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<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana Número 01 Outono Inverno 2004 15C _<br />
LUGARES DE PARTIDA<br />
SAGRES LÍDIA JORGE<br />
CIDADES INVISÍVEIS<br />
FERVOR DE BUENOS AIRES<br />
VIDAS CONTADAS<br />
ENTREVISTA COM VOLODIA TEITELBOIM<br />
A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />
NO RASTO DE CABRAL ANTÓNIO BORGES COELHO<br />
CRUZEIRO DO SUL<br />
NERUDA E UMA PEDRA<br />
COBERTA DE MUSGO LUIS SEPÚLVEDA
<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana Número 01 Outono Inverno 2004<br />
3 MANIFESTO EDITORIAL João Ventura<br />
4 TODOS OS NOMES<br />
6 LUGARES DE PARTIDA<br />
Sagres Lídia Jorge<br />
10 VAGA GENTE<br />
Um mineiro portimonense no Alto Peru Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
12 TRAVESSIAS<br />
Sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Chiriquí Maria Angeles Sallé<br />
16 CIDADES INVISÍVEIS<br />
FERVOR DE BUENOS AIRES<br />
18 Buenos Aires <strong>de</strong> hoje pelos caminhos <strong>de</strong> Borges João Ventura<br />
24 Na cida<strong>de</strong> dos livros João Ventura<br />
30 Os editores in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes em épocas <strong>de</strong> crise Daniel Divinsky<br />
32 Delírios porteños Carlos Cáceres Monteiro<br />
38 MALA DIPLOMÁTICA<br />
Entrevista com Jorge Faurie, embaixador da República<br />
da Argentina Beatriz Padilla<br />
42 MEMÓRIA DE FOGO<br />
A saga andina do <strong>de</strong>us Con Osvaldo Henrique Urbano<br />
46 BESTIÁRIO<br />
Peixe-boi ou peixe-mulher? Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />
48 RIOS PROFUNDOS<br />
Magdalena, un río <strong>de</strong>l olvido Janet Núñez<br />
54 ALTAS SOLIDÕES<br />
Machu Picchu Pablo Neruda<br />
56 VIDAS CONTADAS<br />
Entrevista com Volodia Teitelboim Regina Rodríguez<br />
70 A BIBLIOTECA DE BABEL<br />
Aventuras e <strong>de</strong>sventuras <strong>de</strong> uma biblioteca nos trópicos<br />
Lilia Moritz Schwarcz<br />
76 A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />
78 Yo vengo <strong>de</strong> las Indias Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
86 No rasto <strong>de</strong> Cabral António Borges Coelho<br />
90 Carta do Novo Mundo Américo Vespúcio<br />
92 Desassossego <strong>de</strong> uma mãe ausente Francisca <strong>de</strong> Trujillos<br />
94 Nuestra America es vasta y intricada Pablo Neruda<br />
96 A SEDE DO SUL<br />
Pisco Sonia Tello Rozas<br />
100 SINAIS DE FUMO<br />
Dos tabacos ou fumaças dos índios no Haiti no século XVI<br />
segundo um cronista espanhol<br />
102 ESTÁDIO DE SÍTIO<br />
Estádio centenário <strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u Arón Mazas<br />
104 SABORES PRINCIPAIS<br />
Da canjica ao bacalhau. Uma arqueologia dos hábitos<br />
alimentares <strong>de</strong> uma família portuguesa nas Minas Gerais setecentistas<br />
José Newton Coelho Meneses<br />
108 ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM<br />
Portugal nos confins do mundo Roberto Ampuero<br />
110 O QUE FAÇO EU AQUI<br />
O preço da minha vida João <strong>de</strong> Melo<br />
114 CRUZEIRO DO SUL<br />
Neruda e uma pedra coberta <strong>de</strong> musgo Luis Sepúlveda<br />
120 A MARESIA DO MUNDO<br />
Um poema inédito António Ramos Rosa<br />
122 FICÇÕES<br />
Lagoa Blues Tabajara Ruas<br />
128 CORRENTES ATLÂNTICAS<br />
130 O verda<strong>de</strong>iro nascimento <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l Horacio Vázquez-Rial<br />
132 O bolero em tempo <strong>de</strong> amor Alberto Mosquera Moquillaza<br />
138 Os mortos comadam os vivos<br />
ou também <strong>de</strong> motocicleta se atravessa o mar Anabela Moutinho<br />
142 A COMPANHIA DOS LIVROS
A aposta numa revista <strong>de</strong> natureza multidisciplinar<br />
sobre a experiência <strong>cultura</strong>l <strong>ibero</strong>-americana constitui<br />
um <strong>de</strong>safio ético aberto à participação daqueles que<br />
acreditam que a <strong>cultura</strong>, para além <strong>de</strong> factor <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
dos povos, é, ainda, vector <strong>de</strong> aproximação inter<strong>cultura</strong>l,<br />
na circunstância, entre as duas margens atlânticas.<br />
Pensamos que um projecto <strong>de</strong>sta natureza <strong>de</strong>verá traduzir<br />
uma certa epistemolização <strong>de</strong> um discurso sobre a<br />
Ibero-América, assente em motivações <strong>cultura</strong>is, éticas,<br />
estéticas e políticas suficientemente claras para todos os<br />
que queiram colaborar. Não recusamos, portanto, um<br />
método e uma programação que, aliás, o roteiro <strong>de</strong> conteúdos<br />
previamente <strong>de</strong>finido preten<strong>de</strong> expressar. Mas,<br />
ainda assim, esse método <strong>de</strong>ve ser entendido mais na<br />
acepção <strong>de</strong> caminho ou trajecto do que na sua expressão<br />
positivista. Por isso, embora tenhamos i<strong>de</strong>ias claras e distintas<br />
sobre a forma <strong>de</strong> abordar a experiência <strong>cultura</strong>l<br />
<strong>ibero</strong>-americana, não rejeitamos trabalhar com intenções<br />
e ficções <strong>de</strong> todo o género para nos aventurarmos nesse<br />
«jardim dos caminhos que se bifurcam» que é a Ibero-<br />
-América. E que po<strong>de</strong>rá ser também esta revista, em termos<br />
dos itinerários <strong>de</strong> sentidos a percorrer.<br />
Trata-se, então, <strong>de</strong> um exercício da nossa curiosida<strong>de</strong><br />
em relação ao «velho Novo Mundo» que há quinhentos<br />
anos os nossos navegadores começaram a inventar e ao<br />
qual, hoje, com este projecto editorial, procuramos regressar,<br />
interpretando sinais, traços, distinções, semelhanças<br />
on<strong>de</strong> se espelha a alma <strong>ibero</strong>-americana cuja<br />
matriz é, também, lusófona. Da experiência indo-afro-<br />
-<strong>ibero</strong>-americana tratará, pois, esta revista, espécie <strong>de</strong><br />
ponte sobre o Atlântico atravessada nos dois sentidos para<br />
nos reconhecermos, uns e outros, na nossa outra meta<strong>de</strong><br />
comum. Porque para nós hoje, como no passado o<br />
foi para os navegadores ibéricos, o Atlântico não separa,<br />
antes une dois continentes.<br />
Mar <strong>de</strong> encontros, portanto, apesar do <strong>de</strong>sencontro<br />
inicial da conquista. Porque as águas que fluem nas<br />
nossas praias ibéricas, atlânticas as <strong>de</strong> Portugal, mediterrânicas<br />
as da Andaluzia, são as mesmas que banham as<br />
Antilhas, entram pelo Golfo do México e correm, <strong>de</strong>pois,<br />
rumo ao sul ao longo da costa da América do Sul,<br />
unindo-se, finalmente, ao Pacífico no Estreito <strong>de</strong> Magalhães,<br />
para voltar a subir numa viagem <strong>de</strong> circum-navegação<br />
que incessantemente recomeça. Eis a geografia exterior<br />
da Ibero-América que é, também, a referência<br />
espacial da revista e que nos leva a perguntar, como<br />
Bruce Chatwin, o que fazemos ali, no outro lado do mar,<br />
quando como turistas aci<strong>de</strong>ntais percorremos as paisagens,<br />
as gentes, as <strong>cultura</strong>s, os costumes, as gastronomias<br />
e as surpresas do «velho Novo Mundo».<br />
A história comum <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros. De<br />
Vespúcio e dos cronistas das Índias a Neruda, Carpentier e<br />
Manifesto editorial<br />
João Ventura<br />
Gabriel García Márquez, quase sempre uma América inventada,<br />
imaginada, feita <strong>de</strong> encantos e <strong>de</strong>sencantos. Mas<br />
também a Ibero-América imaginada por Borges, Cortázar,<br />
Valejo, Paz, Onetti, Jorge Amado e tantos outros, cujas<br />
vidas são como as estrelas, caindo do alto do céu sobre<br />
este imenso Sul. E também aqueles que, como uma<br />
imensa corrente atlântica, <strong>de</strong>rramam nas nossas praias as<br />
novas figuras da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>ibero</strong>-americana.<br />
Os lugares <strong>de</strong> partida e <strong>de</strong> chegada da «vaga gente<br />
sem geografia cumprindo em sua carne, obscuramente,<br />
seus hábitos», como conta Borges a Pessoa. Os portos e as<br />
praias da memória. Outras travessias <strong>de</strong> ida e volta entre a<br />
sauda<strong>de</strong> e a esperança <strong>de</strong> corações emigrantes navegando<br />
num mar Atlântico em cujas águas ver<strong>de</strong>s, azuis e negras<br />
se espelha a nossa essência comum.<br />
Ver toda a América <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Machu Picchu. Das águas<br />
ver<strong>de</strong>-limão das Caraíbas às «altas solidões» dos An<strong>de</strong>s. Da<br />
infinita e ver<strong>de</strong> Amazónia aos glaciares azuis do Sul da Patagónia.<br />
Das paisagens lunares do <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> Atacama aos<br />
inumeráveis fior<strong>de</strong>s do arquipélago <strong>de</strong> Chiloé. Viagem<br />
através dos seus «rios profundos». «Rios <strong>de</strong> raças, pátrias<br />
<strong>de</strong> raízes», no dizer <strong>de</strong> Neruda. Amazonas, Magdalena,<br />
Urubamba, Orinoco. «América arvoredo, sarça selvagem<br />
entre os mares», on<strong>de</strong> crescem o jacarandá e a araucária,<br />
mas também o café, o tabaco e o chocolate. Sobrevoada<br />
por tucanos, colibris, papagaios e condores. E on<strong>de</strong>, à<br />
noite, assoma o jaguar. Também, os lugares dos antigos<br />
construtores. Chichén Itzá,Teotihuacán, Mayapán. Resgatar<br />
da «memória do fogo» os mitos fundadores, as primeiras<br />
vozes, os lugares da criação. Quetzalcóatl. Pachacamac.<br />
As cida<strong>de</strong>s. As da ausência, a Cuzco inca ou a Tenochititlán<br />
asteca, em cujos labirintos imaginários nos per<strong>de</strong>mos.<br />
E as outras, <strong>ibero</strong>-americanas. A Cida<strong>de</strong> do Panamá,<br />
espécie <strong>de</strong> ilha cercada <strong>de</strong> selva e mar. A Cida<strong>de</strong> do<br />
México, «cida<strong>de</strong> do sol parado, cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> calcinações<br />
longas, cida<strong>de</strong> a fogo lento». Ou Santiago «das mulheres<br />
formosas com olhares <strong>de</strong> uva». Ou o Rio <strong>de</strong> Janeiro, cida<strong>de</strong><br />
maravilhosa. Ou a secreta Buenos Aires inventada por<br />
Borges. Ou todas as outras que convidamos a <strong>de</strong>scobrir,<br />
«porque aquilo que nos interessa é o que o viajante vê».<br />
Outras inquirições, também. A Ibero-América nascida<br />
como tragédia que se repete, hoje, como melodrama na<br />
vida <strong>de</strong> todos os dias. Excesso e improvisação em cenário<br />
<strong>de</strong> telenovela. A «maracanização» do continente. Violência<br />
e narcotráfico. As tremendas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.<br />
Mas também os novos movimentos sociais. Outras conspirações.<br />
A política entendida como «sinónimo <strong>de</strong><br />
reconstrução, mas sobretudo <strong>de</strong> construção, na Ibero-<br />
-América». Por isso, como acredita Carlos Fuentes, a esperança<br />
<strong>de</strong> uma melhor Ibero-América, no futuro, on<strong>de</strong><br />
a utopia dos que viveram «os cem anos <strong>de</strong> solidão» possa<br />
recuperar, finalmente, o seu rosto verda<strong>de</strong>iro.
TODOS OS NOMES 4<br />
5<br />
ALBERTO MOSQUERA MOQUILLAZA [Lima, Peru] é antropólogo pela Universida<strong>de</strong> Nacional Mayor <strong>de</strong> San Marcos<br />
e Mestre em História da Filosofia na mesma Universida<strong>de</strong>, tendo exercido o jornalismo e colaborado em várias publicações<br />
periódicas da capital peruana. Actualmente é docente na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Económicas da UNMSM, on<strong>de</strong><br />
também é o coor<strong>de</strong>nador da edição da sua revista institucional. ANABELA MOUTINHO [Faro, Portugal] é professora<br />
<strong>de</strong> Filosofia do ensino secundário e Professora Convidada na Escola Superior <strong>de</strong> Educação [Universida<strong>de</strong> do Algarve]<br />
e presi<strong>de</strong>nte do Cine Clube <strong>de</strong> Faro. ANTÓNIO BORGES COELHO [Lisboa, Portugal] é Doutor em Letras e Professor<br />
Catedrático jubilado da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Fundador e Presi<strong>de</strong>nte do ICIA <strong>de</strong> 1995 a 1998. Figura cimeira<br />
da <strong>cultura</strong> portuguesa, Director do Mundo Diplomático, é autor <strong>de</strong> numerosos títulos sobre a Expansão Portuguesa, a Inquisição<br />
e os Cristãos-Novos, além <strong>de</strong> poeta, jornalista e romancista. ANTÓNIO RAMOS ROSA [Faro, Portugal] é um<br />
dos gran<strong>de</strong>s poetas portugueses contemporâneos. Poeta das coisas primordiais, da luz, da pedra e da água, recebeu<br />
inúmeros prémios nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa, em 1998. A sua vasta obra poética e ensaística<br />
encontra-se publicada em numerosos livros, revistas e antologias. ARÓN MAZAS [Montevi<strong>de</strong>u, Uruguai] é jornalista<br />
<strong>de</strong>sportivo acreditado pelo Instituto Profesional <strong>de</strong> Estudios Periodisticos. Actualmente frequenta o curso <strong>de</strong><br />
Ciência Política na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> la República Oriental <strong>de</strong>l Uruguay. BEATRIZ PADILLA [Mendoza, Argentina] obteve<br />
vários graus académicos em diferentes universida<strong>de</strong>s [Universida<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Cuyo, Argentina; Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Texas-Austin, Estados Unidos] e doutorou-se em Sociologia na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Illinois, Urbana-Champaign. É Professora<br />
Auxiliar na Universida<strong>de</strong> Autónoma <strong>de</strong> Lisboa, Professora Convidada no Instituto Superior Técnico <strong>de</strong> Lisboa e Investigadora<br />
<strong>de</strong> pós-doutoramento no CIES-ISCTE. CARLOS CÁCERES MONTEIRO [Lisboa, Portugal], jornalista e<br />
«repórter <strong>de</strong> guerra», tem <strong>de</strong>senvolvido intensa activida<strong>de</strong> jornalística. Recebeu o Gran<strong>de</strong> Prémio <strong>de</strong> Jornalismo <strong>de</strong><br />
2002 atribuído pelo Clube Português <strong>de</strong> Imprensa. É director da revista Visão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fundação. Publicou recentemente<br />
Hotel Babilónia. DANIEL DIVINSKY [Buenos Aires, Argentina] editor, é sócio e director da prestigiada editora<br />
argentina Ediciones <strong>de</strong> la Flor, fundada en 1966 e uma das poucas que subsistiram como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. O seu catálogo,<br />
<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 600 títulos, compreen<strong>de</strong> diversas temáticas, sendo o humor gráfico e escrito um dos mais significativos<br />
[com autores paradigmáticos como Quino, Fontanarrosa, Caloi e Rep, entre os dibujantes argentinos], além da narrativa<br />
do ensaio filosófico e político, do teatro argentino e latino-americano e da literatura infantil. HENRIQUE CAYATTE<br />
[Lisboa, Portugal] é presi<strong>de</strong>nte do Centro Português <strong>de</strong> Design e Professor Convidado da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro. Foi fundador<br />
e autor do <strong>de</strong>sign global, editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sign da EXPO'98 e do respectivo plano <strong>de</strong> pormenor do recinto. Co-autor do sistema <strong>de</strong> sinalética e comunicação da<br />
EXPO’98. Co-autor e responsável pelo <strong>de</strong>sign da revista Egoísta. Comissário e autor do <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> diversas exposições em<br />
Portugal e no estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu em 2003 o Prémio Nacional <strong>de</strong> Design e o Prémio Dibner<br />
Award. HORACIO VÁZQUEZ-RIAL [Buenos Aires, Argentina] é Doutor em Geografia e História pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Barcelona e autor <strong>de</strong> diversas obras <strong>de</strong> ensaio. Resi<strong>de</strong>nte há muito em Barcelona, <strong>de</strong>u-se a conhecer ao público com o<br />
livro Segundas Personas em 1983. Des<strong>de</strong> então, tem publicado numerosos livros, dois dos quais foram finalistas do Prémio<br />
Nadal e do Prémio Internacional <strong>de</strong> Romance Plaza & Janés. JANET NÚÑEZ [Barranquilla, Colômbia] é licenciada em<br />
Design <strong>de</strong> Interiores. Durante 12 anos trabalhou como directora, produtora ou assistente en diferentes projectos <strong>de</strong><br />
cinema e televisão. Nos últimos anos tem-se <strong>de</strong>dicado à promoção e produção <strong>de</strong> eventos <strong>cultura</strong>is, sendo Professora<br />
<strong>de</strong> Produção <strong>de</strong> TV e Guiões Cinematográficos. JOÃO DE MELO [Açores, Portugal] é licenciado em Românicas pela<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Escritor, tem-se notabilizado sobretudo como ficcionista, embora a sua obra se inscreva em diferentes<br />
domínios como o ensaio, a crítica literária, a poesia e a crónica. Publicou numerosos títulos e obteve vários<br />
prémios literários, entre os quais o Gran<strong>de</strong> Prémio <strong>de</strong> Romance e Novela da Associação Portuguesa <strong>de</strong> Escritores e o<br />
Prémio Cristóbal Colón das cida<strong>de</strong>s capitais <strong>ibero</strong>-americanas [Lima, Peru] com o livro Gente Feliz com Lágrimas [1989].<br />
Actualmente é adido <strong>cultura</strong>l da embaixada <strong>de</strong> Portugal em Madrid. JOÃO MARIANO [Aljezur, Portugal] é fotógrafo.<br />
Editou e coor<strong>de</strong>nou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> fotografia do portal Terràvista e actualmente<br />
dirige a agência 1000olhos – Imagem e Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993. Colabora eventualmente com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA [Portimão,<br />
Portugal] é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências<br />
Documentais [área <strong>de</strong> Bibliotecas] pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi leitor <strong>de</strong> Língua e Cultura Portuguesas na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Paris III e docente convidado na Escola Superior <strong>de</strong> Educação da Universida<strong>de</strong> do Algarve. Entre 1998 e 2003<br />
<strong>de</strong>sempenhou as funções <strong>de</strong> Delegado Regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente <strong>de</strong>senvolve activida<strong>de</strong><br />
na área da gestão <strong>cultura</strong>l. JORGE FAURIE [Argentina] é advogado e diplomata. Especialista em questões latinoamericanas,<br />
tem assumido vários cargos políticos <strong>de</strong> relevo, nomeadamente como Director no Mercosul e Vice--Ministro<br />
<strong>de</strong> Negócios Estrangeiros da Argentina, <strong>de</strong>sempenhando actualmente o cargo <strong>de</strong> Embaixador em Portugal. JOSÉ<br />
NEWTON COELHO MENESES [Virginópolis, Brasil] é Doutor em História Social pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />
e Professor Adjunto da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. Colabora na revista brasileira Nossa História e é autor
<strong>de</strong> O Continente Rústico. Abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas [Maria Fumaça Editora] e <strong>de</strong> História & Turismo Cultural<br />
[Editora Autêntica]. JOSUÉ BARRIOS [Lima, Peru] é engenheiro comercial, formador <strong>de</strong> Recursos Humanos e fotógrafo.<br />
GABRIELA CÁNOVAS [Santiago, Chile] é artista plástica [pintura e <strong>de</strong>senho gráfico]. Fez os seus estudos académicos<br />
na Universida<strong>de</strong> do Chile e na Universida<strong>de</strong> Complutense <strong>de</strong> Madrid. Tem exposto os seus trabalhos no Chile,<br />
em Espanha, em França, na Austrália e na Argentina. LÍDIA JORGE [Boliqueime, Portugal] é uma das mais prestigiadas<br />
romancistas portuguesas. É licenciada em Filologia Românica pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Em 1970 partiu para Moçambique,<br />
observando a guerra e os últimos anos da colonização portuguesa em África. Em 1979, Vergílio Ferreira<br />
aconselhou o seu romance O Dia dos Prodígios para publicação.Torna-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então uma das mais importantes romancistas<br />
portuguesas. Recebeu vários prémios literários, entre os quais o Prémio Europeu Jean Monnet com a obra O Vale da<br />
Paixão [1998] e, em 2003, o Gran<strong>de</strong> Prémio <strong>de</strong> Romance da Associação Portuguesa <strong>de</strong> Escritores, com o romance O<br />
Vento Assobiando nas Gruas. LILIA MORITZ SCHWARCZ [São Paulo, Brasil] é professora livre-docente no Departamento<br />
<strong>de</strong> Antropologia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo [USP]. Doutorada em Sociologia Social pela USP, tem vários títulos publicados,<br />
dos quais se <strong>de</strong>staca As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos [Assírio & Alvim]. Colaborou na História<br />
da Vida Privada do Brasil e é colaboradora da revista Nossa História editada pela Biblioteca Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
LUIS SEPÚLVEDA [Ovalle, Chile] é um prestigiado romancista chileno cuja obra se encontra traduzida em muitas línguas.<br />
Exilado durante a ditadura, acabou por ficar na Europa, residindo actualmente em Gijón on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolve intensa<br />
activida<strong>de</strong> <strong>cultura</strong>l <strong>de</strong> divulgação da literatura <strong>ibero</strong>-americana, nomeadamente como director do Salón <strong>de</strong>l Libro Iberoamericano.<br />
Autor <strong>de</strong> numerosos livros, conta com vários títulos traduzidos em português, nomeadamente Um Velho<br />
Que Lia Romances <strong>de</strong> Amor, Patagónia Express, História <strong>de</strong> uma Gaivota e do Gato Que Lhe Ensinou a Voar e, recentemente, Uma História Suja.<br />
MARIA ADELINA AMORIM [Luanda, Angola] é Mestre em História do Brasil e Assistente Convidada na Universida<strong>de</strong><br />
Lusófona em Lisboa. É autora <strong>de</strong> vários estudos sobre a missionação no Brasil e sobre a literatura <strong>de</strong> viagens. MARIA<br />
ANGELES SALLÉ [David, República do Panamá] é licenciada em Ciências Políticas e Sociologia pela Universida<strong>de</strong> Complutense<br />
<strong>de</strong> Madrid e Professora Associada em várias universida<strong>de</strong>s espanholas. É membro <strong>de</strong> grupos internacionais <strong>de</strong><br />
especialistas em emprego, <strong>de</strong>senvolvimento e género, e autora <strong>de</strong> diversos projectos <strong>de</strong> investigação, estudos e publicações,<br />
dos quais se <strong>de</strong>staca a edição do livro-disco Travesías, Historias Emigrantes <strong>de</strong> Ayer y Hoy [Metáfora Ediciones] e do livro<br />
La Vi@ en Rosa, Ciberconversaciones <strong>de</strong> Mujeres. MARIA DA GRAÇA A. MATEUS VENTURA [Portimão, Portugal] é Doutora<br />
em Letras pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Fundadora do ICIA, foi Vice-Presi<strong>de</strong>nte da Direcção <strong>de</strong> 1995 a 2002, sendo<br />
Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2002. Membro do Nodo Coor<strong>de</strong>nador da Cátedra <strong>de</strong> História da Ibero-América [OEI] e Coor<strong>de</strong>nadora<br />
Executiva da CEIA, é Professora Convidada na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Humanas e Sociais da Universida<strong>de</strong> do Algarve<br />
no âmbito da Cátedra <strong>de</strong> Estudos Ibero-Americanos. É autora <strong>de</strong> vários estudos sobre a Ibero-América. OSVALDO<br />
HENRIQUE URBANO [Lima, Peru] foi <strong>de</strong> Aveiro para o Canadá on<strong>de</strong> obteve o grau <strong>de</strong> PhD em Ciências Sociais [Université<br />
Laval, Québec] e foi Catedrático <strong>de</strong> Sociologia da mesma Universida<strong>de</strong>. Daqui partiu para o Peru on<strong>de</strong> fundou o<br />
Centro Las Casas [Cuzco, Peru] e a <strong>Revista</strong> Andina. Actualmente é Director do Instituto <strong>de</strong> Investigações da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Ciências da Comunicação, Turismo e Psicologia [Universida<strong>de</strong> San Martín <strong>de</strong> Porres, Lima, Peru] e Director da revista<br />
Turismo y Patrimonio. REGINA RODRÍGUEZ [Santiago, Chile] é jornalista, licenciada em Comunicação pela Universida<strong>de</strong><br />
Complutense <strong>de</strong> Madrid e diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Latinoamericano <strong>de</strong> Estudios Internacionales.<br />
Foi directora da revista Mujeres [Madrid, 1983-1987]. Actualmente é Directora <strong>de</strong> Publicaciones <strong>de</strong> Isis Internacional<br />
[Santiago do Chile]. ROBERTO AMPUERO [Valparaíso, Chile] é um dos romancistas chilenos mais lidos. O seu recente<br />
romance Los Amantes <strong>de</strong> Estocolmo, o maior êxito editorial <strong>de</strong> 2003 no Chile, foi eleito livro do ano pela prestigiada <strong>Revista</strong><br />
<strong>de</strong> Libros do Chile. Os seus romances foram traduzidos em alemão, francês, italiano e português. Em Portugal foi editado,<br />
este ano, o livro Encontro no Azul Profundo [Temas e Debates] que relata parte da saga do seu popular investigador chileno-cubano<br />
Cayetano Brulé. SONIA TELLO ROZAS [Cuzco, Peru] é Mestre em Gestão Cultural, Património e Turismo<br />
pelo Instituto Universitario Ortega y Gasset da Universida<strong>de</strong> Complutense <strong>de</strong> Madrid. Prepara o seu Doutoramento em<br />
Administração na École <strong>de</strong>s Hautes Étu<strong>de</strong>s Commerciales [Montréal, Canadá]. Foi responsável pelo Programa <strong>de</strong> Pós-<br />
-Graduação em Gestão Cultural no Centro <strong>de</strong> Estudios Bartolomé <strong>de</strong> las Casas [Cuzco, Peru] e Directora dos Programas <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Turismo da Universida<strong>de</strong> San Martín <strong>de</strong> Porres <strong>de</strong> Lima [Peru]. TABAJARA RUAS<br />
[Uruguaiana, Brasil] é romancista e cineasta. Estudou arquitectura em Porto Alegre, on<strong>de</strong> se envolveu na luta contra a ditadura<br />
militar brasileira. Por esse motivo exilou-se no Chile, Argentina, Dinamarca e Portugal. Os seus livros foram<br />
traduzidos em Portugal, Dinamarca, Itália, Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia.Trabalha como guionista e jornalista<br />
e é um dos mais <strong>de</strong>stacados escritores brasileiros da actualida<strong>de</strong>. VOLODIA TEITELBOIM [Chillán, Chile] é um<br />
dos nomes mais ilustres das letras chilenas e americanas do século XX. É um escritor multifacetado, autor <strong>de</strong> uma obra<br />
imensa que inclui romances, crónicas, memórias, biografias e ensaios. Integrou a Geração <strong>de</strong> 38 e é autor das biografias<br />
<strong>de</strong> Gabriela Mistral,Vicente Huidobro, Jorge Luis Borges [Temas e Debates] e Pablo Neruda [Temas e Debates]. Foi<br />
galardoado com o Prémio Nacional <strong>de</strong> Literatura do Chile em 2002.
LUGARES DE PARTIDA 6<br />
Sagres Lídia<br />
7<br />
Jorge
Foto <strong>de</strong> João Mariano<br />
Por que razão evitar a palavra outrora? – Outrora<br />
não havia o ruído das estradas, os céus só<br />
<strong>de</strong> muito longe a longe eram riscados pelas rotas<br />
dos aviões, e as partidas eram feitas em gran<strong>de</strong>s<br />
navios, com lenços brancos a acenar e longos<br />
mugidos que amarravam para sempre os corações<br />
amantes às pedras dos cais. Os soutiens das<br />
mulheres eram agudos como se fossem funis, e<br />
os sapatos dos homens rangiam à medida das<br />
suas passadas como se fossem <strong>de</strong> tábua. A música<br />
que se escutava era ainda predominantemente<br />
executada em presença, os lábios e os <strong>de</strong>dos próximos,<br />
a vibrarem contra os instrumentos,<br />
objectos então familiares nas nossas vidas. Hotel<br />
era ainda uma realida<strong>de</strong> mágica que só tinha<br />
consistência nos filmes americanos, e o telefone,<br />
um objecto <strong>de</strong> luxo que distinguia os senhores<br />
das vilas. Transpor distâncias geográficas, breves<br />
que fossem, era ainda uma tarefa assinalável.
LUGARES DE PARTIDA 7<br />
– Muita coisa, pouca coisa? Só o suficiente para<br />
dizer que, se penso em Sagres, é em Sagres <strong>de</strong>sse<br />
outrora que penso.<br />
Regressando lá, a esse outro tempo, em que<br />
se ouvia o pêndulo dos relógios das torres marcarem<br />
as horas íntimas <strong>de</strong> cada um, Sagres <strong>de</strong><br />
outrora não se me afigura um cabo nem um promontório,<br />
mas apenas uma luzinha brilhando no<br />
escuro da penumbra imensa em que se transformou<br />
o passado, a luz intermitente dum farol que<br />
a espaços riscava a noite, quando a noite ainda<br />
podia ser escura. Porque <strong>de</strong> dia a terra esmorecia<br />
<strong>de</strong>sse lado, as formas das casas iam-se per<strong>de</strong>ndo<br />
ao longe, confundindo-se com a rala vegetação<br />
da paisagem, e quando a lonjura quebrava a linha<br />
perceptível e se transformava ela mesma no próprio<br />
fio do horizonte, aí a distância tornava-se<br />
lilás, e <strong>de</strong>saparecia <strong>de</strong> encontro ao mar azul que<br />
por sua vez também <strong>de</strong>saparecia no céu anilado.<br />
Sagres encontrava-se lá, um espaço imerso nesse<br />
lugar vago, on<strong>de</strong> a Terra acabava diante da nossa<br />
vista e <strong>de</strong>saparecia como uma espécie <strong>de</strong> tira <strong>de</strong><br />
fumo. Quando o Outono chegava, a distância<br />
transformava-se em alguma coisa mais palpável,<br />
passava a ser uma proveniência, uma direcção<br />
precisa, um ponto car<strong>de</strong>al <strong>de</strong> on<strong>de</strong> sopravam os<br />
ventos que fustigavam as árvores. Era o local <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> provinham as chuvas arrebatadas <strong>de</strong> Novembro,<br />
as que entravam pela chaminé e aspergiam<br />
a toalha da mesa <strong>de</strong> gotas e salpicos, atingiam<br />
as nossas camas duma humida<strong>de</strong> ainda<br />
quente. Mas Sagres, o verda<strong>de</strong>iro Sagres <strong>de</strong> outrora,<br />
era muito mais do que uma barra esfumada<br />
ou as intempéries que <strong>de</strong> lá provinham.<br />
Sagres era uma pátria nocturna, uma espécie<br />
<strong>de</strong> olho vigilante na noite que vinha ter<br />
connosco à varanda, quando subir as escadas<br />
durante a noite, para ver as estrelas ou distinguir<br />
o rebordo das nuvens, se transformava numa<br />
aventura nas nossas parcas vidas. Também a<br />
Geografia ainda era uma abstracção, mas o que<br />
a nossa mãe contava é que se caminhássemos<br />
por cima do mar, a partir daquela luz, e seguíssemos<br />
sempre em frente, se nos imaginássemos<br />
permanentemente a andar por cima das ondas,<br />
apesar das nossas pernas curtas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> dois,<br />
três anos, chegaríamos à América do Norte. Se<br />
caminhássemos para sul iríamos ter a África, se<br />
nos dirigíssemos para sudoeste – e ela indicava<br />
essa direcção imprecisa com o seu braço, que<br />
nos parecia gigante – então chegaríamos aos<br />
países da América do Sul. Demoraríamos muito,<br />
9<br />
sofreríamos muito, no entanto seria bom, pois<br />
se lá chegássemos, em todos esses lugares, encontraríamos<br />
parentes.<br />
É possível que essas cenas <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong><br />
geografia humana familiar acontecessem também<br />
<strong>de</strong> dia, mas a imagem <strong>de</strong>sse Sagres <strong>de</strong> outrora,<br />
sempre a associo às explicações da noite.<br />
A nossa varanda abria-se exactamente a meio do<br />
Algarve. Mais próximo brilhava o farol do Cabo<br />
Carvoeiro, <strong>de</strong>pois piscava aquele frouxo olho <strong>de</strong><br />
Sagres, tremido, longínquo. Quanto mais tremido<br />
e mais distante, mais doloroso, mais potente,<br />
como se o seu braço <strong>de</strong> luz fizesse a ponte entre<br />
nós que havíamos ficado e todos esses que haviam<br />
partido. Não o nego, aquela luz nas noites<br />
<strong>de</strong> outrora era um lugar que separava e unia a<br />
nossa gente. Gente sem passado nem futuros assinaláveis,<br />
gente que era apenas um só corpo<br />
<strong>de</strong>sunido, disperso pelo mundo. A verda<strong>de</strong> é<br />
que ninguém dali havia partido, àquele lugar<br />
ninguém iria chegar, e no entanto, no relato escuro<br />
da varanda, era como se tudo ali tivesse<br />
acontecido, como se Lisboa, seus cais e aeroporto,<br />
on<strong>de</strong> as partidas reais se davam, não<br />
existissem em lugar nenhum. A partir da nossa<br />
varanda, aquele lugar sudoeste parecia ser o<br />
único ponto car<strong>de</strong>al das nossas vidas. Mas, logo<br />
na primeira curva da infância, viria a História e<br />
viriam os mitos.<br />
Primeiro, a História. As coisas passaram-se<br />
assim – a professora do Liceu mandou apagar<br />
da cabeça todas as histórias <strong>de</strong> luzes e varandas,<br />
para nos contar como certo dia, quinhentos<br />
anos antes, um príncipe português, casto e visionário,<br />
tinha resolvido abandonar a corte, armado<br />
<strong>de</strong> seus cavalos e escu<strong>de</strong>iros, para vir assentar<br />
casa e villa no Sul <strong>de</strong> Portugal, e aqui dar<br />
início aos Descobrimentos Marítimos. A professora<br />
parecia estar enamorada <strong>de</strong>sse príncipe.<br />
Segundo a sua narrativa <strong>de</strong> fábula, o príncipe<br />
havia <strong>de</strong>scoberto, ao atravessar o Algarve, em<br />
direcção do Norte <strong>de</strong> África, que o Promontório<br />
<strong>de</strong> Sagres, muito mais do que um rochedo,<br />
era uma gran<strong>de</strong> mão aberta cujo <strong>de</strong>do indicador<br />
estendido apontava para o futuro do Mar. Em<br />
sua bata branca <strong>de</strong> oficial impecável, a professora<br />
falava da villa, do príncipe, dos sábios italianos<br />
que ali tinham chegado para falarem da rota<br />
das estrelas, dos engenhos, dos barcos e dos<br />
mapas da pequena Terra Cógnita da época, e a<br />
mão aberta do Promontório <strong>de</strong> Sagres, mais do<br />
que um local <strong>de</strong> partida era um local <strong>de</strong> chegada
que em simultâneo ligava o seu rochedo ao extremo<br />
Sul <strong>de</strong> África, à Índia, à China e ao Japão,<br />
ao cabo Horn, como se toda essa façanha <strong>de</strong><br />
séculos tivesse jorrado da testa do príncipe,<br />
prodigiosamente, segundo a mesma lei <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong><br />
que movia o ponteiro da professora<br />
por cima do planisfério. A História tinha então<br />
a forma duma mulher enamorada. Sob o impulso<br />
daquela professora em estado <strong>de</strong> paixão, <strong>de</strong>senhámos<br />
Infantes Dom Henrique sentados nos<br />
rochedos, caravelas no seus ombros e ao seu colo,<br />
fizemos prosa e versos, houve exposições e prémios.<br />
Aquela mulher tinha razão – Sagres, segundo<br />
a sua História, não tinha nada a ver com<br />
a tira lilás que se avistava da varanda, nem com<br />
a luz intermitente que apontava para a distância<br />
do mundo que nos era contemporâneo –. Mas,<br />
como disse, ainda haveria os mitos.<br />
Aliás, <strong>de</strong> modos diferentes, eles nunca tinham<br />
estado ausentes.Talvez uma parte do afecto<br />
seja mito, talvez toda a memória também o seja.<br />
O que sabemos nós da construção do pensamento?<br />
Mas Mitos mitos, aqueles que resumem<br />
os sentidos da existência com a síntese dum alfinete<br />
afiado, esses começariam a ficar cada vez<br />
mais explícitos. Afinal, por alguma razão superior,<br />
Sagres se situava em terras <strong>de</strong> Portugal. O<br />
assunto era tão sibilino quanto resultava claro. –<br />
Por alguma razão <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m teleológica, tão estranha<br />
à vonta<strong>de</strong> humana quanto a chuva ou o<br />
trovão, tinha havido Sagres para que Portugal<br />
pu<strong>de</strong>sse ter enviado primeiro as caravelas, <strong>de</strong>pois<br />
as fundas naus sem fundo, com a Cruz <strong>de</strong><br />
Cristo arvorada nas velas e a doutrina cristã escrita<br />
nos livros. O Império <strong>de</strong> Cristo havia tido<br />
sua cabeça em Portugal. Todo o Portugal, ponta<br />
extrema da Europa, afinal não passava duma lança<br />
<strong>de</strong> Fé chamada Sagres. É preciso lembrar que<br />
nesse tempo as raparigas usavam véus para entrarem<br />
nos templos do Senhor, os cabelos das<br />
suas cabeças ainda precisavam <strong>de</strong>sse abafo contra<br />
os seus próprios males. A pouco e pouco, o Mito<br />
havia tomado conta das nossas vidas e, por isso,<br />
subir acima da varanda da nossa casa já não era<br />
subir acima da varanda da nossa casa para ver o<br />
céu à transparência. Um véu não era um véu. O<br />
simbólico havia-se instalado com sua po<strong>de</strong>rosa<br />
corte <strong>de</strong> substância entre o real e o imaginado.<br />
Só os cegos iam a Sagres e nele viam um rochedo<br />
perigoso por on<strong>de</strong> todos os navios provenientes<br />
do Mediterrâneo e do Atlântico, na rota<br />
da Europa, tinham obrigatoriamente <strong>de</strong> passar.<br />
Só os cegos. Então, felizmente, fomos a Sagres.<br />
Ainda estávamos vivos e intactos.<br />
Fomos, fazia vento, já o disse <strong>de</strong> outros modos.<br />
Éramos adolescentes. Tudo isso aconteceu outrora,<br />
quando as estradas ainda corriam às curvas<br />
entre veigas e outeiros, amarradas aos caprichos<br />
do terreno. Fomos. Chegámos lá <strong>de</strong>pois duma<br />
tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> viagem num carro que carburava mal. A<br />
distância que nos separava era curta, mas nós<br />
achávamos que por mais que andássemos nunca<br />
chegaríamos lá. E, <strong>de</strong> súbito, ali estávamos em pé,<br />
sobre as costas dum rochedo. Uma pedra gigantesca,<br />
uma escarpa nua, on<strong>de</strong> o vento assobiava<br />
como se nos quisesse arrebatar para outra parte.<br />
E, então, à medida que os re<strong>de</strong>moinhos nos levavam<br />
os cabelos, foi simples imaginar quantos enxovais<br />
por estrear se haviam misturado com a<br />
areia, quantas quilhas, quantos mastros, quantas<br />
sepulturas abertas nas ondas, para que a distância<br />
entre continentes, ao longo dos séculos, tivesse<br />
sido transposta. Foi possível compreen<strong>de</strong>r como<br />
por cada príncipe sonhador que a História oferece,<br />
sempre foram necessários exércitos incontáveis<br />
<strong>de</strong> outros homens, cujos nomes só estão<br />
escritos entre os grãos <strong>de</strong> areia on<strong>de</strong> ficaram seus<br />
<strong>de</strong>sejos e seus ossos. Tudo isso foi entendido durante<br />
essa primeira visita ao rochedo.<br />
Mas foi preciso mais tempo, sobretudo mais<br />
<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> no tempo, para que eu mesma enten<strong>de</strong>sse<br />
que em Sagres, como em toda a escarpa<br />
nua que se prolonga pelo Mar, existe o aceno<br />
que leva para longe o nómada das águas. Existe<br />
o inquieto, o curioso, o móvel, o trotamundos<br />
sem <strong>de</strong>stino à vista, o inqualificável. Aquele que<br />
sente, na sua carne e no seu espírito, que à medida<br />
que se vai afastando da sua casa, mais se<br />
aproxima da verda<strong>de</strong>ira morada. E assim se sabe<br />
que sempre que se fala do espírito do Príncipe,<br />
seus cálculos astronómicos e seu Mapa-múndi<br />
<strong>de</strong> Fra Mauro, sempre se terá <strong>de</strong> falar daquele<br />
outro infante múltiplo, sem retrato, que habita<br />
na sombra do seu silêncio e se chama Humanida<strong>de</strong>.<br />
Era essa a palavra que eu <strong>de</strong>sejaria ver escrita<br />
em letras gigantescas nas escarpas da futura<br />
Sagres. Em volta do seu relógio <strong>de</strong> sol <strong>de</strong>senhado<br />
no chão, cujos ponteiros não falam, Humanida<strong>de</strong>.<br />
– Todos os que partiram, ou não partiram<br />
<strong>de</strong> lá, ao longo dos séculos, mereceriam essa<br />
homenagem. Os ignorados, aqueles cuja vida<br />
anónima encontra no enrolar e <strong>de</strong>senrolar das<br />
ondas a sua única metáfora, seriam esses o seu<br />
<strong>de</strong>stinatário.
VAGA GENTE 10<br />
Um mineiro<br />
portimonense<br />
no Alto Peru<br />
Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
Os portugueses <strong>de</strong>ixaram marcas<br />
da sua presença para além<br />
das fronteiras do território<br />
politicamente <strong>de</strong>limitado<br />
11<br />
pelos sucessivos tratados entre Portugal<br />
e Espanha.Vaga gente<br />
que in<strong>de</strong>cifravelmente forma<br />
parte do tempo, da terra e do olvido.
