unidade i - UFPB Virtual - Universidade Federal da Paraíba
unidade i - UFPB Virtual - Universidade Federal da Paraíba
unidade i - UFPB Virtual - Universidade Federal da Paraíba
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Todos os direitos e responsabilidades são dos organizadores.
L755 Linguagens: Usos e refl exões. /Ana Cristina de Sousa Aldrigue, Evangelina
Maria Brito de Faria (Coordenadoras. – João Pessoa: Editora Universitária, 2008.
V
1. Linguagem – Estudo e ensino.
2. Lingüística – Fundamentos. 3. Estudos Clássicos – Introdução. 4. Estudos
Literários – Introdução. I. Aldrigue, Ana Cristina de Sousa. II. Faria, Evangelina
Maria Brito de.
UFBP/BC CDU: 800.85
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS VIRTUAL
LINGUAGENS: USOS E REFLEXÕES
João Pessoa/2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS VIRTUAL
Informações técnicas:
Material Didático Letras Virtual
Coordenadoras:
Ana Cristina de Sousa Aldrigue
Evangelina Maria Brito de Faria
Colaboradores:
Milton Marques Jr.
Arturo Gouveia de Araújo
Jan Edson Rodrigues Leite
Regina Celi Mendes Pereira da Silva
Maria Ester Vieira de Sousa
Luiz Gonzaga Gonçalves
Apoio Técnico:
Juan Downig
Lidyane Lima
SUMÁRIO
LETRAS EM MODALIDADE VIRTUAL ........................................................................................... 7
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS .............................................................................. 17
Os fundamentos da literatura como construção artística .................................................................. 21
A teoria dos gêneros literários ............................................................................................................... 37
A especifi dade do gênero narrativo ...................................................................................................... 49
LEITURA E PRODUÇAO DE TEXTO I.............................................................................................. 67
Noções de leitura e sua relação com o ensino ...................................................................................... 69
Conceito de gênero: descrição e funcionalidade ................................................................................. 85
Os gêneros textuais e o ensino da leitura e da escrita ........................................................................ 91
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS .............................................................................. 103
Uma introdução aos estudos clássicos ................................................................................................ 105
Estudo de homero – O Canto I Da Ilíada ........................................................................................... 123
Visão genérica dos autores do teatro trágico ......................................................................................131
Estudo de Virgílio – O Livro I Da Eneida. ......................................................................................... 141
FUNDAMENTOS ANTROPO-FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO .............................................. 163
A fi losofi a grega antiga: pressupostos e preocupações .................................................................... 167
A fi losofi a na modernidade: necessidades e horizontes ..................................................................189
A pedagogia da existência: novas bases para a educação ............................................................... 199
FUNDAMENTOS DE LINGÜÍSTICA ............................................................................................. 215
Linguagem língua e lingüística ............................................................................................................ 217
A lingüística e o seu objeto de estudo ................................................................................................. 227
A dimensão escrita, oral e gestual da linguagem .............................................................................. 241
A norma lingüística ............................................................................................................................... 251
Unidade e diversidade na língua ......................................................................................................... 259
A lingüística como ciência .................................................................................................................... 269
INTRODUÇÃO A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA .......................................................................... 277
Uma introdução aos fundamentos teóricos metodológicos da educação a distância ...................... 287
Apresentação e ambientação da sala de aula virtual: moodle ........................................................ 297
O aluno virtual ....................................................................................................................................... 307
Comunidades virtuais de aprendizagem ........................................................................................... 317
Avaliaçaõ em ambientes virtuais apoiados pela internet ............................................................... 327
histórico da EAD .................................................................................................................................... 335
LETRAS EM MODALIDADE VIRTUAL
Caro (a) aluno (a)
ANA CRISTINA DE SOUSA ALDRIGUE
EVANGELINA MARIA BRITO DE FARIA
A necessidade de aprimorar a qualifi cação é uma exigência da sociedade
moderna. Pensando nisso, a UFPB, em parceria com o MEC e as Prefeituras
Municipais, vem oferecer o Curso de Licenciatura Plena em Letras, Habilitação
em Língua Portuguesa, na Modalidade Educação Virtual.
Esse curso, ao ser concebido pela UFPB, incorpora as práticas de
formação dessa universidade e acrescenta a metodologia da EAD para atender
à necessidade de uma formação específi ca para os que atuam no Ensino
Fundamental e Médio, visando o resgate da qualifi cação profi ssional.
Essa modalidade de ensino permite desenvolver uma ação pedagógica mais
complexa e coletiva em que todos os sujeitos do processo ensino e aprendizagem
estão envolvidos direta ou indiretamente: de quem vai conceber e elaborar o
material didático a quem irá cuidar para que este chegue às mãos do estudante,
do coordenador de curso ao tutor acadêmico. Segundo R. Marsden (apud
BELLONI, 1999, p. 80), EAD é um “processo complexo, multifacetado, que inclui
muitas pessoas, todas podendo reivindicar sua contribuição ao ensino”.
Com o advento da tecnologia, a revisão crítica dos instrumentos de
estudo, de pesquisa e de prática de aulas impõe-se como uma exigência social de
adequação aos novos tempos e aos novos contextos e contornos do mercado, do
sujeito e da sociedade.
Foi dessa leitura de mundo que surgiu o Projeto Universidade Aberta
do Brasil/ UAB. O Projeto foi criado pelo Ministério da Educação, em 2005, no
âmbito do Fórum das Estatais pela Educação, para a articulação e integração
de um sistema nacional de educação superior virtual, em caráter experimental,
visando sistematizar as ações, programas, projetos, atividades pertencentes às
políticas públicas voltadas para a ampliação e interiorização da oferta do ensino
superior gratuito e de qualidade no Brasil. Para a consecução do Projeto UAB, o
Ministério de Educação, através da Secretaria de Educação a Distancia — SEED
— lançou o Edital N° 1, em 20 de dezembro de 2005, com a Chamada Pública
para a seleção de pólos municipais de apoio presencial e de cursos superiores de
Instituições Federais de Ensino Superior na Modalidade de Educação a Distância
para a UAB.
Com o DECRETO N° 5.800 de 8 de junho de 2006, estabeleceram-se as
normas para o Sistema Universidade Aberta do Brasil, que tem como objetivos:
7
É no pólo onde você vai
encontrar o Ambiente
Virtual de Aprendizagem.
O AVA é visto como um
conjunto de elementos
tecnológicos, disponíveis
na internet e utilizados
para fi ns educacionais.
O AVA é um lugar no
mundo virtual que você
e sua turma têm para se
reunir e aprender.
8
I oferecer, prioritariamente, cursos de licenciatura e de formação inicial e
continuada de professores da educação básica;
II oferecer cursos superiores para capacitação de dirigentes, gestores e
trabalhadores em educação básica dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios;
III oferecer cursos superiores nas diferentes áreas do conhecimento;
IV ampliar o acesso à educação superior pública;
V reduzir as desigualdades de oferta de ensino superior entre as diferentes
regiões do País;
VI estabelecer amplo sistema nacional de educação superior a distância; e
VII fomentar o desenvolvimento institucional para a modalidade de educação
a distância, bem como a pesquisa em metodologias inovadoras de ensino
superior apoiadas em tecnologias de informação e comunicação.
Pelos objetivos, é possível perceber que a criação da UAB é, antes de tudo,
um projeto político de incremento ao acesso à Universidade.
O parágrafo 1º do Decreto Nº5.800 de junho de 2006 caracteriza o pólo
de apoio presencial como unidade operacional para o desenvolvimento
descentralizado de atividades pedagógicas e administrativas relativas aos
cursos e programas ofertados a distância pelas instituições públicas de ensino
superior. Em que cada pólo deverá dispor de infra-estrutura e recursos
humanos adequados às fases presenciais dos cursos e programas do Sistema
UAB.
Como você está vendo, vai ser um curso diferente, mas não se preocupe,
pois você receberá todas as instruções para operar com essa nova modalidade. É
importante ressaltar que a qualidade não diminui na EAD. Entre as experiências
em EAD já bem estabelecidas no mundo, destacamos a Open University Britânica
(UKOU), fundada em 1971 e com 230.000 alunos; Universidad Nacional de
Educación a Distância espanhola (UNED), de 1972, com mais de 200.000 alunos;
a Anadolu/Turqula, de 1982, mais de 550.000 estudantes; Fern Universitât alemã,
de 1974, mais de 58.000 alunos, e a Universidade Aberta de Portugal.
A UKOU é considerada pioneira. O seu fundador, Sir Harold Wilson,
explicou que a decisão de criar a Universidade Aberta, então conhecida como
Universidade do Ar, foi um ato político, pois tiveram de enfrentar a oposição do
mundo acadêmico e das universidades tradicionais. Entretanto, a Universidade
Aberta está defi nitivamente gravada como uma das idéias de progresso que
ilumina a imaginação do meio educacional.
Em mais de 80 países do mundo, segundo Lisseanu (1988),o ensino
a distância vem sendo empregado em todos os níveis educativos, desde
o primeiro grau até a Pós-Graduação, assim como também na educação
permanente. Na Europa, são oferecidos mais de 700 programa de diferentes
níveis, nos mais variados campos do saber. Segundo o Conselho Internacional
de Ensino a Distância/ CIED, em 1988, mais de 10 milhões de estudantes
acompanhavam seus cursos a Distância (apud KAYE, 1988, p.57) e, em nível
superior e de Pós-Graduação, essa formação é reconhecida legal e socialmente
(IBAIZJEZ, 1989). O Parlamento Europeu reconheceu a importância da EAD
para a Comunidade Européia ao adotar uma Resolução sobre as Universidades
Abertas, em julho de 1987, e ao desenvolver diversos programas comunitários,
a partir de 1991. Na China, a televisão cultural universitária, desde 1977, oferece
cursos a distância, enquanto na Africa os programas educativos a distância
ainda são incipientes, face às limitações de recursos econômicos. A Austrália,
por outro lado, é o país que mais desenvolve programas a distância integrados
com as universidades presenciais. Na América Latina, há países tomando a
iniciativa de consolidação e institucionalização da EAD, como a Universidad
Nacional Abierta da Venezuela, a Umversidad Estatal a Distancia de Costa
Rica e o Sistema de Educación Abierto y a Distancia da Colômbia. No Brasil,
a EAD começa a ser posta como uma alternativa já “possível e viável” para
solucionar a “falta” de instrução e educação da maioria da população adulta
e trabalhadora. É importante lembrar que as universidades especializadas não
substituem as tradicionais, nem com elas concorrem, tendo essencialmente
caráter complementar e cooperativo.
Agora que você já conhece um pouco mais da EAD, vamos conhecer o seu
curso.
CURSO PROPOSTO
HISTÓRICO
O compromisso da educação brasileira com a cidadania traz como
conseqüência a ampliação da oferta do ensino para o engajamento efetivo na
sociedade do cidadão letrado. Para tanto, a criação de políticas públicas nacionais
voltadas para o fomento do ensino à distância possibilitam o acesso efetivo e
quantitativo ao bem cultural que é o conhecimento formal construído em agências
de letramento, como a Universidade.
Neste sentido, a articulação de pólos à distância de ensino superior, tendo
à frente Instituições de Ensino Superior, garante o compromisso com a qualidade
do conhecimento formal ofertado.
O curso de Licenciatura Plena em Letras, Habilitação Língua
Portuguesa, aprovado pelo CONSEPE com a RESOLUÇÃO N° 20/ 2007, na
modalidade semipresencial, incorpora as práticas de formação da UFPB e
amplia a discussão das diretrizes, ao apontar a necessidade de uma formação
específi ca para os que atuam no Ensino Fundamental e Médio, visando o
resgate da identidade profi ssional e o atendimento aos objetivos destas etapas
educativas.
A sociedade brasileira atual exige do graduado em Letras uma atuação
social e profissional comprometida com a construção da consciência de
cidadania. A multiplicidade de papéis que o graduando em Letras exerce ou
pode vir a exercer solicita, além do compromisso ético, fundamentado em
princípios humanísticos, um compromisso com a construção e reconstrução
do conhecimento, capaz de fomentar a própria reflexão acerca dessa
sociedade.
9
10
QUANTITATIVO DE VAGAS
Prevê-se um total de 220 vagas no primeiro semestre e 476 no segundo
semestre, distribuídas entre os pólos municipais de apoio presencial dos estados
da Paraíba, da Bahia e do Ceará.
Primeiro Semestre
PÓLOS N DE VAGAS
Araruna/PB 30
Campina Grande/PB 40
Conde/PB 30
Cuité de Mamaguape/PB 20
Pombal/PB 50
João Pessoa/PB 50
Segundo Semestre
PÓLOS N DE VAGAS
Itabaiana/PB 50
Itaporanga/PB 50
Livramento/PB 26
Lucena/PB 30
Mari/PB 50
Pintimbu/PB 30
Jacaraci/BA 40
Pratinga/BA 40
Camaçari/BA 40
Itapiçuru/BA 40
Mundo Novo/BA 40
Ubajata/CE 40
OBJETIVOS
O Curso de Licenciatura Plena em Letras tem por objetivo geral promover
a formação de professores para o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, cujas
práticas estejam sintonizadas com as necessidades da sociedade.
Esta formação busca, especifi camente, capacitar o aluno para:
1 refl etir sobre a importância do domínio da linguagem (em suas várias
formas de manifestação e registro) como fundamental não apenas para a
interação social, mas também para o julgamento crítico das relações sociais e
do contexto em que o aluno está inserido, capacitando-o para as atividades
de ensino, pesquisa, visando a sua formação como agente produtor e não
mero transmissor do conhecimento;
2 promover a extensão como forma de articular o ensino e a pesquisa com a
realidade social da qual ele faz parte.
3 ler, analisar e produzir textos em diferentes linguagens, em diferentes
variedades da língua e em diferentes contextos.
4 dominar um repertório representativo da literatura em língua portuguesa
e ser capaz de estabelecer as relações de intertextualidade com a literatura
universal;
5 desempenhar o papel de agente multiplicador, visando à formação de
leitores críticos, intérpretes e produtores de textos de diferentes gêneros.
DURAÇÃO DO CURSO
O Curso terá a duração mínima de quatro anos, divididos em 8 (oito) e
máxima de 12 (doze) períodos letivos, organizados em módulos semestrais.
Será permitida a matrícula em no máximo 28 (vinte e oito) e no mínimo 18
(dezoito) créditos por período letivo.
11
A estrutura curricular
está dividida
em:Componentes
curriculares de
fundamentação teórica
em língua vernácula e
literatura; Componentes
curriculares específi cos
de língua vernácula e
literatura vernácula;
Componentes básicos de
formação profi ssional:
Prática Curricular e
Estágio Supervisionado
de Ensino; Componentes
complementares:
Optativos: serão
responsáveis pelos eixos
de aprofundamento
nas diversas áreas
do curso – Língua,
Lingüística e Literatura
–, a fi m de possibilitar
ao aluno uma escolha
profi ssional adequada
e uma ampliação de
seus horizontes de
conhecimento.Flexíveis:
compreenderão a
participação em eventos
(congressos, simpósios,
seminários, colóquios) e
em projetos de ensino,
pesquisa e extensão. O
aproveitamento da carga
horária dessas atividades
será regulamentado pelo
Colegiado do Curso,
em conformidade com
a legislação vigente na
UFPB. Perfazendo um
total de 2.820 horas.
12
Estrutura Curricular
1º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DE Introdução à EAD 60 30 30
DLCV Fundamentos de Lingüís ca 60 30 30
DLCV Introdução aos Estudos Clássicos 60 30 30
DLCV Leitura e produção de Texto (I) 60 30 30
DLCV Introdução aos Estudos Literários 60 30 30
DFE Fund. Antropo-fi losófi cos da Educação 60 30 30
Total 360 180 180
A Int. à EAD será ministrada antes das outras disciplinas
2º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Teorias Lingüís cas I 60 30 30
DLCV La m 60 30 30
DLCV Foné ca e fonologia da língua portuguesa 60 30 30
DLCV Teoria Literária I 60 30 30
DFE Fund. Sócio-históricos da Educação 60 30 30
DLCV Metodologia do trabalho cien fi co 60 30 30
Total 360 180 180
3º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Teorias Lingüís cas II 60 30 30
DLCV Teoria Literária II: 60 30 30
DLCV Leitura e produção de Texto (II) 60 30 30
DLCV Morfologia da Língua Portuguesa 60 30 30
DLCV Opta va (Educação) 60 30 30
DFE Fundamentos Psicológicos da Educação 60 30 30
Total 360 180 180
4º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Sintaxe da Língua Portuguesa 60 30 30
DLCV Literatura Brasileira I 60 30 30
DLCV Literatura portuguesa I 60 30 30
DLCV Est. Supervisionado I: Ling Aplid ao
Ensino de Lin Port (Fundamental) 60 30 30
DFE Polí ca e Gestão da Educação 60 30 30
DLCV Opta va (Educação) 60 30 30
Total 360 180 180
5º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Semântica da Língua Portuguesa 60 30 30
DLCV Literatura Brasileira II 60 30 30
DLCV Literatura Portuguesa II 60 30 30
DLCV Est. Supervisionado III:
Literatura Infanto-juvenil 60 30 30
DLCV Est. Supervisionado II: Ling
Aplid ao Ensino de Lin Port (EM) 60 30 30
DLCV Didática do Ensino de Língua Port 60 30 30
Total 360 180 180
6º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Pragmática Língua Portuguesa 60 30 30
DLCV Literatura Brasileira III 60 30 30
DLCV Literatura portuguesa III 60 30 30
DLCV Est. Supervisionado IV:
Literatura no Ensino Médio 60 30 30
DLCV Pesquisa em à Língua Potug. 60 30 30
DLCV Optativa 60 30 30
DLCV Est. Supervisionado V:
Vivência em Língua Port. Ens. Fundamental 60 30 30
Total 420 210 210
7º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Est. Supervisionado VI:
Vivência de Língua Portuguesa: Ensino Médio 60 30 30
DLCV Est. Supervisionado VII: Vivência
de Literatura: Ensino Fundamental e Médio 60 30 30
DLCV Literatura Brasileira IV 60 30 30
DLCV Optativa 60 30 30
DLCV Conteúdos fl exiveis 60 30 30
DLCV Lingüística Textual 60 30 30
Total 360 180 180
8º Semestre
Código Disciplinas CHT T P E
DLCV Literatura Brasileira V 60 30 30
DLCV História da Língua Portuguesa 60 30 30
DLCV Conteúdos fl exiveis 60 30 30
DLCV Monografi a (TCC) 60 30 30
DLCV Optativa 60 30 30
Total 300 150 150
13
14
O nosso corpo docente:
Amador Ribeiro Neto - Doutorado em Literatura/PUC-SP
Ana Cristina de Sousa Aldrigue – Doutorado em Lingüística/UNESP
Arturo Golveia de Araújo - Doutorado em Literatura/USP
Beliza Áurea de Arruda Mello – Doutorado em Letras/UFPB
Dermeval da Hora Oliveira – Pós-Doutorado em Lingüística/U. Livre de Amsterdã
Eliane Ferraz Alves- Doutorado em Lingüística/UFPE
Evangelina Maria Brito de Faria - Doutorado em Lingüística/UFPE
Ivone Tavares Lucena - Doutorado em Lingüística/UNESP
Jan Edson Rodrigues Leite - Doutorado em Lingüística/UFPE
Lucienne Claudete Espíndola - Doutorado em Lingüística/UFSC
Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca - Doutorado em Lingüística/UFPE
Maria das Graças Carvalho Ribeiro - Doutorado em Lingüística/UFPE
Maria de Fátima Melo - Doutorado em Lingüística/UFRJ
Maria de Fátima Almeida - Doutorado em Lingüística/UFPE
Maria Elizabeth Aff onso Christiano - Doutorado em Lingüística/UNESP
Maria Ester Vieira de Sousa - Doutorado em Lingüística/UFPE
Maria Regina Baracuhy Leite - Doutorado em Lingüística/UNESP
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante - Doutorado em Lingüística/UNICAMP
Marli Paz de Souza – Doutora em Letras/UFPB
Milton Marques Júnior - Doutor em Letras/UFPB
Mônica Nóbrega – Doutora em Lingüística/ PUCRS
Pedro Francelino – Mestre em Letras/UFPB (Doutorando em Lingüística/UFPE)
Regina Celi Mendes Perreira da Silva - Doutorado em Lingüística/UFPE
Rinaldo Nunes Fernandes – Doutorado em teoria da Literatura/UNICAMP
Socorro de Fátima Pacífi co Barbosa - Doutorado em Literatura/USP
Wilma Martins de Lima – Doutorado em Literatura/UFPE
O Curso de Letras Virtual tem a mesma estrutura que o presencial e conta
com os mesmos professores. O que muda é o uso da metodologia EAD, que tem
como pontos fortes: a disciplina, ou seja, os alunos devem cumprir um calendário
com diversas atividades; a multiplicidade de atores, em que o número de pessoas
envolvidas na realização do curso ultrapassa o do presencial. As videoaulas, os
Cds, essas apostilas impressas e as interações com os tutores e com os professores
darão sustentabilidade do curso. A EAD propõe um novo perfi l de professor e
de aluno e uma nova maneira pedagógica de ensinar e aprender. É necessário
o desenvolvimento de habilidades: desenvolver autonomia de estudo e grande
disciplina, gerenciar o tempo, comprometer-se com a própria aprendizagem e
com a conclusão do seu curso. Você percebeu que o perfi l do aluno a distância
requer uma postura diferente. Nós nos esforçaremos para ajudá-lo a construir
esse perfi l através das indicações metodológicas presentes nas disciplinas e das
interações via internet.
Fique atento ao calendário acadêmico, na plataforma Moodle e marque as
datas-chaves:
1- o início da disciplina
2 - os dias para participar das atividades programadas
2 - o dia do envio da atividade
3 - o dia da avaliação presencial ( você fará pelo menos uma avaliação por
disciplina)
Além disso, tenha sempre à mão um dicionário (ou use o do computador),
lembre-se de que a principal forma de comunicação num curso a distância é a
escrita.
Nesse volume, vocês receberão o material das seguintes disciplinas:
Introdução à EAD, em que aprenderão como usar as ferramentas da internet
para ter acesso ao curso, Fundamentos de Lingüística, Introdução aos Estudos
Clássicos, Leitura e Produção de Texto (I), Introdução aos Estudos Literários e
Fundamentos Antropo-fi losófi cos da Educação.
Todo o material foi construído com o objetivo de formar um todo coeso
que pudesse sustentar o princípio fundamental de condução desse projeto:
o compromisso de atuar com responsabilidade, construindo um curso de
qualidade.
A Coordenação e o competente corpo docente assumem a responsabilidade
de oferecer um curso coerentemente estruturado e se orgulham de possibilitar à
UFPB a entrada no sistema UAB, abrindo espaço no cenário nacional para uma
educação de maior inclusão.
Seja bem vindo ao Curso de Letras Virtual
15
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS
Caro Aluno,
Arturo Gouveia
A disciplina que você vai cursar comigo, a partir de agora, é Teoria da
Literatura. Trata-se de um conjunto de princípios fundamentais para você
conhecer a natureza, os meios e a fi nalidade da literatura. Convém esclarecer
que a literatura é muito mais antiga do que a teoria e, obviamente, só depois
da existência de um certo fenômeno é que o homem pode construir um
conhecimento e começar a teorizar. Em geral, no senso comum, existe muito
preconceito em relação à teoria, como se ela não tivesse nenhuma conexão com a
prática real. A literatura, como um tipo de arte, de fi cção, também comummente
é vista com preconceito, com certa reserva, na medida em que se cristaliza a idéia
de que não serve para nada. Mas será mesmo que uma arte não serve para nada?
Você aceita esse tipo de concepção? Será que a arte, por mais simbólica que seja,
não serve sequer para a gente refl etir um pouco sobre a condição humana, o diaa-dia,
a situação tão brutal vivida pelo ser humano em seu contexto histórico?
É preciso, desde já, criar condições para evitar esse tipo de visão distorcida.
A literatura é uma arte e, como arte, como um tipo especial de conhecimento,
pode nos fazer refl etir sobre as coisas mais banais do cotidiano, assim como sobre
coisas que nós não percebemos numa vida mecanizada. Uma das principais
fi nalidades da teoria da literatura, portanto, é mostrar o quanto a arte literária
pode nos proporcionar um tipo diferente de percepção, seja em relação às
coisas mais concretas, seja em relação ao que parece mais abstrato e de difícil
compreensão.
Esta disciplina em que você está se iniciando, portanto, tem esse objetivo
primordial. Ela será exposta em três unidades, ao longo das quais se estabelecerá
um diálogo produtivo sobre os seus conceitos, o que resultará na avaliação.
Não pretendo, como professor, fazer uma avaliação tradicional, mas através da
produção de pequenas redações, porém apropriadas, para que se perceba o nível
de assimilação dos conteúdos disseminados ao longo do curso.
As três unidades do curso serão:
1. Os fundamentos da literatura como construção artística;
2. A teoria dos gêneros literários como forma de classifi cação dos textos da
tradição literária;
3. Um estudo sobre o gênero narrativo, especialmente o conto e suas
categorias, ou seja, seus elementos estruturais (enredo, personagem, tempo,
espaço, narrador etc.).
Essas três unidades, assim distribuídas, vão proporcionar um conhecimento
bastante interessante dos conceitos mais genéricos da teoria da literatura. Além
disso, constituirão três etapas interligadas pela temática e por um procedimento
que vai do geral ao específi co. Assim, a parte que diz respeito aos fundamentos da
literatura criará condições para que o aluno sinta a importância da arte literária,
17
18
de sua distinção de outras formas de arte e de discurso; também ajudará o aluno
a compreender que a teoria é uma prática humana fundamental à existência, pois
não existe nada bem planejado que não seja fruto de alguma refl exão teórica,
seja lá em que nível for. Nessa primeira unidade, o aluno será levado a ir se
familiarizando, aos poucos, com os conceitos que servem para explicar, descrever
e gerar um conhecimento especializado, enriquecendo o seu patrimônio
cultural. O objetivo mais importante nessa primeira etapa é uma refl exão sobre
a literatura, comparando-a com o que não é literatura e mostrando por que essa
distinção é tão importante para o aluno quanto para o professor ou qualquer
pessoa que queira compartilhar desse tipo de conhecimento. Assim, um soneto de
Augusto dos Anjos, “Vandalismo”, entre outros exemplos citados, levará o aluno
a ir diferenciando, do ponto de vista qualitativo, o que efetivamente é literatura
daquilo que não é, não tem nenhuma importância em termos de arte, mas pode
até se fazer passar por tal. Mostraremos esses exemplos no momento preciso.
Na segunda unidade, o estudo começa a ser mais específi co. Vamos abordar
a teoria dos gêneros literários, imprescindível à classifi cação dos tipos mais
diferentes de texto que a tradição, ao longo dos milênios, oferece. Por exemplo, a
história de Sansão e Dalila, relatada no Livro dos Juízes, da Bíblia, é contada em
forma de narrativa. Mas ela poderia ser narrada em forma de poesia, com versos,
com estrofes. Da mesma forma, poderia ser vivida por personagens em um texto
voltado para a encenação teatral. Isso signifi ca que um determinado enredo pode
assumir várias formas. Os fatos aterradores do 11 de Setembro, em Nova York,
poderiam ser transformados em conto, romance, crônica, poema lírico, texto
dramático (teatral). Poderíamos ter os mesmos personagens, os mesmos fatos, o
mesmo tempo, o mesmo espaço, mas com formas diferenciadas que distinguem
cada gênero. Nesse sentido, percebe-se a relevância dessa teoria para levar
o aluno a não ver os textos literários pelo que eles têm apenas de semelhante,
mas principalmente pelas diferenças. A teoria dos gêneros explica em que
consistem tais diferenças e a necessidade de conhecer os devidos meios teóricos e
conceituais para identifi cá-las.
Na terceira unidade, o aluno perceberá que o curso fi cará ainda mais
específi co. Depois de expostos os conceitos sobre gênero lírico, gênero dramático
e gênero narrativo (também chamado, tradicionalmente, de gênero épico), o
estudo vai se deter mais sobre este último. Várias categorias serão conceituadas, o
que constitui cada uma delas, sempre com exemplos bem representativos. Alguns
exemplos serão mostrados para que o aluno tenha uma percepção adequada
do gênero em questão. Depois, serão apresentados alguns contos de Machado
de Assis, considerado pela crítica um dos maiores escritores brasileiros. Serão
sugeridas leituras dos contos, mas, a título de didática, será feito um resumo de
alguns contos, assim como um comentário crítico da situação representada no
enredo e vivida pelos personagens. Acredito que esse trajeto aqui proposto, do
geral ao específi co, ajudará a facilitar a compreensão da natureza e dos objetivos
da disciplina em curso.
ATENÇÃO: A teoria da literatura é um conjunto de princípios que exigem de
você uma refl exão. Por exemplo: como distinguir a literatura e saber reconhecer
se um texto é literário ou não?
REFLITA: Sem a leitura dos textos literários, de jornais, de livros e outras
fontes, não adianta fi car na teoria pela teoria. A teoria é importante, mas
depende do objeto de estudo, que são os próprios textos literários.
AGORA É SUA VEZ: Vá agora, imediatamente, ler o poema “Vandalismo”,
de Augusto dos Anjos. Ele pode ser encontrado em alguma edição do Eu, mas
pode também ser buscado pela Internet. Leia várias vezes esse soneto e procure
entender o que existe de diferente no sentido dos versos, em comparação com
a vida real.
19
UNIDADE I
OS FUNDAMENTOS DA LITERATURA COMO
CONSTRUÇÃO ARTÍSTICA
Em primeiro lugar, vamos fazer uma breve refl exão sobre a teoria. Como
você já deve ter ouvido falar, a teoria é algo muito distinto da prática. Entretanto,
a situação real não é bem assim. O que se entende por teoria no senso comum
é algo muito preconceituoso. O senso comum é um tipo de comunicação muito
importante no dia-a-dia, mas um conhecimento mais qualifi cado é aquele
que passa a duvidar das generalizações do senso comum. E a teoria tem um
papel muito relevante nessa direção. No cotidiano você já ouviu falar diversas
vezes coisas assim: “O brasileiro é preguiçoso”; ou então: “A fome sempre
existiu e não tem jeito”; ou então: “Os artistas não contribuem em nada para o
desenvolvimento nacional”. Essas três frases são tipicamente do senso comum.
Elas circulam em nossa sociedade com o objetivo de fazer com que você
também se apegue às generalizações que ela propagada. O que signifi ca uma
generalização desse tipo? Vamos analisar a primeira frase. Ora, preste ATENÇÃO:
ela afi rma que todos os brasileiros são preguiçosos, pois o sentido singular dela
está se referindo, na verdade, ao plural. Ora, você acredita que a preguiça é tão
grande assim no Brasil? Se o brasileiro fosse preguiçoso mesmo, você acha que as
maiores empresas multinacionais do mundo estariam funcionando aqui? Se você
fosse dono de uma empresa como uma fábrica ou um banco, você a instalaria
num lugar onde o povo é totalmente preguiçoso? Observe que, com essa
brevíssima refl exão, a gente começa a discutir a frase e duvida do conteúdo dela.
Se formos para a prática, veremos que milhões de pessoas nesse país trabalham
em condições péssimas, mal pagas, mas trabalham intensamente, inclusive
crianças e mulheres grávidas. Assim, quanto mais refl etirmos criticamente, menos
aceitaremos as generalizações.
O que está exposto na segunda frase é algo muito semelhante: ela afi rma
que a fome sempre existiu e, por isso, a gente não deve se indignar com ela. Nesse
sentido, o senso comum é levado a acreditar que a fome é algo até natural, normal,
o que não deve gerar preocupações. Mas será que os fatos são assim mesmo?
Encontrei um dia na Internet uma matéria curiosa que dizia o seguinte: Bill
Gates, o homem mais rico do mundo, ganha mil dólares por segundo, enquanto
populações inteiras na África têm uma renda per capita de um dólar por mês.
Você acha que isso é natural? Será que esse abismo imenso que separa pobreza de
riqueza é algo que não tem jeito? Uma refl exão mais apropriada sobre o assunto
mostrará que a pobreza é produzida pela riqueza e vice-versa. É o trabalho dos
pobres, explorados, miserabilizados, que gera a riqueza dos poderosos. Portanto,
não existe nada de natural nesse processo. Trata-se de uma questão social de
estratifi cação e appartheid econômico. O mundo atual, com enormes tecnologias,
poderia produzir alimentos para toda a humanidade, o que acabaria de vez
com a fome. Portanto, o problema da fome não é de natureza técnica nem é uma
maldição do destino; o problema é essencialmente sócio-econômico. Os políticos
não têm interesse em acabar com a fome porque ela gera subordinação. A África
21
22
tem enormes populações famintas, mas Nova York também tem, conforme
última pesquisa feita pela ONU, trinta e cinco mil mendigos! Isso signifi ca que
a fome coexiste, em Nova York, com o maior volume de dinheiro do planeta. E
esse problema não provém de nenhuma destinação maldita, mas da falta de uma
política capaz de integrar as pessoas a terem uma vida digna na sociedade.
As refl exões acima também servem para desmontar a terceira frase. Ela
afi rma que os artistas são vadios, inúteis, imprestáveis, como se não servissem
para nada na sociedade capitalista, tão caracterizada pelo imediatismo e pela
ambição de ter as coisas materiais em abundância. Ora, será que apenas os
bens materiais são importantes para a formação do ser humano? Será que o ser
humano não precisa de um bom fi lme, uma boa música, um bom livro, visitar
exposições de arte, para se enriquecer intelectualmente? Refl ita bem sobre isso:
o preconceito que se tem em relação à arte está baseado na idéia de que a arte
não dá lucro, não tem importância para o seu crescimento, não leva a nada de
proveitoso. Os textos que vamos expor em seguida demonstrarão o contrário do
que está tão banalizado no senso comum.
AGORA É SUA VEZ: Leia de novo, com mais calma, o poema indicado
de Augusto dos Anjos. Ele mostrará a você um tipo de linguagem que é
impossível na lógica e no senso comum que utilizamos no dia-a-dia. Em
seguida, passe a ler com mais apego os conceitos que serão apresentados sobre
a natureza da literatura.
1.1 A Natureza da Literatura
Refl etir sobre a natureza da literatura é verifi car como a arte das palavras
se constrói. Literatura não é documento, não é jornal, não é texto científi co.
Literatura é fi cção, criação imaginária, embora ligada à realidade concreta.
Acontece que ela não é uma cópia nem uma mera retratação da realidade que
vivemos. A literatura é uma transfi guração artística das experiências humanas,
mas nunca se reduz a estas. Para entendermos com mais vigor essa diferença,
trabalharemos aqui, inicialmente, com três fundamentos básicos da literatura: a)
A necessidade de ruptura com o senso comum; b) A ilogicidade conceitual; c) A
combinação das palavras.
1.1.1 A Necessidade de Ruptura com o Senso Comum
Um dos fundamentos mais constantes na literatura, como na arte em geral,
é a ruptura com o senso comum. Ora, se a literatura é um procedimento artístico,
ela tem que ser elaborada com toda uma criatividade capaz de se distinguir do
que já se conhece. Se o texto literário se limitar a reproduzir o que já existe e já
se conhece, qual o tipo de contribuição que ele estará dando ao conhecimento?
Além disso, como já evidenciamos no início, a arte tem que despertar as pessoas
para uma nova percepção das coisas, que não seja meramente o que já se sabe na
experiência vulgar. Veja você esse verso de Augusto dos Anjos:
A podridão me serve de Evangelho.
Em que é que esse verso pode contribuir para que você tenha uma
percepção diferente dos conteúdos que ele transmite? Em primeiro lugar,
vivemos numa civilização ocidental, judaico-cristã, que historicamente teve
muita infl uência do poder da Igreja católica. Por tal infl uência, aprendemos
que o Evangelho é uma palavra que signifi ca “boa nova”, “boa notícia”, que é
a notícia de salvação proporcionada por Cristo. A salvação foi pregada ao longo
dos séculos como a maior esperança em que a humanidade deveria acreditar.
Nossa formação religiosa, que implica outros valores éticos, até hoje dissemina
tais idéias: a salvação é o que garante a vida eterna, o descanso perpétuo com
Deus, longe de todos os tormentos da história. No verso de Augusto dos Anjos,
entretanto, toda essa pregação religiosa sofre uma transformação radical.
Ele inverte radicalmente o sentido original de Evangelho. Segundo o verso,
o Evangelho não contém nada de puro e magnânimo, mas de podridão. O
sentido de decomposição, inerente ao de podridão, é o extremo oposto de uma
eternidade feliz e guardada por Deus. Independentemente dos valores religiosos
do autor (pois essa questão biográfi ca não interessa aqui), pode-se deduzir do
verso que ele se afasta do sentido milenar da Bíblia e, portanto, do sendo comum
que se formou no Ocidente desde a disseminação do cristianismo. Nesse sentido,
a podridão é sinônimo de boa nova, como se, ironicamente, a salvação fosse a
decomposição, que é rigorosamente sinônimo da morte. Esse verso, de fato, não
quer transmitir nenhuma esperança, nenhuma sensação de otimismo em relação
ao futuro. O futuro, para ele, já está prefi gurado na podridão. Observe como o
verso se apropria de outro sentido da Bíblia (a previsão, a projeção antecipada
do futuro, no caso a certeza de um futuro fi rme e garantido ao lado de Deus)
para desmanchar, desfi gurar, desconstruir. Esse procedimento de desconstrução
é próprio da literatura para que ela deliberadamente se afaste do senso comum e
gere novos signifi cados, novos sentidos, mesmo que seja em torno do que é mais
conhecido e aceito convencionalmente. Assim, o destaque de Augusto dos Anjos à
arte e à refl exão, nesse verso, é acrescentar à tradição de valores religiosos e éticos
uma leitura que comumente não se faz dos chamados símbolos sagrados. Nessa
medida, Augusto dos Anjos procede à dessacralização do convencional. Vejamos
agora o verso em um contexto mais amplo:
A podridão me serve de Evangelho.
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques,
E o animal inferior que urra nos bosques
É com certeza meu irmão mais velho!
Na continuidade da leitura, vamos percebendo que o grau de ruptura com
o senso comum aumenta. Por exemplo, a voz poética (eu-lírico) afi rma que ama
o esterco. Ora, esterco é excremento, sentido que se estende às fezes e ao que
é rejeitado pela cultura como algo nojento, desprezível, horroroso, que causa
repugnância. Mas, ao contrário dessa sensação negativa, repugnante, o eu-lírico
afi rma uma aproximação afetiva com os excrementos, “os resíduos ruins dos
quiosques”. Nesse verso também se nota que a lógica do senso comum é abalada
com muita veemência. Os dois últimos versos também reforçam isso. Eles já não
23
24
revelam nenhuma crença em valores religiosos do cristianismo, como, por exemplo,
a Criação divina do homem. Ao contrário: enfatiza-se que existe um parentesco
muito próximo entre o ser humano e “o animal inferior que urra nos bosques”,
colocados no poema como irmãos. Existe aí muito mais uma propensão a ver o
homem como um animal tosco, bruto, de natureza selvagem, do que uma criatura
de origem divina. É nesse sentido que o texto de Augusto dos Anjos merece o
estatuto de literatura, por conter esse fundamento de negação do que é mais
corrente na cultura e por utilizar determinados meios poéticos, como os versos
decassílabos e as rimas, para atingir o objetivo de estabelecer novos sentidos.
Lembremos agora de uma música de Roberto Carlos que tem um valor
religioso muito forte: “Jesus Cristo”. Essa canção, datada dos anos 70, abre-se com
a seguinte afi rmação:
Olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando.
Olho pra terra e vejo uma multidão que vai caminhando.
Como essa nuvem branca, essa gente não sabe aonde vai.
Quem poderá dizer o caminho certo é você, meu Pai.
Essa canção também apresenta rima e musicalidade. Mas ela é muito pobre
do ponto de vista do signifi cado. Ela não é capaz de criar um sentido novo para
nada. Limita-se ao que já se sabe ou se acredita. Ela não consegue ultrapassar o
senso comum. Vejamos bem: olhar para o céu e ver nuvem branca, isso é o óbvio!
A nuvem branca “vai passando”, está em movimento, o que também é o óbvio.
As demais linhas também não acrescentam nada que mereça o reconhecimento
de arte, pois não tem criatividade necessária para se distinguir do que já se
convencionou há séculos. Por exemplo, se formos consultar o Evangelho de João,
veremos que Jesus afi rma ser o caminho, a vida e a verdade, sendo o único meio
para se chegar a Deus. Independentemente de quem acredite nisso ou não, o
importante aqui é verifi car que Roberto Carlos apenas reproduz um sentido já
muito utilizado em nossa cultura. Portanto, comparando Augusto dos Anjos
com Roberto Carlos, observamos uma grande diferença entre os dois no que diz
respeito à criatividade artística.
ATENÇÃO: A grandeza poética de Augusto dos Anjos não está no fato de ele
romper com uma crença religiosa. Não é isso, pense bem! O que importa para
a teoria da literatura é verifi car a existência de ruptura com o senso comum, o
que pode ser observado em relação a quaisquer valores culturais, não apenas
os religiosos.
REFLITA: Roberto Carlos é pobre não por estar apresentando uma crença
religiosa na salvação, mas por fazer isso de uma forma muito simplória, que
não atinge qualquer qualidade poética. É a linguagem dele que não satisfaz às
exigências da arte.
AGORA É SUA VEZ: Quando você escutar alguma música dessas bandas
de “forró” que estão na moda, procure verifi car a qualidade da linguagem
utilizada. Você vai observar se a combinação das palavras gera algum
signifi cado novo ou se elas apenas reproduzem o senso comum.
Um dos objetivos dessa comparação sugerida acima é levar você a observar,
com maior consciência crítica, o que você ouve, lê e vê no dia-a-dia. Só assim
você será capaz de distinguir mais as coisas e não achar que tudo tem o mesmo
valor. A criatividade artística não está presente em tudo. A fi nalidade desse
curso é aprimorar a sua capacidade crítica diante dos fatos e das coisas mais
correntes da existência.
1.1.2 A Ilogicidade Conceitual
Ilogicidade signifi ca falta de lógica. Se eu digo que dois mais dois são
quatro, isso é perfeitamente conceitual. Mas, se eu digo que dois mais dois
são cinco ou zero, já estou me afastando do que é considerado lógico. A lógica
é fundamental para os conceitos, para a fi losofi a, para a ciência, para a técnica,
não para a arte. A arte tem que desenvolver uma lógica própria, um sentido
que seja exclusivamente seu, sem se reduzir à forma de nenhum outro tipo de
conhecimento. Veja, por exemplo, a seguinte frase:
O Brasil é o maior país da América Latina e seus recursos naturais são dos
mais variados do planeta.
Essa frase é inteiramente lógica. Tudo o que ela diz pode ser comprovado
na prática. De fato, o Brasil possui o maior território da América Latina, a qual
se estende do México à Argentina. Os recursos naturais do Brasil também já
foram muito estudados pela ciência e são, de fato, dos mais privilegiados de
todo o mundo. Essa frase, portanto, tem um valor conceitual que merece crédito.
Vejamos agora o seguinte verso, do poeta paraibano André Ricardo:
O vôo é o alicerce do pássaro.
Esse verso é uma realização literária exatamente por não conter nenhuma
lógica e, com isso, se distanciar do senso comum. O vôo é um fenômeno que
só pode ocorrer numa certa altura, em sentido ascendente, o que é totalmente
incompatível com alicerce. Ainda mais, o pássaro é leve, consegue desafi ar a
força da gravidade, o que não aconteceria se ele carregasse em sua base (em
suas patas) um alicerce de verdade. O alicerce, tal como se conhece na cultura,
é uma base de concreto, pedra, ferro, areia, de material bruto e pesado. Nada
disso pode servir de alicerce para um pássaro voar. Além disso, o alicerce, por
seu peso e por servir de base a construções, é algo próprio do solo, do subsolo,
em sentido descendente, o que contraria o sentido do vôo do pássaro. Um leitor
menos preparado vai dizer, reproduzindo o senso comum, que esse verso de
André Ricardo não tem lógica e por isso não tem valor. Ora, o que a teoria
literária diz é exatamente o contrário: a pertinência dele está na impertinência,
na incoerência, na ausência de lógica. Se o eu-lírico afi rmasse “O pássaro voa
no céu”, não teria nenhum valor literário exatamente por ser o óbvio. Observe
como a falta de lógica é essencial à criação de novos signifi cados. É o que pode
ser observado nesse quarteto de Augusto dos Anjos a respeito da vida e da
inteligência:
25
26
A vida vem do éter que se condensa.
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa!
É impossível comprovar na prática que a vida é um fenômeno formado
do éter condensado. Isso é uma imagem poética que não condiz com a realidade
palpável. Também é impossível explicar, por conceitos lógicos, o que é uma
expressão como “esfera microscópica do plasma” e como ela gera o pensamento
humano. Do ponto de vista científi co e conceitual, isso tudo afi rmado no quarteto
acima carece de valor. Do ponto de vista da arte, o seu valor reside exatamente
na impossibilidade de ser detectado na prática. Essa mesma impertinência pode
ser verifi cada nos versos seguintes, do poema “Noturno”, da autoria de Sérgio de
Castro Pinto:
Nas fronhas da infância
ensaquei meus sonhos.
Hoje, ensaco pesadelos.
E a cada noite, mais que a cabeça,
pesa-me o travesseiro.
Observe que a inversão de sentidos é tão grande, que o eu-lírico acaba
concluindo que o travesseiro pesa mais do que a cabeça. Tal conclusão só tem
coerência dentro do poema, que mostra a angústia de quem passa de uma infância
feliz para uma vida adulta de experiências negativas. Fora do texto, entretanto,
essa combinação de palavras não tem o menor sentido. Daí a tendência do senso
comum de reprovar esse tipo de procedimento, na medida em que a arte não
apenas se destaca por uma diferença proposital, como também exige esforço de
raciocínio para a compreensão dessa diferença.
Convém falar um pouco da diferença entre literatura e realidade em relação
ao valor das coisas e dos fatos. Na nossa realidade cotidiana, sabemos que existem
determinadas coisas que são bem mais importantes do que outras. O mesmo se dá
quando avaliamos os fatos do ponto de vista histórico. Por exemplo, aquele roubo
fabuloso que ocorreu na agência do Banco Central, em Fortaleza, por debaixo do
chão, é um fato muito mais importante para um historiador ou um jornalista do
que umas cigarras que estejam cantando numa tarde. Qual o jornalista que iria
se interessar por umas cigarras? O interesse pelo roubo é infi nitamente maior.
Assim, há uma hierarquia muito rígida entre os fatos reais. Mas o aluno tem que
entender que nas artes essa hierarquia se desfaz. Eu poderia criar um poema
sobre o roubo ao Banco Central e o texto não ter qualidade literária. Da mesma
forma, eu poderia criar um poema sobre o canto das cigarras e, a depender da
combinação das palavras e das imagens, resultar em um texto apreciável. É o que
se observa nesse poema de Sérgio de Castro Pinto:
as cigarras
são guitarras trágicas.
plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.
kipling recitam a plenos pulmões.
gargarejam
vidros
moídos.
o cristal dos verões.
ATENÇÃO: É importante você relacionar qualquer texto literário com outros e
também com fatos implicados em seu tema. É o que você deve fazer a partir de
agora, pois não existe nenhum texto que seja isolado da realidade ou de outros
textos.
PESQUISAR: No poema acima aparece o nome de um poeta britânico:
Kipling. Leia atentamente a informação a seguir, tirada da Internet, e procure
relacioná-la com o signifi cado do texto:
Rudyard Kipling, autor britânico
Joseph Rudyard Kipling (Bombaim, Índia, 30 de Dezembro
de 1865 - 18 de Janeiro de 1936) foi um autor e poeta britânico.
Em 1907 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.
Foi educado em Bideford, na Inglaterra. Em 1882 voltou à
Índia, onde trabalhou para jornais britânicos. Começou sua carreira
literária em 1886 e tornou-se conhecido como escritor de contos.
