AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
AS NAUS ANTàNIO LOBO ANTUNES AS NAUS ... - hora absurda IV
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26<br />
em v„o um pontap‚ na seda instantƒnea de um gato, avan‡ou em<br />
diagonal de lagosta a mudar a bandoleira da arma de uma<br />
omoplata para a outra:<br />
- O que ‚ aquilo ali?, disse ele.<br />
S¢ ent„o me dei conta de que para l dos ralos e das cigarras<br />
das trevas cujo trino se aparenta ao zumbir das lantejoulas da<br />
ins¢nia, para l dos moluscos nas enx rcias e da harpa das<br />
cordas e da sua £nica nota sem cessar repetida, um grilo<br />
cantava: n„o dentro da noite, entenda-se; num barquito<br />
ancorado, uma dessas chatas de ca‡adores de limos e mariscos<br />
doentes, que navegam umas bra‡as tripuladas por homens de<br />
cal‡as enroladas munidos de camaroeiros e de baldes. De tempos<br />
a tempos uma barbatanazinha da gua cintilava num pulo e<br />
evaporava-se de novo. As casas, duplicadas de pernas para o<br />
ar, subiam e desciam na dire‡„o de Lixboa, enfeitadas de<br />
craveiros nos caixotes das varandas. O cabo tocou no f‚retro<br />
com a ponta da bota, a avaliar:<br />
- Esta porcaria pertence-lhe?<br />
De madrugada as locomotivas, quando chamam, mesmo distantes,<br />
d„o a impress„o de se encontrarem t„o pr¢ximas que se podem<br />
apertar contra o peito. Os demais ru¡dos tamb‚m. E o silˆncio.<br />
E os odores. E as vozes que ciciam a quil¢metros: tudo<br />
vizinho, n¡tido, transparente e fr gil, de vidro. Incluindo a<br />
ponte que atravessa o Tejo e os pirilampos dos cami”es a vogar<br />
no tabuleiro.<br />
- Ando … espera do paquete para a levar daqui, disse eu. Tenho<br />
l o meu pai morto embrulhado num len‡ol.<br />
27<br />
Em µfrica, semeada de padr”es, de destro‡os de caravela e de<br />
armaduras de conquistadores finados, os mochos plantavam-se no<br />
centro das picadas e deixavam que os carros os atropelassem,<br />
mochos de olhos amarelos como as barbatanas da gua e os<br />
pirilampos dos cami”es: viamo-los tarde demais, buzin vamos e<br />
um remoinho de penas cinzentas, mais cabelos do que penas,<br />
embatia no vidro e morria para tr s de n¢s, a perder-se nas<br />
lavras de girass¢is adormecidos por onde os burros do mato<br />
trotavam sem descanso. Em µfrica, ao contr rio daqui, o meu<br />
nariz palpava os odores e alegrava-se, as pernas conheciam os<br />
lugares de caminhar, as m„os aprendiam com facilidade os<br />
objectos, respirava-se um ar mais limpo do que panos de<br />
igreja, at‚ a guerra civil dar um tiro no velho, me encafuar<br />
com o reformado e o maneta dos moinhos num por„o de navio, e<br />
os perfumes e os rumores das trevas se me tornarem<br />
estrangeiros porque ignoro esta cidade, porque ignoro estas<br />
travessas e as suas sombras ilus¢rias, porque apenas soletro o<br />
porto e as traineiras, presentes de dia e ausentes de noite,<br />
sem contar os corvos e as gaivotas excitadas pelo relento do<br />
defunto, debicando o crucifixo … procura da carne podre oculta<br />
no t£mulo de verniz.<br />
- LJm cad ver?, desconfiou o cabo. Um cad ver ou tabaco<br />
americano, nosso amigo? Gitanes, Marlboro, anis, perfumes<br />
franceses, vermutes, uma d£zia de radiozinhos de pilhas<br />
japoneses? Vocˆ quer convencer-me que traz um cad ver a¡?<br />
Lan‡ou fora a ponta do cigarro e a luzinha vagabundeou na<br />
noite e apagou-se no Tejo. A passagem<br />
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