Afonso <strong>de</strong> Fonseca Falcão<br />
era um mineiro po<strong>de</strong>roso,<br />
pela fortuna e pela<br />
teia <strong>de</strong> relações. Foi <strong>de</strong> Portimão<br />
para o Alto Peru,<br />
quando a produção da prata<br />
já anunciava o seu <strong>de</strong>clínio,<br />
em 1621. Logo que<br />
chegou ao Potosí, Falcão ocupou-se em lavrar<br />
e beneficiar minas próprias, no Cerro<br />
Rico da Villa, à sua custa e sem qualquer<br />
ajuda <strong>de</strong> índios <strong>de</strong> cédula ou mitayos, tendo<br />
gasto muita prata e servido a Coroa com<br />
«gran<strong>de</strong>s e quantiosos serviços <strong>de</strong> interesses<br />
<strong>de</strong> quintos reais que cresceram e aumentaram<br />
a Sua Real Fazenda» em mais <strong>de</strong> 500<br />
mil pesos e, em especial, pela «grossa<br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metais ricos» que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
1635, pouco mais ou menos, sacara e beneficiara<br />
no asiento rico <strong>de</strong> Chocaya.<br />
Afonso Falcão foi um dos primeiros<br />
povoadores <strong>de</strong>ste asiento e dos mais interessados<br />
naVeta <strong>de</strong> Clarines don<strong>de</strong> se sacou «tão<br />
gran<strong>de</strong> soma <strong>de</strong> metais ricos» que a Coroa<br />
obteve elevadas receitas proce<strong>de</strong>ntes dos<br />
quintos. Quando as minas <strong>de</strong> Chocaya foram<br />
inundadas, Falcão foi o primeiro a<br />
<strong>de</strong>saguá-las, pelo que se pô<strong>de</strong> voltar a extrair<br />
muitos metais ricos, tudo à custa <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s gastos por se ter continuado com<br />
os ditos <strong>de</strong>saguamentos por mais cinco<br />
anos. Não po<strong>de</strong>ndo manter a exploração<br />
<strong>de</strong>sta mina, pelo «embaraço e impedimento<br />
da água», Afonso <strong>de</strong>scobriu «muchos<br />
labores» no Cerro e asiento <strong>de</strong> Tasna<br />
don<strong>de</strong> sacou elevada quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metais<br />
beneficiados no seu engenho <strong>de</strong> San Antonio<br />
<strong>de</strong> Villa Real <strong>de</strong> que era proprietário por<br />
título hereditário.<br />
Além <strong>de</strong> povoador <strong>de</strong> Tasna, Afonso<br />
Falcão explorou também as minas do Cerro<br />
e asiento <strong>de</strong> Chorolque don<strong>de</strong> sacou igualmente<br />
muitos metais, <strong>de</strong>scobrindo minas<br />
novas e limpando minas antigas que estavam<br />
«cegas e cobertas», por «ignorância e<br />
pouca indústria» dos antigos mineiros.<br />
Em 1647, este mineiro algarvio abriu<br />
mais dois filões em Chorolque, tendo <strong>de</strong><br />
novo gasto «mucha plata» para que estas<br />
minas se pu<strong>de</strong>ssem lavrar e <strong>de</strong>saguar com<br />
comodida<strong>de</strong>. Dos ditos filões extraía-se<br />
muita prata que garantia gran<strong>de</strong> rendi-<br />
Proprietário,<br />
concessionário<br />
<strong>de</strong> minas e<br />
azougueiro,<br />
Afonso <strong>de</strong> Fonseca<br />
Falcão foi, <strong>de</strong>certo,<br />
um dos homens<br />
mais ricos do Potosí<br />
mento à Coroa espanhola,<br />
até porque todo o investimento<br />
fora feito, mais uma<br />
vez, à sua custa, sem recorrer<br />
a «índios <strong>de</strong> cédula».<br />
Dos quantiosos e ricos metais,<br />
beneficiados no engenho<br />
<strong>de</strong> San Antonio e em<br />
outros que possuía na região dos Chichas<br />
e dos Lipes, haviam resultado importantes<br />
quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> marcos <strong>de</strong> prata em pinha,<br />
além do resultante da compra à Coroa <strong>de</strong><br />
muitos quintais <strong>de</strong> azougue, pago em<br />
barras <strong>de</strong> prata.<br />
Proprietário e concessionário <strong>de</strong> minas<br />
e azougueiro, Afonso <strong>de</strong> Fonseca Falcão<br />
era, <strong>de</strong>certo, um dos homens mais ricos<br />
do Potosí e um dos mais importantes na<br />
socieda<strong>de</strong> local, pois soube aliar a fortuna<br />
a um casamento estratégico. Casou com<br />
D. Juana <strong>de</strong> Villela, filha do licenciado<br />
D. Juan <strong>de</strong> Villela que foi alcai<strong>de</strong> da Corte,<br />
ouvidor da Audiência <strong>de</strong> Lima, presi<strong>de</strong>nte<br />
da Audiência <strong>de</strong> Guadalajara e membro<br />
do Conselho das Índias. D. Juana havia casado<br />
em primeiras núpcias com o governador<br />
<strong>de</strong> La Plata, facto que valorizava, ao<br />
menos simbolicamente, o seu dote. Ao<br />
excelente estatuto social da esposa, Afonso<br />
acrescentava a sua fortuna e a nobreza dos<br />
seus antepassados. Em 1647, Afonso enviou<br />
a Filipe IV e ao Conselho das Índias<br />
uma petição para que se proce<strong>de</strong>sse a<br />
uma informação sobre os seus méritos e<br />
serviços como justificação do seu pedido<br />
<strong>de</strong> mercê <strong>de</strong> cargo, renda ou hábito <strong>de</strong><br />
uma das quatro or<strong>de</strong>ns militares para o<br />
seu filho primogénito, os típicos apanágios<br />
indianos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r – cargo, renda e<br />
hábito. Consi<strong>de</strong>rava-se a si próprio como<br />
«homem quieto e pacífico e muito atento<br />
ao serviço <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> e<br />
sempre se tratou e conservou com muito<br />
lustro <strong>de</strong> sua pessoa, casa e família, tendo<br />
criados espanhóis e escravos». Não sabemos<br />
se obteve esta mercê, mas Afonso <strong>de</strong> Fonseca<br />
Falcão foi, seguramente, um dos portugueses<br />
<strong>de</strong> sucesso no Alto Peru, graças à<br />
sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciativa e <strong>de</strong> investimento<br />
numa activida<strong>de</strong> fulcral para o império<br />
espanhol – a mineração da prata, el<br />
nervio <strong>de</strong> la nación.
Sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Chiriquí<br />
Maria Angeles Sallé<br />
TRAVESSIAS 12<br />
Mais do que <strong>de</strong> uma travessia <strong>de</strong> dupla<br />
direcção, entre Chiriquí e Barcelona,<br />
trata-se <strong>de</strong> um percurso <strong>de</strong> ida<br />
e volta através da sauda<strong>de</strong><br />
e da nostalgia <strong>de</strong> um imenso coração<br />
atravessado pelo mar, uma espécie<br />
<strong>de</strong> ponte entre o cais da memória<br />
e o porto da esperança.<br />
13
Chiva, autocarro do Panamá
TRAVESSIAS 14<br />
Quando eu era menina, ir<br />
<strong>de</strong> David à capital supunha dois<br />
dias <strong>de</strong> viagem envoltos em pó,<br />
água ou, com mais frequência,<br />
na sua incómoda síntese <strong>de</strong> barro.<br />
Mas, ao chegarmos, aguardava-nos<br />
– após a travessia da ponte<br />
das Américas – uma cida<strong>de</strong><br />
caótica, <strong>de</strong> latidos e cores que<br />
me fascinavam. Nunca mais, em<br />
nenhuma das múltiplas viagens<br />
que empreendi, encontrei uma<br />
ponte que me parecesse tão<br />
imensa, nem uma cida<strong>de</strong> que<br />
encerrasse tanto mundo. Por isso<br />
o meu sonho <strong>de</strong> menina sempre<br />
foi repartir a minha vida adulta<br />
entre as duas margens daquela<br />
ponte: a da terra e água e a do ar<br />
e fogo.<br />
Mas eu, além <strong>de</strong> ter nascido<br />
em Chiriquí, também nasci espanhola,<br />
e a presença <strong>de</strong> Espanha –<br />
a sua cozinha, o seu «ceceio», as<br />
suas festas, costumes e, sobretudo,<br />
as suas nostalgias – foi a música<br />
<strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> todos os meus crescimentos.<br />
Temia a minha prematura<br />
condição emigrante.Temia-a porque<br />
colocava sobre as minhas jovens<br />
raízes outras mais fortes e<br />
melhor plantadas; quiçá, também<br />
porque pressentia que, <strong>de</strong>vido a<br />
ela, o meu sonho <strong>de</strong> viver entre<br />
as duas margens da ponte não ia<br />
po<strong>de</strong>r cumprir-se.<br />
Tinha <strong>de</strong>z anos quando vi –<br />
pela primeira vez com os meus<br />
olhos – a luz <strong>de</strong> Espanha. Foi a do<br />
Mediterrâneo, em Barcelona, no<br />
mesmo porto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> havia zarpado<br />
o meu pai, muitos anos antes,<br />
rumo às Américas. Dezasseis<br />
dias durou esse trajecto que me<br />
entregava a um <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> margens<br />
mais largas, as <strong>de</strong> um Atlântico<br />
cujas ribeiras nenhuma ponte<br />
podia aproximar, mas que os<br />
emigrantes espanhóis converteram<br />
em algo estranhamente familiar,<br />
baptizando-o <strong>de</strong> «el Charco».<br />
15<br />
Des<strong>de</strong> então, a minha existência<br />
converteu-se num ir e vir,<br />
quer fosse viajando, quer sonhando.<br />
Essa po<strong>de</strong>ria ser uma<br />
boa síntese <strong>de</strong> uma travessia pessoal<br />
na qual, mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scobri<br />
que se espelhavam as viagens íntimas<br />
<strong>de</strong> muitos outros navegadores.<br />
Porque, para todos nós,<br />
emigrar supunha abrir uma ferida<br />
nas raízes pela qual se nos colou<br />
um bocado <strong>de</strong> terra nova. A cicatriz<br />
permanece sempre; inclusive<br />
se se regressa, as dores mestiças<br />
afloram à superfície uma e outra<br />
vez. A terra nova, por seu lado,<br />
aduba um jardim <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>s,<br />
amores, esquecimentos, sonhos<br />
possíveis, encontros com um<br />
igual ou, simplesmente, um prato<br />
<strong>de</strong> comida quente em cada<br />
dia, que continua sendo, infelizmente,<br />
a razão fundamental dos<br />
êxodos que se produzem no<br />
mundo <strong>de</strong> hoje.<br />
A minha existência, como<br />
era lógico, mudou também –<br />
entre tantas voltas – ao conhecer<br />
uma série <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong> pessoas<br />
que, como eu, sulcavam o<br />
mar repartindo o seu coração<br />
entre cá e lá.<br />
Muitos outros emigrantes se<br />
cruzaram, <strong>de</strong>pois, no meu caminho.<br />
Aventureiros <strong>de</strong> passagem,<br />
gente que fracassou no seu esforço<br />
e teve <strong>de</strong> regressar <strong>de</strong> cabeça<br />
baixa e bolsos vazios, empreen<strong>de</strong>dores<br />
que, como os meus pais,<br />
exerceram as profissões mais mirabolantes<br />
para seguir em frente<br />
(afiadores, ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> quadros,<br />
marceneiros, cafezeiros, comerciantes...),<br />
exilados da guerra<br />
civil... pessoas, todas elas, com<br />
trajectórias muito diferentes,<br />
mas, ao mesmo tempo, forjadas<br />
por uma esteira comum <strong>de</strong> lágrimas,<br />
suor e mar.<br />
Quatro milhões <strong>de</strong> espanhóis<br />
emigraram para a América<br />
ao longo do século XX. Uns<br />
quantos vieram parar ao Panamá,<br />
on<strong>de</strong> se somaram à extensa colónia<br />
<strong>de</strong> italianos, chineses, gregos,<br />
antilhanos, indianos, ju<strong>de</strong>us ou<br />
árabes aos quais o nosso país<br />
abriu generosamente as portas.<br />
Em cada uma <strong>de</strong>ssas rotas há<br />
uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> esforços e lutas na<br />
qual se gesta uma boa parte da<br />
história gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> Espanha. Não<br />
obstante, há muito que venho<br />
notando como a nossa memória<br />
se esvai entre as realida<strong>de</strong>s e as<br />
brumas do progresso, sem querer<br />
reconhecer que, se <strong>de</strong>ixamos<br />
morrer a memória do país emigrante<br />
que sempre fomos,<br />
morrerá também a essência que<br />
nos move e tornar-nos-emos<br />
nómadas <strong>de</strong> nós mesmos.<br />
Recuperar a memória supõe,<br />
do mesmo modo, actualizá-<br />
-la, reconhecer a circularida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> caminhos que, através dos<br />
nossos actos, imaginação ou memórias,<br />
percorremos quase sempre<br />
em dupla direcção. A Espanha<br />
emigrou para a América, tal<br />
como hoje a América emigra para<br />
a Espanha ou a própria América<br />
emigra entre si. E, assim, mais<br />
<strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong> latino-americanos<br />
– se consi<strong>de</strong>rarmos os legais<br />
e os ilegais – foram lá tentar<br />
a sua sorte nos últimos anos. Um<br />
bom punhado são amigos, ou filhos<br />
<strong>de</strong> amigos, que se vão somando<br />
progressivamente ao<br />
mundo dos meus afectos. Partem<br />
da Argentina, em crise, buscando<br />
horizontes mais propícios para<br />
plantar o montão <strong>de</strong> sonhos que<br />
se viram obrigados a arrumar na<br />
mala <strong>de</strong> viagem. Aterram proce<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong> uma Venezuela ferida,<br />
cujos sulcos continuam lambendo<br />
à distância. Não faltam artistas<br />
peruanos, chilenos, panamenhos...<br />
que necessitam que a Espanha<br />
<strong>de</strong>sempenhe um papel<br />
mais activo na projecção da criativida<strong>de</strong><br />
<strong>ibero</strong>-americana. Mas a
maioria são equatorianos, colombianos<br />
e peruanos que fogem<br />
<strong>de</strong> ambientes on<strong>de</strong> o futuro<br />
quase não se conjuga, <strong>de</strong>ixando<br />
atrás <strong>de</strong> si famílias <strong>de</strong>sfeitas para<br />
irem em cuidar dos nossos filhos<br />
e idosos, ou para se encarregarem<br />
do nosso ócio e bem-<br />
-estar. Um paradoxo que se tece<br />
nestes milhares <strong>de</strong> histórias individuais,<br />
temperadas com o<br />
mesmo sal <strong>de</strong> lágrimas, suor e<br />
mar que o daqueles galegos, asturianos,<br />
bascos ou andaluzes<br />
que apontaram à América a proa<br />
das suas esperanças.<br />
O que mudou? Embora a<br />
emigração continue a ser uma<br />
constante nas nossas vidas, a diferença<br />
é que agora se inverteu a<br />
direcção (em vez <strong>de</strong> cá para lá, <strong>de</strong><br />
lá para cá). Mudou também o<br />
meio: agora, aeroportos e aviões<br />
substituem prosaicamente a mítica<br />
imagem <strong>de</strong> antanho, quando<br />
portos e barcos eram os símbolos<br />
<strong>de</strong>ssa gran<strong>de</strong> mobilização<br />
atlântica. E mudou a comunicação:<br />
antes, o símbolo era a carta que<br />
jamais chegava, o tempo aprisionado,<br />
o telegrama conciso<br />
com as más notícias, a ligação<br />
telefónica <strong>de</strong> longas esperas.<br />
Agora, a cabina é o cibercafé, o<br />
sonho <strong>de</strong> agarrar o ente querido<br />
aferrando-se à sua imagem ou à<br />
sua voz, o amor virtual, o quotidiano<br />
do outro em tempo real,<br />
o <strong>de</strong>sdobramento em duas vidas:<br />
a <strong>de</strong> cá e a <strong>de</strong> lá.<br />
Mas, sobretudo, mudou a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: ontem foram eles (70%<br />
dos emigrantes espanhóis na<br />
América eram homens), enquanto<br />
hoje são elas (60% dos<br />
emigrantes latino-americanos<br />
em Espanha são mulheres) quem<br />
está embarcando <strong>de</strong>cididas a lavrar<br />
o futuro dos seus filhos.<br />
Po<strong>de</strong>m encontrar-se, apesar<br />
<strong>de</strong> tudo, gran<strong>de</strong>s similitu<strong>de</strong>s entre<br />
estes trasfegos <strong>de</strong> dupla di-<br />
recção. Porque aqueles que participaram<br />
ontem e participam<br />
hoje nesse ir e vir pelo nosso<br />
mar choraram e choram sauda<strong>de</strong>s<br />
e perdas, conheceram o valor<br />
da luta individual como ingrediente<br />
indispensável para ultrapassar<br />
a adversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolveram<br />
um forte sentido <strong>de</strong><br />
sobrevivência e constituíram todo<br />
o tipo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s solidárias a<br />
partir da consciência <strong>de</strong> que um<br />
emigrante jamais consegue o<br />
seu objectivo sozinho. Creio que<br />
isso – e uma <strong>de</strong>terminada maneira<br />
<strong>de</strong> sentir – é o que mais<br />
i<strong>de</strong>ntifica o mundo dos emigrantes<br />
<strong>de</strong> todos os tempos: é<br />
gente tão empreen<strong>de</strong>dora quanto<br />
gregária. E, como empreen<strong>de</strong>dores<br />
que são, tampouco se<br />
O Panamá é um país<br />
no qual vibra<br />
o planeta inteiro,<br />
um país-navio<br />
em travessia<br />
po<strong>de</strong> esquecer que muitos naufragaram<br />
e naufragam cada dia.<br />
Em barcos, fracassos, hipotecas<br />
ou <strong>de</strong>sesperanças.<br />
Reivindicar o direito <strong>de</strong> sobreviver,<br />
<strong>de</strong> sonhar, <strong>de</strong> ser diferentes<br />
representa hoje muito<br />
mais que resgatar do esquecimento<br />
o legado <strong>de</strong> todos aqueles<br />
que nos abriram o caminho,<br />
forjando com o seu alento – ao<br />
mesmo tempo duro e nostálgico<br />
– boa parte do bem-estar <strong>de</strong><br />
que, hoje, <strong>de</strong>sfrutamos. É legar<br />
também aos nossos filhos, habitantes<br />
<strong>de</strong> um mundo cada vez<br />
mais complexo, a chave para<br />
abrir a porta da pouca ou muita<br />
sabedoria que fomos capazes <strong>de</strong><br />
entesourar na nossa rota <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stroçadas, das<br />
nossas esperanças, lutas e fracassos.<br />
É facultar-lhes as nossas velas<br />
<strong>de</strong>sfiadas e cartas <strong>de</strong> viagem,<br />
é dizer-lhes que ser emigrantes é<br />
o seu <strong>de</strong>stino.<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> multi<strong>cultura</strong>l e<br />
emigrante está arreigada no fundo<br />
mais recôndito da alma do<br />
Panamá, se bem que no nosso<br />
caso – diferentemente ao contrário<br />
<strong>de</strong> Espanha e da maior<br />
parte da América Latina – mais<br />
pelo facto <strong>de</strong> sermos receptores<br />
(ontem <strong>de</strong> espanhóis, ju<strong>de</strong>us,<br />
árabes, jugoslavos ou indianos;<br />
hoje <strong>de</strong> colombianos ou peruanos;<br />
e sempre <strong>de</strong> chineses) do<br />
que emissores <strong>de</strong> emigração. E<br />
isso com consequências passadas<br />
– e sobretudo futuras – muito<br />
importantes para o país, ainda<br />
que aparentemente ninguém pareça<br />
reparar nisso.<br />
Negro, chocolate, branco e<br />
amarelo são as cores do istmo,<br />
se bem que no nosso Chiriquí a<br />
mestiçagem – segundo as últimas<br />
investigações a este respeito<br />
– provenha, quase na mesma<br />
proporção, do branco e do índio.<br />
O Panamá cheira a incenso, a<br />
mercado árabe e a molho chinês.<br />
Sabe a manga, a doce hebraico, a<br />
arepas e a pasta italiana. Ressoam<br />
nela as cadências do mundo,<br />
que vão <strong>de</strong>rramando pelas ruas<br />
e esquinas acentos em dó, ré,<br />
mi, fá, sol. O Panamá reza e pe<strong>de</strong><br />
perdão pelos seus pecados<br />
nas mil línguas paridas pela Torre<br />
<strong>de</strong> Babel. Foi também forjada<br />
por suor e sangue dos cinco<br />
continentes. E os mares que o<br />
banham esten<strong>de</strong>m a sua mão à<br />
Europa e à Ásia, enquanto continuam<br />
a moldá-la como a cintura<br />
<strong>de</strong> uma América Latina hoje<br />
cada vez mais presente nos nossos<br />
habitantes. O Panamá é,<br />
pois, um país no qual vibra o<br />
planeta inteiro, um país-navio<br />
em travessia.
CIDADES INVISÍVEIS 16<br />
Fervor<br />
<strong>de</strong> Buenos<br />
Aires<br />
De Buenos Aires disse Carlos Fuentes que, «se não há cida<strong>de</strong><br />
mais sólida, mais construída e “feita” na América Latina,<br />
tão-pouco há cida<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>svanecida na bruma da sua<br />
linguagem, da sua literatura, da sua música passageira».<br />
Da cida<strong>de</strong> secreta, invisível, inventada por Borges,<br />
aqui ficam alguns relatos «porque aquilo que nos interessa<br />
é o que o viajante vê».<br />
17
Murais em La Boca
Buenos Aires<br />
<strong>de</strong> hoje pelos<br />
caminhos<br />
<strong>de</strong> Borges<br />
João Ventura<br />
CIDADES INVISÍVEIS 18<br />
19<br />
Avenida Corrientes<br />
A Avenida Corrientes<br />
é uma superstição<br />
A Buenos Aires inventada<br />
por Borges nos seus livros já não<br />
existe, embora aqui e ali, se nos<br />
<strong>de</strong>ixarmos per<strong>de</strong>r pelos caminhos<br />
que o autor gostava <strong>de</strong><br />
percorrer nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> luminosos<br />
do Verão porteño, a possamos<br />
ainda imaginar. Para Borges,<br />
Buenos Aires foi muito<br />
mais que o cenário da sua obra,<br />
inspirada em personagens e histórias<br />
dos subúrbios porteños do<br />
princípio do século passado. A<br />
Buenos Aires <strong>de</strong> Borges é também<br />
a cida<strong>de</strong> recriada nas suas<br />
ficções, a cida<strong>de</strong> poética, mítica,<br />
revelada em muitas das suas histórias<br />
e poemas. Vem daí, dos<br />
textos <strong>de</strong> Borges, o meu primeiro<br />
conhecimento <strong>de</strong> uma Buenos<br />
Aires <strong>de</strong>saparecida, on<strong>de</strong> biografia<br />
e ficção convergem num<br />
espaço simultaneamente cartográfico<br />
e imaginário.<br />
Como Borges, procuro as<br />
ruas do centro numa manhã <strong>de</strong><br />
sexta-feira, com a sua «prepotência<br />
<strong>de</strong> azul» (Inquisiciones).<br />
Primeiro, a casa on<strong>de</strong> nasceu:<br />
«Nasci aqui, no coração da cida<strong>de</strong>,<br />
na Rua Tucumán, entre as<br />
ruas Suipacha e Esmeralda, numa<br />
casa (como todas as <strong>de</strong>sse<br />
tempo) pequena e sem pretensões,<br />
que pertencia aos meus<br />
avós maternos» (Autobiografia).<br />
Porque a casa já não existe,<br />
escolho um prédio ali perto, na<br />
Rua Maipú (n.º 944), que foi a<br />
última e a mais duradoura residência<br />
<strong>de</strong> Borges, e on<strong>de</strong> escreveu<br />
a maior parte da sua obra.<br />
Do terraço do apartamento,<br />
Borges podia ver as árvores da<br />
Praça San Martín, sobretudo o<br />
esplendor azul-violeta, às vezes<br />
com tonalida<strong>de</strong>s lilases, dos<br />
enormes jacarandás em flor,<br />
nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> Verão austral:<br />
«Todo o sentir se acalma/
na absolvição das árvores/jacarandás,<br />
acácias...» (Fervor <strong>de</strong> Buenos<br />
Aires).<br />
Eis agora a Rua Florida cujos<br />
<strong>de</strong>zasseis quarteirões Borges<br />
percorreu a pé, durante anos, a<br />
caminho da Biblioteca Nacional,<br />
na Rua México. Aquela que<br />
foi a primeira rua pedonal <strong>de</strong><br />
Buenos Aires é hoje o epicentro<br />
comercial da cida<strong>de</strong>, com lojas<br />
das melhores marcas e on<strong>de</strong> se<br />
po<strong>de</strong>m comprar artigos <strong>de</strong> couro<br />
a preços convidativos, <strong>de</strong>pois<br />
da <strong>de</strong>svalorização do peso argentino.<br />
Ao fim da manhã, uma<br />
multidão <strong>de</strong> turistas enche a<br />
rua. A paixão pelo futebol é visível<br />
nas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> lojas <strong>de</strong> artigos<br />
<strong>de</strong>sportivos que dão colorido<br />
à rua expondo as camisolas<br />
das principais equipas argentinas<br />
e da selecção nacional.<br />
À porta das Galerias Pacífico,<br />
on<strong>de</strong> se encontram instalados<br />
o Centro Cultural Jorge Luís<br />
Borges e a Escola <strong>de</strong> Dança <strong>de</strong><br />
Julio Boca, um par <strong>de</strong> tango ensaia<br />
algumas figuras <strong>de</strong> dança<br />
ao som <strong>de</strong> La Cumparsita. Atravesso<br />
<strong>de</strong>pois a Rua Lavalle que<br />
cruza com a Florida e lhe serve<br />
<strong>de</strong> extensão comercial. Esta artéria<br />
foi outro lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ambulação<br />
<strong>de</strong> Borges que frequentava<br />
as suas salas <strong>de</strong> cinema nos<br />
anos cinquenta. Mais adiante, a<br />
livraria El Ateneo, que foi nos<br />
anos sessenta um dos lugares<br />
mais concorridos pela geração<br />
<strong>de</strong> intelectuais e escritores, e<br />
on<strong>de</strong> Borges costumava <strong>de</strong>ter-se<br />
no seu percurso diário para a<br />
Biblioteca Nacional on<strong>de</strong> era director,<br />
convida a entrar.<br />
Borges não gostava do centro.<br />
E embora durante anos tivesse<br />
que caminhar pelas suas<br />
ruas e frequentasse os cafés –<br />
como o Tortoni, na Avenida <strong>de</strong><br />
Maio –, as tertúlias – como a do<br />
café Royal Keller, na Rua Cor-<br />
rientes – e os jornais da zona –<br />
como La Prensa, na Avenida <strong>de</strong><br />
Maio –, pouco mudou a sua<br />
opinião formada na juventu<strong>de</strong><br />
sobre o centro como «um lugar<br />
pitoresco e <strong>de</strong>senraizado» (O Tamanho<br />
da Minha Esperança). Muito<br />
mais tar<strong>de</strong>, já na velhice, afirmaria<br />
que «a Avenida Corrientes<br />
é uma superstição» (Borges, el<br />
memorioso), procurando <strong>de</strong>struir<br />
o mito da mais central das ruas<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires.<br />
E é a extensa Corrientes que<br />
percorro ao crepúsculo, quando<br />
o néon dos anúncios dos teatros<br />
e dos cinemas começa já a <strong>de</strong>r-<br />
Praça San Martín<br />
ramar a ilusão sobre a avenida<br />
que já foi uma espécie <strong>de</strong><br />
Broadway porteña, cantada nas letras<br />
<strong>de</strong> tangos. E no interior das<br />
muitas livrarias – on<strong>de</strong> se compram<br />
edições <strong>de</strong>saparecidas <strong>de</strong><br />
Borges, <strong>de</strong> Casares, <strong>de</strong> Cortázar<br />
– e nos incontornáveis cafés que<br />
ainda povoam a rua, acen<strong>de</strong>m-<br />
-se as luzes, iluminando histórias<br />
escritas e conversadas.<br />
Em Corrientes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Avenida<br />
Callao até à Rua San Martín,<br />
sempre existiram cafés com sabor<br />
a tango, a política e a todo o tipo<br />
<strong>de</strong> discussões, a movidas artísticas, a<br />
conquistas e enganos, ao rescaldo<br />
do último <strong>de</strong>rby entre o Boca Juniors<br />
e o River Plate. A boémia<br />
porteña tinha o seu encontro privilegiado<br />
ao longo <strong>de</strong>sta avenida<br />
que nunca dormia, carregada <strong>de</strong><br />
sonhos e ilusões. Nos distintos<br />
cafés se pronunciaram panegíricos<br />
manifestos acerca da liberda<strong>de</strong><br />
e os intelectuais da época<br />
evocaram com gran<strong>de</strong> lirismo a<br />
autenticida<strong>de</strong> da alma artística.<br />
Borges frequentou tertúlias<br />
no Royal Keller. Carlos Gar<strong>de</strong>l e<br />
José Razzano, que actuavam no<br />
Teatro Esmeralda, hoje conhecido<br />
por Maipo, tinham todas as noites<br />
uma mesa reservada no Guarani.<br />
Horacio Quiroga frequentou<br />
La Richmond. A lista <strong>de</strong> cafés<br />
era infindável. E, embora hoje<br />
muitos já tenham <strong>de</strong>saparecido<br />
ou se tenham tornado irreconhecíveis<br />
pelas transformações sofridas,<br />
ainda se respira em Corrientes<br />
um pouco do tempo em que<br />
aquela rua nunca dormia.
CIDADES INVISÍVEIS 20<br />
Talvez Borges tenha também,<br />
numa tar<strong>de</strong> qualquer,<br />
entrado no Giralda que, na esquina<br />
da Corrientes com a Uruguai,<br />
permanece inalterado,<br />
com as suas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> azulejos,<br />
mesas <strong>de</strong> mármore, as suas luzes<br />
<strong>de</strong> néon e os empregados<br />
vestidos <strong>de</strong> branco. E, quem sabe,<br />
saboreando o mesmo chocolate<br />
com churros que bebi<br />
enquanto ouvia histórias <strong>de</strong> cafés<br />
«tangueiros» contadas por<br />
um companheiro porteño.<br />
Persigo Borges pela Corrientes,<br />
cruzando a mais larga<br />
avenida do mundo, a 9 <strong>de</strong> Julho,<br />
hoje <strong>de</strong>socupada dos piqueteros<br />
– a mais recente criação do<br />
populismo sindical argentino –<br />
que na véspera a tinham cortado<br />
exigindo compensações. E<br />
<strong>de</strong>pois, pela Avenida <strong>de</strong> Maio –<br />
a mesma avenida que mitificou<br />
Eva Perón – com os seus belíssi-<br />
21<br />
mos edifícios como o do antigo<br />
jornal La Prensa, <strong>de</strong> fachada art<br />
déco, que acolhe agora a Casa<br />
da Cultura. Imperdível a visita<br />
ao café Tortoni que parece esperar<br />
por Borges regressando do<br />
jornal Crítica.<br />
E, no reverso do mito, os<br />
edifícios ainda tingidos com as<br />
cores da revolta contra «los<br />
ladrones», como na porta principal<br />
do Banco <strong>de</strong> Boston, escolhido<br />
como símbolo da corrupção,<br />
do clientelismo e <strong>de</strong><br />
Placita Cortázar, Palermo Viejo<br />
uma <strong>de</strong>sastrosa política económica<br />
assente na parida<strong>de</strong> artificial<br />
com o dólar, que ia levando<br />
a Argentina à ruína. À porta <strong>de</strong><br />
um esplendoroso edifício, dois<br />
sem-abrigo acomodam-se para<br />
passar a noite, <strong>de</strong>smentindo o<br />
luxo do cenário. Na Praça <strong>de</strong><br />
Maio, as mães já não choram<br />
pelos <strong>de</strong>saparecidos, mas anuncia-se<br />
uma gran<strong>de</strong> manifesta-<br />
ção, para o próximo sábado,<br />
por ocasião do aniversário do<br />
golpe que instaurou a ditadura.<br />
No palanque estarão filhos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>saparecidos ao lado do presi<strong>de</strong>nte<br />
Kirchner. Porque é preciso<br />
não esquecer.<br />
Puerto Ma<strong>de</strong>ro, na «Doca<br />
Sul, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> outrora zarpavam<br />
o Saturno e o Cosmos» (Elogio da<br />
Sombra) levando Borges e a sua<br />
família até ao outro lado do rio<br />
da Prata, a Montevi<strong>de</strong>u, já não é<br />
um território <strong>de</strong> ruas picantes<br />
É em Palermo Viejo,<br />
no passado um súburbio<br />
perdido nas margens<br />
da pampa, que Borges<br />
encontra o cenário<br />
privilegiado para criar<br />
os mitos e dar corpo<br />
aos fantasmas<br />
das suas histórias<br />
on<strong>de</strong> «convivem o cosmorama<br />
e a leitaria, o bor<strong>de</strong>l e os ven<strong>de</strong>dores<br />
<strong>de</strong> Bíblias» (Ficções). Resultado<br />
<strong>de</strong> uma profunda intervenção<br />
<strong>de</strong> restauro e revalorização, o velho<br />
Puerto Ma<strong>de</strong>ro, exemplo da<br />
arquitectura industrial inglesa do<br />
início do século XX, com os seus<br />
armazéns nas margens dos diques,<br />
concentra hoje numerosos<br />
restaurantes e áreas <strong>de</strong> lazer,
constituindo uma nova centralida<strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> Buenos Aires se <strong>de</strong>bruça<br />
sobre a corrente morna e pardacenta<br />
do rio da Prata.<br />
Em Palermo Viejo<br />
É em Palermo Viejo, no passado<br />
um subúrbio perdido nas<br />
margens da pampa, que Borges<br />
encontra o cenário privilegiado<br />
para criar os mitos e dar corpo<br />
aos fantasmas das suas histórias.<br />
A dois quarteirões da Praceta Julio<br />
Cortázar, numa esquina, po<strong>de</strong><br />
ler-se, agora, o seu testemunho:<br />
«Um quarteirão inteiro,<br />
mas cuja meta<strong>de</strong>/ ficava exposta<br />
a chuvas, auroras, rajadas./ O<br />
mesmo quarteirão que há hoje<br />
no meu bairro:/ Guatemala,<br />
Serrano, Paraguai, Gurruchaga»<br />
(A Fundação Mítica <strong>de</strong> Buenos Aires).<br />
Por isso, escolho Palermo<br />
Viejo para continuar este itinerário<br />
porteño e, numa manhã <strong>de</strong> um<br />
sábado que se anuncia luminoso,<br />
perco-me pelas ruas e pracetas <strong>de</strong><br />
Palermo Viejo e, pelos caminhos<br />
<strong>de</strong> Borges, entre silêncios e milongas,<br />
<strong>de</strong>ixo que o bairro se me<br />
revele. Em Palermo Viejo, on<strong>de</strong><br />
Borges viveu, primeiro em criança<br />
e, <strong>de</strong>pois, na juventu<strong>de</strong> (na<br />
Rua Serrano, 2100, hoje chamada<br />
Jorge Luis Borges em sua memória),<br />
já não se po<strong>de</strong> ver, como<br />
Borges viu, «pares <strong>de</strong> homens<br />
dançando tangos, quando passava<br />
um acor<strong>de</strong>ão, porque as mulheres<br />
não queriam dançar». Mas o<br />
espírito do lugar permanece por<br />
ali e, às vezes, é possível assistir-<br />
-se na Praceta Serrano aos ensaios<br />
da murga Los Here<strong>de</strong>ros <strong>de</strong> Palermo<br />
que nos transporta ao<br />
tempo <strong>de</strong> Borges.<br />
A Praceta Serrano (que na<br />
realida<strong>de</strong> se chama Cortázar, em<br />
memória do autor <strong>de</strong> Rayuela), a<br />
que os moradores e frequentadores<br />
chamam carinhosamente<br />
la placita, tornou-se, nos últimos<br />
anos, o epicentro da movida jovem<br />
porteña e um lugar on<strong>de</strong><br />
acontecem numerosas activida<strong>de</strong>s<br />
<strong>cultura</strong>is e comunitárias. Ou<br />
não fosse esta placita o lugar on<strong>de</strong><br />
a toponímia junta Borges e Córtazar<br />
na esquina on<strong>de</strong> a Rua Serrano<br />
(que agora tem o nome do<br />
autor das Ficções) se cruza com a<br />
praça rebaptizada com o apelido<br />
do escritor <strong>de</strong> Rayuela.<br />
São 10 horas da manhã e<br />
no pequeno jardim central está<br />
prestes a começar um <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong><br />
Café Tortoni<br />
moda, on<strong>de</strong> os criadores locais<br />
apresentam as novas tendências<br />
para o Outono-Inverno porteño,<br />
como se estivéssemos em Paris<br />
ou Milão. Noutro canto, à sombra<br />
<strong>de</strong> magníficos plátanos, esten<strong>de</strong>-se<br />
através <strong>de</strong> algumas<br />
bancas improvisadas uma Feria<br />
<strong>de</strong>l Trueque, um lugar on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong><br />
trocar quase tudo o que já<br />
não queremos por algo <strong>de</strong> que<br />
necessitamos. Dizem-me que<br />
estas feiras informais constituíram<br />
uma resposta imaginativa<br />
dos argentinos à crise económica<br />
que se abateu sobre o país há<br />
cerca <strong>de</strong> dois anos. Hoje, não<br />
obstante os piores dias já terem<br />
passado, muitas continuam a<br />
realizar-se, aos domingos, em<br />
alguns bairros populares <strong>de</strong><br />
Buenos Aires, alimentando uma<br />
pequena economia informal <strong>de</strong><br />
troca directa <strong>de</strong> produtos e serviços.<br />
No auge da <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong><br />
há dois anos, esta intricada re<strong>de</strong><br />
chegou a ter milhares <strong>de</strong> nós<br />
espalhados por antigas fábricas<br />
e armazéns <strong>de</strong>volutos.<br />
Como o sol começa a aquecer,<br />
sento-me na esplanada do<br />
Acabar (Honduras, 5733), um<br />
esplêndido bar <strong>de</strong> sumos naturais.<br />
Aliás, muitos outros bares –<br />
El Taller, Crónico, Malas Artes –,<br />
galerias <strong>de</strong> arte, ateliers <strong>de</strong> toda a
CIDADES INVISÍVEIS 22<br />
23<br />
Porta do Banco Boston, Avenida <strong>de</strong> Mayo Club <strong>de</strong>l Vino, Palermo Viejo<br />
Puerto Ma<strong>de</strong>ro<br />
Bar Malas Artes, Palermo Viejo Praça Dorrego<br />
espécie envolvem esta placita,<br />
consi<strong>de</strong>rada, hoje, um dos lugares<br />
<strong>de</strong> passagem obrigatória<br />
do itinerário <strong>cultura</strong>l e boémio<br />
porteño.<br />
Decido, <strong>de</strong>pois, penetrar<br />
numa Buenos Aires <strong>de</strong> geografia<br />
labiríntica, errando ao longo <strong>de</strong><br />
ruas arborizadas, como a Guatemala<br />
que ainda mantém um<br />
certo ambiente tranquilo <strong>de</strong> bairro,<br />
ace<strong>de</strong>ndo a ruelas com calçadas<br />
irregulares, curvando esquinas<br />
on<strong>de</strong> florescem buganvílias,<br />
esgueirando-me por estreitas<br />
travessas e íntimos saguões<br />
– Cabrer, Soria, Santa Rosa, Russel<br />
– on<strong>de</strong> as fachadas <strong>de</strong> um casario<br />
baixo e os muros que foram<br />
cenário em muitos livros <strong>de</strong> Borges<br />
se revelam agora, renovadas,<br />
nas suas «cores <strong>de</strong> aventura» (Lua<br />
Defronte). E através <strong>de</strong> metáforas,<br />
afortunadamente irreais, sob «a<br />
clara plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um poente»<br />
(Fervor <strong>de</strong> Buenos Aires), é todo um<br />
catálogo da «mitologia bairrista»<br />
<strong>de</strong> compadritos, brigões e marginais<br />
<strong>de</strong> faca ligeira que se po<strong>de</strong><br />
imaginar.<br />
Deste Palermo on<strong>de</strong> «vivia<br />
gente <strong>de</strong> fraca qualida<strong>de</strong> juntamente<br />
com gente muito pouco<br />
agradável, como os rufiões e os<br />
compadritos, que se caracterizavam<br />
pelas suas lutas à facada»<br />
(Autobiografia) pouco ficou e,<br />
hoje, po<strong>de</strong> passear-se com relativa<br />
segurança por aquele que é<br />
consi<strong>de</strong>rado uma espécie <strong>de</strong><br />
Soho porteño. Curiosamente, a<br />
vocação cosmopolita <strong>de</strong> Palermo<br />
já Borges a <strong>de</strong>scobrira muito<br />
tempo antes, ao afirmar sentir-se<br />
«mais porteño que argentino<br />
e mais do bairro <strong>de</strong> Palermo<br />
do que <strong>de</strong> outros bairros. E até<br />
essa pátria interessante – que<br />
foi a <strong>de</strong> Evaristo Carriego – se<br />
estava a tornar em centro...»<br />
(Carta publicada na revista Nosotros,<br />
1925).
Embora não esqueça o seu<br />
passado rufião, Palermo Viejo é<br />
hoje um bairro seguro, habitado<br />
por gente com um forte sentido<br />
<strong>de</strong> pertença ao lugar e com uma<br />
notável consciência cívica, expressa<br />
nas mais variadas dinâmicas<br />
comunitárias <strong>de</strong> que mesmo<br />
um turista aci<strong>de</strong>ntal facilmente<br />
se apercebe. Gente sensível, ecológica,<br />
reciclável, apesar do snobismo<br />
congénito que os faz saltar<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> moda para<br />
uma galeria <strong>de</strong> arte e daí para a<br />
loja <strong>de</strong> agri<strong>cultura</strong> biológica<br />
mais próxima. Palermo Viejo é,<br />
ainda, um lugar para <strong>de</strong>scobrir<br />
pela noite <strong>de</strong>ntro, com os seus<br />
restaurantes sofisticados, bares e<br />
cafés literários, clubes <strong>de</strong> tango<br />
e <strong>de</strong> jazz <strong>de</strong> novo cheios <strong>de</strong> gente<br />
que prefere consumir a arriscar<br />
as poupanças nos bancos.<br />
Por Belgrano,<br />
San Telmo e La Boca<br />
As gran<strong>de</strong>s caminhadas <strong>de</strong><br />
Borges levavam-no <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Palermo<br />
até Belgrano, um bairro com<br />
alma própria, on<strong>de</strong> velhos casarões<br />
se misturam, hoje, com edifícios<br />
mo<strong>de</strong>rnos. Manhã cedo <strong>de</strong><br />
domingo, <strong>de</strong>ixo o «carinho das<br />
árvores em Belgrano» (O tamanho<br />
da minha esperança) em direcção aos<br />
bairros do sul, a San Telmo, on<strong>de</strong><br />
resi<strong>de</strong> «a essência original <strong>de</strong><br />
que Buenos Aires é feita, a (sua)<br />
forma universal ou i<strong>de</strong>ia platónica»<br />
(Buenos Aires en Tinta China). Antes,<br />
impossível não passar pela<br />
Rua Garay, perto da esquina com<br />
a Rua Bernardo <strong>de</strong> Irigoyen, no<br />
bairro da Constitución, on<strong>de</strong> se<br />
encontrava o Aleph, «o lugar<br />
on<strong>de</strong> estão, sem se confundirem,<br />
todos os lugares do mundo,<br />
vistos <strong>de</strong> todos os ângulos»<br />
(O Aleph).<br />
Através <strong>de</strong> ruas empedradas,<br />
chego à Praça Dorrego, no coração<br />
<strong>de</strong> San Telmo, bem a tempo<br />
da feira <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>s que aí<br />
funciona há mais <strong>de</strong> trinta anos.<br />
O bairro, as ruas e a praça conservam<br />
ainda a sua imagem antiga,<br />
com as casas coloniais que<br />
Borges evocou: «On<strong>de</strong> San Juan<br />
e Chabuco se cruzam/ vi as casas<br />
azuis/ vi as casas que têm as<br />
cores da aventura» (Lua Defronte).<br />
Sob as tendas que se amontoam<br />
no exíguo espaço da praça, velhos<br />
discos <strong>de</strong> tango <strong>de</strong> 78 rotações,<br />
livros e revistas esgotados,<br />
mapas e cartazes antigos acomodam-se<br />
ao lado <strong>de</strong> garrafas, taças,<br />
ferragens e brinquedos <strong>de</strong><br />
outras épocas, enquanto à sombra<br />
das árvores começa uma aula<br />
<strong>de</strong> tango.<br />
De San Telmo chega-se facilmente<br />
a La Boca, um bairro<br />
que Borges evitava, como nos<br />
conta Adolfo Bioy Casares:<br />
«Não sei porquê, mas Borges tinha<br />
um <strong>de</strong>sprezo por La Boca.<br />
Durante anos eu não fui a esse<br />
bairro por causa <strong>de</strong> Borges.<br />
E uma vez fui e achei que era<br />
lindíssimo» (Adolfo Bioy Casares, em<br />
entrevista com Carlos Aberto Zito). Ao<br />
início da tar<strong>de</strong>, o azul e amarelo<br />
da hinchada do Boca Juniors inva<strong>de</strong>m<br />
o bairro que já foi <strong>de</strong> marinheiros<br />
e artesãos genoveses,<br />
pois é dia <strong>de</strong> jogo contra o Racing,<br />
mesmo ali ao lado no mais<br />
mítico estádio <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />
a Bombonera, on<strong>de</strong> Maradona<br />
nasceu para o futebol.<br />
Na Rua Caminito, por on<strong>de</strong><br />
passava um antigo ramal ferroviário,<br />
as velhas casas feitas com<br />
chapas <strong>de</strong> zinco on<strong>de</strong> viviam os<br />
imigrantes italianos exibem fachadas<br />
<strong>de</strong> cores garridas junto das<br />
quais pintores, malabaristas, músicos<br />
e dançarinos <strong>de</strong> tango se<br />
exibem para grupos <strong>de</strong> turistas<br />
confundidos com o crescente<br />
rufar <strong>de</strong> bombos e gaitas, vindos<br />
<strong>de</strong> escondidos subúrbios pobres,<br />
a caminho da cancha do Boca.
