21.04.2013 Views

Desenvolvimento territorial: a associação de produtores ... - SOBER

Desenvolvimento territorial: a associação de produtores ... - SOBER

Desenvolvimento territorial: a associação de produtores ... - SOBER

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>territorial</strong>: a <strong>associação</strong> <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais <strong>de</strong> São José do Cerrito (SC)<br />

A<strong>de</strong>mir Antonio Cazella 1<br />

Givanildo Roque Furlanetto 2<br />

Mário Luiz Vincenzi 3<br />

Resumo: Localizado no planalto catarinense e estando entre os municípios com menor Índice <strong>de</strong><br />

<strong>Desenvolvimento</strong> Humano (IDH) do estado, nos últimos <strong>de</strong>z anos tem-se verificado um aumento<br />

da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituições que, <strong>de</strong> alguma forma, almejam o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> São José do<br />

Cerrito. O objetivo <strong>de</strong>ste artigo é analisar os impactos socioeconômicos <strong>de</strong>correntes da<br />

organização da Associação <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais e das duas feiras anuais <strong>de</strong> gado bovino<br />

promovidas pela mesma. Essa Iniciativa local <strong>de</strong> ação coletiva, empreendida por pecuaristas,<br />

extensionistas rurais e o po<strong>de</strong>r público municipal, representa um importante mecanismo <strong>de</strong><br />

criação <strong>de</strong> capital social, pressuposto básico para a promoção do <strong>de</strong>senvolvimento. As<br />

informações aqui utilizadas foram obtidas através <strong>de</strong> entrevistas com os membros da diretoria e<br />

com pecuaristas associados. Nesse sentido, onze <strong>produtores</strong> e seus respectivos estabelecimentos<br />

agropecuários foram visitados, <strong>de</strong> um total <strong>de</strong> oitenta membros. De 1998 a 2003, a Associação <strong>de</strong><br />

<strong>produtores</strong>, apesar <strong>de</strong> incipiente, já realizou nove feiras <strong>de</strong> gado bovino, mobilizando ven<strong>de</strong>dores<br />

e compradores da região e do município, dinamizando a economia local e, não menos importante,<br />

aumentando a confiança mútua entre os pecuaristas.<br />

Palavras-chave: Associativismo; Capital Social; Território.<br />

Introdução<br />

Dois conceitos complementares perpassam as idéias discutidas neste artigo. O primeiro<br />

refere-se à noção <strong>de</strong> território tido como um elemento ativo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, que apresenta<br />

uma correlação direta com a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e as inter-relações das instituições formais e informais<br />

existentes numa dada região (Ab<strong>de</strong>lmalki et al., 1996). O segundo diz respeito ao estoque <strong>de</strong><br />

capital social presente nesse território, cuja intensida<strong>de</strong> está relacionada ao grau <strong>de</strong> confiança que<br />

os diferentes atores sociais estabelecem entre si. As características principais <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> capital<br />

resi<strong>de</strong>m, primeiro, no fato <strong>de</strong>le ser <strong>de</strong> uso coletivo, ao contrário da maioria dos <strong>de</strong>mais tipos <strong>de</strong><br />

capital que são <strong>de</strong> caráter privado, e, segundo, <strong>de</strong> aumentar sua intensida<strong>de</strong>, ao invés <strong>de</strong> diminuir,<br />

à medida que for sendo utilizado. Esse acréscimo <strong>de</strong> capital social se <strong>de</strong>ve à instauração <strong>de</strong><br />

círculos virtuosos capazes <strong>de</strong> transformar um <strong>de</strong>terminado grau <strong>de</strong> confiança dos atores locais<br />

num dado montante <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> capital que, por sua vez, ten<strong>de</strong> a aumentar o grau <strong>de</strong><br />

confiabilida<strong>de</strong> dos atores, e assim sucessivamente (Putman, 1996).<br />

O texto encontra-se subdividido em duas partes principais. Na primeira discute-se a<br />

importância da agricultura familiar na dinâmica <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das zonas rurais brasileiras.<br />

Procura-se apresentar, em particular, um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> análise que possibilite compreen<strong>de</strong>r o<br />

significado do território enquanto um elemento ativo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Na segunda parte<br />

1 Professor adjunto do Centro <strong>de</strong> Ciências Agrárias da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina -CCA/UFSC.<br />

C.P.476, 88040-900, Florianópolis, SC, fone (48) 331-5357; e-mail: acazella@cca.ufsc.br<br />

2 Engenheiro Agrônomo, ex-bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica do CNPq, extensionista rural da Cooperativa COAMO -<br />

Araruna/PR; fone: (44) 562-1382 - Ramal 216, e-mail: GFurlanetto@coamo.com.br<br />

3 Professor titular do Centro <strong>de</strong> Ciências Agrárias da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina -CCA/UFSC. C.P.476,<br />

88040-900, Florianópolis, SC, fone (48) 331-5360; e-mail: vincenzi@cca.ufsc.br


ecorre-se a um estudo <strong>de</strong> caso <strong>de</strong>senvolvido no município <strong>de</strong> São José do Cerrito (SC). Dessa<br />

forma, analisa-se a história <strong>de</strong> criação da “Associação <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais” e os impactos<br />

socioeconômicos suscitados pelas feiras <strong>de</strong> gado bovino promovidas por essa organização.<br />

