25.04.2013 Views

A Professora Doutora Maria José Forjaz de Lacerda e a sua nobre ...

A Professora Doutora Maria José Forjaz de Lacerda e a sua nobre ...

A Professora Doutora Maria José Forjaz de Lacerda e a sua nobre ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

A <strong>Professora</strong> <strong>Doutora</strong><br />

<strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Lacerda</strong> e a <strong>sua</strong> <strong>nobre</strong><br />

paixão pela Docência<br />

Carlos Gamito<br />

carlos.gamito@hsm.min-sau<strong>de</strong>.pt<br />

1/11


Trazidas por um olhar <strong>de</strong>nso e <strong>de</strong>terminado, chegaram-nos palavras verticais e<br />

rigorosas.<br />

Palavras que pela intensida<strong>de</strong> da <strong>sua</strong> precisão e dos contornos da <strong>sua</strong> substância,<br />

<strong>de</strong>viam ser ditas ao mundo.<br />

Foram palavras também adornadas por gestos <strong>de</strong>licados e sorrisos elegantes.<br />

Foi o dizer da <strong>Professora</strong> <strong>Doutora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> Mascarenhas <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong>.<br />

Médica, Investigadora Científica e <strong>Professora</strong> Catedrática.<br />

Estes os graus académicos meritoriamente conquistados por esta Senhora que um<br />

dia também foi Menina.<br />

Estas são conversas norteadas pela bússola da informalida<strong>de</strong>, são entrevistas on<strong>de</strong><br />

entrevistado e entrevistador se limitam a ficar tranquilamente acomodados no colo<br />

do “estar” e on<strong>de</strong> até o tempo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser tempo.<br />

Tudo fica cómodo e intemporal.<br />

No ar só dança a intemporalida<strong>de</strong> do próprio tempo e o absoluto da comodida<strong>de</strong>.<br />

Uma comodida<strong>de</strong> estritamente balizada pela indisciplina, único elemento disciplinador<br />

da entrevista.<br />

Sem regras nem alinhamento, as perguntas vão nascendo ao sabor do acaso.<br />

E recuperando o que acima escrevemos – a <strong>Professora</strong> <strong>Doutora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Lacerda</strong> um dia também foi menina – convidámo-la a viajar no tempo e passar a<br />

2/11


palavras todas as recordações que ainda em menina <strong>de</strong>spertassem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

dia, quando fosse uma senhora, vir a ser <strong>Professora</strong>.<br />

Com um olhar profundo que trespassou as muitas folhas <strong>de</strong> calendários já rasgados,<br />

a <strong>Professora</strong> <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u um sorriso, um sorriso que não conseguiu escon<strong>de</strong>r o<br />

sentimento nostálgico <strong>de</strong> todo um tempo e: «Eu sou do Algarve. Nasci numa<br />

localida<strong>de</strong> chamada Chão das Donas. É muito perto <strong>de</strong> Portimão, mas poucas pessoas<br />

conheciam aquele povoado. Chão das Donas era um lugar completamente<br />

<strong>de</strong>sprotegido, e falo-lhe nisto para respon<strong>de</strong>r à <strong>sua</strong> pergunta e melhor situar a<br />

história da minha gran<strong>de</strong> paixão pelo ensino. Uma paixão que realmente nasceu<br />

quando eu era ainda uma menina, mas que nela se encontram fortes raízes».<br />

Bastou o nosso olhar interrogativo para que a <strong>Professora</strong> pormenorizasse: «A minha<br />

família é toda oriunda do Algarve, e o meu avô materno, um homem com alguma<br />

capacida<strong>de</strong> financeira e uma rasgada visão para a época, mandou a filha estudar<br />

para Lisboa. Tudo isto se passou há talvez oitenta, noventa anos, o que como <strong>de</strong>ve<br />

imaginar representou quase um feito para as gentes daquela terra. A minha mãe veio<br />

para Lisboa e tirou o curso, à data <strong>de</strong>signado <strong>de</strong> <strong>Professora</strong> Primária. Terminado o<br />

curso, regressou ao Algarve e confrontou-se com um <strong>de</strong>licado problema: naquela<br />

região, como naturalmente em muitas outras, grassava o analfabetismo e não<br />

existiam escolas públicas on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse leccionar. Havia uma escola em Portimão e<br />

pouco mais. O meu avô, que como lhe disse era um homem muito capaz, mandou<br />

construir uma escola perto <strong>de</strong> Portimão, em Chão das Donas, para que a filha<br />

pu<strong>de</strong>sse leccionar e ofereceu a escola ao Estado, passando assim esta escola a ser<br />

