem<br />

os arts. 48, § 12 e 89.<br />

A segunda consiste em confirmar, na qualidade de ramo do<br />

Congresso, os ajustes, convenções e tratados internacionaes,<br />

entabolados pelo Presidente da Republica; pois nos termos<br />

do § 12 do art. 34 ao Congresso compete « resolver definitivamente<br />

sobre os tratados e convenções com as nações estrangeiras<br />

».<br />

Como justificar a intervenção do senado 110 exercício das<br />

funeções executivas ?<br />

Para responder é preciso recorrer ao direito constitucional<br />

americano, do qual aquellas disposições derivão-se substancialmente.<br />

A Constituição dos Estados Unidos do Norte dispõe que<br />

« o Presidente terá poder para concluir tratados, precedendo<br />

parecer e consentimento do senado, comtanto que esses tratados<br />

sejão apoiados por dous terços dos senadores presentes;<br />

para designar, e, com prévio parecer e consentimento do senado,<br />

nomear os embaixadores, os outros agentes diplomáticos,<br />

os cônsules, os juizes do Tribunal Supremo e todos os outros<br />

funccionarios dos Estados Unidos, cujas nomeações não tenhão<br />

sido especificadas n'esta Constituição e que forem instituídas<br />

por lei » ( Art. 2. 0 secç. 2." § 2. 0 ).<br />

Nossa Constituição incumbe ao Congresso, e não exclusivamente<br />

ao senado, o direito de approvar, ou não, as negociações<br />

ínternacionas, as convenções e tratados que o Presidente<br />

entaboíar ; pelo contrario a Constituição americana confere<br />

exclusivamente ao senado o poder de approvar, ou não, os<br />

tratados celebrados pelo Presidente.<br />

Os constituintes americanos considerarão que a câmara<br />

dos deputados, estando sujeita a renovações freqüentes, e por-


ti<br />

Ë CONSTITUCIONAL 185<br />

tanto sempre preoccupada com os eleitores, estava muito<br />

exposta a sacrificar os interesses permanentes do paiz á popularidade<br />

inconstante e passageira ; além d'isso, que sendo uma<br />

câmara numerosa, os debates são mais apaixonados e estrepitosos,<br />

o que não quadra bem á discussão de negocio tão sério e<br />

importante, como a celebração de tratados com as nações<br />

estrangeiras. Pensarão que uma assembléa menos numerosa,<br />

mais estável, menos sujeita aos azares do escrutínio, e portanto<br />

mais independente, era mais capaz para aquelle fim, e excluirão<br />

o concurso da câmara dos representantes ; e assim o senado só,<br />

em sessão executiva, delibera e decide acerca dos tratados.<br />

Ainda mais, convencido que a publicidade, os debates da<br />

imprensa, podem fazer que se malogre uma negociação diplomática,<br />

o senado americano pôz de parte os usos parlamentares,<br />

e quando tem de deliberar acerca do assumpto, fecha as suas<br />

portas ao <strong>publico</strong>, e sem attender as reclamações da imprensa,<br />

discute em sessões secretas n'aquelles casos. D'esse modo as<br />

questões diplomáticas são tratadas com maior liberdade, e sem<br />

risco de que alguma indiscrição de linguagem offenda a uma<br />

nação amiga ( 1 ).<br />

Segundo a Constituição americana os tratados regularmente<br />

feitos são considerados leis supremas do paiz, supreme<br />

laxv of the land ( Art. 6.° § 2." ), e fazem-se regularmente pelo<br />

concurso do Presidente e pela maioria dos dous terços dos<br />

membros do senado.<br />

A câmara dos deputados é inteiramente excluída da formação<br />

d'essas leis supremas do paiz, ainda mesmo quando a execução<br />

d'ellas depende de despezas, cuja iniciativa compete a<br />

câmara dos deputados. Esta debalde tem algumas vezes reclamado,<br />

pedindo conhecimento de tratados effectuados ; os Presidentes<br />

recusão-se a communical-os, allegando que o acto está<br />

perfeito e acabado nos termos da Constituição.<br />

Em 1867 o presidente Johnson, com o consentimento do<br />

senado, concluio um tratado com a Russia, que obrigou-se a<br />

ceder aos Estados Unidos o território de Alaska mediante<br />

( 1 ) Entre nùs também o senado adoptou a pratica das sessões secretas ,<br />

quando tratou das nomeações dos membros do Supremo Tribunal e dos ministro»<br />

plenipotenciarios.<br />

24


186 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

7,200,000 dollars. A câmara dos deputados pedio que lhe fossem<br />

communicados os papeis concernentes a essa negociação,<br />

para poder votar os meios para pagamento. Não foi satisfeita,<br />

e não obstante os meios forão votados e o tratado executado<br />

( I ).<br />

Entre nós assim não é, pois segundo nossa Constituição,<br />

como já ficou dito, ao Congresso nacional, isto é, á câmara dos<br />

deputados e ao senado, compete resolver definitivamente sobre<br />

os tratados e convenções com as nações estrangeiras (Art. ~4<br />

§ 12 ), cabendo ao Presidente somente inicial-os, isto é, entabolar<br />

negociações internacionaes, celebrar ajustes, convenções e<br />

tratados sempre ad referendum do Congresso ( Art. 48 § 16 ).<br />

E' porém da exclusiva competência do senado approvar ou<br />

não as nomeações dos membros do Tribunal de Contas, os do<br />

Supremo Tribunal Federal, e dos ministros diplomáticos, feitas<br />

pelo Presidente, que, na ausência do Congresso, pôde designar<br />

em commissão aquelles funccionarios, até que o senado se pronuncie<br />

( Art. 48 § 12 ).<br />

Disposição semelhante, porém mais ampla, contém a Constituição<br />

americana. Nos termos do Art. 2." secç. 2." d'essa<br />

Constituição o Presidente « tem direito, com prévio parecer e<br />

consentimento do senado, de nomear os embaixadores, os<br />

outros agentes diplomáticos, os cônsules, os juizes do Supremo<br />

Tribunal e todos os outros funccionarios dos Estados Unidos,<br />

a respeito de cuja nomeação a Constituição não tenha disposto<br />

de outra maneira e que sejão creados por lei 5.<br />

Essa Constituição não quiz confiar a um só homem a<br />

nomeação de funccionarios de ordem superior, attendendo a<br />

que elle poderia adquirir exagerado poder, perigoso para as<br />

liberdades, apoiando-se em auxiliares dóceis ao seu poder e<br />

gratos pela nomeação.<br />

Na amplitude dos termos da citada disposição estão comprehendidos<br />

os próprios ministros ou secretários do Presidente.<br />

Pôde este nomeal-os, mas mediante parecer e consentimento<br />

do senado.<br />

E' reparavel que o Presidente, sendo o único responsável<br />

perante o paiz, não tenha liberdade de escolher os seus conse-<br />

( 1 ) V. Cooley, nota ao § 1841 de Story.


E CONSTITUCIONAL 187<br />

lheiros Íntimos, os quaes no regimen presidencial não formão<br />

um gabinete, como no regimen inglez.<br />

Nossa Constituição, do mesmo modo que a americana, dispondo<br />

que certas nomeações fiquem dependentes da approvação<br />

do senado, não diz se as demissões ficão sujeitas á mesma<br />

regra.<br />

A demissão dos funccionarios nomeados pelo Presidente,<br />

mediante consentimento do senado, independerá d'esse consentimento<br />

?<br />

Quanto aos membros do Supremo Tribunal Federal, sendo<br />

elles vitalícios e só podendo perder o cargo por sentença judicial<br />

( Art. 57 ), é claro que estão fora da questão. Mas quanto<br />

aos ministros diplomáticos, poderá o presidente livremente<br />

demittil-os sem o concurso do senado ?<br />

Essa questão tem sido muito debatida nos Estados Unidos,<br />

aonde, como já vimos, o numero dos funccionarios, cuja nomeação<br />

depende da confirmação do senado, é muito maior, do que<br />

entre nós.<br />

Pensão uns que o concurso do senado é necessário, para<br />

que esses funccionarios possão ser demittidos, porque o poder<br />

de demittir está implicitamente contido no de nomear.<br />

Se o Presidente podesse livremente demittir, esse poder<br />

seria uma arma de corrupção, porque pela intimidação os<br />

empregados farião cegamente a vontade do Presidente. Pelo<br />

contrario a necessidade do concurso do senado dá aos empregados<br />

mais segurança e independência ; além d'isso, com esse<br />

freio evitão-se mudanças bruscas no pessoal da administração,<br />

quando sobe ao poder um Presidente novo.<br />

Outros, pelo contrario, dizem que o poder de demittir é<br />

uma dependência do poder executivo, e indispensável para que<br />

o chefe do governo possa promptamente reprimir as malversações<br />

e os abusos dos funccionarios. A experiência tem provado,<br />

diz um illustre publicista, que ambas as opiniões em favor de<br />

um poder sem controle, ou de um controle exagerado, podem<br />

ser um perigo para as instituições ( 1 ).<br />

A questão sujeita espera ainda nos Estados Unidos uma<br />

( ! ) V. Carlier, loc. cit. t 2 p. 169.


iS8 NOCÕKS DE DIREITO PUBLICO<br />

solução constitucional, e em i860, sob a presidência de Johnson,<br />

tornou-se incandescente.<br />

N'essa epocha o Congresso abri o lucta com o Presidente,<br />

sustentando que elle só por si não podia demittir seus ministros<br />

e os altos funccionarios da União, do mesmo modo que não os<br />

podia nomear; e n'esse sentido votou uma resolução.<br />

O Presidente, fundando-se na tradição e nas interpretações<br />

anteriores, julgou-se offendido em suas prerogativas, e negou<br />

sancção áquella resolução, que sendo votada por dous terços<br />

tornou-se a lei de 2 de Março de 1867, pela qual o Presidente<br />

era obrigado a conservar o ministro da guerra, o qual era o<br />

objecto da lucta.<br />

Em 1869, estando arrefecido o ardor da contenda, o Congresso<br />

votou outra lsi, que modificou a precedente, omittindo a<br />

parte mais offensiva da lei de 1867, que dispunha sobre a conservação<br />

dos ministros, não obstante o Presidente não os querer.<br />

A lei de 1869 não tendo revogado a de 1867, mas simplesmente<br />

omittido a parte relativa a demissão dos ministros, a<br />

questão ficou por decidir. « E' fora de duvida, diz Carlier, que,<br />

segundo as duas leis de 1867 e 1869, reduzidas a uma só, a qual<br />

se acha nos estatutos revistos dos Estados Unidos, o consentimento<br />

do senado, quando este é necessário para a nomeação<br />

dos funccionarios, o é igualmente para a demissão dos mesmos<br />

funccionarios ».<br />

De quanto fica dito vê-se que é importantíssimo o papel<br />

do senado dos Estados Unidos no mechanismo dos poderes<br />

públicos. As attribuições que a Constituição lhe conferio fizerão<br />

d'elle, na phrase de Gladstone, « a mais notável de todas<br />

as combinações políticas modernas ».<br />

Os americanos se orgulhão do seu senado, e dizem que<br />

constituído como está, é elle a. sheet anchor de seu governo (1).<br />

E' digno de reparo, escreve um illustre escriptor, a opposição<br />

que se nota entre as assembléas da Inglaterra e as dos<br />

Estados Unidos.<br />

Na republica americana a assembléa menos democrática e<br />

menos numerosa, o ramo aristocrático do poder legislativo,<br />

como chamava John Adams ao senado americano, é que exerce<br />

f 1 ) V. Walker, loc. cit. p. 93.


E CONSTITUCIONAL 189<br />

influencia superior. Pelo contrario, na monarchica Inglaterra<br />

o principal papel é, desde muito tempo, desempenhado pela<br />

câmara dos communs.<br />

< E' maxima fundamental de governo, diz Stuart Mill, que<br />

deve haver em toda Constituição um centro de resistência<br />

contra o poder predominante, e por conseqüência em uma<br />

Constituição democrática um meio de resistir á democracia ».<br />

Na Inglaterra tendo-se de lutar contra as tendências absolutistas<br />

do poder real, e contra uma poderosíssima aristocracia<br />

territorial, o centro de resistência é a câmara dos communs,<br />

á qual pertence supremacia incontestada. Na America, tendo-se<br />

de combater as tendências ultra democráticas do governo<br />

popular, o órgão da resistência é o senado federal. D'esse<br />

modo explica-se e justifica-se a predominância do senado no<br />

Congresso e sua situação eminente no Estado ( I ).<br />

( 1 ) V. De Noailles, lue. cit. t. 1 d. 390.


CAPÍTULO V<br />

DO CONGRESSO E SUAS ATTRIBUlÇÕES. DIREITOS EXPLÍCITOS<br />

E IMPLÍCITOS. COMPARAÇÃO DA NOSSA CONSTITUIÇÃO<br />

COM A AMERICANA.<br />

I<br />

Estando já conhecida em boa parte a organisação dos dous<br />

ramos do Congresso, a câmara dos deputados e a dos senadores,<br />

agora vamos ver quaes são as principaes attribuições, ou<br />

poderes, conferidos pela Constituição ao mesmo Congresso.<br />

Esses poderes se achão enumerados nos arts. 34 e 35 e<br />

seus paragraphos e se podem dividir em duas ordens. Uns<br />

pertencem exclusiva e privativamente ao Congresso nacional,<br />

outros competem concurreníemente ao Congresso nacional e<br />

aos governos dos Estados.<br />

Os poderes, outorgados ao Congresso da União, são de<br />

caracter essencialmente nacional, e estrictamente inhérentes<br />

á soberania da Nação, e são :<br />

i.° Orçar a receita, fixar a despeza federal annualmente e<br />

tomar as contas da receita e despeza de cada exercicio financeiro.<br />

Esse poder é primordial e essencial aos parlamentos em<br />

todos os paizes constitucionaes representativos.<br />

O povo paga o imposto, é, pois, natural que elle mesmo,<br />

por seus representantes, regule as despezas publicas, e que ao<br />

poder executivo tome contas da applicação dos meios votados ;<br />

e para que a liberdade do contribuinte seja respeitada, é necessário<br />

que o voto do imposto, a receita e a despeza sejão periodicamente<br />

levados ao seu conhecimento.<br />

D'ahi a pratica invariável da annuidadc dos orçamentos.


192<br />

NOÇÕES DK DIREITO PUBLICO<br />

Posto que a iniciativa das leis de impostos compita á<br />

câmara dos deputados ( Art. 29 ), todavia como os dous ramos<br />

do poder legislativo são iguaes em funcções legislativas, e tem<br />

reciprocamente o direito do veto, é necessário o accôrdo de<br />

ambos. Por isso orçar a receita e fixar a despeza é attribuição<br />

do Congresso, isto é, da câmara dos deputados e do senado.<br />

2.f < Autorisar o poder executivo a contrahir empréstimos<br />

e a fazer outras operações de credito ».<br />

Esta attribuição é uma conseqüência da precedente, ou<br />

antes é uma face nova da primeira. Quem contrahe empréstimos,<br />

deve ter meios para pagar os juros da divida, e esses<br />

meios não podem sahir senão do bolso dos contribuintes. Portanto<br />

estes, por meio de seus representantes, devem consentir<br />

n'essa despeza. Accresce que os empréstimos são feitos sobre<br />

o credito e a fé da nação.<br />

3.0 « Legislar sobre a divida publica, e estabelecer os<br />

meios para o seu pagamenso >.<br />

Essa attribuição é uma amplificaçào da precedente.<br />

4.0 «' Regular a arrecadação e distribuição das rendas federaes<br />

».<br />

A nação, que paga o imposto, tem direito de repartil-o do<br />

modo mais conveniente ás necessidades publicas, dotando os<br />

serviços com as verbas proporcionaes ; e tudo isso suppõe a<br />

arrecadação das rendas da nação.<br />

5.0 « Regular o cammercio internacional, bem como o dos<br />

Estados entre si e com o Districto federal, alfandegar portos,<br />

crear ou supprimir entrepostos ».<br />

Esta attribuição não offerece duvida. A personalidade<br />

jurídica internacional compete á nação; a esta pertence o poder<br />

diplomático de enviar representantes ás outras nações, de fazer<br />

com ella tratados, contrahir allianças, etc. Logo compete-lhe<br />

também estabelecer e negociar tratados e convenções commerciaes<br />

; e tudo isso suppõe commercio internacional. Regular<br />

este deve portanto ser attribuição nacional.<br />

Se cada Estado da União podesse regular a entrada e a<br />

sahida das proprias e estrangeiras mercadorias, estabelecendo<br />

impostos e regulamentos fiscaes, como lhe approuvesse, sendo,<br />

n'este caso, impossível a uniformidade, o commercio estrangeiro<br />

não teria segurança, e não podendo contar com as necessárias<br />

garantias, retrahir-se-hia.


E CONSTITUCIONAL<br />

Uma das grandes causas da decadência da Confederação<br />

dos Estados Unidos, observa um publicista americano, foi não<br />

poder o Congresso legislar sobre materia commercial. Cada<br />

Estado fazia as leis commerciaes que queria ; d'ahi rivalidades<br />

e competências entre elles, fazendo uns leis e regulamentos que<br />

reduzião direitos de entradas, para attrahir mais commercio,<br />

com prejuízo de outros. Não havia unidade, nem interesse<br />

commum ( 1 ).<br />

O poder que a Constituição dá ao Congresso de legislar<br />

sobre o commercio, não tem senão a limitação estabelecida no<br />

art. 8.°, isto é, não pôde crear, de qualquer modo, distincções<br />

e preferencias em favor dos portos de uns contra os de outros<br />

Estados.<br />

Aquelle poder não se estende somente ao commercio<br />

estrangeiro, mas também ao commercio dos Estados entre si e<br />

com o Districto federal.<br />

Mas o que entenderemos por commercio dos Estados<br />

entre si ?<br />

A acção do poder legislativo geral se estenderá só ao<br />

commercio entre Estado e Estado, ou também ao do interior de<br />

cada Estado ?<br />

Fallando a Constituição de commercio dos Estados entre<br />

si, sem duvida fica excluido o commercio dentro dos limites de<br />

cada Estado, cada um dos quaes poderá, n'essa hypothèse,<br />

regular o seu commercio interior.<br />

Se cada Estado tivesse poder de regular o seu commercio<br />

com os outros Estados, seria frustaneo o fim da Constituição,<br />

dando ao Congresso nacional a attribuição de legislar sobre o<br />

commercio estrangeiro, do qual muito depende a prosperidade<br />

da nação.<br />

Com effeito, n'aquella hypothèse, um Estado poderia impor<br />

direitos restrictivos ás mercadorias estrangeiras importadas,<br />

que fossem transportadas ou re-exportadas para outro Estado ; o<br />

que evidentemente seria empecer o commercio estrangeiro e<br />

damnificar o Estado, que precisasse receber mercadorias estrangeiras<br />

por outro Estado, de um porto de mais fácil accesso ou<br />

de maior commercio. « Sem o poder de regular o commercio<br />

! I ( Pomeroy, Constitutional Law. p. 270 S 322.<br />

I93


194 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

entre os Estados, diz Story, o de regular o commercio estrangeiro<br />

seria incompleto e inefficaz ( I ).<br />

Com o louvável propósito de favorecer a liberdade do<br />

commercio entre os Estados, a Constituição ( Art. il § l.° )<br />

veda, assim á União, como aos mesmos Estados, lançar imposto<br />

de transito pelo território de um Estado, ou na paisagem de<br />

um para outro, sobre productos nacionaes ou estrangeiros,<br />

como também sobre os vehiculos, de terra e água, que os transportarem.<br />

De sorte que na expressão - regular o commercio<br />

dos Estados entre si — não se comprehende o poder do Congresso<br />

federal de lançar taxa ou imposto sobre o commercio<br />

entre Estados.<br />

A Constituição não se refere, certamente, ao commercio<br />

do interior do Estado, isto é, ás relações commerciaes entre os<br />

habitantes do Estado, ou entre as povoações do mesmo Estado,<br />

não sahindo dos limites d'esté. « Commercio entre os Estados,<br />

observa Story, quer dizer commercio que concerne a mais de<br />

um Estado, e não pôde ser applicado ao trafico interior de cada<br />

Estado : este commercio interior é reservado ao próprio<br />

Estado ( 2 ).<br />

A attribuição, de que tratamos, se estende, como diz a<br />

Constituição, á creação de alfândegas nos portos, e de entrepostos<br />

ou empórios commerciaes. Deve estender-se também<br />

á navegação das costas, á construcção de pharoes, boias e a<br />

todos os outros meios tendentes a facilitar e desembaraçar o<br />

commercio ; pois tudo isso está implicitamente contido na<br />

disposição constitucional.<br />

6.° « Legislar sobre a navegação dos rios que banhem mais<br />

de um Estado, ou se estendão a territórios estrangeiros ».<br />

Se a navegação das costas dos Estados implicitamente se<br />

acha contida na faculdade de regular o commercio internacional<br />

entre os Estados, como ficou dito, a navegação dos rios que<br />

banhem mais de um Estado, ou se estendão a territórios estrangeiros,<br />

deve também estar sujeita ao poder regulamentar do<br />

Congresso nacional. Essa attribuição, como as precedentes,<br />

sendo exclusiva, ou privativa do Congresso nacional, é claro<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2 p. 9 § 1066.<br />

( 2 ) Loc. c. § 1065.


*#<br />

E CONSTITUCIONAL 195<br />

que os Estados ribeirinhos não podem regulamentar a navegação<br />

d'aquelles rios, nem sujeital-a a íestricções.<br />

7." « Determinar o peso, o valor, a inscripção, o typo e a<br />

denominação das moedas ».<br />

Eis aqui uma attribuição de caracter eminentemente nacional.<br />

Com effeito, o poder de cunhar moeda é uma das prerogativas<br />

da soberania nacional, e tem o fim eminentemente social<br />

de pôr em circulação nos mercados do paiz um instrumento de<br />

troca de valor fixo, conhecido e acceito por todos.<br />

Se regular o commercio nacional e estrangeiro foi commettido<br />

ao Congresso nacional, com o fim de uniformisar o commercio<br />

em todo o paiz, era absolutamente necessário que em<br />

todo elle houvesse uniformidade de moeda.<br />

A moeda, no dizer dos economistas, é uma mercadoria universalmente<br />

dada e acceita como equivalente das outras mercadorias<br />

e medida de todas ellas.<br />

Ora, uma mercadoria d'essa natureza deve ter a garantia<br />

do poder soberano, sem o que não seria acceita por todos como<br />

instrumento geral de credito.<br />

Se os Estados podessem também cunhar moeda, fixando-lhe<br />

o peso, o valor, a inscripção, o typo e a denominação, a moeda<br />

poderia variar de Estado a Estado, e como conseqüência a sua<br />

circulação variaria também nos différentes mercados do paiz.<br />

D'ahi sérios embaraços ao commercio e desconfianças nos cidadãos;<br />

porque a falsificação no valor e typo da moedas seria<br />

fácil no meio de moedas tão différentes. E' portanto manifesta<br />

a razão porque a Constituição attribuio ao Congresso nacional<br />

o direito de legislar sobre a moeda.<br />

8." « Crear bancos de emissão, legislar sobre ella e tributal-a<br />

».<br />

Depois do que fica dito, pouco basta accrescentar para<br />

justificar esta attribuição.<br />

E' caracter essencial dos bancos de emissão emittir bilhetes<br />

á vista e ao portador. O bilhete emittido não é moeda, nem<br />

verdadeira, nem falsa; é um simples bilhete, que não contém<br />

em si, como a moeda metálica, o valor que representa ; tira o<br />

seu valor unicamente da certeza de poder ser convertido em<br />

moeda metálica : esta é moeda real, aquelle é moeda fiduciaria<br />

convertivel em moeda real. Esses bilhetes devem valer


lo6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tanto, nem mais, nem menos, quanto a moeda metálica; porque<br />

se esta valesse mais, do que os bilhetes que a representão, os<br />

possuidores d'elles correrião ao banco para convertel-os, e se<br />

valesse menos, os possuidores da moeda metálica irião trocal-a<br />

por bilhetes ( i ).<br />

D'essas succintas noções resulta que a confiança que merece<br />

aquelle instrumento de troca procede da seguraaça de sua<br />

conversão. Ora, os abusos que se podem dar na emissão, põem<br />

em risco a fortuna dos possuidores dos bilhetes. D'ahi a necessidade<br />

que o poder <strong>publico</strong> geral, por sua autoridade, estabeleça<br />

bases seguras e garantidoras da conversibilidade dos bilhetes ;<br />

o que inspira a confiança precisa, para que aquelles bilhetes<br />

circulem em todo o paiz.<br />

A Constituição não se limitou a collocar entre as attribuições<br />

privativamente outorgadas ao Congresso a de cunhar<br />

moeda e crear bancos de emissão. Repetio no art. 66 § 2." ser<br />

defeso aos Estados rejeitar a moeda, ou a emissão bancaria em<br />

circulação por acto do governo federal ; e já no art. 7. 0 , entre<br />

as attribuições exclusivas da União, tinha enumerado a de<br />

instituir bancos emissores.<br />

Se ao poder geral compete a creação dos bancos de emissão,<br />

não se lhe pôde contestar o direito exclusivo de regular a<br />

emissão e de tributal-a.<br />

9. 0 « Fixar o padrão dos pesos e medidas ».<br />

Esta attribuiçâo tem intima connexão com a que regula o<br />

commercio, e as mesmas razões políticas que justificão a regularisação<br />

do commercio pelo Congresso nacional, persuadem<br />

que a este deve também competir o poder de fixar o padrão<br />

dos pesos e medidas em toda a nação. A uniformidade do<br />

commercio seria perturbada sem a uniformidade dos pesos e<br />

medidas.<br />

A Constituição americana ( Art. i.° secç. 8. a ) também delegou<br />

ao Congresso dos Estados Unidos tanto o poder de cunhar<br />

moeda e fixar-lhe o valor, como o de estabelecer o padrão de<br />

pesos e medidas. Mas. ao passo que a primeira attribuiçâo<br />

é dada exclusivamente ao Congresso, a segunda é outorgada<br />

concur rentemente aos Estados e ao Congresso; e como este<br />

( 1 ) Ciccone, Piincipi ili EJponomia política, t. 2 cap. 8.


f<br />

E CONSTITUCIONAL 197<br />

não tem usado d'aquelle poder, de facto a fixação dos pesos e<br />

medidas tem sido determinada pelos Estados, apesar de por<br />

muitas vezes se ter despertado a attenção do Congresso para<br />

a conveniência de organisar os pesos e medidas em todo o<br />

paiz. O poder de fixar o padrão dos pesos e medidas, diz Destyé<br />

exclusivo do Congresso, mas ó quando eile o exercitar. De<br />

sorte que logo que o Congresso nacional promulgue um esta"<br />

tuto regulando a materia, cessará o poder dos Estados ( I ).<br />

10. « Resolver definitivamente sobre os limites dos Estados<br />

entre si, os do Districto federai, e os do território nacional com<br />

as nações limitrophes ».<br />

Tendo a Constituição ( Art. 4. 0 ) estabelecido que « os<br />

Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se, ou desmembrar-se<br />

para se annexar a outros, ou formar novos Estados,<br />

mediante acquiescencia das respectivas assembléas legislativas,<br />

em duas sessões annuaes successivas, e approvação do Congresso<br />

nacional > agora na attribuição 10.* dá poder ao Congresso<br />

para resolver sobre limites dos Estados. Esta attribuição<br />

portanto é uma conseqüência do art. 4. 0<br />

Poderá, porém, o Congresso nacional por iniciativa propria<br />

legislar sobre limites dos Estados ?<br />

Resposta negativa se infere já da lettra do citado art. 4. 0 ,<br />

que faculta ás assembléas dos Estados alterar os seus limites,<br />

comtanto que o Congresso nacional approve o que a esse respeito<br />

tiverem resolvido em duas sessões annuas successivas, e<br />

já da expressão resolve^ definitivamente, isto é, dar a ultima<br />

palavra acerca da alteração dos limites, iniciada entre os Estados<br />

interessados.<br />

11. « Autorisar o governo a declarar guerra, si não tiver<br />

lugar ou mallograr-se o recurso do arbitramennto, e a fazer a<br />

paz ».<br />

Connexas com esta attribuição são as enumeradas sob os<br />

ns. 17, 18, 19 e 20. Portanto a um tempo e englobadamente<br />

trataremos d'ellas.<br />

E' excusado fallar da natureza, espécies de guerra e do<br />

modo de dirigil-as e terminal-as ; tudo isso é materia de direito<br />

internacional ; aqui só tratamos do que é meramente constitu-<br />

{ 1 ) The constitution with notes, p. 01. S. Francisco, 1887.


198 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cional. Também não fallaremos do poder de declarar estado<br />

de sitio. D'essa attribuição nos occuparemos quando estudarmos<br />

os direitos do poder executivo.<br />

A nossa anterior Constituição ( Art. 102 § 9. 0 ) dava ao<br />

poder executivo a attribuição de declarar a guerra e fazer a<br />

paz ; e do mesmo modo se procede em outros paizes. A actual<br />

Constituição, porém, considerando a declaração de guerra materia<br />

de transcedente importância, porque envolve os mais<br />

vitaes interesses dos cidadãos e da nação, cuja existência política<br />

pôde ser posta em risco com uma guerra, determina que o<br />

Congresso, immediato representante da nação, autorise o<br />

poder executivo a declarar a guerra e a fazer a paz.<br />

Entre as attribuições do poder executivo está a de declarar<br />

a guerra e fazer a paz, mas nos termos do art. 34 § 11 ( Art. 48<br />

§ 7. 0 ) ; isto é, depois de autorisado pelo Congresso nacional.<br />

Essa sábia disposição tem por fim obstar o poder executivo<br />

de comprometter o paiz em guerras precipitadas, e provocadas<br />

antes por paixões impoliticas, e espirito bellicoso, do que por<br />

amor á defesa dos direitos nacionaes.<br />

A Constituição expressamente diz ( Art. 88 ) que em caso<br />

algum a nação « se empenhe em guerra de conquista directa ou<br />

indirectamente, por si ou em alliança com outra nação ». Eis<br />

aqui a razão principal da clausula constitucional do poder<br />

executivo só declarar guerra depois de autorisado pelo Congresso<br />

nacional ; pois a Constituição antes de tudo quer a paz,<br />

e por isso só confere ao Congresso o poder de autorisar o<br />

governo a declarar guerra, depois de intentado o recurso do<br />

arbitramento sem êxito.<br />

Mas, por outro lado, como a nação pôde ser inopinadamente<br />

provocada á uma guerra externa ou interna, na ausência<br />

do corpo legislativo, a Constituição mui sabiamente dispôz<br />

( Art. 48 § 8 ° ) que o poder executivo tem direito de « declarar<br />

immediatamente a guerra nos casos de invasão ou aggressão<br />

estrangeira », podendo ainda e nos casos de grave commoção<br />

intestina, declarar em estado de sitio qualquer ponto do<br />

território nacional ( Art. 48 § 15 ).<br />

A Constituição dos Estados Unidos do Norte também attribue<br />

ao poder legislativo o direito exclusivo de declarar a<br />

guerra ( não de fazel-a ), mas não providenciou, como a nossa,<br />

a respeito dos casos extraordinários e repentinos. ,


{00<br />

E CONSTITUCIONAL I99<br />

Quando em 1861, por occasião da guerra da secessão, teve<br />

lugar nos Estados Unidos o primeiro acto de hostilidade com a<br />

tomada do porto Sunter, Lincoln, sem se deixar prender pela<br />

disposição constitucional, immediatamente chamou ás armas<br />

75,000 homens, e logo depois declarou em bloqueio os portos<br />

do Sul, convocando ao mesmo tempo extraordinariamente o<br />

Congresso.<br />

Esse acto do chefe do poder executivo foi reputado inconstitucional.<br />

Mas, não só o Congresso o acceitou, votando<br />

immediatamente um estatuto, no qual reconheceu o principio<br />

de hostilidade, e approvou o acto do Presidente, como o<br />

Supremo Tribunal o explicou, sustentando que o Presidente tinha<br />

usado do seu direito, iniciando a guerra ( I ).<br />

Em igualdade de circumstaacia, o nosso poder executivo<br />

obraria mui constitucionalmente em virtude do citado artigo<br />

48 §§ 8/ e 15.<br />

As attribuições de legislar sob a organisação do exercito e<br />

da armada, de fixar annualmente as forças de terra e mar, de<br />

conceder ou negar passagem a forças estrangeiras pelo território<br />

do paiz, de mobilisar a guarda nacional e de declarar em<br />

estado de sitio um ou mais pontos do território nacional, resultão<br />

todas do direito que tem a nação de velar em sua conservação<br />

e na defesa commum.<br />

E' opinião corrente que o meio mais seguro de evitar a<br />

guerra é na paz preparar-se para ella. D'ahi a necessidade de<br />

que a nação, pelos seus representantes, organise as forças de<br />

terra e mar, possa levantar exércitos, etc.<br />

Não é preciso mostrar que nenhuma das precedentes attribuições<br />

pode competir aos Estados ; todas ellas são de caracter<br />

nacional, e por isso não podem ser desempenhadas pelos governos<br />

locaes.<br />

12. « Resolver definitivamente sobre os tratados e convenções<br />

com as nações estrangeiras ».<br />

E' attribuição do poder executivo « manter relações com os<br />

Estados estrangeiros e entabolar negociações internacionaes,<br />

celebrar ajustes, convenções e tratados, sempre ad referendum<br />

do Congresso » ( Art. 48 §§ 14 e 16 ).<br />

( 1 ) V. Chambrun. Pouvoir executif aux Etats Unis f. 14-5 e Pomeroy, loc<br />

cit. p. 37i.


200 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

D'aqui procede só competir ao Congresso resolver definitivamente<br />

sobre os tratados e convenções estrangeiras.<br />

A personalidade jurídica internacional pertence ao governo<br />

da nação, ao Estado; a elle, pois, deve competir a attribuição<br />

incoativa de entabolar as negociações, cabendo ao Congresso<br />

nacional a attribuição definitiva de dar sobre ellas a ultima<br />

palavra.<br />

« Se cada Estado tivesse liberdade de fazer tratados, ou<br />

allianças, ou liga com um Estado estrangeiro, adverte Story,<br />

semelhante liberdade seria completamente subversiva do poder<br />

confiado ao governo nacional sobre a mesma materia. Um<br />

Estado poderia tomar compromissos totalmente contrários aos<br />

interesses de outro Estado visinho ou distante ; e assim a harmonia<br />

e a paz da União se perturbarião, ou correrião risco ( I )<br />

i3. « Mudar a capital da União'».<br />

E' evidente a razão d'esta attribuição. Se a nenhum Estado<br />

podia competir mudar a capital politica da Nação, é claro que<br />

só ao Congresso nacional podia a Constituição conferir esse<br />

poder.<br />

14. « Conceder subsídios aos Estados, que em caso de<br />

calamidade publica os solicitar ».<br />

O Estado é uma parte da União, é justo, pois, que se algum<br />

não tem meios de debellar uma calamidade publica, como peste,<br />

fome, etc, a União o soccorra. Se no caso de guerra e de<br />

commoção intestina pôde o"governo federal intervir nos Estados<br />

para soccorrel-os, ( Art. 6.° ) pela mesma razão deve subsidial-os<br />

nos casos de fome, peste, ou de outro mal geral que<br />

os afflija.<br />

15. « Legislar sobre o serviço dos correios e teíegraphos<br />

federaes ».<br />

Ninguém pócle pôr em duvida a utilidade, a importância<br />

dos serviços, públicos ou privados, que a instituição dos correios<br />

e teíegraphos presta á sociedade. Assim sendo, á União<br />

devia ser commettido um serviço de caracter eminentemente<br />

nacional, e que de modo geral e uniforme só pelo governo<br />

nacional pode ser desempenhado.<br />

Serviços prestados pelos Estados são naturalmente varia-<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2 p. 218 § 13.55.


E CONSTITUCIONAL 201<br />

dos e de différentes organisações, para se adaptarem ás condições<br />

peculiares de cada um. Ora, instituições tão úteis aos<br />

interesses de todos, como a postal e telegraphica, devem estar<br />

sujeitas a uma regra geralmente uniforme. Portanto com acerto<br />

confiou a Constituição aquelle serviço ao Congresso nacional.<br />

O acerto d'essa disposição é tanto maior, quanto a Consti.<br />

tuição prudentemente dispôz que os Estados possão ter seus<br />

correios e telegraphos, regulal-os e tributal-os como melhor<br />

parecer, podendo também dous ou mais Estados visinhos construirem<br />

linhas telegraphicas para seu uso, caso lhes faltem as<br />

federaes ( Art. 9. 0 §§ i.° n. 2 e 4 ).<br />

22. « Regular as condições e o processo da eleição para os<br />

cargos federaes em todo o paiz ».<br />

Não se pôde contestar que regular as eleições federaes deve<br />

competir ao Congresso ou ao governo federal.<br />

Nos Estados Unidos do Norte esta materia é regulada pela<br />

legislação dos Estados. E' uma verdadeira anomalia que a Constituição<br />

d'aquelle paiz não tenha regulado esse assumpto, e<br />

nem até hoje o Congresso tenha votado uma lei geral uniformisando<br />

a qualificação dos eleitores federaes.<br />

A respeito da escolha dos representantes ao Congresso<br />

nacional aquella Constituição limita-se a dizer « que os eleitores,<br />

em cada Estado, devem ter a capacidade ou qualificação<br />

exigida para os eleitores do ramo mais numeroso do Congresso<br />

do Estado » ( Art. i.° secç. 2." § i.° ).<br />

O regimen eleitoral ficando assim entregue ás Constituições<br />

locaes, d'ahi resulta que não ha uniformidade de base para o<br />

suffragio popular. Em uns Estados basta saber 1er e escrever<br />

para ser qualificado, em outros exige-se o pagamento de uma<br />

taxa, aqui a residência basta, ali é preciso ser proprietário (1).<br />

Ao tempo da formação da Constituição americana já os<br />

Estados estavão desde muito no goso de legislação eleitoral<br />

especial. Os constituintes, para não levantar desgostos, entenderão<br />

deixar os Estados na posse do direito de regularem a<br />

eleição, pensando, diz Story, « que o governo é uma cousa<br />

pratica, instituido para felicidade da nação, e não para ostentar<br />

( 1 ) V. Cooley, Const, limit, p. 752.<br />

26


202 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

uniformidade de legislação, grata ás opiniões abstractas de<br />

políticos theoricos » ( I ).<br />

Não obstante, notáveis publicistas americanos censurão<br />

que em uma republica democrática o suffragio não seja considerado<br />

um principio, mas uma simples questão de administração<br />

local.<br />

E' certamente uma anomalia, diz Pomeroy, que o governo<br />

geral dos Estados Unidos não tenha ingerência na escolha de<br />

seus representantes ao Congresso, nem possa estabelecer os<br />

requisitos da capacidade dos eleitores federaes. E' preciso<br />

reconhecer que isso é uma falta em nossa lei orgânica, que<br />

carece de emenda ; aquella concessão nem foi feliz, nem era<br />

necessária á theoria da soberania e independência dos Estados<br />

( 2 ).<br />

Se a Constituição mui sabiamente attribue ao Congresso<br />

nacional o poder de regular a eleição federal, outro tanto não<br />

podemos dizer a respeito do disposto no art. 17 § 3." Ahi se<br />

dispõe que o governo do Estado, em cuja representação se der<br />

vaga, por qualquer causa, inclusive renuncia, mandará immediatamente<br />

proceder a nova eleição ».<br />

Teria sido mais acertado dar aquella competência aos presidentes<br />

ou ás mesas das câmaras, os quaes logo que tivessem<br />

conhecimento certo da vaga, na sua respectiva câmara, mandarião<br />

fazer eleição.<br />

Deixar ao arbitrio do governador do Estado mandar fazer<br />

eleição federal, é correr risco de ficar por muito tempo vago<br />

um lugar na representação nacional.<br />

Os presidentes das câmaras são guardas mais zelosos e<br />

fieis dos interesses das mesmas câmaras, do que os governadores<br />

dos Estados.<br />

A Constituição diz que elles mandarão immediatamente<br />

fazer a eleição. Mas n'este Estado já vimos ficarem vagas por<br />

mais de um anno três lugares no Congresso nacional, porque<br />

assim quiz o governador.<br />

23. « Legislar sobre o direito civil, commercial, e criminal<br />

da Republica e o processual da justiça federal ».<br />

( 1 ) Commentaries, t. 1 p. 414 § 580.<br />

( 2 ) Const. Law, p. 138 § 211.


E CONSTITUCIONAL 203<br />

E' preciso reconhecer a sabedoria d'esta disposição. A uniforme<br />

e geral educação jurídica do povo brazileiro, que sempre<br />

viveu sob o mesmo regimen judiciário, não permittia, como nos<br />

Estados Unidos do Norte, que cada Estado tivesse o seu código.<br />

O código civil de Pernambuco em que differiria do das<br />

Alagoas, supponhamos ? A unidade de educação jurídica pedia<br />

unidade de códigos.<br />

Dizendo a Constituição que ao Congresso compete legislar,<br />

sobre « o direito processual da justiça federal » excluio o direito<br />

processual da justiça dos Estados. Podem, portanto, os Congressso<br />

d'estes legislar sobre o processo de suas justiças.<br />

24. « Estabelecer leis uniformes sobre a naturalisação T.<br />

A naturalisação, isto é, a admissão de estrangeiros na<br />

classe dos nacionaes, para que exerção os direitos e cumprão<br />

os deveres de cidadãos do paiz, é acto de muita importância na<br />

vida política de um povo. Só á soberania nacional deve competir<br />

o direito de conferir a qualidade de cidadão.<br />

E' portanto bem justificada a attribuição exclusiva que a<br />

Constituição commette ao Congresso nacional de legislar sobre<br />

a naturalisação ; nem poderia semelhante autorisação ser extensiva<br />

aos Estados, sem que sérias anamolias se introduzissem no<br />

direito <strong>publico</strong> da nação.<br />

A Constituição dos Estados Unidos do Norte também confere<br />

ao Congresso nacional o poder « de estabelecer lei uniforme<br />

de naturalisação ». Mas, alguns Estados ( não menos<br />

de quatorze ) tem indirectamente annullado esse poder do Congresso.<br />

Competindo aos Estados, como já vimos, regular a qualificação<br />

do eleitorado, elles tem admittido a votar nas eleições<br />

políticas estrangeiros, que apenas declarão a intenção de serem<br />

cidadãos dos Estados Unidos, quando as leis federaes de naturalisação,<br />

além da declaração d'essa intenção, exigem a estada<br />

de cinco annos no paiz e outros requisitos.<br />

No sentido legal esses estrangeiros, assim qualificado?, não<br />

são cidadãos, mas mediante aquelle processo tortuoso se lhes<br />

concede o mais importante dos direitos do cidadão, o direito<br />

de suffragio.<br />

D'esse modo se estabelece grande desigualdade entre os<br />

Estados, pois, ao passo que uns só admittem em suas eleições<br />

os cidadãos natos ou naturalisados, outros se contentão com a


204<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

simples declaração da intenção de naturalisar-se. Em 1884<br />

verificou-se que no Congresso existião noventa e cinco membros<br />

eleitos por corpos eleitoraes qualificados por aquelle<br />

expediente ( 1 ).<br />

25. « Crear e supprimir empregos públicos federaes, fixarlhes<br />

as attribuições e estipular-lhes os vencimentos ».<br />

Sobre esta attribuição nenhuma questão de valor se suscita.<br />

26. « Organisar a justiça federal ».<br />

Desde que a Constituição, consagrando o systema federal,<br />

estabeleceu implicitamente duas ordens de justiça e de órgãos<br />

judiciários, a federal e a dos Estados, nada mais natural do que<br />

ser a organisação da justiça federal da competência exclusiva<br />

do Congresso nacional.<br />

27 e 28. « Conceder amnistia — Commutar e perdoar as<br />

penas impostas, por crime de responsabilidade, aos funccionarios<br />

federaes ».<br />

Os termos amnistia, commutação e perdão tem significação<br />

différentes.<br />

Litteralmente amnistia quer dizer — esquecimento. Amnistiar<br />

não é perdoar, nem commutar, é esquecer. A amnistia<br />

extingue a pena e o delicto ; impede a acção do magistrado e<br />

dispensa na execução da lei penal. A significação de perdoar<br />

e de commutar é obvia. O acto de amnistiar pôde dar-se antes,<br />

durante ou depois da formação do processo ; o de commutar<br />

e perdoar só depois da sentença.<br />

As dispustas philosophicas, que se levantão a respeito do<br />

direito de agraciar, não são pertinentes ao nosso propósito.<br />

Admittido na soberania nacional o direito de amnistiar<br />

e de perdoar, póde-se perguntar se esse direito deve ser attribuição<br />

do poder legislativo, ou se do executivo ?<br />

Nas monarchias a graça é acto de clemência real, e sempre<br />

é faculdade do poder executivo ou do moderador.<br />

A nossa Constituição attribue o direito de agraciar em<br />

parte ao poder legislativo, em parte ao executivo.<br />

Ao poder legislativo compete conceder amnistia, commutar<br />

e perdoar somente nos casos de crimes de responsabilidade ;<br />

ao poder executivo indultar e commutar as penas nos crimes<br />

communs sujeitos á jurisdicção federal.<br />

( 1 ) V. Carlier, Republique américaine, t. 2. p. 308. Paris, 1890.


E CONSTITUCIONAL 205<br />

Assim circumscripta a esphera da acção dos dous poderes<br />

no exercício do direito de agraciar, pergunta-se : Não seria<br />

melhor deixar a plenitude do exercício d'esse direito ao poder<br />

executivo ?<br />

A lei constitucional ( 25 de Fevereiro de 1875 ) da actua*<br />

Republica franceza estatue no art. 3.° que « o Presidente tem o<br />

direito de agraciar » e que « as amnistias só podem ser concedidas<br />

por lei ». Também a Constituição federal da Suissa no<br />

art. 85 § 7. 0 dispõe que á assembléa federal competem « a amnistia<br />

e o direito de agraciar ». A Constituição americana, porém,<br />

dispõe que « o Presidente terá o direito de agraciar e de<br />

commutar penas por crimes e delictos contra os Estados Unidos,<br />

excepto em caso de impeachment ( processo instaurado<br />

pela câmara dos representantes) ( Art. 2. 0 secç. 2/ § i.° ).<br />

Story justifica ter a Constituição americana dado o direito<br />

de agraciar ao departamento executivo com as seguintes razões.<br />

A responsabilidade é mais sentida e mais directa quando<br />

cabe a uma só pessoa ; n'este caso ella procura apreciar os<br />

motivos que podem determinar mitigação no rigor da lei.<br />

A consciência de ter em suas mãos a vida e a honra de um<br />

accusado desperta-lhe escrúpulos e prudência, e ao mesmo<br />

tempo receio de ser accusado de fraqueza ou de convivência, e<br />

isso a torna mais circumspecta. Pelo contrario, os membros de<br />

urna assembléa numerosa não incorrem individualmente em<br />

censura, e reciprocamente se animão á severidade. Uma assembléa,<br />

sempre occupada em outros negócios de seu dever, não<br />

está muito no caso de se applicar ao estudo de negócios daquella<br />

natureza, e é mais fácil ceder á solicitações, e a se deixar<br />

levar pelos prejuízos das maiorias, concedendo de mais ou de<br />

menos. Accresce que uma assembléa não está sempre reunida,<br />

e que suas deliberações são vagarosas e demoradas, e a justiça<br />

deve ser, o mais possível, prompta e certamente administrada<br />

( 1 ).<br />

29. « Legislar sobre terras e minas de propriedade da<br />

União ».<br />

Excesso de escrúpulo, ou negligencia de redacção levou o<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2 p. 321 § 1499 e seg.


206 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

legislador constituinte a escrever cousas que por sua natureza<br />

estavão entendidas, por se inferirem evidentemente de princípios<br />

estabelecidos. E' o caso d'aquella attribuição. Nunca os<br />

Estados pretenderião legislar sobre terras e minas da União,<br />

desde que a Constituiçãp defidio nos arts. 64 e 72 § 17 que<br />

terras e que minas pertencião aos Estados e aos proprietários<br />

do solo.<br />

De passagem convém dizer que nossa Constituição, dispondo<br />

que « as minas pertencem aos Estados em cujos territórios<br />

se achão situadas, e que nos Estados pertencem aos proprietários<br />

do solo » inspirou-se no direito racional, e consagrou<br />

um grande e verdadeiro principio economico-politico.<br />

Por direito racional o super-solo, como o sub-solo pertencem<br />

ao proprietário do solo, e não por direito magestatico ao<br />

soberano do paiz. E' conseqüência lógica da propriedade real,<br />

e admittida em muitas das legislações modernas a doutrina dos<br />

jurisconsultes romanos — Prœdia supra terrain sunt libera<br />

domino usque ad caelum, ita stent libera usque ad profiindum.<br />

3o. « Legislar sobre a organisação municipal do Districto<br />

federal, bem como sobre a policia, o ensino superior e os de<br />

mais serviços que na capital forem reservados para o governo<br />

da União ».<br />

Depois do que já dissemos, tratando do art. 3.° pouco<br />

temos a acerescentar acerca d'esta attribuição, que é uma copia<br />

do § i7 da secç. 8. a do art. 1.° da Constituição americana.<br />

O nosso Districto federal é, com effeito, uma imitação do<br />

districto de Columbia, cujo governo pertence exclusivamente<br />

ao Congresso, á tutela do qual vivem perpetuamente sujeitos<br />

os seus habitantes, que longe,de serem verdadeiros cidadãos»<br />

não passão de pobres ilotas.<br />

A organisação constitucional do nosso Districto federal<br />

ainda é esperada ; nada, pois, se pôde dizer sobre o que não<br />

existe.<br />

Para illustração do ponto, duas palavras diremos a respeito<br />

da organisação do districto de Columbia, que será o nosso<br />

modello.<br />

Por muitas vicissitudes tem passado aquelle districto em<br />

sua vida política. A organisação, que actualmente tem, lhe<br />

foi dado pela lei de 11 de Junho de 1878.<br />

E' constituído em corporação municipal representada por


E CONSTITUCIONAL 207<br />

très commissarios, dous civis e um militar, nomeados por très<br />

annos pelo Presidente da Republica com approvação do senado.<br />

Aquelles commissarios tem a seu cargo todo o governo<br />

municipal e de policia, mas sob a tutela suprema do Congresso,<br />

o qual a exerce mediante uma commissão permanente, chamada<br />

— commissão para o districto de Columbia — á qual os commissarios<br />

dão contas de sua administração.<br />

A justiça é administrada por um superior tribunal, composto<br />

de cinco juizes e um presidente. Além d'esse tribunal,<br />

existem juizes de paz, um tribunal de policia, constables commissarios<br />

of deeds, e tabeliães, etc.<br />

O districto de Columbia, diz um escriptor, nem é um<br />

Estado, nem fragmento de Estado, nem um território, na acepção<br />

política d'esta palavra ; é uma estructura especial, que<br />

depois de ter tido a existência de condado e de municipalidade,<br />

hoje é uma aglomeração de homens brancos e negros, domiciliados<br />

n'essa terra federal, chamados cidadãos dos Estados<br />

Unidos, mas na realidade privados dos principaes direitos inhérentes<br />

á qualidade de cidadão ( 1 ).<br />

3i. « Submetter á legislação especial os pontos do território<br />

da Republica necessários para a fundação de arsenaes, ou<br />

outros estabelecimentos e instituições de conveniência federal ».<br />

Esta disposição também é traducção da ultima parte do<br />

cit. § 17 da secç. 8. a do art. i.° da Constituição dos Estados<br />

Unidos do Norte.<br />

Ninguém pôde contestar que a segurança geral do paiz e<br />

seu incremento compete ao governo nacional. Ora, arsenaes<br />

de guerra, fortalezas e outros estabalecimentos podem ser<br />

necessários á defesa e desenvolvimento da União; é, pois, muito<br />

natural que aquelle governo possa fundar e montar aquelles<br />

estabelecimentos, sujeitando-os a leis especiaes sem dependência<br />

dos Estados, em cujo território se achem os pontos<br />

escolhidos para aquelle effeito.<br />

32. « Regular os casos de extradição entre os Estados »<br />

O art. 66 § 4, 0 terminantemente prohibio aos Estados<br />

« denegar a extradição de criminosos, reclamndos pelas justiças<br />

de outros Estados, ou do Districto federal, segundo as leis da<br />

( 1 ) Para maiores esclarecimentos consultai a citada obra de Carlier, livro 6,<br />

o qual ë todo consagrado a historia da organisação do districto de Columbia.<br />

10«


208 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

União, porque esta materia se reger ». Aquella attribuição é<br />

portanto uma conseqüência do principio estabelecido no citado<br />

art. 66.<br />

A extradição, isto é, « a entrega reciproca que as nações<br />

civilisadas fazem uma a outra do criminoso que se refugia no<br />

território de uma, depois de ter commettido o crime no território<br />

da outra » é, no conceito dos publicistas modernos um<br />

dever moral internacional. Todo Estado, diz Fiori, tem o dever,<br />

dentro de justos limites, de cooperar com a autoridade competente<br />

estrangeira, e de prestar a esta auxilio e ajuda para a<br />

punição do malfeitor que viola as leis do paiz que o reclama, e<br />

cuja impunidade compromette a ordem e a geral segurança (i).<br />

Já Beccaria dizia que « a persuação de não encontrar lugar<br />

algum na terra, em que o crime possa ficar impune, seria meio<br />

efficaz de prevenir o mesmo crime ».<br />

E' certo que juridicamente a extradição só é obrigatória<br />

entre as nações que se obrigarão por convenções ou tratados ;<br />

por quanto toda nação tem, e exclusivamente exerce, jurisdicção<br />

sobre o seu território. Mas hoje a tendência da civilisação<br />

é fazer da extradição uma lei geral, e muitas nações tem já<br />

celebrado tratados sobre esta materia ; tanto é geral o sentimento<br />

das nações se auxiliarem reciprocamente na punição dos<br />

criminosos.<br />

Ora, se assim é a respeito de nações estrangeiras, quanto<br />

mais não o deverá ser entre Estados de uma mesma nação ?<br />

A boa administração da justiça criminal, e a tranqüilidade<br />

dos Estados pedem que os criminosos de um Estado não possão<br />

encontrar guarida em outro. Com a pratica de semelhante<br />

medida muito tem a ganhar a harmonia e as boas relações dos<br />

Estados. Mui sabiamente, pois, conferio a Constituição ao<br />

Congresso nacional o poder de regular a extradição entre os<br />

Estados, vedando ao mesmo tempo a estes o direito de denegal-a.<br />

35. « Prorogar e adiar suas sessões ».<br />

O fim d'esta attribuição é pôr a vida do corpo legislativo<br />

fora da acção do poder executivo, para que elle viva por si<br />

mesmo, e só de si dependa : é o que os americanos chamão —<br />

self-moving and self-dependent,<br />

( 1 ) Droit internatiouel public, t. 1 p. 549


E CONSTITUCIONAL 209<br />

O poder executivo pôde convocal-o, mas não pôde prorogar,<br />

nem adiar as suas sessões, como acontece nas monarchias<br />

constitucionaes, nas quaes, além d'isso, pôde a câmara dos<br />

deputados ser dissolvida.<br />

Alem das attribuições de que até aqui temos fallado, e que<br />

são exclusivas do poder legislativo, ( 1 ) outras são enumeradas<br />

no art. 35, as quaes, não são privativas do Congresso nacional,<br />

mas podem ser concur rent emente desempenhadas pela União e<br />

pelos Estados.<br />

Com effeito, o citado art. 35 diz : Incumbe, outro sim, ao<br />

Congresso, mas não privativamente : ( 2 ).<br />

i.° Velar na guarda da Constituição e das leis, e providenciar<br />

sobre as necessidades de caracter federal ;<br />

2.0 Animar no paiz o desenvolvimento das lettras, artes<br />

e sciencias, bem como a immigração, a agricultura, a industria<br />

e o commercio, sem privilégios que tolhão a acção dos governos<br />

locaes ;<br />

3.0 Crear instituições de ensino superior e secundário nos<br />

Estados ;<br />

4. 0 Prover a instrucção secundaria no Districto federal.<br />

Se a respeito das três primeiras attribuições podem os<br />

Estados proceder concurrentemente com a União, porque interessão<br />

ao desenvolvimento geral do paiz, não succède o mesmo<br />

a respeito da quarta attribuição. O concurso no desempenho<br />

d'esta só pôde ser do governo municipal do Districto federal e<br />

do Congresso nacional, mas não dos Estados, que não podem<br />

ter acção n'aquelle districto.<br />

O ensino superior do Districto federal é exclusivamente<br />

regulado pelo Congresso nacional, nos termos da attribuição 3. 3 ;<br />

mas o secundário pôde ser promovido alli tanto pelo Congresso<br />

nacional, como pelo governo municipal.<br />

JOT<br />

( 1 ) As attribuiçõe* 33 e 34 acharão seu lugar adiante, aonde fallareraos dos<br />

poderes implícitos e explícitos.<br />

( 2 ) Os americanos chamão — exclusive powers — aquolles que sò podem ser<br />

executados por uma autoridade, e — concurrent powers — os que podem ser exercitados<br />

por mais de uma autoridade.<br />

2"/


2IO NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

II<br />

Os poderes até aqui enumerados não são os únicos que a<br />

Constituição confere ao Congresso nacional ; outros se achão<br />

indicados aqui e alli. Por exemplo, o poder de legislar sobre<br />

os deíictos, processo e julgamento do Presidente da Republica<br />

(Art. 54 §§ l.° e 2.°); sobre os casos e fôrma da revisão dos<br />

processos findos, em materia crime (Art. 8í § I.°); sobre a<br />

creação de tribunaes e juizes ( Art. 55 ) ; sobre reforma da Constituição<br />

( Art. 90 ).<br />

Além d'esses poderes explicitamente enumerados pela<br />

Constituição, outros são conferidos ao poder legislativo de<br />

modo implícito, e por assim dizer, innominados, quaes são os<br />

que se contém nas attribuições 33 e 34 e se inscrevem assim :<br />

33. « Decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício<br />

dos poderes que pertencem á União ».<br />

34. « Decretar as leis orgânicas para execução completa da<br />

Constituição ».<br />

Que leis e resoluções serão essas, que a Constituição<br />

autorisa o Congresso nacional a decretar ?<br />

E' da essência da fôrma de governo, que adoptamos, só<br />

ter poderes limitados ; governo de poderes illimitados é governo<br />

absoluto. Essas limitações são todas impostas em favor das<br />

liberdades dos cidadãos, e no dizer de Walker, « os americanos<br />

honrão-se de terem sido os primeiros a tentar a experiência de<br />

pôr limites ao poder representativo, mediante Constituições<br />

escriptas ».<br />

O governo federal, portanto, em qualquer de seus três<br />

ramos, não pôde exercer po der algum que não seja outorgado<br />

pela Constituição, ou de modo explicito ou por necessária<br />

implicação.<br />

Aquellas leis e resoluções, pois, não podem ser contrarias<br />

á Constituição e devem se conter nas limitações que ella traçou.<br />

Os direitos exclusivos concedidos pela Constituição ao<br />

poder legislativo estão enumerados no art. 34 : mas o estão em<br />

termos genéricos. A Constituição não desce a detalhes, não<br />

especifica os meios pelos quaes aquelles poderes devem actuarse.<br />

Por exemplo, o Congresso é autorisado a < regular o commercio<br />

internacional, bem como o dos Estados entre si >.


jo€<br />

E CONSTITUCIONAL 211<br />

Mas como regular ?<br />

Qual é o sentido da palavra commercio ? Até onde se<br />

estenderá esse commercio entre os Estados ? Pára nas fronteiras<br />

dos Estados, ou se applica ao commercio dentro mesmo<br />

do território do Estado ?<br />

Nada diz a Constituição a respeito.<br />

Mas quem dá um direito, implicitamente dá também direito<br />

sobre os meios de actual-o. Outorgar um direito, e ao mesmo<br />

tempo negar o que é necessário e util ao exercício d'elle, é<br />

querer que a outorga fique lettra morta ; e certamente não foi<br />

para isso que a Constituição facultou ao Congresso nacional<br />

aquelles direitos, mas pelo contrario para que elles se exercitassem<br />

em bem do progresso e melhoramento do paiz.<br />

D'ahi se originou a theoria dos poderes implícitos.<br />

Duas escholas surgem naturalmente da interpretação que se<br />

deve dar ás cláusulas 33 e -4.<br />

Os defensores exagerados da autonomia dos Estados, receiando<br />

usurpaçâo dos direitos do governo local, pretendem<br />

que se entendão os termos d'aquellas cláusulas em sentido restricto<br />

; querem, por exemplo, que a palavra necessárias, applicada<br />

ás leis reguladoras do exercício dos poderes pertencentes<br />

á União, seja ententida litteralmente ; de modo que lei necessária<br />

será somente aquella, sem a qual o poder expresso ou<br />

enumerado ficaria sem effeito.<br />

Pelo contrario, aquelles que antepõem o bem geral da<br />

nação as suas susceptibilidades de soberania estadoal, querem<br />

que se dê liberal interpetração á mencionada palavra, entendendo<br />

necessário tudo o que é conveniente e proveitoso ao<br />

bem geral da nação.<br />

Eis aqui, em summa, em que consiste a theoria dos direitos<br />

implícitos e explícitos ( 1 ).<br />

Quando se procura saber se tal lei ou tal resolução é, ou<br />

não constitucional, cumpre em primeiro lugar examinar se o<br />

objecto da lei é expresso, isto é, se se acha entre os poderes<br />

enumerados ; no caso affirmativo, a constitucionalidade da lei<br />

( 1 ) Os americanos chamão os poderes expressos ou definidos—enumerated<br />

powers, express powers : — e os poderes implícitos ou não expressos — incidental<br />

powers, implied powers.


212 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

é indubitavel. Se, porém, não se acha entre aquelles poderes,<br />

indaga-se se é uma conseqüência de poder expresso, isto é, se<br />

traduz um poder implícito, ou, em outros termos, se a lei é<br />

necessária ao exercício de um poder explicito. No caso affirmativo<br />

a lei também é constitucional. A relação necessária<br />

entre uma lei destinada ao exercício de um poder explicito e<br />

esse mesmo poder, é portanto o critérium da constitucionalidade<br />

d'essa lei ( i ).<br />

Nos Estados Unidos do Norte, predomina a interpretação<br />

liberal em materia de direitos implícitos. Story e outros publicistas<br />

a sustentão, e o poder judiciário, arbitro final em questões<br />

constitucionaes, tem sempre se pronunciado no mesmo<br />

sentido ( 2 ).<br />

Na interpretação de um poder, escreve Story, todos os<br />

meios convenientes para a sua execução devem ser considerados<br />

partes do mesmo poder. A Constituição dando um poder,<br />

não podia limital-o somente a um modo de ser realisado. Os<br />

meios de levar a effeito um poder devem necessariamente ser<br />

variados, para se adaptarem ás exigências de uma nação con"<br />

forme os tempos. Um meio efficaz e util em certo tempo, sob<br />

influencia de outras circumstancias, pôde ser inutil e até prejudicial.<br />

Todo o governo presuppõe a existência de perpetua<br />

mutabilidade em suas operações sobre aquelles que lhe estão<br />

sujeitos, e perpetua flexibilidade de adaptação ás necessidades,<br />

interesses, hábitos, occupações e enfermidades d'aqueîles a<br />

quem se adapta (3 ).<br />

A theoria liberal de interpretação pôde ter como resultado<br />

o governo nacional usurpar os poderes dos Estados, estreitando<br />

a esphera legislativa dos mesmos Estados, dizem os impugnadores<br />

d'essa theoria.<br />

Mas, como observava Hamilton, a propósito da grande<br />

questão do banco nacional, a mesma cousa se tem dito, e se<br />

diz de todo poder exercido por inducção. Erros e abusos são<br />

sempre para temer-se de qualquer poder; mas isso não é argumento<br />

contra o poder, nem justifica uma interpretação rigida,<br />

( 1 ) V. Story, Commentaries, t. 2 § 1236 e seg.<br />

( 2 ) V. l'omerjy. Const. Law, § 259 e seg.<br />

( 3 ) Luc. cit. t. 1 § 431.


214<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Na longa enumeração das attribuições do Congresso nenhuma<br />

especifica o poder de tributar. Certamente quem concede<br />

um poder, implicitamente concede os meios necessários<br />

á execução d'elle. Por conseqüência, tendo a Constituição<br />

conferido ao Congresso o poder de orçar a receita, fixar a despeza,<br />

de estabelecer meios para pagar a divida publica, etc,<br />

por inducção entende-se que concedeu poder de tributar. Mas<br />

é certo que um poder capital, como esse, não está enumerado.<br />

A Constituição americana, pelo contrario, começa a enumeração<br />

dos poderes explícitos pelo de lançar e arrecadar<br />

impostos directos e indirectos (taxes, duties, imposts and<br />

excises ).<br />

Quanto aos poderes implícitos, a nossa Constituição não<br />

é mais concisa.<br />

Tendo no n. 33 estabelecido que o Congresso pôde « decretar<br />

as leis e resoluções necessárias ao exercício dos poderes<br />

que pertencem á União » por excesso de cautela, mas com<br />

manifesta redundância de palavras, e como se conferisse novo<br />

e distincto poder, accrescenta no n. 34 que o Congresso também<br />

pôde « decretar as leis orgânicas para execução completa<br />

da Constituição ».<br />

Acaso as leis necessárias ao exercicio dos poderes da<br />

União, não serão leis orgânicas destinadas a completar a execução<br />

da Constituição ?<br />

Ou essas leis orgânicas são as mesmas leis necessárias ao<br />

exercicio dos poderes outorgados á União pela Constituição, e<br />

n'este caso era escusado o n. 34, ou não, e n'este caso são<br />

exorbitantes da outorga constitucional e portanto inconstitucionaes.<br />

Feitos estes reparos, diremos que quanto á doutrina, a<br />

nossa Constituição nada innovou ; reproduziu a mesma doutrina<br />

americana a respeito dos direitos implícitos e explícitos.<br />

Seria impossível e desnecessário especificar todos os casos,<br />

todos os objectos sobre que o Congresso deve legislar para o<br />

bem geral da nação ; por isso a Constituição contentando-se<br />

em especificar os principaes, estabeleceu, para evitar conflictos<br />

com os governos dos Estados, aquella clausula addicional de<br />

poder o Congresso fazer todas as leis necessárias á execução<br />

d'aquelles poderes especificados.<br />

Essa clausula addicional, porém, como observa Cooley


10 r<br />

E CONSTITUCIONAL 215<br />

nem amplia os poderes especificadamente outorgados, nem<br />

é uma outorga de novos poderes ; mas é simplesmente uma<br />

declaração, destinada a remover toda incerteza a respeito da<br />

inclusão no poder principal das leis feitas para execução dos<br />

poderes enumerados; pois a outorga de um poder principal<br />

deve incluir necessariamente os poderes incidentes, sem o que<br />

a outorga do principal ficaria lettra morta ( I ).<br />

( 1 ) General principies, p. 92.


»$<br />

CAPITULO VI<br />

MEGHANISMO DO CONGRESSO. LEIS E RESOLUÇÕES. CONSTI-<br />

TUCIONALIDADE DAS LEIS. LEIS RETROACTIVAS<br />

I<br />

Depois do estudo da constituição de cada um dos ramos<br />

do Congresso, e das attribuições privativas d'esté, occorre tratar<br />

do mechanismo do mesmo Congresso, isto é, do modo particular<br />

pelo qual cada um d'aquelles ramos desempenha as suas<br />

funcções legislativas.<br />

A vida interior de cada uma das câmaras do Congresso<br />

assim como o seu procedimento na elaboração das leis, são<br />

regulados pelos seus respectivos Regimentos.<br />

A Constituição apenas dispõe sobre princípios geraes, taes<br />

como, o numero legal para as deliberações, as matérias de<br />

iniciativa da câmara dos deputados, as formulas da sancção e<br />

da promulgação das leis, etc. Tudo mais, concernente ao<br />

mechanismo dos dous corpos co-legisladores, deixa ella ao arbítrio<br />

dos mesmos corpos, aos quaes autorisou a organisar o seu<br />

Regimento interno ( Art. 18 § i.° ).<br />

Sem descer a promenores regimentaes, diremos em geral<br />

quaes os principaes elementos e funcções da vida interna do<br />

Congresso.<br />

Conforme a disposição constitucional ( Art. 18 ) a câmara<br />

dos deputados e o senado devem trabalhar separadamente, e<br />

em regra as suas sessões são publicas ; podem, porém, ser secretas,<br />

se assim deliberarem. Os casos em que terão lugar as<br />

sessões secretas, o modo de requerel-as e de n'ellas proceder,<br />

etc, tudo está determinado nos Regimentos.<br />

28


2l8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A publicidade das sessões parlamentares é hoje admittida<br />

em todos os paizes de regimen livre.<br />

Na velha Inglaterra, aliás tão liberal, durante muito tempo,<br />

as sessões do parlamento forão secretas, e até era absoluta,<br />

mente prohibido aos membros do parlamento imprimirem seus<br />

discursos, ou darem copias d'elles, sem permissão das câmaras.<br />

Uma standing order da câmara alta de 27 de Fevereiro de 1698,<br />

declarou ser infracção de privilegio imprimir, ou divulgar, sem<br />

licença da câmara, tudo o que fosse relativo aos debates da<br />

mesma câmara. De modo que os jornaes, que, para satisfazer<br />

a natural curiosidade do <strong>publico</strong>, ousavão publicar resumos de<br />

discursos, erão perseguidos.<br />

Hoje, porém, se tem relaxado tamanho rigor. Entretanto,<br />

diz Fischel, como o direito de excluir as pessoas estranhas<br />

á casa não foi ainda abolido, a publicação dos resumos dos<br />

debates do parlamento não deixou de ser, em these, contrario<br />

ás leis do mesmo parlamento. Este pôde sempre punir os autores<br />

d'aquelles resumos e conter os reporters dos jornaes.<br />

E ainda actualmente, quando se vota por divisão, os estranhos<br />

são despedidos ( 1 ). Fechão-se então as portas exteriores<br />

da câmara dos cammuns, depois do speaker ter, em alta voz,<br />

ordenado asahida dos que não são membros da casa. Strangers<br />

must withdraw ; é a formula da intimação (2 ).<br />

Não se faz ainda hoje na Inglaterra publicação officiai dos<br />

debates das duas câmaras ; mas não se perseguem mais os jornalistas<br />

que publicão resumos, e perdeu-se o costume de reclamar<br />

a expulsão de algum curioso, que furtivamente procurava<br />

ouvir os debates ; e quando, escreve Franqueville, em 1834<br />

o incêndio do Parlamento motivou nova reconstrucção, officialmente<br />

admittio-se a presença dos reporters, construindo-se<br />

(1)0 modo de votar chamado divisão, porque a câmara como que se divide<br />

materialmente, se dá quando se levanta duvida sobre a votaçãe symbolica de levantar<br />

e ficar assentado, e opera-se assim : aquelles que votão sim, passão por traz da<br />

cadeira do presidente, vão pelo corredor de oeste e entrão na sala pela porta do<br />

entrada : aquelles que votão não, fazem movimento inverso ; sahem pela porta, passão<br />

pelo corredor ( lobby ) de este e entrão por traz da cadeira do presidente Ao tempo<br />

em que passão pelo corredor, dous membros, designados pelo presidente para escrutadores,<br />

tomão os nomes dos votantes, li' uma espécie de votação nominal V. Franqueville,<br />

loc. cit. t. 3 p. 112.<br />

( 2 ) Loc. cit. t. 2 p. 287 e 303.


E CONSTITUCIONAL 219<br />

para uso d'elles uma tribuna, que, na phrase de Macaulay,<br />

tornou-se « uma quarta autoridade do reino > ( r).<br />

Constituídas as câmaras, com a eleição de suas mesas,<br />

estas o communicão ao Presidente da Republica, o qual em<br />

obediência ao disposto na Constituição ( art. 48 § 9. 0 ) dirige ao<br />

Congresso uma mensagem, dando-lhe conta da situação do<br />

paiz, indicando-lhe as providencias e reformas urgentes. Essa<br />

mensagem é remettida ao secretario do senado no dia da abertura<br />

da sessão legislativa, e fica sem resposta da parte do<br />

Congresso.<br />

Segue-se a formação das commissões, mediante as quaes se<br />

expedem os negócios que se hão de tratar nas câmaras. Elias<br />

são de différentes espécies, umas permanentes, outras temporárias<br />

ou especiaes, e varia o numero de umas e de outras.<br />

A nossa câmara de deputados tem dez commissões permanentes<br />

: i. a De constituição, legislação e justiça, 2." De orçamento,<br />

3." De contas, 4.'' De marinha e guerra, 5-* De fazenda<br />

e industrias, 6." De instrucção c saúde publica, 7." De petições<br />

e poderes, 8. a De obras publicas e colonisação, 9/ De tratados<br />

e diplomacia, IO. De redacção de leis.<br />

O senado tem também dez commissões permanentes :<br />

i. a Policia, 2. a Constituição, poderes e diplomacia, 3. a Finanças,<br />

4- a Justiça e legislação, 5." Marinha e guerra, 6." Commercio,<br />

agricultura, industria e artes, 7. a Obras publicas e industrias<br />

privilegiadas, 8. a Instrucção publica, 9.' Saúde publica, estatística<br />

e colonisação, 10. Redacção das leis.<br />

Todas essas commissões são eleitas, e durão por toda a<br />

sessão ordinária, nas extraordinárias, e nas prorogações, que<br />

tem lugar até ao começo da sessão ordinária do anno seguinte.<br />

Elegem um presidente de seu seio. Umas são compostas de<br />

nove membros, outras de cinco e a de redacção de três.<br />

A câmara toda pôde constituir-se em commissão geral, por<br />

indicação de qualquer deputado para algum fim especial.<br />

Na câmara dos representantes dos Estados Unidos do Norte<br />

as commissões permanentes (standing committees) são escolhidas<br />

pelo Presidente ( speaker ) ; no senado pelo contrario<br />

são eleitas por escrutínio.<br />

m<br />

( 1 ) Le gouvernement britannique, t. 3 p. 282.


220 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

No primeiro caso, tratando-se de uma câmara nova, suppõe-se<br />

que o presidente é mais apto, do que os outros membros,<br />

que não se conhecem uns aos outros, para distinguir as<br />

aptidões, ao passo que no senado, corpo permanente, posto<br />

que sujeito a renovações parciaes, os seus membros, conhecendo-se<br />

uns aos outros, a eleição é considerada o melhor meio de<br />

formar as commissões. Alguns publicistas americanos criticão<br />

a nomeação das commissões pelo presidente e pensão que<br />

todas devem ser eleitas.<br />

Usa-se também n'aquella primeira câmara uma espécie de<br />

commissâo total (committee of the whole), composta de toda<br />

câmara, que se reune para exame preparatório de uma questão<br />

especial e importante. Essa commissâo trabalha com toda<br />

liberdade e fora das regras regimentaes.<br />

A pratica da câmara toda reunir-se em commissâo ó imitada<br />

da Inglaterra. E' de uso ali submetter-se certos bills ao exame<br />

da câmara em commissâo (committed to a committee of the<br />

whole thouse ). N'este caso o speaker deixa a cadeira presidencial,<br />

e a commissâo elege outro presidente (chairman ),<br />

que dirige o trabalho ( i ).<br />

A autoridade das commissões na câmara dos representantes<br />

dos Estados Unidos é demasiada; seu poder é quasi absoluto,<br />

não fazendo a câmara mais do que approvar o que ellas deliberão<br />

secretamente !<br />

Por isso o escriptor americano Woodross Wilson em sua<br />

obra critica — Congressional government, — qualifica o systema<br />

americano de governo de commissões permanentes do<br />

Congresso.<br />

Esse escriptor compara os presidentes das commissões com<br />

os barões feudaes, e ellas com os feudos ou baronias. « O poder<br />

da câmara dos representantes no Congresso, diz elle, está dividido<br />

entre quarenta e sete baronias, ( as commissões ) cada uma<br />

das quaes é uma court-baron, sendo os presidentes o lord proprietário.<br />

Estes pequenos barões, alguns dos quaes são muito<br />

poderosos, mas não tanto que possão dominar os outros, podem<br />

livremente exercer um império quasi despotico nos limites do<br />

( 1 ) V. Franqueville, obra cit. t. 3 p. 388 e seg.


E CONSTITUCIONAL 221<br />

seu dominio (shires), e algumas vezes chegão a ameaçar o<br />

paiz com profundas perturbações políticas ( i ).<br />

Também entre nós os relatórios das c.irnmissões parlamentares<br />

tem sua autoridade, e ordinariamente as câmaras, em<br />

suas deliberações, se conformão com as conclusões d'elles. Mas<br />

estão muito longe de ter aquelle poder.<br />

Os debates parlamentares versão sobre matérias dadas em<br />

ordem do dia, que vem a ser a designação ou programma das<br />

matérias que devem entrar em discussão. Essa ordem é feita<br />

pelo presidente da câmara, e não pôde ser alterada ou invertida<br />

senão por deliberação da mesma câmara.<br />

Verificada a presença do numero legal, abre-se a sessão<br />

e dada a ordem do dia, começão as discussões.<br />

Os discursos escriptos não são hoje mais admittidos em<br />

parte alguma, excepto na Italia, aonde ainda são tolerados,<br />

coratanto que não durem mais que um quarto de hora. Em<br />

França não são prohibidos, são porém desusados, como entre<br />

nós.<br />

Parece ser uma tyrannia prohibir ao deputado, que não<br />

tem o dom ou a audácia da palavra, manifestar por escripto as<br />

suas idéas. Mas é fora de duvida que os discursos escriptos<br />

tem reaes inconvenientes. Em geral, diz S. Girons, são mais<br />

oratorios e litterarios, do que práticos ; não respondem a ninguun<br />

; são parciaes e resentem-se da violência do pensamento<br />

solitário ; em uma palavra, suprimem a discussão. Para os<br />

negócios públicos só o improviso convém nas deliberações.<br />

Quando se tem boas cousas a dizer não é necessário ser orador<br />

para exprimil-as e fazer-se ouvir com attenção.<br />

Os regimentos mandão que os oradores dirijão sempre seus<br />

discursos ao Presidente ou á câmara em geral.<br />

As câmaras não podem deliberar validamente sem um cer*o<br />

numero de representsntes, que os inglezes chamão quorum (2)-<br />

Esse quorum, segundo a Constituição (art. 18) é a maioria<br />

absoluta dos membros de cada uma das câmaras, isto é, metade<br />

e mais um dos membros presentes.<br />

( 1 ) Congressional government. A study in American politics. Bostuii, 1890<br />

pags. i)2 a 102.<br />

( 2 ) Quorum era a primeira palavra da formula pela qual o rei nomeav a<br />

certos juizes, cuja intervenção era necessária para a legalidade do processo. Quorum<br />

aliquem vestrum A. B. C. union esse volumus.


222 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Os inglezes se contentão com menor numero para a legalidade<br />

de suas deliberações. Na câmara dos communs, composta<br />

de 658 membros, o quornm é 40 ; e na dos lords, apenas 3<br />

sobre 439 membros ; numero excessivamente pequeno.<br />

II<br />

As deliberações das câmaras legislativas se traduzem em<br />

resoluções e leis.<br />

Resolução, em geral, é a decisão conseqüente a uma deliberação<br />

e tomada em virtude de votação. Assim, sendo sujeita<br />

á deliberação da câmara uma questão, o resultado da votação,<br />

após a discussão, tem o nome genérico de resolução, que é<br />

verdadeiro synonymo de decisão.<br />

Lei, em geral, é uma resolução sanecionada pelo poder<br />

executivo, ou votada por dous terços em ambas as câmaras,<br />

após a negativa presidencial.<br />

As resoluções emanadas do corpo legislativo, só depois de<br />

sanecionadas e promulgadas pelo poder executivo, merecem<br />

propriamente o nome de lei. A resolução é acto exclusivo do<br />

poder legislativo, a lei geralmente é effeito da coefficiencia dos<br />

podcres legislativo e executivo. Dizemos, geralmente, por<br />

que, por excepção, a lei pôde ser effeito exclusivo do poder<br />

legislativo.<br />

Assim, no caso do Presidente negar a sua saneção á resolu_<br />

ção das câmaras, se estas em segunda deliberação e pelos tramites<br />

da Constituição, approval-a de novo, diz a mesma Constituição<br />

que a câmara ultimamente délibérante enviará a resolução<br />

( ou projecto ), como lei, ao poder executivo para a<br />

formalidade da promulgação ( Art. 37 3.° ).<br />

Eis aqui uma lei, na phrase constitucional, á qual falta um<br />

elemento essencial a toda lei, a saneção, e que do poder executiuo<br />

apenas recebe a formalidade da promulgação. E essa<br />

mesma formalidade pôde faltar á lei, na hypothèse do Presidente<br />

da Republica não fazer a promulgação dentro de 48 horas,<br />

caso em que o presidente do senado ou o vice-presidente<br />

d'esté a promulga ( Art. 38 ).<br />

As resoluções legislativas, de que se trata, são verdadeiras<br />

leis, não só porque a Constituição assim as denomina, como<br />

também porque tem os caracteres de toda lei, a saber: i.° emana


Ml<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

da soberania nacional, 2. 0 obriga a todosNos cidadãos e para<br />

esse effeito, 3." é promulgada ou torna-se publica.<br />

Ha, porém, outras resoluções legislativas que não chegão<br />

a ser leis propriamente ditas, posto que emanem do poder<br />

legislativo, taes são, por exemplo, as que prorogam e adiào as<br />

sessões do Congresso nacional.<br />

A lei é o acto mais importante do poder legislativo, deve<br />

pois resultar de deliberações calmas e reflectidas ; de deliberações<br />

precipitadas e apaixonadas não podem sahir boas leis.<br />

Para evitar as precipitações, osjregimentos de todas as câmaras<br />

regulão o modo de deliberar.<br />

Assim, geralmente, os projectos de lei são sujeitos a três<br />

discussões, e entre uma e outra medeia certo tempo, dous ou<br />

três dias, para dar lugar á meditação e ao estudo. Entretanto<br />

quando o projecto versa sobre negócios de pequena monta, ou<br />

dizem respeito a interesses individuaes, pôde ter uma só discussão.<br />

Tem também uma só discussão os projectos iniciados<br />

na câmara aos quaes o Presidente da Republica negou sancção.<br />

Finda a discussão, c o projecto sujeito á votação.<br />

Por três maneiras se pôde votar : i.° symbolicamente,<br />

2.° nominalmente, 3.° por escrutínio secreto. Os promenores<br />

das votações se achão descriptos nos Regimentos das câmaras ;<br />

não ha aqui lugar para elles.<br />

Tratando de votação de projectos de lei, é util lembrar uma<br />

pratica parlamentar usada nos Estados Unidos, tanto no Congresso<br />

nacional, como nos dos Estados; referimo-nos á reconsideration,.<br />

E' principio admittido geralmente nos parlamentos, e consignado<br />

nos respectivos regimentos, que não se falle sobre<br />

materia votada : o votado está votado. E' conhecida a theoria<br />

franceza do vote acquis ( 1 ).<br />

Os americanos, porém, convencidos de que podem dar-se<br />

decisões imprudentes ou precipitadas, e de que nem sempre as<br />

maiorias deliberão de sangue frio, reabrem debates sobre matéria<br />

já vencida, quer approvada, quer reprovada ; é o que a lei<br />

parlamentar americana chama reconsideration.<br />

Os regimentos estabelecem regras acerca das moções de<br />

( ! ) V. Saint Girons, Droit Const, p. 318,<br />

223


224 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

reconsideração, estabelecendo que essas moções devem ser<br />

apresentadas no mesmo dia da votação, ou no immediato, e<br />

estando na câmara os mesmos deputados, etc. Só algum<br />

membro da maioria pôde ap resentar moção de nova deliberação.<br />

Se a maioria adopta a pro posição, o voto anterior rica annullado,<br />

e a questão entra de novo em discussão.<br />

A estratégia parlamentar acha meio de illudir o principio<br />

de que só aos membros da maioria cabe o direito de pedir<br />

reconsideração.<br />

A minoria, na occasião da primeira votação, manda que<br />

um dos seus membros vote com a maioria ; e d'esse modo esse<br />

votante adquire a faculdade de propor a reconsideração de um<br />

projecto, que elle adoptou provisoriamente, só para ter o direito<br />

de depois reclamar contra elle ( i ). O expediente americano<br />

da reconsideração, é digno de ser imitado.<br />

IV<br />

A Constituição de um Estado é a sua suprema lei ; éa lex<br />

legum; é a arca santa em que estão depositados os registros dos<br />

direitos dos cidadãos. Com essa lei suprema devem, portanto,<br />

conformar-se todas as outras leis e resoluções do poder legislativo<br />

ordinário ; se d'ella destoão, dizem-se inconstituciona.es,<br />

Esta palavra, porém, praticamente não tem o mesmo sentido.<br />

Litteralmente é inconstitucional a lei que é centraria a<br />

uma disposição constitucional ; mas na ordem pratica é preciso<br />

saber qual é a natureza da constituição, para entender em que<br />

sentido uma lei é chamada inconstitucional.<br />

Diante da Constituição ingleza uma lei do parlamento se<br />

diz inconstitucional quando é contraria ao espirito da Constituição<br />

; mas d'ahi não se infere, nem que essa lei seja uma<br />

violação da Constituição, nem que seja ipso facto nulla.<br />

Tratando-se de uma lei, em paiz de Constituição escripta<br />

é inconstitucional aquella que contraria um artigo da Constituição<br />

escripta ; mas d'ahi também não se infere que ella seja<br />

considerada ipso facto nulla, porque os tribunaes não podem<br />

recusar-se a applical-a : chamal-a inconstitucional eqüivale<br />

apenas a uma censura.<br />

( 1 | V. De NoaillM, Obra citada, t. 1 p. 281.