Preten<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>monstrar que iniciativas locais <strong>de</strong>ssa natureza po<strong>de</strong>m representar um importante<br />

mecanismo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> uma base institucional, consi<strong>de</strong>rada indispensável aos processos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento rural. As informações aqui analisadas provêm <strong>de</strong> entrevistas com os membros<br />

da diretoria da <strong>associação</strong> e com seus associados. Nesse sentido, onze <strong>produtores</strong>, <strong>de</strong> um total <strong>de</strong><br />

oitenta membros, foram visitados. A escolha dos entrevistados buscou contemplar os diferentes<br />

níveis tecnológicos dos sistemas produtivos existentes 4 .<br />

As entrevistas foram precedidas <strong>de</strong> uma visita aos estabelecimentos rurais para avaliar as<br />

condições das instalações e <strong>de</strong> manejo dos animais, bem como o interesse e envolvimento do<br />

produtor na <strong>associação</strong> e nas feiras. Alguns aspectos do sistema <strong>de</strong> produção foram analisados,<br />

com o intuito <strong>de</strong> perceber a adoção <strong>de</strong> melhorias técnico-produtivas difundidas pela <strong>associação</strong>.<br />

Dentre essas melhorias <strong>de</strong>staca-se a qualida<strong>de</strong> das pastagens e as condições <strong>de</strong> manejo dos<br />

animais. O baixo padrão zootécnico da pecuária do município é uma reputação que se encontra<br />

difundida na região, estando inclusive incutida no próprio discurso <strong>de</strong> alguns <strong>produtores</strong> locais.<br />

1- Da “pequena produção” à agricultura familiar<br />

Esta análise é parte integrante do estudo realizado por Cazella (2002a), que busca explorar<br />

as inter-relações e, da mesma forma, a falta <strong>de</strong> articulação entre as iniciativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

local e os diferentes segmentos sociais da agricultura familiar. No Brasil, a difusão do enfoque <strong>de</strong><br />

agricultura familiar no início dos anos 1990 evi<strong>de</strong>nciou, pouco a pouco, as limitações do conceito<br />

<strong>de</strong> pequena produção, até então, amplamente difundida. Mesmo assim, essa última expressão é<br />

ainda utilizada para se referir às unida<strong>de</strong>s agrícolas familiares, presentes em todas as regiões do<br />

país, apesar do seu precário enquadramento nas políticas públicas formuladas para o setor<br />

agrícola. Duas obras publicadas na primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1990 estão diretamente na<br />

origem da introdução da agricultura familiar no <strong>de</strong>bate sobre o <strong>de</strong>senvolvimento rural.<br />

No meio universitário, a tese <strong>de</strong> Ricardo Abramovay (1992) teve o gran<strong>de</strong> mérito, <strong>de</strong>ntre<br />

outros, <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que a agricultura <strong>de</strong> países mais <strong>de</strong>senvolvidos, tais como a França e<br />

mesmo os Estados Unidos da América, têm como base a existência <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s agrícolas<br />

familiares altamente produtivas. O autor chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que a agricultura familiar<br />

não <strong>de</strong>veria ser entendida, necessariamente, como sinônimo <strong>de</strong> pequena produção – como ainda<br />

ocorre freqüentemente no Brasil.<br />

O segundo documento foi elaborado por um grupo <strong>de</strong> pesquisadores atuando sob a égi<strong>de</strong><br />

da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), em parceria com<br />

o Instituto Nacional <strong>de</strong> Colonização e <strong>de</strong> Reforma Agrária. O relatório final <strong>de</strong>sse estudo,<br />

amplamente divulgado, sobretudo, no meio sindical agrícola, apresenta uma tipologia das<br />

modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção agropecuárias existentes no país, <strong>de</strong>stacando o peso estratégico da<br />

agricultura familiar no mercado interno dos produtos agro-industriais. O número <strong>de</strong><br />

estabelecimentos agrícolas, classificados em três categorias <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s familiares<br />

4 Agra<strong>de</strong>cemos o Plano Sul <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação – CNPq- pela concessão <strong>de</strong> uma bolsa <strong>de</strong> Iniciação<br />

Científica ao nosso sub-grupo <strong>de</strong> pesquisa e ao FUNPESQUISA 2002 (UFSC) pelo apoio financeiro às ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

campo.<br />

2


(“consolidada”, “em transição” e “periférica”), ultrapassa amplamente o número <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s<br />

patronais, nas quais predomina a mão-<strong>de</strong>-obra assalariada. Recentemente, o Censo Agropecuário,<br />

realizado no ano agrícola 1995/1996, i<strong>de</strong>ntificou cerca <strong>de</strong> 5.100.000 explorações agrícolas, <strong>de</strong>ntre<br />

as quais 28,4% patronais e 71,6% familiares.<br />

Essa constatação, pouco reconhecida num país on<strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>s proprietários rurais<br />

sempre ocuparam um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nas arenas <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão política, forneceu um<br />

certo reconhecimento político aos trabalhos empreendidos por numerosas ONGs e movimentos<br />

sociais, implicados na valorização e inserção dos pequenos <strong>produtores</strong> nas dinâmicas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento do meio rural. A partir <strong>de</strong> então, o interesse pelo tema da agricultura familiar se<br />

expandiu rapidamente. No meio científico, um programa <strong>de</strong> pesquisa foi criado pela empresa<br />

pública responsável pela pesquisa agronômica e as publicações sobre o tema não pararam <strong>de</strong><br />

crescer. Pela primeira vez na história do país, uma política <strong>de</strong> financiamento, <strong>de</strong>stinada<br />

exclusivamente à agricultura familiar, foi lançada pelo governo fe<strong>de</strong>ral, e os agricultores<br />

familiares tornaram-se os principais atores <strong>de</strong> inúmeras iniciativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento local.<br />

2- Do espaço banal ao território <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

A noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento local foi introduzida um pouco mais tar<strong>de</strong> no Brasil, mas<br />

associada <strong>de</strong> certa forma ao <strong>de</strong>bate sobre a agricultura familiar. Aqui são mais as ONGs e,<br />

principalmente, aquelas com vocação agrícola que a adotam, procurando legitimar publicamente<br />

o trabalho já <strong>de</strong>senvolvido na esfera local. Em razão do enfraquecimento gradativo dos diversos<br />

serviços do Estado e da amplitu<strong>de</strong> e ressonância alcançadas pelos movimentos sociais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

fim da ditadura militar em 1985, várias organizações não governamentais expandiram, ao mesmo<br />

tempo, suas funções e seu reconhecimento sociopolítico.<br />

A nova Constituição <strong>de</strong> 1988 ampliou as competências dos municípios em praticamente<br />

todas as áreas da intervenção pública. Passou-se, então, a discutir a “municipalização” dos<br />

serviços ligados à saú<strong>de</strong>, à educação e ao <strong>de</strong>senvolvimento rural. Instituições como o Programa<br />

das Nações Unidas para o <strong>Desenvolvimento</strong> (PNUD) e a Confe<strong>de</strong>ração Nacional dos<br />

Trabalhadores na Agricultura - a mais importante organização sindical agrícola do país –<br />

passaram a introduzir em seus discursos programáticos e em suas ações a noção <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento local.<br />

Segundo Cazella (2002a), a construção do pensamento acerca do <strong>de</strong>senvolvimento local<br />

está associada a fenômenos socioeconômicos e políticos diversos. A título didático, po<strong>de</strong>-se<br />

dividir a análise em dois gran<strong>de</strong>s domínios que, embora intrinsecamente articulados, apresentam<br />

um certo número <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>s: as bases sócio-políticas e as bases econômicas do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento local.<br />

Nesta revisão vamos priorizar o segundo aspecto em virtu<strong>de</strong> da sua correlação com o tema<br />

<strong>territorial</strong>. As abordagens <strong>de</strong> caráter mais econômico do <strong>de</strong>senvolvimento local interpretam a<br />

noção <strong>de</strong> território enquanto um elemento ativo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Nesse campo <strong>de</strong><br />

conhecimento, existe um consenso sobre o papel pioneiro dos economistas e sociólogos italianos<br />

no processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>scoberta da importância dos chamados distritos industriais e da proximida<strong>de</strong><br />

econômica na dinâmica <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento regional. Os estudos sobre a experiência da<br />

“Terceira Itália” iniciaram no final dos anos 1970. Esse vocábulo foi introduzido na literatura<br />

especializada por Arnaldo Bagnasco, para <strong>de</strong>nominar as zonas italianas situadas nas regiões<br />

centro e nor<strong>de</strong>ste do país, que se diferenciam do ponto <strong>de</strong> vista socioeconômico <strong>de</strong> duas outras<br />

3


gran<strong>de</strong>s regiões italianas: a noroeste, o triângulo constituído pelas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Milão, Turim e<br />

Gênova e, ao sul, o Mezzogiorno.<br />

Se as gran<strong>de</strong>s estruturas industriais predominam no primeiro caso e se o atraso <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento é onipresente no segundo, a Terceira Itália se distingue pela sua dinâmica <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento particular, <strong>de</strong>corrente da presença <strong>de</strong> inúmeras Pequenas e Médias Empresas<br />

(PME). As PME constituem o cerne do mo<strong>de</strong>lo chamado correntemente <strong>de</strong> “industrialização<br />

difusa” na Itália. No seio da União Européia, esse país apresenta o maior número <strong>de</strong> empresas<br />

industriais e comerciais por mil habitantes: 68 contra, por exemplo, 35 na França e 46 na<br />

Inglaterra.<br />

A análise <strong>de</strong>ssa experiência reabilitou o conceito <strong>de</strong> distrito industrial introduzido por<br />

Alfred Marshall no fim do século XIX. Marshall havia percebido na época que a proximida<strong>de</strong><br />

geográfica das PME <strong>de</strong> uma mesma ca<strong>de</strong>ia industrial é criadora <strong>de</strong> rendimentos crescentes<br />

<strong>de</strong>vidos à difusão <strong>de</strong> vantagens tecnológicas específicas. Para Becattini (1992), um dos autores<br />

pioneiros dos estudos ditos “neo-marshallianos”, o fato do fenômeno ser concreto e perdurar<br />

justifica sua importância. A <strong>associação</strong> recente entre as noções <strong>de</strong> território e <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

é, <strong>de</strong>ssa forma, largamente tributária das abordagens sobre a reestruturação industrial.<br />

3- O território como uma criação coletiva e institucional<br />

Os estudos a partir das experiências italianas dos distritos industriais são, sem dúvida, as<br />

formulações contemporâneas mais exaustivas sobre a incorporação <strong>de</strong> dimensões históricas, mas<br />

principalmente espaciais nas análises sobre o <strong>de</strong>senvolvimento. Des<strong>de</strong> então, a compreensão do<br />

fato que as empresas levam em consi<strong>de</strong>ração os atributos do espaço nos seus cálculos<br />

econômicos se tornou um objeto <strong>de</strong> estudo cuja importância só tem aumentado.<br />

Inicialmente, é preciso remarcar que a concepção <strong>de</strong> território não representa uma<br />

unanimida<strong>de</strong>, em especial entre os especialistas interessados pelas políticas <strong>de</strong> reorganização do<br />

território. Uma contracorrente insiste em <strong>de</strong>monstrar que a urbanização generalizada da<br />

socieda<strong>de</strong> atual anula as potencialida<strong>de</strong>s e mesmo os trunfos do território. A justiça espacial<br />

passaria atualmente pela “uniformida<strong>de</strong> do território” e a cida<strong>de</strong> representa o que a socieda<strong>de</strong> tem<br />

<strong>de</strong> melhor para garantir a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s para o conjunto da população. O rural ten<strong>de</strong><br />

a per<strong>de</strong>r expressão na medida que os agricultores se tornaram uma minoria social. A socieda<strong>de</strong><br />

contemporânea se organiza cada vez mais em forma <strong>de</strong> re<strong>de</strong> que ten<strong>de</strong>m a enfraquecer o po<strong>de</strong>r<br />

explicativo do enfoque <strong>territorial</strong> (Levy, 1993 e 1994).<br />

No entanto, inúmeras pesquisas vão no sentido inverso da abordagem acima. O trabalho<br />