3/11


uma escola do ensino público. Como a minha mãe estava prestes a casar, o meu avô<br />

contemplou também a construção <strong>de</strong> uma casa <strong>de</strong> habitação anexa à escola. A minha<br />

mãe casou e eu nasci nessa casa anexa à escola primária que o meu avô mandara<br />

construir e on<strong>de</strong> a minha mãe <strong>de</strong>senvolveu um gratificante e honroso trabalho».<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento da alfabetização no Barlavento Algarvio<br />

Nitidamente imbuída na transcrição <strong>de</strong> factos que <strong>de</strong>ixaram marca in<strong>de</strong>lével não só<br />

na “menina” <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> como nas al<strong>de</strong>ias sobranceiras a Portimão, a <strong>Professora</strong><br />

<strong>Doutora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong> continuou: «Permita-me também lembrar que<br />

na altura, e estamos a falar dos anos 30 do século XX, no País e também naquela<br />

zona, a taxa <strong>de</strong> analfabetização atingia cerca <strong>de</strong> cinquenta por cento das populações,<br />

e a minha mãe, sempre muito empenhada na resolução dos problemas sociais que a<br />

cercavam, contribuiu <strong>de</strong> forma significativa para a alfabetização <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> parte<br />

do Barlavento Algarvio. A construção da escola foi um marco <strong>de</strong>cisivo na<br />

alfabetização daquela gente. Era uma gente que vivia sobretudo da pequeníssima<br />

agricultura <strong>de</strong> subsistência que por lá existia e <strong>de</strong> alguma pesca muito rudimentar.<br />

Eram pessoas muito pobres. Pessoas que não <strong>de</strong>ixavam os filhos ir à escola. Todos<br />

nunca eram suficientes para trabalhar. Para angariar o sustento da casa. As pessoas<br />

não tinham a preocupação da alfabetização, e foi a partir da construção daquela<br />

escola e do elevado sentido humanitário da minha mãe que se <strong>de</strong>senvolveu a<br />

alfabetização daquela região».<br />

E com um dos muitos sorrisos que iluminaram a conversa, a <strong>Professora</strong> sustentou a<br />

recordação que vivia no momento: «Sem os cuidados <strong>de</strong> hoje, foi naquela casa que<br />

eu nasci, sobrevivi e olhe… cá estou!». Com a pureza e simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste dizer,<br />

subitamente na sala ecoaram indiscretos e sonoros risos. O jornalista gosta <strong>de</strong> rir, a<br />

entrevistada também, só restou por isso o <strong>de</strong>sprendimento sónico da manifesta boa<br />

disposição que se instalou no seio da conversa.<br />

A <strong>Professora</strong> <strong>de</strong> hoje e a “aluna” bebé <strong>de</strong> ontem<br />

Ainda sob o signo da reminiscência, a <strong>Professora</strong> <strong>Doutora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Lacerda</strong> ia revivendo o encanto <strong>de</strong> todo um tempo que não volta a ser tempo: «Como<br />

<strong>de</strong>certo sabe, naquela época os funcionários públicos não tinham qualquer tipo <strong>de</strong><br />

regalia, nomeadamente as chamadas licenças <strong>de</strong> parto, pelo que a minha mãe se viu<br />

obrigada a levar-me <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre para a escola. Ou seja, diria que nasci e cresci em<br />

ambiente escolar. Quando cheguei à ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realmente frequentar a escola como<br />

aluna da primeira classe, já há muito que sabia ler e até escrever. A minha mãe foi<br />