E CONSTITUCIONAL 225<br />

Mas perante a Constituição americana a expressão inconstitucional<br />

quer dizer, que a lei está fora do poder do Congresso,<br />

é ultra vires, portanto é ipso facto de nenhum effeito,<br />

e os tríbunaes, em um caso, sujeito á sua jurisdicção, não a<br />

applicação ( I ).<br />

Em relação a nós, o que pensar de uma lei do Congresso<br />

nacional contraria a um artigo da Constituição ? Produzirá<br />

effeito perante os tríbunaes ? Poderão os juizes deixar de<br />

applical-a em um caso dado, por considerarem-na nulla ?<br />

Nenhum artigo de nossa Constituição, de modo explicito,<br />

confere ao juiz o poder de considerar nulla uma lei, por julgal-a<br />

contraria á Constituição. Mas esse poder está implícito no de<br />

interpretar as leis, e resulta da theoria das limitações constitucionaes.<br />

Incumbidos pela Constituição ( Arts. 59 e 60 ) de decidir as<br />

questões da validade das leis ou de actos dos governos dos<br />

Estados em face da Constituição, e as causas em que a parte<br />

fundar acção em disposição da mesma Constituição, o Supremo<br />

Tribunal e os juizes ou Tríbunaes Federaes tem portanto que<br />

interpretar a Constituição e as leis para poderem decidir.<br />

Na constituição americana também não existe, é verdade,<br />

um texto, em que positivamente seja conferido ao poder judiciário<br />

a faculdade de declarar uma lei inconstitucional.<br />

Mas na opinião autorisada de Walker, essa doutrina, denominada<br />

de nullificação, claramente se infere do seguinte texto :<br />

« O poder judiciário se estenderá a todos cs casos de direito e<br />

equidade que se originarem da presente constituição, das leis<br />

dos Estados Unidos e dos tratados que se fizerem por sua<br />

autoridade » ( Art. 3.° secç. 2.a § 2. 0 ).<br />

Commentando aquelle texto, o citado publicista diz que em<br />

virtude d'elle a Constituição investe o poder judiciário de pleno<br />

poder para decidir questões constitucionaes, e que mediante essa<br />

alta funcção o poder judiciário federal pôde prender o braço<br />

dos outros ramos do governo, quando sahem dos limites que<br />

lhes forão traçados e invadem a esphera de outro.<br />

« Alguns, accrescenta Walker, criticão essa doutrina considerando-a<br />

pouco harmonica com as theorias democráticas, que<br />

( 1 ) V. Dicey, Introd. cit. p. 427.<br />

29


226 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

não consentem que um pequeno numero de homens annulle os<br />

actos do maior numero. Mas a experiência tem mostrado que<br />

esse mechanismo constitucional é sábio e salutar ; e na verdade<br />

é um dos mais bellos característicos do nosso systema. Não é<br />

possível conceber mais sublime exercicio do poder, do que<br />

aquelle, pelo qual alguns poucos homens, só pela força da razão,<br />

sem soldados, sem tumulto, sem pompa, nem apparato, mas<br />

calmos, sem estrepito, nem temor, annullão os actos do outro<br />

poder, só porque são contrários á Constituição ( I ).<br />

Entretanto, não convém pensar que os tribunaes americanos<br />

se constituão tribunaes de revista ou de cassação dos actos<br />

do poder legislativo, nem que discutão politicamente e em<br />

abstracto aquelles actos. Não ; somente no curso de um processo,<br />

lis mota, quando cabe applicar uma lei a um caso sujeito,<br />

é que o juiz estuda o effeito da lei no ponto de vista judiciário,<br />

e a declara nulla por ser contraria a algum direito do cidadão<br />

garantido pela Constituição. E isso mesmo é feito com o maior<br />

critério e circumspecção, de modo a não irritar o poder legislativo,<br />

nem tornal-o um vencido.<br />

A presumpção de validade é sempre em favor da lei.<br />

Somente quando é evidente a repugnância entre a lei a applicar-se<br />

e o texto constitucional, é que o tribunal a desconhece<br />

por inconstitucional.<br />

« Não se admitte, diz o jurisconsulte Cooley, que um tribunal<br />

declare inconstitucional e nulla uma lei unicamente por que<br />

contenha disposição oppressiva, ou por que se supponha que<br />

ella viola os direitos naturaes, sociaes ou políticos dos cidadãos<br />

; é preciso que a injustiça allegada esteja prohibida, ou<br />

que aquelles direitos se achem garantidos ou protegidos pela<br />

Constituição ». Se em uma causa, em que se levanta a questão<br />

de inconstitucionalidade, acerescenta o mesmo escriptor, o juiz<br />

pôde encontrar motivo para decidir, sem tocar na questão de<br />

inconstitucionalidade, deve basear-se n'esse motivo, para evitar<br />

attrito entre os poderes, sempre ciosos de suas prerogativas (2).<br />

Procedendo com essas cautelas os tribunaes americanos<br />

sustentão os direitos dos cidadãos sem lutas entre os dous<br />

( 1 ) American law-, p. 73.<br />

( 2 ) Constitutional limitations, cap. 7 §§ 163 e 164.


228 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

IV<br />

A Constituição veda, assim á União, como aos Estados<br />

prescreverem leis retroactivas ( Art. 11 §3.° ).<br />

Esta disposição não tem nada de original ; algumas constituições<br />

a consagrão : a americana também prohibe que o Congresso<br />

nacional e os dos Estados votem leis retroactivas ».<br />

Nenhuma lei ex post facto poderá ser votada, diz art. l.° secç. 9- a »<br />

O que é lei retroactiva ? O sentido littéral da expressão<br />

é obvio. Toda lei feita para regular actos passados é retroactiva<br />

.<br />

E' principio jurídico que as leis se fazem para regular o<br />

futuro e não o passado. Leges et constitutions futuris certum<br />

est dare /armam negotiis non prœterita facta revocari ( I ).<br />

A justiça é o fundamento essencial de toda lei ; ora, não<br />

pôde dar-se maior injustiça do que applicar uma lei a quem<br />

não a conhece, nem pôde conhecel-a, por que não existe. Como<br />

poderá uma lei prohibir ou permittir factos já consummados ?<br />

O axioma jurídico, da não retroactividade da lei, é applicavel<br />

tanto em matéria criminal, como em matéria civil ?<br />

O art. ti §3.° estabelece o principio, e não faz distincçâo.<br />

Ainda que aquelle principio, evidente e incontestável em<br />

matéria criminal, possa levantar duvida, quando applicado em<br />

matéria civil, todavia, parece que constitucionalmente e ex vi<br />

termini deve ser entendido em toda a sua generalidade.<br />

O nosso Código Penal ( art. 3.° ) declara que a lei penal<br />

não tem effeito retroactivo. Accrescenta, porém, que a lei nova<br />

poderá regular o facto anterior em dous casos : i.°Seo facto<br />

não fôr considerado passível de pena, 2.° se fôr punido com<br />

pena menos rigorosa. E em ambos os casos, diz o citado artigo,<br />

embora tenha havido condemnação, se fará applicação da nova<br />

lei, a requerimento da parte ou do ministério <strong>publico</strong>, por<br />

simples despacho do juiz ou tribunal, que proferio a ultima<br />

sentença.<br />

A expressão ex post facto laws, de que se serve a Consti-<br />

( 1 } L. 7. C. de legibus.


E CONSTITUCIONAL 229<br />

tuição americana no artigo comparado, não tem na jurisprudência<br />

dos Estados Unidos a mesma extensão que a nossa<br />

phrase leis retroactivas.<br />

Lei ex post facto é, como expõem os commentadores, lei<br />

retroactiva em materia criminal. O sentido natural e ordinário<br />

da expressão ex post facto law, escreve o jurisconsulte Cooley,<br />

abraça todas as leis retroactivas, mas na Constituição o sentido<br />

é mais restricto, é exclusivamente applicado ás leis de natureza<br />

criminal ( 1 ). A mesma doutrina sustenta Pomeroy, para o<br />

qual — toda lei ex post facto é retroactiva, mas nem toda lei<br />

retroactiva é ex post facto ( 2 ).<br />

( 1 ) General principles cil. p. 285,<br />

( 2 ) Introduction cit. p. 420 § 513.


JU<br />

CAPITULO VII<br />

DA SANCÇÃO E DO VETO PRESIDENCIAL. SE O PROJECTO NÃO<br />

SANCCIONADO PODE SER VOTADO NA MESMA SESSÃO. DES-<br />

ACCORDO ENTRE AS DUAS CÂMARAS RELATIVO A EMENDAS.<br />

I<br />

Posto que ordinariamente se attribua ao poder legislativo,<br />

a formação das leis, todavia é certo que a funcção de legislar<br />

não é exclusiva d'aquelle poder.<br />

O poder executivo, o Presidente da Republica, collabora<br />

na formação das leis ; seu assentimento é ordinariamente<br />

indispensável para que a resolução do Congresso tome o caracter<br />

de lei. A Constituição diz que « o poder legislativo é<br />

exercido pelo Congresso nacional, com a sancção do Presidente<br />

da Republica > ( Art. 16 ).<br />

Portanto o Presidente da Republica é cooperador ordinário<br />

na factura das leis. S6 excepcionalmente, |como já ficou dito,<br />

a sua ' itervenção é dispensada, e n'esses casos é preciso nada<br />

menos do que, que o projecto, passando por nova deliberação,<br />

seja outra vez approvado em ambas as casas do Congresso.<br />

O Presidente da Republica exerce a sua funcção legislativa<br />

por meio da sancção, da promulgação, e do veto, no caso de<br />

não concordar com a deliberação do Congresso.<br />

Antes de expor as disposições constitucionaes reguladoras<br />

do exercício d'essas funcções do poder executivo, não será<br />

supérfluo dizer o que é sancção, promulgação e veto.<br />

Litteralmente sanccionar ( sancire ) é tornar santo ou<br />

inviolável alguma cousa. Os romanos chamavão sancti os<br />

muros da cidade, sancti os tribunaes e os embaixadores, porque<br />

erão invioláveis.<br />

Sancção é, pois, a acto pelo qual o chefe do Estado, appro-


232 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

vando uma resolução do corpo legislativo, a torna lei, a declara<br />

santa, isso é, inviolável, e obrigatória para todos os cidadãos.<br />

O acto da sancção é expresso pela seguinte formula constitucional<br />

: « O Congresso nacionnl decreta e eu sancciono a<br />

seguinte resolução » ( Art. 3j § 4." ).<br />

A sancção é acompanhada immediatamente da promulgação,<br />

que é o acto da publicação da lei, para que ella chegue ao<br />

conhecimento dos cidadãos e possa obrigal-os á obediência da<br />

mesma lei.<br />

Para que a lei obrigue, e suas violações possão ser punidas,<br />

é necessário que seja conhecida. D'a'ii o adagio legista —<br />

A lei não promulgada não obriga — Portalis diz que a promulgação<br />

é « a edição solemne da lei, é o meio de autenticar a sua<br />

existência e de obrigar o povo a cumpril-a.<br />

O praso fixado para que as leis cheguem ao conhecimento<br />

dos cidadãos, e portanto se tornem obrigatórias, varia com a<br />

legislação dos diversos paizes.<br />

O nosso Decreto n. 572 de 12 de Julho de 1890 fixou o<br />

momento em que começa a obrigatoriedade das leis da União e<br />

dos decretos do governo federal, com força de lei, do seguinte<br />

modo: i.° No Districto federal obrigão no terceiro dia depois<br />

da publicação no Diário Official; 2.° Na comarca da capital<br />

de cada Estado no terceiro dia depois da reproducção na sua<br />

folha official ; 3.° Em todas as outras comarcas no terceiro dia<br />

depois da publicação feita pelo Juiz de Direito em audiência,<br />

ou na falta, findo o mesmo praso do numero anterior, augmentado<br />

de tantos dias quantos 3o kilometros medirem e^tre a<br />

capital e a sede da comarca.<br />

Se o Presidente da Republica não acquiesce ao projecto,<br />

approvado por ambas as câmaras, nega a sua sancção. E' esta<br />

negativa que se denomina veto, que litteralmente quer dizer —<br />

impeço oxxfirohibo. Portanto o veto é o acto do chefe do Estado,<br />

pelo qual impede que um projecto, approvado pelas câmaras,<br />

se torne lei.<br />

Os publicistas fallão de duas espécies de veto : absoluto e<br />

suspensivo.<br />

O veto é absoluto quando o projecto, sobre que elle recahe,<br />

não pôde mais tornar-se lei ; é suspensivo quando o projecto<br />

vetado pôde ser sujeito á nova deliberação e afinal tornar-se<br />

lei sem o consentimento do poder executivo.


$><br />

E CONSTITUCIONAL 233<br />

O veto temporário ou suspensivo, admittido pela nossa,<br />

e outras constituições, é uma espécie de pedido de nova deliberação,<br />

dirigido pelo poder executivo ao legistativo ; é uma<br />

appellação da decisão do Congresso para o mesmo Congresso<br />

melhor informado, mais calmo e reflectido.<br />

O chefe do Estado pôde muitas vezes avaliar as dificuldades<br />

praticas e os inconvenientes de um projecto de lei melhor, do<br />

que uma grande corporação política, em cujo seio facilmente se<br />

inflamão as paixões partidárias, e se levanta o espirito faccioso<br />

e de hostilidade, inimigo natural da calma e da reflexão.<br />

O poder legislativo, diz o sábio Story, tem natural tendência<br />

para invadir os direitos e absorver os poderes dos outros<br />

ramos do governo. As limitações, entre os poderes, consignadas<br />

na Constituição, não bastão para proteger o poder executivo,<br />

que é o mais fraco. D'ahi a necessidade constitucional<br />

de dar a arma do veto áquelle poder, sem a qual ficaria desautorado<br />

e reduzido a um titulo vão... Um grande mal de todos<br />

os governos livres é a tendência para legislar demais, e a<br />

inconstância e mobilidade das leis que os regem. O mal, que<br />

pôde resultar da rejeição de uma lei boa, é menor do que o da<br />

adopção de uma ruim, ou de uma legislação redundante e<br />

instável ( i ).<br />

O direito de veto é, portanto, perfeitamente justificado.<br />

Segundo a nossa Constituição, o uso d'aquelle direito não<br />

é discricionário. Somente em dous casos, conforme dispõe o<br />

art. £7 § 1.0, pôde o Presidente da Republica negar a sua<br />

sancçao : i.° se julga o projecto inconstitucional, 2." se contrario<br />

aos interesses da Nação.<br />

Nos Estados Unidos do Norte o direito de veto não tem<br />

limites ; o Presidente pôde usar d'elle discricionariamente.<br />

Os legisladores constituintes entenderão, diz o Federalist,<br />

que o Presidente devia lançar mão d'essa arma sem temor.<br />

A Constituição dispõe que se o Presidente não approvar o<br />

projecto, o devolverá com as sitas objecções á câmara, d'onde<br />

emanou ; mas essas objecções muitas vezes se fundão em considerações<br />

inanes. Assim, John Tyler repellio um bill financeiro<br />

dando uma razão toda pessoal, qual era que o dito bill abrogava<br />

uma medida, pela qual elle outr'ora votara, quando mem-<br />

I 1 ) Commentaries, t. 1 p. 62õ §§ 884 — (J.<br />

3o


234 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

bro do Congresso federal ; e não obstante a futilidade do<br />

motivo, o veto triumphoa ( i ).<br />

Entretanto, essa facilidade de exercer o direito de veto<br />

longe de desagradar ao povo, que assim vê contrariada a vontade<br />

de seus representantes, pelo contrario 3 segundo adverte<br />

J. Bryce, o Presidente geralmente ganha popularidade ( 2 ).<br />

Nos primeiros tempos os Presidentes usarão de veto com<br />

muita discrição e Washington, durante as suas duas presidências,<br />

apenas oppôz o veto duas vezes, e seus suecessores,<br />

até i83o, sete vezes.<br />

No governo agitado de Andrew Johor.sor. de 1865 ;1 1869,<br />

esse Presidente, em lucta com o Congresso, abusou de seu<br />

direito de veto por opposição systematica ; mas o Congresso,<br />

unido pelo ardor da lucta, votou por maioria de dous terços<br />

quasi todos os projectos que I've forão devolvidos.<br />

Até a ascenção do presidente Cleveland em 1885, isto é><br />

durante noventa e seis annos, o total dos vetos era de 128. Esse<br />

Presidente, porém, só por si, usou do veto 304 vezes, sendo<br />

que a grande maioria d'esses projectos veiados concedia pensões<br />

a pessoas que servirão nos exércitos do Norte durante a<br />

guerra da secessão ( 3 ),<br />

Em alguns paizes de regimen monarchico, constitucional»<br />

e especialmente na Inglaterra, aonde o direito de veto absoluto,<br />

é um attributo inhérente ao poder real, aquelle direito cahio<br />

em desuso, por força dos progressos do governo de gabinete,<br />

e só se exercita indirectamente ; mas todavia subsiste como<br />

principio.<br />

E' erro fundamental, dizia Palmerston, suppôr que o poder,<br />

que compete á coroa, de rejeitar as leis, deixou de existir;<br />

existe ainda, mas se exercita de modo différente.<br />

Em vez de applicar-se ás leis sujeitas á approvação real, se<br />

exercita por antecipação nos debates das duas câmaras do<br />

parlamento : é delegado aos conselheiros responsáveis da<br />

coroa ; de modo que é impossível que uma lei, votada pelas<br />

duas câmaras e apresentada á approvação do Soberano, seja<br />

por elle rejeitada.<br />

( 1 ) Citado por De Noailles, obra cit. t. 2 p. 86.<br />

( 2 ) American Commonwealth, t. 1 p. 55.<br />

( 3 ) V. Bryce. loc. cit. t. 1 p. 5í e Chambrun. Le Pouvoir executif aux<br />

Etats Unis, p, 122 — 123.


Ji*<br />

E CONSTITUCIONAL 23$<br />

E porque assim é? Porque não : ; . pôde conceber que uma,<br />

lei que foi approvada pelas duas casas do parlamento, no seio<br />

das quaes os ministros responsáveis ca coroa tem assento,<br />

fallão, e votao, deixe de ter sido acceita por esses conselheiros,<br />

e não estejão, portanto, preparados para aconselhar ao Soberano<br />

que approve a referida lei.<br />

Se uma lei passa pelas duas câmaras, contra a vontade e a<br />

opinião dos ministros, estes devem naturalmente demitíir-se,<br />

e ser substituidos por homens, em cuja sabedoria o parlamento<br />

confie mais, e estejão de accôrdo com as maiorias das duas<br />

câmaras ( i ).<br />

Se o Presidente julga, por um dos deus motivos referidos,<br />

negar a sua sancçào ao projecto, dentro de dez dias úteis,<br />

contados d'aquelîe em que o recebeu, devolve-o. n'esse mesmo<br />

praso, á câmara, onde elle se iniciou, dando os motivos da<br />

recusa ( Art. 37 § i." ).<br />

Mas se durante aquelle decendio o Presidente cala-se, e<br />

não saneciona, nem oppõe o seu veto, entende-se que o sanccionou.<br />

N'este caso temos uma espécie de tácita assensio,<br />

que se não significa approvação, importa certamente, segundo<br />

a regra de direito, não ter negado a sancçào. Qui tacei non<br />

utique fatetur, sed tamen verum est eum non negate ( 2 ).<br />

O silencio do Presidente significando que elle não negou<br />

saneção, quer a Constituição que esse silencio importe saneção<br />

( Art. cit. § 2.° ).<br />

A negativa de saneção pôde oceorrer ou estando aberto o<br />

Congresso, ou estando elle já encerrado. No primeiro caso,<br />

como já ficou dito, é o projecto devolvido á câmara, em que se<br />

iniciou, acompanhado dos motivos da recusa. Art. cit. § I. 0<br />

No segundo o Presidente publicará as razões da recusa. Ibid. § 2.<br />

A Constituição americana tem disposição idêntica, porem<br />

mais explicita.<br />

Diz ella : Se dentro de dez dias ( exceptos os domingos)<br />

o Presidente não devolver o bill, que lhe tiver sido apresentado,<br />

elle terá força de lei, como se fora assignado, salvo se a devolução<br />

não poder ter lugar, por não estar o Congresso funecionando,<br />

caso em que o bill não será lei (Art. i.° secç. 7." § 2." )<br />

( 1 ) V. ile Franqucvillo, Le :, uvoniemunt o! le parlamcnt britanniques, t. I<br />

p. 27-5 — 6.<br />

( 2 ) D. De reg. jur. ; 50,17 ).


236 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Chegamos á hypothèse do § 3.° do Art. 37 da nossa Constituição,<br />

que diz : « Devolvido o projecto á câmara iníciadora,<br />

ahi se sujeitará a uma discussão e á votação nominal, considerando-se<br />

approvado, si obtiver dous terços dos suffragios presentes.<br />

N'este caso, o projecto será remettido á outra câmara,<br />

que, si o approvar pelos mesmos tramites, e pela mesma maioria,<br />

o enviará como lei, ao poder executivo para a formalidade<br />

da promulgação >?.<br />

Esta disposição em substancia nada tem de original.<br />

A Constituição americana também dispõe : « Se o Presidente<br />

dos Estados Unidos não assignar o projecto, ( a sancção ali<br />

consiste na simples referenda presidencial ) o devolverá com<br />

suas objecções á câmara em que elle tiver tido origem, e ella<br />

transcreverá as objecções no seu diário, e discutirá novamente<br />

o bill. Se depois d'essa segunda discussão os dous terços da<br />

câmara se pronunciarem a favor do bill, este será remettido ><br />

com as objecções do Presidente á outra câmara, que também o<br />

discutirá, e se fôr approvado pela mesma maioria tornar-se-ha<br />

lei. Mas n'este caso os votos das câmaras serão por — sim —<br />

e — não, — ficando o nome dos votantes pro e contra inscriptos<br />

nas actas de suas respectivas câmaras ( Art. i.° secç. 7. a § 2.° ).<br />

Se vê, pois, que em nosso systema constitucional, do mesmo<br />

modo que no americano, o veto presidencial é simplesmente<br />

suspensivo, e equivalente a um pedido de reconsideração. Mas<br />

afinal, mediante o processo exposto, a supremacia legislativa<br />

pertence ás câmaras.<br />

A actual Constituição da Republica franceza também<br />

admitte o veto presidencial. O art. J." da lei de i6 de Julho<br />

de 1875 dispõe que « no período fixado para a promulgação<br />

( um mez ) o Presidente pôde pedir, em mensagem motivada,<br />

as duas câmaras nova deliberação, que não pôde ser recusada».<br />

Para que aquella superioridade legislativa se patenteie<br />

não basta que as câmaras se pronunciem por simples maioria ;<br />

é necessário dous terços de suffragios de ambas as câmaras, e<br />

que os representantes votem com a responsabilidade de seus<br />

nomes, e não a socapa da irresponsabilidade collectíva.<br />

Votada a lei pelos dous terços, é enviada ao Presidente<br />

para a formalidade da promulgação, cuja formula constitucional<br />

é : o Congresso nacional decreta e eu promulgo a seguinte<br />

lei ».


%<br />

E CONSTITUCIONAL 237<br />

Propriamente íallando a promulgação não é uma. formalidade,<br />

mas requisito essencial, posto que extrinseco, da lei, e<br />

tão essencial que sem ella a lei não pôde obrigar, por que fica<br />

desconhecida. Somente depois da promulgação é que os cidadãos<br />

não podem allegar ignorância, para se e::imirem da obediência<br />

á lei.<br />

Servindo-se da phrase — formoAidade da promulgação —<br />

parece que os redactores da Constituição quizerão apenas<br />

significar que o Congresso, só por si, no caso indicado, pôde<br />

fazer lei ; e por isso dizem • enviará como lei ao poder executivo,<br />

para a formalidade da promulgação.<br />

Presumirão os nossos legisladores constituintes que o Presidente<br />

da Republica em algum caso podesse contrariar a vontade<br />

do Congresso, demorando ou não promulgando a lei votada<br />

por dous terços. Por isso dispozerão no Art. 38 que, se dentro<br />

de 48 horas elle não promulgar a lei, o presidente do senado<br />

ou o vice-presidente, se o primeiro não o fizer em igual praso,<br />

a promulgará, usando da seguinte formula : « F. presidente<br />

( ou vice-presidente ) do senado, faço saber aos que a presente<br />

virem, que o^ Congresso nacional decreta e promulga a seguinte<br />

lei ».<br />

N'este caso a collaboração legislativa do Presidente da<br />

Republica desapparece completamente, ficando reduzido ao<br />

exercicio de suas funcções executivas.<br />

II<br />

Antes de deixar o ponto concernente á sancção e ao veto<br />

presidencial, occorre fallar da disposição do art. 40, no qual se<br />

dispõe que : « Os projectos rejeitados, ou não sanccionados,<br />

não poderão ser renovados na mesma sessão legislativa ».<br />

Esta disposição não é original. Diversas constituições a<br />

consagrão.<br />

Assim, a Constituição da Italia dispõe : « Se um projecto<br />

de lei for rejeitado por um dos três poderes legislativos, não<br />

poderá ser apresentado de novo na mesma sessão » ( Art. 56 ).<br />

A da Hespanha no art. 44 diz : « Se uma das assembléas<br />

legislativas rejeitar um projecto de lei, ou se o rei negar a sua<br />

sancção, nenhuma proposição, nova contendo a mesma materia,<br />

poderá ser apresentada na mesma sessão ».


238 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A da Noruega, addicionada em 24 de Abril de i860 dispõe :<br />

« Se o rei não approval" a resolução a devolverá ao Odelsthing,<br />

declarando que por hora não julga conveniente sanccional-a ;<br />

n'este caso a resolução não poderá mais ser apresentada ao rei<br />

no curso da sessão ».<br />

Também a nossa velha Constituição ( Art. 65 ) exigia que<br />

o projecto ao qual o chefe do Estado negasse sancção, passasse<br />

successivamente por duas legislaturas para então tornar-se lei.<br />

Ora, qual será a razão d'essas disposições ?<br />

Porque não convirá que um projecto rejeitado, ou não<br />

sanccionado, seja renovado na mesma sessão ?<br />

Parece evidente que o fim d'essa disposição é dar tempo<br />

á reflexão, a um estudo mais demorado da parte dos representantes<br />

; é permittir que a opinião publica se manifeste acerca<br />

da conveniência do projecto, dando assim razão ao poder<br />

legislativo, ou ao executivo.<br />

O Presidente da Republica é também um representante do<br />

povo, é eleito pelo suffragio directo de toda a nação, e se não<br />

é infalível, a sua opinião tem um grande valor moral, pela responsabilidade<br />

individual que assume perante seus concidadãos.<br />

Portanto a sua dcnegaçào merece ser maduramente ponderada,<br />

antes de ser repellida pelas câmaras, aonde a responsabilidade<br />

é collectiva ou anonyma.<br />

A Constituição vedando expressamente que o projecto não<br />

sanccionado seja renovado na mesma sessão, e além d'isso<br />

exigindo também que para o projecto tornar-se definitivamente<br />

lei, apezar do veto presidencial, seja approvado por dous terços<br />

dos suffragios de ambas as casas do Congresso, e em votação<br />

nominal, procurou cercar o poder executivo de maxima garantia<br />

contra as precipitações e espirito faccioso do Congresso.<br />

O veto presidencial, diz o illustre Story, é uma garantia<br />

contra adopção de medidas inconsideradas, immaturas e inoportunas<br />

; e um freio salutar ao corpo legislativo, destinado a<br />

livrar a communhào dos effeitos das facções, das precipitações,<br />

do espirito de hostilidade política, e também de uma legislação<br />

inconstitucional.<br />

E' certo que se pôde dizer, acerescenta Story, que um só<br />

homem, qual o presidente, não se presume tenha mais sabedoria,<br />

virtude ou experiência, do que uma assembléa. Mas isso<br />

não responde ao raciocínio. A questão não é saber qual dos


E CONSTITUCIONAL 239<br />

dous poderes tem mais sabedoria, ( posto que a escolha do<br />

povo faça presumir que o magistrado executivo é eminentemente<br />

distincto ), mas somente se uma assembiéa legislativa<br />

não se deixa mais facilmente arrebatar pela sede do poder, pelo<br />

espirito de facção, do que o poder executivo, attento a differença<br />

dos deveras d'esses dous poderes.<br />

O presidente não estando sujeito ás influencias que actuão<br />

sobre o legislador, pôde examinar os actos d'cste com moderação<br />

e imparcialidade, e assim corrigir os que forem eivados de<br />

precipitações ou de intenções criminosas. Se a opinião do<br />

Presidente não é mais douta ou mais elevada, é mais independente,<br />

e sujeita a uma responsabilidade différente da do corpo<br />

legislativo ( 1 ).<br />

Portanto, os motivos da recusa de saneção não devem ser<br />

despresados pelo Congresso sem dilação e sem calma.<br />

A Constituição dos Estados Unidos do Norte, nada diz a<br />

respeito do tempo em que o Congresso deve reconsiderar os<br />

bills não sanecionados, mas diz o commenlor Rawl que « não é<br />

de uso reproduzir na mesma sessão um bill não sanecionado ».<br />

O publicista Benton em sua obra Thirty years'View,<br />

escreve : « O fim e effeito do veto consistem em suspender a<br />

aclopção de uma lei, até que a nação se pronuncie nas proxixímas<br />

eleições, e admitia ou rejeite definitivamente a lei em<br />

litígio por um Congresso pertinentemente eleito : é uma prero.<br />

gativa jasta e conveniente, concedida ao executivo no interesse<br />

do povo e judieiosamente confiada ao eleito do mesmo povo (2j.<br />

Entretanto essa doutrina foi despresada nos Estados Unidos<br />

em uma epocha de ardente e apaixonada hicta entre o<br />

Congresso e o Presidente da Republica.<br />

Andrew Johonson, que durante os seus três annos de<br />

governo viveu em aberta lueta com o Congresso, oppôz o seu<br />

veto aos principaes bills, que o Congresso votara de conformidade<br />

com a sua política de reconstrucção nos Estados do Sul.<br />

Mas, diz j. Br\*ce, como a maioria de ambas as câmaras era<br />

grande e infensa ao Presidente, aquelles bills forão promptly<br />

revotados (3 ).<br />

J 20<br />

( 1 ) Commentaries, t. 1 p. 625 § 835.<br />

( 2 ) Citado por De Noailles. t. 2 p. 164.<br />

( 3 j Obra cit. t. 1 p- 55.


240 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Esse facto confirma a boa doutrina.<br />

Quando os órgãos do poder funccionão regular e harmonicamente,<br />

os projectos não sanccionados só na seguinte sessão<br />

são novamente discutidos.<br />

Adoptar na mesma sessão um projecto rejeitado por um<br />

dos três poderes ( câmara dos deputados, dos pares e coroa )<br />

diz Rossi, seria uma desconsideração aos poderes públicos, Ou<br />

um choque entre os ramos do poder legislativo... E' necessário<br />

que os espíritos adquirão calma, que os deputados voltem ás<br />

suas casas, se approximem de seus eleitores, se retemperem na<br />

opinião do paiz, para ver se tiverâo razão em rejeitar a proposição<br />

apresentada por um dos outros poderes, ou em apresentar<br />

a proposição que foi repellida. Voltando depois de ter reflectido,<br />

podem então instituir nova discussão, sem os inconvenientes<br />

que dar-se-hião, se ella tivesse lugar na sessão precedente,<br />

logo após a rejeição do projecto. Portanto a disposição<br />

do art. 17 da Carta, conclue Rossi, considerada sob o ponto de<br />

vista da expedição dos negócios, é mais importante, do que a<br />

primeira vista parece ser ( 1 ).<br />

De quanto fica dito é evidente que a disposição do nosso<br />

art. 40 tem por fim dar tempo á reflexão, ao estudo dos representantes<br />

e ao pronunciamento da opinião publica a respeito de<br />

um projecto de lei, que o primeiro magistrado da nação, o eleito<br />

do povo, julga não ser constitucional, ou não convir aos interesses<br />

da nação. O Presidente da Republica, com o seu veto<br />

suspensivo, convida as câmaras legislativas á uma nova deliberação,<br />

e ellas, meditando durante o intervallo da sessão, inspirando-se<br />

na manifestação da opinião, dão a sua ultima palavra<br />

sobre o projecto em questão, rejeitando-o, ou approvando-o de<br />

uovo.<br />

Eis aqui a verdadeira doutrina, em nossa opinião.<br />

Alguns não pensão desse modo, e baseando-se na materialidade<br />

da palavra renovar, de que se serve a Constituição,<br />

dizem que não é renovar o projecto não sanecionado, fazel-o<br />

possar por dous terços na mesma sessão. Renovar, dizem, é<br />

fazer de novo, é concertar um projecto de modo que pareça<br />

novo, quando em substancia é o mesmo ; e não é isso o que faz<br />

[ 1 ) Cours de droit, const, t. 4 p. 164.


E CONSTITUCIONAL 241<br />

o Congresso, quando, discutindo as razões do veto, approva<br />

de novo o mesmo projecto.<br />

O argumento nos parece um simplesparallogismo, baseado<br />

no sentido estricto e único que pietendem dar á expressão constitucional<br />

— não poderão ;-er renovados.<br />

A palavra renovados tem na Constituição outro sentido.<br />

Quer dizer, pensamos nós, que o projecto não deve ser de novo<br />

discutido, ou submettido á nova deliberação na mesma sessão.<br />

O termo renovar não tem unicamente o sentido que lhe<br />

querem dar. Quando dizemos que a guerra se renova, que renovão<br />

as estações, não tem aquelle verbo o alludido sentido.<br />

Ali significa recomeçar, aqui sticceder de novo.<br />

Ora, exactamente o que a Constituição não quer, é que<br />

nova discussão recomece, ou que succéda uma nova discussão<br />

de um mesmo projecto, e em uma mesma sessão.<br />

E a razão é obvia.<br />

Que nova luz, que novo resultado poderá produzir essa segunda<br />

deliberação, tomada logo após a primeira, á qual o Presidente<br />

oppoz o seu veto ?<br />

As razões produzidas serão as mesmas, o resultado da votação<br />

idêntico.<br />

Quando a Constituição dispõe (art. 37, § 3.°) que < devolvido<br />

o projecto á câmara iniciadora, ahi se sujeitará a uma<br />

discussão e á votação nominal » evidentemente quer nova discussão<br />

e nova votação.<br />

Uma discussão nova (não das razões do veto, mas do projecto,<br />

como quer a Constituição ) após a calma e reflexão dos<br />

espiritos poderá dar resultado différente, mas suecedendo-se,<br />

recomeçando na mesma sessão, sob a mesma impressão da primeira<br />

discussão, sob a mesma tensão de espirito, o resultado<br />

será infallivelmente o mesmo, e nesse caso mais expedito seria<br />

devolvel-o immediatamente, como lei, ao Presidente para a formalidade<br />

da promulgação.<br />

Entre nós já houve oceasião de pôr-se em pratica a doutrina<br />

do art. 40, e como não fossem cordiaes as relações da maioria<br />

do Congresso com o Presidente da Republica, prevaleceu a<br />

doutrina contraria áquella que consideramos verdadeira.<br />

Assim é que, tendo o Presidente da Republica em 19 de Setembro<br />

de 1891 opposto o seu veto constitucional ao projecto<br />

n. 1 do Senado, relativo á incompatibilidades entre cargos fe-<br />

3i


242 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICu<br />

deraes c estadoaes, offerecendo razões de inconstitucionalidadc,<br />

a commissão de justiça e legislação do Senado três dias depois,<br />

isto é, em 22 de Setembro do mesmo anno, deu parecer, desprezando<br />

as razões presidenciaes e opinando que o projecto<br />

fosse approvado por dous terços ! E assim se venceu !<br />

Em nossa opinião esse acro do Congresso não pôde infirmar<br />

a verdadeira doutrina constitucional, nem servir de precedente<br />

; porquanto foi praticado em circumstancias anormaes,<br />

e significa antes hostilidade ao Presidente da Rebublica, do que<br />

interpretação authentica do art. 40. Do mesmo modo que o<br />

acto do Congresso americano, votando por dous terços os bills<br />

vetados pelo Presidente Johnson não infirm ou a regra e a pratica<br />

ali estabelecidas, de não se deliberar na mesma sessão sobre<br />

os bills não sanecionados,<br />

III<br />

Não é raro que as duas casas de um parlamento discordem<br />

a respeito da utilidade de um projecto. Esse desaccordo pôde<br />

versar ou sobre a totalidade do mesmo projecto, ou a respeito<br />

de uma de suas partes.<br />

No primeiro, caso o projecto é rejeitado por uma das duas<br />

câmaras, e questão alguma surge dessa rejeição, não cabendo á<br />

câmara que o iniciou senão o direito de renoval-o em outra<br />

sessão de conformidade com o citado art. 40. No segundo caso,<br />

a câmara discordante pôde emendar ou additar o projecto . E'<br />

aqui que pôde oceorrer questão, á qual se applica a resolução<br />

constitucional do art. 3o, e seus paragraphos.<br />

Diz o citado artigo : « O projecto de uma câmara, emendado<br />

na outra, volverá á primeira, que, se acceitar as emendas,<br />

envial-o-ha modificado em conformidade délias, ao poder executivo.<br />

« § i.° No caso contrario ( se não acceitar as emendas) volverá<br />

á câmara revisora, e se as alterações obtiverem dous terços<br />

dos votos dos membros presentes, considerar-se-hão approvadas,<br />

sendo então remettidas com o projecto á câmara iniciadora,<br />

que só poderá reproval-as pela mesma maneira.<br />

« § 2. 0 Regeítadas deste modo as alterações, o projecto<br />

será submettido, sem ellas, á saneção. >


m<br />

S CONSTITUCIONAL<br />

Desta disposição se infere que o desaccordo entre as duas<br />

câmaras resolve-se pura e simplesmente peio íriumpho exclusivo<br />

de uma das câmaras, sendo desconsiderada a emenda julgada<br />

vantajosa ao paiz pela outra câmara.<br />

Geralmente o expediente adoptado para o caso em questão<br />

é o da. fusão ou reunião das duas damaras em assembléa geral.<br />

Ahi se discute, e resolve-se a questão por maioria de votos indistinctes<br />

dos membros de ambas as câmaras.<br />

Tal foi o expediente usado por muitos annos no parlamento<br />

inglez ; mas depois de i835 esta pratica cahio em desuso, ( 1 )<br />

Do mesmo modo se procedia entre nós no regimen monarchies.<br />

A Constituição de então no art. 61 dispunha : « Si a câmara<br />

dos deputados não approvar as emendas ou addições do<br />

Senado, ou vice-versa, e todavia a câmara récusante julgar que<br />

o projecto é vantajoso, poderá requerer por uma deputação de<br />

três membros a reunião das duas câmaras, que se fará na câmara<br />

do Senado, e conforme o resultado da discussão se seguirá<br />

o que fôr deliberado. »<br />

Em virtude desta resolução, durante a monarchia, isto é, de<br />

de iS3o a 1886, effectuarão-se quatorze fusões.<br />

Para evitar grandes reuniões, nas quaes nem sempre as deliberações<br />

tem o cunho da reflexão, a Constituição de Portugal<br />

resolve a questão, não em assembléa geral, mas em uma commissão<br />

mixta de pares e de deputados em numero igual. Se a<br />

commissao por pluralidade de votos concorda nas emendas ou<br />

additamentos, estes são inseridos no projecto da lei, quando,<br />

porém, não concorda, entende-se que forão rejeitadas, O empate<br />

da votação importa rejeição da emenda. (2)<br />

A Constituição americana nada diz acerca do modo de resolver<br />

o desaccordo das câmaras. Mas a pratica e os regimentos<br />

internos dispõem que na hypothèse se nomeie uma commuée<br />

of conference, composta de três membros de cada uma das<br />

casas do Congresso, dos quaes um será sempre da minoria. Os<br />

commissaries se reúnem in secret, e mediante concessões reciprocas,<br />

procurão conciliar as opiniões dissidentes ; do resultado<br />

se faz um relatório, que é submettido á discussão do Congresso.<br />

243<br />

(!) V. Hschel, obra cit., i. 2.. p. 3I(i.<br />

( 2 ) V u art. õi da Carta Constitucional, regulamentado pela lei do 27 de Julho<br />

de 1849.


244<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Esse relatório não é sujeito á emendas ; é adoptado ou rejeitado<br />

tal qual está. No caso de rejeição, o regimento permitte que<br />

elle vá á nova commissão. Algumas vezes esse expediente não<br />

surte effeito, e o desaccordo persiste demorando a adopção de<br />

leis úteis. Mas ordinariamente o accordo se estabelece, appro -<br />

vando as câmaras o relatório de sua commissão.<br />

O expediente americano tem sobre o systema da fusão a<br />

vantagem de evitar grandes e apparatosas reuniões, nas quaes<br />

as discussões irritão o desaccordo, em vez de conciliar as opiniões<br />

divergentes. ( I )<br />

O processo adoptado pela nossa Constituição c simples, e<br />

também evita os inconvenientes da reunião das duas câmaras.<br />

Mas, afallar a verdade, apenas aparta a questão levantada pelas<br />

emendas, sem deixar que a maioria da representação se pronuncie<br />

sobre o mérito d'ellas. Uma das câmaras vence pura e<br />

simplesmente, e esta câmara pôde ser a menos numerosa, o Senado.<br />

( 1 ) De Noaillcs, obra cil. t. 1., p. 2il c J. ISryce t. I., [>. 184.


113<br />

CAPITULO VIII<br />

IMMUNIDADES DOS SENADORES E DEPUTADOS. RAZÃO DA IM-<br />

AÍUNIDADE PARLAMENTAR<br />

I<br />

Todas as constituições conferem certas isenções ou privilégios<br />

aos representantes da nação, com o fim de garantir-lhes a<br />

independência politica.<br />

A nossa dispõe o seguinte :<br />

« Art. 19. Os deputados e senadores são invioláveis por<br />

suas opiniões, palavras e votos no exercicio do mandato.<br />

« Art. 20. Os deputados e senadores, desde que tiverem<br />

recebido diploma, até a nova eleição, não poderão ser suspensos,<br />

nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua<br />

câmara, salvo caso de flagrancia em crime inaffiançavel. N'este<br />

caso, levado o processo até pronuncia exclusive, a autoridade<br />

processante remetterá os autos á câmara respectiva, para resolver<br />

sobre a procedência da accusação, si o accusado não optar<br />

pelo julgamento immediato. »<br />

O primeiro dos citados artigos consagra a irresponsabilidade<br />

politica do representante, a segunda a inviolabilidade<br />

judiciaria; a uma e outra se dá a denominação genérica de<br />

immunidades ou garantias parlamentares.<br />

Comparando a precedente disposição com outras análogas<br />

de diversas constituições, desde logo vemos uma notável differença<br />

em favor da nossa.<br />

Algumas constituições fazem distincção entre deputados e<br />

senadores.<br />

E' assim que a Constituição italiana (arts. 37, 45, 46) exceptúa<br />

expressamente o deputado da prisão por divida, mas não


246 NOÇÕES DK DIREITO PUBLrCO<br />

o senador; ao deputado concede o privilegio de não ser preso,<br />

salvo caso de flagrancia, somente durante a sessão, ao senador<br />

por toda a sua vida.<br />

Também a Constituição hespanho!:: faz distincçào entre<br />

senador e deputado (art. 47). Ao passo que o senador não<br />

pôde ser preso, em tempo algum, sem ordem do senado, salvo<br />

no caso de flagrancia, ou de não estar reunido o senado, o de"<br />

putado só goza d'essa immunidade durante as sessões.<br />

Essa desigualdade poderá ter justificação em paizes em que<br />

os senadores tem origem différente da dos deputados, sendo<br />

aquelles vitalícios e estes temporários. Mas em uma republica,<br />

aonde os membros de ambas as câmaras sabem do sufíragio directe<br />

da nação, e são todos temporários, aquella desigualdad e<br />

é irracional.<br />

Bem andou, pois, a nossa Constituição, estendendo com<br />

igualdade as immunidades parlamentares ao senador e ao deputado.<br />

A irresponsabilidade legal consagrada no art. 19 tem por<br />

fim garantir a independência do representante.<br />

Um deputado que temesse responder perante os tribunaes<br />

por suas opiniões, por seus discursos ou por seus votos, sentirse-iua<br />

constantemente coacto, e a coacçao tolheria a iiberdade<br />

de sua acção legislativa. O privilegio de fallar com toda liberdade<br />

é menos um privilegio do representante, do que do povo?<br />

diz Cooley ; o povo lh'o confere para que possa bem desempenhar-se<br />

da confiança dos seus constituintes ( 1 ).<br />

Duas questões pôde suscitar na pratica a disposição do artigo<br />

19.<br />

Quando começa o gozo da inviolabilidade da opinião, da<br />

palavra e do voto ?<br />

Essa irresponsabilidade se estenderá a tudo o que o deputado<br />

possa dizer, e em qualquer parte aonde falle ?<br />

A Constituição diz somente que os deputados e senadores<br />

são invioláveis por suas palavras, opiniões e votos no exercido<br />

do mandato: no artigo seguinte, porém, estabelecendo a inviolabilidade<br />

judiciaria, diz que elia começa desde a recepção<br />

do diploma até a nova eleição.<br />

Mas esse espaço de tempo não pôde ser applicado ao dis-<br />

( I ) V. Const. Limit, p. iti2% 13i


\2


248 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Na Inglaterra, aonde nasceu, e depois de renhida lucta se<br />

firmou, a liberdade parlamentar, não se admitte immunidade<br />

de insultar e de atacar a reputação alheia.<br />

Ali as duas câmaras decidirão, desde Novembro de 1763, a<br />

propósito do conhecido facto de Wilk « que o privilegio do parlamento<br />

não se estende ao caso de composição e publicação de<br />

libellos sediciosos, nem deve obstar o curso regular das leis na<br />

repressão prompta e efficaz de um delicto tão odioso e arriscado.<br />

Ainda recentemente, a propósito dos deputados Whalley<br />

( 1874) e Gray ( 1882) a câmara dos communs applicou a referida<br />

decisão, entregando os culpados á acção da justiça ordinária.<br />

( 1 )<br />

Os discursos pronunciados fora das câmaras, os artigos de<br />

jornal estarão comprehendidos no art. 19?<br />

Ainda que o orador de um meeting ou o escriptor de uma<br />

gazeta seja deputado ou senador, desde que não falia, nem escreve<br />

no exercício de suas funcções, ou do seu mandato, como<br />

diz a Constituição, não pôde gozar da inviolabilidade.<br />

A Constituição americana limita o direito de fallar ao recinto<br />

das casas do Congresso. « Os senadores e os representantes<br />

gozarão do privilegio de não ser incommodados ou interrogados<br />

em qualquer outro lugar pelos discursos ou opiniões<br />

pronunciados em suas respectivas câmaras. Art. l.°, Secç. 6. a<br />

§ i.°<br />

O illustre expositor americano Walker, commentando o citado<br />

artigo, diz que pelas palavras «for any speech or debate,<br />

they shall not be questioned in any other place » entende a<br />

Constituição garantir a liberdade e independência do represen.<br />

tante somente em suas câmaras, de sorte que o privilegio se<br />

estende unicamente ao que o representante diz na discussão ;<br />

pelo que, se publica um discurso diffamatorio, fica responsável<br />

como nos casos communs (2)<br />

A mesma doutrina expõe o commentador Robert Desty nos<br />

seguintes termos : A disposição constitucional que isenta os representantes<br />

de responsabilidade por seus discursos e opiniões,<br />

estende-se unicamente aos votos, palavras ou actos emittidos<br />

( 1 ) V. De Iranqueville, ob. cit. t. 3. p. 333.<br />

( 2 ) American Law., p. 86 § 3'i.


E CONSTITUCIONAL 249<br />

em suas respectivas câmaras; mas não os garante nas 1 publicações<br />

que fizerem. ( 1 )<br />

O privilegio da irresponsabilidade é portanto limitado ao<br />

exercido das funcções parlamentares, isto é, ao que o representante<br />

disser na qualidade de senador ou deputado no recinto<br />

das respectivas comaras.<br />

O dispositivo do art. 20, que consagra a inviolabilidade judiciaria<br />

dos deputados e senadores, suscita algumas questões.<br />

Quando começa e acaba essa inviolabilidade? Qual a sua<br />

extensão? Poderá ser renunciada pelo representante?<br />

A primeira questão parece não offerecer duvida, porque a<br />

Constituição claramente diz que o privilegio começa desde a<br />

recepção do diploma até a nova eleição. Mas ha diploma verdadeiro<br />

e diploma falso. São freqüentes nas câmaras legislativas<br />

as contestações de diplomas, e tem-se visto, nos casos de<br />

duplicatas eleitoraes, uma mesma circumscripção eleitoral expedir<br />

dous diplomas a pessoas différentes.<br />

N'este caso ambos os diplomados gozarão da immunidade<br />

do art. 20? Não, de certo. Eila só pôde competir ao verdadeiro<br />

eleito. Mas em uma contestação de diploma, quem decidirá<br />

qual o verdadeiro eleito ? A câmara respectiva : só a ella<br />

compete verificar os poderes cie seus membros, isto é, declarar<br />

valido o diploma conferido pelos eleitores. Antes d'isso, é impossível<br />

dizer se tal diploma é ou não valido.<br />

Não é que a verificação dos poderes dê a qualidade de deputado<br />

; ella apenas resolve duvidas que possão haver sobre a<br />

eleição. A qualidade de deputado é adquirida, como diz Rossi,<br />

no dia cm que o escrutínio fez o deputado ( 2 )<br />

Mas como aquellas duvidas só se dissipão depois da verificação,<br />

teria sido mais acertado fazerpartir o período privilegiado<br />

du verificação dos poderes dos representantes.<br />

Nos termos do citado artigo a immunidade subsiste não só<br />

durante as sessões, como também nos intervallos d'ellas, não só<br />

durante a legislatura, isto é, o período de trcs annos, mas até<br />

que, finda a legislatura, se faça nova eleição. N'este ponto a<br />

nossa Constituição lançou a barra mais longe do que outras,<br />

que só garantem a inviolabilidade judiciaria durante a sessão.<br />

( 1 ) V. The Constitution of the U. S. with notes, ps. 53 e 290.<br />

( 2 ) Cours cit. t. i. p. -45.<br />

32


250 NOÇÕES DK DIREITO PUBLICO<br />

Assim, a Constituição franceza da actual republica ( Lei de<br />

16 de Julho de 1875 art. 14) dispõe que « nenhum membro de<br />

uma e outra câmara poderá, durante a sessão, excepto em caso<br />

de flagrante delicto, ser perseguido, ou preso criminal ou correccionalmente,<br />

sem autorisação de sua respectiva câmara ; e<br />

accrescenta que « se o processo ou a prisão se effectuar no intervallo<br />

das sessões, suspende-se durante estas, se a câmara o<br />

requer.<br />

A constituição belga, art. 45, também só garante a inviolabilidade<br />

pessoal do representante pendant la durée de la session.<br />

Um pouco mais longo, mas não tanto, como o da nossa, é o<br />

período de tempo garantido pela Constituição americana. « Os<br />

senadores e deputados, diz ella, não poderão ser presos emquanto<br />

se acharem presentes á sessão de suas respectivas câmaras,<br />

nem durante o tempo que gastarem para ir para ella, e para<br />

voltar a suas residências, salvo o caso de trahição, felonia c<br />

violação da paz publica » Art. 1.", secç. 6. a , § 1«.<br />

Até onde se estende a inviolabilidade judiciaria ?<br />

Em primeiro lugar a inviolabilidade é exclusivamente pessoal;<br />

em segundo lugar só se refere á materia criminal. Não<br />

poderão ser presos, nem processados criminalmente » diz a<br />

Constituição. Logo em materia civil cessa a immunidade, e<br />

assim pôde o representante ser processado civilmente para reparar<br />

damnos causados em bens alheios.<br />

A Carta franceza de l83o distinguia la contrainte par corps<br />

isto é, a prisão em materia eivei, e la poursuite em materia<br />

criminal. Quanto a prisão em materia civil, dispunha que o<br />

deputado ficava isento d'ella durante a sessão e nas seis semanas<br />

que a precedessem ou seguissem ; e que não podia ser<br />

processado, nem preso em materia criminal emquanto durasse<br />

a sessão, salvo caso de flagrante delicto ( 1 ).<br />

A Constituição italiana ( Art. 46 ) isenta também a pessoa<br />

do deputado de prisão por divida, não só durante a sessão, como<br />

durante as três semanas que precedem a abertura, e as que seguem<br />

o encerramento da sessão.<br />

As acções eiveis hoje, geralmente, apenas dando lugar á<br />

condemnações pecuniárias, não obstão o exercicio do mandato<br />

( 1 ) V. Rossi, Curso cit. t. 4. p. 15.


Jtli<br />

E CONSTITUCIONAL 251<br />

parlamentar. Por isso a nossa Constituição falia exclusivamente<br />

de processo e prisão criminaes.<br />

Poderá o representante renunciar o privilegio parlamentar ?<br />

Considerando na indole jurídica e racional do privilegio<br />

parlamentar ( i ) se vê que elle é estabelecido no interesse <strong>publico</strong>,<br />

e não em vantagem pessoal do deputado ; trata-se, portanto,<br />

de um direito de ordem publica.<br />

Ora, os direitos públicos são instituídos no interesse do Estado,<br />

não estão, pois, sujeitos á vontade do indivíduo. Aquelle<br />

que é investido de um direito de caracter <strong>publico</strong>, em regra, é<br />

obrigado a usar d'elle ; podemos renunciar ao exercício de um<br />

direito privado, d'onde o principio —Jure suo nemo uti cogitur<br />

— mas não assim se se trata de um direito <strong>publico</strong> ; ninguém<br />

pôde ser obrigado a comprar, a testar, a casar-se, mas o juiz é<br />

obrigado a julgar, como o deputado a votar.<br />

Partindo d'esse principio deveríamos dizer que o deputado<br />

ou senador não pôde renunciar o privilegio da inviolabilidade<br />

judiciaria.<br />

Mas a Constituição, no citado art. 20, dispondo que os deputados<br />

e senadores não podem ser presos, nem processados<br />

criminahnente, sem prévia licença de sua câmara, salvo caso de<br />

flagrancia ( 2 ) em crime inaffiançavel, accrescenta que « n'este<br />

caso, levado o processo até pronuncia exclusive, a autoridade<br />

processante remetterá os autos á câmara respectiva para resolver<br />

sobre a procedência de accusação, se o accusado não optar<br />

pelo julgamento immediato. Portanto, pôde o representante<br />

declinar de seu privilegio, para que a autoridade processante,<br />

independente do juizo da câmara, pronuncie seu julgamento.<br />

Essa excepção ao principio geral estabelecido tem sua<br />

razão no pundonor natural do representante, que não deve<br />

querer ser suspeitado de temer a jurisdicçào imparcial da autoridade<br />

commum, esperando que seus collegas, movidos por sen"<br />

timentos de colleguismo, julguem improcedente a accusação.<br />

( 1 ) Alguns escriptores pensão que a immunidade parlamentar não ó um privilegio<br />

pessoal, mas somente uma garantia política da funesto. V. Faustin Heli, Instr.<br />

crim. t. ?.. p. 439.<br />

( 2 1 Flagrancia em crime é a actual idade do crime, o momento em que ê praicado<br />

ou acaba de sel-o, em presença de te.--temup.lias. Os criminalistas também<br />

considerâo flagrancia o caso em que o oflensor o perseguido pelo clamor <strong>publico</strong> logo<br />

depois do crime, ou preso com objectes — armas, instrumentos ou papeis — que [ação<br />

presumir que elle e autor ou cúmplice, V. Rossi, Curso cit. t. í. p. 16.


252 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

O deputado ou senador, quando accusado falsamente de<br />

um crime, deve qnerer que a sua câmara dê licença para que<br />

prove a sua innocencia, e d'esse modo confunda os seus accusadores.<br />

Assim procede o innocente; mas o criminoso chegará<br />

até a empenhar-se para que seus collegas o amparem, negando<br />

a licença á instauração do processo.<br />

II<br />

A todos os cidadãos garante a Constituição ( Art. 72 § 12 )<br />

a livre manifestação do pensamento pela imprensa e pela tribuna,<br />

respondendo cada um pelos abusos que commet t er, nos<br />

casos e pela fôrma que a lei determinar. Por outro lado também<br />

( Ibid. § 2. 0 ) proclama o principio da igualdade de todos os<br />

cidadãos perante a lei. Finalmente responsabilisa restrictamente<br />

todos os funccionarios públicos pelos abusos ou omissões<br />

em que incorrerem ( Art. 82 ).<br />

Entretanto a esses princípios de direito commum a mesma<br />

Constituição abre excepção em favor dos senadores e deputados.<br />

Porque ? Terão fundamento jurídico as immunidades ou<br />

privilégios parlamentares ?<br />

Sobreleva desde logo advertir, que o privilegio de que se<br />

trata, como já ficou dito, não é pessoal, não é dado propriamente<br />

ás pessoas dos representantes, mas ás funcções que desempenhão<br />

na sociedade ; é um jus singulare conferido para<br />

garantia do bom exercício das funcções parlamentares.<br />

E' incontestável que um deputado que podesse receiar ser<br />

chamado aos tribunaes para responder pelo que dissesse, pela<br />

opinião ou voto que desse na câmara ; que temesse ser processado<br />

ou preso por imputações calumniosas, não teria a necessária<br />

liberdade e independência para desempenhar a funcção<br />

social de que foi incumbido ; n'esta hypothèse a sociedade não<br />

colheria o bem geral a que se propôz, fazendo-se representar<br />

em um parlamento.<br />

Os outros cidadãos soffrem, é verdade, uma restricçâo no<br />

exercício do seu direito natural de manifestar o pensamento<br />

por palavras ou escrpitas ; a sua liberdade individual é limitada<br />

pelo direito de terceiro,fica sujeita em seus abusos á repressão ;<br />

quando o deputado gosa do direito illimitado de enunciar os<br />

pensamentos. Será uma injustiça ? Não.


a CONSTITUCIONAL 253<br />

Um interesse social de ordem superior exige que o representante<br />

tenha absoluta liberdade de fallar sem temer a autoridade<br />

executiva e judiciaria. No exercício de suas funcções, de<br />

mandatário da sociedade, elle não deve ter diante de si senão<br />

a autoridade do presidente de sua câmara, ou antes da le 1<br />

interna que a regula.<br />

Tal é em summa o fundamento jurídico da immunidade<br />

parlamentar.<br />

Além do fundamento jurídico póde-se também dizer que<br />

aqueila immunidade tem seu fundamento histórico.<br />

A liberdade dos representantes foi uma preciosa conquista<br />

do parlamento inglez sobre o arbitrio e o despotismo dos antigos<br />

reis<br />

Desde 1621 os communs definirão os seus privilégios declarando<br />

em um famoso protesto ao rei que « as liberdades, franquezas,<br />

privilégios e jurisdicção do parlamento são direitos<br />

antigos e indiscutíveis ; que cada um de seus membros está isento<br />

de accusação, prisão ou vexame, salvo censura da propria<br />

câmara, pelos bills, discursos ou declarações em qualquer materia<br />

concernente ao parlamento ou a negócios parlamentares ».<br />

E como depois aqueila immunidade fosse violada, o parlamento<br />

inciuio no Bill dos direitos ( 1689 ) um artigo especial dispondo<br />

que « a liberdade dos discursos, dos debates ou dos actos do<br />

parlamento não pôde ser violada ou posta em questão em<br />

tribunal ou lugar algum fora do parlamento ».<br />

Em i78ç sobre proposta de Jvlirabeaux, e por maioria<br />

de 4


J&<br />

CAPÍTULO IX<br />

PODER ELEITORAL. LEGITIMIDADE DA REPRESENTAÇÃO. RE­<br />

PRESENTAÇÃO DA MINORIA. TYPOS DK ELEIÇÃO. REQUISI­<br />

TOS ELEITORAES.<br />

I<br />

Nas democracias modernas o povo não manifesta a sua<br />

vontade jurídica directamente nas praças publicas. O governo<br />

por meio do povo reunido, diz Stuart Mill, é uma reliquia da<br />

barbaria, contraria ao espirito da vida moderna. Hoje a vontade<br />

nacional nos Estados livres se manifesta por meio de representantes.<br />

Para esse effeito se constitue um corpo eleitoral, no qual<br />

reside habitualmente a soberania nacional. Esse corpo é a<br />

fonte de todos os outros poderes do Estado, e ao mesmo tempo<br />

verdadeiro juiz de todos elles. Nas republicas ella cria o chefe<br />

do Estado, os senadores, os deputados, os representantes dos<br />

municípios, e em algumas partes até os magistrados, agentes<br />

do poder judiciário.<br />

Por meio dos seus eleitos esse corpo politico fiscalisa o<br />

poder executivo e o legislativo, vela no exercício do poder<br />

judiciário e ampara as liberdades individuaes. A sua influencia<br />

na vida do Estado, é tão poderosa que quando nas democracias<br />

se falia de soberania do povo, entende-se soberania do corpo<br />

eleitoral. Na ordem pratica, escreve Cooley, a soberania<br />

reside n'aquelles que pela Constituição do Estado exercem o<br />

direito de votar... Politicamente fallando deve-se considerar<br />

o povo como synonymo de corpo eleitoral — as synonymous<br />

with qualified voters ( i ).<br />

( 1 ) V. Const. Limit, p. 37 § 29.


256 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICu<br />

Esta é a razão porque alguns publicistas considerão o corpo<br />

eleitoral com um verdadeiro poder politico, tão qualificado, se<br />

não mais, quanto os outros três poderes.<br />

E' certo que esse poder, ou esse órgão da soberania nacional,<br />

não exercita as suas funcções senão periodicamente, quando<br />

convocado para exercel-as. Mas nem por isso a sua acção<br />

é menos activa no funccionamento da vida nacional.<br />

Não são os eleitores que directamente fazem as leis, e as<br />

executão, mas os seus representantes; estes, porém, o fazem<br />

por mandato d'elles<br />

O corpo eleitoral, na phrase de P. : na 6 o supremo tribunal<br />

de appellação, o grande jury das nações nas mais importantes<br />

questões do Estado ; porque nos coníiictos dos outros poderes<br />

e órgãos do Estado, rei ou presidente, senado, deputados,<br />

ministros, não ha outro remédio jurídico, senão ou dissolver a<br />

câmara, ou esperar que termine o mandato, e interrogar, mediante<br />

nova eleição, o verdadeiro soberano, o corpo eleitoral,<br />

que pelo resultado das urnas dá a saber quai é a verdadeira<br />

vontade da nação ( I ).<br />

Se á imprensa chamâo os inglezes um quarto poder, para<br />

significar a sua poderosíssima influencia na opinião nacional,<br />

com maioria de razão se deve dar aquelle nome ao corpo<br />

eleitoral.<br />

Xo governo dos Estados Unidos, diz um illustre publicista<br />

americano, como em todos os governos modernos, ha quatro<br />

ramos ou departamentos ( poderes ) distinctos, aos quaes estão<br />

confiados os poderes delegados pelo soberano. D'esses poderes<br />

o primeiro é o corpo eleitoral, cuja funeção é escolher dentre si<br />

mesmo os íunccionarios incumbidos dos outros departamentos<br />

e de emendar a lei fundamental. O corpo eleitoral compõe-se<br />

dos votantes, os quaes, em sentido technico ( in a qualified<br />

cense J chama-se povo ( 2 ).<br />

Os diversos modos porque o poder eleitoral funeciona,<br />

veremos adiante. No entanto, digamos alguma cousa a respeito<br />

da questão da natureza do voto.<br />

O voto é essencial a todo cidadão ? E' um direito natural,<br />

ou simplesmente uma funeção política ?<br />

( 1 ) V. Corso cit. t. 1 p. 182 § 10.<br />

) 2 ) Jameson, Const. Conventions, p. 23 § 24.


E CONSTITUCIONAL 257<br />

Essa questão é exclusivamente franceza. Ninguém jamais<br />

se lembrou, antes de Rousseau e Mably, de considerar o voto<br />

um direito natural, imprescreptivel e inalienável do cidadão.<br />

Os cidadãos tendo contractado constituir a sociedade,<br />

cada um entrou para ella com o direito de tratar dos negócios<br />

sociaes, dando sobre elles sua opinião. Portanto o direito de<br />

votar é essencial a todo cidadão, é natural a todos os membros<br />

da sociedade. Eis em summa a theoria franceza, da qual<br />

derivou a do suffragio universal.<br />

Nem na Inglaterra, nem na America, nem em algum outro<br />

paiz do mundo se suppôz nunca que o direito eleitoral fosse<br />

um direito natural ; todos considerão o voto uma funcção política,<br />

sujeita á regulamentação, que varia segundo o estado<br />

social e as condições de cada povo ( 1 ).<br />

A prova histórica d'essa affirmação é que em paiz algum,<br />

quer antigo, quer moderno, monarchico ou republicano, o voto<br />

deixou de ser restricto a certa ordem de cidadãos.<br />

Regra de política antiga e liberal é a de Aristóteles — Uma<br />

vez que a grande maioria dos cidadãos tome parte no governo,<br />

qualquer systema eleitoral pôde ser bom.— Eis aqui o principio<br />

de toda política antiga.<br />

O illustre publicista americano Pomeroy, sustentando que<br />

o voto não é essencial á qualidade de cidadão em nenhuma<br />

fôrma de governo, escreve : «: Dizer que a fôrma republicana de<br />

governo implica o suffragio universal, ou que lhe é contraria a<br />

qualificação dos votantes, para determinar a sua capacidade,<br />

é violar todas as regras fundamentaes de interpretação, é fechar<br />

os olhos á historia, é declarar que o governo dos Estados Unidos<br />

não é republicano. A disposição constitucional « que os<br />

eleitores terão as qualidades requeridas para os eleitores do<br />

ramo mais numeroso da legislatura do Estado » sempre se<br />

entendeu no sentido de cada Estado decidir quaes dos seus<br />

habitantes são capazes de votar » (2).<br />

Eis aqui como dous publicistas, um da antigüidade, e outro<br />

dos nossos dias, estão de accôrdo em pensar que o voto não é<br />

de direito natural, mas simplesmente de direito politico, e como<br />

tal sujeito a restricções regulamentares.<br />

( 1 ) V. Laboulaye. Hist, dos Etats Uuis, t. 3 p. 319.<br />

( 2 ) Const. Law, p. 13G g 210.


258 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Em 1864 ( sessão de 21 de Junho ) Palmerston refutando a<br />

doutrina do voto como direito natural, disse : « Sim, nossa<br />

legislação é baseada no principio do voto — mandato, — e não<br />

do voto — direito natural. Se o suffragio fosse um direito natural<br />

ou pessoal, o eleitor poderia perguntar, porque principio de<br />

justiça o punem, quando elle usa d'esse direito do modo que lhe<br />

é mais proveitoso. Entretanto impomos penas ao homem que<br />

por dinheiro, ou outro meio, usa do seu direito de voto de<br />

modo contrario ao interesse <strong>publico</strong> ».<br />

Deixando o mais, que occorre dizer a este respeito, para<br />

quando estudarmos o suffragio universal, agora alguma cousa<br />

convém dizer sobre a legitimidade da representação politica.<br />

II<br />

Posto que nem todos os habitantes de um paiz participem<br />

do governo, mediante seu voto, todavia não se pôde d'ahi inferir<br />

que o governo representativo não seja legitimo. O governo<br />

directo dos cidadãos de um paiz, se foi admittido em alguns<br />

povos da antigüidade, hoje é absolutamente impossível.<br />

Nos pequenos Estados, como nas republicas gregas, o<br />

governo nas praças publicas era possível. Nos Estados modernos<br />

é materialmente impossível governar pela convocação<br />

directa do povo. Como reunir na praça publica o povo de um<br />

grande Estado, e fazel-o discutir e approvar scientemente um<br />

código civil ou um tratado de commercio ?<br />

Só mediante a representação pôde o povo governar-se.<br />

O governo representativo é o governo dos povos modernos ;<br />

como o governo directo, era o S3


E CONSTITUCIONAL 259<br />

durante as eleições dos membros do parlamento ; eleitos esses,<br />

elle é escravo e nada mais. Povos modernos, não tendes mais<br />

escravos, mas vós o sois ; com a vossa liberdade pagastes a<br />

d'elles ( 1 ).<br />

A idéa moderna de representação é muito différente da dos<br />

antigos, dos quaes Rousseau se constituiu interprete. Os gregos<br />

e os romanos, diz Saint Girons, não podião alcançar a idéa<br />

de representação, porque procuravào na lei, não a formula da<br />

justiça e da razão, mas a expressão da vontade geral. D'esse<br />

presupposto procedem todos os males políticos causados pela<br />

omnipotencia do Estado. Diante do Estado o cidadão não tinha<br />

direito, nem propriedade, nem liberdade. A omnipotencia do<br />

Estado era um dogma do direito <strong>publico</strong> grego-romano.<br />

Hoje a lei não é a expressão da vontade geral cristalisada<br />

no Estado. O direito do indivíduo libertou-se da omnipotencia<br />

do Estado, e a lei tornou-se, não a expressão da vontade geral,<br />

mas do direito, da justiça e da utilidade social. Assim que, os<br />

representantes não são os mandatários da vontade geral, mas<br />

os legisladores da nação. A representação é simplesmente um<br />

meio de extrahir da sociedade os capazes de legislar de accôrdo<br />

com os princípios do direito e da justiça.<br />

Jefferson dizia que « ha uma aristocracia natural, fundada<br />

no talento e na virtude, destinada ao governo das sociedades ;<br />

e de todas as fôrmas políticas a melhor é aquella, que prove<br />

com mais effícacia e pureza na selecção d'essas aristocracias<br />

naturaes e na sua introducção no governo ».<br />

O meio de extrahir do paiz essa aristcracia natural é a<br />

eleição ; mediante esta o cidadão adquire um direito, que antes<br />

não tinha, o direito de fallar cm nome da nação, de exercer<br />

um contrôle, de consentir no imposto, de votar a lei e de<br />

traçar os princípios que devem guiar o governo do Estado.<br />

Os povos modernos dão mais importância aos actos dos<br />

seus representantes, do que á sua origem e á natureza de sua<br />

representação ; d'ahi as tentativas sobre o meio mais apto de<br />

descobrir na nação os melhores cidadãos, aquelles que por seu<br />

valor pessoal, seu intelligente patriotismo são os mais capazes<br />

de legislar ( 2 ).<br />

( 1 ) Contrat social. L. 3 cap. 15. V. o que íicon dito na Part. Prim. cap. 12.<br />

( 2 ) V. Saint Girons, D. Const, cap. 7 e Separation des pouvoirs cap. 2.


2ÓO NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Nada tão legitimo como esse poder da sociedade esc üher<br />

do seu seio os mais dignos de lhe darem leis e direcção, n'isto<br />

consiste a representação.<br />

As attribuições dos representantes são grandes, é \ T erdade;<br />

mas os eleitores não se tornão por isso escravos, como pretendia<br />

Rousseau.<br />

Os parlamentos não são omnipotentes ; nos direitos dos<br />

cidadãos, nas liberdades individuaes encontrão natural limitação.<br />

Além d'isso o contrôle supremo permanece no corpo eleitoral.<br />

Os representantes ficão sujeitos á reeleição, e portanto<br />

de certo modo responsáveis pelos seus votos perante os eleitores.<br />

Aonde está a escravidão ?<br />

III<br />

O numero menor deve ceder ao maior. Eis aqui um principio<br />

tão geralmente acceito, que chega a assumir o caracter<br />

de axioma em direito politico.<br />

Qual a razão philosophica d'esse principio ?<br />

Em um grande corpo collectivo é moralmente impossível<br />

obter unanimidade nas deliberações. Os votos nas sociedades<br />

iguaes, ( I ) tendo a mesma autoridade, devem contar-se e não<br />

pesar-se. Logo, o maior numero deve vencer. D'ahi a regra<br />

do direito romano : Refertur ad universos quod publiée fit per<br />

majorem partem ( 2 )<br />

O poder da maioria nem sempre traduz a verdade, o bem,<br />

o honesto e o util ; mas é sempre a expressão da superioridade<br />

da consciência nacional. Se a vontade autônoma de cada um,<br />

podesse inutilisar a resolução da maioria, teríamos como conseqüência<br />

a anarchía social. O libernm veto da Polônia é prova<br />

convincente d'estaverdade politica (3)<br />

( 1 ) Sociedade igual é aqiiellaem que o poder social compete indistinetamente a<br />

todos; em que os associados tem direitos c devores da mesma espécie, ainda que<br />

n'ella possa haver gradações différentes em razão das diversidades de força, talento,<br />

etc.. etc.<br />

( 2 ) Dig. L. 50 t. 17 de reg. juris.<br />

( 3 ) Segundo a Constituição polaca bastava um voto contrario na Dieta para o<br />

acto ficar sem valor. No systema anômalo do libernm veto não sò se exigia unanimi"<br />

dade absoluta, para que qualquer votação tivesse força e effeito, mas também se ai-


Jjf<br />

E CONSTITUCIONAL 261<br />

Mas isso não quer dizer que não se tome em consideração<br />

os votos da minoria. Na representação da sociedade todas as<br />

opiniões devem ser representadas, aliás o despotismo do numero<br />

absorverá a sociedade.<br />

Em arithmetica eleitoral não ha regra de proporção, dizem,<br />

e assim é que 100 está para 99, como ioo para o.<br />

Na maioria ha mais sabedoria, do que na minoria ; o interesse<br />

da maioria deve ser preferido ao da minoria.<br />

Eis aqui os axiomas em que o despotismo do numero funda<br />

o seu poder, e orgulhoso diz á minoria : Se succumbis, a culpa<br />

é vossa, porque sois poucos. Crescei em numero, que vos ce"<br />

derei o campo.<br />

Em uir.a palavra, o direito é do maior numero.<br />

Mas, perguntava Proudhon, o que é esse numero ? Que prova<br />

elle ? Que vale ? Que relação existe entre a opinião mais ou<br />

menos unanime e sincera dos votantes, e a verdade e o direito<br />

que devem dominar todas as opiniões e todos os votos ? A tyrannia<br />

das maiorias, acerescenta o mesmo escriptor, é de todas<br />

as tyrannias a mais execrável, porque não se apoia nem na autoridade<br />

de uma religião, nem na nobreza de raça, nem nas<br />

prerogativas do talento e da fortuna ; tem por base o numero,<br />

e por mascara o nome do povo ( 1 )<br />

Os constituintes americanos convencidos de que o erro e a<br />

iniqüidade não se convertem em verdade e justiça, nem a violência<br />

em direito, porque assim o quer o maior numero, tomarão<br />

todas as possíveis precauções, fizerão sabias combinações constitucionaes,<br />

afim de dar ás minorias parte no governo da nação.<br />

« E' necessário, dizia Hamilton, estabelecer na nação soberana<br />

cathegorias différentes de cidadãos, eleitos e eleitores,<br />

governantes e governados, para que o accordo de uma maioria<br />

iniqua, inverosimil, se torne completamente impossível. O corpo<br />

político deve ser fraccionado em grupos distinetos, correspondentes<br />

a interesses diversos e oppostos, para que os direitos<br />

das minorias e dos indivíduos só difficilmente possão ser supplantados<br />

pelos esforços combinados do grande numero ( 2 ).<br />

gum dos muitos capítulos ou artigos de uma lei discutida cm uma Dieta era reieitado,<br />

toda a legislação d'aquella Diela tomava-se nulla. Nunca se imaginou, diz Brougham,<br />

systema humano tãoefficaz para captivar a vontade e paralysar o juizo de uma<br />

assembléa legislativa. Vid. Philos. Pol,, part. 2. cap. 8.<br />

( 1 ) V. Solution du problème social, p. 56.<br />

( 2 ) Fédéraliste p. 400.


2Ó2 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

« O governo, dizia o mesmo Hamilton no seio da Convenção<br />

de Philadelphia, não deve ser exclusivamente entregue ao<br />

grande, nem ao pequeno numero ; deve pertencer a ambos (i) »<br />

Por sua parte Madison dizia : « Quando em uma sociedade<br />

o partido mais forte se põe em estado de opprimir o mais fraco,<br />

se pode affirmar que n'essa sociedade reina a anarchia, como no<br />

estado da natureza, no qual o indivíduo mais fraco não tem garantia<br />

alguma contra a violência do mais forte... E accrescentava<br />

: E' de maxima importância nas republicas, não tanto defender<br />

a sociedade contra a oppressão d'aquelles que governão,<br />

quanto garantir uma parte da sociedade contra a injustiça da<br />

outra ( 2 ) »<br />

Consoante com essa doutrina a Constituição americana estabeleceu<br />

em seu mechanismo expedientes e combinações taes,<br />

que a maioria ficou sem o poder de fazer tudo, porque a minoria,<br />

em assumptos de maxima importância, lhe serve de freio, e<br />

pôde frustrar os caprichos da maioria.<br />

Nossa Constituição, imitando a dos Estados-Unidos do<br />

Norte, também temperou o poder absoluto das maiorias.<br />

Para esse eifeito começou, estabelecendo o sábio principio<br />

que « a eleição dos representantes será por suffragio directe?<br />

garantida a representação da minoria Art. 28 ».<br />

Além d'essa garantia geral em favor da minoria, em vários<br />

artigos deu-lhe negativamente poder de impedir certos actos<br />

da maioria parlamentar.<br />

Vejamos algumas d'essas disposições.<br />

Em primeiro lugar, para que uma resolução, não sanccionada<br />

pelo Presidente da Republica, adquira força de lei, é necessário<br />

que os dous terços dos suffragios de ambas as câmaras<br />

o approvem depois de nova deliberação. Art. -7 § 3." Ora,<br />

n'este caso basta que o terço e mais um votem contra, para que<br />

a maioria não consiga converter em lei a resolução. De modo<br />

que, supposto que na câmara dos deputados estejão presentes<br />

150 deputados, bastão 51 para inutilisar os votos de 99 e não<br />

se faça a lei.<br />

Tratando-se do senado, constituído em tribunal de justiça<br />

( 1 ) Fédéraliste p. 113.<br />

( 2 ) Fédéraliste p, 30í.


E CONSTITUCIONAL 263<br />

para julgar o Presidente da Republica nos crimes de responsabilidade,<br />

dispõe o art. 33 § 2.° que a sentença condemnatoria<br />

só poderá ser proferida por dous terços dos membros presentes.<br />

Ora, supponhamos que estejão presentes 60 senadores, bastarão<br />

21 para frustrar os votos de 39 que o pretendessem condemnar.<br />

E ainda mais : esses 21 votos inutilisarão os votos de todos os<br />

deputados que declararão procedente a accusação do mesmo<br />

Presidente ( 1 ).<br />

No processo de revisão constitucional vemos ainda o triumpho<br />

da minoria. Uma proposta de reforma constitucional, para<br />

ter effeito deve ser acceito em três discussões por dous terços<br />

dos votos n'uma e n'outra câmara, ou ser solicitada por dous<br />

terços dos Estados, e afinal deve ser approvada no anno seguinte,<br />

mediante três discussões por maioria de dous terços dos<br />

votos nas duas câmaras do Congresso. Art. 90 §§ i.° e 2.°<br />

Assim sendo, basta que um terço e mais um dos membros<br />

de uma só câmara do Congresso, ou o terço e mais um dos Estados,<br />

não consintão na reforma, para que ella naufrague. Esse<br />

expediente, e mais a dilação de um anno entre a acceitação do<br />

projecto de reforma e sua final approvação, bastão para inutilisar<br />

as tentativas precipitadas de reforma constitucional projectadas<br />

pela maioria.<br />

O principio constitucional da representação da minoria se<br />

acha consagrada na nova lei eleitoral que regula a escolha dos<br />

membros do Congresso nacional. Segundo essa lei « cada<br />

eleitor votará em dous terços do numero dos deputados do districts<br />

Art. 36 § 3."<br />

IV<br />

Se, como disse E. Naville, a maioria é a lei das decisões,<br />

a proporcionalidade é a lei das representações.<br />

Para tornar praticavel essa lei, evitando a representação<br />

exclusiva da maioria, o que é um grande mal para a democracia<br />

( 1 ) Graças a disposição idêntica da Constituição americana, o presidente Johnson,<br />

accusado de impeachment em 1868 (único presidente, que desde mais de um século<br />

de existência constitucional, foi accusado nos Estados Unidos ) foi absolvido ; 19 senadores<br />

contra 35 impedirão a condcmnaçiío. V. De Noaijles, obr, cit. t. 1. p. 347,<br />

.' ..' .•':'.


264 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

representativa ( I ), diversos systemas eleitoraes se tem proposto,<br />

mais ou menos engenhosos.<br />

Expondo consisamente os principaes, não consideraremos<br />

taes nem os de suffragio universal e restrict o t nem os de voto<br />

directo e indirecto. Porquanto, em primeiro lugar, faliando<br />

com exactidão, não ha suffragio rigorosamente universal ; em<br />

toda parte elle é mais ou menos restricto, e em segundo lugar,<br />

quanto ao voto indirecto, ou eleição de dous gráos, hoje é<br />

geralmente abandonado ; quasi por toda parte é adoptado o<br />

systema eleitoral de um gráo.<br />

Trataremos só dos S3'stemas que tem por fim alcançar a<br />

proporcionalidade da representação ; os quaes forão ideiados<br />

para que as minorias, tenhão uma representação proporcionada<br />

ao seu valor numérico. D'esses systemas os principaes são :<br />

i.° Systema do voto limitado ou de lista incompleta.<br />

Consiste em cada eleitor escrever em sua cédula um numero de<br />

nomes menor, do que aquelle dos que tem de ser eleitos na<br />

circumscripção eleitoral. Assim, se a circumscripção tem de<br />

dar três deputados, elle só escreve dous nomes. Esse systema<br />

é o adoptado pela nossa actual lei eleitoral de 26 de Janeiro<br />

de 1892, e vigora na Inglaterra, na Italia, Hespanha e em<br />

outras partes.<br />

N'esse systema suppõe-se que só existem dous partidos ;<br />

mas ainda quando assim seja, pôde não dar o resultado desejado.<br />

Assim que, em uma circumscripção de 99 eleitores, tendo<br />

de eleger três deputados, 60 bem disciplinados podem eleger<br />

todos três, e os outros 39 nem um. Para isso basta que os<br />

60 eleitores deem 40 votos a cada candidato ; os outros eleitores<br />

não podem reunir senão 39 votos. Mas contando que todos<br />

não votem tão disciplinadamente, a minoria conseguirá eleger<br />

o terço, isto é, 1.<br />

2. 0 Systema Hare, de voto uninominal. Supposto que um<br />

Estado inteiro constitua um collegio eleitoral, cada eleitor vota<br />

em um só nome. No resultado os nomes são classificados<br />

segundo os votos obtidos por cada um. Esse sj-stema é fácil,<br />

e todas as opiniões de certo valor podem ser representadas ;<br />

( 1 ) Se algum dia a liberdade se perder na America, dizia Tocqueville, a culpa<br />

será da omnipotencia da maioria, por ter levado as minorias ao desespero, obrigandoas<br />

a appellar para a força material. V. Democ. in America, t. 2 p. 158.