Na cida<strong>de</strong><br />
dos livros<br />
João Ventura<br />
Livraria El Ateneo, Avenida Santa Fe<br />
CIDADES INVISÍVEIS 24<br />
25
Conta Umberto Eco que, em<br />
1970, vasculhando nas bancas <strong>de</strong><br />
um pequeno alfarrabista em<br />
Corrientes, lhe caiu nas mãos a<br />
tradução castelhana <strong>de</strong> um livro<br />
<strong>de</strong> Milo Temesvar, Do Uso dos Espelhos<br />
no Jogo <strong>de</strong> Xadrez, cuja versão<br />
original, em georgiano, se encontrava<br />
<strong>de</strong>saparecida. Com<br />
gran<strong>de</strong> surpresa, ao folhear as<br />
suas páginas amarelecidas, encontrou<br />
abundantes citações <strong>de</strong><br />
um manuscrito do monge beneditino<br />
alemão Adso <strong>de</strong> Melk que<br />
narrava uma perturbante aventura<br />
da sua adolescência vivida numa<br />
importante abadia por volta do<br />
ano 1327. Terá sido este achado<br />
que <strong>de</strong>cidiu, <strong>de</strong>finitivamente,<br />
Eco a escrever, <strong>de</strong>pois, o Nome da<br />
Rosa, cujo narrador é, como sabemos,<br />
Adso <strong>de</strong> Melk.<br />
Sessenta anos antes, conforme<br />
<strong>de</strong>screve o livreiro Arturo<br />
Peña Lillo em Los Encantadores <strong>de</strong><br />
Serpientes, num outro alfarrabista,<br />
em Lavalle, alguém <strong>de</strong>sencanta<br />
<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um amontoado <strong>de</strong> livros<br />
envoltos em <strong>de</strong>nsa poeira<br />
um volume que o livreiro avalia<br />
por cem pesos. Depois <strong>de</strong> regatear<br />
um pouco, o comprador paga<br />
finalmente oitenta e sai radiante.<br />
Algum tempo <strong>de</strong>pois<br />
soube-se que um exemplar da<br />
Bíblia <strong>de</strong> Gutenberg tinha sido<br />
encontrado em Buenos Aires e,<br />
posteriormente, vendida ao Museu<br />
Britânico por <strong>de</strong>z mil libras.<br />
Entre a realida<strong>de</strong> e a ficção,<br />
na rica história das livrarias <strong>de</strong><br />
Buenos Aires abundam histórias<br />
como estas que ajudam a construir<br />
o mito <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />
apaixonada pelos livros. Ou não<br />
fosse Buenos Aires o lugar on<strong>de</strong>,<br />
talvez mais do que em qualquer<br />
outro, melhor se percebe o oxímoro<br />
pessoano «o mito é o nada<br />
que é tudo». Por isso, só<br />
aqui seria possível aquela história<br />
do Livro <strong>de</strong> Areia que um dia<br />
veio ter com Borges, num quarto<br />
andar da Rua Belgrano. Ou<br />
aquela infinita biblioteca hexagonal,<br />
<strong>de</strong>scrita nas Ficções. Mas<br />
essas são metáforas cuja interpretação<br />
escapa aos objectivos<br />
do itinerário livreiro <strong>de</strong> Buenos<br />
Aires que aqui quero <strong>de</strong>ixar.<br />
Entre a realida<strong>de</strong><br />
e a ficção,<br />
na rica história<br />
das livrarias<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires,<br />
abundam histórias<br />
como estas que ajudam<br />
a construir o mito<br />
<strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />
apaixonada<br />
pelos livros<br />
Primeiro a génese, portanto.<br />
Em Libreros, Editores e Impresores<br />
(1974), Domingo Buonocuore<br />
traça uma genealogia das bibliotecas<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires, repleta <strong>de</strong><br />
saborosos episódios e figuras<br />
singulares <strong>de</strong> livreiros porteños. E<br />
o primeiro livreiro terá sido, como<br />
o seu nome parece indicar<br />
com reduzida margem <strong>de</strong> erro,<br />
um português chamado Joaquim<br />
da Silva e Aguiar que estabeleceu,<br />
por volta <strong>de</strong> 1776, na<br />
rua hoje <strong>de</strong>nominada Suipache,<br />
o primeiro comércio <strong>de</strong> livros<br />
da cida<strong>de</strong>. A sua clientela seria<br />
composta por clérigos, funcionários<br />
coloniais e alguns mercadores<br />
ricos.<br />
Depois, à medida que os<br />
crioulos conspiradores se multiplicavam<br />
e sopravam mais fortes<br />
os ventos da in<strong>de</strong>pendência, outros<br />
comércios <strong>de</strong> livros apareceram.<br />
Data do princípio do século<br />
XVIII a livraria mais antiga <strong>de</strong><br />
Buenos Aires, na época conhecida<br />
popularmente por Librería <strong>de</strong>l<br />
Colegio, por se situar em frente<br />
do Colegio Mayor <strong>de</strong> San Ignacio.<br />
Ao longo <strong>de</strong> dois séculos <strong>de</strong> existência,<br />
a livraria Ávila (esquina<br />
Bolívar e Alsina), como é hoje<br />
<strong>de</strong>signada, foi um lugar por on<strong>de</strong><br />
passaram homens como Mitre,<br />
Sarmiento, Hernán<strong>de</strong>z, Estrada e<br />
outros. Anos <strong>de</strong>pois, numa tar<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> 1895, um homem sairá por<br />
uma porta do mesmo edifício<br />
para voltar a entrar, logo em seguida,<br />
pela porta da livraria. Trata-se<br />
do poeta nicaraguense Rubén<br />
Darío que durante algum<br />
tempo habitou um andar do<br />
mesmo edifício. Imagina-se que<br />
noutras ocasiões por aí também<br />
tenham passado os poetas Leopoldo<br />
Lugones e o boliviano Ricardo<br />
Jaimes Freyre que, conjuntamente<br />
com o inquilino do andar<br />
<strong>de</strong> cima, li<strong>de</strong>ravam o movimento<br />
mo<strong>de</strong>rnista.<br />
Actualmente, oferece uma<br />
gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> livros antigos<br />
e esgotados sobre temas indígenas,<br />
história da Argentina,<br />
antropologia, Buenos Aires, tango<br />
e Patagónia. Entre muitas outras<br />
rarida<strong>de</strong>s para coleccionadores,<br />
<strong>de</strong>parei com uma primeira<br />
edição, <strong>de</strong> 1925, <strong>de</strong> Lua Defronte,<br />
<strong>de</strong> Borges, com uma tiragem limitada<br />
<strong>de</strong> trezentos exemplares.<br />
El Ateneo é outra mítica livraria<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires. Fundada por<br />
Pedro García em 1938, foi nos<br />
anos sessenta um dos lugares<br />
mais frequentados da Rua Florida,
no n.º 340, quase em frente da<br />
velha se<strong>de</strong> <strong>de</strong> La Nación. A renovação<br />
a que foi sujeita, entretanto,<br />
não apagou as marcas <strong>de</strong> um<br />
passado luminoso, quando escritores<br />
como Jorge Luis Borges,<br />
Francisco Luis Bernár<strong>de</strong>z, Leopoldo<br />
Lugones, Eduardo Mallea,<br />
Roberto Payró, Ricardo Molinari,<br />
Arturo Cancela, González Lanuza,<br />
Miguel Angel Bustos ou Arturo<br />
Cuadrado, entre tantos outros,<br />
aí se reuniam em animadas tertúlias,<br />
inspirando a organização<br />
da primeira Feira do Livro da ci-<br />
Livraria Gandhi<br />
CIDADES INVISÍVEIS 26<br />
da<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nominada La Primavera <strong>de</strong><br />
las Letras, que aí se realizou em<br />
1965.<br />
Enquanto bebo um café no<br />
novo bar do primeiro andar, observo<br />
a disposição das estantes e<br />
bancas em baixo. Imagino o<br />
poeta <strong>de</strong> Fervor <strong>de</strong> Buenos Aires que<br />
diariamente aqui costumava <strong>de</strong>-<br />
27<br />
ter-se, no percurso que fazia entre<br />
a sua casa e a Biblioteca Nacional<br />
on<strong>de</strong> era director, conversando<br />
com o poeta <strong>de</strong> A Cida<strong>de</strong><br />
sem Laura, Luis Bernár<strong>de</strong>z, saindo<br />
<strong>de</strong>pois ambos para uma das suas<br />
longas caminhadas pela baixa <strong>de</strong><br />
Buenos Aires.<br />
A família Gruneissen, que é<br />
hoje proprietária <strong>de</strong> El Ateneo,<br />
reconverteu, recentemente, numa<br />
belíssima livraria o antigo cine-<br />
-teatro Gran Splendid (Santa Fe,<br />
1850), transformando aquele espaço<br />
numa espécie <strong>de</strong> palco para<br />
os livros. A criação <strong>de</strong> espaços<br />
atractivos e mo<strong>de</strong>rnos, on<strong>de</strong> se<br />
combinam livros, música e recantos<br />
on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> saborear<br />
um café enquanto se lê um livro,<br />
são a resposta que as livrarias encontraram<br />
para ultrapassar a crise<br />
que paralisou as vendas entre<br />
2001 e Março <strong>de</strong> 2002. A nova<br />
El Ateneo, <strong>de</strong>senhada por Fernando<br />
Manzone, respeita a construção<br />
original <strong>de</strong> 1903, adaptando-a<br />
às necessida<strong>de</strong>s da nova<br />
função. Os acessos, a plateia, os<br />
camarotes, o palco com a sua<br />
teia sob a qual existe um café, as<br />
cortinas, as luzes, a sala <strong>de</strong> projecção,<br />
mas também o corrimão<br />
das escadas, o dourado das colunas,<br />
os lustres, tudo foi restaurado,<br />
restituindo ao velho teatro<br />
o espírito do lugar, que nem as<br />
escadas rolantes vêm perturbar.<br />
Especial cuidado mereceu o res-<br />
tauro, pela pintora Isabel Contreras,<br />
do fresco da cúpula, pintada<br />
na década <strong>de</strong> 1920 pelo artista<br />
italiano Nazareno Orlandi. Como<br />
tantas outras livrarias <strong>de</strong> Buenos<br />
Aires, também esta fica aberta até<br />
tar<strong>de</strong>, sobretudo aos fins-<strong>de</strong>-semana<br />
em que encerra à uma da<br />
manhã. Como um teatro, afinal.
Mas, em vez das vozes <strong>de</strong> Carlos<br />
Gar<strong>de</strong>l, <strong>de</strong> Ignacio Corsini ou<br />
Roberto Firpo, que em soirées<br />
inesquecíveis emocionaram gerações<br />
<strong>de</strong> espectadores, ouve-se<br />
agora o silêncio dos livros nas<br />
estantes e bancas distribuídas<br />
pelo espaço da antiga plateia e<br />
camarotes, apenas interrompido,<br />
<strong>de</strong> vez em quando, por algum<br />
cliente que pe<strong>de</strong> uma informação<br />
a um empregado.<br />
Enquanto o projecto da El<br />
Ateneo da Avenida Santa Fe<br />
transformou a livraria num teatro<br />
da vida, outras tornaram-se<br />
lugares <strong>de</strong> discussão intelectual,<br />
recuperando a tradição das antigas<br />
socieda<strong>de</strong>s literárias. Há em<br />
Buenos Aires, pelo menos, dois<br />
lugares <strong>de</strong> referência que correspon<strong>de</strong>m<br />
a esta i<strong>de</strong>ia da livraria<br />
como lugar <strong>de</strong> reunião e <strong>de</strong> encontro<br />
<strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>s electivas: a<br />
Clássica y Mo<strong>de</strong>rna (Callao,<br />
892), aberta até às 3 horas da<br />
madrugada, é cada vez mais um<br />
lugar <strong>de</strong> discussão filosófica e, às<br />
vezes, também, um piano-bar; e<br />
a Ghandi (Corrientes, 1743)<br />
que, para além <strong>de</strong> livraria, é, ainda,<br />
uma espécie <strong>de</strong> salão literário<br />
contemporâneo, oferecendo um<br />
pequeno palco para recitais musicais.<br />
Ambas procuram retomar<br />
a tradição da livraria como lugar<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate público.<br />
Ainda nesta modalida<strong>de</strong>, o<br />
bar-livraria Un Gallo para Esculapio<br />
(Uriarte e Costa Rica), no<br />
borgesiano bairro <strong>de</strong> Palermo<br />
Viejo, é um lugar singular on<strong>de</strong><br />
o enigma das palavras finais <strong>de</strong><br />
Sócrates se renova entre um copo<br />
<strong>de</strong> cerveja e muitos livros. O café<br />
Oceano (Jorge Luis Borges,<br />
1985) é outro lugar em Palermo<br />
Viejo que combina uma biblioteca<br />
<strong>de</strong> 2500 títulos com a música<br />
étnica e instrumental.<br />
A Ghandi não está sozinha<br />
em Corrientes. No coração <strong>de</strong><br />
Buenos Aires, «a rua Corrientes é<br />
uma suspertição», ironizou Borges<br />
contra o prestígio da mais<br />
popular rua <strong>de</strong> Buenos Aires. Talvez<br />
a Corrientes <strong>de</strong> hoje já não<br />
seja a Corrientes cantada nas letras<br />
<strong>de</strong> tangos <strong>de</strong> outrora, com<br />
os seus cinemas, os seus teatros,<br />
os seus cafés abertos até muito<br />
tar<strong>de</strong> e, também, as suas livrarias.<br />
Um lugar <strong>de</strong> exaltação para<br />
aqueles que chegavam do outro<br />
lado do Atlântico. Também <strong>de</strong><br />
exaltação literária, quem sabe se<br />
para compensar a nostalgia das<br />
Livraria Gandhi<br />
pátrias perdidas no velho continente.<br />
Ou um certo vazio histórico<br />
<strong>de</strong> uma nação que nasceu<br />
dos barcos. Mas, ainda hoje, percorrer<br />
a pé a extensa avenida,<br />
que em épocas mais luminosas<br />
já foi uma espécie <strong>de</strong> Broadway<br />
porteña, é como passear ao longo<br />
<strong>de</strong> uma imensa montra <strong>de</strong> livros,<br />
tantas são as livrarias que por aí<br />
se encontram. E, apesar <strong>de</strong> muitas<br />
terem encerrado as suas portas<br />
nos últimos anos, a soma <strong>de</strong> todas<br />
as montras <strong>de</strong> livros que encontramos<br />
ao longo dos vários<br />
quarteirões, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
Callao até ao cruzamento com a<br />
9 <strong>de</strong> Julho, configurariam uma<br />
enorme livraria com centenas <strong>de</strong><br />
metros <strong>de</strong> comprimento, o que é<br />
absolutamente surpreen<strong>de</strong>nte e<br />
sem paralelo em qualquer outro<br />
lugar. Aí se encontram nomes<br />
importantes do comércio livreiro<br />
como Hernán<strong>de</strong>z, Losada, Cúspi<strong>de</strong><br />
ou Lorraine, lado a lado<br />
com armazéns poeirentos, estreitos<br />
corredores, ínfimos saguões<br />
borgeanos on<strong>de</strong> se ven<strong>de</strong>m<br />
livros em saldo. E on<strong>de</strong>, às<br />
vezes, se po<strong>de</strong> ter a surpresa <strong>de</strong><br />
encontrar, escondido sob um<br />
amontoado <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> ginástica,
<strong>de</strong> cozinha ou <strong>de</strong> jardinagem,<br />
aquele título esgotado que julgávamos<br />
perdido. Edições baratas,<br />
troca e venda <strong>de</strong> livros usados,<br />
os «livros do dia» pelo preço<br />
<strong>de</strong> uma cerveja. Eis o que ainda<br />
é, também, Corrientes.<br />
Parece que os leitores, que<br />
mesmo durante a crise nunca<br />
per<strong>de</strong>ram o hábito <strong>de</strong> frequentar<br />
as livrarias, voltaram <strong>de</strong> novo a<br />
comprar livros. Reveladora <strong>de</strong>sta<br />
atitu<strong>de</strong> em relação ao livro foi o<br />
facto <strong>de</strong> a Feira do Livro <strong>de</strong> Buenos<br />
Aires <strong>de</strong> 2002, que esteve<br />
para ser suspensa, ter registado<br />
um nível <strong>de</strong> participação surpreen<strong>de</strong>nte,<br />
como se a literatura<br />
Livraria Losada<br />
CIDADES INVISÍVEIS 28<br />
representasse a última esperança.<br />
Para o editor Daniel Divinsky,<br />
das Ediciones <strong>de</strong> la Flor, muitos<br />
argentinos terão preferido <strong>de</strong>sfrutar<br />
do dinheiro <strong>de</strong> que dispunham<br />
comprando livros, em vez<br />
<strong>de</strong> confiá-lo aos bancos. Registe-<br />
-se que, já em 2003, a Cámara<br />
Argentina <strong>de</strong>l Libro registara um<br />
número recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> 14365 títulos<br />
entre novida<strong>de</strong>s e reedições.<br />
E, se é verda<strong>de</strong> que a crise<br />
levou ao encerramento <strong>de</strong> muitas<br />
29<br />
livrarias e a uma diminuição<br />
dramática da edição <strong>de</strong> romances<br />
e poesia, outras, como<br />
as muito recentes Capítulo 2 ou<br />
Tierra <strong>de</strong> Lectores, têm ocupado<br />
os seus lugares, apostando numa<br />
relação mais directa com os<br />
clientes.<br />
Outra consequência ironicamente<br />
feliz da crise tem sido o<br />
ressurgimento dos pequenos<br />
editores que, aproveitando aquilo<br />
que as gran<strong>de</strong>s casas editoras<br />
<strong>de</strong>scartam, têm vindo a estreitar<br />
os laços com os seus autores, incentivando<br />
o aparecimento <strong>de</strong><br />
novos talentos e apostando na<br />
preservação <strong>de</strong> um fundo edito-<br />
rial próprio. Ediciones <strong>de</strong> la Flor,<br />
Manantial, Temas, Biblos, Quadrata,<br />
El Cuenco <strong>de</strong> Plata, Amorrortu,<br />
Bajo la Luna e La Crujía<br />
são algumas <strong>de</strong>ssas editoras que<br />
apostam, sobretudo, na promoção<br />
do património editorial argentino<br />
que po<strong>de</strong> ser encontrado nas<br />
livrarias <strong>de</strong> Buenos Aires.<br />
Talvez o território on<strong>de</strong> melhor<br />
se percebe a particular relação<br />
amorosa dos argentinos com<br />
os livros seja a Feira do Livro<br />
que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há 30 anos, constitui<br />
o principal acontecimento do<br />
Outono porteño. Quatrocentos expositores<br />
com milhares <strong>de</strong> livros,<br />
mesas-redondas, conferências,<br />
<strong>de</strong>bates, ateliers, maratonas<br />
<strong>de</strong> leitura, apresentação <strong>de</strong> livros<br />
e sessões <strong>de</strong> autógrafos e recitais<br />
<strong>de</strong> poesia marcaram a 30.ª edição,<br />
on<strong>de</strong> esteve presente, entre<br />
muitos outros consagrados escritores,<br />
António Lobo Antunes.<br />
Mas aquilo que se revelou, mais<br />
uma vez, a sua imagem <strong>de</strong> marca<br />
foram os grupos <strong>de</strong> amigos<br />
ou <strong>de</strong> famílias inteiras carregando<br />
sacos <strong>de</strong> livros que voltaram<br />
a comprar como antes da crise.<br />
Terminada a feira, regressemos,<br />
ainda, às livrarias. Agora,<br />
às dos livros caros, <strong>de</strong> capas bonitas,<br />
enca<strong>de</strong>rnados a pele e<br />
dourados que forram estantes<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira antiga. Livros raros,<br />
únicos, inexistentes, esgotados,<br />
exóticos, pergaminhos. Livrarias<br />
<strong>de</strong> usados, impecavelmente<br />
conservados. Elegantes antiquários<br />
livreiros. Dizem-me que,<br />
<strong>de</strong>vido à crise que se abateu sobre<br />
o país nos finais <strong>de</strong> 2001,<br />
diminuiu o público que antes<br />
se juntava nestes pequenos lugares<br />
<strong>de</strong> culto em pequenas tertúlias<br />
<strong>de</strong> coleccionadores. E que<br />
a paixão pelos livros raros é cada<br />
vez menos partilhada por<br />
argentinos. Aproveitam os estrangeiros<br />
cujo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra<br />
lhes permite adquirir, por<br />
módicas quantias, verda<strong>de</strong>iras<br />
preciosida<strong>de</strong>s. Como na Alberto<br />
Casares (Suipacha, 521), especializada<br />
em Borges, que propunha,<br />
por um preço muito<br />
aceitável, uma colecção completa<br />
da Sur, fundada e dirigida<br />
por Victoria Ocampo (1891-<br />
-1979), uma das mais importantes<br />
revistas literárias da Ibero-América<br />
na qual colaboraram,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro número
publicado em 1931 até ao n.º<br />
371 publicado em 1992, Jorge<br />
Luis Borges, José Ortega y Gasset,<br />
Alfonso Reyes, Adolfo Bioy<br />
Casares, Octavio Paz, Silvina<br />
Ocampo, Eduardo Mallea e tantos<br />
outros importantes escritores.<br />
Ou, ainda, a Acquilant<br />
(Rincón, 79) e a L’Amateur<br />
(Esmeralda, 882).<br />
Outras, mais económicas,<br />
mas nem por isso menos or<strong>de</strong>nadas<br />
e sortidas na sua penumbra<br />
discreta, e com livreiros<br />
que conversam com discreta<br />
autorida<strong>de</strong> e simpatia sobre os<br />
livros que ven<strong>de</strong>m, encontram-se<br />
um pouco por todo o lado. Como<br />
não recordar aquela pequena<br />
livraria <strong>de</strong> usados que dá pelo<br />
nome <strong>de</strong> Brujas (Rodríguez<br />
Peña, 429) on<strong>de</strong> encontrei uma<br />
primeira edição <strong>de</strong> Rayuela <strong>de</strong><br />
Julio Cortázar. Percorro as estantes<br />
e as bancas que expõem<br />
os livros cuidadosamente arrumados<br />
por temas e autores,<br />
sem qualquer mácula <strong>de</strong> poeira.<br />
Detenho-me em algumas<br />
edições <strong>de</strong> Borges, mas acabo<br />
por pegar na Rayuela, que comprarei.<br />
O livreiro conhece Pessoa,<br />
Torga, Régio, Saramago. De<br />
Saramago, diz-me, leu o Ensaio<br />
sobre a Cegueira. Mostra-me, ainda,<br />
o suplemento literário da<br />
edição do Clarín com uma entrevista<br />
ao Nobel português.<br />
Fornece-me preciosas informações<br />
sobre outras pequenas livrarias<br />
<strong>de</strong> usados que visitarei<br />
<strong>de</strong>pois, como a Romano (Ayacucho,<br />
437), El Vitral (Montevi<strong>de</strong>o,<br />
108) ou El Tunel (Avenida<br />
<strong>de</strong> Mayo, 767). Em todas ouvirei<br />
histórias sobre livros. Talvez<br />
para que a nenhuma falte uma<br />
biografia que se alimenta <strong>de</strong><br />
ficção e realida<strong>de</strong>.<br />
Mas livros usados também<br />
se po<strong>de</strong>m procurar nas feiras<br />
que po<strong>de</strong>mos encontrar no Par-<br />
que Rivadavia ou na Praça <strong>de</strong><br />
Itália, numa versão porteña dos<br />
bouquinistes do Sena – ou não fosse<br />
Buenos Aires um espelho <strong>de</strong><br />
Paris na América do Sul –, on<strong>de</strong><br />
um taxista que conhecia Lisboa<br />
me levou numa manhã <strong>de</strong> domingo.<br />
Alguém chega e abre<br />
uma mala <strong>de</strong> on<strong>de</strong> retira vários<br />
volumes que dispõe criteriosamente<br />
sobre um pano, no chão.<br />
Depois, um comprador pega<br />
num livro enca<strong>de</strong>rnado cujo título<br />
não pu<strong>de</strong> ver. Quem sabe<br />
se um livro inexistente.<br />
Há, ainda, as livrarias especializadas,<br />
on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> encontrar<br />
quase tudo sobre um tema.<br />
Livraria Losada<br />
Quem se interesse pela mítica<br />
Patagónia que conhecemos dos<br />
livros <strong>de</strong> Chatwin e <strong>de</strong> Coloane,<br />
essa terra do fim do mundo está<br />
mesmo ali, na World’s End,<br />
nas Galerias Pacífico. Se a paixão<br />
for o tango, então o melhor<br />
é procurar El Quiosco <strong>de</strong>l Tango,<br />
em Corrientes, obviamente.<br />
Entre outras preciosida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>scobri<br />
aí uma referência a uma<br />
tal «Amelia, la Portuguesa» que<br />
por volta <strong>de</strong> 1920 encantou nos<br />
cabarets <strong>de</strong> Buenos Aires. A melhor<br />
livraria borgesiana é a já<br />
mencionada Alberto Casares.<br />
Mas, se quisermos saber o que<br />
cantam os poetas argentinos <strong>de</strong><br />
agora, será na Norte (Las Heras,<br />
2237) que <strong>de</strong>vemos procurar.<br />
Esta a cida<strong>de</strong> dos livros. A<br />
cida<strong>de</strong> «on<strong>de</strong> todos os caminhos<br />
se bifurcam» conduzindo<br />
a uma livraria. Corrientes,<br />
Callao, Santa Fe, os caminhos<br />
principais que levam à «extravagante<br />
felicida<strong>de</strong>» das infinitas<br />
livrarias hexagonais ou aos estreitos<br />
armazéns <strong>de</strong> usados ou<br />
aos elegantes antiquários livreiros<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires.
CIDADES INVISÍVEIS 30<br />
31<br />
Os editores<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
em épocas <strong>de</strong> crise<br />
Daniel Divinsky
Ser editor, sem fazer parte<br />
<strong>de</strong> nenhum dos gran<strong>de</strong>s grupos<br />
editoriais, significa, num país<br />
como a Argentina, viver um estado<br />
<strong>de</strong> crise permanente. A situação<br />
agravou-se em finais <strong>de</strong><br />
2001, como consequência do<br />
<strong>de</strong>smoronamento do esquema<br />
económico neoliberal, sustentado<br />
na manutenção fictícia <strong>de</strong> uma<br />
parida<strong>de</strong> cambial (1 peso argentino<br />
= 1 dólar norte-americano),<br />
que permitia que os livros<br />
importados fossem mais<br />
baratos que os editados localmente.<br />
Em Abril <strong>de</strong> 2002, <strong>de</strong>via<br />
realizar-se a Feira Internacional<br />
do Livro <strong>de</strong> Buenos Aires e, até<br />
ao último momento, pensou-se<br />
que haveria que suspendê-la.<br />
Para surpresa <strong>de</strong> todos, não só<br />
teve uma assistência <strong>de</strong> público<br />
similar às anteriores, como as<br />
vendas foram excelentes. O que<br />
se passou no contexto <strong>de</strong> um<br />
país empobrecido até níveis<br />
nunca antes conhecidos? Simplesmente<br />
que os sectores não<br />
pauperizados que haviam confiado<br />
as suas poupanças aos<br />
bancos, os quais viriam a encerrar<br />
<strong>de</strong>vido à crise financeira,<br />
<strong>de</strong>cidiram <strong>de</strong>sfrutar do dinheiro<br />
<strong>de</strong> que ainda dispunham e, por<br />
exemplo, comprar livros. Também<br />
influiu, é certo, a afluência<br />
<strong>de</strong> visitantes dos países vizinhos<br />
que aproveitaram os preços<br />
da moeda local, subitamente<br />
abaratados.<br />
Nesse quadro, as «gran<strong>de</strong>s»<br />
editoras isto é, as que integram<br />
os grupos multinacionais que,<br />
paulatinamente, foram comprando<br />
as chancelas argentinas<br />
tradicionais, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m o seu<br />
ritmo <strong>de</strong> lançamento das novida<strong>de</strong>s<br />
e as suas tiragens em função<br />
da venda massiva e da inundação<br />
do mercado, viram-se<br />
mais afectadas que as médias e<br />
as pequenas. Um editor médio,<br />
que não está obrigado a produzir<br />
uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
novida<strong>de</strong>s mensais para manter<br />
em funcionamento as suas<br />
equipas <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> vendas,<br />
po<strong>de</strong> reduzir ao mínimo a<br />
sua produção enquanto o seu<br />
fundo editorial, reeditado regularmente,<br />
lhe permita solver os<br />
seus gastos gerais.<br />
Os sectores não<br />
pauperizados que<br />
haviam confiado as suas<br />
poupanças aos bancos,<br />
os quais viriam<br />
a encerrar <strong>de</strong>vido à crise<br />
financeira, <strong>de</strong>cidiram<br />
<strong>de</strong>sfrutar do dinheiro<br />
<strong>de</strong> que ainda dispunham<br />
e comprar livros<br />
Ediciones <strong>de</strong> la Flor, editora<br />
fundada por mim, em 1966, e<br />
que continua sendo proprieda<strong>de</strong><br />
minha e da minha mulher, tem<br />
como base das suas vendas os<br />
livros dos gran<strong>de</strong>s humoristas<br />
argentinos (Quino, autor <strong>de</strong> Mafalda,<br />
mas também <strong>de</strong> muitos<br />
outros títulos <strong>de</strong> humor, Fontanarrosa,<br />
Caloi, Maitena) e os <strong>de</strong><br />
alguns autores como Rodolfo<br />
Walsh, um clássico da narrativa,<br />
e o jornalismo <strong>de</strong> investigação,<br />
assassinado pela ditadura militar<br />
em 1977. Estes títulos reeditam-<br />
-se regularmente e quando, a<br />
partir da <strong>de</strong>svalorização da<br />
moeda nacional, baixaram os<br />
seus preços <strong>de</strong> exportação em<br />
dólares, reencontraram o mercado<br />
<strong>de</strong> toda a América Latina e,<br />
em alguns casos, o <strong>de</strong> Espanha<br />
(quando os nossos direitos não<br />
estavam contratualmente limitados).<br />
Isso permitiu que <strong>de</strong> 7<br />
novos títulos surgidos no, economicamente<br />
funesto, ano <strong>de</strong><br />
2002, se passasse a 20 novida<strong>de</strong>s<br />
em 2003, e que serão 32<br />
em 2004. E que as reedições,<br />
que são o segredo da sobrevivência<br />
<strong>de</strong> uma editora com um<br />
fundo, passassem, no mesmo<br />
lapso, <strong>de</strong> 14 para 60. Isto mesmo<br />
permitiu apostar em novos<br />
autores, no nosso caso jovens<br />
humoristas gráficos como os<br />
que assinam Nik y Liniers, que<br />
estão aumentando a sua fama e<br />
as suas vendas <strong>de</strong> modo surpreen<strong>de</strong>nte.<br />
Há algum tempo, um alto<br />
executivo <strong>de</strong> uma multinacional<br />
da edição disse que os gran<strong>de</strong>s<br />
grupos editoriais são como bolas<br />
numa caixa: sendo esféricas,<br />
<strong>de</strong>ixam pouco espaço entre elas<br />
para que ali se alojem outras<br />
editoras que, se crescerem <strong>de</strong>masiado,<br />
serão <strong>de</strong>voradas pelas<br />
maiores.<br />
O exemplo recente do grupo<br />
Vivendi, cuja divisão editorial<br />
estourou e teve <strong>de</strong> ser vendida<br />
em parcelas, e outros que interromperam<br />
a absorção <strong>de</strong><br />
mais empresas, parece <strong>de</strong>monstrar<br />
que aquilo que é verda<strong>de</strong><br />
para outros sectores não o<br />
é para os livros. A diversida<strong>de</strong><br />
da criação literária e a inquietu<strong>de</strong><br />
dos leitores permitem escapar<br />
às estreitas margens que<br />
o marketing globalizado preten<strong>de</strong><br />
impor.
CIDADES INVISÍVEIS 32<br />
Delírios porteños<br />
Carlos Cáceres Monteiro<br />
33
La Boca. Foto <strong>de</strong> Carlos Cáceres Monteiro
CIDADES INVISÍVEIS 34<br />
Não conheço outra cida<strong>de</strong><br />
no mundo com tanta força<br />
como Buenos Aires: nos seus<br />
bairros boémios on<strong>de</strong> a vida<br />
nunca pára; nos restaurantes on<strong>de</strong><br />
se come o bife <strong>de</strong> chorizo, por<br />
exemplo em La Mosca Blanca;<br />
na célebre Avenida Corrientes,<br />
que é um rio <strong>de</strong> luz no coração<br />
da cida<strong>de</strong>; nos lugares on<strong>de</strong> se<br />
toca e dança tangos na rua, seja<br />
na Calle Florida (que Jorge Luis<br />
Borges frequentou e celebrizou),<br />
em Palermo Viejo, em La<br />
Boca ou, ao domingo, na feira<br />
<strong>de</strong> San Telmo.<br />
Ou ainda numa outra forma<br />
<strong>de</strong> força, nas marchas <strong>de</strong> protestos:<br />
ontem as falanges peronistas,<br />
hoje os piqueteros.<br />
Este fôlego, esta energia,<br />
não <strong>de</strong>sfalece mesmo nos períodos<br />
mais difíceis. Estive em Buenos<br />
Aires em pleno tempo <strong>de</strong><br />
bancarrota, no auge do corralito,<br />
que se traduzira no confisco<br />
temporário dos <strong>de</strong>pósitos bancários.<br />
Pois, mesmo assim, apesar<br />
da profunda inquietação colectiva,<br />
a capital argentina não<br />
perdia gran<strong>de</strong> parte da sua fervilhante<br />
alegria <strong>de</strong> viver e conservava<br />
um notável sentido <strong>de</strong><br />
orgulho e dignida<strong>de</strong>; na Calle<br />
Lavalle não se calaram as concertinas<br />
e em La Recoleta as belas<br />
mulheres continuaram a sentar-<br />
-se nas esplanadas; na Calle Camiñito<br />
as casas mantiveram a<br />
pureza das suas cores vivas; e,<br />
durante o dia, o célebre Café<br />
Tortoni, na Avenida <strong>de</strong> Mayo (e<br />
que foi frequentado por Borges<br />
e Gar<strong>de</strong>l) guardou todo o seu<br />
velho esplendor e continuou a<br />
ser um dos templos do tango.<br />
Na Praça <strong>de</strong> Mayo intensificam-se<br />
os protestos frente à Casa<br />
Rosada, sob a balustrada que se<br />
celebrizou pelas aparições <strong>de</strong><br />
Juan Perón e sua mulher, Evita<br />
Perón. Em todo o caso, no Verão<br />
35<br />
<strong>de</strong> 2002, a última vez que estive<br />
na Argentina, essas manifestações<br />
não se comparam àquelas<br />
que, meio ano antes, a classe<br />
média organizou, <strong>de</strong> forma quase<br />
espontânea (por Internet) para<br />
protestar contra o corralito e contra<br />
o ministro da Economia que<br />
o gerou, o monetarista neoliberal<br />
Cavallo. Muitos milhares <strong>de</strong><br />
pessoas participaram, em 30 <strong>de</strong><br />
Dezembro <strong>de</strong> 2001, no cacerollazo.<br />
Munidos <strong>de</strong> panelas, pratos, potes<br />
e ban<strong>de</strong>jas, os argentinos rejeitaram<br />
em bloco, nas praças <strong>de</strong><br />
Mayo e do Obelisco, o rumo<br />
que o país seguia. E, mesmo assim,<br />
nunca às portas dos gran<strong>de</strong>s<br />
armazéns (em muitos dos<br />
quais eram aceites os patacones, os<br />
bónus emitidos pelo Estado falido<br />
e insolvente) se <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />
cantar e dançar o tango.<br />
Foi em 1945 que se concretizou<br />
a ascensão política do caudilho<br />
argentino, <strong>de</strong>pois da<br />
maior manifestação alguma vez<br />
realizada em Buenos Aires, no<br />
dia 17 <strong>de</strong> Outubro. Ainda hoje,<br />
historiadores e jornalistas discutem<br />
qual terá sido o exacto papel<br />
da então actriz Eva Duarte na<br />
noite da manifestação na Avenida<br />
9 <strong>de</strong> Julho. Mas Perón costuma<br />
ser citado dizendo que foi a<br />
sua amiga Evita que organizou<br />
tudo. Um movimento aparentemente<br />
espontâneo <strong>de</strong> gente humil<strong>de</strong><br />
da cintura operária, que<br />
nunca antes entrara no centro <strong>de</strong><br />
Buenos Aires, ocupou a capital e<br />
impôs Perón. Facto que constitui,<br />
aliás, uma singularida<strong>de</strong>: a<br />
classe trabalhadora a colocar um<br />
coronel no po<strong>de</strong>r (já então simbolizado<br />
pela Casa Rosada, o palacete<br />
que encima a Praça <strong>de</strong><br />
Mayo). Foi no dia seguinte a esta<br />
marcha popular que nasceu o<br />
mito dos <strong>de</strong>scamisados, ainda hoje<br />
fortemente ligados à história da<br />
populista Evita. Eram os pobres<br />
da Argentina, os «sem camisa» a<br />
tomarem o seu <strong>de</strong>stino nas<br />
mãos; só que a Argentina era, na<br />
época, um dos mais ricos países<br />
do mundo; acreditava-se que teria<br />
um gran<strong>de</strong> futuro, maior do<br />
que o <strong>de</strong> qualquer outro da<br />
América Latina, incluindo o Brasil<br />
e o México. O 17 <strong>de</strong> Outubro<br />
passou a ser, ao longo dos anos,<br />
a data <strong>de</strong> todos os rituais peronistas.<br />
O mito <strong>de</strong> Evita, que entretanto<br />
se casara com Perón, avolumou-se<br />
porque as pessoas começaram<br />
a procurá-la para lhe<br />
pedir favores ou auxílio financeiro:<br />
mães pobres, crianças que<br />
necessitavam <strong>de</strong> assistência. A<br />
Newswek chamou-lhe então La Presi<strong>de</strong>nta.<br />
Eva Perón passou a ter gabinete<br />
no Ministério do Trabalho.<br />
A Fundação Eva Perón reforçou<br />
o papel beneficente da mulher<br />
do Presi<strong>de</strong>nte, a tal ponto<br />
que houve quem passasse a chamar-lhe<br />
santa (hoje, há quem<br />
sugira a sua canonização). Um<br />
ano <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter morrido, as<br />
crianças argentinas já aprendiam<br />
uma prece que lhe era <strong>de</strong>dicada,<br />
semelhante ao padre-nosso, e<br />
nos calendários vendidos em<br />
Buenos Aires aparecia uma auréola<br />
à volta da sua cabeça.<br />
Em 17 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1951,<br />
na Praça <strong>de</strong> Mayo, já muito<br />
doente, aguentando-se a doses<br />
<strong>de</strong> morfina, Evita ainda conseguiu<br />
proferir, na varanda da Casa<br />
Rosada, um extraordinário e<br />
patético discurso em que agra<strong>de</strong>ceu<br />
aos seus queridos <strong>de</strong>scamisados<br />
e gritou que dava a vida por<br />
Perón, frase que foi repetida pelo<br />
milhão e meio <strong>de</strong> argentinos<br />
presentes.<br />
Des<strong>de</strong> os anos 50, afinal<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do peronismo,<br />
que a classe média não fazia<br />
ouvir, <strong>de</strong> uma forma tão clara, a<br />
sua voz na rua.
La Boca. Foto <strong>de</strong> Carlos Cáceres Monteiro
CIDADES INVISÍVEIS 36<br />
Sob este fervor visível (e audível)<br />
sobrevivem e alimentam a<br />
alma <strong>de</strong> Buenos Aires os eternos<br />
mitos da gran<strong>de</strong> urbe. De resto,<br />
na América Latina (veja-se, por<br />
exemplo, o caso do México, do<br />
Peru ou <strong>de</strong> Cuba) os mitos e os<br />
ícones estão bem vivos, a par<br />
das histórias misteriosas e das<br />
lendas, como as do Lago Titicaca.<br />
Os dois gran<strong>de</strong>s mitos <strong>de</strong> Buenos<br />
Aires, para não falarmos já<br />
do próprio Perón, são Carlos<br />
Gar<strong>de</strong>l e Eva Perón.<br />
Em Buenos Aires revisitei,<br />
munido do meu ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> repórter,<br />
a rota <strong>de</strong>ssas gran<strong>de</strong>s figuras<br />
que continuam a fazer<br />
parte do imaginário porteño. Estive,<br />
Sob este fervor visível (e audível) sobrevivem e alimentam a alma<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires os eternos mitos da gran<strong>de</strong> urbe. De resto, na América Latina<br />
(veja-se, por exemplo, o caso do México, do Peru ou <strong>de</strong> Cuba) os mitos e os<br />
ícones estão bem vivos, a par das histórias misteriosas e das lendas, como as<br />
do Lago Titicaca. Os dois gran<strong>de</strong>s mitos <strong>de</strong> Buenos Aires, para não<br />
falarmos já do próprio Perón, são Carlos Gar<strong>de</strong>l e Eva Perón<br />
37<br />
mais do que uma vez, no jazigo<br />
<strong>de</strong> Eva Perón, no cemitério <strong>de</strong><br />
La Recoleta. Na segunda vez,<br />
em 2002, a impressão que colhi<br />
foi muito forte, porque entretanto<br />
estudara os contornos<br />
da personalida<strong>de</strong> e da história<br />
<strong>de</strong>ssa mulher, cuja vida também<br />
foi recriada por mais do<br />
que uma vez no cinema (a última<br />
das quais interpretada por<br />
Madonna). E recor<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong> tal<br />
forma foi impressiva a sua presença<br />
e memória, a opereta<br />
Don’t cry for me, Argentina, que resistiu<br />
muitas e muitas temporadas<br />
na Broadway (Nova Iorque)<br />
e em Londres.<br />
Mas a força da revisitação<br />
ao cemitério <strong>de</strong> La Recoleta ganhou<br />
significado porque muitos<br />
argentinos evocaram sentidamente<br />
a combativa Eva, precisamente<br />
no pico da crise e da<br />
bancarrota. Nessa ocasião a taxa<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego atingia 21,5%, e<br />
era a mais alta da América Latina:<br />
cinco milhões <strong>de</strong> pessoas<br />
procuravam emprego. Nessa<br />
manhã <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2002<br />
comovi-me, observando a cerimónia,<br />
na manhã soalheira do<br />
Inverno do rio <strong>de</strong> La Plata, ouvindo<br />
os dicursos <strong>de</strong> habitantes<br />
<strong>de</strong> Buenos Aires e <strong>de</strong> dirigentes<br />
sindicais. Militantes do Sindicato<br />
dos Taxistas, envergando capas e<br />
ban<strong>de</strong>iras pretas e amarelas, cantavam<br />
a marcha peronista.<br />
A eleição do Presi<strong>de</strong>nte Kirchner<br />
acabou por traduzir o <strong>de</strong>senlace<br />
possível para aquilo que<br />
parecia ser um beco sem saída.<br />
Os chefes <strong>de</strong> família sem trabalho<br />
passaram a receber 150 pesos<br />
(50 euros) por mês, uma preciosa<br />
mas magra ajuda que não<br />
tirou ninguém do grupo dos<br />
50% do conjunto da população<br />
que vive em estado <strong>de</strong> pobreza<br />
(a Argentina tem 36 milhões <strong>de</strong><br />
habitantes). Por isso, leio nas<br />
mais recentes reportagens dos<br />
meus colegas jornalistas que no<br />
centro histórico há adolescentes<br />
que dormem nos passeios, cartoneros<br />
que recolhem embalagens<br />
abandonadas e crianças que<br />
abrem as portas dos táxis na esperança<br />
<strong>de</strong> receber um peso.<br />
Da primeira vez que estive<br />
em Buenos Aires, em 1985, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
logo se me impôs a força <strong>de</strong><br />
um outro mito, diferente mas<br />
nem por isso menos forte: Carlos<br />
Gar<strong>de</strong>l, que morreu em 24<br />
<strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1935 na Colômbia,<br />
quando um avião em que seguia<br />
se preparava para largar <strong>de</strong> Bogotá<br />
para Cali. Portanto, estava-
se em ano evocativo do cinquentenário<br />
da sua morte, que<br />
ainda hoje permanece envolta<br />
em mistério porque o corpo do<br />
cantor foi encontrado atravessado<br />
por um tiro.<br />
Vivia em Buenos Aires, nesse<br />
já distante ano <strong>de</strong> 1985, um<br />
gran<strong>de</strong> jornalista brasileiro, Flávio<br />
Tavares, que já <strong>de</strong>pois disso<br />
publicou livros sobre o tema, o<br />
último dos quais é (neste ano <strong>de</strong><br />
2004) um dos gran<strong>de</strong>s best-sellers<br />
das livrarias brasileiras, O Dia em<br />
que Getúlio Matou Allen<strong>de</strong>.<br />
Foi Flávio Tavares que me<br />
iniciou nos meandros do culto<br />
<strong>de</strong> Carlos Gar<strong>de</strong>l, levando-me a<br />
muitas das casas <strong>de</strong> tango que se<br />
encontravam abertas na capital<br />
argentina e on<strong>de</strong> o silêncio era<br />
imposto com uma frase simples<br />
e cortante: «Por favor, señores,<br />
que estan cantando tangos!»<br />
Por corredores longos e escuros,<br />
escadas que se <strong>de</strong>spenhavam<br />
sobre caves sombrias, entrámos<br />
na Casa <strong>de</strong> Anibal Troyo,<br />
que era ao tempo um dos principais<br />
lugares <strong>de</strong> culto e estava<br />
cheia <strong>de</strong> fiéis dos tangos, <strong>de</strong>sses<br />
tangos arrastados que cantam<br />
amores e milongas, inpirados<br />
nas pampas. «Adiós pampa<br />
mia/Me voy a tierras estrañas».<br />
Troyo dirigia a orquestra que<br />
acompanhava Gar<strong>de</strong>l no princípio<br />
da sua carreira. Um músico<br />
abraçava um violão maior do<br />
que ele próprio e um acor<strong>de</strong>onista<br />
velhinho fazia tremer as<br />
garrafas da mesa. Um par saltou<br />
para a pista e em breve as pernas<br />
se colaram, os corpos requebraram,<br />
a mão do cavalheiro <strong>de</strong>sceu<br />
pelo corpo da dama. Ou não<br />
fosse, como dizia Jorge Luis Borges,<br />
«o tango uma espécie <strong>de</strong> simulacro<br />
do coito». Foi Paul Morand<br />
que escreveu que o tango<br />
foi um dos gran<strong>de</strong>s cantos do século<br />
passado – e continuará a<br />
ser, certamente, <strong>de</strong>ste século. Como<br />
Morand o <strong>de</strong>screvia: «O tango<br />
é terno, sensual; uma mestiçagem<br />
<strong>de</strong> italiano; o tango fala<br />
andaluz com pronúncia napolitana<br />
e acor<strong>de</strong>ão alemão.» E também<br />
acrescentou (Morand) que<br />
se tratava <strong>de</strong> «uma cópula ritmada».<br />
Quais as origens do tango?<br />
Há quem diga que também há<br />
nele sangue português, porventura<br />
uma gota <strong>de</strong> fado cantado<br />
por esses muitos emigrantes lusos<br />
que embarcaram no convés<br />
dos navios, no século XIX, <strong>de</strong>mandando<br />
a foz do rio <strong>de</strong> la Plata.<br />
Quem sabe verda<strong>de</strong>iramente?<br />
Caño 16, Casa Rosada, Viejo<br />
Almacén, Camiñito – nesses dias<br />
passámos, mesmo que fugazmente,<br />
por esses lugares <strong>de</strong> culto,<br />
acabando o périplo na formal<br />
e requintada Casa Gar<strong>de</strong>l,<br />
on<strong>de</strong> os troféus do cantor estavam<br />
profusamente expostos.<br />
Sobre a realida<strong>de</strong> política,<br />
social e <strong>cultura</strong>l da Argentina<br />
muito haveria a dizer. Não é<br />
esta, contudo, a intenção <strong>de</strong>ste<br />
artigo, que preten<strong>de</strong> ser uma<br />
revistação <strong>de</strong> mitos e lugares<br />
<strong>de</strong> culto. Não foi, certamente,<br />
por acaso que, em tanta coisa<br />
bonita e interessante que há<br />
em Buenos Aires, foi esse imaginário<br />
que mais me atraiu. É<br />
que a Argentina, e em concreto<br />
o Rio <strong>de</strong> la Plata, sempre foi<br />
um ancoradouro <strong>de</strong> sonhos,<br />
tantas vezes <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios. A Argentina<br />
nasceu, ela própria, da<br />
ambição <strong>de</strong> levar a Europa, o<br />
estilo europeu, os seus hábitos<br />
e sua <strong>cultura</strong> para o Sul da<br />
América Latina. E não é por o<br />
sonho, como todos os sonhos,<br />
atravessar momentos <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo<br />
que um dia não haverá<br />
um belo <strong>de</strong>spertar. Afinal, em<br />
Buenos Aires o sono é sempre<br />
breve. E a única vida longa é a<br />
dos ícones imortais.<br />
CÁTEDRA<br />
DE HISTÓRIA DA<br />
IBERO-AMÉRICA<br />
Iniciativa aprovada na IX Cimeira<br />
Ibero-Americana <strong>de</strong> Chefes <strong>de</strong> Estado<br />
e <strong>de</strong> Governo (Havana, 1999) e incorporada<br />
na programação da OEI.<br />
FINALIDADE<br />
Contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento e<br />
consolidação da Comunida<strong>de</strong> Ibero-<br />
-Americana <strong>de</strong> nações, através do<br />
fortalecimento e da afirmação da sua<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> regional, promovendo um<br />
maior e mais profundo conhecimento<br />
crítico dos processos históricos subjacentes<br />
às suas matrizes <strong>cultura</strong>is.<br />
A Re<strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Universida<strong>de</strong>s<br />
signatárias adoptou a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong><br />
CÁTEDRA DE ESTUDOS IBERO-<br />
-AMERICANOS, sediada, rotativamente,<br />
na Universida<strong>de</strong> do Algarve e<br />
na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa.<br />
TRIÉNIO 2004-2007<br />
PROGRAMA DE ACÇÃO<br />
Formação Inicial História<br />
e Cultura da Ibero-América.<br />
Literatura Ibero-Americana<br />
Formação Contínua <strong>de</strong> Docentes<br />
Encontros Científicos<br />
Edições<br />
Biblioteca Especializada<br />
PARCERIAS<br />
Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />
Câmara Municipal <strong>de</strong> Portimão<br />
Portal Universia, S.A.