4/11


uma excelente professora. Dedicou praticamente a <strong>sua</strong> vida ao ensino, e eu, que<br />

como lhe disse vivi os primeiros anos <strong>de</strong> vida naquela escola, fui, <strong>de</strong> forma natural,<br />

cultivando a paixão pelo ensino».<br />

Da Matemática à Medicina<br />

Visitada a infância da <strong>Professora</strong> e encontradas as razões da paixão pela docência,<br />

fomos conhecer outras paixões. E <strong>de</strong> entre estas quisemos saber se à semelhança do<br />

ensino, também a medicina cedo se mostrara uma paixão. E talvez por a resposta<br />

envolver matemática, a <strong>Professora</strong>, mesmo sem números, respon<strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma<br />

composta: «Terminei o meu curso liceal, o antigo sétimo ano, no Liceu Nacional <strong>de</strong><br />

Faro, e como <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre senti prazer em apren<strong>de</strong>r, já pensava mais tar<strong>de</strong> vir a<br />

ensinar, fui, a nível nacional, a aluna melhor classificada daquele ano, o que me<br />

valeu, para além <strong>de</strong> um prémio instituído para atribuição aos melhores alunos do<br />

País, a dispensa ao exame da Faculda<strong>de</strong>». E frisou: «Ao longo do curso do liceu<br />

sempre senti uma forte vocação pela matemática. Era uma das disciplinas que me<br />

encantava, levando-me a consi<strong>de</strong>rar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tirar o curso superior <strong>de</strong><br />

Matemática e enveredar pelo ensino <strong>de</strong>ssa disciplina, mas, terminado o liceu e em<br />

conversa com o meu professor <strong>de</strong> matemática, que era um homem muito experiente<br />

5/11


e sensato, fui alertada para a dureza que constituía o ensino liceal, pelo que, o<br />

professor me aconselhou a reflectir sobre um curso com uma área mais abrangente,<br />

uma área mais vasta, e falou-me em Medicina. A partir daquele momento comecei a<br />

pensar muito seriamente numa carreira médica e acabei por optar por Medicina. Vim<br />

para Lisboa e inscrevi-me na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> Lisboa. Foi até hoje!».<br />

O amor às crianças impediu o abraço à especialida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Pediatria<br />

«Com que encantos me cruzei no curso <strong>de</strong> Medicina? Foram muitos os encantos com<br />

que me cruzei ao longo do curso, mas para precisar e acentuar melhor essa minha<br />

relação com o curso <strong>de</strong> Medicina, posso dizer-lhe, por exemplo, que chegada ao<br />

terceiro ano, fiquei muito atraída pela Anatomia Patológica. A Anatomia Patológica<br />

tinha sido, até aquele ano, a disciplina <strong>de</strong> que mais gostara. O curso continuou e, no<br />

quinto ano, encontrei outra paixão:a Pediatria. Cheguei ao fim do curso dividida entre<br />

duas especialida<strong>de</strong>s: a Anatomia Patológica e a Pediatria. Vacilei entre as duas e na<br />

altura da opção tinha-me <strong>de</strong>cidido pela Pediatria. Entretanto, já durante o estágio da<br />

especialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pediatria – eu sempre adorei crianças em qualquer ida<strong>de</strong> – comecei<br />

a perceber o quanto me era difícil lidar com o sofrimento das crianças. Não podia ver<br />

uma criança a chorar com uma dor. Não sabia calar o sofrimento dos pais. Eu própria<br />

sofria por ver uma criança doente. Tudo me era tão difícil que resolvi inverter o<br />

sentido das intenções. O Professor <strong>de</strong> Anatomia Patológica, Jorge da Silva Horta, logo<br />

na altura do meu exame – tive <strong>de</strong>zanove valores – convidou-me para Assistente,<br />

mas hesitei e não aceitei <strong>de</strong> imediato. Mais tar<strong>de</strong>, fui fazer a tese <strong>de</strong> licenciatura no<br />

Serviço <strong>de</strong> Anatomia Patológica. Foi a confirmação da importância que encontrava<br />

naquela ciência. Assim que terminei o curso, comecei imediatamente a trabalhar<br />

como Assistente no Serviço e no Instituto <strong>de</strong> Anatomia Patológica».<br />

A <strong>Professora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong>, acreditamos nós que talvez por ter focado<br />