./33<br />

E CONSTITUCIONAL 265<br />

mas tem o inconveniente de produzir grandes desigualdades<br />

entre os eleitos ; um poderá ser eleito com vinte mil votos,<br />

quando outro sel-o-ha com mil.<br />

3.° Systema de Andrae, do quociente eleitoral. Supposto<br />

que uma circumscripção de 1000 eleitores tenha de eleger<br />

5 deputados, o quociente eleitoral, isto é, o numero de votos<br />

necessários para eleger, é o que resulta do numero de eleitores<br />

dividido pelo dos deputados. Assim : 1000 = 200. O eleitor<br />

5<br />

escreve em sua cédula cinco nomes, pondo em primeiro lugar<br />

aos que prefere. Na apuraçãos os que obtém 200 votos estão<br />

eleitos.<br />

4. 0 Systema do voto cumulativo. N'esse systema cada<br />

eleitor, devendo a circumscripção, por ex. dar três deputados,<br />

pôde votar ou em três nomes, ou em um só repetido duas ou<br />

três vezes. Posto que simples, esse systema pôde dar resultados<br />

contrários, se os partidos não conhecem bem as suas<br />

forças ou não são disciplinados. Assim, tendo um partido<br />

190 eleitores e outro 110, se estes, certos de que são minoria<br />

concentrão os seus 33o votos só em dous nomes, cada um<br />

obterá 165 votos. Ao passo que se a maioria, ou por indisciplinada,<br />

ou por desconfiar de suas forças, concentra, com medo<br />

de perder- todos seus 570 votos em um só nome, a maioria<br />

precisa para eleger sendo 151 votos, segue-se que a minoria<br />

elegerá 2, ao passo que a maioria só elegerá 1.<br />

A sciencia registra outros systemas, além dos mencionados,<br />

mas por serem complicados, e a sua pratica exigir dos<br />

eleitores esforços de intelligencia, de que geralmente são incapazes,<br />

são desusados ( 1 ).<br />

V<br />

Tem variado muito nos différentes paizes os requisitos<br />

necessários á capacidade eleitoral.<br />

Aqui exige-se certa idade, que varia de 21 a 3o annos ; ali<br />

o domicilio por certo tempo na circumscripção eleitoral ; acolá<br />

certo gráo de instrucção e dignidade moral, por ex. não ser<br />

( 1 ) V. Saint Girons, obra cit. p. 136 e seg. e Aumnitre, Manuel de droit.<br />

c onst. p. 48 e seg.<br />

34


266<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

criminoso de certos crimes, não ser fallido inhabilitado, não ter<br />

casa de tolerância, como na Bélgica; em outros paizes de<br />

eleição censitaria, certa renda, calculada por pagamento de<br />

impostos ; finalmente em toda parte a condição de sexo.<br />

Nossa Constituição, inspirando-se nos princípios democráticos,<br />

abrio extenso circulo á capacidade eleitoral. Assim o<br />

Art. 70 estabelece :<br />

« São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos, que se<br />

alistarem na fôrma da lei.<br />

« § i.° Não podem alistar-se eleitores para as eleições<br />

federaes ou para as dos Estados :<br />

« i.° Os mendigos, 2.° os analphabetos, 3." as praças de<br />

prêt, exceptuados os alumnos das escholas militares do ensino<br />

superior, 4. 0 os religiosos de ordens monasticas, companhias,<br />

congregações ou communidades de qualquer denominação,<br />

sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto, que importe a<br />

renuncia da liberdade individual ».<br />

Nos mencionados requisitos não apparece o de domicilio }<br />

condição exigida em todos os paizes com o fim de afastar os<br />

nômadas e vagabundos, que constituem um elemento de perturbação,<br />

e não tem interesses radicados na circumscripção<br />

eleitoral, nem conhecem os homens e as necessidades locaes.<br />

Essa falta, porém, aliás sensível, é reparada pela lei eleitoral,<br />

que no art. l3 exige, d'aquelles que querem se alistar<br />

eleitor a residência habitual ou domicilio pelo menos durante<br />

os dous mezes immediatamente anteriores ao dia da qualificação,<br />

na secção em que se fizer o alistamento ( Art. i3 § i.° ).<br />

O praso de dous mezes é manifestamente muito curto para<br />

o fim quê a lei se propõe estabelecendo a condição de domicilio.<br />

Em França e na Italia exige-se seis mezes, na Inglaterra<br />

um anno.


m<br />

CAPÍTULO X<br />

SUFFRAGIO UNIVERSAL. SE É CONSEQÜÊNCIA DA IGUALDADE<br />

SOCIAL. LIMITES UNIVERSALMENTE ADMITTIDOS Á UNI­<br />

VERSALIDADE DO SUFFRAGIO. VOTO DAS MULHERES.<br />

I<br />

O suffragio universal tem muitos e distinctos defensores.<br />

Todos elles considerão o voto um direito innato, pessoal, absoluto,<br />

e portanto competindo a todos os membros da sociedade.<br />

Todos os cidadãos, dizem elles, são membros da sociedade ;<br />

tem direitos que representar, deveres que cumprir, encargos que<br />

supportar, interesses que zelar. Não é, pois, justo negar-lhes<br />

os meios de concorrerem com o seu voto para defender aquelles<br />

direitos e interesses. Ninguém pôde contestar que o suffragio<br />

é um direito, porque é a garantia necessária de todos os direitos<br />

do cidadão.<br />

Todos os cidadãos, accrescentão, são e devem ser iguaes<br />

perante a lei. O Estado não é uma sociedade de capitalistas,<br />

de sábios, de empregados públicos ; em uma palavra, não é uma<br />

sociedade exclusivamente composta de algumas classes. Como<br />

os cidadãos serão iguaes, como os pobres, os ignorantes, os<br />

artistas concorrerão para o governo do Estado, se apenas certas<br />

classes participão do voto? Por ventura só essas classes pagão<br />

impostos ? Todos devem votar, porque todos concorrem para a<br />

vida do Estado.<br />

Os deputados são representantes do povo, e o povo nào é<br />

certo numero de classes, mas a massa dos habitantes de um<br />

paiz Portanto, se de facto todos não votão, todos devem votar,<br />

para que na realidade tenhamos representantes do povo.


268 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Eis aqui algumas das razões philosophicas dos sustentadores<br />

do suffragio universal. Dizemos philosophicas, porque elles,<br />

sustentando o direito natural do voto, admittem que na pratica<br />

nem todos devem exercer aquelle direito, porque, uns são incapazes<br />

de exercel-o, como os menores e os doudos, e outros porque<br />

não estão no caso de conhecer a importância e a utilidade<br />

d'esse direito.<br />

« Passeando no jardim da especulação, tudo vai bem ; diz<br />

um d'aquelles escriptores ; nada escurece o luminoso rigor dos<br />

princípios ; mas na applicação as difficuldades apparecem e os<br />

perigos surgem, faltando pouco para que o direito illimitado de<br />

suffragio, em vez de garantir os direitos de todos, seja, pelo<br />

contrario, uma cilada para a democracia e para a liberdade. » (i)<br />

Tomemos em consideração as precedentes razões, para dilucidar,<br />

mostrando o que ellas tem de especioso.<br />

E' singular que um direito theoricamente verdadeiro, seja<br />

praticamente nocivo.<br />

O facto de não conhecerem muitos a importância e a utilidade<br />

do direito do voto, não é razão para que fiquem privados<br />

do uso d'esse direito.<br />

Nem todos conhecem a importância e a utilidade da palavra<br />

escripta ou fallada, e não obstante, ninguém d'ahi conclue que<br />

esses ignorantes sejão privados do cireito de manifestar o seu<br />

pensamento escrevendo ou fallando.<br />

Muitos não conhecem bem a importância e utilidade do casamento,<br />

e por isso havemos de condemnal-os ao celibato ?<br />

Se o voto fosse um direito natural, pessoal, de todos os<br />

membros de uma sociedade, não haveria razão para privar d'esse<br />

direito os loucos, os menores e outros.<br />

Dos direitos naturaes, nem mesmo dos civis, se fica privado<br />

só porque não se conhece a importância e utilidade d'elles. O<br />

menor e o louco são incapazes de usar dos seus direitos naturaes<br />

e civis, mas não os perdem ; são representados no exercício<br />

d'elles ; não tem a capacidade de acção, mas conservão a<br />

facilidade de direito.<br />

Não é preciso considerar o argumento tirado da usual expressão<br />

— representante do povo.<br />

{1 ) V. Duvcrgier de Hauranne, Revue des deux mondes, t. 76 p. 612.


Í5I<br />

E CONSTITUCIONAL 269<br />

Já tivemos occasião de dizer que povo, politicamente fallando,<br />

não quer dizer a massa de habitantes de um paiz. Em parte<br />

alguma, diz Laboulaye; entende-se pela palavra povo a totalidade<br />

dos habitantes. Nos Estados, os mais democráticos, somente<br />

os homens maiores de 21 annos votão : por conseguinte<br />

o povo politico compõe-se dos cidadãos que tem attingido<br />

áquella idade (1).<br />

Dizem que todos são iguaes perante a lei, e que portanto<br />

todos devem votar.<br />

E' preciso distinguir duas cousas essencialmente différentes,<br />

a igualdade social e a igualdade política.<br />

A igualdade social, que consiste na abolição das castas e<br />

dos privilégios das classes, compete de facto a todos nas sociedades<br />

democráticas. Todos são aptos para o desempenho de<br />

funcções publicas, desde que se mostrem capazes; todos gozão,<br />

e são garantidos no exercicio dos mais importantes direitos do<br />

homem, taes como a liberdade individual, de propriedade, de<br />

consciência, de manifestação de pensamento, de inviolabilidade<br />

de domicilio, etc.<br />

Eis a igualdade social.<br />

Mas quanto á igualdade politica, a cousa é outra. Em<br />

qualquer organisação politica ha necessariamente hierarchia<br />

de funcções, e por conseguinte desigualdade nas condições políticas<br />

dos cidadãos.<br />

Nem todos podem ser funecionarios públicos, porque nem<br />

todos são capazes de sel-o, e entre aquelles que o são, por força<br />

uns são subordinados aos outros. Eis aqui as duas causas principaes,<br />

necessárias da desigualdade politica.<br />

A igualdade politica consiste em que todos, sem distineção<br />

de classes, podem adquirir as condições, ás quaes está annexo<br />

o exercicio de fnncções <strong>publico</strong>-politicas.<br />

Pelo simples facto de ser membro da sociedade, não se<br />

goza da funeção publica de votar, mas todos podem adquirir<br />

a capacidade de ser eleitor, e portanto de participar do exercicio<br />

do poder social. Essa participação é uma funeção, é um<br />

munus publicum, mas não um jus.<br />

O estudo da igualdade perante a lei tem seu lugar próprio<br />

( 1 ) Histoire des Etats-Unis, t. 3. p. 319.


27o<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tratando-se das grandes liberdades constitucionaes escriptas no<br />

capitulo da Declaração de direitos.<br />

Mas, como muito se abusa da palavra igualdade, e d'esse<br />

abuso dão prova os defensores do suffragio universal, como direito<br />

pessoal, é conveniente dizer logo aqui alguma cousa a<br />

respeito.<br />

II<br />

A natureza humana, considerada em abstracto, é a mesma<br />

em todos os indivíduos humanos. D'ahi resulta que em todos<br />

os homens existe indubitavelmente igual liberdade de obrar :<br />

n'essa liberdade originaria e primigenia está a razão da igualdade<br />

dos direitos humanos.<br />

Mas, se do estado abstracto descermos ao concreto, se do<br />

homem ideal passarmos ao homem real, tal qual é, não encontramos<br />

dous que sejão iguaes em aptidão ; innumeraveis differenças<br />

individnaes os desigualão.<br />

Todos são naturalmente dotados da livre actividade de<br />

obrar, mas considerados individualmente, quer sob o ponto de<br />

vista physico, quer sob o intellectivo, elles nos mostrão a mais<br />

variada diversidade de indoles, forças e capacidades : uns são<br />

perspicazes, activos, laboriosos, dotados de talento para as<br />

artes, as lettras e as sciencias, outros são rombos, inertes, preguiçosos<br />

e pobres de talentos, e essas desigualdades são também<br />

naturaes.<br />

A natureza humana é a mesma em todos os homens, e, por<br />

isso, os direitos que procedem d'essa natureza commum, são<br />

iguaes. Mas, sendo desiguaes as forças individuaes que exteriormente<br />

actuão na natureza commum, necessariamente os resultados<br />

d'essas forças devem ser desiguaes ; pois se a quantidades<br />

iguaes se acerescentão quantidades desiguaes, os resultados<br />

devem ser desiguaes. Logo o mesmo principio de igualdade<br />

que exige direitos iguaes nos que são iguaes, por natureza,<br />

exige também direitos desiguaes nos que são desiguaes, por<br />

faculdades indi-viduaes quer physicas, quer intellectuaes ( i ).<br />

A justiça social pede que cada um seja recompensado na<br />

proporção do bem que faz á sociedade.<br />

11 ) V, a nossa Philosophia do Direito, L. 2. cap. 1.


iic<br />

E CONSTITUCIONAL 271<br />

Se a repartição dos bens sociaes fosse rigorosamente arithmetica,<br />

os inactivos, os estúpidos vivirião á custa dos laboriosos<br />

e dos intelligentes ; o producto das faculdades d'estes reverteria<br />

em beneficio d'aquelles ; quando a justiça e a igualdade<br />

reclamão que cada qual colha o fructo de seu trabalho.<br />

Se os esforços dos coassociados são desiguaes, as vantagens<br />

sociaes devem ser repartidas desigualmente.<br />

Distribui, diz Romagnosi, ao preguiçoso ou ao socio capitalista<br />

de menor capital, porção igual a do socio industrioso e<br />

de maior capital ; igualai nas recompensas sociaes aquelles que<br />

concorrem com maior somma de bens para a communhão com<br />

os que concorrem com menos ; dai prêmio igual ao digno e ao<br />

indigno, e vereis erguer-se do fundo do coração de todos os<br />

homens a mais violenta, a mais justa indignação, e bradarem<br />

todos—injustiça, oppressão, tyrannia ! » (1)<br />

Portanto, se os direitos originaes da natureza humana são<br />

iguaes, e em virtude d'essa igualdade o direito que tem um<br />

pastor de ser respeitado em sua cabana, é tão inviolável e<br />

sagrado, quanto o do mais rico proprietário em seu palácio, os<br />

direitos resultantes das differenças individuaes são desiguaes ;<br />

e pretender estabelecer na sociedade uma igualdade arithmetica<br />

de direitos e de bens, esquecendo que a justiça social está nas<br />

proporções e não na igualdade numérica, é destruir o próprio<br />

principio da igualdade, o qual exige igual inviolabilidade de<br />

todo s os direitos. E' summa injustiça igualar as desigualdades<br />

individuaes ; a justiça social é distributiva, reparte os bens<br />

com igualdade de proporção.<br />

Os cidadãos são iguaes perante a lei; ninguém contesta.<br />

Mas não quer isso dizer que os cidadãos naturalmente<br />

desiguaes sejão igualmente tratados na sociedade. A verdadeira<br />

justiça social consiste em tratar desigualmente aos cidadãos<br />

por natureza desiguaes.<br />

A igualdade proclamada pelas Constituições modernas não<br />

destróe as desigualdades sociaes ; uns serão sempre ricos e<br />

outros pobres ; uns capazes, outros ineptos ; uns sábios e<br />

outros ignorantes. Todos não podem ser capazes dos cargos<br />

públicos, nem ter os mesmos direitos sociaes.<br />

( 1 ) V. Introí. ai diritto <strong>publico</strong> universale. Par. 3 cap. 2.


272<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A igualdade social absoluta destróe a liberdade. Se os<br />

cidadãos sendo naturalmente desiguaes em força productiva, se<br />

abolisse essa desigualdade, os mais capazes ficarião inhibidos<br />

de produzir mais, do que os ineptos ; os sábios mais, do que<br />

os ignorantes ; os previdentes não economisarião mais, do que<br />

os dissipados ; em uma palavra era preciso negar a noção da<br />

mais elementar liberdade.<br />

« A igualdadade civil, escreve Rossi, consiste em conceder<br />

a todos o exercicio livre e legitimo de suas faculdades, e o goso<br />

dos resultados obtidos, seja qual fôr a diversidade das forças e<br />

da energia de cada um. Igualar arbitrariamente os resultados<br />

das diversas actividades individuaes não seria fundar, nem<br />

sanccionar a igualdade civil, seria exactamente o contrario ;<br />

seria destruir a igualdade, fundar o privilegio em favor d'aquelles<br />

que fossem menos favorecidos de energia de forças individuaes<br />

» ( i ).<br />

O grande principio da igualdade perante a lei, significa<br />

que o Estado, a justiça não deve indagar se o cidadão é nobre<br />

ou plebeu, forte ou fraco, rico ou pobre, judeu ou christão.<br />

Ouaesquer que sejão os seus titulos, a classe social a que<br />

pertenção, todos estão sujeitos ás mesmas penas pelos mesmos<br />

crimes, á mesma jurisdicção. a mesma lei civil, penal, commercial,<br />

administrativa, financeira, militar ( 2 ).<br />

Equiparar a todos no exercicio do voto, seria uma solemne<br />

injustiça. Seria equiparar o ignorante, que mal soletra, ao que<br />

consummio o seu tempo no estudo dos livros illustrando o seu<br />

espirito com as luzes da sciencia politica. Pois, o juizo dos<br />

que tem encanecido na gestão dos negócios públicos, hade<br />

valer tanto, na escolha dos que hão de dirigir a sociedade,<br />

quanto o d'aquelles que apenas sabem manejar a sovella ou a<br />

enxó ?<br />

III<br />

A verdadeira doutrina da igualdade social não favorece,<br />

pois, a theoria do suffragio universal.<br />

Também não a favorece a pratica das sociedades antigas e<br />

modernas.<br />

( 1 ) D. Const. Lee. 17.<br />

( 2 ) V, Palma, Corso cit. t. 3 p. 41.


E CONSTITUCIONAL<br />

Por toda parte, e em todos os tempos de regimen social,<br />

um tanto ordenado, se vê o suffragio limitado e restricto a um<br />

certo numero de cidadãos. Na antigüidade, como nos tempos<br />

modernos, parece ser convicção geral que o voto é um direito<br />

adquirido, e não natural ou innato.<br />

Nos Estados os mais democráticos da antigüidade o direito<br />

de voto só competia a muito poucos.<br />

« O que constitue, dizia Aristóteles, o cidadão propriamente<br />

dito, é o direito de suffragio e de participação no poder<br />

<strong>publico</strong> nas assembléas ■».<br />

Mas cidadãos não erão todos os habitantes do paiz, porém<br />

somente aquelles que por certos motivos, de nascimento, de<br />

raça, ou de profissão, constituião classes : era uma minoria<br />

privilegiada; fora d'ellas a massa popular vivia excluida de todo<br />

direito politico.<br />

Em Athenas, conhecida como a republica democrática por<br />

excellencia, a população livre que tomava parte nos negócios<br />

públicos, nunca excedeu, diz Passy, o quinto da totalidade dos<br />

habitantes do território nacional.<br />

Esparta tinha 8,000 cidadãos 3obre 15,000 laconios ou<br />

lacedemonios vasallos e 20,000 ilotas ou escravos.<br />

Em Roma, nos tempos de liberdade, quando o banimento<br />

dos Tarquinics, dera ao povo o direito de só obedecer aos<br />

magistrados de sua escolha, havia duas populações distinctas ;<br />

uma, em menor numero, que gosava de todas as vantagens<br />

sociaes, e outra, os plebeus, excluida dos cargos e das dignidades<br />

publicas, e tendo apenas um direito de suffragio illusorio,<br />

porque as centúria? a que pertencião erão vencidas pelas dos<br />

mais ricos ( I ),<br />

Nas republicas da idade média, diz Palma, só tinhão direitos<br />

políticos os descendentes dos inscriptos no livro de ouro<br />

da cidade capitai ; e na propria Florença só gosavão d'aquelles<br />

direitos os proprietários e os que pagavão impostos.<br />

Nos nossos tempos o que se dá ?<br />

Em que paiz a totalidade dos cidadãos, ou pelo menos a<br />

metade d'elles, tem o direito de votar nas assembléas eleitoraes<br />

?<br />

A Inglaterra ( Reino Unido ) com as reformas eleitoraes<br />

de i832, 1867, 1884, 1886, todas tendendo a augmentar o corpo<br />

( 1 ) V. Passy, Formos do gover. cap G o Palma, Cors"> oit. t. 2 p. 57.<br />

35<br />

273


274<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

eleitoral, tem hoje em uma população de 34,877,399 apenas<br />

5,701,905 eleitores ( 1 ).<br />

A França, terra do suffragio universal, em uma população<br />

de 38 milhões de habitantes tem cerca de 12 milhões de eleitores.<br />

Nos outros Estados da Europa a proporção da população<br />

com o corpo eleitoral é pouco mais ou menos a mesma.<br />

Nos Estados Unidos do Norte, paiz essencialmente democrático,<br />

aonde a soberania do povo é o primeiro dos dogmas<br />

políticos, o corpo eleitoral não passa de 10 milhões cm uma<br />

população de cerca de 60 milhões de habitantes ( 2 ).<br />

Na Suissa, tão afamada por suas instituições populares,<br />

também o suffragio é restricto. Ali, pelo art. 74 da Constituição,<br />

só vota o cidadão suisso que tiver 20 annos de idade,<br />

e não for excluído do direito activo pelo legislação do Cantão ,<br />

emque tiver seu domicilio. Ora, essa legislação em alguns<br />

Cantões declara incapazes os insolvaveis, os subsidiados pela<br />

caridade publica, e outros.<br />

Nossa Constituição, do mesmo modo que as outras, não<br />

admitte o sur<strong>ï</strong>ragio universal, mas o limitado ou restricto.<br />

Nos termos do art. 70 são excluídos de votar os menores<br />

de 21 annos, os mendigos, os analphabètes, as praças de prêt,<br />

os religiosos de ordens monasticas. Se a esses incapazes pela<br />

lettra da lei, accrescentarmos as mulheres, temos que três<br />

quartos ou oito décimos da nação, pouco mais ou menos, são<br />

excluídos do direito de votar.<br />

Portanto, tomada a expressão suffragio universal em sentido<br />

littéral, em parte alguma o vemos em pratica. Se, porém,<br />

ella é empregada para significar que se deve facilitar o mais<br />

possível os alistamentos, levando ao mínimo os requisitos de<br />

capacidade, então é admissível o suffragio universal, e até util<br />

e desejável, porque quanto maior fôr o numero dos que tomarem<br />

parte na vida política do Estado, maior também será o<br />

numero dos interessados pela permanência das instituições e<br />

( 1 ) V. Fránqueville, obra cit. í. 2 p. 324.<br />

( 2 ) As limitações ao direito do voto varião muito nor, différentes Estados da<br />

União americana, mas em gorai as Constituições uniformemente exigem : 1. ser do<br />

sexo masculino, 2. ter idade do 21 annos pelo menos, 3. residir durante um certo<br />

tempo no Estado, no condado, no districto ou no township em que se faz a eleição,<br />

duração que varia do 2 annos como em Kentucky, 3 mezes como em Maine. Lede<br />

sobre isso Carlier loc. cit. t. 3 p. 1-35 e seg.


E CONSTITUCIONAL 275<br />

pelo progresso da sociedade, accrescendo ainda que o numero<br />

menor de incapazes attesta mais adiantado gráo de civilisação.<br />

Mas assim considerado, o direito de voto deixa de ser um<br />

direito natural, para tornar-se um direito politico, ou simplesmente<br />

um mandato social.<br />

IV<br />

As mulheres devem ter voto politico ? Será justo que sejam<br />

excluídas do alistamento eleitoral ?<br />

N'estes últimos tempos se tem disputado a favor e contra a<br />

incapacidade política das mulheres.<br />

Intelligencias vigorosas tem patrocinado o direito politico<br />

d'ellas ; mas, não obstante, até hoje, não tem sido possível convencer<br />

ao gênero humano de que a mulher, além de suas funcções<br />

naturaes de mais, irmãs, esposas e filhas, de guardas do<br />

sanctuario doméstico, gozem também de funcções políticas.<br />

Em vários paizes ellas são admittidas aos empregos públicos,<br />

no magistério, nos correios, nos telegraphos, no commercio,<br />

no estudo da medicina, da cirurgia, da obstreticia ; mas,<br />

quanto ás funcções eleitoraes, encontrão por toda parte invencível<br />

resistência.<br />

Stuart Mill sustentou a capacidade eleitoral da mulher no<br />

parlamento inglez em 1867, e obteve em seu favor 73 votos.<br />

Posteriormente a proposta foi renovada com melhor resultado.<br />

Em 1870 foi rejeitada por 220 votos contra 126 ; em 1871 por<br />

220 contra 150; em 1875 a maioria foi apenas de 3$ votos. Mas<br />

em 187o Bright, tendo declarado que só votava em favor das<br />

mulheres por attenção a Stuart Mill, e que não o faria mais, a<br />

proposta foi rejeitada por 23ç contra 152.<br />

Reproduzida de novo em i883 e 1884, foi sempre rejeitada.<br />

Finalmente em 18S6 a questão reappareceu, e na sessão de<br />

18 de Fevereiro d'esse anno a câmara dos communs approvou<br />

em segunda discussão um bill, apresentado por Courtney, consagrando<br />

o direito das mulheres.<br />

O caso parou ahi por agora, diz C. de Franqueville, mas é<br />

provável que com mais ou menos tempo elle tenha definitiva<br />

solução : o resultado será de certo extravagante, mas muitos<br />

iU


276 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

estadistas dizem que o povo é o verdadeiro soberano e que a<br />

lei salica não tem existência na Inglaterra ( I ).<br />

Nos Estados-Unidos do Norte a questão tem sido calorosamente<br />

agitada pelo Woomen's party ; mas ate agora sem maior<br />

resultado.<br />

As constituições de todos os Estados exigem que o eleitor<br />

seja do sexo masculino. Apenas o Território de Wyoming, por<br />

excepção áquelle principio, votou em 1839 uma ki admittindo<br />

as mulheres no corpo eleitoral. Mas tendo-se levantado contestações<br />

sobre o valor constitucional d'essa lei, suscitou-se um<br />

litigio perante o Supremo Tribunal d'esse território, o qual em<br />

Fevereiro de 1887 declarou que a citada lei era inconstitucional,<br />

e portanto nulla. Consequentemente as mulheres de Wyoming<br />

ficarão privadas do voto.<br />

Também no território de Washington ( hoje Estado ) em<br />

1882 o seu Congresso admittio as mulheres a votarem. Muitos<br />

contestão a legalidade do acto, e como o facto de ser eleitor<br />

traz como conseqüência o serviço do jury, e ha contra isso<br />

muita l'epugnancia, é de presumir que a deliberação tomada<br />

pelo Superior Tribunal de Wyoming seja imitada desfazendo a<br />

innovação de Washington ( 2 ).<br />

Não obstante a propaganda do Woomen's party, a opinião<br />

dominante nos Estados-Unidos do Norte é desfavorável á capacidade<br />

eleitoral das mulheres.<br />

Um illustre publicista d'esse paiz, Ezra Seaman, discutindo<br />

os direitos poüticos da mulher americana diz : « Admittidas as<br />

mulheres ao gozo dos direitos políticos, veríamos em reciproca<br />

lucta maridos e mulheres, mais e filhos, irmãos e irmães, e o resultado<br />

seria — violentíssimas contestações poiiticas, mais desagradáveis<br />

do que actualmente vemos ; a paz de muitas famílias<br />

desappareceria, e teríamos em nosso paiz o pandemonium<br />

doméstico e político o mais perfeito que na terra poderia existir<br />

( 3 ).<br />

Admittidas ao eleitorado, pareceria inconseqüente não conceder-lhes<br />

elegibilidade, e desde logo as teríamos no senado,<br />

na câmara e talvez no ministério, e n'este caso, como salvar o<br />

{ 1 ) Le Gouvernement et le Parlement britanniques, t. 2. p. 3i2<br />

( 2 ) V. Cartier, loe, cit. t. 3. p. 157.<br />

I 3 ) The american system of government, p. 274.


E CONSTITUCIONAL 277<br />

parlamento e o governo do paiz do ridículo inhérente a legisladores<br />

e a ministros de saia?<br />

Bluntschli, combatendo vigorosamente em sua Theoria do<br />

Estado as razões dos fautores da capacidade politica das mulheres,<br />

diz que a natureza viril do Estado é incompatível com<br />

com a fraqueza e a sensibilidade das mulheres ( 1 )<br />

Não distraiamos a mulher do seu império doméstico ; o seu<br />

destino natural é mais familiar, do que politico. Nas urnas<br />

políticas deixemo-lhes só o poder dos affectos ; por meio d'estes<br />

pôde ella influir sufficientemente nas eleições. A sua condição<br />

natural, a delicadeza do suas maneiras, a suave influencia que<br />

tem nos maridos, nos filhos, nos pães, nos irmãos, pôde realmente<br />

dar-lhes influencia nas urnas, não obstant2 a sua inferior<br />

posição na ordem politica (2).<br />

( 1 ) Liv. 2. cap. 26.<br />

( 2 ) V. Palma, Corso cit. t. 2. § 12,


JMO<br />

CAPITULO XT<br />

DOS ELEGI VE IS. CONDIÇÕES DE ELEGIBILIDADE. INCOMPA­<br />

TIBILIDADES PARLAMENTARES. PROCESSO ELEITORAL<br />

I<br />

A elegibilidade, isto é, a capacidade para ser eleito deputado<br />

ou senador, é geralmente mais limitada, do que a capacidade<br />

para ser eleitor.<br />

A Constituição dizendo que « são inelegíveis os cidadãos<br />

não alistaveis ( Art. 70 § 2.0 ) * poder-se-hia inferir que todo<br />

eleitor é elegivel, si em outra parte, além dos requisitos eleitoraes,<br />

ella não exigisse como condições de elegibilidade, além<br />

de ser alistavel como eleitor, e estar na posse dos direitos de<br />

cidadão brasileiro, para deputado, ter também mais de quatro<br />

annos de cidadão brasileiro, e para senador mais de seis e além<br />

d'isso ser maior de 35 annos annos ( Art. 26 e 3o ).<br />

A' primeira vista parece ser uma coaretação aos direitos<br />

do eleitorado impor restricções á capacidade dos elegiveis.<br />

Considera-se o corpo eleitoral soberano ; apregôa-se a sua<br />

liberdade de escolha ; e depois se lhe diz, como a um pupillo :<br />

Quereis eleger a taes cidadãos, que reputaes os mais dignos de<br />

representar-vos, mas eu vos prohibo fazer uso de vossa soberania<br />

e liberdade ; a taes e quaes não podereis eleger, sob pena<br />

de ser nulla a eleição. Não será isso um attentado á soberania<br />

eleitoral ?<br />

Cumpre em primeiro lugar advertir que acima do poder e<br />

do direito dos eleitores estão o poder e o direito do Estado, que<br />

deve velar pelo bem da ordem politica da sociedade. D'ahi


28o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

provém o seu direito de determinar as condições de elegibilidade.<br />

Em segundo lugar, a lei pôde regular a liberdade dos eleitores,<br />

como regula as outras liberdades dos cidadãos. A ordem<br />

jurídica impõe numerosas restricções ás liberdades sociaes. Na<br />

sociedade a liberdade não consiste no poder de fazer tudo o que<br />

se quer. Em sua idea racional a liberdade suppõe sempre uma<br />

lei, que a regula e dirige. Por isso Ciccro dizia : Legam servi<br />

sumus, tit liberi esse possimzis.<br />

Feita essa advertência, não se pôde negar que a nossa lei<br />

constitucional é das mais liberaes a respeito de requisitos de<br />

elegibilidade. Ella chegou ao minimum que na materia se<br />

pôde conceder. Entretanto, attendendo á natureza do nosso<br />

governo, é lícito estranhar que a Constituição não tenha exigido<br />

que o elegivel habite o districto ou pelo menos o Estado<br />

que deve representar. Essa condição parece essencial aos paizes<br />

de regimen federal.<br />

A Constituição dos Estados-Unidos do Norte exige que os<br />

candidatos, além dos requisitos da idade e da nacionalidade<br />

tenhão domicilio effectivo, no Estado em que se faz a eleição,<br />

de nove annos para senador e de sete para deputado (Art. i.°,<br />

Secç. 2. a e 3 a .<br />

Os americanos passarão para as suas assembléas o sentimento<br />

intimo do self-government local. Amão o lugar que habitão,<br />

e tudo fazem por elle. D'esse amor á localidade provém<br />

o valor e grandeza dos Estados.<br />

Não ha duvida que aquelles que convivem em uma localidade<br />

conhecem-se melhor uns aos outros, assim como as suas<br />

necessidades e seus interesses e trabalhSo com maior ardor e<br />

cfficacia pelo seu engrandecimenío.<br />

A confiança e a sympathia dos eleitores são mais pronunciadas<br />

pelos que estão junto a si.<br />

Os sentimentos e tradições particularistas des americanos<br />

roborão o amor da descentralisação, sem a qual é impossível<br />

verdadeira fedeiação, e não obstante, não se afroxam os laços<br />

da União ( i )<br />

( l ) Tão grande é o amor da localidade entre os americanos, tão ciosos são do<br />

seu campanário, de sua pequena pátria que no Estado de Maryland, que o dividido<br />

em duas partes pela bahiade Chesapeach, 6 pratica invariável que dus clous senadores<br />

do Estado, u:n sair. do esto o nutro do oo? ! " da babia. V. Bryce, loc. cit. t. I. p. IPO.


E CONSTITUCIONAL 281<br />

Também na Inglaterra, uma antiquada lei exigia que os representantes<br />

das cidades e dos burgos residissem nelles ; mas<br />

essa lei foi abrogada pelo desuso.<br />

A lei eleitoral de 26 de Janeiro de 1892, apoiada na Constituição,<br />

enumera as seguintes condições de elegibilidade :<br />

< Art. 29. São condições de elegibilidade para o Congresso<br />

nacional :<br />

i.° Estar na posse dos direitos de cidadão brasileiro e ser<br />

alistavel como eleitor ;<br />

2." Para a Câmara dos Deputados, termais de quatro annos<br />

de cidadão brasileiro, e para o Senado, mais de seis e ser maior<br />

de 35 annos de idade.<br />

Esta condição, excepção feita da idade, não comprehende<br />

os estrangeiros que, achando-se no Brasil a 15 de Novembro de<br />

1889, não declararam dentro de seis mezes, depois de promulgada<br />

a Constituição, conservar a nacionalidade de origem.<br />

Art. 3o. Não poderão ser votados para senador ou deputado<br />

ao Congresso Nacional :<br />

I. Os ministros do Presidente da Republica e os directores<br />

de suas secretarias e do Thesouro Nacional ;<br />

II. Os governadores ou presidentes e os vice-governadores<br />

ou vice-presidentes dos Estados ;<br />

III. Os ajudantes-generaes do exercito e armada ;<br />

IV. Os commandantes de districto militar no respectivo<br />

districto ;<br />

V. Os funccionarios militares investidos de commando de<br />

forças de terra e mar, de policia e milícia nos Estados em que<br />

os exercerem, equiparado a estes o Districto Federal;<br />

VI. As autoridades policiaes e os officiaes dos corpos de<br />

policia e de milícia ;<br />

VII. Os membros do Poder Judiciário Federal;<br />

VIII. Os magistrados estadaes, salvo se estiverem avulsos<br />

ou em disponibilidade mais de um anno antes da eleição ;<br />

IX. Os funccionarios administrativos federaes ou estadaes,<br />

demissiveis independentemente de sentença nos respectivos<br />

Estados.<br />

Paragrapho único. As incompatibilidades acima definidas,<br />

excepto a do n. VIII vigoram até seis mezes depois de cessadas<br />

as funcções dos referidos funccionarios.<br />

Art. 3i. Conforme o disposto no art. 24 da Constituição,<br />

36<br />

M


282 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

não pôde ser eleito deputado ou senador ao Congresso Nacional<br />

o cidadão que for presidente ou director de banco, companhia<br />

ou empreza que gozar favores do governo federal, indicados<br />

nos números abaixo :<br />

i.o garantia de juros ou outras subvenções ;<br />

2.° privilegio para emissão de notas ao portador com lastro<br />

em ouro ou não ;<br />

3.° isenção de direitos ou taxas federaes ou reducção d'elles<br />

em leis ou contratos ;<br />

4 ° privilegio de zona, de navegação, contrato de tarifas ou<br />

concessão de terras.<br />

Paragrapho único. O cidadão que, eleito deputado ou senador,<br />

acceitar qualquer dos favores constantes do artigo anterior,<br />

tem por esse facto renunciado o mandato legislativo, ficando<br />

considerado vago o lugar para se mandar proceder ü<br />

nova eleição. » ( i )<br />

II<br />

Incompatibilidade parlamentar é a exclusão do parlamento,<br />

não por incapacidade ou inelegibilidade, como no caso de falta<br />

de idade, mas porque o eleito occupa certos cargos públicos,<br />

que o põem em condições de não poder exercer o mandato<br />

legislativo com a precisa independência.<br />

A inelegibilidade rigorosamente distingue-se da incompa-<br />

(1)0 projocto de Constituição do governo provisório, publicado em 22 de Junho<br />

de 1890 dispunha : « Art. 2ü. São inelegíveis para o Congresso nacional : § 1. Os religiosos<br />

regulares e seculares de qualquer confissão. »<br />

Felizmente, e para honra da democracia brasileira e da liberdade religiosa, o<br />

mesmo governo, « considerando na conveniência de attender immediatamenle ao sentimento<br />

nacional » no projecto emendado, que <strong>publico</strong>u em decreto de 23 de Outubro<br />

do mesmo anno, corrigiu o ponto, declarando que só erão inelegíveis « os que exercessem<br />

autoridade nas suas respectivas confissdes. » Os icgisladores constituintes,<br />

porem, guardarão completo silencio sobre o ponto.<br />

A Constituirão helvetica ( art. 15 ) dispõe que todo eleitor leigo 6 elegivel. Mus<br />

a exclusão só se applica ao padre catholico, que reputa indelével o caracter sacerdotal.<br />

Quanto ao padre protestante, este basta renunciar temporariamente o ministério<br />

pastoral durante o mandato legislativo. Ultimamente, diz Ottiwell Adams, um<br />

pastor bernez, eleito membro do Conselho nacional, officiou ao seu superior demittindo-se<br />

do suas funeções, mas somente cmquanto durasse o mandato de deputado.<br />

La Confederation Suisse, p. ü Bale 1890.


E CONSTITUCIONAL 283<br />

tibilidade. O inelegível é incapaz de ser votado, e no caso de<br />

sel­o, a eleição é nulla. O incompatível pôde ser validamente<br />

eleito, mas não pôde exercer cumulativamente as funcções de<br />

eleito e do cargo <strong>publico</strong> que occupa. A inelegibilidade importa<br />

para o eleito nullidade da eleição ; a incompatibilidade opção<br />

entre duas funcções.<br />

Essa distineção, posto que verdadeira em theoria, todavia<br />

não subsiste na ordem pratica, na qual os resultados dainelegibilidade<br />

se confundem com os da incompatibilidade.<br />

Assim, se um menor de 21 annos, ou um analphabeto fôr<br />

eleito deputado, a câmara não lhe dá assento, porque a sua<br />

eleição é nulla ; se um commandante de districto militar fôr<br />

eleito em seu districto, também a câmara não lhe dá assento,<br />

porque não pôde ser votado no seu districto na constância de<br />

suas funcções, e sim só seis mezes depois de haver deixado<br />

o cargo.<br />

Em summa, no primeiro caso, a incompatibilidade é absoluta,<br />

no outro é simplesmente relativa. O menor não pôde<br />

ser eleito em districto eleitoral algum, o commandante só não<br />

o pôde ser em seu districto militar.<br />

Além das duas referidas espécies de incompatibilidade,<br />

absoluta e relativa, temos outra que se pôde chamar temporária,<br />

porque subsiste somente durante o exercício de funcções.<br />

E' o caso do art. 25 que dispõe : « O mandato legislativo<br />

é incompatível com o exercicio de qualquer outra funeção<br />

durante as sessões. ■» Mas esta espécie de incompatibilidade<br />

de funeção não tem a mesma razão de ser que as outras. Aquellas<br />

se fundão na incapacidade legal, esta na impossibilidade de<br />

exercicio simultâneo.<br />

Qual a razão em que se fundão essas incompatibilidades ?<br />

Será justo excluir da representação nacional homens de<br />

talento e illustração, cidadãos experientes nos públicos negócios,<br />

só porque desempenhão certas funcções administrativas ?<br />

Alguns fundão as incompatibilidades no velho principio —<br />

Pluribus inteníus minor est ad singula sensus.<br />

Sem contestar em these a verdade do principio, diremos<br />

que na ordem pratica elle não tem rigorosa applicação. Entendido<br />

em todo o seu rigor, daria em resultado um absurdo.<br />

Seria então necessário a existência de uma classe de desoecupados,<br />

unicamente aspirando a ser deputado ou senador.


284 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Não é raro ver homens de talento desempenharem bem<br />

mais de uma funcção publica.<br />

De mais, para que a intelligencia do representante se applicasse<br />

exclusivamente ás funcções legislativas, bastaria admittir<br />

a incompatibilidade de exercício, sem precisar declaral-o<br />

inapto para aquellas funcções, porque exerce funcção publica<br />

de outra natureza.<br />

Outros, para justificar as incompatibilidades fundão-se na<br />

separação dos poderes. Não é menos improcedente semelhante<br />

razão.<br />

Na realidade, como já sabemos, os poderes ou as funcções<br />

dos três órgãos do poder <strong>publico</strong>, não são, nem podem ser real<br />

e totalmente separadas, de modo que só por esse facto, um<br />

funccionario, v. g. de ordem judiciaria, não possa ser legislador.<br />

Por força da unidade orgânica do Estado, todos os seus<br />

órgãos se relacionão e mutuamente se auxilião, encaminhandose<br />

todos a um fim — o bem geral da nação. Na realidade<br />

nenhum dos três poderes é exclusivamente exercido por uma<br />

classe de pessoas ou por um indivíduo. O poder executivo<br />

coopera com o legislativo na formação da lei pela sancção ou<br />

pelo veto ; com o judiciário pela nomeação dos juizes, e pelo<br />

direito de commutar e de indultar as penas.<br />

Mais procedente é a razão tirada da dependência em que<br />

se achão certos funccionarios da administração a respeito do<br />

poder executivo, dependência que os inhibe de exercer livremente<br />

as funcções de representante e de fiscaes dos outros<br />

poderes.<br />

Fundado n'essa consideração, o nosso legislador eleitoral,<br />

incompatibilisou os funccionarios administrativos demissiveis<br />

independentemente de sentença ( i ). O empregado <strong>publico</strong><br />

que vive sob a possibilidade de uma demissão ad nutum do<br />

poder executivo, em geral não pôde ter a precisa independência<br />

para fiscalisar os actos d'aquelle poder.<br />

Presume-se que também carecem de espontaneidade e de<br />

independência aquelles que se achão sob a influencia de superiores<br />

hierarchicos a respeito d'estes. Por este motivo a lei<br />

eleitoral incompatibilisou limitadamente a alguns altos func-<br />

( 1 } Lei.de 26 de Janeiro, art, 30, n. 9.


E CONSTITUCIONAL<br />

cionarios como os commandantes de districto militar, e commandantes<br />

de força de terra e mar, nos districtos, ou no Estado<br />

em que exercem suas funcçõec.<br />

Determinando inelegibilidades ou incompatibilidades, o legislador<br />

nem deve coarctar de mais a liberdade do corpo eleitoral,<br />

apertando muito o circulo da elegibilidade, nem offender o<br />

caracter do candidato, suppondo-o capaz de corromper os eleitores<br />

pela influencia de seu cargo, ou de servilismo ao poder.<br />

As incompatibilidades, que não se fundão em graves razões,<br />

offendem tanto a liberdade do eleitor, como o caracter do<br />

candidato.<br />

Fallando da elegibilidade dos funccionarios públicos<br />

Bluntschli pensa que se deve deixar aos eleitores o cuidado de<br />

achar uma medida justa. « Excluir todos os funccionarios, diz<br />

elle, é enfraquecer a autoridade da câmara, privando-a dos<br />

homens mais versados nos negócios ; admittil-os em grande<br />

numero é tornar illusoria a fiscalisação parlamentar. > ( I )<br />

Macauley em sua Historia da Inglaterra, fallando das<br />

discussões do place bill de 1Ó92, relativo ao excessivo numero<br />

de empregados, que tinhão assento no parlamento, faz a<br />

seguinte judiciosa observação :<br />

Todos os inglezes illustrados convierão em que era perniciosíssimo<br />

abrir a câmara dos communs a todos os empregados,<br />

e não menos pernicioso fechal-a a todos. Traçar, porém, com<br />

precisão, a linha entre os que devem ser admittidos, e os que<br />

devem ser excluidos, é obra que requer muito tempo e grande<br />

conhecimento dos indivíduos. Mas os princípios geraes que<br />

devem guiar-nos são óbvios.<br />

< A multidão dos empregados públicos, continua Macauley,<br />

deve ser excluida ; mas 03 poucos funccionarios que se achão<br />

na alta administração devem ser admittidos. Os funccionarios<br />

inferiores devem ser excluidos, porque a admissão d'elles abaixa<br />

o caracter do parlamento e destróe a eficiência do emprego<br />

<strong>publico</strong>. Presentemente elles são excluídos, e d'ahi resulta que<br />

o Estado tem um respeitável corpo de funccionarios, os quaes<br />

não acompanhando as mudanças de gabinete, instruem os<br />

ministros que vão ao poder, e considerão um sagrado ponto de<br />

( 1 ) Dir. Publ., L. 2, c. 5.<br />

28^


286 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

honra dar aos mesmos ministros informações veridicas, conselhos<br />

sinceros e dedicada cooperação.<br />

« A' experiência, á habilidade e á fidelidade d'essa classe<br />

de cidadãos devemos attribuir a facilidade e segurança com que<br />

a direcção dos negócios passa dos tories aos whigs e d'estes<br />

áquelles. Se não fosse a exclusão d'esses funccionarios, teriamos<br />

uma administração muito entrelaçada com a política, teriamos<br />

servilismo e corrupção na câmara dos communs, ignorância<br />

e incapacidade no executivo. Mas, ainda mais nocivos serião<br />

os effeitos se todos os servidores da Coroa, sem excepções,<br />

fossem excluídos da mesma câmara. A lei que assim o determinasse,<br />

sob apparencias democráticas, seria a mais olygarchica,<br />

a câmara cahiria nas mãos dos nobres ( I ).<br />

III<br />

Quanto ao processo eleitoral, a lei de 26 de Janeiro de 1892<br />

dispõe :<br />

« Art. 34. A eleição ordinária para os cargos de deputado<br />

ou senador se procederá em toda a Republica no dia 3o de<br />

Outubro do ultimo anno da legislatura, e será feita mediante o<br />

suffragio directo dos eleitores alistados de conformidade com<br />

esta lei.<br />

Art. 35. A eleição de senador será feita por Estado, votando<br />

o eleitor em um só nome para substituir o senador cujo mandato<br />

houver terminado.<br />

Se houver mais de uma vaga, a eleição será feita na mesma<br />

occasião, votando o eleitor separadamente para cada uma<br />

d'eîlas.<br />

Art. 36. Para a eleição de deputados, os Estados da União<br />

serão divididos em districtos eleitoraes de três deputados,<br />

equiparando-se aos Estados, para tal fim, a Capital Federal.<br />

§ i.° Os Estados que derem cinco deputados ou menos<br />

constituirão um só districto eleitoral.<br />

§ 2. 0 Quando o numero de deputados não fôr perfeitamente<br />

divisivel por três, para a formação dos districtos, juntar-se-ha<br />

a fracção ao districto da capital do Estado. Assim, se um<br />

( 1 ) Citado por Palma, loc. cit. t. 2. p. 103.


E CONSTITUCIONAL 287<br />

Estado der sete deputados, será dividido em dous districtos,<br />

sendo um de três e outro de quatro, tendo por sede a capital ;<br />

se o numero fôr de 10, haverá três districtos, cabendo ao da<br />

capital quatro deputados ; quando o numero fôr de 17, o districto<br />

da capital dará cinco deputados ; e assim successivamente,<br />

adjudicando-se as fracções excedentes de três ao districto<br />

da capital do Estado.<br />

Si o numero de deputados do Districto Federal não fôr<br />

perfeitamente divisivel por três, juntar-se-ha a fracção ao districto<br />

que maior numero de eleitores tiver.<br />

§ 3.0 Cada eleitor votará em dous terços do numero dos<br />

deputados do districto.<br />

§ 4.° Nos districtos de quatro ou cinco deputados, cada<br />

eleitor votará em três nomes.<br />

Art. 38. As eleições serão feitas por secções de município,<br />

que não deverão conter mais de 250 eleitores.<br />

§ 3.° Installada a mesa, terá começo a chamada dos eleitores<br />

pela ordem em que estiverem na respectiva cópia do alistamento.<br />

§ 6.° A eleição será por escrutínio secreto. A urna se<br />

conservará fechada á chave, emquanto durar a votação.<br />

§ 7. 0 As cédulas que tiverem nomes em numero inferior ao<br />

que deverem conter, serão, não obstante, apuradas.<br />

Das que contiverem numero superior, serão desprezados<br />

os nomes excedentes, guardada a ordem em que os mesmos<br />

estiverem collocados.<br />

§ 8.° Antes da chamada, a urna será aberta e mostrada ao<br />

eleitorado, para que verifique estar vasia.<br />

§ 9. 0 O eleitor, logo que tenha depositado na urna sua<br />

cédula ou cédulas, assignará o livro de presença, aberto, numerado,<br />

rubricado e encerrado pelo presidente da commissão<br />

municipal.<br />

§ 10. Terminada a chamada, o presidente fará lavrar um<br />

termo de encerramento em seguida á assignatura do ultimo<br />

eleitor, no qual será declarado o numero dos que houverem<br />

votado.<br />

§ i4. Terminada a apuração das cédulas, o presidente fará<br />

escrever em resumo o resultado da eleição, designando-se os<br />

nomes dos cidadãos votados e o numero de votos, em tantos<br />

exemplares quantos forem os mesarios e os fiscaes, os quaes


288 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

serão rubricados pelos mesarios e fiscaes, entregando-se um<br />

exemplar a cada um.<br />

§ 15. O presidente, em seguida, proclamará o resultado da<br />

eleição pela lista de apuração, procedendo a qualquer verificação,<br />

se alguma reclamação fôr apresentada por mesario, fiscal<br />

ou eleitor, e fará lavrar a acta no livro próprio, a qual será<br />

assignada pelos mesarios, fiscaes e eleitores que quizerem.<br />

§ 16. Os candidatos que disputarem a eleição poderão<br />

nomear cada um o seu fiscal, que tomará assento na mesa<br />

eleitoral, e terá direito de exigir da mesma, concluída a apuração<br />

e antes de lavrar-se a acta dos trabalhos, um boletim<br />

assignado pelos mesarios, contendo os nomes dos candidatos,<br />

os votos recebidos e o numero de eleitores que comparecerem<br />

á eleição.<br />

Estes boletins, com as firmas dos mesarios reconhecidas<br />

por no tari o <strong>publico</strong>, poderão ser apresentados na apuração<br />

geral da eleição, para substituir a acta.<br />

A nomeação do fiscal será feita em officio dirigido á mesa,<br />

e assignado pelos candidatos ou seus procuradores, devendo<br />

ser entregue no acto da installação da mesa.<br />

§ i7. Sempre que um grupo de trinta eleitores, pelo<br />

menos, da secção indicar á mesa, em documento assignado, o<br />

nome de qualquer eleitor para fiscal da eleição, deverá este ser<br />

admittido na mesa, gozando dos direitos conferidos aos fiscaes<br />

dos candidatos.<br />

§ 20. Cada fiscal terá o direito de tirar cópia da acta subscrevendo-a<br />

o presidente e os mesarios.<br />

Finda a eleição e lavrada a acta, será esta immediatamente<br />

transcripta no livro de notas do tabellião ou outro qualquer<br />

serventuário de justiça ou escrivão ad hoc nomeado pela<br />

mesa, o qual dará certidão a quem pedir.<br />

Art. 44. Trinta dias depois de finda a eleição, reunidos na<br />

sala das sessões do governo municipal, nas sedes das circumscripções<br />

eleitoraes e no Districto Federal, o presidente do<br />

mesmo governo, os cinco membros mais votados e os cinco<br />

immediatos ao menos votado, proceder-se-ha á apuração geral<br />

dos votos da eleição.<br />

§ 2. 0 A apuração deverá terminar dentro de 20 dias da<br />

data do começo dos trabalhos, e se fará pelas authenticas recebidas<br />

e pelas certidões que forem apresentadas por qualquer


E CONSTITUCIONAL 289<br />

eleitor, desde que nenhuma duvida offerecerem, lavrando-se,<br />

diariamente, uma acta, em que se dirá em resumo o trabalho<br />

feito no dia, designando-se o total da votação de cada cidadão.<br />

§ 9. 0 Da acta geral da apuração de quaesquer eleições<br />

serão extrahidas as cópias necessárias, as quaes, depois de<br />

assignadas pela junta apuradora, serão remettidas : uma ao<br />

ministro do interior, tratando-se de eleição do Distrieto Federal,<br />

ou ao governador, nos Estados ; uma á secretaria da Câmara<br />

ou do Senado, e uma a cada um dos eleitos, para lhe servir<br />

de diploma.<br />

Essas cópias poderão ser impressas, devendo, todavia, ser<br />

concertadas e assignadas pelos membros da junta. »<br />

37


Y<br />

-


CAPITULO XII<br />

PODER EXECUTIVO. PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE. ELEGI-<br />

BILIDADE PRESIDENCIAL. DURAÇÃO DO MANDATO<br />

I<br />

A principal funcção do poder legislativo — a factura das<br />

leis — ficaria inane e sem valor se não houvesse um poder<br />

destinado a dar-lhes execução.<br />

A vida social do Estado começa pela palavra do poder<br />

legislativo, e acaba pela acção do poder executivo.<br />

Tendo, pois, estudado as máximas funcções do poder legislativo,<br />

passamos agora a tratar dos órgãos e funcções do<br />

executivo.<br />

Dizemos dos órgãos e funcções, para lembrar o que já<br />

ficou dito, quando falíamos da theoria da divisão dos poderes.<br />

O poder ou a soberania é único e indecomponivel ; é o<br />

direito de mandar, ao qual corresponde, da parte dos cidadãos,<br />

o dever de obedecer.<br />

Esse poder se manifesta por órgãos, que são os indivíduos<br />

ou as corporações investidas do poder, e esses órgãos em sua<br />

actividade se desempenhão do poder, de que estão investidos,<br />

mediante funcções, que são os mesmos exercícios dos órgãos.<br />

O primeiro dos órgãos do poder executivo é o Presidente,<br />

que é o chefe d'esse poder nas republicas, assim como nas<br />

monarchias são os reis.<br />

As semelhanças entre as attribuições conferidas aos presidentes<br />

das republicas presidenciaes (i)e as dos reis constitucionaes<br />

são tão frisantes que alguns chamão a presidência — uma rea-<br />

( 1 ) Bagehcit chama a Repub lica americana — republica presidencial — em<br />

opposição às republicas parlamentares.


2Ç2 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

leza eleciiva — como outros, por contraste, chamão a monarchia<br />

ingleza — uma republica hereditaria ( i ).<br />

.Se o governo republicano é de todos os governos o mais<br />

difficil de praticar-se, conforme observa Sumner Maine ( 2 ),<br />

n'esse governo c poder executivo é o mais difficil de organisasse.<br />

Em uma republica o poder executivo, diz Chambrun, deve<br />

ser forte e capaz de satisfazer a todas as necessidades do<br />

governo, mas por outro lado também nào deve ser um obstáculo<br />

ás expansões das liberdades do paiz. Se essas duas condições<br />

não se conciliarem, -ou a republica perder-se-ha na<br />

anarchia, ou será substituída pelo despotismo militar ( 3 ).<br />

Não é, pois, de admirar que os constituintes americanos<br />

labutassem tanto, quando íiverão de organisât o poder executivo,<br />

de modo a equilibral-o com o poder legislativo.<br />

O poder executivo deve ser distincte e independente, ou<br />

bastará que o magistrado executivo seja um agente do poder<br />

legislativo ?<br />

Deve ser confiado a uma só pessoa ou a um conselho ?<br />

Que attribuições se lhe poderá dar sem risco para as liberdades<br />

publicas ? De quem deve receber a sua autoridade ? Que<br />

duração terá essa autoridade ?<br />

Esses e outros problemas forão muito discutidos na convenção<br />

de Philadelphia, resultando d'ahi a constituição do<br />

poder executivo, qual se acha consagrada na Constituição<br />

de 1787, que até hoje tem satisfeito ás necessidades de um povo<br />

livre, e superado a grandes crises, se não pela força dos termos,<br />

em que está redigida, certamente pelo bom senso e patriotismo<br />

de seus executores.<br />

Nossa Constituição, modelada pela americana, não se<br />

apartou d'ella na organisação do poder executivo, se não no<br />

modo da eleição presidencial e em pequenos detalhes.<br />

« Exerce o poder executivo o Presidente da Republica dos<br />

Estados Unidos do Brazil, como chefe electivo da nação ». Eis<br />

( 1 ) Montesquieu considerava a Inglaterra uma nação, cm que a republica se<br />

occulta sob a forma de nionarchia. De L'esprit des lois, L. 5. c. 19.<br />

( 2 ) Popular government, p. ÕS e passim.<br />

( 3 ) Pouvoir executif aux Etats-Unis, Pref.


m<br />

E CONSTITUCIONAL 293<br />

aqui como no artigo 41 de nossa Constituição está estabelecida<br />

a instituição do poder executivo ( 1 ).<br />

Nos §§ i.° e 2.0 d'esse artigo se dispõe a respeito dos substitutos<br />

do Presidente nos termos seguintes : « Substitue o<br />

Presidente, no caso de impedimento, e succede-lhe no de falta,<br />

o Vice-Presidente, eleito simultaneamente com elle. No impedimento<br />

ou falta do Vice-Presidente serão successivamente chamados<br />

á presidência i.° o vice-presidente do senado, 2. 0 o presidente<br />

da câmara, 3." o presidente do Supremo Tribunal<br />

federal.<br />

Não ha duvida que a Constituição devia acautelar a substituição<br />

do Presidente na eventualidade de vaga.<br />

Não seria curial, com effeito, deixar a nação sem chefe<br />

executivo, sobretudo sendo possivel que aquella vaga occorresse<br />

em circumstancias difficeis para o paiz. Proceder então<br />

ás pressas a uma eleição, sob a pressão das intrigas, da corrupção,<br />

e de outras manobras usadas em período de eleição,<br />

seria lançar o paiz em situação arriscada e desconhecida.<br />

E porque não é impossível que ao mesmo tempo, ou com<br />

pequena differença de tempo, faltem o presidente c o vicepresidente,<br />

a Constituição regulou a substituição de ambos,<br />

chamando successivamente o vice-presidente do senado, o presidente<br />

da câmara dos deputados e o presidente do supremo<br />

tribunal.<br />

Do mesmo modo, pouco mais ou menos, procedeu a Constituição<br />

americana. Ali também se dispõe que haverá um<br />

vice-presidente que substituirá o Presidente, caso este morra,<br />

ou se demitia, ou se impossibilite de exercer por qualquer<br />

causa os dcveres e direitos do seu cargo ( Art. 2° secç. 1.» ).<br />

Quanto, porém, aos substitutos do vice-presidente, aquella<br />

Constituição dispôz que o Congresso em lei ordinária designasse<br />

os funccionarios que devião substituil-o.<br />

Em virtude d'essa autorisação, o Coegresso americano<br />

em 1792, determinou que o presidente e vice-presidente serião<br />

substituídos pelo presidente pro tempore do senado e na falta<br />

d'esté pelo speaker da câmara dos representantes.<br />

Assim ficou regulado até Janeiro de 1886, quando o Congresso<br />

ordenou que na falta do presidente e do vice-presidente,<br />

as funcções da presidência serião temporariamente desempe-<br />

[ 1 ) A redacção desse artigo, assim como de outros, não tem nada de invejável.


294 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

nhadas por um dos secretários do poder executivo na ordem<br />

seguinte : i.° o secretario de Estado, 2.° o secretario do thesouro,<br />

3.° o secretario da guerra, 4. 0 o attorney general ( secretario<br />

da justiça ), 5. 0 o post master general ( secretario dos<br />

correios ), 6.° o secretario da marinha, 7.0 o secretario do interior<br />

( 1 ).<br />

Tratando da presidência do senado, falíamos do papel do<br />

Vice-Presidente da Republica na qualidade de presidente do<br />

senado. Essa innovação americana foi traduzida pela nossa<br />

Constituição, não obstante a critica dos publicistas que a considerão<br />

mal pensada. Esse dignitario parasita, nullidade polipolitica,<br />

é uma espécie de porc à l'engrais, como observa<br />

Boutmy ( 2 ), mas pôde por rnéra casualidade passar de nullidade<br />

á plenitude do poder politico. Elle é portanto, um aut<br />

nullus, aut Cœsar. Em sua obra — Twenty Years in Congress<br />

— Blaine observa que o vice-presidente tendo honras,<br />

mas não poder, torna-se o centro dos desempregados e dos<br />

descontentes, a maneira de um herdeiro presumptivo nas monarchias<br />

( 3 ).<br />

II<br />

A a eleição do Presidente e do Vice-Presidente é feita por<br />

suffragio directo da nação e maioria absoluta de votos. D'esté<br />

ponto, porém, trataremos de outra uez. Por agora fallaremos<br />

somente das condições de elegibilidade do Presidente.<br />

São poucas as condições de elegibilidade do Presidente e<br />

do Vice-Presidente da Republica. A Constituição enumera três :<br />

l.° Ser brazileiro nato, 2° Estar no exercicio dos direitos políticos,<br />

3." Ser maior de trinta e cinco annos. Art. 41 § 3.°<br />

A primeira condição é de caracter eminentemente politico.<br />

A naturalisação não pôde crear um titulo á mais alta íuncção<br />

política do Estada.<br />

Nenhum estadista, escreve Story, pôde contestar a conveniência<br />

de serem os estrangeiros absolutamente excluídos do<br />

cargo de Presidente. Assim ficão radicalmente cortadas as<br />

( 1 ) V. Garlier, loe. cil. t. 2 p. Hi.<br />

( 2 ) Etudes de droit constitutionnel, p. 181.<br />

( 3 ) Citado por Bryce, ob. cit, t. 1 p. 293.


E CONSTITUCIONAL 295<br />

possiveis pretenções que estrangeiros ambiciosos poderião alimentar<br />

por meio de intrigas, de se pôr a frente dos negócios<br />

do Estado ; os governos estrangeiros não poderão d'esse modo<br />

intervir no eleição do Presidente. A ausência de providencia<br />

semelhante motivou grandes males nas monarchias electivas<br />

da Europa ( 1 ). ■<br />

A Constituição dos Estados Unidos, exigindo também como<br />

requisito de elegibilidade para o cargo de Presidente, ser cidadão<br />

nato, todavia fez uma excepção em favor dos estrangeiros<br />

que já erão cidadãos ao tempo de sua promulgação ; excepção<br />

que só aproveitava a três estrangeiros, Hamilton, Wilson,<br />

Robert Morris, que muito tinhão cooperado na causa da independência<br />

d'aquelle paiz.<br />

Não carecem de justificação as outras duas cláusulas.<br />

O exercício do poder executivo não devia ser confiado<br />

á inexperiência e á ignorância da alta administração do paiz.<br />

Na idade de 35 annos é de presumir que o cidadão tenha<br />

adquirido a experiência e os conhecimentos precisos ao exercicio<br />

de tão elevado cargo.<br />

Não estar no goso dos direitos políticos, é ter perdido,<br />

ainda que temporariamente, a qualidade de cidadão brazileiro.<br />

Ora, ser cidadão brazileiro e nato é o primeiro dos requisitos<br />

para ser eleito Presidente. Logo a condição de estar na posse<br />

e goso dos direitos políticos, está implícita na primeira.<br />

Além das referidas condições de elegibilidade, conformando­se<br />

com o § 4. 0 do art. 47 e art. 50, paragrapho único da Constituição,<br />

a Lei de 26 de Janeiro de 1892, art. 33, dispõe que não<br />

podem ser votados para Presidente ou Vice­Presidente da Republica<br />

:<br />

« i.° os parentes consanguineos e affins no i.° e 2° gráos<br />

do Presidente e Vice­Presidente que se achar em exercício no<br />

momento da eleição ou que tenha deixado até seis mezes antes ;<br />

2." os ministros de Estado ou os que o tiverem sido, até<br />

seis mezes antes da eleição.<br />

3.° o Vice­Presidente que exercer a presidência no ultimo<br />

anno do período presidencial para o período seguinte e o que a<br />

estiver exercendo por occasião da lei.<br />

Paragrapho único. Entender­se­ha por ultimo anno do pe­<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2 § li97.


296 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

riodo presidencial, para os effeitos do presente artigo, o em<br />

que se der a vaga que tiver de ser preenchida, contando-se até<br />

90 dias depois da mesma vaga. »<br />

Nos Estados-Unidos do Norte a Constituição nada dispõe a<br />

respeito do tempo em que possa occorrer a vaga de Presidente.<br />

Qualquer que seja o tempo, em que ellase der, assume o poder<br />

o substituto legal, que governa até o fim do periodo presidencial.<br />

Assim que, William Harrison tendo morrido em 1841, um<br />

mez depois de sua installação, o vice-presidente John Tyler assumio<br />

o governo e o exerceu quasi por quatro annos. Quando<br />

( 1850 ) morreu Zachary Taylor, succedeu-lhe Millar, que governou<br />

os três annos que restavão. André Johnson em 1865 e<br />

Chester Arthur em 1891, como substitutos de Lincoln e de Garfield<br />

também governavão por muito tempo.<br />

D'esse modo, aquelle, que só foi eleito para uma dignidade<br />

puramente honorifica, passa rapidamente a ter todos os poderes<br />

presidenciaes. Ora., os Vice-Presidentes são, em regra, eleitos<br />

pela minoria, a qual, d'est'arte, pôde vir a governar o paiz contra<br />

o voto da maioria; o que não tem nada de democrático.<br />

Para evitar esse inconveniente, nossa Constituição no artigo<br />

42 dispoz : « Si, no caso de vaga, por qualquer causa, da<br />

presidência ou vice-presidência, não houverem ainda decorrido<br />

dous annos do periodo presidencial, proceder-se-ha á nova eleição.<br />

» E' claro, pois, que a Constituição não consente que um<br />

Vice-Presidente, ou qualquer de seus substitutos, governe por<br />

mais de dous annos. Realisada a condicional do citado artigo,<br />

deve-se fazer nova eleição presidencial ( 1 ).<br />

O Presidente que exerce o cargo até o fim do quatriennio<br />

11 ) Tendo o nosso primeiro Presidente, Marechal Deodoro, eleito em 25 de Fevereiro<br />

de 1891, resignado o cargo a 23 de Novembro do mesmo anno, segundo a<br />

Iettra do art. í2 parece que se devia fazer nova eleição presidencial. Mas assim não<br />

se fez. Assumio o exercício de Presidente o Marechal Floriano Peixoto, eleito Vice-<br />

Presideute n'aquelle mesmo dia 25 de Fevereiro de 1891, e ainda hoje governa.<br />

Suscitou-se duvida a este respeito. Pensavão uns que se devia cumprir o citadu<br />

art. 42; outros, porém, com melhor rasão, pensavão que no primeiro periodo presi.<br />

dencial não cabia o cumprimento d'aquelle artigo, por se lhe oppor a disposição do<br />

§ 2. art. 1. das Disposições Transilm-ias, o qual diz : « ü Presidente e o Vice-Presidente,<br />

eleitos na forma d'esté artigo ( eleição pelo Congresso, reunido em assembléa geral )<br />

oecuparão a presidência, 1 u oice presidência da Repvblica durante o primeiro periodo presidencial<br />

».


JH3<br />

E CONSTITUCIONAL 297<br />

não pode ser reeleito para o período presidencial immediaío<br />

( Art. 43). Aqui temos, portanto, mais um caso de inelegibilidade<br />

temporária para o cargo de Presidente. Durante quatro<br />

annos, o cidadão que acaba de ser Presidente não pôde ser<br />

votado para o mesmo cargo.<br />

E' fácil conhecer o pensamento do legislador constituinte<br />

na citada disposição.<br />

Se um Presidente podesse ser candidato, poria em favor de<br />

sua eleição todas as forças e recursos de que dispõe em virtude<br />

de seu alto cargo. Sob suas ordens e as de seus ministros, todos<br />

os empregados federaes demissiveis, todo o exercito de pretendentes<br />

a empregos, correrião ás urnas com o nome do Presidente<br />

em suas cédulas. Sem medo de errar, se pôde dizer que><br />

em nessas actuaes circumstancias, nem um só candidato presidente<br />

deixaria de triumphar. O governo, se impondo por todos<br />

os meios aos suffragios dos eleitores, a liberdade do voto, que é<br />

da essência do regimen republicano, deiappareceria diante de<br />

candidato tão poderoso.<br />

Também n'esse particular nossa Constituição diverge da<br />

dos Estados­Unidos.<br />

Os constituintes americanos, não querendo limitar o direito<br />

do povo de escolher a seu gosto o seu primeiro magistrado,<br />

deixou em silencio o ponto da inelegibilidade do presidente em<br />

exercício e mais de um tem ali sido reeleito ( 1 ).<br />

praticamente, a elegibilidade não é ali indefinida.<br />

Entretanto,<br />

Tendo o primeiro Preridente, Washington, recusado uma<br />

terceira eleição, ficou o precedente de só se poder ser eleito<br />

duas vezes. Este precedente secular foi respeitado até 1880, \' ­■«.<br />

quando Grant pretendeu um terceiro mandato, e posto que este i<br />

não fosse immediato aos outros dous, todavia mallogrou­se a<br />

tentativa.<br />

Sempre inspirada no mesmo pensamento da liberdade do<br />

X**M<br />

voto, nossa Constituição dispõe no § i.° do citado art. 43 que '^^­^­"C^*^<br />

T<br />

« o Vice­Presidente que exercer a presidência no ttllimo anno<br />

do período presidencial, não poderá ser eleito Presidente para<br />

o período seguinte. »<br />

*<br />

{ 1 ) Dos dezenove Presidentes que tem tido os Estados­Unidos, oito tem sido<br />

reeleitos, a saber: Washington, Jefferson, Madisjn, Monroe, Jackson, Lincoln, Grant e<br />

Cleveland, que acaba de ser eleito e assumira o governo a i de Março de 1893,


298 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Interpretado grammaticalmente o referido texto, se poderia<br />

dizer que o Vice­Presidente que exerce a presidência nos annos<br />

anteriores ao ultimo, pôde ser eleito Presidente para o período<br />

seguinte. Pensamos, porém, que aqui não cabe a interpretação<br />

gramm atical, jgjaS^JSSigj»^<br />

E' claro que o pensamento do legislador constituinte foi<br />

que o poder do officialísmo não interviesse na eleição presidencial.<br />

Ora, este pensamento nullificar­se­hia se o Vice­Presidente<br />

em exercício, supponhamos no terceiro anno, embora não<br />

encete, nem acabe o ultimo anno, podesse ser eleito para o período<br />

seguinte.<br />

Conhecidas as manobras cleitoraes, é fácil de conjecturar<br />

que um Vice­Presidente em exercício durante certo tempo anterior<br />

ao ultimo anuo, pôde dispor de poderosos recursos officiaes<br />

em favor de sua candidatura, embora deixe o poderão começar<br />

o ultimo anno. E' obvio que, na hypothèse, se esse Vice­<br />

Presidente fosse eieito no periodo presidencial immcdiato, sua<br />

eleição poderia ser justificadamcnte attribuida á influencia official<br />

que exerceu durante seu governo, e é isso exactamente o<br />

que não quiz o legislador constituinte.<br />

Em apoio d'esté pensamento, invocamos a autoridade do<br />

legislador ordinário.<br />

Com effeito, a lei de 26 de Janeiro de 1892, reproduzindo as<br />

disposições constitucionaes relativas aos inelegíveis ao cargo<br />

de Presidente, no art. 33, depois de dizer que não pôde ser eleito<br />

para o cargo de Presidente — o Vice­Presidente que exercer<br />

a presidência no ultimo anno do periodo presidencial, accrescenta<br />

: « Paragrapho único. Entender­se­ha por ultimo anno<br />

do periodo presidencial, para os effeitos do presente artigo, o em<br />

que se der a vaga que tiver de ser preenchida, contando­se<br />

até 90 dias depois da mesma vaga ».<br />

III<br />

O Presidente, diz a Constituição, exercerá o cargo por<br />

quatro annos.<br />

O periodo de quatro annos será sufficieiite ?<br />

Hamilton, faltando da duração das fnncções presidenciaes,<br />

dizia que, quanto mais duradouras fossem ellas, mais firme seria<br />

a política do Presidente.


J^O<br />

E CONSTITUCIONAL 299<br />

humana, escreve elle, que o homem toma tanto maior interesse<br />

no que possue, quanto o seu titulo de posse c menos precário.<br />

Esta observação é também applicavel á suprema magistratura<br />

de um paiz. Se aquelle que a occupa, vê que dentro em pouco<br />

tem de deixal-a, pouco interesse toma pelos negócios ; contenta-se<br />

em evitar as criticas e a opposição de uma parte do corpo<br />

legislativo. Um poder executivo constituído d'esse modo por<br />

força será fraco e irresolute (1 ) »<br />

Do raciocínio do illustre publicista americano, rigorosamente<br />

entendido, deveríamos inferir a vitaliciedade do mandato<br />

presidencial.<br />

E de facto, Hamilton, Madison e outros membros da convenção<br />

constitucional de Philadelphia, querião que o Presidente<br />

conservasse o s>eu cargo emquanto bem procedesse (during<br />

good behaviour). Um mandato de curta duração, diziâo, torna<br />

a presidência pouco attractiva para homens eminentes, só os<br />

cubiçosos de vantagens materiaes o procurarão.<br />

Essa opinião aristocrática não encontrou apoio na maioria<br />

dos constituintes, e fixou-se o prazo de quatro annos, o qual,<br />

diz Story, « nem é tão longo que ponha em risco os interesses<br />

do povo, nem tão curto que enfraqueça a energia e independência<br />

do poder executivo. » ( 2 )<br />

No projecto de Constituição, publicado pelo nosso governo<br />

provisório em decreto de 23 de Dezembro de 1890, para ser sujeito<br />

á discussão no Congresso constituinte, no art. 40 se dizia<br />

que o Presidente exerceria o cargo por seis annos, não podendo<br />

ser reeleito para o periodo presidencial immédiate<br />

O Congresso constituinte, porém, reduzio o tempo a quatro<br />

annos, e com razão. Em nossa opinião é melhor lastimar que<br />

um bom Presidente só tenha podido governa r quatro annos, do<br />

que soffrer um ruim durante seis longos annos ( 3 )<br />

( ! ) The Federalist, n. 71.<br />

( 2) Commentaries, t. 2. p. 285 § 1441.<br />

(3) Na Constituição que os Estados confederados do Sul organ isarão ao tempo<br />

da guerra da secessão, se dispunha que « as funeções presidenciaes durarião seis<br />

annos. e que o presidente não seria reelegivel ». Esse ponto de reeleição, sob o aspecto<br />

constitucional, é muito delicado. Declarar que não será reelegivel, diz Laboulaye»<br />

o usurpar o direito da nação, que pôde ter interesse em conservar um homem capaz à<br />

testa dos negócios ; mas por outro lado, decidir que pôde ser reeleito, è introduzir no


3oo NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Eleito o Presidente, e ao empossar-se do cargo, deve pronunciar<br />

em sessão do Congresso, ou se este não estiver reunido,<br />

ante o Supremo Tribunal Federal, a seguinte aifirmação : Prometto<br />

manter e cumprir com perfeita lealdade a Constituição<br />

federal, promover o bem geral da Republica, observar as suas<br />

leis, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência.<br />

Art. 44. »<br />

No dia em que findar o período presidencial, n'este mesmo<br />

dia, improrogavelmente o Presidente deve deixar o exercício<br />

de suas funeções, suecedendo-lhe logo o recem-eleito. Art. 43,<br />

§ 2.' E o primeiro período presidencial terminará a 15 de Novembro<br />

de 1894. Ibid., § 4. 0<br />

governo um inleres.se que não tem nada de nacional, 6 despertar em um h ornem o desejo<br />

de se fazer reeleger, e suggerir-lhe o pensamento de empregar todos os recnr<br />

sos da administração para salisfa/er uma ambição pessoal, llist. dos E. U.t. 3. p 40.


isi<br />

CAPITULO Xî<strong>ï</strong><strong>ï</strong><br />

ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. CRITICA DO MODO DE ELEGER.<br />

PODER VERIFICADOR<br />

I<br />

A organisação do poder executivo nas republicas é de uma<br />

difficuldade quasi insuperável. As theorias brilhantes, as combinações<br />

engenhosas na pratica não surtem o desejado resultado<br />

Basta 1er os debates que se produzirão na Convenção constituinte<br />

de Philadelphia acerca d'esse ponto, para que fique<br />

fora de duvida o nosso asserto, que aliás é repetido pela corrente<br />

dos publicistas americanos. Wilson, um d'aquelles constituintes,<br />

dizia que o ponto da eleição do presidente dividio<br />

profundamente a Convenção efoi ornais difücil de quantos cila<br />

se oecupou ( i ).<br />

Encarecendo a difficuldade do problema, Story diz que talvez<br />

a historia da republica americana não possa provar que evitou<br />

todos os perigos inhérentes á organisação do poder executivo,<br />

e que não seja esse o lado vulnerável d'aquella republica<br />

(2).<br />

Antes de Story, o sábio commentador Kent dizia : « Se algum<br />

dia se perder a paz de nossa republica, e a sua liberdade<br />

correr perigo em luetas pelo poder, será certamente na oceasião<br />

da eleição de algum presidente... Todas as experiências da<br />

Europa antiga e moderna são desfavoráveis á eleição do poder<br />

( 1 ) V. Carlicr, loc. cit. t. 2. p. 96.<br />

( 2 ) Commentaries t. 2. p. 266 § 1410.


302 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

executivo pelo povo. Para livrar­se das infelicidades resultantes<br />

d'aquella eleição, a humanidade, em geral, tem procurado um<br />

abrigo na hereditariedade d'esse poder, como um mal menor. ■»<br />

Como quer que seja, as republicas não podem viver sem um<br />

poder executivo de eleição popular, seja qual fôr o modo de<br />

eleger. Vejamos, pois, como nossa Constituição dispoz a respeito<br />

do ponto.<br />

Já vimos que o primeiro período presidencial terminará a 15<br />

de Novembro de 1894. Art. 43 § 4. 0 E n'esse mesmo dia o Presidente<br />

deixará o exercicio de suas funeções improrogavelmente.<br />

Ibid. § 2. 0 ( 1 ) A esse tempo devem estar reconhecidos o novo<br />

presidente e vice­presidente, os quaes « serão eleitos por suf­<br />

Jragio directo da nação e maioria absoluta de votos. ■» Art. 47.<br />

Essa eleição « terá lugar no dia i.° de Março do ultimo<br />

anno do período presidencial, procedendo­se na capital federal<br />

e nas capitães dos Estados á apuração dos votos recebidos nas<br />

respectivas circumscripções. O Congresso fará a apuração na<br />

sua primeira sessão do mesmo anno, com qualquer numero de<br />

membros presentes. » Art. cit. § i.<br />

Sendo possivel que nenhum dos votados tenha obtido maioria<br />

absoluta, n'este caso « o Congresso elegerá, por maioria dos<br />

votos presentes, um d'entre os que tiverem alcançado as duas<br />

votações mais elevadas na eleição directa. Ern caso de empate,<br />

considerar­se­ha eleito o mais velho, » Art. cit. § 2."<br />

Eis aqui quanto dispõe a nossa Constituição acerca da<br />

eleição do Presidente e do Vice­Presidente da Republica.<br />

O processo da eleição e da apuração, diz a Constituição<br />

que será regulado por lei ordinária. Art. cit. § 3."<br />

Essa lei é a de 26 de Janeiro de 1892, que dispõe, quanto ao<br />

processo eleitoral, que « cada eleitor votará em dous nomes,<br />

escriptos em cédulas distinetas, sendo uma para presidente e<br />

outra para vice­presidente. » Art. 3y.<br />

Quanto á apuração, a citada lei nada dispõe de especial ;<br />

ella poder­se­ha fazer do mesmo modo que a das eleições de deputados<br />

e senadores. Mas « as cópias da acta da apuração<br />

geral nas eleições para Presidente e Vice­Presidente da Repu­<br />

( 1 ) Nos Esiados­Unidos o periodo presidencial começa impretcrivelmente no dia<br />

4 de Março ao meio dia.


E CONSTITUCIONAL 3o3<br />

blica serão remettidas ao governador do Estado, ministro do<br />

interior e secretario da câmara dos deputados. » Art. 44 § 10<br />

da citada lei.<br />

II<br />

Adoptando o voto directo popular para a eleição do Presidente<br />

da Republica, póde-se perguntar, se não seria melhor ter<br />

a Constituição preferido a eleição indirecta ou de dous gráos.<br />

A commissão incumbida pelo governo provisório de preparar<br />

um projecto de Constituição, no que apresentou, se dispunha<br />

no art. 48 que — o Piesidente e Vice-Presidente serião<br />

escolhidos peio povo por eleição indirecta, formando os Estados<br />

circumscripções eleitoraes, tendo cada qual um numéro de<br />

eleitores igual ao decuplo da sua representação no Congresso.<br />

O mesmo governo provisório, modificando o precedente<br />

projecto, em decreto de 22 de junho de 1890, promulgou outro,<br />

que devia ser submettido á deliberação do Congresso. Ahi, no<br />

art. 44 também se dispunha que — o Presidente e Vice-Presidente<br />

serião escolhidos pelo povo, mediante eleição indirecta,<br />

para a qual cada Estado, bem como o Districto Federal, constituiria<br />

uma circumscripção, com eleitoras especiaes em numero<br />

duplo do da respectiva representação na Congresso.<br />

O Congresso constituinte, porém, adoptou o suffrapio directo<br />

da nação.<br />

Qual dos dous modos de eleição será preferível ?<br />

E' difncil responder. x\.s opiniões divergem, e as rasões a<br />

favor e contra contrabalançam-se.<br />

Na pratica, as paixões políticas, o intransigente espirito de<br />

partido, a corrupção, a peita deturpão todo e qualquer systema<br />

eleitoral, por mais razoável e bem combinado que seja.<br />

Os constituintes americanos entenderão que a eleição do<br />

presidente não devia ser directa, para não ficar sujeita ás paixões<br />

populares; e assim dispozerão — « que cada Estado nomearia,<br />

como fosse presc ripto por sua legislatura, um numero de eleitores<br />

(presidenciaes) igual ao numero total de senadores e de<br />

representantes enviados por esse Estado ao Congresso. Mas,<br />

nenhum senador ou representante, nem outra qualquer pessoa<br />

que occupe lugar retribuído ou de confiança sob a autoridade


3o4 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

dos Estados-Unidos, poderá ser eleitor. Art. 2,°, secç. i.a,<br />

§2.° » (I).<br />

A eleição do segundo gráo produzio nos Estados-Unidos,<br />

nos primeiros tempos, os resultados desejados. As eleições<br />

forão puras ; os collegios eleitoraes escolhião os homens mais<br />

dignos. Washington, John Adams, Jefferson, Madison, por seus<br />

méritos se impunhão aos eleitores do segundo gráo, assim como<br />

ao povo, e occuparão o posto do primeiro magistrado da nação.<br />

Mas, pouco a pouco, o vicio original de toda eleição — a<br />

paixão partidária — começou a produzir os seus fructos ; de<br />

sorte que já em seu tempo, o sábio Story dizia:<br />

« Sob todas as relações, as idéas largas e liberaes dos autores<br />

da Constituição, e as esperanças do <strong>publico</strong> forão completamente<br />

frustradas na pratica do systema, no que respeita á independência<br />

dos eleitores dos collegios do segundo gráo.<br />

E' notório que esses eleitores actualmente são escolhidos<br />

apenas para votarem em certos candidatos e sob promessa tácita<br />

de só votarem n'elles. Em certas occasices aquelles eleitores<br />

chegão a se comprometter publicamente a votar em candidato<br />

de antemão indicado, subvertendo-se d'esse modo em seus<br />

fundamentos o systema tão laboriosamente construido. Os candidatos<br />

á presidência são, antes da eleição, escolhidos e annunciados<br />

nos Estados.<br />

Ardente lucta é sustentada na imprensa, nos meetings dos<br />

partidos e nos Congressos dos Estados para sustentar o triumpho<br />

dos candidatos... E assim os eleitores do segundo gráo<br />

nada mais fazem senão votar nos candidatos indicados. Votarem<br />

elles com independência é considerado usurpação politica,<br />

deshonra e fraude para com os seus constituintes ». (2 )<br />

Depois de Story a perversão do systema tem-se apurado<br />

cada vez mais.<br />

A eleição do Presidente se faz antecipadamente nas assem-<br />

( 1 ) Nos Estados-Unidos primitivamente eião os Congressos dos Estados que<br />

elegião os eleitores presidenciaes, de modo que BL escolha do Presidente procedia de<br />

tríplice escrutínio. Mas pouco a pouco os Congressos forão perdendo esse privilegio'<br />

e o povo foi chamando a M o direito do eleger os seus delegados. Hoje, depois da<br />

guerra da secessão, em todos os Estados os eleitores do Presidente são escolhidos<br />

pelo povo, isto è, pelos eleitores primários.<br />

( 2 ) Commentaries, t. 2. p. 299 § 1463.