<strong>de</strong> Carneiro (1998) evi<strong>de</strong>ncia que a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ações nas zonas rurais, a exemplo da<br />

reinvenção das festas comunitárias, o turismo rural, o i<strong>de</strong>al ecológico... é portadora <strong>de</strong> valores<br />

culturais urbanos e rurais, que paradoxalmente reforçam as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s ameaçadas. O espaço,<br />

seja ele rural ou urbano, é interceptado por campos <strong>de</strong> relações sociais diferentes, que constituem<br />

um sistema social, por vezes, <strong>de</strong> uma nova natureza. Esse “hibridismo cultural” torna ina<strong>de</strong>quada<br />

a <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> uma cultura ou <strong>de</strong> um grupo social através do espaço físico. Na realida<strong>de</strong>, “<strong>de</strong>sse<br />

reencontro nasce uma cultura singular que não é nem rural, nem urbana”.<br />

Segundo Lacour (1985), as análises espaciais e do <strong>de</strong>senvolvimento se ignoraram<br />

mutuamente até a crise econômica dos anos 1970. Após quase vinte e cinco anos <strong>de</strong> interesses<br />

separados, as reflexões que procuram reler e religar esses temas ganharam mais importância.<br />

Assim, o “espaço-lugar” <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, ou seja aquele que serve somente como suporte das<br />

ativida<strong>de</strong>s econômicas, é substituído pela idéia <strong>de</strong> “espaço-território”, portador <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong><br />

cultura, além <strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

4


As naturezas <strong>de</strong>sses dois espaços foram aprofundadas por Pecqueur (1987), para quem o<br />

espaço-território se diferencia do espaço-lugar pela sua “construção” a partir do dinamismo dos<br />

indivíduos que nele habitam. A noção <strong>de</strong> território é aqui o resultado da confrontação dos espaços<br />

individuais dos atores nas suas dimensões econômicas e sociais. O território não se opõe ao<br />

espaço-lugar, mas o complementa.<br />

A interpretação realizada por Brunet (1990) sobre esse assunto reforça e aprofunda essa<br />

dicotomia do espaço. O território representa, ao mesmo tempo, o espaço banal e o espaço vivido<br />

pelos indivíduos. O primeiro não é outra coisa que a superfície <strong>de</strong> terra facilmente quantificada,<br />

enquanto o segundo contem a idéia <strong>de</strong> criação do espaço pela apropriação, pertencimento e uso<br />

coletivo. Ele é “a forma objetivada e consciente do espaço”.<br />

Estudos mais recentes recorrem à idéia que o território é algo provisório, inacabado e <strong>de</strong><br />

difícil <strong>de</strong>finição, que se encontra em constante mudança. As ações coletivas mercantis e não<br />

mercantis dos atores sociais lhe dão existência. Dessa forma, o território resulta <strong>de</strong> uma criação<br />

coletiva e institucional. A pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> existência das instituições po<strong>de</strong> ser<br />

distinguida em dois grupos. As instituições informais, como os costumes e as representações<br />

coletivas da socieda<strong>de</strong>, e as instituições formais, que “exercem o duplo papel, estrutural e<br />

cognitivo, complementar àquele das prece<strong>de</strong>ntes; elas atenuam, <strong>de</strong> certa forma, a insuficiência <strong>de</strong><br />

instituições informais para organizar o sistema econômico, e elas têm uma existência concreta e<br />

construída” (Ab<strong>de</strong>lmalki et al, 1996, p.182).<br />

A criação coletiva e institucional do território está associada à idéia que a transformação<br />

das proprieda<strong>de</strong>s do espaço banal po<strong>de</strong> gerar e maximizar o processo <strong>de</strong> valorização dos diversos<br />

recursos <strong>de</strong>sse espaço. A “<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>territorial</strong>” <strong>de</strong> um espaço explica a construção e as<br />

características <strong>de</strong> um território. Com isso, duas proprieda<strong>de</strong>s fundamentais do território aparecem<br />

a partir <strong>de</strong>ssa análise: a) ele é uma realida<strong>de</strong> em evolução; b) ele é o resultado simultâneo do<br />

“jogo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r” e dos “compromissos estabilizados”.<br />

O <strong>de</strong>safio da análise institucional <strong>de</strong> um território é conseguir extrapolar o empirismo<br />

<strong>de</strong>scritivo, sobretudo das instituições formais, abordando as lógicas <strong>de</strong> funcionamento e a<br />

sustentabilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senvolvimento do território em questão. Além disso, torna-se evi<strong>de</strong>nte que<br />

os aparatos institucionais que jogam a favor do <strong>de</strong>senvolvimento não são os mesmos sobre todos<br />

os territórios. Eles são variáveis e alguns figuram como exceção, o que torna impossível imaginar<br />

um mo<strong>de</strong>lo geral para o <strong>de</strong>senvolvimento. Dessa forma, o recurso à pesquisa empírica se impõe<br />

como uma condição indispensável para se evitar a reprodução <strong>de</strong> ensaios reducionistas <strong>de</strong> cunho<br />

econômico ou marcados por consi<strong>de</strong>rações excessivamente i<strong>de</strong>ologizadas. Essa abordagens<br />

<strong>de</strong>svalorizam, com efeito, o recurso às pesquisas <strong>de</strong> campo realizadas <strong>de</strong> uma perspectiva<br />

sistêmica e comparativa 5 .<br />

4- São José do Cerrito: construindo o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

Localizado a 256Km <strong>de</strong> Florianópolis, o município <strong>de</strong> São José do Cerrito pertence à<br />

região do Planalto Serrano e microrregião Campos <strong>de</strong> Lages. A exemplo da maioria dos<br />

municípios do planalto catarinense sua população <strong>de</strong>cresceu cerca <strong>de</strong> 31% nos últimos trinta<br />

anos. Com uma população atual <strong>de</strong> 10 364 habitantes, a economia do município está centrada na<br />

agropecuária: 79,3% <strong>de</strong> seus habitantes vivem na zona rural e praticam ativida<strong>de</strong>s ligadas ao<br />

setor. O município é caracterizado por pequenas proprieda<strong>de</strong>s rurais, sendo que 82,5% dos<br />