Foi o poeta do Império Britânico e seus soldados, que
retratou em vários contos, alguns deles reunidos no volume
Plain Tales from the Hills’, de 1888.
Em 1894 lançou O livro da selva, que se tornou internacionalmente um
clássico para crianças, também conhecido pelo seu personagem principal: o
pequeno Mowgli.
Muito conhecido também é um de seus poemas: “If” (Se), no qual um pai
dá conselhos a seu fi lho sobre como ser um homem de bem.
htt p://pt.wikipedia.org/wiki/Rudyard_Kipling
REFLITA: Você compreenderá melhor o poema de Sérgio de Castro Pinto, “as
cigarras”, se ler o poema “Se”, de Kipling, que vem logo abaixo:
27
28
SE
Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.
Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.
Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.
De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.
Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu fi lho!
Rudyard Kipling
Tradução de Guilherme de Almeida
OBJETIVO: Um dos principais objetivos da literatura é levar você a conhecer
um mundo mais amplo. Assim, depois dos poemas de Sérgio de Castro Pinto e
de Kipling, você chegará a outros textos de tema aproximado, como o de José
Paulo Paes, que você verá a seguir.
Kipling revisitado
Se etc,
se etc,
se etc,
Serás um teorema, meu fi lho.
AGORA É SUA VEZ: Você deve fazer uma pesquisa de imediato: ir a algum
livro de poesia e destacar um verso (ou uma estrofe) que lhe pareça muito
estranha, fora de compreensão, deslocado do senso comum. Transcreva o
verso (ou a estrofe) para as linhas abaixo e procure argumentar com as pessoas
(amigos, alunos, familiares) o que é que o texto tem de diferente, que não se
encaixa na lógica comum.
1.1.3. A Combinação das palavras
Como você já deve ter percebido, a ruptura com o senso comum e a
ilogicidade conceitual só são alcançadas com uma combinação de palavras
muito singular. Esse terceiro fundamento do texto literário, portanto, já pode
ser detectado nos dois anteriores, na medida em que são inseparáveis. Mas é
preciso chamar a atenção para esse aspecto: a forma como as palavras são
dispostas e se relacionam no texto é o que determina a sua condição artística.
Aristóteles, um pensador grego da Antiguidade, já havia notado isso nos
seguintes termos:
a) O historiador tem um limite: os fatos históricos;
b) O fi lósofo tem um limite: os conceitos;
c) O poeta não tem nenhum limite: é mais universal que o fi lósofo e o
historiador.
O que signifi ca, propriamente, essa distinção feita por Aristóteles? Para
ele, o historiador, em seu trabalho de registrar e interpretar a história, não
pode fugir do que os fatos históricos impõem; o fi lósofo também tem que
seguir toda uma linha de raciocínio lógico que o pensamento sistemático
da fi losofi a impõe; já o poeta (nome generalizado, na época, para o que
hoje chamamos de escritor) é muito mais universal e livre por não ter que
se submeter a nada disso. Assim, cabe ao artista usufruir dessa liberdade
imaginativa e criar as combinações de palavras mais estranhas, que levem as
pessoas a pensar de uma forma diferente dos ensinamentos históricos e das
premissas conceituais. Vejamos nesses versos de Zé Ramalho como essa teoria
de Aristóteles até hoje se mantém:
Meu treponema não é pálido nem viscoso
Os meus gametas se agrupam no meu som.
29
30
No primeiro verso, Zé Ramalho cria uma voz que faz um jogo de
palavras com o termo “treponema”. Treponema é o micróbio que transmite
a sífi lis, chamado cientifi camente de treponema pallidum. O verso aproveita
o sentido científi co de “pálido” para lhe atribuir um outro sentido, ao lado
do adjetivo “Viscoso”. Em seguida, o jogo de palavras, que gira em torno de
relações sexuais e doenças sexualmente transmissíveis, estabelece um outro
campo de refl exão, um outro universo de valores, na medida em que tudo
passa a ser desfi gurado por uma meditação em torno da própria música.
Assim, os “gametas”, que são espermatozóides responsáveis pela reprodução
humana, se agrupam não no óvulo, que é o seu receptáculo natural, mas
no “meu som”. Você percebe, portanto, que a combinação de um campo
semântico com outro cria um choque de sentidos que não é comum na
linguagem cotidiana. Observe o efeito semântico desse verso de Augusto dos
Anjos:
A Consciência Humana é este morcego!
Ora, qualquer dicionário (comum ou específi co, como os de psicologia)
defi ne a consciência como uma faculdade humana, uma parte especial
do cérebro, uma capacidade humana apropriada para a refl exão e o
entendimento. Jamais, porém, um dicionário ou um livro científi co vai dizer
que a consciência é um morcego. O que você pode detectar nesse verso?
Como o eu-lírico de Augusto dos Anjos chegou a essa distorção notável de
sentido? Ora, estudando o verso com mais calma, você vai averiguar que a
consciência pertence a um campo semântico e o morcego pertence a outro
campo semântico. São dois campos semânticos totalmente diferentes,
díspares, incompatíveis, mas que se encontram com toda pertinência na
lógica interna do poema. Na verdade, o célebre soneto “O morcego” não trata
propriamente de morcego, mas das turbulências da consciência humana, da
culpa, do remorso, da sensação que se tem de estar sempre sendo vigiado por
si mesmo. Nessa medida, a comparação fi nal entre a perturbação do morcego,
que interfere no seu quarto e tira sua privacidade, e a imagem da consciência
revela-se estritamente lógica na arte poética, mas sem o menor sentido fora da
expressão artística.
É preciso acrescentar, a essa altura, a seguinte informação: não existe
nenhuma regra definida para a literatura ou para qualquer arte. O texto
literário pode atingir a condição de arte pelos meios mais imprevisíveis.
Por exemplo, há textos que exploram muito as repetições, os exageros, os
excessos de detalhes, as aproximações fonéticas entre palavras de sentidos
distantes, entre outros recursos. Tais recursos são reconhecidos como
artísticos na medida em que não são utilizados na comunicação comum. Eles
oferecem um destaque em termos de criatividade, refutando o uso comum
e previsível da linguagem. Observe, por exemplo, os grifos dessa canção de
Chico Buarque,:
Basta um dia
Pra mim
Basta um dia
Não mais que um dia
Um meio dia
Me dá
Só um dia
E eu faço desatar
A minha fantasia
Só um
Belo dia
Pois se jura, se esconjura
Se ama e se tortura
Se tritura, se atura e se cura
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só
O que eu pedia
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
Só um
Santo dia
Pois se beija, se maltrata
Se come e se mata
Se arremata, se acata e se trata
A dor
Na orgia
Da luz do dia
É só o que eu pedia, viu
Um dia pra aplacar
Minha agonia
Toda a sangria
Todo o veneno
De um pequeno dia
É notória a presença da repetição nessa letra, o que constitui um elemento
relevante na composição. Além disso, a seqüência de verbos procura enfatizar
aquilo que se pode praticar em um único dia. Observe que maior parte da
seqüência é formada por verbos que denunciam a violência que impera na
sociedade. Em termos de condição poética, um dos destaques revelados pela
seqüência é que os verbos não seguem rigorosamente uma linha reta e lógica.
Ou seja: a seqüência poderia ser alterada, sem afetar a signifi cação do texto.
31
32
Ao contrário do raciocínio lógico, que tem que ter uma seqüência rígida, a voz
poética criada por Chico Buarque tem a liberdade de dispor os verbos à sua
vontade. A posição das palavras poderia ser trocada, o que não acontece num
enunciado lógico que apresenta causa e efeito.
Esse mesmo procedimento poético aparece na seguinte canção “O índio”,
de Caetano Veloso. Veja esses trechos:
Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América,
Num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas
Das tecnologias
(...)
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em
som magnífi co (...)
A temática dessa letra é uma notável utopia: o retorno de um índio,
plenamente restaurado, depois de séculos de extermínio que o avanço do
capitalismo provocou. Detendo-se, por enquanto, nas partes grifadas, observe
que ninguém fala dessa forma nos diálogos diários. A seqüência de substantivos
também é incomum e sem ordem previa estabelecida, uma vez que suas posições
poderiam ser alternadas. É essa liberdade artística que o texto poético apresenta
como uma das rupturas necessárias com o que é convencional.
PESQUISAR: Essa letra de Caetano Veloso faz referência a quatro nomes
importantes: Mohamed Ali, Peri, Bruce Lee e Gandhi. Faça uma pesquisa na
Internet sobre eles, para você ampliar os seus conhecimentos em história e
literatura.
Observe agora, com muita calma, essa letra aparentemente irracional de Zé
Ramalho:
Oh eu não sei se eram os antigos que diziam
Em seus papiros Papillon já me dizia
Que nas torturas toda carne se trai
E normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente
O nervo se contrai
Com precisão
Nos aviões que vomitavam pára-quedas
Nas casamatas, casas vivas, caso morras,
E nos delírios meus grilos temer
O casamento, rompimento, sacramento, documento, como um passatempo
Quero mais te ver
Com afl ição
Meu treponema não é pálido nem viscoso
Os meus gametas se agrupam no meu som
E as querubinas meninas rever
O compromisso, submisso, reboliço, no cortiço, chama o Padre Ciço para
benzer
Com devoção
Todas as seqüências grifadas revelam excessos de palavras que poderiam
ser evitadas, uma vez que é impossível manter uma comunicação desse tipo, no
imediatismo do cotidiano. Mas é pela insistência no excesso que a letra atinge
o objetivo de uma linguagem estética. Note um recurso parecido, aproximando
palavras pela semelhança sonora, no seguinte soneto satírico de Gregório de
Matos:
Neste mundo é mais rico o que mais rapa.
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa.
Com sua língua ao nobre o vil decepa.
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa.
Quem tem mãos de agarrar, ligeiro trepa.
Quem menos falar pode, mais increpa.
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A fl or baixa se inculca por tulipa.
Bengala hoje na mão, ontem garlopa.
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não digo porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Esse poema satírico faz uma crítica a fi guras do nosso período colonial,
estendendo-se daquele que fala da vida alheia à autoridade do Papa. No fi nal,
observe que o eu-lírico procede a um esvaziamento de sentido, pois a última
seqüência nem sequer é formada por palavras. Será que você iria se comunicar
com as pessoas através de seqüências sonoras sem sentido?
PESQUISAR: Esse poema de Gregório de Matos tem um vocabulário muito
complexo. Destaque todas as palavras que você não conhece e vá procurar o
sentido delas no dicionário. Assim, mais uma vez, você estará investindo em
seu patrimônio intelectual.
33
34
Como último exemplo dessas combinações tão diferentes de palavras,
gostaria de lhe apresentar um trecho do conto “A hora e vez de Augusto
Matraga”, de Guimarães Rosa. O conto retrata a vida de um homem que, por
várias maldades cometidas, é vítima de uma vingança: uma surra violentíssima
que ele sofre de vários homens. Depois de anos de recuperação física, Augusto
Matraga se muda para um lugar onde ele não quer ser mais reconhecido, o
vilarejo do Tombador. Um dia, o vilarejo é inesperadamente visitado por um
jagunço muito temido: Joãozinho Bem-Bem. Veja agora como o narrador descreve
o jagunço:
(...) o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fechatreta,
o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: seu
Joãozinho Bem-Bem.
Obviamente, você sabe que não é necessário descrever o perfi l de uma
pessoa com nove qualifi cações, ainda mais com palavras compostas, o que
seria muito difícil de pronunciar e seqüenciar na linguagem comum. O mais
interessante desse trecho de Guimarães Rosa é a possibilidade de atingir a
qualidade artístico utilizando palavras comuns, pois todos esses epítetos são
clichês da linguagem sertaneja, da gíria popular. A diferença está no excesso do
uso dessas expressões.
AGORA É SUA VEZ: Você está convidado a ler um texto muito especial: “A
hora e vez de Augusto Matraga”. Ele faz parte do livro Sagarana, de Guimarães
Rosa, e é um dos contos mais perfeitos que eu já li em toda a minha formação.
Quer tentar? Garanto que você não vai se arrepender.
Com esses exemplos riquíssimos das combinações poéticas, concluímos
essa primeira unidade.Resumindo: os três fundamentos da literatura que aqui
apresentamos são intrinsicamente ligados, não podendo ser separados. A ruptura
com o senso comum gera expressões ilógicas; as expressões ilógicas, fora dos
padrões da linguagem convencional, são reveladas por combinações de palavras
que causam estranheza nas pessoas. Aquele que tem gosto por arte e literatura
deve amadurecer no sentido de identifi car esses três fundamentos em determinado
texto, com o intuito de averiguar se ele pertence à arte literária ou não.
REFLITA: Transcreva para si mesmo a letra de alguma canção desses grupos de
“forró” que estão tanto na moda: Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Aviões do
Forró etc. Analise se pelo menos alguma frase tem um sentido diferente do senso
comum. Comente isso com seus amigos mais próximos, alunos e familiares.
ATENÇÃO: Leve essa tarefa a sério: procure ler qualquer livro de Paulo Coelho,
que é considerado um grande escritor da atualidade, e transcreva abaixo alguma
frase dele que tenha consistência artística. Ora... você acha que isso é possível?
PESQUISAR: Procure ler para alguns amigos um trecho de alguma obra de
Paulo Coelho e um soneto de Augusto dos Anjos. Em seguida, pergunte a eles
qual é o mais estranho e por quê.
AGORA É SUA VEZ: Vá direto ao Eu, de Augusto dos Anjos, e leia mais de
uma vez o poema “O morcego”. Em seguida, vá a um dicionário e procure
ver a defi nição de “semântica”, para você entender o que é campo semântico e
combinação poética de palavras.
35
UNIDADE II
A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS
A teoria literária faz uma classifi cação da literatura em três grandes gêneros:
a) o gênero épico (ou narrativo); b) o gênero lírico; c) e o gênero dramático. Cada
gênero tem sua própria confi guração, suas características, suas particularidades.
Mas um determinado texto literário pode revelar características de mais de um
gênero, como veremos logo adiante. Vejamos, nesse momento, como se faz a
classifi cação:
2.1 O Gênero Épico
O gênero épico (também chamado de narrativo) é caracterizado por
um conjunto de categorias, tais como: um narrador, um enredo, personagens,
tempo, espaço, entre outras. Segundo uma concepção tradicional, toda narrativa
é centrada em um enredo, ou seja, em alguma história fi ctícia que é relatada ao
leitor. Aquele que conta a história é o narrador, responsável pela transmissão
dos conteúdos e pela escolha do ponto de vista. Os personagens são aqueles que
vivenciam a ação no tempo e no espaço. Observe o seguinte comentário sobre o
conto “Missa do galo”, de Machado de Assis:
Nogueira, jovem de dezessete anos, mora provisoriamente na casa de
Conceição, segunda mulher de Meneses. Este costuma dormir fora de casa
uma vez por semana, dizendo que vai ao teatro. Conceição fi ca sabendo que
o marido tem outra mulher, mas se acostuma com a idéia. Ela, de trinta anos,
tem um temperamento moderado, sendo uma pessoa simpática. Numa noite
de Natal, o marido vai ao teatro e Nogueira fi ca lendo em seu quarto Os três
mosqueteiros, enquanto aguarda a missa do galo. Às onze horas, Nogueira
encontra-se com Conceição na sala escura da casa. Conversam sobre sono e
paciência, romances lidos, assuntos simples. Achando que está aborrecendo
Conceição, Nogueira quer ir logo à missa, mas ela não deixa. Conceição levantase,
anda pela sala e ele passa a ter uma impressão mais sensual dela. O que
passa a atrair Nogueira são os gestos sutis dela, despertando nele curiosidades
e desejos. Ela chama a atenção pelos detalhes do corpo, como as mãos, os olhos,
os dentes. Senta-se ao lado dele e ambos cochicham. A partir daí, não sente nela
apenas uma pessoa simpática, mas lindíssima. Ele quer se levantar, mas ela
não permite. Ela reclama dos quadros que tem em casa, que exibem mulheres;
preferiria ter quadros de santas. Ela fala a Nogueira de suas devoções de moça e
casos vividos na juventude. Depois fi cam calados por um tempo e, em seguida,
Nogueira é chamado lá fora por um amigo para a missa do galo. Na missa, ele
só pensa em Conceição. No outro dia a encontra natural, sem nada de especial
que lhe lembrasse as vésperas. Depois, não torna mais a vê-la.
Ora, quando você for fazer a leitura do conto, vai perceber que o principal
aspecto do texto é o clima de desejos mútuos que se cria entre os dois, sem que
nenhum dos dois parta para alguma ação concreta e comprometedora. Esta é
37
38
a grande tensão gerada pelo narrador e vivida pelos personagens. O fato de o
marido de Conceição ter uma mulher fora poderia servir de pretexto para ela ter
algum caso amoroso com o jovem estudante. E o que se espera durante toda a
leitura do conto é alguma forma de traição, pelo menos por alguns minutos. A
tensão aumenta na medida em que Conceição mais se aproxima de Nogueira e
estreita as relações de intimidade com ele. Mas nada de extraordinário acontece.
E a ida do jovem para a missa do galo é a confi rmação das convenções, a vitória
da ordem moral e do comedimento, ao invés do proibido que se espera a todo
instante.
Machado de Assis, nesse conto, cria um enredo que gera uma expectativa
e a esvazia. A transgressão esperada não chega a ocorrer. Tudo acaba dentro
das atitudes mais aceitas pela moral social. O personagem Nogueira, por isso,
que é o narrador em primeira pessoa, transmite ao leitor uma certa sensação de
frustração.
Como se percebe, “Missa do galo” pertence ao gênero narrativo por
preencher as condições básicas dessa forma literária. Esse mesmo enredo,
entretanto, poderia ser passado ao leitor não através de um narrador, mas
em forma de teatro, onde os personagens iriam agir de forma autônoma, sem
necessidade de ninguém para relatar a história. A presença do narrador, portanto,
é uma diferença fundamental entre o gênero narrativo e os demais gêneros.
ATENÇÃO: Você precisa ler os principais contos de Machado de Assis
que estão indicados na bibliografi a. Machado de Assis destaca-se como o
maior escritor brasileiro do século dezenove e um dos maiores de todos os
tempos. Portanto, a leitura dos textos dele é fundamental para a formação de
professores e alunos de Letras.
O OBJETIVO da literatura é criar novos sentidos pela arte, mas não levar as
pessoas a imitar aquilo que se lê.
REFLITA: O que você faria se estivesse na situação de Nogueira? Você
acha que a mulher traída tem o mesmo direito de trair o marido? Será que a
mensagem do conto é essa?
2.2 O Gênero Lírico
Um texto lírico é o que chamamos modernamente de poesia. Ele não
precisa ter nenhum narrador. Pode até ter um narrador e um enredo, mas não
necessariamente. Isso signifi ca que o gênero lírico apresenta outras características.
Ele se distingue por uma voz poética que é chamada de “eu-lírico”. Este não deve
ser confundido com o eu do autor, mas entendido como uma voz fi ctícia que
emite sentimentos. A interioridade é o ponto distintivo do gênero lírico. Enquanto
o gênero épico (ou narrativo) tende a relatar acontecimentos, o gênero lírico tende
a manifestar o interior do ser humano. Trata-se da representação de sentimentos
como o amor, o medo, a morte, a paixão, a alegria, a tristeza, a dor, o prazer, entre
muitos. Assim, o eu-lírico pode até partir de algum fato histórico objetivo, mas o
que vai predominar na sua voz é o sentimento em torno desse fato. Por exemplo,
o fi nal da Segunda Guerra Mundial, em 1945, é marcado pelas explosões atômicas
sobre o Japão. Isso é um fato histórico concreto. Mas o poema abaixo, de Vinícius
de Moraes, não está bem interessado em relatar o fato histórico, tal como ocorreu
no fi nal do confl ito. O principal objetivo dele é retratar a sensação de perdas
irremediáveis e os efeitos terríveis deixados pela irradiação nuclear. Leia com
bem calma o poema:
ROSA DE HIROXIMA
Pensem nas crianças
mudas telepáticas
pensem nas meninas
cegas inexatas
pensem nas mulheres
rotas alteradas
pensem nas feridas
como rosas cálidas
mas oh não se esqueçam
da rosa da rosa
da rosa de Hiroxima
a rosa hereditária
a rosa radioativa
estúpida e inválida
a rosa com cirrose
a anti-rosa atômica
sem cor sem perfume
sem rosa sem nada
Existem duas teorias básicas, com posições diferentes, a respeito da
condição do eu-lírico. Para a primeira teoria, o poema lírico é centrado em uma
voz individual que exprime toda uma visão de mundo muito particular. Para
a outra teoria, a voz do poema lírico não é jamais individual, mas produzida
socialmente. Portanto, conforme essa segunda teoria, o lirismo é a expressão de
sentimentos sociais, históricos, objetivos, por mais que eles assumam a aparência
de algo individual. Tomando como base esse texto de Vinícius de Moraes,
observamos que a preocupação do eu-lírico não é propriamente expressar o que
ele tem em si, de problema particular, mas um sofrimento humano que vai muito
além de qualquer indivíduo. Veja agora alguns fragmentos de Augusto dos Anjos,
para averiguar se essa teoria se confi rma:
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava.
39
40
Mordia-me a obsessão má de que havia
Sob os meus pés, na terra em que pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia.
Como se pode perceber, as duas teorias podem ser aproveitadas no
seguinte sentido: a visão individual de mundo existe, prepondera no texto lírico,
mas os seus valores são objetivos, ou seja, não escapam às imposições da história
e das questões sociais. Essa contradição ocorre com qualquer texto lírico, pois a
expressão individual também tem toda uma conotação social que não pode ser
desprezada.
PESQUISAR: Você tem duas tarefas urgentes: a) Ler sobre o contexto da
Segunda Guerra Mundial, especialmente sobre Hiroxima, para entender
melhor as conseqüências da explosão atômica reveladas no poema de Vinícuis
de Moraes; b) Identifi car no mesmo poema o signifi cado da expressão “antirosa
atômica”.
REFLITA: Por que Vinícius de Moraes não coloca nenhuma data no seu
poema? Em que aspecto isso corresponde à natureza do gênero lírico?
Leia (sempre com calma) esses quartetos de Mário Quintana:
DA REALIDADE
O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! Quanta vez a vida nos revela
Que ‘a saudade da amada criatura’
É bem melhor do que a presença dela...
DA AMIZADE ENTRE MULHERES
Dizem-se amigas... Beijam-se... Ms qual!
Haverá quem nisso creia?
Salvo se uma das duas, por sinal,
For muito velha, ou muito feia...
DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA
Como o burrico mourejando à nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...
DAS UTOPIAS
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Mário Quintana fi cou conhecido como “Poeta das coisas simples”. Essa
alcunha se deve à predominância de temas triviais e de uma linguagem poética
sem rebuscamento. Tal acessibilidade, conhecida como transparência semântica,
confi rma-se em quase todos os seus textos líricos. Como você deve já ter
precebido, vários versos apresentam um tom de crítica e deboche à hipocrisia
humana; outros criticam a pretensão de originalidade intelectual; e todos
combinam elementos clássicos (rimas, decassílabos, ritmo) com a concisão da
poesia modernista, que prima muito por textos curtos. Mas, independentemente
de o poema ser longo ou conciso, o que o insere no gênero lírico é a representação
simbólica de sentimentos, sejam eles de origem pessoal ou social.
AGORA É SUA VEZ: Esses quartetos se encontram no livro Os melhores
poemas de Mário Quintana. É um livro com poemas curtos e vários deles são
irônicos e cômicos. Você precisa conhecer esse poeta desde já, como na leitura
atenta do soneto abaixo:
Menininho doente
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
Ouve também o carpinteiro em frente
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...
Mas nesta rua há um operário triste.
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.
Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...”
A leitura do poema autoriza a interpretação de que o tema subjetivo
da solidão infantil é a refl exão central do eu-lírico. A solidão não afeta
exclusivamente a criança, uma vez que os adultos trabalham e não dispõem de
tempo para a meditação sobre suas condições subjetivas e existenciais. O texto
pode provocar uma discussão a respeito de uma grande divisão de trabalho
41
42
no mundo capitalista: a desproporção entre a produção material e a produção
de bens simbólicos. O operário citado nos tercetos tem apenas uma conotação
simbólica, uma vez que se trata do próprio eu-lírico ou da representação de um
poeta, o que exclui o sentido denotativo do trabalhador inserido na produção
em série. Com isso, você está abrindo um novo campo de refl exões sobre a sua
própria vida, na condição de aluno ou de professor.
REFLITA: Um dos quartetos de Mário Quintana tem por título “Das utopias”.
Você já pensou para refl etir o signifi cado de uma utopia? Se já, o que
signifi caria, no mundo atual, o conceito de utopia? O que seria, para você, um
pensamento utópico?
Os poemas de Mário Quintana revelam frases sarcásticas. momentos
de nostalgia, sem padrão rígido e modelar. A trivialidade temática não exclui
temas tão importantes no mundo moderno como a solidão pessoal e, sobretudo,
a solidão social nas cidades grandes, onde milhões de pessoas são renegadas,
têm uma vida muito expolorada e têm constantemente um sentimento de
insignifi cância. Além disso, Mário Quintana tem um estilo heterogêneo que
contempla versos em branco e, como vimos, também decassílabos clássicos. Sua
poética, portanto, é fascinante por ser múltipla, abrangendo várias formas, como
a produção de sonetos e poemas curtos com versos de feição modernista. Ele
procura combinar o mais tradicional com o mais moderno, o que resulta em uma
mistura muito singular de traços românticos, como a nostalgia e a solidão, com
temas mais cruciais do século vinte, como a violência das metrópoles.
2.3 O Gênero Dramático
O gênero dramático é aquele feito para ser encenado no teatro. A palavra
“dramático” provém de “drama”, que signifi ca “ação”. Assim, o sentido desse
gênero é fundamentado na ação direta do personagem, que não requer nenhum
narrador para o relato. Outro fundamento do texto dramático são os diálogos
entre os personagens, como nessa passagem do Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna:
João Grilo – (...) Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava
me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que
ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem,
nem os anjos que estão no céu, sem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está
escrito lá assim mesmo?
Manuel – Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo
trinta e dois.
João Grilo – Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?
Manuel – Sou não, João, sou católico.
João Grilo – Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que
entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção,
minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao
mundo?
Manuel – João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém
entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar nada agora, porque
você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima com meu Pai.
Veja que o diálogo entre João Grilo e Jesus não precisa ser apresentado
por um narrador. É como se os dois estivessem no palco e falassem diretamente
um ao outro, sem ninguém para mediar as suas ações. Mas Ariano Suassuna
cria, além dos personagens propriamente do enredo, a fi gura do Palhaço, que
desempenha várias funções artísticas, entre elas a de intervir nas cenas para as
devidas mudanças de cenário e continuidade dos acontecimentos. Observe as
passagens que destacamos abaixo, todas pertencentes à fala do Palhaço:
I – Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade.
II – A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da
misericórdia. Auto da Compadecida!
III – Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja,
o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais
do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de
solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo,
baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo
sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades.
Pode-se concluir que as duas primeiras passagens fazem anúncio antecipado
do enredo e a terceira é uma refl exão sobre o mundanismo da Igreja. Elas oscilam
entre a gravidade do pecado, a severidade da punição divina e a vitória fi nal da
misericórdia sobre o mal. Apenas a terceira diz respeito à autoria da peça, cuja
temática, de infl uência erudita, é baseada no espírito da cultura popular.
Veja agora um comentário sobre a peça O pagador de promessas, de Dias
Gomes, para você verifi car os traços do gênero dramático. O enredo que você
vai conhecer agora poderia lhe chegar através de um texto narrativo, ou seja, de
um texto que apresentasse uma voz contando a história. No entanto, todas as
informações que você vai ler chegam, originalmente, através das ações diretas
dos personagens. Preste atenção ao seguinte relato:
Zé do Burro, um homem simples de uma cidade pequena da grande Salvador,
faz uma promessa e quer pagá-la com uma cruz a ser depositada na Igreja de
Santa Bárbara, na capital da Bahia. Anda quarenta e dois quilômetros com a
esposa, Rosa, para essa tarefa. Rosa não agüenta passar a madrugada na porta
da Igreja e é atraída por Bonitão, um explorador de mulheres, para um “hotel”.
Quando a Igreja se abre pela manhã, o Padre Olavo se opõe a Zé do Burro e não
permite que ele entre carregando a cruz. A essa altura, Rosa já tem traído Zé
do Burro com Bonitão. Zé do Burro, ao saber da traição, entra em confl ito com
a esposa, prometendo-lhe um ajuste em casa, mas não se desfaz da promessa.
Bonitão arranja motivos para chamar a polícia para o local. Várias pessoas,
43
44
de grupos sociais diferentes, vão chegando para o local. Num confl ito que se
desencadeia, Zé do Burro é assassinado pela polícia, amarrado na cruz por uns
lutadores de capoeira e colocado no altar de Santa Bárbara, à semelhança de
Cristo.
Ora, o conjunto de fatos aí citados constitui o enredo da peça. Mas este
enredo é desenvolvido em ação concreta, sem narrador. Portanto, a diferença
entre o texto dramático e o narrativo não é o enredo, mas a predominância
quase absoluta dos diálogos. São os diálogos que encaminham a retratação
da intransigência da Igreja, representada pelo Padre Olavo, que não defende
o diálogo da Igreja com as tradições afroculturais. Zé do Burro representa a
mentalidade arcaica de religiosos cristãos à margem da Igreja, o que fi ca
patente na ingenuidade dele. Há um confl ito entre o ecletismo religioso e a
ortodoxia católica, o que não resulta em entendimento harmônico. Nesse
sentido, os diálogos são importantíssimos para acentuar o desentendimento
entre o Padre e Zé do Burro. Um jornalista também tenta se aproveitar da
situação para fazer matéria sensacionalista. Assim, a presença da imprensa,
que capitaliza o acontecimento como um “furo” jornalístico a serviço da
informação transparente da verdade, é pura mentira. A presença de tipos
populares da Bahia como prostitutas, poetas cordelistas, negras do acarajé,
lutadores de capoeira, oferece um panorama da situação social de Salvador.
Mas jamais teríamos esse quadro social, na peça, se não fossem os diálogos
entre os personagens mais variados. A intenção política de Dias Gomes não é
atacar apenas a Igreja católica, mas vários segmentos sociais que são fl agrados
em torno da questão de Zé do Burro. Essa estratégia artística corresponde à
ausência de maniqueísmo, superando a visão ingênua da relação entre o bem
e o mal. Podemos interpretar a ação de Zé do Burro como um ato simbólico
de sacrifício humano, uma vez que há perda de vida em função de ideais
religiosos. O percurso sacrifi cial dele é muito relevante na simbologia do texto,
uma vez que seu deslocamento com a cruz nas costas lembra uma passagem
fundamental dos ensinamentos evangélicos. Para o padre, entretanto, o que
Zé do Burro faz é heresia, pois a visão ofi cial da Igreja é a única que deve
valer. Dias Gomes consegue congregar na peça tendências as mais diversas,
como elementos trágicos misturados a elementos cômicos, elaboração erudita
e cultura popular, linguagem coloquial e linguagem formal, facilidade
de assimilação e simbologia complexa. Zé do Burro é vítima de falsas
interpretações ao longo do enredo, o que convém às necessidades de cada
acusador. Esse processo de criação de estereótipos fi ca evidente na passagem
em que o jornalista o chama de “revolucionário”, homem que luta contra o
capitalismo, baseado nas idéias do socialismo. Dedé Cospe-Rima, o cordelista,
vê em Zé do Burro um representante ideal da cultura popular, um herói
adequado para o seu cordel, que se baseia em fontes recolhidas nas ruas. O
Padre, ao saber que Zé do Burro benzera sua cruz em um terreiro, considera
isso uma profanação inadmissível pela consciência católica centrada em Cristo
e nos santos canonizados pela Igreja, daí sua rejeição a Iansã. Os lutadores
de capoeira defendem Zé do Burro por causa de sua simpatia à fé popular
mais ingênua e eclética, fi cando a favor das práticas religiosas dos terreiros
de Salvador. Rosa vê em seu marido um intransigente, sendo este o principal
motivo de aceitar as ofertas de Bonitão, sem perceber que vai ser prostituída.
Mas... é bom refl etir mais uma vez... Por que essa peça de Dias Gomes
pertence ao gênero dramático e não narrativo? Isso se dá por causa da sua
estrutura dialogal. Todo o confl ito entre o protagonista e o mundo externo
chega ao leitor pelos atos dos personagens. A intolerância entre Zé do Burro
e Padre Olavo é um recurso dramático que concorre para o efeito de aumento
das tensões do enredo, o que cresce na medida em que Zé do Burro não desiste
de sua promessa e o Padre Olavo também não abre mão de suas convicções
religiosas. Antes do desfecho, vão ocorrendo uns fatos que aumentam a tensão
da peça. Por exemplo, o “secreta”, um espião a serviço da polícia, intervém no
confl ito em frente à Igreja para prejudicar Zé do Burro. Bonitão manipula o
“secreta” para causar tumultos e justifi car a prisão do camponês. O jornalista
caracteriza o pagador de promessas como a favor da reforma agrária. O Padre
Olavo não procede a nenhuma refl exão crítica de seus procedimentos. E alguns
tipos populares têm simpatia pela causa de Zé do Burro, fi cando contra o Padre
e contra a polícia. No fi nal, o desfecho da peça pode ser compreendido como
um martírio típico do cristianismo primitivo, mas não é reconhecido pelas
autoridades clericais. Fica clara a utilização da tirania – abuso de poder – pela
polícia, quando age contra as classes sociais mais simples. Há, no fi nal de tudo,
uma aliança sutil entre o Estado e a Igreja para aniquilarem inimigos comuns,
considerados perturbadores da ordem estabelecida.
PESQUISAR: Você deve consultar no dicionário o signifi cado de todas as
palavras grifadas acima, para aperfeiçoar seu vocabulário.
Veja agora essa cena muito especial do Auto da Compadecida, para entender
melhor o gênero dramático. Após a procissão e a missa em latim para o enterro
do cachorro, o Palhaço faz a seguinte intervenção:
Palhaço – Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas
neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra ‘em latim’, imaginemos
o que se passa na cidade. Antônio Morais saiu furioso com o padre e acaba
de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está
inspecionando a sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em
primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afi nal de contas,
representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e
transigências, pois Antônio Morais é dono de todas as minas da região e é um
homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, o que
já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge.
De modo que lá vem o bispo. Peço todo silêncio e respeito do auditório, porque
a grande fi gura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador
e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja,
prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.
Esta longa fala pode ser interpretada de várias formas. Por exemplo, o
Palhaço exerce o papel de um narrador camufl ado, uma vez que o texto dramático
não tem propriamente narrador e é ele que preenche essa lacuna nos momentos de
45
46
apresentação, mudança e encaminhamento das cenas. As informações veiculadas
pelo Palhaço contribuem para um efeito fundamental da estrutura do gênero
dramático: a economia de meios. O Palhaço emite juízo, ainda que breve, sobre as
contradições da vida social do bispo, submetido a obrigações sacerdotais que visam à
autoconservação da Igreja e ao mesmo tempo agindo dentro de conveniências diante
do poder econômico da região. O Palhaço comporta-se de forma humilde diante
da passagem do bispo, o que não deixa de ter ressonâncias irônicas. O Palhaço tem
participação ativa no conteúdo do texto e na apreciação crítica da realidade.
Você deve se lembrar que no Auto da Compadecida ocorre um julgamento
para saber se as pessoas vão para o inferno, para o purgatório ou diretamente
para o céu. Na cena que precede o julgamento, ocorrem os assassinatos do
Bispo, do Padre, do Sacristão, do Padeiro e a Mulher, de Severino de Aracaju, do
Cangaceiro e de João Grilo. Sucede, então, nova intervenção do Palhaço:
Palhaço – Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a essa
pequena carnifi cina, mas ela era necessária ao desenrolar da história. Agora
a cena vai mudar um pouco. João, levante-se a ajude a mudar o cenário.
Chicó! Chame os outros.
Chicó – Os defuntos também?
Palhaço – Também.
Chicó – Senhor Bispo, Senhor Padre, Senhor Padeiro! (Aparecem todos.)
Palhaço – É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês.
Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entrada para
o céu e para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas
cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de
uma cena comum no sertão do Nordeste. (É claro que essas falas serão
cortadas ou adaptadas pelo encenador, de acordo com a montagem que se
fi zer.) Agora os mortos. Quem estava morto?
Bispo – Eu.
Palhaço – Deite-se ali.
Padre – Eu também.
Palhaço – Deite-se junto dele. Quem mais?
João Grilo – Eu, o padeiro, a mulher, o sacristão, Severino e o cabra.
Palhaço – Deitem-se todos e morram.
João Grilo – Um momento.
Palhaço – Homem, morra, que o espetáculo precisa continuar!
João Grilo – Espere, quer mandar no meu morredor?
Palhaço – O que é que você quer?
João Grilo – Já que tenho de fi car aqui morto, quero pelo menos fi car longe
do sacristão.
Palhaço – Pois fi que. Deite-se ali. E você, Chicó?
Chicó – Eu escapei. Estava na igreja, rezando pela alma de João Grilo.
Essas intervenções do Palhaço servem para evidenciar que toda a peça é um
artifício estético. O fi ngimento artístico tem primazia sobre a realidade histórica, pois
esta é apenas um referencial que o teatro não consegue reproduzir integralmente,
mas apenas alguns aspectos recriados em forma fi ccional. O Palhaço distribui os
papéis e as funções e promove a continuidade da peça, funcionando como uma
espécie de autor fi ctício da obra. O enredo é constituído de um conjunto de cenas
que têm um desenvolvimento descontínuo, ou seja, sofre interrupções do Palhaço,
o que caracteriza uma refl exão sobre a própria montagem da peça. Vários planos
da peça se cruzam e se confundem, como o fato de Chicó estar vivo entre os mortos
que serão imediatamente julgados e afi rmar que estava rezando pela alma do
amigo.
ATENÇÃO: No Auto da Compadecida, o Palhaço apenas faz papel de narrador,
mas não é um narrador propriamente dito, como aparece no texto narrativo. A
diferença é que o Palhaço fala diretamente ao público e vive ações diretas junto
com os outros personagens.
AGORA É SUA VEZ: Leia o primeiro texto do livro de Anatol Rosenfeld,
indicado na bibliografi a, para você entender a diferença de tempo nos gêneros
literários.
REFLITA: Preste atenção às três proposições abaixo:
I. Num texto dramático como o Auto da Compadecida, não existe
propriamente um narrador, mas rubricas (informações entre
parênteses) que situam o leitor entre os fatos e a evolução das
cenas
II. Nos textos poéticos de Mário Quintana, o eu-lírico é uma voz
fi ctícia que simboliza a expressão de sentimentos como saudade,
nostalgia, tristeza, solidão, entre outros, mas essa voz não é o
pronunciamento real do autor sobre sua realidade particular
III. Num texto narrativo como os contos de Machado de Assis,
o narrador é de importância central, pois provêm dele as
informações a que o leitor tem acesso
O principal OBJETIVO deste estudo é levar você a diferenciar os gêneros
literários. Para demonstrar conhecimento já adquirido, tente identifi car o gênero
do texto abaixo.
47
48
Janelas abertas Nº2
(Caetano Veloso)
Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos dentro do apartamento
Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto, fêmea, língua gelada, língua gelada como nada
Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada um matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito
Mas eu prefi ro abrir as janelas
Pra que entrem todos os insetos
UNIDADE III
A ESPECIFIDADE DO GÊNERO NARRATIVO
Diferente do gênero lírico e do dramático, o texto narrativo necessariamente
tem um narrador: aquela voz responsável pela enunciação e pelo encaminhamento
dos fatos relatados. O narrador pode ser o próprio personagem central (primeira
pessoa) ou alguma voz de fora que não se envolve com o enredo (terceira pessoa).
A compreensão desse fenômeno é fundamental para situar as demais categorias
da narrativa, como tempo, espaço, ação, personagem, enredo, pois todos estão
subordinados à forma como o narrador os apresenta, descreve e relata. Para você
ter uma visão mais clara desse fundamento teórico, nada melhor que ler um texto
narrativo. Escolhemos para você o conto “A cartomante”, de Machado de Assis.
Em seguida são feitos uns comentários como forma de facilitar a compreensão.
Mas ATENÇÃO: você é que tem que desenvolver suas próprias habilidades para
ler, interpretar e saber comentar criticamente um texto literário. Os comentários
que vamos indicar são apenas pontos de partida para uma leitura mais original
que você mesmo deve fazer.
AGORA É SUA VEZ: Leia com bastante calma o conto “A cartomante” e
procure identifi car nele os principais elementos que constituem um texto
narrativo.
A cartomante
Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a
nossa fi losofi a. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo,
numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido
na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras
palavras.
- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui,
e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o
que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma
pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinouas,
e no fi m declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que
não era verdade...
- Errou! interrompeu Camilo, rindo.
- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fi xo. Jurou que lhe queria
muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse
49
50
algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disselhe
que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois..
- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
- Onde é a casa?
- Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
- Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova
é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.
Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal
inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram.
No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e fi cou só o tronco da
religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na
mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava
em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento;
limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afi rmar, e ele não
formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os
ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada;
Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às
cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se
lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava
uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção
de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de
passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu
a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do
pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada,
até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou
Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou
a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para
os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
- É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu
marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,
Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas
do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fi na e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela
vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o
parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida
moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal,
que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência,
nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu
a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes
amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava
de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã,
mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele
aspirava nela, e em
volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a
teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites;
- ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora
a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os
dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes
insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi
então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,
assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingoulhe
o veneno na boca. Ele fi cou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos,
desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus,
escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada
fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem
padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro.
A confi ança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral
e pérfi do, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para
desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe
as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio,
uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a
aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfi ada e medrosa, correu à cartomante para
consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a confi ança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o
que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três
cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
51
52
Nem por isso Camilo fi cou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter
com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era
possível.
- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas
que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconfi ado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à
casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confi dência de
algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses
era confi rmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrifi candose
por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso
de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela:
“Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao
escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse
realidade ou ilusão, afi gurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas
com a notícia da véspera.
- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, -repetia ele com os olhos
no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de
que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo:
depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi
andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de
Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a
idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural
uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser
que Vitela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem
motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confi rmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, fi xas; ou então, - o que era ainda pior,
- eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já,
à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro,
tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma
hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que
se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou
a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a
precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia,
picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi.
Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
- Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava,
e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fi m da rua da Guarda
Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que
caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fi m de cinco
minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, fi cava a casa da
cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer
na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras
estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada
do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de
outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe
voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que
esperasse. E inclinava-se para fi tar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:
era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe,
com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no
cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns
giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
-Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em
outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da
carta: ‘’Vem,já,já...’’ E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava
para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um
longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz
da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do
príncipe de Dinamarca reboava-lhe
dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a fi losofi a...” Que
perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido
enfi ou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos
pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.
Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas,
três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultála,
ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma
janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias,
um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com
as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre
a mesa, e disse-lhe:
- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afi rmativo.
- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
53
54
-A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez
das cartas e baralhou-as, com os longos dedos fi nos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
- As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declaroulhe
que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;
ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela;
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de
Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e
fechou-as na gaveta.
- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima
da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se
fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda,
sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a
despencá-las e comê-las, mostrando duas fi leiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo,
ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
- Passas custam dinheiro, disse ele afi nal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. .
- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando,
com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada
que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava
livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu
estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos
e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que
eram urgentes, e que fi zera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio
grave e gravíssimo.
- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece
que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do
rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro.
Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e afi rmativas, a exortação: - Vá, vá, ragazzo innamorato; e no
fi m, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos
recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes
de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para
o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço
infi nito, e teve assim
uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou aporta de ferro do
jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram
para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de
terror: - ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela
pegou-o pela gola,e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
REFLITA: Leia agora informações e comentários sobre Machado de Assis e sua
obra.
3.2 Machado de Assis(1839-1908)
Machado de Assis continua sendo considerado o maior escritor da literatura
brasileira. Apesar de pertencer, inicialmente, ao Romantismo, acabou optando
pelo Realismo, com os seus romances da maturidade: Memórias póstumas de Brás
Cubas, Quincas Barba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Tem ainda
uma larga produção que envolve teatro,crônicas, poesia e contos, defi nindo-se,
assim, como um autor de vários gêneros.
Os contos de Machado de Assis são tão representativos quanto os seus
romances da fase madura. Abrangem inúmeros temas, o que não é tão comum
para a sua época. No século dezenove, a literatura brasileira não tinha uma
tradição de contos signifi cativa. Machado é o primeiro grande contista brasileiro,
abrindo um caminho que será seguido depois por outros. Após um breve
comentário sobre “A cartomante”, apresentamos o resumo de outros contos e
algumas dicas que devem elucidar a compreensão dos textos.
55
56
Comentário
Machado de Assis, entre outros aspectos, enfoca a fragilidade da chamada
“racionalidade humana”. Ele desfaz o mito do homem comedido, seguro pela
razão, como se idealizava no século dezenove. Ora, Rita e Camilo, no momento de
consulta à velha, estão tão agitados, tão confusos, tão sensíveis, que não percebem
que a cartomante, suposta sábia e conhecedora das coisas, só lhes diz coisas
óbvias. Não há nada de extraordinário e de realmente importante nas palavras da
velha. Mas os dois amantes associam cada palavra dela a previsões excepcionais,
o que é uma grande ironia. Observe que Camilo não. crê em nada de mistério,
mas, sentindo-se ameaçado, é vítima de crendices da infância, lembradas
a contragosto. Trata-se do medo, do horror à morte, que leva a essas camadas
psicológicas profundas do ser humano, relativizando ao máximo a atuação da
consciência racional. E nada do que a velha diz para tranqüilizá-los se confi rma.
Eles são tranqüilizados pela superstição, o que é outra grande ironia. E com isso
perdem até o medo, as suspeitas, o que poderia, instintivamente, levá-los a algum
gesto de defesa. É como se eles recuperassem a racionalidade e o equilíbrio pela
superstição, o que é inteiramente paradoxal e ridículo, em nada compatível com a
realidade. Essa confusão entre razão e loucura, tensão mortal e falso alívio, tudo
gerado por paixões proibidas. é um dos temas prediletos de Machado de Assis. É
o que ocorre em Quincas Borba, Dom Casmurro e outros contos, como “O relógio
de ouro”.
AGORA É SUA VEZ: Leia com atenção os resumos e comentários abaixo,
mas só depois de ler os próprios contos de Machado de Assis.
ATENÇÃO: Nunca se limite a ler resumos das obras literárias. O ideal é ir ao
texto diretamente! Os resumos e comentários servem apenas como explicações
e pontos de partida para alguma análise.
SUGESTÕES DE LEITURA: Resumos e comentários de alguns contos de
Machado de Assis
“A Igreja do Diabo”
O Diabo tem a idéia de fundar uma igreja. Cansado de desorganização e
obscuridade,quer uma igreja com cânone, hinos, novena, rituais, todo o aparelho
eclesiástico. E uma igreja que seja unida, sem divisões, para ser mais forte que
todas as existentes. Tem certeza de que seduzirá as pessoas e em breve esvaziará
o céu. Comunica suas intenções a Deus, que o chama de retórico e vulgar. Deus
quer saber por que o Diabo só agora está pensando em se organizar. O Diabo fala
de “negócios mais altos”, ou seja, promessas mais sedutoras que as de todas as
religiões, como, por exemplo, a inversão das virtudes. Eis as promessas do Diabo:
as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Ele confessa aos
homens, em suas pregações, que é o Diabo, para que ninguém tenha mais medo
ou faça imagem distorcida dele. Assim, multidões vão ao Diabo e seguem os seus
princípios:
a) substituição das virtudes aceitas;
b) reabilitação da soberba, da luxúria e da preguiça;
é) valorização da avareza, mãe da economia;
d) defesa da ira e da gula, virtudes superiores;
e) substituição da vinha do Senhor pela vinha do Diabo, fruto das mais belas
cepas do mundo;
f) prática da inveja, principal virtude, origem de infi nitas prosperidades;
g) amor às coisas perversas;
h) valorização da fraude, braço esquerdo do homem;
i) legitimação da venalidade, direito superior a todos os direitos;
j) combate ao perdão, à brandura e à cordialidade;
I) prática da calúnia mediante retribuição;
m) condenação de todas as formas de respeito;
n) abolição de toda a solidariedade humana;
o) amor às damas alheias: única forma permitida de amor ao próximo.