E CONSTITUCIONAL 305<br />

bléas extra-legaes, chamadas outr'ora caucus e hoje convenções<br />

(1). De modo que a designação do candidato n'essas assembléas<br />

é na realidade a eleição. Nomination is election.<br />

Se a eleição fosse directa, o resultado seria idêntico.<br />

Os eleitores primários mover-se-hião ao aceno dos politiciens<br />

de profissão, do mesmo modo que se movem os secundários.<br />

E na realidade a eleição presidencial não começa por<br />

elles? Não são os eleitores primários que hoje em todos os<br />

Estados escolhem os eleitores especiaes ou presidenciaes?<br />

Desde muitos annos que nos Estados-Unidos reclamão<br />

contra a eleição indirecta.<br />

Em 1826 o senado americano apresentou uma indicação pedindo<br />

que a eleição presidencial fosse directa. A commissão do<br />

senado, incumbida de redigir o projecto de emenda, propoz a<br />

eleição directa, e que se não houvesse maioria absoluta no primeiro<br />

escrutínio, se fizesse segundo entre os dous mais votados.<br />

Em 1829 o Presidente Jackson, em mensagem ao Congresso<br />

renovou o pedido, e dizia : « E' ao povo que compete eleger o<br />

Presidente. Nunca os constituintes pensarão que a escolha<br />

popular fosse confiscada ».<br />

De 1871 a i876 a imprensa e distinctos publicistas advogarão<br />

com empenho o voto directo ( 2 ).<br />

Não obstante as reclamações dos publicistas e da imprensa<br />

imparcial dos Estados-Unidos, ninguém se lembra de trocar o<br />

systema indirecto pelo directo, convencidos como estão todos<br />

de que a violência e a intensidade do espirito de partido cegão<br />

as intelligencias, pervertem o senso e vicião a pratica de qualquer<br />

systema eleitoral.<br />

Ainda não tivemos eleição presidencial por voto directo da<br />

nação ; a do primeiro Presidente resignatario foi por voto do<br />

Congresso. Mas os nossos precedentes eleitoraes autorisão a<br />

pensar que no Brasil não serão esquecidas as praticas americanas.<br />

Eis aqui porque não nos pronunciamos nem a favor, nem<br />

contra o suffragio directo ou indirecto.<br />

( 1 ) Caucus, quer dizer assemblda política dos bebedores, da palavra latina<br />

caw.111, vaso de beber. Se quizerdes saber o que é eleição nos Estados-Unidos lede<br />

a obra do americano Ezra Seaman —The american system of government, cap. 2.<br />

Trad, de Hippert. Paris 1872.<br />

( 2 ) V. De Noailles. obra cit. t. 2. p. 134.<br />

39


3o6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Sem moralidade nos eleitores, sem consciência publica,<br />

não ha systema eleitoral, por mais perfeito que seja em theoria,<br />

que na pratica não produza máo resultado.<br />

Deixando de mão o ponto do suffragio directo, chegamos<br />

ao processo eleitoral.<br />

Já vimos que a lei manda votar com cédulas distinctas,<br />

uma para presidente e outra para vice-presidente.<br />

Porque ? Pois não bastaria uma só, com dous nomes,<br />

sendo o mais votado Presidente e o menos votado Vice-Presidente<br />

?<br />

Se assim fosse, poderia succéder que o menos votado,<br />

aquelle que a maioria do eleitorado não quizesse para Presidente,<br />

viesse effectivamente a sêl-o.<br />

Com effeito, no caso de nenhum dos votados ter alcançado<br />

maioria absoluta, o direito de eleger devolve-se ao Congresso,<br />

que tem de escolher d'entre os mais votados. E quem inhibirá<br />

que o Congresso escolha o menos votado ? Ou escolha aquelle<br />

que o eleitorado queria que fosse Vice-Presidente ?<br />

Esse inconveniente é obviado com o processo das duas<br />

cédulas distinctas, sendo uma para Presidente e outra para<br />

Vice-Presidente.<br />

A Constituição americana dispunha (Art. i.° secç. i. a § 3.° )<br />

que as cédulas dos eleitores presidenciaes conterião dous nomes,<br />

sem indicação alguma, e que o mais votado seria proclamado<br />

Presidente, e o immediato em votos Vice-Presidente.<br />

Succedeu, porém, que quando se fez a eleição do quarto<br />

Presidente ( 1801 ), Jefferson e Aaron Burr obtiverão o mesmo<br />

numero de votos ( "]5 ), e tendo n'este caso a câmara de escolher<br />

o presidente, depois de uma votação que durou sete dias e sete<br />

noutes, e trinta e seis escrutínios, foi emfim eleito Jefferson.<br />

Para evitar essas luctas apaixonadas, votou-se a emenda 12."<br />

á Constituição em 1804, na qual se dispôz que as cédulas trarião<br />

rótulos distinctos, indicando a funcção para que os candidatos<br />

erão votados.<br />

Em 1825 a câmara teve outra vez occasião de exercer a sua<br />

prerogativa, escolhendo entre os três candidatos mais votados»<br />

dos quaes nenhum tinha obtido maioria absoluta, mas todos<br />

tinhão sido votados para Presidente. Ora, a câmara elegeu<br />

John Quincy, que obtivera dos collegios de 2.° gráo 84 votos,<br />

e deixou de parte Jackson que tinha alcançado 99 votos.


E CONSTITUCIONAL 307<br />

Ensinado pela historia constitucional dos Estados Unidos<br />

o nosso legislador adoptou o expediente consagrado no art. 3"]<br />

da citada lei de 26 de Janeiro, o qual dispõe : « A eleição ordinária<br />

do presidente e vice-presidente da Republica será feita<br />

no dia i.° de Março do ultimo anno do periodo presidencial,<br />

por suffragio directo da nação e maioria absoluta de votos,<br />

devendo cada eleitor votar em dous nomes escriptos em cédulas<br />

distinctas, sendo uma para presidente e outra para vicepresidente<br />

».<br />

III<br />

A apuração parcial dos votos para Presidente e Vice-<br />

Presidente é feita nas capitães dos Estados e na capital do<br />

Districto Federal, mas a apuração total é feita pelo Congresso,<br />

que em ultima analyse é o poder verificador da eleição presidencial.<br />

« O Congresso, diz a Constituição, fará a apuração<br />

na sua primeira sessão do mesmo anno, ( da eleição ) com qualquer<br />

numero de membros presentes Art. 4j § i.°<br />

Para execução d'esse paragrapho deve reunir-se o Congresso,<br />

isto é, a câmara dos deputados e o senado.<br />

A ultima clausula do citado paragrapho merece attenção :<br />

qualquer numero de membros presentes constitue tribunal verificador.<br />

De modo que quatro ou cinco congressistas bastão<br />

para verificar e reconhecer a validade da eleição do primeiro<br />

magistrado da nação, e até são sufficientes para elegel-o no<br />

caso de nenhum dos votados ter alcançado maioria absoluta.<br />

Com effeito, n'essa hj'pothese, diz o § 2. 0 do cit. art. que o<br />

Congresso elegerá, por maioria dos votos presentes um, dentre<br />

os que tiverem alcançado as duas votações mais elevadas na<br />

eleição directa.<br />

Não parece acertada semelhante disposição. Seria mais<br />

curial e mais consoante com os princípios republicanos, commetter<br />

aquelle poder á maioria do Congresso.<br />

Não é principio capital nos governos livres tomar as deliberações<br />

por maioria de votos ? Como, pois, tratando-se da<br />

eleição do chefe do Estado, investido pela Constituição de tão<br />

grandes poderes, bastará que a minoria do Congresso decida<br />

de sua eleição ?<br />

Accresce que o qualquer numero de membros presentes<br />

pôde ser de dous, três ou quatro Estados, e assim succedendo


3o8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

ficarão os outros Estados sem ter concorrido para a eleição do<br />

chefe da União.<br />

Mas sábia n'esse particular é a Constituição americana, da<br />

qual se apartou a nossa.<br />

Ella dispõe que « se nenhum dos votados para Presidente<br />

alcançar a maioria do numero total dos eleitores, a câmara dos<br />

deputados escolherá por escrutínio o Presidente dentre os três<br />

mais votados. Mas n'essa escolha os votos serão dados por<br />

Estado, tendo cada Estado um voto ; o quorum necessário<br />

para esse effeito deve comprehender um membro ou vários<br />

membros dos dous terços dos Estados e a maioria de todos os<br />

Estados será necessária para a validade da escolha. » ( Emenda<br />

12.a de 1804 ).<br />

Vé-se, pois, que longe de querer que a escolha do Presidente<br />

( quando devolvida aos representantes ) se faça por<br />

maioria dos votos presentes, a Constituição americana exige<br />

a maioria de todos os Estados.<br />

Assim que, esteja presente um, ou todos os representantes<br />

de um Estado, pouco importa, porque o voto é por Estado ;<br />

e além d*isso para que a eleição se possa fazer é preciso que<br />

estejão presentes representantes dos dous terços dos Estados,<br />

sem o que a assembléa electiva não ficaria validamente constituída,<br />

e finalmente para a validade da eleição deve concorrer a<br />

maioria de todos os Estados. D'esse modo, sendo o voto dado<br />

por Estado, a maioria é federal e não proporcional ; nenhum<br />

Estado poderá queixar-se de não ter concorrido para a eleição<br />

do Presidente, nem os Estados pequenos em representação<br />

dizer que forão absorvidos pelos grandes.<br />

Essa igualdade federal desapparece no nosso systema, porque<br />

se contão os votos per capita, e não por Estado.<br />

Outra observação importante suggère a comparação do<br />

citado artigo da Constituição americana com o correspondente<br />

da nossa.<br />

Aqui a eleição é feita pelos membros do Congresso, isto é,<br />

pelos deputados e senadores, ali é feita exclusivamente pelos<br />

deputados ( representantes ). O Presidente da Republica devendo<br />

sahir do povo, ainda que em eleição de dous gráos, quiz<br />

a Constituição americana que no caso de nenhum dos votados<br />

obter maioria absoluta, fosse eleito só por aquella câmara, que<br />

é a encarnação mais immediata do povo.


E CONSTITUCIONAL<br />

309<br />

Ao senado compete escolher o Vice-Presidente, dentre os<br />

mais votados para essa funcção, no caso de nenhum ter alcançado<br />

maioria absoluta; mas para a validade d'essa operação,<br />

a maioria no senado deve ser a mesma que na câmara dos<br />

representantes para escolha do Presidente, isto é, dous terços<br />

dos Estados e não per capita.<br />

Nossa Constituição attribuio á lei ordinária o poder de<br />

regular a apuração da eleição presidencial ( Art. 47 § 3.° ).<br />

A lei de 26 de Janeiro de 1892, porém, não regulou o ponto.<br />

Mas como a mesma Constituição no § i.' d'esse mesmo artigo,<br />

diz que o Congresso fará a apuração, o Regimento commum<br />

das câmaras poderá prescrever regras para aquella apuração.<br />

Nos Estados Unidos as autenticas da eleição presidencial<br />

são enviadas ao presidente do senado, que na segunda quarta<br />

feira de Fevereiro reúne as duas câmaras, sob sua presidência.<br />

Escolhem do próprio seio três escrutadores, um nomeado<br />

pelo senado, e dous pela câmara dos representantes.<br />

O Presidente abre as autenticas lacradas, e as passa aos escrutadores,<br />

os quaes em voz alta vão lendo os nomes com a respectiva<br />

votação. Terminada a apuração, que é escrupuiosamente<br />

verificada, o Presidente do senado annuncia o resultado e proclama<br />

o Presidente e o Vice-Presidente, se obtiverão a maioria<br />

constitucional ( 1 ).<br />

( 1 ) Carlier, obr. cit. t. 2. p. 110.


JSC<br />

\<br />

CAPITULO XIV<br />

ATTRIBUIÇÕES DO PODER EXECUTIVO. RELAÇÕES DO PODER<br />

EXECUTIVO COM O LEGISLATIVO. RESPONSABILIDADE PRE­<br />

SIDENCIAL.<br />

I<br />

Amplas e importantes são as attribuições conferidas privativamente<br />

pela Constituição ao poder executivo, o qual é<br />

exercido pelo Presidente da Republica, como chefe electivo da<br />

nação, Art. 41. Essas attribuições se achão enumeradas no<br />

cap. Ill, art. 48, e são as seguintes:<br />

l.° Sanccionar, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções<br />

do Congresso ; expedir decretos, instrucções e regulamentos<br />

para sua fiel execução ;<br />

2.0 Nomear e demittir livremente os ministros de Estado ;<br />

3.° Exercer ou designar quem deva exercer o commando<br />

supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brazil,<br />

quando forem chamadas ás armas em defesa interna ou<br />

externa da União ;<br />

4. 0 Administrar o exercito e a armada e distribuir as respectivas<br />

forças, conforme as leis federaes e as necessidades do<br />

governo nacional;<br />

5. 0 Prover os cargos civis e militares de caracter federal,<br />

salvas as restricções expressas na Constituição ;<br />

6.° Indultar e commutar as penas nos crimes sujeitos á<br />

jurisdicção federal, salvo nos casos a que se referem os artigos<br />

34, n. 28, e 52 § 2. 0 ;<br />

7. 0 Declarar a guerra e fazer a paz nos termos do art. 34,<br />

n. 11 ;<br />

8.° Declarar immediatamente a guerra nos casos de invasão<br />

ou aggressão estrangeira ;


312 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

9. 0 Dar conta annualmente da situação do Paiz ao Congresso<br />

nacional, indicando-lhe as providencias e reformas<br />

urgentes em mensagem, que remetterá ao secretario do senado<br />

no dia da abertura da sessão legislativa ;<br />

10. Convocar o Congresso extraordinariamente ;<br />

11. Nomear os magistrados federaes, mediante proposta<br />

do Supremo Tribunal ;<br />

12. Nomear os membros do Supremo Tribunal federal e os<br />

ministros diplomáticos, sujeitando a nomeação á approvação<br />

do senado. Na ausência do Congresso, designal-os-ha em<br />

commissão, até que o senado se pronuncie.<br />

i3. Nomear os de mais membros do corpo diplomático e<br />

os agentes consulares ;<br />

14. Manter as relações com os Estados estrangeiros ;<br />

15. Declarar por si, ou seus agentes responsáveis, o estado<br />

de sitio em qualquer ponto do território nacional, nos casos de<br />

aggressão estrangeira, ou grave commoção intestin a ( na<br />

ausência do Congresso ).<br />

16. Entabolar negociações internacionaes, celebrar ajustes,<br />

convenções e tratados, sempre ad referendum do Congresso,<br />

e approvar os que os Estados celebrarem na conformidade do<br />

art. 65, submettendo-os, quando cumprir, á autoridade do<br />

Congresso.<br />

Posto que a Constituição diga que as mencionadas attribuições<br />

competem privativamente ao Presidente, toda via<br />

algumas d'ellas, como a de promulgar leis, declarar o estado de<br />

sitio, commutar e perdoar penas ( 1 ), também competem ao<br />

Congresso, sob différentes relações.<br />

Essas attribuições do poder executivo não são da mesma<br />

natureza. Umas pertencem á ordem puramente executiva,<br />

outras são de caracter legislativo. Assim também, algumas das<br />

attribuições executivas são exercidas, umas unicamente pelo<br />

Presidente, e outras o são concurrentemente com o senado,<br />

como a constante do n. 12; e finalmente a execução da do<br />

n. 11 em parte também depende do Supremo Tribunal federal,<br />

que propõe os magistrados federaes.<br />

(1)0 Congresso su commuta e perdoa as penas impostis por crime de responsabilidade<br />

Art. 3i n. 28.


E CONSTITUCIONAL 3l3<br />

Considerando o complexo das referidas attribuições e a<br />

natureza d'ellas, se evidencia que o Presidente da Republica<br />

é órgão de um dos três poderes, e tão independente em sua<br />

esphera, como qualquer dos outros dous, posto que harmônico<br />

com elles no exercicio de suas prerogativas.<br />

A Constituição fez do Presidente um co-ígual na organisação<br />

tripartida do nosso governo.<br />

Elle tira a sua autoridade da mesma fonte que o poder<br />

legislativo e o judiciário — a Constituição — mas responde<br />

perante um e outro ; perante o legislativo nos crimes de responsabilidade<br />

e nos communs perante o judiciário. Não obstante,<br />

dentro de sua orbita constitucional, elle é tão soberano como o<br />

Congresso nacional, e mais do que a magistratura.<br />

E' verdade que o Congresso pôde < decretar as leis e resoluções<br />

que forem necessárias ao exercicio dos poderes que<br />

pertencem á União > Art. 34 § 33. Mas essa disposição constitucional<br />

não habilita o Congresso nem a ampliar as attribuições<br />

conferidas pela Constituição ao Presidente, e menos a restringil-as<br />

; aquella faculdade legislativa é apenas um subsidio ao<br />

bom desempenho das funcções executivas do Presidente.<br />

Das prerogativas prcsidenciaes somente algumas precisão<br />

mais demorada consideração, as outras são de intuitiva comprehensão,<br />

e não suscitão questão alguma.<br />

A respeito do direito de sanccionar ou não as resoluções do<br />

Congresso, já dissemos bastante fallando das leis e resoluções ;<br />

agora só alguma cousa diremos do poder de expedir decretos,<br />

^ístrucções e regulamentos para fiel execução das leis, e das<br />

attribuições especificadas nos ns. 6.°, 12, i3 e 15.<br />

A atíribuição de expedir decretos, instrucções e regulamentos<br />

para fiel execução das leis é uma das mais importantes<br />

das que se acha investido o poder executivo.<br />

O regulamento é uma quasi lei, é um complemento ou<br />

prolongação da lei, mas não é lei, nem d'ella deve affastar-se<br />

substancialmente.<br />

A lei é obra do poder legislativo, estabelece principios<br />

universaes e permanentes, e uniformemente se applica á universalidade<br />

dos cidadãos. Pelo contrario, o regulamento é obra<br />

do poder executivo, e pôde variar para se adaptar ás circumstancias.<br />

Intentando a applicação da lei em todos os pontos<br />

do território nacional, o regulamento pôde modificar-se segun-<br />

40


3i4<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

do as condições de lugar, para poder facilitar a execução<br />

da lei.<br />

Apezar d'essas differenças, é difficil definir os respectivos<br />

limites entre a lei e o regulamento, e entretanto seria preciso<br />

traçar esses limites, para impedir reciprocas invasões do poder<br />

legislativo e do executivo.<br />

O critério de separação entre aquellas duas competências<br />

deve tirar­se do fim constitucional do regulamento. Ora, esse<br />

fim é a fiel execução das leis. Portanto o que é de principio<br />

geral, que cria direitos e impõe deveres á totalidade dos cidadãos,<br />

é da exclusiva competência da lei ; pelo contrario o que<br />

diz respeito á execução da lei, o que é necessário para facilitar<br />

a applicação, a pratica da lei, consideradas as condições accidentaes<br />

e variáveis de luçar, é da competência do executivo.<br />

E' bem de ver que expedindo regulamentos, o poder executivo<br />

não deve alterar a substancia da lei, mas unicamente applicar<br />

os princípios estabelecidos por ella, sem modifical­os ou<br />

falseal­os.<br />

Em geral o poder executivo expede os regulamentos por<br />

autoridade propria, por direito constitucional. Mas pôde também<br />

expedil­os por delegação do poder legislativo ordinário.<br />

E' doutrina corrente de direito constitucional, posto que não<br />

expressa em texto de Constituição, que o poder legislativo pôde<br />

delegar ao executivo o exercício de algumas de suas faculdades,<br />

sob condições especiaes e garantia de certos princípios. Mas<br />

é também corrente que só em casos especiaes, por urgência do<br />

serviço <strong>publico</strong>, ou outro ponderoso motivo, deve o legislador<br />

commetter ao executivo o exercício de sua soberania em materia<br />

legislativa.<br />

Quando o regulamento é dado por delegação do poder<br />

legislativo, tem força obrigatória de lei, e é considerado verdadeira<br />

lei, emanada do poder legislativo por delegação ; por<br />

quanto, é próprio de toda delegação identificar o delegado com<br />

o delegante. Is, cui ■mandata j uris diet io est, fungitur vice<br />

ejus, qui mandavit, non sua, diz a lei romana ( i ).<br />

Póde­se perguntar, se o poder executivo deve dar execução<br />

a uma lei que elle considera inconstitucional ?<br />

{ 1 ) L, 1C. if, DP jurist]ict.<br />

■ 1


J5S<br />

E CONSTITUCIONAL 3i5<br />

A lei inconstitucional é nulla, não é lei, e portanto nào<br />

deve ser executada. Isto é certo. Mas não é o poder executivo<br />

o competente para declarar que tal lei é inconstitucional.<br />

Prima facie toda lei é constitucional ; não se presume<br />

que o Congresso vote uma resolução contraria á Constituição,<br />

e se o faz, tem o poder executivo o direito de pedir sobre ella<br />

nova deliberação, mediante o seu veto, Mas se afinal, segundo<br />

os tramites constitucionaes, a resolução se converte em lei, o<br />

Presidente deve executal-a, até que o poder competente resolva<br />

a questão. O contrario seria arvorar o poder executivo em<br />

juiz do poder legislativo, e fomentar lucta entre esses dous<br />

poderes.<br />

As attribuições sob ns. 12 e l3 merecem alguns reparos.<br />

Pela lettra da Constituição o Presidente da Republica pôde<br />

« nomear os membros do Supremo Tribunal federal, os ministros<br />

diplomáticos, e os membros de Tribunal de contas, sujeitando<br />

a nomeação á approvação da senado. Na ausência do<br />

Congresso os designa em commissão até que o senado se pronuncie<br />

>. Pôde também < nomear os de mais membros do<br />

corpo diplomático e os agentes consulares >.<br />

Quaes são os ministros diplomáticos, cuja nomeação<br />

requer a approvação do senado, e quaes os outros membros do<br />

corpo diplomático, cuja nomeação pôde o Presidente fazer<br />

definitivamente ?<br />

Se o Presidente para a nomeação dos ministros diplomáticos<br />

carece do concurso do senado, para demittil-os, também<br />

será necessário esse concurso ?<br />

A primeira vista a expressão — ministros diplomáticos —<br />

é genérica, e equivalente a — ministros públicos — e n'esse<br />

sentido abrange todos os membros do corpo diplomático. Mas<br />

a Constituição tendo feito distincção entre ministro diplomático<br />

e os de mais membros do corpo diplomático, considerando<br />

aquelle como uma espécie, de que este é gênero, convém<br />

definir um e outro.<br />

Segundo Fiore, as pessoas acreditadas junto aos governos><br />

para facilitar entre elles o cultivo de relações políticas e diplomáticas,<br />

se dividem em quatro categorias ( i ).<br />

( 1 ] 0 regulamento — concordata de Vienna, de 19 de Março de 1815, reconheceu<br />

1res classes de agentes diplomáticos. O regulamento fü completado pelo


3i6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

A primeira comprehende : i." os Embaixadores ordinários e<br />

extraordinários, conforme a sua missão é permanente ou tem- -<br />

poraria ; 2." os Delegados do Papa ;3.° os Nuncios ordinários e<br />

extraordinários.<br />

A segunda compõe-se i.° dos Enviados ordinários e extraordinários,<br />

2.0 dos Ministros plenipotenciarios e dos Internuncios<br />

do Papa ( i ).<br />

A terceira contém, i." os Ministros residentes e os Encarregados<br />

de Negócios.<br />

Na quarta estão comprehendicios os Encaregados de Negócios<br />

acreditados junto aos ministros de Negócios estrangeiros,<br />

e os Cônsules, aos quaes seus governos confião missão diplomática<br />

particular.<br />

Chama-se corpo diplomático a reunião dos ministros públicos<br />

de todas as classes acreditados junto a um governo. Esse<br />

corpo não é uma pessoa jurídica, nem política ; mas a reunião<br />

de personalidades independentes, como os Estados que representão<br />

( 2 ).<br />

Aonde collocar os ministros diplomoticos de que que falia<br />

a Constituição ?<br />

Em nenhuma das quatro classes officines os vemos nomeados.<br />

Pela circumstancia de exigir a Constituição o concurso do<br />

senado para a nomeação d'aquelles ministros, devemos inferir<br />

que se trata dos mais elevados membros do corpo diplomático,<br />

isto é,dos contemplados na primeira classe — os embaixadores.<br />

Em virtude da importância d'esses cargos não quiz a Constituição<br />

confial-os exclusivamente ao ai'bitrio do Presidente,<br />

imitando assim a Constituição americana, que confere ao Presidente,<br />

«com prévio parecer e consentimento do senado,<br />

nomear os embaixadores e outros ministros públicos, cônsules,<br />

juizes do Supremo Tribunal, e todos os funecionarios dos Estados<br />

Unidos, cuja nomeação não tenha especificado e que serào<br />

creados por lei > Art. 2.° secç. 2. a § 2.°<br />

protocolo assignado em áix-Chapelle em 21 tio Novembro de IS19, o qual admittío<br />

uma quarta classe do agentes.<br />

( I ) E'diffioil precisar diííerenças entre os agentes da primeira e os da segunda<br />

classe.<br />

[ 2 ) Droit international public, t. 2 L. 6 c. 2.


m<br />

E CONSTITUCIONAL 317<br />

Vê-se que a restricção ao direito de nomear é maior na citada<br />

Constituição, do que na nossa. Ao passo que o nosso<br />

Presidente só precisa do concurso do senado para nomear os<br />

membros do Supremo Tribunal Federal, os ministros diplomáticos<br />

(de i. a classe) e os membros do Tribunal de Contas, o<br />

Presidente americano precisa d'aquelle concurso para nomear<br />

os embaixadores, os outros ministros públicos, os cônsules, e<br />

todos os outros funccionarios, acerca de cuja nomeação a lei não<br />

providencie de outro modo.<br />

Emquanto que a nomeação e demissão dos ministros de Estado<br />

é entre nós exclusiva e livremente da competência do<br />

Presidente da Republica, nos Estados-Unidos o poder executivo<br />

não pôde nomear os seus ministros sem o controle do senado !<br />

Sendo a nomeação dos ministros diplomáticos ( i ) dependente<br />

da approvação do senado, e não sendo elles vitalícios,<br />

poderá o Presidente demittil-os sem o consentimento do mesmo<br />

senado ?<br />

No silencio da Constituição é licito opinar affirmativa ou<br />

negativamente.<br />

Parece que, se a nomeação não se pôde fazer sem o concurso<br />

do senado, esse concurso também é necessário para a demissão.<br />

( 2 )<br />

Attribuição de, na ausência do Congresso, « declarar por<br />

si, ou seus agentes responsáveis, o estado de sitio em qualquer<br />

ponto do território nacional, nos casos de aggressão estrangeira,<br />

ou grave commoção intestina » merece pela sua importância<br />

especial menção.<br />

Estado de sitio, em sentido próprio, significa a situação de<br />

uma praça assediada por tropas inimigas que a ameação. N'essa<br />

circumstancia, a legitima defeza autorisa o emprego de todos os<br />

meios para repulsão do inimigo.<br />

Applicando essa noção aos casos em que graves commoções<br />

intestinas ou aggressão estrangeira ameação a ordem social,<br />

se permitte aos governos todos os meios para defender aquella<br />

ordem e restabelecer a paz, inclusive poderes extraordinários e<br />

extraconstitucionaes. N'estes casos procede-se como se se tra-<br />

( 1 ) Níto falíamos dos membros do Supremo Tribunal, nem dos do Tribunal<br />

de Contas, porque esses só por sentença podem perder seus lugares.<br />

( 2 ) V. o que a respeito já ficou dito nas ps. 187—8.


3i8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tasse da defeza de uma praça sitiada por inimigos. O paiz se<br />

achando em estado excepcional, arma o governo de recursos<br />

também excepcionaes.<br />

Em uma palavra, estado de sitio quer dizer— suspensão<br />

das garantias constitucionaes, instituidas para defeza dos direitos<br />

individuaes, da liberdade pessoal, da inviolabilidade do<br />

domicilio e, em summa, de todas as outras garantias das liberdades<br />

individuaes.<br />

Ora, poderá o Estado em caso algum, mesmo de necessidade<br />

e salvação publicas, suspender aquellas garantias ? Não<br />

são aquelles direitos absolutos e innatos, inhérentes á personalidade<br />

humana, e portanto anteriores e superiores á sociedade !<br />

Como pôde esta, pois, desconhecer e suspender o exercício<br />

d'eltes ?<br />

Estudando o direito social, é preciso deixar o mundo das<br />

abstracções, e vêr como as cousas se passão na ordem real, no<br />

seio da sociedade.<br />

O homem nasce em sociedade, aonde encontra semelhantes<br />

possuindo direitos. A sociedade o acolhe, o protege, lhe garante<br />

os direitos naturaes e lhe confere outros, nascidos das relações<br />

sociaes.<br />

Mas essa protecção e garantia tem limites ; vão até ao<br />

ponto de encontrar com os direitos dos outros e com os do<br />

Estado. Por isso o exercício de todos os direitos sociaes do<br />

homem são limitados, tanto pela ordem moral, como pela ordem<br />

legal. O absoluto exercício dos direitos do cidadão é impossível<br />

na ordem social. Na sociedade pôde haver collisao entre os<br />

direitos individuaes e os sociaes, pôde dar-se confiicto entre os<br />

direitos privados e os públicos. No caso de necessidade os di*<br />

reitos públicos devem prevalecer. Jus privatum sub tutela<br />

publici manet.<br />

Assim como o indivíduo está sujeito a doenças, e para livrar-se<br />

d'ellas usa muitas vezes de remédios extraordinários, o<br />

ferro e o fogo, assim também a sociedade, como corpo politico,<br />

está sujeita a doenças, chamadas sedições, guerras, revoluções.<br />

N'esses períodos pathologicos ella pôde, como o indivíduo,<br />

usar de remédios extraordinários para voltar ao estado de saúde,<br />

que é a paz e a ordem. Ora, entre esses meios extraordinários<br />

está a suspensão dos direitos que a Constituição garante nos<br />

tempos ordinários.


íhO<br />

E CONSTITUCIONAL 319<br />

E' portanto perfeitamente justificável a attribuição conferida<br />

ao poder <strong>publico</strong> de declarar o estado de sitio em qualquer<br />

ponto do território nacional.<br />

Nos paizes, os mais zelosos da liberdade dos cidadãos, na<br />

Inglaterra e nos Estados Unidos, a suspensão das garantias<br />

constitucionaes é admittida e reconhecida em direito <strong>publico</strong>.<br />

Ali o habeas-corpus, considerado o palladium das liberdades<br />

individuaes, o jury e outras instituições garantidoras dos direitos<br />

individuaes, varias vezes, em graves crises sociaes, tem sido<br />

suspensos ( i ).<br />

Nossa Constituição, consoante com o direito <strong>publico</strong> inglez.<br />

e americano, conferio ao Congresso e ao Presidente da Republica,<br />

sob o controle d'aquelle, o poder de suspender as garantias<br />

constitucionaes, mas o fez cautelosamente determinando os<br />

casos, em que se devia lançar m3o d'essa perigosissima arma<br />

em favor da segurança publica.<br />

Assim, entre as attribuições privativas dadas ao Congresso<br />

nacional, no art. 34 sob n. 21 está a seguinte : < Declarar em<br />

estado de sitio um ou mais pontos do território nacional, na<br />

emergência de aggressão por forças estrangeiras ou de commoção<br />

interna, e approvar ou suspender o sitio que houver sido<br />

declarado pelo poder execu f ivo, ou seus agentes responsáveis,<br />

na ausência do Congresso ».<br />

Voltando ao assumpto no art. 80 dispoz ainda a Constituição<br />

: < Poder-se-ha declarar em estado de sitio qualquer parte<br />

{1 ) Na Inglaterra o habeas-corpus foi suspenso em 1689, 1696, 1716, 1722<br />

17«, 17'iõ, 177-5. 1779, 1794, 1798, 1800, 1802, 1805, 1807, 1810, 1814, 1822, 1824^<br />

1848, 1856, 1860, 1866, 1869, 1870, 1870, 1871 a 1880. Os inglezes, além da pena<br />

de morte, applicão quaesquor outras que julgão necessárias para proteger a sociedade<br />

contra os perversos. Aos estranguladores, por exemplo, intlingem a llagellação<br />

usada em Delaware e em outros Estados da União americana — a llagelação<br />

do gato de nove rabos (í/i


320 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

do território da União, suspendendo-se ahi as garantias constitucionaes<br />

por tempo determinado, quando a segurança da<br />

Republica o exigir, em caso de aggressão estrangeira, ou commoção<br />

interna.<br />

« § i.° Não se achando reunido o Congresso, e correndo<br />

a Pátria imminente perigo, exercerá essa attribuição o poder<br />

executivo federal.<br />

< § 2.0 Este, poré n, durante o estado de sitio, restringirse-ha<br />

nas medidas de repressão contra as pessoas, a impor :<br />

« i.° A detenção em lugar não destinado aos réos de crime<br />

commum ;<br />

< 2.° O desterro para outros sitios do território nacional;<br />

< 3.° Logo que se reunir o Congresso, o Presidente da Republica<br />

lhe relatará, motivando-as, as medidas de excepção,<br />

que houverem sido tomados.<br />

< § 4. 0 As autoridades que tenhão ordenado taes medidas,<br />

são responsáveis pelos abusos commettidos.<br />

Da lettra constitucional se infere que somente em três<br />

casos se pôde usar do remédio extraordinário do estado de sitio :<br />

l.° no caso de aggressão por forças estrangeiras, 2.° de grave<br />

commoção interna, 3.° quando a segurança da Republica o exigir,<br />

ou, o que é o mesmo, quando a pátria correr imminente<br />

perigo.<br />

Tão respeitáveis são os direitos pessoaes dos cidadãos, tão<br />

imperativa é a disposição do art. 72 da Constituição, que nos<br />

parece que o estado de sitio somente no caso de imminente<br />

perigo da pátria deve ser declarado.<br />

Se a aggressão de forças estrangeiras e a commoção interna,<br />

não chegão ao ponto de pôr a pátria em imminente perigo,<br />

podendo ser juguladas sem suspensão de garantias, não deve<br />

o poder <strong>publico</strong> lançar mão d'aquelle extraordinário recurso.<br />

Outra attribuição do poder executivo, não menos importante<br />

que as precedentes, é a de « indultar e commutar as penas<br />

nos crimes sujeitos á jurisdição federal ».<br />

Tratando das attribuições do poder legislativo, vimos que<br />

entre ellas está a de « commutar e perdoar as penas impostas<br />

por crime de responsabilidade aos funcclonarios federaes, e de<br />

conceder amnistia. ><br />

Convém notar as differenças entre essas attribuições e dar<br />

a razão d'ellas.


J6t<br />

E CONSTITUCIONAL 321<br />

O direito de amnistiar, isto é, de esquecer, de.aniquilar um<br />

facto criminoso e suas conseqüências, é da exclusiva competência<br />

do Congresso, e não pôde ser exercido pelo poder executivo<br />

( i ). Em geral, as amnistias são concedidas depois de<br />

commoções populares.<br />

N'essas occasiões tomando parte no movimento grande numero<br />

de pessoas, é impossivel graduar a culpabilidade de cada<br />

uma. Se se pretendesse applicar a justiça a todos, necessariamente<br />

se commetteria grande injustiça, seria o caso de — summum<br />

jus, summa injuria. Por isso a suprema autoridade intervém<br />

declarando amnistiados todos os compromettidos.<br />

A amnistia importa prohibição das autoridades administrativas<br />

ou judiciarias exrcerem vindicta legal contra os amnistiados.<br />

Esse acto do poder soberano não isenta os compromettidos<br />

de responderem pelas malversações praticadas contra particulares<br />

; ellas são sempre crimes, ainda quando praticadas em<br />

favor da mais justa das causas. Satisfazendo uma necessidade<br />

de ordem publica, a amnistia não deve offender os interesses<br />

privados ; por isso não isenta o revolucionário da obrigação de<br />

satisfazer o mal de que foi causa.<br />

O acto da amnistia não só perdoa a pena, se já teve lugar o<br />

julgamento, mas também extingue o delicto. Com razão, pois,<br />

a Constituição só ao poder legislativo conferio o supremo direito<br />

de amnistiar.<br />

Alem d'esse direito, conferio-lhe também o de < commutar<br />

e perdoar as penas impostas, por crime de responsabilidade,<br />

aos funccionarios federaes » Art 34 ns. 27 e 28.<br />

O direito, porém, concedido ao poder executivo de < indultar<br />

e commutar as penas nos crimes sujeitos á jurisdicção fede-<br />

( 1 ) Entretanto vimos o Vice-Presidente da Republica, em decreto de 21 de<br />

Abril de 18V2 « usando dos poderes extraordinários que lhe forão conferidos pelo<br />

Congresso Nacional, ( isto o, pela câmara dos deputados ) na moção de 21 de Janeiro<br />

de 1892» amnistiar os implicados nos movimentos sediciosos de Minas Geraes e de<br />

S. Paulo!<br />

A câmara dos deputados convertida em Congresso, podendo transferir de si<br />

para o executivo uma attribuição que a Constituição privativamente conferio ao Congresso<br />

Nacional e essa transferencia operada por uma moção, expediente desconhecido<br />

nas Republicas presidenciaes.,. Quanta anomalia ! V. o texto d'esse decreto<br />

no Diário Officiai de 23 de Abril de 1892.<br />

41


322 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

rai » (Art. 48 n. 6) refere-se aos crimes communs ( 1 ), exceceptos<br />

os dos ministros de Estado. Estes, tanto nos crimes<br />

communs, como nos de responsabilidade, respondem perante o<br />

Supremo Tribunal Federal. Art. 52 § 2. 0<br />

Não quer a Constituição que os crimes d'aquelles funccionarios<br />

possão depender da jurisdicção graciosa do poder executivo.<br />

Porque ?<br />

Os ministros de Estado exercem altas funcções políticas e<br />

administrativas sob a responsabilidade do Presidente, com o<br />

qual, se presume, vivem de perfeito accordo ; se dão conselhos<br />

ao Presidente, podem também recebel-os d'elle ; são, pois, uma<br />

como prolongação política do chefe do poder executivo.<br />

N'essas circumstancias, comprehende-se que o Presidente<br />

que indultasse ou commutasse as penas impostas a um ministro<br />

poderia ser suspeitado de fraqueza ou de connivencia. Para<br />

evitar essa suspeita, e porque o Presidente pode de certo modo<br />

ser cúmplice do ministro, não quiz a Constituição que elle podesse<br />

estender o direito de perdoar ás pessoas dos ministros,<br />

Essa excepção, opposta pela Constituição, é sábia, pois evita o<br />

escândalo do primeiro magistrado da nação isentar de castigo<br />

os seus protegidos e quiçá co-réos.<br />

A Constituição americana também dá ao Presidente da Republica<br />

o poder de moderar as penas e de agraciar nos crimes<br />

commettidos contra os Estados-Unidos, excepto nos crimes políticos<br />

(impeachment). Art. 2. 0 secç. 2. 0 § i.°<br />

O sábio commentador Story justifica essa excepção, dizendo<br />

que ella tem por fim tirar ao Presidente qualquer tentação de<br />

abuso de autoridade em delictos commettidos por altos funccionarios<br />

públicos. Como a accusação política ordinariamente se<br />

dá contra pessoas, que exercem cargos superiores no governo,<br />

é essencial que o Presidente não possa intervir obstando o inquérito<br />

dos actos d'esses altos funccionarios ( 2 ).<br />

( 1 ) Chamão-se de responsabilidade, o melhor seria denominal-os de funcção os<br />

Crimes praticados pelos funccionarios ou emprogados'<strong>publico</strong>s no exercício do seu<br />

emprego. 0 que distingue esses crimes dos outros, chamados communs, é serem<br />

praticados pelo cidadão em razão do seu cargo, do qual se serve para a pratica do<br />

acto qualificado crime. Esses crimes se achão especificados 110 <strong>ï</strong>ît. V do Código<br />

Penal.<br />

(2) Commentaries, t. 2, p. 323 § 1501.


Ibh<br />

E CONSTITUCIONAL 323<br />

II<br />

Precedentemente vimos em que consistem as relações do<br />

Presidente da Republica com o poder legislativo na formação<br />

das leis.<br />

Então dissemos que com o poder legislativo cooperava o<br />

executivo, mediante a sancção e promulgação das leis, e que<br />

o veto, que elle pôde oppôr ás resoluções do Congresso, era<br />

apenas suspensivo, e podia ser annullado por nova deliberação<br />

do Congresso e por maioria de dous terços de votos nas duas<br />

câmaras.<br />

Agora vamos ver de que modo aquelles dous órgãos da soberania<br />

nacional se communicão para dar vida e desenvolvimento<br />

ao organismo do Estado.<br />

No s}'stema de republica presidencial, nem o Presidente da<br />

Republica, nem os seus ministros tomão parte activa e directa<br />

nas deliberações do Congresso.<br />

Podendo succéder que as circumstancias do paiz exijão a<br />

reunião do Congresso, fora do tempo ordinário marcado pela<br />

Constituição, conferio esta ao Presidente da Republica o poder<br />

de « convocar o Congresso extraordinariamente » Art. 48 n. 10.<br />

Reunido o Congresso, ordinária ou extraordinariamente, o<br />

Presidente da Republica deve dar-lhe conta da situação do paiz,<br />

indicando-lhe as providencias e reformas urgentes em mensagem,<br />

que remetterá ao secretario do senado no dia da abertura<br />

da sessão legislativa. » Art. 48 n. 9.<br />

E' este o meio de communicação entre os dous poderes.<br />

Não tendo entrada no recinto das câmaras, o Presidente só<br />

pôde fallar-lhes em mensagem escripta, para expor a situação<br />

do paiz e suggerir as medidas que lhe parece deverem ser adoptadas<br />

pelo corpo legislativo ( 1 ).<br />

( 1 ) Os dous primeiros Presidentes dos Estados-Unidos, Washington e Janms<br />

Adams, forão em pessoa abrir o Congresso, com o fausto do rei inglez, e em exposição<br />

oral derão conta da situação do paiz, e as câmaras subseqüentemente responderão.<br />

Mas, o terceiro Presidente, Jefferson, ou por amor ã simplicidade republi'<br />

cana. como elle disse, ou por ser um pobre orador, como dizem os biographes, iniciou<br />

a pratica de enviar ao Congresso mensagem escripta, e ainda hoje assim se<br />

pratica. V. J. Bryce, American Commonwealth, t. 1. p. 53, e Walker loc. cit. p. 103.


324 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Para tomar conhecimento da mensagem presidencial deverão<br />

as duas câmaras reunir-se ?<br />

A Constituição não o diz e dos termos do artigo citado<br />

parece inferir-se não ser necessário a reunião em assembléa<br />

geral, como outr'ora se fazia por determinação clara e expressa<br />

da Constituição imperial. Entretanto no actual regimen se está<br />

praticando do mesmo modo. As mensagens presidenciaes são<br />

lidas ante as duas câmaras reunidas em assembléa geral.<br />

Alem das mensagens, pôde u Presidente entender-se com<br />

as câmaras por meio de seus ministros ; não que estes tenhão<br />

entrada e assento nas câmaras, mas podem conferenciar com as<br />

commissões parlamentares.<br />

Com effeito, segundo a Constituição < os ministros de Estado<br />

não poderão comparecer ás sessões do Congresso, e só se<br />

communicarão com elle por escripto, ou pessoalmente em conferências<br />

com as commissões das câmaras » Art. 51. Este artigo<br />

accrescenta, que os relatórios annuaes dos ministros serão dirigidos<br />

ao Presidente da Republica, e distribuídos por todos os<br />

membros do Congresso >.<br />

Nos Estados-Unidos só o ministro da fazenda ( secretary<br />

of the treasury ) tem relações directas com as câmaras, ás quaes<br />

dá pessoalmente ou por escripto, conforme a requisição que se<br />

lhe faz, informações sobre assumpto de sua repartição.<br />

São esses os meios constitucionaes de communicação entre<br />

o poder legislativo e o executivo. Mas, nada obsta que além<br />

dos referidos meios se adoptem outros que, sem contrariar a<br />

Constituição, possão ser úteis ao serviço <strong>publico</strong>, como se pratica<br />

nos Estados-Unidos, conforme já dissemos em outro lugar.<br />

III<br />

No systema adoptado pela nossa Constituição, o Presidente<br />

da Republica responde pelos crimes que pratica na gestão dos<br />

negócios do Estado.<br />

N'esse systema, nem os gabinetes são responsáveis, nem a<br />

câmara dos deputados pôde ser dissolvida. De sorte que, se se<br />

levanta um eonflicto politico entre o executivo e o legislativo*<br />

não ha solução ordinária possível ; força é esperar que o Presidente<br />

termine o seu mandato ou a câmara o d'ella. Só então?


E CONSTITUCIONAL 325<br />

mediante as urnas, a nação pronuncia a sua sentença sobre o<br />

conflicto suscitado.<br />

D'ahi inferem os defensores do parlamentarismo razões para<br />

condemnar o systema presidencial, secular nos Estados-Unidos<br />

do Norte, e transplantado para o Brazil pela Constituição de 24<br />

de Fevereiro de 1891.<br />

A França adoptou a Republica parlamentar, e por imitação<br />

da monarchia constitucional, ali o Presidente é irresponsável,<br />

salvo o caso de alta traição ; os ministros são responsáveis, e a<br />

câmara, mas não o senado, é dissoluvel: é o que se chama uma<br />

republica parlamentar, a favor da qual militão muitos e graves<br />

publicistas. Outros, porém, não inferiores nem em numero,<br />

nem em gravidade, pugnão pelo regimen republicano chamado<br />

presidencial.<br />

De parte a parte a parte ha prós e contras.<br />

Toda instituição humana tem defeitos essenciaes e inevitáveis,<br />

que acompanhão sempre o que J. de Maistre chama — a<br />

perfeição possível.<br />

Deixando de lado a theoria, vejamos o que a Constituição<br />

dispõe sobre a responsabilidade presidencial.<br />

« O Presidente dos Estados-Unidos do Brazil será submettido<br />

a processo e a julgamento, depois que a câmara declarar<br />

procedente a accusação, perante o Supremo Tribunal Federal<br />

nos crimes communs, e nos de responsabilidade perante o senado.<br />

Art. 53.<br />

< Paragrapho único. Decretada a procedência da accusação<br />

ficará o Presidente suspenso de suas funcções >.<br />

Não quiz a Constituição que os tríbunaes ordinários julgassem<br />

o primeiro magistrado da nação, nem nos crimes de responsabilidade,<br />

nem nos communs ; para uns e outros estabeleceu<br />

foro privilegiado ; n'isso andou bem, não obstante o principio<br />

do direito <strong>publico</strong> moderno — que todos são iguaes perante a<br />

lei.<br />

A eminente posição social do Presidente da Republica pedia<br />

que elle respondesse perante tribunaes igualmente elevados,<br />

como são o senado, constituido em tribunal de justiça e presidido<br />

pelo presidente do Supremo Tribunal Federal nos crimes<br />

de responsabilidade, e pelo mesmo Tribunal Federal nos crimes<br />

communs.<br />

Nos Estados-Unidos também o senado é o tribunal compe-


326 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tente para julgar o Presidenta da Republica. E commcntando<br />

o ponto referente á presidência do senado, quando constituido<br />

em tribunal de justiça, Story diz que « seria desacerto que n'aquellas<br />

condições fosse o senado presidido pelo Vice-Presidente<br />

da Republica, o qual de jure é o presidente do senado ; porque<br />

facilmente se poderia suppôr n'elle o desejo de substituir o<br />

Presidente da Republica, concorrendo para a condemnação do<br />

primeiro magistrado da nação ( I ).<br />

A disposição do paragrapho único do citado artigo naturalmente<br />

desperta a attenção do leitor.<br />

A suspensão do exercício de um cargo deve ser considerada<br />

como um castigo, uma pena imposta a algum crime. Mas<br />

a existência de um crime só o processo pôde provar, assim como<br />

a pena só pôde ser imposta apoz o julgamento.<br />

Ora, o processo e o julgamento, como dispõe o art. 53, só<br />

podem dar-se depois que a câmara declarar a procedência da<br />

accusação. Como, pois, castigar antes que o processo mostre o<br />

crime, e o juiz julgue ?<br />

Porque a simples declaração de procedência da accusação<br />

ha de ter como conseqüência a pena da suspensão de funcções ?<br />

A declaração da procedência de accusação eqüivale a<br />

dizer — seja processado e julgado — e antes do processo e do<br />

julgamento se impõe uma pena !<br />

Aquella declaração, senão é mera autorisação para que o<br />

Presidente possa ser processado e julgado no tribunal competente,<br />

não passa de uma simples presumpção de crime. E será<br />

jurídico castigar por simples presumpção ?<br />

Nos é impossível descobrir nexo lógico-jurídico entre o<br />

art. 53 e o seu paragrapho.<br />

Não podemos, portanto, louvar a disposição do citado paragrapho.<br />

E' sabido que as accusações políticas são sempre eivadas<br />

de espirito partidário ; a imparcialidade desapparece diante do<br />

espirito de facção, da intolerância dos partidos e dos arrebatamentos<br />

das rivalidades.<br />

N'estas condições, nada tão fácil, como obter da maioria<br />

apaixonada de uma câmara de deputados um decreto de simples<br />

( 1) Commentaries, t. 1. p. § 777.


E CONSTITUCIONAL 3:27<br />

accusação contra um Presidente, o qual por esse único facto,<br />

fica desde logo suspenso de suas funcções, e portanto triumphante<br />

a maioria facciosa e desconsiderado o chefe da nação !<br />

Terrível arma nas mãos de uma facção dominante !<br />

Mas sábia e previdente é, senão a Constituição, pelo menos<br />

a pratica americana.<br />

Só á câmara dos deputados dá aquella Constituição o poder<br />

de impeachment (Art. I.° secç. 2.a). Mas não obstante a câmara<br />

julgar procedente a accusação, o Presidente continua no<br />

exercício de suas funcções, até que perante o senado elle seja<br />

julgado criminoso, e somente então é castigado. Art. 2. 0<br />

secç. 4.*<br />

O Presidente e o Vice-Presidente, diz Pomeroy, não podem<br />

ser suspensos de suas funcções por um acto do Congresso,<br />

porque o seu cargo tem um período fixado pela Constituição,<br />

e só o pôde perder em virtude de sentença : a câmara<br />

accusa simplesmente ; só o senado sentencia ( I ).<br />

Durante toda a sua vida política de mais de um século, a<br />

União americana só uma vez praticou o julgamento politico do<br />

Presidente ; foi o caso de Johnson em 18Ó7. Ora, a câmara dos<br />

representantes julgando em 24 de Fevereiro procedente a accusação,<br />

não obstante, o aceusado conservou-se no pleno exercício<br />

de suas funcções até il de Maio, quando o senado<br />

pronunciou seu juizo absolutorio.<br />

A procedência ou improcedencia da accusação contra o<br />

Presidente pôde ser declarada por simples maioria na câmara<br />

dos deputados ; mas a sentença condemnatoria do senado só<br />

pôde ser proferida por dons terços dos membros presentes.<br />

Art. 33 § 2.<br />

Uma vez que a Constituição dispôz que c decretada a procedência<br />

da accusação, ficaria o Presidente suspenso de suas<br />

funcções > seria para desejar que ella tivesse, pelo menos,<br />

exigido votação de dous terços para esse effeito. Considerar<br />

bastante a simples maioria, e com um pequeno numero de presentes,<br />

é deixar o primeiro magistrado da nação demasiadamente<br />

exposto a qualquer conspiração parlamentar.<br />

Nos Estados Unidos também a Constituição não exige<br />

( 1 ) Constitutional Law, p. Gil § 728.


328 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

votação de dous terços para a câmara decretar a procedência<br />

da accusação ; diz somente que ella terá o poder de impeachment.<br />

Art. i.° secç. 2."<br />

Mas ali a simples decretação de accusação não acarreta<br />

pena alguma ao Presidente.<br />

O principio geralmente admittido nos tribunaes é que a<br />

simples maioria decide. Qual, pois, a razão de ter a nossa<br />

Constituição, seguindo a dos Estados Unidos (Art. I." secç. 3.*)<br />

exigido a maioria excepcional de dous terços para a condemnação<br />

?<br />

Commentando o citado artigo da Constituição americana,<br />

Story diz :<br />

« Póde-se pensar que a verdadeira razão d'essa disposição<br />

foi assegurar a imparcialidade do juizo, e impedir que os funccionarios<br />

fossem sacrificados ao primeiro resentimento popular,<br />

ou á predominância de um partido. Se a simples maioria bastasse<br />

para condemnar, poderia succéder que, em tempo de<br />

commoções populares, a influencia da câmara dos deputados<br />

seria irresistível. O único freio praticavel era, pois, exigir o<br />

assentimento dos dous terços dos membros do senado ; essa<br />

grande maioria indica grande conformidade de opiniões e de<br />

interesses, e essa conformidade, só se pôde dar no caso de ser<br />

o crime evidente, ou pelo menos de ser a innocencia apenas<br />

presumivel.<br />

* No direito commum não só se presume a innocencia, até<br />

prova em contrario, mas até a unanimidade do jury é indispensável<br />

para condemnar.<br />

« No julgamento politico tomou-se partido médio entre a<br />

unanimidade e a simples maioria. Se o crime não se apresenta<br />

provado aos olhos dos dous terços dos membros de uma assembléa,<br />

distincta por seus talentos e saber, gosando das sympathias<br />

do povo e representante dos Estados, principalmente<br />

depois de escrupulosa investigação dos factos, deve-se reconhecer<br />

que as provas são muito fracas para extrahir uma condemnação<br />

; e n'este caso, conforme a simples noção de justiça,<br />

é melhor deixar passar o criminoso, do que punir o innocente,<br />

que aliás bem pôde ser victima do ódio dos partidos. > ( i )<br />

( 1 ) Commentaries, í. 1 p. 551 § 779.


E CONSTITUCIONAL<br />

Segundo a Constituição ( Art. 54 ) são crimes de responsabilidade<br />

os actos do Presidente da Republica, que attentarem<br />

contra :<br />

i.° A existência política da União ;<br />

2. 0 A Constituição e a fôrma do governo federal;<br />

3." O livre exercício dos poderes políticos;<br />

4. 0 O goso e exercício legal dos direitos políticos ou individuaes<br />

;<br />

5. 0 A segurança interna do paiz ;<br />

6.° A probidade da administração ;<br />

7. 0 A guarda e emprego constitucional dos direitos públicos<br />

;<br />

8.° As leis orçamentarias votadas pelo Congresso ;<br />

N'esse mesmo art. 52 §§ i.°, 2. 0 e 3.° a Constituição estabe*<br />

leceu que esses delictos serião definidos em lei especial, e que<br />

outra lei regularia a accusação, o processo e o julgamento, e<br />

que ambas essas leis serião feitas na primeira sessão do primeiro<br />

Congresso.<br />

Que pressa de ter a espada da... justiça suspensa sobre a<br />

cabeça do Presidente da Republica !<br />

Os Estados Unidos, cuja existência politica data de mais<br />

de um século, ainda não fizerão uma lei de responsabilidade<br />

presidencial ; também não a tem até hoje a Inglaterra, a França,<br />

a Italia e a Bélgica para punição dos ministros responsáveis.<br />

O Brazil desde 1827 teve a sua lei de 15 de Outubro,<br />

a qual ficou sem applicação até o ultimo dia da monarchia.<br />

A lei especial que definio os delictos presidenciaes não se<br />

fez esperar. Ella ahi está e tem a data de 8 de Janeiro de 1892.<br />

Publicistas distinctos observão que é difficil, se não impossivel,<br />

uma lei de responsabilidade politica, porque se fôr redigida<br />

analyticamente, não pôde enumerar todos os casos em que<br />

o alto funccionario pôde delinquir, e se fôr formulada syntheticamente<br />

tornar-se-ha vaga e perigosa. < Tenho sido sempre<br />

do numero d'aquelles, diz Rossi, que considerão como desnecessária<br />

e inutil uma lei definindo a responsabilidade ministerial<br />

( 1 ). ><br />

Como quer que seja, o preceito de nossa Constituição<br />

(1)1). Cônstit. t. 4, p. 384.<br />

42<br />

329


33o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

(Art. 53 §§ i.° e 2. 0 ) está realisado. Como cumprirão o preceito<br />

os nossos legisladores ordinários, produzindo a lei de 8<br />

de Janeiro de 1892 ?<br />

Seguindo o methodo analytico, fizerão uma lei casuística,<br />

e de certo modo uma lei de occasião.<br />

Desejosos de que o accusado não podesse em caso algum<br />

escapar-se, chegarão a definir casos impossíveis, ou pelo menos<br />

improváveis.<br />

Descerão até a degradante supposição de um Presidente<br />

de Republica capaz de receber donativo para praticar ou deixar<br />

de praticar algum acto de officio ( art. 48 ) ; de exigir gratificação<br />

ou prêmio para cumprir o seu dever ( art.' 47 ) ; de ser<br />

incontinente <strong>publico</strong>, jogador e ebrio (art. 48). E como se<br />

ainda não bastasse, no art. 43 se considera crime de responsabilidade<br />

do Presidente « usar mal de sua autoridade commettendo<br />

excessos ou abusos não especificados na lei, » Não ha<br />

como escapar ! ( 1 )<br />

Encarecendo as grandes difficuldades do julgamento politico<br />

do Presidente da Republica, o sábio Story diz : « O poder<br />

de velar sobre as funcções presidenciaes, funcções delicadas,<br />

importantes e que interessão altamente a existência política<br />

e a reputação de homens incumbidos da administração dos<br />

negócios públicos, esse poder não deve ser nem tão repressivo<br />

e ameaçador, que arrede da administração do Estado homens<br />

conscienciosos ou modestos, nem tão fraco, que deixe os delinqüentes<br />

na indifferença. Em um governo de eleição é muito<br />

difficil achar um justo meio, principalmente se nos lembrarmos<br />

que os ambiciosos e intrigantes não deixarão de fazer de accusações<br />

violentas meio de se collocarem no lugar dos accusados.<br />

( 2 )<br />

Não ha duvida que é difficil, e até perigoso processar e<br />

julgar um Presidente de Republica, cercado de tantos recursos<br />

e de tão grandes poderes constitucionaes ; por isso Rossi, diz<br />

que esses processos são os actos mais graves do systema representativo,<br />

são uma espécie de « revolução política. »<br />

( 1 ) Essa lei toi votada por dous terços, porque o Presidente da Republica lhe<br />

oppoz o seu velo por julgal-a inconstitucional.<br />

(2) Commentaries, t. 1. p. 530 § 747.


E CONSTITUCIONAL<br />

Considerar crime o que muitas vezes não é senão um erro,<br />

é recurso da intolerância política, é applicação d'aquella inclinação<br />

que nos leva a aborrecer áquelles que não pensão como<br />

nós.<br />

A responsabilidade presidencial a mais efficaz é a de ordem<br />

moral. Para um Presidente patriota e honesto é inutil uma<br />

lei repressiva, para o ambicioso e desfaçado é insuficiente.<br />

Os crimes presidenciaes, como todos os outros crimes,<br />

além do mal moral que produzem, podem também causar damnos<br />

materiaes, apreciáveis em dinheiro ; estes exigem reparação,<br />

á qual o criminoso é obrigado.<br />

Tratando do senado, como tribunal de justiça, já vimos<br />

que, segundo a Constituição, esse tribunal não pôde impor ao<br />

Presidente da Republica outra pena além da perda do cargo<br />

e a incapacidade de exercer qualquer outro. Mas se é convencido<br />

do crime imputado, além d'aquella pena, tem que responder<br />

perante os tribunaes ordinários. E' aqui que elle pôde<br />

soffrer penas que affectem á sua pessoa e bens. Até ali respondeu<br />

como administrador ; e a lei ficou satisfeita com ter<br />

elle deixado a administração ; agora vai responder como simples<br />

cidadão, si também delinquio perante o direito commum.<br />

331


JC3-<br />

CAPITULO XV<br />

DOS MINISTROS DE ESTADO. OS GABINETES NAS REPUBLICAS<br />

PRESIDENCIES E NAS MONARCHIAS CONSTITUCIONAES.<br />

RESPONSABILIDADE MINISTERIAL. PARLAMENTARISMO.<br />

I<br />

Parece reminiscencia monarchica ter a Constituição chamado<br />

ministros de Estado aos auxiliares e conselheiros particulares<br />

do Presidente da Republica.<br />

O projecto de Constituição da commissão, nomeada pelo<br />

governo provisório, denominou secretários do governo áquelles<br />

auxiliares.<br />

Simplesmente secretários são elles chamados nos Estados<br />

Unidos, cuja Constituição falia dos mesmos secretários apenas<br />

accidentalmente, dizendo que o Presidente pôde requisitar por<br />

escripto a opinião do chefe de cada um dos departamentos<br />

executivos ( principal officier in each of the executive departments,<br />

art. 2.0 secç. 2. a ).<br />

Nossa Constituição tem um capitulo especial para os ministros<br />

de Estado.<br />

Ahi se dispõe que « o Presidente da Republica é auxiliado<br />

pelos ministros de Estado, agentes de sua confiança, que lhe<br />

subscrevem os actos, e cada um d'elles presidirá a um dos<br />

ministérios em que se dividir a administração federal.» Art. 49.<br />

Todo o poder executivo incumbe ao Presidente da Republica<br />

; este é o centro de todas as funcções administrativas, e<br />

exclusivamente responsável pelo bom desempenho d'essas funcções.<br />

Mas sendo impossivel que por si só desempenhe a<br />

enorme massa de serviços que exige o exercício do poder execu-


334<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tivo, é necessário que tenha agentes subalternos que o auxiliem.<br />

D'esses agentes os principaes são os ministros de Estado, chefes<br />

das grandes repartições, por onde correm todos os serviços<br />

da administração federal.<br />

Posto que o Presidente seja pessoal e exclusivamente responsável<br />

pelos actos do poder executivo, todavia a Constituição<br />

exige que esses actos sejão subscriptos pelos ministros.<br />

Os ministros, diz a Constituição, « não são responsáveis<br />

perante o Congresso, ou perante os tribunaes pelos conselhos<br />

dados ao Presidente da Republica » Art. 52.<br />

Sendo assim, porque razão serão obrigados a subscrever os<br />

actos do Presidente ?<br />

Nas monarchias constitucionaes, ou nas republicas parlamentares,<br />

os ministros sendo responsáveis, e o chefe do Estado<br />

irresponsável, comprehende-se bem a necessidade da referenda<br />

ministerial nos actos do executivo.<br />

O soberano sendo inviolável, e por ficção legal não podendo<br />

fazer mal, é imprescindível a responsabilidade ministerial. « Os<br />

conselheiros da coroa, dizia Dupin, respondem por todo mal<br />

feito pelo poder executivo, a modo dos para-raios, que attrahem<br />

a si a electricidade nas tempestades, preservando a fronte<br />

soberba dos monumentos. »<br />

Esses ministros não são, meros executores das ordens e<br />

vontades do soberano ; referendando livremente os actos d'elle,<br />

tornâo-os seus.<br />

Esta é que é a razão da responsabilidade ministerial.<br />

No regimen parlamentar os actos do soberano não tem<br />

existência juridico-constitucional sem a assignatura dos ministros<br />

; mediante esta, o ministro approva e acceita o acto livremente<br />

e o torna seu, e assim juntamente responde por elle no<br />

caso de abuso.<br />

A responsabilidade ministerial é correlativo necessário da<br />

inviolabilidade do soberano constitucional.<br />

Mas no nosso actual regimen presidencial o único responsável<br />

pelos actos do poder executivo é o Presidente da Republica.<br />

A mesma Constituição diz que os ministros não são<br />

responsáveis pelos conselhos que derem ao Presidente.<br />

Mas então para que são obrigados a subscrever-lhe os<br />

actos ?<br />

Tratando adiante da responsabilidade ministerial, contida


m<br />

E CONSTITUCIONAL 335<br />

nos §§ i.° e 2.' do art. 52, veremos qual a razão d'aquella exigência<br />

constitucional.<br />

Nomear e demiítir livremente os ministros de Estado é<br />

prerogativa constitucional do Presidente da Republica. Art. 48<br />

n. 2.<br />

Nem se comprehenderia proclamar a responsabilidade pessoal<br />

do Presidente, conceder-lhe agentes que o auxiliem na<br />

administração federal, e depois coarctar-lhe a liberdade de<br />

nomear e demittir esses agentes. E' por conseguinte muito<br />

1 acionai aquella disposição.<br />

Outro tanto, porém, não se pode dizer da Constituição<br />

americana, que, n'esse particular, é evidentemente contradictoria<br />

; pois, admittindo a responsabilidade pessoal do supremo<br />

magistrado da nação, não lhe dâ a liberdade plena de escolher<br />

os seus conselheiros immediatos.<br />

Elle os nomea, é verdade ; mas essa nomeação fica dependente<br />

da approvação do senado, como a de outros agentes ; e<br />

ainda não é liquido, se elle os pôde demittir livremente.<br />

E' certo que essa limitação é mais theorica, do que real ;<br />

porque ordinariamente o senado acceita as nomeações feitas<br />

pelo Presidente dos secretários ou ministros e de outros elevados<br />

funccionarios. ( 1 )<br />

Esse ponto do direito constitucional americano tem sido o<br />

objecto de sensata critica de publicistas distinctos.<br />

Referindo-se a essa disposição da Constituição americana,<br />

Boutmy diz que, nem ao menos é sobre a composição de todo<br />

o ministério que o senado se pronuncia. Os nomes e as respectivas<br />

funcções são individualmente sujeitos á sua approvação ;<br />

de modo que elle pode acceitar um e regeitar outro, desconcertando<br />

assim todas as combinações do poder responsável.<br />

Não é isso um controle politico, a fallar a verdade ; é antes<br />

uma questão de pessoas com todas as suas minúcias ; e se tanto<br />

(1)0 senado em 1833 recusou, por hostilidade ao Presidente Jackson, approvar<br />

a nomeação de Van Buren para ministro plenipotenciario em Londres; e em<br />

1867, por opposição ao Presidente Johnson, também não acceitou a demissão do ministro<br />

da guerra Stanton, demissão que deu lugar ao impmchmeM de Johnson. V.<br />

Chambrun loc. cit. p. 327 e De Noailles cit. t. 2. p. ií e seguintes.


336 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

basta para empecer, contrariar e enervar, não é sufficiente para<br />

o exercido de alta e salutar influencia (i )■.<br />

Nossa Constituição veda aos ministros de Estado a accumulação<br />

do exercício de outro emprego ou funcção, e os incompatibilisa<br />

para a eleição de Presidente ou Vice­Presidente da<br />

União, de deputado e de senador; e accrescenta que o deputado<br />

ou senador que acceitar o cargo de ministro de Estado,<br />

perderá o mandato, e não poderá ser reeleito na eleição que se<br />

fizer para a vaga que deixou. Art. 50 paragrapho único.<br />

Agentes da exclusiva confiança do Presidente, que os nomea<br />

e demitte livremente, os ministros mantém com o chefe do Estado<br />

relações puramente pessoaes ; queremos dizer, que elles<br />

dependem exclusivamente do Presidente. Nenhuma demonstração<br />

hostil do Congresso os attinge ; podem viver contra a<br />

vontade das câmaras, seja bôa ou má a sua administração ; esteja<br />

o Presidente bem com elles, e sua existência ministerial não<br />

corre perigo.<br />

Podem, é verdade, ser objecto de accusação criminal por<br />

parte da câmara, e condemnados pelo senado nos crimes connexos<br />

com os do Presidente. Mas é esse um caso excepcional,<br />

e um tanto fora da vida ordinária dos ministros. Regularmente<br />

constituem apenas um conselho privado do Presidente, antes do<br />

que um conselho propriamente politico ; são os chefes das<br />

grandes repartições federaes e consultores do poder executivo.<br />

Suas relações com o Congresso se pode dizer que são<br />

nullas. « Os ministros de Estado, diz a Constituição, não poderão<br />

comparecer ás sessões do Congresso, e só se communicarão<br />

com elle por escripto, ou pessoalmente em conferências<br />

com as commissões das Câmaras. Os relatórios annuacs dos<br />

ministros serão dirigidos ao Presidente da Republica e distribuídos<br />

por todos os membros do Congresso. Art. 57.<br />

N'isto consistem as relações dos ministros com as câmaras,<br />

Nos Estados­Unidos a mesma cousa se dá, salvo o que ficou<br />

dito relativamente ao secretario da íhesouraria.<br />

Mas ali pensão muitos publicistas que se deve dar assento<br />

aos ministros no Congresso ; e em 18S1, sobre proposta do senador<br />

Pendleton, uma commissão de oito senadores relatou no<br />

( 1 ) Mudes de Droit Constitutionnel, p. 139,


E CONSTITUCIONAL 337<br />

sentido de se dar assento ( sem direito de voto ) em ambas as<br />

casas do Congresso ao gabinete de ministros, comparecendo<br />

em dias alternados em uma e outra câmara, A commissão sustentou<br />

que isso não era inconstitucional. Nada, porém, se deliberou<br />

até hoje ( i ).<br />

Nos governos livres da Europa, porém, o gabinete, isto é,<br />

o corpo dos ministros, tem com o parlamento relações mais intimas<br />

e de ordem política.<br />

II<br />

Em sentido politico gabinete é o conselho dos ministros de<br />

um Estado parlamentarmente organisado. Essa corporação,<br />

tendo como cabeça o soberano, governa o Estado.<br />

Em regra, os membros do gabinete sahem das câmaras do<br />

parlamento, e o gabinete é considerado como uma commissão<br />

d'esté.<br />

Nossa Carta Constitucional de 1825 dispunha (art. 29) que<br />

« os senadores e deputados poderião ser nomeados para o cargo<br />

de ministro de Estado. » Essa disposição, que parecia ser uma<br />

excepção, na pratica converteu-se em regra ; só poucas vezes<br />

tivemos ministros extra-parlamentares.<br />

O direito de nomeal-os, em these, pertence ao soberano,<br />

mas na realidade elle não exerce livremente esse direito ; o seu<br />

direito consiste em designar o leader, o chefe do partido que<br />

gosa da confiança da maioria da câmara dos deputados ; e recebendo<br />

do soberano a incumbência de compor um gabinete,<br />

elle tem plena liberdade de escolher seus companheiros no seio<br />

das duas câmaras, e é considerado primeiro ministro.<br />

O premier é o órgão do soberano perante seus collegas ;<br />

representa o governo perante o parlamento e dirige os negócios<br />

da publica administração : de facto é o chefe do poder executivo,<br />

e é a um tempo leader do parlamento e do seu partido.<br />

( 1 ) V. J. Brycn, loc. cit. t. 1. p. 82. Também, durante a guerra da secessS,,<br />

os Estados confederados introduzirão em sua Constituição, votada a 11 de Março de<br />

ISGl, a seguinte disposição : « 0 Congresso poderá, por lei ordinária, conceder aos<br />

chefes dos departamentos do executivo assento nas duas câmaras, com direito de discutir<br />

as medidas de seus respectivos departamentos. » Com a confederação desappareceu<br />

essa Constituição. Nos primeiros tempos do governo de Washington os secretários<br />

occasionalmente fallavão no Congresso ; mas pouco durou essa pratica.<br />

43


338 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Não tem autoridade legislativa, não faz leis, mas nenhuma<br />

se faz sem sua acquiescencia, e de ordinário é elle que prepara<br />

e apresenta os projectos de lei.<br />

O gabinete sendo uma commissão da câmara, sua existência<br />

depende d'ella. O soberano lhe dá a vida, mas é a câmara<br />

que lhe a conserva.<br />

Apenas a câmara retira a sua confiança ao gabinete, este<br />

demitte-se.<br />

E' verdade que em casos excepcionaes, se ha conflicto<br />

entre o gabinete e a câmara, o soberano pôde preferir a conservação<br />

do ministério á existência da câmara, e n'este caso dissolve<br />

o parlamento e consulta o paiz, mediante eleição, á cerca<br />

do conflicto.<br />

Seja, porém, como fôr, em'ultima analyse é sempre a confiança<br />

do parlamento o elemento essencial da existência dos<br />

gabinetes. Ao parlamento dão os ministros conta da administração<br />

do paiz. E' o que os inglezes chamão — accountability<br />

dos ministros. Do parlamento recebe o gabinete a approvação<br />

ou reprovação, a vida ou a morte.<br />

Eis aqui, em summa, o que é um gabinete nas monarchias<br />

constitucionaes ( i ).<br />

Nas republicas presidenciaes o gabinete é totalmente différente,<br />

e só por imitação se lhe dá esse nome.<br />

Nossa Constituição não falia de gabinete, nem de ministério<br />

( palavras synon}'mas ), mas de ministros de Estado, a reunião<br />

dos quaes se chama ministério.<br />

Creando os ministros de Estado, ella os priva de todos os<br />

caracteres dos ministros das monarchias constitucionaes, pois,<br />

como já vimos, l.° elles não podem comparecer ás câmaras,<br />

2.° como conseqüência, não podem ser membros d'ellas, 3.° são<br />

irresponsáveis politicamente perante o Congresso. Por conseguinte<br />

não constituem, em sentido parlamentar, ministério ou<br />

gabinete.<br />

( 1 ) Na Inglaterra, berço das monarchias constitucionaes, os gabinetes existem<br />

de facto desde muitos aimos, mas até hoje carecem de existência legal. Em<br />

1851 uma commissão dos communs tendo-se servido em um relatório da expressão<br />

ministros do gabinete, a. câmara mandou riscal-a, porque a Constituição não conhecia<br />

esses funccionurios. Macauley diz que o gabinete 6 « uma instituição desconhecida<br />

do paiz, uma organisação política de que nenhum estatuto faz menção. » V. Fran<br />

queville, obra cit, t. 1 p. 15.


E CONSTITUCIONAL<br />

339<br />

A Constituição dos Estados Unidos do Norte não falia de<br />

ministros, nem de ministério, e menos de gabinete. Só nos<br />

livros dos publicistas se encontrão essas expressões ; tão grande<br />

é o curso que ellas tem na linguagem constitucional moderna.<br />

Gabinete, como um corpo de conselheiros, é instituição<br />

extra-constitucional no nosso systema de governo, diz Cooley.<br />

O Presidente, e não o gabinete, é responsável por todas as<br />

medidas de administração ; se a lei faz dos secretários chefes<br />

dos dep irt-unentos, todavia elles são apenas agentes do poder<br />

executivo do Presidente. Entre o gabinete do systema constitucional<br />

da Inglaterra e do nosso, accrescenta o mesmo escriptor,<br />

passão as seguintes differenças : i.° ali o gabinete é responsável,<br />

e tudo o que a coroa faz, suppõe-se feito por elle; aqui<br />

o único responsável é o Presidente ; 2.° ali ha no gabinete um<br />

premier, aqui não, ainda que o secretario de Estado seja geralmente<br />

considerado como o principal membro do ministério ;<br />

3.° ali é necessário que o gabinete esteja de accôrdo com a casa<br />

dos communs em todos os negócios importantes; aqui não se<br />

requer esse accôrdo com nenhuma das casas do Congresso ;<br />

4.° finalmente, aqui nenhum ministro pôde ter assento no corpo<br />

legislativo, ali tem ( 1 ).<br />

III<br />

O grande principio de direito <strong>publico</strong>, que estabelece a<br />

igualdade legal entre os cidadãos, tem sido levado modernamente<br />

ás suas ultimas conseqüências. Passou o tempo dos<br />

privilégios.<br />

Em virtude d'aquelle principio, todo funccionario, desde<br />

o de mais infima posição até o da mais elevada, incorre em<br />

responsabilidade pelos actos qualificados crimes na lei. O artigo<br />

82 da nossa Constituição diz : « Os funccionarios públicos são<br />

estrictamente responsáveis pelos abusos e omissões em que<br />

incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência<br />

ou negligencia em não responsabilisarem effectivamente<br />

os seus subalternos. »<br />

Ora, os ministros de Estado são indubitavelmente func-<br />

i*o<br />

( 1 ) Nota ao g 1404 de Stooy.


340 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cionarios públicos, logo respondem pelos abusos e omissões<br />

em que incorrerem no exercicio de seus cargos.<br />

Eis aqui o principio da responsabilidade dos ministros ;<br />

a respeito da qual a Constituição dispõe o seguinte :<br />

« Os ministros de Estado não são responsáveis perante o<br />

Congresso, ou perante os tribunaes, pelos conselhos dados ao<br />

Presidente da Republica.<br />

§ i.° Respondem, porém, quanto aos seus actos, pelos<br />

crimes qualificados em lei.<br />

§ 2.° Nos crimes communs e de responsabilidade serão<br />

processados e julgados pelo Supremo Tribunal, e nos connexos<br />

com os do Presidente da Republica, pela autoridade competente<br />

para o julgamento d'este. Art. 52.<br />

Não são responsáveis pelos conselhos que derem ao Presidente,<br />

e é rasoavel.<br />

Com effeito, quem dá um simples conselho, não contrahe<br />

obrigação alguma, nem civil, nem penal, tem apenas, mediante<br />

o conselho, mera participação intellectual no acto. O conselho<br />

não obriga ao aconselhado. O conselheiro não é um mandante,<br />

não tem interesse no acto aconselhado ; o agente pratica<br />

o acto livremente por seu interesse e utilidade. Portanto,<br />

é justo que só o agente do acto responda por elle.<br />

Chegando ao ponto da responsabilidade dos ministros<br />

cumpre distinguir as espécies de responsabilidade, para conhecer<br />

qual a em que elles incorrem.<br />

A responsabilidade pôde ser política, moral, penal e civil.<br />

A responsabilidade política propria dos ministros consiste na<br />

obrigação de dar conta ao parlamento dos actos ministeriaes.<br />

No systema parlamentar os ministros estão sempre sob a<br />

fiscalisação dos parlamentos, que manifestão-lhe a sua confiança<br />

ou desconfiança. No primeiro caso, conservão-se os ministros<br />

em seus cargos, no segundo retirão-se mediante voto de censura<br />

e de desconfiança dos representantes immédiates da nação.<br />

No desenvolvimento moderno da vida constitucional, esta<br />

é a responsabilidade ordinária dos ministros, nas monarchias e<br />

republicas parlamentares.<br />

Mas, nas republicas presidenciaes não ha responsabilidade<br />

ministerial em materia política. Os ministros são simples agentes<br />

do Presidente, e não commissão da câmara, da qual são<br />

independentes.