5 Essa crítica é também <strong>de</strong>stacada em OLIVIER <strong>de</strong> SARDAN. Antropologie et Développement. Essai en socioanthropologie<br />

du changement social. Paris, APAD/Karthala, 1995, 221 p.<br />

5


estabelecimentos agrícolas têm áreas inferiores a 50 ha. O cultivo <strong>de</strong> feijão já lhe <strong>de</strong>u o título <strong>de</strong><br />

primeiro município produtor do estado <strong>de</strong>ssa leguminosa e a pecuária é praticada, em maior ou<br />

menor grau, pela maioria dos agricultores. Das 36 comunida<strong>de</strong>s rurais, 16 <strong>de</strong>las apresentam a<br />

bovinocultura como ativida<strong>de</strong> principal.<br />

No entanto, trata-se <strong>de</strong> um município marcado pela precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> parte significativa da<br />

sua população. Segundo o PNUD, o Índice <strong>de</strong> <strong>Desenvolvimento</strong> Humano Municipal (IDH-M) 6 <strong>de</strong><br />

São José do Cerrito ficou em 0,731 no ano 2000, contra 0,620 <strong>de</strong> nove anos atrás. Apesar <strong>de</strong>ssa<br />

melhora, o município ocupa a 13 a pior posição no ranking <strong>de</strong>sse índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento dos<br />

municípios catarinenses.<br />

A população cerritense vive um antigo sonho <strong>de</strong> ver concluído o trecho <strong>de</strong> 100 Km da BR<br />

282 que intercepta o município. A conclusão <strong>de</strong>ssa obra facilitaria o escoamento da produção,<br />

bem como o acesso fácil e rápido aos municípios <strong>de</strong> Lages, centro urbano regional, e Campos<br />

Novos, celeiro <strong>de</strong> produção agropecuária do estado, criando assim novas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

empreendimentos. A título <strong>de</strong> exemplo, nenhuma cooperativa regional inclui, <strong>de</strong> fato, o<br />

município na sua área <strong>de</strong> abrangência. Sabe-se que as condições das vias <strong>de</strong> acesso representam<br />

um elemento chave para esse tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão (Cazella, 2002b).<br />

Apesar <strong>de</strong>sse quadro, nos últimos <strong>de</strong>z anos, tem-se verificado um aumento da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> instituições que, <strong>de</strong> alguma forma, promovem o <strong>de</strong>senvolvimento local: uma cooperativa <strong>de</strong><br />

crédito rural (Cazella, 2002c), uma casa familiar rural (ensino supletivo para o meio rural); uma<br />

rádio comunitária, uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong> lixo urbano, uma <strong>associação</strong> <strong>de</strong><br />

“permacultores” 7 e duas feiras <strong>de</strong> gado bovino, organizadas pela Associação <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais.<br />

4.1- Origem da Associação <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais<br />

Até 1997, os pecuaristas locais não dispunham <strong>de</strong> nenhuma instituição formal que os<br />

reunisse para <strong>de</strong>bater questões técnicas e <strong>de</strong> mercado relativas à ativida<strong>de</strong>. A partir <strong>de</strong> encontros<br />

casuais e esporádicos, alguns <strong>produtores</strong> passaram a reivindicar junto ao po<strong>de</strong>r público municipal<br />

a contratação <strong>de</strong> um profissional que lhes fornecesse orientação técnica e organizacional em suas<br />

proprieda<strong>de</strong>s.<br />

A idéia <strong>de</strong> constituir uma <strong>associação</strong> <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> para fomentar a organização da<br />

produção bovina foi ganhando consistência, principalmente após a contratação pela prefeitura <strong>de</strong><br />

um médico veterinário. Esse profissional, além <strong>de</strong> ser originário do município, possuindo seu<br />

próprio estabelecimento agropecuário no local, trazia consigo a experiência <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong><br />

organização <strong>de</strong> feiras pecuárias na região oeste do estado.<br />

Inicialmente, o propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver o mercado bovino local e regional através <strong>de</strong><br />

uma feira municipal gerou insegurança <strong>de</strong>ntre a maioria dos criadores. A falta <strong>de</strong> experiência e<br />

6 O IDH é calculado a partir <strong>de</strong> três variáveis que me<strong>de</strong>m o <strong>de</strong>senvolvimento no tocante à esperança <strong>de</strong> vida, nível<br />

educacional e renda per capita da população. O Brasil melhorou sua posição nos últimos nove anos, passando <strong>de</strong><br />

0,709, em 1991, para 0,769, em 2000. Na classificação internacional, o Brasil continua sendo um país <strong>de</strong> médio<br />

<strong>de</strong>senvolvimento humano. Os cinco estados com maiores IDH-M no Brasil são, respectivamente, o Distrito Fe<strong>de</strong>ral<br />

(0,844), Santa Catarina (0,822), São Paulo (0,820), Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (0,814) e Rio <strong>de</strong> Janeiro (0,807), todos na<br />

faixa <strong>de</strong> alto <strong>de</strong>senvolvimento humano. A educação foi responsável por 60,78% do aumento do IDH-M no Brasil<br />

entre 1991 e 2000. Já a renda contribuiu com 25,78% e a longevida<strong>de</strong> com 13,44% no crescimento <strong>de</strong>sse índice.<br />

7 As primeiras menções à permacultura começaram a ser difundidas no início dos anos 70 pelos australianos Bili<br />

Mollison e David Holmgren. “Os conceitos <strong>de</strong> agricultura permanente começaram a ser expandidos como uma<br />

cultura permanente, envolvendo fatores sociais, econômicos e sanitários para <strong>de</strong>senvolver uma verda<strong>de</strong>ira disciplina<br />

holística <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> sistemas” (Jaeger Soares, 1998).<br />