MALA DIPLOMÁTICA 38<br />
A CORRENTE MIGRATÓRIA<br />
DA IBERO-AMÉRICA<br />
PARA A EUROPA PODE SER<br />
ENTENDIDA COMO<br />
UMA ESPÉCIE DE REGRESSO<br />
ÀS ORIGENS<br />
Entrevista com Jorge Faurie<br />
Beatriz Padilla<br />
39<br />
embaixador da República da Argentina<br />
Durante muito tempo, a Argentina foi vista como uma transposição europeia na<br />
América do Sul. Um país com um elevado nível <strong>de</strong> bem-estar. Depois, nas<br />
últimas décadas, fruto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastrosas políticas económicas, o empobrecimento<br />
atingiu limites nunca antes vistos, até ao quase-colapso <strong>de</strong> há três anos. Parece,<br />
contudo, que o pior já passou, e o país procura agora novos horizontes capazes<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>volver a esperança aos argentinos. Jorge Faurie, embaixador da Argentina,<br />
fala-nos <strong>de</strong>sses novos horizontes que passam também pela renovação<br />
<strong>de</strong> relações privilegiadas com Portugal, no quadro do espaço <strong>ibero</strong>-americano<br />
em que ambos os países se integram.
Como caracteriza as relações actuais entre a Argentina e Portugal?<br />
É uma relação que assenta numa história comum, cujas raízes remontam ao<br />
período colonial em que Portugal marcou presença, nomeadamente no Rio da<br />
Prata. Depois, já no século XX, haveria um período <strong>de</strong> forte presença <strong>de</strong> portugueses<br />
na Argentina, através <strong>de</strong> uma corrente imigratória para países da América<br />
Latina. Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses portugueses regressaria a Portugal após a instauração da<br />
<strong>de</strong>mocracia em Abril <strong>de</strong> 1974 e consequente abertura económica que abriu novos<br />
caminhos <strong>de</strong> esperança e <strong>de</strong>senvolvimento económico. Em silmultâneo, a integração<br />
<strong>de</strong> Portugal na União Europeia abrandaria gradualmente o seu interesse pela<br />
América Latina, levando a alguma estagnação no relacionamento entre os dois países.<br />
Ainda assim, após a crise económica <strong>de</strong> 2002, a Argentina tem procurado contrariar<br />
este afastamento, assistindo-se, agora, a uma lenta mas efectiva reaproximação<br />
económica e <strong>cultura</strong>l.<br />
Po<strong>de</strong> precisar os contornos <strong>de</strong>ssa reaproximação?<br />
Em termos comerciais, as exportações argentinas para o mercado português ultrapassam<br />
os 150 milhões <strong>de</strong> dólares por ano. Reciprocamente, creio que há muito<br />
espaço para o crescimento do comércio português no mercado argentino. E já hoje<br />
os investimentos directos <strong>de</strong> Portugal na Argentina ultrapassm os 500 milhões <strong>de</strong><br />
dólares, em diversas áreas <strong>de</strong> produção, sobretudo na vitivini<strong>cultura</strong>, na indústria<br />
corticeira, no fabrico <strong>de</strong> equipamentos eléctricos e ainda na marmoraria, azulejaria<br />
e porcelana. Uma área adicional, que creio que oferece muitas possibilida<strong>de</strong>s para<br />
uma boa complementarida<strong>de</strong>, é o sector científico e tecnológico. Creio po<strong>de</strong>r afirmar<br />
que a Argentina possui um nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico bastante interessante.<br />
A cooperação científica entre ambos os países constitui, por isso, um <strong>de</strong>safio<br />
em que que o governo argentino aposta, tendo para isso estabelecido contactos<br />
com o Ministério da Ciência e do Ensino Superior. O relacionamento económico é<br />
acompanhado por um diálogo político muito positivo, porque Portugal e a Argentina,<br />
para além <strong>de</strong> integrarem o mesmo espaço histórico-<strong>cultura</strong>l <strong>ibero</strong>-americano,<br />
partilham visões do mundo que são muito semelhantes, sendo por isso fácil a aproximação<br />
entre ambos os países nos mais diversos foros internacionais.<br />
E em termos <strong>cultura</strong>is?<br />
Creio que os portugueses têm uma espécie <strong>de</strong> visão mítica da Argentina, como<br />
uma terra rica que ofereceu níveis <strong>de</strong> bem-estar a uma corrente migratória e que,<br />
ao mesmo tempo, produziu um mundo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> pensamento que lhes parece<br />
atraente. Muitos portugueses conhecem Jorge Luis Borges, como <strong>de</strong>monstra o interesse<br />
pela edição em Portugal das suas Obras Completas. Mas também Julio Cortázar e<br />
Bioy Casares. Diria que se revêem na interacção <strong>de</strong> alguns escritores portugueses<br />
que foram coetâneos do período <strong>de</strong>stes escritores argentinos. Aliás, a entida<strong>de</strong> tutelar,<br />
o prócer sobre a qual se celebra a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Portugal, é um escritor, e aqui se<br />
ren<strong>de</strong> uma homenagem extensiva aos escritores. E, entre os arquétipos, Borges é o<br />
homem da essência argentina, como Pessoa é o homem da essência portuguesa no<br />
século XX.<br />
Como caracteriza a comunida<strong>de</strong> argentina que hoje resi<strong>de</strong> em Portugal?<br />
A comunida<strong>de</strong> não é numericamente muito representativa, quando comparada<br />
com a <strong>de</strong> outros países. Diria que, no total, entre os resi<strong>de</strong>ntes que estão<br />
inscritos e os que não estão, não supera as 1000 pessoas. Desse conjunto, aproximadamente<br />
uns 40% são cidadãos nascidos em território argentino que, pela<br />
disposição da lei argentina, serão sempre argentinos, que nasceram <strong>de</strong> pais portugueses<br />
naquela etapa emigratória a que fiz referência, na primeira meta<strong>de</strong> do
MALA DIPLOMÁTICA 40<br />
41<br />
século XX, e que beneficiaram da circunstância positiva <strong>de</strong> terem<br />
crescido numa Argentina próspera, com altos padrões <strong>de</strong> justiça social<br />
e distributiva, o que lhes permite guardar uma auto-estima muito<br />
positiva relativamente à Argentina. Embora pela lei portuguesa,<br />
como filhos <strong>de</strong> portugueses, tenham adquirido a cidadania portuguesa,<br />
mantêm fortes vínculos com a Argentina. Há, também, um<br />
conjunto <strong>de</strong> argentinos que foram emigrando nas diferentes etapas,<br />
algumas difíceis, da vida política, social e económica do país, procurando<br />
níveis <strong>de</strong> excelência na sua formação ou novos horizontes<br />
profissionais e que, hoje, se encontram relativamente bem inseridos<br />
no país <strong>de</strong> acolhimento porque, por um lado, os portugueses têm<br />
uma atitu<strong>de</strong> positiva face ao estrangeiro e, por outro, os argentinos<br />
integram-se bem, graças às afinida<strong>de</strong>s <strong>cultura</strong>is e à relativa facilida<strong>de</strong><br />
idiomática, para além <strong>de</strong> apresentarem excelentes níveis <strong>de</strong> qualificação<br />
profissional que beneficiam a socieda<strong>de</strong> portuguesa.<br />
Uma <strong>de</strong>ssas etapas, difíceis, da vida da Argentina foi a crise económica e social que se abateu sobre o país nos finais<br />
<strong>de</strong> 2001 e que levou, conforme escreveu o jornalista e escritor Tomás Eloy Martínez, a um «êxodo real e catastrófico»<br />
<strong>de</strong> quadros técnicos.<br />
Talvez a expressão «êxodo catrastófico» seja exagerada. Mas é<br />
um facto que, no momento mais agudo da crise, muita gente qualificada<br />
– cientistas, professores, famílias inteiras – <strong>de</strong>ixou o país em<br />
busca <strong>de</strong> melhores horizontes, o que constituiu um preocupante<br />
movimento migratório, agora por razões económicas. Mas também<br />
é verda<strong>de</strong> que o pior já passou e muitos dos que partiram regressaram,<br />
entretanto, ao país.<br />
Como vê o futuro das relações entre a Europa e a Ibero-América?<br />
Situo-as num esforço extremadamente importante dos países da<br />
América Latina para manter a atracção, através do Atlântico, dos países<br />
europeus e, muito particularmente, dos dois países ibéricos, o que<br />
<strong>de</strong>verá passar pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> aproximação no<br />
quadro da cooperação entre a União Europeia e o Mercosul. E isso<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá tanto da nossa capacida<strong>de</strong> em encontrar, conjuntamente<br />
com a Europa, soluções para os nossos problemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
como da predisposição da própria União Europeia em<br />
abrir-se mais aos países da América Latina, quer em termos económicos,<br />
quer em termos sociais, colocando menos obstáculos, por<br />
exemplo, à circulação <strong>de</strong> latino-americanos no espaço europeu.<br />
Acha que essa abertura po<strong>de</strong> ser histórica e eticamente justificada, conforme a inscrição «Estamos aqui porque vocês<br />
estiveram lá» que podia ler-se num cartaz ostentado por um imigrante <strong>ibero</strong>-americano durante uma recente manifestação<br />
numa capital europeia?<br />
Há uma justificação histórica e ética para uma maior abertura<br />
da Europa à imigração <strong>de</strong> cidadãos oriundos da América Latina. A<br />
corrente migratória actual po<strong>de</strong> ser entendida como uma espécie <strong>de</strong><br />
regresso às origens, pois, afinal, somos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> sucessivas<br />
correntes migratórias <strong>de</strong> cidadãos europeus, sobretudo <strong>de</strong> Espanha,<br />
da Alemanha ou <strong>de</strong> Itália. Não foi por acaso que a Argentina foi<br />
vista, durante muitos anos, como uma transposição europeia na América<br />
do Sul. Por isso, mais do que um protesto, esse cartaz expressaria,<br />
julgo, uma reivindicação e a exigência do reconhecimento dos vínculos<br />
entre os dois lados do Atlântico.
MEMÓRIA DE FOGO 42<br />
43<br />
A saga andina<br />
do <strong>de</strong>us Con<br />
Osvaldo Henrique Urbano
A saga andina do Deus Con; tapeçaria pré-colombina [Costa do Peru]
MEMÓRIA DE FOGO 44<br />
45<br />
Entre as tradições pré-colombinas da<br />
América do Sul, recolhidas pela cronística<br />
espanhola do século XVI, existe um relato<br />
que nos chama muito a atenção, não só<br />
pela forma, mas também pelo conteúdo.<br />
Recompilou-o López <strong>de</strong> Gómara [1552].<br />
Reza assim: “Dizem que no princípio do<br />
mundo veio pela parte setentrional um homem<br />
cujo nome era Con. Não tinha ossos.<br />
Caminhava muito e ligeiro e, para que o<br />
caminho fosse mais curto, baixava as serras<br />
e levantava os vales com a força da vonta<strong>de</strong><br />
e da palavra, como filho do Sol que dizia<br />
ser. Encheu a terra com homens e mulheres,<br />
<strong>de</strong>u-lhes muita fruta e pão e todas as<br />
coisas necessárias para viver. Mas um dia<br />
zangou-se com alguma ofensa que eles lhe<br />
fizeram. Então converteu a terra boa que<br />
lhes tinha dado em areais secos e estéreis,<br />
como se vêem hoje na costa, tirou-lhes a<br />
chuva e nunca mais ali choveu. Só lhes <strong>de</strong>ixou,<br />
por pieda<strong>de</strong>, os rios para que pu<strong>de</strong>ssem<br />
manter-se com o regadio e trabalho.<br />
Apareceu então Pachacama, também filho<br />
do Sol e da Lua, que significa Criador, e<br />
<strong>de</strong>sterrou Con, transformando os seus homens<br />
em gatos com riscas pretas. E <strong>de</strong>pois<br />
criou novamente os homens e mulheres<br />
como hoje são, dando-lhes as coisas que<br />
têm agora. Para agra<strong>de</strong>cer-lhe essas mercês,<br />
proclamaram-no seu Deus e assim o guardaram<br />
e honraram em Pachacama, até que<br />
os cristãos o <strong>de</strong>sterraram do lugar.”<br />
O templo <strong>de</strong> Pachacama ficava perto<br />
<strong>de</strong> Lima, era famosíssimo pelos seus oráculos,<br />
visitado por todos com muita <strong>de</strong>voção.<br />
Aparecia aí o diabo e falava com os sacerdotes<br />
que lá moravam. Os espanhóis que o<br />
visitaram com Fernando Pizarro, após a<br />
prisão <strong>de</strong> Atabalipa, <strong>de</strong>spojaram o templo<br />
do muito ouro e prata que possuía, e com<br />
a cruz e o sacramento também cessaram os<br />
oráculos e as visões.<br />
Afirmam também que durante muito<br />
tempo choveu tanto que inundou todas as<br />
terras baixas, e todos os homens, aqueles<br />
que pu<strong>de</strong>ram, refugiaram-se numas covas<br />
feitas em serras muito altas, com portas<br />
pequeninas para que a água não entrasse.<br />
Meteram lá os víveres e os animais que cabiam.<br />
Quando sentiram que já não chovia,<br />
soltaram dois cães. E, como eles voltassem<br />
limpos, mas molhados, viram que as chuvas<br />
não tinham cessado. Depois soltaram<br />
mais cães que voltaram com lama, mas enxutos,<br />
sinal <strong>de</strong> que as chuvas tinham acabado.<br />
Então saíram a ocupar as terras. E o<br />
que mais trabalho <strong>de</strong>u foi o gran<strong>de</strong> número<br />
<strong>de</strong> cobras gran<strong>de</strong>s que ainda existiam.<br />
Tinham-se criado na humida<strong>de</strong> e no lodo<br />
das cheias. Mas, finalmente, mataram-nas e<br />
agora vivem em segurança. Acreditam também<br />
no fim do mundo que será precedido<br />
por uma gran<strong>de</strong> seca. Nela se per<strong>de</strong>rão o<br />
Sol e a Lua que adoram; por isso dão gran<strong>de</strong>s<br />
berros e choram quando há eclipses,<br />
sobretudo do Sol, porque pensam que vão<br />
<strong>de</strong>saparecer, não só eles mas também o<br />
mundo inteiro.<br />
Do <strong>de</strong>us Con, pouco ou nada sabemos.<br />
Mas os vocabulários antigos dizem que essa<br />
palavra, usada nas línguas dos territórios<br />
nortenhos andinos, concretamente em<br />
Huamachuco, significava «água». É um<br />
bom ponto <strong>de</strong> partida porque o mito dá<br />
uma <strong>de</strong>finição que exprime metaforicamente<br />
as formas <strong>de</strong> um rio ou <strong>de</strong> um curso<br />
<strong>de</strong> água que se vai adaptando às condições<br />
geográficas por on<strong>de</strong> passa: «Con não tem<br />
ossos», isto é, não tem uma estrutura fixa.<br />
Ao contrário, serpenteia, transforma-se em<br />
lago, lança-se por uma ribanceira, atira-se<br />
em catarata e corre ligeiro porque amansa<br />
os cumes das montanhas e torna mais acessíveis<br />
os vales. O castigo que Con <strong>de</strong>u aos<br />
que ele tinha criado também está relacionado<br />
com a água. Privou as gentes <strong>de</strong>la e secou-lhes<br />
a terra. Há uma outra referência à<br />
água. É o dilúvio. Não diz o relato que tal<br />
acontecera em tempos do <strong>de</strong>us Con. Mas<br />
também se po<strong>de</strong> supor que se trata <strong>de</strong> uma<br />
das muitas expressões das chuvas abundantes<br />
que, <strong>de</strong> tempos a tempos, aparecem na<br />
costa peruana, fenómeno conhecido mundialmente<br />
como «Niño» ou Menino, em<br />
referência à época em que ocorre, ou seja,<br />
pelo Natal, tempo do Menino Jesus. Dizem<br />
os especialistas que a subida das águas frias<br />
do hemisfério sul fica aquém dos limites<br />
que em tempos normais atinge. Daí resultam<br />
as temperaturas muito altas na costa<br />
norte do Peru e as consequentes chuvas diluvianas,<br />
com outras expressões meteorológicas<br />
continentais.
CON E PACHACAMA<br />
O relato mítico introduz o <strong>de</strong>us Pachacama<br />
e associa-o ao santuário que existiu no<br />
sul da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lima, em tempos pré-colombinos.<br />
E, entre as coisas notáveis que fez,<br />
transformou os homens <strong>de</strong> Con em gatos<br />
pretos. O gesto <strong>de</strong> Pachacama não tem uma<br />
explicação fácil. A geografia e a fauna não<br />
<strong>de</strong>slindam o mistério. Entre algumas razões<br />
míticas que o explicariam, podíamos recorrer<br />
à força do Sol que transformou a primeira<br />
geração <strong>de</strong> seres humanos em pedras calcinadas<br />
pelo fogo. Cabe também recordar a<br />
presença da cor preta dos animais que<br />
acompanhavam os <strong>de</strong>funtos nas suas peregrinações<br />
por rios <strong>de</strong> águas escuras, antes <strong>de</strong><br />
chegarem à última morada. Mas não eram<br />
gatos, eram cães.<br />
CON E CONTITI<br />
Não passa <strong>de</strong>sapercebido, a quem tenha<br />
um pouco <strong>de</strong> informação sobre os antigos<br />
relatos míticos dos An<strong>de</strong>s, o herói ou <strong>de</strong>miurgo<br />
Contiti que veio das alturas do lago<br />
Titicaca e organizou as regiões lacustres,<br />
avançando até à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cuzco e, finalmente,<br />
chegando à costa norte dos An<strong>de</strong>s,<br />
para <strong>de</strong>saparecer nas águas do Oceano Pacífico.<br />
A relação com a água é evi<strong>de</strong>nte, porque<br />
o lago foi o seu berço, e as águas do<br />
mar a sua última morada.<br />
Como aparece na região austral a palavra<br />
«con» oriunda dos territórios nortenhos,<br />
talvez <strong>de</strong>sses povos que se chamavam<br />
Conchucos, «Terras <strong>de</strong> água»? Não o sabemos.<br />
O certo é que Contiti partilha com o<br />
herói mítico Con as honras do <strong>de</strong>miurgo<br />
que põe or<strong>de</strong>m nas coisas e que se irrita<br />
também quando os seus criados <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cem<br />
às suas or<strong>de</strong>ns. Contiti transforma as<br />
suas gentes em pedra; Con, no Norte, seca a<br />
terra e torna-a estéril, forma comparável à<br />
esterilida<strong>de</strong> das rochas. E o cronista Betanzos<br />
[1551], a quem <strong>de</strong>vemos a referência a<br />
Contiti, anota a escuridão que então reinava<br />
nesse primeiro momento do mundo. Talvez<br />
por isso Pachacama transformasse os seres<br />
criados por Con, nas terras nortenhas, em<br />
animais pretos. Eram tempos que ainda não<br />
tinham Sol e Lua. Promessas doutros seres.
BESTIÁRIO 46<br />
Peixe-boi ou<br />
peixe-mulher?<br />
Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />
47
Existi há muito nas águas pouco profundas dos<br />
mares, bor<strong>de</strong>jando as costas das Índias e os mangues<br />
do Brasil.<br />
Nada sabia <strong>de</strong> geografia, muito menos que a<br />
minha casa era um Oceano, pois sempre pensei que<br />
fosse um aquário.<br />
Um dia percebi que a vida tinha mudado. Chegaram<br />
monstros estranhos em gran<strong>de</strong>s cascas <strong>de</strong><br />
noz enfeitadas <strong>de</strong> lenços triangulares e redondos<br />
que o vento enfunava como se fosse a minha barriga<br />
grávida. Ouvi dizer que eram velas, e os bichos,<br />
homens.<br />
Curiosos, observaram-me como se eu fosse um<br />
boi. Diziam entre si que mais parecia uma vaca.<br />
Perplexos, apreciavam como conseguia nadar mais<br />
rapidamente que os seus barcos aparelhados. Chamaram-me<br />
peixe. Não contentes com isso, <strong>de</strong>ram-<br />
-me um nome: «Guaraguá»: «Goaràgoá é o peixe a<br />
que os Portugueses chamam boi, que anda na água<br />
salgada e nos rios junto da água doce, <strong>de</strong> que eles<br />
bebem [...]; o qual peixe tem o<br />
corpo tamanho como um novilho<br />
<strong>de</strong> dois anos, e tem dois cotos<br />
com braços, e neles uma mão<br />
sem <strong>de</strong>dos: não tem escama, mas<br />
pele parda e grossa.»<br />
Inventaram mil estórias a<br />
meu respeito, confundindo-me<br />
com sereias. Afinal, diziam que tinha<br />
rabo <strong>de</strong> peixe e corpo <strong>de</strong> mulher.<br />
Mesmo assim, classificaram-<br />
-me na or<strong>de</strong>m dos sirénios, classe<br />
dos mamíferos. Eu tinha mamas com que alimentava<br />
<strong>de</strong> leite as minhas crias: «Guaragua é a vaca do<br />
mar, é da compridão <strong>de</strong> <strong>de</strong>z ou doze palmos, é<br />
grosso como uma vaca, é pardo cor <strong>de</strong> cinza, tem<br />
as tripas e a fressura como uma vaca e cria seus filhos<br />
<strong>de</strong> leite e tem as mamas <strong>de</strong>baixo dos braços.»<br />
Com elas confundi os mais espertos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
Aldrovandri (1612), que me <strong>de</strong>senhou como se eu<br />
fosse um Manati Indorum, a Ron<strong>de</strong>let, que no seu<br />
Libri di Piscibus registou as duas gran<strong>de</strong>s tetas com que alimentava<br />
os meus filhos.<br />
Afinal, em que ficamos?<br />
Tentaram <strong>de</strong> tudo. Pescaram-me (ou caçaram-<br />
-me) com gran<strong>de</strong>s arpões como se eu fosse uma<br />
baleia. Investigaram o meu corpo para <strong>de</strong>scobrir<br />
como seria por <strong>de</strong>ntro (mulher? peixe? vaca?). Inventaram<br />
que eu tinha duas pedras como se fossem<br />
botões para tratarem neles a «dor da pedra, coisa<br />
experimentada em França»: «O qoal tem os <strong>de</strong>ntes<br />
como boi, e na cabeça entre os miolos tem uma pe-<br />
Inventaram mil histórias<br />
a meu respeito,<br />
confundindo-me<br />
com sereias. Afinal,<br />
diziam que tinha rabo<br />
<strong>de</strong> peixe e corpo<br />
<strong>de</strong> mulher<br />
dra tamanha como um ovo <strong>de</strong> pata, feita em três<br />
peças, a qual é muito alva e dura como marfim e<br />
tem gran<strong>de</strong>s virtu<strong>de</strong>s contra a dor <strong>de</strong> pedra.»<br />
Hoje chamariam àquilo «otólitos» se eu fosse<br />
peixe. Como não sou, ainda continuam a pensar...<br />
Comeram toda a minha carne. Cozeram-na<br />
com couves, fritaram-na em estrugido, <strong>de</strong>sfizeram<br />
a minha gordura em banha e manteiga. Cada um<br />
<strong>de</strong>les inventava uma receita nova e <strong>de</strong>la se gabava<br />
nos seus livros científicos: «Este peixe he muito<br />
gostoso em gran<strong>de</strong> maneira, e totalmente parece<br />
carne, assi na semelhança, como no sabor, e assado<br />
na tem nenhuma differença <strong>de</strong> lombo <strong>de</strong> porco.<br />
Também se coze com couves e guisa-se como carne...»<br />
Agora também sou porco!<br />
Finalmente, percebiam que eu também existia<br />
em Angola (sou peixe-mulher) e na Guiné, e novamente<br />
me chamaram peixe-booze: «há nos rios<br />
muito peixe, corcodilos, cavalos-marinhos, baozes,<br />
que são os que no Brasil chamam peixe-boi».<br />
Há uma coisa em que todos se<br />
puseram <strong>de</strong> acordo. Sou muito mãe e<br />
alimento os meus filhos com o meu<br />
leite até eles po<strong>de</strong>rem ir apanhar as<br />
ervas e as folhas dos rios doces (que<br />
eu não como animais, sou muito<br />
evoluída). Já viram que optei pela vaca<br />
já que só assim teria as tetas, e<br />
nem me atrevo a dizer o que disseram<br />
dos machos (coisas como «vergalho<br />
<strong>de</strong> boi» e outras barbarida<strong>de</strong>s)...<br />
Tal como as mulheres, só tenho um filho em<br />
cada parto e fiquei muito feliz quando escreveram<br />
que «as fêmeas parem só uma criança». Criança é<br />
<strong>de</strong> mulher, não é assim?<br />
E tão forte e profundo é o meu lado maternal<br />
que Frei Cristóvão <strong>de</strong> Lisboa, na sua História dos Animais<br />
e Árvores do Maranhão, assim o <strong>de</strong>screve: «Vi matar<br />
uma fêmea e esfolarem-na e botarem a pele em terra<br />
à borda <strong>de</strong> água; e quando foi ao outro dia, indo<br />
buscar água, acharam o filho <strong>de</strong>itado em riba da<br />
pele...»<br />
Comovente?<br />
Hoje estou praticamente extinto <strong>de</strong> todos os<br />
mares. Apenas restarei nas lendas camonianas das<br />
sereias e nos livros <strong>de</strong> História Natural.<br />
Lembrem-me como vaca do mar, peixe-mulher<br />
ou peixe-boi, mas não me esqueçam.<br />
Espero que um dia não cheguem outros monstros<br />
em carcaças voadoras para escreverem sobre<br />
vocês uma história parecida com a minha.
Magdalena, un río <strong>de</strong>l olvido<br />
Janet Núñez<br />
RIOS PROFUNDOS 48<br />
49
Rio Magdalena em Barranquilla, princípio do século XX. Fotos do Archivo Histórico da Biblioteca Piloto <strong>de</strong> Barranquilla
RIOS PROFUNDOS 50<br />
51<br />
Como todos os rios que se sabem<br />
fecundos e vigorosos, o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
la Magdalena apresentou-se, num meio-<br />
-dia can<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> 1501, aos olhos do<br />
conquistador espanhol Rodrigo <strong>de</strong> Bastidas,<br />
também fundador – 24 anos mais<br />
tar<strong>de</strong> – da primeira cida<strong>de</strong> da Colômbia,<br />
Santa Marta. Assim, o Magdalena, que<br />
havia sido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais<br />
uma fonte <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> sobrevi-<br />
Hoje, o rio agoniza <strong>de</strong>vastado<br />
pelo abate dos bosques,<br />
pelo abuso permanente<br />
dos seus recursos,<br />
pelo asssalto <strong>de</strong> predadores humanos<br />
que durante mais <strong>de</strong> cem anos<br />
têm violado normas<br />
e exterminado a sua fauna<br />
vência para as tribos colombianas assentadas<br />
nas suas ribeiras, converteu-se<br />
também no eixo sobre o qual giraram as<br />
expedições colonizadoras.<br />
Encravada a sua origem no páramo<br />
<strong>de</strong> Las Papas, no <strong>de</strong>partamento do Huila,<br />
as cordilheiras Central e Oriental bifurcam-se<br />
como as pernas <strong>de</strong> uma indígena<br />
milenária no transe <strong>de</strong> dar à luz uma<br />
corrente <strong>de</strong> águas cristalinas que os nativos<br />
paeces chamaram Yuma. E do Yuma, saltou<br />
a vida. Pelo verdor húmido da selva,
RIOS PROFUNDOS 52<br />
53<br />
entre uma fauna selvagem <strong>de</strong> caimões, tigres,<br />
papagaios, monos e manatins, abriu<br />
passagem a sua força visceral, numa travessia<br />
<strong>de</strong> 1540 quilómetros até ao Norte,<br />
e o rio cresceu como nunca, passando<br />
por cida<strong>de</strong>s como Mompóx, vitais para o<br />
armazenamento e exploração <strong>de</strong> ouro e<br />
prata durante o colonialismo espanhol,<br />
até encontrar em «Bocas <strong>de</strong> Ceniza»,<br />
muito perto <strong>de</strong> Barranquilla, a sua <strong>de</strong>sembocadura,<br />
<strong>de</strong>stino e abraço com o<br />
mar Caribe.<br />
A sua recordação nas últimas gerações<br />
é feliz e dolorosa. As minhas imagens<br />
mais remotas provêm da minha infância,<br />
naquelas tranquilas e pegajosas<br />
noites barranquenhas. Pela mão – ou pela<br />
voz – da minha avó, registávamos histórias<br />
que giravam em torno do rio. Ao<br />
cair o tépido vapor da tar<strong>de</strong>, a avó reunia-nos<br />
à sombra <strong>de</strong> uma pereira, no pátio<br />
traseiro, a cantar. E, entre canto e canto, a<br />
avó tecia o seu passado com fios <strong>de</strong> nostalgia<br />
e <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> agulha que <strong>de</strong>ixava<br />
dançar como plumas no ar, enquanto recuperava<br />
dos seus tempos <strong>de</strong> menina<br />
tristezas idas ou amores clan<strong>de</strong>stinos<br />
com o avô.<br />
Recordava minha avó – recordo –<br />
um homem alto e acobreado, todo vestido<br />
<strong>de</strong> linho branco, imaculado lenço engomado<br />
na algibeira junto à lapela e chapéu<br />
<strong>de</strong> lã, que partia nos primeiros dias<br />
<strong>de</strong> cada mês com o seu rudimentar instrumental<br />
numa maleta negra e alguma<br />
roupa noutra maleta. Era o avô, um <strong>de</strong>ntista<br />
que havia conhecido aos 14 anos e<br />
do qual nunca se separaria em toda a sua<br />
vida. Esse homem que <strong>de</strong>via partir cada<br />
quatro semanas num vapor pelo rio para<br />
visitar os seus pacientes.<br />
Dois dias antes da partida, a casa toda<br />
se agitava. A avó engomava três ou<br />
quatro camisas, passava a ferro e dobrava<br />
com mestria a roupa na maleta. Os nove<br />
filhos alvoroçavam a casa e enlouqueciam<br />
o pai, meu avô, fazendo-lhe todo o tipo<br />
<strong>de</strong> encomendas, quase todas <strong>de</strong>lícias culinárias<br />
populares. A toda a pressa se escreviam<br />
cartas que <strong>de</strong>viam ser entregues a<br />
comadres e amigos <strong>de</strong> outras margens. A<br />
minha tia mais velha preparava farnéis<br />
para a travessia. Os vizinhos mais chegados<br />
vinham <strong>de</strong>sejar-lhe boa viagem e solicitar<br />
uma ou outra encomenda.<br />
Na primeiríssima hora do dia seguinte,<br />
todos se encaminhavam para o<br />
porto. Junto à embarcação, os ven<strong>de</strong>dores<br />
ambulantes <strong>de</strong> comida confundiam-se<br />
com os carregadores <strong>de</strong> mercadorias. No<br />
momento <strong>de</strong> embarcar, homens e mulheres<br />
<strong>de</strong>spediam-se com sentidos abraços. A<br />
viagem só <strong>de</strong>via durar três ou quatro horas<br />
até chegar ao primeiro <strong>de</strong>stino, mas,<br />
enquanto o vapor iniciava a sua marcha<br />
sobre as águas, todos, passageiros a bordo<br />
e familiares <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a margem, acenavam<br />
os lenços em última <strong>de</strong>spedida, enquanto<br />
a minha avó secava discretas lágrimas na<br />
sua face.<br />
Referia-se a Barranquilla do primeiro<br />
quarto do século XX. Uma cida<strong>de</strong> cosmopolita<br />
que acolhia 60% <strong>de</strong> todos os<br />
estrangeiros do país e já contava com comodida<strong>de</strong>s<br />
como energia eléctrica e algeroz<br />
nas suas magníficas mansões republicanas<br />
do bairro «O Prado». A cida<strong>de</strong><br />
que recebia muitas companhias <strong>de</strong> teatro<br />
e ópera no teatro Apolo, mas uma cida<strong>de</strong><br />
que pouco a pouco virava as costas ao<br />
rio, <strong>de</strong>ixando à ribeira as fábricas e seringueiros<br />
marginais.<br />
Talvez por falta <strong>de</strong> memória ou excesso<br />
<strong>de</strong> indiferença, ninguém tinha<br />
consciência <strong>de</strong> que a bacia do Magdalena<br />
integrava uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> rios que configuram<br />
uma zona <strong>de</strong> influência <strong>de</strong> mais <strong>de</strong><br />
250 000 quilómetros que, anos mais tar<strong>de</strong>,<br />
viria a gerar, por exemplo, 85% do<br />
PIB do país e 70% da sua produção hidroeléctrica.<br />
Por isso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que<br />
todos <strong>de</strong>cidiram abandoná-lo, o Río<br />
Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> la Magdalena <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser<br />
gran<strong>de</strong> e converteu-se num rio <strong>de</strong> esquecimento.<br />
Hoje, o rio agoniza <strong>de</strong>vastado pelo<br />
abate dos bosques, pelo abuso permanente<br />
dos seus recursos, pelo assalto <strong>de</strong><br />
predadores humanos que durante mais<br />
<strong>de</strong> cem anos têm violado normas e exterminado<br />
a sua fauna. Todo ele <strong>de</strong>finhou<br />
com a afluência <strong>de</strong> outros rios, em especial<br />
o Bogotá, um dos mais contaminados<br />
do mundo, pois recolhe os <strong>de</strong>jectos <strong>de</strong>
8 milhões <strong>de</strong> habitantes da capital e verte<br />
a sua nefasta imitação <strong>de</strong> petróleo no generoso<br />
e cansado Magdalena.<br />
Tudo isto é lamentável, sobretudo<br />
para quem o conheceu no seu esplendor.<br />
E, à falta <strong>de</strong> uma mão re<strong>de</strong>ntora, uma boa<br />
maneira <strong>de</strong> preservar o perdido e fazê-lo<br />
presença permanente é através <strong>de</strong> expressões<br />
populares, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mitos e<br />
lendas como a do homem caimão, a mojana<br />
e o mohan, até à patasola e outros endriagos<br />
das suas águas, sem excluir a música silvestre<br />
que emana das suas ribeiras pela<br />
voz das cantoras Petrona Martínez, Totó a<br />
momposina, a Niña Emilia, Irene Martínez<br />
e José Barros, além <strong>de</strong> outro longo<br />
etcétera.<br />
No que toca à literatura, «El Inventario<br />
incompleto <strong>de</strong> las obras <strong>de</strong> ficción en<br />
las que está presente el río Magdalena<br />
nos revela que si el país le ha dado la espalda<br />
al río, nuestra literatura no» – assinala<br />
o investigador e crítico colombiano<br />
Ariel Castillo. No seu ensaio El Río y las Letras<br />
menciona, entre outras, as obras poéticas<br />
<strong>de</strong> Manuel María Madiedo (também<br />
narrativa), Juan <strong>de</strong> Castellanos, Can<strong>de</strong>lario<br />
Obeso, Rafael Núñez, Tallullah Flores,<br />
Pablo Neruda ou Nicolás Guillén; assinala<br />
o investigador que o rio também serve <strong>de</strong><br />
pano <strong>de</strong> fundo às tramas <strong>de</strong> obras narrativas,<br />
como El Desertor <strong>de</strong> Plinio Apuleyo<br />
Mendoza, La Sombra <strong>de</strong> Marvel Luz Moreno,<br />
Río Abajo, <strong>de</strong> Rafael Vega Jácome ou Los<br />
Domingos <strong>de</strong> Charito <strong>de</strong> Julio Olaciregui; que<br />
o rio assume carácter simbólico em La<br />
Casa Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> Álvaro Cepeda Samudio e é<br />
objecto <strong>de</strong> aproximação mítica em La Otra<br />
Raya <strong>de</strong>l Tigre <strong>de</strong> Pedro Gómez Val<strong>de</strong>rrama.<br />
Finalmente, assinala Castillo, que a nota<br />
<strong>de</strong> imprensa El Río <strong>de</strong> la Vida <strong>de</strong> García Márquez<br />
é a chave para enten<strong>de</strong>r a sua obra<br />
posterior O Amor nos Tempos da Cólera e O General<br />
no seu Labirinto, romances com marcada<br />
presença do rio. De produção mais recente,<br />
recordo alguns episódios <strong>de</strong> El Tumbao<br />
<strong>de</strong> Macorina, <strong>de</strong> Jaime Cabrera González.<br />
E tudo o que eles contam é verda<strong>de</strong>,<br />
como verda<strong>de</strong> é que o seu abandono se<br />
torna infinitamente doloroso para quem<br />
<strong>de</strong>scobriu noutras latitu<strong>de</strong>s maneiras<br />
opostas <strong>de</strong> enfrentar as cida<strong>de</strong>s fluviais.<br />
XI JORNADAS<br />
DE HISTÓRIA<br />
IBERO-AMERICANA<br />
Portimão, 5, 6 e 7 Maio <strong>de</strong> 2005<br />
O ASSOCIATIVISMO<br />
EM PORTUGAL E<br />
NA IBERO-AMÉRICA<br />
Confrarias<br />
Socieda<strong>de</strong>s literárias<br />
e científicas<br />
Socieda<strong>de</strong>s secretas<br />
Associações operárias<br />
Programa <strong>cultura</strong>l<br />
Concertos, teatro, exposições,<br />
livros<br />
Organização<br />
INSTITUTO DE CULTURA<br />
IBERO-ATLÂNTICA<br />
Informações<br />
Casa Museu Manuel<br />
Teixeira Gomes<br />
Rua Júdice Biker, 1<br />
8500-538 Portimão<br />
T 282 470 822 F 282 470 749<br />
iciaptm@mail.telepac.pt<br />
www.instituto<strong>cultura</strong><strong>ibero</strong>-atlantica.pt<br />
Patrocínio<br />
Câmara Municipal <strong>de</strong> Portimão
Excerto da conferência Algo<br />
sobre mi poesía y mi vida,<br />
pronunciada por Neruda na<br />
Universida<strong>de</strong> do Chile, em 1954.<br />
Foi publicada na revista Aurora,<br />
n.º 1, Julho <strong>de</strong> 1954.<br />
ALTAS SOLIDÕES 54<br />
Machu Picchu<br />
Pablo Neruda<br />
55<br />
Entonces subimos por sen<strong>de</strong>ros ásperos<br />
y a lomo <strong>de</strong> mulo hasta la ciudad perdida<br />
y añorada: Machu Picchu, la misteriosa.<br />
Aquella altísima ciudad se había<br />
avergonzado <strong>de</strong> su propia época, se había<br />
reducido al silencio y se había escondido<br />
en su propio bosque. ¿Qué les sucedió a<br />
sus constructores? ¿Qué había sido <strong>de</strong> sus<br />
habitantes? ¿Qué nos <strong>de</strong>jaron, excepto la<br />
dignidad <strong>de</strong> la piedra, para darnos noticias<br />
<strong>de</strong> su vida, <strong>de</strong> sus propósitos, <strong>de</strong> su<br />
<strong>de</strong>saparición? Nos respondió un silencio<br />
sonoro. Yo ya conocía el silencio <strong>de</strong> otra<br />
ruinas monumentales, mas siempre fue<br />
un silencio humillado, <strong>de</strong> mármoles <strong>de</strong>finitivamente<br />
vencidos. Allí, en las alturas<br />
<strong>de</strong>l Perú, la imponente arquitectura se había<br />
conservado secretamente en el profundo<br />
silencio <strong>de</strong> las cumbres andinas.Todo<br />
era cielo en torno <strong>de</strong> los sagrados vestigios.<br />
El bosque ver<strong>de</strong> se interrumpía con<br />
las rápidas y pequeñas nubes, que pasaban<br />
<strong>de</strong>sflorando y besando aquella espléndida<br />
obra <strong>de</strong> lo eterno que hay en el<br />
hombre. En el punto más alto <strong>de</strong> la ciudad<br />
se levantaba el Reloj o Intihuatana,<br />
especie <strong>de</strong> calendario formado por<br />
inmensas piedras, con una meridiana <strong>de</strong>stinada<br />
quizá a señalar las horas en aquellas<br />
excelsas alturas. Estos relojes astronómicos<br />
fueron tenazmente perseguidos por<br />
los conquistadores, ansiosos, como siempre,<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir el núcleo <strong>cultura</strong>l. La ciudad<br />
<strong>de</strong> Machu Picchu los <strong>de</strong>rrotó: se escondió<br />
entre peñas abruptas, multiplicó<br />
sus mantos <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>, y los intrusos <strong>de</strong>structores<br />
pasaron por su vera sin sospechar<br />
jamás su existencia.<br />
Machu Picchu se reveló ante mí como<br />
el perdurar <strong>de</strong> la razón por encima <strong>de</strong>l <strong>de</strong>lirio,<br />
y la ausencia <strong>de</strong> sus habitantes, <strong>de</strong> sus<br />
creadores, el misterio <strong>de</strong> su origen y <strong>de</strong> silenciosa<br />
tenacidad <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>naron para mí<br />
la lección <strong>de</strong>l or<strong>de</strong>n, que el hombre pue<strong>de</strong><br />
establecer a través <strong>de</strong> los siglos con su voluntad<br />
solidaria: el edificio colectivo capaz<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar el <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>n <strong>de</strong> la naturaleza y<br />
<strong>de</strong> la humana <strong>de</strong>sventura. Recordé entonces<br />
las construcciones mejicanas <strong>de</strong> Teotihuacán,<br />
los edificios <strong>de</strong> Monte Albán, <strong>de</strong> Chichén<br />
Itzá, el cuadrilátero <strong>de</strong> Uxmal, los<br />
templos <strong>de</strong> Palenque, las pirámi<strong>de</strong>s religiosas<br />
con sus prodigiosas moles, con su simetría<br />
radial, que en todo el territorio mejicano<br />
se alzaron hacia la sangre y la luz. Comprendí<br />
que por encima <strong>de</strong> las estructuras<br />
perdidas en el martirio y en la sombra, por<br />
encima <strong>de</strong> la creación formal <strong>de</strong> figuras,<br />
joyas y objetos subterráneos, más allá <strong>de</strong> la<br />
inmensidad vencida y <strong>de</strong>rrotada <strong>de</strong> aquella<br />
América, que hoy está renaciendo <strong>de</strong> sus<br />
propias tinieblas, los antiguos maestros<br />
americanos habían erigido un alma aérea,<br />
invulnerable, capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar con su ser el<br />
dominio y las olas embravecidas <strong>de</strong> la agresión<br />
y <strong>de</strong>l olvido.<br />
Estos <strong>de</strong>scubrimientos me revelaron<br />
muchos caminos, y entre ellos el recordar<br />
mi <strong>de</strong>stino con aquella verdad tan dura<strong>de</strong>ra,<br />
con aquellas creaciones colectivas, en las<br />
que todos los componentes, esperanza y<br />
dolor, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za y po<strong>de</strong>río, se habían unido<br />
muchas veces en un organismo central,<br />
que dirigía todas las posibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acción<br />
y daba origen a un nuevo silencio sonoro,<br />
lleno <strong>de</strong> inteligencia y <strong>de</strong> música.