M<br />

E CONSTITUCIONAL 34I<br />

Portanto, não é essa a responsabilidade dos nossos ministros,<br />

nem a ella se refere a Constituição nos §§ i.° e 2° do<br />

citado art. 52.<br />

A responsabilidade moral concerne á pratica do mal moral,<br />

e se traduz nos remorsos da propria consciência, ou na censura<br />

da opinião publica ou da historia. D'essa responsabilidade<br />

ninguém está isento. Também não é d'ella que aqui se trata.<br />

A responsabilidade penal ou criminal consiste na punição<br />

dos crimes previstos e especificados em lei, como a traição><br />

a peita.<br />

Finalmente a civil consiste na obrigação de uma reparação<br />

pecuniária por damno causado a alguém. Esta responsabilidade<br />

pode acompanhar a penal, sendo o delinqüente, além das penas<br />

em que incorre, obrigado também á reparação do damno causado<br />

ao offendido.<br />

A' responsabilidade penal e á civil estão sujeitos os ministros<br />

; é d'ella que cogita a Constituição. A' pena e á reparação<br />

do damno, estão obrigados os ministros, como todos os cidadãos.<br />

Posto que a responsabilidade penal tenha como effeitos<br />

a reparação e a pena, todavia pôde succéder que só caiba a<br />

reparação, como quando o acto ministerial causa ao Estado, ou<br />

ao particular um damno simplesmente imputavel á negligencia<br />

do ministro, sem que haja um crime qualificado em lei. Pelo<br />

contrario, pôde acontecer que só tenha lugar a pena, sem a<br />

reparação, como quando ha violação da lei, sem damno materialmente<br />

apreciável, como no caso do 'ministro usurpar pode"<br />

res, sem tornar-se concussionario, ou peculatario.<br />

Um ministro de Estado é um ser livre, tem intelligencia e<br />

vontade ; não é portanto um simples e cego executor da vontade<br />

do Presidente da Republica ; este pôde demittil-o, mas<br />

não pôde obrigal-o a subscrever um acto arbitrário e illegal ;<br />

pôde sempre dizer — não subscrevo, porque a lei me prohibe.<br />

Portanto, a sua assignatura nos actos presidenciaes, revela<br />

a sua livre e espontânea cooperação, e n'este caso é justo que,<br />

com o Presidente, responda pelo acto, quando criminoso, do<br />

qual é co-participante.<br />

Nos crimes connexos com os do Presidente da Republica,<br />

diz a Constituição, que os ministros serão processados e julgados<br />

pela mesma autoridade competente para processar e julgar


342 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

o Presidente da Republica, isto é, pelo Supremo Tribunal<br />

Federal nos crimes communs, e pelo senado nos de responsabilidade.<br />

Quaes são esses crimes connexos ?<br />

Os criminalistas distinguem a connexidade da cumplicidade.<br />

Dizem connexos os crimes que tem um laço commum<br />

ligando a existência de um á do outro. Logo a connexidade<br />

suppõe mais de um delicto, quer commettido por uma só pessoa,<br />

quer por mais de uma. Na cumplicidade ha um só crime,<br />

e mais de um co-participante. Na connexidade ha pluralidade<br />

de crime, na cumplicidade ha unidade de crime e pluralidade<br />

de agentes ( i ).<br />

Figuremos um caso de connexidade.<br />

O Presidente da Republica, violando a Constituição, baixa<br />

um decreto de banimento contra um cidadão e o ministro referenda<br />

o acto. Na occasião de executar-se a ordem illegal, o<br />

cidadão violentado resiste e mata. Aqui temos dous delictus<br />

connexos, sendo a existência de um dependente da do outro, e<br />

ao mesmo tempo dous delinqüentes.<br />

Mas, a connexidade, de que falia a Constituição, será essa<br />

mesma, de que tratão os livros dos criminalistas ? Ou será a<br />

mesma cumplicidade ?<br />

A Constituição, no § l.° do art. 52 diz que os ministros respondem<br />

pelos seus actos, e no § 2. 0 que também respondem<br />

pelos crimes connexos com os do Presidente da Republica.<br />

Quando o acto criminoso é puramente ministerial ( acto<br />

seu ) o ministro é processado e julgado pelo Supremo Tribunal,<br />

seja o crime commum, ou seja de responsabilidade ; mas quando<br />

o acto criminoso é connexo com o do Presidente da Republica,<br />

a jurisdicção varia ; se o crime é commum, é julgado pelo<br />

mesmo Supremo Tribunal, se é de responsabilidade, é julgado<br />

pelo senado.<br />

Portanto, segundo a Constituição, o ministro pratica actos<br />

exclusivamente seus e actos conjunetos ou connexos com os do<br />

Presidente da Republica. Esta ultima espécie de actos é presidencial,<br />

são actos do Presidente, mas, nos termos da Constituição,<br />

art. 49, os ministros os subscrevem.<br />

[ 1 ) Haus. Droit Pénale belge,


E CONSTITUCIONAL 343<br />

Ora, em um acto criminoso do Presidente, por este assignado,<br />

e subscripto pelo ministro, temos cumplicidade, porque<br />

ha um só crime, e mais de um agente ; o Presidente e o ministro<br />

são coparticipantes, um como agente principal e outro como<br />

auxiliar.<br />

Segundo o nosso Código Penal são cúmplices os que fornecem<br />

instrucções para commetter o crime, e prestão auxilio á<br />

sua execução. Art. 21.<br />

Ora, um ministro que, convidado a subscrever um acto<br />

presidencial, o estuda, reflecte sobre elle, resolve duvidas sobre<br />

as difficuldades que sua execução pôde levantar, e afinal o subscreve,<br />

subscripção que auxilia a pratica do acto, porquanto a<br />

recusa do ministro em subscrevel-o, difficultaria a sua execução,<br />

e poderia, talvez, fazer o Presidente mudar de opinião, esse ministro,<br />

se o acto é criminoso, é sem duvida cúmplice.<br />

Por conseqüência, haja ou não connexidade, no sentido dos<br />

criminalistas, seja ou não seja ella a mesma cousa que cumplicidade,<br />

parece-nos que é sempre cúmplice o ministro que,<br />

sciente e deliberadamente subscreve um acto criminoso do Presidente.<br />

Porque então os ministros hão de subscrever os actos do<br />

Presidente da Republica ?<br />

Acaso essa referenda será essencial á existência juridica do<br />

acto presidencial ?<br />

Nas monarchias parlamentares a inviolabilidade do monarcha<br />

tem como correlativo necessário a responsabilidade dos ministros.<br />

A ficção legal que o rei não pôde querer, nem fazer mal,<br />

só se explica com a responsabilidade ministerial, Se o rei não<br />

responde por nada, é preciso~que os ministros respondão por<br />

tudo.<br />

D'ahi resulta que, não podendo haver um acto sem agente<br />

responsável, para que os actos reaes tenhão existência juridica,<br />

é essencial que os ministros os referendem. Pela referenda o<br />

ministro appropria o acto, torna-o seu, e assim fica o acto<br />

tendo-o como seu único agente legalmente responsável.<br />

A nossa Constituição monarchíca dispunha que os actos do<br />

poder executivo não poderião ter execução sent a referenda<br />

dos ministros. Art. l3l. Estes exercitavão o poder executivo<br />

de que o imperador era chefe irresponsável.<br />

m


344<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Mas, no nosso actual regimen o poder executivo é exercido<br />

pelo Presidente da Republica, ao qual competem privativamente<br />

todas as funcções executivas. Arts. 41 e 48. Portanto,<br />

parece bastar a assignatura presidencial para que o acto seja<br />

exequivel, e tenha existência jurídica.<br />

Se a Constituição diz que os ministros subscrevem os actos<br />

do Presidente, é para que, em primeiro lugar, saibamos de qual<br />

das repartições ou ministérios emana o acto, se é acto do ministério<br />

da guerra, da marinha ou da justiça ; em segundo lugar<br />

para que, no caso de illegalidade do acto, seja conhecido o coréo<br />

do Presidente.<br />

Além dos actos presidenciaes subscriptos pelos ministros,<br />

estes podem por si sós, sob sua única responsabilidade, expedir<br />

actos de menor importância da repartição a seu cargo, os<br />

quaes são os actos propriamente ministeriaes, ou do ministro,<br />

como diz a Constituição, e por esses actos respondem.<br />

Sob a denominação genérica de actos estarão incluídos os<br />

não-actos ou as omissões?<br />

Não ha duvida que, tanto o Presidente da Republica, como<br />

os seus ministros, podem damnificar o Estado abstendo-se de<br />

obrar em certa occasião : logo devem responder pela omissão.<br />

E a lettra do art. 82 da Constituição, especificando as omissões<br />

e negligencias, como materia de responsabilidade, não deixa<br />

duvida sobre o ponto.<br />

Se em direito privado, diz Gianquinto, se responde pela<br />

negligencia, porque não ha differença entre causar directamente<br />

o damno e não prevenil-o, quando se podia e devia prevenir;<br />

se em direito penal commum a omissão é crime, quando o omittente<br />

tinha o dever de obrar, não sei porque não se deva responder<br />

pela omissão em direito <strong>publico</strong>, visto que da culpa da<br />

omissão pôde também provir mal ao Estado.<br />

Como eximir da responsabilidade um ministro da justiça<br />

que tolerasse reuniões attentatorias da segurança publica, um<br />

ministro da guerra que não providenciasse em tempo na defeza<br />

de uma praça ameaçada ? ( 1 )<br />

(1 ) Diritto <strong>publico</strong> amministrativo, t. 2. p. 515.


m<br />

E CONSTITUCIONAL 345<br />

IV<br />

O regimen parlamentar, cujo abuso se chama parlamentarismo,<br />

é uma variedade adiantada do governo constitucional<br />

representativo, e tem por característico a responsabilidade ministerial<br />

perante a câmara dos deputados.<br />

Rigorosamente fallando, aquelle regimen é complemento e<br />

conseqüência necessária do governo constitucional representativo,<br />

e n'este sentido é essencialmente republicano e democrático<br />

; pois na realidade elle consiste na prevalecencia da opinião<br />

publica, traduzida no parlamento pelos representantes do povo.<br />

Em 1815 Royer-Collard dizia: « No dia em que o governo<br />

estiver á discrição da maioria da câmara, e de facto ficar estabelecido<br />

que a câmara pôde repelür os ministros do rei e impôrlhe<br />

outros, que serão ministros da câmara e não do rei. . n'esse<br />

dia estaremos na republica ».<br />

Entretanto, na republica modelo dos Estados Unidos do<br />

Norte, o regimen parlamentar é proscripto ( 1 ).<br />

Ali os ministros são de livre escolha do Presidente, como<br />

este não tem entrada nas câmaras, e vivem independentemente<br />

d'elîas, apezar de qualquer opposição da parte dos representantes<br />

do povo.<br />

Qual a razão d'esse antagonismo entre o principio republicano<br />

presidencial e o principio parlamentar ?<br />

O principio parlamentar, a responsabilidade ministerial em<br />

materia política, é a negação da separação completa dos poderes.<br />

Ora, na republica americana essa separação é um dogma<br />

constitucional.<br />

A grande theoria da Constituição, diz Pomeroy, faz do Presidente<br />

um poder co-igualna tripartida organisação do governo.<br />

Elle tira o seu poder da mesma fonte que o poder legislativo e<br />

( 1 ) A França é hoje uma republica parlamentar. A Constituição de IS75 .(eu<br />

ao Presidente o direito de iniciativa concurrentomonte com as câmaras; de dissolver<br />

a câmara dos deputados ; de nomear livremente os seus ministros, que são solidariamente<br />

responsáveis perante as câmaras pela política geral do governo, e individualmente<br />

por seus actor, pessoaes, e podem ser representantes, sem necessidade de<br />

reeleição. Lei constitucional de 25 de Fevereiro de 1875, arts. 3, 5, 6. Idem de 2<br />

de Agosto de 1875, art. 20. Idem de 30 de Novembro de 1875, art. 8.<br />

44


346 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

o judiciário ; é irresponsável perante ambos ; obra tão discricionaríamente<br />

como qualquer legislador, e mais do que qualquer<br />

juiz ; nenhum outro ramo do governo tem direito de interferir<br />

no exercício discricionário do seu poder ; somente o<br />

pôde obstar uma accusação política (impeachment), e esta só<br />

pôde ter lugar, quando elle usa de seu poder, não de modo arbitrário<br />

ou simplesmente por erro, mas criminosamente e por<br />

corrupção. E' verdade que o Congresso, segundo a Constituição<br />

(Art. i.° secç. 8. a § 18) « pôde fazer todas as leis necessárias<br />

á execução dos poderes que a Constituição conferio, quer<br />

ao governo, quer aos departamentos, quer aos funccionarios<br />

que d'elles dependem . » Mas essa disposição não habilita o<br />

Congresso a restringir ou limitar a capacidade do Presidente (i).<br />

Eis aqui a razão theorica da Republica americana não admittir<br />

o regimen parlamentar. Cada poder é independente em<br />

sua orbita constitucional. Portanto, um ramo do poder legistivo<br />

não deve intervir na vida do executivo.<br />

Além da razão theorica, razões de experiência aconselhão<br />

a rejeição do chamado parlamentarismo.<br />

« Nas minhas insomnias, dizia Daunou, pude descobrir a<br />

verdadeira e única definição do nosso governo parlamentar :<br />

é um governo no qual os deputados fazem e desfazem os ministros,<br />

os quaes fazem e desfazem os deputados. »<br />

Não será isso o que com effeito se observa em quasi todos<br />

os paizes de systema parlamentar? E a lucta pelas pastas ? E<br />

a venalidade dos votos parlamentares em trocados favores para<br />

satisfação das exigências dos eleitores ? Quantas vezes os ministérios<br />

cahem, não por motivos de interesse <strong>publico</strong>, mas por<br />

despeitos individuaes, por esperança de uma secretaria em uma<br />

nova organisação ministerial ?<br />

A instabilidade da administração é, em regra, conseqüência<br />

das mudanças dos ministérios nos paizes de regimen parlamentar,<br />

o que em verdade não abona muito esse regimen.<br />

Só a Inglaterra faz excepção áquella regra.<br />

Ali as mudanças de ministério quasi que não influem na administração<br />

propriamente dita, nem nos seus funccionarios. Os<br />

próprios partidos, d'onde sahem os ministérios, são intéressa­<br />

it ) Const. Law, p. 53'f § 631-2.


E CONSTITUCIONAL 347<br />

dos na regularidade do serviço <strong>publico</strong> ; por isso a «sumindo o<br />

governo conservão o pessoal. A separação da politica da administração<br />

é na Inglaterra uma verdade pratica ( 1 ).<br />

Entretanto aquelle regimen tem em seu favor boas razões,<br />

e defensores de subido valor. Mesmo nos Estados Unidos do<br />

Norte muitos pensadores entendem que os ministros devem ter<br />

ingresso nas câmaras.<br />

Nossa Constituição, imitando, ainda n'este ponto, a dos<br />

Estados-Unidos do Norte, acabou com o parlamentarismo, tão<br />

radicado nos nossos costumes políticos.<br />

O Presidente não tem entrada no Congresso ; no dia da<br />

abertura da sessão legislativa remette ao secretario do senado<br />

uma mensagem dando conta da situação do paiz e indicando<br />

providencias e reformas urgentes ( Art. 48 § 9. 0 ). Os ministros<br />

de Estado não podem ser eleitos Presidente ou Vice-Presidente<br />

da União, nem deputado ou senador ( Art. 50). O deputado<br />

ou senador que acceita o cargo de ministro de Estado perde o<br />

mandato, e não pôde ser votado na eleição que se fizer para<br />

preenchimento da vaga que deixar ( Ibid, paragrapho único ).<br />

Também não podem comparecer ás sessões do Congresso, e<br />

com elle só se communicão por escripto, ou pessoalmente em<br />

conferências com as commissões das câmaras, e os seus relatórios<br />

são dirigidos ao Presidente da Republica (Art. 5 1 )• Não<br />

são responsáveis perante o Congresso, ou perante os tribunaes<br />

pelos conselhos que derem ao Presidente ( Art. 52 ).<br />

Tal é a sentença constitucional contra o systema parlamentar.<br />

Será, porém, elia fielmente cumprida ? Os hábitos politicos<br />

não sophismarao a lettra constitucional ?<br />

Durante meio século vivemos, senão de facto, pelo menos<br />

nominalmente sob aquelle S3'stema. Se as vezes os ministérios<br />

retiravão-se, ou a câmara era dissolvida por indicação da opinião<br />

publica, na mór parte dos casos esses factos erão effeitos<br />

da vontade irresponsável do chefe da nação. Hoje elles não se<br />

reproduzirão mais no Brasil.<br />

Qual dos dous systemas é melhor? A esta questão, como<br />

a da melhor fôrma de governo, não se pôde responder de modo<br />

( 1 ) V. Fischel, loc. cit. t. 1. p. 239.


348 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

absoluto. E' incontestável que o regimen parlamentar enfraquece<br />

a independência do poder executivo, pondo-o á discrição<br />

das câmaras. A separação dos poderes resguarda o poder executivo<br />

contra a prepotência do Congresso.<br />

Entre nós o systema parlamentar não viçou apezar de fallarmos<br />

muito nas praticas inglezas. A monarchia parlamentar<br />

da Inglaterra de nossos dias foi planta que nunca aclimou-se no<br />

solo do Brasil.<br />

Um illustre publicista francez, que conhecia tanto o parlamentarismo<br />

monarchico, como o republicano de seupaiz, assim<br />

como o S3'stema americano, escreveu em sua recente obra sobre<br />

a Republica americana :<br />

« A instabilidade dos ministérios europeus não tem razão<br />

de ser na America, aonde os ministros são apenas chefes de<br />

repartições distinctas entre si e a abrigo das convulsões parlalamentares<br />

; o que, em nosso entender, é preferível a qualquer<br />

outro systema. Fora da acção das assembléas délibérantes, os<br />

ministros tratão mais socegadamente dos negócios de sua competência<br />

; lembram as reformas que se devem fazer, os defeitos<br />

a corrigir, e quando chegão ao termo de suas funcções, tem<br />

conseguido prestar á causa publica mais serviços, do que os<br />

ministros parlamentares, cuja vida se consome nas intrigas dos<br />

partidos, e em incessantes esforços para se conservarem no<br />

poder... A communicação, que conforme o systema americano,<br />

existe entre o poder executivo e o legislativo é bastante para<br />

que as questões se elucidem completamente. Relações mais<br />

directas só servirião para produzir conflictos, para tornar oscillante<br />

a condição dos ministros, e talvez multiplicar as occasiões<br />

de corrupção. Preserve Deus a America d'essa calamidade<br />

! > (1)<br />

( 1 ) Carlier, loc. oit. t. 2. p. 176.


RS<br />

CAPÍTULO XVI<br />

DO PODER JUDICIÁRIO E SE É DISTINCTO DO EXECUTIVO.<br />

MAGISTRATURA ELECTIVA E VITALÍCIA. INAMOVIBILIDADE<br />

DOS JUIZES.<br />

I<br />

Tendo até aqui tratado do poder legislativo e do executivo,<br />

agora entramos a estudar o poder judiciário, essencial a toda<br />

sociedade, e destinado a proteger os direitos dos cidadãos contra<br />

as violências de quem quer que seja.<br />

São órgãos d'esse poder os juizes ou magistrados, os quaes<br />

applicão as leis nas contestações occurrentes, declarão e sustentão<br />

os direitos dos cidadãos. O poder legislativo faz a lei,<br />

o judiciário a applica ; não julga da lei, mas da conformidade<br />

de uma acção com a lei : Secundum legem, non de legibus.<br />

Outr'ora se dizia — toda justiça emana do rei — e as constituições<br />

monarchicas consagravão esse principio como uma<br />

verdade de direito <strong>publico</strong>. O Estatuto fundamental italiano<br />

ainda conserva o seu art. 68, que diz : « A justiça emana do<br />

rei, e é administrada em seu nome por juizes que elle institue.<br />

Essa doutrina, verdadeira nos tempos em que o absolutismo<br />

dos reis concentrava em si os poderes do Estado, é hoje<br />

absolutamente falsa e insubsistente perante o direito <strong>publico</strong><br />

moderno.<br />

O poder de julgar, como todos os outros poderes do Estado<br />

livre, é uma delegação da soberania nacional.<br />

Explicando o sentido da palavra — a justiça emana do rei<br />

— Rossi diz que o seu verdadeiro sentido é que a justiça é<br />

nacional, e não feudal ; que o poder judiciário não se transmitte<br />

mais por legado, ou por fideicommisso ; que o senhor da terra<br />

deixou de ser o senhor do homem, e que finalmente a justiça


350 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

não é attributo de nenhum outro poder, senão da soberania<br />

nacional, da qual o rei é representante ( I ).<br />

O direito de julgar era considerado como um attributo do<br />

rei, que não podendo por si mesmo administrar a justiça, attento<br />

a extensão do Estado e o numero das causas, o delegava aos<br />

juizes, os quaes fazião justiça em seu nome. Ad hoc creatus<br />

est rex, ut justitiam faciat universis, dizião os velhos escriptores.<br />

Ainda hoje na Inglaterra se reputa que o rei está sempre<br />

presente nos tribunaes, e por isso os autores inglezes dizião que<br />

« era a funcção real de julgar, e não a pessoa real, que tinha o<br />

dom de ubiqüidade. » ( 2 )<br />

No organismo do Estado do mesmo modo que no organismo<br />

da personalidade individual, só se pôde conceber, como<br />

forças fundamentaes e essencialmente distinctas, a vontade e a<br />

actividade externa, o querer e o obrar.<br />

Na sociedade a vontade ou o poder de querer chama-se<br />

poder legislativo e o poder de obrar, de realisar as volições,<br />

poder executivo. Entre esses dous poderes não se pôde admittir<br />

um terceiro, do mesmo modo que entre e vontade e a acção<br />

no indivíduo não é possivel pensar em uma faculdade intermediária.<br />

D'ahi resulta considerar-se geralmente o poder judiciário<br />

como um ramo do poder executivo, sendo a autoridade judiciaria<br />

destinada a applicar a lei aos factos controvertidos ; applicação<br />

que, a fallar a verdade, não é senão um modo especial<br />

de executar a mesma lei.<br />

Entretanto Rossi e outros publicistas não admittem que o<br />

poder judiciário seja um ramo do executivo, e fazem d'elle um<br />

poder substancialmente distíncto do legislativo e do executivo.<br />

« E' grave erro, diz aquelle escriptor, considerar o poder<br />

judiciário como um ramo da admidistração geral confiada ao<br />

poder executivo. D'onde provirá esse erro ? De ser missão<br />

do poder judiciário applicar a lei, e por conseguinte executal-a.<br />

Applicar a lei não quer dizer executal-a ; é comparar um facto<br />

com uma regra ; não é o poder judiciário que executa as suas<br />

sentenças ( 3 ).<br />

( 1 ) Droit const, t. 4 p. 251.<br />

( 2 ) V. Franqucvillc, loc. cit. t. 1 p. 214,<br />

( 3 ) Droit const, t. 4 p. 241.


í^€<br />

E CONSTITUCIONAL 351<br />

A execução da lei é, por assim dizer, escreve outro autor<br />

da mesma eschola, preparada pela justiça, mas não é realisada<br />

por cila ; suas sentenças são executadas pelo governo ou pela<br />

administração, isto é, pelo poder executivo, que n'esse ponto e<br />

subordinado ao poder judiciário. Como, pois, será um ramo<br />

do poder executivo ? Os órgãos d'esté poder são muitas vezes<br />

julgados pelo poder judiciário. Além d'isso os tribunaes podem<br />

requisitar soberanamente o auxilio da força do poder executivo<br />

para garantir a execução de suas sentenças. E assim sendo,<br />

como dizer que o poder judiciário é ramo do poder executivo ?<br />

N'esse raciocínio a palavra execução é tomada em todo o<br />

seu rigor material. Assim entendida, só ha um poder executivo<br />

— a força publica, o soldado ; que em ultima analyse é quem<br />

dá a lei o seu caracter irresistivelmente obrigatório.<br />

Mas a força publica não pôde ser considerada senão como<br />

instrumento de todos os poderes legaes ; ella réalisa materialmente<br />

as ordens das autoridades legitimas. Não é, porém, um<br />

poder em sentido juridico-constitucional ; não é um poder<br />

moral capaz de ordenar, e de exigir obediência dos cidadãos.<br />

Defendendo o caracter executivo do poder judiciário, Saint<br />

Girons diz : « A justiça é um ramo do poder executivo, porque<br />

é impossivel ser outra cousa. A analyse philosophica só distingue<br />

a lei e a execução da lei. Todas as funeções políticas<br />

se reduzem a um ou a outro d'esses dous actos. O parlamento<br />

ordena de accôrdo com a justiça e a utilidade social, dentro<br />

dos limites constitucionaes, e todos os outros poderes, todas as<br />

autoridades preparão, facilitão, assegurão a execução da lei.<br />

E' n'esse sentido que o poder judiciário é um ramo do<br />

poder executivo. Mas não quer isso dizer que os órgãos do<br />

poder judiciário, os magistrados, não devão ser distinetos e<br />

independentes no exercício de suas attribuições, dos outros<br />

dous poderes. Pelo contrario, devem sél-o, tanto quanto os<br />

órgãos do poder legislativo, e os do poder executivo ou do<br />

governo propriamente dito.<br />

E' da essência dos governos livres que a funeção judiciaria<br />

seja tão independente das outras funeções publicas, quanto o<br />

permitia a unidade do Estado.


352 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

II<br />

Se o poder judiciário é distincto e independente do poder<br />

executivo, este não deve nomear os magistrados ; se a funcção<br />

de julgar é uma delegação da soberania nacional, é conseqüente<br />

que os juizes sejão eleitos pelos cidadãos, do mesmo modo que<br />

os órgãos dos outros dous poderes.<br />

Assim pensão alguns que levão ás ultimas conseqüências a<br />

distincção dos três poderes.<br />

A natureza do poder judiciário, e se é realmente distincto<br />

do executivo, é questão puramente theorica ; dar, porém, á magistratura<br />

uma organisação mais consentanea com o seu fim<br />

social, é questão pratica que só pôde ser resolvida pela razão<br />

illustrada pela experiência.<br />

Guarda da liberdade, da propriedade e dos direitos dos cidadãos,<br />

a autoridade judiciaria deve ser inteiramente independente<br />

de todos os outros poderes sociaes.<br />

Se algum dos três grandes poderes da soberania nacional<br />

podesse ser absoluta e realmente separado e independente dos<br />

outros poderes, esse deveria ser o poder judiciário ; os seus órgãos,<br />

os magistrados, deverião ser inteiramente separados dos<br />

órgãos dos poderes legislativo e executivo. Se a collaboração<br />

d'estes dous poderes é necessária, a independência do poder<br />

judiciário é imprescindível ao bem social.<br />

Ora, a essa independência é totalmente contraria a investidura<br />

dos magistrados por meio de eleição.<br />

Nossa Constituição, de accordo com a experiência e o<br />

exemplo dos paizes mais civilisados, estabeleceu a vitaliciedade<br />

da magistratura. « Os juizes federaes são vitalicios e perderão<br />

o cargo unicamente por sentença judicial. » Assim dispõe o<br />

a rt - 57, conformando-se com a pratica seguida durante o regimen<br />

monarchico e os costumes nacionaes.<br />

O principio da vitaliciedade do magistrado estava tanto em<br />

nossos hábitos, que o projecto de Constituição promulgado por<br />

decreto de 23 de Outubro de 1890, pelo governo provisório, ad<br />

referendum do Congresso, tratando da organisação dos Estados,<br />

vedava-lhes o direito de ter magistratura electiva. « Não<br />

será electiva a magistratura » dizia o art. 62 n. 3 d'aquelle projecto.


K CONSTITUCIONAL 353<br />

A Constituição supprimio esta clausula. Mas não obstante,<br />

as Constituições dos Estados consagrarão o principio da investidura<br />

por nomeação e a vitaliciedade para seus magistrados.<br />

Um juiz eleito e temporário não pôde ser independente e<br />

imparcial, porque forçosamente será juiz do partido politico dominante<br />

; considerar-se-ha simples interprete da vontade presumida<br />

do corpo eleitoral, e pensará mais na sua reeleição do<br />

que em distribuir justiça a todos.<br />

Laboula}'e refere que a lei do Estado de Maine, que prohibe<br />

a vencia de bebidas alcoólicas, adoptada em vários Estados<br />

da União americana, sendo muito antipathica a uma parte da<br />

população, especialmente a de origem allemã, os eleitores propuzerão<br />

aos juizes : « nós vos elegeremos, mas com a condição<br />

de que não applicareis a lei. » Desde que se sujeita a nomeação<br />

do juiz á eleição, adeus justiça. ( 1. )<br />

Nos Estados-Unidos do Norte a magistratura federal é vitalícia<br />

e de nomeação do Presidente da Republica, com ratificação<br />

do senado, a dos Estados é temporária e electiva. D'ahi a<br />

superioridade d'aquella e a inferioridade d'esta. « Ao passo que<br />

a inamovibilidade assegura a independência dos tribunaes da<br />

União, diz um publicista, os tribunaes dos Estados, sujeitos aos<br />

azares da eleição popular, são instrumentos dos partidos e<br />

servos humilissimos das maiorias momentâneas. »<br />

A principio os juizes estadoaes erão ali também geralmente<br />

inamoviveis e nomeados pelo executivo ; mas a proporção que<br />

a onda da democracia foi crescendo, a eleição foi se tornando o<br />

meio ordinário da investidura dos juizes, e hoje em todos os<br />

Estados os magistrados sahem das urnas eleitoraes ; somente<br />

com a differença de que em alguns a duração das funeções é<br />

maior e em outros menor ( 2 ).<br />

Os americanos chegarão d'esse modo ás ultimas conseqüências<br />

do principio da soberania do povo. « A funeção judiciaria<br />

sendo uma expansão da soberania nacional, a lógica a mais<br />

elementar quer que aquelles que a exercem, a recebão d'essa<br />

( 1 ) Ob. cit. t. 3. p. 491.<br />

( 2 ) A duração varia entre 2 annos ( no listado do Vermont ) e 21 ( na l'ensylvania<br />

). Nos outros Estados o termo médio ò de 10 annos. V. J. Bryce, loc.<br />

cit. t. 1. p. 485.<br />

45<br />

J H


354<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

mesma soberania, ou d'aquelles que a representão. » Eis aqui<br />

o raciocínio em que se basea a electividade dos juizes.<br />

A experiência, porém, está mostrando os resultados práticos<br />

d'esse systema, a respeito do qual já Toequeville dizia :<br />

« Atrevo-me a predizer que, diminuindo-se a independência dos<br />

magistrados, não se ataca somente o poder judiciário, mas também<br />

a propria republica democrática. »<br />

Publicistas estrangeiros e os próprios jurisconsultos americanos<br />

são accordes em condemnar o systema chamado americano.<br />

« E' universalmente admittido e sem reservas, diz Lieber,<br />

que a eleição dos juizes pelo povo é completamente desastrado.<br />

Todos sabem que esse systema é funesto á verdadeira liberdade<br />

civil, porque é incompatível com a imparcialidade da lei, ponto<br />

capital. Exame attento e consciencioso da questão, leitura de<br />

grande numero de folhas publicas, consultas de legistas e estadistas,<br />

me convencerão que não ha uma só opinião favorável á<br />

eleição da magistratura. Todos reconhecem que esse deplorável<br />

systema foi adoptado, não por causa de descontentamento<br />

levantado pelos actos dos juizes, mas com o fim de augmentar<br />

o poder do soberano, isto é, do povo. » ( i )<br />

Outro publicista americano judiciosamente escreve :<br />

« O methodo de eleição dos juizes pelo povo em diversos<br />

Estados é uma anomalia, desconhecida na historia do mundo<br />

excepto na da antiga Roma ; que por fim cahio na anarchia, na<br />

guerra civil e no despotismo sob a influencia combinada da corrupção,<br />

da demagogia e do poder militar. Pôde apparecer alguns<br />

juizes bons, seja qual fôr o systema de eleição, mas o methodo<br />

de elegel-os pelo povo não tem dado resultado ; não tem<br />

melhorado o caracter dos tribunaes nos Estados que o tem adoptado.<br />

A massa da população, continua Ezra Seaman, não é bom<br />

juiz dos talentos legaes e da experiência, nem da aptidão para<br />

as altas posições judiciarias, porque geralmente deixa-se captivar<br />

pelos talentos oratorios... Designar candidatos para altos<br />

cargos judiciários por meio de caucus e de convenções de partidos<br />

políticos, e fazel-os eleger pelo povo, é um pobre methodo<br />

de ter bons juizes. Os juizes não deverão lembrar-se nunca<br />

( 1 ) On civil liberty and self-government p. 229.


.m<br />

E CONSTITUCIONAL 355<br />

que dependem de certos solicitadores de seus tribunaes, e de<br />

certos membros do fôro para sua eleição. Essas lembranças<br />

estão pouco de accordo com a imparcialidade e a boa administração<br />

da justiça ( i ).<br />

Na Suissa, aonde também ( em alguns cantões ) a magistratura<br />

é electiva, os jurisconsultes censurão o systema.<br />

Ali o tribunal federal é nomeado pela assembléa federal em<br />

commissão somente por seis annos.<br />

Em Abril de 1891 o povo de Basiléa adoptou o regimen electivo<br />

por votação em referendum. No cantão de Genebra,<br />

porém, aonde, na epocha da revolução franceza, se tinha adoptado<br />

o mesmo systema, depois o abandonarão, porque ninguém<br />

tinha confiança nos juizes eleitos ( 2 ).<br />

A independência do juiz é essencial a uma bôa organisação<br />

judiciaria, e com o systema electivo é impossível aquella independência.<br />

E' uma verdade evidente, diz Laveleye, que tanto mais<br />

completa fôr a pratica da democracia, de modo que todas as<br />

funeções se originem de eleição, quanto mais indispensável se<br />

torna a necessidade de um poder independente, no qual o fraco<br />

encontre protecção contra o forte ; d'onde conclue que nos governos<br />

democráticos os juizes não devem ser eleitos (3 ).<br />

Com effeito, se os juizes são os eleitos da maioria de ocea"<br />

sião, se são antes agentes políticos, do que sacerdotes da lei,<br />

que recurso terão as minorias vencidas e os indivíduos extranhos<br />

á política ?<br />

Demonstrando que nas republicas, mais do que nas monarchias,<br />

os magistrados devem ser independentes e vitalícios,<br />

Story diz : Na verdade, uma republica sem um poder judiciário<br />

assas independente para resistir á usurpação, proteger as liberdades<br />

publicas e garantir os direitos privados dos cidadãos, é<br />

uma democracia de poderes illimitados, em que os seus chefes<br />

exercem soberania universal e despotica ; é um governo de tyrannos,<br />

eleitos é verdade, mas nem por isso menos tyrannos, e<br />

tanto mais tyrannos, violentos e sanguinários, quanto produzirá<br />

por força facções que procurarão destruir as suas rivaes (4).<br />

( 1 ) The american system oE government cap. 3 sect;. 18.<br />

( 2 ) V. Lavoley Le gouvernement dans la démocratie t. 1. p. 329.<br />

( 3 ) Loc. cit.<br />

( i ) Commentaries, t, 2. p, 418 § 1621,


356 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

III<br />

Depois do que fica dito sobretta vitaliciedade dos juizes,<br />

pouco ha que accrescentar sobre a inamovibilidade.<br />

Nossa Constituição monarchica dizia que os juizes de direito<br />

erão perpétuos, mas accrescentava que essa perpetuidade<br />

não impedia que podessem ser mudados de uns para outros lugares.<br />

Erão perpétuos, porém, amoviveis, posto que por accesso<br />

de entrancia. Art. 153.<br />

A actual Constituição diz simplesmente que os juizes federaes<br />

são vitalícios, e só por sentença judicial perderão o cargo.<br />

Mas o Decreto de 11 de Outubro de 1890, que organisou a<br />

justiça federal, no art. 2." dispõe « que os juizes federaes serão<br />

vitalícios e inamoviveis, e só poderão ser privados de seus<br />

cargos em virtude de sentença proferida em juizo competente e<br />

passado em julgado.<br />

A' independência do juiz não basta a perpetuidade ou vitaliciedade,<br />

é também necessário que sejão inamoviveis e retribuídos<br />

liberalmente.<br />

A inamovibilidade consiste em que o juiz não possa ser removido,<br />

suspensa e aposentado pelo poder executivo, salvo nas<br />

formas estatuídas em lei. Um juiz amovivel á vontade do governo,<br />

serviria melhor ao poder executivo do que á justiça.<br />

O direito de remover juizes é uma ameaça perpetua contra<br />

a sua independência ; em ultima analyse, é a suppressão da inamovibilidade.<br />

Armado de semelhante direito, o poder executivo<br />

galardoa os juizes amigos, e castiga os desaffectos, e ainda<br />

mais, pôde á vontade modificar a composição de um Tribunal,<br />

compondo-o de juizes dedicados á sua política.<br />

No regimen decahido, a pretexto de accesso á entrancia<br />

superior, mais de um juiz foi sacrificado ás paixões partidárias!<br />

A independência do juiz pede que, ainda quando se trate de<br />

uma promoção a lugar mais honroso e lucrativo, se lhe dê a liberdade<br />

de rejeitar, se assim lhe convier.<br />

A Constituição italiana elevou a inamovibilidade dos juizes<br />

á altura de um principio fundamental escrevendo-a no art. 69.<br />

Mas a esse principio fez uma restricção de tempo. O juiz só<br />

adquire inamovibilidade depois de um triennio completo de<br />

exercício. E' um estádio de experiência e de prova de capacidade<br />

intellectual e moral.


E CONSTITUCIONAL 357<br />

A Constituição belga também consagra aquelle principio,<br />

e de modo absoluto, pois o art. ioo dispóe « que a mudança de<br />

um juiz só poderá dar-se por occasião de nova nomeação e por<br />

consentimento d'elle. »<br />

E' convicção geral que a independência do juiz em grande<br />

parte assenta na sua inamovibilidade. Se elle não se acha collocado<br />

em situação de não temer, nem esperar, não pôde pronunciar-se<br />

segundo os dictâmes de sua consciência illustrada.<br />

Mas por outro lado é preciso que o juiz se convença que a<br />

sua independência tem limites, e que seu cargo, a sua funcção<br />

de julgador não é propriedade sua, de que possa usar e abusar<br />

discricionariamente. Na lei, nas sentenças dos tribunaes superiores<br />

elle deve encontrar limites e correcção aos abusos de<br />

seu cargo.<br />

A independência do juiz não será completa se, a par da inamovibilidade,<br />

não se lhe der paga sufficiente e proporcional á<br />

importância de seu cargo e á elevação de suas funcções. Um<br />

ordenado mesquinho expõe o juiz aos perigos da corrupção.<br />

Nos paizes mais civilisados se paga bem aos magistrados (i).<br />

( 1 ) Na Inglaterra os juizes do Supremo Tribunal de Justiça recebem, cada<br />

um, 250,000 francos, ou cerca de 100:000.000; os dos tribunaess do Condado (tribunaes<br />

de Ia. instância) 37,500 francos, ou cerca de 15:000.000. Nos Estados-Unidos<br />

os 9 membros do Supremo Tribunal ganhão (cada um) 10,000 dollars e o presidente<br />

10 500. Um juiz de Circuito 6000, e o de Üistricto de 3500 a 5000, conforme aim»<br />

portancia dos Districtos. Relativamente os nossos juizes são hoje bem pagos. Os<br />

15 juizes do Supremo Tribunal Federal ganhão (cada um) 18:000.000, e o presidente<br />

mais 2:000.000. Os juizes de secçâo de 10:000.000 a 8:000.000.<br />

m


m<br />

CAPITULO XVII<br />

ORGANISAÇÃO JUDICIARIA. ATTRIBUIÇÕES DO SUPREMO TRI­<br />

BUNAL FEDERAL. SE É LEGITIMO INTERPRETE CONSTITU­<br />

CIONAL. JUIZES E TRIBUNAES E SUAS ATTRIBUIÇÕES. O<br />

JURY.<br />

I<br />

As bases de nossa organisação judiciaria federal estão<br />

lançadas nas seguintes disposições constitucionaes.<br />

« O poder judiciário da União terá por órgãos um Supremo<br />

Tribunal Federal, com sede na capital da Republica, e tantos<br />

juizes e tribunaes federaes, distribuídos pelo paiz, quantos o<br />

Congresso crear. Art. 55.<br />

« O Supremo Tribunal Federal compor­se­ha de 15 juizes,<br />

nomeados pelo Presidente da Republica, dentre os cidadãos de<br />

notável saber e reputação, elegiveis para o senado. Art. 56.<br />

« Os juizes federaes são vitalícios e perderão o cargo<br />

unicamente por sentença judicial. Seus vencimentos serão<br />

determinados por lei e não poderão ser diminuídos. Art. 57 § i.°<br />

As precedentes disposições condizem com as da Constituição<br />

americana. Esta, na secç. I.* do art. 3.°, dispõe :<br />

« O poder judiciário dos Estados Unidos será confiado a um<br />

Supremo Tribunal, e a tantos tribunaes inferiores, quantos o<br />

Congresso julgar conveniente criar, a medida que forem necessários.<br />

Os juizes, tantos do Supremo Tribunal, como dos tribunaes<br />

inferiores, conservarão seus lugares emquanto não desmerecerem<br />

(till good behaviour ), e perceberão por seus serviços,<br />

em prazos determinados, uma indemnisação, que não<br />

poderá ser diminuida, emquanto conservarem os seus cargos. ■»<br />

Nossa Constituição entendeu que ao chefe do poder execu


36o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tivo, por sua elevada posição, e por ser o centro de todas as<br />

informações, devia competir a nomeação dos juizes; ninguém<br />

melhor que elle poderia apreciar as qualidades de um bom juiz ;<br />

e para moderar e corrigir os erros do poder executivo, caso elle<br />

nas nomeações se determinasse por motivos alheios ao bem<br />

<strong>publico</strong>, sujeitou as nomeações dos juizes superiores á approvação<br />

do senado.<br />

Ella determinou o numero dos juizes do Supremo Tribunal<br />

fixando-o em 15, numero que ninguém considerará abaixo das<br />

necessidades da justiça federal.<br />

A Constituição americana, porém, deixou ao Congresso<br />

fixar o numero dos juizes, de accôrdo com as exigências do<br />

serviço da justiça publica. A principio ali forão 5 os membros<br />

da Supreme Court, e 1 presidente ; hoje existem 8 vogaes<br />

( associates ), e 1 presidente (chief Justice ).<br />

Nos expressos termos da nossa Constituição os juizes federaes<br />

são vitalícios, e só por sentença judicial podem perder o<br />

seu cargo.<br />

A Constituição americana diz que os seus juizes conservarão<br />

seus lugares during good behaviour ; mas de facto são<br />

vitalícios e inamoviveis, e só no caso de grandes crimes (high<br />

misdemeanor ) podem perdel-os, por sentença do senado constituído<br />

em tribunal de impeachment.<br />

Ambas as constituições deixarão ao Congresso a faculdade<br />

de augmentar os vencimentos dos juizes na previsão de se<br />

tornarem insuffi cientes ás necessidades da vida ; mas ao mesmo<br />

tempo prohibem que possão ser diminuídos. A perspectiva de<br />

melhora de vencimento não offende a independência do juiz<br />

mas não assim a possibilidade de reduzil-os.<br />

« No governo dos homens, diz Story, só ha dous poderes<br />

superintendentes, e sobreestantes ( controlling powers ) — o<br />

poder das armas e o poder das leis. Se este não fôr reforçado<br />

por uma organisação judiciaria acima de toda censura e de<br />

qualquer temor, o poder das armas prevalecerá, a força militar<br />

dominará as instituições civis. Por isso os redactores de nossa<br />

Constituição, com profunda sabedoria, fizerão da independência<br />

permanente da organisação judiciaria a pedra angular da nossa<br />

republica » ( 1 ).<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2. p. 413 § 1621.


m<br />

E CONSTITUCIONAL 36,1<br />

Todas as nações civilisadas empenhão-se por ter uma<br />

magistratura capaz de satisfazer a primeira das necessidades de<br />

um povo — a recta distribuição da justiça.<br />

Não pôde haver garantias para os cidadãos, aonde o direito<br />

da força não fôr substituído pela força do direito. Eliminar a<br />

força violenta e illegitima, e pôr em seu lugar a justiça e a<br />

pratica do direito, tal é a grande aspiração dos povos civilisados.<br />

A superioridade da civilisação e do progresso de um povo<br />

consiste na prevalência do direito sobre as armas — Inter leges<br />

silent arma, assim como o seu atraso e decadência se traduzem<br />

pela prevalência da força material sobre o direito — Inter<br />

arma silent leges.<br />

Para obter bons juizes, juizes illustrados, rectos e imparciaes,<br />

o que é capital em uma organisação judiciaria, diversos<br />

systemas de investidura tem sido aconselhado pelos publicistas.<br />

Dentre esses systemas salientão-se os seguintes :<br />

i.' O da eleição, experimentado em França de 1789 a l"93,<br />

c actualmente praticado nos Estados da União americana e<br />

Cantões da Confederação helvetica.<br />

Depois do que ficou dito a respeito d'esse systema, no<br />

qual se libertão os juizes da acção do poder executivo, para<br />

sujeital-os ao arbitrio das maiorias eleitoraes, nada temos que<br />

accrescentar.<br />

2.0 O de cooptação ou de eleição pelos próprios juizes.<br />

3." O de lista, adoptado pela Constituição belga, a qual,<br />

no art. 99, dispõe que os juizes de paz e os dos tribunaes de<br />

primeira instância sejão nomeados directa e livremente pelo<br />

chefe do Estado, e os conselheiros das cortes de appellação<br />

os da corte de cassação e os presidentes e vice-presidentes dos<br />

tribunaes de primeira instância, sejão também nomeados por<br />

elle, mas d'entre nomes de listas duplas, uma organisada por<br />

esses tribunaes, e outra pelos conselhos provinciaes.<br />

4.' O de nomeação pelo chefe do Estado de modo absoluto<br />

e incondicional.<br />

5.0 O de concurso e noviciado. Os candidatos passão por<br />

um concurso antes da primeira investidura, na qual provão a<br />

capacidade scientifica e pratica no foro.<br />

6." O systema mixto, no qual os juizes são nomeados pelo<br />

chefe do Estado, em parte livremente, e em parte limitada-<br />

46


362 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

mente, porque nomea mediante proposta. Este systema foi o<br />

adoptado pela nossa Constituição.<br />

Assim, o Presidente da Republica nomea livremente os 15<br />

juizes do Supremo Tribunal, ficando, porém, a nomeação dependente<br />

da approvação do senado ; mas quanto aos outros<br />

magistrados federaes, elle os nomea mediante proposta do<br />

Supremo Tribunal. Art. 48 ns. il e 12.<br />

II<br />

São muitas e de alto valor as attribuições do Supremo Tribunal<br />

Federal.<br />

A sua jurisdicção, segundo a Constituição, se divide em<br />

originaria, ou de primeira e ultima instância, e de appellação<br />

ou de recurso, e n'este caso julga definitivamente em segunda<br />

e ultima instância. Aquellas attribuições se achão especificadas<br />

no art. 59 e seus paragraphos.<br />

Originaria e privativamente compete ao Supremo Tribunal<br />

processar e julgar :<br />

i.° O Presidente da Republica nos crimes communs, e os<br />

ministros do Estado também nos crimes communs e nos de responsabilidade<br />

; nos crimes connexos com os da Presidente da<br />

Republica, porém, os ministros respondem perante a autoridade<br />

competente para o julgamento do mesmo Presidente, isto é, nos<br />

crimes communs perante o Supremo Tribunal e nos de responsabilidade<br />

perante o Senado.<br />

2.° Os ministros diplomáticos nos crimes communs e nos de<br />

responsabilidade.<br />

3.° As causas e conflictos entre a União e os Estados.<br />

4, 0 Os litigios e as reclamações entre nações estrangeiras e<br />

a União ou os Estados.<br />

5.° Os conflictos dos juizes ou tribunaes federaes entre si,<br />

ou entre estes e »s dos Estados, assim como os dos juizes e tribunaes<br />

de um Estado com os juizes e os tribunaes de outros<br />

Estados.<br />

Em gráo de appellação ou de recurso compete ao mesmo<br />

Tribunal :<br />

l.° Julgar as questões resolvidas pelos juizes e tribunaes<br />

federaes.<br />

2.° Rever os processos findos, em matéria crime, a qualquer


Á%0<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

363<br />

tempo, em beneficio dos condemnados, para reformar ou confirmar<br />

a sentença, nos termos do art. 81.<br />

3.° Julgar as sentenças das justiças dos Estados em ultima<br />

instância, quando essas sentenças versarem sobre os dous seguintes<br />

casos : I sobre questão de validade ou applicação de<br />

tratados e leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado fôr<br />

contra ella, II sobre questão de validade de leis ou de actos<br />

dos governos dos Estados em face da Constituição ou das leis<br />

federaes, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos<br />

esses actos, ou essas leis impugnadas.<br />

III<br />

A respeito d'esse ultimo ponto, a saber, da competência<br />

constitucional do Supremo Tribunal para julgar em gráo de recurso<br />

questões relativas á validade ou applicação de tratados e<br />

leis federaes em face da Constituição, surge a questão — se o<br />

Supremo Tribunal é legitimo interprete da Constituição, quando<br />

perante elle suscitar-se questão de constitucionalidade de uma<br />

lei ou de um acto do governo dos Estados ou da União. ( i )<br />

Nos Estados Unidos do Norte, aonde a constituição do governo<br />

federal é idêntica actualmente a do Brasil, é principio incontestado<br />

que se uma pessoa, physica ou moral, é lesada em<br />

seu direito, ao poder judiciário compete reparar a lesão ; e<br />

assim aquelle poder é o verdadeiro palladium das liberdades e<br />

dos direitos dos cidadãos.<br />

Ali é doutrina corrente que o poder judiciário « is the final<br />

authority in the construction of the constitution and the laws,<br />

and its construction should be received and followed by the<br />

other departments. » ( 2 ) Em virtude d'essa doutrina os cento<br />

e tantos volumes dos aréstos do Supremo Tribunal dos Estados<br />

Unidos são os mais autorisados commentaries da Constituição<br />

americana. Ali vão todos os escriptores de direito constitucional<br />

colher o verdadeiro e authentico sentido da lettra constitucional.<br />

Se na Inglaterra o parlamento, no dizer de Blackstone,<br />

( 1 ) V. o que já, ficou dito no cap. 6. da Parle Segunda.<br />

( 2 ) Cooley, General principies, p, 139.


364 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

« tem o poder absoluto e despotico, que em todo governo dave<br />

existir em alguma parte, » poder do qual resulta a autoridade<br />

de « fazer, confirmar, ampliar, interpretar e abrogar as leis, »<br />

nos Estados Unidos esse poder reside no Supremo Tribunal,<br />

emquanto é o final interprete of supreme law of the Land.<br />

O Supremo Tribunal é ali o guarda da Constituição, o legitimo<br />

vingador de suas violações. Sem elle qualquer das disposições<br />

da Constituição poderia ser violada irreparavelmente.<br />

Mas então perguntarão : Quis custodet ipsos custodes ?<br />

Ninguém. O poder judiciário, no organismo dos Estados Unidos,<br />

custodia, e não é custodiado, superintende sem ser superintendido.<br />

Essa competência não resulta de um texto constitucional<br />

ou legislativo. Nem na Constituição federal, nem nas dos Estados,<br />

ha uma palavra que autorise o poder judiciário a decidir<br />

sobre a constitucionalidade das leis ( i ). Apenas a Constituição<br />

dispõe que « o poder judiciário se estenderá a todas as<br />

causas, em materia de lei e de equidade, que se suscitarem sob<br />

o império d'esta Constituição (arising tender this Constitution<br />

) a respeito de leis dos Estados Unidos e de tratados feitos<br />

ou que se fizerem, sob sua autoridade. > Art. 3.° secç. i. a<br />

Referindo esse texto, o sábio Walker diz que elle confere<br />

ao poder judiciário « a plenitude do poder de decidir as questões<br />

constitucionaes, e que, mediante essa elevada funeção, aquelle<br />

poder detém o braço dos outros ramos do governo, quando ultrapassão<br />

os seus limites e invadem a esphera de outro. » (2 )<br />

« O poder de interpretar as leis, diz Story, comp^ehende<br />

necessariamente o de decidir se ellas são ou não conformes<br />

com a Constituição, e se não o são, de declaral-as nullas e de<br />

nenhum effeito.<br />

« Sendo a Constituição a lei suprema do paiz, se entre ella<br />

e as leis do Congresso, ou dos Estados, se levanta confticto, a<br />

autoridade judiciaria deve observar somente a lei que é de principal<br />

obrigação — a Constituição. Esta doutrina é conseqüência<br />

da theoria da Constituição de um governo republi-<br />

( 1 ) J. Bryce falia de uai inglez, que gastou dous dias folheando a Constituição<br />

americana atraz do artigo que autorisava o Supremo Tribunal a annullar os es.<br />

tatutos inconstitucionaes, c não o descobrio. Obra cit. t. t. p. í246.<br />

{ 2) American law. p. 73 § 27 Boston 1837.


E CONSTITUCIONAL 365<br />

cano ; porque, se assim não fosse, os actos do poder legislativo<br />

e os do executivo tornar-se-hião supremos e sem controle, e não<br />

obstante as prohibições e limitações contidas na Constituição,<br />

usurpações manifestas e perigosas dar-se-hião sem remédio<br />

para os cidadãos ; o povo ficaria a mercê dos governos, tanto<br />

nacional, como dos Estados ; emfim haveria praticamente uma<br />

omnipotencia, semelhante a da Inglaterra.<br />

« A opinião geral na America é que o poder judiciário deve<br />

decidir em ultima instância sobre a constitucionalidade dos<br />

actos e das leis tanto do governo geral, como dos Estados, pelo<br />

menos quando esses actos e leis cahem sob a apreciação d'aquelle<br />

poder. ( i )<br />

O precedente trecho do sábio commentador americano não<br />

deixa duvida sobre a competência do poder judiciário de julgar<br />

definitivamente da constitucionalidade, assim das leis, como<br />

dos actos do governo.<br />

Essa doutrina, resultante da theoria de uma constituição<br />

republicana, deverá ser seguida entre nós ?<br />

Aonde estará o artigo de nossa Constituição que a autorise ?<br />

Não contrariará ella o preceito constitucional da independência<br />

dos três poderes, dando superioridade a um d'esses poderes<br />

?<br />

A nossa Constituição é filha da americana, que lhe servio<br />

de modelo ; todos os poderes reconhecidos por ella são limitados,<br />

quer dizer, que nenhum d'elles é absoluto, mas todos devem<br />

gyrar dentro dos limites traçados pela Constituição ; n'isto<br />

consiste a principal differença entre a Constituição escripta e<br />

a histórica ou consuetudinaria.<br />

E' principio constitucional que a concessão de um poder<br />

para casos especificados implica exclusão d'esse poder para<br />

outros casos. ( 2 ) Ora, nos Estados Unidos é doutrina incontestada,<br />

e desde 1787 praticada pelos tribunaes, que quando as<br />

leis e actos do governo se achão sujeitos á apreciação do poder<br />

judiciário da União, o juizo d'esse poder é definitivo, « porque<br />

de outra sorte, diz Story, as decisões judiciarias serião menosprezadas,<br />

e os poderes legislativo e executivo dominariào irresistivelmente.<br />

» (3)<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2 p. 379 § 15711,<br />

( 2 ) V. Story, Gomm. t. 2. p. 483 S 1703.<br />

( 3 ) Loc. cit. p. 383 § 1576.


366 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Se tal é o principio, e se assim se pratica incontestavelmente<br />

no regimen da Constituição americana, entre nós e sob<br />

O império da actual Constituição, não se deve praticar de outro<br />

modo.<br />

Mas, dirão, isso pôde ser doutrina constitucional, mas não<br />

é direito constitucional escripto, porque nenhum texto consagra<br />

semelhante doutrina.<br />

Também a Constituição americana não contém nenhum artigo<br />

que autorise o poder judiciário a julgar da constitucionalidade<br />

das leis, e não obstante, ninguém ali duvida do direito dos<br />

tribunaes para annullar as leis e actos do governo, quando contrários<br />

á Constituição.<br />

Do texto d'essa Constituição, já referido, a saber, que « o<br />

poder judiciário se estenderá a todas as causas de direito e de<br />

equidade que resultarem, quer da Constituição, quer das leis><br />

quer dos tratados concluidos, ou que forem concluídos sob sua<br />

autoridade, » resulta evidentemente o direito de interpretar a<br />

Constituição e as leis, e de decidir se um acto legislativo ou<br />

executivo é contrario á Constituição, que em todo caso deve<br />

prevalecer.<br />

Ora, nossa Constituição contém disposição evidentemente<br />

inspirada pelo texto referido da Constituição americana.<br />

Diz o § i.° do art. 59 que « das sentenças das justiças dos<br />

Estados em ultima instância haverá recurso para o Supremo<br />

Tribunal Federal : i.° quando se questionar sobre a validade ou<br />

applicação de tratados e leis federaes, e a decisão do tribunal<br />

do Estado fôr contra ella ; 2.° quando se contestar a validade<br />

de leis ou de actos dos governos dos Estados em face da Constituição<br />

ou das leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado<br />

considerar validos esses actos, ou essas leis impugnadas. »<br />

Ora, para que o Supremo Tribunal sentencie nos casos referidos,<br />

é preciso que, tendo em vista as leis, tratados e a Constituição<br />

compare as sentenças dos tribunaes dos Estados com<br />

aquellas leis, tratados e Constituição para poder apanhar o genuíno<br />

sentido dos termos da comparação, e manifestar a conformidade<br />

ou a desconformidade d'aquelles termos. Mas esse<br />

processo de comparação é interpretativo, pois interpretação<br />

não é outra cousa senão a traducção do verdadeiro pensamento<br />

de uma lei. Logo a Constituição fez do Supremo Tribunal Fe"


E CONSTITUCIONAL 36"J<br />

deral interprete final das leis, dos tratados e da Constituição<br />

federaes.<br />

Que differença substancial existe entre o citado texto da<br />

nossa Constituição e o da americana, também já citado ? Nenhuma.<br />

Mas nos Estados Unidos, ou em virtude d'aquelle texto<br />

constitucional, como querem uns, ou por antiquissimo costume,<br />

admittido em nome do bom senso, no dizer de Story, ( i ) é em<br />

todo caso certo que ali o poder judiciário é o arbitro supremo<br />

das questões de constitucionalidade das leis e dos actos do<br />

poder executivo. E essa doutrina decorre, no dizer de Hamilton,<br />

from the general theory of a limited Constitution. (2)<br />

Ora, nossa Constituição é limitada ; logo nos seria applicavel<br />

a conseqüência da theoria geral das constituições limitadas,<br />

ainda quando não tivéssemos a lettra dos arts. 59 B e 60 A.<br />

Os nossos precedentes políticos, o habito que adquirimos<br />

de ver não só o poder legislativo, mas até o executivo trazerem<br />

avassalado o poder judiciário, e por outro lado a theoria da<br />

separação e independência de cada um dos poderes, podem motivar<br />

a objecção — que a doutrina exposta importa a superioridade<br />

do poder judiciário sobre os outros poderes constitucionaes.<br />

Essa objecção é velha. Já em 1788 Hamilton se referia i<br />

ella. (5)<br />

O illustre escriptor sustenta que todo acto praticado poi<br />

uma autoridade delegada, contrario ao theor dos poderes, em<br />

virtude dos quaes procede, é nullo ; por conseguinte não pôde<br />

haver acto legislativo válido, se é contrario á Constituição.<br />

« Negar esse princípio, continua Hamilton, é affirmar que<br />

o mandatário é superior ao mandante ; que o criado é superior<br />

ao patrão ; que os representantes do povo são superiores ao<br />

povo; que aquelles que obrão em virtude de poderes delegados<br />

podem fazer não só o que esses poderes não autorisão, mas até<br />

o que elles prohibem... Os juizes devem considerar a Constituição<br />

como lei fundamental, e se um acto legislativo se acha<br />

em conflicto com aquella lei, a elles compete preferir a lei fun-<br />

m<br />

( 1) Commentaries, t. 2. p. 31 § 157G.<br />

(2) Federalist n. 81 p. 596,<br />

(3) Non. 73do Federalist.


368 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

damental, que é de superior obrigação : em outros termos, a<br />

Constituição deve prevalecer sobre as outras leis, a intenção<br />

do povo sobre a dos seus agentes.<br />

« Nem d'ahi se deve concluir que o poder judiciário é superior<br />

ao legislativo. Somente presume-se que o poder do<br />

povo é superior a ambos os poderes, e que a vontade do mesmo<br />

povo, expressa na Constituição, deve prevalecer sobre a dos<br />

legisladores, expressa nas leis.<br />

E' racional suppor que o tribunal é um corpo intermediário<br />

entre o povo e o Congresso para conter este nos limites traçados<br />

á sua autoridade. »<br />

Esse raciocínio de Hamilton recebeu a consagração pratica<br />

da parte da magistratura americana.<br />

O primeiro dos magistrados americanos, que presidio o<br />

Supreme Court durante trinta e cinco annos, e ao qual « abaixo<br />

de Washington, devem os Estados Unidos a sua unidade, » discutindo<br />

o assumpto sujeito, escreveu em uma sentença :<br />

« Certo todos os que tem redigido constituições as considerão<br />

como lei fundamental e soberana do paiz. Portanto,<br />

conclue Marshall, deve ser principio de todo governo — que os<br />

actos legislativos, contrários á Constituição, são nullos. » E<br />

accrescenta : « Essa theoria é da essência da Constituição escripta<br />

; portanto este tribunal ( a Supreme Court ) deve consideral-a<br />

como principio fundamental de nossa sociedade, e não<br />

devemos perdel-a de vista no exame da presente questão. » (i)<br />

Esse poder da autoridade judiciaria de declarar inconstitucionaes<br />

os actos do poder legislativo e do executivo, estenderse-ha<br />

aos actos políticos do governo ?<br />

Ainda a respeito d'essa questão devemos nos referir aos<br />

publicistas americanos.<br />

O sábio Thomaz Cooley, baseado em decisões judiciarias,<br />

(1)0 nosso Supremo Tribunal Federal já leve occasião de firmar precedente<br />

a respeito da autoridade do poder judiciário em questão de direito constitucional.<br />

Referimo-nos ao caso do habeas-corpus requerido pelo eminente jurisconsulte Rn y<br />

Barbosa em favor dos suppostos conspiradores de 10 de Abril de 189.2, os quaes,<br />

com evidente intracção da Constituição e gravíssima violação da liberdade individual,<br />

íorão presos e desterrados. Não obstante as luminosas rasões do illustre patrono,<br />

o Tribunal jnlgou-se incompetente para tomar conhecimento do caso por ser po -<br />

Iftico, Misera est servüus, ubijus est vagum aut incertum, autjudices liment.


E CONSTITUCIONAL 369<br />

diz que em questões políticas os tribunaes não tem autoridade,<br />

e que as decisões do departamento politico do governo são<br />

finaes.<br />

Mas quaes são essas questões ?<br />

Elle as enumera assim : « São : i.° questões de existência<br />

de uma guerra, 2.° negociação de paz, 3.° de governos de facto<br />

ou de direito dos outros paizes, 4. 0 de autoridade de ministros e<br />

embaixadores estrangeiros, 5. 0 de admissão de um Estado na<br />

União, 6.° do restabelecimento das relações constitucionaes de<br />

um Estado que esteve rebellado, 7. 0 da extensão da jurisdicção<br />

de uma potência estrangeira, 8.° do direito dos índios a serem<br />

reconhecidos como tribu. ( 1 )<br />

Vê-se que n'essa extensa enumeração não se trata de caso<br />

algum que envolva violação do direito e da liberdade do cidadão.<br />

Outro publicista, não menos autorisado que o precedente,<br />

occupando-se com a questão do ministro da guerra Stanton, diz<br />

que « questões políticas são unicamente aquellas que implicão<br />

a existência de jure de um governo e a legalidade de algum<br />

acto ou procedimento puramente governamental. » ( 2 )<br />

Portanto não se deve allegar questão política para occultar<br />

e deixar impune um acto do governo, que fere a liberdade e<br />

o direito do cidadão.<br />

IV<br />

Além do Supremo Tribunal, com sede na capital da Republica,<br />

o poder judiciário terá também por órgãos tantos juizes<br />

e tribunaes, distribuidos pelo paiz, quantos o Congresso crear,<br />

diz a Constituição.<br />

Até hoje o Congresso não usou d'aquella faculdade.<br />

Tudo quanto até agora existe a respeito, é o instituto dos<br />

juizes seccionaes, um na capital de cada Estado, creado pelo<br />

Decreto n. 848 de 11 de Outubro de 1890 do Governo provisório.<br />

Antes de vermos quaes são as attribuições constitucionaes<br />

( 1 ) Constitutional Law, p. 138.<br />

( 2 ) V. Pomeroy, Constitutional Law, nota. Boutmy, fallando do Tribnnal<br />

Supremo dos Estados Unidos, diz que não conhece antinomia política mais aceentuada<br />

do que a d'essa pequena olygarchici de nove juizes inamoviveis, não eleitos, investida<br />

de tão grande autoridade, em nma democracia considerada typo. Etudes cit.<br />

p. 787.<br />

47<br />

Jêr


370 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

dos juizes ou tribunaes federaes, diremos duas palavras acerca<br />

de um ponto de direito <strong>publico</strong>, a respeito do qual os publicistas<br />

não estão de accôrdo.<br />

Os juizes singulares serão preferíveis aos tribunaes ?<br />

Pensão uns que o juiz singular é preferivel, porque a justiça<br />

torna-se mais prompta, e porque é mais fácil apreciar a<br />

capacidade e aptidão individuaes ; que se o juiz singular não<br />

pôde contar senão com os recursos de sua intelligencia, os<br />

arrasoados dos advogados esclarecem suficientemente o seu<br />

espirito ; e se afinal erra, os recursos legaes ahi estão para corrigir-lhe<br />

os erros. Finalmente sendo de toda necessidade que<br />

os juizes sejão bem pagos, é mais suave para o thesouro pagar<br />

bem a poucos, do que a muitos.<br />

Outros, pelo contrario, opinão pelos tribunaes, e a mór<br />

parte das instituições judiciarias os tem admittido.<br />

Nas sentenças proferidas por um corpo judiciário ha mais<br />

garantia de imparcialidade, de verdade e de rectidão, do que<br />

nas de um só indivíduo ; a possibilidade de erro diminue na<br />

razão directa do numero d'aquelles, que tomão parte em uma<br />

deliberação. Além d'isso um tribunal é menos accessivel, do<br />

que um só indivíduo, á corrupção e á influencia dos interessados.<br />

Emfim, uma corporação de magistrados attrahe mais, do<br />

que um juiz singular, a consideração e o respeito do <strong>publico</strong> e<br />

dos litigantes, e excita a emulação nas discussões das causas e<br />

o amor ao estudo da jurisprudência,<br />

Nossa Constituição admitte tanto os juizes singulares, como<br />

os tribunaes, ficando o numero de üns e de outros dependente<br />

da lei ordinária. Art. 55. Mas ella quer que o cidadão só seja<br />

sentenciado por juizes e tribunaes competentes, isto é, creados<br />

por lei e pela fôrma que esta os instituir. Art. 72 § 15.<br />

D'onde se infere que a Constituição prohibe os tribunaes<br />

extralegaes ou extraordinários.<br />

Outr'ora, os reis creavão á vontade juizes e tribunaes<br />

extraordinários, para julgarem certos processos ; e ainda hoje os<br />

dictadores, declarando estado de sitio, crião tribunaes militares,<br />

não para julgar, mas para condemnar adversários. « Esses tribunaes<br />

de sangue, diz certo escriptor, conculcando todas as<br />

fôrmas de processo, são incapazes de descobrir a verdade e de<br />

garantir os accusados, e só differem dos assassinos em que<br />

matão depois da formalidade de uma sentença, »


E CONSTITUCIONAL 371<br />

No regimen dos governos livres nenhum cidadão pôde ser<br />

distrahido de seus juizes naturaes, isto é, instituidos por lei, e<br />

não pelo arbítrio do poder executivo.<br />

Aquelle principio, que algumas constituições expressamente<br />

formulão, é estensivo ao próprio poder legislativo. Este<br />

pôde, sem duvida, crear um tribunal novo em substituição de<br />

outro existente, e dar-lhe nova organisação ; mas não pode por<br />

uma lei arredar de um tribunal ordinário o conhecimento de<br />

um processo que lhe está affecto ; não pôde determinar que um<br />

cidadão responda em um tribunal creado de propósito para<br />

elle ; não pôde, por uma lei posterior a um delicto, privar os<br />

cidadãos dos juizes ou do tribunal que a lei anterior lhes designava.<br />

O principio da irretroactividade das leis, consagrado<br />

pela Constituição ( Art. 11 § 3.° ) é também applicavel á competência<br />

de foro.<br />

Não devemos, porém, confundir os tribunaes extraordinários<br />

com os especiaes, creados para certas e determinadas<br />

matérias, como são os tribunaes de commercio, os militares e<br />

outros.<br />

A Constituição creou foro especial para os militares de<br />

terra e mar, compondo-se esse foro de um Supremo Tribunal<br />

militar, e de conselhos para a formação da culpa e julgamento<br />

dos crimes. Art. 77 § i.°<br />

Aos juizes e tribunaes federaes compete, na fôrma da Constituição,<br />

art. 60, processar e julgar :<br />

i.° As causas em que algumas das partes fundar a acção,<br />

ou a defesa, em disposição da Constituição Federal ;<br />

2. n Todas as causas propostas contra o governo da União,<br />

ou Fazenda Nacional, fundadas em disposição da Constituição,<br />

leis e regulamentos do poder executivo, ou em contractos celebrados<br />

com o mesmo governo ;<br />

3.° As causas provenientes de compensações, reivindicações,<br />

indemnisações de prejuizos ou quaesquer outras, propostas<br />

pelo governo da União contra particulares ou vice-versa ;<br />

4. 0 Os litígios entre um Estado e cidadão de outro, ou<br />

entre cidadãos de Estados diversos, diversificando as leis<br />

d'estes ;<br />

5. 0 Os pleitos entre Estados estrangeiros e cidadãos braziieiros<br />

;<br />

6." As acções movidas por estrangeiros e fundadas, quer


372 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

em contractus com o governo da União, quer em convenções<br />

ou tratados da União com outras nações ;<br />

7. 0 As questões de direito marítimo e navegação, assim<br />

no oceano, como nos rios e lagos do paiz;<br />

8.° As questões de direito criminal ou civil internacional ;<br />

9. 0 Os crimes politicos.<br />

Traçando as attribuições dos juizes ou tribunaes federaes,<br />

a Constituição não esqueceu os limites e relações entre os<br />

juizes ou tribunaes dos Estados e aquelles. E assim na secção<br />

relativa ao poder judiciário estabeleceu os seguintes principios :<br />

l.° Que as decisões dos juizes ou tribunaes dos Estados,<br />

nas matérias de sua competência, porão termo aos processos<br />

e ás questões, excepto quando a questão fôr de habeas-corpus,<br />

ou de espolio de estrangeiro, se a espécie não estiver prevista<br />

em convenção ou tratado, pois, n'esses casos poderá haver<br />

recurso ( voluntário ) para o Supremo Tribunal. Art. 6i.<br />

2." Que as justiças dos Estados não podem intervir em<br />

questões submettidas aos tribunaes federaes, nem annullar,<br />

alterar ou suspender as suas sentenças ou ordens. E reciprocamente,<br />

a justiça federal não pôde intervir em questões submettidas<br />

aos tribunaes dos Estados, nem annullar, alterar ou<br />

suspender as decisões ou ordens d'estes, exceptuados os casos<br />

expressamente declarados na Constituição. Art. 62.<br />

3.° Que nos casos em que houver de applicar leis dos<br />

Estados, a justiça federal consultará a jurisprudência dos tribunaes<br />

locaes, e vice-versa, as justiças dos Estados consultarão<br />

a jurisprudência dos trihunaes federaes, quando houverem de<br />

interpretar leis da União. Art. 59 § 2.<br />

Nos Estados Unidos do Norte não ha lei geral que regule a<br />

vida local, nem o Congresso tem poder de legislar sobre materia<br />

d'essa natureza, excepto nos Territórios e no districto de<br />

Colombia. Por isso quando a justiça federal tem de funecionar<br />

nos Estados em processos civis, applica a lei do Estado em que<br />

julga. A lei judiciaria de 1789 dispõe que « excepto os casos<br />

em que a Constituição, os tratados, ou as leis dos Estados<br />

Unidos dispuzerem de outro modo, as leis dos Estados serão<br />

observadas para a decisão nos processos de direito commum<br />

que correrem nos tribunaes dos Estados Unidos. ( 1 )<br />

(1)0 nosso decreto de 11 de Outubro de 1880, que organisou a justiça<br />

federal, dispõe (art. 387) que nos casos omissos constituirão legislação subsidiaria


Jll<br />

E CONSTITUCIONAL 373<br />

V<br />

A Constituição, respeitando a tradicional instituição do<br />

jnry, apenas dispõe que ella é mantida. Art. 72 § 3i,<br />

D'essa instituição, de origem ingleza, se tem dito muito<br />

bem, e muito mal. Não sendo, porém attinente ao nosso<br />

assumpto descer ao estudo d'ella, diremos apenas, como certo<br />

publicista, que o jury vale o que vale a massa da nação, aonde<br />

elle funcciona.<br />

Na Inglaterra, desde tempos immemoriaes, se acha firmado<br />

o principio : « De facto respondent juratorce, de jure judices ><br />

principio que a nossa anterior Constituição traduzio no art. 152<br />

dizendo — os jurados pronuncião sobre o facto, e os juizes<br />

applicão a lei.<br />

Entre as garantias consagradas na Magna Carta, em favor<br />

das liberdades civis e políticas do cidadão inglez, está esta '•<br />

Nullus homo capiatur, nec imprisionetur, aut exulet, aut<br />

aliquo modo destruatur... nisi per legale judicium parium<br />

suorum, per legem terrœ.<br />

Da Inglaterra passou aquella instituição para a America, e<br />

foi consagrada em diversas constituições européas, como a da<br />

Bélgica (art. 98), a da Prussia (art. 94), a da Austria (art. 11).<br />

A Constituição dos Estados Unidos a escreveu n'estes<br />

termos : « O julgamento de todos os crimes, excepto nos casos<br />

de impeachment, pertencerá ao jury, e se effectuará no Estado<br />

em que o crime for praticado. Art. 3.° secç. 2." § 3. »<br />

Esta declaração não tendo contentado os adversários da<br />

Constituição, os quaes clamavão pela necessidade de uma<br />

Declaração de direitos (bill of rights), emendas forão addicionadas<br />

á Constituição, e na 5." e 6." se dispôz ainda sobre o<br />

jury o seguinte : Nenhum cidadão será obrigado a responder<br />

por crime capital, ou qualquer outro crime infamante, senão<br />

por denuncia ou accusação emanada de grande jury... Emen-<br />

os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas<br />

na Republica dos Estados Unidos da America do Norte, e os casos de—common law<br />

e equity law.<br />

Sobre 0 que sejão a — common law e equity law, — pode-se 1er Carlier, obra<br />

cit. t. i p. 4.


374<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

da V. Em todos os processos criminaes o accusado gosará do<br />

direito de ser julgado prompta e publicamente por um jury<br />

imparcial do Estado ou do Districto, em que o crime tiver sido<br />

commettido, Districto este previamente estabelecido por lei...<br />

Emenda VI.<br />

Nossa Constituição tendo-se limitado a inserir na Declaração<br />

de direitos a conservação da instituição do jury, deixou<br />

a organisação d'esse tribunal democrático aos cuidados do<br />

legislador ordinário.<br />

Entre nós o jury só é admittido em materia criminal.<br />

A Constituição do império (art. 51 ) dispunha que os juizes<br />

e jurados terião lugar assim no civil, como no crime ; mas no<br />

eivei nunca o tivemos ; as ordenações e leis do reino o substituirão<br />

sempre.<br />

A Constituição actual não falia do jury em materia civil»<br />

apenas estabeleceu o principio do julgamento pelo jury.<br />

A phrase constitucional « E' mantida a instituição do jury »<br />

autorisará o jury, tanto em materia criminal, como em materia<br />

civil ?<br />

Posto que a instituição do jury que existia na pratica fosse<br />

a do jury criminal, todavia parece que a phrase constitucional<br />

não tem sentido restricto a essa espécie de jury, mas deve ser<br />

entendida em sentido lato, comprehendendo a instituição do<br />

jury em geral, seja qual fôr a espécie. Sendo assim, pôde a<br />

lei ordinária crear jury para materia civil.<br />

Mas convirá fazel-o ?<br />

O jury em materia civil é admittido na Inglaterra e nos<br />

Estados Unidos sem grande vantagem para a justiça, ao que<br />

dizem certos escriptores.<br />

« Penso, dizia Tocqueville, que se deve attríbuir a intelligencia<br />

pratica e o bom senso politico dos americanos principalmente<br />

ao uso que por muito tempo elles tem feito do jury em<br />

materia civil. Não sei se lá o jury é util aos litigantes, mas<br />

estou certo que o é muito aos que julgão. »<br />

Ora, é exactamente a utilidade para os que questionão em<br />

materia civil, o que se deseja ; e sob essa relação a corrente<br />

dos escriptores condemna o jury civil.<br />

Em materia criminal a costumeira indulgência e parcialidade<br />

dos jurados, como offendem unicamente a sociedade, não<br />

levantão grande indignação ; mas em um processo entre parti-


E CONSTITUCIONAL 375<br />

culares, no qual os interesses são mais sensíveis, o clamor se<br />

levantaria com força.<br />

Os jurisconsultes fazem observar que o jury em materia<br />

civil lueta com uma difficuldade invencível, e é distinguir na<br />

pratica o ponto do direito do ponto do facto, para dar ao<br />

magistrado a decisão da questão de direito, e ao jurado a do<br />

facto.<br />

Na Inglaterra, berço do jury em materia civil, as partes<br />

evitão, quanto podem, ir a esse tribunal, assim é que em i87o<br />

sobre 523,340 casos julgados pelos tribunaes dos condados<br />

só 921, isto é, menos de 2 em 100 forão submettidos ao jury. (1)<br />

( 1 ) V. Saint Girons. Separation des pouvoirs, p. 419 aonde discute a incon»<br />

veniencia do jury civil a 429.


CAPITULO XVIII<br />

DO MUNICÍPIO, AUTONOMIA E CENTRALIS AÇÃO. ORGANISMO<br />

MUNICIPAL. UNIFORMIDADE DA ORGANISAÇÂO MUNICIPAL<br />

I<br />

Bem comprehenderão os nossos legisladores constituintes o<br />

valor das liberdades municipaes em um regimen democrático.<br />

Com efíeito, é impossível uma republica federativa sem<br />

municipios livres na gestão dos seus negócios ; poderá ella ter<br />

o nome de republica, será na apparencia uma federação, mas<br />

nem terá o espirito de liberdade, nem poderá resistir ás invasões<br />

possiveis do governo central.<br />

« Os Estados organisar-se-hão de forma, diz a Constituição,<br />

que fique assegurada a autonomia dos municipios, em tudo<br />

quanto respeite ao seu peculiar interesse. » Art. 68.<br />

Esta é a única disposição de nossa Constituição a respeito<br />

do município. Tudo mais concernente á sua vida, á sua organisação,<br />

a Constituição deixou ás leis dos Estados. A estes,<br />

portanto, compete lançar as bases da organisação municipal,<br />

comtanío que fique assegurada a autonomia dos municipios.<br />

Pelo que, aqui nos limitaremos a enunciar algumas idéas<br />

geraes relativas á organisação municipal.<br />

E' fora de duvida que é da essência de um governo livre e<br />

elemento ideal do organismo administrativo de um Estado a<br />

existência de municipios autônomos, isto é, de posse do direito<br />

de se governarem por suas proprias leis. Suis legibus uti. (I)<br />

(1)0 sentido primitivo das palavras munkcps, município, ó objecto de muita<br />

duvida para os autores modernos. Geralmente derivão aquellas palavras de mvnus<br />

48


378 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Mas a difficuldade está em realisar na pratica aquelle ideal.<br />

Para um povo educado nas praticas do self-government,<br />

como o inglez e o americano, a autonomia do município é uma<br />

realidade. Para outros, porém, cujas condições históricas, intellectuaes<br />

e moraes são différentes, aquella autonomia pôde<br />

ser apenas um desideratum, um objectivo a attingir.<br />

Nós nos achamos n'este ultimo caso. O principio constitucional<br />

da autonomia dos municípios é presentemente para o<br />

povo brasileiro uma simples aspiração política.<br />

Mas da nossa actual incapacidade para ávida local autônoma<br />

não se deve inferir que seremos sempre incapazes d'ella.<br />

Adiar a autonomia dos municipios para quando formos<br />

apto, e ao mesmo tempo não iniciar essa autonomia, e continuar<br />

sob a tutela do Estado, é o caso do sophisma de adiamento<br />

tão valentemente combatido por Bentham ( i ).<br />

Não estamos no caso de ter vida municipal livre, porque<br />

não estamos educados para ella, continuemos, pois, no regimen<br />

tutelar até que nos eduquemos.<br />

Mas como nos educaremos se não começarmos ?<br />

Como nos libertaremos dos effeitos, se continuarmos sob a<br />

acção da mesma causa ?<br />

Fez muito bem, pois, o legislador constituinte preceituanclo<br />

que os Estados se organisent de modo que fique garantida a<br />

autonomia dos municipios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar<br />

interesse.<br />

Os negócios e interesses do Estado são dístinetos dos dos<br />

municipios, e não devem ser identificados, ainda que ás vezes<br />

seja difficil traçar uma linha de demarcação entre elles.<br />

O modo pelo qual certa necessidade é sentida, e a natureza<br />

da providencia para satisfazel-a podem servir de critério para<br />

reconhecermos, se a necessidade ou interesse é geral, e portanto<br />

da competência do Estado, ou se é local, e portanto da<br />

attribuição do município.<br />

E' geral aquella necessidade que é sentida em todas as<br />

partes do Estado e cuja satisfação aproveita a todos os seus<br />

capessere, murms fungi. Ülpiano diz — Munieipes appellantur munem participes, reeeptiin<br />

cíoUaie, vi munera nobiscum facereni. D. L t. I. Puile-so vera questão cm<br />

Willems, Le Droit Public romain, p. 357 e seg. Paris 1888.<br />

( 1 ) Sophismes parlementaires, 3. p. e 3.


XW<br />

E CONSTITUCIONAL 37o.<br />

habitantes, ainda que aproveite a uns, mais do que a outros,<br />

como é a construcção de uma estrada de ferro, o melhoramento<br />

de um porto.<br />

Uma necessidade d'essa natureza é claro que não pôde ser<br />

satisfeita por um só município, porque é superior aos seus recursos,<br />

e nem seria justo que, aproveitando a outros, só um a<br />

satisfizesse.<br />

Mas, se se trata da necessidade de uma estrada exclusivamente<br />

municipal, de uma ponte, de um mercado, de uma escola,<br />

etc, que só aproveitão aos habitantes de um município, só<br />

elles devem satisfazer essa necessidade, porque só elles a<br />

sentem ( i ).<br />

II<br />

D'essa dualidade de serviços e de interesses, e do modo de<br />

satisíazel-os administrativamente, surgirão os dous regimens<br />

administrativos chamados centralisação e descentralisação.<br />

Em toda sociedade política, chame-se Nação ou Estado,<br />

deve necessariamente existir um poder central, que dê unidade<br />

e harmonia a todas as partes do organismo político.<br />

Se esse poder central se limita a gerir os interesses geraes<br />

e coîlectivos d'aquelle organismo, deixando á iniciativa e á gerencia<br />

dos organismos menores a administração dos negócios e<br />

interesses particulares, temos o regimen da descentralisação ou<br />

o self-government ; se pelo contrario, o poder central tolhe a<br />

liberdade de iniciativa dos organismos menores, e por si e seus<br />

agentes administra e dirige a vida d'aquelles organismos, temos<br />

o regimen da centralisação.<br />

Ambos esses regimens tem seus defensores, e são praticados<br />

em différentes paizes.<br />

Mas entre elles se deve admittir um regimen médio, que<br />

rigorosamente não é nem descentralisador, nem centralisador,<br />

mas participa da natureza de um e outro.<br />

Typos do systema de descentralisação são os Estados Unidos<br />

e a Inglaterra, do de centralisação a França, e do systema<br />

médio a Bélgica, a Prussia e a Italia.<br />

Para evitar duvida, cumpre advertir que os escriptores ad-<br />

( I ) V. Giaiiquhilo, LUC. cil. i. 2. cap. I secy. 2.


380 NOÇÕES DE blft&T'O PUBLICO<br />

mittem três espécies de centralisação política, administraiiva<br />

e moral.<br />

A centralisação política consiste na existência de um poder<br />

central preponderante, que actuando as suas forças por toda a<br />

Nação, ou por todo o Estado, vela pela unidade e harmonia da<br />

vida do todo, e cura dos interesses geraes. A respeito d'essa<br />

centralisação não se levanta questão. A existência de um poder<br />

central com aquellas attribuições é essencial a todo Estado.<br />

. Chama-se centralisação administrativa aquella em que o<br />

poder central se substitue a autoridade local, não permittindo que<br />

os organismos menores do Estado, províncias ou municípios,<br />

administrem os seus negócios. E' a respeito d'esta espécie de<br />

centralisação, também chamada tutela administrativa, que<br />

disputão os autores.<br />

As duas precedentes espécies de centralisação podem existir<br />

juntas em um mesmo Estado, como na França, ou separadas,<br />

como na Inglaterra, e na União americana do Norte, paizes<br />

estes que são descentralisados administrativamente, e centralisados<br />

politicamente.<br />

Finalmente, alguns autores chamão centralisação moral a<br />

grande accumulação de capitalistas, de doutos, de artistas e<br />

operários nas capitães e centros populosos, para onde são attrahidos<br />

na esperança de satisfazerem suas legitimas ambições.<br />

Na questão de descentralisação administrativa convém não<br />

esquecer que é seu elemento essencial a ausência de acção do<br />

poder central na esphera dos interesses locaes.<br />

Emquanto os negócios locaes dos municípios, ou dos Estados,<br />

não forem deixados á livre e independente gestão das autoridades<br />

eleitas pelos municípios ou pelos Estados, não se<br />

poderá dizer que gosamos de descentralisação, que os municípios<br />

e os Estados são autônomos.<br />

Pouco importa, diz Gianquinto, que o governo central<br />

exercite sua ingerência nas localidades immediata e directamente<br />

por si, ou por delegados seus tirados das localidades : o<br />

modo do exercício da autoridade central não muda a questão,<br />

porque a verdadeira descentralisação não é questão de espaço<br />

ou de distancia, mas de liberdade e autonomia local. ( i ) Eis<br />

aqui o verdadeiro conceito do self-government.<br />

( 1 ) Loc. cit. § 1132.