6


conhecimento acerca do associativismo e, <strong>de</strong> forma específica, do funcionamento das feiras <strong>de</strong><br />

gado representou um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio para os i<strong>de</strong>alizadores <strong>de</strong>ssas instituições. Não havia se<strong>de</strong><br />

para as reuniões, nem o hábito <strong>de</strong> organizá-las da parte dos <strong>produtores</strong>. Muitos <strong>de</strong>sconheciam<br />

completamente a metodologia utilizada nas feiras agropecuárias.<br />

Em gran<strong>de</strong> medida, esse receio inicial se <strong>de</strong>via à imagem negativa difundida na região<br />

acerca da qualida<strong>de</strong> dos animais criados no município. Essa herança histórica pejorativa tem a ver<br />

com a precarieda<strong>de</strong> da infra-estrutura disponível nos estabelecimentos e nas comunida<strong>de</strong>s rurais.<br />

Embora a maioria dos agricultores cerritenses apresente uma forte tradição com a pecuária, o<br />

nível técnico da ativida<strong>de</strong> não acompanhou o ritmo impresso noutras regiões e municípios<br />

vizinhos, a exemplo <strong>de</strong> Curitibanos e Campos Novos.<br />

Diversas reuniões prece<strong>de</strong>ram a constituição da <strong>associação</strong>, visando discutir assuntos<br />

referentes aos seus regulamentos e esclarecer dúvidas, sobretudo, sobre a dinâmica operacional<br />

das feiras. Na data <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1997, a <strong>associação</strong> foi formalmente constituída, contando<br />

com 39 membros fundadores. A intenção <strong>de</strong> realizar <strong>de</strong> imediato a primeira feira do terneiro e<br />

gado geral imprimiu dinamismo, credibilida<strong>de</strong> e confiança à instituição. Para tanto, a prefeitura<br />

municipal financiou a construção <strong>de</strong> 45 mangueiras (Figura I), o pavilhão <strong>de</strong> remate (Figura 2)<br />

com arquibancadas e a instalação <strong>de</strong> uma balança junto ao “<strong>de</strong>sembarcador” para a pesagem dos<br />

animais. O remate é um instrumento <strong>de</strong> venda que visa obter o maior valor dos animais leiloados.<br />

Baseia-se na concorrência dos compradores para adquirir o lote ofertado. Essa dinâmica <strong>de</strong>sperta<br />

nos <strong>produtores</strong> o interesse em observar quais são as características dos animais que apresentam<br />

uma maior procura e, conseqüentemente, o melhor preço (Furlanetto, 2003).<br />

Figura 1: Pavilhão <strong>de</strong> remate da Associação <strong>de</strong> <strong>produtores</strong>.<br />

7


Figura 2: Produtores no momento do remate dos animais<br />

A primeira feira ocorreu em 26 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1998, com a venda <strong>de</strong> 368 animais, gerando um<br />

valor bruto comercializado <strong>de</strong> R$ 83.818,00 reais. O valor médio <strong>de</strong> R$ 228,00 reais por animal<br />

foi consi<strong>de</strong>rado promissor e fonte <strong>de</strong> incentivo para a continuida<strong>de</strong> dos trabalhos. Aos poucos, os<br />

associados se motivaram a aperfeiçoar os sistemas produtivos, visando a formação <strong>de</strong> lotes com<br />

animais semelhantes em termos <strong>de</strong> tamanho e pelagem. O sucesso <strong>de</strong>ssa primeira experiência<br />

resultou, também, na filiação <strong>de</strong> novos <strong>produtores</strong> do município junto à <strong>associação</strong>.<br />

Na feira do ano seguinte houve um acréscimo <strong>de</strong> 23% no preço médio pago por animal, que<br />

atingiu o valor <strong>de</strong> R$ 296,00 reais. Nas feiras posteriores, os preços médios pagos por animal<br />

foram, respectivamente, R$ 387,00, R$ 504,00, R$ 417,00 e R$ 388,00 reais. Mesmo com a<br />

queda dos preços médios recebidos nas duas últimas feiras, os <strong>produtores</strong> os consi<strong>de</strong>ram<br />

vantajosos.<br />

Após realizar quatro feiras do terneiro e do gado geral, os organizadores e <strong>produtores</strong><br />

acumularam experiência suficiente para promover uma nova modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> feira. Para resolver o<br />

problema <strong>de</strong> excesso <strong>de</strong> animais na feira <strong>de</strong> abril, que começava a prejudicar o sucesso das<br />

vendas, surgiu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar um evento específico para animais <strong>de</strong>stinados à<br />

reprodução. Em outubro <strong>de</strong> 2001, realizou-se a primeira “Feira da Novilha e do Reprodutor”,<br />

com a venda <strong>de</strong> 255 animais. A Tabela I, a seguir, apresenta a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> animais vendidos,<br />

bem como o valor bruto comercializado nas nove feiras promovidas, até o momento, no<br />

município. Cabe <strong>de</strong>stacar que esses dados correspon<strong>de</strong>m à “venda no martelo” (animais<br />

leiloados), não sendo consi<strong>de</strong>rado, portanto, a “venda na mangueira” que, normalmente, ocorre<br />

no dia seguinte à realização da feira. Essa última consiste na negociação direta entre o comprador<br />

e o proprietário <strong>de</strong> lotes que não foram “rematados” durante o leilão.<br />

A comercialização <strong>de</strong> animais em feiras via leilões passa necessariamente pela ação<br />

coletiva dos <strong>produtores</strong>. A existência <strong>de</strong> uma base mínima <strong>de</strong> organização social é pré-condição<br />

para o sucesso <strong>de</strong>sse evento. Na seqüência analisamos os impactos <strong>de</strong>ssa iniciativa no interior dos<br />

estabelecimentos agropecuários dos pecuaristas associados.<br />

8


Tabela I: Número <strong>de</strong> animais vendidos e valor bruto comercializado nas feiras.<br />