Machu Picchu
VIDAS CONTADAS 56<br />
NERUDA FOI<br />
UM HOMEM<br />
COMPROMETIDO<br />
COM O SEU<br />
TEMPO Entrevista com Volodia Teitelboim<br />
Regina Rodríguez<br />
Fotos<br />
Josué Barrios<br />
e Archivo <strong>de</strong> la Fundación Pablo Neruda<br />
Documentação<br />
María Andrés Salazar.<br />
Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Chile<br />
Ilustração<br />
Gabriela Cánovas, pintora chilena<br />
57<br />
O escritor chileno Volodia Teitelboim acaba<br />
<strong>de</strong> lançar em Portugal a biografia <strong>de</strong><br />
Neruda. O livro é um olhar profundo so-<br />
bre os gran<strong>de</strong>s acontecimentos do século<br />
XX que ambos partilharam na dupla posição<br />
<strong>de</strong> poetas e homens comprometidos.<br />
Volodia foi secretário-geral do Partido<br />
Comunista Chileno, senador, mas sobretudo<br />
testemunha lúcida e activa do seu tempo.<br />
Com quase 90 anos, mantém a vivacida<strong>de</strong><br />
do seu pensamento e a esperança <strong>de</strong> que<br />
o direito das pessoas à felicida<strong>de</strong> seja<br />
uma realida<strong>de</strong>.
VIDAS CONTADAS 58<br />
59<br />
Em sua casa, discreta, situada num belo bairro <strong>de</strong> Santiago,<br />
repleto <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong> pássaros, Volodia acaricia a sua gata<br />
Miel, enquanto olha a história com uma serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem<br />
viveu muito e conseguiu compreen<strong>de</strong>r algumas coisas, sem<br />
per<strong>de</strong>r a confiança no ser humano. Falamos da amiza<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
poesia, <strong>de</strong> política e dos sonhos que ainda tem. Vai conver-<br />
sando, incansável, com um tom profundo e doce, sem afectação,<br />
pura sabedoria.<br />
Sabemos que a sua amiza<strong>de</strong> com Neruda durou mais <strong>de</strong> quarenta anos. Como começou?<br />
A amiza<strong>de</strong> com Neruda iniciou-se com um poeta ausente.<br />
Eu era um adolescente que estudava no liceu <strong>de</strong> Talca, e o professor<br />
<strong>de</strong> castelhano, um dia, levou para a aula um livro <strong>de</strong><br />
poesia e começou a ler, com gran<strong>de</strong> entusiasmo, poemas <strong>de</strong><br />
amor que se atreviam a falar muito directamente <strong>de</strong> sexo, algo<br />
que nessa época, nos anos 1924-25, era inaceitável. Eu, ainda<br />
criança, <strong>de</strong>scobri que o idioma, a língua serve não só para comunicar<br />
com o outro, mas também para que a palavra mágica<br />
provoque certo estremecimento. Depois, já maduro, pareceu-<br />
-me que ela representava a <strong>de</strong>scoberta da beleza. Gabriela Mistral,<br />
através das suas rimas infantis, foi a «Mãe» que nos levou<br />
a <strong>de</strong>scobrir a poesia. Des<strong>de</strong> então, eu procurava-a porque necessitava<br />
<strong>de</strong>la, porque algo em mim requeria essa presença<br />
enigmática. Então, quando cheguei a Santiago para estudar na<br />
universida<strong>de</strong>, já tinha duas <strong>de</strong>finições que foram duas linhas<br />
paralelas na minha vida: a poesia e a política.<br />
Em 1932, li no jornal que Neruda ia dar um recital, mas<br />
eu era um rapaz tímido, tinha 16 anos e não podia aproximar-<br />
-me <strong>de</strong> um homem famoso. Sentei-me na galeria com a esperança<br />
<strong>de</strong> vê-lo e ouvi-lo. Ouvi-o, mas não o vi porque ele fez<br />
todo o seu recital atrás <strong>de</strong> uns enormes biombos chineses que<br />
lhe tapavam todo o corpo. A sua poesia era enigmática e <strong>de</strong>sconcertante<br />
porque não tinha nada a ver com os vinte poemas,<br />
era mais complicada, mais complexa, eram poemas <strong>de</strong> Resi<strong>de</strong>ncia<br />
en la Tierra. Então, não o conheci. Foi em 1937, quando ele<br />
regressou da Ásia, que o fui entrevistar. Recebeu-me muito<br />
bem e aí começou a nossa amiza<strong>de</strong>; quando Neruda vivia no<br />
Chile, e não estava <strong>de</strong>sempenhando cargos diplomáticos, víamo-nos<br />
todos os dias. Começou como amiza<strong>de</strong> jornalística,<br />
<strong>de</strong>pois tornou-se política, a seguir poética, no sentido do interesse<br />
pela poesia, e, finalmente, pessoal, quotidiana, partilhávamos<br />
tudo, ele tomava a iniciativa porque era intruso, era curioso,<br />
era intrometido, gostava muito <strong>de</strong> participar da vida das<br />
pessoas e fazê-las mais felizes, se pu<strong>de</strong>sse.
A FIGURA MATERNA<br />
A mãe <strong>de</strong> Neruda morreu <strong>de</strong> parto. Como influiu este facto na sua poesia?<br />
Eu creio que influiu em tudo, influiu na sua vida, influiu na<br />
sua poesia, influiu na sua relação com as mulheres. Eu creio que<br />
Neruda não procurava a beleza clássica, nem sequer quando era<br />
um homem maduro lhe interessavam as jovens, mas sim as mulheres<br />
maduras. Ele não se aproximava das mulheres <strong>de</strong>slumbrantes,<br />
famosas pela sua beleza. A sua primeira esposa, Delia <strong>de</strong>l Carril,<br />
«A Formiga», tinha mais vinte anos que ele. Eu creio que, <strong>de</strong><br />
um modo inconsciente, estava procurando a mãe que nunca tinha<br />
conhecido, mas cuja falta sentiu durante toda a vida, apesar<br />
<strong>de</strong> ter tido uma mãe substituta que o amou e o tratou muito<br />
bem, mas esse vínculo sanguíneo era absolutamente único.<br />
A POESIA: NERUDA QUIS SER A SUA PRÓPRIA VANGUARDA<br />
Referindo-se à palavra «sauda<strong>de</strong>», Neruda disse no Crepusculario: «essa doce palavra <strong>de</strong> perfumes ambíguos».<br />
Porquê essa tristeza da sua primeira fase?<br />
Porque tudo tinha sido irregular, o seu nascimento significou<br />
a morte da sua mãe, porque teve <strong>de</strong> viver em casa <strong>de</strong> familiares,<br />
avós, amamentado por uma camponesa que estava criando...<br />
creio que sentia a falta da mãe. O pai levava-o a um Temuco<br />
que acabava <strong>de</strong> nascer<br />
(Temuco era a cida<strong>de</strong><br />
mais jovem do Chile, fundada<br />
em 1885), um<br />
acampamento militar<br />
construído à custa do <strong>de</strong>sterro<br />
da população indígena<br />
que ocupava essas<br />
«Eu creio que Neruda não<br />
procurava a beleza clássica<br />
nas mulheres»<br />
terras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais, era uma cida<strong>de</strong> que nascia e<br />
também uma vida que nascia difícil, com uma situação familiar<br />
que não era próspera. O pai conseguiu trabalho nos caminhos-<br />
-<strong>de</strong>-ferro e levava-o consigo nas suas viagens até à selva profunda.<br />
E é uma tristeza que se agudiza quando está no Oriente, tem a ver com a sua condição <strong>de</strong> estrangeiro?<br />
Ele parte para o Oriente, creio, para escapar do Chile. Aqui havia<br />
conhecido uma glória precoce, mas estava a afundar-se na companhia<br />
dos seus amigos <strong>de</strong> geração, os poetas malditos da boémia.<br />
Eram jovens <strong>de</strong> 20 anos como ele, assediados pela tuberculose, que<br />
era o gran<strong>de</strong> fantasma da juventu<strong>de</strong>. Eram tempos em que se morria<br />
facilmente, sobretudo os que não comiam e se embebedavam todos<br />
os dias, e ele sabia que tinha <strong>de</strong> viver, como um impulso <strong>de</strong> sobrevivência<br />
natural, mas também porque ele se sabia poeta, sabia que ainda<br />
não havia dito tudo o que tinha para dizer e queria escapar para<br />
uma terra on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse fugir a este tipo <strong>de</strong> vida, concentrar-se em si<br />
mesmo. Desejava mudar a sua poesia, eram os tempos da vanguarda,<br />
chegavam todas estas mensagens indirectas <strong>de</strong> Paris, conhecia a
VIDAS CONTADAS 60<br />
61<br />
poesia francesa, Bau<strong>de</strong>laire, Mallarmé, começava a falar-se <strong>de</strong> uma<br />
poesia distinta, <strong>de</strong> Apollinaire e outros. Ele queria mudar, mas não<br />
queria mudar em Paris, queria ser a sua própria vanguarda e fê-lo reconcentrando-se<br />
em si mesmo, na inóspita vida asiática on<strong>de</strong> estava<br />
sozinho e podia conversar consigo mesmo. Daí nasceu essa poesia<br />
que é um corte radical com a sua poesia anterior que é a primeira<br />
Resi<strong>de</strong>ncia, um livro fundamental na poesia latino-americana. Queria<br />
sobreviver como poeta, di-lo num verso: «el lugar que yo quiero<br />
guardar para mí eternamente». Era um homem consciente do seu<br />
valor e da sua responsabilida<strong>de</strong> perante si próprio e o mundo.<br />
Diz Gonzalo Rojas que Gabriela Mistral é a poetisa fundamental. É pouco conhecida na Europa, embora tenha<br />
recebido o primeiro prémio Nobel para um poeta da América Latina, em 1945. Qual foi a relação <strong>de</strong> Neruda com<br />
Gabriela Mistral?<br />
Qual é a teoria <strong>de</strong> Neruda sobre os elefantes e os poetas?<br />
Eu, que admiro muito Gonzalo Rojas, creio que é o melhor<br />
poeta chileno vivo, sublinho na sua <strong>de</strong>claração a palavra fundamental.<br />
Gabriela é uma poetisa dos fundamentos, ou seja, da vida, da<br />
infância, da morte também; aí estão os seus Sonetos <strong>de</strong> la Muerte, e<br />
Neruda creio que a sentiu assim. Escrevia versos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> miúdo e<br />
não tinha um juízo alheio que lhe dissesse se estavam bem ou<br />
mal, até que chegou a Temuco, proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Punta Arenas, esta<br />
mulher que era directora do liceu e da qual Neruda conhecia Los<br />
Sonetos <strong>de</strong> la Muerte. Porque Gabriela Mistral não tinha publicado nenhum<br />
livro, mas era muito conhecida pelos livros <strong>de</strong> leitura dos<br />
liceus que haviam reproduzido os seus poemas. Neruda, menino,<br />
tinha estudado por esses textos e sabia-os <strong>de</strong> cor, então quis atrever-se<br />
e levou uns quantos versos seus para que ela lhe <strong>de</strong>sse<br />
uma opinião. Gabriela, muito severa e muito verda<strong>de</strong>ira, disse ao<br />
miúdo que tem 14 ou 15 anos: «há em si um poeta», mas tem<br />
<strong>de</strong> trabalhar muito, leia muito, não só poesia, mas também romance,<br />
e não literatura francesa, «leia os russos, Tolstoi e Dostoievski».<br />
Neruda seguiu o seu conselho e, entre esses gran<strong>de</strong>s<br />
escritores, também leu Eça <strong>de</strong> Queirós.<br />
Neruda sempre manteve uma excelente relação com Gabriela<br />
Mistral, coisa que tem importância porque alguns trataram <strong>de</strong><br />
inimizá-los na base <strong>de</strong> que um era melhor que o outro, mas eles<br />
nunca aceitaram participar nessa discórdia fabricada.<br />
Na época da polémica dos poetas no Chile, em 1935, Neruda<br />
disse: «Lamento esta polémica entre os escritores, <strong>de</strong>veriam<br />
apren<strong>de</strong>r com os elefantes, são tão gran<strong>de</strong>s e convivem pacificamente<br />
na selva; sejamos como os elefantes.»<br />
O senhor disse que, em Espanha, Neruda recupera a confiança em si mesmo. Porquê?<br />
Porque no Chile era flagelado pelo seu grémio, por aqueles<br />
que, tendo <strong>de</strong>z anos mais que ele e aspirando a conquistar o galardão<br />
mundial da poesia, e vêem que um provinciano, fraco,<br />
azeitonado, verdoso, morto <strong>de</strong> fome, que havia feito parte <strong>de</strong>sse
Os espanhóis são mais generosos com ele?<br />
bando <strong>de</strong> indigentes e famintos começa a subir na vida literária e<br />
os vai eclipsando a todos. Há uma gran<strong>de</strong> campanha contra ele,<br />
particularmente por parte <strong>de</strong> Vicente Huidobro.<br />
Ao invés, chega a Espanha, é recebido <strong>de</strong> braços abertos por<br />
García Lorca e por toda a nova geração, a chamada geração <strong>de</strong> 27.<br />
Lorca apresenta-o na universida<strong>de</strong>, convidando a que se <strong>de</strong>scubra<br />
este poeta: «Muitos dos poetas que chegam da América têm uma<br />
certa marca parisiense; ao contrário, este poeta há que lê-lo com<br />
atenção porque é a voz <strong>de</strong> um continente, é um gran<strong>de</strong> poeta.»<br />
Convidam-no para director da revista Caballo Ver<strong>de</strong>, ele aceita e, aí,<br />
comete o gran<strong>de</strong> agravo contra o «papa» espanhol da poesia pura<br />
– Juan Ramón Jiménez – porque escreve um texto, «Por una poesía<br />
sin pureza». E isto é uma revolução na poesia porque proclama<br />
o direito <strong>de</strong> as coisas simples, supostamente Prosaicas, entrarem<br />
na casa da poesia, sempre que tenham a condição <strong>de</strong> rei Midas,<br />
<strong>de</strong> transformarem em ouro tudo o que tocam. Porque, se há<br />
um verda<strong>de</strong>iro poeta que po<strong>de</strong> falar da coisa mais mesquinha e a<br />
converte numa poesia significativa, gran<strong>de</strong>, que estremeça o coração<br />
humano, isso transforma-se em poesia, abre as portas. É uma espécie<br />
<strong>de</strong> proposição <strong>de</strong>mocratizadora da poesia, uma anunciação<br />
da sua própria poesia e, inclusive, daqueles que se sentem antipoetas<br />
porque a antipoesia também tem <strong>de</strong> ser poesia.<br />
Tudo isso começa, mas logo se enche <strong>de</strong> sangue porque vem<br />
a guerra e então ele próprio vai pôr em prática a sua teoria, isso<br />
lho impõe a história, o que está vendo com os seus olhos, sofrendo<br />
directamente.
VIDAS CONTADAS 62<br />
63<br />
O que lhe evoca o nome <strong>de</strong> García Lorca em relação com Neruda?<br />
Eram duas personalida<strong>de</strong>s muito distintas: García Lorca era a<br />
graça espanhola, talvez com alguma raiz cigana, que fazia da vida<br />
uma fantasia, que tinha <strong>de</strong> lhe agregar sempre algo que saísse<br />
dos eixos, no sentido <strong>de</strong> acrescentar beleza, porque ele sentava-se<br />
ao piano, cantava, era amigo <strong>de</strong> toureiros... toda esta coisa andaluza,<br />
forte; Neruda era a anti-Andaluzia, embora ele não o quisesse,<br />
porque vinha <strong>de</strong> uma zona chuvosa, solitária, <strong>de</strong>sconstruída,<br />
com um péssimo <strong>de</strong>senvolvimento verbal, porque as pessoas<br />
dali quase não falam. E, <strong>de</strong> repente, conhece García Lorca<br />
em Buenos Aires, com quem havia partilhado a história <strong>de</strong> recitar<br />
em grupo, e isto naturalmente repete-se em Espanha e todos os<br />
jovens espanhóis consi<strong>de</strong>ram que ele é um marco novo na poesia<br />
<strong>de</strong> língua espanhola não só da poesia latino-americana, mas também<br />
para eles. Ali conheceu o direito à alegria. Neruda disse que<br />
García Lorca irradiava felicida<strong>de</strong>, criava situações <strong>de</strong> prazer para<br />
os outros, o gosto pelas conversas e por uma certa <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
uma geração grandiosa, não só na poesia, mas também na pintura,<br />
é a geração <strong>de</strong> Picasso e <strong>de</strong> Dalí.<br />
A POLÍTICA: A GUERRA TRANSFORMA O OLHAR DO POETA<br />
Depois da Guerra Civil Espanhola e com a <strong>de</strong>rrota da República, Neruda pe<strong>de</strong> para ser enviado como cônsul<br />
especial para a emigração espanhola. Porquê?<br />
A Guerra Civil atira-o para a política. Em criança, no Chile, tinha<br />
gran<strong>de</strong> inclinação para o povo, mas eram inclinações anárquicas.<br />
Quando chegou a Espanha, disse: «Eu não sou comunista nem<br />
socialista, sou antifascista ou esquerdista, essa é a minha <strong>de</strong>finição.»<br />
Nesse momento, simultaneamente com a revista que Neruda<br />
dirige, que é claramente literária, há outra revista dos republicanos<br />
dirigida pelo seu gran<strong>de</strong> amigo Rafael Alberti que se chama El Mono<br />
Azul. Rafael Alberti diz-lhe: «Porquê isto <strong>de</strong> Caballo Ver<strong>de</strong>? Não há<br />
cavalos ver<strong>de</strong>s. Tens <strong>de</strong> assumir uma atitu<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>finida». «Sou<br />
poeta», respon<strong>de</strong>-lhe Neruda. Mas a guerra lança-o na política, a<br />
guerra transforma-o e diz: «Eu, da Guerra <strong>de</strong> Espanha, saí com outros<br />
olhos e olhei o mundo <strong>de</strong> maneira diferente.»<br />
Neruda ocupou-se pessoalmente do envio para o Chile do barco Winnipeg repleto <strong>de</strong> refugiados espanhóis<br />
republicanos. O senhor fala também <strong>de</strong> um barco português que realizou um feito similar e saiu para a América<br />
Latina a partir <strong>de</strong> Casablanca...<br />
Algum português do meu tempo <strong>de</strong>ve recordá-lo, o barco<br />
chamava-se Serpa Pinto. Foi um gesto muito nobre porque essas<br />
pessoas estavam na iminência <strong>de</strong> morrer.<br />
Era uma época em que a América era um continente <strong>de</strong> acolhimento para os europeus. Acha que a Europa<br />
esqueceu isto ou tem boa memória?<br />
Eu creio que o século XXI ou, <strong>de</strong> modo mais empolado, o<br />
terceiro milénio será uma época em que as relações entre os povos
Volodia e Neruda na época da construção da casa La Chascona, Santiago, 1953<br />
vão sofrer uma mudança colossal. Para mim, o mais importante<br />
<strong>de</strong>sta mudança é a i<strong>de</strong>ia da mestiçagem a que se está a assistir na<br />
Europa. A gente do Magrebe vai para Espanha, Portugal e França, e<br />
chega também a gente do Leste. Isto ocorre também na América,<br />
porque a América Latina está a entrar nos EUA com um vigor<br />
enorme, o que faz García<br />
Márquez dizer que, no ano<br />
2050, os EUA serão uma fusão,<br />
um encontro ou um <strong>de</strong>sencontro<br />
entre o latino e o<br />
saxão. Então, vamos fazer a<br />
fusão que, por outro lado, é<br />
«Era um homem consciente<br />
do seu valor e da sua<br />
responsabilida<strong>de</strong> perante<br />
o mundo»<br />
a história e a riqueza da humanida<strong>de</strong>; essa diversida<strong>de</strong>, essa mescla,<br />
essa mestiçagem é algo que me dá a maior confiança. Há elementos<br />
religiosos fundamentalistas que agora se manifestam com<br />
mais força do que no passado, mas esses fundamentalismos partem<br />
do princípio <strong>de</strong> que uma pessoa é superior a outra e que a<br />
sua convivência é impossível. Há que esperar que se aceite o contrário,<br />
porque um é a morte e o outro é a vida e o tesouro maior.<br />
A propósito <strong>de</strong>ste tema, o senhor diz que é fundamental porque se encontra com a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> latino-americana.<br />
Sim, claro, Neruda, curiosamente, estava sempre ro<strong>de</strong>ado pelo<br />
povo mapuche porque o seu pai o levava aos três ou quatro<br />
anos à zona da Frontera, que se chama assim porque até ali chegava<br />
o «Chile branco», para lá vivem os mapuches e não se po<strong>de</strong><br />
passar sem a sua autorização. Neruda chegou lá, conheceu-os, viu<br />
a sua situação <strong>de</strong>teriorada, a inferiorida<strong>de</strong> imposta <strong>de</strong> fora pelo<br />
preconceito, a negação dos seus direitos, mas não fez disso tema<br />
principal. Sendo já famoso, explica por que se pronuncia a favor
VIDAS CONTADAS 64<br />
65<br />
da justiça e da causa dos aborígenes: «Pela <strong>cultura</strong>, formei uma<br />
consciência com base nos antece<strong>de</strong>ntes, nas leituras e vejo que<br />
correspon<strong>de</strong> à realida<strong>de</strong> que eu também vivi.» Neruda tinha a<br />
obsessão <strong>de</strong> criar a Universida<strong>de</strong> da Araucânia on<strong>de</strong> se ensinasse o<br />
idioma mapuche, o mapudungum, para que o Chile tivesse consciência<br />
<strong>de</strong> que não é um país <strong>de</strong> uma só vertente, mas um país<br />
pluri<strong>cultura</strong>l.<br />
O poema «Alturas <strong>de</strong> Machu Picchu» <strong>de</strong>svenda a transcendência <strong>de</strong>sse lugar?<br />
Machu Picchu é a imagem sintética, con<strong>de</strong>nsada <strong>de</strong> toda a<br />
América, particularmente da América Latina, <strong>de</strong>sse mundo pré-<br />
-colombino, com toda a majesta<strong>de</strong> e significação que tem.<br />
Machu Picchu existia antes <strong>de</strong> Neruda, mas esta <strong>de</strong>scoberta que<br />
ele faz converte a sua poesia numa gran<strong>de</strong> poesia que vai <strong>de</strong>svendar<br />
aos olhos <strong>de</strong> quem a lê e também dos governos que ali há algo que<br />
é muito mais do que parece, o passado da América. Quem vai a Machu<br />
Picchu também po<strong>de</strong> recuperar a América antes da chegada dos<br />
conquistadores: havia uma civilização própria, havia uma <strong>cultura</strong>,<br />
havia uma mitologia, uma filosofia, uma história, una medição do<br />
tempo. Mas, no poema, Neruda não faz – há que sublinhar isto – o<br />
elogio do Inca nem dos sábios. A ele, interessam-lhe o «João corta-<br />
-pedras» e o «João pé-<strong>de</strong>scalço», ou seja, os inonimados, os anónimos<br />
que construíram essa cida<strong>de</strong>la e que nunca foram nomeados, os<br />
sem-nome da história. Ele fala não só para quem não o po<strong>de</strong> ouvir,<br />
mas também para os aborígenes que estão ali, que estão no Peru,<br />
que estão em toda a parte e diz-lhes: «Sube a nacer conmigo hermano,<br />
hablad con mis palabras y mi sangre.» Converte-o num manifesto<br />
revolucionário dirigido aos povoadores da América.<br />
Neruda foi perseguido pelo governo <strong>de</strong> González Vi<strong>de</strong>la em 1946. Saiu do Chile ajudado por muitas pessoas. Lembra-se<br />
como foi?<br />
Era uma operação clan<strong>de</strong>stina que <strong>de</strong>via fazer-se com reserva<br />
e ninguém podia saber que eu estava envolvido nessa missão. Estávamos<br />
em 1946, terminara no ano anterior a Segunda Guerra<br />
Mundial, e González Vi<strong>de</strong>la persegue os comunistas e quem o<br />
elegeu. É a guerra fria, e o presi<strong>de</strong>nte do Chile tinha <strong>de</strong> estar <strong>de</strong><br />
acordo com os EUA a qualquer preço, inclusive o preço <strong>de</strong> queimar<br />
todas as suas ban<strong>de</strong>iras e perseguir aqueles que o tinham<br />
apoiado, entre eles Neruda. Neruda <strong>de</strong>nunciou a traição, acusouo<br />
no Senado e enviou o texto do discurso ao proprietário do El<br />
Nacional, na Venezuela, «Carta para millones». Isso <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />
uma furiosa perseguição. Neruda entrou na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>. Eu<br />
convivi com Neruda durante esse tempo e <strong>de</strong>i-me conta do seu<br />
sentido <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Foi ali, na clausura, que escreveu a<br />
maior parte do seu Canto Geral on<strong>de</strong> faz uma verda<strong>de</strong>ira «biografia<br />
da América», <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que surgiu em tempos imemoriais e estava<br />
sozinho porque não havia ninguém. O homem vem pelo lado<br />
asiático, através do estreito <strong>de</strong> Bering, do Norte, numa espécie <strong>de</strong><br />
caminhada que dura 10 mil anos e que lhe permite povoar <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o Alasca até à Terra do Fogo. Neruda converte-se numa espécie <strong>de</strong>
Volodia e Neruda no México, 1949<br />
secretário da história, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a sua condição <strong>de</strong> cronista e diz<br />
que não se vai calar em relação aos tempos contemporâneos, inclusive<br />
faz pagar o preço da infâmia a González Vi<strong>de</strong>la e a outros<br />
que o acompanharam, nomeando-os no livro e contando as suas<br />
malfeitorias, algo que foi criticado por alguns porque dizem que<br />
<strong>de</strong>sfeiam a sua poesia, mas é uma poesia combatente, uma poesia<br />
«punitiva» para castigar o malvado.<br />
Há uma profunda imbricação entre a sua vida e a <strong>de</strong> Neruda com os gran<strong>de</strong>s acontecimentos do século. Que influência<br />
po<strong>de</strong> ter tido o golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1973 na morte <strong>de</strong> Neruda? Para muitos, foi uma<br />
surpresa que tivesse morrido poucos dias <strong>de</strong>pois do golpe.<br />
Teve uma influência muito directa. Após a eleição, Allen<strong>de</strong> nomeia<br />
Neruda embaixador em França. De lá chegam notícias alarmantes<br />
sobre a sua saú<strong>de</strong>. Então, pe<strong>de</strong>m-me que vá ver o que se<br />
passa e qual é a sua enfermida<strong>de</strong>. Matil<strong>de</strong>, sua mulher, disse-me:<br />
«Pablo tem um cancro.» Os médicos dizem que é um cancro <strong>de</strong><br />
evolução retardada e que po<strong>de</strong> viver muito tempo, a não ser que<br />
ocorra algum transtorno fisiológico ou se dê um golpe <strong>de</strong>molidor<br />
<strong>de</strong> fora que afecte a sua saú<strong>de</strong>. Em Setembro <strong>de</strong> 1973, está doente<br />
na Isla Negra, mas espera ter tempo <strong>de</strong> receber, no seu 70.º aniversário,<br />
os sete livros que tinha escrito no seu leito. Morre poucos<br />
dias <strong>de</strong>pois do golpe <strong>de</strong> Estado... foi <strong>de</strong>masiado para ele.<br />
Qual é a sua relação pessoal com Portugal?<br />
PORTUGAL: FORMOSÍSSIMO, GRATO E GENEROSO<br />
Se tivesse <strong>de</strong> sair do Chile novamente, coisa que não <strong>de</strong>sejo,<br />
escolheria Portugal. Quando era jovem, lia Eça <strong>de</strong> Queirós,<br />
que era um gran<strong>de</strong> escritor português muito conhecido nos<br />
colégios <strong>de</strong>ssa época. Tem vários livros como O Crime do Padre
VIDAS CONTADAS 66<br />
67<br />
Amaro a partir do qual foi feito um filme, recentemente, mas<br />
também outros. Talvez tivesse sido silenciado por ser um autor<br />
anticlerical. Tem um livro que causou sensação porque era um<br />
livro radical, intitula-se A Relíquia e é uma crítica aos beatos<br />
que vão à Terra Santa para encontrar um pedacito da cruz <strong>de</strong><br />
Cristo. Há outro que se chama A Cida<strong>de</strong> e as Serras que é uma espécie<br />
<strong>de</strong> premonição do ecológico. Eça era um gran<strong>de</strong> narrador<br />
que envolvia o leitor.<br />
Que importância confere à publicação do seu livro em língua portuguesa?<br />
Portugal mostrou-se generoso, tudo foi surpreen<strong>de</strong>nte porque<br />
não foi um livro trabalhado por um agente literário, trabalhei<br />
com alguns portugueses que em dado momento leram esse<br />
livro em espanhol e pensaram que era necessário traduzi-lo para<br />
português.Trata-se também <strong>de</strong> um livro orientado para Portugal,<br />
país formosíssimo, grato, generoso, mo<strong>de</strong>sto na sua gran<strong>de</strong>za,<br />
náutico, admirável. O idioma português, marinheiro, navegador,<br />
é, além do mais, falado em meta<strong>de</strong> da América do Sul e, para<br />
mim, a relação entre estes dois idiomas <strong>de</strong> mãe comum é íntima.<br />
Des<strong>de</strong> a minha infância que gosto dos fados que se cantam em<br />
Portugal, formosíssimos, profundos, aí está também a sauda<strong>de</strong>.<br />
Por isso fiquei feliz com esta edição.<br />
Gabriela Mistral escreveu nas suas Crónicas sobre a Europa, a seguir ao título El escenario maravilloso<br />
<strong>de</strong> la nación portuguesa uma epígrafe que diz: «Quem tiver estada prolongada na Europa venha a estes<br />
Portugais recompor-se do seu cansaço.» A ternura vegetal portuguesa é a índole do país. Vai publicar a sua biografia<br />
<strong>de</strong> Gabriela Mistral em português?<br />
Seria algo justo e também uma <strong>de</strong>scoberta porque Gabriela<br />
está ofuscada por Neruda, sem que Neruda o preten<strong>de</strong>sse. Neruda<br />
é uma árvore muito frondosa que projecta muita sombra, não<br />
porque seja sua intenção, mas porque os outros o fazem assim.<br />
A MEMÓRIA: AS DITADURAS MALTRATAM AS CONSCIÊNCIAS<br />
Com estas obras, o senhor contribui para a recuperação da memória histórica. É uma missão assumida?<br />
Eu creio que o pior dano das ditaduras, juntamente com a<br />
atrocida<strong>de</strong> dos assassinatos, dos <strong>de</strong>saparecimentos e das violações,<br />
é um dano um pouco secreto, interno, é o dano que se produz<br />
nas consciências. O dano produzido ao ser humano, a um povo, a<br />
um país, é um dano que perdura. Essa é a razão pela qual eu escrevi<br />
estas biografias, para que os cidadãos <strong>de</strong>ste país e aqueles<br />
que sofreram a ditadura possam voltar à sua condição <strong>de</strong> países<br />
<strong>de</strong>mocráticos.<br />
Eu resistia a escrever algo que parecesse personalista porque<br />
temo muito os <strong>de</strong>smandos do ego, porque o vejo noutros escritores,<br />
o ego há que controlá-lo para que não se <strong>de</strong>sboque. Mas o<br />
meu filho, que tem mais <strong>de</strong> 50 anos, disse-me: «Tu tens uma<br />
obrigação, não po<strong>de</strong>s levar para <strong>de</strong>baixo da terra tudo o que viste,<br />
tudo o que viveste, as pessoas precisam <strong>de</strong> o saber.» Mas eu não
A gata <strong>de</strong> Volodia, Miel<br />
É também um resgate dos valores?<br />
quero falar <strong>de</strong> mim, insisto. «O eu existe, disse-me, e a única<br />
maneira <strong>de</strong> torná-lo suportável é rir-se <strong>de</strong> si mesmo».<br />
Sim, porque são valores permanentes. Nós não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mos<br />
<strong>de</strong> um regime nem <strong>de</strong> um sistema, o que abraçamos é uma causa,<br />
uma gran<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ia, um i<strong>de</strong>al que é, no fundo, o humanismo, a<br />
humanida<strong>de</strong>, e isso nunca <strong>de</strong>saparecerá<br />
e não foi inventado no<br />
século XIX, apesar <strong>de</strong> Carlos<br />
Marx o ter visto pela sua própria<br />
óptica, atravessou, sim, milé-<br />
«Neruda conheceu<br />
em Espanha o direito<br />
à alegria»<br />
nios, as religiões, os sonhos dos gran<strong>de</strong>s transformadores ou dos<br />
pequenos maltratados pelo mundo que pensaram que seria bom<br />
ter uma vida diferente. Isso se moverá se alguém o está movendo,<br />
e esse alguém tem <strong>de</strong> ser uma multidão.<br />
Cortázar escreveu, referindo-se à herança <strong>de</strong> Neruda: «Sei que um dia voltaremos à Isla Negra, que o seu povo<br />
entrará por aquela porta e se encontrará em cada pedra, em cada folha <strong>de</strong> árvore, em cada grito <strong>de</strong> ave marinha,<br />
a poesia sempre viva <strong>de</strong>ste homem que tanto a amou.» Crê que a memória <strong>de</strong> Neruda está a ser fiel ao seu espírito<br />
e à sua obra?<br />
Há diversos usos <strong>de</strong> Neruda, há usos nerudianos e há usos<br />
extranerudianos, e Neruda já não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, foi incorporado<br />
na indústria <strong>cultura</strong>l, e isso é também o mercado, isso significa<br />
que há um Neruda pós-nerudiano ou contranerudiano, inclusive<br />
alguns interrogam-se: o que seria Neruda agora? Seria<br />
um poeta neoliberal? Nunca!<br />
Ele é um planeta, um mundo à sua disposição, e po<strong>de</strong>-se escolher<br />
uma ilha, uma montanha, o que cada um preferir. É como
VIDAS CONTADAS 68<br />
69<br />
os An<strong>de</strong>s, tem altos cumes como o Aconcagua e também muitas<br />
funduras, a sua obra também é assim, tem poemas esplêndidos e<br />
poemas que não alcançam essa categoria, algo compreensível,<br />
porque foi o poeta mais prolífico do século, mas há que consi<strong>de</strong>rá-lo<br />
na sua totalida<strong>de</strong>, não é possível esquartejá-lo. A sua obra é<br />
tão gigantesca, tão colossal que não creio que haja alguém que a<br />
conheça toda, continuarão os especialistas a estudá-lo <strong>de</strong> distintas<br />
maneiras, e os juízos po<strong>de</strong>m ser diferentes. A Neruda há que<br />
usá-lo, alguém po<strong>de</strong> roubar versos seus para fazer uma <strong>de</strong>claração<br />
<strong>de</strong> amor a uma míuda – Neruda estava encantado com esses roubos<br />
–, ele era propagandista do amor. Mas não se po<strong>de</strong> abusar <strong>de</strong><br />
Neruda para fabricar Nerudas que nunca existiram.<br />
OS SONHOS: É IMPORTANTE PROPOR O DIREITO AO PARAÍSO<br />
A epígrafe do seu último livro, Antes <strong>de</strong>l Olvido, diz: «Valparaíso foi <strong>de</strong>clarado pela UNESCO património da<br />
humanida<strong>de</strong>. Eu estou à espera que “o paraíso” seja <strong>de</strong>clarado património da humanida<strong>de</strong>.» Ou seja, o direito à<br />
felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os seres humanos, Neruda também o dizia, a começar pela <strong>de</strong>mocracia do almoço. Sonhava<br />
que a terra inteira seria ro<strong>de</strong>ada por uma gran<strong>de</strong> mesa circular e haveria uma ca<strong>de</strong>ira, uma colher e um prato<br />
para cada ser humano [ri!]. «Estamos nessa!» Lutar por um i<strong>de</strong>al, por um sonho, por um mundo mais justo! Por<br />
isso é muito importante propor o direito ao paraíso, que não se alcançará, mas permitirá adiantar algo, no sentido<br />
<strong>de</strong> tornar a vida melhor.<br />
Há um conto on<strong>de</strong> falo <strong>de</strong> um sonho que tive. Vêm visitar-<br />
-me os representantes das Ilhas Encantadas, porque sabem que<br />
eu sou propagandista do Paraíso Terreal. Dizem-me que o Paraíso<br />
Terreal são as Ilhas on<strong>de</strong> eles vivem e pe<strong>de</strong>m-me ajuda para que<br />
a UNESCO reconheça as Ilhas Encantadas como o Paraíso Terreal.<br />
Digo-lhes: Eu sou partidário não só para as Ilhas, mas também<br />
para toda a Humanida<strong>de</strong>. «O senhor está louco, isso nunca po<strong>de</strong>rá<br />
acontecer!», dizem-me. Nesse momento <strong>de</strong>sperto e fico com<br />
o discurso feito. Chama-se «Un sueño intervenido». Além disso,<br />
eu interrogava-me como é que eles conheciam esse livro, se ele<br />
ainda não havia saído.<br />
Uma jovem pediu-me que lhe fizesse esta pergunta: tem medo da morte?<br />
O jovem tem mais medo da morte que o velho, porque a vida<br />
nos vai aproximando da aceitação, que não é renúncia à vida.<br />
Queremos morrer o mais tar<strong>de</strong> possível... a morte é prematura<br />
[reflecte], mas, já que é um facto inevitável, aceitemo-la simplesmente<br />
como o último acto da vida.<br />
BIOGRAFIA DE VOLODIA TEITELBOIM VOLOSKY Filho <strong>de</strong> emigrantes, <strong>de</strong> pai ucraniano e mãe moldava, é um escritor imprescindível das letras chilenas. Publica <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
1935 e conta com mais <strong>de</strong> vinte livros. Foi jornalista, ensaísta, romancista, poeta e biógrafo. Alguns dos seus romances, como Hijo <strong>de</strong>l Salitre (1952), La<br />
Semilla en la Arena (1957) ou La Guerra Interna (1979), foram traduzidos em vários idiomas. Entre os seus ensaios sobre a realida<strong>de</strong> latino-americana,<br />
contam-se: El Amanecer <strong>de</strong>l Capitalismo y la Conquista <strong>de</strong> América (1943), Hombre y Hombre (1969), El Oficio Ciudadano<br />
(1973), El Pan y las Estrellas (1973), Pólvora <strong>de</strong>l Exilio (1976), La Letra y la Sangre (1986), En el País Prohibido (1988). Publicou as biografias<br />
<strong>de</strong> Neruda, Gabriela Mistral, Vicente Huidobro e Borges. Durante 15 anos, na Rádio Moscovo, leu as suas crónicas, mais tar<strong>de</strong> recolhidas no livro Noches<br />
<strong>de</strong> Radio. El Tiempo es un Viaje.<br />
Jornalista, advogado, <strong>de</strong>putado, senador e secretário-geral do Partido Comunista do Chile até 1994.