Jft<br />

E CONSTITLJIONAL<br />

Entre os dous regimens de cenrralisaçào e de descentralisação<br />

absoluta bem se comprehende que pôde haver gradações.<br />

O gráo de acção do poder central na vida local pôde ser maior<br />

on menor, a tutela governativa pôde ser mais ou menos rigorosa.<br />

E nem se pôde passar rapidamente de um extremo a<br />

outro.<br />

Na vida administrativa o ideal é a completa descentralisação,<br />

que é uma conseqüência da liberdade pessoal. Isso é uma<br />

verdade em direito <strong>publico</strong> administrativo ; mas a sua applicação<br />

fica sujeita ás circumstancias peculiares de cada povo.<br />

Posto que as verdades da sciencia social sejão, como as<br />

outras, theoricamente absolutas, todavia, diz Dunoyer, não são<br />

susceptíveis de receber a mesma applicação, em determinado<br />

tempo em todos os paizes. ( i )<br />

E' o que se dá comnosco. Não podemos saltar do estado<br />

centralisador, em que vivemos sob a monarchia, para o estado<br />

completamente autonomico, que nos assegura a lettra da Constituição<br />

da Republica. Mas, como já dissemos, é preciso iniciar<br />

a vida de liberdade local ; é necessário que os municípios<br />

se constitua© sob aquelle dictame, tendo diante de si o ideal da<br />

autonomia.<br />

A Constituição d'esté Estado bem providenciou n'esse<br />

ponto. O nosso município, excepto a restricção dos §§ 2 e 3<br />

do art. 95 d'aquella Constituição, em tudo mais pôde ser autônomo.<br />

No que respeita á sua vida econômica e administrativa,<br />

só precisa do poder central do Estado para effectuar empréstimos,<br />

aforar e alienar os immovcís do município.<br />

Justificando a necessidade da autonomia dos nossos municípios,<br />

antes que a Constituição federal de 24 de Fevereiro de<br />

1891 a garantisse, escrevemos o seguinte, que reproduzimos,<br />

como prova de nossas convicções no assumpto.<br />

« E' absolutamente necessário resuscitar os nossos municípios,<br />

tornando-os senhores de seus negócios interiores, dandolhes<br />

poderes para administrarem livremente, por meio de agentes<br />

de sua escolha, os serviços municipaes. A localidade entre<br />

nós tem até hoje vivido como menor sob a inhabil e atrophiante<br />

tutela do Estado ; é tempo de proclamal-a maior, dando-lhe a<br />

( 1 ) De la liberté du travail, t. 3 p. li 6.<br />

381


382 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

posse de seus direitos e a responsabilidade de seus actos : con a<br />

todos os perigos da liberdade gosando de seus privilégios. Se<br />

as nossas localidades continuarem a receber a vida na medida<br />

que lhes quizer dar o Estado, em vez de partir d'ellas a vida<br />

para o Estado, percamos a esperança de ser uma republica federativa,<br />

grande e prospera, Deixemos que a criança ande por<br />

si, embora soffra quedas : por fim aprenderá andar sósinha.<br />

Nos Estados-Unidos cada municipio ou communa (township),<br />

diz Laboulaye, é uma pequena republica, um pequeno<br />

Estado ; vende, compra, toma emprestado, vai ajuizo, transige,<br />

sem que o Estado se intrometta ; se enriquece, ou se arruina é<br />

por sua conta. Todos os annos, no mez de Maio, o township<br />

incumbe a um certo numero de eleitos (selectmen) a execução<br />

de suas deliberações. Ao lado dos selectmen são eleitos vários<br />

funecionarios municipaes : os assessores que lanção os tributos><br />

os collectores que os arrecadão, o constable que dirige a policia,<br />

o greffier ou clerk que redige as actas da assembléa e registra<br />

os actos do estado civil, um thesoureiro que guarda os<br />

fundos municipaes, muitos trustees ou commissarios, vigilantes<br />

dos pobres, visitadores das escholas, inspectores das estradas,<br />

vigias da grande e da pequena viação, fiscaes dos pesos e medidas,<br />

etc, sem fallar no jury e na milicia.<br />

Em suas relações com o Estado o municipio ou communa<br />

só é obrigado a satisfazer os serviços de utilidade geral conformando-se<br />

com as leis do Estado. Se o Estado pede contribuições,<br />

o municipio é obrigado a dar-lhe ; se quer abrir uma estrada,<br />

que atravessa mais de um municipio, esses não podem<br />

fechar o seu território ; se faz um regulamento geral de policia,<br />

todos os municípios devem observal-o ; se resolve que o ensino<br />

se organise em todo o território sob o mesmo plano, o municipio<br />

é obrigado a crear as escholas que a lei prescreve. ( i )<br />

III<br />

Cellula germinal e primitiva do organismo do Estado, o municipio<br />

se desenvolve nos diversos paizes de conformidade com<br />

as condições praticas, peculiares de cada um, obedecendo ao<br />

mesmo tempo ás leis políticas de sua instituição.<br />

( I ) V. o nosso Projectodc Constituição para o Estado de Pernambuco. Recife.<br />

Março de 1890.


m<br />

E CONSTITUCIONAL 383<br />

D'ahi as differenças que se notão nos organismos municipaes<br />

nos différentes paizes civilisados.<br />

Aqui, elles se desenvolvem livremente, sem a incommoda<br />

tutela do poder central do Estado, que não tem sobre elles senão<br />

a acção de vigilância e de direcção geral, como pedem a<br />

conservação do Estado e a harmonica cooperação das partes<br />

com as leis geraes do todo. E' o regimen do self-government.<br />

Ali as pequenas sociedades municipaes não tem vida propria,<br />

não se regem por leis de sua iniciativa ; porque a sociedade<br />

maior, o Estado, leva a sua acção governativa até ás mais<br />

intimas funcções do organismo municipal. Os cidadãos são reputados<br />

incapazes de se administrarem, de usarem bem de sua<br />

liberdade natural no governo de seus negócios, e o poder central<br />

offerece-se para obrar por elles, ou os autorisa a obrarem<br />

d'esté ou d'aquelle modo. Aqui temos a centralisação ou o cesarismo.<br />

( i )<br />

Em outra parte aquella intervenção do poder central é temperada<br />

com a iniciativa da localidade. Os cidadãos dos municípios<br />

são ainda reputados menores, mas a tutela do Estado se<br />

afrouxa um pouco ; podem fazer por si algumas cousas, exercem<br />

certas funcções essenciaes á sua vida ; mas o governo central<br />

está sempre presente, como o tutor romano, ad integrandam<br />

personampupilli. Eis aqui o regimen da tutella governativa.<br />

Seja, porém, qual fôr o gráo de intervenção do poder central<br />

na vida municipal, dous factores são essenciaes á organisação<br />

do município ; um relativo á circumscripçâo territorial do<br />

município, e outro concernente á autoridade governativa.<br />

A circumscripção dos municípios é materia contingente, e<br />

como tal variável nos dirlerentes paizes. As divisões territoriaes,<br />

o espaço que as différentes legislações attribuem aos<br />

municípios, não é propriamente objecto do direito <strong>publico</strong>, e<br />

portanto transcede ao nosso objecto.<br />

Sob a relação de espaço, geralmente se dividem os municípios<br />

em urbanos e ruraes.<br />

Essa divisão, posto que artificial, por que ser ou não cidade<br />

( 1 ) De Ferrem dia que a palavra tesarismo exprime melhor esse regimen, do<br />

que a palavra centralisação, que em corto sentido é essencial a todo governo V. 'n'<br />

slitulions municipale-: eî provinciales comparées. Introd. Paris. 1884,


384 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

depende do legislador, todavia não deixa de ter uma base natural,<br />

qual é, o gráo de adiantamento que apresentão os municípios<br />

sob o ponto de vista de recursos financeiros, de instrueção<br />

e gênero do trabalho a que se dão habitualmente os seus habitantes.<br />

O município rural geralmente é mais extenso, do que o<br />

urbano. Vive da industria agraria e pastoril. A cultura moral<br />

e intellectual não é o principal objecto de seus cuidados.<br />

No municipio urbano, pelo contrario, predominão as industrias<br />

commercial, manufactureira e artística. A cultura intellectual<br />

e moral é mais solicitada. Seus recursos pecuniários<br />

maiores, e seu modo de viver mais suave e polido.<br />

Entretanto, não devemos tomar essas differenças como<br />

caracteristicas. Municipios ruraes existem, em que os recursos<br />

financeiros, a cultura civil, os costumes e hábitos de vida social,<br />

nada tem a invejar a algumas pequenas cidades, que só tem de<br />

superior o nome.<br />

O outro factor da organisação municipal c a autoridade,<br />

a qual é exercida por funccionarios eleitos pelos cidadãos do<br />

municipio.<br />

Esses funccionarios, cujo numero, jurisdicção e cathegoria<br />

são indeterminadas em theoria, em virtude do gráo de autoridade<br />

de que se achão investidos e da subordinação de uns aos<br />

outros, constituem a hierarchia administrativa municipal,<br />

A autoridade no municipio é de caracter executivo e deliberativo<br />

: deliberação e acção são os elementos constitutivos<br />

d'essa autoridade.<br />

O elemento da deliberação, do conselho, incumbe ás assembléas<br />

eleitas pelos municipes.<br />

As condições do eleitorado e da elegibilidade dos membros<br />

das assembléas municipaes varião muito nos diversos paizes.<br />

O conhecimento das precisões do municipio, e o interesse<br />

na sua administração, são principaes condições na eleição<br />

municipal.<br />

Se o suffragio universal podesse ser uma verdade pratica,<br />

tendo todos os municipes interesse directo ou indirecto na<br />

boa administração de sua localidade, todos deverião tomar<br />

parte na eleição, todos deverião ser eleitores.<br />

Mas assim não é, e o voto sendo praticamente mais ou<br />

menos restricto, apparece a necessidade de um censo, e n'este


m<br />

E CONSTITUCIONAL 385<br />

caso só os que tem directo c immediato interesse no município,<br />

os proprietários, os industriaes, etc, devem ter a qualidade de<br />

eleitor municipal.<br />

O elemento da acção, o agente executivo, em um regimen<br />

livre, deve também sahir do voto dos cidadãos.<br />

Mas, pergunta-se, a execução das deliberações deve competir<br />

a um só, ou a mais de um ?<br />

Roederer estabeleceu o principio que — deliberar é obra<br />

de muitos, e executar é obra cie um só.<br />

Esse principio, que se tornou corrente em administração,<br />

é reputado por alguns como uma maxima de despotismo. Mas<br />

não ha duvida que a fôrma collectiva, que as corporações, não<br />

são aptas para executar.<br />

A unidade de pessoa garante melhor, do que a pluralidade,<br />

a energia, a promptidão e a responsabilidade, requisitos essenciaes<br />

a uma boa administração.<br />

Não quer isso dizer que o poder executivo municipal, competindo<br />

a uma só pessoa, seja por ella exclusivamente desempenhado.<br />

Não. Esse poder, na impossibilidade pratica de realisar<br />

pessoalmente todas as suas funcções, pôde ter sob suas ordens<br />

diversos agentes, que o auxiliem.<br />

No Estado, como na União federal, o poder executivo é<br />

confiado a uma só pessoa, e todavia ella tem muitos auxiliares,<br />

que o coadjuvão na administração.<br />

A repartição do poder executivo por mais de uma pessoa,<br />

iguaes em autoridade, é o que não convém. Os desaccôrdos,<br />

as rivalidades, a vaidade de querer ser o primus inter pares,<br />

enfraquecem o poder e lhe diminuem o respeito <strong>publico</strong>. Além<br />

d'isso a responsabilidade, essencial a todo governo, é mais<br />

effectiva no governo de um só, do que no de um conselho ou<br />

commissào executiva.<br />

IV<br />

Das differenças que em todos os paizes se observa entre os<br />

municípios urbanos e os ruraes, partem alguns publicistas para<br />

sustentar, que todos os municipios de um Estado não devem ter<br />

a mesma organisação, nem gosar por conseguinte dos mesmos<br />

direitos na gestão de seus negócios.<br />

Os municipios urbanos, que se avantajão aos ruraes por sua<br />

49


386 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

riqueza, seu commercio, sua instrucção, e que finalmente tem<br />

os elementos necessários á vida autônoma, devem viver livremente,<br />

isentos da acção do poder central do Estado. Pelo<br />

contrario os pobres municípios ruraes, que carecem de meios<br />

econômicos, de capacidade administrativa, devem estar sujeitos<br />

á tutela administrativa do governo do Estado. Conceder­lhes<br />

completa autonomia é pôr em risco os interesses geraes do<br />

Estado. Dous ou très individuos mais intelligentes e sagazes<br />

podem apoderar­se da administração do município, e exploral­o<br />

em seu proveito pessoal.<br />

Aquelles que sustentão essa doutrina, dizem que não é<br />

racional,nem justo que a lei estabeleça um modo uniforme para<br />

todos os municipios se administrarem, sendo elles tão différentes<br />

em todos os elementos de sua vida.<br />

A mesma lei, dizia Vivien, não pôde convir aonde as luzes<br />

e os recursos tanto differem. Uma lei uniforme colloca o legislador<br />

em rigorosa alternativa : ou ha de restringir os direitos<br />

de todos por causa da incapacidade de alguns, o que é injustiça ;<br />

ou ha de conceder a todos direitos de que alguns são incapazes<br />

de usar, o que pôde comprometter os interesses geraes, e como<br />

estes interesses devem sempre prevalecer, uma organisação<br />

uniforme tem como resultado necessário tornar impossível a<br />

liberdade da adminstração municipal. ( i )<br />

O legislador que uniformisa o regimen administrativo dos<br />

municipios, diz outro escriptor, é semelhante ao gigante, que<br />

queria que todos os seus hospedes fossem do tamanho do leito<br />

que preparara para si, e então on os encurtava mutilando­lhes<br />

as pernas, ou os estirava violentamente até ficarem do tamanho<br />

do leito.<br />

Os legisladores dos paizes, em que a liberdade municipal<br />

tem profundas raizes, como na Inglaterra, e na União americana,<br />

não sujeitarão as instituições municipaes a um regimen<br />

uniforme. Elles pensão que a uniformidade é um obstáculo ao<br />

progresso, que vive das experiências repetidas, e que uma<br />

applicação progressiva dá tempo a que a lei vá se aperfeiçoando<br />

de conformidade com o ensino da experiência.<br />

Os outros escriptores, que são rela uniformidade, allegão o<br />

( 1 ) V. !>•■ Fcrrrm. Institutions municipales., p. 110


m<br />

E CONSTITUCIONAL 387<br />

grande principio da igualdade, proclamado pela philosophia do<br />

direito, e pelas constituições modernas.<br />

Assim como os indivíduos são iguaes perante a lei, assim<br />

também as pessoas collectivas o devem ser, gosando todas dos<br />

mesmos direitos e sujeitos aos mesmos deveres.<br />

A esse argumento replicão os sustentadores da desuniformidade<br />

:<br />

Longe da classificação dos municípios ser opposta ao principio<br />

da igualdade, pelo contrario, é muito conforme com a<br />

verdadeira igualdade.<br />

Com effeito, a verdadeira igualdade consiste em tratar<br />

desigualmente aos que são desiguaes por natureza, porque se a<br />

seres desiguaes se attribuirem qualidades iguaes, o resultado<br />

será uma perpetua desigualdade.<br />

A desigualdade proporcionada á natureza dos seres é lei,<br />

tanto no mundo physico, como no moral e juridico. As capacidades<br />

jurídicas são determinadas nas leis de conformidade<br />

com a idade, o sexo, o estado de família e a cultura intellectual<br />

das pessoas.<br />

Cumpre reconhecer que pela propria natureza das cousas,<br />

um município pequeno e pobre, sem recursos industriaes e<br />

econômicos, sem pessoal habilitado para desempenhar os encargos<br />

da administração, não pôde usar dos direitos, nem satisfazer<br />

os deveres inhérentes ao regimen das liberdades locaes,<br />

do mesmo modo que outro, que se acha em condições contrarias.<br />

Cicero dizia : Non possunt ca, quae inter se discrepant,<br />

iisdetn preceptis, clique in una institiiiioue formari. ( I )<br />

Para remediar a evidente impossibilidade de uma mesma<br />

organisação para todos os municípios, submettendo-os a uma<br />

mesma lei de organisação, só dous expedientes occorrem : ou<br />

incorporar dous ou mais municípios pequenos, pondo-os assim<br />

em condição de poderem reger-se por si, ou fazer leis différentes<br />

e facultativas, accommodaveis ás circumstancias peculiares<br />

dos municípios.<br />

O primeiro expediente tem o inconveniente de ferir o amor<br />

próprio dos habitantes dos pequenos municípios, que se considerão<br />

iguaes, como entes moraes, aos giandes, e como estes<br />

capazes dos mesmos direitos e deveres.<br />

Assim como os pequenos Estados não quererião annexar-se<br />

( 1 ) De orat. 1, 3. b, 9.


388 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

a outros, para formar um Estado grande, e prefeririào viver<br />

autônomos na sua pobreza, assim também os municípios.<br />

O outro expediente consulta melhor a doutrina liberal, e a<br />

natureza do município, que de certo não é uma mera circumscripção<br />

territorial maior ou menor, nem uma simples aggregação<br />

de indivíduos. Laços de famílias, certas tradições locaes e<br />

tal ou qual communhão de interesses, dão ao município um<br />

caracter ethico-social.<br />

Na Inglaterra, berço do self-government, longe de haver<br />

uniformidade na organisação dos entes chamados — parochia,<br />

burgo, condado — de serem uniformemente organisadcs, pelo<br />

contrario, observa-se grande variedade de fôrmas.<br />

A lei ingleza, respeitando as liberdades municipaes, deixa<br />

que as localidades vivão de conformidade com as suas circumstancias.<br />

Assim é, que o local government act de 1858, que regulou<br />

a vida municipal, permitte aos municípios acceitarem, ou não,<br />

segundo as peculiares circumstancias de cada um, as suas disposições,<br />

e até, admitte que depois de acceitas, as repillão, se<br />

a experiência tiver mostrado que não lhes convém.<br />

As leis facultativas são uma das particularidades mais<br />

curiosas da legislação ingleza. Elias pcrmiítem, diz Do Ferron,<br />

fazer experiências políticas, sem damno para o Estado, no caso<br />

que não produsão o effeito intentado. São essas leis inspiradas<br />

pelo respeito, que o Estado tributa aos poderes locaes, cuja<br />

existência e direitos elle considera tão necessários a um governo<br />

livre, quanto os seus próprios direitos. ( 1 )<br />

Na Saxonia, em vez de leis facultativas, adopta-se o systema<br />

de leis distinetas para os pequenos e os grandes municípios,<br />

permittindo que uns e outros estabeleção estatutos locaes<br />

de accôrdo com as suas necessidades, uma vez que não contravenhão<br />

as leis geraes do reino. ( 2 )<br />

( 1 ) Loc. cit. p. 385.<br />

(2) V. Manfrin, Il sisteme municipale inglese e la legge comunale italiana, p. 470.<br />

Para regularisar a administração local, e superintender r.i execuçSo das leis geraes<br />

relativas áquclla administração, o parlamento inglez em 1871 votou uma loi constituiu<br />

lo um conselho de governo local. ( Local government Hoard). Espécie de ministério,<br />

esse conselho ou commissão compõe-se de um presidente, nomeado pela<br />

rainha e de membros do direito, o saber, o lord presidente do conselho, lord guar.<br />

d* do sello privado, u chancelier do échiquier. Esse board o corpo politico o muda<br />

com a política. V. Fonblanque. obra cit. cap. 0.


CAPÍTULO XÎX<br />

DAS QUALIDADES DO CIDADÃO BRASILEIRO. NATURALISAÇÃO.<br />

SUSPENÇÃO E PERDA DOS DIREITOS DE CIDADÃO<br />

I<br />

A prerogativa de ser cidadão em um paiz livre é de inestimável<br />

valor, porque a ella estão inhérentes direitos que o<br />

habilitão a tomar parte activa nos negócios públicos, a intervir<br />

na gerencia da republica.<br />

Para evitar confusão, antes de esttfdar a lettra da Constituição,<br />

sobre o assumpto, convém fazer certas distincções.<br />

O facto de pertencer a uma sociedade política, não dá<br />

a qualidade de cidadão. Esta expressão tem em direito <strong>publico</strong><br />

significação technica.<br />

Cidadão é o membro da associação política, que possue o<br />

pleno exercício dos direitos civis e políticos no Estado, a que<br />

pertence. Possuir e exercer aquelles direitos, é o que se entende<br />

por qualidade do cidadão. ( I ).<br />

Por onde se vê que cidadão não é a mesma cousa que<br />

nacional.<br />

Nacional é todo aqueile que pertence a uma Nação ou<br />

Estado, independentemente de gosar n'esse Estado da plenitude<br />

dos direitos que constituem a qualidade de cidadão. Aqueile<br />

que não é nacional', é estrangeiro.<br />

A primeira vista parece que a qualidade de cidadão brasileiro<br />

tem, segundo a nossa Constituição, significação mais<br />

( 1 ) E' o südus civilatís dos romanos. Os italianos e os allemãcs com um só<br />

ermo exprimem aquella phrase ; dizem Cittadinanza, e Staalsangehoerîgkeîi,


3go NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

ampla, do que aquella que deixamos notada, e que é especialmente<br />

adoptada no direito <strong>publico</strong> francez.<br />

Com effeito, sob o titulo — das qualidades do cidadão brasileiro<br />

— a Constituição ( art. 69 ) enumera apenas as condições<br />

exigidas para que alguém seja brasileiro, taes como o nascimento<br />

no Brazil, a naturalisação, etc.<br />

Mas especificando no art. 7i os casos em que se suspendem<br />

ou se perdem os direitos do cidadão brasileiro, se vê que a<br />

Constituição considera como direitos inhérentes á qualidade de<br />

cidadão brasileiro principalmente os de ordem politica, cuja<br />

posse e goso constituem propriamente o cidadão e lhe conferem<br />

essa qualidade.<br />

Para pertencer á nossa associação politica, ao Estado bxasileiro,<br />

são essenciaes os seis requisitos do art. 69. Mas não<br />

bastão para que todos os que os satisfazem, tenhão a plenitude<br />

dos direitos inhérentes á qualidade de cidadão brasileiro.<br />

De £.xto, a propria Constituição no art. 70 exclue d'aquell a<br />

plenitude de direitos a um grande numero de brasileiros, taes<br />

como, os analphabetos, os mendigos, as praças de prêt, os<br />

relig'osos de ordens monasticas e os menores de 21 annos ; e se<br />

a esse numero addicionarmos o das mulheres brasileiras, podemos<br />

dizer que é pequeno o numero dos cidadãos brasileiros<br />

relativamente ao dos nacionaes brasileiros.<br />

Parece, portanto, que os requisitos do citado art. 69 se<br />

referem á nacionalidade brasileira, e não ao status civitatic<br />

do brasileiro, ao cidadão propriamente dito.<br />

Vejamos agora quaes são os requisitos necessários para, no<br />

modo de fallar da Constituição, alguém ser c'dadao brasileiro.<br />

São cidadãos brasileiros :<br />

l.° Os nascidos no Brazil, aindi; que de pai estrangeiro,<br />

não residindo este a serviço de sua nação.<br />

2.° Os filhos de pai brasileiro e os illegitimos de mai brasileira,<br />

nascidos em paiz estrangeiro, se estabelecerem domicilio<br />

na Republica.<br />

3." Os filhos de pai brasileiro, que estiver n'outro paiz ao<br />

serviço da Republica, embora n'ella não venhão domiciliar-se.<br />

4." Os estrangeiros, que, achando-se no Brasil aos 15 de<br />

Nove'nb v o de 1889, não declararem, dentro em seis mezes depois<br />

de entrar em vigor a Constituição, o animo de conservar a<br />

nacionalidade de origem.


J91<br />

E CONSTITUCIONAL 39I<br />

5. 0 Os estrangeiros, que possuírem bens immoveis no Brasil,<br />

e forem casados com brasileiras, ou tiverem filhos brasileiros<br />

com tanto que residão no Brasil, salvo se manifestarem a<br />

intenção de não mudar de nacionalidade.<br />

6." Os estrangeiros por outro modo naturalisados.<br />

A nacionalisação, isto é, o modo pelo qua 1 uma pessoa<br />

pôde vir a pertencer a uma nação, é regida por dous princípios<br />

geralmente reconhecidos : o principio que, considera o homem<br />

como dependência do solo —jus soli — e o principio da filiação<br />

— jus sanguinis.<br />

Nos tempos do feudalismo predominava o jus soli; o lugar<br />

do nascimento determinava a naciona 1 idade. Modernamente,<br />

porém, admitte-se que não é do solo que deriva a nacionalidade.<br />

Não é da terra, diz um publicista moderno, mas sim de seus<br />

pães, que o filho recebe a existência ; suas qualidades pessoaes<br />

dependem mais de seus progenitores, do que do solo, em que<br />

nasceu.<br />

No direito <strong>publico</strong> romano acquisição de nacionalidade, ou<br />

para melhor dizer, do direito cie cidade, se operava principalmente<br />

por nascimento, ou por naturalisação. Nascia-se cidadão<br />

ou fazia-se. Ut sit civis quis, aui natus sit oportet, aut<br />

/actus. A naturalisação, civitatis donatio, dos peregrinos era<br />

concedida pelo povo, ou pelo senado ou por um magistrado, se<br />

uma lei especial lhe delegava poder.<br />

Na maior parte das legislações modernas prevalece o principio<br />

da filiação, mas não exclusivamente.<br />

Pela leitura do citado art. 69 se vê que a nossa Constituição<br />

adoptou tanto o principio pessoal, como o principio territorial.<br />

Assim que, as condições 2." e 3. a se fundão na filiação,<br />

a l. a , 4.-' e s. 1 » procedem do jus soli.<br />

Pensão alguns publicistas que ninguém deve ser declarado<br />

cidadão de um Estado pelo simples facto de seu nascimento no<br />

território d'esse Estado.<br />

A attribuição da qualidade de cidadão jure soli, diz Fiori,<br />

deve ser considerada como contraria aos direitos internacionaes<br />

do homem. A soberania do Estado tem direito de estabelecer<br />

regras relativas á acquisição e á perda da qualidade de cidadão<br />

do Estado ; mas também é obrigada a harmonisar as suas leis<br />

com o direito individual e com o internacional. Se a soberania


3ç2 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

quer assegurar o respeito do direito individual, não pôde, de<br />

certo, attribuir a qualidade de cidadão a uma pessoa, por sua<br />

exclusiva autoridade, sem que essa pessoa, expressa ou tacitamente,<br />

peça aquella qualidade. ( I )<br />

O nosso direito sempre respeitou a liberdade individual da<br />

escolha de nacionalidade.<br />

Assim que, a lei de 10 de Setembro de i860, que regulou os<br />

direitos civis e políticos dos filhos de estrangeiros nascidos no<br />

Brasil, cujos pães não estivessem em serviço de sua nação,<br />

estabeleceu que elles, só depois de chegarem á maioridade<br />

entrarião no exercício dos direitos de cidadãos brasileiros, se<br />

não fizessem declaração contraria.<br />

A Constituição, nas condições 4." e 5." do cit. art. 69,<br />

admitte o principio da nacionalisação por força da lei, ou de<br />

modo tácito.<br />

E' principio de direito <strong>publico</strong> internacional, que ninguém<br />

deve ser privado de sua qualidade de cidadão de um Estado,<br />

sem sua vontade expressa ou tácita.<br />

Ora, a condição 4- a estabelece que são brasileiros os estrangeiros<br />

que se achando no Brasil em 15 de Novembro de 1889,<br />

dentro de seis mezes, não declararem o animo de conservar<br />

a nacionalidade de origem. A 5." também considera brasileiros<br />

os estrangeiros que residirem, possuírem bens immoveis no<br />

Brazil, e forem casados com brasileiras ou tiverem filhos brasileiros,<br />

salvo se manifestarem a intenção de não mudar de<br />

nacionalidade.<br />

Se vê que a Constituição reconhece* o direito do estrangeiro<br />

optar pela conservação de sua nacionalidade.<br />

Poder-se-ha perguntar, se não é mais natural que a nacionalidade<br />

só seja concedida áquelles que explicitamente a<br />

pedirem ?<br />

A presumpção é que o estrangeiro queira conservar a sua<br />

nacionalidade de origem. Deve-se, portanto, esperar que elle<br />

espontânea e livremente solicite nova pátria. Isso parece ser<br />

mais conforme com a liberdade individual, do que crear ao<br />

estrangeiro a obrigação de manifestar a intenção de conservar<br />

a sua naturalidade, sob a comminacão de que, se o não fizer<br />

dentro de certo tempo, perderá a sua nacionalidade de origem.<br />

( 1 ) Droit international public, t. 1 p. 608.


m<br />

E CONSTITUCIONAL 393<br />

Semelhante modo de nacionalisar, posto que admittido em<br />

vários paizes, não deixa de ser um tanto forçado, e tem suscitado<br />

protestos internacionaes.<br />

Quando o Mexico, em 1886, decretou que todos os estrangeiros,<br />

que tivessem adquirido bens de raiz no paiz, ou que<br />

tivessem filhos n'elle, serião considerados cidadãos mexicanos,<br />

se dentro de três mezes não declarassem a intenção de conservar<br />

a sua nacionalidade de origem, o governo de Washington<br />

protestou energicamente contra a execução d'aquella lei no<br />

tocante a cidadãos americanos.<br />

O nosso decreto n. 58 A de 15 de Dezembro de 1889 suscitou<br />

também protestos dos governos de Portugal, Italia, Hespanha,<br />

Inglaterra e Austria-Hungria.<br />

Esses governos considerarão aquelle decreto contrario á<br />

liberdade individual, aos princípios do direito internacional, e<br />

carecedor de base jurídica ; porque procurava fundar a nacionalidade<br />

no silencio do cidadão estrangeiro, em uma presumpção<br />

gratuita da vontade d'esté em escolher a nacionalidade brasileira.<br />

Nas Memorandum, em que fizerão seus protestos, aquelles<br />

governos dizião que, se o governo brasileiro não reconsiderasse<br />

o seu acto, < ver-se-hião na necessidade de considerar o decreto<br />

de 15 de Dezembro como nullo, enão reconhecido, e conformarião<br />

a sua conducta com os princípios de direito internacionais<br />

II<br />

A Constituição conferio ao Congresso nacional o poder<br />

c de estabelecer leis uniformes sobre naturalisação. > Mas elle<br />

não usou até agora d'aquella autorisação ; pelo que o modo de<br />

effectuar-se entre nós a naturalisação, rege-se por différentes<br />

disposições, umas anteriores á proclamação da Republica,<br />

outras expedidas pelo governo provisório e algumas decretadas<br />

pelo governo constitucional. ( 1 )<br />

( I ) As disposições anteriores à proclamação da Republica são: Aiso de 10<br />

de Outubro de 1832 ; decreto de 22 de Junho do 1855 ; decreto de 10 de Setembro<br />

de 18G0 ; decreto de 12 de Julho de 1871 ; lei de 30 de Outubro de 1882.<br />

As expedidas pelo governo provisório são : decretos de 26 de Novembro, tip<br />

li de Dezembro, do 15 de Maio o de 13 do Junho de 1889,<br />

SO


394<br />

NOÇÕES DE DIPFITO PUBLICO<br />

Segundo essa legislação a naturalisação se opera entre nós<br />

de modo tácito ou expresso. O modo tácito é o que se acha<br />

estabelecido nos §§ 4. 0 e 5. 0 do art. 69 da Constituição, o expresso<br />

é o que consta do § 6.0 do citado artigo, é a naturalisação<br />

ordinária.<br />

De que modo se opera esta naturalisação ?<br />

Dispondo a Constituição, art. 83, que tenhão vigor, emquanto<br />

não revogadas, as leis do antigo regimen, o processo de<br />

naturalisação é o que se acha estabelecido no decreto do governo<br />

provisório de 26 de Novembro de 1889.<br />

O ministro da Justiça e negócios interiores, e os governadores<br />

dos Estados são competentes para conceder naturalisação<br />

a todo estrangeiro, que a requerer, independentemente das formalidades<br />

exigidas pela legislação anterior : a concessão é dada<br />

por portaria, que fica isenta de qualquer imposto.<br />

Entretanto parece que a dispensa das formalidades não<br />

pôde excluirá prova de maioridade e de residência no Brasil, ou<br />

de estar o naturalisado fora d'elle em seu serviço, porque esses<br />

requisitos são substanciaes á naturalisação. ( I )<br />

O acto de naturalisação entre nós, quasi identifica o naturalisado<br />

ao cidadão nato, quanto ao goso dos direitos políticos.<br />

Dizemos quasi, porque o naturalisado pôde gosar de todos<br />

Finalmente, no regimen constitucional temos 0 art. 69 e seus paragraphes da<br />

Constituição ; a lei n. 35 de 20 de Janeiro, e os avisos de Vt de Março e 26 de Setembro<br />

de 1892. V. Diário Officiai de 18 de Janeiro de 1893 p, 291.<br />

( 1 ) Não tendo sido revogado até agora, pode-se considerar em vigor o Decreto<br />

1096 de 10 de Setembro de 1860, que rogubu os direitos civis e políticos dos filhos<br />

do estrangeiros nascidos no Brasil, cujos pães não estiverem a serviço de sua nação,<br />

e dos estrangeiros que casarem com brasileiras, e das brasileira? que casarem com<br />

estrangeiros. O valor politico d'esse Decreto nos aconselha a trauscripção dos dous<br />

artigos de que se compõe :<br />

Art 1. O direito que regula 110 Brasil o estado civil dos estrangeiros abi residentes,<br />

sem ser por serviço do ^ua nação, poderá também ser applicaJo ao estado<br />

civil dos filhos d'esses mesmos estrangeiros nascidos no Império, durante a minoridade<br />

somente, e sem prejuízo da nacionalidade reconhecida polo art. 6. da Constituição.<br />

Logo que estes filhos chegarem ã maioridade, entrarão no exercício dos direitos<br />

de cidadãos brasileiros, sujeitos ás respectivas obrigações na fôrma da ConstituiçSo<br />

e das leis.<br />

Art. 2. A estrangeira que casar com brasileiro seguirá a condição do marido, e<br />

semelhantemente a brasileira que casar com estrangeiro, seguirá a condição d'esté.<br />

Se a brasileira enviuvar, recobrará sua condição brasileira, uma vez que declare<br />

querer fixar domicílio no Império.


£ CONSTO ü CIONAL 395<br />

os direitos políticos, e exercer todos os cargos públicos, excepto<br />

o de Presidente e Vice-Presidente da Republica ; e para<br />

que possão ser eleitos membros do Congresso nacional, basta<br />

que tenhão para a câmara mais de quatro annos de naturalisados,<br />

e para o senado mais de seis.<br />

Assim dispõe a Constituição no art. 26 § 2. e eila logo,<br />

ahi mesmo, accrescenta que essa exigência não se refere ao<br />

naturalisado do n. 4 do art. 69, isto é, ao estrangeiro que se<br />

achando no Brasil a 15 de Novembro de 1889, não declarou,<br />

dentro de seis mezes, que queria conservar a nacionalidade de<br />

origem<br />

Não sabemos se em algum outro paiz se facilita tanto a concessão<br />

de nacionalidade, nem se o nacionalisado gosa tão depressa<br />

dos direitos politicos.<br />

Nos Estados Unidos o estrangeiro para naturalisar-se deve<br />

declarar perante autoridade judiciaria, que tenha jurisdicção de<br />

common law, ser sua intenção tornar-se cidadão dos Estados<br />

Unidos, e renunciar para sempre obediência a qualquer soberano<br />

estrangeiro e especialmente ao que ultimamente obedecia.<br />

Deve também provar que reside nos Estados Unidos, pelo<br />

menos desde cinco annos, e que sempre se conduzio bem.<br />

Depois do que, e de prestar juramento, a autoridade judiciaria<br />

passa um titulo. ( 1 )<br />

Além d'isso, conforme a Constituição, píira ser eleito deputado<br />

é preciso ser desde sete annos cidadão dos Estados Unidos<br />

e para senador nove annos.<br />

A Constituição belga ( art. 5. 0 ) consagra duas espécies de<br />

naturalisação — grande e pequena ou ordinária.<br />

Ambas essas sortes de naturalisação só podem ser concedidas<br />

pelo poder legislativo, e tem effeitos différentes.<br />

A pequena naturalisação não confere direitos politicos ;<br />

aquelle que só obtem essa naturalisação, não pôde ser ministro,<br />

nem membro do senado ou da câmara, nem eleitor para essas<br />

assembléas, nem jurado.<br />

A grande naturalisação, porém, iguala o estrangeiro em<br />

tudo ao cidadão belga nato, mas só pôde ser conferida a pessoas<br />

que tenhão prestado eminentes serviços ao Estado ; é destinada<br />

a recompensar acções que saião da esphera ordinária. (2)<br />

( 1 ) V. Carlier, t. 2. p. 302 c seg<br />

( 2 ) V. Thonissen L;> i.îonstiLulîon belge annotée p. 9 e seg,


395 NOÇÕES DE DIUEITO PUBLICO<br />

III<br />

Se a soberania, em virtude do seu summum jus pôde estabelecer<br />

regras para se adquirirem os direitos de cidadão, pôde<br />

também estatuil-as para a suspensão e perda d'esses direitos.<br />

O art. 71 da Constituição especifica "os casos em que se<br />

suspendem ou se perdem os direitos de cidadão brasileiro.<br />

Suspendem-se : i.° por incapacidade physica ou moral,<br />

2.° por condemnação criminal, emquanto durarem os seus effeitos.<br />

Perdem-se: i.° por naturalisação em paiz estrangeiro,<br />

2." por acceitação de emprego ou pensão de governo estrangeiro,<br />

sem licença do poder executivo federal.<br />

O art. 71 menciona unicamente aquelles dous casos, em que<br />

o cidadão brasileiro perde os seus direitos. Mas o art. 7 3 § 2 9<br />

accrescenta um terceiro, no qual incorrem « os que acceitarem<br />

condecorações ou títulos nobiliarchicos estrangeiros » pois<br />

aquelles que acceitarem « perderão todos os direitos políticos. »<br />

Pelos termos do citado art. 71 o cidadão só perde os seus<br />

direitos, no caso de acceitação de emprego ou pensão de governo<br />

estrangeiro, se o governo federal não lhe conceder licença<br />

para acceitar, pois se lhe a conceder, continuará a gosar<br />

de seus direitos de cidadão brasileiro, embora empregado ou<br />

pensionista de governo estrangeiro.<br />

Na hypothèse, porém, do § 29 do art. 7 2 a acceitação de<br />

condecorações ou títulos nobiliarchicos estrangeiros, incondicionalmente<br />

acarreta a perda de todos os direitos politicos ;<br />

porque a Constituição não faculta autorisação ao poder executivo<br />

para conceder licença n'esse caso.<br />

A Constituição americana não faz distincção entre pensão<br />

e titulo, e prohibe ao cidadão acceitar uma ou outro, sem consentimento<br />

do Congresso. « Nenhuma pessoa, diz ella, exercendo<br />

um emprego remunerado, ou lugar de confiança sob a<br />

autoridade dos Estados Unidos, poderá acceitar qualquer dádiva,<br />

emolumento, emprego ou titulo (any present, emolument,<br />

office or title) de rei, principe ou Estado estrangeiro, sem o<br />

consentimento do Congresso. » Art. i.° secç. 9."<br />

Da precedente disposição se colhe, que nem a todo cidadão<br />

americano é vedado acceitar dádiva, emprego ou titulo de go-


m<br />

E CONSTITUCIONAL 397<br />

verno estrangeiro, mas unicamente áquelle que exerce emprego<br />

remunerado ou da confiança da União. E assim, a todos os<br />

outros, que não estiverem n'aquelle caso, é livre acceitar ou não.<br />

Accresce que, concedendo ao Congresso, e não ao executivo,<br />

o poder de conceder licença para acceitação, aquella Constituição<br />

não fez como a nossa, isto é, não comminou pena alguma<br />

aos infractores da prohibição. Confiou exclusivamente<br />

aos sentimentos democráticos do cidadão a sua observância.<br />

Quanto aos dous casos de suspensão de direito, pouco ha<br />

que dizer.<br />

Emquanto dura uma incapacidade physica é evidente que<br />

o cidadão está materialmente impedido de ir, por exemplo, aos<br />

comícios eleitoraes dar o seu voto. Não podendo locomover-se<br />

nem permittindo a lei que se vote por procuração, é claro que<br />

exvi maíurae o exercício do direito fica suspenso.<br />

A mesma cousa se deve dizer da incapacidade moral.<br />

Se uma doença grave incapacita temporariamente o cidadão<br />

de exercer o seu direito, por falta de força physica, a doença<br />

mental o incapacita privando-o da força moral, isto é, do conhecimento<br />

do acto e da deliberação.<br />

Em ambos os casos existe a capacidade de direito, mas<br />

falta a capacidade de acção, no primeiro por carência de força<br />

pliysica, no segundo de força psychica ou moral.<br />

O direito, qualquer que seja a sua denominação, é sempre<br />

um poder racional, e assim como podemos ter rasão, sem o exercício<br />

d'ella, assim também podemos ter um direito sem o seu<br />

exercício actual. ( 1 )<br />

Mas, na outra hypothèse os direitos perdem-se ; a capacidade<br />

dos direitos desapparece, restando somente a possibilidade<br />

de rehavel-a.<br />

Tratando-se de direitos políticos, é fora de duvida que a<br />

autoridade social, seja qual fòr a fôrma de governo, é competente<br />

para apreciar a capacidade de direito, para reconhecel-a<br />

ou denegal-a ( 2 )<br />

Podia, portanto, a Constituição, sem offensa dos direitos<br />

naturaes do homem, privar dos direitos políticos aos que re-<br />

( 1 ) V. nossa Philosophia do Direito p. 111.<br />

(2) V. Rossi Cours dr. Droit coast, t. !. p. 261.


3g8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

nuncião a pátria, naturalisando-se em paiz estrangeiro, assim<br />

como áquelles que acceitão de governo estrangeiro emprego,<br />

pensão, condecoração ou titulo.<br />

O cidadão que voluntariamente renuncia a sua pátria, e<br />

adopta outra, é justo que perca os direitos de cidadão. E' o<br />

caso que os romanos chamão rejectio civitatis.<br />

Assim que, o cidadão romano que se inscrevia em uma colônia<br />

latina, deixava de ser cidadão romano. A perda da qualidade<br />

de cidadão era eíTeito da media ou minor capitis cleminutio.<br />

Cicero dizia : Dnarum civitatum civis esse, nostro jure<br />

civili, nemo potest. ( I )<br />

Com o direito <strong>publico</strong> dos romanos concorda o direito <strong>publico</strong><br />

dos modernos, pois as Constituições dos nossos tempos<br />

comminão com a perda dos direitos de cidadão a renuncia da<br />

pátria. ( 2 )<br />

N'essa mesma pena incorrem áquelles que, desobedecendo<br />

as prohibições do Estado, acceitão de governo estrangeiro emprego,<br />

pensão ou titulo nobiliarchico.<br />

Não é, porém, irremissivel a perda dos direitos de cidadão.<br />

As legislações modernas indicão os meios de readquirilos.<br />

( 5 ) Nossa Constituição promette, art. 71 § 3.°, uma lei<br />

que determinará as condições de reacquisição dos direitos de<br />

cidadão brasileiro.<br />

( 1 ) V. Willems, Droit public romain, p. 13i.<br />

( 2 ) Não estando ainda revogado, deve-se considerar em vigor o nosso Aviso<br />

li. 291 de 10 de Outubro de 1832, que declara que a ninguém é livre renunciar o<br />

'oro de cidadão brasileiro, fura dos casos marcados na lei.<br />

(3 ) Pode-se ver em Thonissen, Const, belge annotée p. 7 corno o cidadão belga<br />

recupera a nacionalidade.


0)0<br />

CAPITULO XX<br />

DECLARAÇÃO DE DIREITOS. IGUALDADE CIVIL. LIBERDADE IN­<br />

DIVIDUAL. DIREITO DE RESISTÊNCIA<br />

I<br />

Chama-se Declaração de direitos o solemne reconhecimento<br />

de certos princípios fundamentaes de direito <strong>publico</strong>,<br />

inhérentes a todo cidadão de um paiz livre. E' uma espécie de<br />

foral politico, em que estão inscriptos os direitos imprescripti -<br />

veis do cidadão.<br />

O fim principal das Declarações- dos direitos é impor limitações<br />

aos poderes públicos, inhibindo-os de desrespeitarem<br />

certos direitos, dos quaes dimanão todas as liberdades dos cidadãos.<br />

Nossa Constituição, consagrando a secção 2. a do titulo 4. 0<br />

a Declaração dos direitos do cidadão brasileiro, inspirou-se<br />

em precedentes de outros governos livres.<br />

D'estes precedentes os mais antigos e respeitáveis são os<br />

dos inglezes, dos americanos do Norte e dos francezes.<br />

Os inglezes, póde-se dizer, tem diversas declarações de<br />

direitos, pois a medida que as antigas liberdades publicas, erão<br />

violadas pelos reis, ião escrevendo-as para tornal-as mais patentes.<br />

Assim que a Magna Carla de 1215, a Petição de direitos<br />

de 1627 são verdadeiras declarações dos direitos do cidadão<br />

inglez.<br />

Mas, aquella denominação é especialmente dada ao bill<br />

dos direitos de 1689 ; no qual, segundo diz Macauly, « se restaurou,<br />

e pôz-se fora de toda contestação as velhas liberdades<br />

inglezas. »<br />

A declaração de 1689 consta dos seguintes artigos :


400 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

i.° O pretenso poder de suspender as leis ou a sua execução,<br />

por ordem real, sem o consentimento do parlamento, é<br />

illegal.<br />

2.° O pretenso poder de dispensar as leis, ou a sua execução,<br />

por ordem real, como se praticou anteriormente ( sob<br />

Jaques 2.° ), é illegal.<br />

3.0 A ordem para instituir o ultimo tribunal de commissarios<br />

para as causas ecclesiasticas e todas as outras commissões<br />

ou tribunaes da mesma natureza, são illegaes e perniciosas.<br />

4. 0 O lançamento e cobrança de impostos pela corôa e para<br />

seu uso, sob pretexto de prerogativa, sem consentimento do<br />

parlamento, por mais ou menos tempo, ou sob outra fôrma que<br />

não a determinada pela representação do paiz, é illegal.<br />

5. 0 Qualquer subdito tem direito de dirigir petições ao rei ;<br />

toda ameaça ou processo por esse motivo, é illegal.<br />

6.° Levantar ou conservar exercito permanente no interior<br />

do reino, em tempo de paz, e sem consentimento do parlamento,<br />

é illegal.<br />

7.° Os subditos protestantes tem direito de andar armados<br />

para sua defeza, de conformidade com a condição d'elles determinada<br />

em lei.<br />

8.° As eleições dos membros do parlamento devem ser<br />

livres.<br />

9.° A liberdade da palavra, dos debates e dos actos do<br />

parlamento não pôde ser obstada, nem discutida em tribunal<br />

algum, nem em qualquer outro lugar fora do parlamento.<br />

io. Não é permittido exigir caução, nem multa excessiva,<br />

nem infligir penas cruéis e desusadas.<br />

11. Os jurados devem ser inscriptos e regularmente escolhidos,<br />

e aquelles que julgão em causa de alta traição devem<br />

ser francos proprietários.<br />

12. As remissões, ou promessas de multas, ou de confiscação,<br />

feitas a uma pessoa, antes que esta tenha sido convencida<br />

em juizo, são illegaes e nullas.<br />

i3. Para obviar os abusos, emendar e sustentar as leis, as<br />

sessões do parlamento devem ser freqüentes. ( i )<br />

{ 1 ) V. Fomblanqnc, L'Angleterre, son gouvernaient, ses institutions, p. il.<br />

paris, 1881.


E CONSTITUCIONAL 4OI<br />

Tal é a celebre Declaração, na qual nem apparece o<br />

habeas corpus, que já tinha sido escripto em 1679, nem a liberdade<br />

da imprensa e outros direitos, que se affirmarão nas<br />

declarações subsequentes de outros paizes, porque forão<br />

objectos de estatutos especiaes.<br />

O principal fim d'aquelle famoso acto foi corrigir os abusos<br />

de Jaques 2. 0 e justificar a revolução (1688), que o desthronisou.<br />

Os americanos do Norte, acompanhando até n'isso, os seus<br />

antepassados, fizerão também a sua Declaração de direitos, ou,<br />

para melhor dizer, as suas Declarações, pois a historia política<br />

registra quatro.<br />

A primeira foi a de 19 de Outubro de 1765, sahida do Congresso<br />

de New-York.<br />

N'esse manifesto, composto de 14 artigos, se declarava que<br />

os colonos tinhão direito a todas as liberdades inglezas, e que<br />

entre essas liberdades primava a de não pagar tributo sem<br />

consentimento do tributado ; que elles não tendo representantes<br />

na câmara dos communs, não devião pagar o imposto de sello ;<br />

que o jury era direito inhérente e inestimável de todo o inglez,<br />

e que por conseguinte o acto do timbre (the stamp act) nas<br />

colônias, e qualquer outro acto que amplie a jurisdicção dos<br />

tribunaes do almirantado além de seus antigos limites, destruía<br />

os direitos e liberdades dos colonos, etc., etc.<br />

A segunda foi a de 14 de Outubro de 1774, feita em Philadelphia,<br />

aonde se reunirão em numero cerca de 5 o » c o m o fim<br />

de examinar as providencias que se devião recommendar ás<br />

colônias, tendentes a recuperar e restabelecer os direitos e<br />

liberdades civis e religiosas dos colonos.<br />

Os membros d'essa reunião, ou antes d'esse Congresso,<br />

nomearão uma commissão para preparar a declaração, composta<br />

de Jefferson, Adams, Franklin, Sherman e Livingston.<br />

No preâmbulo dizião : « O bom povo de cada uma das<br />

colônias de New-Hampstrire, etc., etc, justamente assustado<br />

pelos actos arbitrários do parlamento e do ministério inglez,<br />

elegerão deputados que se reunissem em Congresso... e estes,<br />

imitando o que os seus antepassados, os inglezes, fizerão em<br />

circumstancias idênticas, declarão :<br />

i.° que os habitantes das colônias inglezas da America do<br />

Norte, tem os seguintes direitos, que receberão das leis immutaveis<br />

da natureza, dos principios da Constituição ingleza e de<br />

51


402 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

suas próprias cartas, etc. Seguem-se mais nove artigos, que<br />

reproduzem, pouco mais ou menos, os de 1765.<br />

Esse manifesto, posto que feito em Philadelphia, as vezes<br />

é chamado — Declaração de Virginia — por causa da importância<br />

que esse Estado representou 110 Congresso, que foi presidido<br />

por Pyton Randolph, speaker da assembléa de Virginia.<br />

A terceira foi a de 14 de Julho de 1776 feita por um novo<br />

Congresso que se reunio em Philadelphia em Maio de 1775,<br />

por oceasião da Declaração da independência das colônias.<br />

N'esta Declaração se diz: « Consideramos como incontestáveis<br />

e evidentes as seguintes verdades,— que todos os homens<br />

forão creados iguaes — o Criador lhes deu certos direitos<br />

inalienáveis — entre estes oecupão primeiro lugar a vida, a<br />

liberdade e a procura da felicidade — para garantir o goso<br />

d'aquelles direitos os homens estabelecerão governos, cuja<br />

autonomia emana do consentimento dos governados — todas as<br />

vezes que uma fôrma de governo torna-se nociva ao fim para<br />

que foi estabelecida, o povo tem direito de mudai-a ou abolil-a,<br />

e de instituir novo governo, etc.<br />

A quarta foi a de 1791, e se acha nas dez emendas, e especialmente<br />

na primeira, addicionadas á Constituição actual.<br />

Já tivemos oceasião de dizer que essa Constituição não<br />

agradou aos seus próprios redactores, e quando foi publicada<br />

em 1787 para ser adoptada pelos Estados, muitas objecções lhe<br />

forão feitas. Entre ellas sobresahia a de não conter uma Declaração<br />

de direitos, cousa que se tinha tornado popular, depois<br />

do que a esse respeito se tinha praticado.<br />

Ainda que alguns pensassem que era inutil uma Declaração,<br />

que a Constituição implicitamente continha, e que essas<br />

declarações erão mais proprias das monarchias, nas quaes se<br />

deve limitar o poder da realeza, do que nas republicas, aonde<br />

o povo é soberano, todavia foi preciso satisfazer ás reclamações<br />

dos que a pedião.<br />

Para esse effeito, o Congresso, logo na sua primeira sessão,<br />

em artigos supplementares fez uma Declaração de direitos e<br />

confirmou disposições que tinhão sido pedidas.<br />

No primeiro d'aquelles artigos se consagra a liberdade<br />

religiosa, a Igreja livre no Estado livre, a liberdade da imprensa,<br />

o direito de reunião e o de petição.


t»t<br />

E CONSTITUCIONAL<br />

403<br />

Tomando o exemplo, as Constituições dos Estados da União<br />

trazem também suas Declarações.<br />

A Declaração dos francezes é muito conhecida.<br />

Cem annos depois do bill dos direitos do cidadão inglez<br />

de 1689, os francezes fizerào a sua Declaração dos direitos do<br />

homem e do cidadão de 1789, a qual, diz Laboulaye, « não é<br />

uma invenção franceza, mas uma imitação muito mal feita do<br />

bill de 1689. »<br />

Ella contém 17 artigos desordenados pela disparidade de<br />

assumpto. Uns são puros princípios abstractos de philosophia,<br />

outros de direito constitucional e outros referentes aos poderes<br />

políticos.<br />

Esta Declaração, que alguns chamão a Magna Carta dos<br />

francezes, e que a assembléa nacional proclamou na presença<br />

e sob os auspícios do Ente Supremo, contém verdades incontestáveis,<br />

muito velhas e já praticadas em outros paizes.<br />

As distinções sociaes, diz o final do art. i.°, só podem ser<br />

fundadas na utilidade commum : é uma verdade de caracter<br />

pratico e de que ninguém duvida. Mas a primeira parte do<br />

citado artigo : « Os homens nascem livres e iguaes em direito »<br />

se exprime um principio verdadeiro na ordem idéal e abstracta,<br />

na ordem real e concreta precisa de ser rectificado.<br />

A verdade na ordem real é, que os homens nascem na<br />

família e na sociedade, e portanto nem livres, nem iguaes.<br />

Nascem dependentes e sujeitos ao pátrio poder, e ás leis do<br />

Estado. ( 1 )<br />

Todos os escriptores censurão aquella Declaração por carecer<br />

de espirito pratico, e enunciar máximas abstractas, consagrando<br />

assim, como adverte Bentham, « o vago, o indeterminado,<br />

o vaporoso, o excessivo, e algumas vezes o falso e o<br />

anarchico. »<br />

O art. 2. 0 diz que « o fim de toda sociedade é a conservação<br />

dos direitos naturaes e imprescriptiveis do homem. » E' limitar<br />

arbitraria e inexactamente o fim e a acção da sociedade política<br />

ou cio Estado. Acaso a grande somma dos direitos adqui-<br />

( I ) V. Rosminí, Filusulu dei diritto, f 2. p. 731 u seg. aonde analysa a<br />

declaração Iranceza.


404<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

ridos dos individuos e das famílias não merecerá ser conservada<br />

?<br />

Os inglezes e os americanos não basearão as suas declarações<br />

nos direitos naturaes e imprescriptiveis, mas nos direitos<br />

positivos adquiridos nas relações sociaes ; não declararão os<br />

direitos do homem e do cidadão universaes, mas os do homem<br />

e do cidadão inglez e americano ; não affirmarão direitos vagos<br />

e indeterminados, mas os direitos de que estavão de posse e de<br />

que gosavão desde muito tempo, e que forão violados de um<br />

lado pelo despotismo do rei Jacques II, e de outro pelo governo<br />

e parlamento inglez pelo Stamp Act e outras disposições violentas.<br />

A Declaração dos inglezes começou recapitulando os<br />

crimes e violências de Jacques, os quaes motivarão a revolução<br />

defensiva e conservadora de 1688.<br />

Jacques usurpou o poder de legislar, dizia a commissão<br />

dos communs e dos lords, que redigio o famoso bill ; opprimio<br />

a Igreja ; considerou crime a modesta petição dos cidadãos ;<br />

lançou taxas sem consentimento do parlamento ; violou a liberdade<br />

das eleições ; exigio cauções excessivas e impoz penas<br />

barbaras e desusadas, etc., etc.<br />

Depois da enumeração das illegalidades, a commissão fez a<br />

affirmação de cada um dos direitos fundamentaes violados. A<br />

cada um dos males oppoz o conveniente remédio.<br />

Os defensores dos direitos e liberdades inglezas nem uma<br />

palavra disserão dos direitos naturaes e imprescriptiveis do<br />

homem, nem da sua igualdade natural, nem da resistência á oppressão.<br />

Omittirão todas esses theses, tão caras á Assemblée!<br />

nacional franceza, e fizerão uma obra pratica, isenta de especulações<br />

philosophicas.<br />

Os americanos, seguindo o exemplo de seus antepassados,<br />

nas suas declarações também não se basearão nos direitos naturaes,<br />

nos princípios geraes de philosophia social, sujeitos a<br />

interpretações variáveis e arbitrarias, mas nos direitos históricos<br />

de que gosavão desde muito tempo.<br />

Appellarão para o direito, mas fundarão-se principalmente<br />

nos princípios da Constituição ingleza, nas Cartas coloniaes e<br />

nos costumes das colônias. « Emigrando, os fundadores das<br />

colônias não abdicarão os direitos, as liberdades e immunidades<br />

dos subditos nascidos no Reino Unido, e seus filhos tem


E CONSTITUCIONAL 405<br />

hoje o direito de gosar d'essas immunidades. » Assim se exprimem<br />

os redactores da Declaração americana de 1774- ( l )<br />

A declaração de direitos não é novidade entre nós.<br />

A nossa Constituição de 25 de Março de 1824, sem conter<br />

um titulo ou capitulo com a inscripção de Declaração de direitos,<br />

todavia enumerou todos os direitos fundamentaes do<br />

cidadão, que de ordinário se bem com aquelle intitulado.<br />

O art. 179 d'aquella Constituição dispunha : « A inviolabilidade<br />

dos direitos civis e políticos do cidadão brasileiro, que<br />

tem por base a liberdade, segurança individual e a propriedade<br />

é garantida pela Constituição do império, pela maneira seguinte<br />

: » E seguem-se 34 paragraphos nos quaes estão enumerados<br />

os referidos direitos.<br />

A Constituição actual tem uma secção intitulada — Declaração<br />

de direitos — e ahi o art. 72 diz : « A Constituição assegura<br />

a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade<br />

dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual<br />

e á propriedade nos termos seguintes. » E segue-se a<br />

enumeração dos direitos.<br />

Essa enumeração é prolixa, resente-se de superfluidade, e<br />

contém matérias que, ou se achão implicitas no corpo da Constituição,<br />

ou são mais pertinentes a leis orgânicas ou a Disposições<br />

geraes.<br />

Assim, as matérias dos arts. 74 a 77 e seus paragraphos são<br />

sobejas em uma Declaração de direitos, aonde só devem ser<br />

solemnemente aífirmadas e declaradas certas liberdades fundamentaes,<br />

que são essenciaes á existência dos Estados livres, ao<br />

desenvolvimento e á felicidade dos indivíduos ; taes como a liberdade<br />

individual, a liberdade religiosa, a liberdade de reunião,<br />

de petição, de imprensa e de propriedade.<br />

Instituem-se os governos para proteger essas liberdades<br />

primigenias, esses primeiros direitos de toda sociedade civil.<br />

A que vem, pois, enumerar entre essas grandes liberdades<br />

a aposentadoria do funccionario, a vitaliciedade das patentes<br />

dos officiaes do exercito e da armada, dos tribunaes competentes<br />

parajulgal-os, das marcas de fabrica?<br />

( I ) Sobre Declarações de direitos pode-se 1er Story, Commentaries 1. 2. p. 5%<br />

§§ 1858-1868 o t. 1 p. liO §§ 200 e seg. Walker, American Law, p. 108 §§ 79 0<br />

seg. Laboulayc, Hist, des Etats-Unis, t. 2. Leçon 12.


4o6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

E não satisfeito com a longa enumeração constante dos<br />

arts. 72 e seus 3i paragraphes e dos arts. 73, 74, 75, 76, 77 e<br />

seus paragraphos, o legislador constituinte acerescenta ainda o<br />

art. 78 : « A especificação das garantias e direitos expressos na<br />

Constituição não exclue outras garantias e direitos não enumerados,<br />

mas resultantes da fôrma de governo que ella estabelece<br />

e dos princípios que consigna. »<br />

Não nos oecuparemos com o estudo de todos os enumerados<br />

direitos, mas com o de alguns, que pedem explicação.<br />

II<br />

O principio fundamental da igualdade civil, isto é, da igualdade<br />

perante a lei, está declarado no § 2. 0 do art. 72. « Todos<br />

são iguaes perante a lei. »<br />

Como corollario d'aquelle principio a Constituição diz no<br />

art. 73 : « Os cargos públicos, civis ou militares, são accessiveis<br />

a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade<br />

especial, que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as aceumulações<br />

remuneradas. »<br />

Posta de lado esta ultima parte, que é uma excrescencía<br />

exotica em um principio fundamental de direito <strong>publico</strong>, não<br />

ha duvida que aquelle artigo affirma um grande principio de<br />

justiça e de civilisação moderna.<br />

A antigüidade não conhecia nem praticava o principio da<br />

igualdade. O privilegio existia em toda parte, e era como a<br />

base do direito <strong>publico</strong> antigo.<br />

Sem fallar nas castas e raças orientetes, basta recordar brevemente<br />

o que se passava em Roma e nos paizes europeus da<br />

idade média, para ver que o principio da igualdade perante a<br />

lei é uma conquista de nossos tempos.<br />

E' conhecida a doutrina dos romanos acerca da escravidão.<br />

Uma parte do gênero humano era considerada como naturalmente<br />

inferior a outra, e portanto justamente destinada a servir.<br />

E' verdade que os juristas clássicos dizião — Quod acljus<br />

naturelle attinet, omnes homines œquales sunt.<br />

Mas de que servia que por direito natural todos os homens<br />

fossem iguaes, se o direito <strong>publico</strong> dos romanos destruía o direito<br />

natural, e fazia da escravidão uma instituição social ? Ser"


E CONSTITUCIONAL 407<br />

vitiis, accrescentava Florentine), est constitutif) juris gentium<br />

qua quis domínio alieno contra natiirain suhjicitur.<br />

A jurisprudência romana, é sabido, negava personalidade<br />

aos escravos, e por conseguinte a capacidade de direito.<br />

Distinguia o direito romano o homem da pessoa. Homens<br />

erão todos, mas nem todos erào pessoas. A pessoa era o homem<br />

cum statu quodam consideratus e por esse estado entendia-se<br />

qualitas, cujus ratio homines diverso jure utunhir. O escravo<br />

era enumerado inter res quae in fundo sunt, e tido pro<br />

ri ti lio et mortuo.<br />

Essa enorme desigualdade social durou por muito tempo,<br />

não obstante os esforços do christianísmo.<br />

Na grande e democrática republica americana, na pátria de<br />

Washington, a escravidão subsistio até que a guerra civil da<br />

secessão abolio-a, e só em 1870 a emenda constitucional de 3o<br />

de Março deu aos ex-escravos os direitos de cidadão americano.<br />

Entre nós, ainda que o escravo fosse tido como pessoa<br />

todavia estava longe de ser considerado cidadão brasileiro, e<br />

só cm l3 de Maio de 1889 se declarou extineta a escravidão.<br />

Depois da raça, foi a religião o maior obstáculo, em muitos<br />

paizes, á pratica do principio da igualdade.<br />

Na livre Inglaterra, para não remontar a eras mais remotas,<br />

só em 1829, pelo celebre acto da emancipação, os catholicos<br />

inglezes forão igualados aos outros cidadãos. Antes erão incapazes<br />

dos direitos políticos, e até dos civis. Não podião ser<br />

eleitos ao parlamento, nem occupai" certos cargos civis ou militares.<br />

Os judeus forão victimas da mesma desigualdade, e só em<br />

1859, desappareceu para elles a incompatibilidade parlamentar,<br />

sendo então admittido na câmara dos communs o israelita Leonel<br />

de Rothschild.<br />

E ainda hoje os ecclesiasticos, protestantes das igrejas anglicana,<br />

escosseza e catholica são incapazes de ser eleitos á câmara<br />

dos communs.<br />

Quem não conhece os estados ou ordens da idade média e<br />

o privilegio de que gosavão o clero e a nobreza ?<br />

O imposto pesava exclusivamente sobre o terceiro Estado,<br />

que entretanto era o grosso da nação franceza.<br />

Em 1789 Sieyes perguntava « O que é o terceiro Estado ?<br />

Tudo. O que é actualmente ? Nada. O que deseja ser ? Alguma


408 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cousa. » Isto diz bastante qual era n'aquella epocha o estado<br />

social em França em materia de igualdade.<br />

O principio da igualdade diante da lei, que está affirmado<br />

em todas as Constituições modernas, é, pois, na phrase de<br />

Rossi, a linha divisória entre o direito <strong>publico</strong> antigo e o<br />

moderno.<br />

O direito antigo dizia aos homens : Se professaes tal religião,<br />

se pertenceis a tal familia, tal raça, a tal classe, não podeis<br />

vos mover com a mesma liberdade, com que se move certa<br />

parte da nação.<br />

O direito moderno, traduzido em lei, diz por sua vez : Se<br />

sois membro da sociedade civil, seja qual fôr vossa origem,<br />

vossa religião, vossa fortuna, podeis vos mover livremente,<br />

podeis usar de vossas faculdades : as mesmas possibilidades<br />

existem para todos. ( i )<br />

Se é fácil comprehender e admirar o valor intrínseco do<br />

principio da igualdade civil, não é tão fácil a sua applicação,<br />

nem a sua conciliação com as desigualdades das capacidades<br />

individuaes.<br />

O que vemos na sociedade sob essa relação ?<br />

Grande desigualdade de capacidade, quer physica, quer<br />

moral. Todos os dias estamos vendo na sociedade uns homens<br />

activos, laboriosos, dotados de talentos especiaes para as<br />

sciencias, as lettras, as artes, e outros inertes, preguiçosos e de<br />

fraca intelligencia.<br />

Considerada em si e abstractamente a natureza humana é<br />

a mesma em todos. Todos tem as mesmas faculdades ligadas<br />

por nexo physico-dynamico, o mesmo organismo physicomoral<br />

regido por leis idênticas. Mas, quanta desigualdade na<br />

capacidade d'essas faculdades. E consequentemente quanta<br />

diversidade nos productos d'ellas.<br />

O que a lei social, as constituições modernas garantem c o<br />

livre exercido das faculdades de cada um, e o goso do producto<br />

d'ellas, sem indagar se são pouco ou muito productivas,<br />

se pertencem a tal ou qual classe de individuos. Mas não igualão,<br />

nem podem igualar os resultados provenientes de actividades<br />

différentes por natureza. Igualar cousas desiguaes por<br />

Rossi, Cours do droit const, t. 1 Lice. 17.


E CONSTITUCIONAL 409<br />

natureza, seria destruir a igualdade, seria estabelecer o privilegio<br />

de uns á custa do trabalho de outros, seria pretender que<br />

os inertes vivessem á custa dos activos.<br />

Em uma sociedade uniquota os sócios tem direito a igual<br />

tratamento, a vantagens ignaes, porque iguaes são os esforços<br />

empregados para o fim social. Mas quando os esforços são<br />

desiguaes, quando desiguaes são as energias das faculdades dos<br />

associados, como nas sociedades polyquotas, repartir arithmeticamente<br />

as vantagens, seria violar a igualdade.<br />

Contra essa repartição arithmetica levanta-se, protestando,<br />

a natureza humana ( 1 )<br />

« Os cargos públicos, civis ou militares, são accessiveis a<br />

todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade<br />

especial » diz a Constituição.<br />

Sim, que as condições de capacidade individual sendo naturalmente<br />

desiguaes, seria injustiça distribuir igualmente os<br />

cargos públicos aos capazes e aos incapazes.<br />

A todos está franqueada a porta, que conduz aos cargos<br />

públicos. Passou o tempo em que certas carreiras publicas,<br />

entre ellas a militar, a do magistério, só estavão abertas aos<br />

que pertencião a certas classes sociaes.<br />

Hoje todos podem pretender os mais altos cargos do Estado.<br />

A concurrencia, que Bastiat chama < a lei democrática por<br />

essência, a mais progressiva, a mais igualadora e a mais communista<br />

de todas a que a Providencia confiou o progresso da<br />

sociedade humana ( 2 ) > é a mais solida garantia da igualdade<br />

dos homens. (<br />

Todos podem concorrer á participação dos cargos públicos,<br />

segundo a capacidade natural de cada um, o que sendo eminentemente<br />

justo, é ao mesmo tempo util á sociedade, porque<br />

do confronto das capacidades emergem aquelles que melhor<br />

podem servir á mesma sociedade.<br />

D'esse modo apparece aquella aristocracia, que naturalmente<br />

existe em toda sociedade, por mais democráticas que sejão as<br />

suas instituiçõ es — a aristocracia natural das capacidades e das<br />

aptidões.<br />

( 1 ) V. o que ficou dito no cap. 10, p. 270 sobre a igualdade social.<br />

( 2 ) Harmonies économiques, cap. 10.<br />

52


4IO NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Essa espécie de aristocracia, porém, se reduz ao que Busacca<br />

chama natural gradação dos homens na rasão de seu<br />

valor pessoal, não traduz uma classe privilegiada, e pelo contrario<br />

abraça toda a sociedade, todas as classes, porque todos<br />

os capazes de todas as classes podem ascender aos altos cargos<br />

do Estado. ( i )<br />

Do fecundo principio da igualdade jurídica resulta, como<br />

coiollario, outro principio, que algumas Constituições enumerão<br />

em suas Declarações de direitos, principio que a nossa velha<br />

Constituição, no art. 179 § 15, formulava dizendo — Ninguém<br />

será isento de contribuir para as despezas do Estado em proporção<br />

de seas haveres.<br />

Eis aqui o principio de igualdade produzindo como conseqüência<br />

a igualdade no imposto.<br />

Outr'ora, sob o império do privilegio, certas classes da so_<br />

ciedade erão isentas do pagamento do imposto. Em França<br />

sob o antigo regimen, os nobres e os ecclesiasticos não pagavão<br />

impostos. Hoje ninguém mais contesta que todos os cidadãos<br />

de um Estado devem contribuir para as despezas publicas, de<br />

cujas vantagens todos se aproveitão.<br />

A vida do Estado, a sua segurança e tranquillidade serião<br />

impossíveis sem o imposto. Tácito dizia : Nequt quies gentium<br />

sine armis, neque arma sine stipendiis, neque stipendia<br />

sine tributis habere queunt.<br />

A applicação, porém, d'aquelle principio suscita duvidas e<br />

questões.<br />

Como tributar, de modo que cada cidadão contribua na<br />

proporção de seus haveres, e assim se estabeleça a igualdade<br />

do tributo ?<br />

As forças dos contribuintes sendo desiguaes, é claro que os<br />

impostos não podem ser materialmente iguaes ; exigir essa<br />

igualdade, seria estabelecer a desigualdade. Para respeitar,<br />

pois, o principio da igualdade, é preciso que cada um dê proporcionalmente<br />

ás suas forças. ( 2 )<br />

(!) V. Brougham, Filosofia política, trad, italiana, discorso preliminaro §2S-<br />

( 2 ) A materia de imposto, ainda que tenha um lado constitucional, todavia<br />

pertence mais especialmente á sciencia econômica e financeira. Por isso não cabe<br />

aqui failar do suas espécies, sua incidência, repercussão, diffusão, ele. Mas não<br />

6 impertinente dizer o que é imposto proporcional e progressivo, porque d'estas<br />

duas espécies de imposto falla-se muito.


E C0NSÏÏÏUC10NAL 411<br />

Como conseqüência lógica da igualdade de todos os cidadãos<br />

perante a lei, a Constituição declara que « não admitte<br />

privilegio de nascimento, desconhece os foros de nobreza, e<br />

extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerogative<br />

e regalias, bem como os títulos nobiliarchicos e de<br />

conselho. »<br />

Posto que entre nós os títulos nobiliarchicos fossem simplesmente<br />

honoríficos, e os nobilitados nunca tivessem constituído<br />

uma classe privilegiada, todavia a Constituição fez bem<br />

desconhecel-os e extinguíi-os.<br />

Poderião ser aquelles títulos considerados como legitimas<br />

distincções sociaes, porque longe de representarem um privilegio<br />

de nascimento, ou de família, não tinhão senão um valor<br />

moral ; erão um simples galardão de méritos pessoaes ou de relevantes<br />

serviços ao Estado. Não tinhão, portanto, nada de<br />

odioso e de contrario ao principio de igualdade.<br />

Mas estavão sendo tão barateados, havia tão pouco escrúpulo<br />

em concedel-os, que já não tinhão, em regra, nem aquelle<br />

valor moral significativo de distincçào social. O mérito social<br />

não era titulo para alcançal-os. Vendião-se a todos, e já não<br />

erão caro.<br />

Bem fez, portanto, a Constituição abolindo esse imposto á<br />

vaidade.<br />

Ainda como corollario do principio de igualdade, a Constituição<br />

proscreveu os foros privilegiados, admittindo apenas<br />

juízos especiaes para certa ordem de causas. Art. "t2 § 23.<br />

III<br />

Entre as liberdades garantidas pela Constituição, e por ella<br />

declaradas e affirmadas, está a liberdade individual, que é a<br />

fonte de todas as outras liberdades constitucionaes.<br />

Diz-se quo- o imposto o proporcional, quando se admitto como base uma quantidade<br />

igual applicavcl a todas as fortunas. Pede o Estado, por ex : 5 por cento<br />

da renda de todos ; cada um paga nessa razão, seja qual fõr sua renda. E' progressivo,<br />

ou a quantidade que se paga c progressiva, quan Io. deixando de tributa 1 '<br />

uma pequena renda, que se suppõe igual n zero, d'ali em diante se exige progressivamente<br />

um tanto por cento ; por ex : 5 sobre 200, 13 sobre 300, 7 sobre 100. et»<br />

Pode-se 1er sobre o assumptp, Rossi, Droit Const t. 1. lice. 23 e 2't. Ciccone, Prin<br />

cipi di economia politice, t. 3 lib. 5, sez. 1. Kapoli 1882.


412 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Dai aos depositários da autoridade executiva o poder de<br />

attentar contra a liberdade individual, dizia Benjamin Constant,<br />

que vereis aniquiladas todas as garantias, que são primordial<br />

condição e o unico fim da reunião dos homens sob o império<br />

das leis. ( i )<br />

Para garantia d'essa liberdade a Constituição dispõe o seguinte<br />

:<br />

« Em tempo de paz qualquer pôde entrar no território nacional<br />

ou d'elle sahir, com a sua fortuna e bens, quando e como<br />

lhe convier, independentemente de passa-porte.<br />

c A casa é o asylo inviolável do indivíduo ; ninguém pôde<br />

ahi penetrar de noite, sem consentimento do morador, senão<br />

para acudir a victima de crimes ou desastres, nem de dia, senão<br />

nos casos e pela fôrma prescriptas na lei.<br />

« A excepção de flagrante delicto, a prisão não poderá executar-se,<br />

senão depois de pronuncia do indiciado, salvos os<br />

casos determinados em lei, e mediante ordem escripta da autoridade<br />

competente.<br />

« Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada,<br />

salvas as excepções especificadas em lei, nem levado á<br />

prisão, ou n'ella detido, se prestar fiança idônea, nos casos em<br />

que a lei admittir.<br />

< Ninguém será sentenciado, senão pela autoridade competente,<br />

em virtude de lei anterior e na fôrma por ella regulada,<br />

< Aos accusados se assegurará na lei a mais plena defeza.<br />

com todos os recursos e meios essenciaes a ella, desde a nota<br />

da culpa, entregue em 24 horos ao preso e assignada pela autoridade<br />

competente, com os nomes do accusado e das testemunhas.<br />

* Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o indivíduo soffrer<br />

ou se achar em imminente perigo de soffrer violência, ou coacção,<br />

por illegalidade, ou abuso de poder » Art. 72, §§ 10, II, l3,<br />

14, 15, 16, 22.<br />

Taes são as disposições com que a Constituição garante a<br />

liberdade individual.<br />

Essas disposições referem-se todas á liberdade, que se poderia<br />

chamar physica, á liberdade corporea, á liberdade de locomover-se,<br />

de ir e vir.<br />

( 1 ) Œuvres politiques, p. 182.


JCÏ<br />

E CONSTITUCIONAL 4l3<br />

Mas a liberdade individual, rigorosamente fallando, não<br />

comprehende só a liberdade physica ; contém também as liberdades<br />

psychicas do homem, a liberdade de pensamento e de affecto,<br />

a liberdade de consciência, de culto, de palavra, de imprensa,<br />

de ensino, de associação, de reunião, de petição, de<br />

profissão, qualquer que seja, moral, intellectual, industrial, e<br />

até também abrange a inviolabilidade de suas cartas, de seus<br />

telegrammas, de sua correspondência, porque as cartas e os telegrammas<br />

são manifestações intimas do pensamento e do affecto,<br />

são prolongamentos da personalidade do cidadão na vida<br />

familiar e social.<br />

Assim que, a liberdade individual é a raiz de todas as outras<br />

liberdades, de todos os outros direitos declarados nas Constituições<br />

modernas. Por isso justamente B. Constant diz que<br />

« ella é o fim de toda associação humana, e a base da moral<br />

publica e privada, da industria, da paz, da dignidade e da felicidade<br />

do homem ».<br />

Entretanto, os publicistas e as constituições, considerando<br />

o desenvoluimento moderno da liberdade individual, estudão<br />

separadamente as liberdades referentes a cada uma das faculdades<br />

humanas, a de consciência, de propriedade, de industria,<br />

etc., etc.<br />

E' certo, porém, que em sentido restricto e vulgar, quando<br />

se falia em liberdade individual, entende-se a liberdade sob a<br />

sua fôrma mais sensível, íalla-se da faculdade de locomoção, de<br />

andar e mover-se. Para o vulgo, ser livre é não estar preso.<br />

Nos governos despoticos era essa a liberdade mais sujeita ás<br />

violências do poder <strong>publico</strong> ; e por isso mais particularmente a<br />

favor d'ella protestarão os inglezes, os francezes e outros povos.<br />

Os reis da Inglaterra tantas vezes a violarão, que os barões<br />

de ferro inserirão na Magna Carta o famoso artigo — Niillus<br />

liber homo capiatur vel imprisionetur\.. nisi per legale judicium<br />

parium suorum, vel per legem terrœ. ( I )<br />

Não obstante, como se repetissem aquellas violências, os<br />

( 1 ) Referindo aquelle artigo, lord Châtain dizia « aquclles barões de ferro<br />

( e assim os chamo comparando-os com os barões de seda de hoje ) aquellas três<br />

palavras de seu bárbaro latim—nullus liber homo — valião todos os clássicos».<br />

V. Lord Brougham, Works, t. 3. Statesmen of the time of George III and IV<br />

pag. 37.


414<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

inglezes obrigarão Carlos II a sanccionar o celebre acto do habeas-corpus<br />

de 1679. ( 1 )<br />

No velho regimen francez os reis também não respeitavão a<br />

liberdade individual de seus subd:tos. Costumavão, mediante<br />

as cartas de cachet, isto é, com o régi o sello, mandar prender,<br />

e sem fôrma de processo, recolher á Bastilha por annos e annosj<br />

e ás vezes até á morte, aquelles de quem não gostavão.<br />

Fallando das lettres de cachet, Hello as chama projectis<br />

do arbítrio, que erão lançados aos milhares e íerião ao acaso.<br />

« Erão passadas em branco, diz elle, e circulav.lo de mão em<br />

mão, como bons ao portador, ao qual a pessoa devia entregarse.<br />

Elias tinhão como fórmula ordinária — Deus vos tenha em<br />

sua santa e digna guarda — e seu immediato effeito era levar<br />

a pessoa para uma prisão do Estado, por causa desconhecida e<br />

tempo indefinido. (2)<br />

Conseqüência da liberdade individual é o respeito devido<br />

ao domicilio, cuja inviolabilidade também a Constituição garante,<br />

dizendo : « A casa é o asylo inviolável do indivíduo :<br />

ninguém pôde ahi penetrar, de noite, sem consentimento do<br />

morador, senão para acudir a victimas de crimes, ou desastres,<br />

nem de dia, senão nos casos e pela fôrma prescriptos na lei. »<br />

Consoante com a precedente disposição, o Código penal,<br />

especifica os crimes contra a inviolabilidade do domicilio, e as<br />

penas, como também os casos em que se pôde entrar em casa<br />

alheia, sem crime, e as formalidades que devem, n'estes casos,<br />

ser observadas. Art. 196 a 200.<br />

O domicilio do cidadão é tão inviolável, quanto a sua pessoa;<br />

a chuva e o raio podem entrar n'elle, dizia lord Chatham,<br />

mas o rei lá não penetra.<br />

E' também corollario da mesma liberdade individual o respeito<br />

á correspondência, cujo sigillo é inviolável, diz a Constituição.<br />

E tamanha é a importância d'essa garantia constitucional,<br />

que o nosso Código Penal chega a punir a autoridade<br />

« que de posse de carta ou correspondência particular utilisal-a<br />

{1)0 acto comraumente chamado habeas corpus 6 propriamente intitulado<br />

». An act for better securing the liberty of the subject, and for prevention of imprisonments<br />

beyond the seus. 0 mandado ( irrit ) do juiz ordenando c|ue so lhe apresentasse um<br />

preso, começava pelas palavras — Habeas corpus ad siibjeciendum. D'ahi a denomina<br />

cão — ordem de habeas corpus.<br />

( 2 ) V. Du regime constitutionelle, p. 68.


E CONSTITUCIONAL 415<br />

para qualquer intuito, seja, embora o da descoberta de um<br />

crime ou prova d'este. Art. 194. »<br />

O Código do processo italiano, porém, admitte que as cartas<br />

do correio possão ser abertas e seqüestradas, no caso de requisição<br />

da autoridade judiciaria para esclarecimento de uma acção<br />

penal. ( 1 )<br />

O processo a que está sujeita a pratica das garantias da liberdade<br />

individual é materia mais da legislação ordinária, do<br />

que de direito constitucional.<br />

O exercício da liberdade individual, assim como de todas<br />

as outras liberdades, tem limitações legaes e legitimas, que não<br />

devem ser esquecidas.<br />

Não ha direito sem limites. No seio da sociedade as liberdades<br />

encontrão limites, já na propria natureza do homem, já<br />

nos direitos dos associados, já finalmente nos direitos do<br />

Estado.<br />

O homem, nascendo na sociedade, tem logo a sua liberdade<br />

individual limitada pelos direitos do pátrio poder. A mãi de<br />

família encontra também limites no poder marital. A sua<br />

subordinação ao marido, o dever de cohabitar com elle, de<br />

acompanhal-o para onde elle jirfgue conveniente fixar o seu<br />

domicilio, são outras tantas limitações á sua liberdade individual,<br />

e ninguém dirá que essas limitações não sejão essenciaes<br />

á constituição da família.<br />

Na ordem civil as limitações são numerosas. Em todas as<br />

ordens de serviços públicos a liberdade individual do cidadão<br />

é limitada. O serviço militar, o do jury, o do magistério,<br />

quantas limitações não impõe ?<br />

Todas as vezes que os deveres do Estado, o dever de velar<br />

na segurança publica, de procurar o bem social, se encontra<br />

com os direitos individuaes do cididáo, temos justificadas limitações.<br />

A desapropriação, o tributo, a prisão preventiva, o compa -<br />

recimedto perante as autoridades, tudo isso são limitações,<br />

contra as quaes ninguém razoavelmente pôde reclamar, se se<br />

contém nos limites legaes.<br />

A independência do homem civilisado, que vive em sociedade<br />

política com outros, que também tem direitos, 6 necessariamente<br />

limitada pela lei protectora dos direitos de todos.<br />

( 1 ) Palma Corso cit. 1.3 p. 96.


4l6 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

IV<br />

Se unicamente a lei pôde limitar a liberdade individual, se<br />

o cidadão só pôde ser preso por ordem legal da autoridade<br />

competente, que pensar a respeito de uma ordem illegal ?<br />

Deverá o cidadão entregar-se á prisão, mesmo no caso de<br />

ordem illegal ? Ou deverá resistir ?<br />

Será melhor obedecer provisoriamente, e depois reclamar<br />

justiça e reparação contra a autoridade que expedio a ordem<br />

illegal ?<br />

O cidadão não pôde ser preso se não nos casos e pela fôrma<br />

estabelecida em lei. Ora, uma ordem de prisão, que não é conforme<br />

ao preceito da lei, é um acto de violência, e a autoridade<br />

que procede illegal e violentamente perde o caracter de<br />

autoridade, torna-se em tudo igual a qualquer cidadão. Portanto<br />

o seu acto não merece obediência.<br />

A força material se repelle pela força da mesma natureza.<br />

Vim vi repellere omnia jura permittunt. Logo o cidadão<br />

illegalmente preso, pôde, sem crime, resistir até ao ponto de<br />

matar para defender o seu direito.<br />

O direito de resistência ás ordens illegaes é um principio<br />

admittido na Inglaterra desde os tempos da Magna Carta.<br />

O próprio rei o reconheceu n'estes termos : « Os conservadores<br />

da Carta ( os vinte e cinco barões ) com todas as communas do<br />

paiz, ( cum commune totius terrœ ) por todos os meios a seu<br />

alcance, terão direito de nos desapropriar, principalmente apoderando-se<br />

dos nossos castellos, terras e bens, até que se deem<br />

por satisfeitos, salva a inviolabilidade da nossa real pessoa, da<br />

nossa rainha e dos nossos filhos ; mas depois de desaggravados<br />

elles nos obedecerão de novo, como d'antes. »<br />

Até um só indivíduo, segifndo aquelle principio, pôde usar<br />

do direito de resistência a um acto illegal, chegando mesmo a<br />

poder matar legitimamente em defesa de sua liberdade individual.<br />

Assim o tem reconhecido varias vezes os tribunaes<br />

inglezes. ( i )<br />

A doutrina da resistência, em these, é verdadeira.<br />

( 1 ) V. Fischel, ob. cit. t. l.cap. 13. Sobro o direito do resistência, vide<br />

Bluntschli, Droit public general, lis. 9 cap. 10.