Essa nova doutrina se propaga e logo o Diabo triunfa. Mas um dia ele
faz uma descoberta chocante: as pessoas, às escondidas, estavam praticando
as antigas virtudes. O Diabo vê que ainda precisa conhecer bem o mal. Sem
compreender de todo o fenômeno, recorre a Deus e lhe relata os fatos. E
Deus lhe explica que o que está acontecendo faz parte da eterna contradição
humana.
Comentário
“A igreja do Diabo” é um conto que não aceita o maniqueísmo cristão. Não
existem pessoas exclusivamente boas ou exclusivamente más. Virtudes e pecados
se cruzam, se confundem e fazem parte da ação das pessoas. que agem conforme
interesses, circunstâncias etc. Machado de Assis não tem intenção de criar uma
fábula moralista, até mesmo porque a conclusão do conto é contraditória. No
entanto, ao dar relevância à “eterna contradição humana”, ele mais uma vez é
cético e negativista, sem acreditar em mudanças qualitativas no homem. O conto
tem conteúdo fi losófi co, é pessimista, querendo mostrar que a história do homem
não tem solução nenhuma. Ainda mais, o narrador tem intenção universalista:
ao invés de examinar os fatos em sua particularidade histórica, ou seja, em seu
contexto social, dando maior relevância à sociedade, ele só vê as contradições nas
“pessoas”, individualizando os casos, como se tudo fosse uma questão apenas
de opção pessoal Nesse sentido, ele reforça o velho livre arbítrio do cristianismo.
Mas essa aparente incoerência do escritor tem um sentido: não é ele propriamente
que está contando a saga do Diabo, mas um velho manuscrito beneditino, corno.é
dito logo na primeira página do conto. Com isso, consegue livrar-se de críticas e
atribuir a responsabilidade dos ensinamentos da fábula a elementos da própria
Igreja.
57
58
3.2.1 Características Gerais Dos Contos De Machado De Assis
I. Críticas Ao Romantismo
No conto ‘’Noite de almirante”, ocorre uma ridicularização do amor
idealizado e a mulher que age por interesse e com personalidade maligna. Há a
critica à inocência e à falta de senso crítico do protagonista. Há também a quebra
da imagem da mulher perfeita e do amor como puro valor espiritual, acima de
todas as questões materiais. É a paródia de um tema comum ao Romantismo: o
pacto da. eterna fi delidade, como acontece em A moreninha, de Joaquim Manoel
de Macedo, na aliança fi rmada, desde a infãncia, entre Augusto e Carolina. Em
“O espelho”, Jacobina diz: “A melhor defi nição de amor não vale um beijo de
moça namorada”. Ou seja: importante é praticar o amor, não apenas sentir ou
fi car defi nindo e especulando em sonhos. Isso contraria os românticos, sobretudo
os da fase byroniana, que acreditavam num amor platônico e fantasiado.
“A igreja do Diabo” é um conto de conteúdo anticristão. A defesa dos
males é acompanhada de princípios lógicos, como se as pessoas pudessem
agir de qualquer forma e com naturalidade. É a destruição dos personagens
delicados, gentis e comedidos do Romantismo. Aliás, a escola romântica tem
muita infl uência cristã, porque a fuga para o passado, imitando os europeus
que queriam voltar à Idade Média, quer reaver asrajzes brasileiras, misturando
indianismo com a formação católica do Brasil.
II. Passagem do Singular para O Universal
Isso se dá da seguinte forma: ocorre um certo caso particular, muito
defi nido e num contexto bem específi co. No entanto, o escritor procura extrair
desse caso algumas características comuns ao ser humano em geral, como se
aquele caso particular pudesse ocorrer em qualquer lugar, em qualquer tempo.
Essa é uma das características centrais de Machado de Assis.
No conto “O enfermeiro”, Procópio, depois de matar o Coronel, cria
coragem para ver o velho e ouve “a eterna palavra dos séculos”: “Cairo, que
fi zeste de teu irmão?”. Ao comparar fatos de épocas bem diferentes, o autor
procura identifi car algo em comum entre os acontecimentos, mostrando que a
perseguição do sentimento de culpa independe de épocas históricas.
Em “Um apóIogo”, todo o diálogo entre a agulha e a linha é para ilustrar
a conclusão de que uns abrem caminho a vida inteira para outros passarem. É a
desigualdade que está em jogo, o que pode ser lido como metáfora de todas as
sociedades e relações exploradoras até hoje.
Em “O espelho”, Jacobina diz que os amigos estão curiosos para ouvirem
seu relato e vê nisso uma tendência universal do homem:”Santa curiosidade! tu
és não só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de
outro sabor que não aquele pomo da mitologia”.
Em “A cartomante”, Camilo recebe de Rita um cartão sem muita
importância. Camilo, entretanto, não tira os olhos dele. E o procedimento do
narrador é no sentido de generalizar a questão: “Palavras vulgares;mas há
vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça,
em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos,
vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.
Nos comentários sobre as cartas anônimas, aparecem frases que poderiam
ser destacadas do texto e lidas em qualquer circunstância, como as famosas
declarações das tragédias de Shakespeare. Aliás, o conto começa exatamente
com um dos pensamentos mais conhecidos de Hamlet: “Há mais coisas no céu
e na terra do que sonha a nossa fi losofi a”. É preciso fi car atento ao fato de que os
motivos centrais da tragédia, como dúvida, traição, mistério, ambigüidade, são
retrabalhados no conto de Machado de Assis, mantendo sua validade universal.
III. Tensão Psicológica dos Personagens
A tensão psicológica pode ter várias origens: a) o que se passa entre as
normas estabelecidas e a transgressão; b) o momento entre um objetivo e a
realização dele; c) confusões que geram sentimento de culpa e trazem ameaça à
situação normal dos personagens. Seja como for, a tensão é sempre o que ocorre
entre a ruptura com aquilo que é jugado certo e a reação que pode vir dessa
ruptura.
Maior parte da “Missa do galo” e de “A cartomante” é de tensões. No
primeiro, há o confl ito entre a hora de ir à missa, o prazer gerado pela conversa
com a mulher e a possibilidade de ter alguma relação íntima com a dona da casa.
A mulher, casada, está dentro das normas sociais; a missa é uma convenção muito
séria, ainda mais a do galo, que só ocorre uma vez por ano; mas a conversa com a
mulher, que pode derivar para a intimidade sexual, poderia quebrar a norma do
casamento e a fi delidade ao ritual da Igreja.
Já Camilo tem um comportamento muito tenso: ora está seguro, ora está
andando na sombra da morte. Isso cria um clima de permanente confl ito, sendo
tudo reforçado por sentidos duplos e vagos, o que quebra todas as certezas dos
personagens.
IV. Ironia
A ironia é, basicamente, uma inversão proposital de sentidos. Afi rma-se
algo querendo se dizer o oposto. Visando a alguma forma de crítica ou sarcasmo,
a ironia machadiana, uma das maiores características de sua obra, aparece de
várias formas:
a) por pistas e antecipações falsas
Ao contar à esposa de Fortunato que ele cuidou, sem interesse, do ferido,
Garcia, em “A causa secreta”, dá a entender que Fortunato é muito fi lantrópico
e solidário. O leitor também fi ca com essa impressão. Só depois, ao longo do
conto, é que fi camos sabendo do sadismo e da perversão de Fortunato: sua frieza
cientifi cista no ato de dissecação dos ratos. Desse choque de contrastes é que se
instaura a ironia.
Em “Pai contra mãe”, as amigas de Clara não negam a gentileza de Cândido
Neves, “nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes”. Ora, Cândido
59
60
não tem virtude alguma, não se adapta a nenhuma profi ssão e se revela, no fi nal,
um crudelíssimo perseguidor de escravos fugidios. Mas as opiniões das amigas
de Clara vêm antes da revelação fi nal de Cândido e o choque com o que ocorre
depois é que produz o efeito irônico.
Em “O enfermeiro”, o primeiro encontro entre Procópio e o Coronel é
resumido assim: “(...) a minha resposta deu uma melhor idéia do coronel. Ele
mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos
enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias”.
Nada disso, a partir daí, se confi rma. O Coronel Felisberto é insuportável e
Procópio o mata.
“Noite de almirante” e “Umas férias” já têm ironia no próprio título.
A introdução dos contos é de um entusiasmo enorme para os personagens,
caindo violentamente depois. Deolindo, no primeiro, é traído e humilhado por
Genoveva; no segundo, as “férias” acabam sendo na escola: com horror do clima
sombrio de casa, que se instaura com a morte do pai, as crianças, liberadas das
aulas e felizes por isso, acabam tendo saudade da escola. As “férias”, portanto,
são os estudos.
b) através do humor negro
O primeiro parágrafo de “Pai contra mãe” é a descrição dos instrumentos
da escravidão. O narrador não se limitar a descrever, pontuar, constatar. Ele
investe em opiniões radicais, tentando naturalizar a.violência da escravidão e,
com isso, justifi car o que ele mesmo chama de “grotesco”. É como se a violência
dos senhores fosse um mal necessário e inevitável para se atingir a “ordem”.
Ordem que não precisa de defi nição ou esclarecimento. Ordem que é ordem
e pronto. Isso não quer dizer que o narrador seja a favor da escravidão e das
torturas. Ao contrário: ele procura representar a mentalidade dos escravistas:
“Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada”. Na cena de casamento de Cândido Neves
com Clara, o narrador comenta com humor negro o sofrimento e a pobreza da
casa da Tia Mônica: “A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de
tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não
davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Cândido
é cristão e perseguidor de escravos ao mesmo tempo: “- Deus não me abandona.
e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste. Muitos
entregam-se logo”. A profi ssão violenta de Cândido nega todos os atributos
de Deus: amor, paz, proteção, salvação etc. Na descrição que o narrador faz do
trabalho de Cândido Neves: “(...) perdera já o ofício de entalhador(...) abrira
mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxelhe
um novo encanto. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia
força, olho vivo, paciência e um pedaço de corda”, ele nivela propositalmente
tudo, como se paciência e corda, por exemplo, fossem bens morais e tivessem
a mesma qualidade. Ora, a paciência é um bem espiritual do homem, algo que
se adquire com educação para tolerância e fi ns elevados. Isso é incompatível
com a corda, instrumento de captura de escravos. A ironia, portanto, está nessa
contradição.
c) através dos nomes
Em Machado de Assis, é freqüente o seguinte: nomes dos personagens não
condizem com os atos deles; nomes de lugares são o oposto ou a negação do que
ocorre lá. Pelo descompasso entre uma coisa e outra, produz-se a ironia. É uma
ironia muito sutil, que exige às vezes atenção dobrada para ser identifi cada. Por
exemplo, Cândido é sinônimo de brando, dócil, delicado; Neves e Clara remetem
para o branco, a pureza, e no entanto vivem de caçar pessoas. Mesmo que Neves
remeta para frieza, não combina com Cândido. Além disso, a escrava é capturada
na Rua da Ajuda; ela está grávida e Cândido, à procura dela, passa pela Rua do
Parto. Mas o resultado do arrastão é o aborto. .
Em “O enfermeiro”, o Coronel, extremamente depressivo, mal-humorado
e rejeitado por todos na cidade, chama-se Felisberto. Em “Noite de almirante”, o
nome Deolindo pode desdobrar-se, possivelmente, em dois: Deus e lindo. Nem por
isso deixa de ser traído por Genoveva, que é o nome de uma santa que, segundo a
tradição católica, casou-se com Deus e dedicou toda a sua vida a ele. O conto, no
entanto, é sobre uma mulher que não espera o noivo, que é marinheiro, voltar e
se casa com outro, apesar da promessa inicial de ser absolutamente fi el a ele.
Em “A cartomante”, o principal lugar é a Rua da Velha Guarda, onde fi ca
a casa da cartomante. O nome da rua, sutilmente, remete para a velha Guarda
Imperial, ao mesmo tempo em que se refere à “velha” enigmática que lê o destino
alheio. Ora, guarda é sinônimo de proteção, defesa. É como se a cartomante fosse
a guardiã de Rita e Camilo. No entanto, as previsões dela resultam no oposto.
Tanto é que Camilo, um pouco antes de chegar à casa de Vilela e ser morto, passa
pela praia da Glória, que é outra ironia, e tem a seguinte sensação: “(...) Camilo
olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um
abraço infi nito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável”.
A ironia é uma forma de exercer o pensamento critico e revogar toda e
qualquer inocência. Em Machado de Assis, ela está muito associada ao ceticismo
e a uma visão de mundo negativista por excelência. As últimas palavras de Brás
Cubas parecem confi rmar tudo o que vimos em seus contos:
Somadas umas causas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve
míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará
mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno
saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive fi lhos,
não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Proposta de atividades
1. Leia atentamente os parágrafos abaixo, que versam sobre a teoria da
literatura, especialmente no que diz respeito à relação do texto literário com o
momento histórico:
61
62
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta
o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identifi car,
na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade
determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;
mas como fator da própria construção artística, estudado, no nível explicativo
e não ilustrativo. Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia,
ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação
estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se
dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e
a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social
se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos
psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que
a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois
tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a
diversidade coesa do todo.
Está visto que, segundo esta ordem de idéias, o ângulo sociológico adquire
uma validade maior do que tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto
como critério único, ou mesmo preferencial, pois a importância de cada fator
depende do caso a ser analisado. Uma crítica que se queira integral deixará
de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar
livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente.
Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde
que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós verifi camos
que o que a crítica moderna superou não foi a orientação sociológica, sempre
possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo
explicar por meio dos fatores sociais.
(Antonio Candido, Literatura e sociedade)
2. Procure identifi car no texto abaixo os traços essenciais do gênero narrativo
e tente encontrar uma forma de relacioná-los a algum conto de Machado de
Assis.
O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente
imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em
certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador.
Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de
outros seres. Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos
e está sempre presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios
personagens começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá
a pa1avra, lhes descreve as reações e indica quem fala, através de observações
como “disse João”, “exclamou Maria quase aos gritos”, etc.
No poema ou canto líricos um ser humano solitário - ou um grupo - parece
exprimir-se. De modo algum é necessário imaginar a presença de ouvintes ou
interlocutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ou assobiamos assim
melodias. O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação
a outrem. Já no caso da narração é difícil imaginar que o narrador não esteja
narrando a estória a alguém. O narrador, muito mais que se exprimir a si
mesmo (o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa
a outros que, provavelmente, estão sentados em tomo dele e lhe pedem que
lhes conte um “caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra
estórias que aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá
objetivamente as circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu
- a voz é do pretérito - e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” ( João, Maria)
e em geral não” eu”. Isso cria certa distância entre o narrador e o mundo
narrado. Mesmo quando o narrador usa o pronome “eu” para narrar uma
estória que aparentemente aconteceu a ele mesmo, apresenta-se já afastado
dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude
distanciada e objetiva, contrária à do poeta lírico.
A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao narrador
maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo.
Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um
conteúdo de vasto assunto.” Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem
mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.
É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador)
e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos
personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais
vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o
do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico em que existe só o horizonte
do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma
estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu
narrado e ainda envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.
(Anatol Rosenfeld, O teatro épico)
ATENÇÃO: Terminamos por aqui esse material, mas isso é apenas o começo dos
seus estudos sobre teoria da literatura. Vamos apresentar um pequeno glossário
abaixo, para que você consulte e reforce seus conhecimentos.
OBJETIVOS: Um glossário tem a fi nalidade básica de apresentar alguns
conceitos fundamentais vistos ao longo do curso, para facilitar a compreensão
dos mesmos.
REFLITA: Um glossário é apenas um meio rápido de consulta, mas você jamais
deve se limitar a ele.
AGORA É SUA VEZ: Procure ter sempre disposição para consultar o glossário
na medida em que for lendo os conceitos na parte teórica e aplicando-os à sua
leitura dos textos literários.
63
64
GLOSSÁRIO
ANÁLISE LITERÁRIA – É o estudo de textos literários de uma forma
objetiva, com base em conceitos fornecidos pela teoria da literatura. O estudo de
um texto para classifi car a sua forma, por exemplo, exige leituras sistemáticas da
teoria dos gêneros literários.
CATEGORIA – É qualquer componente da estrutura da narrativa. Por
exemplo, o narrador, o enredo, os personagens, o tempo e o espaço são categorias
que, em seu conjunto, constituem uma narrativa.
CONCEITO – É o instrumento básico de toda formulação teórica. O
conceito só se sustenta se for objetivo e demonstrar respaldo na realidade
estudada, seja esta material ou simbólica. Caso o conceito não corresponda a
essa exigência, sua formulação é falha e muitas vezes não passa de uma simples
opinião sobre as coisas. O estudo sistemático da teoria da literatura exige que os
conceitos tenham propriedade para serem aproveitados nas análises literárias.
ENREDO – Conjunto dos fatos que se sucedem em uma narrativa. Os fatos
que acontecem geram outros fatos, que se relacionam com outros, criando uma
determinada tensão na situação dos personagens. A tensão gera uma expectativa
que pode ser confi rmada ou não no fi nal da narrativa.
GÊNERO LITERÁRIO – São as formas literárias mais amplas, abrangendo
várias subformas ou subgêneros. A teoria literária mais clássica apresenta a
divisão da literatura em três gêneros essenciais: o épico (ou narrativo), o lírico
(o que modernamente convencionou-se chamar “poesia”) e o dramático (texto
voltado para a encenação teatral).
IRONIA – É um recurso muito utilizado na literatura, a exemplo da
narrativa de Machado de Assis. A ironia é uma inversão de sentido das coisas. O
discurso irônico é aquele que afi rma algo querendo dizer o oposto. A fi nalidade
da ironia é variada: pode ser o humor, o sarcasmo, a ridicularização de certas
situações, mas pode ser também a intenção de provocar uma refl exão sobre o que
parece natural e correto.
LITERATURA – É um tipo de arte que se caracteriza pelo uso e combinação
das palavras de uma forma muito específi ca, capaz de ultrapassar o senso comum.
Assim como a pintura é uma combinação de cores e a música é uma combinação
de sons, o que distingue a literatura é a sua capacidade de criar sentidos novos,
ainda que utilizando as mesmas palavras fornecidas pela língua. A criatividade
literária também pode instaurar palavras novas, conhecidas como “neologismos”,
que tornam o texto literário mais imprevisível e mais distanciado da comunicação
cotidiana. A literatura, com essa preocupação voltada para o estabelecimento de
sentidos diferentes, singulares, desconhecidos, não se confunde com um mero
documento histórico ou com um texto jornalístico e de uso comum. A literatura
proporciona outro tipo de refl exão sobre as relações humanas, que não se
confunde com a ciência, com o misticismo, com a informação ou outras formas de
conhecimento.
NARRADOR – É uma das categorias centrais do texto narrativo. É o
responsável pela visão e pelos valores transmitidos ao longo do enredo. O
narrador pode ser em primeira pessoa (o próprio personagem principal) ou
em terceira pessoa (um narrador externo, que não faz parte do enredo nem se
envolve com os acontecimentos relatados). Existem outras formas de narrador,
como o narrador-testemunha (conta a história, mas não é o personagem central),
porém são formas mais raras.
PERSONAGEM – É todo aquele que desenvolve ou sofre a ação do enredo.
O personagem pode ser principal (protagonista) ou secundário, mas é necessário
buscar a importância de sua ação na estrutura do enredo.
SENSO COMUM – É aquilo que é comumente aceito em uma determinada
sociedade ou uma cultura. É a comunicação no nível mais simples e necessário,
pois sem ela não haveria compreensão básica entre as pessoas. A importância
do senso comum para a literatura e para as artes é que ele serve de referencial
negativo ou a ser negado. Sem essa ruptura com o senso comum, a literatura e as
artes tendem a se realizar em um nível muito pobre.
TEORIA – Um conjunto de princípios lógicos que norteiam a compreensão
de um determinado fenômeno, seja ele real ou imaginário. A teoria só tem valor
se for averiguada por uma demonstração. Caso a demonstração falhe, a teoria
tem que ser repensada e refeita. Na literatura, por exemplo, a teoria não pode ser
aplicada mecanicamente ao texto. Cabe ao exame minucioso do texto verifi car se
a teoria pode ser ou não aplicada. Isso depende de como o conceito corresponde
(ou não) à construção específi ca de um determinado texto literário.
65
66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Os melhores contos. Seleção de Domício Proença Filho. 14. ed.
São Paulo: Global, 2002.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de fi cção. São Paulo: Perspectiva, 1988.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 6. ed. São Paulo: Nacional, 1980.
GOMES, Dias. Os heróis vencidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. (Coleção
Dias Gomes, volume 1)
GOTLIB, Nádia Batt ela. Teoria do conto. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. (Série
Princípios)
GOUVEIA, Arturo e MELO, Anaína Clara de. Machado de Assis: Literatura, música
e barbárie. João Pessoa: Idéia, 2006.
GULLAR, Ferreira. Toda a poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1988. (Série
Princípios)
MESQUITA, Samira Nahid. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. (Série
Princípios)
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
PINTO, Sérgio de. Zôo imaginário. São Paulo: Escrituras, 2005.
QUINTANA, Mário. Os melhores poemas. Porto Alegre: L & PM Pocket, 2004.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do
erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 23.ed. Rio de janeiro: Agir, 1988.
SANT’ ANNA, Aff onso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Ática, 1982.
(Série Princípios)
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.
(Série Princípios)
LEITURA E PRODUÇAO DE TEXTO I
Do texto para o mundo e do mundo para o texto:
movimentos de leitura e de escrita
Apresentação
Caro Aluno!
Maria Ester Vieira de Sousa
Regina Celi Mendes Pereira
A disciplina Leitura e Produção de Texto I tem como foco principal
introduzir, desde o primeiro semestre do Curso, uma discussão sobre a leitura
e a produção de texto, aliando teoria e prática, para que, através da revisão de
conceitos básicos que informam essa disciplina, o educando possa repensar a sua
prática de leitura e de produção de texto, ao mesmo tempo em que refl ete sobre
esse conteúdo de ensino.
Nesse sentido, essa disciplina encontra-se divida em três unidades. A
primeira pretende dar conta da discussão acerca das noções de leitura e das
perspectivas teóricas que sustentam essas noções, enfocando a relação leitor/
texto/autor. Serão priorizadas três perspectivas teóricas: Cognitivista, Sóciointeracionista,
Discursiva. A segunda unidade tem como objetivo apresentar
uma visão geral do conceito de gênero – partindo da tradição literária até os dias
atuais –, bem como sua descrição e funcionalidade. A terceira unidade tratará
da importância da utilização dos gêneros textuais para o ensino da leitura e
da escrita e de suas implicações, enquanto procedimento metodológico, para o
desenvolvimento dessas competências.
67
UNIDADE I
NOÇÕES DE LEITURA E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO
1.1 Breve introdução
Atualmente torna-se ainda mais presente, dentro e fora da escola, um
discurso de valorização da leitura. Contraditoriamente, também é comum um
discurso que alega a sua ausência. Iniciemos, então, esclarecendo essa contradição.
A expressão “é preciso ler” faz parte do dia-a-dia da escola e é uma exigência da
nossa sociedade; paralelamente, afi rma-se constantemente que o aluno não gosta
de ler, que o brasileiro não lê e, em conseqüência, não possui uma visão crítica do
mundo que o cerca. Ler passou a ser um imperativo dos nossos tempos, do qual
não podemos fugir. Ou seja, parece que não podemos não ler. Mas o que é ler?
O que lemos? Qual o objeto da leitura e para que lemos? Apesar de essas serem
perguntas excessivamente repetidas, precisamos voltar a elas. Isso talvez porque
a resposta não seja tão óbvia quanto, em geral, supõe o senso comum.
Podemos dizer que a noção de leitura esteve quase sempre associada à
escrita, contudo esse não tem sido um ponto de vista unânime sobre o assunto.
Paulo Freire (1983, p. 11-12) formula uma frase sobre a leitura que se tornou
recordista em número de citações e aqui vamos, mais uma vez, citá-la: “A
leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta
não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.” Qual, então, o objeto
da leitura? Para Paulo Freire, esse objeto é amplo: o mundo e a palavra. Ler o
mundo signifi ca compreender a realidade que nos cerca, mediada não apenas
pela palavra, mas por objetos, pessoas, gestos, imagens. Ler o mundo é um ato,
uma ação do sujeito, uma “atividade perceptiva” de construção do sujeito no
mundo, de reconhecimento do seu ser no mundo, do seu lugar no mundo e de
sua relação necessária com o outro. De início, é o mundo da/com a família, com os
amigos, com os vizinhos que nos é dado a ler. Esse é um mundo de leitura: eu leio
o sorriso nos lábios do outro e o julgo sincero ou falso, amistoso ou sarcástico; o
sertanejo (homem do campo) olha para o céu a espera de um sinal de que a chuva
virá e dependendo da leitura que faça se encherá de esperança ou debulhará o
seu rosário de preces em dias melhores; o homem das grandes cidades, atento
à metereologia, ao saber que vem chuva, prepara-se para o encontro com ruas
alagadas, trânsito engarrafado, transtorno, enfi m.
Ler, nesse sentido, é “atribuir sentidos” ao mundo. Sendo assim,
essa noção, além de, em princípio, não estar necessariamente ligada a uma
aprendizagem da palavra escrita, supõe que qualquer objeto ou situação sejam
passíveis de leituras. Nesse sentido, o homem conhece o mundo e com ele
interage a partir das leituras que vai desenvolvendo. Ou seja, lemos o mundo,
antes de aprender a ler a palavra. Mas, voltando à frase de Paulo Freire, temos
que essa leitura de mundo é fundamental para a leitura da palavra, a qual não
pode se esgotar em si mesma, ou seja, a leitura da palavra não pode ser a mera
decodifi cação dessa palavra, é preciso compreendê-la em seu contexto, devolvê-
69
70
la ao mundo, inclusive, para melhor entender esse mundo: a leitura da palavra
escrita apóia-se no conhecimento adquirido ao longo da vida, ao mesmo tempo
em que amplia e modifi ca esse conhecimento.
Vamos agora limitar a nossa refl exão à leitura da palavra escrita. Para
tanto, fi xaremos como fi o condutor os sujeitos (leitor e autor) e o objeto da leitura
(o texto escrito). Antes, porém, propomos uma refl exão inicial.
REFLITA: Como se deu a sua aprendizagem de leitura da palavra escrita?
Você lembra como aprendeu a ler? Qual a importância da escola para essa
aprendizagem? Alguém em especial contribuiu para essa aprendizagem?
Propomos que você utilize a ferramenta diário e registre lá as suas memórias de
leitor da palavra escrita.
Voltemos, então, a falar da leitura da palavra escrita, especifi camente,
problematizando o objeto da leitura, o texto escrito.
1.2 O que é um texto?
Vamos partir de um exemplo:
A Água
A água é uma substância fria e mole. Não tão fria quanto o gelo
nem tão mole quanto gema de ovo porque a gema de ovo arrebenta
quando a gente molha o pão e a água não. A água é fria mas só
quando a gente está dentro. Quando a gente está fora nunca se sabe a
não ser a da chaleira, que sai fumaça. A água do mar mexe muito mas
se a gente põe numa bacia ela pára logo. Água serve pra beber mas eu
prefi ro leite e papai gosta de cerveja. Serve também pra tomar banho e
esse é o lado mais ruim da água. Água é doce e é salgada quando está
no rio ou no mar. A água doce se chama assim mas não é doce, agora
a água salgada é bastante. A água de beber sai da bica mas nunca vi
como ela entra lá. Também no chuveiro a água sai fi ninha mas não
entendo como ela cai fi ninha quando chove pois o céu não tem furo.
A água ainda serve também pra gente pegar resfriado que é quando
ela escorre do nariz. Fora isso não sei mais nada da água
Esse exemplo poderá levar o leitor a formular algumas indagações: tratase
realmente de um texto ou de um amontoado de frases óbvias sobre a água?
Isso só pode ser coisa de quem não sabe escrever, coisa de criança. É isso! É uma
redação que o aluno escreveu na aula de ciência quando a professora pediu
para ele falar sobre a água, suas propriedades e utilidade. O problema é que ele
nem sabe escrever, nem sabe o que dizer. Imagine! Onde já se ouviu dizer que
fria, quente, mole, inquebrável (não arrebenta), doce, salgada são propriedades
da água? E dizer que a água serve para pegar resfriado? O texto está muito
uim mesmo – se é que isso pode ser chamado de texto! Vamos então chamar o
professor de português e ver o que ele pode fazer.
O professor de português, diante desse exemplar, pensará: não sei nem por
onde começar a correção: o autor repete incansavelmente a palavra água; há frases
incompreensíveis, truncamentos sintáticos, anacolutos, comparações absurdas...
quem já viu comparar água com gema de ovo? Como eu vou explicar uma frase
como essa: “Quando a gente está fora nunca se sabe a não ser a da chaleira, que
sai fumaça.”? Aliás, quem disse que isso é uma frase? Veja que faltam termos:
“quando a gente está fora” ... fora de quê? “Nunca se sabe” de quê?
Vamos fazer um exercício de compreensão desse texto, iniciando por
essa frase. A primeira questão a observar é que um texto não é um amontoado
de frases e que existem aspectos que não se esclarecem nos limites de uma frase
tomada isoladamente de seu contexto. Senão vejamos. Vamos inserir essa frase
em um maior fragmento do texto:
A água é fria mas só quando a gente está dentro. Quando a gente está fora
nunca se sabe a não ser a da chaleira, que sai fumaça.
A frase agora não nos parece tão incoerente ou tão lacônica, se a
relacionarmos com o sentido da antecedente. Antes nós acusamos o autor de ser
repetitivo. Agora notemos que ele usou o recurso lingüístico da elipse para evitar
repetição, caso contrário esse trecho fi caria:
A água é fria mas a gente só sabe que a água é fria quando a gente está dentro
da água. Quando a gente está fora da água a gente nunca sabe se a água é fria
ou se é quente a não ser a água da chaleira, porque da água da chaleira sai
fumaça e a fumaça denuncia (mostra pra gente) que a água é quente.
Observe que, para chegar a essa paráfrase, usamos o princípio da
solidariedade entre as frases no texto: uma frase se articulando à outra,
completando, explicitando seus termos. Expliquemos: só pudemos explicitar
a articulação sintática entre os termos na primeira oração porque levamos em
conta o verbo saber (“nunca sabe”) que está explícito na segunda oração e porque
repetimos as expressões a gente, a água é fria e da água. A explicitação dos termos
ausentes na segunda oração foi possível a partir de dois processos: novamente a
repetição dos termos “água” e “a gente” e a inferência do adjetivo “quente”, a
partir do adjetivo “fria” e do substantivo “fumaça”. O leitor inconformado dirá:
ora, mas isso não resolve o problema. O texto continua sendo um amontoado de
bobagens sobre a água e muitas vezes incoerentes. Pois é. Então, relembremos a
observação anteriormente feita e acrescentemos uma outra lição sobre o texto:
O texto não é um somatório de frases, nem o seu sentido se constrói pelo
somatório dos sentidos de suas frases.
Aliás, não podemos nos esquecer de que o texto pode ser composto de
uma única palavra. A palavra “Silêncio!”, por exemplo, escrita na entrada de um
hospital ganha ares de um texto, cumpre uma função comunicativa, qual seja:
71
72
lembrar ao visitante de que aquele é um lugar de pessoas doentes que precisam
repousar e para isso o silêncio é fundamental. Mas isso não diz tudo. Uma mesma
e só palavra pode construir sentidos diferentes. A mesma palavrinha “Silêncio!”,
escrita na entrada de um campo de futebol, provavelmente, será entendida como
uma brincadeira do torcedor, visto que esse é um dos lugares menos prováveis
para que ocorra silêncio. Mas e quando o jogador faz um gol e se vira para
sua torcida ou para a torcida adversária e faz um gesto semelhante àquele que
também encontramos em portas de hospitais, substituindo a palavra silêncio, será
que estamos diante do mesmo texto? Certamente, não. Então, vamos acrescentar
algo mais a nossa formulação anterior sobre o texto:
O texto não é um somatório de frases, nem o seu sentido se constrói pelo
somatório dos sentidos das suas frases. A coerência de um texto não depende
apenas de elementos lingüísticos.
Dito isso, voltemos ao texto “A água” e passemos a explicitar alguns
elementos fundamentais para a construção do sentido daquele texto. O texto “A
água” foi escrito por Millor Fernandes e compõe o livro “Compozissõis imfãtis”,
publicado em 1975. Fazem parte desse livro outros tantos textos que seguem o
mesmo estilo: “A banana”, “O leão” ... O leitor, sabendo quem é Millor Fernandes,
e atentando para o título do livro do qual foi retirado esse texto, será levado a
imaginar que o autor escreveu aquele texto imitando a escrita de uma criança.
Imaginamos ser desnecessário dizer que essas informações – que remetem para o
contexto de produção do texto – obrigarão o leitor a fazer outra leitura. Então, a
coerência de um texto depende tão somente dos recursos lingüísticos empregados
e do seu autor? Não só. Depois voltaremos a esse texto para enfocar as condições
de produção da leitura. Por hora, gostaríamos de concluir esse item dizendo:
O texto é um todo signifi cativo, é uma unidade de sentido que não depende
apenas do seu autor, mas da relação entre leitor-texto-autor.
1.3. Noções de leitura
No item anterior, priorizamos a noção de texto, com o objetivo de responder
à pergunta: O que se lê? Nesse item vamos tentar responder à questão: O que é
ler? O percurso será traçado tendo como foco a aprendizagem formal da leitura
na escola.
1.3.1 A leitura como decodifi cacão
A importância da leitura da palavra escrita para a educação formal é
inegável. Afi nal, é através dela que se fundamenta todo o processo educacional,
desde os primeiros anos de escolaridade. Desde que o aluno ingressa na escola,
todos (escola, pais, sociedade) esperam que ele “aprenda a ler”. Aprender a ler,
no entanto, muitas vezes, nas séries iniciais é sinônimo de “decodifi car a palavra
escrita”.
É preciso refl etir sobre essa noção de leitura como decodifi cação.
Naturalmente, para que se leia a palavra, é necessária que se tenha acesso a um
conhecimento sobre a língua escrita o qual supõe a aprendizagem do sistema da
escrita. Mas, como vimos anteriormente, a leitura nem começa e nem acaba com
essa aprendizagem. Decodifi car (reconhecer) as letras, as sílabas que compõem a
palavra é apenas um meio (necessário, imprescindível) para se efetivar a leitura da
palavra, que, repito, não se esgota nesse gesto de identifi cação/reconhecimento. 1
Torna-se interessante observar que, quando a própria escola toma a leitura
como fonte para a aprendizagem de outros conteúdos de ensino (História,
Geografi a, Matemática etc.), deveria ter como pressuposto básico o fato de que
ler não é apenas decodifi car, mas envolve, fundamentalmente, compreensão,
refl exão. Contudo, a noção de leitura como decodifi cação se faz presente na
escola em vários momentos. Basta verifi car, por exemplo, o livro didático,
através, principalmente, de suas atividades de “compreensão de texto”. Em geral
são atividades que solicitam tão somente que o aluno identifi que aspectos que
estão visivelmente representados na materialidade do texto, que passa a ser visto
como possuindo um sentido único que cabe ao aluno apreender. Quando isso
ocorre, também se está supondo a leitura como mera decodifi cação do escrito
e o leitor como um sujeito passivo a quem compete tão somente recuperar um
sentido que está objetivamente dado no texto. Em outras palavras, a leitura é
reduzida a uma atividade mecânica: exige-se do aluno apenas que responda às
questões formuladas sobre o texto, as quais, em geral, visam levá-lo a depreender
(identifi car) o sentido lingüisticamente marcado no texto.
Quais as conseqüências dessa noção para a aprendizagem? Essa
compreensão de leitura, ao transferir o sentido para o texto e limitar o papel do
leitor a um mero decodifi cador da escrita, tem como base uma concepção de
linguagem como um mero sistema de signos que o falante/leitor deve dominar
e uma concepção de texto como um somatório de palavras e frases. Ou seja, se o
leitor não consegue compreender o texto, conclui-se que a culpa é dele que ainda
não domina o código lingüístico, porque se dominasse iria ver que tudo estava ali
dito claramente.
Há duas atitudes comuns a essa perspectiva: uma consiste na sacralização
do texto que diz tudo. Por isso, o leitor não pode fugir “do que o texto quis
dizer”, ou seja, qualquer leitura precisa ser comprovada no texto. Outra atitude,
não necessariamente excludente, consiste na sacralização do autor. “Não foi isso
que o autor quis dizer” é uma frase que traduz muito bem essa postura diante
de qualquer leitura com a qual não se concorde. Em qualquer das duas atitudes,
nega-se o lugar do leitor, anula-se a sua função de leitor. Desconhece-se, de um
lado, a história do leitor e, de outro, a historicidade do texto, do seu autor e da(s)
sua(s) leitura(s).
Mas, afi nal, o que é a leitura? Ou de outro modo: como lemos? Como
aprendemos a ler? 2 Que gesto é esse? Centremos, por um momento, a nossa
atenção no ato de aprender a ler, a partir de um breve resgate daquilo que o
conhecimento sobre a leitura produziu nos últimos anos.
Pesquisas desenvolvidas aqui no Brasil, principalmente a partir das décadas
de 80 e 90 do século XX, têm retomado o problema da recepção, enfocando o
papel do leitor na ação de ler.
1 Esse conhecimento
básico, elementar –
primeiro no sentido
da educação formal –
nem sempre ocorre na
escola. Pesquisas têm
demonstrado que, numa
sociedade como a nossa
(rodeada da palavra
escrita por todos os
lados), o aluno, quando
chega à escola, ainda
que não decodifi que
as letras, já possui um
conhecimento sobre os
usos sociais da escrita,
sabe, no mínimo, que
existe o texto escrito e
que ele é usado em várias
situações no cotidiano
dos sujeitos. Apesar
disso, esse conhecimento,
advindo da experiência
cotidiana do aluno, nem
sempre é levado em
consideração pela escola.
2 Conforme Manguel
(1997, p. 42), “A leitura
começa com os olhos.”
Apenas para demonstrar
como é antiga essa
preocupação, lembramos,
ainda seguindo Manguel,
que a maneira como
o sujeito percebe o
objeto é um gesto que já
preocupava os antigos
fi lósofos, dentre os quais
Aristóteles (384 – 322
a.C.). Essa ainda é uma
preocupação bastante
atual, principalmente,
quando, do ponto de
vista do ensino e da
aprendizagem, a leitura
permanece como uma
temática tão presente.
73
74
1.3.2 A leitura numa perspectiva cognitivista
Numa perspectiva cognitivista, as pesquisas se voltaram para a análise dos
mecanismos envolvidos no processamento cognitivo da informação recebida pelo
leitor, a partir da percepção visual do objeto (texto). Essas pesquisas ajudaram
a entender, por exemplo, por que o aluno na fase inicial de alfabetização lê tão
devagar, se comparado a um leitor que já domina o código lingüístico. O aluno
que ainda não domina o código lingüístico tende a fi xar os olhos nos elementos
mínimos (letras, sílabas, palavras), numa leitura absolutamente linear, diferente
do leitor experiente que não lê palavra por palavra. O movimento do olho na
página, quando o leitor já passou da fase de mera identifi cação (decodifi cação)
da palavra escrita, é descrito, por um lado, como um movimento sacádico: o
olho fi xa-se em pontos; pula de um trecho para outro. Por outro lado, ao mesmo
tempo em que avança, segue para frente, o leitor, dependendo do processamento,
do nível de compreensão que vai sendo estabelecido, da sua relação com o
material textual, também recua, volta para testar uma informação, para confi rmar
a suspeita de uma palavra decodifi cada indevidamente, por exemplo, e que pode
levar a uma compreensão indevida.
Esse conhecimento permitiu concluir que o leitor desenvolve diferentes
habilidades e estratégias para lidar com o objeto (no nosso caso, o texto
escrito). Dessa forma, foi possível compreender que quanto mais o leitor tiver
familiaridade com o texto (em relação aos seus aspectos formais e de conteúdo)
mais rapidamente ele irá ler. A relação leitor/ texto, portanto, passa a ser pensada
a partir de habilidades do leitor e de estratégias de leitura, dentre as quais se
destacam: as estratégias de antecipação ou predição, de inferência e de testagem.
Ocorre, no entanto, que as hipóteses e as estratégias formuladas pelo leitor
não são fruto do acaso. Antes, elas resultam do conhecimento prévio do leitor
(conhecimento lingüístico e de mundo) e de uma série de fatores que motiva(ra)
m o seu encontro com o texto, dentre os quais se destacam os objetivos da leitura,
os interesses pela leitura, as expectativas em relação ao que se lê, as necessidades
da leitura etc.
Segundo Kato (1985), as hipóteses acerca do texto são construídas a partir de
esquemas mentais (frames, na denominação de outros estudiosos) que os sujeitos
dominam acerca de eventos os mais diversos. Vejamos um exemplo que esclareça
essa questão. Suponhamos que, no jornal diário, lemos a seguinte manchete:
“Cresce o número de acidentes nas estradas brasileiras no último feriado”. Essa
manchete já fará com que o leitor construa uma série de antecipações acerca
do texto que irá ler e conseqüentemente rejeite outras. Especifi camente nesse
exemplo, do ponto de vista da articulação entre o conhecimento lingüístico e de
mundo, o leitor será levado a perceber que o substantivo “acidentes” remete para
um conjunto de suposições bastante amplas, a partir do que ele sabe sobre esse
evento. Nesse sentido, atendo-se apenas a essa marca textual, ele será levado a
formular hipóteses bastante amplas, por exemplo, acerca do tipo de acidente, das
vítimas do acidente, dos possíveis feridos ou mortos. Já a expressão “estradas
brasileiras” o levará a limitar o campo de compreensão do esquema “acidentes”,
restringindo ao universo dos acidentes automobilísticos, especifi camente no
Brasil, e a rejeitar as demais formulações anteriores.
Essas são estratégias cognitivas de leitura de que todo leitor, considerado
profi ciente, lança mão, mesmo inconscientemente. Nesse sentido, os autores
defendem que, embora a leitura seja um ato individual de construção de
signifi cado, é possível ensinar a ler. Esse ensino deveria centrar-se no ensino
de estratégias de leitura, enquanto operações regulares capazes de permitir uma
aproximação do texto, de modo que o leitor passasse a controlar a sua leitura.
Para desenvolver essas habilidades no aluno, o professor – que passa a ser
tido como um mediador dessa aprendizagem – poderá trabalhar com modelos
de estratégias específi cas de leitura que levem o aluno a refl etir conscientemente
sobre essas estratégias que ele utiliza inconscientemente. Essa seria uma
forma de desautomatizar essas estratégias cognitivas, transformando-as em
estratégias meta-cognitivas, enquanto operações que levariam os sujeitos leitores
a dois procedimentos básicos: uma auto-avaliação constante da sua própria
compreensão do texto e a defi nição clara de objetivos de leitura3 .
Passemos a um outro exemplo a partir do qual pretendemos demonstrar
como o professor poderá propor uma atividade de leitura que leve o alunoleitor
a desenvolver uma abordagem do texto, utilizando, simultaneamente, as
estratégias de predição e de checagem, a partir do seu conhecimento da língua e
do mundo. Propomos, então, uma simulação e convidamos o leitor a entrar nesse
jogo, porque apresentaremos o texto por etapas.
Iremos, agora, ler um texto cujo título é O aeroporto, de autoria de Carlos
Drummond de Andrade. A partir desse título e do que sabemos sobre o autor,
poderemos fazer inferências que vão desde o Gênero (será uma poesia, será uma
crônica, será um conto?) até o conteúdo do texto (o texto tratará de um encontro
no aeroporto, de uma despedida, de um acidente? 4 ). Vamos, então, ao primeiro
parágrafo do texto para que possamos testar essas inferências:
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu
quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos,
embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito
assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente
parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando
muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz
entender admiravelmente. É o seu sistema.
Duas das nossas hipóteses são confi rmadas: temos um texto em prosa e
parece tratar de um evento de despedida em um aeroporto. Ao mesmo tempo,
fi camos sabendo de várias outras coisas: há um narrador em primeira pessoa
que vai deixar no aeroporto um amigo que se chama Pedro. Novamente somos
convocados a levantar outras hipóteses: o narrador sugere que ele e o amigo
falaram muito, mas, contraditoriamente, afi rma que seu amigo não pronuncia
nenhuma palavra. Então, o amigo não é humano? E agora? Quem é esse amigo
que se entretém com tantos assuntos, explora-os a fundo e, ao mesmo tempo,
“Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos
quais se faz entender admiravelmente”? Se o amigo se faz entender admiravelmente
por gestos e expressões, então, devemos supor que ele é humano? Se humano, é
surdo-mudo, esse amigo? Vamos ao segundo parágrafo do texto:
3 Para saber mais sobre
“estratégias de leitura”,
leia o capítulo 4 do Livro
Ofi cina de leitura de
Ângela Kleiman.
4 Certamente surgirão
muitas idéias as quais o
professor poderá listar
no quadro-negro para
que posteriormente
possa ir checando.
75
76
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os
moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta,
porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi
logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o
mundo ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores,
vizinhos e desconhecidos, gratifi cados com esse sorriso (encantador, apesar da
falta de dentes), abonam a classifi cação.
O que sabemos agora? O amigo é simpático, carismático (conquista a todos)
e não tem dentes. Será isso sufi ciente para descartar as nossas hipóteses anteriores
ou deveríamos mantê-las e acrescentar outras? Decida você, leitor, o que fazer. E,
para ajudá-lo, vamos ao terceiro parágrafo:
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários
especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados
especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências
e privilégios maiores. Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor
das distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas
horas de sono - e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia
- eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz
para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria
com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus
sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para
violino e orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à
tortura da tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no
escuro, mas sendo por amor de Pedro não tinha importância.
Observemos que no parágrafo anterior o narrador afi rmou que o nosso
amigo fora um hóspede ameno. Agora, ele nos diz que esse hóspede ameno foi um
visitante que deu trabalho: “tinha horários especiais, comidas especiais, roupas
especiais, sabonetes especiais, criados especiais.” Um visitante, cheio de melindres,
que impôs tantas restrições aos seus anfi triões e, ainda assim, é considerado
merecedor de tantos mimos. Quem é esse visitante? Deixemos o narrador falar e
agora vamos apresentar um trecho maior:
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheio (e
não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de
escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas
para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pôlas
na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido
que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas
pupilas azuis - porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta
qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os
cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com
ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro
que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria
desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas
eram indiferentes à nossa amizade – e, até, que a nossa amizade lhe conferia
caráter necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Já é possível dizer quem é esse hospede merecedor de tanta distinção? Não
pronuncia palavras, não tem dentes, não usa óculos, gosta de pegar tudo que está
ao seu alcance, leva tudo à boca, faz suas necessidades fi siológicas em qualquer
lugar ([...] “o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte”) e continua digno de
amor, de atenção e a quem tudo se desculpa. Esses indícios ajudam a desvendar o
mistério? Vamos ao fi nal do texto:
Viajou meu amigo Pedro. Fico refl etindo na falta que faz um amigo de um ano
de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto fi cou
vazio.
Para que você, leitor, possa fazer a sua leitura, construir os seus sentidos e
apreciar a escrita de Drummond, apresentamos o texto sem cortes:
O aeroporto
Carlos Drummond de Andrade
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas
o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos,
embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito
assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente
parco de palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando
muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz
entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para
os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta,
porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo
considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo
ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos
e desconhecidos, gratifi cados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de
dentes), abonam a classifi cação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários
especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados
especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e
privilégios maiores. Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das
distinções, e ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas
de sono - e lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia - eram
respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para
não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a
gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.
Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e
orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da
tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas
sendo por amor de Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheio
(e não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de
escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas
para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las
77
78
na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que
mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas
azuis - porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer
suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os
cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele
porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que
ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado
com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes
à nossa amizade – e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter necessário de
prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Fico refl etindo na falta que faz um amigo de um
ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto fi cou
vazio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. Em: Poesia
completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p.1107-1108
Não fecharemos a leitura, ao contrário, convocamos cada um a produzir
sentidos para esse texto. Esperamos que essa simulação tenha demonstrado que,
do ponto de vista do ensino, esse conhecimento permite ao professor elaborar
atividades de abordagem do texto que levem o aluno a lidar com as estratégias
cognitivas de leitura de uma forma mais consciente. Inclusive, esperamos que a
atividade tenha demonstrado que nem toda leitura é autorizada pelo texto.
Evidentemente não podemos negar que pode haver a suposição de que essa
estratégia de abordagem do texto leve o aluno a um controle total do seu processo
de leitura e a um conseqüente acesso ao sentido do texto, como se esse tivesse
apenas um sentido, objetivamente controlável. Essa é uma ilusão com a qual não
compartilhamos. Além disso, é preciso acrescentar que nem todo texto se presta a
esse método de abordagem.
A crítica que se faz à perspectiva cognitivista consiste no fato de limitar
a leitura aos seus aspectos mais técnicos, focados principalmente nas pistas do
texto, sem considerar o caráter sócio-histórico da leitura enquanto prática que
coloca em jogo uma relação entre sujeitos – o autor e o leitor – mediada pelo texto.
Nesse sentido, essa concepção nem sempre dá conta do imprevisível, da novidade
que se constrói nessa relação, inclusive, jogando com a quebra de expectativas do
leitor.
Contudo, é preciso reconhecer a contribuição que ela traz para o ensino da
leitura, na medida em que oferece ao professor um conhecimento que permite
a formulação de metodologias que respeitem o modo como, do ponto de vista
cognitivo, o sujeito se apropria do conhecimento.
PESQUISA: Procure ler mais sobre a leitura do ponto de vista da relação
cognitiva do leitor com o texto. Leia mais sobre os processamentos ascendente
e descendente de leitura. Sugerimos como leitura complementar os livros de
Mary Kato (1985 e 1987) e Ângela Kleiman (1993). Use a ferramenta Fórum e
participe do debate que lá propomos.
1.3.3 A leitura numa perspectiva sociointeracionista
Numa perspectiva sociointeracionista, a leitura tem sido considerada a
partir da concepção de linguagem como interação, oriunda, principalmente, dos
estudos de Bakhtin, para quem a palavra “é determinada tanto pelo fato de que
procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém.” (BAKHTIN,
1986 [1929], p. 113). A concepção de linguagem que embasa essa perspectiva é,
portanto, a de linguagem como interação entre sujeitos determinados sócio e
historicamente. Isso signifi ca dizer que o sentido das palavras é determinado por
seu contexto, em sentido amplo, pela situação social mais imediata e pelo meio social
mais amplo. Dessa forma, a leitura passa a ser concebida a partir da relação entre
os sujeitos leitor e autor, mediada pelo texto. Falando de forma bem sempre,
podemos dizer que – semelhante ao que ocorre com um diálogo que supõe a
presença de um locutor e de um ouvinte – a escrita supõe, sempre e ao mesmo
tempo, alguém que escreve e alguém que lê.
Evidentemente, do ponto de vista da aprendizagem, não se desconsideram
os processos mentais que o leitor desenvolve no seu encontro com o texto. Mas
defende-se que é preciso ir mais além. Em conseqüência, acredita-se que não
há lugar para a separação entre leitor e texto e entre leitor e autor. O processo
interativo supõe a relação entre interlocutores construída, mediada pelo texto,
que também impõe limites.
Voltemos ao texto “A água”, citado no início dessa unidade. Se o leitor
não souber que o autor daquele texto é Millor Fernandes ou se ele não
souber nada sobre esse autor, certamente fará a leitura daquele texto tãosomente
a partir dos elementos lingüísticos que o constituem e fatalmente
chegará à conclusão de que se trata de um texto mal escrito e cheio de
bobeiras. Se, por outro lado, ele conhecer Millor, estiver familiarizado com
a sua escrita e se souber que esse texto faz parte de um livro cujo título é
“Conpozissõis imfatis”, ele deverá considerar esses aspectos para a construção
de outras leituras. Verifi quemos que o texto não se modifi cou enquanto
mera materialidade, mas essa materialidade foi alterada (afetada) pelo
reconhecimento de um outro elemento da relação interlocutiva: o autor, aqui
considerado como alguém responsável pelo dizer, pela coerência interna e
externa do texto. Como o sujeito-autor desse texto é reconhecido como alguém
que sabe escrever (tem vários livros publicados, tem uma legião de leitores
que o admiram, é considerado como um autor que usa o humor e a ironia
como ingredientes para a crítica social), os problemas do texto não podem ser
atribuídos à incompetência do autor.
Observe que novamente entra em cena o leitor: seu conhecimento de
mundo, suas leituras de outros textos. Dentre as possíveis leituras, haverá a
possibilidade de que, por um lado, esse texto possa ser lido como uma crítica às
composições infantis – cheias de erros ortográfi cos (tal como se revela no título
do livro), plenas de construções absurdas – e, por outro, como uma crítica à
escola, que leva os alunos a produzirem textos daquela natureza. Mas há ainda
a possibilidade de que o texto seja um reconhecimento de que essas composições
não são tão absurdas quanto se imagina. Afi nal, não podemos nos esquecer de
que elas lembram o humor e non-sense que também está presente na pena de
escritores, tidos como bons, competentes, inspirados, criativos e tantos outros
adjetivos que usamos para qualifi car o bom escritor.
79
5 Na segunda e terceira
unidades, você irá
encontrar uma discussão
mais aprofundada
sobre a descrição e o
funcionamento dos
gêneros textuais
80
Dessa forma, o nosso exemplo demonstra que o texto – apesar de não impor
uma única leitura – na sua relação com o autor, impõe um modo de recepção que
limita a leitura, ou seja, a leitura não pode ser qualquer uma: não podemos, por
exemplo, dizer que o texto demonstra que Millor Fernandes não sabe escrever.
E o que nos permite afi rmar isso é o conhecimento que nós leitores temos sobre
esse autor. Ou seja, o mesmo exemplo ainda nos ensina que as possíveis leituras
do texto dependerão do leitor. Sendo assim, torna-se necessário considerar no ato
de ler a tríade: leitor, texto, autor.
1.3.4 A leitura numa perspectiva discursiva: o confronto entre sujeitos
Numa perspectiva discursiva, a leitura é considerada como produção de
sentidos. Semelhante à perspectiva anterior, também se ressalta a leitura como um
processo dinâmico que envolve sujeitos (leitor e autor) mediados pelo texto, mas
enfatiza-se principalmente a leitura como práticas históricas, sociais e culturais.
Nessa perspectiva, interessa-nos pensar que existem diferentes modos de leitura,
decorrentes de vários fatores, dentre os quais destacamos:
a) O leitor, seus objetivos de leitura (ler para quê: para cumprir uma tarefa
escolar, para se informar, para se distrair, para interagir com outros leitores,
para fugir do mundo?), suas histórias de leitura, suas experiências com o
texto escrito (como ele lê, o que lê, onde, quando, com que freqüência lê?);
b) O texto, sua historicidade (quando foi escrito, como foi lido antes (se foi
lido), a sua relação com o conteúdo do dizer, com outros textos que tratam
do mesmo assunto);
c) O autor, suas histórias de leitura, suas histórias de escritor que validam
as possíveis leituras (escritor de vários textos, de vários leitores, escritores
anônimos, “mercadores de coisas nenhuma”);
d) As instituições (dentre as quais a Escola, a Igreja, a Família) que impõem leituras,
obrigam o leitor a ler de tal maneira e proíbem ou limitam outras leituras;
e) Os gêneros textuais/discursivos que já impõem uma maneira de ler o
texto. Sabemos, por exemplo, que uma piada não pretende, em princípio,
provar o choro em ninguém; que uma lista telefônica possui um objetivo
bem específi co; que uma carta já possui objetivos os mais diversos (fazer rir,
fazer chorar, solicitar algo, informar algo) etc5 .
f) Os suportes (o livro, a revista, o jornal, o outdoor, o e-mail etc.) que também
determinam diferenças maneiras de circulação e modos de recepção do texto.
Todos esses fatores demonstram que o leitor não é totalmente livre para ler
o que quiser ou como quiser ou, até mesmo, onde quiser. Lembremos, para efeito
de ilustração, que, durante uma aula, a leitura permitida é aquela determinada
pelo professor; durante uma missa ou um culto, difi cilmente será permitido que
alguém leia um romance, um livro de piada, ou mesmo uma receita de bolo.
Evidentemente, esses exemplos também demonstram que o leitor procura brechas
para burlar as imposições das instituições.
Esperamos ter deixado claro que compreender a leitura como prática
signifi ca conceber a articulação entre a leitura e a escrita. Quem escreve produz
sentidos e quem lê produz sentidos. Quem escreve constrói do seu lugar de
escritor um leitor (ou a imagem de um leitor) que pode corresponder ou não
ao leitor real. O leitor real, por sua vez, depara-se com um objeto de leitura (o
texto) com o qual estabelece uma relação complexa, quer seja de identifi cação, de
estranhamento, de indiferença, de alheamento. O confronto entre esses sujeitos
– aquele que escreve e aquele que lê – constrói possibilidades de sentidos. É por
isso que vários autores, dentre os quais Orlandi (1986), afi rmam que a leitura não
é uma questão de tudo ou nada, ou seja, não existe um grau zero de leitura, assim
como não existe um grau dez. Trata-se de níveis de leitura.
Essas considerações nos levam a destacar que o texto tem sido pensado
cada vez mais em relação às suas condições de produção de escrita e de leitura.
Do ponto de vista do ensino da leitura, essa perspectiva nos permite reconhecer
algumas questões básicas. Quanto à perspectiva do autor, temos que considerar:
quem (o autor) escreve o que (o texto) sobre o que (o conteúdo do dizer) para
quem (o leitor virtual) como (o modo de dizer) onde (o suporte do texto). Quanto
à perspectiva do leitor, torna-se imprescindível considerar: quem (quem é esse
leitor) ler o que (o texto), sobre o que (o conteúdo do dizer) para que (os objetivos
de leitura), como (os modos de ler) etc.
Notemos que, nessa perspectiva, do ponto de vista do ensino da leitura,
é preciso considerar a história de leitura do leitor (leitor de primeira viagem,
leitor de um texto só, de vários textos de um só gênero, de vários textos de
diferentes gêneros?). Dito em outras palavras, as possibilidades de leitura do
texto dependem não apenas do conhecimento lingüístico do leitor, mas também
de suas experiências de leitura, de suas histórias de leitor. Nesse sentido, o papel
do professor ganha uma outra dimensão. Como afi rma Geraldi (1993), cabe ao
professor entender a “caminhada interpretativa” do aluno-leitor e contribuir para
ampliar essas possibilidades de leitura. Quando esse professor coteja leituras
diferentes de um mesmo texto, quando trabalha com diferentes textos, diferentes
gêneros, explora diferentes suportes, certamente estará contribui para ampliar a
história de leitura de seus alunos.
Passaremos à leitura de um texto para que possamos observar vários dos
aspectos até aqui discutidos. Partiremos de um texto apresentado em um livro
didático (LD) do Ensino Médio. A opção por recorrer ao LD deve-se, em primeiro
lugar, ao fato de esse
ser um instrumento
de ensino a que o
professor, direta
ou indiretamente,
sempre recorre;
segundo, gostaríamos
de observar como o
professor poderá ir
além do que propõe o
LD. Passemos, então,
ao texto apresentado
no LD e às atividades
propostas pelos
autores do manual:
81
6 Essa seria uma
oportunidade para
desenvolvermos outras
atividades, por exemplo,
nos informar mais acerca
desse autor, caso já não
saibamos, e para ler
outros textos seus.
82
Inicialmente chamamos a sua atenção para as questões 1 e 2 formuladas
pelos autores do LD acerca da tira de Angeli. Consideramos não ser exagero
afi rmar que essas questões têm como objetivo simplesmente verifi car se o aluno
domina os conceitos de conotação e denotação. Esse nos parece um objetivo
extremamente limitador, à medida que restringe a leitura do texto à identifi cação
da dicotomia: sentido denotativo/sentido conotativo e isso é muito pouco para
a leitura de um texto. Na verdade, não se pode sequer dizer que os autores do
LD propõem uma leitura do texto. Além disso, o texto que aparece ao lado das
perguntas passa a não ter nenhuma função, a menos que o professor amplie a
leitura proposta pelos autores do LD. Vejamos, então, que, caso o professor não
perceba essa limitação, perderá uma ótima oportunidade de realizar com os
alunos vários modos de ler esse texto.
Façamos um exercício de leitura. Primeiro iniciemos observando os aspectos
lingüísticos do texto. A expressão “Yes, nós temos...” se completa lingüisticamente
a cada quadrinho apresentado, e cada vez traz novos elementos ao texto e
constrói a possibilidade de novas leituras. Vejamos esquematicamente como se
apresentam os complementos do verbo ter:
“Yes, nós temos ... um corrupto a cada esquina.”
“Yes, nós temos...um assalto a cada segundo.”
“Yes, nós temos...um analfabeto a cada metro quadrado.”
“Yes, nós temos...um desempregado em cada família”
“Yes, nós temos...bilhões de eleitores e contribuintes.”
Não podemos nos esquecer de que a cada ocorrência a linguagem nãoverbal
reforça a signifi cação da linguagem verbal. Ademais, precisamos também
registrar a importância da reticência para o encadeamento sintático que se dá
sempre diferente a cada retomada da expressão “Yes, nós temos...”. O leitor vê
passar diante de si um fi lme sobre as mazelas do Brasil. Do Brasil, como assim
se esses são problemas comuns a vários outros países? E como sabemos se em
lugar nenhum do texto aparece a palavra Brasil? Vamos ao último quadrinho ou
à última cena para ver se encontramos alguma resposta. Há alguma palavra que
nos ajude? O leitor apressado dirá: Não, lá aparecem três personagens: dois – que,
pela caricatura das roupas, das máquinas fotográfi cas, pode-se inferir tratar-se de
turistas – e um outro – que, caso se aceite a inferência sobre os turistas, poderá
ser considerado como um guia turístico. O leitor atento verá que, no canto direito
do último quadro, aparece o nome do autor: Angeli6 . E fora do quadro, aparece
o nome do jornal (o suporte) do qual foi retirado o texto de Angeli e a data de
sua publicação. Esses dados – o autor, o suporte do texto, a data de publicação
– nos informam que o texto trata dos problemas do Brasil, retratados em 2000. O
leitor, que lê em 2007, atento à realidade política, econômica, cultural e social do
país, reconhece as mazelas enumeradas e é capaz de recuperar a ironia presente
no último quadrinho. Mas não só isso.
O autor do texto – quando usa a expressão Yes, nós temos... – cria uma
relação intertextual explicita, remetendo diretamente para um outro texto: “Yes,
Nós temos banana”, canção de Braguinha e Alberto Ribeiro, criado no fi nal da
década de 30 e bastante conhecida até hoje, visto que atualizada a cada carnaval.
Observemos que os autores do LD, embora não explorem essa relação entre os
dois textos, reconhecem essa intertextualidade, visto que colocam informações
sobre esse outro texto em um quadro ao lado das perguntas elaboradas. Nesse
caso, o que signifi ca ler esse texto de Angeli – recheado de ironia e humor –
confrontando-o com o texto de Braguinha – que, na voz de Carmem Miranda,
foi cantado e decantado como uma “ingênua” marchinha de carnaval? Signifi ca,
dentre outras possibilidades, confrontar maneiras diferentes de ler o Brasil, o seu
povo e seus problemas. Esse confronto, necessário para a compreensão do texto
de Angeli – nos levaria a perceber que são vários os sentidos que poderíamos
atribuir às bananas e aos bananas em diferentes épocas e lugares.
Esse exemplo nos mostra, por um lado, que a construção de sentidos
para o texto depende da capacidade do leitor de estabelecer relações de sentido
entre o que é dito em um texto e o que é dito em outros textos. Por outro lado,
nos ensina que existem sentidos, mas esses não podem ser qualquer um, já que
existem determinações (lingüísticas, sociais, culturais e históricas), relacionadas
aos textos, aos leitores e aos autores, que limitam os sentidos.
Na escola, muitas vezes, o aluno lê apenas para dizer que sabe ler (que
sabe decodifi car ou vocalizar o escrito). As perspectivas aqui apresentadas
demonstram que é possível ensinar a ler e que esse ensino não se encerra no
mero reconhecimento do código lingüístico. Os objetivos de leitura, ainda que
na escola, podem e devem ser ampliados; as estratégias de leitura podem ser
múltiplas. Enfi m, as possibilidades de leitura se ampliam quando reconhecemos
que os textos não possuem um sentido, mas sentidos; quando confrontamos
leituras, textos; quando sabemos que não se lê o mesmo texto da mesma maneira,
ainda que o leitor seja o mesmo; quando reconhecemos que, a cada vez que
voltamos a um texto, o lemos de modo diferente, exatamente porque já não
somos os mesmos: mudou nosso conhecimento lingüístico, nosso conhecimento
de mundo, nossos objetivos já não são os mesmo, até nosso humor alterou-se.
AGORA É SUA VEZ: Escolha um livro didático de Língua Portuguesa
(de preferência um que seja adotado em escolas do seu município, quer seja
do Ensino Fundamental ou Médio) e analise uma seção dedicada à leitura.
Comente a natureza das perguntas formuladas. Você considera que elas
exigem do aluno uma compreensão efetiva do texto? São questões que
priorizam a refl exão do aluno ou simplesmente uma colagem do texto dado
para leitura? Para aprofundar a sua análise, leia o texto Política de leitura
para o ensino médio: o PNLEM e o LD, de autoria de Maria Ester Vieira
de Sousa, que se encontra disponível na plataforma moodle, os textos sobre
leitura, disponíveis no site www.cchla.ufpb.br/leituranapb, e os três primeiros
capítulos do livro Do mundo da leitura para a leitura do mundo de Marisa
Lajolo.
83
UNIDADE II
CONCEITO DE GÊNERO: DESCRIÇÃO E FUNCIONALIDADE
Conforme esclarecemos no início deste capítulo, a II unidade tem como
objetivo apresentar uma visão geral do conceito de gênero – partindo da
tradição literária até os dias atuais –, bem como sua descrição e funcionalidade.
Comecemos então, por uma revisão da literatura sobre a noção de gênero.
2.1 Uma breve retrospectiva
No campo dos estudos da linguagem, os gêneros textuais talvez sejam um
dos objetos de estudo que melhor representem a interdisciplinaridade entre as
áreas de conhecimento envolvidas com fenômenos sócio-culturais, cognitivos
e lingüísticos.
O sentido do termo gênero na acepção utilizada na lingüística esteve
originalmente ligado à tradição da Antigüidade greco-latina e vinculado
aos gêneros literários. Iniciou-se com Platão com o estabelecimento das três
modalidades de mimésis: a tragédia, a épica e a lírica. Firmou-se com Aristóteles,
quando sistematizou uma teoria de gêneros e da natureza do discurso, na qual
há uma estreita relação entre autor, ouvinte e gênero, dando origem às três
modalidades de discurso retórico: o deliberativo, o judiciário e o epidítico. Passa
pela Idade Média, Renascimento, Modernidade até chegar aos dias atuais. Nesse
percurso, a sua área de abrangência, antes restrita aos textos literários, ampliouse
bastante passando a incorporar todas as esferas de uso da língua.
Nas duas últimas décadas do século passado, era freqüente a utilização do
termo gênero para se referir ao que hoje convencionamos identifi car como
tipos textuais: narração, descrição, argumentação, exposição e injunção. Essa
imprecisão terminológica tem persistido nos dias atuais, pois ainda é possível
encontrar livros didáticos tanto na área de literatura, como nas coleções de
língua portuguesa adotadas para a 2ª fase do ensino fundamental que
apresentam contradições no emprego do termo: ora utilizado em referência
a um exemplar prototípico de texto como carta, resumo ou entrevista, ora
em referência às seqüências ou modalidades discursivas que se revelam nas
estruturas do texto – descritiva, narrativa e argumentativa, representantes da
tipologia triádica tradicional (cf. BIASI-RODRIGUES, 2002, p.50).
Até mesmo entre os especialistas da área existem problemas de caráter
terminológico. A diversidade no emprego dos termos está condicionada à
orientação teórica seguida pelos grupos de estudo. Assim, gêneros do
discurso – para alguns teóricos (BAKHTIN, 1992 [1979]) - correspondem aos
gêneros textuais (BRONCKART, 1999; SCHNEUWLY, 1994,1996; DOLZ,1996;
MARCUSCHI, 2002) para outros. Os tipos textuais também são reconhecidos
como seqüências textuais ou modalidades retóricas. O que parece ter-se tornado
consensual é a utilização da expressão tipo ou modalidade retórica para se
referir às estruturas mínimas responsáveis pela composição textual, cabendo
portanto ao gênero a designação do exemplar concreto de texto.
85
86
Depois da divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) entre
os professores do ensino público e privado, os gêneros textuais, em sua
nova acepção, tornaram-se mais populares e surgiu a necessidade de conhecêlos
melhor. Existe uma forte orientação contida nos PCN (1997) na direção
de trabalhar a produção e interpretação de textos usando os gêneros como
ferramenta metodológica. Para que essa orientação seja de fato adotada, e
implementada com êxito, faz-se necessário um conhecimento maior sobre os
gêneros para entender melhor sua natureza social e sua constituição.
2.2 Afi nal, o que vem a ser gênero?
2.2.1 O conceito de gênero e tipo
Schneuwly (2004) avalia que a moda das tipologias cedeu lugar à dos
gêneros. Contudo, acrescenta que, apesar de não dispensar uma grande atenção
à classifi cação de tipologias, admite a necessidade e a utilidade do conceito de
tipo de texto para uma teoria do desenvolvimento da linguagem. A respeito da
distinção entre tipo e gênero textual, Marcuschi (2002, p.22-23) esclarece:
(a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie
de construção teórica defi nida pela natureza lingüística de sua
composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia
de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção.
(b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente
vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa
vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas defi nidas
por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica.
Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros.
Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta
comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula
expositiva, reunião de condomínio, notícia [...] carta eletrônica, bate-papo
por computador, aulas virtuais e assim por diante.
PESQUISAR: Para você saber mais, consulte Marcuschi (2002) e Schneuwly &
Dolz, 2004, p. 37-38).
2.2.1 A noção de suporte
Além da distinção entre gênero e tipo, também é importante destacar a
noção de suporte. Um mesmo gênero pode circular em diferentes suportes. Uma
notícia pode circular em jornais ou na internet, uma crônica pode ser publicada
em um livro ou revista literária. Temos como exemplos de suporte: livro, jornal,
revista, dicionário, televisão, outdoor, cd-rom etc.
2.3 As bases de uma teoria
Vejamos se você entendeu. Um e-mail se
apresenta como um gênero específi co, apresenta
características particulares? Ou funciona como
um suporte, por meio do qual podem circular
diferentes gêneros?
Um dos primeiros estudiosos a sistematizar uma teoria sobre os gêneros
foi Bakhtin (1992 [1979]), que continua sendo uma referência para este tema.
A sua idéia dos “tipos relativamente estáveis de enunciados”, certamente,
inspirou muitos outros teóricos que a ele sucederam. Ele defendeu esta idéia,
argumentando que se toda vez em que fôssemos nos comunicar, tivéssemos
de criar ou inventar meios para agir lingüisticamente, a comunicação não seria
possível. Caberia, então, à sociedade criar essas formas relativamente estáveis
de textos – que se apresentam sob a forma de gêneros do discurso – para que
servissem como elemento mediador nas interações lingüísticas. Para o autor,
as pessoas se comunicam usando gêneros:
Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados [...]. Os gêneros do
discurso organizam a nossa fala da mesma maneira que a organizam
as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às
formas de gênero, e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem
nas primeira palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a
extensão) aproximada do todo discursivo, a dada estrutura composicional,
prever-lhe o fi m, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo
que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações
(BAKHTIN, 1992 [1979], p. 302).
Bakhtin reconhece a grande diversidade dos gêneros (orais e escritos),
mas não apresenta uma tipologia propriamente dita. Para o autor, os gêneros
discursivos dividem-se em primários (simples) – a conversação oral cotidiana
e a carta pessoal – “que são constituídos em circunstâncias de comunicação
verbal espontânea ” – e os gêneros secundários (complexos) – o romance, o
teatro, o discurso científi co e o ideológico, e outros mais – que “aparecem em
circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente
mais evoluída, principalmente escrita: artística, científi ca, sócio-política”
(BAKHTIN, 1992 [1979], p. 82).
Mesmo admitindo essa grande diversidade que reveste os gêneros
(já que os gêneros estão relacionados às diferentes atividades humanas
e ao conseqüente uso da língua que é feito nessas diferentes esferas de
atividade), Bakhtin defende que essas atividades – que se efetivam através
de enunciados (orais e escritos) – não são aleatórias, dadas as condições de
constituição dos enunciados.
87
88
Os gêneros não defi nem as situações de comunicação, são as práticas
de linguagem que determinam a utilização de um determinado gênero. Estão
envolvidos nesta situação de comunicação todos os elementos constitutivos de
uma atividade de produção discursiva (lugar e papel social dos interlocutores,
evento comunicativo e o objetivo da interação) que vão defi nir a natureza e
constituição do gênero.
Talvez seja essa uma das contribuições bakhtinianas à teoria gêneros mais
consensualmente aceita entre os teóricos que a ele sucederam: a dimensão
constitutiva dos gêneros composta de três elementos (conteúdo temático, estilo
e construção composicional). Estes três elementos referem-se, respectivamente,
ao tema abordado em um determinado texto; à seleção feita pelo autor sobre
os recursos lingüísticos disponíveis nas línguas em geral: lexicais, gramaticais,
expressivos etc e, fi nalmente, à estrutura típica de cada gênero específi co. Ou seja,
um convite apresenta uma construção composicional diferente de uma carta de
apresentação, por exemplo.
Como uma decorrência da evolução dos estudos sobre o tema, nada mais
natural, então, que o estudo dos gêneros extrapolasse a esfera dos textos
literários – tradicionalmente predominante até bem pouco tempo atrás. De
acordo com Freedman & Medway (1994, p.1), as análises recentes enfocam a
vinculação dessas regularidades lingüísticas e substantivas às regularidades
nas esferas de atividades humanas.
Portanto, essa nova maneira de enfocar o estudo sobre gênero busca uma
vinculação entre a identifi cação de traços de regularidade nos tipos de
discurso com uma compreensão social e cultural mais ampla da língua
em uso. Diante da multiplicidade de gêneros disponíveis na sociedade,
justifi cam-se também as várias tendências encontradas entre os grupos de
estudo que se ocupam desses legítimos representantes da ação social.
AGORA É SUA VEZ: Leia os exemplares de gênero abaixo e refl ita
sobre seus elementos constitutivos (conteúdo temático, estilo, construção
composicional) e função sócio-comunicativa. Iremos debater sobre estes
questionamentos no chat.
Texto 1
CRÍTICA
“Seja feliz! Isto é uma ordem!”
EUGÊNIO BUCCI
[...] Será possível que alguém seja feliz por obediência? A felicidade pode
ser produzida por um comando, por uma ordem?
Claro, qualquer um responderá que não. A idéia de felicidade, por mais
precária que seja entre nós, supõe um grau mínimo de liberdade. A gente é feliz
quando faz o que quer, mesmo quando ninguém consiga saber direito o que quer
e o que deseja. Felia é quem sabe o que quer e o que deseja (querer e desejar são
níveis diferentes do ser e se concilia com isso.
[...] Pode até haver algum tipo de prazer em deixar-se dominar, mas não há
felicidade nisso. A felicidade, pensamos e pensamos com razão, não se impõe.
Não obstante, a felicidade nos é imposta como obrigação. Digo isso a
propósito da massa cada vez mais avassaladora da publicidade natalina e da
programação “felicidifi cante” que toma conta da TV quando chegam as festas
de fi m de ano. As criancinhas produzidinhas multiculturaizinhas e devidamente
multiétnicas entoam em torno da árvore de Natal a velhíssima canção “hoje é
um novo dia de um novo tempo” etc. A moça linda chora porque ganhou um
anel. Roberto Carlos geme num acorde perfeito maior. Os astros têm dentes
alvos modelados na ortodôntica indústria de entretenimento e sorriem seus
sorrisos pré-fabricados. Os embrulhos de Natal e os votos de feliz Ano Novo se
confundem num único e ininterrupto imperativo: “Seja feliz! Isso é uma ordem!”.
É incrível como o discurso que reprime se esconde por trás do discurso
que vende a felicidade como a mais preciosa das mercadorias. O discurso da
TV, que é o discurso do comércio disfarçado de informação e diversão, que
procura estabelecer os padrões de comportamento, obriga o telespectador a ser
feliz. Como se fosse um general ou um feitor de escravos, de chicote na mão.
Um comandante que ordena: “Goze, seja feliz seu verme inútil e tristonho!” O
inferno quem diria?, é feito de votos de felicidade comercial. Que não são votos,
mas ordens: “Compre, embriague-se de mercadorias. E depois ache tudo ótimo,
inenarrável.”[...]
Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 dez. 2002. (Fragmento)
89
90
Ao shopping center
Pelos teus círculos
Vagamos sem rumo
Nós almas penadas
Do mundo do consumo
De elevador ao céu
Pela escada ao inferno:
Os extremos se tocam
No castigo eterno.
Cada loja é um novo
Prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
Estamos sempre nus
Nós que por teus círculos
Vagamos sem perdão
À espera (até quando?)
Da grande liquidação
José Paulo Paes
Prosas seguidas de odes mínimas.
SãoPaulo: Cia. Das Letras, 2001.
UNIDADE III
OS GÊNEROS TEXTUAIS E O ENSINO DA LEITURA E DA
ESCRITA
Finalmente, nesta terceira unidade trataremos da importância da utilização
dos gêneros textuais para o ensino da leitura e da escrita e de suas implicações,
enquanto procedimento metodológico, para o desenvolvimento dessas
competências.
3.1. O gênero na sala de aula
Conforme já mencionamos anteriormente, a publicação dos PCN (1997)
representou um signifi cativo avanço no direcionamento dado aos estudos de
língua portuguesa nas escolas brasileiras.
Esse documento foi elaborado dentro de uma orientação enunciativo –
discursiva, respaldada nas concepções teóricas bakhtinianas de língua e gênero,
e alicerçada nas propostas metodológicas do grupo de Genebra, notadamente
nos trabalhos de Bronckart, Schneuwly e Dolz, já mencionados aqui e que serão
melhor aprofundados ao longo de nossa exposição.
Os PCN receberam críticas, vindas de alguns setores da comunidade
acadêmica e escolar, em relação ao nível de aprofundamento teórico nele
presente. O seu conteúdo foi considerado insufi ciente para dar conta de toda
a complexidade contida no conceito de gênero e na concepção de linguagem –
enquanto atividade discursiva concebida nas relações interpessoais – mas, ainda
assim, sua repercussão foi notável. Pois foi defl agrada, a partir desse momento,
uma maior motivação para buscar meios efi cientes que pudessem promover uma
transposição didática entre as propostas teórico-metodológicas e as atividades de
ensino desenvolvidas em sala de aula.
Segundo Rojo (2000), um dos aspectos positivos nesse documento é que
eles não foram concebidos como grades de objetivos e conteúdos pré-fi xados,
mas como diretrizes que devem nortear os currículos e seus conteúdos mínimos,
adequados às necessidades e características culturais e políticas regionais,
procurando fomentar a refl exão sobre os currículos estaduais e municipais.
A proposta presente nos PCN opõe-se ao ensino tradicional de língua, de
caráter mais normativo, sugerindo práticas alternativas de trabalho e refl exão
lingüística que se apóiam, substancialmente, na interpretação e produção de
textos diversos.
Pode-se depreender desses princípios norteadores que os gêneros textuais
são eleitos como legítimos objetos de ensino escolar, intensifi cando, portanto, os
debates sobre o tema. O interessante nesses debates é que eles trazem à tona
uma refl exão sobre uma prática que nunca esteve ausente da escola, nem
de qualquer outra instância de vida social. Os gêneros estão tão incorporados
à nossa vida na sociedade que muitas vezes não nos damos conta de sua
existência materializada.
91
1 No original: “School is a
rather peculiar place. Its
mission is peculiar and
so are the discoursive
forms which optimaly
carry that mission. It
is at once a refl ector
of the outside world
and discursively very
diff erent from the outside
world. Because school
needs to concentrate
the outside world into
the generalizations
that constitute school
knowledge, it is
epistemologically and
discursively very diff erent
from most of everyday
life in the outside world”
(CAZDEN,1988, p.37).
92
Os gêneros sempre estiveram presentes na sala de aula, mas em número
reduzido e não diversifi cado, e sempre revestidos de caráter institucionalmente
escolar. Se, por um lado os alunos têm tido acesso – do ponto de vista da leitura –
a uma maior diversidade de gêneros, por outro lado, no que se refere à produção
escrita, essa diversidade praticamente não existe.
Não obstante as orientações divulgadas nos PCN há quase dez anos,
na nossa realidade educacional, os alunos ainda têm pouca oportunidade de
produzir textos concretos, reais e verdadeiramente signifi cativos. De maneira
geral, não se exercita a linguagem escrita (do ponto de vista discursivo) em
sala de aula, o que se exercita predominantemente é a língua em seus
domínios sintático, morfológico, lexical e fonológico. Em relação aos gêneros
orais, a situação não é muito diferente, poucos livros didáticos exploram o
trabalho com os gêneros nessa modalidade.
Reside, aí, um dos grandes desafi os a ser vencido por aqueles gestores
em educação envolvidos com a formação de professores. É necessário que
os professores tenham acesso a outros textos que sirvam para aprofundar
as concepções teóricas subjacentes nas propostas dos PCN, de modo que
estas possam ser implementadas em sala de aula, levando-se em conta as
complexidades e especifi cidades de cada contexto educacional.
Se os gêneros são formas de agir em sociedade, certamente não podemos
atuar com todos os gêneros em todas as instâncias da vida sócio-comunicativa.
Operamos com gêneros particulares em situações particulares, e na escola não
poderia ser diferente.
Na visão de Cope e Kalantz is (1993, p.8), inspirados em Cazden (1988), a
escola é um lugar um tanto peculiar. Sua missão é peculiar assim como as formas
discursivas que melhor desempenham essa missão. É, ao mesmo tempo, refl exo
do mundo exterior, mas discursivamente muito diferente dele. Por precisar
concentrar o mundo exterior nas generalizações que constituem o conhecimento
escolar, a escola torna-se epistemológica e discursivamente diferente da maior
parte das ações cotidianas desse mundo exterior1 .
Schneuwly e Dolz (2004, p.76) compartilham a mesma opinião:
A particularidade da situação escolar reside no seguinte fato que torna a
realidade bastante complexa: há um desdobramento que se opera em que
o gênero não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo
tempo, objeto de ensino-aprendizagem. O aluno encontra-se, necessariamente,
num espaço do “como se”, em que o gênero funda uma prática de linguagem
que é, necessariamente, em parte, fi ctícia, uma vez que é instaurada com fi ns
de aprendizagem (grifo do autor).
Essa situação desdobra-se em três diferentes contextos para se entender o
lugar da comunicação em sala de aula.
1. Primeira perspectiva→ Há o desaparecimento da comunicação em favor
da objetivação. Segundo os autores, o gênero transforma-se em uma
forma lingüística pura. O gênero passa de instrumento de comunicação a
uma forma de expressão do pensamento, da experiência ou da percepção,
perdendo, então, sua relação com uma situação de comunicação autêntica.
Para Schneuwly e Dolz (op. cit.), os gêneros escolares são utilizados como
referência para a construção de textos no âmbito da redação/composição. Nesse
contexto de produção destaca-se a seqüência tripartite estereotípica – que marca
o avanço através das séries escolares – mais conhecida e canônica: narração,
descrição e dissertação (cuja origem remete à tradição literária e retórica).
Os autores resumem dizendo que esses gêneros escolares-guia são produtos
culturais da escola, usados como instrumento para desenvolver e avaliar a
capacidade de escrita dos alunos.
Os gêneros, nessa situação específi ca, passam a parametrizar as formas
de concepção do desenvolvimento da escrita. Nesse percurso tornam-se
independentes das práticas sociais historicamente situadas e se vinculam às
necessidades dos próprios objetos descritos, de uma realidade própria. Segundo
Schneuwly e Dolz (2004) os gêneros naturalizam-se.
2. A segunda perspectiva toma a escola como autêntico lugar de comunicação,
com as situações escolares produzindo suas próprias condições de
produção e recepção de textos: na classe, entre alunos; entre classes de
uma mesma escola; entre escolas. Esses contextos interacionais gerariam os
textos livres, seminários, correspondência escolar, jornal da classe, avisos,
comunicados à direção da escola, resumos, resenhas, romances coletivos,
poemas individuais. Nessa situação também temos “gêneros escolares”, só
que nesse caso eles são resultado do funcionamento escolar.
3. A terceira perspectiva representa a negação da escola como lugar de
comunicação. Os gêneros externos à escola entram no espaço escolar
como se houvesse continuidade entre o que é externo e interno à escola. O
trabalho com os gêneros, então, teria como objetivo levar o aluno a dominar
vários gêneros, seguindo os modelos de referência exteriores à escola, e
que atendessem às exigências de diversifi car a escrita e de criar situações
autênticas de comunicação.
Baseando-se nesse mesmo trabalho de Schneuwly e Dolz, Rojo (s/d:9)
apresenta uma distinção entre gêneros escolares, que representariam a segunda
situação de comunicação, portanto, autênticos produtos da escola; e gêneros
escolarizados, utilizados pela escola como objeto de ensino, especifi camente, da
escrita. Os gêneros ditos escolarizados referem-se tanto à primeira situação de
comunicação, quanto à terceira, porque em ambas os gêneros não reproduzem as
práticas sociais que a escola produz.
No entanto, os próprios autores identifi cam aspectos positivos e negativos
nas três perspectivas e defendem uma reavaliação das diferentes abordagens.
Segundo eles, é importante tomar consciência sobre o papel central dos gêneros
como objeto e instrumento de trabalho para o desenvolvimento da linguagem.
Para isso, devemos levar em conta dois aspectos:
a) a escolha de um gênero na escola é didaticamente direcionada, visando a
objetivos de aprendizagem precisos: primeiramente aprender, dominar o
gênero para depois conhecê-lo, apreciá-lo, e compreendê-lo; em segundo
lugar, desenvolver capacidades que ultrapassam e que são transferíveis
para gêneros próximos ou distantes.
93
94
b) o gênero sofre uma transformação ao ser transportado para um outro lugar
social diferente de onde foi criado. Essa transformação faz com que perca
seu sentido original, e passe a ser “gênero a aprender, embora permaneça
gênero a comunicar”(SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 81). Os alunos
precisam ser expostos a situações de comunicação que se aproximem das
genuínas situações de referência, que lhes sejam signifi cativas, para que
eles possam dominá-las, mesmo sabendo que os objetos são outros.
Aprofunde esses conhecimentos em Schneuwly e Dolz (2004, p. 71-90). Depois,
redija um pequeno texto mostrando de que maneira esses aspectos destacados
acima podem se relacionar com uma situação de produção textual.
Certamente é impossível criar um simulacro das várias esferas de ação social
em um espaço tão reduzido e limitado como a sala de aula e a própria escola,
mas é possível refl etir sobre essas esferas de ação social e suas formas
de linguagem, fazendo um trabalho comparativo, analítico e interpretativo. É
importante que, desde cedo, os alunos se dêem conta de todas as particularidades
que o trabalho com os gêneros encerra. Convém que a refl exão ocorra tanto no
nível funcional como no formal, levando-lhes a indagações do tipo:
a) Por que é a situação comunicativa que determina a escolha do gênero?
b) Quais fatores interferem na escolha dos gêneros?
c) Quais as formas possíveis em que um dado gênero pode se apresentar sem
comprometer sua natureza?
d) O que determina as difi culdades na produção e compreensão de alguns
gêneros por certos grupos sociais?
AGORA É SUA VEZ: Caso você já tenha tido alguma experiência em sala
de aula, desenvolvendo atividades de produção textual, ou mesmo que não
tenha qualquer experiência nessa área, refl ita sobre esses questionamentos e
outros relacionados ao tema. O fórum é um bom espaço para trocar idéias
com outros colegas a respeito desse tema.
Recapitulando
Agora é sua vez, vejamos se você entendeu:
1 Quando o professor desenvolve em sala de aula o trabalho de elaboração
de um jornal, em que contexto de comunicação se insere essa atividade?
2 E, quando solicitarmos a você, caro aluno, a elaboração de um gênero
mais acadêmico, como uma resenha, um ensaio, ou até mesmo um
resumo? Qual seria o contexto dessa prática?
3 Em sua opinião, é mais funcional trabalhar apenas com os gêneros
autenticamente escolares?
4 O que signifi ca a naturalização dos gêneros?
3.2 Os gêneros e o aprendizado da escrita
O fato de trabalharmos com uma perspectiva de práticas lingüísticas
signifi cativas e funcionais leva-nos a procurar investigar quais os contextos
em que a escrita assume esse papel na vida dos educandos.
Como falantes competentes de sua língua materna, as crianças já desde
cedo utilizam exemplarmente os gêneros orais que lhes são específi cos em
sua rotina diária: isso ocorre quando narram acontecimentos (atendendo a
objetivos os mais variados possíveis), quando ensinam a algum colega um
tipo de jogo ou brincadeira, quando orientam um colega em uma atividade
na escola, quando telefonam para alguém, etc. Elas sabem também que uma
solicitação / mensagem qualquer, a depender do destinatário envolvido na
situação discursiva (professor ou pais), tende a mudar consideravelmente.
Enfi m, existem muitos outros exemplos que poderiam ser apresentados. No
entanto, esses são sufi cientes para demonstrar como ontogeneticamente os
gêneros orais se fazem presentes em suas vidas.
A apropriação pelas crianças desses gêneros orais ocorre naturalmente,
devido às interações lingüísticas entre familiares, amigos e demais membros
da comunidade onde elas estão inseridas e em função de suas necessidades
comunicativas básicas. Essas demandas são necessárias para que possamos
interagir com os outros membros de um grupo social, ou dizendo de outra
forma, para que possamos efetivamente viver em sociedade. Nesse processo de
apropriação, a cultura é a grande responsável pela transmissão dos modelos de
gêneros.
Em relação aos gêneros escritos, a situação é um pouco diferente porque
as demandas vão surgindo mais lentamente. É só em uma segunda etapa do
desenvolvimento cognitivo da criança que a escrita começa a se fazer necessária
para ela. Inicialmente surge como uma necessidade de se identifi car nos objetos,
demarcar sua propriedade; simultaneamente apresentam-se as exigências
institucionais formais (as tarefas escolares); depois vêm os recadinhos para
os pais (atividades essas que vão depender do contexto cultural familiar),
os bilhetinhos carinhosos para os professores, as declarações de amor para
os colegas, um pouco mais tarde vêm as revistas de passatempos, os jogos
escritos (ededonha) 2 e mais raramente os diários, especialmente para as
meninas e em determinados contextos sócio-culturais. Ainda que elas tenham
contato com um bom número de gêneros escritos (propagandas, rótulos
de embalagens, convites, anúncios etc.), a necessidade de interagir com os
outros, a partir do posicionamento da criança como produtora de gêneros
escritos, surgirá mais tardiamente.
Com base no que foi sumariamente exposto, podemos constatar que os
gêneros orais se fazem mais presentes na fase inicial de desenvolvimento
da modalidade escrita, mas essa predominância da oralidade não se restringe
a essa fase: ela nos acompanha por toda a vida. Essa constatação não podia ser
mais óbvia, uma vez que, no nosso cotidiano, geralmente interagimos de modo
mais imediato com os outros através da linguagem oral. Até mesmo o adulto
com um bom domínio da modalidade escrita, dependendo de suas atividades
profi ssionais, pode ter pouco acesso ao manuseio e à produção de certos
2 Trata-se de uma
brincadeira muito
popular entre as crianças:
sorteiam uma letra e
vão escrevendo nomes
de objetos variados,
frutas, animais, cidades,
apenas iniciados com a
letra escolhida. Ganham
aqueles que mais
conseguem preencher as
lacunas com os nomes.
95
96
gêneros escritos. Não podemos nos esquecer de que a escrita é uma atividade
funcionalmente orientada.
Assim, para que o ensino da escrita seja realmente produtivo, devemos
tentar fazer com que a escrita se torne necessária para os aprendizes, e que
por meio dela, possam ampliar sua área de atuação lingüística em seu meio
social. No entanto, os professores devem estar conscientes da impossibilidade de
atingir níveis uniformes de signifi cação e funcionalidade escrita para todos
os alunos, dadas as diferenças individuais.
Os alunos devem ser expostos a uma série de atividades de leitura e de
escrita que, conjuntamente, consigam fazê-los atuar sócio-cognitivamente no
mundo que os cerca, assim como ocorre com a modalidade oral. E nessa
trajetória, o trabalho com os gêneros se faz necessário na medida em que
traz (ou pelo menos tenta trazer) as práticas sociais para dentro da sala de
aula.
Os gêneros textuais se apresentam, então, como instrumentos efi cazes
de mediação no processo de apropriação e uso da modalidade escrita, mas sua
efi ciência depende de um planejamento didático criterioso e comprometido com
a aprendizagem dos alunos.
Schneuwly e Dolz (2004) afi rmam que ainda não existe – para a expressão
oral e escrita – um currículo que apresente uma divisão dos conteúdos de ensino
e uma previsão das principais aprendizagens. Esse currículo deveria conter em
sua formação, a preocupação com a “progressão” que se apresenta como uma
organização temporal para se alcançar uma boa aprendizagem. Este argumento,
associado à grande diversidade dos gêneros (visto aqui como fator impeditivo para
uma sistematização), o impediu de tomá-los como base de uma progressão. Por
outro lado, o objeto das tipologias não é o texto, nem tampouco o gênero, e sim as
operações de linguagem constitutivas do texto. Por essa razão, Schneuwly e Dolz
(op.cit, p. 60-61) organizaram um agrupamento de gêneros em torno de seus tipos
textuais predominantes por se prestarem a uma melhor classifi cação didática.
Consulte, nas páginas citadas no parágrafo acima, a proposta dos
agrupamentos de gêneros.
3.3 Os gêneros e a construção da textualidade
Com base nas defi nições de texto, discurso e gênero, apresentadas neste
módulo, podemos entender que os textos se materializam em gêneros específi cos.
Sendo assim, os parâmetros de textualização vão variar de um gênero para outro,
não podendo ser defi nidos antecipadamente para todos os textos. As condições
de produção que envolvem contexto, interlocutores, tema, fatores pragmáticos
vão defi nir a linguagem e a estrutura organizacional do texto. Noções como
coesão, coerência, informatividade, intertextualidade, situacionalidade etc.,
estarão diretamente relacionadas a aspectos funcionais dos gêneros, já que eles
se caracterizam mais por suas funções sócio-comunicativas e menos por suas
regularidades formais.