«A «A morte é é simplesmente o o último acto da da vida»
A BIBLIOTECA DE BABEL 70<br />
Aventuras e <strong>de</strong>sventuras<br />
<strong>de</strong> uma biblioteca<br />
nos trópicos<br />
Lilia Moritz Schwarcz<br />
71
O TERREMOTO DE 1755<br />
OU «O MAL VEM DA TERRA»<br />
Em Portugal contava-se que o rei D.<br />
João I, conhecido como O <strong>de</strong> Boa Memória<br />
(1356-1433), já possuía uma boa biblioteca<br />
– ou livraria, como se chamava na<br />
época. D. Duarte (1391-1438), seu sucessor,<br />
<strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> à coleção, sendo ele<br />
mesmo um poeta e escritor.<br />
E assim caminhou<br />
a tradição: D. Afonso V<br />
(1432-1481) reuniu tantas<br />
obras valiosas que<br />
sua biblioteca passou a<br />
ser reconhecida como<br />
uma das mais famosas e<br />
completas do Velho<br />
Mundo. O fato é que no<br />
século XVIII o acervo<br />
real português era motivo<br />
<strong>de</strong> orgulho e avaliado<br />
como um dos melhores<br />
conjuntos bibliográficos<br />
<strong>de</strong> toda a Europa. D. João<br />
V (1689-1750) costumava<br />
dizer que os muitos<br />
mil volumes que<br />
compunham a Real Biblioteca<br />
quase não cabiam<br />
mais em seu gran<strong>de</strong><br />
edifício, no Palácio<br />
da Ribeira, e tinham importância<br />
maior que todo<br />
o ouro remetido do<br />
Brasil.<br />
Por sinal, o Seiscentos<br />
português é sempre<br />
lembrado em função da<br />
riqueza e do luxo que o<br />
ouro do Brasil trouxe<br />
para a corte portuguesa.<br />
Gran<strong>de</strong>s festas, procissões, edificações majestosas<br />
como Mafra, uma corte mais<br />
mundana... muitos eram os sinais do brilho<br />
fácil que chegava em Lisboa. Junto<br />
com tanto fausto, também a Real Biblioteca<br />
foi sendo aumentada, bem ao gosto dos<br />
tempos: livros, incunábulos, códices, manuscritos,<br />
mapas, obras <strong>de</strong> arte e alguns<br />
objetos para romper com a monotonia<br />
dos livros. Por essas e por outras é que a<br />
livraria real era quase um troféu, uma es-<br />
Livros narram<br />
histórias, mas assim<br />
«ajuntados» valem até<br />
boas aventuras.<br />
Para o país<br />
recém-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
uma Biblioteca como<br />
essa contava muito:<br />
era a tradição<br />
acumulada<br />
que permanecia<br />
em uma nação<br />
<strong>de</strong> tradição recente<br />
e a ser inventada<br />
pécie <strong>de</strong> ícone da erudição e do conhecimento<br />
possíveis e assim acumulados.<br />
Mas a sina <strong>de</strong>ssa biblioteca iria mudar.<br />
No só o monarca D. João morria em 31 <strong>de</strong><br />
Julho <strong>de</strong> 1755, como no sábado, 1.º <strong>de</strong><br />
Novembro <strong>de</strong> 1755, Dia <strong>de</strong> Todos-os-Santos,<br />
um gran<strong>de</strong> terremoto caiu sobre Lisboa.<br />
Dizia uma testemunha, Francisco José<br />
Freire, em suas Memorias<br />
das principaes provi<strong>de</strong>ncias que<br />
se <strong>de</strong>rão no Terremoto, que pa<strong>de</strong>ceo<br />
a Corte <strong>de</strong> Lisboa no anno<br />
<strong>de</strong> 1755 que «[...] às<br />
nove horas e quatro minutos<br />
da manhã, estando<br />
o céu limpo, o ar sereno<br />
e o mar em calma, se<br />
viu Lisboa surpreendida<br />
com um Terremoto dos<br />
mais horrorosos que a<br />
tradição conserva, ou<br />
<strong>de</strong>screvem os livros. Seus<br />
efeitos provam esta verda<strong>de</strong>;<br />
porque em tão<br />
breve tempo <strong>de</strong>ixou reduzidos<br />
a ruínas quase<br />
todos os edifícios da<br />
mesma cida<strong>de</strong>, sepultando<br />
nos estragos um<br />
gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> seus<br />
habitadores, especialmente<br />
nos templos, que<br />
por ser dia <strong>de</strong> tanta solenida<strong>de</strong>,<br />
todos se achavam<br />
assistidos <strong>de</strong> numeroso<br />
povo».<br />
Pouco sobrou da capital<br />
dos portugueses.<br />
Devastada, elevava-se a<br />
mais <strong>de</strong> 30 mil o número<br />
<strong>de</strong> habitantes mortos<br />
por entre os escombros. E o que nos interessa<br />
mais <strong>de</strong> perto: o Paço da Ribeira foi<br />
<strong>de</strong>struído e, com ele, quase toda a Livraria<br />
<strong>de</strong> El Rey, que mais se parecia nesse momento<br />
com um amontoado <strong>de</strong> cinzas.<br />
Esse artigo conta um pouco da história<br />
<strong>de</strong>ssa Real Biblioteca que, reconstruída<br />
logo <strong>de</strong>pois do terremoto, se converteu<br />
em uma das metas políticas do governo<br />
pombalino. Depois disso acompanharia,<br />
com um pouco <strong>de</strong> atraso, a família real ao
A BIBLIOTECA DE BABEL 72<br />
73<br />
Brasil e se transformaria no pivô <strong>de</strong> uma<br />
batalha bibliográfica. A Livraria Real ficaria<br />
na ex-colônia americana e mostraria como<br />
a verda<strong>de</strong>ira in<strong>de</strong>pendência se faz, também,<br />
entre livros; muitos livros.<br />
«AJUNTANDO LIVROS»:<br />
NO MUNDO DAS BIBLIOTECAS<br />
Logo <strong>de</strong>pois do incêndio que se seguiu<br />
ao terremoto, junto com os trabalhos<br />
que começavam a reconstruir e a reinventar<br />
a velha Lisboa, o rei D. José I empenhou-se<br />
em resgatar as sobras do fogo e a dar início<br />
a uma nova coleção. A partir da compra<br />
<strong>de</strong> acervos privados, da requisição <strong>de</strong><br />
livros <strong>de</strong> alguns mosteiros,<br />
da incorporação <strong>de</strong><br />
bibliotecas dos jesuítas<br />
(expulsos <strong>de</strong> Portugal e<br />
<strong>de</strong> suas colônias), ou<br />
doações (como as <strong>de</strong><br />
Diogo Barbosa Machado<br />
e <strong>de</strong> G. Dugood), a Real<br />
Biblioteca, agora no Palácio<br />
da Ajuda, não parou<br />
<strong>de</strong> crescer, mesmo<br />
após a morte <strong>de</strong> D. José,<br />
em 1777.<br />
Em finais do século<br />
XVIII estava recomposta.<br />
Po<strong>de</strong>-se imaginar o trabalho<br />
e quantos esforços<br />
<strong>de</strong>positavam-se a seu redor.<br />
Sua importância<br />
não residia apenas no<br />
valor monetário dos livros,<br />
mapas, estampas,<br />
etc. A biblioteca expressava<br />
aspirações, projetos<br />
e representações <strong>de</strong> uma<br />
monarquia culta e marcada<br />
por esse acervo que<br />
revelava o universo intelectual da elite<br />
portuguesa ou, ao menos, o que se imaginava<br />
significar a erudição naquele momento.<br />
Mas a nova Biblioteca trazia as aspirações<br />
dos novos tempos, e do po<strong>de</strong>roso<br />
ministro <strong>de</strong> D. José I, o marquês <strong>de</strong> Pombal.<br />
A Livraria seria então convertida numa das<br />
pontas <strong>de</strong> lança do iluminismo português,<br />
por certo paradoxal entre seus movimentos<br />
Assim, a Real Biblioteca<br />
passou a fazer parte<br />
do novo país, mudou<br />
<strong>de</strong> nome ao longo<br />
dos anos, adicionou<br />
aquisições e doações<br />
ao seu acervo até<br />
tornar-se, segundo<br />
a UNESCO, na oitava<br />
instituição do gênero<br />
no mundo<br />
<strong>de</strong> abertura e <strong>de</strong> cerceamento e censura.<br />
Os livros apreendidos eram incorporados<br />
à Biblioteca que, por sua vez, era frequentada<br />
apenas por funcionários ou pessoas<br />
ligadas à corte.<br />
No entanto, a sorte da política portuguesa<br />
estava também para virar. Com a<br />
morte do rei D. José e a ascensão <strong>de</strong> sua filha<br />
D. Maria I, tudo que lembrasse a Pombal<br />
seria <strong>de</strong>stituído, substituído ou postergado<br />
e o mesmo ocorreria com a sorte da<br />
Real Livraria.<br />
Por sinal, nessa época iniciavam-se os<br />
trabalhos <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> uma nova biblioteca<br />
– a Real Biblioteca Pública – instalada<br />
bem no Terreiro do Paço<br />
e organizada segundo<br />
princípios mais mo<strong>de</strong>rnos.<br />
À frente estava António<br />
Ribeiro dos Santos,<br />
um profissional acostumado<br />
com a reforma<br />
da Biblioteca <strong>de</strong> Coimbra<br />
e que imprimiria<br />
nova direção aos trabalhos<br />
em Lisboa.<br />
Mas <strong>de</strong>ixemos essa<br />
disputa um pouco <strong>de</strong> lado,<br />
uma vez que o ambiente<br />
não estava para<br />
esse tipo <strong>de</strong> contenda. A<br />
política internacional<br />
andava remexida e o<br />
exército napoleônico estava<br />
para chegar em terras<br />
portuguesas.<br />
A VIAGEM:<br />
HOMENS<br />
E LIVROS AO MAR<br />
Diante da iminente<br />
invasão das tropas francesas,<br />
em novembro <strong>de</strong> 1807, o príncipe<br />
regente <strong>de</strong> Portugal, D. João, a família real<br />
e parte da corte – uma multidão estimada<br />
em 10 mil pessoas – que conseguira embarcar<br />
apressadamente nos 36 navios levantaram<br />
ferros <strong>de</strong> Lisboa, rumo ao Brasil,<br />
sua colônia d’além mar. Foram quase dois<br />
meses em alto mar, intempéries, água<br />
pouca e limpeza nenhuma, piolhos, tempesta<strong>de</strong>s<br />
e inseguranças <strong>de</strong> todo tipo.
E se a Real Biblioteca não veio junto,<br />
pois lugar não havia, sua história ficou ligada<br />
ao fado dos Bragança que, em inícios<br />
do século XIX, lidavam com os impasses<br />
criados pela França e pela Inglaterra: as<br />
duas gran<strong>de</strong>s nações que disputavam nesse<br />
contexto o controle político e econômico<br />
da Europa.<br />
Diante <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>s<br />
e da situação frágil vivenciada pela<br />
metrópole – sem dirigentes reais a partir<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1807 e sempre exposta a<br />
novas invasões –, a saída (tantas vezes <strong>de</strong>senhada)<br />
foi optar pela transferência para<br />
a rica colônia brasileira. E era o próprio<br />
príncipe regente quem,<br />
já em terras tropicais e<br />
dando-se conta da falta,<br />
or<strong>de</strong>na a vinda <strong>de</strong> seus<br />
acervos <strong>de</strong> livros e documentos,<br />
como se não<br />
fosse possível governar<br />
apartado <strong>de</strong>les.<br />
Na verda<strong>de</strong>, a pressa<br />
do embarque, em finais<br />
<strong>de</strong> 1807, havia feito das<br />
suas, mas não impediu<br />
que, entre a multidão <strong>de</strong><br />
nobres e muitas bagagens,<br />
viesse boa parte<br />
dos documentos políticos<br />
e administrativos do<br />
Estado lusitano. A mesma<br />
atenção não coube,<br />
porém, à Real Biblioteca.<br />
Por mais que se tenha<br />
alar<strong>de</strong>ado, no navio Medusa,<br />
acondicionada precariamente,acomodouse<br />
apenas a biblioteca<br />
do Con<strong>de</strong> da Barca. O<br />
imenso acervo ficou esquecido<br />
no porto e teve que ser guardado,<br />
novamente, às pressas.<br />
Mas com a segunda invasão francesa,<br />
em 1810, a partida da Real Livraria seria<br />
questão <strong>de</strong> tempo. Entraria na colônia em<br />
três remessas, como se a ilustração chegasse<br />
ao Brasil em caixotes e sem aviso expresso.<br />
Tanto esforço <strong>de</strong>veria valer a pena.<br />
Composta por dois acervos – o da Livraria<br />
do Rei e o da Casa do Infantado, este <strong>de</strong>s-<br />
Diante da iminente<br />
invasão das tropas<br />
francesas,<br />
em novembro <strong>de</strong> 1807,<br />
o príncipe regente<br />
<strong>de</strong> Portugal, D. João,<br />
a família real e parte<br />
da Corte levantaram<br />
ferros <strong>de</strong> Lisboa, rumo<br />
ao Brasil, sua colônia<br />
d’além-mar<br />
tinado ao uso dos príncipes –, a Real Biblioteca<br />
era consi<strong>de</strong>rada na época uma das<br />
maiores e melhores bibliotecas do mundo.<br />
O acervo não veio inteiro <strong>de</strong>vido às<br />
óbvias dificulda<strong>de</strong>s da partida. Do que ficara,<br />
certamente bem escondido para escapar<br />
dos butins dos tempos <strong>de</strong> guerra,<br />
outro lote aportaria no Brasil em 1811,<br />
com o bibliotecário Luís Joaquim dos Santos<br />
Marrocos. É certo que o príncipe regente<br />
queria mais, e uma outra leva aportou<br />
poucos meses <strong>de</strong>pois, ainda em 1811.<br />
Chegara mesmo a or<strong>de</strong>nar a vinda <strong>de</strong> documentos<br />
constantes na Torre do Tombo e<br />
livros da Real Biblioteca Pública <strong>de</strong> Lisboa,<br />
mas o que veio foi o<br />
bastante para que em<br />
1876 Ramiz Galvão, então<br />
diretor da Biblioteca,<br />
afirmasse que naquele<br />
conjunto estavam reunidas<br />
«todas as províncias<br />
do saber humano».<br />
Vale a pena perguntar<br />
por que em meio ao<br />
caos dos primeiros anos<br />
não se esquecera a Real<br />
Biblioteca. Com efeito, o<br />
que viajara junto com a<br />
família era uma espécie<br />
<strong>de</strong> «política do conhecimento»:<br />
transportava-se<br />
não um amontoado <strong>de</strong><br />
livros, mas o espírito<br />
pombalino, uma verda<strong>de</strong>ira<br />
política <strong>de</strong> Estado,<br />
a idéia <strong>de</strong> que uma biblioteca<br />
era um repositório<br />
universal <strong>de</strong> saber. A<br />
ilustração aportava <strong>de</strong>finitivamente<br />
no Brasil e<br />
com ela o espírito mental<br />
dos Bragança, bem no início do agitado<br />
século XIX. Chegavam juntos a administração<br />
e a <strong>cultura</strong> oficial.<br />
Nesse momento começava também<br />
essa original história brasileira, tão vinculada<br />
à vinda da família real ao Brasil. De<br />
fato, é no mínimo inusitado pensar numa<br />
colônia sediando a capital <strong>de</strong> um império,<br />
assim como numa biblioteca que atravessou<br />
o Atlântico. Tal qual uma «internalização
A BIBLIOTECA DE BABEL 74<br />
75<br />
da metrópole», a instalação da corte portuguesa<br />
no Brasil significou não apenas<br />
um aci<strong>de</strong>nte fortuito, mas antes um momento<br />
angular da história nacional; a origem<br />
<strong>de</strong> um processo singular <strong>de</strong> emancipação.<br />
Transformado em Reino Unido no<br />
ano <strong>de</strong> 1815, o Brasil distanciava-se <strong>de</strong> seu<br />
antigo estatuto colonial, ganhando uma<br />
autonomia relativa, jamais conhecida. Humilhado,<br />
perseguido e transplantado, o Estado<br />
português reproduziu aqui o seu aparelho<br />
administrativo. E do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
D. João, <strong>de</strong>nominado «rei do Brasil», governava<br />
todo o seu Império.<br />
UMA BIBLIOTECA<br />
EM TERRAS TROPICAIS<br />
A Real Biblioteca entrou <strong>de</strong>finitivamente<br />
na história brasileira em 27 <strong>de</strong> junho<br />
<strong>de</strong> 1810, quando, por alvará régio,<br />
foi mandada instalar em parte do hospital<br />
da Or<strong>de</strong>m Terceira do Carmo, nos fundos<br />
da igreja <strong>de</strong> mesmo nome, nas proximida<strong>de</strong>s<br />
do Paço Real. Ainda no mesmo<br />
ano, em 29 <strong>de</strong> Outubro, vendo que o local<br />
não era apropriado para sua biblioteca<br />
– que tinha que dividir espaço com doentes,<br />
remédios e até ossos –, o príncipe regente<br />
manda que se erijam nas catacumbas<br />
da Or<strong>de</strong>m do Carmo os cômodos necessários<br />
para «o arranjamento e manutenção<br />
do referido estabelecimento».<br />
Em 1811 a Biblioteca era aberta ao<br />
público, se bem que <strong>de</strong> maneira seletiva:<br />
só para eruditos que obtivessem o consentimento<br />
régio, o que não era difícil. No<br />
entanto, em 1814 a autorização prévia foi<br />
suprimida, ficando <strong>de</strong>finitivamente franqueado<br />
o acesso. Já ocupava todo o prédio<br />
que abrigara o hospital, possuía cerca <strong>de</strong><br />
60 mil livros e era a maior das Américas.<br />
Todo cuidado era pouco diante das<br />
preciosida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse acervo: livros <strong>de</strong> horas<br />
renascentistas, incunábulos (<strong>de</strong> Cícero<br />
à Bíblia <strong>de</strong> Mogúncia), partituras, libretos,<br />
vilancicos, códices, <strong>de</strong>senhos e estampas<br />
(<strong>de</strong> Dürer, Rafael, Rembrandt, Piranesi,<br />
van Dick, entre outros), livros <strong>de</strong> história,<br />
ciência e filosofia (da História Natural <strong>de</strong><br />
Buffon à Enciclopédia <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot e D’Alembert),<br />
literatura sacra, obras <strong>de</strong> autores<br />
quinhentistas portugueses (Camões, João<br />
<strong>de</strong> Barros, etc.) ou catecismos e gramáticas<br />
raras.<br />
Aqui seria acrescida <strong>de</strong> valiosas doações<br />
(como a coleção do frei José Mariano<br />
da Conceição Veloso) e aquisições (<strong>de</strong> José<br />
da Costa e Silva e do Con<strong>de</strong> da Barca).<br />
Além disso, foram incorporadas propinas –<br />
<strong>de</strong>nominação da época para o recolhimento<br />
obrigatório <strong>de</strong> livros e periódicos editados<br />
em Portugal e no Brasil – e documentos<br />
oficiais do Estado.<br />
TEMPOS DE REVOLUÇÃO E DE<br />
DEFINIÇÃO: A BIBLIOTECA FICA<br />
Mas a história <strong>de</strong>ssa gran<strong>de</strong> livraria<br />
ainda passaria por conturbações. Em conseqüência<br />
da Revolução Liberal do Porto,<br />
D. João VI volta para Portugal em 1821 e<br />
a sina da Real Biblioteca mudaria mais<br />
uma vez.<br />
Não é hora <strong>de</strong> discutir os acontecimentos<br />
que culminaram, em 7 <strong>de</strong> setembro<br />
<strong>de</strong> 1822, com a proclamação da In<strong>de</strong>pendência<br />
e mesmo a nova li<strong>de</strong>rança política<br />
que surgia. O fato é que o padre Joaquim<br />
Dâmaso, então prefeito da Real Biblioteca,<br />
recusa-se a a<strong>de</strong>rir ao movimento<br />
autonomista e retorna a Portugal. A sua<br />
postura intransigente nos custaria caro:<br />
transportou consigo boa parte dos manuscritos<br />
da instituição. Ou seja, dos mais <strong>de</strong><br />
6 mil códices existentes no acervo, levou<br />
<strong>de</strong> volta mais <strong>de</strong> 5 mil. E queixou-se ainda<br />
<strong>de</strong> não ter conseguido carregar também os<br />
impressos. E esta «disputa bibliográfica»<br />
não foi um mero <strong>de</strong>talhe. A partir <strong>de</strong>la<br />
po<strong>de</strong>-se ter idéia da luta travada, <strong>de</strong> um lado,<br />
no sentido <strong>de</strong> conseguir que a biblioteca<br />
voltasse a seu <strong>de</strong>stino original, e <strong>de</strong><br />
outro para mantê-la, como parte <strong>de</strong> uma<br />
política para fortalecimento científico e<br />
<strong>cultura</strong>l da nova nação.<br />
Se essa batalha acabou sendo ganha<br />
pelo Brasil, a vitória teve um alto custo. O<br />
valor da Biblioteca Imperial e Pública da Corte,<br />
<strong>de</strong>nominação adotada após a In<strong>de</strong>pendência,<br />
virou motivo <strong>de</strong> cláusulas e atos diplomáticos,<br />
firmados com vista a consolidar a<br />
emancipação. Através da Convenção Adicional<br />
ao Tratado <strong>de</strong> Paz e Amiza<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
29 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1825, D. Pedro I, Imperador<br />
do Brasil, concordava em in<strong>de</strong>nizar a
família real portuguesa por seus bens e<br />
proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ixados no país, inclusive a<br />
biblioteca real.<br />
E na verda<strong>de</strong> se pagou muito, pela «famosa<br />
conta» que Portugal cobrava do Brasil.<br />
No Arquivo da Torre do Tombo, po<strong>de</strong><br />
ser encontrado o documento <strong>de</strong>nominado<br />
– «Carta dos objetos que Portugal teria direito<br />
<strong>de</strong> reclamar» aon<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> ajuizar a<br />
posição privilegiada da Biblioteca, que vinha<br />
logo em segundo lugar <strong>de</strong>pois da «dívida<br />
pública»<br />
A Biblioteca surgia avaliada em 800<br />
contos <strong>de</strong> réis, um valor tremendamente<br />
alto <strong>de</strong>ntro do montante geral. Para se ter<br />
idéia, tal valor correspondia a 12,5% do<br />
total a ser pago, quatro mais do que a famosa<br />
prataria da coroa, assim como 4 vezes<br />
mais do que a equipagem elencada na<br />
conta. Significava portanto muito e para<br />
nós muito mais.<br />
Assim, a Real Biblioteca passou a fazer<br />
parte do novo país, mudou <strong>de</strong> nome ao<br />
longo dos anos, adicionou aquisições e<br />
doações ao seu acervo até tornar-se, se-<br />
gundo a UNESCO, na oitava instituição do<br />
gênero no mundo.<br />
Livros narram histórias, mas assim<br />
«ajuntados» valem até boas aventuras. Para<br />
o país recém-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte uma Biblioteca<br />
como essa contava muito: era a tradição<br />
acumulada que permanecia em uma nação<br />
<strong>de</strong> tradição recente e a ser inventada. Como<br />
dizia o Bibliotecário <strong>de</strong> S. Majesta<strong>de</strong>,<br />
«as bibliotecas fazem o adorno principal e<br />
mais precioso dos Paços Reais e merecerão<br />
com toda a justiça que as Letras o olhem e<br />
reconheçam por seu valioso protetor».<br />
«Adorno principal, jóia do reino ...», aí estão<br />
algumas expressões que falam do valor<br />
simbólico acumulado por uma biblioteca.<br />
Mais do que os livros, leis e tratados era o<br />
conhecimento (infinito por <strong>de</strong>finição) que<br />
se pretendia colecionar e classificar.<br />
A sina <strong>de</strong>ssa Livraria como que reconta,<br />
à sua maneira, um pouco da história <strong>de</strong><br />
Portugal e do Brasil. Os personagens são<br />
diferentes, assim como o recorte. Dessa<br />
vez é por meio <strong>de</strong> livros que se narra uma<br />
mesma história.<br />
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A INVENÇÃO DA AMÉRICA 76<br />
77<br />
«AL OCCIDENTE<br />
VAN LAS NAVES<br />
INVENTORAS<br />
DE REGIONES»,<br />
ESCREVEU JUAN<br />
DE CASTELLANOS.<br />
MIRAGEM DE<br />
COLOMBO,<br />
INVENÇÃO<br />
EUROPEIA,<br />
A AMÉRICA<br />
DEMOROU A<br />
GANHAR IDENTIDADE<br />
PRÓPRIA NO<br />
UNIVERSO MENTAL<br />
DO VELHO MUNDO.<br />
A RESISTÊNCIA<br />
DOS VELHOS<br />
PARADIGMAS
CONDICIONOU<br />
A RECEPÇÃO<br />
DA NOVIDADE,<br />
MOLDANDO<br />
O NOVO MUNDO.<br />
DESLUMBRAMENTO,<br />
DESENCANTO,<br />
SAUDADE,<br />
DESASSOSSEGO<br />
SÃO SENTIMENTOS<br />
EXPRESSOS<br />
NAS FONTES<br />
NARRATIVAS,<br />
NA TOPONÍMIA<br />
E NAS CARTAS<br />
PRIVADAS<br />
DE EMIGRANTES.<br />
Organização <strong>de</strong> Maria da Graça A. Mateus Ventura
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 78<br />
79<br />
Yo vengo<br />
<strong>de</strong> las Indias<br />
Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
Fauna marinha fantástica na costa do Brasil. Theodorus <strong>de</strong> Bry, Historia Americae, Frankfurt, 1590 [BN, HG 2612 A]
«Ao oci<strong>de</strong>nte rumam as naus inventoras<br />
<strong>de</strong> regiões», escreveu Juan <strong>de</strong><br />
Castellanos no seu canto épico da conquista<br />
da América pelos espanhóis, em<br />
1589. Descobrimento ou invenção, a<br />
Quarta parte do mundo, precipitadamente<br />
baptizada <strong>de</strong> América por Waldseemuller,<br />
em 1507, apresentava-se aos europeus<br />
como um jardim <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias.<br />
A primeira percepção do Novo<br />
Mundo foi fruto <strong>de</strong> uma projecção da<br />
mentalida<strong>de</strong> europeia na nova geografia.<br />
Captou-se o <strong>de</strong>sconhecido em função do<br />
conhecido. Baptizaram-se as terras, os<br />
mares e os rios <strong>de</strong> acordo com o imaginário,<br />
as expectativas e as recordações.<br />
A tradicional visão ptolemaico-cristã<br />
da Terra dificultava a aceitação <strong>de</strong> uma<br />
nova realida<strong>de</strong> geográfica como entida<strong>de</strong><br />
espacial, temporal e <strong>cultura</strong>l. Se nas<br />
vésperas da expansão marítima os<br />
europeus dispunham <strong>de</strong> informação vaga<br />
e dispersa sobre a África e a Ásia, <strong>de</strong> um<br />
quarto continente nem sequer se suspeitava.<br />
A constatação da existência da<br />
América e a sua gradual aparição como<br />
uma entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> direito próprio constituíram,<br />
pois, um <strong>de</strong>safio maior a todo<br />
um conjunto <strong>de</strong> preconceitos tradicionais,<br />
crenças e atitu<strong>de</strong>s. A dimensão<br />
<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>safio permite-nos compreen<strong>de</strong>r<br />
um dos factos mais surpreen<strong>de</strong>ntes da<br />
história intelectual do século XVI: a<br />
aparente lentidão da Europa no ajustamento<br />
mental necessário à integração da<br />
América no seu campo <strong>de</strong> visão. A<br />
reacção dos europeus aos primeiros textos<br />
publicados sobre o Novo Mundo,<br />
manifestada na avi<strong>de</strong>z da leitura e nas<br />
sucessivas edições das cartas <strong>de</strong> Américo<br />
Vespúcio, <strong>de</strong> Cristóvão Colombo e <strong>de</strong><br />
muitas outras narrativas, reflecte emoção<br />
e <strong>de</strong>slumbramento, sentimentos progressivamente<br />
esfriados pelo <strong>de</strong>sbravamento<br />
do espaço real. Às <strong>de</strong>scrições edénicas da<br />
paisagem e dos índios, suce<strong>de</strong>ram-se<br />
relatos que suscitaram inquietações <strong>de</strong><br />
or<strong>de</strong>m teológica e filosófica, como a<br />
condição humana dos índios. Se os<br />
europeus não viajados conservaram,<br />
durante todo o século XVI, uma imagem<br />
paradisíaca do Novo Mundo, patente nas<br />
Índios brasileiros como Adão e Eva. Theodorus <strong>de</strong> Bry, Historia Americae, Frankfurt, 1590 [BN, HG 2612 A]
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 80<br />
81<br />
iluminuras e gravuras, os viageiros<br />
europeus constatavam o contraste civilizacional<br />
e sublinhavam o estado <strong>de</strong> «barbárie»<br />
das socieda<strong>de</strong>s índias. Na verda<strong>de</strong>,<br />
a resistência <strong>de</strong> filósofos e cosmógrafos<br />
em incorporar a nova informação proporcionada<br />
pela <strong>de</strong>scoberta da América é um<br />
exemplo da dificulda<strong>de</strong> do Velho Mundo<br />
em gerir a diversida<strong>de</strong> <strong>cultura</strong>l e, em particular,<br />
os efeitos <strong>de</strong>sta nova realida<strong>de</strong>.<br />
Sob o ponto <strong>de</strong> vista intelectual, a<br />
<strong>de</strong>scoberta da América constituiu um<br />
<strong>de</strong>safio à Europa, na medida em que pôs<br />
em causa preconceitos europeus sobre a<br />
geografia, a história e a natureza do<br />
homem. Uma primeira barreira mental<br />
dos <strong>de</strong>scobridores era configurada por<br />
um sistema mítico com profundo<br />
enraizamento <strong>cultura</strong>l, como o É<strong>de</strong>n, os<br />
mitos da Antilha e <strong>de</strong> São Brandão, as Sete<br />
Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cibola, as Amazonas, o Eldorado.<br />
Por outro lado, a influência dos<br />
livros <strong>de</strong> cavalaria moldou um código <strong>de</strong><br />
conduta do conquistador que reproduzia<br />
o código <strong>de</strong> honra e fama próprio do cavaleiro<br />
medieval. A obsessão pela fama e pela<br />
riqueza fácil constituiu outro entrave a<br />
uma clara percepção do Novo Mundo. Os<br />
conquistadores manifestam uma visão economicista<br />
da natureza, <strong>de</strong>slumbrando-se<br />
com a riqueza em pérolas do Caribe ou<br />
com os tesouros mexicanos e peruanos.<br />
À medida que se avançava no <strong>de</strong>scobrimento<br />
e na conquista e os limites do<br />
Novo Mundo se alargavam, a experiência<br />
e a familiarida<strong>de</strong> com o continente permitiram<br />
um olhar mais atento e distanciado<br />
por parte dos cronistas europeus, sempre<br />
condicionados pela sua função no processo,<br />
interesses (materiais ou espirituais),<br />
formação <strong>cultura</strong>l e grau <strong>de</strong> vivência<br />
da diversida<strong>de</strong>. Daí que o soldado <strong>de</strong>screva<br />
a terra em função das condições<br />
para a conquista, o colonizador se fixe nas<br />
condições do território para a sua exploração<br />
e o evangelizador se centre num<br />
estudo etnográfico e antropológico.<br />
Em termos cognitivos, a mudança<br />
joga-se na controvérsia entre o velho e o<br />
novo, numa profunda resistência à novida<strong>de</strong><br />
e no apego aos velhos paradigmas.<br />
Os primeiros <strong>de</strong>scobridores estão profun-<br />
damente constrangidos pelos mo<strong>de</strong>los<br />
<strong>cultura</strong>is europeus, pelo que a sua percepção<br />
peca por <strong>de</strong>formação. Os cronistas-conquistadores,<br />
condicionados<br />
pelas duras condições <strong>de</strong> sobrevivência e<br />
pelos imperativos <strong>de</strong> imposição militar,<br />
estavam limitados a uma leitura utilitária,<br />
mas revelam algum distanciamento na<br />
<strong>de</strong>scrição da natureza americana. Os cronistas-evangelizadores<br />
manifestam um<br />
maior empenho na <strong>de</strong>scrição antropológica<br />
e <strong>cultura</strong>l que na <strong>de</strong>scrição geográfica<br />
e, nesse campo, apresentam um forte<br />
eurocentrismo, ainda que a imagem do<br />
índio chegue à Europa associada a virtu<strong>de</strong>s<br />
como a bonda<strong>de</strong>, a humilda<strong>de</strong> e a<br />
afabilida<strong>de</strong>. Os cronistas-gerais, como<br />
António <strong>de</strong> Herrera, mais ou menos distanciados<br />
do seu objecto narrativo,<br />
oscilam entre a contemplação e a especulação.<br />
Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo representa a<br />
primeira atitu<strong>de</strong>, enquanto o padre José<br />
<strong>de</strong> Acosta é o expoente máximo da<br />
segunda.<br />
Em 1528, o humanista espanhol Hernán<br />
Pérez <strong>de</strong> Oliva escreveu, a propósito da<br />
preparação da segunda viagem <strong>de</strong> Colombo,<br />
que esta se <strong>de</strong>stinava a «mesclar o mundo<br />
e dar àquelas terras estranhas a forma da<br />
nossa». Segundo Edmundo O’Gorman, a<br />
América não foi <strong>de</strong>scoberta, mas inventada<br />
pelos europeus do século XVI.<br />
Oviedo apresenta Cristóvão Colombo<br />
como «primeiro inventor e <strong>de</strong>scobridor e<br />
almirante <strong>de</strong>stas Índias», enquanto Juan<br />
<strong>de</strong> Castellanos inicia o canto II das suas<br />
Elegias <strong>de</strong> varones illustres exactamente com o<br />
verso «Al oci<strong>de</strong>nte van encaminadas las<br />
naves inventoras <strong>de</strong> regiones». Nesta<br />
medida, ambos se aproximam <strong>de</strong> Nelson<br />
Goodman quando este conceptualiza o<br />
mundo como uma leitura e não como<br />
uma realida<strong>de</strong>. A visão do novo dos<br />
viageiros europeus estava condicionada<br />
pela sua expectativa, viam o que queriam<br />
ver e ignoravam aquilo para o qual não<br />
estavam preparados, num puro acto <strong>de</strong><br />
supressão e completação. Neste sentido,<br />
os navegadores, os cartógrafos, os cronistas<br />
foram inventores <strong>de</strong> regiões não só<br />
por lhes terem atribuído novos nomes,<br />
mas sobretudo porque a sua representação
do mundo novo constituía uma invenção<br />
mais ou menos presa a interesses particulares<br />
e a padrões <strong>cultura</strong>is e mentais. Não<br />
esqueçamos que o nome <strong>de</strong> Índias,<br />
atribuído por Colombo a esta quarta<br />
parte do mundo, logo em 1492, rapidamente<br />
se impôs e prevaleceu na terminologia<br />
oficial até ao século XVIII. É uma<br />
invenção também porque a América foi<br />
construída por agentes que transmudaram<br />
para esse mundo novo a imagem<br />
da Europa – organização urbana, sistema<br />
político-administrativo e, até, a toponímia<br />
europeia.<br />
Alegoria do <strong>de</strong>scobrimento: Américo Vespúcio encontra a América. Jan van <strong>de</strong>r Stralt (1523-1605) [BN, EA 15 (22) P.]<br />
A cartografia, embora marcada pela<br />
geografia <strong>de</strong> Ptolomeu, vai representando<br />
os contornos dos Novos Mundos, recheando-os<br />
<strong>de</strong> topónimos míticos, religiosos,<br />
profanos, reflectindo a passagem<br />
do estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>slumbramento, manifestado<br />
nas esmeradas iluminuras com animais<br />
exóticos, a uma progressiva<br />
racionalização da concepção do espaço. A<br />
geografia do imaginário apresenta na<br />
América uma primeira configuração<br />
cujos elementos fundamentais são os rios<br />
e os espaços insulares. Da Boca <strong>de</strong>l Drago,<br />
nas costas venezuelanas, à costa da<br />
Florida, encontramos Paraíso, Matinino,<br />
Ofir, Bimini, o rio Jordão, o Eldorado.