E CONSTITUCIONAL 417<br />

Mas se o resistente erra, considerando illegal o que era<br />

legal, é responsável pela resistência e pelos seus effeitos. E como<br />

não é fácil julgar certamente da legalidade ou illegalidade de<br />

uma prisão, no instante em que se réalisa, parece que praticamente<br />

é mais prudente obedecer provisoriamente, e depois<br />

promover a responsabilidade da autoridade arbitraria.<br />

Quando, em i83o, o Congresso nacional belga discutio a<br />

Constituição, Robaulx propôz que na Declaração de direitos, a<br />

qual n'aquella Constituição se intitula — Dos belgas e de seus<br />

direitos — propôz, repito, que se inserisse um artigo assim<br />

redigido : « A resistência ás ordens illegaes dos funccionarios<br />

ou agentes da autoridade é legitima. » E precisou bem o seu<br />

pensamento accrescentando que : « se um constrangimento pessoal<br />

é feito illegalmente, é necessário que se possa repellir a<br />

força pela força. ■»<br />

Outro congressista, partidário da mesma doutrina, propôz<br />

a seguinte redacção : « Os belgas tem direito de recusar obediência,<br />

e, no caso de necessidade, de oppôr força a todos os<br />

actos illegaes das autoridades e a qualquer acto illegalmente<br />

praticado. »<br />

A commissão, a cujo exame forâo sujeitas aquellas emendas,<br />

opinou que não se devia fazer d'ellas um artigo constitucional,<br />

declarando, porém, que em these ellas não podião ser<br />

repellidas ; mas que era inutil e perigoso apresentar semelhante<br />

principio a cidadãos alheios aos estudos jurídicos.<br />

O relator da commissão disse : « Todos reconhecem, como<br />

principio, que se pôde repellir um acto illegal, que até em<br />

certos casos, se lhe pôde oppôr a força ; mas também se reconhece<br />

que o uso da força deve ser sempre proporcionado ao<br />

abuso que ella tem de repellir. D'onde se segue que a legitimidade<br />

da resistência depende necessariamente das circumstancias,<br />

e que por conseqüência ella deve ser deixada á apreciação<br />

do juiz, e não vagamente proclamada na Constituição. ><br />

Esse mesmo pensamento, mas de modo mais claro e conciso,<br />

foi enunciado por Van Mecmen, quando se discutio o<br />

parecer<br />

« Penso, disse elle, que todos concordão em que o principio<br />

do Sr. Robaulx é verdadeiro. Mas, quanto a fazer d'elle<br />

um artigo constitucional, é licito hesitar. Aquella proposição<br />

53


4i8 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

é a expressão de um pensamento, cuja verdade ninguém contesta,<br />

mas é certamente perigosa na sua applicação. > ( i )<br />

Esta doutrina é verdadeira. E' melhor deixar aos tribunae s<br />

julgar da lesão do direito feita pelos agentes da autoridade<br />

publica, do que lançar mão do jus privates violeniiœ.<br />

Consoante com aquella doutrina, dispunha a nossa velha<br />

Constituição :*« A excepção de flagrante delicto, a prisão não<br />

pôde ser executada, senão por ordem escripta da autoridade<br />

legitima. Si esta fôr arbitraria, o juiz que a deu, e quem a<br />

tiver requerido serão punidos com as penas, que a lei determinar<br />

» Art. 179 § 10.<br />

A Constituição actual conservou o mesmo pensamento,<br />

mas vagamente e sem concisão, apezar de sobre elle ter os dous<br />

seguintes paragraphos : « E' permittido a quem quer que seja<br />

representar, mediante petição, aos poderes públicos, denunciar<br />

abusos das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados<br />

■» § 9." « A excepção de flagrante delicto, a prisão não<br />

poderá executar­se, senão depois de pronuncia do indiciado,<br />

salvos os casos determinados em lei, e mediante ordem escripta<br />

da autoridade competente » § i3.<br />

Na lettra da Constituição está garantida a liberdade individual<br />

do cidadão brasileiro. Mas não basta isso para que aquella<br />

garantia seja efflcaz, para que na pratica seja respeitada de<br />

facto aquella liberdade.<br />

A Constituição não podia fazer mais. Declarou o principio<br />

protector da liberdade individual, como todas as outras<br />

Constituições modernas. A exacta applicação do principio, a<br />

respeitosa obediência a elle dependem mais dos costumes, da<br />

educação constitucional dos cidadãos, do que da lettra da Constituição.<br />

( 2 )<br />

( 1 ) V. Thonissen, La Constitution belge annotée, p. Gs e seg.<br />

( 2 ) Em nosso novo Código Penal esta definido o que seja oniem e requisição<br />

illegaes, assim como se achão estabelecidas as penas em que incorrem os quo expo<br />

dem, requisitãoe executão ordens illegaes. Arts. 22S­­22Ü.


CAPITULO XXI<br />

LIBERDADE RELIGIOSA. MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO PELA<br />

IMPRENSA. GARANTIA AO EXERCÍCIO DAS PROFISSÕES.<br />

LIBERDADE DE ENSINO.<br />

I<br />

A liberdade religiosa, conseqüência e applicação da liberdade<br />

individual, se manifesta sob duas fôrmas distinctas : liberdade<br />

de consciência e liberdade de culto.<br />

A liberdade de consciência consiste no direito, que todo<br />

homem tem, de não crer senão no que elle considera ser verdade.<br />

A liberdade de culto consiste no direito de traduzir<br />

externamente, por meio de actos e praticas, as crenças e opiniões<br />

religiosas que reputa verdadeiras.<br />

Essas duas liberdades são distinctas. Aquella é um facto<br />

interno, esta é facto externo, conseqüência natural do primeiro.<br />

A liberdade de consciência, como facto puramente psychologico<br />

e individual escapa á acção do legislador; a liberdade<br />

de culto, como facto exterior, como manifestação social, pôde<br />

cahir sob o domínio da autoridade, e ser por ella limitado, do<br />

mesmo modo que a manifestação dos outros direitos, que em<br />

sua actuação se encontrão com os direitos dos outros associados<br />

e com os do Estado.<br />

As discussões que se agitão a respeito da liberdade religiosa,<br />

versão principalmente, não sobre a liberdade de consciência,<br />

mas sobre a dos cultos.<br />

Ambas se achão garantidas pela Constituição, que a respeito<br />

estabelece o seguinte :<br />

« Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer


420 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

publica e livremente o seu culto, associando-se para esse flm e<br />

adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.<br />

Art. 72 § 9.<br />

« Os cemitérios terão caracter secular, e serão administrados<br />

pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos<br />

religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus<br />

crentes, desde que não offendão a moral publica e as leis.<br />

Ibid. §5.<br />

« Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official, nem<br />

terá relações de dependência, ou alliança com o governo da<br />

União, ou dos Estados. Ibid. § 7.<br />

« Por motivo de crença ou de funeção religiosa, nenhum<br />

cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e<br />

políticos, nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever<br />

civico. Ibid. § 28. ><br />

Não é por ódio á religião, mas por amor á liberdade da<br />

religião, e respeito á consciência do cidadão, que o legislador<br />

constituinte, abolindo a religião de Estado, proclamou a<br />

Igreja livre parallela ao Estado livre.<br />

Não é por homenagem ao scepticismo religioso, para o qual<br />

não ha certeza religiosa, que a Constituição quer que todas as<br />

religiões se manifestem em seus cultos ; não é por amor ao<br />

indifferentismo, que énerva as almas e mata a virilidade dos<br />

caracteres, que a Constituição declara a Igreja livre da política.<br />

E' sim em nome do direito natural do homem, de não ser incommodado<br />

por seus pensamentos e convicções ; é para repellir<br />

em nome da liberdade a intervenção do Estado nos domínios<br />

da fé religiosa, que devemos louvar a Constituição por ter<br />

proclamada a separação da Igreja do Estado.<br />

A situação creada pela Constituição á Igreja catholica no<br />

Brasil permitte a esta uma era de florescimento e de abundantes<br />

fruetos para a sociedade brasileira.<br />

Esse novo regimen religioso tem o incontestável mérito de<br />

arrancar a Igreja brasileira das mãos do padroado e das interpretações<br />

do conselho de Estado, que entre nós substituia a<br />

Congregação dos Ritos e a Sacra Penitenciaria.<br />

Se reflectirmos, isentos de preconceitos, na collecção de<br />

leis canonico-civis do Brasil, nos Decretos, Avisos e Provisões<br />

que regulavão as relações da Igreja com o Estado, é impossível<br />

não considerar o actual regimen como uma emancipação reli-


Jll<br />

E CONSTITUCIONAL 421<br />

giosa para os catholicos, e em geral, para todos os cidadãos<br />

brasileiros.<br />

« Nenhum culto ou igreja terá subvenção official» diz a<br />

Constituição, mas accrescenta logo que também « não terá<br />

relações de dependência com o governo da União. ><br />

A igreja brasileira perdeu algumas dezenas de contos de<br />

réis, mas recuperou a sua liberdade, adquirio a sua inapreciavel<br />

e divina independência.<br />

O culto catholico não figura mais no orçamento da despeza<br />

da União, mas também o governo central não expedirá mais<br />

decretos declarando que os parochos não podem exigir as velas<br />

das banquetas, nem fixando cm 80 réis cada confissão de desobriga,<br />

nem regulando o ensino nos seminários, etc.<br />

A Constituição não quer que por motivo de crença algum<br />

cidadão brasileiro seja privado de seus direitos civis e políticos.<br />

E' uma conseqüência lógica e legitima da igualdade civil, que<br />

é o-fundamento da sociedade moderna.<br />

O Estado não é uma sociedade religiosa, mas politica*<br />

Deve portanto admittir a todos á participação do bem social'<br />

do mesmo modo que exige de todos igual obediência, iguaes<br />

sacrifícios para a ordem e conservação da sociedade.<br />

Salvo as incapacidades naturaes, resultantes da diversidade,<br />

também natural, das condições, é justo que todos gosem do<br />

exercício dos direitos civis e politicos.<br />

A crença religiosa não é uma incapacidade natural. Passou<br />

o tempo da incapacidade civil por motivo de crença.<br />

A Inglaterra, paiz da liberdade, abolindo o seu famoso test,<br />

e aclmittindo os dissenters ao goso, até dos cargos das Universidades,<br />

deu um grande exemplo de liberdade applicada á<br />

ordem social politica.<br />

Não convém esquecer que a liberdade de culto proclamada<br />

pela Constituição, tem seus limites legaes, como todas as liberdades.<br />

E' a mesma Constituição que, fallando dos cemitérios<br />

diz que « fica livre a todos os cultos religiosos a pratica dos<br />

respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não<br />

offendão a moral publica e as leis. » Art. 7 2 § 5-<br />

A liberdade omnimoda de culto não existe em sociedade<br />

alguma. A pratica do mormonismo, do mahometismo, do paganismo,<br />

sendo contrarias á moral christã, nenhum paiz civilisado<br />

a tolera.


422 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Toda a nossa educação constitucional tem sido feita antes<br />

pelos moldes da Europa, e particularmente da França, do que<br />

pelas idéas americanas.<br />

A eschola liberal dos nossos estadistas é antes a dos princípios<br />

de 1789, do que a dos princípios de 1776.<br />

Somos americanos, e não obstante, regemo-nos mais pela<br />

liberdade á franceza, do que pela liberdade á americana.<br />

Na materia, de que estamos tratando, se manifesta ainda a<br />

nossa tendência para a liberdade religiosa, qual a entende e<br />

pratica a esçhola franceza, em vez de entendel-a e pratical-a<br />

como os americanos.<br />

A separação da Igreja e do Estado, expressa na celebre<br />

formula de Cavour, ou de Montalembert — Igreja livre no<br />

Estado livre — é entendida na America de modo différente, do<br />

que se entende na Europa.<br />

Em França ella significa atheismo do Estado, ou pelo menos<br />

uma situação em que se ignora o christianismo, e em que os<br />

poderes públicos agem sem se inspirarem nos dogmas ou nas<br />

idéas moraes derivadas dos dogmas do christianismo.<br />

Pelo contrario nos Estados Unidos, se não ha uma religião<br />

de Estado, ha uma religião nacional, na qual os poderes públicos<br />

se inspirão, e que a opinião publica respeita.<br />

A religião christã e seus dogmas não são desconhecidos do<br />

governo americano.<br />

Antes que na Europa se proclamasse a Igreja livre no<br />

Estado livre, já havia muitos annos que nos Estados Unidos<br />

essa maxima era praticada leal e sinceramente ; e graças a essa<br />

sinceridade ali floresce o catholicismo de modo a fazçr inveja<br />

a certos paizes chamados catholicos. ( 1 )<br />

Posto que no final da secção 3. a do art. 6,«a Constituição<br />

declare que « nenhum juramento religioso ( religious test )<br />

será exigido como condição de aptidão para qualquer funcção<br />

ou cargo <strong>publico</strong> da confiança dos Estados Unidos, ( 2 ) posto<br />

( 1 ) Os catholicos contão nos Estados-Unidos Si arcebispos o bispos, 8000 padres<br />

c 10 milhões de fieis. Do todas as confissões 6 a que mais prospera e a que conta<br />

maior numero de adhérentes em toda a União.<br />

(2) Sobrelèva notar aqui nma importante differeuça entre a nossa Constitui,<br />

cão e a americana. A nossa prohibe uma religião official, subvencionada, aluada ou<br />

dependente, tanto a respeito do governo da União, como a respeito do dos Estados.


E CONSTITUCIONAL 423<br />

que também a mesma Constituição, (na Emenda i. a ) estabeleça<br />

que « o Congresso não poderá fazer nenhuma lei concernente<br />

ao estabelecimento de uma religião, ou prohibindo o<br />

exercício de qualquer d'ellas » todavia nem o povo, nem os<br />

poderes públicos, o legislativo, o executivo e o judiciário, desconhecem<br />

o christianismo, e se pôde dizer que a religião christã,<br />

em geral, é nos Estados Unidos lei suprema do paiz e<br />

materia de ordem moral.<br />

A corrente dos publicistas americanos ainda hoje pensa na<br />

questão da liberdade religiosa como, ha cincoenta annos, pensava<br />

o sábio commentador Story.<br />

« O direito de uma sociedade ou de um governo de intervir<br />

em matéria de religião, dizia aquelle publicista, só pôde ser<br />

contestado por aquelles que pensão que a piedade, a moral, a<br />

religião não estão intimamente connexas com o bem estar do<br />

Estado e não são indispensáveis á administração da justiça.<br />

A promulgação das grandes doutrinas da religião, a existência,<br />

os attributos e a providencia de um Deus Omnipotente, nossa<br />

responsabilidade para com elle por nossas acções, fundada na<br />

liberdade moral, a animação das virtudes pessoaes e sociaes, a<br />

Art. 12 % 7, E no art. II §2. veda, assim â União, como aos Estados « estabelecer,<br />

subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. »<br />

A Constituiçíio americana, porem, diz que nenhum juramento religioso poder;!<br />

ser exigido, como condição para oecupar um cargo <strong>publico</strong> de confiança dos Estados-<br />

Unidos, to any office or public trust under tin: United States. D'onde se segue que os<br />

Estados podem exigir juramento religioso para os fuiiccionarios sob sua jurisdicção-<br />

E de facto, Constituições de alguns Estados declarão incapazes para oecupar<br />

um emprego <strong>publico</strong> honorifico ou retribuído, aquelles que negão a existência de<br />

Deus. A 1'onsü aiçfto do Maryland incluo a confissão de crença em um Ser Supremo<br />

110 juramento que prestão os membros do sou Congresso, e os funecionarios de ordem<br />

executiva c judiciaria.<br />

Quando o Congresso recebe na União um Estado novo, examina a sua Constituição,<br />

e se esta não garantir aos seus cidadãos a liberdade religiosa, não será recebido.<br />

Mas, diz Ezra Seaman em seus Commentaries on the Constitutions and laws of<br />

the I. S., como «as emendas ils Constituições dos Estados não são sujeilas ao Congresso<br />

nacional, o governo federal não tem poder de impedir que um Estado abula<br />

ou modifique essa garantia dos direitos sagrados dos cidadãos, nem que, por ex. <strong>ï</strong> 1—<br />

stitua uma religião de Estado, e a subvencione por meio de dízimos ou de taxas,<br />

estabeleça a censura da imprensa, crie obstáculos á liberdade da palavra... Esse<br />

procedimento seria essencialmente tyrannico, mas não se pode pretender que seja<br />

uma violação a Constituição federal, nem que o governo federal possa intervir par»<br />

soecorrer os cidadãos d'esse Estado. » Cit por Carlier loc. cit. f. 3. p. 45Í.


424<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

recompensa e castigos futuros, todas essas cousas não podem<br />

ser objectos indifférentes para uma sociedade bem ordenada, e<br />

sem ellas não pôde existir. Todo homem, convencido da origem<br />

divina do christianismo, considera como dever do governo<br />

sustental-o e animal-o entre os cidadãos. Isso é cousa distincta<br />

da liberdade de pensamento em materia de religião e da liberdade<br />

de cultos, segundo as inspirações da consciência. ( I )<br />

O celebre annotador de Story, o illustre jurisconsulte<br />

Cooley, pensa do mesmo modo.<br />

« O reconhecimento <strong>publico</strong> do christianismo, não se funda<br />

somente no pensamento dos nossos deveres para com Deus, na<br />

qualidade de autor de todo o bem e de toda lei, mas também<br />

em razões de Estado ; pois os mesmos motivos que determinào<br />

o governo a auxiliar as instituições de caridade, e os seminários<br />

de instrucção, o aconselhão a animar o culto divino e os<br />

institutos religioso^, como elementos conservadores da ordem<br />

publica, e preciosos, senão indispensáveis, auxiliares da manutenção<br />

do ordem publica... Em um paiz em que o christianismo<br />

domina, os actos reputados ímpios c blasphematorios, segundo<br />

a sua moral, são legalmente punidos como offensas á sociedade<br />

civil, porque offendem o sentimento <strong>publico</strong> e tendem a arruinar<br />

a moral, fundamento das leis e a corromper a sociedade. ( 2 )<br />

Esse modo de pensar é corroborado na pratica pelos mais<br />

significativos signaes do sentimento religioso da nação, e da<br />

opinião geral, segundo a qual os poderes federaes não estão<br />

jnhibidos pela Constituição de conformar os seus actos com o<br />

sentimento religioso dominante no paiz.<br />

Assim é que, as sessões do Congresso nacional se abrem<br />

precedendo solemnes orações, e cada uma das casas tem para<br />

isso seu capellão com um ordenado de 3oo dollars.<br />

Todos os annos, por oceasião da festa chamada Thanksgivingday,<br />

que tem por fim dar graças a Deus pela colheita do<br />

anno, o Presidente da Republica publica uma proclamação<br />

convidando o povo a agradecer a Deus, autor de todos os bens.<br />

O exercito e a armada tem seus capellães, tirados das différentes<br />

confissões christãs, pagos pelo thesouro <strong>publico</strong>.<br />

( 1 ) Commentaries, t. 2 p. G02 § 1871.<br />

( 2 ) Constitutional limitations, p. 583-8't.


d)3<br />

E CONSTITUCIONAL 425<br />

Os padres são ali cercados de consideração.<br />

O bill de 1887, regulando o commercio entre os Estados,<br />

prohibio que as companhias de estradas de ferro dessem<br />

passes gratuitos, mas teve o cuidado de exceptuar d'essa prohibição<br />

aos padres das confissões christãs, aos quaes sempre se<br />

fez essa concessão, sanecionada pela opinião publica.<br />

A ultima lei federal de 1888, que reformou o serviço postal,<br />

expressamente prohibe o transporte pelo correio de qualquer<br />

escripto obsceno, sem sobrecapa, de bilhetes postaes contendo<br />

palavras lascivas e de todo e qualquer objecto destinado a usos<br />

deshonestos.<br />

Muitos jurisconsultes sustentão ali que os princípios do<br />

christianismo fazem parte da common law, e os juizes os invocão<br />

em suas sentenças.<br />

E' conhecida a severidade com que os poderes públicos<br />

perseguem a seita polygamista dos Mormons. Estes, valendose<br />

do preceito constitucional da liberdade de consciência, debalde<br />

recorrem aos íribunaes federaes ; são desattendidos, com<br />

approvação da opinião publica.<br />

A blasphemia e os libellos contra a religião são punidos<br />

em todos os Estados como crimes.<br />

Em virtude dos mesmos princípios, em 1886 o prefeito de<br />

New York recusou licença para que se representasse no theatro<br />

um drama commemorativo das scenas da paixão de Jesus<br />

Christo.<br />

Muitas outras praticas poderiamos referir. ( 1 )<br />

Basta, porém, o que fica dito para mostrar como nos Estados<br />

Unidos se pratica a liberdade religiosa.<br />

Ali os poderes públicos não declarão guerra ao sentimento<br />

religioso do povo, e todos os partidos o respeitão. Nenhum<br />

d'estes, alternadamente no poder, jamais se lembrou de mandar<br />

apagar as sentenças biblicas escriptas em lettras maisculas nas<br />

paredes do Capitólio, sede do Congresso nacional.<br />

Tendo visto o que se pratica nos Estados Unidos, Tocqueville<br />

dizia : « Só o despotismo despresa a fé A religião é muito<br />

mais necessária nas republicas, do que nas monarchias, e nas<br />

republicas democráticas, mais do que nas outras. Como não<br />

( 1 ) V. Carlier, ob. cit. í. 3. liv. 12. c De Noailles loc. cit, t. 3. cap. 30.<br />

54


426 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

hade decahir a sociedade, se affrouxando-se o laço politico,<br />

não se apartar o vinculo moral ? Que fará um povo que, sendo<br />

senhor de si, não fôr obediente a Deus ? ( i )<br />

II<br />

Com a liberdade de consciência tem intima connexào a<br />

liberdade de pensamento, se não são a mesma cousa; pois a<br />

consciência não é senão o pensamento reflexo dizendo-nos<br />

internamente o que devemos crer ou descrer, fazer ou evitar.<br />

Tendo, portanto, estudado a liberdade de consciência, fallaremos<br />

agora da liberdade do pensamento, considerada como<br />

um direito do homem.<br />

Esse direito é garantido pela Constituição nos seguintes<br />

termos : < Em qualquer assumpto é livre a manifestação do<br />

pensamento pela imprensa, ou pela tribuna, sem dependência<br />

de censura, respondendo cada um pelos abusos que commetter,<br />

nos casos e pela fôrma que a lei determinar. Não é permittido<br />

o anonymato. Art. 72 § 12. »<br />

Esse direito é também um corollario da liberdade individual,<br />

a qual consta não só da liberdade physica ou exterior,<br />

mas também da liberdade psychica ou interior.<br />

O homem é pensamento e acção. A acção ou a manifestação<br />

exterior é dictada pelo movimento intellectual. O homem<br />

pensa, e depois obra de conformidade com o pensamento.<br />

Emquantoelle pensa, e seu pensamento permanece na região<br />

animica, não tem o legislador que providenciar. O mundo subjectivo<br />

é um sacrario, aonde não penetrão vistas humanas.<br />

E' preciso que a acção intellectual passe ao mundo objectivo,<br />

para que caia sob a acção da autoridade social.<br />

Portanto, não é da liberdade do pensamento, propriamente<br />

fallando, que aqui se trata, mas dos effeitos do pensamento no<br />

mundo exterior. Por isso a Constituição não diz — é livre o<br />

pensamento.<br />

Essa manifestação encontrando-se na sociedade já com os<br />

direitos dos associados e já cornos do Estado, a quem compete<br />

defender o direito de todos os cidadãos, d'esse encontro resul-<br />

( 1 ) Pe la démocratie en Amérique, t, 2, p, 222.


JW<br />

E CONSTITUCIONAL 427<br />

tão os limites juridicamente impostos á liberdade da imprensa,<br />

dos quaes d'aqui a pouco fallaremos.<br />

O meio mais commum e ordinário de manifestar o pensamento<br />

é a imprensa, a qual, como diz Rossi, deu azas ao pensamento,<br />

supprimio as distancias, os lugares e os tempos, transformando,<br />

por assim dizer, o mundo civilisado em um vasto<br />

theatro, aonde o actor tem por espectador e ouvinte ao mesmo<br />

mundo civilisado. Duração, ubiqüidade, e rápida divulgação<br />

das manifestações do pensamento, são effeitos da imprensa. (1)<br />

O direito de manifestar o pensamento pela imprensa é<br />

moderno, ainda que seja natural e innata a connexão necessária<br />

entre o pensamento e a sua manifestação, pela qual o homem,<br />

naturalmente sociavel, se communica com os seus semelhantes,<br />

A Inglaterra, mài das liberdades modernas, por muito<br />

tempo desconheceu aquelle direito. O celebre bill de direitos<br />

não menciona a liberdade da imprensa, que por longos annos<br />

ali esteve sob o regimen de leis verdadeiramente barbaras.<br />

Ainda no tempo de Jorge 1.° se cortavào as orelhas aos que<br />

censuravão Sua Magestade. ( 2 )<br />

Mas desde 1694 a imprensa tornou-se livre na Inglaterra,<br />

não em virtude de uma disposição constitucional escripta, mas<br />

porque n'aquelle anno foi abrogado o estatuto que estabelecia<br />

a censura prévia, e a imprensa entrou para o regimen, que os<br />

inglezes chamão Common Law. Desde então pó de qualquer<br />

cidadão publicar pela imprensa os seus pensamentos, correndo<br />

o risco da responsabilidade legal.<br />

Na realidade, porém, foi em 1791, que aquella liberdade<br />

pela primeira vez se elevou á categoria de um principio constitucional.<br />

« Todo cidadão, diz o art. 11 da Declaration des<br />

droits de l'homme et du citoyen, pôde fallar, escrever, imprimir<br />

livremente, salvo responder pelos abusos d'essa liberdade,<br />

nos casos determinados em lei. J><br />

Desde então todas as Constituições affirmarão aquella liberdade<br />

como um direito fundamental do cidadão.<br />

Mas aquella preciosa liberdade, como todas as outras, pre-<br />

{1 ) Cours cit. Lie. 51.<br />

(2 ) Fischel, loc. cit. t. 1, p, 146.


428 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

cisa ser regulada, para que não se converta em arma perigosa<br />

para os direitos dos outros, para que não se torne injuriosa,<br />

calumniadora, provocadora de crimes, de sedições, de perturbações<br />

da ordem publica.<br />

Liberdade de imprensa não quer dizer irresponsabilidade.<br />

Toda liberdade, para ser jurídica, deve ser contida nos<br />

limites legaes, deve respeitar os direitos dos cidadãos e os do<br />

Estado. « A liberdade illimitada da palavra e da imprensa, diz<br />

Chassan, isto é, a faculdade de dizer tudo, de tudo publicar,<br />

sem estar sujeito a uma repressão, nem á responsabilidade<br />

alguma, é mais do que uma utopia, é um absurdo, que não pôde<br />

existir na legislação de nenhum povo civilisado. »<br />

Para esse effeito, desde muito tempo os legisladores tem<br />

procurado estabelecer leis reguladoras da manifestação do<br />

pensamento. Essas leis podem-se classificar em duas espécies<br />

— leis preventivas e leis repressivas.<br />

As leis preventivas são aquellas que antecipadamente tração<br />

regras, segundo as quaes se deve manifestar o pensamento,<br />

para prevenir os possíveis abusos. Repressivas são aquellas<br />

que, deixando a cada um o livre uso da liberdade da imprensa,<br />

punem depois os delictos conseqüentes ao abuso d'aquella<br />

liberdade.<br />

Essa distincção de leis preventivas e repressivas não se<br />

applica unicamente ao uso da imprensa, mas também a outras<br />

matérias, como a liberdade do ensino, que também, como a<br />

imprensa, é arma que pôde ferir e sanar.<br />

Entre o systema preventivo e o repressivo qual deve ser<br />

preferido ?<br />

Em these, o regimen repressivo, e não o preventivo.<br />

Plena liberdade dos actos individuaes com rigorosa responsabilidade,<br />

tal é o objectivo para onde deve caminhar a sociedade<br />

civilisada.<br />

O systema preventivo foi o primeiro adoptado em todos os<br />

paizes, logo que a imprensa começou a desenvolver-se e a mostrar<br />

o seu incommensuravel poder. Esse systema se resume na<br />

censtira prévia.<br />

Consiste esta em submetter o manuscripto, antes de sua<br />

publicação, ao exame da autoridade que deve expurgal-o do<br />

que, a seu juizo,contém de nocivo; assim expurgado, o censor<br />

autorisa a publicação.


E CONSTITUCIONAL 429<br />

E' obvio que este systema é positivamente a negação da<br />

liberdade da manifestação do pensamento.<br />

Para comprimir o espirito nos seus pensamentos scientificos,<br />

religiosos ou políticos, não se podia inventar melhor systema.<br />

O cidadão só publica o que o censor quer, e só deve<br />

pensar como o censor pensa. D'esse modo, sendo a liberdade<br />

da imprensa o meio mais precioso de syndicar os actos da autoridade<br />

publica, perde todo esse valor, porque a syndicação fica<br />

dependente do arbítrio do syndicado, como o acto do pupillo a<br />

respeito do tutor.<br />

Com toda razão, pois, a censura prévia desappareceu do„<br />

códigos de todos os governos livres.<br />

A nossa Constituição passada dispunha que «todos podiào<br />

publicar seus pensamentos pela imprensa, sem dependência de<br />

ceusura ; » a actual « em qualquer assumpto é livre a manifestação<br />

do pensamento... sem dependência de censura. »<br />

Se a censura preventiva, em these, é inadmissível, cumpre<br />

reconhecer com Rossi que ha certas prevenções que não podem<br />

ser condemnadas.<br />

Ha medidas preventivas, diz aquelle publicista, que para.<br />

lysão o exercício da faculdade, á qual se applicâo, como é a<br />

prohibição de vender venenos para aquelles que não são pharmaceuticos<br />

: esta medida preventiva paralysa o exercício da<br />

faculdade, do mesmo modo que a censura prévia a respeito da<br />

imprensa. Mas outras existem que não tem o mesmo effeito.<br />

E' o caso, para continuar com o exemplo dos venenos, de se<br />

permittir aos pharmaceuticos vendel-os, mas obrigando-os a se<br />

conformarem com certas regras, taes como, ter um livro de<br />

registro, aonde escrevão o nome da pessoa a quem vendem ,<br />

a não venderem o veneno senão quando ordenado por medico'<br />

e a guardarem a receita, para exhibil-a, sendo necessário. Taes<br />

medidas preventivas não impedem o exercício da faculdade ;<br />

tem somente por fim, no caso de haver um crime, facilitar a<br />

procura do criminoso. ( 1 )<br />

Entre nós pôde qualquer pessoa publicar um jornal, de<br />

qualquer natureza, scientifico, político, religioso, critico, etc.<br />

Mas, como medida preventiva, da ordem d'aquellas acima ci-<br />

( 1 ) Cours cit Lie. 55 p, 80.


43o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tadas, o Código Penal exige que fique registrado na Intendencia<br />

ou Câmara municipal do lugar o nome do dono do jornal, anno,<br />

lugar, rua e casa onde tiver de estabelecer a officina, ou o lugar<br />

para onde fôr transferida, depois de estabelecida. Art. 383.<br />

Até aqui temos uma simples medida preventiva, que não<br />

impede o exercício do direito constitucional de manifestar o<br />

pensamento pela imprensa, e que não tem outro fim senão facilitar<br />

a investigação do responsável, no caso de ter commettido<br />

abuso, para que responda na fôrma da lei.<br />

Mas aquelle mesmo artigo torna a publicação do jornal dependente<br />

de licença prévia da Intendencia ou Câmara municipal.<br />

( I ) Essa dependência é contraria á liberdade constitucional,<br />

e evidentemente a sujeita á bôa vontade da Câmara<br />

municipal. E se esta, porque suspeite que o jornal escreverá<br />

contra as suas idéas, ou por outro motivo, denegar licença, a<br />

que fica reduzida a garantia constitucional ?<br />

Entre a censura prévia e a autorisação ou licença prévia<br />

que differença substancial existe ? Em um e outro caso a liberdade<br />

fica sujeita, em um caso ao arbítrio do censor, em outro<br />

ao da Câmara municipal.<br />

O nosso Código actual vai além do velho regimen francez.<br />

A lei franceza de i835 exigia « a declaração prévia que devia<br />

conter o nome do proprietário do jornal, o seu titulo, a indicação<br />

da typographia, etc. ( 2 ) ; o nosso Código em vez de declaração<br />

exige licença !<br />

O nosso velho Código Criminal ( art. 3o3 ) não exigia licença<br />

prévia, mas somente as declarações.<br />

Quanto aos meios repressivos, únicos compatíveis com a<br />

liberdade da manifestação do pensamento, elles varião muito<br />

nas différentes legislações. O seu estudo não cabe na esphera<br />

constitucional ; por isso não entraremos n'elle.<br />

Antes, porém, de passara outro assumpto, diremos alguma<br />

(!) « Estabelecer officina de impressão, litliographiu. gravura ou qualquer<br />

outra arte de reproducção de exemplares por meios mechanic.os e ebimicos, sem<br />

prévia Itmnça da intendencia ou minara municipal, do lugar, com declaração do nome do<br />

dono, anno, lugar, rua e casa, onde tiver de estabelecer a officina, ou o lugar para<br />

onde for transferida depois de estabelecida : Pena de multa de 100.000 a 200.000.<br />

Art. 383.<br />

( 2) Rossi, loc. cit. p. 15.


E CONSTITUCIONAL<br />

431<br />

cousa sobre os responsáveis pelos abusos da imprensa, e sobre<br />

o anonymato.<br />

Segundo o nosso Código Penal são « solidariamente responsáveis<br />

: l.° o autor, 2. 0 o dono da typographia, lithographia<br />

ou jornal, 3.° o editor.<br />

« Se a typographia, lithographia ou jornal pertencer a entidade<br />

collectiva, sociedade ou companhia, os gerentes ou administradores<br />

serão solidariamente responsáveis para todos os<br />

effeitos legaes.<br />

« Serão também responsáveis o vendedor ou distribuidor<br />

de impressos ou gravuras, quando não constar quem é o dono<br />

da typographia, lithographia ou jornal, ou fôr residente em paiz<br />

estrangeiro. Art. 22.<br />

A Constituição belga dispõe que « quando o autor é conhecido<br />

e domiciliado na Bélgica, o editor, o impressor ou o distribuidor<br />

não podem ser responsabilisados. > Art. 18. ( 1 )<br />

Commentando essa disposição, Thonissen diz que ella constitue<br />

uma derogação formal aos princípios essenciaes do direito<br />

penal, em virtude dos quaes todos aquelles que scientemente<br />

ajudão ou auxilião ao autor de um crime ou delicto nos factos<br />

que o prepararão, o facilitarão, ou consummarão, são considerados<br />

como cúmplices e n'esta qualidade sujeitos ás penas criminaes<br />

ou correccionaes.<br />

Na Inglaterra o primeiro responsável é o editor, e depois o<br />

distribuidor ; o impressor somente o é, no caso de não se descobrir<br />

aquelles. O autor sò é responsabilisado no caso de assumir<br />

especialmente a responsabilidade pelo impressor. ( 2 )<br />

Os precitados textos suscitão interessantes questões ; mas<br />

ellas transcedem a esphera do direito constitucional.<br />

A Constituição abolio o anonymoto. Porque ?<br />

Porque a assignatura dos artigos dos jornaes, importando<br />

responsabilidade pessoal, moral e jurídica do signatário, que se<br />

presume ser o autor, previne-se d'esse modo mais facilmente<br />

os crimes da imprensa.<br />

De facto, quando uma pessoa escreve sabendo que a responsabilidade<br />

é exclusivamente sua, tem cuidado de medir as<br />

suas palavras, de modo que não offendão o direito de outro.<br />

( 1 ) La Constitution belge annotada, p. 80.<br />

(2) Fischol obr. cit. t. 1. p. 155.


432 NOÇÕES DE DIREITOPUBUCO<br />

A responsabilidade individual, pessoal é mais energicamente<br />

sentida, do que quando é collectiva e commum a muitos.<br />

A exigência legal da assignatura é ao mesmo tempo um<br />

meio repressivo e preventivo. E' repressivo, porque a responsabilidade<br />

penal torna-se mais prompta e effectiva. E' preventiva,<br />

porque o signatário pelo temor da pena, que elle sabe o<br />

ferirá directamente, comedirá as suas palavras para não offender,<br />

accommodando-se ao que o direito permitte.<br />

Esse systema tem seus inconvenientes, e nem sempre produz<br />

o effeito intentado.<br />

A obrigação de assignar os artigos, é sem duvida uma restricção<br />

da liberdade, sem sufficientes compensações.<br />

Em muitos casos se não se assigna o artigo, não é por medo<br />

da responsabilidade, mas pelo desejo de que elle produza<br />

melhor effeito. E' sabido que o nome do autor pode despertar<br />

prevenção desfavorável n"aquelles que, por inveja ou rivalidade<br />

não gostão do escriptor. Muitas vezes não se lê o artigo, porque<br />

o signatário é pessoa obscura ; outras se lê com prevenção<br />

e só pelo desejo de refutar.<br />

Accresce ainda que, o fallar em nome collcctivo, como é<br />

uma redacção de jornal, dá mais valor ao artigo ; então não é<br />

um indivíduo que falia, mas um partido.<br />

III<br />

Não é com as leis, diz o economista inglez Ponlett Scrope,<br />

que se animão as industrias ; a liberdade é o seu natural elemento,<br />

o seu clima nativo. Na liberdade ellas estendem seus<br />

luxuriantes ramos, amadurecem seus copiosos fruetos. Na<br />

atmosphera suffocante das leis, dos regulamentos, das restricções,<br />

as industrias perdem a saúde, o vigor, definhão e morrem.<br />

Em outros tempos se pensava que a autoridade social devia<br />

regular e dirigir as industrias ; para tornal-as mais profícuas á<br />

sociedade.<br />

Em 1670, segundo refere Dunoyer, existia em França um<br />

regulamento, que mandava appréhender e seqüestrar, com o<br />

nome dos autores, as mercadorias, que não estavão fabricadas<br />

de conformidade com as regras estabelecidas, e na reincidência<br />

prendia-se o fabricante. Não se consultava o gosto dos consumidores,<br />

mas a disposição regulamentar. Legiões de inspecto-


jn<br />

E CONSTITUCIONAL 433<br />

res, de verificadores, de peritos, de guardas erão encarregados<br />

de fazer executar aquellas disposições. Os melhoramentos erão<br />

punidos e os inventores condemnados. ( i )<br />

Hoje o meio natural da industria, seja material ou immaterial,<br />

é a liberdade.<br />

Todas as Constituições garantem e affirmão as manifestações<br />

da actividade livre do homem, quer essas forças sejão<br />

physicas, quer moraes ou intellectuaes.<br />

A nossa, inspirando-se nas doutrinas da liberdade, dispõe ;<br />

« E' garantido o livre exercício de qualquer profissão moral,<br />

intellectual e industrial.<br />

« Os inventos industriaes pertencerão aos seus autores, aos<br />

quaes ficará garantido por lei um privilegio temporário, ou será<br />

concedido pelo Congresso um prêmio razoável, qusndo haja<br />

conveniência de vulgarisar o invento.<br />

e Aos autores de obras íitterarias e artísticas é garantido o<br />

direito exclusivo de reproduzil-as pela imprensa, ou por qualquer<br />

outro processo mechanico. Os herdeiros dos autores<br />

gosarão d'esse direito pelo tempo que a lei determinar.<br />


434 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

Além d'isso, aquella garantia legal favorece o progresso,<br />

porque animando os industriaes faz que appareção outras<br />

invenções de importância, e assim se desenvolva o progresso<br />

das industrias.<br />

Mas a propriedade industrial, que a lei garante, não é uma<br />

verdadeira propriedade, porque não tem os caracteres essenciaes<br />

da propriedade ordinária — a exclusividade e a perpetuidade<br />

: é uma espécie da chamada propriedade intellectual,<br />

e como esta tem por objecto uma idéa, uma verdade, que por<br />

sua natureza é inapropriavel.<br />

Mediante a lei, o que fica garantido ao inventor industrial,<br />

é o goso exclusivo das vantagens de seu invento por certo<br />

tempo, que varia segundo as legislações, mas que é sempre<br />

limitado. Por isso a disposição constitucional dizendo que os<br />

inventos pertencem aos seus autores, e que a estes fica garantido<br />

um privilegio, accrescenta logo que este será temporário.<br />

A Constituição garante também o desenvolvimento das<br />

industrias, assegurando a propriedade das marca de fabricas.<br />

Assim se chamão certos signaes com que os fabricantes<br />

distinguem os seus productos, para não se confundirem com<br />

outros similares. E' uma espécie de brazão do industrial.<br />

E' obvia a importância d'essas marcas ; tanto para os fabricantes,<br />

como para os consumidores.<br />

A grande variedade de productos similares torna difficii<br />

distinguir uns dos outros. Ora, está no interesse do productor<br />

garantir a reputação do seu producto, que elle considera melhor<br />

do que os outros, e para distinguil-os, os marca. De outro lado,<br />

os consumidores, aos quaes o producto agrada, ficão o conhecendo<br />

pela marca, que lhes inspira confiança.<br />

Se outro fabricante fraudulentamente se apossa da marca,<br />

prejudica tanto ao seu verdadeiro dono, como aquelles a quem<br />

ella inspira confiança. Uns e outros são enganados.<br />

E' portanto muito justo que a lei reconheça a propriedade<br />

das marcas de fabrica.<br />

Se a Constituição garante os inventos industriaes, e o<br />

exercicio de qualquer profissão moral, intellectual e industrial,<br />

não podia deixar sem justa remuneração os productos da mais<br />

importante das industrias, d'aquella que se destina á cultura<br />

das faculdades intellectuaes do homem, e cujos productos constituem<br />

a riqueza immaterial de um povo.


E CONSTITUCIONAL 435<br />

E' por isso que tendo admittido os dous precedentes institutos<br />

para garantir a propriedade industrial, estabeleceu um<br />

terceiro para assegurar a propriedade litteraria e artística.<br />

O inventor de um processo industrial não é mais digno da<br />

protecção da lei, do que o autor de uma obra scientifica ou litteraria,<br />

e do que o musico, o pintor ou o escuiptor que produz<br />

um trabalho artístico.<br />

O terceiro instituto a que nos referimos se acha creado pelo<br />

§ 26 do art. 72. « Aos autores de obras litterarias ou artísticas<br />

é garantido o direito exclusivo de reprodtizil-as, pela imprensa<br />

ou por qualquer ourro processo mechanico. Os herdeiros dos<br />

autores gosarâo d'esse direito pelo tempo que a lei determinar.<br />

»<br />

O direito concedido ao autor de gosar exclusivamente da<br />

sua obra, por via de monopolio ou privilegio temporário, chamava-se<br />

outr'ora geralmente propriedade litteraria ou artística.<br />

Hoje, porém, se denomina, com mais exactidão, direito<br />

de autor ou direito autoral. ( 1 )<br />

Para saber o que é que a Constituição garante aos autores<br />

de obras litterarias e artísticas, convém alguma cousa dizer<br />

sobre a natureza d'essas obras.<br />

Em um livro, em uma obra scientifica ou litteraria ha dous<br />

elementos essencialmente distinctos ; a concepção intellectual,<br />

a idéa, e a traducção, a manifestação da idéa.<br />

A concepção intellectual, a.proles mentis, a idéa não é susceptível<br />

de apropriação. Uma vez publicada, ella se difiunde e<br />

todos que lêem naturalmente se assenhorião d'ella. A luz do<br />

entendimento, desde que é manifestada, a semelhauça da luz<br />

material do sol, illumina todas as intelligencias, que naturalmente<br />

se utilisão d'ella, queira ou não queira o pai da idéa, o<br />

autor da publicação.<br />

Mas o livro, em que se grava a idéa, que a traduz e a leva<br />

ás outras intelligencias, este sim, é susceptível de apropriação.<br />

Consta de uma exposição de ideas especiaes, de um arranjo de<br />

( 1 ) Gianqninto da a Scialoja a paternidade da expressão direito do autor, da<br />

qual usou na lei italiana de 25 de Junho de 1SG5, expressão de que posteriormente<br />

se servirão a lei franceza de lide Julho de 1866, a germânica do 11 de Junho de<br />

1870, a da Noruega de 8 de Junho de 1870 e outras.


436 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

phrases peculiares; tem um methodo e um estylo particulares<br />

e próprios ao autor, e que ninguém pôde tornar seu, a menos<br />

que não copie e lhe ponha seu nome. E' impossível achar duas<br />

paginas de dous autores différentes perfeitamente idênticas.<br />

Podem traduzir substancialmente as mesmas ideas, mas a<br />

elocução, o modo de collocar as palavras, o estylo, por força<br />

são différentes. ( i )<br />

Isto é o que constitue a composição de um livro, e é propriedade<br />

do autor.<br />

Aquelle que imprime copias d'essa composição, que a reproduz,<br />

para vendel-as como propria, sem autorisação do verdadeiro<br />

proprietário, cornette uma espoliação; é um ladrão, não<br />

de idéas, mas de uma obra, de um livro, e afinal de dinheiro,<br />

porque o autor fazendo a sua obra, além da fama e reputação<br />

de autor, se propõe também a adquirir o proveito pecuniário.<br />

Tal é a propriedade do autor, a qual a Constituição protege,<br />

com toda justiça, garantindo-lhe « o direito exclusivo de<br />

reproduzir as suas obras pela imprensa. »<br />

A isso é que com exactidão se chama direito de autor,<br />

e que alguns ainda denominão propriedade litteraria.<br />

Basta pensar nos caracteres essenciaes da propriedade<br />

commum, dos bens corporeos moveis ou immoveis, para ver a<br />

inexactidão da phrase — propriedade litteraria.<br />

Com effeito, a propriedade, no sentido commum da palavra,<br />

consiste na união do homem a um objecto, que está em<br />

um lugar do espaço, e é susceptive! de posse physica e exclusiva.<br />

( 2 )<br />

D'onde resultão os seguintes caracteres : apropriabilidade<br />

do objecto, o uso e goso exclusivo d'esté, a sua determinação<br />

no espaço, e a perpetuidade da propriedade.<br />

( 1 ) V. A. Clement, Essai sur la science sociale,, t. 1. p. 168 c scg.<br />

( 2 ) Uma cousa o o direito ápropriedade, o outra o direito de propriedade. Direitq<br />

âpropriedade 6 a simples possibilidade juridicade possuir uma cousa ; direito<br />

de propriedade é aquella possibilidade jurídica realisada, com a facilidade de excluir<br />

os outrus da cousa apropriada. Entre esses dous direitos lia a mesma differença<br />

i|iic entre o posSmel e o real, a potência e o ceio. Posso ter um livro, ois o direito<br />

á propriedade, eifectivamente o tenho, eis o direito de propriedade. Todo homem,<br />

nasce com direito á propriedade, isto v, com o direito de poder unir a si certas cousa;<br />

mas não com aposse actual d'eüaS'. V. nossa 1'hilosophia do Direito, p. 153-


E CONSTITUCIONAL<br />

Mas a idea, a concepção intellectual de um autor, é por<br />

sua natureza inapropriavel, apenas publicada, o seu possuidor<br />

não pôde mais detel-a. nem por conseguinte ter uso e goso<br />

exclusivo d'clla.<br />

O direito de propriedade, como todo direito real, só se<br />

actua aonde está situado o objecto do direito, como o direito<br />

pessoal, ou de obrigação, só se pôde fazer valer aonde se acha<br />

o devedor obrigado. Mas o objecto do direito do autor, a idéa,<br />

não tem lugar determinado, porque uma vez publicada, existe<br />

por toda parte.<br />

Finalmente o direito de propriedade é perpetuo, não pôde<br />

ser limitado quanto ao tempo. Ora, o direito de autor em todos<br />

os paizes é temporário ; as legislações varião quanto ao numero<br />

de annos, mas todos o limitão.<br />

Portanto o direito de autor não é propriedade litteraria.<br />

Protegendo o autor, que pelo esforço de seu talento, produzio<br />

uma obra util á sociedade, ao mesmo tempo por amor ao<br />

progresso litterario e artístico da sociedade, a lei concede que<br />

elle, por via de privilegio, gose exclusivamente de sua obra<br />

por certo numero de annos, c pune aquelles que, sem autorisação<br />

d'elle, reproduzem-n'a.<br />

Se por justiça e utilidade social o Estado anima os talentos<br />

garantindo-lhes as suas producções, não aliena por isso os seus<br />

direitos.<br />

Em virtude d'esses direitos pôde limitar o tempo do goso<br />

do privilegio.<br />

Todos os direitos individuaes sofrrem limitações, exigidas<br />

pelo bem social. Ora, a sociedade necessita, é de seu máximo<br />

interesse, que as ideas, as invenções uteis se diffundão, sem o<br />

que é impossível o progresso social, e isso seria irrealisavel se<br />

os autores e seus successores conservassem perpetuamente a<br />

a propriedade exclusiva de suas obras.<br />

Portanto, o Estado, recompensando o autor com a concessão<br />

de um monopólio temporário, e ao mesmo tempo devendo<br />

velar pelo geral progresso da sociedade, determina que as obras<br />

passem ao dominio <strong>publico</strong> depois de certo tempo.<br />

E' certo que um trabalho litterario ou artístico c de sua natureza<br />

individual. Mas também quanto não deve um autor á<br />

sociedade na producçào de sua obra ? Não foi no seio da sociedade,<br />

e com a instrucção e educação que ella ministrou que<br />

437


438 NOÇÕES DK DIREITOPUBLICO<br />

o autor desenvolveu o seu talento, pondo-o em estado de poder<br />

produzir um trabalho util ?<br />

Sem o valiosissimo concurso da sociedade, a idéa teria<br />

ficado em germen na cabeça do autor. Foi a sociedade que,<br />

por variadissimos meios, amadureceu aquelle germen e pol-o<br />

em condições de fructificar. Ella tem, portanto, direito de parcipar<br />

do producto, para o qual tanto concorreu.<br />

Si é de justiça que o productor da obra seja recompensado,<br />

essa justiça não deve converter-se em uma injustiça para a sociedade.<br />

« Admittir, diz Ahrens, um direito absoluto de propriedade<br />

intellectual seria obstar o progresso social, proclamar o egoismo<br />

illimitado, quebrar os vinculos que ligão o homem áhumanidade,<br />

destruir todas as obrigações do indivíduo para com a sociedade,<br />

no seio da qual elle encontrou os meios de instrucção, que formarão<br />

o seu engenho e a sua habilidade. »<br />

Admittido, pois, que o privilegio garantido aos autores de<br />

obras litterarias e artisticas, de exclusivamente reproduzil-as,<br />

deve ser temporário, que tempo deverá durar ?<br />

Esse tempo varia nas legislações dos différentes paizes.<br />

Geralmente se divide aquelle tempo em dous períodos, um<br />

representado pela vida do autor, outro em favor de seus successors.<br />

Este é o systema consagrado em nossa legislação, pois o<br />

art. 345 do Código Penal dispõe : « Reproduzir, sem consentimento<br />

do autor, qualquer obra litteraria ou artística... emquanto<br />

viver o autor, ou a pessoa a quem houver transferido a sua propriedade,<br />

e dez annos mais depois de sua morte, se deixar her"<br />

deiros : Penas, etc. ».<br />

Este systema tem o inconveniente de deixar incerta a duração<br />

do direito, pois varia muito a duração da vida do autor.<br />

Se a lei, por conveniências sociaes, limita o direito de autor,<br />

seria mais regular que o limite não fosse eventual e incerto, mas<br />

determinado e fixo.<br />

Assim procedeu a lei italiana de 1865, reguladora dos diritti<br />

spettanti agli autori délie opere di ingegno. Ella fixou<br />

a duração do direito de autor em oitenta annos, a contar do dia<br />

da publicação da obra.<br />

D'esse modo, não só o autor fica senhor da obra por toda<br />

a sua vida, mas se quer alienar o seu direito, o adquirente tem


E CONSTITUCIONAL 439<br />

certeza do tempo porque vai gosar da propriedade, e assim a<br />

transacção tem uma base certa.<br />

Segundo a citada lei italiana, o direito de autor é sujeito<br />

não só á desapropriação forçada, por utilidade publica, como á<br />

execução forçada por utilidade de credores. ( I )<br />

A garantia promettida pela Constituição aos inventores<br />

industriaes e aos autores de obras litterarias e artísticas, tem a<br />

sua sancção no Código Penal, que commina penas aos violadores<br />

dos direitos da propriedade litteraria e artística, de patentes<br />

de invenção e descoberta e de marcas de fabrica e de coramercio.<br />

Art. 342 a 355.<br />

IV<br />

Os nossos legisladores constituintes curarão antes do ensino<br />

leigal, do que da liberdade do ensino ; e assim, omittindo<br />

fallar d'essa liberdade, tão importante e disputada nos nossos<br />

tempos, julgarão opportuno inserir na Declaração de direitos<br />

esta disposição : « Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos<br />

públicos. »<br />

Sem investigar o pensamento do legislador constituinte,<br />

elevando á altura de um direito constitucional o laicismo do<br />

ensino official, sem nos demorar em inquirir, se aquella disposição<br />

é ou não antinomica com o geral principio da livre manifestação<br />

do pensamento em qualquer assumpto, proclamado<br />

pela Constituição, pensamos que o legislador teria sido mais<br />

correcto e conseqüente com o nosso regimen de liberdade,<br />

afnrmando a liberdade do ensino, do que tendo dado o caracter<br />

de principio constitucional a um dos mais árduos problemas<br />

dos nossos tempos, e a respeito do qual ainda vacillão os paizes<br />

mais civilisados, nos quaes se hesita em preparar a mocidade<br />

sem a idéa de Deus e a noção da lei moral.<br />

Não obstante, porem, o silencio da Constituição, é incontestável<br />

que a liberdade do ensino, como conseqüência da<br />

liberdade individual, deve enumerar-se entre os direitos do<br />

cidadão de um Estado livre.<br />

Se a nossa Constituição declara a liberdade do indivíduo,<br />

da consciência religiosa, da manifestação do pensamento, da<br />

( 1 ) V. De Gioannis Gianquinto, ob. cit. t. 2. p. 128e seg.


440 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

reunião, porque calar a de ensino ? Nào é a liberdade de ensinar<br />

um dos modos da liberdade do pensamento ?<br />

Outras constituições, ao lado das liberdades dos cidadãos,<br />

proclamão a de ensinar.<br />

Assim que, a Constituição belga ( art. 70) affirma solemnemente<br />

aquella liberdade. « O ensino é livre ; é vedada qualquer<br />

medida preventiva ; a repressão dos delictos será regulada em<br />

lei. »<br />

A Constituição prussiana de 1850, art. 20, e a austríaca<br />

de 1867, art. 17, entre os direitos fundamentaes do cidadão<br />

escrevem estes : « A sciencia e o seu ensino são livres. »<br />

A liberdade do ensino suscita graves e importantes questões,<br />

disputadas em nossos dias por grande numero de publicistas.<br />

Alguns livros de direito constitucional as discutem com<br />

amplidão. ( 1 ) Não obstante tão autorisados exemplos, só de<br />

leve tocaremos em três pontos de maior relevância no assumpto.<br />

A instrucção é attribuição do Estado ?<br />

A instrucção deve ser obrigatória e coactiva ?<br />

A instrucção deve ser leiga ?<br />

Sustenta certa eschola que o ensino <strong>publico</strong> pertence ao<br />

Estado, além de outras razões, porque :<br />

l.° E' dever supremo do poder <strong>publico</strong> dirigir as faculdades<br />

do cidadão para o fim commum da conservação e progresso<br />

social ; ora, é impossível attingir esse fim, sem a instrucção, e<br />

como quem tem direito ao fim, tem direito aos meios, segue-se<br />

que a instrucção é attribuição do Estado.<br />

2. 0 O Estado tem direito de exigir que os cidadãos se eduquem<br />

no conhecimento e amor das instituições de seu paiz ; de<br />

perpetuar nas novas gerações as tradições, que formão o espirito<br />

nacional, obstando á influencia perniciosa de doutrinas<br />

contrarias áquellas instituições. Portanto ao mesmo Estado<br />

compete dirigir o ensino <strong>publico</strong>.<br />

Outra eschola contesta que o ensino seja prerogativa do<br />

poder <strong>publico</strong>.<br />

Se o ensino, dizem os d'esta eschola, fosse attribuição do<br />

( 1 ) 0 professor Luigi Palma no vol. 3. de seu excellente Corso de dirilto constiliízionak,<br />

consagra a questão da liberdade do ensino nada menos que cinco longos<br />

capítulos.


S CONSTITUCIONAL 441<br />

poder <strong>publico</strong>, não poderia em caso algum ser exercido pela<br />

actividade privada ; sendo assim o direito de legislar, de julgar,<br />

attribuições essenciaes ao poder <strong>publico</strong>, não pôde ser deixado<br />

á actividade particular, sem que aquelle poder se destrua. Mas<br />

o direito de ensinar pôde ser deixado aos particulares sem que<br />

o poder <strong>publico</strong> perca nenhum dos seus direitos essenciaes.<br />

O direito de trabalhar não é privativo do poder <strong>publico</strong> ;<br />

ora, o direito de ensinar é uma especificação, uma face d'aquelle<br />

direito. Por conseqüência a faculdade de ensinar não é privativa<br />

do Estado.<br />

E' fora de duvida que a segunda eschola tem razão.<br />

A faculdade de ensinar é uma conseqüência do direito de<br />

communicar os pensamentos, e este direito não é prerogativa do<br />

Estado, mas um direito natural do homem, como o de associar-se<br />

de manifestar o pensamento, e outros. A palavra oral, escripta,<br />

impressa, são meios différentes de executar um mesmo direito<br />

— o direito de pensar.<br />

Em materia de ensino o idéal é o cidadão gosar exclusiva,<br />

mente da faculdade de ensinar. Ensinar é uma industria, é uma<br />

profissão, e o Estado não deve ser industrial, nem professor,<br />

mas deve deixar que, n'esse ponto, a actividade particular se<br />

exercite livremente. NEo ensinar, mas deixar ensinar, tal deve<br />

ser o procedimento do governo do Estado.<br />

Mas, a excepção da Inglaterra e dos Estados Unidos, aonde<br />

aquelle idéal é realisado ?<br />

Em toda a parte existe o ensino official.<br />

Se o governo, porém, attentas as circumstancias peculiares<br />

de cada paiz, tem que ensinar, ao menos, deixe que ao lado<br />

dos seus collegios, de suas faculdades, de suas universidades,<br />

livremente se levantem os institutos particulares. A livre concurrencia<br />

do ensino privado com o ensino officiai é proveitosa<br />

á sociedade, porque d'aquella concurrencia sahe o progresso<br />

das sciencias e o melhoramento dos methodos de ensino.<br />

O direito de ensinar, como qualquer outro, tem os seus<br />

limites. Ao lado do direito está sempre o dever, se é que o<br />

direito não deriva do dever. ( 1 )<br />

Sem querer aqui fallar dos limites que a ordem moral im-<br />

( i ) Sobro as relações eiître o direito e o dever, pode-se ver a nossa Philosophic<br />

do Direito, cap. 8 lîv. .'.<br />

56


442 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

põe ao exercido do direito de ensinar, devemos dizer que a<br />

ordem social e jurídica também os impõe, e entre esses limites<br />

sobresahe o de respeitar as leis e instituições do Estado.<br />

Se a cadeira pôde scientificamente criticar as leis e as<br />

instituições, para mostrar os defeitos e propor as reformas, não<br />

deve provocar a desobediência e o despreso d'aquellas leis e<br />

instituições, ensinando doutrinas subversivas dos fundamentos<br />

politicos da sociedade. N'este caso, não é possível negar que<br />

o governo do Estado tem não só o direito,mas também o dever,<br />

de intervir para reprimir abusos.<br />

Não deve, porém, o Estado intervir sob pretexto de que o<br />

professor ensina doutrinas scientificamente errôneas.<br />

O Estado carece de competência scientifica para julgar de<br />

erros de doutrina.<br />

Os erros doutrinaes não se reprimem, combatem-se com<br />

doutrinas verdadeiras. O Estado não pôde ser mestre, e muito<br />

menos mestre infallivel.<br />

A obrigatoriedade da instrucção é ponto, sobre que muito<br />

se tem disputado, e a respeito do qual varião, tanto as opiniões<br />

dos escriptores, como as legislações dos Estados.<br />

Pensão uns que a instrucção ( primaria, única sobre que se<br />

questiona ) deve ser obrigatória, porque o cidadão que não<br />

quer instruir-se, impede o progressivo aperfeiçoamento da<br />

sociedade. A inércia e indifferença do pai pela instrucção do<br />

seu filho, não damnifica somente á sua famiiia, mas a toda a<br />

sociedade.<br />

Se o Estado pôde impor pena, sem distincção de pobre ou<br />

rico, por transgressões simples, muito mais deve impól-as ao<br />

pai que viola um dos seus mais sagrados deveres, qual é dar<br />

instrucção elementar a seu filho.<br />

Outros pensão que a instrucção diríge-se ao entendimento<br />

e á vontade, e que estas faculdades escapão á força e á coação<br />

externa.<br />

Não ha duvida que os cidadãos devem instruir-se, mas esse<br />

dever é moral, e não jurídico. O que o Estado deve fazer é<br />

procurar por todos os meios indircctos induzir o cidadão ao<br />

cumprimento d'aquelle dever ; por exemplo, privando o analphabeto<br />

de funcções publicas, e do goso de direitos politicos ;<br />

mas não pôde punir como criminoso aquelle que descura<br />

instruir-se.


_<br />

•£í«/<br />

E CONSTITUCIONAL 443<br />

E que penalidade se adoptará ?<br />

A pena pecuniária, a multa, é inapplicavel; porque, na<br />

hypothèse, os criminosos são exactamente os pobres, que muitas<br />

vezes não mandão seu fiiho á eschola, porque não tem<br />

meios, ou porque precisão de seu auxilio para ajudal-os a viver.<br />

A prisão ? Mas esta além de ser uma pena grave, só serviria<br />

de aggravar a sorte do filho, porque tirava-lhes o alimento<br />

e conjunctamente a liberdade do pai.<br />

Essa diversidade de opinião se traduz na diversidade de<br />

legislações.<br />

Assim que, se cm alguns paizes a instrucção é obrigatória,<br />

como na maioria dos Cantões da Suissa, na Prussia, e na mór<br />

parte dos Estados allemães, e em três ou quatro Estados da<br />

União americana ; e em outros é livre, como na Inglaterra, na<br />

Bélgica, na Hollanda, nos Cantões de Genebra, de Uri, Schwyz<br />

e Unterwald, e na grande maioria dos Estados da União americana.<br />

Somos pela liberdade do ensino. Os meios coactivos, ainda<br />

quando applicaveis, podem obrigar a freqüência material da<br />

eschola, mas são absolutamente incapazes de produzir o gosto<br />

e amor pela instrucção.<br />

Quem torna a instrucção obrigatória, deve dar aos pães<br />

pobres todos os meios de ensinar seus filhos, já creando escholas<br />

accessiveis a todos, e já ministrando, roupa, livros, etc.<br />

O ultimo ponto, que resta considerar, é relativo ao laicismo<br />

no ensino official, proclamado pela Constituição.<br />

O respeito justamente devido á liberdade de consciência,<br />

á igualdade incontestada dos cidadãos diante da lei do Estado*<br />

seja qual fôr a sua crença religiosa, tem motivado a árdua e<br />

difficil questão acerca do ensino religioso nas escholas, querendo<br />

uns que o ensino seja inteiramente separado da religião, e<br />

outros que a religião acompanhe o ensino unindo a educação<br />

com a instrucção.<br />

D'ahi as duas escholas que a respeito se formarão, a religiosa<br />

ou confessional e a leiga.<br />

N'essas duas escholas si inspirão as legislações dos paizes<br />

mais civilisados.<br />

As leis não devem ser feitas idealmente, para traduzir princípios<br />

e systemas abstractos, mas devem accommodar-se ás condições<br />

reaes da sociedade a que se destinão ; devem ser feitas


444<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

para um certo povo, e não para conformar-se comas aspirações<br />

ideaes e com certas construcções abstractas.<br />

Partindo d'essa verdade, devemos dizer que em ura paiz<br />

aonde domina uma religião, acceita e professada por todos, o<br />

poder social não tem direito de pretender que essa religião seja<br />

proscripta das escholas.<br />

O povo que nasceu sob o influxo de uma religião, que<br />

educou-se em sua moral, que pratica o seu culto ; não pôde<br />

querer que seus filhos vão a escholas, aonde não se falle de religião,<br />

e pelo contrario tem direito de querer que elles aprendâo<br />

a religião em que forão criados.<br />

Nem obsta que existão n'esse paiz alguns que professem<br />

religião diversa. Respeitada, como fdeve ser, a liberdade da<br />

consciência d'esses dissidentes, elles não podem pretender que<br />

por seu respeito se altere a lei do paiz.<br />

Nas democracias governa a maioria, só ella tem direito a<br />

dictar a lei.<br />

Se, porém, a população professa différentes religiões,<br />

então é justo que na eschola, que é para todos, e que se mantém<br />

com as contribuições de todos, o mestre official não ensine<br />

religião alguma.<br />

N'este caso deve a educação religiosa ficar a cargo das famílias,<br />

ou do clero das différentes confissões. Assim se procede<br />

em alguns paizes, como na Hollanda e Bélgica, aonde destina-se<br />

na casa escholar um lugar, em que os ministros dos diversos<br />

cultos, antes ou depois das aulas, ensinem a religião aos meninos<br />

de sua confissão que frequentão a eschola.<br />

Seja qual fôr o systema adoptado, o que é certo, e resulta<br />

da pratica de todos os paizes civilisados é a convicção universal<br />

de que não é possível separar radicalmente a religião do ensino<br />

popular, e que essa separação é funesta aos costumes públicos.<br />

Nos Estados-Unidos, aonde a liberdade religiosa é completa,<br />

sempre a eschola esteve unida á religião, ou para melhor<br />

dizer, ali a eschola foi uma creação da Igreja.<br />

Mas de certo tempo para cá os Estados, aos quaes compete<br />

regular o ensino <strong>publico</strong>, estabelecerão que nas escholas publicas<br />

não se ensinaria nenhuma religião particular, sectarian, e<br />

ficou determinado o systema das common schools unsectarian.<br />

Não se deve, porém, pensar que aquella mudança signifique<br />

ódio ou indiffercnça pela religião.


E CONSTITUCIONAL 445<br />

De facto, n'aquellas escholas o ensino religioso continua,<br />

posto que sem ser sectário, isto é, sem ser ensino especial de<br />

uma certa confissão. N'ellas se recitão orações, hymnos e lé-se<br />

a Bíblia, o que prova que as idéas christãs continuão a fazer<br />

pai'te da insírucção popular.<br />

A'instrucçao religiosa especial de cada uma das seitas christães<br />

é dada aos domingos em escholas particulares, chamadas<br />

sunday schools, mantidas pelas seitas.<br />

Posto que de facto a idéa religiosa não tenha desapparecido<br />

das common schools, todavia a opinião se manifesta<br />

contra ellas, pedindo a pratica tradicional do ensino francamente<br />

religioso nas escholas populares.<br />

D'ahi vem que a freqüência n'aquellas escholas tenha diminuído<br />

e augmentado a das escholas particulares, aonde se ensina<br />

religião.<br />

Esse facto é attestado pelo relatório do commissario da instrucção<br />

publica de 1887-88. Não houve, afinal de contas, decrescimento<br />

na instrucção popular, diz o commissario, porque,<br />

si os matriculados nas escholas publicas pouco augmentarão,<br />

nas particulares crescerão muito. Segundo o Commissioner<br />

of education, o principio da unsectarian school perde pouco a<br />

pouco terreno na opinião publica, a proporção que esta se<br />

torna mais esclarecida. ( 1 )<br />

Nos Estados-Unidos a instrucção publica compete exclusivamente<br />

aos Estados ; o governo federal apenas tem escholas<br />

para os officiaes de mar e terra, porque o exercito e a marinha<br />

competem ás attribuições da União.<br />

Na Suissa a instrucção primaria é também da exclusiva<br />

competência dos Cantões. Apenas a Constituição (art. 27 § 3 )<br />

dispõe que « as escholas publicas devem ser freqüentadas por<br />

adhérentes de todas as confissões, sem que soffrão de modo<br />

algum em sua liberdade de consciência ou de crença. »<br />

D'ahi resulta que quanto ao ensino leigo as leis dos Cantões<br />

não são uniformes.<br />

Nos Cantões protestantes o ensino religioso é dado pelos<br />

ministros confessionaes fora das horas destinadas ao ensino pedagógico<br />

; mas nos Cantões catholicos o ensino religioso acompanha<br />

o outro.<br />

( 1 ) V. Carlîer. ob, cit. t. 3. p. 557 e scg,


446<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

O governo federal tem tentado superintender a soberania<br />

dos Cantões em materia de instrucção primaria, mas sem resultado.<br />

Em 1882 os radicaes votarão uma lei dando ao secretario<br />

da instrucção publica poder de velar na fiel execução do citado<br />

art. 27. Os catholicos e os conservadores gritarão que o fim<br />

d'aquella lei era « expellir Deus da eschola ». Sujeita ao voto<br />

popular a lei foi rejeitada pela enorme maioria de 146,129<br />

votos. ( 1 )<br />

Entre nós também a instrucção primaria sempre esteve a<br />

cargo dos Estados, e nas escholas ao ensino das primeiras lettras<br />

acompanhava o ensino dos rudimentos da religião catholica.<br />

Mas de certo tempo para cá, o espirito de imitação começou<br />

a propagar a idea da eschola sem religião.<br />

Acreditou-se na these falsa de que o crime só tem por<br />

causa a ignorância, e abandonou-se a educação do coração e<br />

da consciência, para curar-se exclusivamente da instrucção da<br />

intelligencia. N'essa crença os nossos constituintes proclamarão<br />

o ensino leigo nos estabelecimentos públicos.<br />

O illustre democrata, autor do conhecido livro — L'instruction<br />

du peuple pensa que a athmosphera da eschola deve ser<br />

religiosa, porque o espirito religioso é indispensável á pratica<br />

das instituições democráticas. N'este ponto, accrescenta Emilio<br />

de Laveleye, deve ser imitado o exemplo dos Estados Unidos. (2)<br />

A eschola, diz também Bluntschli, não deve limitar-se a<br />

desenvolver a intelligencia, mas deve ao mesmo tempo aquentar<br />

a alma e ennobrecel-a, despertando o sentimento religioso<br />

e a fé, fortalecendo as virtudes. Assim como a educação da<br />

familia é obra commum do pai e da mãi, assim também a educação<br />

publica do povo deve emanar em commum da Igreja e<br />

do Estado. O ideal de uma bôa educação reclama esse concurso.<br />

Separar completamente a influencia do Estado e da<br />

Igreja na obra da educação publica é romper o que deve estar<br />

unido... A emancipação da eschola, tão estrepitosamente advogada<br />

em nossos dias, é certamente uma reacção contra a antiga<br />

tutella da Igreja, e a acanhada intolerância de muitos de seus<br />

representantes ; mas em si mesma é absolutamente má. (3)<br />

( 1 ) V. Adams, La Conf. Suisse, p. 209.<br />

{ 2 ) V. Le gouvernement dans la democratic, t. 1. p. 328.<br />

( 3 ) Droit public general, liv, (i cap. 9,


CAPITULO XXÎÏ<br />

TRIBUNAL DE CONTAS. SEU FIM E IMPORTÂNCIA. ORIGEM<br />

HISTÓRICA D'ESSE TRIBUNAL. SUA ORGANISAÇÃO.<br />

I<br />

O estudo da instituição de um tribunal de contas ó mais<br />

propriamente da competência do direito administrativo, do que<br />

do direito constitucional.<br />

Não obstante, como nossa Constituição creou aquella instituição,<br />

prefixando as bases sobre as quaes a lei ordinária deveria<br />

organisal-a, alguma cousa diremos a respeito.<br />

O art. 89 dispõe : « E' instituido um Tribunal de Contas<br />

para liquidar as contas da receita e despeza, e verificar a sua<br />

legalidade, antes de, serem prestadas ao Congresso. Os membros<br />

d'esté Tribunal serão nomeados pelo Presidente da Republica,<br />

com approvação do Senado, e somente perderão os seus<br />

lugares por sentença. ><br />

O legislador constituinte entendeu dar caracter de estabilidade<br />

e permanência ao Tribunal de Contas, e para isso o creou<br />

na Constituição.<br />

Igual procedimento teve a Constituição belga.<br />

A lei fundamental dos Paizes Baixos creava para todo o<br />

reino um tribunal de contas, incumbido do exame e da liquidação<br />

das contas annuaes dos departamentos da administração<br />

geral e das de todos os agentes responsáveis do Estado.<br />

A Constituição, reconhecendo a existência d'esse tribunal,<br />

estatuio no art. 116 que « Os membros do tribunal de contas<br />

serão nomeados pela câmara dos representantes e pelo tempo<br />

fixado em lei. Incumbe a esse tribunal o exame e a liquidação


44«<br />

NOÇÕES DE DIREITOPUBLICÛ<br />

das contas da administração geral e de todos os responsáveis<br />

para com o thesouro <strong>publico</strong>... Esse tribunal será organisado<br />

por uma lei. ><br />

Também na Allemanha, e especialmente no ducado de<br />

Baden, a lei de 25 de Agosto de 1876, modelada pela da Prussia,<br />

de 27 de Março de 1872, que organisou o tribunal de contas,<br />

foi declarada lei constitucional, e esta nos termos dos arts. 64-<br />

67 da respectiva Constituição, só pôde ser modificada pela<br />

maioria de dous terços dos votos dos três quartos dos membros<br />

presentes de cada uma das câmaras.<br />

II<br />

A importância do tribunal de contas resulta a um tempo do<br />

seu caracter constitucional e do fim a que o destinou a Constituição.<br />

Confiando aos administradores a gestão da fortuna publica,<br />

o poder legislativo prescreve-lhes as despezas que se hão de<br />

fazer, assim como as receitas d'onde hão de sahir, e ao mesmo<br />

tempo lhes prescreve regras de procedimento na arrecadação e<br />

na distribuição das rendas nacionaes. Ora, é de razão que os<br />

agentes executivos, que podem malbaratar os dinheiros públicos,<br />

sejão syndicados, para que se conheça se procederão com<br />

fidelidade e exactidão e de accordo com a lei. Mas essa syndicancia<br />

é attribuida pela Constituição ao tribunal de contas,<br />

que tem por fim « liquidar as contas da receita e despeza e verificar<br />

a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso.?<br />

Portanto, é evidente a importância d'esse tribunal, a cuja<br />

guarda estão confiados os mais sagrados e vitaes interesses da<br />

Nação.<br />

O preceito legislativo concernente á administração da fazenda<br />

publica, ficaria sem sancção e reduzido a palavras vãs,<br />

se não houvesse um meio certo de verificar a conformidade do<br />

preceito com a sua fiel execução.<br />

III<br />

A necessidade e valor administrativo de um tribunal d'essa<br />

natureza estão reconhecidos desde muito tempo em todos os<br />

paizes civilisados.


Jtf<br />

E CONSTITUCIONAL 449<br />

Alguns escriptores descobrem até na legislação romana a<br />

origem dos tribunaes de contas. Nos Prœfecti Aerarii, nos<br />

Procuratores e Rationales rei privatce Ccesaris e especialmente<br />

nos Tabularii e Numerarii, enchergão elles um embryão<br />

de tribunal de contas.<br />

Em França desde 1256 os edictos de Luiz IX fazem mensão<br />

de uma instituição chamada chambre de comptes, composta de<br />

mayeurs ou proud'hommes, instituição que tem passado por<br />

innumeras transformações, até as estabelecidas pelo decreto imperial<br />

de 3i de Maio de 1862.<br />

Na Inglaterra, desde os tempos dos reis normandos existio<br />

um tribunal de justiça em materia de finanças, chamado Echiquier,<br />

composto de um certo numero de barões feudaes (barons<br />

of the Echiquier).<br />

Depois esse tribunal soffreu uma divisão, separando-se as<br />

attribuições politicas da contabilidade das do administrativo<br />

judiciário. As primeiras forâo incumbidas ao Comptroller general<br />

of the receipt and issue, e as segundas ao auditorado<br />

(Audit office ).<br />

Na Allemanha é antigo o instituto de contabilidade publica.<br />

Na Prussia desde 1824 se organisou um tribunal de contas, que<br />

foi modificado pela lei de 27 de Março de 1872, e em 1876 se<br />

reorganisou com o titulo de Tribunal de contas do império da<br />

Allemanha.<br />

Na Italia desde 1807 existio a Regia Corte de' Conti, que<br />

ficou creada para substituir a antiga Câmara delia Sommaria.<br />

Em 1849 uma lei instituio uma nova Corte de' Conti, modelada<br />

pela da Bélgica. ( 1 )<br />

Nos Estados Unidos do Norte o controle das finanças se<br />

acha a cargo de seis atiditors, que tem por missão verificar a<br />

contabilidade de todos os funccionarios e agentes do governo,<br />

encarregados da arrecadação e despeza dos dinheiros públicos ;<br />

de dous comptrollers, incumbidos da revisão dos trabalhos dos<br />

auditores, e de um chefe da contabilidade (Register) que registra<br />

os balanços dos comptrollers.<br />

Para garantia da integridade e independência d'esses funccionarios<br />

a lei americana prohibe que os controleiros, os audi-<br />

( 1 ) V. Batbio, Droit Public ot administratif t. 7 c. 50,<br />

57


45o NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

tores e o registrador tenhão interesse directo ou indirecto em<br />

qualquer commercio ou trafico ; que possuão no todo ou em<br />

parte navio, que comprem directa ou indirectamente terras ou<br />

outras propriedades publicas, que tenhão interesse em compra<br />

ou venda de fundos públicos, quer da União, quer dos Estados,<br />

e de receber qualquer emolumento além de seu ordenado legal.<br />

A infracção d'essas prohibições é reputada grande crime ( high<br />

misdemeanor ), punido com a multa de 3ooo dollars, demissão<br />

e incapacidade de exercer funeção publica.<br />

IV<br />

Nosso Tribunal de Contas foi organisado pelo Decreto<br />

n. 1166 de 17 de Dezembro de 1892.<br />

Compõe-se de cinco membros, um presidente c quatro<br />

membros nomeados pelo Presidente da Republica. Se, na ausência<br />

do Congresso, vaga algum d'esses lugares, o Presidente<br />

da Republica nomea, e o nomeado entra logo em exercício, fi_<br />

cando, porém, a nomeação dependente da approvação do senado,<br />

na fôrma do art. 89 da Constituição.<br />

A jurisdicção do tribunal abrange todos os responsáveis<br />

por dinheiros e valores pertencentes á Republica.<br />

Funcciona como tribunal de justiça, e suas decisões definitivas<br />

tem força de sentença com execução apparelhada.<br />

Como tribunal de justiça administrativo, compete-lhe : l.° o<br />

exame e revisão das contas ministeriaes, 2.° a tomada de contas<br />

dos responsáveis por dinheiros e valores pertencentes á Republica.<br />

Na qualidade de fiscal das leis da receita e despeza publicas,<br />

compete-lhe examinar as tabellas de distribuição de credito,<br />

todos os decretos, ordens e avisos dos différentes ministérios,<br />

autorisando despezas e verificar a sua legalidade.<br />

Quando se trata de abrir créditos extraordinários e supplementares,<br />

o Tribunal deve ser ouvido previamente.<br />

Elle examina os decretos, ordens e avisos dos ministérios,<br />

susceptíveis de crear despezas, ou de interessar as finanças da<br />

Republica, e verifica se as despezas dos ministérios são legaes.<br />

Se reconhece a legalidade das mesmas despezas, as registra<br />

; no caso contrario expõe motivadamente, á repartição que<br />

as ordenou, a razão por que deixa de registral-as.


E CONSTITUCIONAL 451<br />

Eis em summa as attribuições do Tribunal de Contas.<br />

Na Bélgica, os membros do tribunal de contas são nomeados<br />

pela câmara dos deputados, e somente por seis annos ;<br />

podem, porém, ser reeleitos, como também podem ser demittidos<br />

pelo voto da maioria d'aquella câmara.<br />

Por onde se vê que o Tribunal belga é uma como emanação<br />

do parlamento : é electivo, temporário e reelegivel ; tem caracter<br />

popular.<br />

Para garantir a imparcialidade e a independência dos membros<br />

d'esse Tribunal a lei de 1846, que o organisou, tornou in.<br />

compatível o cargo com o de deputado e de senador; e com<br />

qualquer outra funcção retribuída pelo Thesouro ; não quer a<br />

lei que elles sejão parentes próximos um do outro, nem dos<br />

chefes das repartições ministeriaes ; finalmente, prohibe-lhes<br />

fazer parte de qualquer empreza sujeita áfiscalisação do Estado,<br />

pertencer á direcção de sociedades industriaes, e exercer qualquer<br />

ramo de commercio, quer por si, quer por interposta<br />

pessoa.<br />

Seu fim é examinar as contas da administração geral e provincial,<br />

e velar para que a lei do orçamento seja exactamente<br />

observada. Nenhuma ordem ou decreto de pagamento sobre o<br />

Thesouro é satisfeito sem o visto do tribunal, e este deve negal-o,<br />

quando a ordem exceder a verba orçamentaria, e se afinal<br />

o conselho de ministros, examinando as rasões do tribunal,<br />

manda pagar sob sua responsabilidade, o tribunal põe o seu<br />

visto com reserva.<br />

A organisação do tribunal de contas da Italia, tal como a<br />

efiectuou a lei de 14 de Agosto de 1862, diffère muito do da Bélgica.<br />

Ao passo que este tem caracter parlamentar, aquelle é,<br />

como o nosso, de caracter executivo. Os seus membros são<br />

nomeados por decreto régio, sob proposta do ministro da fazenda<br />

; mas não podem ser demittidos, senão por decreto régio<br />

mediante parecer de uma commissão composta dos presidentes<br />

e vice-presidentes do senado e da câmara dos deputados. ( 1 )<br />

( 1 ) Sobre o assumpto pude-se 1er com frueto o Corso '* Dirilto pubblico amminislratiuo<br />

de Gioannis Gianquiato t. 3 cap. 3.