<strong>de</strong> novo o ensino, tornou o seu olhar já brilhante ainda com mais brilho. Dos seus<br />

olhos negros foi projectada uma luz muito intensa que iluminou a afirmação: «Não<br />

imagina o gosto, a alegria que eu sentia quando ia dar uma aula. Actualmente julgo<br />

que não há este entusiasmo pelo ensino. É in<strong>de</strong>scritível o gosto que sinto na<br />

comunicação com os alunos, o que se mostrou ainda mais gratificante quando ocupei<br />

o cargo <strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>nte do Conselho Pedagógico da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> Lisboa e<br />

Vice-Reitora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Não tenho a menor dúvida em afirmar que a<br />

gran<strong>de</strong> paixão que encontrei em toda a minha carreira profissional foi realmente<br />

ensinar».<br />

6/11


Em cada reprovação ficava a chancela da justiça<br />

E porque os muitos testemunhos <strong>de</strong>ixados reflectem com rigor o quanto a <strong>Professora</strong><br />

adorou a docência, era chegado o momento das nossas intervenções em discurso<br />

directo: Senhora <strong>Professora</strong>, enquanto docente foi muito exigente? «Fui. Fui <strong>de</strong> facto<br />

uma docente exigente mas sempre dialogante com os alunos. Uma das queixas que<br />

me chegava era exactamente <strong>de</strong>rivada à minha exigência. Eu chegava às aulas<br />

práticas e interrogava os alunos, <strong>de</strong>pois anotava na ca<strong>de</strong>rneta <strong>de</strong> cada um as notas<br />

que lhes tinha atribuído, notas essas que muitas vezes provocaram manifestações <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sagrado, mas eu dizia-lhes sempre: “eu estou aqui para ensinar, têm que enten<strong>de</strong>r<br />

que aqui sou a professora, e cabe-nos a todos assumir um compromisso mútuo. Eu<br />

ensino, vocês apren<strong>de</strong>m, são estas as regras da nossa relação”. E foi assim ao longo<br />

dos anos. Exigente mas sempre dialogante». Muito bem, era afinal a mesma<br />

verticalida<strong>de</strong> e a mesma comunicabilida<strong>de</strong> que a Senhora tem apresentado nestas<br />

duas horas <strong>de</strong> conversa. Mas, e ainda antes <strong>de</strong> encerrarmos o capítulo do ensino,<br />

suscitou-nos outra questão: com que sentimento a Senhora ficava sempre que<br />

reprovava um aluno? «Ficava sempre muito triste. Recordo-me perfeitamente que<br />

uma vez reprovei uma aluna que estava a estudar com uma bolsa <strong>de</strong> estudo e, se<br />

7/11


eprovasse o ano, o que acontecia se reprovasse na minha disciplina, per<strong>de</strong>ria a<br />

bolsa. Ora, já era a terceira vez que essa aluna vinha repetir o exame, mas vinha tão<br />

mal, mas tão mal preparada que tive mesmo que a reprovar. A aluna veio ter comigo<br />

a chorar copiosamente para que eu a <strong>de</strong>ixasse repetir o exame nessa mesma época,<br />

mas não <strong>de</strong>ixei. Era o terceiro exame a que se submetia e sempre sem o mínimo <strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>ração e respeito pelas obrigações a que estava sujeita. As regras do jogo<br />

eram bem conhecidas <strong>de</strong> todos, e esta aluna <strong>de</strong>monstrava uma tal falta <strong>de</strong><br />

preparação que era completamente impensável um resultado que não fosse a<br />

reprovação». E concluiu: «Durante os muitos anos em que ministrei aulas, tive<br />

sempre a preocupação <strong>de</strong> nos exames orais fazer perguntas sobre várias matérias<br />

que tinha leccionado, nunca me cingia só a um assunto, o que me parecia razoável<br />

na medida em que, entre tanta matéria, alguma os alunos haviam <strong>de</strong> saber. Mas em<br />

tantos anos <strong>de</strong> ensino, creia que foi sempre com justiça que reprovei os alunos que<br />

tive que reprovar. Os dias seguintes aos da reprovação eram sempre dias tristes,<br />

mas era uma tristeza tranquila porque em consciência tinha sido justa».<br />

O ensino é uma mais valia para o docente<br />

É comum dizer-se que a ensinar também se apren<strong>de</strong>.<br />

Sendo ou não uma frase feita, utilizámo-la para perguntar à <strong>Professora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong><br />

<strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong> se concordava com a verda<strong>de</strong> do aforismo. A resposta chegou-nos<br />

pronta: «Mas sem dúvida que é uma gran<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. A ensinar apren<strong>de</strong>-se e muito.<br />

E apren<strong>de</strong>- se até pelo facto <strong>de</strong> sermos obrigados a estudar para preparar as aulas, e<br />

essa preparação obe<strong>de</strong>ce necessariamente a um estudo <strong>de</strong> actualização das<br />

matérias. E senão repare: tudo o que aprendi quando fiz a minha especialida<strong>de</strong> -<br />

actualmente é fruto dos constantes avanços observados na medicina - nem tudo é<br />

verda<strong>de</strong>. Os conceitos <strong>de</strong> hoje não serão <strong>de</strong>certo os <strong>de</strong> amanhã. Os avanços em<br />

medicina são explosivos. É absolutamente necessária uma constante actualização em<br />

todas as áreas da ciência médica para que o docente responda cabalmente à gran<strong>de</strong><br />

responsabilida<strong>de</strong> que envolve a formação dos profissionais <strong>de</strong> amanhã».<br />

“Tenho muita dificulda<strong>de</strong> em mitigar a dor <strong>de</strong> quem sofre”<br />

A <strong>Professora</strong>, aten<strong>de</strong>ndo a que é especialista em Anatomia Patológica, não tem por<br />

isso contacto directo com o doente. Ora, sendo uma pessoa tão próxima, tão<br />

comunicativa, tão afável, afinal uma pessoa que se rege inteiramente pelos altos<br />

valores ditados pelo humanismo, será que não sente necessida<strong>de</strong> do contacto com o<br />

doente? Necessida<strong>de</strong> da dádiva do seu saber enquanto médica e entrega voluntariosa<br />

8/11


dos bens morais que a caracterizam? Foi exactamente esta a questão que se nos<br />

ofereceu colocar e que a <strong>Professora</strong> respon<strong>de</strong>u com a voz serena do sentimento:<br />

«Conforme atrás lhe revelei, a dificulda<strong>de</strong> que senti na Pediatria, o mesmo se passa<br />

com qualquer outro doente. Confesso que tenho extrema dificulda<strong>de</strong> em lidar com a<br />

pessoa doente. Tenho dificulda<strong>de</strong> em ver, em lidar com o sofrimento humano e nem<br />

sempre ter possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mitigar a dor dos que sofrem. Mas permita-me dizer-lhe<br />

que a minha especialida<strong>de</strong>, a Anatomia Patológica, é uma especialida<strong>de</strong> que lida com<br />

a vida. É uma especialida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> nós, através dos tecidos, estamos a estudar a vida.<br />

Em gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> doenças, como por exemplo no cancro, só é possível instituir<br />

uma terapêutica a<strong>de</strong>quada na base <strong>de</strong> um diagnóstico anatomo-patológico rigoroso.<br />

E não só a terapêutica. Em gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> situações po<strong>de</strong>mos também avaliar a<br />

evolução e o prognóstico da doença».<br />

Com a riqueza expressa nestas curtas mas tão profundas palavras trazidas por um<br />

timbre <strong>de</strong> voz pausado e aquecido pelo sentimento, a <strong>Professora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Lacerda</strong> ainda observou: «A base científica da doença começou a ser estudada com a<br />

Anatomia Patológica».<br />

A Investigação Científica na Anatomia Patológica<br />

Senhora <strong>Professora</strong>, convidamo-la agora a <strong>de</strong>bruçar-se sobre a investigação<br />

científica.<br />

Apelando ao seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese na resposta, eis a pergunta que se nos oferece:<br />

consi<strong>de</strong>ra que a investigação científica é uma das missões fundamentais <strong>de</strong> qualquer<br />

Universida<strong>de</strong>? «A investigação científica é, em todos os aspectos, um elemento<br />

primordial em qualquer Universida<strong>de</strong>». E acrescentou: «Mas para uma investigação<br />

ser inovadora e competitiva a nível nacional e internacional, é indispensável haver<br />

meios técnicos, económicos e humanos, o que, e confesso-lhe com alguma mágoa,<br />

nem sempre consegui reunir no <strong>de</strong>curso da minha vida académica. A especialida<strong>de</strong><br />

médica que pratiquei é complexa, <strong>de</strong>senvolveu-se <strong>de</strong> forma explosiva sobretudo a<br />

partir da década <strong>de</strong> 80 do século XX e, como eu disse na minha “Última Lição”,<br />