Saiba mais: A lingüística textual surgiu na década de 1960, em um contexto em
que se destacavam as disciplinas que tomam o texto como objeto de estudo,
representativas de um novo enfoque de investigação da linguagem. Segundo
Marcuschi (1983, p. 12-13), o tema da lingüística textual
“[...] abrange a coesão superfi cial ao nível dos constituintes lingüísticos,
a coerência conceitual ao nível semântico e cognitivo e o sistema de
pressuposições e implicações no nível pragmático da produção do sentido no
plano das ações e intenções. Em suma, a LT (Lingüística Textual) trata o texto
como um ato de comunicação unifi cado num complexo universo de ações
humanas. Por um lado deve preservar a organização linear que é o tratamento
estritamente lingüístico abordado no aspecto da coesão e, por outro lado, deve
considerar a organização reticulada ou tentacular, não linear, portanto, dos
níveis de sentido e intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e
funções pragmáticas.”
Consulte Koch & Travaglia (1989) para um maior aprofundamento sobre essas
noções.
Isso equivale a dizer que não podemos entender noções como coesão,
coerência e informatividade, por exemplo, dissociadas do gênero e das condições
de produção que condicionam o seu uso e circulação. Tais noções se justifi cam
no texto e nos efeitos de sentidos pretendidos pelo autor, tendo em vista seus
possíveis leitores. Não se lê, nem se escreve um poema da mesma forma que se
lê e se escreve um artigo de opinião, um artigo científi co, um anúncio publicitário
ou tantos outros gêneros textuais que circulam em nossa sociedade. Na verdade,
os elementos de natureza extra-lingüística passam a ser responsáveis pelo
processo de textualização.
Tome-se como exemplo o caso de um anúncio de uma campanha
publicitária para o dia dos pais, exposto em um outdoor, na cidade de Recife, em
2002, e um poema de autoria desconhecida.
Tem pai que é mãe
Subi a porta e fechei a escada.
Tirei minhas orações e recitei meus sapatos.
Desliguei a cama e deitei-me na luz
Tudo porque
Ele me deu um beijo de boa noite.
(Autor anônimo)
97
98
Observe que um leitor pouco atento pode considerar os dois textos
incoerentes, visto que lidam com situações aparentemente opostas. No primeiro
caso, tal leitor alegaria que um pai não pode ser mãe, no sentido estrito do termo,
já que, rigorosamente, o homem não gera, nem possui as características biológicas
da mulher. Além disso, poderia lançar outra crítica referente ao baixo teor de
informação veiculado pelo enunciado, gerando questionamentos como: Que pai é
esse? Em que situação ocorre a possibilidade de o pai ser mãe? No entanto, quando
relacionamos o enunciado com o atual contexto histórico e com o momento
social de circulação desse enunciado (comemoração do dia dos pais), ele se torna
coerente. Verifi quemos, primeiramente, que ele lança mão de valores construídos
socialmente, ratifi cados pelo senso comum, – o que não signifi ca dizer que sejam
unanimidade – que atribuem à mulher um maior envolvimento na vida familiar
e educacional dos fi lhos; segundo, que esse enunciado nos leva a associar (ou
comparar) às ações ou atitudes de alguns pais a dessa mãe responsável pelo
cuidado dos fi lhos. Da mesma forma, o momento e o lugar social de circulação
desse enunciado conseguem fornecer ao leitor as pistas necessárias para o leitor
recuperar o sentido sugerido pela mensagem.
No caso do poema, a ocorrência de alguns verbos, acompanhados por
nomes que normalmente não preenchem o seu valor predicativo – visto que
deitamos na cama, mas não desligamos uma cama, a menos que essa funcione
eletricamente –, representaria algo inaceitável em outros textos, mas que se torna
perfeitamente autorizado no poema. A aparente incoerência justifi ca-se no último
verso quando se evidencia a condição de um eu lírico apaixonado, justamente
para enfatizar a perturbação que invade os que se encontram neste estado.
Em relação aos elementos de coesão presentes no poema, verifi ca-se que,
embora o seu uso atenda às normas da tradição coesiva, também ilustra um caso
de ruptura com essa mesma tradição. Segundo Koch (1989, p. 19), a coesão diz
respeito aos processos de seqüencialização que asseguram ou tornam recuperável
uma ligação entre os elementos que ocorrem na superfície textual. É o que
justifi ca o uso das conjunções aditivas e, do pronome indefi nido tudo – já que
ele consegue recuperar os termos mencionados antes –, e da conjunção causal
porque. No entanto, essa tradição coesiva é quebrada pela utilização do pronome
ele que não retoma um referente já mencionado. Essa quebra, no entanto, não
compromete a compreensão do texto, não o torna incoerente, uma vez que é
capaz de estabelecer uma relação exofórica, com um “ente” amado que não foi
mencionado no texto.
Isso nos remete ao fato de que a coerência, como a autora ressalta, pode
ser vista como um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do
texto numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor do texto
(que o interpreta para compreendê-lo) tem para calcular o seu sentido (KOCH &
TRAVAGLIA, 1989, p. 11). Identifi camos esse princípio de interpretabilidade no
caso exposto acima, já que, mesmo sem um antecedente explícito e lexicalizado,
o gênero poema e o domínio discursivo (literário) permitem que o leitor consiga
atribuir sentido ao texto.
Portanto, conforme mencionamos acima, em textos acadêmicos e
instrucionais, por exemplo, os parâmetros de textualização são outros, porque
são outros os objetivos de produção e de leitura. Nesse sentido, podemos dizer
que o autor do texto, diante das condições de produção, gerencia os critérios
de textualização de modo a assegurar ou possiblitar ao leitor as condições de
interpretabilidade que são dependentes, dentre outros fatores, da materialidade
textual.
Esses dois exemplos ilustram que as condições de textualização não
são imanentes ao texto e nem podem ser defi nidas antecipadamente, elas são
requeridas e se justifi cam no complexo processo de leitura e de produção que
envolve a situação de comunicação, os gêneros, os objetivos pretendidos e os
interlocutores previstos.
Ainda levando em conta a complexidade da leitura e da escrita em sua
estreita relação com os movimentos dinâmicos de criação e de circulação dos
gêneros, destacamos fl exibilidade e plasticidade dos gêneros em relação à forma
que eles podem assumir. Assim como os textos estabelecem relações intertextuais
– nas quais diferentes textos dialogam entre si –, os gêneros também podem
manter relações inter-gêneros ou, segundo Marcuschi (2002), apresentam-se de
forma híbrida. Isso signifi ca dizer que um gênero pode assumir a forma de outro
gênero, embora preserve suas funções sócio-comunicativas. Esse fenômeno é mais
comum na literatura e na linguagem publicitária.
Observem o exemplo abaixo que ilustra ambos os casos: relações de
intertextualidade e de inter-gênero.
Acreditamos que o leitor não tenha dúvida de que esse texto se enquadra
no gênero publicitário (ou da propaganda). Se não há dúvidas, propomos agora
que releia o texto e responda:
a. A que outro gênero o anúncio publicitário faz referência?
b. Quais as características gerais de cada um dos gêneros utilizados pelo
autor?
c. Que aspectos constitutivos remetem às marcas de intertextualidade e às
relações inter-gêneros.
Gostaríamos de fi nalizar nossas refl exões chamando a atenção para
o fato de que as práticas de leitura e de escrita devem ser pensadas tendo em
vista a dimensão sócio-histórico-cultural em que elas se inserem. A despeito das
especifi cidades de cada processo, são fenômenos em interface que representam
práticas sociais mais abrangentes nas quais os gêneros textuais desempenham um
papel constitutivo.
99
100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAHKTIN, M. [1979]. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
ROJO, R. H. (org.) A Prática de Linguagem em Sala de Aula – Praticando os
PCN. São Paulo: EDUC; Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000.
BIASI-RODRIGUES, Bernadete. A diversidade de gêneros textuais no ensino: um
novo modismo ? In: Perspectiva, Florianópolis, v.20, n.01, 2002, p.49-73
BRASIL. SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e segundo ciclos do
ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, MEC/SEF, 1997.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos. São
Paulo: Educ, 1999.
CAZDEN, Courtney B. Classroom discourse: the language of teaching and
learning. Portsmouth: Heinemann, N.H, 1988.
COPE, Bill & KALANTZIS, Mary. Introduction: How a genre approach to literacy
cn transform the way writing is taught. In: The powers of literacy – a genre
approach to teaching writing. University of Pitt sburgh Press: Pitt sburgh, 1993.
DOLZ, Joaquim e Shneuwly, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola.
Tradução e organização de Roxane Rojo e Glais Sales Cordeiro. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2004.
KOCH, I. G. V. & TRAVAGLIA, L.C. Texto e Coerência. São Paulo: Cortez, 1989.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo, autores associados:
Cortez, 1982.
FREEDMAN, Aviva & MEDWAY, Peter. Locating Genre Studies: Antecedents and
Prospects. In: Genre and the New Rethoric. London: Taylor & Francis, 1994, p.1-
20.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins fontes, 1985.
_____No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática,
1987.
KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: pontes,
1989
_____. Ofi cina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 1993.
KOCH, Ingedore Villaça. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 1989.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo:
Ática, 1993.
LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. A formação da leitura no Brasil. São Paulo:
Ática, 1998.
MANGUEL, A. Uma história e leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização.
São Paulo: Cortez, 2001.
_____. Gêneros textuais: defi nição e funcionalidade. In: A. P. Dionísio et al. (orgs.).
Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
______. Lingüística de texto: o que é e como se faz. Recife, Universidade Federal
de Pernambuco, Série Debates 1, 1983.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. Campinas: Editora da UNICAMP,
1988.
VOLOCHINOV, V. N.[1929]. Marxismo e Filosofi a da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1986.
ZILBERMAN, R. e SILVA. E.T. (org.) Leitura: perspectivas interdisciplinares. São
Paulo: Ática, 1988.
101
INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS
Milton Marques Júnior
Caros Alunos,
Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-lhes o
mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da leitura de textos
escolhidos de seus principais autores, como Homero e Virgílio, no gênero épico,
e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero dramático. Com a leitura dos autores
escolhidos, teremos condições de compreender um conceito sobre o Clássico e a
funcionalidade das literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas
especifi cidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a perceber a
obra de Homero e de Virgílio como textos defl agradores do fenômeno literário do
Ocidente, importantes, portanto, para a nossa cultura.
O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias para perceber
na nossa época e na nossa cultura os elementos de um mundo antigo que muitos
supõem morto e enterrado no passado. Apenas com o contato direto com os
textos do passado é que teremos condições de entender o processo de evolução de
nossa cultura e o modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao
reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais especifi camente,
na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la melhor.
A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira unidade
mostrará uma introdução e contextualização do mundo clássico greco-latino; a
segunda unidade visa ao estudo de Homero, com a leitura detalhada do Canto
I da Ilíada; a terceira unidade pretende dar uma visão genérica dos autores do
teatro trágico, e a quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do
Livro I da Eneida.
No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita continuamente,
através de exercícios e questionários periódicos; participação nos debates no
fórum ou on-line e, evidentemente pela contribuição dada por cada um, a partir
da refl exão sobre temas discutidos nas aulas.
Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do material
que preparamos.
Professor Milton Marques Júnior
103
UNIDADE I
UMA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CLÁSSICOS
1.1 Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação
1.1.1 O Clássico no mundo de hoje
Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula, diferentemente
do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros itens. Qual o sentido
desta diferença? Acreditamos que o termo esteja tão banalizado – característica
do mundo moderno, imediato e informatizado em que vivemos – que se torna
difícil entender o que é o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com
a mesma velocidade com que aparece e desaparece, nada é clássico, obviamente.
É isto mesmo: se tudo é clássico, nada é clássico. Não há mais distinção possível.
Mundo da imagem, não da refl exão; mundo da concepção de que a aprendizagem
é fácil e não difi cultosa; mundo da atração que vem de fora e não da curiosidade
que vem de dentro. É nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer
coisa de somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não
há, então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta pergunta,
passemos a verifi car como o termo se constrói ao longo do tempo, para ser
destruído pela modernidade em que vivemos.
1.1.2 O Clássico na Grécia
A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora em
maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na Grécia e
em Roma, durante o período que se convencionou chamar de Antiguidade
Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas idéias, nem sempre
ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele denomina. Que se trata de uma
antiguidade é um fato inquestionável; que essa antiguidade é totalmente clássica,
isso é plenamente discutível. Comecemos por determinar esse período.
Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a História,
dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história ocidental, chamaram
de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo tempo entre os séculos VIII a. C.
e o século V da Era Cristã. Assim, a Antiguidade Clássica vai da redescoberta da
escrita pelos gregos (século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente,
no ano 476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros,
provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como podemos ver,
trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas pessoas, e não me refi ro
necessariamente aos historiadores, aludem a esses 1300 anos como se fossem um
coisa só! Nada mais errôneo. As duas principais culturas da Antiguidade Clássica
– a grega e a romana – se assemelham, mais esta àquela do que o contrário,
mas são diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos
diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no comércio...
105
106
Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período cultural
da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece pouco, não? Possolhes
afi rmar, contudo, que se o conhecimento produzido, digamos, nesses cem
anos tivesse sobrevivido na íntegra, os estudiosos teriam matéria para muitos
e muitos séculos de estudo... Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa
de que tenham sido produzidas mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas
sobreviveram... É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior
nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura um bem
de valor incalculável.
Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da tirania;
a fi losofi a questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita ganha relevância
jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico mostra que a humanidade
precisa de homens, não de heróis; cria-se o conceito de cidade (pólis) e de cidadão
(polites), e o direito é comum a todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de
escritores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e
de fi lósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na Ática, é o
palco de todas essas transformações. Veja o mapa abaixo.
1.1.3 O Clássico em Roma
Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é necessário
que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta cidade que dominaria
o mundo, primeiro pelas armas, depois pela herança cultural, começou como
uma simples vila de pastores, na metade do século VIII a. C., em 753. A Roma
que nos interessa, mais especifi camente, neste tópico, é a Roma compreendida
entre o século I a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro
do mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, apesar
de conturbado momento político que vai da transição da República ao início
do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando pelas guerras civis. A Grécia
também viu seu momento especial ser marcado pelas guerras contra os persas
(início do século V a. C., cerca 499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do
Peloponeso (431-404 a.C.).
Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do aparecimento
da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o romance de costumes com
Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse intervalo se produziu o melhor da
literatura latina com o aparecimento de grandes poetas, protegidos por Mecenas,
amigo do imperador Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa
época também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17 a. C.),
poema que celebra a glória de Roma, na fi gura de Enéias, o troiano incumbido da
ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que daria origem à mais gloriosa das
cidades. É o período que se costuma chamar de Século de Augusto. Veja no mapa
abaixo a localização de Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e
estratégica no Mediterrâneo.
1.1.4 O Classicismo
Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico, período
que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade cultural e literária,
é de se esperar que estas características sejam irradiadas ao longo da história da
humanidade e recuperadas ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o
mundo moderno e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados
pelo humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento fi losófi co,
artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra pela Europa ocidental,
tem como desdobramento natural o Classicismo. O Classicismo europeu se
107
108
confi gura para nós brasileiros na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-
1580), principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da glorifi cação da
navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias, permitindo a
expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de navegação, até então,
desconhecida. O poema retoma a tradição da épica clássica de Homero e Virgílio,
na exaltação dos feitos heróicos de um povo, de uma nação ou de um herói, com
a exaltação centrada na fi gura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524),
tomado metonímica e fi ccionalmente como a nação lusitana.
Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O Classicismo
é por defi nição um movimento cultural que visa ao retorno do Clássico, em
outra circunstância, com outros objetivos. A nova Europa que nascia das
grandes navegações, a partir de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos
turcos otomanos, era o campo propício para a volta dos grandes heróis épicos,
navegadores, cujo símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais fi losófi cos
de busca da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de
base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero (1483-
1546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de indulgências, em
1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o protestantismo signifi ca perda
da hegemonia da Igreja Católica. O mundo que se descortina com novas culturas
leva a novas refl exões, e a própria confi guração do universo se modifi ca com o
heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e
outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como centro desse
universo – antropocentrismo – em oposição ao teocentrismo medieval. É isso que faz
o gênio de Leonardo da Vinci (1452-1519), quando imagina e desenha O Homem
Vitruviano. Nada mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas...
1.1.5 O Neoclassicismo
Como última representação do Clássico greco-latino toma força, no
século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da racionalidade
iluminista. Tratava-se de um movimento literário nascido na Itália, desde 1690,
com a Arcádia Romana, e continuado em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de
onde chegaria ao Brasil e fl oresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante.
O ideal do movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade
de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos deuses
e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e generosa se
encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida simples, em meio à
natureza deleitosa, sem preocupações com o amanhã, que se perde diante da
ganância do homem, tem sua origem no poema Os trabalhos e os dias, do poeta
grego Hesíodo (século VIII a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo
nome do movimento – Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável.
Esse momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo
Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o Clássico da
Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina em ambos. Podemos
dizer que o Clássico greco-latino é contemporâneo de si mesmo, procurando o
seu próprio mundo e seu próprio tempo. O Classicismo surge em um momento
propício ao retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada
pelas grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um
passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a natureza
acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de um tempo mítico
e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens brutalmente jogam-se uns
contra os outros e a queda é fatal: na Idade de Ferro em que se encontram, não
há mais espaço para Vergonha (Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram
de seu convívio. Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito
menos com os deuses...
Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por exemplo, a
obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) Marília de Dirceu.
1.1.6 Há espaço para o Clássico?
“Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para
ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de
papel impresso da atualidade?”
Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo Calvino
(1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estudam e que pretendem
conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que somos ainda esmagados
por uma avalancha muito maior de informações incorpóreas do mundo
virtual da internet, que torna quase impossível uma reflexão sobre
elas. A rapidez e a quantidade da informação produzida, em ambiente
sedutor de alta tecnologia, contribuem para que se afaste o leitor do
livro e, mais especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo
antigo, obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é
inaudível ou quase.
109
110
Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado como um ciclo,
permanece, porque fundado em valores universais e entranhados no ser humano.
O Clássico vive em permanente estado de movimentação, o que lhe garante a
eternidade. Há dois mil e oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado
e analisado. Nenhum outro autor na história da humanidade ocidental é tão
prestigiado quanto Homero. A Ilíada e a Odisséia continuam encantando gerações
e gerações de leitores, fi lmes continuam sendo feitos, em cada página há ainda
um mundo a se descobrir com relação a estes poemas, incansavelmente editados,
para fi carmos apenas com Homero.
E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas,
inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta direta e
on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V a. C.) e verão que
o sistema de fogueiras acesas ao longo das ilhas do mar Egeu para dar a notícia
a Clitemnestra do retorno do rei Agamêmnon à Grécia,
acabada a guerra de Tróia, antecipa em, pelo menos, 2500
anos a internet...
Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é
de escolas, bibliotecas e uma melhor formação dos nossos
professores – parece que para isto é que não há espaço,
infelizmente –, pois para onde nos voltamos vemos a marca
viva do passado em nossas vidas, nos nossos nomes, nos
nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até
como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à
maneira de Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do
que não ler os clássicos” (1993: 16).
Busto de Homero
(Museu do Louvre)
De forma a fi xar o exposto até aqui, propomos a
leitura acompanhada de uma das Liras de Marília de
Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua
erudição, passeia pela antiguidade greco-latina de Homero
a Horácio, passando por Virgílio e pelos ciclos da mitologia grega. Não há como
ler o narcisismo de Dirceu, sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as
penas e difi culdades do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores
trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o aproveitamento
sadio da vida, na paz do campo, pelos pastores, sem preocupações com o
amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só é possível
com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso,
pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de
entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer
à tona essa relação existente nas diversas Liras, os seus
temas recorrentes e reescrituras, como a beleza divina de
Marília, os sofrimentos provocados por Amor e a exaltação
do carpe diem horaciano.
Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase
5000 versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas,
dividido e publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799
e 1812. O texto que vamos abordar, a Lira VII, pertence à
primeira parte do poema que trata do amor do pastor Dirceu
por sua amada, a pastora Marília, cuja beleza é ressaltada e
Fragmento da
Ilíada
enaltecida. De beleza divinizada, Marília chega a ser louvada como mais bela do
que as três deusas olímpicas, padrões da beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite
(Vênus) e Palas Atena (Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não
deixa de fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua mocidade, sua
força de mando e propriedades, além de sua destreza como poeta. É a parte
mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, refl ete a natureza
equilibrada do mítico mundo clássico. É importante ressaltar a forte presença
mitológica, imprescindível para a compreensão do poema. Vamos à Lira VII 1 .
Lira VII
Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? se eu não vejo
Quem me empreste as fi nas cores!
Dar-mas a terra não pode;
Não, que a sua cor mimosa
Vence o lírio, vence a rosa,
O jasmim e as outras fl ores.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Mas não se esmoreça logo;
Busquemos um pouco mais;
Nos mares talvez se encontrem
Cores, que sejam iguais.
Porém não, que em paralelo
Da minha ninfa adorada
Pérolas não valem nada,
Não valem nada os corais.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Só no céu achar-se podem
Tais belezas como aquelas,
Que Marília tem nos olhos,
E que tem nas faces belas;
Mas às faces graciosas,
Aos negros olhos, que matam,
Não imitam, não retratam
Nem auroras nem Estrelas.
1 GONZAGA, Tomás
Antônio. Marília de
Dirceu. In: A poesia dos
inconfi dentes: poesia
completa de Cláudio
Manuel da Costa, Tomás
Antônio Gonzaga e
Alvarenga Peixoto;
organização de Domício
Proença Filho; artigos,
ensaios e notas de
Melânia Silva de Aguiar
et alii. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1966, p.
583-584
111
112
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Entremos, Amor, entremos,
Entremos na mesma Esfera;
Venha Palas, venha Juno,
Venha a Deusa de Citera.
Porém, não, que se Marília
No certame antigo entrasse,
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do Céu.
Trata-se de uma Lira constituída por quatro estrofes de doze versos
heptassílabos, nitidamente dividida em um agrupamento inicial de oito versos
(oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou quarteto), funcionando como
refrão, em que se observa uma mudança apenas na última estrofe, tendo em vista
a inutilidade do esforço de Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a
beleza de Marília. O esquema das rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG,
observando-se a existência de versos brancos.
Marília é retratada como pura e recatada, pois “sua cor mimosa/Vence
o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras fl ores”. Sua beleza é sem igual,
superando as cores vivas dos corais e a brancura leitosa das pérolas. Preparase
já nessa estrofe a divindade de Marília, com Dirceu chamando-a de “ninfa
adorada”, numa referência às divindades protetoras dos bosques, e da natureza
de modo geral, encarnadas por mulheres extremamente belas.
A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais brilhante
que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável pela abertura
das portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a saída de Apolo
cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe, fecha-se o ciclo: Marília
é constituída por algo superior aos quatro elementos básicos – terra, água, ar
e fogo – vez que não existe nestes quatros elementos nada comparável à sua
beleza.
A última estrofe é a confi rmação dessa beleza com a alusão à disputa do
Monte Ida. Marília é confrontada com as três deusas olímpicas, consideradas
padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas Atena (Minerva) e Afrodite
(Vênus), aqui chamada pelo epíteto de Deusa de Citera. Recuperemos a história
mítica.
Palas Atena, deusa da sabedoria participa de um concurso de beleza,
envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais bela presente
na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais de Aquiles. A deusa
Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe darem atenção durante o casamento de
Peleu e Thétis, fez surgir entre os convidados um pomo de ouro, destinado “à
mais bela”. Prontamente as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto.
Zeus, não querendo decidir uma questão tão delicada, chamou Hermes e
mandou que ele as levasse ao Monte Ida, onde o pastor Páris faria a escolha.
Apresentando-se diante de Páris, cada uma das deusas tentou subornálo.
Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibilidade na
guerra; Afrodite, desnudando os seios, garantiu-lhe o amor da mais bela
das mulheres, Helena da Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris entregou
o pomo a Afrodite, fazendo o ódio das outras duas se voltar contra si e
contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a guerra de Tróia,
desencadeada pelo rapto de Helena por Páris, ocasião em que Palas e Hera
se colocarão ao lado dos gregos, portanto, contrárias a Páris e aos troianos,
protegidos por Afrodite
Afrodite aparece no texto da Lira através de um dos seus vários epítetos
deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos duas tradições
são registradas: a primeira afi rma que Afrodite seria a fi lha de Zeus e Dione,
conforme vemos na Ilíada, de Homero (V, 370-372; XIV, 224; XXIII, 185); a segunda,
defendida por Hesíodo, apresenta a deusa como fi lha de Urano e das espumas do
mar (versos 134-210). De acordo com a versão da Teogonia de Hesíodo, Urano teve
o órgão sexual cortado e atirado por seu fi lho Cronos ao mar. Assim, da mistura
do esperma do deus com as espumas, teria nascido Afrodite. Tão logo nasceu, a
deusa foi conduzida pelas ondas, ou por Zéfi ro, o vento, para a Ilha de Citera, daí
o seu epíteto de Citeréia.
Páris, fi lho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado pelo
pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como futuro
responsável pela destruição do reino. Por piedade, o pastor incumbido de tal
tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido por Cassandra, sua irmã,
e reintegrado à família real. A quarta estrofe do poema, portanto, refere-se ao
julgamento que Páris, teve de fazer, para escolher a mais bela das três deusas,
cujas conseqüências serão o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a
destruição de Tróia. Ao aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a
superioridade de Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar
o mito. Páris a faria vencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se
não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de Tróia não
acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não morre. Vê-se, portanto,
que Helena contraposta a Marília, marca a oposição entre a beleza ruinosa
(Helena) e a beleza benfazeja (Marília), contribuindo para a harmonia do
mundo. E há mais: como o poeta-pastor diz que para formar o retrato de
Marília não bastam tintas do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória,
através do mito, o ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris,
para confi gurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna possível
a perenidade e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito rememora. Tal
leitura só é possível com o conhecimento do mito de Páris e Helena, constante
do poema O rapto de Helena, de Colutos (século VI d. C.).
Texto para Exercício
Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos elementos do
mundo clássico nele existentes. Para a sua análise, recomendamos o conhecimento
do mito de Apolo e Dafne.
113
2 CAMÕES, Luís Vaz de.
Sonetos de Camões (corpus
dos sonetos camonianos);
edição e notas por
Cleonice Serôa da Mott a
Berardinelli. Paris: Centre
Culturel Portugais
Lisbonne; Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1980, p. 180.
3 O dilúvio enviado
por Zeus, para punir
os homens (Les
métamorphoses, I, v. 253-
312).
114
Textos de Apoio
Mito de Apolo e Daphne
Soneto 122
O fi lho de Latona, esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
O hórrido Piton, brava serpente,
Matou, sendo das gentes tão temido.
Ferio com arco e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente;
Nas tessálicas praias, docemente,
Pola Ninfa Penea andou perdido.
Não lhe pôde valer, para seu dano,
Ciência, diligências, nem respeito
De ser alto, celeste e soberano.
Se este nunca alcançou nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu que espero de um ser que é mais que humano? 2
Luís Vaz de Camões
Mito de Python (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os outros
animais sob formas diversas, assim que a umidade que ela ainda retinha
foi esquentada sob os fogos do sol, quando o calor infl ou a lama e as águas
pantanosas, quando os germes fecundos das coisas, nutridos por um solo
vivifi cante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram com o
tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo das sete embocaduras deixou
os campos inundados e levou de volta suas torrentes para seu antigo leito,
quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua chama no limo recente, os
cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um grande número de animais;
eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no momento mesmo de seu
nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de alguns de seus órgãos; muitas
vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a outra não é senão ainda terra
informe. Com efeito, assim que a umidade e o calor se combinaram um com ou
outro, eles concebem; é destes dois princípios que nascem todos os seres; ainda
que o fogo seja inimigo da água, uma claridade úmida engendra todas as coisas e
a concórdia na discórdia convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta
de lama pelo dilúvio recente 3 , recomeça a receber do alto dos ares o calor dos
raios do sol, ela deu à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais
sua fi gura primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade
que ela engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recémnascidos,
serpente então desconhecida, tu era um objeto de terror, tanto tu
ocupavas o espaço ao longo da montanha. O arqueiro divino, que jamais antes
não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos prontos
para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele a matou;
por negras feridas se espalhou o veneno da fera. Para que o tempo não pudesse
apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de concursos solenes, os
jogos sagrados que do nome da serpente vencida tomaram o nome de Pythicos.
Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos, suas pernas ou as rodas de seus
carros tinham tido a vitória, recebiam como recompensa uma coroa de carvalho;
o loureiro ainda não existia e, para cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela
fronte, Febo tomava emprestado seu ramo a árvores de toda sorte.
Mito de Daphne (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne,
fi lha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de uma
violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de sua vitória
sobre a serpente, o vira curvar, puxando a corda para si, as duas extremidades
de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas armas poderosas?
Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com elas eu posso desferir
golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um inimigo; ainda há pouco,
quando Python cobria grande superfície com seu ventre inchado de venenos, eu a
abati sob minhas fl echas inumeráveis. Para ti, que te seja sufi ciente iluminar com
tua tocha não sei que fogos de amor; guarda-te de pretender meus sucessos”.
O fi lho de Vênus lhe respondeu: “Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te
furar a ti mesmo; tanto todos os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória
é inferior à minha”. Ele disse, fende o ar com o batimento de suas asas e, sem
perder um instante, se posta sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava
cheia de fl echas, ele retira duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o
amor, a outra o faz nascer. A que o faz nascer é dourada e armada com uma ponta
aguda e brilhante; aquela que o expulsa é arredondada e sob a haste contém
chumbo. O deus fere com a segunda a ninfa, fi lha de Peneu; com a primeira ele
traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a ninfa
foge até ao nome do amante; os abrigos das fl orestas, os despojos dos animais
selvagens que ela capturou fazem toda a sua alegria; ela é a êmula da casta Febe4 ;
uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem. Muitos pretendentes a
pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos, recusando-se ao jugo de um
esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o que é o canto do himeneu, o amor,
o casamento? Ela não se inquietava de sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse:
“Tu me deves um genro, minha fi lha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime,
ela tem horror às tochas conjugais; o rubor da vergonha se espalha sobre seu
belo rosto e, com os braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe
responde: “Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgindade;
Diana bem que o obteve do seu5 ”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados,
Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus votos.
Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele o espera e
ele está enganado por seus próprios oráculos6 . Como uma palha leve se abrasa,
depois que se colheram as espigas, como uma sebe se consome ao fogo de uma
tocha que um viajante por acaso dela aproximou demasiado ou que ele ali deixou
quando o dia já nascia; assim o deus infl amou-se; assim ele queima até o fundo
de seu coração e nutre de esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos
da ninfa fl utuando sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele,
se ela tomasse cuidado com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os
astros; ele vê sua pequena boca, que não lhe é sufi ciente apenas ver; ele admira
4 A deusa Diana
(Ártemis), a irmã de
Apolo, de cujo séquito
Daphne participava.
5 Referência a Júpiter
(Zeus), pai de Diana
(Ártemis).
6 Como deus da profecia,
Apolo deveria saber que
não teria sucesso no amor
com Daphne, mas o amor
engana até os profetas...
115
7 Cidade na Grécia, onde
Apolo tem seu templo
mais famoso.
8 Cidade na Jônia, onde
existe um templo de
Apolo.
9 Ilha no mar Egeu, em
frente a Tróia, onde
existe o célebre templo
de Apolo Esmintheu, o
dos ratos.
10 Residência dos
soberanos da Lícia, na
Ásia Menor. Apolo é
chamado também de
Apolo Lício.
116
seus dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para
ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ainda. Ela, ela foge, mais rápido
que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais propósitos:
“Ó ninfa, eu te imploro, fi lha de Peneu, pára; não é um inimigo quem
te persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as
pombas com as asas trêmulas fogem da águia; cada uma tem seu inimigo; eu, é
o amor que me joga sobre tuas pegadas. Qual não é minha infelicidade! Cuidado
para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente feridas, a marca
das sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O terreno sobre o qual te
lanças é rude; modera tua corrida, eu te suplico, diminui a tua fuga; eu mesmo,
eu moderarei minha perseguição. Sabe, no entanto, que tu me encantaste; eu
não sou um montanhês, nem um pastor, ou um desses homens incultos que
vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes, imprudente, tu não sabes de quem
tu foges e porque tu foges. É a mim que obedecem o país de Delfos7 e Claros8 e
Tênedos9 e a residência real de Patara10 ; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que
ele revelou o futuro, o passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons
das cordas. Minha fl echa acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas
seguramente ainda, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A
medicina é uma das minhas invenções; em todo o universo me chamam o que
socorre e o poder das plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas
capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.”
Ele ia dizer ainda mais, porém a fi lha de Peneu continuava sua corrida
louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a seus
olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em sentindo
contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus cabelos
levantados; sua fuga realça ainda mais sua beleza. Mas o jovem deus renuncia
a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio amor, ele
segue os passos da ninfa redobrando a sua velocidade. Quando um cão gaulês
percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam, um para pegar a
presa, outro para salvar sua vida; um parece sobre o ponto de pegar o fugitivo,
ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso, estreita de perto suas
pegadas; o outro, incerto se ele o pegou, se livra das mordidas e esquiva-se da
boca que o tocava; assim o deus e a virgem são levados um pela esperança, outro
pelo medo. Mas o perseguidor, levado pelas asas de Amor, é mais rápido e não
tem necessidade de repouso; já ele se inclina sobre as espáduas da fugitiva, ele
roça com o hálito os cabelos esparsos sobre seu pescoço. Ela, no fi m das forças,
empalideceu; quebrada pelo cansaço de uma fuga tão rápida, os olhares voltados
para as águas do Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os
rios como tu têm um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza
demasiado sedutora”.
Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros; uma
fi na casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se mudam em
folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis, aderem ao solo por
raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore coroa sua cabeça; de seus
encantos não resta senão o brilho. Febo, no entanto, sempre a ama; sua mão posta
sobre o tronco, ele sente ainda o coração palpitar sobre a casca recente; cercando
com seus braços os ramos que substituem os membros da ninfa, ele cobre a
madeira com seus beijos; mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem,
diz ele, visto que não podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore;
para todo o sempre tu ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras,
minhas aljavas; tu acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres
farão escutar cantos de triunfo e o Capitólio 11 verá vir até ele longos cortejos. Tu
crescerás, guardião fi el, diante da porta de Augusto 12 e tu protegerás a coroa de
carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira jamais
conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será sempre ornada
com uma folhagem inalterável 13 ”. Peã 14 havia falado; o loureiro inclina seus
galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma cabeça. 15
O MITO DAS RAÇAS HUMANAS 16
De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais habitantes
do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele reinava ainda no
céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de inquietações, longe e ao abrigo
das penas e das misérias: a velhice miserável não pesava sobre suas cabeças; ao
contrário, braços e pernas sempre jovens, eles se alegravam nos festins, longe de
todos os males. Quando morriam, pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens
lhes pertenciam: o solo fecundo produzia espontaneamente uma abundante e
generosa colheita, e eles, na alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio
de bens inumeráveis. Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela
vontade de Zeus Todo-Poderoso, os bons gênios da terra, guardiães dos mortais,
distribuidores da riqueza: é a honra real que lhes foi atribuída em partilha.
Em seguida uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi criada
ainda pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe nem pelo
espírito aos da raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia brincando ao
lado de sua digna mãe, a alma toda pueril, na sua casa. E quando, crescendo
com a idade, eles atingiam o termo que marca a entrada na adolescência, viviam,
então, pouco tempo, e, por sua falta de discernimento, sofriam mil penas. Eles
não sabiam abster-se de um descomedimento louco. Recusavam o oferecimento
de culto aos Imortais ou o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados,
segundo a lei dos homens que se deram moradas fi xas. Então Zeus, fi lho de
Cronos, encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos
deuses Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez,
os tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os
Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ainda merecedores, contudo,
de alguma honra.
E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a raça
de bronze, bem diferente da raça de prata, fi lha dos freixos, terrível e poderosa.
Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de Ares e com
as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu coração era como o
aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua força, invencíveis os braços
que se pregavam contra a espádua de seus corpos vigorosos. Suas armas eram
de bronze, de bronze suas casas, com o bronze eles trabalhavam, pois o ferro não
existia. Eles sucumbiram, sob os próprios braços e partiram para a estada mofada
do arrepiante Hades, sem deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por
apavorantes que fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol.
E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, fi lho de
Cronos, dele criou ainda uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais
11 Principal sítio de Roma.
12 Dois loureiros davam
sombra ao palácio do
imperador Augusto, no
Palatino.
13 O loureiro não perde as
folhas no inverno.
14 Um dos epítetos de
Apolo e nome do hino
em sua honra.
15 OVIDE. Les
métamorphoses; texte
traduit par Georges
Lafaye. Paris: Les Belles
Lett res, 1928. Tradução
operacional de Milton
Marques Júnior.
16 HÉSIODE. Les travaux
et les jours. In: Thégonie,
Les travaux et les jours, Le
bouclier; texte établie et
traduit par Paul Mazon.
Paris: Les Belles Lett res,
1996, versos 90-201.
Tradução operacional
nossa, a partir do texto
francês de Paul Mazon.
117
118
brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração nos
precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra e na
batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas das Sete Portas, outros sob o solo
cádmio, combatendo pelos fi lhos de Édipo; outros além do abismo marinho, em
Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por Helena dos belos cabelos,
e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A outros, enfi m, Zeus, fi lho de
Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e uma morada distante dos homens,
estabelecendo-os nos confi ns da terra. É lá que habitam, o coração livre de
inquietações, nas Ilhas dos Bem-Aventurados, à borda dos turbilhões profundos
do Oceano, heróis afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por
ano uma fl orescente e doce colheita.
E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio dos
da quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais tarde. Pois
esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer, durante o dia, cansaços
e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas duras angústias que lhes
enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ainda alguns poucos bens, misturados
aos seus males. Mas chegará a hora em que Zeus aniquilará, por sua vez, toda
esta raça de homens perecíveis: este será o momento em que eles nascerão com
as têmporas brancas. O pai, então, não parecerá com o fi lho, nem o fi lho com o
pai; o hóspede não será mais querido de seu anfi trião, o amigo pelo seu amigo, o
irmão pelo seu irmão, assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles
envelhecerem, eles não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles
se exprimirão com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o
temor ao Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá
prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os
artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus respeitos;
o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O covarde atacará
o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso juramento. Ao passo
de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à linguagem amarga, à fronte
odiosa, que se compraz com o mal. Então, deixando pelo Olimpo a terra dos
largos caminhos, escondendo seus belos corpos sob véus brancos, Honra (Aidós)
e Justiça (Némésis), abandonarão os homens, subirão para os Eternos. Restarão
aos mortais apenas tristes sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos.
1.. Contextualização do Clássico: os períodos históricos das Literaturas
grega e latina
1.2.1. Introdução à Literatura Grega
A literatura grega compreende basicamente três momentos: o período
Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V – IV a. C.) e o período
Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do século III a. C., com a dominação
da Grécia por Roma, a literatura que se sobressai é a latina, iniciada pelas mãos
de gregos tomados como cativos pelos romanos nas guerras de conquistas.
O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato literário,
quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu desaparecimento por
quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a. C. Ainda se trata de uma cultura
oralizada, apesar da escrita, em que a literatura aparece cantada pelos aedos e
apsodos, os poetas e cantores da época. É nesse momento que são produzidos
os poemas homéricos – Ilíada e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e
Os trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por isto que se
chama a esse período de arcaico. Diferentemente do sentido que a palavra tem
hoje, arcaico signifi ca para o mundo grego algo que está no princípio, na origem
dos fatos. Os poemas homéricos e hesiódicos são o princípio, a origem de toda
a literatura que se faz no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período
marca a reintrodução da escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a literatura
procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo mais próximo da
natureza e tendo no mito a sua explicação. Se Homero trata de heróis em guerra
ou retornando para casa após a guerra, Hesíodo trata da ordem do universo, de
como os deuses nasceram e da necessidade da justiça entre os homens.
O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo da pólis, da
cidade, que substitui o mundo anterior mais ligado à natureza. É um momento
complexo em que a fi losofi a cria uma explicação lógica para o mundo, a partir
de um discurso racional. Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando
refl etir sobre a condição e a fragilidade humana. Mesmo apoiado nos mitos
antigos, o teatro revela o confl ito do homem entre o passado e o presente da pólis
com suas leis escritas, diferentes das leis divinas do mundo mítico do passado.
Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes autores desse período, legandonos
obras-primas como Orestéia, Édipo Rei e Hécuba, respectivamente.
O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela expansão
do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande (335-323 a. C.) e a
criação da Biblioteca de Alexandria, por volta do século III a. C., reunindo um
sem-número de obras importantes. O último grande poema do mundo grego,
pertencente a esse período e que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de
Rhodes, cerca de 295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre
a Grécia e começa a surgir a literatura latina.
1.2.2. Introdução à Literatura Latina
O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até Virgílio,
no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado com propriedade de
literatura. Da fundação de Roma (753 a. C.) à edição da Eneida (17 a. C.), distam
quase oito séculos. Desse tempo, apenas o período compreendido entre o século
III a. C. e o século III d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz
um momento particular da glória romana, é que pode ser chamado realmente
de literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma convergência entre
a cidade, que se faz senhora do mundo, e uma língua, que se faz literária. É o
estado social e político poderoso criando as condições para a existência de uma
língua de cultura.
O fervilhamento cultural da Alexandria dos Ptolomeus, produto direto da
helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana pelo mar mediterrâneo,
após a primeira vitória sobre Cartago, em meados desse mesmo século, e o
domínio militar sobre os gregos favorecerão o fl orescimento da literatura latina.
Dentre os nomes importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes
(295 a. C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja infl uência,
dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É, pois, a dominação
119
120
cultural grega, apesar do domínio militar romano, que permite a afi rmação de
que a literatura latina é proveniente da literatura grega.
Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se entre a fase
primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.), em que predomina a
oralidade, e a literatura cristã (a partir do século III-IV da nossa era), que já se
distancia do espírito da Roma gloriosa. Nesse momento podem-se distinguir os
períodos Arcaico (século III – I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no
período Arcaico que passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius
Andronicus, escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma
tradução e adaptação da Odisséia de Homero, por sua temática ocidental, pois as
viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de retornar em defi nitivo para
Ítaca. Não menos importante é o Bellum Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius,
escrito por volta do ano 209 a.C., tratando da primeira guerra entre Roma e
Cartago. Os primeiros cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando
a tradição de Enéias como mito fundador e herói itálico, além dos seus amores
com Dido, de onde se originaria a rivalidade entre Roma e Cartago. Deste modo,
Naevius não só antecipa Virgílio e a Eneida, mas também abre espaço para a
exaltação dos heróis nacionais.
O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta de 80 a. C.,
com a consolidação da língua literária, que tem na sua base a retórica. Os grandes
autores da poesia estarão nas décadas seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C.,
no início da chamada era de Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no
período Clássico que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio
(70-19 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-19 a. C.), Propércio (50-15 a. C.) e
Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência da literatura latina.
Glossário
Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, signifi cando
cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos da poesia épica,
quando solicitado pelo público.
Antiguidade Clássica: Primeiro período da história ocidental, marcado pelo
reaparecimento da escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o seu início a
partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V da Era Cristã,
quando da queda do império romano do Ocidente, em 476.
Arcadismo: Movimento literário, originada na Itália a partir da fundação
da Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal, em 1756 com a
Arcádia Lusitana, e chegado ao Brasil em 1768, fi xando-se em Minas Gerais. Tinha
como objetivo recuperar a harmonia da vida simples do pastor, em contraposição
à vida desregrada e corrupta da cidade. O seu nome se liga a uma das regiões
mais antigas da Grécia, a Arcádia, no Peloponeso.
Carpe Diem: Expressão latina, proveniente da Ode XI, Livro I das Odes de
Horácio (século I a. C.), signifi cando colhe o dia. O sentido é o de que devemos
aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser humano não deve
se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos deuses. Enquanto nos
preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo foge. Devemos, portanto,
saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para aproveitá-las.
Classicismo: Período cultural que se fi rma a partir do século XV, como um
desdobramento natural do Renascimento, uma vez iniciada a difusão da cultura
clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís Vaz de
Camões, cuja obra-prima é Os Lusíadas (1572).
Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago, nos
séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na Fenícia
(atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se transformando
em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146 a. C.) e aquela que
determina a derrota de Cartago e o controle de Roma sobre o Norte da África
é a segunda (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o Africano, vence Aníbal, o
Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no Norte da África.
Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do universo
e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formulada por Nicolau Copérnico
contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía o centro do
universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu redor.
Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo teria
se iniciado desde o século XI com o estudo das obras dos fi lósofos gregos.
Idade de Ferro: V. Idade de Ouro.
Idade de Ouro: Idade mítica do homem, presente na obra do poeta grego
Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do poeta grego,
o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e generosa. Não
sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e perdendo as benesses que
os deuses lhes deram. A última etapa da decadência humana é a Idade de Ferro,
em que a corrupção e os males grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar
à Idade de Ferro, o homem ainda passaria por mais três etapas: a Idade de Prata,
a Idade de Bronze, a Idade dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a
degradação vai se processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal
menos nobre e oxidável, o ferro.
Iluminismo: Movimento fi losófi co-político nascido na França em meados
do século XVIII, preconizando a liberdade do homem através da razão. O
conhecimento é a luz que levará à razão.
Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano, no
Monte Ida, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual era a
mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo escolhido Afrodite,
seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a mulher mais bela do mundo,
Páris atrai a fúria das outras deusas contra si e contra os troianos. Seu ato terá
como conseqüências o rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição
de Tróia.
Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (fi nal do século XVII até
a segunda metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vida simples na
natureza equilibrada, fugindo da dissolução do mundo urbano. Inspirado no
Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e harmônico.
Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o rapsodo
tecia a narrativa e compunha.
Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por Martinho
Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra a Igreja, na
Alemanha, no início do século XVI.
121
122
Renascimento: Movimento cultural fi losófi co de origem italiana, cujo centro
foi a cidade de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o Renascimento tenha
iniciado com a redescoberta e difusão da cultura greco-latina.
Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se fi rma como
língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu apogeu
com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio Augusto César,
primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.).
Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C.,
vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia;
o fi losófi co com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a
democracia.
UNIDADE II
ESTUDO DE HOMERO – O CANTO I DA ILÍADA
2.1. Estudo de Homero
Produzidos no período Arcaico da Literatura Grega (VIII – V a. C.), a Ilíada e
a Odisséia são os poemas fundadores de toda a literatura ocidental. A sua autoria
foi atribuída a Homero, aedo cuja existência é sempre questionada1 . Tendo
sobrevivido na tradição oral por duzentos anos, estes dois poemas conheceram
sua primeira forma em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano
Pisístratos, acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a
escritura dos versos.
A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema, por
outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo em vista que
o aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então, escolhiam os episódios para
cantar ao seu público e, muitas vezes, introduziam versos de outros poemas.
A depuração dos textos só aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido
pelos sábios do Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de
Éfeso, Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam em
estudar, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os primeiros estudos
fi lológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por exemplo, que determina,
defi nitivamente, o número de versos dos poemas. Essa fi xação, no entanto, não
impediu que os poemas conhecessem várias fontes.
Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a existência
de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII da Odisséia, cantando as façanhas
dos gregos em Tróia, e em especial as de Odisseus (nome grego de Ulisses), no
banquete oferecido por Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa
é de exaltação da nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização
arcaica, a Ilíada e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e comentados
em classe, na sala de aula, tendo não só ajudado a formar o espírito grego, mas,
principalmente, permanecido na cultura universal.
Visto consensualmente como o poema da fúria de Aquiles ou uma
Teomaquia, a Ilíada é a maior expressão da poesia épica em todos os tempos,
enfocando um mundo das origens, em que heróis são comandados por um grande
senhor, investido de um poder divino. Poema de estrutura oral, próprio para ser
cantado pelo aedo ou rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros dactílicos, fazendo
a exaltação dessa aristocracia da civilização arcaica, que tinha em Micenas o seu
apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor.