Ano Evento<br />

Nº <strong>de</strong><br />

animais<br />

vendidos<br />

Valor Comercializado<br />

(R$)<br />

Preço Médio/<br />

animal (R$)<br />

1998 1ª feira do terneiro e gado geral 368 83 818,00 228,00<br />

1999 2ª feira do terneiro e gado geral 480 142 000,00 296,00<br />

2000 3ª feira do terneiro e gado geral 434 168 000,00 387,00<br />

2001<br />

4ª feira do terneiro e gado geral<br />

1ª feira da novilha e reprodutor<br />

726<br />

255<br />

365 834,00<br />

113 434 ,00<br />

504,00<br />

445,00<br />

2002<br />

5ª feira do terneiro e gado geral<br />

2ª feira da novilha e reprodutor<br />

692<br />

213<br />

288 876,00<br />

110 910,00<br />

417,00<br />

521,00<br />

6 a 2003<br />

feira do terneiro e gado geral<br />

a<br />

3 feira da novilha e reprodutor<br />

1014<br />

210<br />

393 548,00<br />

100 908,00<br />

388,00<br />

481,00<br />

Total 9 feiras 4.392 1.767.328,00 402,00<br />

Fonte: Associação <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais <strong>de</strong> São José do Cerrito – 2003.<br />

4.2- A repercussão das feiras nas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção<br />

A partir do trabalho da Associação, nos últimos anos, percebe-se um aumento do cultivo<br />

<strong>de</strong> pastagens nas estações em que os campos nativos são castigados pelas fortes geadas e frio<br />

intenso, freqüentes no município. Para produzir animais <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> para as feiras, os<br />

pecuaristas passaram cultivar aveia e azevém para alimentar os animais nos meses <strong>de</strong> inverno. No<br />

verão, os estoque <strong>de</strong> pastagens são garantidos com o plantio <strong>de</strong> milheto em áreas mecanizadas. A<br />

integração lavoura e pecuária tem trazido resultados positivos, maximizando o aproveitamento<br />

das áreas e das forrageiras nas entressafras, que permaneciam em repouso ou ficavam ociosas.<br />

Se no aspecto alimentação as melhorias foram significativas, no tocante a outros quesitos<br />

<strong>de</strong> manejo esta pesquisa <strong>de</strong>monstrou que os avanços não foram da mesma or<strong>de</strong>m. A maioria dos<br />

<strong>produtores</strong> ainda não faz o controle <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e do peso das novilhas na primeira cobertura. A<br />

ida<strong>de</strong> e a época <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> sexual <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da raça e dos sistemas <strong>de</strong> alimentação. Para se<br />

alcançar eficiência no sistema reprodutivo é preciso cumprir alguns requisitos, como <strong>de</strong>smamar<br />

os bezerros no outono com peso próximo <strong>de</strong> 180 kg. Isso implica num bom nível nutritivo das<br />

vacas durante toda a lactação e, por conseguinte, dos bezerros. Quanto maior for o peso dos<br />

animais no <strong>de</strong>smame, maiores são as chances, por exemplo, das novilhas “entourar” (serem<br />

cobertas) aos quinze meses com 300 kg <strong>de</strong> peso vivo.<br />

O domínio <strong>de</strong> preceitos técnicos, que envolvem uma série <strong>de</strong> questões relacionadas, por<br />

exemplo, à alimentação, época <strong>de</strong> <strong>de</strong>smame e uso racional dos re<strong>produtores</strong>, são indispensáveis<br />

para o sucesso do empreendimento. Além disso, os <strong>produtores</strong> <strong>de</strong>vem estabelecer um controle<br />

sanitário do rebanho, <strong>de</strong>finir uma estação <strong>de</strong> monta para as vacas, selecionar os animais por<br />

ganho <strong>de</strong> peso, perceber a precocida<strong>de</strong> da raça e a habilida<strong>de</strong> materna, <strong>de</strong>scartando animais com<br />

problemas reprodutivos.<br />

9


5- Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />

Embora os associados ainda não incorporaram na rotina <strong>de</strong> trabalho o conjunto <strong>de</strong><br />

procedimentos zootécnicos preconizados, nota-se pelas entrevistas o reconhecimento da sua<br />

importância, além <strong>de</strong> alguns ensaios visando introduzi-los no manejo dos animais. Em <strong>de</strong>finitivo,<br />

a realização das feiras passou a exigir dos <strong>produtores</strong> o planejamento das proprieda<strong>de</strong>s e dos<br />

sistemas <strong>de</strong> produção que vinham <strong>de</strong>senvolvendo. Assim, para que o pecuarista disponha <strong>de</strong><br />

animais para ven<strong>de</strong>r em abril, a estação <strong>de</strong> monta <strong>de</strong>ve acontecer em outubro e novembro do ano<br />

anterior. Para que as vacas forneçam um animal por ano e <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> torna-se necessário<br />

melhorar as condições <strong>de</strong> alimentação, <strong>de</strong> sanida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> reprodução do rebanho. Antes das feiras,<br />

essas práticas eram pouco valorizadas pelos <strong>produtores</strong>.<br />

A organização das feiras pela <strong>associação</strong> tem gerado entre os pecuaristas o <strong>de</strong>sejo em tornar<br />

o município uma referência estadual na produção <strong>de</strong> terneiros para recria e engorda e novilhas<br />

para reprodução. Os lotes mais valorizados nas feiras <strong>de</strong> gado têm sido bezerros e bezerras <strong>de</strong> até<br />

um ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Assim, muitos <strong>produtores</strong> estão se voltando exclusivamente para a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cria, <strong>de</strong>dicando-se a produzir bezerros e bezerras para serem, posteriormente, recriados em<br />

fazendas especializadas da região. O clima e a topografia do município são favoráveis para<br />