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 82<br />
83<br />
Trata-se <strong>de</strong> um percurso encantatório<br />
sucessivamente transposto para o interior<br />
meridional, mas sempre associado aos<br />
rios e às ilhas. Logo na primeira viagem,<br />
Colombo afirmou ter visto uma ilha<br />
habitada só por mulheres a que chamou<br />
Matinino. Mais não fez que ajustar o mito<br />
das Amazonas a uma ilha on<strong>de</strong> as mulheres<br />
acorreram à praia à vista das caravelas.<br />
Enrique <strong>de</strong> Gandía relaciona a convicção<br />
colombina <strong>de</strong> ter chegado à costa oriental<br />
da Ásia com o baptismo da ilha Matinino,<br />
pois Marco Polo difundira a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />
no Oriente havia uma ilha feminina e<br />
uma ilha masculina. De facto, Colombo<br />
distingue o Caribe (masculino) <strong>de</strong><br />
Matinino (feminino). Segundo Gandía,<br />
esta é a principal explicação para a transposição<br />
do mito das Amazonas para a<br />
América. O Eldorado surge pela primeira<br />
vez em 1539, sendo atribuído a Sebastián<br />
<strong>de</strong> Benalcázar o baptismo <strong>de</strong> um lugar<br />
com este nome em Nova Granada. Parece<br />
que nesta região um cacique mergulhava<br />
todas as manhãs num tanque e que saía<br />
da água coberto <strong>de</strong> pó <strong>de</strong> ouro. Este<br />
tanque transformou-se, na mitologia dos<br />
conquistadores, num lago localizado<br />
sucessivamente em vários lugares, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
Colômbia ao rio Amazonas. Este mito,<br />
que remonta à mitologia grega, atormentou<br />
mentes obcecadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobridores e<br />
conquistadores da América, como<br />
Fe<strong>de</strong>rmann, Jiménez <strong>de</strong> Quesada,<br />
Benálcazar e Pizarro. A <strong>de</strong>scoberta do<br />
tesouro <strong>de</strong> Atahualpa viria a configurar o<br />
mito na região do Peru. Avançam os conquistadores,<br />
retroce<strong>de</strong> o Eldorado, sempre<br />
inacessível. Associado à obsessão pelo<br />
ouro, este foi um dos móbiles da exploração<br />
das profun<strong>de</strong>zas do continente<br />
americano.<br />
O cenário mítico do Novo Mundo<br />
convocou o <strong>de</strong>lírio perante a riqueza<br />
fácil, amplificado pelos relatos dos navegadores<br />
e dos conquistadores <strong>de</strong>sejosos<br />
<strong>de</strong> acrescentar as suas hostes. A expectativa<br />
e a obsessão, <strong>de</strong>formando a realida<strong>de</strong>,<br />
acabaram por suscitar a <strong>de</strong>silusão. As<br />
crónicas estão repletas <strong>de</strong> exemplos. Díaz<br />
<strong>de</strong> Guzmán expressa este contraste: os<br />
espanhóis encontraram na província <strong>de</strong><br />
Guairá «umas pedras mui cristalinas»<br />
que se criavam no subsolo e que assumiam<br />
cores diversas, com «tanta diafanida<strong>de</strong><br />
e brilho» que pareciam pedras<br />
preciosíssimas. Com esta ilusão, os conquistadores<br />
«acreditaram que possuíam a<br />
maior das riquezas do mundo» e <strong>de</strong>cidiram<br />
<strong>de</strong>ixar esta terra e caminhar para a<br />
costa a fim <strong>de</strong> partir para Espanha com as<br />
suas famílias.<br />
Se o estado <strong>de</strong> maravilha correspon<strong>de</strong><br />
ao primeiro impacto do contacto com a<br />
Natureza do Novo Mundo, o estado <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sencanto vai-se instalando à medida<br />
que se frustram as expectativas <strong>de</strong> riqueza<br />
fácil. O êxito militar da conquista e o<br />
sucesso relativo da evangelização não<br />
foram acompanhados <strong>de</strong> um igual grau<br />
<strong>de</strong> satisfação individual e colectiva por<br />
parte dos conquistadores e colonizadores.<br />
A luta pelo po<strong>de</strong>r, a iniquida<strong>de</strong> na repartição<br />
dos saques, o <strong>de</strong>sajustamento entre<br />
as expectativas e a realida<strong>de</strong> e uma natureza<br />
muitas vezes adversa justificam o<br />
<strong>de</strong>sencanto que as fontes revelam. São<br />
memoriais <strong>de</strong> conquistadores em que<br />
estes se queixam que «pa<strong>de</strong>cem necessida<strong>de</strong>»,<br />
são cartas <strong>de</strong> mulheres viúvas ou<br />
<strong>de</strong> maridos ausentes a reclamar da imensa<br />
sauda<strong>de</strong>. Lope <strong>de</strong> Vega, no epitáfio do<br />
poeta Medina Medinilla, escreveu «No<br />
mar da América se per<strong>de</strong>u a flor e a nata<br />
<strong>de</strong> nossa época», i<strong>de</strong>ia corroborada por<br />
Gôngora e outros autores. Afogados nos<br />
rios, nos portos ou em mar alto, morreram<br />
muitos marinheiros, capitães, a<strong>de</strong>lantados<br />
e viageiros, muitos dos quais não<br />
sabiam nadar nem tinham alguma vez<br />
visto o mar.<br />
Uma leitura diacrónica do baptismo<br />
do Novo Mundo permite-nos percorrer o<br />
espaço mental dos colonizadores. Se na<br />
fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento se baptizou o<br />
Novo Mundo <strong>de</strong> acordo com critérios<br />
essencialmente míticos e litúrgicos, embora<br />
surjam também critérios <strong>de</strong> funcionalida<strong>de</strong><br />
e evocativos <strong>de</strong> espaços<br />
ausentes e semelhantes, na fase <strong>de</strong> conquista<br />
e colonização a toponímia corporiza<br />
a frustração e o <strong>de</strong>sencanto.<br />
A civilização oci<strong>de</strong>ntal estava profundamente<br />
marcada pela tradição clássica e
cristã. Logo, a leitura do Novo Mundo era<br />
condicionada por referências <strong>cultura</strong>is e<br />
religiosas profundamente enraizadas. A<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r uma diversida<strong>de</strong><br />
geográfica e humana levaria, por um<br />
lado, a uma revisão do conhecimento<br />
divulgado por autores como Man<strong>de</strong>ville<br />
e, por outro, a um processo <strong>de</strong> transposição<br />
dos mitos cristãos para um novo<br />
espaço. O mito <strong>de</strong> Ofir, associado <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
Heródoto a uma terra/<strong>de</strong>serto <strong>de</strong> areias<br />
auríferas, é transferido geograficamente<br />
para o Atlântico. Cristóvão Colombo<br />
situa-o no Haiti: «esta ilha é Tharsis, é<br />
Cethia, é Ophir e Ophaz e Cipango, e nós<br />
lhe chamámos Espanhola». Aqui se <strong>de</strong>scobriu<br />
um mundo virgem, como que<br />
recém-nascido, on<strong>de</strong><br />
não havia indícios <strong>de</strong><br />
velhice. Toda a natureza<br />
se encontrava<br />
num estado <strong>de</strong> perpétua<br />
juventu<strong>de</strong>. Ofir<br />
e Cibola aparecem<br />
sucessivamente nos<br />
relatos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobridores,<br />
do Atlântico ao<br />
Pacífico. O mito <strong>de</strong><br />
Ofir está ligado ao<br />
Eldorado que mobilizou<br />
numerosos aventureiros que se<br />
sujeitavam aos maiores perigos, movidos<br />
pela obsessão do ouro. O seu rasto ficou<br />
nas crónicas e na toponímia. Sabendo que<br />
cristãos e hebreus acreditavam que o universo<br />
havia sido criado no equinócio da<br />
Primavera, não admira que os primeiros<br />
navegadores julgassem ter chegado ao<br />
paraíso perdido. Daí a sucessão <strong>de</strong> topónimos<br />
míticos. Era a transmutação <strong>de</strong> um<br />
mundo i<strong>de</strong>al, remoto no tempo, para um<br />
mundo remoto no espaço.<br />
A alusão directa ao paraíso é frequente<br />
na toponímia hispano-americana:<br />
Valle <strong>de</strong>l Paraiso, nome atribuído por<br />
Colombo – «e o vale gran<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estão<br />
povoações, e disse que outra coisa mais<br />
formosa não havia visto, por meio do<br />
qual vale vem aquele rio... pus nome ao<br />
vale, Vale do Paraíso» (Colombo, Diário <strong>de</strong>l<br />
primer viaje (1492). Na sua 3.ª viagem,<br />
Colombo chegou à foz do Orinoco e<br />
ficou <strong>de</strong>slumbrado com a imensidão <strong>de</strong><br />
água doce. Julgou ter avistado o Paraíso<br />
«porque o sítio é conforme à opinião<br />
<strong>de</strong>stes santos e sacros teólogos. E assim<br />
mesmo os sinais são muito conformes,<br />
que eu jamais li nem ouvi que tanta<br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água doce fosse assim<br />
a<strong>de</strong>ntro e vizinha com a salgada; e nisso<br />
ajuda assim mesmo a suavíssima temperança.<br />
E se dali do Paraíso não sai, parece<br />
ainda maior maravilha...» (Colombo,<br />
1498). Também Vespúcio ficou maravilhado<br />
com a diversida<strong>de</strong> e a beleza da<br />
paisagem a sul do equador, embora não<br />
fosse partidário dos sonhos obsessivos <strong>de</strong><br />
Colombo.<br />
Além do Eldorado, também o mito<br />
das Sete Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Cibola, frequente na<br />
literatura cristã, se<br />
foi corporizando na<br />
cartografia do <strong>de</strong>scobrimento<br />
do Novo<br />
Mundo. A sua localização<br />
foi-se <strong>de</strong>slocando<br />
cada vez mais<br />
para terra firme, a<br />
partir das Antilhas.<br />
Em 1520, corriam<br />
notícias <strong>de</strong> que na<br />
governação <strong>de</strong> Pedrárias Dávila (América<br />
Central) se havia encontrado uma ilha tão<br />
rica que se po<strong>de</strong>riam lastrar as naus com<br />
ouro. Os conquistadores acreditavam que<br />
as Sete Cida<strong>de</strong>s regurgitavam <strong>de</strong> ouro e<br />
outras riquezas. Esta crença reflecte a confluência<br />
dos mitos paradisíacos e <strong>de</strong> um<br />
imaginário marcado pela ambição e pela<br />
expectativa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> viável, algures,<br />
no espaço ainda <strong>de</strong>sconhecido. Em 1539,<br />
o fra<strong>de</strong> português Marcos <strong>de</strong> Niza, com<br />
autorização do vice-rei <strong>de</strong> Nova Espanha,<br />
percorreu o Oeste americano (actual<br />
Novo México) on<strong>de</strong> afirmou ter encontrado<br />
as Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cibola. No Islário<br />
General <strong>de</strong> Alonso <strong>de</strong> Santa Cruz (1541), as<br />
Sete Cida<strong>de</strong>s já são representadas a norte<br />
do México, último refúgio da lenda em<br />
finais do século XVI. No planisfério<br />
Anónimo – João Baptista Lavanha-Luís<br />
Teixeira (1597-1612) – está inscrito o<br />
topónimo Sete Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cibola, a
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 84<br />
85<br />
nor<strong>de</strong>ste da Califórnia, o que reflecte a sua<br />
busca incessante. Na ilha <strong>de</strong> S. Miguel<br />
(Açores) subsiste ainda o eco <strong>de</strong>ssa<br />
primeira i<strong>de</strong>ntificação na Lagoa das Sete<br />
Cida<strong>de</strong>s. Perduram ainda, nomeadamente<br />
na cartografia mexicana, topónimos que<br />
ilustram a emocionalida<strong>de</strong> dos viageiros:<br />
do <strong>de</strong>slumbramento – El Encanto, Islas Encantadas,<br />
La Encantada, El Edén, El Delirio,<br />
El I<strong>de</strong>al, Las Delicias, Esmeralda, Eldorado<br />
(em Nuevo León, San Luis <strong>de</strong> Potosí,<br />
Sinaloa), Paraíso (em Campeche, México,<br />
Oaxaca, Yucatán, Querétaro, Quintanaro,<br />
Guanajuato) – ao <strong>de</strong>sencanto – El<br />
Purgatorio, El Infierno, El Triste, El Perdido,<br />
El Olvido, El Imposible.<br />
No campo da evocação, as efeméri<strong>de</strong>s<br />
religiosas constituem o principal critério<br />
usado pelos primeiros navegadores.<br />
Cristóvão Colombo usou a nomenclatura<br />
cristã, logo na 1.ª viagem, no baptismo das<br />
terras que avistou: San Salvador, Navidad,<br />
Santa María <strong>de</strong> Guadalupe, Santa María <strong>de</strong><br />
Monserrate, Once Mil Virgens, San Juan<br />
Baptista... Assim também o Brasil, primeiro<br />
«Terra dos papagaios», seria baptizado Terra<br />
<strong>de</strong> Santa Cruz por Pedro Álvares Cabral,<br />
embora o nome actual, <strong>de</strong> origem mítica<br />
(Hy Bressail ou Brazil) ou profana, cedo se<br />
impusesse, mau grado o protesto <strong>de</strong> João<br />
<strong>de</strong> Barros (1555) e <strong>de</strong> Pêro <strong>de</strong> Magalhães<br />
Gândavo (1576). Os conquistadores espanhóis<br />
baptizaram inúmeras vilas e cida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> acordo com o calendário litúrgico:<br />
Pedro <strong>de</strong> Alvarado fundou um povoado,<br />
entre o Volcán <strong>de</strong> Agua e o Volcán <strong>de</strong> Fuego,<br />
a que chamou Santiago <strong>de</strong> los Caballeros <strong>de</strong><br />
Guatemala, esperando por uma segunda-<br />
-feira, 25 <strong>de</strong> Julho, para baptizar a vila com<br />
o nome do santo padroeiro <strong>de</strong> Espanha;<br />
Santa María <strong>de</strong> la Victoria (em Tabasco), Los<br />
Reyes (Lima, Peru), fundado no dia da<br />
Epifania,Triunfo <strong>de</strong> la Cruz (Honduras), ou<br />
Santa Cruz (na ilha <strong>de</strong> Cozumel), Santa Fe<br />
(<strong>de</strong> Bogotá), Gracias a Dios, Nombre <strong>de</strong><br />
Dios, Corpus Christi (no Rio da Prata e no<br />
México), ou Santo Domingo, ou ainda São<br />
Salvador da Baía, São Paulo, Santa Catarina,<br />
São Luís do Maranhão (Brasil). No campo<br />
da simbologia cristã, o calendário litúrgico<br />
foi o principal sistema <strong>de</strong> referência usado<br />
por navegadores ibéricos. Contudo, os<br />
espanhóis e, em menor grau, os portugueses<br />
não se limitaram à liturgia, adoptando<br />
também os dogmas como critério <strong>de</strong> baptismo<br />
– Trinidad, Triunfo <strong>de</strong> la Cruz,<br />
Espíritu Santo, San Salvador, Corpus Christi.<br />
Por vezes, o novo nome concilia diferentes<br />
critérios, como Villa Rica <strong>de</strong> la Veracruz, na<br />
costa oriental do México: «E logo or<strong>de</strong>námos<br />
<strong>de</strong> fazer e fundar e povoar uma vila,<br />
que se nomeou a Villa Rica <strong>de</strong> la Veracruz,<br />
porque chegámos quinta-feira da Ceia, e<br />
<strong>de</strong>sembarcámos sexta-feira Santa da Cruz, e<br />
rica por aquele cabaleiro que... se chegou a<br />
Cortés e lhe disse que mirasse as terras<br />
ricas...» (Oviedo).<br />
O viageiro europeu lia o novo à luz do<br />
familiar, pelo que o sistema classificativo<br />
traduz uma gramática percepcional que<br />
evoca a semelhança e a analogia da configuração<br />
externa visível. Os espanhóis foram<br />
prolixos na evocação do espaço ausente: à<br />
ilha <strong>de</strong> Haiti, ou Bohio, Colombo chamou<br />
La Española porque «A ilha é muito<br />
gran<strong>de</strong>... vi que é toda muito lavrada... este<br />
porto... ao cabo <strong>de</strong>le tem duas bocas <strong>de</strong> nós<br />
que trazem pouca água; em frente <strong>de</strong>le há<br />
umas vegas as mais formosas do mundo e<br />
quase semelhantes às terras <strong>de</strong> Castela,<br />
antes estas têm vantagem, pelo qual pus<br />
nome à dita ilha a ilha Espanhola»<br />
(Colombo, 1492); na primeira incursão<br />
pelo México, um grupo <strong>de</strong> portugueses da<br />
hoste <strong>de</strong> Cortés rebaptizou o povoado <strong>de</strong>
Ixtac-Imaxtitlán, próximo <strong>de</strong> Tlaxcala: «e<br />
quando vimos branquear muitas açoteias, e<br />
as casas do cacique e os cues... pareciam<br />
muito bem, como alguns povoados da<br />
nossa Espanha, e pusemos-lhe nome<br />
Castilblanco, porque disseram uns soldados<br />
portugueses que parecia a vila <strong>de</strong> Castelo<br />
Branco <strong>de</strong> Portugal, e assim se chama<br />
agora»; Venezuela tem origem nas semelhanças<br />
com Veneza: «quando os espanhóis<br />
<strong>de</strong>scobriram pela primeira vez esta Laguna,<br />
acharam gran<strong>de</strong>s povoações <strong>de</strong> índios formados<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> água por todas as suas<br />
margens; e daqui tomaram motivo para<br />
chamá-la Venezuela, pela semelhança que<br />
tinha a sua planta com a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Veneza;<br />
nome que se esten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>pois a toda a<br />
província...» (Díaz <strong>de</strong>l Castillo). É extensa a<br />
lista <strong>de</strong> topónimos evocativos <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong><br />
com espaços ausentes: Cartagena, Nueva<br />
España, Nueva Galicia, Nueva Vizcaya,<br />
Nuevo Reino <strong>de</strong> Granada, Nova Lusitânia.<br />
As fontes espanholas mencionam<br />
vários referenciais políticos, embora estes<br />
viessem a <strong>de</strong>saparecer a favor dos nomes<br />
pré-colombinos. Foi Colombo quem baptizou<br />
Cuba <strong>de</strong> Fernandina, logo na 1.ª<br />
viagem, segundo Oviedo, «em memória do<br />
sereníssimo e católico Rei Dom Fernando...».<br />
Desconhecendo a configuração<br />
real <strong>de</strong> Cuba, Colombo atribuiu a outra<br />
parte da ilha o nome <strong>de</strong> Juana, em homenagem<br />
à princesa filha <strong>de</strong> D. Fernando.<br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do critério adoptado,<br />
o tempo, o espaço, a herança <strong>cultura</strong>l<br />
e a linguagem condicionaram a leitura do<br />
mundo e a incorporação do Novo Mundo<br />
no horizonte intelectual da Europa. A diversida<strong>de</strong><br />
nas leituras justifica-se pelo modo<br />
como a tradição, a experiência e a expectativa<br />
se conjugaram na formação e nos interesses<br />
<strong>de</strong> cada protagonista. Com Fernando<br />
Gil, concluiríamos que o viageiro<br />
europeu <strong>de</strong> Quatrocentos e Quinhentos representava,<br />
na literatura ou na cartografia,<br />
«colocando tanto o que havia, quanto o que<br />
não havia, no mesmo plano da imaginação<br />
em que a expectativa prece<strong>de</strong> o conhecimento,<br />
a interpretação se sobrepõe à observação<br />
e a analogia neutraliza a diferença».<br />
Tropeço inesperado <strong>de</strong> um genovês,<br />
invenção <strong>de</strong> um cosmógrafo alemão a par-<br />
tir das cartas do veneziano Américo<br />
Vespúcio, a América metaforiza a conflitualida<strong>de</strong><br />
entre a tradição e a inovação, entre<br />
o Novo e o Velho Mundo. Mas representa<br />
também uma dolorosa caminhada <strong>de</strong><br />
viageiros que perseguiram e perseguem<br />
ainda, em ambas as margens do Atlântico,<br />
sonhos, fantasias e expectativas <strong>de</strong> riqueza,<br />
tão <strong>de</strong>sajustados ontem como hoje. A globalização,<br />
timidamente inaugurada há 500<br />
anos pelos Estados Ibéricos e por outros<br />
europeus que os seguiram, atenuou os<br />
contrastes <strong>cultura</strong>is pela imposição <strong>de</strong><br />
padrões <strong>de</strong> comportamento e <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />
<strong>de</strong> organização, mas não eliminou as profundas<br />
barreiras sociais responsáveis pelo<br />
<strong>de</strong>sencanto <strong>de</strong> tantos emigrantes. O mito<br />
do Eldorado, como metáfora do inatin-<br />
gível, perdura ainda, obsessivamente, na<br />
mente <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong> mulheres<br />
que partem para um <strong>de</strong>sconhecido<br />
longínquo em busca <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.<br />
Diversificaram-se as rotas <strong>de</strong> encanto-<strong>de</strong>sencanto,<br />
manteve-se o espírito aventureiro<br />
dos viageiros <strong>de</strong> outrora. A diferença resi<strong>de</strong><br />
na inversão da relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio: os<br />
«índios» naturais foram submetidos pela<br />
tecnologia dos que chegaram ruidosamente<br />
pelo mar, atordoando-os com o trovejar<br />
dos canhões e o relinchar <strong>de</strong>svairado<br />
dos cavalos; os emigrantes <strong>de</strong> hoje chegam<br />
silenciosamente, em pequenas vagas,<br />
disponíveis para todos os sacrifícios em<br />
troca <strong>de</strong> algum conforto material.<br />
PARA SABER MAIS:<br />
Bernal Díaz <strong>de</strong>l Castillo,<br />
Historia Verda<strong>de</strong>ra <strong>de</strong><br />
la Conquista <strong>de</strong> la<br />
Nueva España. (Ed. Lit. <strong>de</strong><br />
Carmelo Sáenz <strong>de</strong> Santa<br />
María). Madrid: CSIC, 1982<br />
Cristóbal Colón: Textos y<br />
Documentos<br />
Completos. Ed. <strong>de</strong><br />
Consuelo Varela. Madrid:<br />
Alianza Editorial, 1992<br />
Edmundo O’Gorman, The<br />
Invention of America.<br />
Bloomington: 1961<br />
Enrique <strong>de</strong> Gandía, História<br />
<strong>de</strong> los Mitos y<br />
Leyendas <strong>de</strong> la<br />
Conquista Americana.<br />
Buenos Aires: Centro Difusor<br />
<strong>de</strong>l Libro, 1946<br />
Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo, História<br />
General y Natural <strong>de</strong><br />
las Indias. (Ed. Lit. <strong>de</strong> Juan<br />
Pérez <strong>de</strong> Tu<strong>de</strong>la Bueso).<br />
Madrid: Ed. Atlas, 1992<br />
Juan Gil, Mitos y Utopías<br />
<strong>de</strong>l Descubrimiento. 3<br />
vols. Madrid: Alianza Editorial,<br />
1988<br />
Hernán Pérez <strong>de</strong> Oliva, História<br />
<strong>de</strong> la Invención <strong>de</strong> las<br />
Indias. Bogotá, 1965<br />
J. H. Elliott, El Viejo Mundo<br />
y el Nuevo (1492-1650).<br />
Madrid: Alianza Editorial, 1995<br />
Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda,<br />
Visão do Paraíso.<br />
Os motivos edênicos<br />
no <strong>de</strong>scobrimento e<br />
colonização do Brasil.<br />
São Paulo: Editora Brasiliense,<br />
1994
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 86<br />
No rasto <strong>de</strong> Cabral<br />
António Borges Coelho<br />
87<br />
OS NAVEGANTES<br />
Ao lermos os mais antigos relatos <strong>de</strong><br />
aportagem à costa brasileira, sentimo-nos<br />
como Noé a olhar da barca. As águas<br />
baixaram, a terra emerge do azul. Começamos<br />
a dar nome às coisas, aos cabos, aos<br />
rios, às plantas, aos animais. Ao nomeá-las,<br />
marcamo-las para a posse. A bordo da arca<br />
vão carneiros, galinhas. Mas outros animais<br />
estão já há milhares e milhões <strong>de</strong> anos no<br />
terreno.Animais e homens.<br />
Mediada pelos oradores sagrados, a Bíblia<br />
constituía a matriz europeia da história e da<br />
explicação do Mundo. Mas se Noé <strong>de</strong>sembarcou,<br />
lançou as sementes à terra, comeu as<br />
uvas, bebeu o vinho e ficou ébrio, estes<br />
primeiros nautas não chegam como sobreviventes<br />
do dilúvio nem só ao sabor das<br />
águas. Manobram navios veleiros, <strong>de</strong>terminam<br />
vitoriosamente o rumo com a bússola,<br />
a medição da altura do sol e das estrelas,<br />
lêem o não visível caminho nas folhas inventadas<br />
e em correcção das cartas <strong>de</strong> marear.<br />
Nos primeiros tempos, o Atlântico Sul<br />
é um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> água. A todo o momento,<br />
as vagas po<strong>de</strong>m abrir-se e engolir um<br />
navio, o <strong>de</strong> Vasco <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, sem nos ficar<br />
um grito, um sinal no murmurar das águas.<br />
Numa viagem <strong>de</strong> mês e meio, podiam não<br />
avistar uma vela. Mas a armada <strong>de</strong> Pedro<br />
Álvares Cabral, formada por 13 navios e<br />
1500 homens, era uma das gran<strong>de</strong>s vilas<br />
ou cida<strong>de</strong>s portuguesas que navegava no<br />
Mar Oceano.<br />
Em 1530, Pêro Lopes <strong>de</strong> Sousa encontrava<br />
uma caravela e um navio que regressavam<br />
das pescarias do Cabo Branco; em<br />
Cabo Ver<strong>de</strong>, uma nau e uma chalupa<br />
castelhanas que pretendiam alcançar o<br />
Maranhão; e, na costa, duas naus francesas<br />
na carga do pau-brasil e uma caravela portuguesa<br />
cujo <strong>de</strong>stino era Sofala, mas<br />
preferiu a caça aos escravos ameríndios. O<br />
Atlântico povoava-se <strong>de</strong> veleiros.<br />
E, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, os navegantes têm <strong>de</strong><br />
apelar às armas, às <strong>de</strong> metal e às da fé, para<br />
se precaverem contra os maus encontros. O<br />
perigo não estava só nas tempesta<strong>de</strong>s, no<br />
mau estado dos navios roídos pelo gusano,<br />
mas principalmente nos franceses<br />
huguenotes, nos ingleses, nos holan<strong>de</strong>ses e<br />
mouriscos. Jorge <strong>de</strong> Albuquerque Coelho<br />
embarcou em Olinda na Santo António, em<br />
1565. A nau abriu tanta água que davam à<br />
bomba dia e noite. Depois encontraram<br />
corsários franceses, primeiro junto das<br />
ilhas <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> e, mais tar<strong>de</strong>, ao largo<br />
dos Açores. Os corsários, além <strong>de</strong> franceses,<br />
incluíam ingleses, escoceses e alguns<br />
portugueses, um <strong>de</strong>les conhecido <strong>de</strong> Jorge<br />
<strong>de</strong> Albuquerque. Este resistiu ao assalto<br />
com as poucas armas que levava, mas o<br />
navio foi entregue pelo piloto, o mestre e<br />
os marinheiros. Maltratados, roubados e<br />
abandonados, sem leme e sem provisões,<br />
andaram três semanas à <strong>de</strong>riva. Durante<br />
<strong>de</strong>zassete dias não beberam água. Alguns<br />
morreram <strong>de</strong> fome. Outros pediram licença<br />
ao capitão para comerem os que morriam.<br />
Jorge <strong>de</strong> Albuquerque Coelho respon<strong>de</strong>u<br />
com os olhos rasos <strong>de</strong> água: enquanto fosse<br />
vivo, tal não havia <strong>de</strong> consentir e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
morto, que o comessem a ele primeiro.<br />
Os companheiros <strong>de</strong> Pedro Álvares<br />
Cabral e dos outros capitães que aportaram<br />
ao Brasil eram filhos <strong>de</strong> camponeses,<br />
capitães, pilotos, mestres, calafates, carpinteiros,<br />
tanoeiros, ferreiros, marinheiros,<br />
fidalgos, fra<strong>de</strong>s, mercadores, aventureiros,<br />
<strong>de</strong>gredados, escravos e alguns línguas, como<br />
o piloto Pêro Anes.<br />
Com pilotos, mestres e alguns capitães<br />
capazes <strong>de</strong> manobrar o quadrante e o<br />
astrolábio, e tantas vezes <strong>de</strong> sonda na mão
ou dia e noite por baixo da coberta a<br />
bombear a água, estes navegantes obravam<br />
por «experiência verda<strong>de</strong>ira». Pêro Lopes<br />
<strong>de</strong> Sousa fez construir em terra dois<br />
bergantins <strong>de</strong> 15 bancos e na nau uma jangada<br />
em que lançou ferro e a forja para<br />
fazer os pregos necessários ao batel que a<br />
bordo construía. Jorge <strong>de</strong> Albuquerque<br />
Coelho empenhava-se no fabrico dos pregos<br />
que pregava ainda quentes nas tábuas<br />
do resto da nau Santo António.<br />
As relíquias e os santos esculpidos e<br />
pintados na proa das naus esconjuravam os<br />
<strong>de</strong>mónios e protegiam os nautas contra<br />
todos os perigos. Mas não faltaram prisioneiros,<br />
náufragos, afogados, <strong>de</strong>spedaçados<br />
pelas balas e as espadas ou mortos <strong>de</strong><br />
pasmo. Empurrados pela pressa da morte,<br />
se faltava padre, confessavam-se uns aos<br />
outros em altas vozes: Não matarás, matei!<br />
Não roubarás, roubei! Não <strong>de</strong>sejarás a mulher<br />
do próximo, <strong>de</strong>sejei e tomei!<br />
Estes navegadores portugueses têm as<br />
pernas arqueadas <strong>de</strong> tanto sofrer nas tábuas<br />
os baldões das vagas.Têm olhos <strong>de</strong> albatroz.<br />
Vêem até ao mais fundo do horizonte.<br />
Nas caravelas e nas naus viajavam também<br />
passageiros invisíveis: os armadores,<br />
os mercadores que fretavam os navios, os<br />
seguradores, os contratadores do pau-<br />
-brasil, do trato dos escravos, o próprio rei<br />
a cuja lei mais ou menos obe<strong>de</strong>cem,<br />
mesmo que a ban<strong>de</strong>ira da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
Cristo, e não a do rei, on<strong>de</strong>ie na primeira<br />
missa celebrada no Brasil.<br />
DA TERRA E DOS HOMENS<br />
Os primeiros olhares exprimem espanto,<br />
<strong>de</strong>sconfiança, cálculos do proveito.<br />
Admiram a terra em vários tons. É <strong>de</strong><br />
muito bons ares, frios e temperados como<br />
os <strong>de</strong> Entre Douro e Minho. É a mais<br />
aprazível que jamais cui<strong>de</strong>i <strong>de</strong> ver: não<br />
havia homem que se fartasse <strong>de</strong> olhar os<br />
campos e a formosura <strong>de</strong>les. Os montes<br />
parecem formosos jardins e hortas, e nunca<br />
eu vi tapeçaria <strong>de</strong> Flandres tão formosa.<br />
Formosa, formosa. É algum tanto<br />
melancólica, regada <strong>de</strong> muitas águas, <strong>de</strong> rios<br />
caudais e do céu; é cheia <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s arvoredos<br />
que todo o ano são ver<strong>de</strong>s, e montuosa,<br />
principalmente nas fraldas do mar.<br />
Quando os ameríndios saem da sombra<br />
das árvores e caminham pela praia <strong>de</strong><br />
Porto Seguro, as imagens vivas trazem à<br />
memória a nu<strong>de</strong>z bíblica e imaginária <strong>de</strong><br />
Adão e Eva, cercados pelas bonda<strong>de</strong>s do<br />
paraíso terreal. Os portugueses, vestidos,<br />
sentem-se nus. Olham sem vergonha as<br />
vergonhas. É um olhar <strong>de</strong> homens. Percorre<br />
<strong>de</strong>vagar a nu<strong>de</strong>z das ameríndias que não<br />
temem comparação com as mulheres da<br />
rua Nova <strong>de</strong> Lisboa e repara que os homens<br />
silvestres não são circuncidados, ao contrário<br />
dos hebreus.<br />
A inocência <strong>de</strong>sta gente é tal, que a <strong>de</strong><br />
Adão, em vergonha, não seria maior. Um<br />
ameríndio nu, coberto <strong>de</strong> penas, lembra o<br />
corpo trespassado <strong>de</strong> setas <strong>de</strong> São Sebastião.<br />
Portugueses e ameríndios dançam ao som<br />
do gaiteiro <strong>de</strong> Diogo Dias e dum tamboril,<br />
<strong>de</strong> tal maneira confiados «que são muito<br />
mais nossos amigos que nós seus». Mais<br />
amigos porque os europeus já fazem os<br />
seus cálculos: para os convertermos à fé<br />
cristã e, portanto, para os usarmos ao nosso<br />
serviço, não falta mais do que «enten<strong>de</strong>rem-nos»<br />
e não enten<strong>de</strong>rmo-nos.<br />
Trinta anos volvidos, Pêro Lopes <strong>de</strong><br />
Sousa preserva a i<strong>de</strong>ia da inocência e da<br />
beleza dos ameríndios. Abraçam os portugueses,<br />
choram com as suas <strong>de</strong>sventuras<br />
e ficam tão contentes <strong>de</strong> os verem que<br />
«queriam sair fora <strong>de</strong> seu siso».<br />
No primeiro diálogo entre Pedro<br />
Álvares Cabral e os ameríndios, os<br />
europeus usam logo o alfabeto do ouro e<br />
da prata. Não obtêm respostas satisfatórias.<br />
«Até agora não po<strong>de</strong>mos saber<br />
que haja ouro, nem prata, nem nenhuma<br />
cousa <strong>de</strong> metal, nem <strong>de</strong> ferro; nem lho<br />
vimos.» Ainda se mostraram esperançados<br />
quando os índios, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> admirarem o<br />
colar <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> Pedro Álvares, acenaram<br />
para terra. Mas Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha<br />
<strong>de</strong>sconfia que é tomar os <strong>de</strong>sejos pela<br />
realida<strong>de</strong>. «Isto tomávamos nós por o<br />
<strong>de</strong>sejarmos; mas se ele queria dizer que<br />
levaria as contas e mais o colar, isto não<br />
queríamos nós enten<strong>de</strong>r, porque não lhos<br />
havíamos <strong>de</strong> dar.»<br />
Nas primeiras viagens, estão já presentes<br />
as personagens do futuro: a massa<br />
dos ameríndios, senhores da terra; os
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 88<br />
89<br />
pequenos <strong>de</strong>stacamentos portugueses e<br />
europeus; e anónimos, nas equipagens, os<br />
africanos. Não têm nome mas estão lá.<br />
Até ao final do século XVI, o confronto<br />
principal será entre as comunida<strong>de</strong>s ameríndias<br />
e os europeus que chegavam nos seus<br />
veleiros em busca do pau-brasil e dos<br />
escravos.<br />
Nos primeiros tempos, a atracção<br />
maior provinha das comunida<strong>de</strong>s ameríndias.<br />
Pedro Álvares Cabral <strong>de</strong>ixou na terra<br />
dois <strong>de</strong>gredados, a que se juntaram dois<br />
grumetes fugitivos. O mesmo aconteceu<br />
na armada <strong>de</strong> Martim Afonso <strong>de</strong> Sousa.<br />
João Ramalho, o povoador <strong>de</strong> Piratininga,<br />
vivia ro<strong>de</strong>ado das suas mulheres índias, filhos<br />
e netos. No Rio <strong>de</strong> Janeiro, alguns<br />
franceses da França Antárctica adoptaram o<br />
viver dos índios, incluindo nalguns casos a<br />
prática da antropofagia. Os clérigos concubinavam.<br />
O sertão estava cheio <strong>de</strong> filhos <strong>de</strong><br />
cristãos, gran<strong>de</strong>s e pequenos, machos e<br />
fêmeas que viviam e se criavam nos costumes<br />
do gentio, escrevia o padre Manuel<br />
da Nóbrega.<br />
A partir <strong>de</strong> meados do século, quando<br />
começa a <strong>de</strong>senvolver-se a nova socieda<strong>de</strong>, a<br />
visão europeia dos ameríndios sofre conotações<br />
extremamente negativas, em boa<br />
parte <strong>de</strong>vidas à prática da antropofagia, à<br />
poligamia e à recusa dos mol<strong>de</strong>s europeus.<br />
Manuel da Nóbrega chama-lhes «negros»,<br />
embora não seja essa a cor da sua pele.<br />
Mesmo cristianizados, não per<strong>de</strong>m <strong>de</strong> todo<br />
a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negros. A princípio, o padre<br />
ainda ridiculariza os seus irmãos <strong>de</strong><br />
Coimbra que se escandalizavam com a<br />
nu<strong>de</strong>z das ameríndias: «por falta <strong>de</strong> algumas<br />
ceroulas não <strong>de</strong>ixa uma alma <strong>de</strong> ser cristã e<br />
conhecer a seu Criador e Senhor e dar-lhe<br />
glória». Mas, mais tar<strong>de</strong>, levanta dúvidas aos<br />
letrados do Colégio <strong>de</strong> Coimbra: «parece<br />
que andar nu é contra lei <strong>de</strong> natura e quem<br />
a não guarda peca mortalmente». No Diálogo<br />
sobre a Conversão do Gentio, o irmão Gonçalo<br />
Alvarez afirma que algumas pessoas avisadas<br />
levantavam a questão <strong>de</strong> saber se os ameríndios<br />
eram nossos próximos, duvidando<br />
mesmo se seriam humanos. Respon<strong>de</strong>-lhe o<br />
irmão Mateus Nogueira, ferreiro pelo ofício:<br />
todo o homem é uma mesma natureza<br />
e po<strong>de</strong> conhecer Deus e salvar a sua alma.<br />
O elogio da inocência e a visão negativa<br />
prosseguem nos textos jesuíticos. Num<br />
<strong>de</strong>sabafo, o padre José Anchieta <strong>de</strong>clara os<br />
ameríndios mais próximos da natureza dos<br />
animais selvagens que da dos homens. No<br />
entanto, o padre Fernão Cardim, que confessava<br />
índios e índias por meio <strong>de</strong> intérprete,<br />
consi<strong>de</strong>rava-os candidíssimos e com<br />
menos pecados do que os portugueses.<br />
Esta visão contraditória tem a ver com a<br />
maior ou menor resistência dos ameríndios<br />
à integração na nova socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> os<br />
jesuítas pretendiam <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />
dominante. «A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro chegará ao<br />
mundo austral», escreve o autor anónimo<br />
do poema «De rebus gestis Mendi <strong>de</strong> Saa».<br />
Evi<strong>de</strong>ntemente, «quando os povos do Brasil<br />
observarem as tuas leis».<br />
À MANEIRA DE HARPA<br />
O rosto da terra aparece figurado logo<br />
em 1502 no mapa português chamado <strong>de</strong><br />
Cantino que sobre ela pinta papagaios vermelhos.<br />
Outros mapas vão <strong>de</strong>svendando a<br />
terra, os índios e o seu trabalho na recolha<br />
do pau-brasil. Por volta <strong>de</strong> 1506, Duarte<br />
Pacheco Pereira me<strong>de</strong> a costa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a angra<br />
<strong>de</strong> S. Roque, a 3 graus e 30 minutos a sul do<br />
equador, até à ilha <strong>de</strong> Santo Amaro em 28<br />
graus e 30 minutos. Este será o cenário fundamental<br />
da nova socieda<strong>de</strong> no século XVI.<br />
E anota já o cabo <strong>de</strong> Santo Agostinho, o rio<br />
<strong>de</strong> S. Francisco, a aguada <strong>de</strong> São Miguel, o<br />
Porto Real, a Angra <strong>de</strong> Todos-os-Santos,<br />
Porto Seguro, o rio <strong>de</strong> Santa Luzia, a ilha <strong>de</strong><br />
Santa Bárbara, o rio dos Reféns, a ilha <strong>de</strong><br />
Santa Clara, o Cabo Frio, a ilha <strong>de</strong> Fernão e a<br />
ilha <strong>de</strong> Santo Amaro. Esta notação da costa<br />
brasileira liga-se à notação da carreira da<br />
Índia: ilha da Ascensão, Angra Formosa e a<br />
índica ilha <strong>de</strong> São Lourenço.<br />
Numa cartografia <strong>de</strong> palavras, escrita<br />
pelo ano <strong>de</strong> 1575, o humanista Pêro <strong>de</strong><br />
Magalhães Gândavo <strong>de</strong>screve <strong>de</strong>ste modo a<br />
Província <strong>de</strong> Santa Cruz: «Está situada<br />
naquela gran<strong>de</strong> América, uma das quatro<br />
partes do Mundo. Dista o seu princípio dois<br />
graus da Equinocial para a banda do Sul e<br />
daí se vai esten<strong>de</strong>ndo para o mesmo sul até<br />
quarenta e cinco graus. Está formada à<br />
maneira <strong>de</strong> uma harpa. Pela banda do Norte<br />
corre do Oriente a Oci<strong>de</strong>nte e está olhando
a Equinocial. Pela do Sul confina com outras<br />
províncias da mesma América, povoadas e<br />
possuídas <strong>de</strong> povo gentílico com que ainda<br />
não temos comunicação. Pela do Oriente<br />
com o Mar Oceano Áfrico e olha direitamente<br />
os reinos <strong>de</strong> Congo e Angola até o<br />
Cabo da Boa Esperança que é o seu opósito.<br />
E pela do Oci<strong>de</strong>nte confina com as altíssimas<br />
terras dos An<strong>de</strong>s e fraldas do Peru.»<br />
O mar assegurava a unida<strong>de</strong> do território.<br />
O Oceano e os rios eram as estradas<br />
naturais, sulcadas no final do século por<br />
alguns milhares <strong>de</strong> embarcações, sem contar<br />
os navios gran<strong>de</strong>s e mais pequenos que<br />
atravessavam o Mar Oceano. Todas as fazendas<br />
se serviam por mar. Não havia engenho<br />
que não possuísse quatro ou mais embarcações.<br />
Em 1587, só na Baía, podiam juntar-<br />
-se 1400 barcos, assim distribuídos: 100, <strong>de</strong><br />
45 para 70 palmos <strong>de</strong> quilha, muito fortes,<br />
que podiam levar 2 falcões por proa e 2<br />
berços por banda; 800, <strong>de</strong> 35 a 44 palmos<br />
on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> jogar, no mínimo, 1 berço por<br />
proa; 300 barcos, <strong>de</strong> 34 palmos para baixo,<br />
e 200 canoas bem rumadas.<br />
No final do século, a nova socieda<strong>de</strong><br />
ainda ficava presa ao litoral e ao território<br />
ligado pelas estradas fluviais. A cunha mais<br />
avançada em direcção ao interior era a vila<br />
<strong>de</strong> Piratininga.<br />
Devido às condições naturais e à sua<br />
posição estratégica que lhe permitia um<br />
acesso mais rápido a Lisboa, Pernambuco<br />
constituía zona <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
seguido pela Baía on<strong>de</strong> se fixava o Governo-<br />
-Geral. A capitania <strong>de</strong> S. Vicente e mesmo a<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro queixavam-se <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> escoamento da sua produção por<br />
os navios do reino aportarem com menos<br />
regularida<strong>de</strong>. Ao visitar a vila <strong>de</strong> Piratininga,<br />
Fernão Cardim registou que os moradores<br />
se vestiam <strong>de</strong> burel e pelotes pardos e azuis,<br />
<strong>de</strong> pertinas compridas, como antigamente,<br />
o que contrastava com as sedas, os damascos<br />
e os luxos das mulheres <strong>de</strong> Olinda.<br />
Em 1590, a nova socieda<strong>de</strong> estendia-se<br />
da Paraíba a Santo Amaro e po<strong>de</strong>ria contar,<br />
segundo um estudo recente, com 101 705<br />
habitantes, dos quais 30 855 eram portugueses,<br />
28 600 eram índios escravos ou<br />
vivendo nos al<strong>de</strong>amentos dos jesuítas, e<br />
42 250 africanos. As capitanias mais<br />
povoadas eram a <strong>de</strong> Pernambuco com<br />
31 000 habitantes, a da Baía com 29 850, e<br />
a do Espírito Santo com 11 900. O Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, com 5240 moradores, distanciava-se<br />
<strong>de</strong> São Vicente/Santo Amaro com 10 100, e<br />
do Espírito Santo, com 7595.<br />
Os números indiciam uma baixa integração<br />
dos ameríndios na nova socieda<strong>de</strong>,<br />
embora no total dos portugueses se contassem<br />
muitos mestiços <strong>de</strong> mães ameríndias<br />
e africanas. A maior parte dos habitantes<br />
<strong>de</strong> Piratininga eram filhos <strong>de</strong> índias e<br />
<strong>de</strong> portugueses.<br />
Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa escreveu que a<br />
vila <strong>de</strong> Olinda e o seu termo po<strong>de</strong>riam pôr<br />
em campo mais <strong>de</strong> 3000 homens <strong>de</strong> peleja,<br />
entre os quais 400 <strong>de</strong> cavalo, a que juntariam<br />
4000 a 5000 escravos <strong>de</strong> Guiné e<br />
muitos gentios da terra. Pelo seu lado, em<br />
1583, Fernão Cardim atribuiu à Baía, certamente<br />
à cida<strong>de</strong> e ao termo, 3000 vizinhos<br />
portugueses, 8000 índios cristãos e 3000 a<br />
4000 escravos da Guiné. Pernambuco li<strong>de</strong>rava<br />
a produção açucareira, a Baía constituía<br />
o centro político do território e, porventura,<br />
a principal praça mercantil e financeira,<br />
como sugerem os valores das letras <strong>de</strong><br />
câmbio do mercador Miguel Dias Santiago.<br />
As letras da Baía sobre Lisboa, entre 1596 e<br />
1599, elevavam-se a 7 925 398 reais, enquanto<br />
as <strong>de</strong> Pernambuco sobre Lisboa,<br />
entre 1599 e 1601, se ficavam pelos<br />
3 272 099. Por outro lado, as letras da Baía<br />
sobre Pernambuco, ainda nos anos <strong>de</strong> 1596<br />
a 1599, somaram 1 055 440 reais, enquanto<br />
as <strong>de</strong> Pernambuco sobre a Baía, entre os anos<br />
<strong>de</strong> 1599 e 1601, se ficaram pelos 201 500.<br />
O mercador movimentou ainda, entre 1599<br />
e 1601, 434 760 reais <strong>de</strong> Pernambuco sobre<br />
a praça do Porto e 55 000 reais <strong>de</strong> Pernambuco<br />
sobre Viana.<br />
Demograficamente, que outra cida<strong>de</strong>,<br />
com excepção <strong>de</strong> Lisboa, e do ponto <strong>de</strong><br />
vista financeiro, com excepção <strong>de</strong> Lisboa e<br />
Porto, se po<strong>de</strong>ria ufanar do peso humano e<br />
<strong>de</strong> fortunas <strong>de</strong> 10 000 a 80 000 cruzados,<br />
incluídos 100 a 300 escravos, como alguns<br />
moradores <strong>de</strong> Olinda e da Baía? Gândavo lá<br />
tinha as suas razões quando incitava os portugueses<br />
a <strong>de</strong>mandarem o Brasil: Deus<br />
tinha <strong>de</strong> há muito reservada esta terra à<br />
Cristanda<strong>de</strong>.<br />
PARA SABER MAIS:<br />
Frédéric Mauro, Le Portugal,<br />
le Brésil et l’Atlantique<br />
(1570-1670), Paris,<br />
Fundação Calouste<br />
Gulbenkian, 1983<br />
Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa,<br />
Notícia do Brasil, Lisboa,<br />
Publicações Alfa, 1989<br />
Jorge Couto, A Construção<br />
do Brasil, Lisboa,<br />
Edições Cosmos, 1995<br />
Pêro <strong>de</strong> Magalhães Gândavo,<br />
História da Província<br />
Santa Cruz a que<br />
vulgarmente<br />
chamamos Brasil,<br />
ed., fac-similada, Lisboa,<br />
Biblioteca Nacional, 1984<br />
Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha,<br />
Carta a El-Rei<br />
D. Manuel,<br />
ed. <strong>de</strong> M. Viegas Guerreiro<br />
e Eduardo Nunes, Lisboa,<br />
Imprensa Nacional-Casa<br />
da Moeda, 1974
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 90<br />
Carta do Novo<br />
Mundo<br />
Ao serviço <strong>de</strong> D. Manuel, Américo Vespúcio realizou<br />
uma viagem ao litoral sul-americano, em 1501, tendo<br />
<strong>de</strong>sembarcado em Terra Firme, algures entre a Vene-<br />
zuela e o Brasil, e permanecido 27 dias com os índios<br />
do Brasil. Ressaltam, da carta que escreveu ao chegar a<br />
Lisboa, o <strong>de</strong>slumbramento pela Natureza edénica e a<br />
surpresa por tanta diversida<strong>de</strong>.<br />
91<br />
Américo Vespúcio escreve, <strong>de</strong> Lisboa, a Lorenzo di Pierfrancesco <strong>de</strong>’ Medici, em Florença
[...] Esta tierra es muy amena y llena<br />
<strong>de</strong> infinitos árboles ver<strong>de</strong>s y muy gran<strong>de</strong>s,<br />
y nunca pier<strong>de</strong>n la hoja, y todos tienen<br />
olor suavísimo y aromático, y producen<br />
infinitisimas frutas, y muchas <strong>de</strong> ellas<br />
buenas al gusto y salutíferas al cuerpo. Los<br />
campos producen mucha hierba, flores y<br />
raíces muy suaves y buenas, que alguna<br />
vez me maravillaba <strong>de</strong>l suave olor <strong>de</strong> las<br />
hierbas y flores, y <strong>de</strong>l sabor <strong>de</strong> estas frutas<br />
y raíces, tanto que entre mí pensaba estar<br />
cerca <strong>de</strong>l Paraíso Terrenal: entre todos estos<br />
elementos hubiera creído estar cerca<br />
<strong>de</strong> él. ¿Qué diremos <strong>de</strong> la cantidad <strong>de</strong> los<br />
pájaros y <strong>de</strong> sus plumajes y colores y cantos,<br />
y cuantas especies y <strong>de</strong> cuanta hermosura<br />
(no quiero alargarme en esto porque<br />
dudo ser creído)? ¿Quién podría enumerar<br />
la infinita cosa <strong>de</strong> los animales silvestres,<br />
tanta copia <strong>de</strong> leones, onzas, gatos,<br />
no ya <strong>de</strong> España, sino <strong>de</strong> las antípodas,<br />
tantos lobos, cervales, babuinos y macacos<br />
<strong>de</strong> tantas suertes y muchas sierpes gran<strong>de</strong>s?<br />
Y vimos tantos otros animales, que<br />
creo que tantas suertes no entrasen en el<br />
arca <strong>de</strong> Noé, y tantos jabalís y corzos y<br />
ciervos y gamos y liebres y conejos; y animales<br />
domésticos no vimos ninguno.<br />
Volvamos a los animales racionales.<br />
Encontramos toda la tierra habitada por<br />
gente toda <strong>de</strong>snuda, así los hombres como<br />
las mujeres, sin cubrirse vergüenza ninguna.<br />
Son <strong>de</strong> cuerpo bien dispuesto y proporcionados,<br />
<strong>de</strong> colores blancos y <strong>de</strong> cabellos<br />
largos y negros, y <strong>de</strong> poca barba o<br />
ninguna. Mucho trabajé para conocer su<br />
vida y costumbres, porque 27 días comí y<br />
dormí entre ellos, y lo que conocí <strong>de</strong> ellos<br />
es lo que sigue enseguida.<br />
No tienen ni ley ni fe ninguna, viven<br />
<strong>de</strong> acuerdo a la naturaleza, no conocen la<br />
inmortalidad <strong>de</strong>l alma. No tienen entre<br />
ellos bienes propios, porque todo es común;<br />
no tienen límites <strong>de</strong> reinos ni <strong>de</strong><br />
provincia, no tienen rey ni obe<strong>de</strong>cen a nadie:<br />
cada uno es señor <strong>de</strong> sí mismo. No<br />
administran la justicia, la que no les es necesaria,<br />
porque no reina entre ellos codicia.<br />
Habitan en común en casas hechas a la<br />
manera <strong>de</strong> cabañas muy gran<strong>de</strong>s, y para<br />
gentes que no tienen hierro ni otro metal<br />
ninguno, se pue<strong>de</strong>n consi<strong>de</strong>rar sus caba-<br />
ñas, o bien sus casas, maravillosas, porque<br />
he visto casas <strong>de</strong> 220 pasos <strong>de</strong> largo y 30<br />
<strong>de</strong> ancho, y construidas con arte, y en una<br />
<strong>de</strong> estas casas hay 500 o 600 almas. Duermen<br />
en re<strong>de</strong>s tejidas <strong>de</strong> algodón, colgadas<br />
en el aire sin otra cobertura; comen sentados<br />
en el suelo: sus viandas son muchas<br />
raíces y hierbas y frutas muy buenas, infinito<br />
pescado, gran copia <strong>de</strong> mariscos, erizos<br />
y cangrejos <strong>de</strong> mar, ostras, langostas,<br />
camarones, y muchas otras cosas que produce<br />
el mar. La carne que comen, máxime<br />
la común, es carne humana, <strong>de</strong>l modo que<br />
se dirá. Cuando pue<strong>de</strong>n tener otra carne<br />
<strong>de</strong> animales o <strong>de</strong> aves, se la comen, pero<br />
toman pocos, porque no tienen perros, y<br />
la tierra está muy poblada <strong>de</strong> bosques, los<br />
cuales están llenos <strong>de</strong> fieras crueles, y por<br />
eso no acostumbram internarse en los<br />
bosques, si no es con mucha gente.<br />
[...] En cuanto a la disposición <strong>de</strong> la<br />
tierra, digo que es tierra muy amena y<br />
templada y sana, porque durante el tiempo<br />
que anduvimos por ella, que fueron 10<br />
meses, no sólo no murió ninguno <strong>de</strong> nosotros,<br />
sino que pocos se enfermaron: como<br />
he dicho, ellos viven mucho tiempo, y<br />
no sienten enfermedad <strong>de</strong> peste ni <strong>de</strong> corrupción<br />
<strong>de</strong>l aire, excepto <strong>de</strong> muerte natural<br />
o causada por su mano o sofocamiento;<br />
y en conclusión, los médicos tendrían<br />
un mal pasar en tal lugar.<br />
Encontramos infinito brasil y muy<br />
bueno para cargar cuantos navíos están<br />
hoy en el mar, y sin costo alguno, y lo<br />
mismo <strong>de</strong> cañafístula. Vimos cristal e infinitos<br />
sabores y olores <strong>de</strong> especiería y droguería,<br />
pero <strong>de</strong>sconocidas. Los hombres<br />
<strong>de</strong>l país dicen sobre el oro y otros metales<br />
y droguerías muchos milagros, pero yo<br />
soy <strong>de</strong> aquellos <strong>de</strong> Santo Tomás: el tiempo<br />
hará todo.<br />
[...]<br />
Lisboa, 1502<br />
Amerigo Vespucci, Cartas <strong>de</strong><br />
viaje, Madrid, Alianza Editorial,<br />
1986
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 92<br />
93<br />
Desassossego<br />
<strong>de</strong> uma mãe<br />
ausente<br />
Os emigrantes ibéricos na América mantinham com<br />
os amigos e familiares ausentes uma relação afectiva<br />
reafirmada nas cartas que circulavam para cá e para<br />
lá. Para nós, leitores, <strong>de</strong>svendar o mundo dos afectos e<br />
das inquietações <strong>de</strong>sses homens e <strong>de</strong>ssas mulheres que<br />
partiram movidos pela fortuna, mas <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong><br />
reagrupar a família, é uma viagem ao fundo das<br />
emoções. Eis uma carta <strong>de</strong> uma mãe espanhola,<br />
emigrante no Panamá, para a filha, recém-casada<br />
com um livreiro em Valladolid.