Os limites da Ilíada, normalmente conhecido como tratando da guerra de
Tróia, estão restritos, na realidade, a um momento específi co no início do décimo
ano do cerco dos Argivos (nome genérico para designar os gregos) a Tróia. A
narração desse momento parte da querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto
I) aos funerais de Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de
Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são chamados de
1 Nada menos do que
sete cidades da atual
Turquia, a antiga Ásia
Menor, dentre elas Chios
e Esmirna, disputam a
primazia de ser o local
de seu nascimento. O
que suscita a disputa é o
fato de que, na essência,
o dialeto dos poemas
homéricos é o jônio, com
alguns empréstimos do
eólio, língua da mesma
região.
123
2 A Ilíada se representa
com o alfabeto maiúsculo
e a Odisséia com o
alfabeto minúsculo.
124
Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um tema presente na tradição
oral há séculos antes de sua formulação como poema, no século VIII a. C., é
normal que Homero e os aedos de forma geral não precisem explicar muita coisa
que já é do conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não
é poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um conhecimento
anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados pelo seu epíteto ou pela
sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu nome. Aquiles é o Pelida (fi lho
de Peleu) ou o Eacida (neto de Éaco), mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus
é o Laertida (fi lho de Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Cronida (fi lho de
Cronos) e o “ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”;
Agamêmnon e Menelau são os Atridas (fi lhos de Atreu); aquele é o “Senhor
dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo são os Priamidas,
enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”...
Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu (o
pequeno), comandante dos Lócridas; Ájax Telamida (o maior), comandante
dos Salaminos; Diomedes, comandante dos argivos e dos tiríntios, ao lado
de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, comandante de Micenas e Corinto, e
comandante supremo dos gregos; Menelau, irmão de Agamêmnon, comandante
da Lacedemônia, Esparta e Auriclas; Nestor, comandante de Pilos e Dorion;
Odisseus, comandante de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion,
comandantes de Creta; Tlepôlemo, fi lho de Hércules, comandante de Rhodes;
Aquiles, comandante dos Mirmidões, Helenos e Aqueus; Pátrocles, amigo
dileto de Aquiles; Macâon e Podalírio, irmãos médicos, fi lhos de Asclépios,
comandantes da Oicália.
Entre os Troianos se destacam Heitor, comandante dos Troianos; Páris,
irmão de Heitor, raptor de Helena e causador da guerra; Enéias, fi lho de Anquises
e Afrodite, comandante dos Dardânios; Pândoro do arco de Apolo, fi lho de
Licaon, comandante dos Zeleus; Sárpedon e Glaucos, comandantes dos Lícios.
Dividida em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do
alfabeto grego 2 , distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilíada tem como
argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir dos muitos
episódios do poema. Cada canto, no entanto, apresenta o seu argumento,
os quais podem ser assim sintetizados:
Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611 versos).
Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo das naus e dos heróis
(878 versos).
Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461 versos).
Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos).
Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos).
Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de Heitor e
Andrômaca (529 versos).
Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos).
Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutralidade dos Deuses (565
versos).
Canto IX (Iota) – Embaixada a Aquiles (713 versos).
Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos).
Canto XI (Lambda) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos).
Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos).
Canto XIII (Nu) – Combate perto das naus gregas (837 versos).
Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos).
Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a ajuda de Posídon (764
versos).
Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos).
Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo contra Atena
(761 versos).
Canto XVIII (Sigma) – Fabricação das armas de Aquiles (617 versos).
Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon (424
versos).
Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles (503
versos).
Canto XXI (Phi) – A Verdadeira Teomaquia/ Combate perto do rio (611).
Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos).
Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897 versos).
Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804 versos).
Tudo concorrerá para se mostrar a razão da fúria funesta de Aquiles, núcleo
da Ilíada. Podemos observar, no entanto, no decorrer do poema, vários episódios
embrionários, ligados ou não à guerra de Tróia. Como temos um poema in medias
res – a narrativa abre com o início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e
não há um fl ash-back continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo
ano da guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmentadas
e dispersas, aludindo ao motivo da guerra, como o rapto de Helena por Páris,
que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445). Outras referências se
encontram na Ilíada como a alusão ao casamento de Peleu e Thétis (Canto XVIII,
versos 433-434; Canto XXIV, versos 59-63), e a alusão ao julgamento de Páris
(Canto XXIV, versos 26-30).
Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis, apesar
de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura da Ilíada não suscita com
facilidade uma estrutura para o leitor desavisado. A ausência de Aquiles por
quase dois terços da narrativa, mesmo sendo o protagonista, torna ainda mais
complexa essa assimilação. Muitos heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas
genealogias desfi adas... Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos,
sugerimos uma estruturação da Ilíada dividindo-a em três momentos: a Querela
entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixada a Aquiles (Canto IX), o
Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII).
A querela entre os dois maiores heróis gregos da guerra de Tróia leva à
retirada de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo todo-poderoso
Agamêmnon. A conseqüência é a perda de espaço para os troianos que
conseguem acuar os gregos em seu próprio acampamento. Pela primeira vez,
em dez anos de cerco, os troianos acampam fora e longe das muralhas. O recuo
dos argivos conduz à embaixada despachada por Agamêmnon a Aquiles (Canto
125
126
IX). Os esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de
Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado duramente
em sua honra, porque o Atrida lhe tomara a sua presa de guerra, Briseida, o que
distingue um herói da grande massa. O fracasso da embaixada e um relativo
sucesso dos gregos (Canto X, Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e
Odisseus ao acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo
resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus, Agamêmnon,
Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra as hostes de Heitor que
conseguiu chegar ao acampamento grego (Canto XII-XVI) e ameaça queimar os
navios, chegando ainda a queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com
a ajuda de Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de
Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir todas as outras naus (XVI,
292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos gregos é a morte de
Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas armas por Heitor. Isto determina o
retorno de Aquiles à guerra.
Este último momento da Ilíada é importante, pois as desavenças entre
Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio atribuído por Aquiles
a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele precise participar das competições
dos jogos fúnebres em honra de Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a
Aquiles, bem como a reparação material da sua honra ofendida, com a devolução
de sua presa de guerra, Briseida. A conseqüência da paz entre os dois heróis é a
carnifi cina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a morte de Heitor
e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao belíssimo e tocante episódio do
resgate do corpo do fi lho por Príamo, no Canto XXIV.
Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilíada é o livro das
prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não veremos na Ilíada a morte de
Aquiles ou a queda de Tróia. Limitada entre a desavença Aquiles-Agamêmnon
e os funerais de Heitor, este poema frustra o leitor que for à busca de episódios
conhecidos como o do cavalo de Tróia ou a luta de Aquiles contra a rainha das
Amazonas, Pentesiléia, por exemplo. Mas isso não impede de o poema anunciar
a cada passo tanto a destruição de Tróia, quanto a morte de Aquiles. Para melhor
entendermos essas prolepses, faz-se necessário um breve estudo do Canto I, em
que se dá a desavença entre Aquiles e Agamêmnon, provocando a retirada do
Pelida dos combates.
2.2. O Canto I da Ilíada
O proêmio da Ilíada está circunscrito aos sete primeiros versos do Canto
I. Ali, numa mescla de proposição e invocação, o poeta apresenta o argumento
do poema – a fúria funesta de Aquiles que tantos heróis mandou para o Hades
cumprindo o que havia estabelecido Zeus. A narração propriamente dita
inicia-se a partir do verso 8, estendendo-se até o fi nal do Canto XXIV, após os
funerais de Heitor. O argumento do Canto I é o desentendimento entre Aquiles
e Agamêmnon. Preocupado com a peste que grassa no acampamento grego,
matando homens e animais, Aquiles convoca a ágora – a assembléia dos Aqueus
–, para saber qual a origem de tantos males. Ele descobre, através do sacerdote
Calcas que a culpa de tal desgraça cabe a Agamêmnon, autor de uma grave ofensa
ao sacerdote de Apolo Crises. É para desagravar Crises que Apolo desencadeou a
peste no acampamento Aqueu.
Querendo resgatar a fi lha, Criseida, que havia sido feita prisioneira
na tomada de Lyrnessos por Aquiles, Crises vai até Agamêmnon, a quem
coube a presa de guerra, e oferece-lhe um alto resgate, em troca da liberdade
da fi lha. Agamêmnon não só não aceita, mas também ofende e ameaça de
morte o sacerdote de Apolo. A descoberta da causa da peste leva Aquiles ao
confronto com Agamêmnon, sobretudo quando este ameaça tomar o quinhão
de qualquer outro, mesmo o de Aquiles, caso entregue Criseida de volta ao pai,
Crises. A discussão se instaura entre eles, com Aquiles se sentindo desonrado e
Agamêmnon se sentindo privado do seu prêmio. Aquiles só cede ao ímpeto de
matar Agamêmnon diante da intervenção de Palas, que, aparecendo só a ele, o
detém, puxando-lhe a cabeleira loura e o aconselhando a ofender com palavras
o quanto puder a Agamêmnon, mas evitando matá-lo. Privado de sua Briseida,
tomada por Agamêmnon, Aquiles se retira da guerra, lamenta a sua desonra à
mãe, queixa-se de Zeus que não está cumprindo a sua parte no acordo do destino
breve, mas glorioso. Thétis, sua mãe, resolve interceder por ele junto a Zeus e
obtém do pai dos deuses e dos homens a certeza de Aquiles voltar a ser honrado
pelos Aqueus, após derrotas para os Troianos. O canto se fecha com o banquete
dos deuses no Olimpo.
O que norteia o Canto I da Ilíada é a discussão travada sobre a honra do
herói. Como obter a glória que se busca sem a honra? Este é o drama de Aquiles.
De um lado se põe o senhor dos heróis, Agamêmnon, comandante supremo
do exército de coalizão dos Aqueus, que conta, aproximadamente, com cem
mil homens. Do outro lado está o maior dos heróis, o melhor dos Aqueus, o
mirmidão Aquiles, temido por todos os guerreiros Troianos, por ser, nas palavras
de Nestor, “a grande muralha dos Aqueus contra a guerra cruel” (Canto I, versos
288-289). É a prepotência de um contra a força do outro. Ofendido na sua honra,
Aquiles sente tomar-lhe o ímpeto desafi ador que o leva ser irônico e mordaz com
Agamêmnon, e a sentir ganas de matá-lo. Agamêmnon por sua vez, não abre mão
de seu direito como chefe supremo, poder que emana de Zeus, concentrado no
cetro que empunha, com uma honra, portanto superior à de Aquiles. É isto o que
diz também Nestor (Canto I, versos 278-279)
Em favor de Aquiles, no entanto, registre-se que o herói deseja a
contemporização, procurando compensar Agamêmnon de outras formas, uma
vez entregue Criseida ao pai – caberia ao Atrida três ou quatro vezes mais que
aos outros o butim partilhado, depois da ruína de Tróia (Canto I, versos 122-
129). Agamêmnon é que parte para o confronto (Canto I, versos 130-147), o que
desencadeia as ofensas de Aquiles (Canto I, versos 148-171; 225-245; 292-303).
Dentre elas, destaca-se a alusão à cara de cão de Agamêmnon (Canto I, verso 159),
numa referência a seu caráter impudente, cujo espírito só pensa no ganho (Canto
I, verso 149). Em outro momento, a avidez do cão, se associa ao medo do gamo
e ao prazer do vinho a que se entregaria Agamêmnon, vez que o grande senhor
não participa dos combates na visão de Aquiles (Canto I, verso 225). Tal é cupidez
de Agamêmnon que Aquiles o chama de devorador do povo, que precisa para
exercer seu mando reinar sobre gente nula (Canto I, verso 231). Aquiles fi naliza
suas ofensas, não antes de jogar por terra o cetro do Atrida (Canto I, verso 245),
dizendo que se aceitasse sem contestação a força de mando de Agamêmnon, não
seria mais do que desprezível e nulidade (Canto I, verso 293).
127
128
As réplicas de Agamêmnon (Canto I, versos 177-187; 285-291) não fi cam
atrás. Mandando Aquiles reinar sobre os Mirmidões (Canto I, verso 180), numa
ironia cortante, cujo trocadilho se perde na tradução, Aquiles é para Agamêmnon
nada mais do que o povo que ele comanda – formiga. Agamêmnon replica diante
da ponderação que faz Nestor, na tentativa de sanar os ânimos: Aquiles pretende
ser o mais poderoso e reinar sobre todos, o que é uma afronta a seu comando e a
investidura divina de seu poder de senhor supremo (Canto I, versos 287-288).
Com fortes ironias despachadas de ambos os lados, nem a contemporização
de Nestor é capaz de apaziguar os dois que se ofendem mutuamente. Nestor e
Palas Atena são a racionalidade em contraponto à fúria e ao descomedimento
de ambos os heróis. Nessa arena está em jogo a honra ferida – Agamêmnon de
vasto poder não só não honrou o melhor dos Aqueus como também não honrou
a sacerdote de Apolo, Crises (Canto I, versos 10-11) –, o que desencadeia toda a
querela. Aquiles se retira da guerra, pois desonrado não pode alcançar a glória.
Será necessária a intervenção de Zeus, a pedido de Thétis, para que o herói volte
à guerra. Se Zeus lhe deu uma vida breve, que pelo menos em troca lhe conceda
a honra (Canto I, verso 353). Prêmio de guerra e honra/desonra com as variantes
das formas e tempos verbais correspondentes são as palavras centrais desse
capítulo.
Assim é que as prolepses desse capítulo são importantes para o
desencadeamento da narrativa: os versos 212-214 antecipam a embaixada a
Aquiles, que ocorrerá no Canto IX, e os esplêndidos presentes (Canto I, verso
212) que o Pelida aceitará no Canto XIX, como pagamento da desmedida de
Agamêmnon, pondo fi m ao desentendimento entre ambos. É o que lhe promete
Atena. Os versos 240-244, proferidos pelo próprio Aquiles, antecipam as vitórias
dos Troianos liderados por Heitor sobre os Aqueus; os versos 337-342 revelam a
necessidade que os Aqueus terão de ter Aquiles consigo para poderem combater
perto das naus sem perigo. Isto se dará com o retorno efetivo de Aquiles à
guerra, no Canto XX. Por fi m, o destino de Aquiles, aludido tantas vezes neste
Canto I (versos 352-356; 413-428; 517-527), será retomado ao longo da Ilíada,
principalmente no canto XVIII.
Glossário
Acaios: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente
de Acaia, regiões gregas, uma situada no Peloponeso e a outra na Tessália, no
continente. O mesmo que Aqueus ou Aquivos.
Ágora: A praça onde se reuniam os senhores para tomada de decisão sobre
alguma coisa. O termo, por metonímia acaba designando a própria assembléia.
Aqueus: V. Acaios.
Argivos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente da
região de Argos, uma das principais cidades do Peloponeso.
Atrida: Epíteto para Agamêmnon e Menelau, ambos fi lhos de Atreu.
Canto: Capítulo do poema épico, assim chamado porque o poema era para
ser cantado, não declamado.
Dânaos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é proveniente de
um dos ancestrais gregos, chamado Dânaos.
Dardânios: Nome genérico para designar os troianos, proveniente de um
dos ancestrais da raça troianos, chamado Dárdanos.
Epílogo: Parte fi nal do poema épico, quando se acaba a narração e
encaminha-se o fi m da narrativa.
Epíteto: Aposto ao nome de pessoas, deuses, heróis e cidades. Muito usado
no poema épico como recurso mnemônico, dando ritmo ao hexâmetro.
Flash-Back: Retorno ao passado de modo linear e organizado, de modo a
esclarecer fatos da narrativa.
Helenos: Nome genérico dado aos gregos, termo proveniente de parte dos
soldados tessálios comandados por Aquiles. O termo também se refere a Helena,
fi lha de Deucalião, visto como pai dos gregos.
Hexâmetro Dactílico: Verso característico do poema épico, construído com
seis medidas ou seis pés, tendo como base o pé dáctilo, constituído de uma sílaba
longa e duas breves.
Honras Fúnebres: Todas as pessoas que morriam deveriam ter direito
às honras fúnebres, sem as quais a sua alma não chegaria ao Hades, o mundo
inferior. As honras fúnebres do herói, por exemplo, consistiam na queima de sua
carne e no encerramento de seus ossos numa urna para posterior sepultamento
num túmulo, erigido sobre uma colina.
In Medias Res: Termo utilizado por Horácio (século I a. C.), para designar
a ação do poema épico, já bem adiantada quando a narração se inicia. O termo
signifi ca “no meio das coisas”, sem preâmbulos, sem explicação anterior.
Invocação: Uma das partes do poema épico, que consiste no pedido de
auxílio às Musas, como deusas protetoras das artes e do conhecimento, para
que elas comuniquem o seu saber ao poeta e ele possa cantar o que assinala na
proposição do seu poema.
Micenas: Cidade-estado ao nordeste do Peloponeso, reino fl orescente entre
os séculos XVI e XII a. C. O grande senhor Agamêmnon reinava absoluto sobre a
Micenas homérica, nos tempos míticos.
Mirmidão: Um dos epítetos para designar Aquiles, por reinar sobre os
soldados do mesmo nome. O nome é proveniente das formigas que habitavam
a ilha de Egina, transformadas em homens por Zeus, para que Éaco, avô de
Aquiles, pudesse reinar sobre eles. No plural, designa os soldados comandados
por Aquiles.
Narração: A parte mais longa do poema épico. Cerne do poema épico,
quando o poeta desenvolve minuciosamente em episódios o argumento
apresentado na proposição.
Pelida: Um dos epítetos de Aquiles. O termo é proveniente de Peleu, pai do
herói. Aquiles também pode ser chamado de Eacida, por causa do avô, Éaco.
Período Arcaico: Primeiro período da literatura grega, situado entre os
séculos VIII e V a. C. É o momento do início, quando surge a primeira forma
literária, o poema épico. Nesse período ainda surgiria a poesia lírica, em sua
forma de lírica amorosa, lírica exaltativa e bucólica.
Presa de Guerra: Trata-se do butim, do espólio conseguido pelo guerreiro,
depois de conquistada e destruída uma cidade. É assim que Briseida e Criseida
são tratadas na Ilíada: presas ou prêmios de guerra.
129
130
Proêmio: Versos iniciais e introdutórios do poema épico, reunindo a
proposição e a invocação. É onde se encontra o argumento do poema, apresentado
sinteticamente para ser desenvolvido posteriormente na narração.
Prolepse: Adiantamento da narrativa. Ao leitor ou ao ouvinte é dado
conhecer os fatos antes de eles acontecerem. Assim, não vemos a destruição
de Tróia ou a morte de Aquiles na Ilíada, mas sabemos que ambos os fatos vão
ocorrer, pois eles são adiantados, através de alusões as mais variadas.
Proposição: Parte do poema épico em que se apresenta o argumento. De
modo sintético, o poeta diz qual será o tema de seu canto. A Ilíada apresenta como
argumento a fúria funesta de Aquiles; a Odisséia, a volta de Odisseus para Ítaca.
Teomaquia: Signifi ca, literalmente, batalha dos deuses. Termo cunhado
para designar a Ilíada, sobretudo a partir do Canto XX, quando Zeus libera os
deuses para tomar partido na guerra de Tróia e formam-se os grupos de deuses
em defesa dos gregos ou dos troianos.
Teucros: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente
do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Teucro.
Tróades: Nome genérico para designar os troianos. O termo é proveniente
do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era Tros.
Observação: Para uma melhor assimilação dos conteúdos desta unidade, faz-se
necessária a leitura do Canto I da Ilíada.
Exercícios
1. “Nem a morte de Aquiles, predita desde o início, nem a tomada de Tróia
graças à artimanha do famoso cavalo de madeira, astúcia concebida por
Ulisses, fi guram na Ilíada.” Explique esta afi rmação de Claude Mossé (A
Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1989.).
2. Explique por que na Proposição/Invocação da Ilíada, o poeta pede que se
cante “a ira funesta de Aquiles”.
3. Qual a origem da querela entre Aquiles e Agamêmnon?
4. Quais as conseqüências imediatas e as conseqüências posteriores para os
gregos dessa querela?
5. Considerando o Canto I da Ilíada, qual a importância de Aquiles para os
gregos?
UNIDADE III
VISÃO GENÉRICA DOS AUTORES DO TEATRO TRÁGICO
3.1 O Teatro Grego
Nesta terceira unidade, procuraremos fazer o estudo do teatro grego na
sua origem, mais especifi camente, da tragédia grega como fenômeno do período
clássico, numa refl exão sobre o mundo da Pólis.
É consenso entre os estudiosos do teatro grego que a sua origem está
ligada ao coro que anima o culto ao deus Dionisos. Deus da vegetação e da
fecundidade, Dionisos era o centro de um culto à fecundação – a faloforia,
condução do falo como representação do deus Príapo, seu fi lho com Afrodite –
em que se sacrifi cavam bodes e touros. A essência do culto consistia no abandono
dos limites entre o humano e o divino, quando grupo de seguidores de Dionisos
desejava o êxtase (deslocamento, espírito sem destino) e o entusiasmo (possessão
divina, animação por um transporte divino), para transformar-se em bacante.
As Grandes Dionisíacas ou Dionisias da Cidade eram a festa mais
importante do mundo grego, contando com a afl uência de toda a Grécia e do
exterior. Elas se davam entre os meses de março e abril, princípio da primavera,
quando o tempo abria para as navegações. A partir do século VI a. C. (534),
foram instituídos os concursos dramáticos pelo tirano Pisístratos, que contavam
tanto com o concurso de ditirambo (hino a Dionisos), quanto com um concurso
dramático. Os concursos duravam três dias para as tragédias e um para as
comédias, e tinham como espaço o teatro de Dionisos, ao pé da Acrópole, em
Atenas, onde cabiam 17000 pessoas. Um espaço tão grande numa época tão
remota, explica-se diante da função que o teatro tinha na Grécia: uma função
coletiva. As entradas eram subvencionadas pelo estado e o fi nanciamento do
coro e de um dos atores era feito por um cidadão rico. No século V a. C., apogeu
do período Clássico, esses concursos se tornaram freqüentes e estima-se, por
exemplo, que foram apresentados cerca 5000 ditirambos e mais de 1000 tragédias.
No início, as peças eram apresentadas na praça pública, a ágora, depois,
por conta do afl uxo de espectadores e para dar uma visualização melhor da
encenação foi construído o teatro de Dionisos, ao pé da Acrópole. O espaço físico
do teatro era constituído dos seguintes ambientes (veja a planta baixa de um
anfi teatro grego, em seguida):
• Teatro: lugar onde se instalavam os espectadores para ver o espetáculo.
• Orquestra: área circular para a dança, em cujo centro havia um pequeno
altar de pedra, consagrado ao deus. O coro faz aí a sua evolução.
• Cena: cabana ou tenda servindo de bastidores, para a troca de máscaras
e de roupas. Boa parte da ação se passava no interior da cena. As cenas
chocantes de assassinato ou suicídio, por exemplo.
• Proscênio: lugar à frente da cena, onde os atores encenavam as peças.
• Párodos: passagens que davam acesso ao teatro e por onde entrava e saía o
coro.
131
1 Aristóteles (Poética,
18, 1456a) considera o
Coro como um ator nos
moldes de Sófocles, não
nos de Eurípides, que
já não tem infl uência
sobre a ação. No teatro
de Sófocles, o Coro
pode, sob o comando
do Corifeu, intervir na
ação, dialogando com
os personagens. Coro
signifi ca dança, em
grego.
2 O termo deriva em
grego de cabeça, cimo,
capacete.
132
O teatro como drama (a palavra drama signifi ca ação, em grego) apresentava
os seguintes componentes
• Prólogo: cena de exposição, sob a forma de diálogo ou de monólogo,
precedendo a aparição do coro.
• Párodos: entrada do coro, após o prólogo, num ritmo anapéstico (duas
sílabas breves e uma longa). Composto de estrofes cantadas que se
respondem.
• Episódio: parte do drama entre duas entradas do coro. O primeiro episódio
fazia dialogar os atores entre eles e com o coro.
• Estásimo: parte cantada pelo coro, mas sem haver deslocamento. O
primeiro estásimo se apresenta como um conjunto variável de estrofes
cantadas pelo coro, ao que se seguem dois outros episódios, seguidos de
dois estásimos.
• Coro: coro de dança, grupo de pessoas que fi guram em uma dança.
Unidade coletiva que cantava sob a direção do Corifeu ou declamava
dançando. A maior parte das vezes, o coro era formado por velhos ou por
mulheres infelizes, conhecedores profundos dos rituais religiosos.1
• Corifeu2: Chefe do coro, representando uma intervenção breve do coro nas
cenas dialogadas.
• Komos: canto comum ou alternado ente coro e personagens, auge lírico de
dor (mais freqüentemente), na tragédia.
• Êxodos: Saída do coro de cena. Toda a peça se desenrola entre o párodos e
o êxodos, dividida por estásimos e separadas por episódios. Consistia de
fato no último episódio, por vezes longo e complexo.
A parte coral da encenação tinha um grande rigor formal, se apresentando
em uma série de evoluções na orquestra, ao redor do altar. As evoluções podiam
ser para a direita, e assim se chamavam de estrofes, ou para a esquerda, chamadas
de antístrofes. O epodo consistia em um canto adicional, terceira estrofe, em que o
coro fi cava imóvel. Para a encenação dos autores ou do coro se utilizavam metros
variados para os versos.
No capítulo IX (1451b) da Poética, primeira obra a sistematizar um estudo
sobre a tragédia grega, Aristóteles diz que “o poeta deve ser fabricante de intrigas
mais do que de metros”. Como o teatro grego era estruturado em versos de
metros variados, Aristóteles ensina que não basta criar o verso, mais importante é
a intriga (o que em grego se diz mito). Tratando a tragédia como uma poesia que
imita os homens nobres e melhores do que nós, entenda-se aí a defi nição do herói,
o fi lósofo aponta para a origem da tragédia na improvisação de uma declamação,
por ocasião da faloforia.
Com a evolução do gênero, a tragédia passa a ser a imitação de
uma ação nobre e acabada, com limite de extensão, em linguagem agradável
(condimentada), executada por personagens que agem, sem utilizar a narração,
sendo através do binômio piedade e terror que a tragédia opera a purifi cação
das emoções, o que Aristóteles denominou de catarse. A linguagem agradável
(condimentada, no termo grego utilizado) diz respeito ao ritmo, melodia e canto.
A ação se imita pela intriga, como reunião dos acontecimentos – fi nalidade,
princípio e alma da tragédia –, cujas partes se constituem de peripécias,
reconhecimentos e patético.
Para Aristóteles, a peripécia é quando a ação resulta no contrário do
esperado, segundo a verossimilhança e a necessidade. Já o reconhecimento é a
passagem da ignorância ao conhecimento. O reconhecimento com peripécia faz
a intriga mais bela, porque mais elaborada, resultando na piedade e no terror,
emoções de que a tragédia supõe ser a imitação. O patético é a ação destrutiva ou
dolorosa, como os assassinatos, as grandes dores, os ferimentos e todas as coisas
visíveis do mesmo gênero. A essência da tragédia consiste em passar da felicidade
à infelicidade, não por causa dos vícios ou da maldade, mas por grande erro do
herói.
3. 2. Autores Trágicos
O primeiro dos autores trágicos foi Téspis de Lesbos que ganhou o prêmio
de melhor tragédia, instituído pela primeira vez em 534 a. C., quando da
organização das Grandes Dionisíacas por Pisístratos, em Atenas. A ele se atribui
o costume de mascarar os atores (GRIMAL, 1986: 31). No entanto, apenas três
autores da tragédia grega nos chegaram: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Vejamos o
que cada um produziu e o que foi poupado pelo tempo.
Ésquilo (525-456/5 a. C.) coloca um segundo autor em cena (deutoragonista),
depois um terceiro, imitando Sófocles. Era considerado grande músico. Das 90
peças que lhe são atribuídas, apenas sete tragédias nos chegaram: Os Persas (472),
peça isolada. Sem fazer parte de uma trilogia, o que era habitual, Os Persas é a
única peça do teatro trágico grego que abordava um tema contemporâneo, a
guerra dos gregos contra os persas, de que Ésquilo foi um dos combatentes; Os
Sete contra Tebas (467), peça premiada; As Suplicantes (463), fi m de uma trilogia;
133
1 ESCHYLE. Tragédies:
Les suppliantes, Les perses,
Les sept contre Thèbes,
Prométhée enchaîné; texte
établi et traduit par Paul
Mazon. 2. éd. Paris: Les
Belles Lett res, 2002.
134
Orestéia (458); trilogia completa, composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides;
Prometeu Acorrentado (?), início de uma trilogia.
Sófocles (497-406 a. C.) é o mais premiado dos teatrólogos, tendo ganhado o
prêmio das Grandes Dionisíacas 26 vezes, o que dá um total de 78 peças premiadas.
Atribuem-se-lhe 123 peças, embora só tenhamos conhecimento efetivo de sete.
Sófocles inova com a inclusão de um terceiro ator em cena (tritagonista). As sete
tragédias conservadas pela tradição são Ajax (445), Electra (421? 413?) Filoctetes
(409, ciclo troiano); Antígona (442), Édipo Rei (421), Édipo em Colona (401, ciclo
Tebano) e As Traquinianas (444, ciclo de Héracles).
Eurípides (480-406 a. C.) reduz o tamanho e a signifi cação do coro, aumenta
as peripécias e os efeitos de surpresa. Com o aumento da intriga, acresce o
número de personagens. Atribuem-se-lhe 92 peças, mas apenas dezoito tragédias
e um drama satírico nos chegaram: O Ciclope (drama satírico com base no Canto
IX da Odisséia de Homero), Alceste (438), Medéia (431), Hipólito (428), Os Heráclidas
(428), Andrômaca (428), Hécuba (424), A Loucura de Hércules (415), As Suplicantes
(415), Íon (~421 e 413), As Troianas (?), Ifi gênia em Táuris (?), Electra (413), Helena
(412), As Fenícias (410), Orestes (408), As Bacantes (peça póstuma), Ifi gênia em
Áulis (peça póstuma) e Rhésos (tragédia atribuída). Grande é o número de peças
pertencentes ao ciclo troiano.
Numa visão didática dos ciclos da tragédia grega, podemos falar dos
Primórdios, com Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, abordando a prepotência;
do Ciclo Tebano com Édipo Rei e Antígona, ambas de Sófocles, tratando,
respectivamente da impotência e da intolerância, e do Ciclo Troiano, com Ajax,
de Sófocles, em que se aborda a dignidade do herói; a Orestéia, de Ésquilo, em
que a maldição dos atridas é fi nalmente redimida, e três peças de Eurípides,
especialmente escolhidas: Ifi gênia em Áulis, sobre a ambição; Hécuba, que trata da
dor individual, e As Troianas, abordando a dor coletiva.
Dada a impossibilidade de se estudarem todas estas peças, recomendamoslhes
a leitura de Édipo Rei, por se tratar de peça muito conhecida e amplamente
editada. Lembramos que muitos dos assuntos das tragédias estão na poesia épica,
sobretudo aquelas peças que enfocam o ciclo troiano. Para o momento, fi quemos
com uma visão rápida de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, como peça importante
para a compreensão dos primórdios do mito.
3.3. Prometeu Acorrentado
Ésquilo traz para a tragédia a idéia de Justiça, mais ou menos estranha a
Homero, mas que aparece com nitidez em Hesíodo (v. Trabalhos e dias). Afi rma
Paul Mazon na introdução geral à obra de Ésquilo 3 :
“Ésquilo compreende que a essência do drama deve ser esta idéia de justiça,
que se incorporou à defi nição mesma do homem. Toda ação humana formula
uma questão de direito. A tragédia tratará, portanto, das questões de direito”
(ÉSCHYLE, 2002: XI).
Uma idéia original em Ésquilo é a de que o direito se desloca, pela
incapacidade do homem em retê-lo. Ao querer mais do que lhe compete, o
homem vê o direito colocar-se ao lado do adversário. A única maneira de
combater o excesso é a moderação, virtude suprema aos olhos do grego. Ao saber
se moderar, o homem poderá conservar consigo o direito que lhe cabe. Entregarse
às paixões é o meio mais rápido para que o homem se veja privado do seu
direito.
A discussão travada em Prometeu acorrentado enfoca justamente a concepção
de direito e justiça. Texto de data desconhecida, esta peça faz parte de uma
trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu libertado e Prometeu porta-fogo –, em que
personagens divinos são mostrados numa teomaquia, a exemplo de Homero e
de Hesíodo, com a diferença de que nos dois poetas épicos as teomaquias não
constituem tragédias, pois não comportam uma idéia moral.
Tendo roubado o fogo sagrado de Zeus para dá-lo aos humanos, Prometeu
é punido com o acorrentamento ao Cáucaso, com o sepultamento vivo pela
montanha e, posteriormente, com o martírio de uma águia, a águia de Zeus, que
vem comer-lhe o fígado diariamente. Na peça, que ora estudamos, única que
nos sobrou, só vemos as duas primeiras partes da punição: o aprisionamento e o
sepultamento vivo de Prometeu, embora Hermes anuncie ao Titã a terceira parte
da punição.
O confl ito Zeus x Prometeu, no entanto, vai além do roubo do fogo ou do
ludíbrio de Prometeu a Zeus. Não há dúvida de que o Titã se rebelou e quebrou
a lei divina ao levar o fogo aos homens, mas Prometeu é detentor de um segredo
importante para Zeus, o oráculo de Thêmis, que lhe foi anunciado e cujos
desdobramentos ele conhece por ser ele sabedor do que vai acontecer, vez que seu
nome signifi ca o que conhece antes. No confl ito da peça fi ca clara a desmedida de
Zeus em relação a Prometeu, sendo a Força e o Poder, deuses que acompanham
Hefestos na missão de acorrentar Prometeu, o símbolo desta desmedida. Ao que
parece, o endurecimento da punição é menos pelo roubo do fogo e mais por ser
o Titã detentor de um segredo danoso a Zeus, cuja revelação depende de sua
libertação.
Na trilogia, se estabelece que é da desmedida que se reconhece,
dolorosamente, a moderação e o domínio de si, como virtudes importantes e
necessárias, mesmo no Olimpo. Zeus como um deus cósmico, que ordena o
universo, deverá se moderar e permitir a libertação de Prometeu – primeiro
com Hércules matando a águia, depois com a troca de Prometeu pelo Centauro
Quíron, que, ferido por Hércules, aceitará descer ao Hades em lugar do Titã –
para não pôr em risco a ordem que ele mesmo criou. Desse modo, é importante o
episódio de Io, antepassada de Hércules, que toma boa parte da peça.
A peça se inicia com Hefestos, acompanhado do Poder e da Força, levando
Prometeu, que segue e se mantém calado, para o aprisionamento. Hefestos é
quem tem a obrigação de prender Prometeu ao rochedo do Cáucaso. O erro de
Prometeu foi roubar o fogo brilhante de onde nascem todas as artes para leválo
aos homens: Prometeu está sendo punido por ser benfeitor dos homens. Zeus
como novo mestre, que impõe uma nova ordem, tem coração infl exível, duro
como um rochedo.
O Poder demonstra sua força sem concessões, enquanto Hefestos mostra-se
constrangido em aprisionar Prometeu, revelando o confl ito da técnica obrigada a
servir ao poder constituído. Daí dizer-se que a peça trata da prepotência, palavra
que não deve ser entendida como arrogância, mas com o sentido de alguém ter o
poder sobre todas as coisas.
135
136
Prometeu só se pronuncia a partir do verso 88, para lamentar-se de sua
condição, iniciando com a invocação das forças da natureza:
“Éter divino, ventos de asa rápida, águas dos rios, sorriso inumeráveis das
vagas marinhas, Terra, mãe dos seres, e tu, Sol, olho que tudo vê, eu os invoco
aqui: vede o que um deus sofre pelos deuses!” (v. 88-92).
O roubo do fogo numa férula, entregando-o aos mortais é mais do que uma
rebelião contra Zeus, é a afi rmação de Prometeu como mestre de todas as artes.
O fogo aí aparece como um grande recurso, permitindo aos seres humanos a
entrada na civilização. Toda a constituição da peça aponta para os primórdios,
para os mitos da origem, do mundo arcaico, portanto. Assim é que o coro,
formado pelas Oceânides, mostra a nova lei que se impõe a partir de Zeus, lei
que destrói os colossos do passado, numa alusão aos Titãs e à titanomaquia – a
luta e vitória de Zeus contra os Titãs e, sobretudo, seu pai, Cronos. Esta vitória, só
possível com a astúcia de Zeus, mais do que a força dos seus adversários, conta
com a ajuda de Prometeu, antigo aliado do deus supremo do Olimpo. O que leva,
então, Prometeu a cair em desgraça e passar da ventura à desventura, como diria
Aristóteles? Foi o fato de ele ter infringido o direito e ter dado cegas esperanças
aos seres humanos. Ele comete a desmedida e não segue o aforisma básico da
contenção: “Conhece-te a ti mesmo” (v. 309).
Oceano, pai das Oceânides, intervém para recriminar Prometeu por sua
falta de humildade e por querer se opor a um monarca, cujo poder não tem
contas a prestar. Mesmo assim, Oceano tenta ajudar Prometeu, mostrando-se
disposto a intervir junto a Zeus a seu favor, mas é ironizado pelo Titã. Em lugar
de se mostrar humilde, Prometeu passa a desfi ar todos os benefícios que levou
aos seres humanos. E aí, fl agramos o confl ito dialético da peça: quem ensinou aos
seres humanos todas as artes, para libertação da ignorância, ignora a arte de se
libertar a si mesmo:
“No início, eles viam sem ver, eles escutavam sem ouvir, e, iguais às formas
oníricas, viviam sua longa existência na desordem e na confusão. Eles
ignoravam as casas de tijolo ensolaradas, eles ignoravam o trabalho da madeira;
eles viviam sob a terra como formigas ágeis, no fundo de grotas fechadas ao
sol” (v. 447-453).
Prometeu ensina aos seres humanos a astronomia, os números, as letras, a
arte de construir os carros atrelados a cavalos, os navios a vela, a medicina, as
artes divinatórias, a ornitomancia, a queima da carne envolta na gordura para
saber os presságios; revelou-lhes os tesouros sob a terra – ouro, prata, bronze,
ferro: “Com uma palavra tu saberás tudo ao mesmo tempo: todas as artes aos
mortais vieram de Prometeu (resposta ao Corifeu, v. 505-506).
O episódio de Io (v. 591-886) é dos mais importantes na peça, pois anuncia
o nascimento do libertador de Prometeu, treze gerações depois. Perseguida pelo
fantasma de Argos, o cão de Hera, morto por Hermes, enquanto a vigiava, Io vai
falar com Prometeu, que lhe prediz o futuro: ela, fugindo aos moscardos que a
picam, atravessará o estreito que separa a Europa da Ásia e que levará seu nome
(futuro estreito de Bósforo ou passagem da vaca, pois Io se apresenta como uma
novilha). Depois, chegando ao Egito, Io dará à luz Epafos, iniciador de gerações que
vão culminar em Hércules, o futuro libertador do Titã (v. genealogia em seguida).
A Io, Prometeu revela parte do oráculo de Thêmis sobre a queda de Zeus:
o deus pai terá um casamento de que se arrependerá, pois o fi lho por ele gerado
será mais forte que o pai, proporcionando a sua queda. Com a queda, Zeus saberá
qual a diferença entre reinar e servir (v. 926-927).
Hermes, mensageiro de Zeus, aparece como núncio de castigos maiores (v.
944-1093). Querendo descobrir qual o casamento que proporcionará a queda de
Zeus, Hermes encontra um Prometeu cheio de orgulho e de ironia, para quem o
segredo só será revelado com a libertação. Em resposta a Hermes que lhe diz ser
Zeus desconhecedor do lamento, Prometeu retruca:
“Não existe nada que com a velhice, o tempo não ensine” (v. 980).
Hermes anuncia o castigo além do acorrentamento: ele será sepultado vivo
pela montanha e, depois, a águia de Zeus comerá o seu fígado eternamente. Na
sua fala fi nal, Prometeu faz o encerramento com o mesmo lamento inicial sobre a
injustiça de que é vítima:
“Mas eis os fatos e não mais as palavras: a terra vacila; nas suas profundezas,
ao mesmo tempo, muge a voz do trovão; em ziguezagues embrasados o raio
surge explodindo; um ciclone faz turbilhonar a poeira; todos os sopros do ar se
lançam ao ataque uns aos outros; a guerra é declarada entre os ventos, e o éter
já se confunde com os mares. Eis, portanto, a tormenta que, para me espantar,
manifestamente vem sobre mim, em nome de Zeus. Ó Majestade de minha
mãe e tu, Éter, que faz rolar em torno do mundo a luz oferecida a todos, vós
vedes bem as iniqüidades que eu suporto? (v. 1080-1093)
É essencial para o estudo da peça que compreendamos o seguinte: Prometeu
está ligado ao mito primordial da criação da terra, dos deuses e dos homens, fruto
de uma teogonia, que se desdobra em uma titanomaquia, para estabelecimento de
uma cosmogonia (v. Hesíodo, Teogonia.), em que Zeus reinará absoluto, mesmo
partilhando o poder com os irmãos Posídon (deus do mar) e Hades (deus do
interior da terra, o mundo inferior). Por outro lado, o oráculo de Thêmis revela
uma possível queda de Zeus, o que resultaria no retorno ao caos. É a justiça que vai
de encontro ao direito. É do direito de Zeus punir Prometeu pelo roubo do fogo,
levado aos seres humanos, mas é justo que ele seja punido por tirá-los da cegueira
em que viviam, abrindo-lhes as portas da civilização? Eis a grande questão da peça.
Para não correr o risco de retorno ao caos com a perda do seu poder, Zeus
terá de se vencer a si mesmo, moderando a sua desmedida e proporcionando
a libertação de Prometeu, através de uma das mulheres por ele fecundadas, Io.
A libertação sairá das mesmas mãos de quem puniu. Saindo da ventura para
desventura, Prometeu conhece antecipadamente a possível queda de Zeus, mas
ignora como poderá se libertar. Submetido à força e ao poder, seu trunfo é a
justiça divina, o oráculo de Thêmis.
Por fi m, podemos ver Prometeu acorrentado como uma alegorização da Pólis,
no sentido de que a civilização está em desacordo com o poder prepotente que,
como diz Oceano, não tem contas a prestar.
137
138
Genealogia de Hércules
GLOSSÁRIO
Acrópole: Literalmente, cidade alta, cidade no cume. É a parte alta da
cidade de Atenas, onde se encontra o Partenon, grande templo em louvor de Palas
Atena, a deusa protetora da cidade.
Antístrofe: Movimento do coro para a esquerda, em torno do altar, no
centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.
Bacante: Seguidor de Dionisos, tomado pela fúria do deus. O deus Dionisos
também era conhecido como Baco.
Catarse: A tragédia tinha por objetivo inspirar terror e piedade. A catarse
era a conseqüência disso, objetivando a purifi cação das emoções.
Deuteragonista: O segundo personagem em cena, introduzido por Ésquilo.
Ditirambo: Hino a Dionisos, cantado durante a procissão da faloforia.
Entusiasmo: Trata-se da possessão divina, a animação por um transporte
divino, para transformar-se em bacante.
Estreito de Bósforo: Passagem que divide a Europa da Ásia, que dá acesso
do Mar de Mármara ao Mar Negro ou vice-versa. Na parte Européia do Estreito
de Bósforo encontra-se Istambul, que já foi Constantinopla e já foi Bizâncio. Seu
nome signifi ca literalmente “Passagem da Vaca” por causa de Io.
Estrofe: Movimento do coro para a direita, em torno do altar, no centro da
orquestra, durante a apresentação da tragédia.
Êxtase: Trata-se do deslocamento do espírito. O seguidor de Dionisos
buscava sair de si para ir ao encontro do deus ou para que o deus pudesse
entrar nele.
Faloforia: Procissão para culto de Dionisos e da fertilidade. Os seguidores
do deus carregavam um enorme falo sobre o andor, em homenagem ao deus
Príapo, agradecendo pelas colheitas e pela fertilidade.
Grandes Dionisíacas: Festas entre os meses de março e abril, durante a
primavera, em honra ao deus Dionisos, para culto da fertilidade e da colheita.
Durante essas festas acontecia o concurso de teatro.
Oceânides: Filhas de Oceano e Téthys. Hesíodo alude a quarenta e uma
Oceânides, mas a lista teria pelo menos três mil. São, como o próprio nome indica,
divindades marinhas.
Ornitomancia: É a prática de se descobrir o futuro a partir do vôo dos
pássaros ou do estudo de suas entranhas.
Peripécia: Ação que na Tragédia resulta no contrário do esperado.
Pólis: Assim se chama a cidade grega, a partir do século VI a. C. A pólis
marca a entrada da Grécia na democracia, com os cidadãos (polites) se reunindo
em torno da praça (ágora) para tomar as decisões.
Protagonista: O personagem principal. Até Ésquilo, tratava-se do único
personagem em cena.
Reconhecimento: Momento da tragédia em que o personagem sai da
ignorância para o conhecimento dos fatos.
Teomaquia: Batalha dos deuses. É assim que acontece na Ilíada, nos Cantos
XX e XXI, quando Zeus libera a participação dos deuses na guerra de Tróia,
para que eles tomem o partido que lhes parecer melhor. Também na Teogonia
de Hesíodo existe uma teomaquia, mais especifi camente uma titanomaquia, na
luta de Zeus contra os Titãs, liderados por seu pai Cronos. Zeus é o vencedor,
aprisionando os Titãs no Tártaro.
Titanomaquia: V. Teomaquia.
Trilogia: conjunto de três peças trágicas, apresentadas por ocasião dos
concursos.
Tritagonista: Terceiro personagem em cena, introduzido por Sófocles.
139
UNIDADE IV
ESTUDO DE VIRGÍLIO – O LIVRO I DA ENEIDA
4.1 Estudo de Virgílio
Publius Vergilius Maro (Mântua, 70 a. C. – Brundísio ou Bríndise, 19 a.
C.), considerado um dos maiores poetas da língua latina, viveu no período
Clássico da literatura latina – a chamada Idade de Ouro do imperador Otávio
Augusto –, momento em que a literatura atinge seu apogeu, contando para isto
com o concurso da fi gura de Mecenas, amigo de Otávio. Estudante de gramática
e retórica na juventude, Virgílio prefere a companhia de fi lósofos e poetas, por
reconhecer na timidez uma barreira para enfrentar os debates retóricos. A partir
da vitória de Otávio sobre Marco Antônio (31 a. C.), na batalha de Actium,
e de sua aclamação como princeps (29 a. C.), Virgílio cai nas graças do futuro
imperador, que lhe encomenda uma epopéia sobre a glória romana.
De suas obras mais importantes, temos notícia das Bucólicas (39 a. C.),
poema do campo, em que pastores na natureza ideal desfrutam da felicidade
fazendo poesia, cuja base são os Idílios de Teócrito (poeta grego do século III a. C.);
as Geórgicas (29 a. C.), poema didático, dedicado a Mecenas, sobre a agricultura
e a criação dos animais, inspirado em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (poeta
grego do século VIII a. C.) e em De rerum natura de Lucrécio (poeta latino 99/94-
55/50 a. C.) 1 . Por fi m, aquela que é considerada a sua obra-prima a Eneida (17 a.
C.), epopéia inspirada na Ilíada e na Odisséia de Homero (VIII a. C.), narrando a
fundação das bases da futura Roma, o que virá a ser feito pelos descendentes de
Enéias, personagem central do poema.
A epopéia mais antiga entre os latinos é a tradução/adaptação da Odisséia
de Homero por Livius Andronicus – Odissia (cerca de 250 a. C.) –, em cuja
composição o poeta utilizou versos saturnianos. Só com Ennius e os Anais (século
II a. C.) é que os romanos terão uma epopéia com o hexâmetro dactílico ou
espondaico, dando a Roma a sua primeira obra de porte. Segundo Pierre Grimal
(1997: 174), para escrever a sua epopéia, a Eneida, Virgílio aglutina a tradição
homérica à nova tradição de Ennius, este considerado o pai da literatura latina.