“transformou-se numa encruzilhada <strong>de</strong> saberes em que a Imunologia, a Genética, a<br />

Biologia Molecular e a Histoquímica se encontram e completam”. A investigação em<br />

Anatomia Patológica tem que ser multidisciplinar e envolver todas aquelas áreas do<br />

saber. Des<strong>de</strong> sempre estive consciente <strong>de</strong>ssa certeza, e muito particularmente a<br />

partir da altura em que estive na Alemanha, no Instituto <strong>de</strong> Anatomia Patológica da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Kiel, com o Professor Karl Lennert, e quando, por convite <strong>de</strong>sse<br />

Professor, integrei o Grupo Europeu do Estudo dos Linfomas».<br />

9/11


E a <strong>Professora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong> terminou com palavras sentidas: «Não<br />

quero terminar este apontamento sem <strong>de</strong>ixar um apelo em forma <strong>de</strong> esperança: é<br />

chegado o momento <strong>de</strong> a Anatomia Patológica vir a ser consi<strong>de</strong>rada, na <strong>sua</strong> vertente<br />

<strong>de</strong> investigação, um dos pilares mais importantes no <strong>de</strong>senvolvimento científico da<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> Lisboa».<br />

O a<strong>de</strong>us à cátedra<br />

Sabendo nós que o mundo virtual on<strong>de</strong> estes “escritos” são apostos não limita o<br />

espaço do escriba, preten<strong>de</strong>mos contudo respeitar o espaço em tempo <strong>de</strong> quem nos<br />

lê. De quem, como nós, sorve as palavras aqui mudas, mas, apesar da <strong>sua</strong> mu<strong>de</strong>z,<br />

<strong>de</strong>las emergem valores e significados que a História das Gran<strong>de</strong>s Figuras saberá<br />

guardar.<br />

Muito da conversa com a <strong>Professora</strong> <strong>Doutora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> <strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong> ficou por<br />

trazer à impessoalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta via <strong>de</strong> comunicação, mas julgamos ter trazido alguns<br />

dos traços que <strong>de</strong>finem a Mulher, a Médica, a <strong>Professora</strong> Catedrática.<br />

E porque a vida existe, eis os gostos da <strong>Professora</strong>: «Gosto muito <strong>de</strong> cinema, <strong>de</strong><br />

viajar e <strong>de</strong> ler. O país da minha eleição? Depois <strong>de</strong> Portugal, e muito concretamente<br />

a minha terra, o Algarve, elegia Itália. O filme da minha vida? São dois: “Casablanca”<br />

e “África Minha”. Se gosto <strong>de</strong> comer? Não, como pouco, mas aprecio uma boa sopa e<br />

um bom peixe fresco, grelhado ou “ao sal”».<br />

10/11


Depois <strong>de</strong> mais uns saudáveis instantes <strong>de</strong> boa disposição, era chegado o momento<br />

<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>spedirmos.<br />

Para trás tinham ficado horas embelezadas pelo dizer <strong>de</strong> quem, no ano <strong>de</strong> 1960, se<br />

licenciou em Medicina pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. De<br />

quem no ano <strong>de</strong> 1978 atingiu o grau académico <strong>de</strong> <strong>Doutora</strong>. De quem em 1997<br />

ocupou o lugar <strong>de</strong> <strong>Professora</strong> Catedrática, e <strong>de</strong> quem, no dia 20 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 2005,<br />

leu a <strong>sua</strong> “Última Lição” na Aula Magna da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> Lisboa.<br />

Foi o a<strong>de</strong>us a uma longa carreira iniciada e terminada na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong><br />

Lisboa e no Hospital <strong>de</strong> Santa <strong>Maria</strong>.<br />

Foi o a<strong>de</strong>us à cátedra.<br />

Foi o momento solene da jubilação da <strong>Professora</strong> <strong>Doutora</strong> <strong>Maria</strong> <strong>José</strong> Mascarenhas<br />

<strong>Forjaz</strong> <strong>de</strong> <strong>Lacerda</strong>.<br />

11/11

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!