<strong>de</strong>senvolver este tipo <strong>de</strong> produção. A aquisição <strong>de</strong> novas matrizes para produzir animais com um<br />

certo padrão <strong>de</strong> pelagem e conformação corporal, exigências <strong>de</strong> compradores das feiras, está se<br />

tornando uma prática corrente entre os associados. Se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r das expectativas dos <strong>produtores</strong>,<br />

o município po<strong>de</strong>, no curto prazo, se tornar um núcleo <strong>de</strong> excelência nessa categoria <strong>de</strong> animais.<br />

Esse quadro é completamente diverso daquele <strong>de</strong> oito anos atrás, quando a maioria dos<br />

bovinocultores se achava incapaz <strong>de</strong> competir com pecuaristas da região.<br />

Por fim, cabe o questionamento acerca dos benefícios coletivos <strong>de</strong>ssa iniciativa. Diante da<br />

precarieda<strong>de</strong> da maioria das famílias <strong>de</strong> agricultores do município po<strong>de</strong> parecer incongruente que<br />

o po<strong>de</strong>r público municipal aloque seus parcos recursos (financeiros e humanos) para auxiliar um<br />

pequeno número <strong>de</strong> pecuaristas, justamente os que dispõem <strong>de</strong> mais capital econômico e<br />

infraestrutura. Sem dúvida, para que a experiência represente uma contribuição ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>territorial</strong> resta enfrentar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> criar mecanismos que envolvam, direta ou<br />

indiretamente, o maior número possível <strong>de</strong> agricultores. Algumas ações nessa direção já<br />

acontecem, sem representar, no entanto, uma política institucional explícita. Alguns associados<br />

adquirem animais <strong>de</strong> agricultores do município para completar ou constituir lotes a serem<br />

leiloados. Além disso, agricultores não-associados têm vendido ou comprado animais nas feiras.<br />

Essas ações, certamente, não esgotam o leque <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s existentes visando ampliar o<br />

número <strong>de</strong> beneficiados pela <strong>associação</strong>, mas sugerem pistas nessa direção.<br />

Bibliografia<br />

ABDELMALKI, L. et al. Technologie, institutions et territoires: le territoire comme création<br />

collective et ressource institutionnelle. In: PECQUEUR, B. (éd.). Dynamiques <strong>territorial</strong>es et<br />

mutations économiques. L’Harmattan Paris,, 1996, pp. 177-194, 246 p.<br />

ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo, Hucitec,<br />

1992, 275 p.<br />

BECATTINI, G. Le district marshallien : une notion socio-économique. In : BENKO, G. et<br />

LIPIETZ, A. (éd.). Les régions qui gagnent. Districts et réseaux : les nouveaux paradigmes <strong>de</strong><br />

la géographie économique. Paris, PUF, 1992, pp. 35-55, 424 p.<br />

10


BRUNET, R.. Le territoire dans les turbulences. Paris, Reclus, 1990, 224 p.<br />

CARNEIRO, M. J. Camponeses, agricultores e pluriativida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Contra Capa,<br />

1998, 228 p.<br />

CAZELLA, A.A. Développement local et agriculture familiale: les enjeux territoriaux dans le<br />

département <strong>de</strong> l’Au<strong>de</strong>. Thierval-Grignon, INRA, Mémoires et Thèses, n°36, 2002a, 395 p.<br />

CAZELLA, A. A. A função <strong>de</strong> “coesão social” da agricultura no processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento rural: o caso do município <strong>de</strong> São José do Cerrito- SC. Florianópolis,<br />

NEAD/MDA, Relatório <strong>de</strong> pesquisa, 2002b, 73 p.<br />

CAZELLA, A. A. Cooperativismo <strong>de</strong> crédito rural: lições <strong>de</strong> uma experiência. In:<br />

MONTOYA, M.A. (org.). Aspectos regionais do crédito rural: governo, cooperativas e<br />

informalida<strong>de</strong>. Passo Fundo, Ed. UPF, 2002c, pp. 25-46, 131 p.<br />

FURLANETTO, G. R. A <strong>associação</strong> <strong>de</strong> <strong>produtores</strong> rurais <strong>de</strong> São José do Cerrito na dinâmica<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento rural: importância das feiras <strong>de</strong> gado. Florianópolis, UFSC/CCA, 2003,<br />

Trabalho <strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> curso.<br />

JAEGER SOARES, A. L. Conceitos básicos sobre permacultura. Brasília, MA/SDR/PNFC,<br />

1998, p. 3, 53 p.<br />

LACOUR, C. Espace et développement : <strong>de</strong>s enjeux théoriques nouveaux face aux<br />

contradictions <strong>de</strong>s sociétés contemporaines. Revue d’Economie Régionale et Urbaine.<br />

Bor<strong>de</strong>aux, ASRDLF, n° 5, 1985, pp. 837-847, 1031 p.<br />

LEVY, J. A-t-on encore (vraiment) besoin du territoire ? Espaces Temps. Paris, AET, n°<br />

51/52, 1993, pp. 103-142, 209 p.<br />

LEVY, J. Oser le désert : <strong>de</strong>s pays sans paysans. Sciences Humaines. Auxerre, Hors série,<br />

n°4, 1994, pp. 6-9, 50 p.<br />

OLIVIER <strong>de</strong> SARDAN. Antropologie et Développement. Essai en socio-anthropologie du<br />

changement social. Paris, APAD/Karthala, 1995, 221 p.<br />

PECQUEUR, B. De l’espace fonctionnel à l’espace-territoire : essai sur le développement<br />

local. Grenoble, Université <strong>de</strong>s Sciences Sociales, Thèse <strong>de</strong> doctorat, 1987, 475 p.<br />

PUTMAN, R. D. Comunida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mocracia: a experiência da Itália mo<strong>de</strong>rna. Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

FGV, 1996.<br />

11

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!