M -<br />

CAPITULO XXIII<br />

REFORMA CONSTITUCIONAL. COMO SE OPÉRA. LIMITES AO<br />

PODER REFORMADOR.<br />

I<br />

As constituições nem são perfeitas, nem seus autores infalliveis.<br />

D'ahi a necessidade das revisões constitucionaes para<br />

pôl-as ao nivel das exigências da opinião publica.<br />

Vai longe o tempo em que Justiniano considerava a compilação<br />

dos seus jurisconsultes obra tão perfeita, que chegou a<br />

prohibir que lhe fizessem commentaries.<br />

Não destoavão muito do modo de pensar do imperador romano<br />

os politicos da revolução franceza, quando, como metaphysicos,<br />

pozerão-se seriamente a discutir, se a Constituição de<br />

I79 1 era immutavel.<br />

Delleville, opinando pela immutabilidade, propoz a pena<br />

de morte, contra quem indicasse mudança na Constituição.<br />

Outros mais humanos, como Tronchei, pretendião simplesmente<br />

que antes de trinta annos não se devia tocar na obra sagrada.<br />

E não obstante — seis mezes depois ella não existia !<br />

O espirito <strong>publico</strong> francez mudou muito, poíque desde<br />

aquella epocha até hoje a França tem tido umas vinte Constituições<br />

!<br />

Hoje ninguém mais sustenta a immutabilidade constitucional.<br />

A sentença de Portalis « quando a Constituição de um<br />

povo está estabelecida, o poder constituinte desapparece : é_a<br />

palavra do creador, que manda uma vez para governar sempre »<br />

não é admittida por nenhum publicista moderno.<br />

Obras de homens, e como elles imperfeitas, as Constituições<br />

devem ser emendaveis, para poderem acompanhar a evolução


454 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

social, e satisfazer ás necessidades e aspirações do espirito <strong>publico</strong>.<br />

Nenhum governo, diz Stuart Mill, pôde esperar ser permanente,<br />

se não garantir o progresso e a ordem, nem pôde garantir<br />

a ordem, se não promover o progresso. ( i )<br />

N'estas palavras se acha contida a resolução do problema<br />

da mudança das Constituições — nem immutabüidade, o que se<br />

oppõe ao progresso do espirito nacional — nem precipitação<br />

em mudar — o que contraria a ordem social.<br />

Em materia de reforma constitucional, como observa Story»<br />

o essencial é tornar as mudanças praticaveis, mas não muito<br />

fáceis, e ouvir a experiência, e não as suggestões de mera especulação<br />

ou de theorias abstractas.<br />

Os fundadores de nossa Constituição, acerescenta esse illustre<br />

commentador, sabendo que é defeito ordinário das republicas<br />

serem impacientes e difficeis de contentar-se, e sabendo<br />

também, por outro lado, que o orgulho e a susceptibilidade dos<br />

poderes dos Estados são vicios inhérentes ás Confederações,<br />

procurarão, senão impedir, pelo menos, attenuar os golpes que<br />

poderião atirar contra a Constituição, a pretexto de patriotismo<br />

ou de amor ao povo. E assim admittirão o direito de emenda,<br />

que é como uma safety-valve para dar sahida as excitações<br />

temporárias, e ao mesmo tempo o meio de regular e ajustar os<br />

movimentos da machina, quando fora da ordem ou em risco de<br />

destruir-se. (2 )<br />

Os nossos legisladores constituintes, diz também o illustre<br />

publicista americano, Jameson, souberão evitar dous perigos —<br />

mudanças freqüentes na Constituição e grande difficuldade em<br />

fazel-as. O tempo e o modo de effectuar essas mudanças são<br />

da mesma natureza das safety-valves, que devem ser tão bem<br />

ajustadas que nem dêem fácil sahida as paixões partidárias,<br />

nem difficultem tanto o escape que a machina faça explosão. (3)<br />

Assentado o principio cia reformabilidade das Constituições,<br />

ao qual se conformarão os constituintes do nosso Pacto federal;<br />

examinemos o que n'elle se dispõe a respeito do art. 90,<br />

( 1 ) Cit por Jameson, Const. Conventions, p. 549,<br />

( 2 ) Commentaries, t. 2, §§ 1827-28.<br />

I 3 ) Loc. cit. § 529.


ffl f<br />

E CONSTITUCIONAL 455<br />

« A Constituição poderá ser reformada, por iniciativa do<br />

Congresso nacional, ou das assembléas dos Estados.<br />

« § I." Considerar-se-ha proposta a reforma, quando,<br />

sendo apresentada por uma quarta parte, pelo menos, dos membros<br />

de qualquer das câmaras do Congresso nacional, fôr acceita<br />

em três discussões por dous terços de votos n'uma e n'outra<br />

câmara, ou quando fôr solicitada por dous terços dos Estados,<br />

no decurso de um anno, representado cada Estado pela<br />

maioria de votos de sua assembléa.<br />

« § 2." Essa proposta dar-se-ha por approvada, se no anno<br />

seguinte o fôr mediante três discussões, por maioria de dous<br />

terços dos votos nas duas câmaras do Congresso.<br />

« § 3.° A proposta approvada publicar-se-ha com as assignaturas<br />

dos Presidentes e secretários das duas câmaras, e incorporar-se-ha<br />

á Constituição como parte integrante d'ella.<br />

« §4.° Não poderão ser admittidos como objecto de deliberação<br />

no Congresso, projectos tendentes a abolir a fôrma republicana<br />

federativa, ou a igualdade da representação dos Estados<br />

no senado. »<br />

D-îsde logo se vê pela leitura da precedente disposição, que<br />

os nossos legisladores constituintes reconhecerão solemnemente<br />

o direito da Nação constituir-se, e de alterar a sua Constituição<br />

como quizer. Esse direito, constitucionalmente fallando, só<br />

tem o limite traçado no § 4.0 como adiante veremos.<br />

Mas, proclamando aquelle direito, ao mesmo tempo prevenirão<br />

as reformas precipitadas e de afogadilho ; porquanto são<br />

precisos dous annos para que se effectue uma reforma, tempo<br />

sufficiente para que o paiz a medite e a pondere. Além d'isso,<br />

o processo de três discussões e a votação de dous terços nas<br />

duas câmaras do Congresso, são outras tantas garantias contra<br />

as pressas e açodamento dos espíritos reformadores.<br />

II<br />

Dous são os modos de iniciar a reforma : i.° por proposta<br />

de uma quarta parte, pelo menos, dos membros de qualquer das<br />

câmaras do Congresso nacional, 2.0 por solicitação dos dous<br />

terços dos Estados, representados pela maioria de votos de<br />

suas assembléas.<br />

Também, nos Estados Unidos a reforma da Constituição


456<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

somente se pôde effectuar em dous casos: I." quando dous<br />

terços das duas câmaras julgarem necessário propor emendas,<br />

2.° quando dous terços das assembléas dos Estados a solicitarem.<br />

N'este caso, o Congresso nacional convoca uma Convenção<br />

para propor as emendas. Art. 5. 0<br />

As emendas additadas á Constituição americana em 1789,<br />

1794, i8o3, 1865, 1866 e 1869 partirão da iniciativa do Congresso.<br />

Póde-se conjecturar que entre nós as emendas que possão<br />

vir a ser incorporadas á Constituição de 24 de Fevereiro hão<br />

de ser também de iniciativa do Congresso nacional, porque<br />

parece será mais fácil reunir uma quarta parte de deputados,<br />

ou de senadores federaes, do que pôr de accordo as maiorias<br />

das assembléas dos dous terços dos Estados para pedirem uma<br />

revisão.<br />

Os dous terços dos votos em uma e outra câmara e três<br />

discussões são necessários, não só para que se considere acceita<br />

a proposta de reforma, mas também para que, no anno seguinte,<br />

seja considerada como approvada, e incorporada á Constituição,<br />

como parte integrante d'ella.<br />

E' evidente, pelos termos da Constituição, que as duas câmaras<br />

do Congresso discutem e deliberão separadamente,<br />

tanto a respeito da acceitação da proposta, como de sua approvação.<br />

Comprehende-se que, se a Constituição exigisse a reunião<br />

das duas câmaras, o senado poderia ser aniquilado pela câmara<br />

que lhe é muito superior em numero. E assim a reforma poderia<br />

fazer-se sem o voto dos Estados.<br />

A Constituição actual da Republica franceza ( 1 ) dispõe,<br />

que as câmaras deliberem separadamente a respeito da necessidade<br />

da sua revisão ; mas tomada essa deliberação, ellas se<br />

reúnem em assembléa nacional para effectuar a reforma, e o<br />

fazem por simples maioria absoluta dos membros que compõem<br />

a assembléa nacional.<br />

N'esse systema, se a câmara dos deputados se combinar,<br />

pôde realisar com a sua grande maioria a revisão constitucional<br />

do modo porque entender, sem levar em conta a opinião do<br />

senado.<br />

( 1 ) Lei const, de 25de Fevereiro do 1875, art. 8.


E CONSTITUCIONAL 457<br />

Em um regimen republicano unitário, como o francez, aquelle<br />

processo pôde não ter as mesmas conseqüências que no regimen<br />

federativo, no qual os Estados são entidades políticas distinctas.<br />

Competindo exclusivamente ao Congresso nacional reformar<br />

a Constituição, a proposta de reforma independe da sancção<br />

do executivo ; por isso a Constituição dispõe que « a proposta<br />

approvada publicar-se-ha com as assignaturas dos presidentes<br />

e secretários das duas câmaras. »<br />

Nos Estados Unidos a desnecessidade da sancção não é tão<br />

claramente indicada, como entre nós.<br />

Ali, dispondo a Constituição no art. i.", secç. 7.a, que<br />

« qualquer ordem, resolução, ou voto tomada pelo senado e<br />

pela câmara dos deputados ( salvo questão de adiamento ) deve<br />

ser apresentado ao Presidente e por elle approvado antes de<br />

tornar-se effectivo » pensão alguns publicistas que, em vista da<br />

generalidade da precedente disposição, as resoluções de reforma<br />

constitucional, não obstante serem tomadas por maioria de<br />

dous terços de ambas as câmaras, devem ir á sancção.<br />

Mas a maioria dos commentadores pensa de modo contrario,<br />

e sustenta que a grande maioria dos dous terços de ambas<br />

as casas do Congresso, sendo suficiente para nullificar o veto<br />

do Presidente, a sua sancção torna-se desnecessária.<br />

Além d'isso, a Supreme Court, final interprete da Constituição,<br />

já deu sobre o caso o seu veredictum.<br />

Tendo sido contestada a inconstitucionalidade da emenda<br />

votada em 1794, porque não fora approvada pelo Presidente da<br />

Republica, aquelle tribunal decidio que essa approvação era<br />

desnecessária.<br />

Accresce que todas as quinze emendas addicionadas, até<br />

hoje, á Constituição federal, não forão sujeitas ao placet presidencial,<br />

conforme affirma Jameson.<br />

Segundo observa este mesmo autor, em 1865 a emenda<br />

relativa á escravidão tendo sido, por inadvertencia de um funccionario<br />

do Congresso, mandada ao Presidente da Republica,<br />

para ser approvada, suscitou-se no senado sobre o caso luminosa<br />

discussão, resolvendo afinal aquella_câmara unanimemente que<br />

« a approvação do Presidente era desnecessária para dar effeito<br />

a um acto do Congresso relativo á emendas. » ( 1 )<br />

( 1 ) V. Jameson. Constitutional Conventions, §§55t<strong>ï</strong>, 570 e Pomcroy, Constitutional<br />

Law. g 178.<br />

58


458<br />

NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

III<br />

O poder conferido ao Congresso nacional de reformar a<br />

Constituição não é illimitado.<br />

Dando de mão a velha theoria de dous poderes, um constituinte,<br />

e outro constituído, um extraordinário, e outro ordinário,<br />

um para os dias de festa, e outro para os dias de trabalho,<br />

na phrase de Guizot, os nossos legisladores constituintes, conferirão<br />

ao poder legislativo ordinário o poder de reformar a sua<br />

obra. Mas oppuzerão duas limitações a esse poder, dispondo que<br />

o poder legislativo constituído não poderia deliberar sobre<br />

projectos tendentes, l.° a abolir a fôrma republicana federativa,<br />

2.° a alterar a igualdade da representação dos Estados no<br />

senado.<br />

Dizemos poder legislativo constituído, porque é fora de<br />

duvida que a nação tem o poder illimitado e absoluto de constituir<br />

o seu governo como lhe apraz, de mudar-lhe a fôrma<br />

e de traçar limites a esse governo, que voluntariamente creou.<br />

A soberania nacional é tão superior á Constituição, como a Constituição<br />

o é a respeito das leis ordinárias. Aqui, porém,<br />

falamos de jure constitutor e não de jure constituendi.<br />

Mas porque oppuzerão os constituintes aquellas duas restricções<br />

ao poder legislativo do Congresso ?<br />

Porventura não bastaria ter prescripto o modo de fazer a<br />

reforma, deixando o mais ao poder patriótico dos representantes<br />

da Nação ?<br />

Evidentemente a razão da primeira restricção foi o desejo<br />

de conservar a fôrma de governo adoptada pela Nação, ou pelo<br />

menos difficultar muito a sua mudança.<br />

N'esse mesmo pensamento já a Constituição tinha no artigo<br />

6.° § 2.° autorisado o governo federal a intervir nos negócios<br />

peculiares do Estado, para manter a fôrma republicana federativa.<br />

Ainda n'este ponto ella imitou a Constituição dos Estados<br />

Unidos do Norte, que também (art. 4. 0 secç. 4.«) garante a cada<br />

um dos Estados da União a fôrma de governo republicano ; sem<br />

todavia fazer d'esté caso um limite ao poder de emendar conferido<br />

ao Congresso federal.<br />

Se a limitação constitucional ao poder do Congresso de


E CONSTITUCIONAL 459<br />

deliberar a respeito da abolição da fôrma federativa republicana,<br />

não é um obstáculo invencível á vontade soberana da<br />

nação, o é, sem duvida para os espiritos inquietos e amantes<br />

de innovações.<br />

A segunda restricção é relativa á igualdade de representação<br />

no senado.<br />

Na republica federativa o senado é a expressão natural e<br />

necessária dos Estados federados.<br />

Estes são sociedades políticas distinctas, que unidas constituem<br />

a União federal.<br />

Unidade de governo geral e pluralidade dos governos particulares<br />

d'aquellas sociedades políticas, taes são os elementos<br />

essenciaes e indestructiveis de uma federação. Se desapparece<br />

a unidade de governo geral, temos confederação ; se eliminãose<br />

as unidades políticas estadaes, temos a republica unitária ou<br />

a monarchia.<br />

Na representação da federação combinão-se aquelles dous<br />

elementos. Uma câmara personifica a unidade do governo<br />

geral, outra os Estados Unidos. A eleição de uma compefe ao<br />

povo federal, a outra ao povo de Estados ; os representantes<br />

da primeira câmara são eleitos proporcionalmente ao numero<br />

dos habitontes dos Estados ; da segunda, em igual proporção,<br />

pelo povo de Estados, abstrahindo do numero de seus respectivos<br />

habitantes. ( i )<br />

Em substancia foi essa a razão theorica que, predominando<br />

na Convenção de Philadelphia, determinou a igualdade<br />

de representação no senado americano.<br />

Outra razão, porém, de maior peso, concorreu para que se<br />

inserisse na Constituição aquella clausula.<br />

Os Estados pequenos e pouco populosos, temendo ser<br />

absorvidos pelos grandes, oppozerão-se tenazmente a proposta<br />

de ser a representação no senado proporcional á população,<br />

como para a câmara dos deputados, e estiverão a ponto de se<br />

retirarem da Convenção, frustrando o fim d'essa assembléa<br />

constituinte.<br />

Foi preciso ceder. E então não só inserio-se na Constitui-<br />

( 1 ) Essa distincção de povo da UniSo ou federal, e povo dos Estados o pura<br />

ficção política, e simples ente de razão.


4Ó0 NOÇÕES DE DIREITO PUBLICO<br />

ção, mas pôz-se acima da Constituição a exorbitante clausula<br />

que nenhuma emenda á Constituição poderia privar os Estados<br />

da igualdade de suffragio no senado, sem o consentimento<br />

individual dos mesmos Estados.<br />

A igualdade de voto no senado, dizia Madison, é o palladium<br />

da soberania dos Estados. ( i )<br />

Não pôde, portanto, aquella disposição ser alterada pelos<br />

meios constitucionaes ordinários ; só rcvolucionariamente ;<br />

isto é, pela dissolução do pacto federal.<br />

O povo dos Estados Unidos, diz um publicista americano,<br />

em virtude de seu poder absoluto de nação, pôde, observando<br />

os tramites da Constituição, fazer-lhe emendas, ampliando ou<br />

restringindo as funcções do governo geral. Mas, para que o<br />

systema do self-government, do governo local, que é o fundamento<br />

do organismo politico dos Estados Unidos, não possa<br />

ser substituído por um plano de centralisação, o povo levantou,<br />

contra si mesmo, um invencível obstáculo á destruição dos<br />

Estados, que são elementos distinctos da organisação politica<br />

americana, exigindo uma quasi unanimidade de consentimento,<br />

para que os Estados possão ser privados de sua igualdade de<br />

voto no senado. Prasa a Deus, conclue Pomeroy, que o povo<br />

jamais troque o governo local, que tem sido para elle e para a<br />

Inglaterra a vida da liberdade, pela imperial politica da centralisação<br />

(consolidation ), que fez da França o ludibrio, ora de<br />

um déspota, ora da populaça de Paris. ( 2 )<br />

A igualdade da representação dos Estados no senado federal<br />

é a base da autonomia constitucional dos mesmos Estados.<br />

Eis porque a Constituição subtrahio ao Congresso o poder de<br />

alterar aquella representação.<br />

Nos Estados Unidos as emendas á Constituição somente<br />

lhe são incorporadas depois de approvadas (ractiíicadas) pelos<br />

Congressos dos três quartos dos Estados, ou pelas Convenções<br />

nos três quartos dos mesmos Estados, conforme o Congresso<br />

nacional adoptar um dos dous meios.<br />

Esse processo é uma segura garantia contra as innovações<br />

precipitadas.<br />

Hoje a União consta de quarenta e dous Estados, portanto<br />

{ 1 ) Federalist, n. Í3.<br />

( 2 ) Constitutional Law p. 7-5 § 115.


E CONSTITUCIONAL 461<br />

è preciso que a emenda seja aceita por trinta d'aquelles Congressos.<br />

Accresce que os Congressos estadaes tem duas câmaras,<br />

por conseqüência para que uma emenda se torne lei constitucional,<br />

é necessário que seja approvada por sessenta câmaras<br />

legislativas distinctas, afora as duas câmaras do Congresso<br />

federal, nas quaes também é preciso que a dupla maioria dos<br />

dous terços approve a emenda. ( 1 )<br />

D'aqui se infere que uma reforma constitucional é mais<br />

difficil nos Estados Unidos, do que entre nós ; porque, segundo<br />

a nossa Constituição, para que uma proposta de emenda seja<br />

approvada e incorporada á Constituição, não é necessária a<br />

ractificação dos dous terços das assembléas dos Estados, basta<br />

que no anno que se seguir ao da aceitação da proposta, ella<br />

seja approvada, mediante três discussões, por maioria de<br />

dous terços dos votos nas duas câmaras do Congresso.<br />

{ 1 ) V. Sumner Maine, Popular government, p. 338.<br />

FOI.


INDICE<br />

IVoções de Direito Publico<br />

CAPITULO I<br />

Pags.<br />

I Do direito em geral 5<br />

II Direito em sentido subjectivo e objectivo.... 6<br />

III Sujeito e termo do direito 7<br />

IV Divisão geral do direito 8<br />

V Elementos da soberania social . . . . . . 9<br />

VI Direitos individuaes, públicos e políticos. Quadro<br />

synoptico das divisões do direito 10<br />

CAPITULO II<br />

I O que é Constituição e direito constitucional . . 15<br />

II Espécies de Constituições 17<br />

III Elemento histórico e racional do direito constitucional<br />

19<br />

IV Relações do direito constitucional com as outras<br />

sciencias . 20<br />

V Fontes do direito constitucional 23<br />

*&<br />

CAPITULO III<br />

I Origem de nossa Constituição 26<br />

II Preâmbulo da Constituição 3o<br />

III Organismo da Constituição 3o<br />

CAPITULO IV<br />

I A Constituição ingleza 35<br />

II A Constituição americana 39<br />

III A Constituição helvetica 43<br />

CAPITULO V<br />

I Nação, povo, estado e sociedade 45<br />

II Sociabilidade humana 49<br />

III O homem nada perde na sociedade 50


Il IX DICK<br />

CAPITULO VI<br />

Pags.<br />

I O queé Estado • 55<br />

II Associações estadaes • 57<br />

III Direitos dos Estados • óo<br />

CAPITULO VII<br />

I O Estado é necessário 63<br />

II Limites da acção do Estado 66<br />

III Estados antigos e modernos 69<br />

CAPITULO VIII<br />

I Origem da soberania 7*<br />

II Soberania do povo 76<br />

III Soberania nacional 79<br />

IV Caracteres da soberania 80<br />

CAPITULO IX<br />

I Liberdade e suas espécies 83<br />

II Liberdade jurídica 85<br />

III Liberdade politica 87<br />

CAPITULO X<br />

I Divisão dos poderes 89<br />

II Verdadeiro sentido d'essa divisão 91<br />

III Harmonia d'esses poderes 93<br />

IV Poder constituinte e legislativo 95<br />

V Convenções constituintes 97<br />

CAPITULO XI<br />

I Formas de governo IOO<br />

II Confederação de Estados e Estado Federal . . . 105<br />

III Federalismo eunitarismo 110<br />

CAPITULO XII<br />

I Governos antigos e modernos n3<br />

II Governo directo e representativo 115<br />

III Republicas representativas • 117


^<br />

INDICE HI<br />

SEGUNDA PARTE<br />

Organisação clos podoi'cs públicos<br />

CAPITULO I<br />

I Natureza da organisação federal 121<br />

II Como a nação brasileira adoptou essa organisação. 124<br />

II Capital federal 125<br />

IV Poderes dos Estados 127<br />

IV Poderes da União I3I<br />

CAPITULO II<br />

I Órgãos da soberania nacional 135<br />

II Necessidade de um órgão preponderante . . . i36<br />

III Independência dos representantes i38<br />

IV Gratuidade do mandato legislativo 141<br />

V Mandato imperativo 142<br />

VI Dualidade de câmaras 144<br />

VII Verificação de poderes l46<br />

VIII Duração do mandato legislativo . . . . . 148<br />

CAPITULO III<br />

I Numero dos deputados 153<br />

II Funcções da câmara dos deputados 157<br />

III Direito de iniciativa 160<br />

CAPITULO IV<br />

I Senado, sua origem e organisação 167<br />

II Numero dos senadores 169<br />

III Modos de constituir os senados 170<br />

IV Theoria da renovação parcial 173<br />

V Presidência do senado 175<br />

VI Funcções do senado 178<br />

CAPITULO V<br />

I Attribuições exclusivas e concurrentes do Congresso 191<br />

11 Theoria dos poderes explícitos e implícitos . . . 210<br />

III A Constituição brasileira e a americana quanto aos<br />

direitos explícitos 2i3<br />

CAPITULO VI<br />

I Mechanismo do Congresso 217<br />

II Leis e resoluções 222


IV INDICE<br />

III Constitucionalidade das leis<br />

IV Leis retroactivas<br />

CAPITULO VII<br />

I Sancção e veto presidencial<br />

II Renovação dos projectos não sanccionados .<br />

III Desaccordo entre as duas casas do Congresso<br />

CAPITULO VIII<br />

Pags.<br />

224<br />

228<br />

23l<br />

237<br />

242<br />

I Immunidades parlamentares 245<br />

II Razões d'essas immunidades 252<br />

CAPITULO IX<br />

I Poder eleitoral 255<br />

II Legitimidade da representação . . . . . . 258<br />

III Representação da minoria 260<br />

IV Typos de eleição . 263<br />

V Requisitos eleitoraes 265<br />

CAPITULO X<br />

I Suffragio universal 267<br />

II A igualdade social não favorece o suffragio universal 270<br />

III Em toda a parte o suffragio é limitado . . . . 272<br />

IV Voto das mulheres 275<br />

CAPITULO XI<br />

I Elegibilidade e suas condições 279<br />

II Incompatibilidade parlamentar 282<br />

III Processo eleitoral 286<br />

CAPITULO XII<br />

I Poder executivo 291<br />

II Condições de elegibilidade presidencial . . . . 294<br />

III Duração do período presidencial 298<br />

CAPITULO XIII<br />

I Eleição do presidente e do vice-presidente<br />

II Critica da eleição por suffragio directo .<br />

III Poder verificador d'essa eleição .<br />

3o 1<br />

3o3<br />

307


INDICE V<br />

CAPITULO XIV<br />

Pags.<br />

I Attribuições do poder executivo . . . . . . 3n<br />

II Relações do poder executivo com o legislativo. . 323<br />

III Responsabilidade presidencial 324<br />

CAPITULO XV<br />

I Dos ministros de Estado 333<br />

II Os gabinetes nas republicas e nas monarchias . . 337<br />

III Responsabilidade ministerial 336<br />

IV Parlamentarismo 34S<br />

CAPITULO XVI<br />

I Do poder judiciário e se é distincto do poder executivo<br />

349<br />

II Magistratura electiva e vitalícia 352<br />

III Inamovibilidade dos juizes 356<br />

CAPITULO XVII<br />

I Organisação judiciaria 359<br />

II Attribuições do Supremo Tribunal 362<br />

III Se esse Tribunal é legitimo interprete da Constituição<br />

363<br />

IV Juizes e tribunaes e suas attribuições 369<br />

V O Jury 373<br />

CAPITULO XVIII<br />

I Do Município 377<br />

II Autonomia e centralisação 379<br />

III Organismo municipal 382<br />

IV Uniformidade na organisação municipal . . . . 385<br />

CAPITULO XIX<br />

I Das qualidades do cidadão brasileiro 389<br />

II Naturalisação ^93<br />

III Suspensão e perda dos direitos de cidadão . . . 396<br />

CAPITULO XX<br />

I Declaração de direitos 399<br />

II Igualdade civil 406<br />

III Liberdade individual 411<br />

IV Direito de resistência 416


VI INDICE<br />

CAPITULO XXI<br />

Pags.<br />

I Liberdade religiosa 419<br />

II Manifestação do pensamento pela imprensa. . . 426<br />

III Garantia ao exercício das profissões 432<br />

IV Liberdade de ensino 439<br />

CAPITULO XXII<br />

I Tribunal de contas 447<br />

II Seu fim e importância 44o<br />

III Origem histórica d'esse tribunal 448<br />

IV Sua organisação 458<br />

CAPITULO XXIII<br />

I Reforma'constitucional 453<br />

II Como se opera 455<br />

III Limites ao poder reformador 458<br />

Fim do índice


ERRATA<br />

Na pag. 12, linha i3, em vez de — considerado subjectivamente<br />

— lêa-se — considerados.<br />

Na pag. 38, linha 3i, em vez de — Maculy — lêa-se — Macaulay.<br />

Na pag. 296, linha i3, em vez de — 1891 — lêa-se — 1881.<br />

Na pag. 396, linha 14, em vez de — accrescenta um terceiro<br />

caso — lêa-se — mais dous casos: i.° acceitaçào de emprego ou<br />

pensão de governo estrangeiro, sem licença do poder executivo,<br />

2, 0 allegação de crença religiosa com o fim de isentar-se de<br />

qualquer onus imposto por lei aos cidadãos.<br />

,235


• DI1D LM<br />

ont<br />

w<br />

DO<br />

-AZIL<br />

Nós os representantes do povo brazileiro, reunidos em<br />

Congresso Constituinte para organisât- um regimen livre c<br />

democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a<br />

seguinte Constituição da Republica dos Estados Unidos do<br />

Barzil :<br />

TITULO I<br />

DA OHGANISAÇÃO FEDERAL<br />

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES<br />

Art. 1.° A Nação Brazileira adopta como fôrma de governo,<br />

sob o regimen representativo, a Republica Federativa,<br />

proclamada a 15 de Novembro de 1889, e constitue-se, por<br />

união perpetua e indissolúvel das suas antigas províncias,<br />

em Estados Unidos do Brazil.<br />

Art. 2.° Cada uma das antigas províncias formará ura<br />

Estado, co antigo município neutro constituirá o Districto<br />

Federal, continuando a ser a capitai da União, emquanto<br />

não se der execução ao disposto no artigo seguinte.<br />

Art. 3.° Fica pertencendo á União, no planalto central<br />

da Republica, uma zona de 14,400 kilomètres quadrados,<br />

que será opportunamenle demarcada para n'ella estabelecer-se<br />

a futura Capital Federal.<br />

Paragraphe único. Effectuada a mudança da capital, o<br />

actual Districto Federal passará a constituir um Estado.<br />

Art. 4.° Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se<br />

ou desmembrar-se, para se annexar a outros, ou<br />

formar novos Estados, mediante acquiesceiicia das respectivas<br />

assembléas legislativas, em duas sessões annuaes suecessivas,<br />

e approvação do congresso nacional.<br />

*e*c


2 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

Art. 5.° Incumbe a cada Estado prover, a expensas proprias,<br />

as necessidades de seu governo e administração ; a<br />

União, porém, prestará soecorros ao Estado que, em caso de<br />

calamidade publica, os solicitar.<br />

Art. 6.° O Governo Federal não poderá intervir em negócios<br />

peculiares aos Estados, salvo :<br />

1.° Para repellir invasão estrangeira, ou de um Estado<br />

em outro;<br />

2.° Para manterá fôrma republicana federativa ;<br />

3,° Para restabelecer a ordem e a tranquillidade nos Estados,<br />

á requisição dos respectivos governos ;<br />

4.° Para assegurar a execução das leis e sentenças<br />

fccleraes.<br />

Art. 7.° E' da competência exclusiva da União decretar :<br />

1.° Impostos sobre a importação de procedência estrangeira<br />

;<br />

2.° Direitos de entrada, sahida e estada de navios, sendo<br />

livre o commercio de cabotagem ás mercadorias nacionaes,<br />

bem como ás estrangeiras que já tenhão pago impostos de<br />

importação ;<br />

3.° Taxas de sello, salvo a restricção do art. 9 o , § I o , n. 1 ;<br />

4.° Taxas dos correios e télégraphes íederaes.<br />

§ l.o Também compete privativamente á União :<br />

l.o A instituição de bancos emissores ;<br />

2.° A criação e manutenção de alfândegas.<br />

§ 2.° Os impostos decretados pela União devem ser<br />

uniformes para todos os Estados.<br />

§ 3.° As leis da União, os actos e as sentenças do suas<br />

autoridades serão executados em todo o paiz por funecionarios<br />

íederaes, podendo todavia a execução das primeiras ser<br />

confiada aos governos dos Estados, mediante annuencia<br />

d'estes.<br />

Art. 8.0 E' vedado ao Governo Federal crear, de qualquer<br />

modo, disíincções e perferencias em favor dos portos<br />

de uns contra os de outros Estados.<br />

Art. 9.° E' da competência exclusiva dos Estados decretar<br />

impostos :<br />

1." Sobre a exportação de mercadorias de sua propria<br />

producção;<br />

2.° Sobre immoveis ruraes e urbanos ;<br />

3.° Sobre transmissão de propriedade ;<br />

4." Sobre industrias e profissões.<br />

§ 1.° Também compete exclusivamente aos Estados<br />

decretar :


jtfr<br />

DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 3<br />

1.° Taxas do sello quanto aos actos emanados de seus<br />

respectivos governos e negócios de sua economia ;<br />

2." Contribuições concernantes aos seus telegraphos e<br />

correios.<br />

§ 2.° E' isenta de impostos, no Estado por onde se exportar,<br />

a producção dos outros Estados.<br />

§ 3." Só é licito ã um Estado tributar a importação<br />

de mercadorias estrangeiras, quando destinadas ao consumo<br />

no seu território, revertendo, porém, o producto do imposto<br />

para o thesouro federal,<br />

§ 4.° Fica salvo aos Estados o direito de estabelecerem<br />

linhas telegraphicas entre os diversos pontos de seus territórios,<br />

entre estes e os de outros Estados que se não acharem<br />

servidos por linhas federaes, podendo a União desaproprial-as,<br />

quando fôr de interesse geral.<br />

Art. 10. E' prohibido aos Estados tributar bens e rendas<br />

federaes ou serviços á cargo da União, e reciprocamente.<br />

Art. 11. E' vedado aos Estados, como á União:<br />

1.° Crear impostos de transito pelo território de um<br />

Estado, ou na passagem de um para outro, sobre productos<br />

de outros Estados da Republica ou estrangeiros, e bem assim<br />

sobre os vehiculos de terra e água que os transportarem ;<br />

2." Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exer3Ício<br />

de cultos religiosos :<br />

3.° Prescrever leis retroactivas.<br />

Art. 12. Além das fontes de receita discriminadas nos<br />

arts. 7 o e 9 o , é licito á União como aos Estados, cumulativamente,<br />

ou não, crear outras quaesquer, não contravindo o<br />

disposto nos arts. 7 J , 9 o e 11 n. 1.<br />

Art. 13. O direito da União c dos Estados do legislarem<br />

sobre a viação férrea c navegação iníerior será regulado por<br />

lei federal.<br />

Paragrapho único. A navegação de cabotagem será<br />

feita por navios nacionaes.<br />

Art. 14. As forças de terra e mar são instituições nacionaes<br />

permanentes, destinadas â defeza da pátria no exterior e<br />

á manutenção das leis no interior.<br />

A força armada ó essencialmente obediente, dentro dos<br />

limites da lei, aos seus superiores hierarchios e obrigada a<br />

sustentar as instituições constitucionaes.<br />

Art. 15. São órgãos da soberania nacional o poder legislativo,<br />

o executivo e o judiciário, harmônicos e independentes<br />

entre si.


4 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

SBÒÇÃO I<br />

15o I*oûç:v Legislativo<br />

CAPÍTULO í<br />

DISPOSIÇÕES GERAES<br />

Art. 16. 0 poder legislativo é exercido pelo Congresso<br />

Nacional, com a sancção do Presidente da Republica.<br />

§ 1.° O Congresso Nacional compÕ-se de dous ramos : a<br />

câmara dos deputados e o senado.<br />

§ 2." À eleição para senadores e deputados far-se-ha<br />

simultaneamente em todo o paiz.<br />

§ 3.° Ninguém pôde ser, ao mesmo tempo, deputado e<br />

senador.<br />

Art. 17. O Congresso reunir-se-ha na Capital Federal,<br />

independentemente de convocação, a 3 de Maio de cada anno,<br />

si a lei não designar outro dia, e funceienará quatro mezes<br />

da data da abertura, podendo ser prorogado, adiado ou convocado<br />

extraordinariamente.<br />

§ 1.° Só ao Congresso compete deliberar sobre a prorogação<br />

e adiamento de suas sessões.<br />

§ 2.» Cada legislatura durará três annos.<br />

§ 3.° O governo do Estado cm cuja representação se der<br />

vaga, por qualquer causa, inclusive renuncia, mandará immédiats<br />

mente proceder á nova eleição.<br />

Art. 18. A câmara dos deputados e o senado trabalharão<br />

separadamente e, quando não se resolver o contrario, por<br />

maioria de votos, em sessões publicas. As deliberações serão<br />

tomadas por maioria de votos, achando-se presentes em cada<br />

uma maioria absoluta dos seus membros.<br />

Paragraphe-único. A cada uma das câmaras compete:<br />

Verificar e reconhecer os poderes de seos membros ;<br />

Elegera sua mesa ;<br />

Organizar o seu regimento interno.<br />

Regular o serviço de sua policia interna;<br />

Nomear os empregados do sua secretaria.<br />

Art. 19. Os deputados e senadores são invioláveis por<br />

suas opiniões, palavras e votos no exercicio do mandato.<br />

Art. 20. Os deputados e senador* 1 ?, desde que tiverem<br />

recebido diploma até a nova eleição, não poderão ser presos<br />

nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua<br />

câmara, salvo caso de flag ran cia em crime inafiançável.


}$<br />

DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 5<br />

N'este caso levado o processo até pronuncia exclusive, a autoridade<br />

processante remetterá os autos á câmara respectiva<br />

para resolver sobre a procedência da accusação, si o accusado<br />

não optar pelo julgamento immediate<br />

Art 21. Os membros das duas câmaras, ao tomar assento,<br />

contrahirão compromisso formal em sessão publica de<br />

bem cumprir os seus deveres.<br />

Art. 22. Durante as sessões vencerão os senadores e os<br />

deputados um subsidio pecuniário igual, e ajuda decusto que<br />

serão fixados pelo Congresso no fim de cada legislatura, para<br />

a seguinte.<br />

Art. 23. Nenhum membro do Congresso, desde que<br />

tenha sido eleito, poderá celebrar contractus com o poder<br />

executivo nem d'elle receber commissÕes ou empregos remunerados.<br />

§ 1.° Exceptuão-se d'esta prohibição:<br />

1." As missões diplomáticas ;<br />

2." As commissões ou commandos militares;<br />

3." Os cargos de accesso eas promoções legaes.<br />

§ 2." Nenhum deputado ou senador, porém, poderá<br />

aceitar nomearão para missões, commissões ou commandos,<br />

de que traíao os ns. 1 e 2 do paragrapho antecedente, sem<br />

licença da respectiva câmara, quando da aceitação resultar<br />

privação do exercício das funeções legislativas, salvo nos<br />

casos de guerra ou n'aqnelles em que a honra e a integridade<br />

da União se acharem empenhadas.<br />

Art. 24. O deputado ou o senador não pôde também ser<br />

presidente ou fazer parte de directorias de bancos, companhias<br />

ou emprezas que gozem favores do Governo Federal<br />

definidos em lei.<br />

Paragrapho único. A inobservância dos preceitos contidos<br />

n'este artigo e no antecedente importa perda do mandato.<br />

Art. 25. O mandato legislativo é incompatível com o<br />

exercício de qualquer outra funeção durante as sessões.<br />

Art. 26. São condições de elegibilidade para o Congresso<br />

Nacional :<br />

1.° Estar na possp dos direitos de cidadão brazileiro e<br />

ser alistado como eleitor ;<br />

2." Para a câmara, 1er mais de quatro annos de cidadão<br />

brazileiro, e para ü senado mais de sois.<br />

Esta disposição não comprehende os cidadãos a que refere-se<br />

o n. 4 do art. 09.<br />

Art. 27. O Congresso declarará, em lei especial, os<br />

casos de incompatibilidade eleitoral.


G CONSTITUIÇÃO DA REPUBLI CA<br />

CAPITULO II<br />

DA CÂMARA DOS DEPUTADOS<br />

Art. 28. A câmara dos deputados compõe-se de representantes<br />

do povo eleitos pelos Estados e pelo Districto Federal,<br />

mediante o suffragio clirecto, garantida a representação da<br />

miuoria.<br />

§ 1.° O numero dos deputados será fixado por lei em<br />

proporção que não excederá de um por setenta mil habitantes,<br />

não devendo esse numero ser inferior a quatro por Estado.<br />

§ 2." Para este fim mandará o Governo Federal proceder,<br />

desde já, ao recenseamento da população da Republica, o<br />

qual será revisto decennalmente.<br />

Art. 29. Compete á câmara a iniciativa do adiamento<br />

da sessão legislativa e de todas as leis cie impostos, das leis<br />

de fixação das forças de terra e mar, da discussão dos projectos<br />

ofEerecidos pelo poder executivo e a declaração da procedência<br />

ou improcedencia da aceusação contra o presidente<br />

da Republica, nos termos do art. 53, e contra os ministros<br />

de Estado nos crimes connexos com os do presidente da<br />

Republica.<br />

CAPITULO III<br />

DO SENADO<br />

Art. 30. O senado compõe-se de cidadãos elegivois nos<br />

termos do art. 26 e maiores de 35 annus, em numero de<br />

três senadores por Estado e três pelo Districto Federal,<br />

eleitos pelo mesmo modo porque o forem os deputados.<br />

Art. 31. O mandato do senador durará nove annos, rcnovando-se<br />

o senado pelo terço triennalmente.<br />

Paragrapho único. O senador eleito em substituição<br />

cie outro exercerá o mandato pelo tempo que restava ao<br />

substituído.<br />

Art. 32. O vice-presidente da Republica será presidente<br />

do senado, onde só terá voto de qualidade, e será substituído,<br />

nas ausências c impedimentos, pelo vice-presidente da mesma<br />

câmara.<br />

Art. 33. Compete privativamente ao senado julgar o<br />

presidente da Republica e os demais funceionarios fedoraes<br />

designados pela Constituição, nos termos e pela fôrma que<br />

cila prescreve.


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 7<br />

§ 1.° O senado, quando deliberar como tribunal de<br />

justiça, será presidido pelo presidente do Supremo Tribunal<br />

Federal.<br />

§ 2.° Não proferirá sentença condemnatoria senão por<br />

dons terços dos membros presentes.<br />

§ 3.° Não poderá impor outras penas mais que a perda<br />

do cargo e a incapacidade de exercer qualquer outro sem prejuízo<br />

da acção da justiça ordinária contra o condemnado.<br />

CAPITUO IV<br />

DAS ATTR1BUIÇÕES DO CONGRESSO<br />

Art. 34. Compete privativamente ao Cougresso Nacional<br />

:<br />

1." Orçar a receita, fixar a despeza federal annualmsníe<br />

e tomar as contas da receita e despeza de cada exercício<br />

financeiro ;<br />

2." Autorisai' o poder executivo a contrahir empréstimos<br />

e a fazer outras operações de credito ;<br />

3.° Legislar sobre a divida publica e estabelecer os meios<br />

para o seu pagamento ;<br />

4.° Regular a arrecadação e a distribuição das rendas<br />

federaes ;<br />

5.° Regular o commercio internacional, bem como o dos<br />

Estados entre si e com o Districto Federal, alfandegar portos,<br />

crear ou supprimir entrepostos ;<br />

6.° Legislar sobre a navegação dos rios que banhem mais<br />

de um Estado, ou se estendão a territórios estrangeiros ;<br />

7.° Determinar o peso, o valor, a inscripção., o typo e a<br />

denominação das moedas ;<br />

8.° Crear bancos cie emissão, legislar sobre ella e<br />

tributai-a;<br />

9.° Fixar o padrão dos pesos e medidas ;<br />

10. Resolver definitivamente sobro os limites dos Estados<br />

entre si, os do Districto Federal e os do território nacional<br />

com as nações limitrophes ;<br />

11. Autorisai'o governo a declarar guerra, si não tiver<br />

logar ou mallograr-se o recurso do arbitramento, o a fazer<br />

a paz ;<br />

12. Resolver definitivamente sobre os tratados c convenções<br />

com as nações estrangeiras ;<br />

13. Mudar a capital da União ;<br />

/3?


8 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

14. Conceder subsídios aos Estados na hypothèse do<br />

art. 5 o ;<br />

15. Legislar sobre o serviço dos correios c telegraphos<br />

federaes ;<br />

16. A.doptar o regimen conveniente á segurança das<br />

fronteiras ;<br />

17. Fixar annual mente as forças de terra e mar;<br />

18. Legislar sobre a organização do exercito e da<br />

armada ;<br />

19. Conceder ou negar passagens a forças estrangeiras<br />

pelo território cio paiz, para operações militares ;<br />

20. Mobilizar e utilizar a guarda nacional ou milícia<br />

cívica, nos casos previstos pela constituição ;<br />

21. Declarar em estado de sitio um ou mais pontos do<br />

território nacional, na emergência de aggressao por forças<br />

estrangeiras ou de com moção interna, e approval- ou suspender<br />

o sitio que houver sido declarado pelo poder executivo,<br />

ou seus agentes responsáveis, na ausência do Congresso ;<br />

22. Regular as condições e o processo da eleição para os<br />

cargos federaes, em todo o paiz ;<br />

23. Legislar sobre o direito civil, comercial e criminal<br />

da Republica e o processual da justiça federal ;<br />

2'j. Estabelecer leis uniformes sobre a naturalisação ;<br />

25. Crear c supprimir empregos públicos federaes,, fixar-lhes<br />

as attribuições, o estipular-lhes os vencimentos ;<br />

26. Organizar a justiça federal, nos termos dos arts, õõ<br />

e seguintes da secção III ;<br />

27. Conceder amnistia ;<br />

28. Coramutar e perdoar as penas impostas, por crimes<br />

de responsabilidade, aos funecionarios federaes;<br />

29. Legislar sobre terras e minas de propriedade da<br />

União ;<br />

30. Legislar sobre a organização municipal do Districto<br />

Federal, bem como sobre a. policia, o ensino superior o os<br />

demais serviços que na capital íòreni reservados para o governo<br />

da União ;<br />

31. Submelter â legislação especial os pontos do território<br />

da Republica necessários para a fundação de arsenaes ou<br />

outros estabelecimentos e instituições de conveniência federal ;<br />

32. Regular os casos de extradicção entre os Estados ;<br />

33. Decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício<br />

dos poderes que pertencem á União :<br />

34. Decretar as leis orgânicas para a execução completa<br />

da Constituição ;


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 9<br />

35. Prorogar e adiar suas sessões.<br />

Art. 35. Incumbe, outrosim, ao Congresso, mas não<br />

privativamente :<br />

1.° Velar na guarda da Constituição e das leis, providenciar<br />

sobre as necessidades de caracter federal ;<br />

2.° Animar no paiz o desenvolvimento das letras, artes<br />

e sciencias, bem como a immigração, a agricultura, a industria<br />

e o commercio, sem privilégios que tolhão a acção dos<br />

governos locaes ;<br />

3." Crear instituições de ensino superior e secundário<br />

nos Estados ;<br />

4.° Provera instrucção secundaria no Districto Federal.<br />

CAPITULO V<br />

DAS LEIS E RESOLUÇÕES<br />

Art. 36. Salvas as excepções do art. 29, todos os projectos<br />

de lei podem ter origem indistinctamente na câmara<br />

ou no senado, sob ainiciativade qualquer dos seus membros.<br />

Art. 37. O projecto deleiadoptado em uma das câmaras<br />

será submettido á outra, e esta, si o approvar, envial-o-ha<br />

ao poder executivo que, acquiescendo, o sanccionará e<br />

promulgará.<br />

§ 1.° Si, porém, o presidente da Republica o julgar<br />

inconstitucional ou contrario aos interesses da Nação, negará<br />

sua sancção dentro de dez dias úteis daquelle em que recebeu<br />

o projecto, devolvendo-o nesse mesmo prazo á câmara, onde<br />

elle se houver iniciado, com os motivos da recusa.<br />

§ 2.° O silencio do presidente da Republica no decendio<br />

importa a sancção; e, no caso de ser esta negada, quando já<br />

estiver encerrado o Congresso, o presidente dará publicidade<br />

ás suas razões.<br />

§ 3.° Devolvido o projecto á câmara iniciadora, ahi se<br />

sujeitar! á uma discussão e á votação nominal, considerandose<br />

approvado, si obtiver dous terços dos suffragíos presentes.<br />

Neste caso, o projecto será remettido á outra câmara que,<br />

si o approvar pelos mesmos tramites e pela mesma maioria,<br />

o enviará como lei ao poder executivo para a formalidade da<br />

promulgação.<br />

§ 4.° A sancção e a promulgação effectuão-se por estas<br />

fórmulas :<br />

l.*«0 Congresso Nacional decreta, e eu sanecionoa<br />

seguinte lei ( ou resolução ). »<br />

2<br />

XW


10 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

2. a O Congresso Nacional decreta, eeu promulgo a seguinte<br />

lei ( ou resolução ). »<br />

Art. 38. Não sendo a lei promulgada dentro de 48 horas<br />

pelo presidente da Republica nos casos cios §§ 2.° e 3." do<br />

art. 37, o presidente do senado ou o vice-presidente, si o primeiro<br />

não o fizer em igual prazo, a promulgará, usando da<br />

seguinte fórmula : F. presidente ( ou vice-presidente ) do senado,<br />

faço saber aos que a presente virem que o Congresso<br />

Nacional decreta ou promulga a seguinte lei ou resolução. »<br />

Art. 39. O projecto cie uma câmara, emendado na outra,<br />

volverá á primeira que, si aceitar as emendas, envial-o-ha<br />

modificado em conformidade délias, ao poder executivo.<br />

§ 1.° No caso contrario, volverá á câmara révisera, e<br />

si as alterações obtiverem dous terços dos votos dos membros<br />

presentes, consiclerar-se-hão approvadas, sendo então remettidas<br />

com o projecto á câmara iniciadora, que só poderá<br />

reproval-as pela mesma maioria.<br />

§ 2.° Rejeitadas deste modo as alterações, o projecto será<br />

submetticlo sem ei Ias á saneção.<br />

Art. 40. Os projectos rejeitados, ou não sanecionados,<br />

não poderão ser renovados na mesma sessão legislativa.<br />

SECÇÃO II<br />

Do Podes» Executivo<br />

CAPITULO 1<br />

1)0 PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE<br />

Art. 41. Exerce o poder executivo o presidente cia Republica<br />

dos Estados Unidos do Brazil, como chefe electivo<br />

da nação.<br />

§ 1." Substitue o presidente, no caso do impedimento, e<br />

suecede-lhe no de falta, o vice-presidente, eleito simultaneamente<br />

com elle.<br />

§ 2." No impedimento, ou faltado vice-presidente, serão<br />

suecessi vãmente chamados á presidência o vice-presidente<br />

do senado, o presidente da câmara o o do Supremo Tribunal<br />

Federal.<br />

§ 3.° São condições essenciaes, para ser eleito presidenle<br />

ou vice-presidente da Republica ;<br />

1." Ser brazileiro nato ;<br />

2 -0 Estar no exercício dos direitos políticos ;


JU\<br />

DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 11<br />

3.° Ser maior de trinta e cinco annos.<br />

Art. 42. Si, no caso de vaga, por qualquer causa, da<br />

presidência oa vice-presidência, não houverem ainda decorrido<br />

dois annos do período presidencial, proceder-se-ha á<br />

nova eleição.<br />

Ari. 43. O presidente exercerá o cargo por quatro annos,<br />

não podendo ser reeleito para o período presidencial immediato.<br />

§ 1." O vice-presidente que exercer a presidência no ultimo<br />

anno do periodo presidencial não poderá ser eleito presidente<br />

para o período seguinte.<br />

>; 2.° O presidente deixará o exercício de suas funeções,<br />

improrogavelmenle. no mesmo clia em que terminar o seu<br />

periodo presidencial, sncedendo-lhe logo o recom-eleito.<br />

§ 3 " Si este se achar impedido, ou faltar, a substituição<br />

íar-se-ha nos termos do art. 41 §§ 1." o 2."<br />

§ 4." O primeiro periodo presidencial terminará a 15 de<br />

Novembro de 1894.<br />

Art. 44. Ao empossar-se do cargo, o presidente pronunciará,<br />

em sessão do Congresso, ou si este não estiver reunido,<br />

ante o Supremo Tribunal Federal, esta aífirmação :<br />

« Proinetto manter e cumprir com perfeita lealdade a<br />

Constituição Federal, promuver o bem geral da Republica,<br />

observar as suas leis, sustentar-lhe a união, a integridade e a<br />

independência. »<br />

Art. 45. O présidante e o vice-presidente não podem<br />

sahir do território nacional sem permissão do Congresso, sob<br />

pena de perderem o cargo.<br />

Art. 46. O presidente e o vice-presidente perceberão<br />

subsidio fixado pelo Congresso no periodo presidencial antecedente.<br />

CAPITULO II<br />

DA ELEIÇÃO DE PRESIDENTE E VICE-PR'ESIDENTE<br />

Art. 47. O presidente e o vice-presidente da Republica<br />

serão eleitos por sui<strong>ï</strong>ragio directoda nação e maioria absoluta<br />

de votos.<br />

§ 1.° A eleição terá logar no dia 1.° de Março do ultimo<br />

anno do periodo presidencial, procedenclo-se na Capital Federal<br />

e nas capitães dos Estados á apuração dos votos recebidos<br />

nas respectivas circumscripções. O Congresso fará a<br />

apuração na sua primeira sessão do mesmo anno, com qualquer<br />

numero de membros presentes.


12 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

§ 2.° Si nenhum dos votados houver alcançado maioria<br />

absoluta, o Congresso elegerá, por maioria dos votos presentes,<br />

um, dentre os que tiverem alcançado as duas votações<br />

mais elevadas na eleição directa.<br />

Em caso de empate considerar-se-ha eleito o mais velho.<br />

§ 3.° O processo da eleição e da apuração será regulado<br />

por lei ordinária.<br />

§ 4.° São inelegíveis para os cargos de presidente e<br />

vice-presidente os parentes consanguineos e affins, nos 1.° e<br />

2.° gráos, do presidente ou vice-presidente, que se achar em<br />

exercício no momento da eleição ou que o tenha deixado até<br />

seis mezes antes.<br />

CAPITULO III<br />

DAS ATTRIBUIÇÕES DO PODER EXECUTIVO<br />

Art. 48. Compete privativamente ao presidente da Republica<br />

:<br />

1.° Sanccionar, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções<br />

do Congresso ; expedir decretos, instrucções e regulamentos<br />

para sua fiel execução ;<br />

2.° Nomear e demittir livremente os ministros de estado ;<br />

3.° Exercer ou designar quem deva exercer o commando<br />

supremo das forças de terra e mar e dos Estados Unidos do<br />

Brazil, quando forem chamadas ás armas em defeza interna<br />

ou externa da União ;<br />

4.° Administrar o exercito e a armada e distribuir as respectivas<br />

forças, conforme as leis federaes o as necessidades<br />

do governo nacional ;<br />

5.° Prover os cargos civis e militares de caracter federal,<br />

salvas as restricções expressas na Constituição ;<br />

6.° Indultar e commutar as penas nos crimes sujeitos á<br />

jurisdicção federal, salvo nos casos a que se referem os arts.<br />

34, n. 28, e 52 § 2« ;<br />

7,° Declarar a guerra e fazer a paz nos termos do art.<br />

34, n. 11 ;<br />

8.° Declarar immediatamente a guerra nos casos de invasão<br />

ou aggressão estrangeira ;<br />

9.° Dar conta annualmente da situação do paiz ao Congresso<br />

Nacional, indicando-lhe as providencias e reformas<br />

urgentes, em mensagem que remetterá ao secretario do senado<br />

no dia da abertura da sessão legislativa ;<br />

10. Convocar o Congresso extraordinariamente ;


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 13<br />

lí. Nomear os magistrados federaes mediante proposta<br />

do supremo tribunal;<br />

12. Nomear os membros do Supremo Tribunal Federal<br />

e os ministros diplomáticos, sujeitando a nomeação á approvação<br />

do senado.<br />

Na ausência do Congresso, designal-os-ha em commissão<br />

até que o senado se pronuncie ;<br />

13. Nomear os demais membros do corpo diplomático e<br />

os agentes consulares ;<br />

14. Manter as relações com os Estados estrangeiros ;<br />

15. Declarar por si, ou seus agentes responsáveis, o estado<br />

de sitio em qualquer ponto do território nacional nos<br />

casos de aggressão estrangeira, ou grave com moção intestina<br />

( Art. 6o n. 3 ; art. 34 n. 21 eart. 80) ;<br />

16. Entabolar negociações internacionaes, celebrar ajustes,<br />

convenções e tratados, sempre ad referendum do Congresso,<br />

e approval* os que os estados celebrarem na conformidade<br />

do art. 65, submettendo-os, quando cumprir, á autoridade<br />

do Congresso.<br />

CAPITUO IV<br />

DOS MINISTROS DE ESTADO<br />

Art. 49. O presidente da Republica é auxiliado pelos ministros<br />

de Estado, agentes de sua confiança que lhe subscrevem<br />

os actos, e cada um délies presidirá a um dos ministérios em<br />

que se dividir a administração federal.<br />

Art. 50. Os ministros de Estado não poderão accurnular<br />

o exercicio de outro emprego ou funcção publica, nem ser<br />

eleitos presidente ou vice-presidente da União, deputado ou<br />

senador.<br />

Paragrapho único. O deputado ou senador que aceitar o<br />

cargo de ministro de Estado, perderá o mandato e procederse-ha<br />

immediatamente á nova eleição, na qual não poderá<br />

ser votado.<br />

Art. 51. Os ministros de Estado não poderão comparecer<br />

ás sessões do Congresso, e só se communicarão com elle<br />

por escripto ou pessoalmente em conferência com as commissões<br />

das câmaras.<br />

Os relatórios annuaes dos ministros serão dirigidos ao<br />

presidente da Republica e distribuidos por todos os membros<br />

do Congresso.<br />

Art. 52. Os ministros de Estado não são responsáveis<br />

ctHl


li CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

perante o Congresso, ou perante os tribunaes, pelos conselhos<br />

dados ao presidente da Republica.<br />

§ í.° Respondem, porém, quanto aos seus actos, pelos<br />

crimes qualificados em lei.<br />

§ 2." Nos crimes communs e de responsabilidade serão<br />

processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e,<br />

nos connexes com os do presidente da Republica, pela autoridade<br />

competente para o julgamenio deste.<br />

CAPITULO V<br />

DA RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE<br />

Art. 53. O presidente dos Estados Unidos do Bra/il será<br />

submettido a processo e a julgamenio, depois que a câmara<br />

declarar procedente a accusação, perante o Supremo Tribunal<br />

Federal, nos crimes communs, e nos de responsabilidade perante<br />

o senado.<br />

Paragraphe único. Decretada a procedência da accusação<br />

ficará o presidente suspenso de suas funeções.<br />

Art. 54- São crimes de responsabilidade os actos do presidente<br />

da Republica que atlentarem contra :<br />

1.° A existência política da União ;<br />

2.° A Constituição e a fôrma do Governo Federal ;<br />

3.° O livre exercício dos poderes políticos ;<br />

4.° O goso e exercício legal dos direitos políticos ou individuaes<br />

;<br />

5.° A segurança interna do paiz ;<br />

6.° A probidade da administração;<br />

7.° A guarda e emprego constitucional dos dinheiros<br />

públicos;<br />

8.° As leis orçamentarias votadas pelo Congresso.<br />

§ í.° Esses serão definidos cm lei especial.<br />

§ 2." Outra lei regulará a accusação, o processo eo julgamento.<br />

§ 3." Ambas essas leis serão feitas na primeira sessão do<br />

primeiro Congresso.


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 15<br />

S E O Ç Á O III<br />

JDo Podcv JiLsdicmrio<br />

Art. 55. 0 poder judiciário da União terá por órgão um<br />

Supremo Tribunal Federal, com sáde na capital da Republica<br />

e tantos juizes e tribunaes federaes, distribuídos pelo<br />

paiz, quantos o Congresso crear.<br />

Art. 56. O Supremo Tribunal Federal compôr-se-ha de<br />

quinze juizes, nomeados na fôrma do art. 48, ri. 12, dentre<br />

os cidadãos de notável saber e reputação, elegiveis para o<br />

senado.<br />

Art. 57. Os juizes federaes são vitalícios e perderão o<br />

cargo unicamente por sentença judicial.<br />

§ 1.° Os seus vencimentos serão determinados por lei e<br />

não poderão ser diminuídos;<br />

§ 2." O senado julgará os membros do Supremo Tribunal<br />

Federal nos crimes de responsabilidade, e este os juizes<br />

federaes inferiores.<br />

Art. 58. Os tribunaes federaes elegerão de seu seio os<br />

seus presidentes e organisarão as respectivas secretarias.<br />

§ 1." A nomeação e a demissão dos empregados da secretaria,<br />

bem como o provimento cios officios de justiça nas<br />

circumscripções judiciarias, compete respectivamente aos presidentes<br />

dos tribunaes.<br />

§ 2.° O presidente da Republica designará, dentre os<br />

membros do Supremo Tribunal Federal, o procurador geral<br />

da Republica, cujas attribuições se definirão em lei.<br />

Art. 50. Ao Supremo Tribunal Federal compete :<br />

I. Processar e julgar originaria e privativamente :<br />

a) o presidente cia Republica nos crimes communs c os<br />

ministros de Estado nos casos do art. 52;<br />

b ) os ministros diplomáticos, nos crimes communs e nos<br />

do responsabilidade ;<br />

c) as causas e conflictos entre a União o os Estados, ou<br />

entre estes uns com os outros ;<br />

d ) os litígios e as reclamações entre nações estrangeiras<br />

e a União ou os Estados;<br />

e) os conflictos dos juizes ou tribunaes federaes entre<br />

si, ou entre estes e os dos Estados, assim como os dos juizes<br />

o tribunaes de um Estado com juizes e os tribunaes de outro<br />

Eslado ;<br />

II. J ilgar, em grão de recurso, as questões resolvidas<br />

JV2


16 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

pelos juizes e tribunaes federaes, assim como as deque tratão<br />

o presente artigo, § 1 °, e o art. 60 ;<br />

III. Rever os processos findos, nos termos do art. 81.<br />

§ 1.° Das sentenças das justiças dos Estados em ultima<br />

instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal ;<br />

a) quando se questionar sobre a validade, ou a applicação<br />

de tratados e leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado<br />

fôr contra ella;<br />

b) quando se contestar a validade de leis ou de actos dos<br />

governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis<br />

federaes, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos<br />

esses actos, ou essas leis impugnadas.<br />

§ 2.° Nos casos em que houver de applicar leis dos Estados,<br />

a justiça federal consultará a jurisprudência dos tribunaes<br />

locaes, vice-versa, as justiças dos Estados consultarão a<br />

jurisprudência dos tribunaes federaes, quando houverem de<br />

interpretar leis da União.<br />

Art. 60. Compete aos juizes ou tribunaes federaes processar<br />

e julgar:<br />

a; as causas em que algumas da partes fundar aacção,<br />

ou a defesa, em disposição da Constituição Federal;<br />

b ) todas as causas propostas contra o governo da União<br />

ou fazenda nacional, fundadas em disposições da Constituição,<br />

leis e regulamentos do poder executivo, ou em contratos<br />

celebrados com o mesmo governo ;<br />

c) as causas provenientes de compensações, reivindicações,<br />

indemnisação de prejuizos ou quasquer outras propostas<br />

pelo governo da União contra particulares ou vice-versa ;<br />

d) os litígios entre um Estado e cidadãos de outro, ou<br />

entre cidadãos de Estados diversos, diversificando as leis<br />

destes ;<br />

e) os pleitos entre Estados estrangeiros e cidadãos brazileiros<br />

;<br />

f) as acções movidas por estrangeiros e fundadas, quer<br />

em contratos com o governo da União, quer em convenções<br />

ou tratados da União com outras nações;<br />

g) as questões de direito maritimo e navegação assim no<br />

oceano como nos rios e lagos do paiz :<br />

h) as questões de direito criminal ou civil internacional ;<br />

i) os crimes politicos.<br />

§ 1.° E' vedado ao Congresso commelter qualquer jurisdicção<br />

federal ás justiças dos Estados.<br />

§ 2.° As sentenças e ordens da magistratura federal são<br />

executadas por officiaes judiciários da União, aos quaes a


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRA7.II, 17<br />

policia local é obrigada a prestar auxilio, quando invocado<br />

por elles.<br />

Art. Gl. As decisões dos juizes ou tribunaes dos Estados<br />

nas matérias de sua competência porão termos aos processos<br />

e ás questões, salvo quanto a:<br />

J.° habeas-corpus, ou<br />

2.° espolio de estrangeiro, quando a espécie não estiver<br />

prevista em convenção, ou tratado.<br />

Em taes casos haverá recurso voluntário para o Supremo<br />

Tribunal Federal.<br />

Art. 62. As justiças dos Estados não podem intervir em<br />

questões submettidas aos tribunaes federaes, nem annullar,<br />

alterar, ou suspender as suas sentenças, ou ordens. E, reciprocamente,<br />

a justiça federal não pôde intervir em questões<br />

submetlidas aos tribunaes dos Estados, nem annullar, alterar<br />

ou suspender as decisões ou ordens destes, exceptuados os<br />

casos expressamente declarados nesta Constituição.<br />

TITULO II<br />

Dos Estados<br />

Art. 63. Cada Estado reger-se-ha pela Constituição e<br />

pelas leis que adoptar, respeitados os princípios constitucionaes<br />

da União.<br />

Art. 64. Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas<br />

situadas nos seus respectivos territórios, cabendo á<br />

União somente a porção do território que fòr indispensável<br />

para a defesa das fronteiras, fortificações, construcções militares<br />

e estradas de ferro federaes.<br />

Paragrapho único. Os próprios nacionaes, que não forem<br />

necessários para o serviço d.i União, passarão ao domínio dos<br />

Estados, em cujo território estiverem situados.<br />

Art. 65. E' facultado aos Estados :<br />

1.° Celebrar entre si ajustes e convenções sem caracter<br />

politico. ( Art. 48 n. 16. ) ;<br />

2.« Em geral, todo e qualquer poder ou direito, que lhes<br />

não fòr negado por clausula expressa ou implicitamsnte<br />

contida nas cláusulas expressas da Constituição.<br />

Art. 66. E' defeso aos Estados :<br />

1.° Recusar fé aos documentos públicos de natureza legislativa,<br />

administrativa ou judiciaria da União, ou de qualquer<br />

d^s Estados ;<br />

M*


18 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

2.° Rejeitar a moeda, ou emissão bancaria ora circulação<br />

por acto do governo federal ;<br />

3.° Fazer ou declarar guerra entre si e usar de represálias<br />

;<br />

4.° Denegar a extradicção de criminosos, reclamados<br />

pelas justiças de outros Estados, ou Districto Federal, segundo<br />

as leis da União por que esta materia se reger. ( Art.<br />

34, n. 32 ).<br />

Art. 67. Salvas as restricções especificadas na Constituição<br />

e nas leis federaes, o Districto Federal é administrado<br />

pelas autoridades municipaes.<br />

Paragraph o único. As despezas de caracter local, na capital<br />

da Republica, insumbem exclusivamente á autoridade<br />

municipal.<br />

TITULO III<br />

Do Município<br />

Art. 68. Os Estados organisar-se-hão deforma que fique<br />

assegurada a autonomia dos municipios em tudo quanto respeite<br />

ao seu peculiar interesse.<br />

TITULO IV<br />

Dos Cidadãos ISrazileiros<br />

SECÇÀO I<br />

DAS QUALIDADES DO CIDADÃO BRAZILEIRO<br />

Art. 69. São cidadãos brazileiros :<br />

1.° Os nascidos no Brazil, ainda que de pai estrangeiro,<br />

não residindo este a serviço de sua nação ;<br />

2.° Os filhos de pai brazileiro e os illegitimos de mãi brazileira,<br />

nascidos em paiz estrangeiro, si estabelecerem domicilio<br />

na Republica;<br />

3.° Os filhos de pai brazileiro, que estiver em outro pai/<br />

ao serviço da Republica, embora nella não venhão domiciliar-se<br />

;<br />

4." Os estrangeiros, que, achando-se no Brazil aos 15 de<br />

Novembro de 1889, não declararem, dentro em seis mezes<br />

depois de entrar em vigor a Constituição, o animo de conservar<br />

a nacionalidade de origem :


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 19<br />

5.° Os estrangeiros que possuírem bens immoveis no<br />

Brazil c forem casados com brazileiras, ou tiverem filhos<br />

brazileiros, comtantoque residão no Brazil, salvo si manifestarem<br />

a intenção de não mudar de nacionalidade ;<br />

G.° Os estrangeiros por outro modo naturalisados.<br />

Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos<br />

que se alistarem na fôrma da lei.<br />

§ 1.° Não podem alistar-se eleitores para as eleições fecleraes<br />

ou para as dos Estados :<br />

1.° Os mendigos;<br />

2.° Os analphabetos ;<br />

3.° As praças de prêt, exceptuados os alumnos das escolas<br />

militares de ensino superior ;<br />

4.° Os religiosos de ordens monasticas, companhias, congregações<br />

ou commun idades de qualquer denominação, sujeitas<br />

a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a<br />

renuncia da liberdade individual.<br />

' § 2.° São inelegíveis os cidadãos não alístaveis.<br />

Art. 71. Os direitos de cidadão brazileiro só se suspendem<br />

ou perdem nos casos aqui particularisados.<br />

§ 1.° Suspendem-se:<br />

a) por incapacidade physica ou moral;<br />

b) por condemnação criminal, emquanto durarem os<br />

seus e (leitos.<br />

§ 2.° Perdem-se :<br />

a) por naturalisação em paiz estrangeiro;<br />

b ) por acceitaçào de emprego ou pensão de governo estrangeiro,<br />

sem licença do poder executivo federal.<br />

§ 3.° Uma lei federal determinará as condições de reacquisição<br />

dos direitos de cidadão brazileiro.<br />

SEOÇÃO II<br />

Declaração de Direitos<br />

Art. 72. A Constituição assegura abrazileiros ea estrangueiros<br />

residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes<br />

á liberdade, á segurança individual e á propriedade<br />

nos termos seguintes :<br />

§ 1.° Ninguém pôde ser obrigado a fazer ou deixar de<br />

fazer alguma cousa, senão em virtude de lei.<br />

§ 2.° Todos são iguaes perante a lei.<br />

A Republica não admitte privilégios de nascimento, desconhece<br />

foros de nobreza, e extingue as ordens honorificas<br />

JHS


20 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

existentes e todas as suas prorogations e regalias, bem como<br />

os títulos nobiliarehicos e de conselho.<br />

§ 3." Todos os indivíduos e confissões religiosas podem<br />

exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para<br />

esse fini e adquirindo bens, observadas as disposições do direito<br />

co m m um.<br />

§ 4." A Republica só reconhece o casamento civil, cuja<br />

celebração será gratuita.<br />

§ 5." Os cemitérios terão caracter secular e serão administrados<br />

pela autoridade municipal, ficando livre a todos os<br />

cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação<br />

aos seus crentes, desde que não of fan dão a moral publica e<br />

as leis.<br />

§ 6.° Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos<br />

públicos.<br />

§ 7.° Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção official,<br />

nem terá relações de dependência, ou alliança com o<br />

governo da União, ou dos Estados.<br />

§ 8.° À todos é licito associarem-se e reunirem-se livremente<br />

e sem armas; não podendo intervir a policia senão<br />

para manterá ordem publica.<br />

§ 9.° E' permittido a quem quer que seja representar,<br />

mediante petição, aos poderes públicos, denunciar abusos<br />

das autoridades c promover a responsabilidade de culpados.<br />

§ 10. Em tempo de paz, qualquer pôde entrar no território<br />

nacional ou delle sahir, com a sua fortuna e b°ns, quando<br />

e como lhe convier, independentemente de passaporte.<br />

§ 11. A casa éo asylo inviolável do indivíduo; ninguém<br />

pôde ahi penetrar, de noite, sem consentimento do morador,<br />

senão paraacudir as victimas de crimes ou desastres,<br />

nem de dia, senão nos casos e pela fôrma prescriptos na lei.<br />

§ 12. Em qualquer assumpto é livre a manifestação de<br />

pensamento p?la imprensa ou pela tribuna, sem dependência<br />

de censura, respondendo cada um pelos abusos que commetter,<br />

nos casos e pela fôrma que a lei determinar. Não é<br />

permittido o anonymato.<br />

§ 13. A' excepção do flagrante delicto, a prisão não poderá<br />

executar-se senão depois de pronuncia do indiciado,<br />

salvos os casos determinados em lei, e mediante ordem escripta<br />

da autoridade competente.<br />

§ 14. Ninguém poderá ser conservado cm prisão sem<br />

culpa formada, salvas as ^xeepções especificadas em lei, nem<br />

levado á prisão ou nella detido, se prestar fiança idônea, nos<br />

casos em que a lei a admittir.


\<br />

DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 21<br />

§ 15. Ninguém será senlenciado senão pela autoridade<br />

competente, em virtude de lei anterior e na fôrma por ella<br />

regulada.<br />

§ 16. Aos accusados se assegurará na lei a mais plena<br />

defesa, com todos os recursos e meios essenciaes a ella, clesde<br />

a nota de culpa, entregue em vinte e quatro horas ao preso e<br />

assignada pela autoridade competente, com cs nomes do accusador<br />

e das testemunhas.<br />

§ 17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua<br />

plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade<br />

publica, mediante indemnisação prévia.<br />

As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as<br />

limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração<br />

deste ramo de industria.<br />

§ 18. E' inviolável o sigillo da correspondência.<br />

§ 19. Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente.<br />

§ 20. Fica abolida a pena de galés e a de banimento<br />

judicial.<br />

§21. Fica igualmente abolida a pena de morte, reservadas<br />

as disposições da legislação militar em tempo de guerra.<br />

§ 22. Dar-se-ha o hcibeas-coj'pus sempre que o individuo<br />

soffrer ou se achar em imminente perigo de soffrer violência<br />

ou cGacção por illegalidade ou abuso de poder.<br />

§ 23. A' excepção das causas que, por sua natureza,<br />

pertencem a juizes especiaes, não haverá foro privilegiado.<br />

§ 24, E' garantido o livre exercicio de qualquer profissão<br />

moral, intellectual e industrial.<br />

§ '25. Os inventos industriaes'pertencerão aos seus autores,<br />

aos quaes ficará garantido por Jei um privilegio temporário,<br />

ou será concedido pelo Congresso um prêmio razoável<br />

quando haja conveniência de vulgarisar o invento.<br />

§ 26. Aos autores de obras litterarias e artísticas é garantido<br />

o direito exclusivo de reproduzil-as pela imprensa<br />

ou por qualquer outro processo mecânico. Os herdeiros dos<br />

autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar.<br />

§. 27. A lei assegurará também a propriedade dos marcas<br />

de fabrica.<br />

§ 28. Por motivo de crença ou de funeção religiosa,<br />

nenhum cidadão brazileiro poderá ser privado de seus direitos<br />

civis e políticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer<br />

dever civico.<br />

§ 29. Os queallegarem motivo de crença religiosa com o<br />

fim de se isentarem de qualquer onus quo as leis da Hepu-<br />

**/6


9 ■> CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

blica imponham aos cidadãos, cos que aceitarem condecoração<br />

ou títulos nobiliarchicos estrangeiros perderão todos os direitos<br />

políticos.<br />

§ 30. Nenhum imposto de qualquer natuteza poderá ser<br />

cobrado senão em virtude de uma lei que o autorise.<br />

§ 31. E'mantida a instituição do jury.<br />

Art. 73. Os cargos públicos civis ou militares são accessiveis<br />

a todos os brazileiros, observadas as condições de<br />

capacidade especial que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas<br />

as accumulações remuneradas.<br />

Art. 74. Às patentes, os postos e os cargos inamovivois<br />

são garantidos em toda a sua plenitude.<br />

Art. 75. A aposentadoria só poderá ser dada aos funccionarios<br />

públicos em caso de invalidez no serviço da nação.<br />

Art. 76. Os ofíiciaes do exercito e da armada só perderão<br />

suas patentes por condem nação em mais de dous annos<br />

de prisão passada em julgado nos tribunaes competentes.<br />

Art. 77. Os militares de terra e mar terão foro especial<br />

nos delictos militares.<br />

§ 1.° Este foro compôr­se­ha de um Supremo Tribunal<br />

Militar, cujos membros serão vitalicios, e dos conselhos necessários<br />

para a formação da culpa c julgamento dos crimes.<br />

§ 2.° A organisação eattribuições do Supremo Tribunal<br />

Militar serão reguladas por lei.<br />

Art. 78. A especificação das garantias e direitos expressos<br />

na Constituição não exclue outras garantias e direitos<br />

não enumerados, mas resultantes da fôrma de governo que<br />

ella estabelece e dos princípios que consigna.<br />

TITULO V<br />

Disposições


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 23<br />

§ 2.° Este, porém, durante o estado de sitio, restingir-seha<br />

ás medidas de repressão contra as pessoas a impor :<br />

l.o À detenção em logar não destinado aos réos de crimes<br />

communs ;<br />

"2.° O desterro para outros silios do território nacional.<br />

§ 3 o Logo que se reunir o Congresso, o presidente da<br />

Republica lhe relatará, motivando-as, as medidas de excepção<br />

que houverem sido tomadas.<br />

§ 4.° As autoridades que tenhão ordenado taes medidas<br />

são responsáveis pelos abusos commettidos.<br />

Art. 81. Os processos findos, em materia crime, poderão<br />

ser revistos a qualquer tempo, em beneficio dos condemnados,<br />

pelo Supremo Tribunal Federal, para reformar ou confirmar<br />

a sentença.<br />

§ 1.° A lei marcará os casos e a fôrma da revisão, que<br />

poderá ser requerida pelo sentenciado, por qualquer do povo,<br />

ou ex-officio pelo procurador geral da Republica.<br />

§ 2.° Na revisão não podem ser aggarvadas as penas da<br />

sentença revista.<br />

§ 3.° As disposições do presente artigo são extensivas<br />

aos processos militares.<br />

Art. 82. Os funecionarios públicos são estrictamente<br />

responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no<br />

exercício de seus cargos, assim como pela indulgenciaou negligencia<br />

em não responsahiiisarem effectivamente os seus<br />

subalternos.<br />

Paragraphe único. O funecionario <strong>publico</strong> obrigar-se-ha<br />

por compromisso formal, no acto da posse, ao desempenho<br />

dos seus deveres legaes.<br />

Art. 83. Continuão cm vigor, emquanto não revogadas,<br />

as leis do antigo regimen no que explicita ou implicitamente<br />

não for contrario ao svstema de governo firmado pela Constituição<br />

e aos principios nella consagrados.<br />

Art. 84. O governo da União affiança o pagamento da<br />

divida publica interna e externa.<br />

Art. 85. Os oflieiaes do quadro e das classes annexas da<br />

armada terão as mesmas patentes e vantagens que os do exercito<br />

nos cargos de categoria correspondente.<br />

Art. 86. Todo o brazileiro é obrigado ao serviço militar,<br />

em defesa da pátria e da Constituição, na fôrma das leis federaes.<br />

Art. 87. O exercito federal compor-se-ha de contingentes<br />

que os Estados e o Districto Federal são obrigados a fornecer,<br />

constituídos de conformidade com a lei annua de fixação<br />

de forças.<br />

JW±


24 CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

§ l.o Uma lei federal determinará a organisação geral<br />

do exercito, de accòrdocom o n. 18 do art. 34.<br />

§ 2." A União se encarregará da instrucção militar dos<br />

corpos e armas e instrucção militar superior.<br />

§ 3.° Fica abolido o recrutamento militar forçado.<br />

§ 4.° O exercito e a armada compor-se-hão pelo voluntariado,<br />

sem prêmio, e na falta deste, pelo sorteio, previamente<br />

organisado.<br />

Concorrem para o pessoal da armada a escola naval, as<br />

de aprendizes marinheiros e a marinha mercante mediante<br />

sorteio.<br />

Art. 8K. Os Estados Unidos do Brazil, em caso algum,<br />

se empenharão em guerra de conquista, directa ou indirectamente,<br />

por si ou em aliança com outra nação.<br />

Art. 89. E' instituído um tribunal de contas para liquidar<br />

as contas da receita e despeza e verificar a sua legalidade,<br />

antes de serem prestadas ao Congresso.<br />

Os membros deste tribunal serão nomeados pelo presidente<br />

da Republica com approvação do senado, e somente<br />

perderão os seus logares por sentença.<br />

Art. 90. A Constituição poderá ser reformada, por iniciativa<br />

do Congresso Nacional ou das assemblers dos Estados.<br />

§ 1.° Considerar-se-ha proposta a reforma, quando, sendo<br />

apresentada por uma quarta parte, pelo menos, dos membros<br />

de qualquer das câmaras do Congresso Nacional, fôr acceita<br />

em três discussões, por dous terços dos votos em uma e em<br />

outra câmara, ou quando fôr solicitada por dous terços dos<br />

Estados, no decurso de um anno, representado cada Estado<br />

pela maioria de votos de sua assembléa.<br />

§ 2.° Essa proposta dar-se-ha porapprovada, si no anno<br />

seguinte o fôr, mediante três discussões, por maioria de dous<br />

terços dos votos nas duas câmaras do Congresso.<br />

§ 3.° A proposta approvada publicar-se-ha com as assignaturas<br />

dos presidentes e secretários das duas câmaras, e<br />

incorporar-se-ha á Constituição como parte integrante delia.<br />

§ 4.° Não poderão ser admittidos como objecto de deliberação,<br />

no Congresso, projectos tendentes a abolir a fôrma<br />

republicana-federativa, ou a igualdade da representação dos<br />

Estados no senado.<br />

Art. 91. Approvada esta Constituição, será promulgada<br />

pela mesa do Congresso e assignada pelos membros<br />

deste.


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 25<br />

DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS<br />

Art. 1.° Promulgada esta Constituição, o Congresso,<br />

reunido em assembléa geral, elegerá em seguida, por maioria<br />

absoluta do votos, na primeira votação, e, si nenhum candidito<br />

a obth er, por maioria relativa na segunda, o presidente<br />

e o vice-pr 'sidente dos Estados Unidos do Brazil.<br />

§ 1.° Essa eleição será feita em dous escrutinios distinctes<br />

para o presidente, e o vice-presidente respectivamente,<br />

recebendo-se e apurando-se em primeiro logar as cédulas para<br />

presidente, e procedendo-se em seguida do mesmo modo para<br />

o vice-presidente.<br />

§ 2.° O presidente e o vice-presidente, eleitos na fôrma<br />

deste artigo, oecuparão a presidência e a vice-presidencia da<br />

Republica durante o primeiro periodo presidencial.<br />

§ 3.° Para essa eleição não haverá incompatibilidades.<br />

§ 4.° Concluída ella, o Congresso dará por terminada a<br />

sua missão constituinte, e, separando-se em câmara e senado,<br />

encetará o exercicio de suas funeções normaes a 15 de Junho<br />

do corrente anno, não podendo em hypothèse alguma ser dissolvido.<br />

§ 5.° No primeiro anno da primeira legislatura, logo nos<br />

trabalhos preparatórios, discriminará o senado o primeiro e<br />

segundo terço de seus membros, cujo mandato ha de cessar no<br />

termo do primeiro e do segundo triennios.<br />

§ 6.° Essa discriminação effectuar-se-ha em três listas,<br />

correspondentes aos três terços, graduando-se os senadores de<br />

cada Estado e os do Districto Federal pela ordem de sua votação<br />

respectiva, de modo que se distribua ao terço do ultimo<br />

triennio o primeiro votado no Districto Federal e em cada um<br />

dos Estados, e aos dous terços seguintes os outros dous nomes<br />

na escala dos suffragios obtidos.<br />

§ 7.° Em caso de empate, considerar-se-hão favorecidos<br />

os mais velhos decidindo-se por sorteio quando a idade fôr<br />

igual.<br />

Art. 2.° O estado que até ao fim cio anno de 1892 não<br />

houver decretado a sua constituição, serásubmettido, por acto<br />

do Congresso, á do um dos outros, que mais conveniente a<br />

essa adaptação parecer, até que o Estado sujeito a esse regimen<br />

a reforme, pelo processo nella determinado.<br />

Art. 3.° A' proporção que os Estados se forem organizando,<br />

o governo federaljentregar-lhes-ha a administração dos<br />

4<br />

*m


2G CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA<br />

serviços, que pela Constituição lhes competirem, e liquidará<br />

a responsabilidade da administração federai no tocante a esses<br />

serviços e ao pagamento do pessoal respectivo.<br />

Art. 4.° Emquanto os Estados se occuparem em regularizar<br />

as despezas, durante o período de organização dos<br />

seus serviços, o governo federal abri :--lhes-ha para esse fim<br />

créditos cspeciaes, segundo as condições estabelecidas por lei.<br />

Art. 5.° Nos Estados que se forem organizando, entrará<br />

em vigor a classificação das rendas estabelecidas na Constituição.<br />

Art. 6.° Nas primeiras nomeações para a magistratura<br />

federal e para a dos Estados serão preferidos os juizes de direito<br />

e os desembragadores de mais nota.<br />

Os que não forem admittidos na nova organização judiciaria,<br />

e tiverem mais de 30 annos de exercício, serão aposentados<br />

com todos os seus vencimentos.<br />

Os que tiverem menos de 30 annos de exercício continuarão<br />

a perceber seus ordenados, até que sejam aproveitados<br />

ou aposentados com ordenado correspondente ao tempo<br />

de exercício.<br />

As despezas com os magistrados aposentados ou postos<br />

em disponibilidade serão pagas pelo governo federal.<br />

Art. 7." E' concedida a D. Pedro de Alcantara, ex-imperador<br />

do Brazil, uma pensão que, a contar de 15 de Novembro<br />

de 1889, garanta-lhe por todo o tempo de sua vida, subsistência<br />

decente. O Congresso ordinário, em sua primeira reunião,<br />

fixará o quantum desta pensão.<br />

Art. 8.° O governo federal adquirirá para a nação a casa<br />

em que falleceu o Dr. Benjamin Constant Botelho de Magalhães<br />

e nella mandará collocar uma lapide em homenagem á<br />

memória do grande patriota—o fundador da Republica.<br />

Paragrapho único. A viuva do mesmo Dr. Benjamin<br />

Constant terá, emquanto viver, o usofrueto da casa mencionada.<br />

Mandamos, portanto, a todas as autoridades a quem o<br />

conhecimento e execução desta Constituição pertencer, que a<br />

executem e façam executar e observar fiel e inteiramente como<br />

nella se contém.<br />

Publique-se e cumpra-seem todo o território da Nação.—<br />

Sala das sessões do Congresso Nacional Constituinte, 3.° da<br />

Republica, na cidade do Rio de Janeiro, em 24 de Fevereiro<br />

de 1891.— Prudente José de Moraes Barros, presidente do<br />

Congresso, senador por S. Paulo.— Antonio Euzebio Gonçalves<br />

de Almeida, vice-presidente do Congresso^ deputado


DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL 27<br />

peJa Baiaia. — Dr. João da Matt a Machado, 1." secretario,<br />

aeputarli/.-p'Jo Estado de Minas-Geraes.— Dr, José Paes de<br />

Carvalho, 2.° secretario, senador pelo Estado do Pará.— Tenente-coronel<br />

João Soares Neiva, 3.° secretario, senador pelo<br />

Estado da Parahyba.— Eduardo Mendes Gonçalves, 4.° secretario,<br />

deputado pelo Estado do Paraná.<br />

( Seguem-se as assignaturas dos senadores e deputados<br />

presentes).<br />

M


Titulo I.— Da organização federal.— Disposições pre- ,,<br />

liminares 1<br />

DO PODER LEGISLATIVO.<br />

Capitulo I.— Disposições geraes 4<br />

Capitulo II.— Da câmara dos deputados v... 6<br />

Capitulo III.— do senado 6<br />

Capitulo IV.— Das attribuiçoes do Congresso 7<br />

Capitulo V.— Das leis e resoluções 9<br />

S E O Ç Ã O II<br />

DO PODER EXECUTIVO.<br />

Capitulo I.— Do presidente e do Vice-presidente 10<br />

Capitulo II.— Da eleição de presidente e vice-presidente<br />

11<br />

Capitulo III.— Das attribuiçoes cio poder executivo.... 12<br />

Capitulo IV.— Dos ministros do Estado 13<br />

Capitulo V.— Da responsabilidade do presidente 14<br />

DO PODER JUDICIÁRIO 15<br />

Titulo II.— Dos estados 17<br />

Titulo III.— Do município 18<br />

Titulo IV.— Dos cidadãos brazileiros 18<br />

Secção I.— Das qualidades de cidadão brazileiro 38<br />

Secção II.—Declaração de direitos 19<br />

Titulo V.— Disposições geraes 22<br />

— Disposições transitórias , 25<br />

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