Tendo começado a composição da Eneida por volta de 29-28 a. C., dez anos
depois Virgílio ainda não se dava por satisfeito com o que escrevera, por isto teria
determinado a destruição de sua obra, quando estava próximo a sua morte, em
19 a. C. Por interferência de Otávio é que o poema foi editado. O já imperador
incumbiu dois amigos de Virgílio, também poetas, L. Varius e Plotius Tucca, de
cuidarem da edição da Eneida, publicada dois anos depois da morte do poeta, em
17 a. C. (GRIMAL, 1997: 237).
A lenda da fundação de Roma reserva o ano de 753 a. C. para a sua
construção. Com a queda de Tróia, Enéias e um grupo de troianos são impelidos
pelo destino a deixar a cidade de Príamo e ir em busca de fundar uma nova
Tróia, tão gloriosa quanto aquela que acabava de ser tomada pelos gregos, após
1 O poema foi lido por
Virgílio, que alternava
a leitura com Mecenas
quando este cansava,
a Otávio, em 29 a. C.,
na Campânia, em seu
retorno vitorioso do
Oriente (GRIMAL, 1997:
128)
141
2 Veja-se, por exemplo,
Tito Lívio, na bibliografi a.
3 Tradução nossa do
original grego.
142
dez anos de cerco. A chegada dos Troianos à Península Itálica põe em confronto
Enéias e Turno, rei dos Rútulos, pela posse da terra. Vitorioso, Enéias funda o
reino de Lavínio, cujo nome é originário da fi lha do rei Latino, Lavínia, que ele
recebe como esposa. Seu fi lho Iulo, em seguida, funda a cidade de Alba Longa,
onde reinará por trinta anos, e seus descendentes por trezentos anos. Passado
esse tempo, a sacerdotisa vestal Rhéia Sílvia dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo,
netos de Numitor, rei de Alba longa, proporcionando assim as condições para a
futura fundação de Roma. Em linhas gerais, este é o argumento da Eneida, com a
ressalva de que o poema encerra com a morte de Turno por Enéias. Mesmo que
não vejamos o desenrolar dos acontecimentos, eles são anunciados ao longo da
narrativa, desde o Livro Primeiro, numa antecipação do destino de Enéias e da
glória romana.
A história de Enéias, como ancestral de Roma, está na tradição latina2 , mas
é na Ilíada que Virgílio encontra a deixa literária para escrever a Eneida. A glória
de Enéias como mito fundador e o destino de seus descendentes são anunciados
no Canto XX do maior poema homérico, nos versos 292-3083 :
Imediatamente, [Posídon] diz aos deuses imortais:
Ai de mim! sinto uma grande dor por Enéias do grande coração,
Que depressa baixará ao Hades, sob o braço do Pelida,
Por ter sido persuadido pelas palavras de Apolo, o que fere de longe.
Tolo! Não é ele [Apolo] que vai socorrê-lo contra a morte ruinosa.
Mas qual a necessidade de que ele sofra estas dores,
Inutilmente, pelos males dos outros, ele que sempre ofereceu
Presentes aos deuses que habitam o vasto céu?
Eia, vamos subtraí-lo da morte e levá-lo conosco,
Se por um lado, o Cronida se indignaria de ver Aquiles
Matá-lo, por outro lado, o destino deseja vê-lo salvo,
Para que não pereça, sem posteridade e aniquilada,
A raça de Dárdanos, que, dentre todos os seus fi lhos,
Nascidos dele e de uma mortal, o Cronida mais amou.
Já a raça de Príamo, o Cronida odeia.
É o poderoso Enéias que reinará, doravante, sobre os troianos,
Ele e os fi lhos de seus fi lhos, que nascerão em seguida.
Descendente de Dárdanos, fi lho amado de Zeus, Enéias deve ser salvo
da luta contra Aquiles. Assim manda o Destino, para que ele possa ser rei dos
troianos um dia, bem como os fi lhos de seus fi lhos. É com este argumento que
Posídon, apesar de estar ao lado dos gregos na guerra de Tróia, salva Enéias de
ser morto por Aquiles, envolvendo o Pelida em um nevoeiro tenebroso, e jogando
Enéias em outra frente de combate, onde não será alcançado pelo melhor dos
aqueus, Aquiles. Nestes versos também se encontra a personalidade piedosa de
Enéias, sacrifi cando aos deuses do Olimpo.
Contando com 9896 versos, dividida em doze Livros ou Cantos, nós
podemos distribuir, didaticamente, os argumentos de cada livro da Eneida da
seguinte maneira:
Livro I (756 versos): Os Troianos na África – Enéias em Cartago
Livro II (804 versos): As Narrativas de Enéias – O Fim de Tróia
Livro III (718 versos): As Narrativas de Enéias – Os Anos de Errância
Livro IV (705 versos): Os Amores de Enéias e Dido – Morte de Dido
Livro V (871 versos): Enéias na Sicília – Jogos Fúnebres em Honra de
Anchises
Livro VI (901 versos): A Descida aos Infernos – Entrevista com Anchises
Livro VII (817 versos): Enéias no Lácio – Juno e Alecto Semeiam a Discórdia
Livro VIII (731 versos): A Aliança com Evandro – O Escudo de Enéias
Livro IX (818 versos): O Cerco aos Troianos – Batalha contra Turno
Livro X (908 versos): O Primeiro Embate – Morte de Mezêncio
Livro XI (915 versos): O Segundo Embate – Morte de Camila
Livro XII (952 versos): A Decisão – Morte de Turno
Muitos são os estudos sobre a Eneida, cada qual apresentando uma estrutura
do poema. A estrutura da Eneida mais conhecida é aquela que divide o poema em
duas partes, relacionando os seis primeiros livros à Odisséia e os seis últimos livros
à Ilíada, numa estruturação invertida com relação aos poemas homéricos. Apesar
de simplista, podemos dizer que, em linhas gerais, esta estruturação não deixa de
ser correta. Como, no entanto, trata-se de um poema de uma intertextualidade
complexa, nós propomos uma estrutura triádica para a sua análise, de modo a
cobrir com mais propriedade o poema. A saber:
I. Provações (Livros I-IV): As provações são um rito de iniciação para
Enéias como mito fundador. O herói, além de perder a pátria e o pai, tem
a missão imposta pelo destino de fundar uma nova Tróia. As provações,
que se revelam entre os Livros I e III, apresentam uma transição no Livro
IV, em que se mostram as provações de Dido, e a renovação dos votos da
missão de Enéias. O Livro I mostra a tempestade desencadeada por Éolo
a mando de Juno, que faz Enéias se desviar de sua rota e bater com os
costados no litoral da África do Norte, a Líbia de então, onde Dido constrói
o reino de Cartago. O Livro II é o início das narrativas de Enéias, mais
especifi camente enfocando a queda de Tróia. Trata-se do melhor relato nas
grandes epopéias da vitória dos gregos sobre os troianos, após uma guerra
de dez anos. O Livro III dá continuidade às narrativas de Enéias, desfi ando
o itinerário difi cultoso do herói, digno da Odisséia: viagens pelo mar, pestes,
tempestades, errâncias, profecias sombrias, morte do pai, nova tempestade,
desvio de rota... O Livro IV mostra os amores de Enéias e Dido, com o herói
vendo-se obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu destino. O
desdobramento de amor e fuga de Enéias leva Dido à morte, origem míticopoética
dos desentendimentos futuros entre Roma e Cartago. Aqui se dão
as três principais perdas de Enéias: a pátria, a esposa e o pai.
II. Rituais (Livros V-VIII): Os rituais revelam o rito de passagem de Enéias
em busca do pai e da pátria. Primeiro, os ritos fúnebres com que ele celebra
o pai, no Livro V, com os jogos na Sicília, em Drépano, após um ano da
morte de Anchises; em seguida, no Livro VI, Enéias faz a Catábasis (descida
ao inferno para o reencontro com o pai, que o aconselha e mostra o futuro
glorioso de Roma), num ritual de conhecimento e clarifi cação do destino,
e a Anábasis, subida de volta ao mundo dos vivos para encontrar a pátria,
143
144
ritualisticamente encontrada no Livro VII, na chegada ao Lácio, após o
cumprimento da sombria profecia de Celeno (Livro III), de que os troianos,
de fome, comeriam as próprias mesas. É aí que se dá o rito fundador, com a
invocação aos deuses: deuses do local, Ninfas, Rios e cursos d’água, Noite,
Júpiter do Ida, a mãe frígia Cibele, sua mãe celeste Vênus, e o pai Anchises,
que se encontra no Érebo, nos Infernos. A este ritual, Júpiter responde
com três trovões, aprovando e confi rmando o destino do herói, que passa
a demarcar a terra prometida, já construindo uma fortifi cação (Livro VII,
versos 137-159). Finalmente, a transição que se opera no livro VIII, transição
que vai da aliança com o Arcádio Evandro, que passeia com o troiano sobre
o sítio da futura Roma, ao recebimento das armas forjadas por Vulcano, em
que se anuncia, ainda uma vez a glória de Roma, futura senhora do mundo.
É este o momento em que Enéias põe termo aos ritos e revela-se um rei
pronto para a guerra de conquista do novo reino.
III. Combates (Livros IX-XII): Tendo adquirido a têmpera necessária e feitas
as alianças indispensáveis com o Arcádio Evandro (Livro VIII) e o Etrusco
Tarcão (Livro X), Enéias parte para a guerra contra Turno, rei dos Rútulos.
No primeiro grande embate, Enéias mata o cruel Mezêncio, no Livro X; no
segundo grande embate, morre Camila pelas mãos de Arrunte, no livro
XI; por fi m, Enéias mata Turno, no Livro XII. A posse da terra é também
a posse da mulher, Lavínia, em cuja homenagem ele colocará o nome do
reino – Lavínio. Está formada a base para a construção da futura Roma. Em
suma, mito fundador, Enéias perde a pátria e o pai, para, reencontrando o
pai, ser o pai da nova pátria (vejam-se, no Livro I, os versos 555, 580 e 699, e
no Livro III, o verso 716, em que Enéias é chamado de Pater, pai.). É verdade
que o poema termina de maneira abrupta com a morte de Turno por Enéias,
não se vendo, portanto, a fundação de Roma, sequer do reino Lavínio. No
decorrer do poema, contudo, anuncia-se a cada passo o destino de Enéias,
vinculado à fundação da Roma gloriosa, senhora do Mediterrâneo, no início
da sua glória, e senhora do mundo com Augusto.
4.2 O Livro I da Eneida – Fim das Provações pelo Mar
Georges Dumézil se refere aos últimos seis livros da Eneida como presididos
pelos “Fata fermés” ou destinos fechados (1995: 365-387). Ele considera que
Enéias só verá com clareza o seu destino, após fazer a anábasis, a subida do
inferno, voltando para o mundo dos vivos. Tendo visto no mundo das sombras
a glória da futura Roma, apresentada pelo seu pai Anchises, Enéias se apressa a
voltar às naus e juntar-se aos seus companheiros. Os destinos são fechados para a
maior parte dos personagens, que serão levados ao aniquilamento, como é o caso
de Evandro (cujas esperanças estão depositadas no fi lho Palante), Palante, Lausos,
Camila, Mezêncio e Turno.
No que diz respeito a Enéias, seu destino será confi rmado pela profecia de
Fauno, pai de Latino, e de um arúspice a Evandro, a quem Enéias vai pedir ajuda.
Além do apoio de Evandro, Enéias vai contar com a ajuda dos Etruscos de Tarcão,
que querem vingança de Mezêncio e de suas crueldades. Na profecia de Fauno,
a fi lha do rei Latino deverá ser dada em casamento a um estrangeiro; na do
arúspice, as tropas contra Mezêncio devem ser comandadas por um estrangeiro.
Para chegar a esta clareza, no entanto, Enéias faz um caminho tortuoso, narrado
nos primeiros quatro livros da Eneida, o caminho das provações. Vamos fazer um
breve estudo do Livro I para podermos entender as provações do herói.
Para o leitor que não se dá conta de que está diante de uma estrutura
narrativa in medias res, este Livro I da Eneida seria o início das provações de
Enéias, com a tempestade desencadeada por Éolo a pedido de Juno, perseguidora
do herói troiano. O verdadeiro início das provações, contudo, acontece bem antes,
com a queda de Tróia, mas o leitor só o conhecerá com o fl ash-back proporcionado
pelo herói, nos Livros II e III. Abrindo com o proêmio – misto de invocação e
proposição –, o Livro I nos apresenta o argumento do poema, dirigindo a uma
leitura que não pode desconsiderar a ação do destino. Assim é que o herói Enéias
nos é apresentado, compelido à fuga de Tróia pelo destino, exilado da pátria pela
ação do destino – fato profugus (v. 2) 4 e assinalado pelos deuses por sua piedade
– insignem pietate uirum (verso 10). Sua missão é chegar à Itália, nas terras da
Lavínia e ali construir os altos muros da futura Roma.
A narração já nos mostra Enéias em meio à tempestade, perseguido
pela cólera de Juno, ressentida com fatos passados e temendo fatos futuros.
Ainda irada com a escolha de Páris, no julgamento do Monte Ida, e com o
rapto do troiano Ganimedes por Zeus – fatos passados –, Juno continua com o
seu propósito de acabar com os troianos, sobretudo, após saber que se Enéias
fundar uma nova Tróia, isto será a causa da perdição de Cartago, a cidade por
ela protegida e que está sendo erguida por Dido na costa da África do Norte, na
Líbia de então (versos 12-33) 5 . Cartago é o fi m da errância custosa a Enéias e sua
gente, antes de atingir o Lácio:
(Juno) distanciava (os troianos) para bem longe do Lácio, por muitos anos
e (os troianos) erravam por causa dos fados por todos os mares em torno.
Tamanha difi culdade era fundar a nação Romana. (I, versos 31-33)
Este primeiro capítulo é proléptico, contando com algum fl ash-back sobre a
guerra de Tróia. A prolepse mais importante é a referente ao destino de Enéias,
com Júpiter predizendo e reafi rmando a Vênus a missão de Enéias como mito
fundador, que dará aos homens leis e muralhas; e a glória da futura Roma. Os
destinos dos troianos, portanto, permanecem imutáveis, nada fará com que o
Deus mude suas decisões: Enéias reinará no Lácio por três anos, após submeter
os rútulos, fundando o Reino de Lavínio; Iulo reinará trinta anos após Enéias,
fundando o reino de Alba Longa; por trezentos anos reinarão os troianos
até o nascimento de Rômulo e Remo, que irão fundar Roma. Ciente do seu
destino e dos trabalhos que irá enfrentar, Enéias exclama ao deparar-se com o
formigamento da construção de Cartago:
Ó afortunados, dos quais as muralhas já surgem! (I, verso 437)
Na continuidade da prolepse, o narrador nos conta da dominação da Grécia
por Roma. Oprimida pela casa de Assáraco, o fi lho de Tros, de cuja linhagem
sairão Anchises e Enéias, a Ftia, a ilustre casa de Micenas e a vencida Argos,
ironicamente serão subservientes aos Troianos outrora derrotados. Conclui-se
essa prolepse com a expansão do Império Romano, com César, e o período da Pax
Romana, com Augusto (versos 257-296) 6 . Roma será um império sem limites e sem
fi m:
4 Todas as citações da
Eneida são da edição
da Les Belles Lett res,
de Paris, constante da
bibliografi a. As traduções
do latim e do grego são
nossas, salvo quando
forem devidamente
referenciadas.
Esclarecemos também
que as traduções são
operacionais, com o
sentido de entender o
texto no seu original, sem
pretensões poéticas.
5 Hoje Tunísia.
6 Analisaremos este trecho,
mais minuciosamente,
em seguida.
145
146
A estes eu não fi xo limites nem tempo:
Um império sem fi m eu lhes dei (I, versos 278-9).
A prolepse da narrativa, no entanto, não se dá apenas com o futuro glorioso
de Roma. Ocorre também com o amor de Enéias e Dido, fato que acontecerá no
Livro IV. A partir dos versos 667 e seguintes, prepara-se este amor, quando, por
ocasião do banquete a Enéias, seu fi lho Ascânio é trocado, numa intervenção de
Vênus, por Cupido, para insufl ar a paixão em Dido, que fi cará desde já embebida
de um amor que lhe trará a infelicidade (I, verso749):
E a infeliz Dido bebia um longo amor.
Como sabemos, este Livro I é a chegada de Enéias em Cartago, onde
terminam as suas provações pelo mar, o que denominaremos de rito iniciático. O
fi nal das provações se dará em dois momentos, no templo de Juno e no banquete
a Enéias, oferecido por Dido. Nas paredes do templo, que está sendo construído
em homenagem a Juno, Enéias vê cenas da guerra de Tróia, que o levam às
lágrimas. A Fama já havia difundido o infortúnio dos troianos em todos os
recantos do mundo:
Parou e chorou: “Em que lugar” perguntou “Achate,
Que região na terra não está cheia de nossas dores?”
(I, v. 459-460)
Das cenas vistas por Enéias se destacam: Príamo e Aquiles irritado contra os
atridas (A irritação de Aquiles contra os atridas, e mais especifi camente Agamêmnon,
é o tema do Canto I da Ilíada); recuo dos gregos ante os troianos (o que acontece na
Ilíada até o Canto XVI); recuo dos troianos ante Aquiles (Ilíada, a partir do Canto XX);
morte do rei Rheso da Trácia (Ilíada, Canto X); morte de Troilo ante Aquiles (Ilíada,
Canto XXIV, segundo relato de Príamo); dor das mulheres troianas (Ilíada, Cantos
XXI-XXIV); morte, ultraje e resgate do corpo de Heitor (Ilíada, Cantos XXII-XXIV) e
a luta de Pentesiléia, rainha das Amazonas, aliadas dos troianos, morta por Aquiles
(Pós-Homérica, de Quinto de Esmirna, episódio fora da Ilíada).
O segundo momento, que determina o fi m das provações, é uma espécie de
catarse de Enéias, quando instado por Dido a narrar as suas aventuras, o que se dá
nos dois Livros seguintes. Enéias fala da queda de Tróia, da perda da esposa (Livro
II) e de sua errância, por terra e por mar, momento em que perde o pai (Livro III).
Enéias tem consciência das provações (I, v. 198-207), alerta os seus companheiros
para o fato, mas não perde a esperança de dias melhores, prometida pelo destino:
Por vários acasos, por um sem grande número de perigos
Dirigimo-nos para o Lácio, onde os fados um domícilio aprazível
Acenam; ali as leis sagradas nos permitirão ressuscitar o reino de Tróia.
Tende paciência, e conservai-vos para as coisas favoráveis
(I, versos 204-207).
A análise de um trecho específi co do Livro I nos dará a consciência da
estrutura triádica do herói Enéias. Trata-se dos versos 223 a 296, em que se
observa a reafi rmação do destino de Enéias para a glorifi cação de Roma.
Sabemos que na Eneida, o destino de Enéias é fechado7 , pois se trata de um
destino bom: o herói está determinado pelos deuses a fundar uma cidade tão
gloriosa quanto Tróia recém-destruída e assim perpetuar a progênie de Dárdano
e a casa de Assáraco. Impelido, portanto, pelo fado – fato profugus –, Enéias se
lança ao mar com os Penates de Tróia, em busca do lugar prometido e anunciado
por Creúsa, sua esposa, que, no momento da destruição de Tróia, desaparece e,
posteriormente, reaparece-lhe na condição de simulacro, para lhe falar das terras
da Hespéria, onde à beira do Tibre opulento o aguardam a fortuna e uma esposa
real. Após várias errâncias pelo mar, Enéias chega à costa da África, apesar da
perseguição da deusa Juno (Hera), ainda ressentida com os troianos desde o
julgamento do Monte Ida – este apenas um dos motivos –, quando sua beleza foi
preterida por Páris, em favor de Vênus (Afrodite).
Salvo por Netuno da tempestade desencadeada por Éolo a mando de Juno,
Enéias consegue aportar na Líbia e assim escapar do naufrágio. A sua chegada,
última provação do herói no mar, é observada por Júpiter (Zeus), pai dos deuses,
a quem coube determinar o destino de Enéias. Estamos no Livro I da Eneida,
mais ou menos no seu primeiro terço8 . É nossa intenção montar a estrutura e
desenvolver a análise de um trecho de 73 versos, compreendido entre os versos
223 e 296 deste Livro I.
O trecho pode ser divido em dois momentos: a queixa de Vênus a Júpiter
(versos 223-253) e a confi rmação do destino de Enéias (versos 254-296). O primeiro
momento é bem simples, pois se resume exatamente à queixa de Vênus a Júpiter,
intercedendo pela sorte de seu fi lho Enéias, cobrando ao pai a promessa feita:
os romanos, nascidos do sangue reanimado de Teucro, seriam os senhores do
mundo:
É daí, sem dúvida, que, no curso dos anos, outrora prometeste,
(nasceriam) os Romanos; do sangue reanimado de Teucro
deverão surgir os senhores que manterão com toda soberania
o oceano e as terras: que pensamento, pai, te mudou? 9
(I, 234-237)
Embora Vênus saiba que o destino de Enéias vai se cumprir – é determinação
do pai Júpiter –, as provações tantas por que Enéias já passara (o que só vamos
conhecer com a narrativa em fl ash-back dos Livros II e III) não foram sufi cientes
para conduzi-lo a seu termo. O mundo inteiro teria se fechado com a tempestade
de Juno, proibindo o herói de chegar à Itália (I, verso 233).
Sabemos que todas as provações são necessárias para a formação do
herói, fazendo parte, portanto, de seu rito de passagem, Vênus não teria, pois,
que questionar Júpiter sobre as determinações já conhecidas. Mas as razões de
mãe são sempre de ordem emocional... No questionamento a Júpiter, Vênus
compara a sorte de Enéias à de Antenor. Este troiano, para muitos um traidor,
conseguiu escapar da destruição de Tróia e chegar sem perigos ao norte da Itália,
onde fundou Pádua no vale inferior do rio Pó, ali vivendo em tranqüilidade. A
comparação que mostra o sucesso de Antenor e os fracassos de Enéias tem sua
razão de ser. Antenor não é de raça divina, Enéias é. Como permitir a um simples
mortal, visto por muitos como traidor da pátria, sem ter sido assinalado pelos
deuses, ter êxito na sua fuga e viver em paz? Enéias além de ser duplamente
7 Ver DUMÉZIL, Georges
(1995: 365): “A longa
noite de Tróia, os anos
de incerta navegação, os
oráculos e os milagres,
a tentação púnica
evitada, tudo teve um
sentido: reconduzida a
sua origem ausoniana,
a realeza de Príamo vai
refl orescer sobre esta
terra prometida enfi m
tocada, a Itália.”
8 O Livro I tem 756
versos.
9 A tradução, apenas
operacional, é nossa.
147
10 Neste Livro I, ainda há
outras duas ocorrências
do epíteto nos versos 305
e 378.
148
divino – fi lho de Vênus e neto de Júpiter – foi designado pelo Destino para
cumprir uma missão gloriosa. Trata-se de um herói em sua plenitude, escolhido
pelos deuses (leia-se Júpiter) para perpetuação de uma raça e, mais ainda, para
a construção de uma nova Tróia, desta feita com a devida anuência divina. Bem
ao contrário da outra Tróia que fora destruída por ter sido construída no erro e
por nele ter persistido. Mito civilizador, que expande a civilização troiana para
o Ocidente, Enéias deve ter suas provações de viagem terminadas, pois já se
mostrou pio o sufi ciente para merecer chegar ao termo do seu destino. É chegada
a hora de ver realizada a promessa à prole – a entrada na alta morada do céu (I,
verso 250) e a recompensa pela piedade (I, verso 253) – com a retomada do cetro e
a reconstituição da realeza troiana, a partir de Enéias (I, verso 253).
É neste pequeno fragmento que se revela, de modo inequívoco, o confl ito
entre Vênus e Juno. Esta persegue, aquela protege Enéias. Este embate será
vencido temporariamente, de modo ardiloso por Vênus, no Livro IV, quando do
acordo entre as duas deusas para unir Enéias a Dido. Vênus acha lamentável,
terrível mesmo (infandum!, verso 251) que os troianos tenham que padecer, sendo
abandonados com seus navios pela cólera de uma única divindade.
É importante observar que deste pequeno fragmento de trinta versos,
pelo menos três idéias fundamentais para a compreensão da Eneida surgem.
A primeira é a noção de que os deuses, mesmo interferindo na trajetória do
herói, podendo até retardar o cumprimento do destino, não podem mudar
o determinado pelo destino. Enéias sofreu todas as provações possíveis e
imagináveis, mas seu destino será cumprido. A segunda é a idéia de que o
herói tem uma contrapartida a apresentar pelo destino bom que o aguarda. Não
é porque o destino será cumprido que o herói não deva mostrar-se merecedor
dele. As provações de Enéias são a sua preparação, seu rito de passagem para a
condição do herói civilizador. É isto o que representa o recebimento das armas
fabricadas por Hefestos, no Livro VIII da Eneida. A terceira idéia está ligada a um
conceito religioso caro aos romanos: a piedade (pietas). A piedade de Enéias já
se encontra na Invocação do poema (v. 10); o epíteto por que Enéias deverá ser
conhecido, pius Aeneas, o piedoso Enéias, incansavelmente repetido ao longo da
narrativa, já se encontra no verso 220 deste Livro I10 .
De acordo com Pierre Grimal (1981: 73), a pietas era uma atitude que
consistia em observar escrupulosamente não somente os ritos, mas também as
relações existentes entre os seres no universo. Inicialmente, tratava-se de uma
espécie de justiça do mundo material, capaz de manter as coisas do mundo
espiritual no seu lugar ou de remetê-las para lá, cada vez que algo de natureza
acidental pudesse provocar a desarmonia, portanto a injustiça. Grimal faz ainda
uma leitura etimológica do termo pietas, apontado uma relação estreita com o
verbo piare, que designa uma ação de apagar uma mancha, um mau presságio,
um crime (1981: 73).
Ora, Enéias é piedoso, pois a sua atitude é de temente e obediente aos
deuses, e de cumpridor dos rituais sagrados, atitude devidamente comprovada
no curso da narrativa – veja-se o ritualístico Livro V, por exemplo –, mas já
testada no Livro II (versos 717-720), quando o herói se recusa a levar em suas
mãos os Penates de Tróia, pois se encontrava sujo de poeira e sangue da guerra
travada contra os invasores argivos. Impuro, ele se encontrava proibido de tocálos
(me.../ att rectare nefas, versos 718-719). É, pois, na condição de piedoso, que
Enéias deveria fundar uma nova Tróia, limpando a anterior de sua mancha, do
seu erro, assunto a que voltaremos mais adiante.
Constatamos, portanto, que este pequeno trecho das queixas de Vênus nos
apresenta duas das três partes estruturais da Eneida: as provações e os rituais
advindos da piedade. A terceira parte – as guerras – será apresentada no trecho
seguinte, o da resposta de Júpiter.
A segunda parte do trecho, a confi rmação do destino de Enéias (I, versos 254-
296), nos revela uma complexidade muito maior, pois Virgílio na composição
do seu poema utiliza-se substancialmente da história de Roma. Logo de início,
vemos o resultado da missão de Enéias, como uma forma de Júpiter tranqüilizar a
angústia da fi lha, para depois nos ser mostrado o roteiro que levará ao fi m dessa
missão. Tranqüilidade expressa num rosto que serena o céu e as tempestades
(uoltu, quae caelum tempestatesque serenat, verso 255), prometendo que os destinos
dos descendentes de Vênus permanecem imutáveis (manent immota fata, versos
257-258) e que a deusa verá surgirem os muros da cidade e ela mesma elevará
Enéias aos astros do céu (feres ad sidera caeli/ magnanimum Aeneam, versos 259-
260). Aqui se confi rma o Enéias empreendedor, fundador de cidades. Mais
abaixo, veremos, na revelação dos arcanos do Destino, o Enéias guerreiro que fará
grande guerra na Itália, domando povos ferozes, além do Enéias empreendedor e
sacerdote, pois dará leis e cidades aos homens. Não é sufi ciente que o herói seja
apenas um mito fundador, ele deve ser um mito civilizador, cabe-lhe, portanto
introduzir a civilização, o que se fará através das leis, na Península Itálica:
Este à Itália levará grande guerra, os povos ferozes
aniquilirá e estabelecerá leis e muralhas aos homens
Itália Antiga (Tito-Lívio, História de Roma)
(I, versos 263-264)
149
11 A condição de Vestal
exigia da sacerdotisa a
castidade. Este foi um
expediente de Amúlio,
após matar os fi lhos
homens do irmão
Numitor. Impondo o
sacerdócio à sobrinha,
ele não teria que se
preocupar com uma
linhagem masculina
que pudesse tirá-lo
do poder. Vesta era
uma deusa romana,
identifi cada com
a grega Héstia, é a
personifi cação da
Lareira (sempre no
centro, seja do altar,
da casa ou da cidade).
Protetora do fogo
sagrado, Vesta teria
sido introduzida no
Lácio por Enéias (v.
Livro II da Eneida,
versos 296-297). Numa
também lhe erigiu
um templo, com fogo
perene e inextinguível
(v. Ovídio, Fastos, 6,
255-298). Tito Lívio nos
mostra Numa Pompílio
como rei virtuoso
que escolhe jovens
donzelas obrigadas
à castidade para o
serviço de Vesta e lhes
dá um tratamento pago
pelo estado (I, XX: 1-3).
12 Destrona o irmão, mata os
sobrinhos homens e obriga a
sobrinha a ser vestal (Tito
Lívio, I, III: 10-11).
13 Rhea Silvia engravida de
Marte e dá à luz gêmeos,
expostos no leito do
Tibre, aleitados por uma
loba e criados pelo pastor
Faustulus (Tito Lívio, I,
IV:1-9)
150
Enéias terá um reinado curto, após a submissão dos Rútulos, o que ocorrerá
após a morte de seu rei, Turno (V. Livro XII), não nos permitindo ver a fundação
de Roma, distante da fundação do reino de Lavínio por Enéias cerca de 350 anos.
Assim como não vemos a morte de Aquiles e a destruição de Tróia na Ilíada, fatos
apenas anunciados a cada passo da narrativa, também não veremos a construção
e fundação de Roma, na Eneida, embora isso também seja anunciado ao longo da
narrativa. Vejam-se os Livros VI e VIII, por exemplo.
A descendência de Enéias está garantida através de Iulo, seu fi lho, fundador
de Alba Longa, onde reinarão seus descendentes e de onde surgirá Roma. A
construção de Roma virá com Rômulo, fi lho de Marte com Rhéia Sílvia ou Ília.
Corrigindo uma usurpação – o trono tomado por Amúlio de seu irmão Numitor
–, o deus Marte se une a Rhéia Sílvia, sacerdotisa Vestal11 obrigada pelo tio
Amúlio, e ela dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo. Uma vez adultos, os rapazes se
descobrem netos de Numitor, matam Amúlio e restituem o reino de Alba Longa
ao avô. Agraciados com um pedaço de terra cada um (Rômulo no Palatino e Remo
no Aventino), a Rômulo cabe fundar a cidade, orientado pelo augúrio dos doze
abutres (Veja-se a seguir a genealogia do Rômulo e Remo, o mapa das colinas de
Roma e o mapa da Roma dos primórdios).
13
Mapa das colinas de Roma (Tito-Lívio, História de Roma)
12
Mapa da Roma dos primórdios (Tito-Lívio, História de Roma)
O importante é ver como Rômulo é apresentado nessa prolepse de Júpiter
– ele receberá a nação, construirá as muralhas mavórcias e dará seu nome aos
romanos (I, versos 276-277). Rômulo consulta, recebe e interpreta os augúrios,
tendo por isto recebido com a anuência divina a cidade, o que lhe confere
a função sacerdotal; ele constrói as muralhas e dá nome ao povo, o que lhe
confere a função empreendedora, por fi m, as muralhas são guerreiras: muralhas
mavórcias, de Marte, o que lhe confere a função guerreira. Deste modo, há uma
perfeita simbiose entre Enéias e Rômulo, desempenhando ambos as três funções
do indo-europeu – Sacerdote, Guerreiro e Empreendedor.
A Eneida, podemos dizer, acompanha esta estrutura do indo-europeu, vez
que é possível dividir o poema em três momentos: as provações, os rituais e as
guerras, com Enéias desempenhando as três funções. Se não vemos a fundação de
Roma, mas acompanhamos a fundação de várias cidades pelo herói (v. Livros III,
IV, V e VII).
A glória de Roma nos aparece apresentada em prolepse por Júpiter a Vênus
entre os versos 278 e 296. Dentro do espírito da Roma imperial em que Virgílio
vivia, é natural que se cresse na glória perpétua do grande império que começava
a ser construído por Augusto. A Eneida, a um só tempo, se refere ao passado e
ao presente, numa exaltação do imperador Otávio Augusto, reconhecendo as
151
14 A esse respeito se
pronuncia André
Bellessort, na introdução
que prepara para a
edição da Eneida da Les
Belles Lett res, traduzida
por ele (VIRGILE, 1952:
VIII): “Virgile tourné
vers le passé évoque
l’origine divine de cett e
Rome maîtresse des
nations et se tournant
vers l’avenir en proclame
la pérennité” (Virgílio
voltado para o passado
evoca a origem divina
desta Roma senhora das
nações e se voltando para
o porvir proclama sua
perenidade).
152
mudanças por que passara Roma desde o fi nal do segundo triunvirato, com a
vitória de Otávio sobre Marco Antônio em Actium (31 a. C.) 14 , ligando-o à fi gura
de Rômulo, fundador da cidade. Augusto aparece como novo fundador de Roma,
permitindo um tempo de paz e prosperidade. Assim, Enéias surge como a ligação
entre os dois – Rômulo e Augusto – nas suas funções triplas de rei guerreiro, rei
sacerdote e rei empreendedor. Observe-se que, assim como Enéias, Augusto perde
o pai, perde a nação, para ser o reconstrutor de uma nova nação e, portanto, ser o
pai dessa nação.
A fala de Júpiter, portanto, não deixa a menor dúvida sobre esse destino
glorioso – aos romanos não ponho limites nem tempo para as conquistas: dei-lhes
um império sem fi m (I, versos 278-279). Os romanos, gente togada, devidamente
já favorecidos por Juno, dobrada pela força da pietas, serão os senhores do mundo
(rerum dominos, verso 282 ). Mais do que promessa de Júpiter, este é o seu desejo –
sic placitum (I, verso 283).
Um dos momentos mais importantes do trecho em estudo é o que trata
da dominação da Grécia por Roma, numa ironia do destino, invertendo as
proposições: os antigos troianos, derrotados pelo exército de coalizão comandado
por Agamêmnon, que tinha em Aquiles o seu guerreiro mais temido, agora
dominarão a Grécia, através da descendência que fará surgirem os romanos.
Assim é que a casa de Assáraco manterá em servitude a Ftia e a ilustre Micenas, e
dominará os Argivos vencidos (I, versos 283-285).
Enéias é proveniente da casa de Assáraco e não da de Laomedonte. Se Zeus
e os deuses têm raiva de Laomedonte, por sua impiedade, e de seu fi lho Príamo
por permitir a impiedade, os provenientes de Assáraco, no caso Enéias e seus
descendentes e protegidos, serão os escolhidos para a fundação da nova Tróia sob
os auspícios dos deuses, por causa da piedade de Enéias. A piedade de Enéias já
é conhecida desde a Ilíada (Canto XX, 292-308), quando Posídon o salva das mãos
de Aquiles. A justifi cativa é que Enéias não tem que morrer pelos outros, vez que
o herói tantos presentes ofereceu aos deuses do vasto céu. Para que o destino se
cumpra, é imperioso salvar Enéias. Eis o mote para Virgílio escrever a Eneida.
Por sua vez, Laomedonte, pai de Príamo demonstra sua natureza ímpia
ao negar o pagamento prometido a Apolo e a Posídon pela construção das
muralhas de Tróia. Príamo aceita que o fi lho, Páris, traga para casa uma mulher
casada, Helena, após o fi lho ter violado o laço sagrado da hospedagem, que
lhe foi concedida por Menelau. A falta é grave, pois atinge diretamente a Zeus
Hospedador. Aceitando a falta do fi lho, a mancha recai sobre todos os habitantes.
A contaminação de Páris atinge a todos, por não ter sido repudiado por Príamo.
O erro de um, não combatido, torna-se o erro de todos. Some-se a isto o fato de
que Tróia foi construída por Dárdanos (a cidadela) e Ilos (a cidade) sobre a colina
onde, jogado por Zeus do Olimpo, caiu o Erro, temos todas as condições para a
destruição de Tróia. Nascida do erro e tendo permanecido no erro, a cidade deve
ser destruída.
Enéias, tendo nascido da casa de Assáraco, longe, portanto, da mancha
de Laomedonte e de Príamo é o escolhido para fundar a nova cidade com a
aquiescência dos deuses. É por isto que Creúsa não pode seguir Enéias, quando
da fuga de Tróia. O herói deve cortar todos os laços com os da raça de Príamo
e de Laomedonte, independente de sua vontade. A rejeição dos deuses à ida de
Creúsa com Enéias simboliza a rejeição à descendência de Príamo, na fundação
da nova cidade por Enéias (Livro II, versos 776-779). Da progênie de Enéias
nascerão os que oprimirão os antigos opressores de sua raça: Roma dominará
sobre a Grécia para ser a senhora do mundo.
No primeiro “Hino a Afrodite”, datado do fi nal do século VII a. C., a
deusa do amor anuncia a Anquises, seu amante naquela ocasião, que dela ele
terá um fi lho que reinará sobre Tróia, cuja descendência será continuada com o
nascimento de fi lhos e de fi lhos dos fi lhos. Seu nome será Enéias, diz a deusa,
porque uma atroz angústia a confrange por ter-se deixado cair no leito de um
mortal (HOMÈRE, 1936, versos 196-199). Enéias, pois, está fadado pelo aviso
da mãe, a ser o rei de Tróia. Virgílio o que faz é contar com a tradição homérica
da Ilíada aliando-a ao anúncio do “Hino Homérico a Afrodite”. Juntando essas
peças e atribuindo a pietas ao herói, eis a razão da Eneida: mostrar a supremacia
de Roma sobre o mundo, Roma, em cuja origem teve um herói piedoso15 (Veja-se
a seguir a genealogia troiana).
Com os olhos voltados para a sua época, Virgílio não poderia deixar de mostrar
a importância da Gens Iulia, a família Júlia, inicialmente, vinculando Júlio César a
Iulo, fi lho de Enéias. A extensão do império romano, apenas limitado pelo oceano,
mas com a fama chegando até os astros, dever-se-á a Júlio César, divinizado após
a morte e recebido nos céus pela própria Vênus 16 . Depois, mostrando o tempo de
Augusto e a paz estabelecida pelo seu governo:
Então os duros séculos, com as guerras cessadas, amansar-se-ão;
a Fé encanecida e Vesta, Remo com o irmão Quirino
darão as leis; e com as junturas estreitadas por ferro
as terríveis portas da Guerra fechar-se-ão; dentro o Furor ímpio
sentado sobre armas selvagens e apertado nas costas
por cem nós de bronze, horrível, fremirá com a boca ensangüentada
(I, versos 291-296).
A Augusto cabe a honra de fazer um governo próspero, proporcionado pela
paz 17 . A condição da paz, no entanto, depende do respeito aos ritos religiosos e
15 Veja-se Grimal, falando
de Virgílio: “C’est parce que
la race romaine avait été
fondé par um héros juste
et pieux que Rome avait
reçu l’empire du monde”
(1981: 167) – Porque a raça
romana foi fundada por
um herói justo e piedoso,
Roma recebeu o império
do mundo
16 Grimal nos informa
que César foi a última
divindade instalada
pelo povo romano no
Fórum. No local em que
seu corpo foi queimado,
construiu-se uma coluna
de mármore e um altar.
Um dos primeiros atos
de Otávio, após tomar a
responsabilidade como
herdeiro de César, foi
proclamar ofi cialmente
a divinização do
“mártir”. Otávio ainda
fez construir um templo
diante do local onde
foi a pira de César,
consagrado ao novo
deus, Diuus Iulius (1981:
232).
17 Grimal se refere a um
altar da Paz dedicado
a Roma por Augusto,
em 9 a. C., cuja frisa
imortaliza no mármore a
cerimônia da dedicatória.
Diz Grimal: “On y voit
l’Empereur avec sa
famille, les magistrats,
les prêtres, le Sénat,
allant em procession
accomplir le sacrifi ce aux
dieux” (Vê-se na frisa
o Imperador com sua
família, os magistrados,
os sacerdotes, o Senado,
indo em procissão
cumprir o sacrifício aos
deuses. GRIMAL,1981:
183)
153
18 Tito-Lívio (I, XXI:
4-5) apresenta Numa
Pompílio instituindo
uma festa solene para
a Fides, no dia 01 de
outubro. Numa Pompílio
sucedeu Rômulo, no
período de 717 a 673,
quando foi rei (Tito-
Lívio, I, XXI: 6). Foi com
Numa que os romanos
adquiriram uma sólida
reputação de pietas e
construíram um altar à
Fides, fundamento da
vida social e também das
relações internacionais,
na medida em que Fides
implica a substituição
das relações de força
pelas relações fundadas
sobre a confi ança mútua
(Grimal, 1981: 18)
19 É a aparição de Rômulo
a Proculus Julius, após
a sua apoteose, que
confi rma a condição
divina de Rômulo e a
condição de Roma como
senhora do mundo: “Abi,
nuntia, Romanis caelestes
ita uelle ut mea Roma
caput orbis terrarum”
– “Vai, anuncia aos
romanos a vontade
celeste que minha Roma
(seja) senhora de todo o
mundo” (Tito Lívio, I,
XVI: 5:8). Quirino forma
uma tríade com Júpiter
e Marte (depois será
substituído por Minerva).
Deus guerreiro,
assimilado a Rômulo,
após a sua apoteose
154
dos elos familiares, que tão bem caracterizavam a cultura romana da época. A
paz augusta, para Virgílio tem uma lei estabelecida pela Fidelidade (Fides), a
personifi cação da Palavra Dada, representada por uma mulher idosa, de cabelos
brancos, mais velha do que Júpiter. Grimal a caracteriza como o respeito à
palavra, fundamento de toda a ordem social e política (Grimal, 2000) 18 . Ainda
para Grimal, a Fides é uma das manifestações mais primitivas da Pietas romana,
aparecendo como o respeito aos compromissos (1981: 74). Virtude cardinal
romana, a confi ança substitui a força pela clemência, reconhecendo o direito de
todos os homens “de boa fé” à vida, mesmo se a sorte das armas lhes havia
sido contrária (1981: 75). A Virtus como disciplina das emoções e controle de
si mesmo; a Pietas como respeito mútuo aos rituais religiosos, e a Fides como
fi delidade aos compromissos constituíram a trilogia do ideal da moral romana,
para a defesa e garantia do grupo social, seja a família, seja a cidade, como diz
Pierre Grimal (1981: 75). A seguir, veja-se a frisa do altar à Paz, erigido por
Augusto.
Frisa do altar à Paz (Museu do Louvre)
Vesta, a deusa do fogo sagrado, seja do altar do lar ou da cidade, também
é responsável pela paz, juntamente com Quirino, a divinização de Rômulo 19 ,
agora em concordância com o irmão, Remo. A união da família em torno do fogo
sagrado representa a união mesma da cidade. As desavenças do início da cidade
devem ser postas de lado, em proveito do bem comum 20 . Os três deuses elencados
por Júpiter correspondem às três funções do indo-europeu, aglutinadas em favor
da paz:
Fides = Firmeza e empenho da Palavra Dada, razão para o progresso (paz);
Vesta = Proteção divina da casa e da cidade pelo fogo purifi cador (paz)
Quirino e Remo = guerra conciliada (paz)
Com o templo da guerra fechado 21 e o Furor ímpio aprisionado, Roma
dominará sobranceira sobre os povos, pela força da confi ança e da lei. Este o
sentido apresentado por Anchises a Enéias, na segunda prolepse dos destinos
romanos na Eneida, no Livro VI:
Tu regerás com poder os povos, Romano, lembra-te
(estas serão tuas artes), impor a paz e os costumes,
poupar os sujeitos e debelar os soberbos
(v. 851-853).
Este breve trecho do Livro I da Eneida nos abre a perspectiva de leitura do
poema a partir de uma caracterização do herói Enéias e do seu destino glorioso,
qual seja a fundação das bases de uma grande cidade de onde se originará Roma,
futura senhora do mundo. Enéias na sua caminhada pode ser lido e analisado
pelos epítetos com que é brindado. Sabemos que o epíteto mais comum na Eneida
é pius Aeneas, o piedoso Enéias, o que contribui para a sua caracterização como o
sacerdote, na visão triádica da sociedade indo-européia. Ao lado desse epíteto,
encontramos outro também muito freqüente, pater Aeneas, o pai Enéias, por sua
condição de mito fundador e civilizador, coerente com a visão indo-européia do
rei empreendedor. Por fi m, há outros três epítetos que se unem em um só, para a
formação do rei guerreiro: Aeneas heros, o herói Enéias (Livro VI, verso 103), com
suas variantes Troius heros (o herói troiano, Livro VI, verso 451; Livro XII, verso
502) e Laomedontius heros (o herói Laomedôntio, Livro VIII, v. 18), e ingens Aeneas
(o enorme Enéias, Livro VI, v. 413; Livro VIII, verso 367). Destacando-se também
pela sua estatura física, Enéias combina em si todas as habilidades que o tornam o
grande herói, por cujas mãos nascerá uma grande cidade. Não é gratuito o fato de
ele ser apresentado pela Sibila de Cumas a Caronte, o barqueiro do inferno, como
Troius Aeneas, pietate insiginis et armis (VI, verso 403) – O troiano Enéias, insigne
pela piedade e pelas armas –, confi rmando o verso 10 do Livro I, na primeira
Invocação do poema, insignem pietate uirum – herói insigne pela piedade.
Em nossa leitura da Eneida, percebemos que o herói Enéias aglutina as três
funções da cultura indo-européia identifi cadas por Dumézil (1995): a função
Sacerdotal (Religião); a função guerreira (Guerra) e a função empreendedora
(Riqueza). A partir da estrutura triádica que apresentamos para a Eneida –
Provações (Livros I-IV), Rituais (Livros V-VIII) e Guerras (Livros IX-XII),
podemos constatar como as duas partes iniciais se juntam para mostrar Enéias
em cumprimento da sua função sacerdotal. Nos primeiros oito livros da Eneida,
portanto, o herói é o pio Enéias, temente aos deuses, oferecendo-lhes rituais e
sacrifícios, por eles escolhidos para dar nova pátria aos Penates, sendo guiado
pelos deuses, em especial por Vênus e Apolo, contando com o apoio de Júpiter,
a interferência de Mercúrio e a ajuda de Netuno, para ser o construtor da nova
20 A morte de Remo
por Rômulo, apesar
do fratricídio, marca
simbolicamente a
inviolabilidade futura
da cidade (Grimal, 1981:
12) Segundo Tito Lívio,
após terem recolocado
o avô Numitor no trono
de Alba Longa, Rômulo
e Remo receberam terras
onde foram expostos
para ali fundar, cada um
uma cidade. Rômulo
escolheu o Palatino e
Remo o Aventino, em
busca dos augúrios (Tito
Lívio, I, VI: 3-4). Para
Remo apareceram seis
abutres e para Rômulo,
doze. Começando a traçar
os limites da cidade,
Rômulo é ironizado por
Remo que salta por cima
das muralhas iniciadas,
sendo morto pelo irmão.
Rômulo teria dito: “Sic
deinde, quicumque alius
transiliet moenia mea” –
“assim (pereça) qualquer
um outro que, a partir
de agora, saltar minhas
muralhas” (Tito-Lívio, I,
VII, 1-3).
21 O templo de Jano foi
construído por Numa
Pompílio, segundo Tito
Lívio (I, XIX: 2). Quando
aberto anunciava Roma
em armas; quando
fechado, reinava a paz ao
redor dele.
155
156
Tróia. Mito fundador, pai da pátria, cabe ao pai Enéias, tantas vezes assim
chamado ao longo do poema, a função sacerdotal. Nos últimos quatro livros da
Eneida, Enéias cumpre a sua função guerreira, sendo o herói que conquista a terra
e a mulher, após ser devidamente provado pelos deuses.
Assim como o Livro IV mostra uma transição do Enéias das provações ao
Enéias ritualístico, porém dentro da mesma função sacerdotal, o livro VIII é um
livro de transição entre uma função e outra, pois aí se dá a aliança de Enéias com
Evandro e, posteriormente com Tarcão, que o reconhecem como o prenunciado
pelos deuses para conduzir os destinos do Lácio. Não é por outro motivo que,
nesse Livro, se dá a fabricação de suas armas por Vulcano, o que lhe concede a
condição de herói pronto para as próximas funções – a guerra e a grandeza –, vez
que o trabalho entalhado no seu escudo por Vulcano lhe mostra a grande glória
que seus descendentes terão pela frente.
É emblemático como nesse Livro VIII, Evandro leva Enéias a passear pelos
sítios onde será erigida a futura e gloriosa Roma, deixando entrever a terceira
função, a do empreendimento e da riqueza. Esta relação – a de um troiano
ajudado por um grego a construir a glória da futura Roma, mais tarde dominador
da futura Grécia, é bem sintomática. Enéias e Evandro não apenas se unirão na
guerra contra Turno e Mezêncio. Eles estão unidos pela amizade que Evandro
tinha a Anquises e por serem, de certo modo, da mesma família. Atlas gera duas
fi lhas, Electra e Maia, que se ligarão a Zeus, dando origem, respectivamente à
família de Enéias e à de Evandro. Relações amigáveis que vêm dos antepassados
e se confi rmam no presente para abrir a perspectiva da glória futura. Após
esse reconhecimento de Enéias por Evandro, a celebração da aliança com um
banquete ritualístico marca o fi m dos grandes rituais do herói. É o momento da
apresentação do futuro e da fabricação das armas que permitirão a conquista da
terra para a realização da terceira função.
O início dos combates, no Livro IX, com o cerco dos rútulos aos troianos,
tal como na Ilíada se dá o cerco dos troianos aos gregos, prepara a arrancada de
Enéias à consecução do seu destino. O cruel Mezêncio morre por suas mãos no
Livro X; Arrunte mata a amazona Camila, no Livro XI, e Enéias mata Turno no
Livro XII. Está feito o caminho para a conquista da terra e da mulher. Morto o
inimigo, embora a narrativa ali termine, permanece a perspectiva anunciada a
cada passo da Eneida: a fundação de Roma, tornando-se esta cidade a cabeça do
mundo. Aí se completaria a terceira função, a da riqueza e a da paz, conforme o
prognóstico de Anchises (v. Livro VI).
Desse modo, podemos dizer que Enéias aglutina em si as três funções
– sacerdote, guerreiro e empreendedor – pois, como sabemos, ele é um mito
fundador (v. Livro III). Mais do que isso, ele é o pai da pátria, conforme se
anuncia ao fi nal do Livro III, fazendo o seguinte itinerário: Enéias perde a pátria,
perde o pai, vai à busca do pai, para fundar a nova pátria, sendo, portanto, o pai
da pátria, que será a cabeça do mundo.
Observação: Para a assimilação mais efi caz do conteúdo desta unidade,
recomendamos a leitura do Livro I da Eneida de Virgílio.
Glossário
Anábasis: Movimento ritualístico de subida dos Infernos, realizado por
Enéias no Livro VI da Eneida.
Aventino: Um dos montes sobre o quais Roma foi erigida. O Aventino
coube a Remo.
Cartago: Cidade no norte da África, atual Tunísia. Travou três guerras
contra Roma – Guerras Púnicas – entre os séculos III e II a. C., até ser totalmente
destruída. Fundada por colonos tírios que teriam em seu comando, segundo o
mito, a rainha Dido.
Catábasis: Movimento ritualístico de descida aos Infernos, realizado por
Enéias no Livro VI da Eneida.
Ganimedes: Jovem troiano de rara beleza, fi lho de Tros, raptado por Zeus
(Júpiter) para servir de escanção no Olimpo. Este rapto é um dos motivos por que
Hera (Juno) tem raiva dos troianos e persegue Enéias.
Destinos Fechados: Diz-se do destino que será cumprido, sem que nada
possa alterá-lo. Enéias chegará ao Lácio e fundará as bases da futura Roma.
Ninguém pode alterar tal decisão, nem mesmo os deuses. Juno, por exemplo, o
máximo que poderá fazer é retardar o acontecimento.
Jogos Fúnebres: Jogos realizados em homenagem a um herói morto. Estes
jogos se dão no Livro V da Eneida, em homenagem a Anquises, pai de Enéias.
Lácio: Região na parte ocidental da Península Itálica, às margens do mar
Tirreno e cortada pelo rio Tibre, aonde Enéias chega para fundar a nova Tróia, a
futura Roma.
Líbia: Para a geografi a dos tempos de Virgílio, o norte da África era
praticamente dividido entre a Líbia e o Egito. Quando Virgílio se refere à Líbia no
Livro I da Eneida, devemos entender não a Líbia atual, mas a Tunísia, onde está
situado o sítio arqueológico de Cartago.
Palatino: Um dos montes sobre os quais Roma foi erigida. O Palatino coube
a Rômulo.
Parcas: Irmãs míticas que personifi cavam o destino. Eram conhecidas como
Moiras pelos gregos e se chamavam Cloto, Láquesis e Átropos.
Penates: Deuses protetores do lar e da cidade. Quando Enéias é incumbido
pelos deuses a fugir de Tróia, ele deverá levar consigo os Penates, necessários
para a fundação da nova cidade.
Rito de Passagem: Rito obrigatório na formação do herói. Uma vez pronto,
o herói poderá ser investido nessa nova condição. Após descer aos Infernos e
fazer as alianças com Evandro e Tarcão, Enéias está pronto para receber as armas
fabricadas por Vulcano.
Rito Iniciático: Rito que inicia o herói e o prepara para a sua condição fi nal.
Enéias tem que passar por todas as provações, para poder mudar de status e ser
considerado o novo pai. Com a morte de Anquises e os jogos fúnebres em sua
homenagem, Enéias está pronto para a descida aos Infernos.
Tibre: Rio que corta a cidade de Roma em duas partes. É às margens do
Tibre que Enéias irá fundar a nova cidade, que dará origem a Roma.
Tírios: Colonos oriundos de Tiro, na Fenícia (atual Líbano) para o norte da
África, onde edifi caram Cartago.
Vestal: Sacerdotisa da deusa Vesta, protetora do fogo sagrado. Às vestais se
impunha a castidade.
157
158
Exercícios
1. Leia atentamente o trecho abaixo e disserte sobre o que se pede:
“Houve uma cidade antiga, colonos tírios a edifi caram, Cartago, defronte
da Itália e longe da foz do Tibre, abundante em riquezas e temível pelo seu ardor
guerreiro; diz-se que Juno a amava mais do que todas as outras terras, mais do
que a própria Samos. Lá, em Cartago, estavam suas armas, lá estava seu carro;
já então a deusa tencionava não só favorecer aquele reino, mas também que ele
dominasse os demais, se de algum modo os fados o permitissem. Ela, porém,
ouvira que uma raça oriunda do sangue troiano um dia lançaria por terras as
cidadelas tírias; ouvira que um povo, reinando ao longe e soberbo na guerra,
viria para o excídio da Líbia: assim determinaram as Parcas. Satúrnia, isto
temendo e lembrada da antiga guerra que dirigira, como primeira das deusas,
junto de Tróia, a favor dos seus caros argivos, e também porque as causas da
ira e os cruéis ressentimentos ainda não tinham abandonado sua memória, mas
permaneciam gravados no fundo do coração o juízo de Páris e a afronta da sua
beleza desprezada, e não só a geração odiosa dos troianos mas igualmente as
honras do raptado Ganimedes; infl amada por esses ultrajes, afastava para longe
do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do furor dos Dânaos e do
implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados, andavam errantes, há longos anos,
ao redor de todos os mares. Tanto era pesada a tarefa de fundar a nação romana!
(Eneida, Livro I, tradução de Tassilo Orpheu Spalding)
A que parte da Eneida se refere o trecho? Contextualize.
1.2. Quais os dois povos diretamente envolvidos no trecho e quais seus
respectivos destinos?
1.3. Por que Juno é chamada de Satúrnia?
1.4. Identifi que o povo que ela persegue e explique os motivos da
perseguição.
2. Com base na leitura do Livro I da Eneida, explique por que Enéias é
um mito fundador.
3. Em que termos se dará a sucessão de Enéias?
4. Quando e de que forma se dará o surgimento de Roma?
5. Qual o prognóstico para a glória de Roma?
6. Que grande homem virá de Iulo, quais suas glórias e que período
histórico virá em seguida, conduzido por outro grande homem?
7. Por que o Livro I da Eneida pode ser chamado de proléptico? Dê
exemplo.
8. O que é a estrutura triádica da Eneida?
9. Que deus protege Enéias na confi rmação de seu destino? Dê dois
exemplos.
10. Explique o texto abaixo, contextualizando-o:
“Tal é a minha vontade. Tempo virá, após decorridos muitos lustros, que a
casa de Assáraco oprimirá a Ftia e a ilustre Micenas, e dominará sobre a vencida
Argos. Depois nascerá César, troiano de bela origem, que estenderá seu império
até o Oceano e sua fama até os astros” (Livro I).
Textos
Depois de você ter assistido às aulas, lido os textos, participado das
explicações e dos debates, tente fazer a leitura dos dois textos abaixo, com base
na experiência adquirida da leitura do Clássico.
Lendo a Ilíada
Olavo Bilac
Ei-lo, o poema dos assombros, céu cortado
De relâmpagos, onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternizado
O espantoso poder da argiva gente.
Arde Tróia... De rastos passa atado
O herói ao carro do rival, e, ardente,
Bate o sol sobre um mar ilimitado
De capacetes e de sangue quente.
Mais que as armas, porém, mais que a batalha,
Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha:
– Esse amor que ora ativa, ora asserena
A guerra, e o heróico Páris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.
(Obra reunida; organização e introdução de Alexei Bueno. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.103)
159
160
CONCLUSÕES
Os Lusíadas (Canto I, Estrofe 3)
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fi zeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto um peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Luís Vaz de Camões
(Obra completa; organização, introdução, comentários e anotações de
Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1963,
p. 9.)
Esperamos que durante o processo, possamos acompanhar sua evolução,
caro aluno, com relação à assimilação dos valores do mundo clássico. É
fundamental para uma discussão de uma aprendizagem efetiva que os que
estão integrados a este estudo possam reconhecer a permanência dos elementos
clássicos na nossa cultura. Consideramos que o conhecimento que foi posto à
sua disposição é um caminho que lhe permitirá, caro Aluno, aprofundar seus
conhecimentos sobre o assunto. Estamos conscientes, no entanto, de que são
necessárias mais leituras, por isto mesmo, estendemos a nossa bibliografi a com
autores que consideramos básicos e incontornáveis. Acreditamos que os primeiros
passos foram dados, os demais dependem agora da vontade, da necessidade e,
claro, das condições oferecidas daqui por diante, para que se possa avançar nesse
caminho. Por outro lado, temos a plena convicção de que os estudos do Clássico,
mesmo que de forma introdutória, contribuirão sobremaneira para a formação do
professor da área de Humanidades e, por conseguinte, para o aperfeiçoamento
do processo ensino-aprendizagem nesta área do conhecimento humano.
Bibliografi a
ALMEIDA. Zélia Cardoso de. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1989.
ARISTÓTELES et alii. A poética clássica; tradução de Jaime Bruma. 2. ed. São
Paulo: Cultrix, 1985.
BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e religião
romana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1991 (2 vol.).
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos?; tradução de Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
COLUTOS. O rapto de Helena; edição trilíngüe – grego, latim e português;
tradução do grego de Fabrício Possebon, ensaio de Milton Marques Júnior e notas
de Alcione Lucena de Albertim. João Pessoa (PB): Idéia; Editora da Universidade
Federal da Paraíba, 2005. *
DUMÉZIL, Georges. Mythe et épopée I. II. III. Paris: Gallimard, 1995.
ESCHYLE. Tragédies: Les suppliantes, Les perses, Les sept contre Thèbes, Prométhée
enchaîné; texte établi et traduit par Paul Mazon. 2. éd. Paris: Les Belles Lett res,
2002.
EURIPIDE. Hécube; texte établi par Louis Méridier; traduit par Nicole Loraux et
François Rey; introduction et notes de Jean Alaux. Paris: Les Belles Lett res, 2002.
EURIPIDE. Iphigénie à Aulis; texte établi et traduit par François Jouan. Paris: Les
Belles Lett res, 2002.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana; tradução de Victor
Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
GRIMAL, Pierre. La civilisation romaine. Paris: Flammarion, 1981 (este livro já se
encontra traduzido para o português, editado pelas Edições 70 de Lisboa).
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo; tradução de António M. Gomes da Silva. Lisboa:
Edições 70, 1986.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina; tradução de
Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le bouclier;
texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lett res, 1996, versos 90-
201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses; estudo e tradução de Jaa Torrano. 6. ed
(revisada e acrescida do original grego). São Paulo: Iluminuras, 2006.
HOMÈRE. Hymnes; texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles
Lett res, 1936.
HOMERO. Ilíada; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2002.
HOMERO. Odisséia; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 5. ed. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2002.
MARQUES JÚNIOR, Milton e SOUZA, Erick France Meira de. O teatro da morte,
da humilhação e da dor: análise e tradução do Canto XXII da Ilíada, de Homero;
ensaio crítico de Milton Marques Júnior e tradução do grego de Erick France
Meira de Souza. João Pessoa, Zarinha Centro de Cultura; Editora Universitária da
UFPB, 2007.*
MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo; tradução de Emanuel
Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70, 1989.
OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles
Lett res, 1928 (4. vol).
161
162
ROMILLY, Jaqueline. A tragédia grega; tradução Ivo Martinazzo. Brasília: UNB,
1998.
SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995.
TITE-LIVE. Histoire romaine I: la fondation de Rome; texte établi et traduit par
Gaston Baillet, introduction et notes de Jean-Noël Robert. Paris: Les Belles Lett res,
2005.
VERGÍLIO. Eneida; tradução e notas de Tassilo Orpheu Spalding. 8. ed. São Paulo:
Cultrix, 2003.
VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris: Presses
Universitaires de France, 2004. (Este livro encontra-se traduzido para o
português)
VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et religion en Grèce ancienne. Paris: Seuil, 1990. (Este
livro encontra-se traduzido para o português).
VIRGILE. Énéide; texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Belessort. 7.
éd. Paris: Les Belles Lett res, 1952 (2 v.).
VIRGÍLIO. Eneida – Canto IV: a morte de Dido; tradução de J. Laender; organização
de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon; ensaios de Milton Marques
Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e Leyla Thays Brito da Silva; comentários
à tradução de Fabrício Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de
Cultura/Editora Universitária da UFPB, 2006. *
* Estes livros podem ser adquiridos na Livraria do Zarinha Centro de Cultura,
através do site www.zarinha.com.br
Filmografi a
Tróia: mito ou realidade. Eagle Media, 2004.
PETERSEN, Wolfgang. Tróia. Warner Bros., 2004.
CAMERINI, Mario. Ulisses. DVD Video, 2003 (1955).
KONCHALOVSKI, Andrei. Odisséia. DVD Video, s.d.
Sites na Internet para os textos clássicos
Biblioteca Augustana
www.fh -augsburg.de/~harsch/augusta.html
Perseus
www.perseus.tufts.edu/
FUNDAMENTOS ANTROPO-FILOSÓFICOS DA
EDUCAÇÃO
Apresentação
Luiz Gonzaga Gonçalves 1
Você é convidado(a) agora a ingressar no universo da antropologia
fi losófi ca da educação. As palavras podem parecer distantes, mas quando falamos
da antropologia estamos trazendo para a discussão o ser humano, sua vida e
seus modos de ser, pensar e agir em seus contextos vitais. Quando falamos de
antropologia fi losófi ca queremos saber como o ser humano vai construindo seus
processos de compreensão de si e do mundo e em que bases encontra sustentação
para se pronunciar sobre seu saber e conhecimento.
Na longa aventura humana sobre a terra temos dado provas de que somos
capazes de aprender durante toda a vida, de crescermos em diferentes níveis e
em diferentes profundidades de aprendizagem. As disponibilidades abertas de
nosso cérebro, os domínios da linguagem e da comunicação, as habilidades de
nossas mãos, o andar bípede, nossa longa infância e adolescência, entre outras
características, permitiram que criássemos formas de organização grupal e
social complexas, supondo uma aprendizagem continuamente aberta. São
essas disponibilidades humanas e sociais para aprender a ser e a conviver, que
nos levam, como educadores, a indagar pelas visões de mundo que se fi zeram
hegemônicas e pelos caminhos confl ituosos de recepção e de integração ativa na
sociedade de todos os seus membros.
Como você verá, o convite para o Curso inclui um recuo no tempo, para
revermos as heranças fi losófi cas que prevaleceram com suas concepções de
mundo, de ser humano, de sociedade e de natureza, capazes de orientar modos
de pensar e de agir. As incursões pretendem inspirar as buscas de hoje, quando
as tarefas educacionais emergem dos espaços onde nos encontramos, da direção
que pretendemos seguir e dos motivos que orientam nossas decisões.
Interessa-nos, de modo especial, como latino-americanos, como brasileiros,
os vínculos entre educação e política, que demarcam confl itos, e transformam
diferenças em grandes desigualdades. No começo do século XX 75% da
população brasileira eram analfabetos. Vamos rejeitar os saberes de coisas da
vida que temos acumulado ao longo dos séculos ou vamos incorporá-los em
nossas propostas pedagógicas? As pedagogias não conformistas se erguem das
inquietações em torno dos entendimentos que construímos acerca dos processos
através dos quais são construídas as sociedades, e com elas os conhecimentos e
saberes hegemônicos. Nem por isso vamos desconsiderar as vias inteligentes de
aquisição de saberes, muitas vezes desprezadas.
Uma fi losofi a fl exionada a serviço da educação e da vida é de se esperar que
corresponda a um pensamento complexo, aberto à inovação e ao diálogo frente
aos domínios vários do saber e do conhecimento. Estar na vida é ter a certeza
1 Professor, mestre e
doutor em educação, com
graduação em fi losofi a
e pedagogia; vinculado
ao Departamento de
Fundamentação da
Educação, do Centro
de Educação, da
Universidade Federal da
Paraíba.
163
164
de poder experimentar crises, superações e busca de alternativas para pensar um
mundo onde todos os seres humanos possam encontrar uma morada digna.
Os objetivos que pretendemos alcançar
Vamos trabalhar a partir de três grandes objetivos. Queremos identifi car
as heranças fi losófi cas que prevaleceram com suas concepções de mundo, de
ser humano, de sociedade e de natureza, capazes de orientar modos de pensar
e de agir. Queremos examinar as orientações que dizem respeito aos avanços do
conhecimento, predominantes na civilização ocidental, muitas vezes postos a
serviço de poucos. Por fi m, queremos contribuir para a afi rmação de uma ação
pedagógica voltada para a promoção do ser humano, de modo a fortalecer as
buscas e intervenções a serviço de um convívio social onde todos encontrem um
lugar digno de habitar.
As unidades temáticas
Vamos trabalhar com três unidades temáticas. Na primeira vamos nos
deter no universo da antropologia fi losófi ca grega, procurando identifi car seus
pressupostos e preocupações. Vamos mostrar como a fi losofi a grega vai deixando
para trás os domínios da sabedoria de vida, que não oferecem bases seguras
para o conhecimento. Vamos nos deparar especialmente com as contribuições de
Sócrates, Platão e Aristóteles.
Na segunda unidade vamos ver como a fi losofi a na modernidade desvenda
novas necessidades e horizontes para o pensamento, redimensionando a
pergunta sobre a capacidade humana para conhecer. Veremos alguns aspectos da
contribuição de Descartes e Bacon e de Comenius. O último procura desenvolver
uma pedagogia aberta às novas idéias de seu tempo.
Na terceira unidade vamos ver como Rousseau abre caminhos para uma
pedagogia da existência, rompendo com a pedagogia da essência, descortinando
novas bases para uma educabilidade aberta ao universo da criança e à
importância da aprendizagem. Vamos ver como a Escola Nova no século XX
aprofunda as idéias apresentadas por Rousseau. Vamos ver também que o século
XX vai aos poucos inserindo efetivamente o Brasil nos problemas políticos e
pedagógicos de seu tempo. Encerramos a terceira unidade fazendo um balanço
das heranças educacionais que nos alcançaram durante nossa formação escolar.
Encaminhamentos e processos de avaliação
O processo avaliativo incluirá alguns exercícios para que você, aluno(a)
possa apropriar-se dos conteúdos e dos problemas levantados pelos textos
selecionados. Você fará textos curtos que serão pedidos ao longo do curso, com
os quais você trará sua contribuição a partir das leituras propostas. Nessas
atividades teremos no seu conjunto uma das três notas fi nais.
A avaliação incluirá um convite para que você tente inventariar a sua
experiência discente, desde sua iniciação escolar. Interessará neste inventário,
neste memorial discente, que você avalie o alcance daquilo que compôs as
dimensões fundamentais do seu processo educativo escolar. Você pode destacar
aspectos positivos ou negativos presentes. Por exemplo, inventariar o que fi cou
de marcante dos seus contatos, do seu manuseio dos livros didáticos; o que
fi cou de marcante de sua relação com as bibliotecas das escolas; o que fi cou de
marcante dos recursos didáticos utilizados pelos professores até aquilo que
hoje chamamos de ensino fundamental, de ensino médio. Você é convidado
a inventariar as opções de avaliação da aprendizagem, inventariar aspectos
marcantes do contexto da época, no qual a(as) escola(as) estava(m) inserida(s).
Com a produção do inventário escolar, resvalando em saudades e
vivências, a meta é a de tentar desvendar, com os olhos de hoje, os fi ns e objetivos
muitas vezes implícitos que eram atingidos, com as orientações pedagógicas e
didáticas dominantes vividas por você, até chegar à universidade. A primeira
parte do trabalho que corresponde ao inventário dos aspectos relevantes de sua
aprendizagem escolar equivale a segunda nota fi nal.
A partir desse inventário discente, você é convidado a fazer uma segunda
parte de seu memorial adotando um conceito de educação. Com esse conceito que
pode ser seu ou buscado na literatura educacional, você é convidado a identifi car
as direções, as concepções de mundo que orientaram as opções pedagógicas e
didáticas vividas por você como aluno(a) e as que você apontaria como válidas
hoje para as novas gerações que chegam aos espaços escolares. Com a segunda
parte crítica do seu memorial completaremos as três notas.
165
UNIDADE I
A FILOSOFIA GREGA ANTIGA: Pressupostos e
Preocupações
1.1 Atividades Introdutórias
Que tal “quebrarmos o gelo”, começando por concentrar nossa atenção
na etimologia de algumas palavras consagradas, que retratam a vida na escola,
nossas conhecidas de longa data?
A atividade fi losófi ca desenvolve um cuidado especial com as palavras que
utilizamos. Quer saber o alcance que elas têm para descrever e dar signifi cado
para as coisas que se desdobram no mundo onde nos movemos. As atividades
da fi losofi a da educação também não se descuidam das palavras que podem nos
ajudar a demarcar os caminhos, a coerência das respostas perante os desafi os
educacionais, de ontem e de hoje. Querem nos ajudar a ver os horizontes
demarcados, as compreensões acerca do que se espera da disponibilidade do ser
humano para se educar. Uma antropologia fi losófi ca a serviço da educação quer
saber, portanto, qual compreensão decisiva de ser humano, de sociedade, de vida
orienta as buscas, faz surgir os problemas considerados relevantes. A tentativa é
a de caminharmos próximos das teorias e práticas, que ontem e hoje disputam o
poder de dizer o que deve ser a educação, para que e para quem ela serve.
1.2 Etimologia das Palavras no Espaço da Educação Escolar 1
- Aluno – alumnus,.i;criança que se alimenta no peito; aquele que se
alimenta dos bocados que provém do magistério. Em decorrência: pupilo,
discípulo.
- Aprender – a) apprehendere: agarrar, apanhar, segurar, apoderar-se de algo,
porque é precioso e não se deve escapar. Em decorrência: tomar conhecimento de,
reter na memória. b) discere – aprender, de onde deriva a palavra discípulo.
- Educar – a) educare: criar, amamentar. Em decorrência: instruir, preparar
para a vida. b) e-ducere: e: para fora; ducere: conduzir; dar à luz; fazer surgir. Em
decorrência: ajudar a conduzir de uma situação à outra; ajudar a modifi car.
- Ensinar: - insignire: assinalar, distinguir, colocar um sinal, mostrar, indicar.
Em decorrência: indicar o caminho para aprender.
- formação: “fromage”, em francês: provém da ação de dar forma, de
confi gurar, como os moldes dão forma aos queijos.
- Instrução – instructio,.onis: construção, edifi cação.
- Mestre - magister,.tri: o que sabe mais2 (magis), o que dirige, conduz.
- Pedagogo – do grego paidogogós (pais, paidos: “criança! E agogôs: “guia,
condutor”): escravo que acompanhava as crianças à escola; depois: mestre,
preceptor.
1 Quando os vocábulos
apresentados não têm
origem no latim, serão
destacados de onde se
originam. Ver Maria
Lucia ARANHA. Filosofi a
da Educação. São Paulo.
Moderna. 1989. p. 58. Ver
Ernesto Faria. Dicionário
Escolar Latino-Português.
Revisão de Rute J. de
Faria. 6ª ed. Rio de
Janeiro. FAE. 1991). Ver
também Octavi Fullat.
Filosofi as da Educação.
São Paulo. Vozes. 1994.
2 Esclarece Octavi Fullat
(1994, p. 35) que o poderio
físico, moral e cultural do
mestre fundou a concepção
educativo-ensinante que
prevaleceu durante séculos.
A Escola Nova modifi cou
paulatinamente, e apenas
em determinados ambientes,
os signifi cados desses
signifi cantes
167
3 Abertura ou corte feito
na madeira ao alcance
dos olhos para orientar
o caminhante em meio
a fl orestas onde não há
trilhas perfeitamente
delimitadas (cf. Arseniev,
1989: 46-49)
4 Você verá que o conto é
paradigmático, remete
às origens longínquas do
ser humano caçador, que
é capaz de orientar-se
e obter êxito servindose
apenas dos indícios,
dos fragmentos de
informação. Ver sobre
isso Ginzburg (1989: 143-
79)
5 É importante que você
saiba o que pensa seu
professor: defendo e
estou evidenciando isso,
de que há uma sabedoria
de vida refi nada e
disponível para qualquer
pessoa letrada ou não.
Para isso a pessoa precisa
ser capaz de desenvolver
uma capacidade de
se concentrar, de
desenvolver um senso de
atenção e de observação
ativa, para não ser
surpreendida facilmente
pelos eventos futuros.
6 VOLTAIRE. Zadig ou o
destino: história oriental..
Rio de Janeiro. Ediouro.
S/d.
168
- Saber – sapere: ter sabor, agradar ao paladar; saber, conhecer, aprender.
- Texto – textum,.i: tecido, pano; obra formada por várias partes reunidas.
1.3 Um antigo conto fi losófi co oriental e a sabedoria da atenção
Pudemos ver que os vocábulos que giram em torno do universo escolar
brotam da vida, muito antes que a sociedade contasse com um espaço
especializado para a aquisição dos saberes considerados relevantes. Assim,
iniciamos nossa caminhada com um longo recuo no tempo. Por isso, importa
a atenção para algumas setas, alguns entalhes3 que apontam para antigas
compreensões do que seja exercitar uma fi losofi a de vida. Para realizar isso, você
terá ao seu dispor um conto4 , sem autoria defi nida, que poderia ser escrito em
qualquer região do planeta, inclusive em nosso nordeste rural brasileiro.
Em seguida, você terá a oportunidade de examinar alguns termos de
origem muito antiga, heranças da cultura e da fi losofi a grega, indispensáveis até
hoje. Graças à contribuição da professora de fi losofi a da Universidade de São
Paulo, Marilena Chauí, os termos fi losófi cos são apresentados com seus vínculos
e dependências com as experiências gregas mais humildes. Veremos, de início,
apenas seis desses termos fi losófi cos. Meu interesse principal com eles é demarcar
as despedidas que a fi losofi a grega faz, de modo consciente e deliberado, do que
há de melhor dos saberes do senso comum5 . A fi losofi a grega critica os riscos que
envolvem tais saberes, seu alcance limitado, e especialmente as difi culdades para
reproduzir tais habilidades.
Feito isso, você será convidado a ler a Alegoria da Caverna, de Platão.
Trata-se de uma abordagem memorável acerca da contribuição da fi losofi a
para o campo da educação. A alegoria quer ser um sinal de alerta sobre os
enganos que podem submeter os humanos dotados de sensibilidade e razão. A
alegoria quer ser abrangente o sufi ciente para oferecer algumas dicas para que
não nos percamos nos espaços tateantes das sombras, da incerteza. Quando a
narrativa apresenta sua opção pelos caminhos da razão, ela já detém um sentido
pedagógico orientador.
1.3.1 A experiência de Zadig, apresentada por Voltaire 6
Como já destacamos, trata-se de um texto de origem remota, sem autoria
defi nida, recuperado por Voltaire (1694-1778). A sugestão é a de que você faça
sua leitura, com o compromisso de lembrar de alguma pessoa conhecida, dotado
das astúcias e habilidades parecidas com as do personagem principal do texto.
Zadig convenceu-se de que o primeiro mês do casamento, como está escrito no
livro do Zenda, é a lua-de-mel, e que o segundo é a lua-de-fel. Pouco tempo
depois viu-se obrigado a repudiar Azora,que se tornara difícil de aturar, e
procurou satisfação no estudo da natureza. “Ninguém é mais feliz – dizia ele,
- que um fi lósofo que lê o grande livro aberto por Deus diante dos nossos olhos.
São suas as verdades que descobre: alimenta e educa a alma, vive tranqüilo;
nada receia dos homens, e sua meiga esposa não vem cortar-lhe o nariz.”
Cheio destas idéias recolheu (sic) a uma casa de campo à beira do Eufrates,
onde não se ocupava a calcular quantas polegadas de água correm por segundo
sob os arcos de uma ponte, ou se no mês do rato cai uma linha cúbica de chuva a
mais do que no mês do carneiro. Não cuidava de fazer seda com teias de aranha,
nem porcelana com cacos de vidro, antes estudou sobretudo as propriedades
dos animais e das plantas, não tardando a adquirir uma sagacidade que lhe
apontava mil diferenças onde os outros homens viam só uniformidade.
Certo dia passeando na orla de um bosque, viu aproximar-se um eunuco da
rainha seguido de vários ofi ciais que pareciam tomados da maior inquietação,
e corriam de um lado para outro como pessoas extraviadas em busca da maior
preciosidade perdida.
- Moço – perguntou-lhe o eunuco, - por acaso não viu o cachorro da
rainha?
Zadig respondeu modestamente:
- Creio tratar-se de uma cadela e não de um cachorro.
- Tem razão – volveu o eunuco.
- É uma cachorrinha de caça que deu cria há pouco tempo; manqueja da
pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.
- Viu-a então? – Tornou o eunuco esbaforido.
- Não – respondeu Zadig, - nunca a vi e nem mesmo sabia que a rainha
tivesse uma cadela. Justamente nessa ocasião, por um capricho muito comum
da sorte, o mais belo cavalo das coudelarias do rei fugira das mãos de um
palafreneiro para as campinas da Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros
ofi ciais andavam atrás dele com tanta apreensão quanto a do eunuco atrás da
cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não vira passar
o cavalo do rei.
- É o cavalo que melhor galopa - respondeu Zadig; - tem cinco pés de altura
e os cascos muito pequenos; sua cauda mede três pés de comprimento e as
rodelas do seu freio são de ouro de vinte quilates; usa ferraduras de prata de
onze denários.
- Que caminho tomou ele? Onde está? – perguntou o monteiro-mor.
- Não sei – respondeu Zadig; não o vi nem nunca ouvi falar nele
O monteiro-mor e o eunuco fi caram certos de que Zadig tinha roubado
o cavalo do rei e a cadela da rainha, e levaram-no à presença do grande
Desterham que o condenou ao knut, e a passar o resto do seus dias na Sibéria.
Mal havia terminado o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela.
Os juízes viram-se na desagradável contingência de reformar a sentença, mas
condenaram Zadig a pagar quatrocentas onças de ouros por dizer que não
vira o que tinha visto. Primeiro ele teve que pagar a multa, e só depois lhe
permitiram defender a sua causa perante o conselho do grande Desterham
onde falou nesses termos:
169
170
- Estrelas de justiça, abismos da ciência, espelhos da verdade, que tendes o
peso do chumbo, a dureza do ferro, o brilho do diamante e muita afi nidade com
o ouro: já que me é consentido falar diante desta augusta assembléia, juro-vos
por Orosmade que nunca vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado
cavalo do rei dos reis. Aqui está o que me sucedeu: andava eu passeando pelo
pequeno bosque onde depois encontrei o venerável eunuco e muito ilustre
monteiro-mor. Percebi na areia pegadas de um animal, e facilmente concluí
serem as de um cão. Leves e longos sulcos, visíveis nas ondulações da areia
entre os vestígios das patas, revelaram-me tratar-se de uma cadela com as
tetas pendentes, e que, portanto, devia ter dado cria poucos dias antes. Outros
traços em sentido diferente, sempre marcando a superfície da areia ao lado das
patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grandes; e como além disso
notei que as impressões de uma das patas eram menos fundas que as das outras
três, deduzi que a cadela da nossa augusta rainha manquejava um pouco, se
assim posso me exprimir.
“Quanto ao cavalo do rei dos reis, sabei que estando a passear pelos
carreiros desse bosque, avistei as marcas das ferraduras de um cavalo, todas
colocadas a igual distância. ‘Eis aqui – disse comigo, - um cavalo que tem
o galope perfeito’. A poeira das árvores. Num caminho não mais de sete
pés de largura, mostrava-se um pouco revolvida a direita e a esquerda, a
três pés e meio do centro da rota. ‘Este cavalo – tornei a considerar nos
seus movimentos para a direita e para a esquerda, varreu essa poeira’. Vi
depois sob as árvores, que formavam um docel de cinco pés de altura, alguns
ramos cujas folhas tinham caído recentemente, e concluí que o animal as
roçara com a cabeça, tendo, portanto cinco pés de altura. Seu freio deve ser de
ouro de vinte e três quilates, pois tendo batido numa pedra que verifi quei ser
uma pedra de toque, pode em seguida identifi cá-lo. Enfi m, pelas marcas das
ferraduras deixadas em pedras de outra espécie, deduzi que estava ferrado
com prata fi na.”
Todos os juízes admiraram o profundo e sutil discernimento de zadig; a
notícia chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se ouvia falar de Zadig nas
antecâmaras, nas salas e gabinetes; e embora alguns magos opinassem que
ele devia ser queimado como feiticeiro, o rei ordenou que lhe devolvessem a
multa de quatrocentas onças de ouro a que havia sido condenado. O escrivão,
os ofi ciais de justiça e os procuradores foram a sua casa em grande aparato
levar-lhe as quatrocentas onças, das quais apenas retiveram trezentas e
noventa e oito para as custas do processo, além dos honorários reclamados
pelos servidores.
Zadig compreendeu que às vezes era perigoso ser demasiado sábio, e prometeu
a si mesmo não tornar a dizer o que porventura houvesse visto. A ocasião
não tardou a apresentar-se. Um prisioneiro do Estado tendo fugido, passou
por baixo das janelas de sua casa. Zadig interrogada nada respondeu, mas
provaram-lhe que ele havia olhado pela janela. Por esse crime foi condenado a
pagar quinhentas onças de ouro, e ainda agradeceu a benevolência dos juízes,
como é costume na Babilônia. – “Santo Deus! – Exclamou para si, - quanto
é lastimável ir-se passear a um bosque onde passaram a cadela da rainha e o
cavalo do rei! Como é perigoso a gente chegar à janela, e como é difícil ser feliz
neste mundo.”
1.3.2 Uma suposta versão mais antiga do que a do conto de Zadig
Um conto similar, e provavelmente mais antigo, narra a história de três
príncipes de Serendip. Eles caminhavam pelo deserto até que chegaram a um
oásis. Enquanto descansavam foram abordados por um viajante que havia
perdido um camelo e a carga que este conduzia. Os príncipes, quando abordados,
perguntaram ao viajante se o camelo era cego do olho direito, se o animal seguia
carregado de um tonel de mel, do lado esquerdo e de um tonel de manteiga,
do lado direito. O dono do camelo sumido os condenou como ladrões, quando
disseram que não o haviam visto.
No tribunal, os príncipes alegaram que tiveram ao alcance dos olhos
apenas as marcas deixadas pelo animal fujão. No caso da cegueira do olho direito,
perceberam que a relva do lado direito era mais abundante, mas o camelo insistia
em comer a do lado esquerdo do caminho. Do lado direito do caminho notaram
que as moscas pousavam sobre a relva em busca dos restos da manteiga, do lado
esquerdo formigas vinham à procura do mel. (cf. Gonçalves, 2003: 92-93)
1.3.3 Considerações sobre a experiência de Zadig
Zadig é o fi lósofo anônimo que aprendeu a ler os sinais sutis inscritos na
natureza, cenário onde se manifesta a presença dos seres vivos. Sua missão é a de
estar de olhos bem abertos para detectar as particularidades reveladoras que se
manifestam no espaço vital onde habita.
O conto oriental apresente uma das mais antigas concepções acerca do
trabalho do pensamento humano. A fi losofi a de quem estuda a natureza, como
Zadig, estará sempre sendo testada em sua capacidade explicativa, uma vez que
será sempre confrontada pela prática. Os desafi os são consideráveis e arriscados
porque é preciso decidir acertadamente através da leitura de indícios incompletos
e nem sempre nítidos.
A leitura do texto permite identifi car o que é considerado como atividade
relevante para o estudioso da natureza. Ao mesmo tempo esclarece de que modo
Zadig desenvolveu seu método de observação e de atenção. O protagonista nos
surpreende, na medida em que se mostra apto para decifrar indícios a respeito
de algo que nem mesmo estava à procura. O fi lósofo que aparece no texto é o
mestre da atenção e da capacidade de desvendar sinais sensíveis que desafi am
a acuidade de nossos olhos, sinais que para ele são deixados por Deus, no livro
aberto da natureza. Zadig surpreende os emissários da rainha e o leitor, pela
maneira como informou a respeito dos animais que se haviam perdido.
Umberto Eco (in: ECO E SEBEOK 1991: 242;236) considera que o conto de
Zadig não é de investigação, mas um conto fi losófi co, na medida em que permitiu
vislumbrar como é possível alcançar uma coincidência entre aquilo que era
apenas suposição na mente daquele homem (a cadela e o cavalo de seu mundo
textual) e aquilo que acontecia no mundo exterior, materializado nas buscas dos
ofi ciais a serviço da rainha. Isso se tornou possível porque o protagonista do
conto voltou-se para os estudos das propriedades dos animais e plantas não para
reduzi-las aos seus esquemas mentais prévios, mas para pensar por alternativas,
para arriscar a captar no que entende por livro aberto por Deus, aquilo que a vida
mostra e esconde aos olhos humanos.
171
7 Ver sobre Métis em
Marilena Chauí (2002:
505; 509-10)
172
ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):
Você consegue lembrar-se de alguém que domina a arte da atenção, da leitura
de pistas, de pensar por alternativas como Zadig? Você se sente próximo/a das
habilidades desenvolvidas por Zadig? De que forma? Este endereço da net
talvez possa servir de inspiração: htt p://www.jangadabrasil.com.br/revista/
julho68/of68007c.asp
1.4 Na mitologia grega há uma deusa poderosa que personifi ca os
saberes de Zadig e dos príncipes de Serendip.
É a deusa Métis7 , personifi cação da inteligência prática, do engenho e da
astúcia para solucionar difi culdades, da prudência, do expediente para enfrentar
uma situação complicada, maquinar ardis e armadilhas. Deusa que incorpora
uma qualidade psicológica que combina intuição, rapidez, engenho e astúcia.
Um dos fi lhos de Métis é o deus Póros, que é o engenho astucioso que soluciona
difi culdades encontrando caminhos. Póros encarna o meio ou o expediente para
chegar a um fi m, recurso ou engenho para chegar a um fi m, para solucionar uma
difi culdade; ação de passar através de, trajeto. (CHAUÍ, 2002: p.505;509-10).
Jean-Pierre Vernant (2000: 40-41) escreve que:
Zeus se casa com Métis e esta logo fi ca grávida de Atena. Zeus teme que algum
fi lho seu, por sua vez, o destrone. Como evitar? (...) Diz que só há uma solução:
não basta que Métis esteja ao seu lado como esposa, ele mesmo tem de se tornar
Métis. Zeus não precisa de uma sócia, de uma companheira, mas deve ser a
métis em pessoa. Como fazer? Métis tem o poder de se metamorfosear, ela
assume todas as formas, assim como Tétis e outras divindades marinhas. É
capaz de virar animal selvagem, formiga, rochedo, tudo o que quiser. Travase
então um duelo de astúcias entre a esposa, Métis, e o esposo, Zeus. Quem
vai ganhar? Há boas razões para supor que Zeus recorra a um processo que
conhecemos também em outros casos. Em que consiste? É claro que, para
enfrentar uma feiticeira ou um mago extraordinariamente dotado e poderoso,
o ataque direto estaria fadado ao fracasso. Mas, se escolher o caminho da
artimanha, talvez haja uma chance de vencer. Zeus interroga Métis: “Podes
de fato assumir todas as formas, poderias ser um leão que cospe fogo?” Na
mesma hora Métis se torna uma leoa que cospe fogo. Espetáculo aterrador.
Zeus lhe pergunta depois: “Poderias também ser uma gota d´água? “Claro
que sim”. “Mostra-me.” E, mal ela se transforma em gota d’água, ele a sorve.
Pronto! Métis está na barriga de Zeus. Mais uma vez a astúcia funcionou.
O soberano não se contenta em engolir seus eventuais sucessores: ele agora
encarna, no correr do tempo, antecipadamente os planos de qualquer um que
tente surpreendê-lo ou derrotá-lo. Sua esposa Métis, grávida de Atena, está
em sua barriga. Assim, Atena não vai sair do regaço da mãe, mas da cabeça do
pai, que é agora tão grande quanto o ventre de Métis. Zeus dá uivos de dor.
Prometeu e Hefesto são chamados para socorrê-lo. Chegam com um machado
duplo, dão uma boa pancada na cabeça de Zeus e, aos gritos, Atena sai da
cabeça do deus, jovem donzela já toda armada, com seu capacete, sua lança,
seu escudo, e a couraça de bronze. Atena é a deusa inventiva, cheia de astúcias.
(grifou meu)
1.4.1 Considerações sobre o texto
Na enciclopédia Wikipedia8 encontramos que: a fi lha mais famosa de Métis
é conhecida como Atena ou para outros Palas Atena. Freqüentemente é associada
a um escudo de guerra, à coruja da sabedoria ou à oliveira. Ainda, de acordo com
a enciclopédia, a deusa Atena, que nasce da cabeça de Zeus, é toda poderosa tanto
nas habilidades de caça e pesca, como nas habilidades de guerra, tem seu poder
maior na atividade mental.
Atena parece personalizar o esforço grego de colocar a atividade racional
a serviço de um poder que sabe hierarquizar os esforços humanos, de modo
a encontrar equilíbrio e estabilidade. Atena domina as atividades humanas
essenciais, desde as mais antigas, como a caça, a pesca, bem como a capacidade
técnica, de construir o arco e a fl echa, além de saber costurar. No entanto, seu
talento maior reside na atividade mental, herança direta de Zeus, senhor absoluto
da arte de governar. Atena parece simbolizar muito mais a atividade mental que
é perseguida pelos fi lósofos do período clássico. Trata-se de um pensamento que
domina e delimita o lugar subalterno das habilidades humanas mais antigas como
a caça e a pesca, bem como as técnicas e as artes da guerra. O ponto culminante é
o da sabedoria de quem exercita o poder a serviço da equidade e da estabilidade.
ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):
Quando Zeus, o soberano, consegue sorver Métis, a deusa da astúcia, ele que
é encarregado de governar o mundo, qual a expectativa que tem a partir desta
conquista? Como entender que a cabeça de Zeus se fez tão grande quanto
a barriga ou o útero de Métis? Elabore um texto com o objetivo de tentar
interpretar o sentido da frase no contexto da narrativa.
1.5 Um convite: que tal sentarmos à mesa da fi losofi a e saborearmos
seis termos gregos antigos?
Este encontro em volta da mesa é para alimentar nosso corpo, supondo que
a cabeça é o corpo (agora há pouco a cabeça era uma barriga, um útero). Entre o
comer e beber dessa refeição, esperamos mostrar porque os fi lósofos gregos se
despedem da sabedoria oriental, daquela que Zadig era o mestre.
Neste movimento introdutório aos fundamentos antropo-fi losófi cos da
educação vamos analisar seis termos gregos de grande importância para a fi losofi a
grega antiga e elucidativos até hoje. Através deles será possível acenar para algumas
preocupações básicas que orientavam as formas como os gregos aprendiam a
8 ver
htt p://pt. wikipedia.org/
wiki/Atena; ver também:
htt p://greciantiga.org.
173
9 Cf. CHAUÍ, Marilena.
Dos pré-socráticos a
Aristóteles. Vol. 1. 2ª ed.
rev. ampl. São Paulo. Cia
das Letras. 2002. p. 493-
512.
174
interrogar o mundo natural, a presença humana no mundo, a organização da
sociedade e o papel de destaque que é destinado à atividade fi losófi ca.
Vamos apreciar os termos gregos a partir da contribuição de Marilena
Chauí, num glossário que ela elaborou no seu livro intitulado: Dos Pré-Socráticos
a Aristóteles (2002) 9 . A autora teve o cuidado de situá-los como parte da herança
grega, que é cultivada desde os tempos imemoriais, desde as sociedades ágrafas.
1.5.1 Doxa:
Opinião, crença, reputação (Isto é, boa ou má opinião sobre alguém), suposição,
conjetura. Esta palavra possui dois sentidos diferentes por ser usada em dois
contextos diferentes: o contexto político, no qual foi usada inicialmente, e o
contexto fi losófi co, a partir de Parmênides e Platão. Deriva-se do verbo dokéo,
que signifi ca: 1. tomar o partido que se julga mais adequado para uma situação; 2.
conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo; 3. escolher, decidir, deliberar
e julgar segundo os dados oferecidos pela situação e segundo a regra ou norma
estabelecida pelo grupo. Era este o seu sentido na assembléia dos guerreiros que
deu origem à assembléia política, na democracia. Como a escolha e decisão se
davam a partir do que era percebido, dito e convencionado pelo grupo, dóxa
ganha também o sentido de uma modalidade de conhecimento, e agora, articulase
ao verbo doxázo que signifi ca: ter uma opinião sobre algumas coisas, crer,
conjeturar, supor, imaginar, adotar opiniões comumente admitidas. É neste
segundo sentido que doxa pode ter o sentido pejorativo de conhecimento falso,
preconceito, conjetura sem fundamento, sem convenção, arbitrária.
Este termo doxa corresponde ao que entre nós relegamos aos domínios do
senso comum ou também do bom senso. O termo é decisivo para compreender
o que a fi losofi a decide rejeitar para fi rmar seu corpus de conhecimento e porque
decide rejeitar. O problema da doxa é que não oferece confi ança, não oferece um
conhecimento seguro. Se a palavra doxa deriva-se do verbo dokéo, que signifi ca
optar diante de uma situação aberta ou de acordo com a norma de um grupo ela
está condenada à incerteza, não podendo impor-se a todos, que é a preocupação
da fi losofi a que vai fi rmar-se, sobretudo, a partir de Platão. A doxa ao mover-se no
campo da opinião, do risco, da conjetura, não oferece