Panamá, 9 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1578<br />
Amados hijos:<br />
Vuestras cartas he recibido, las unas<br />
con mi hermano Hernando Pecero y las<br />
otras con Juan Jiménez <strong>de</strong>l Río, el cual está<br />
al presente en esta ciudad y os escribe. En<br />
lo que, hija, me enviáis a <strong>de</strong>cir habéis pasado<br />
y pasáis mucho trabajo, yo estoy informada<br />
que será así, y duéleme tanto y hame<br />
dolido que no sé cómo lo signifique. Para<br />
eso nacimos en este mundo, para pasar trabajo,<br />
y que si yo significase los que he pasado,<br />
son hartos, pero con ser las gentes<br />
buenas y virtuosas Dios se acuerda <strong>de</strong> ellas<br />
a las mayores necesida<strong>de</strong>s. Pésame que<br />
vuestro tío haya usado tantas cruelda<strong>de</strong>s<br />
con vos; débelo haber hecho no haber vos<br />
sabido llevarle la voluntad. Como quiera<br />
que sea, es vuestra sangre, y habéis <strong>de</strong> sufrirle<br />
como vuestro padre, pues no conociestes<br />
otro. A las buenas y a los buenos da<br />
Dios trabajos en este mundo, y se acuerda<br />
<strong>de</strong> ellos. Y así, hija mía, os ruego que no<br />
tengáis odio con vuestro tío, sino que lo<br />
obe<strong>de</strong>zcáis como a padre, y le tengáis como<br />
a señor, si él no hiciere lo que <strong>de</strong>be o<br />
no lo ha hecho. Es menester que perdáis<br />
ese rencor, y no os acordéis <strong>de</strong> nada, sino<br />
enten<strong>de</strong>r que Dios os hace mucha merced,<br />
y que no naciesteis en su hucia [?], sino en<br />
la <strong>de</strong> Dios, que es padre <strong>de</strong> todos.<br />
Escribísme sois casada con un librero,<br />
hombre <strong>de</strong> bien, y que estáis pobre y pasáis<br />
trabajos. De que vos tengáis buen marido<br />
me da mucho contento. Que no sea rico, si<br />
es virtuoso y hombre <strong>de</strong> bien y buen cristiano,<br />
Dios le hará la hacienda, mayormente<br />
que, pues Dios me ha dado vida hasta saber<br />
<strong>de</strong> vosotros, espero en Su Divina Majestad<br />
me la dará hasta veros muy bien remediados.Y<br />
así es mi <strong>de</strong>terminación que, vista ésta,<br />
procuréis que vuestro marido saque licencia<br />
<strong>de</strong>l Consejo Real para po<strong>de</strong>r venir a<br />
estas partes y al Perú, y, sacada, vendáis las<br />
hereda<strong>de</strong>s que vuestro tío os dio, y os vengáis<br />
hasta Sevilla, don<strong>de</strong> es mi voluntad <strong>de</strong><br />
que estéis hasta que tengáis or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> lo<br />
que habéis <strong>de</strong> hacer.Y para esto os escribirá<br />
mi marido y vuestro señor, y os enviará alguna<br />
plata. Lo que os enviare tendréis en<br />
mucho, y sabréislo gobernar asentándolo a<br />
las espaldas <strong>de</strong> vuestra carta <strong>de</strong> dote, y escribiendo<br />
luego el recibo <strong>de</strong> ello.Y aunque<br />
sea poco, tenedlo en mucho, porque quien<br />
os ha <strong>de</strong> dar siempre y remediaros como a<br />
hijos, es menester que vaya sabiendo vuestro<br />
marido lo que vale el real. Y venidos<br />
acá, Dios queriendo, os remediaremos y<br />
daremos or<strong>de</strong>n en vuestras vidas.Y para esto<br />
escribe el señor Juan <strong>de</strong>l Río una memoria<br />
cómo os habéis <strong>de</strong> guiar, para que no<br />
erréis en lo que os conviene y cumple para<br />
vuestro buen aviamiento. Dios lo encamine<br />
como pue<strong>de</strong> y os me <strong>de</strong>je ver con bien, y<br />
veros y remediaros y <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> mi ala.<br />
Esta sirva para vos y para vuestro marido.Yo<br />
os ruego, hija, que, pues habéis sido<br />
mujer honrada, y tales nuevas tengo <strong>de</strong><br />
vos, que tengáis siempre <strong>de</strong>lante <strong>de</strong> los<br />
ojos esta honra, queriendo siempre bien a<br />
vuestro marido, ausente y presente, y estimándole<br />
en mucho. Y a él digo por ésta<br />
que le tengo por hijo y me huelgo esté casado<br />
con vos, y le ruego os trate bien y<br />
honradamente, apartándose <strong>de</strong> malas compañías,<br />
y procurando <strong>de</strong> hacer como hombre<br />
honrado.Y haciéndolo así, lo tendré en<br />
mucho y lo estimaré, aunque sea más pobre<br />
que pue<strong>de</strong> ser, porque las virtu<strong>de</strong>s sobrepujan<br />
a las riquezas.<br />
Así que, hijos, no os tengo más que os<br />
avisar, sino que, gloria a Nuestro Señor, tengo<br />
salud, y vuestro señor padre también la<br />
tiene, y vuestros hermanos y todos se os<br />
encomiendan y ruegan a Dios os tenga <strong>de</strong><br />
su mano y os me <strong>de</strong>je ver con bien. Decirme<br />
tenéis un hijo y nieto mío, y no me enviáis<br />
a <strong>de</strong>cir cómo se llama ni qué edad tiene.<br />
Avisarme eis <strong>de</strong> todo y escribiéndole a<br />
vuestro señor padre, y respondiéndole. Y<br />
con tanto Nuestro Señor os me guar<strong>de</strong> por<br />
muchos años, amén.<br />
De Panamá, y a 9 <strong>de</strong> mayo <strong>de</strong> 1578<br />
años, vuestra madre, que vuestra honra y<br />
<strong>de</strong>scanso <strong>de</strong>sea,<br />
Francisca <strong>de</strong> Trujillos<br />
Vuestra hermana os quería enviar<br />
unas joyas <strong>de</strong> oro: por no haber <strong>de</strong> quien<br />
fiarlo, no os lo envía. Cuando vengáis acá<br />
lo gozaréis.<br />
(Para los muy <strong>de</strong>seados hijos Diego<br />
<strong>de</strong> Torres y Juana <strong>de</strong> Trujillos, en la calle <strong>de</strong><br />
la librería, en Valladolid)<br />
Enrique Otte, Cartas<br />
Privadas <strong>de</strong><br />
Emigrantes a Indias<br />
(1540-1616), Sevilla,<br />
EEHAA, s.d.
A INVENÇÃO DA AMÉRICA 94<br />
Nuestra America<br />
es vasta y intricada<br />
Pablo Neruda*<br />
95
Entre los invasores <strong>de</strong> Méjico –oscuros al<strong>de</strong>anos,<br />
braceros <strong>de</strong>l campo, forzados, aventureros<br />
y fugitivos – había un joven soldado llamado<br />
Bernal Díaz <strong>de</strong>l Castillo, el cual escribió<br />
sus memorias en edad ya bastante avanzada,<br />
cincuenta años más tar<strong>de</strong>, siendo consejero<br />
municipal en la América Central. He visto, he<br />
tenido en mis manos y he leído el enorme<br />
manuscrito, asegurado con una ca<strong>de</strong>na a una<br />
mesa, al alcance <strong>de</strong> todos, en el municipio <strong>de</strong><br />
Guatemala. Es curioso ver enca<strong>de</strong>nado ese<br />
gran libro, escrito con una caligrafía clara y<br />
esmerada, quizá por alguno <strong>de</strong> aquellos copistas<br />
que abundaban en España, dictado posiblemente<br />
por el viejo soldado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su sillón<br />
o <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el fondo <strong>de</strong> la cama, pero, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el fondo, <strong>de</strong> la increíble verdad.<br />
Bernal, a pesar <strong>de</strong> su edad, tenía una memoria<br />
que podía facilitarnos los nombres <strong>de</strong> los<br />
caballos y <strong>de</strong> las yeguas y <strong>de</strong> cada uno <strong>de</strong> los<br />
hombres, que siguieron a Hernán Cortés.<br />
[...] Aunque discutible, lo cierto es que<br />
aquel esplendor fue aniquilado por la sangre<br />
y las sombras. Hombres y vestiduras, templos<br />
y construcciones, dioses y reyes, todo fue <strong>de</strong>vorado,<br />
<strong>de</strong>struido y sepultado. La Conquista<br />
fue un gran incendio. Los conquistadores <strong>de</strong><br />
todos los tiempos y todas las latitu<strong>de</strong>s reciben<br />
un mundo vasto y resonante, <strong>de</strong>jan un planeta<br />
cubierto <strong>de</strong> cenizas. Siempre ha sido así. Nosotros<br />
los americanos, <strong>de</strong>scendientes <strong>de</strong> aquellas<br />
vidas y <strong>de</strong> aquella <strong>de</strong>strucción, hemos tenido<br />
que excavar, para buscar <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> las<br />
cenizas imperiales las gemas <strong>de</strong>slumbradoras<br />
y los colosales fragmentos <strong>de</strong> los dioses perdidos.<br />
O también hemos tenido que mirar a las<br />
alturas: a veces una torre <strong>de</strong> los antiguos<br />
tiempos, venciendo el miserable paso <strong>de</strong> los<br />
siglos, eleva su orgullo sobre el continente.<br />
Porque yo distingo el arte subterráneo y el<br />
arte <strong>de</strong> los espacios abiertos <strong>de</strong> los antiguos<br />
americanos. Y ésta es mi propia manera <strong>de</strong><br />
conocerlos y compren<strong>de</strong>rlos.<br />
Cuando, en años ya lejanos, vivía exiliado<br />
en la Ciudad <strong>de</strong> Méjico, vinieron dos extraños<br />
visitantes con la pretensión <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>rme su<br />
mercancía: traían un voluminoso paquete, envuelto<br />
en pringoso papel <strong>de</strong> periódico, que<br />
<strong>de</strong>satamos y abrimos allí, en mi mesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>spacho.<br />
Había centenares <strong>de</strong> figurillas <strong>de</strong> oro,<br />
acaso chimúes, chibchas o chiriquíes: un tesoro<br />
que palpitaba sobre mi pobre mesa con<br />
el fulgor amarillo <strong>de</strong>l pasado. Eran pendientes,<br />
anillos, pectorales, insignias, figuras <strong>de</strong><br />
pececillos, <strong>de</strong> extrañas aves, eran estrellas abstractas,<br />
círculos, líneas, discos, mariposas. Por<br />
aquella maravilla me pidieron doce mil dólares,<br />
cantidad que yo no poseía. Este tesoro lo<br />
habían encontrado trabajando en una carretera,<br />
entre Costa Rica y Panamá. Y se apresuraron<br />
a sacarlo <strong>de</strong>l país para ven<strong>de</strong>rlo en cualquier<br />
lugar. Abandonaron mi casa con su tesoro<br />
bajo el brazo, envuelto en periódicos viejos,<br />
y ya no he sabido a don<strong>de</strong> fueron a parar<br />
aquellos peces, aquellas mariposas, aquellos<br />
<strong>de</strong>stellos <strong>de</strong> oro.<br />
[...] Nuestra América es vasta e intrincada.<br />
Y a lo largo <strong>de</strong> su línea espiral, a lo largo<br />
<strong>de</strong> sus <strong>de</strong>smesurados ríos, <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> los<br />
montes y en los <strong>de</strong>siertos, e incluso en las<br />
calles <strong>de</strong> las ciuda<strong>de</strong>s recientemente excavadas<br />
y puestas al <strong>de</strong>scubierto, aparecen todos<br />
los días estos testimonios <strong>de</strong> oro. Son estatuillas<br />
antropomorfas, aztecas, olmecas,<br />
quimbayas, incas, chancayas, mochicas, nazcas,<br />
chimúes. Son millones <strong>de</strong> vasijas <strong>de</strong> cerámica<br />
y <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ra, enigmáticas figuras <strong>de</strong><br />
turquesas, <strong>de</strong> oro, trabajadas, tejidas: son<br />
millones <strong>de</strong> obras maestras rituales, figurativas,<br />
abstractas. Son escuelas y disciplinas, estilos<br />
excelsos, que representan la crueldad, la<br />
adoración, la humillación, la tristeza, la locura,<br />
la verdad, la alegría. Todo un mundo que<br />
palpitaba con las gran<strong>de</strong>s fiestas <strong>de</strong>saparecidas<br />
en torno a los enigmas <strong>de</strong> la vida y <strong>de</strong> la<br />
muerte, con los acontecimientos que alimentarán<br />
la poesía y la teogonía, en homenaje a<br />
la resurrección y consagración <strong>de</strong> la primavera,<br />
con su infinita sabiduría sexual, con el goce<br />
<strong>de</strong> la tierra en todas sus tentaciones y sus<br />
frutos, o ante el misterio <strong>de</strong>l silencio absoluto<br />
y <strong>de</strong> las posibles resurrecciones. Nuestros<br />
museos <strong>de</strong> Méjico, <strong>de</strong> Colombia y <strong>de</strong> Lima<br />
están repletos <strong>de</strong> estas figuras, que jamás fueron<br />
<strong>de</strong>gradadas ni aniquiladas bajo tierra.<br />
Precipitadamente fueron arrebatadas, sepultadas<br />
a lo largo <strong>de</strong> un camino cualquiera, fueron<br />
excomulgadas en todos los púlpitos coloniales,<br />
y al igual que sus creadores fueron<br />
perseguidas por centuriones y matarifes. Mas,<br />
<strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> la tierra y <strong>de</strong>l agua, tras siglos <strong>de</strong><br />
oscuridad, continúan apareciendo, continúan<br />
dando su imperece<strong>de</strong>ro testimonio <strong>de</strong> múltiple<br />
gran<strong>de</strong>za.<br />
* Excerto do texto escrito por<br />
Neruda para a apresentação<br />
do livro Civilización<br />
Andina, <strong>de</strong> Roberto Magni e<br />
Enrique Guidoni, Valência,<br />
Mas-Ivars, 1972
A SEDE DO SUL 96<br />
Pisco<br />
Sonia Tello Rozas<br />
97
Baco. Jan van <strong>de</strong>r Straet [BN, EA 15 (42) P.]<br />
Nos últimos anos, com alguma<br />
indolência, eclodiu uma<br />
guerra entre produtores e comerciantes<br />
<strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte chilenos<br />
e peruanos. Não se trata da<br />
Guerra do Pacífico em que os<br />
chilenos saíram airosos e triunfantes,<br />
é a Guerra do «pisco».<br />
Até agora não houve mortos<br />
nem feridos. Mas as batalhas suce<strong>de</strong>m-se<br />
em distintos cenários<br />
e em regiões que não respeitam<br />
os espaços tradicionais. Falemos<br />
<strong>de</strong>las.<br />
Há já muito tempo que o<br />
Chile registou nos organismos<br />
internacionais a palavra «pisco»<br />
como produto chileno. A ousadia<br />
tinha um objectivo: comercializar<br />
um produto, neste caso a<br />
aguar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uva com as características<br />
químicas <strong>de</strong>finidas segundo<br />
os critérios requeridos<br />
pela legislação internacional em<br />
matéria <strong>de</strong> produção vinícola.<br />
Não se falou muito no Peru<br />
quando o país vizinho obteve o<br />
galardão. Mas, pouco a pouco,<br />
os produtores peruanos foram<br />
tomando consciência do que se<br />
estava a passar. E, <strong>de</strong> repente,<br />
lançaram-se no campo <strong>de</strong> batalha<br />
com a única arma que tinham<br />
ao seu alcance: a multicentenária<br />
tradição <strong>de</strong> fabrico <strong>de</strong><br />
aguar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> indiscutível<br />
e <strong>de</strong> excelente sabor. E<br />
nesse pé <strong>de</strong> guerra estamos.<br />
O certo é que a palavra<br />
«pisco» é peruana, isto é, <strong>de</strong><br />
origem quéchua, que po<strong>de</strong> ser<br />
traduzida por «pássaro». Mas é<br />
também o nome da cida<strong>de</strong> e do<br />
porto <strong>de</strong> mar que estão situados<br />
a sul da capital, Lima. O porto<br />
<strong>de</strong> mar, Pisco, <strong>de</strong>u o nome ao<br />
produto exportado, a aguar<strong>de</strong>nte,<br />
e as terras da região, o húmus<br />
necessário para o sabor e<br />
os cheiros específicos dos mostos<br />
<strong>de</strong> uva. Ao transformarem o<br />
«pisco» em produto chileno, os
A SEDE DO SUL 98<br />
Tinalhas <strong>de</strong> pisco com formas pré-colombinas<br />
99
vizinhos do Sul, <strong>de</strong> certo modo,<br />
invadiram um território com<br />
nome e tradição. Mas não conseguiram<br />
o que, geralmente, se ganha<br />
numa batalha: a honra e a<br />
fama. Os últimos acontecimentos<br />
são prova disso. E o «pisco»<br />
peruano ganhou ultimamente<br />
vários concursos internacionais<br />
em que não faltaram concorrentes<br />
famosos e reconhecidos. Este<br />
ano, na Praça <strong>de</strong> Bruxelas e também<br />
em França.<br />
Tenho a impressão que foi o<br />
sabor tão fácil <strong>de</strong> reconhecer do<br />
«pisco» peruano que <strong>de</strong>rrotou a<br />
química falácia do produto chileno,<br />
que se ven<strong>de</strong> já elaborado em<br />
garrafas pouco elegantes. O<br />
marketing não é todo-po<strong>de</strong>roso. E,<br />
neste caso, o gosto e o sabor foram<br />
capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotá-lo. A uva<br />
«quebranta» é <strong>de</strong>liciosa. Dá um<br />
perfume muito especial ao mosto.<br />
A uva «itália» é uma Nossa<br />
Senhora. Das a<strong>de</strong>gas <strong>de</strong> Ocucaje,<br />
saem uns aromas nunca vistos,<br />
ar<strong>de</strong>ntes e voluptuosos. E os<br />
alambiques das vinhas Tacama<br />
<strong>de</strong>stilam umas aguar<strong>de</strong>ntes, sendo<br />
a mais famosa a que tem o<br />
nome <strong>de</strong> Demónio dos An<strong>de</strong>s,<br />
para honrar o que foi um dos<br />
primeiros conquistadores que se<br />
revoltou contra o próprio rei <strong>de</strong><br />
Espanha.<br />
Não há, nos anais do «pisco»<br />
peruano, aguar<strong>de</strong>ntes velhas<br />
ou, pelo menos, não são<br />
muito conhecidas. Existem algumas<br />
fabricadas em alambiques<br />
artesanais.<br />
As mais conhecidas e populares<br />
vêm do Sul, como aliás toda<br />
a produção pisquenha. Uma<br />
região que confina com a fronteira<br />
chilena é reconhecida como<br />
famosa nesses produtos envelhecidos<br />
em casco <strong>de</strong> carvalho:<br />
Moquegua.<br />
Era uma região famosa durante<br />
a Colónia e, no século XVII,<br />
já produzia uva <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />
Diz-se que os vinhos generosos,<br />
que então se produziam,<br />
competiam com os bons vinhos<br />
<strong>de</strong> Jerez <strong>de</strong> la Frontera. Com a filoxera,<br />
<strong>de</strong>sapareceu a maior parte<br />
da produção. Já avançado o século<br />
XX, os vinhedos voltaram à região<br />
e, hoje em dia, há excelentes<br />
mostos moqueguanos. Com eles<br />
renasceram também as antigas<br />
tradições <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>ntes velhas,<br />
com laivos <strong>de</strong> doçura e fragrâncias<br />
<strong>de</strong> mel.<br />
O certo é que o «pisco» acabou<br />
por impor-se ao Peru e ao<br />
mundo. Há tradições literárias<br />
que relatam como as festas tanto<br />
em Lima como nas regiões do<br />
Sul, Ica, Arequipa, Moquegua,<br />
contavam sempre com a presença<br />
inevitável da aguar<strong>de</strong>nte pisqueira.<br />
Ricardo Palma, o gran<strong>de</strong> contista<br />
peruano do século XIX, recorda-se<br />
das gran<strong>de</strong>s festas do<br />
Natal em que a bebida por excelência<br />
era o «pisco». Os serões<br />
terminavam sempre com dança e<br />
«pisco». E como as autorida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>cidiram um dia aplicar um imposto<br />
à aguar<strong>de</strong>nte, o povo revoltado<br />
cantou: «Santa Rosa <strong>de</strong> Lima,/¿Como<br />
consientes/que un<br />
impuesto le pongas/al aguardiente?»<br />
Hoje já vai sendo costume<br />
oferecer aos convidados um bom<br />
«pisco sour» antes que cheguem<br />
os pratos <strong>de</strong> comida. E também é<br />
frequente ver tomar um «pisquinho»<br />
após as refeições, como na<br />
Europa um bom cognac ou uma<br />
aguar<strong>de</strong>nte velha com o café. É<br />
uma boa maneira <strong>de</strong> terminar<br />
com chave <strong>de</strong> ouro um saboroso<br />
ágape. E com o «pisco» a saú<strong>de</strong><br />
está garantida. Assim canta o povo:<br />
«Eso es lo que no se explica/no<br />
miro claro, estoy bizco;/pero<br />
la razón me indica/que<br />
nadie se muere en Ica/estando el<br />
remedio en “pisco’’.»
SINAIS DE FUMO 100<br />
Dos tabacos<br />
ou fumaças dos índios<br />
no Haiti no século XVI<br />
segundo<br />
um cronista<br />
espanhol<br />
Os sinais <strong>de</strong> fumo surpreen<strong>de</strong>ram os navegadores espanhóis<br />
logo nas Antilhas. Fumar era um <strong>de</strong>vaneio dos índios, para<br />
os europeus um vício. Os efeitos inebriantes das fumaças fi-<br />
zeram do tabaco um produto valioso para colonizadores da<br />
América Central e do Norte,numa perfeita e lucrativa conju-<br />
gação do ócio com o negócio. O cronista espanhol Gonzalo<br />
Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo, em 1535, <strong>de</strong>screve o tabaco e os rituais<br />
do fumo no Haiti.<br />
101
Usavam os índios <strong>de</strong>sta ilha, entre<br />
outros vícios, um muito mau, que é o <strong>de</strong><br />
tomar fumaças, que eles chamam tabaco,<br />
para sair do sentido. E isto faziam com o<br />
fumo <strong>de</strong> certa erva que, ao que pu<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r,<br />
é da qualida<strong>de</strong> do meimendro;<br />
mas não daquele feitio ou forma, segundo<br />
parece, porque esta erva é um talo ou<br />
pimpolho com quatro ou cinco palmos,<br />
ou menos, <strong>de</strong> altura, e com umas folhas<br />
largas e grossas e macias e velosas, e o<br />
verdor assemelha-se algo à cor das folhas<br />
da língua-<strong>de</strong>-vaca (ou buglossa, assim<br />
chamada pelos herbolários ou médicos).<br />
Esta erva a que me refiro, <strong>de</strong> alguma maneira<br />
ou género, é semelhante ao meimendro.<br />
A qual tomam <strong>de</strong>sta maneira: os<br />
caciques e homens principais tinham uns<br />
pauzinhos ocos, do tamanho <strong>de</strong> um jeme*,<br />
ou menos, da grossura do <strong>de</strong>do mindinho,<br />
e estes canudos tinham dois canhões<br />
respon<strong>de</strong>ntes a um, e tudo numa peça. E<br />
punham os dois nas narinas, e o outro no<br />
fumo e erva que estava ar<strong>de</strong>ndo ou queimando-se;<br />
e estavam muito lisos e bem<br />
lavrados. E queimavam as folhas daquela<br />
erva, amarrotadas ou envoltas, do modo<br />
que os pagens cortesãos costumam <strong>de</strong>itar<br />
as suas fumaças; e aspiravam o fumo para<br />
si, uma e duas e três e mais vezes, quanto<br />
o podiam porfiar, até que ficavam sem<br />
sentidos, muito tempo, estendidos no<br />
chão, ébrios, ou adormecidos <strong>de</strong> um grave<br />
e pesado sono. Os índios que não tinham<br />
aqueles pauzinhos tomavam aquele<br />
fumo com uns cálamos ou caninhas <strong>de</strong><br />
carriços, e a esse dito instrumento com<br />
que tomam o fumo, ou as ditas caninhas,<br />
chamam os índios tabaco, e não a erva<br />
ou o sono que os toma (como pensavam<br />
alguns).<br />
Esta erva, tinham os índios por coisa<br />
muito apreciada e criavam-na nas suas<br />
hortas e lavouras, para o dito efeito; dando-se<br />
a enten<strong>de</strong>r que tomar aquela erva e<br />
<strong>de</strong>fumadoiro não só era coisa sã, mas<br />
também coisa santa. E logo que o cacique<br />
ou principal cai no chão, tomam-no as<br />
suas mulheres (que são muitas) e <strong>de</strong>itam-<br />
-no na sua cama ou re<strong>de</strong>, se ele assim o<br />
mandou antes <strong>de</strong> cair; mas se não o disse<br />
antes <strong>de</strong> cair, não quer senão que o <strong>de</strong>i-<br />
xem ficar assim, no chão, até que lhe passe<br />
aquela embriaguez ou adormecimento.<br />
Eu não posso pensar que prazer se<br />
obtém <strong>de</strong> tal acto, a não ser da gula do<br />
beber, que primeiro o fazem antes que tomem<br />
o fumo ou o tabaco; e alguns bebem<br />
tanto <strong>de</strong> certo vinho que eles fazem,<br />
que antes que se <strong>de</strong>fumem caem bêbedos;<br />
mas quando se sentem cansados e fartos,<br />
aco<strong>de</strong>m a tal perfume. E muitos também,<br />
sem que bebam <strong>de</strong>masiado, tomam o tabaco<br />
e fazem o que é dito, até caírem <strong>de</strong><br />
costas no chão, mas sem náuseas, só como<br />
homem adormecido. Sei que alguns<br />
cristãos já o usam, em especial alguns que<br />
estão tocados pelo mal das bubas, porque<br />
dizem que esses, no tempo em que estão<br />
assim enlevados, não sentem as dores da<br />
sua enfermida<strong>de</strong>. Não me parece que isto<br />
não seja outra coisa senão estar morto em<br />
vida, aquele que tal faz; o qual tenho por<br />
pior que a dor <strong>de</strong> que se escusam, pois<br />
não se curam com isso.<br />
Presentemente, muitos negros dos<br />
que estão nesta cida<strong>de</strong> e em toda a ilha<br />
tomaram o mesmo costume e criam nas<br />
fazendas e herdamentos dos seus amos<br />
esta erva, para o que foi dito, e tomam as<br />
mesmas fumaças ou tabacos; porque dizem<br />
que quando <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> trabalhar e<br />
tomam o tabaco se lhes tira o cansaço.<br />
Aqui me parece que quadra um costume<br />
vicioso e mau que a gente da Trácia<br />
usava entre os seus criminosos vícios, segundo<br />
Abulensis escreve sobre Eusebio De<br />
los tiempos, on<strong>de</strong> diz que têm todos por costume,<br />
varões e mulheres, <strong>de</strong> comer à volta<br />
da fogueira, e que folgam muito <strong>de</strong> estar<br />
embriagados, ou <strong>de</strong> o parecer; e que como<br />
não têm vinho, tomam sementes <strong>de</strong> algumas<br />
ervas que há entre eles, as quais, lançadas<br />
nas brasas, dão <strong>de</strong> si um tal aroma<br />
que embriagam todos os presentes, sem<br />
beber. Em meu parecer, isto é o mesmo<br />
que os tabacos que estes índios tomam. Traduzido <strong>de</strong> Gonzalo Fernán-<br />
<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo, História<br />
General y Natural <strong>de</strong><br />
las Indias, Libro V, Cap.<br />
II, Sevilha, 1535<br />
* Distância máxima entre o polegar<br />
e o indicador
Estádio Centenário<br />
<strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u<br />
Arón Mazas<br />
ESTÁDIO DE SÍTIO 102<br />
103<br />
Nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, começou a <strong>de</strong>senvolver-se no Uruguai<br />
uma activida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pressa ocuparia um lugar central na vida social e <strong>cultura</strong>l do povo uruguaio.<br />
O futebol ultrapassou o âmbito <strong>de</strong>sportivo para se tornar um elemento-chave da história do país.<br />
Rapidamente, o Uruguai<br />
afirmou-se como uma inigualável<br />
potência nesta modalida<strong>de</strong>,<br />
vencendo os Jogos Olímpicos <strong>de</strong><br />
Colombes em 1924 e <strong>de</strong> Amesterdão<br />
em 1928.Tendo em conta<br />
que nessa época os campeões<br />
olímpicos se consi<strong>de</strong>ravam como<br />
campeões do mundo, o Uruguai<br />
chega à década do 30 sendo bicampeão<br />
mundial.<br />
Com o início <strong>de</strong> uma nova<br />
década e aproximando-se o<br />
centenário do Juramento da<br />
Constituição <strong>de</strong> 1930, que melhor<br />
maneira <strong>de</strong> festejar este feito<br />
histórico que organizando o<br />
primeiro mundial <strong>de</strong> futebol<br />
em Montevi<strong>de</strong>u?!<br />
O país dos campeões olímpicos<br />
apostaria na organização<br />
<strong>de</strong> um «gran<strong>de</strong>» mundial encarregando-se<br />
<strong>de</strong> todos os gastos.<br />
No começo do ano <strong>de</strong> 1930, o<br />
Uruguai concentrou-se no<br />
«seu» mundial que, naturalmente,<br />
teria <strong>de</strong> se jogar num<br />
gran<strong>de</strong> estádio. Assim que obteve<br />
a responsabilida<strong>de</strong> da organização<br />
do mundial, <strong>de</strong>u-se início<br />
à construção do mítico e gran<strong>de</strong><br />
Estádio Centenário.<br />
Foi uma obra inovadora<br />
em termos <strong>de</strong> arquitectura <strong>de</strong>sportiva<br />
pela sua disposição<br />
quase circular em volta do relvado.<br />
O autor da obra, o arquitecto<br />
Juan Scasso, confessou<br />
ter-se inspirado nos teatros gregos<br />
clássicos no que respeita ao<br />
aproveitamento dos <strong>de</strong>clives<br />
naturais.
A monumental obra é ainda<br />
hoje um símbolo iniludível da<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u. A «gran<strong>de</strong>»<br />
tribuna olímpica é toda uma<br />
«tribuna <strong>cultura</strong>l» com o seu<br />
museu do futebol e uma escola<br />
pública. Para além dos espectáculos<br />
<strong>de</strong>sportivos, <strong>de</strong>ntro do estádio<br />
têm-se realizado gran<strong>de</strong>s<br />
concertos que marcaram a história<br />
da vida <strong>cultura</strong>l do país: Luciano<br />
Pavarotti, Plácido Domingo,<br />
«El Gusto es nuestro» (Serrat,<br />
Ana Belén, Victor Manuel e Miguel<br />
<strong>de</strong>l Río), «Los Olimareños»<br />
e Merce<strong>de</strong>s Sosa, entre outros.<br />
O MUNDIAL DE 30<br />
A seleção uruguaia estreou-<br />
-se no Mundial no dia em que<br />
se comemorou o centenário da<br />
Constituição, em 18 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong><br />
1930. O primeiro jogo dos<br />
comandados pelo «gran<strong>de</strong> capitão»<br />
José Nasazzi foi contra o<br />
Peru, tendo os «celestes» triunfado<br />
por um 1-0, com golo <strong>de</strong><br />
Héctor, «el manco Castro». No<br />
jogo seguinte, venceram a Roménia<br />
por 4-0, com golos <strong>de</strong><br />
Dorado, Héctor Scarone, Anselmo<br />
e «o basco» Cea. Depois, a<br />
Jugoslávia seria esmagada por<br />
um conclu<strong>de</strong>nte 6-1, com golos<br />
<strong>de</strong> Cea, Anselmo e Iriarte. Na<br />
gran<strong>de</strong> final, perante um mar <strong>de</strong><br />
chapéus <strong>de</strong> feltro que inundava<br />
as bancadas, a selecção uruguaia<br />
disputou o clássico do Rio da<br />
Plata com a Argentina: o Uruguai<br />
arrebatou a taça ao vencer<br />
por 4-2, graças aos goleadores<br />
Pablo Dorado, Cea, Iriarte e Castro.<br />
A imprensa europeia quase<br />
ignorou a façanha dos rioplatenses,<br />
ofendida com o fulgor do<br />
melhor futebol do mundo.<br />
A galeria <strong>de</strong> honra dos futebolistas<br />
uruguaios era constituída<br />
por operários e boémios que fizeram<br />
da camisola azul-celeste o<br />
seu estandarte <strong>de</strong> glória: o «Ma-<br />
riscal» Nasazzi (capitão das gestas<br />
<strong>de</strong> Colombes 1924, Amesterdão<br />
1928 e Montevi<strong>de</strong>u 1930),<br />
cortador <strong>de</strong> pedras <strong>de</strong> mármore,<br />
várias vezes campeão sul-americano<br />
e uruguaio com o Nacional<br />
<strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u, <strong>de</strong>ntro do<br />
campo mandava, gritava e atemorizava<br />
os rivais; José Leandro<br />
Andra<strong>de</strong>, músico <strong>de</strong> Carnaval e<br />
engraxador, maravilhou o mundo<br />
não só pelo seu futebol criativo,<br />
mas também por ser o primeiro<br />
jogador negro visto e admirado<br />
na Europa; Lorenzo Fernán<strong>de</strong>z,<br />
o gran<strong>de</strong> «caudillo» do<br />
Peñarol daquele tempo, atemorizava<br />
<strong>de</strong> tal modo os seus adversários<br />
que estes não tinham<br />
coragem <strong>de</strong> olhá-lo <strong>de</strong> frente,<br />
após o primeiro embate; Héctor<br />
Scarone, conhecido como o<br />
Gar<strong>de</strong>l do futebol, foi consi<strong>de</strong>rado<br />
o primeiro «melhor jogador<br />
do mundo» e nunca falhou um<br />
penálti; Héctor Castro era manco<br />
e nos cantos apertava o estômago<br />
dos guarda-re<strong>de</strong>s com o<br />
coto; Pedro Cea, cortador <strong>de</strong> gelo,<br />
era o preparador físico da<br />
equipa; Pedro Petrone, hortaliceiro,<br />
etc.<br />
Neste mítico estádio, o Uruguai<br />
sagrou-se quatro vezes campeão<br />
sul-americano <strong>de</strong> futebol<br />
(1942, 1956, 1967 e 1995),<br />
uma vez campeão sul-americano<br />
juvenil (1979) e campeão<br />
do Mundialito <strong>de</strong> 1980-81. No<br />
seu relvado <strong>de</strong>sfilaram as gran<strong>de</strong>s<br />
equipas do Peñarol (1960,<br />
1961, 1966, 1982, 1987) e do<br />
Nacional (1971, 1980, 1988)<br />
vencedoras da Taça Libertadores<br />
da América.<br />
«EL NEGRO JEFE»<br />
E A IDIOSSINCRASIA<br />
DO MARACANÃ<br />
O dia 16 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1950<br />
tornou-se uma data histórica<br />
para o Uruguai – a vitória dos<br />
«celestes»sobre o Brasil por 2-1,<br />
em terreno brasileiro, num Maracanã<br />
a abarrotar com 200 000<br />
espectadores (a maior multidão<br />
alguma vez vista num campo <strong>de</strong><br />
futebol) –, constituindo uma<br />
referência incontornável na<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da nação.<br />
O gran<strong>de</strong> capitão daquela<br />
equipa, Obdulio Varela, «el negro<br />
jefe», construiu a maravilhosa<br />
vitória. Logo que o Brasil fez<br />
1-0, temia-se uma avalancha <strong>de</strong><br />
golos, mas Obdulio fez arrefecer<br />
os corações brasileiros. Conta-se<br />
que o «negro jefe» disse aos<br />
seus rapazes «... los <strong>de</strong> afuera<br />
son <strong>de</strong> palo» e, a partir daí, a<br />
«guerra» recomeçou e o Uruguai<br />
<strong>de</strong>u a volta ao resultado.<br />
OUTRAS LENDAS<br />
DO FUTEBOL<br />
Pelo Centenário passaram<br />
outros fabulosos jogadores que<br />
marcaram a história do futebol<br />
mundial: Roque Gastón Maspoli,<br />
Anibal Paz, o «mono» Gambetta,<br />
Julio Pérez, Walter Gomes (ídolo<br />
no River Plate argentino on<strong>de</strong><br />
nasceu a frase «la gente ya no<br />
come por ver a Walter Gomes»),<br />
Jorge Gonçalvez, Luis Ubiñas,<br />
Montero Castillo, «cien gramos»<br />
Rodriguez, Roberto Matosas, Ladislao<br />
Mazur-kiewicz, etc.<br />
Inesquecíveis avançados do<br />
Peñarol: Ghiggia, Hohbreg, Miguez,<br />
Schiaffino (consi<strong>de</strong>rado o<br />
melhor estrangeiro da história<br />
do Milão <strong>de</strong> Itália e um dos melhores<br />
jogadores do mundo) e<br />
Vidal, nas décadas <strong>de</strong> 40-50;<br />
Abbadie, Sacia, o equatoriano<br />
Spencer, Pedro Rocha e o peruano<br />
Joya, na década do 70; e do<br />
Nacional: Ciocca, Castro, o argentino<br />
Atilio García, Porta e<br />
Zapirain na década do 40, e<br />
Cubillas, Espárrago, o argentino<br />
Luis Artime, Ildo Maneiro e<br />
Morales na década <strong>de</strong> 70.
SABORES PRINCIPAIS 104<br />
Da canjica ao bacalhau.<br />
Uma arqueologia dos hábitos alimentares<br />
<strong>de</strong> uma família portuguesa<br />
nas Minas Gerais setecentistas<br />
José Newton Coelho Meneses<br />
105
Portuguesa, indígena, africana, com<br />
influência paulista e <strong>de</strong> outras partes da<br />
América portuguesa, a comida mineira<br />
tem herança ampla. Se nos primeiros tempos<br />
da ocupação territorial das Minas do<br />
Ouro os mineiros tinham «sua melhor<br />
bo<strong>de</strong>ga nos matos e nos rios», como nos<br />
informa o mestre Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda,<br />
no <strong>de</strong>correr do século XVIII a comida<br />
da região vai ampliando e diversificando<br />
sua base alimentar, fundamentada<br />
em uma produção mais diversa e no acesso<br />
a produtos <strong>de</strong> outras regiões do espaço<br />
colonial português na América e da Europa.<br />
A «civilização do milho», aludida pelo<br />
gran<strong>de</strong> historiador acima citado, transforma-se<br />
e diversifica-se com a se<strong>de</strong>ntarização<br />
dos habitantes e com a fixação das populações<br />
nos arraiais e nas vilas mineiras.<br />
Naturalmente que não se per<strong>de</strong>ram os<br />
costumes dos primeiros tempos: continuaram<br />
a ser consumidos os produtos do milho<br />
e os da mata. Angu, milho ver<strong>de</strong> em<br />
espiga (cozido ou assado), pipoca, curau,<br />
pamonha, farinha («o verda<strong>de</strong>iro pão da<br />
terra»), canjica grossa, canjiquinha, cuscuz,<br />
catimpuera, aluá e jacuba, originários<br />
do milho, além do broto <strong>de</strong> samambaia,<br />
do palmito, das caças e dos peixes, do mel<br />
<strong>de</strong> abelhas e outros produtos dos matos<br />
continuam a freqüentar a mesa dos habitantes<br />
das Minas, associando-se àquela<br />
maior oferta <strong>de</strong> alimentos e, ainda, amalgamando-se<br />
mais perfeitamente aos costumes<br />
reinóis e aos <strong>de</strong> índios e <strong>de</strong> africanos.<br />
O milho, entretanto, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o<br />
alimento mais consumido e <strong>de</strong> modo mais<br />
<strong>de</strong>mocrático freqüenta a mesa <strong>de</strong> pessoas<br />
<strong>de</strong> posse e do homem do povo, como nos<br />
prova o costume <strong>de</strong> comer angu <strong>de</strong> fubá<br />
que, <strong>de</strong> alimento <strong>de</strong>stinado à escravaria,<br />
passa à mesa <strong>de</strong> todos.<br />
Mas não po<strong>de</strong>mos nos esquecer que o<br />
homem português e sua família não abdicaram<br />
totalmente <strong>de</strong> seus costumes alimentares.<br />
Além disso, com o tempo, encontraram<br />
na produção local produtos que<br />
satisfizessem o gosto por comestíveis <strong>de</strong><br />
origem animal, baseados em pratos da tradição<br />
portuguesa e da sua influência da<br />
cozinha francesa. Esses pratos adquiriram<br />
maior complexida<strong>de</strong> à medida que se jun-<br />
tavam diversos «adubos» à carne <strong>de</strong> porco,<br />
<strong>de</strong> boi, <strong>de</strong> carneiro, aos pombos, codornas,<br />
pacas e frangos, além das amêndoas,<br />
azeites doces e ovos em quantida<strong>de</strong>,<br />
porque comida portuguesa que se preze<br />
não os dispensa.<br />
Po<strong>de</strong>mos inventariar a mesa <strong>de</strong> D. Anna<br />
Perpétua Marcelina da Fonseca, chefe<br />
<strong>de</strong> uma família portuguesa nas Minas Gerais.<br />
D. Anna era viúva do Dr. Luiz José <strong>de</strong><br />
Figueiredo, homem que, em vida, teve<br />
posses e influências no Tejuco (hoje Diamantina).<br />
Ele morreu em 1793 e sua viúva<br />
e inventariante foi cuidadosa em fazer a<br />
relação <strong>de</strong> Despesas <strong>de</strong><br />
Mantimentos no perío-<br />
do <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1793<br />
a outubro <strong>de</strong> 1796,<br />
quarenta meses em<br />
que se <strong>de</strong>senrolou o<br />
processo <strong>de</strong> Inventário<br />
post mortem do<br />
marido. Da mesma<br />
forma, D. Anna listou<br />
em outro documento<br />
anexo ao Inventário<br />
do marido,<br />
os Lucros que tem tido a<br />
Erança, no mesmo<br />
período. Assim, nos<br />
informa sobre a<br />
produção <strong>de</strong> alimentos<br />
em suas terras<br />
<strong>de</strong> lavoura e dos<br />
produtos que ela,<br />
por ter produção<br />
própria, adquiria<br />
em menor quanti-<br />
Nas Minas Gerais,<br />
a base alimentar<br />
das famílias abastadas<br />
e das pobres<br />
se distinguia pouco.<br />
Os modos à mesa<br />
é que <strong>de</strong>notavam<br />
as distinções entre<br />
as categorais sociais<br />
da<strong>de</strong> no comércio local. A lista <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas<br />
arrola 42 itens <strong>de</strong> consumo distinguindo<br />
os produtos «do Reino» e os «da terra»,<br />
possibilitando-nos evi<strong>de</strong>nciar a procedência<br />
dos mantimentos, a maior parte produzida<br />
na própria região do Tejuco. A produção<br />
«da roça» da família concorria para<br />
minorar em muito as <strong>de</strong>spesas com a<br />
aquisição <strong>de</strong> produtos no mercado local.<br />
Incluíam-se aí o feijão, o arroz, o milho e<br />
a sua farinha, carne <strong>de</strong> boi, leite, hortaliças,<br />
algodão (que se mandava para fiar),<br />
azeite para iluminação, lenhas, carvões e<br />
sebo para sabão. O consumo do arroz,
SABORES PRINCIPAIS 106<br />
claramente percebido, contraria as interpretações<br />
tradicionais que não o colocam<br />
como hábito alimentar dos mineiros, no<br />
período.<br />
A dieta cotidiana no domicílio <strong>de</strong><br />
D. Anna apresentava variações mensais. O<br />
consumo <strong>de</strong> peixe fresco, a título <strong>de</strong><br />
exemplo, crescia durante os períodos que<br />
incluem os dias <strong>de</strong> jejum, notadamente os<br />
meses <strong>de</strong> março e <strong>de</strong> abril, correspon<strong>de</strong>ntes<br />
ao período da quaresma. O mesmo<br />
acontece com o bacalhau que é adquirido,<br />
basicamente, nos meses <strong>de</strong> março, abril e<br />
<strong>de</strong>zembro, ou, eventualmente,<br />
como compra<br />
«para as sextas e<br />
sábados». Já a carne<br />
<strong>de</strong> porco, seus miúdos<br />
e o toucinho são<br />
compras cotidianas,<br />
o que confirma-nos<br />
o uso do toucinho<br />
não só como componente<br />
<strong>de</strong> diversos<br />
pratos das pessoas <strong>de</strong><br />
posse ou dos escravos<br />
e <strong>de</strong> pobres (no feijão<br />
e em «torresmos»,principalmente),<br />
mas como ingrediente<br />
na cocção <strong>de</strong><br />
cereais, tubérculos e<br />
hortaliças e, também,<br />
como meio <strong>de</strong> conservação<br />
das carnes. A<br />
mandioca, mesmo<br />
não sendo um alimento<br />
preferencial<br />
como na região litorânea,<br />
era consumida como farinha ou cozida.<br />
A família <strong>de</strong> D. Anna Perpétua adquiriu<br />
pouca farinha <strong>de</strong> mandioca, apenas em<br />
dois meses dos quarenta que compõem a<br />
listagem.<br />
Po<strong>de</strong>mos admitir que, nas Minas Gerais,<br />
a base alimentar das famílias abastadas<br />
e das pobres se distinguia pouco. Os<br />
modos à mesa é que <strong>de</strong>notavam as distinções<br />
entre as categorias sociais, como evi<strong>de</strong>nciam<br />
as análises <strong>de</strong> Jean-Louis Flandrin<br />
para os costumes europeus à mesa, no<br />
mesmo período.<br />
Mineira <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
os tempos que Minas<br />
Gerais era Portugal,<br />
a mesa dos mineiros<br />
tem gosto e tradição<br />
paulista, africana,<br />
indígena, <strong>de</strong> tantas partes<br />
da América portuguesa e,<br />
sobretudo, <strong>de</strong> Portugal<br />
107<br />
Alguns produtos eram escassos nas<br />
mesas mineiras, inclusive nas das famílias<br />
abastadas. O trigo, por exemplo, <strong>de</strong> consumo<br />
raro – embora fosse produzido em pequenas<br />
quantida<strong>de</strong>s nas regiões contíguas<br />
às minas –, vinha da Capitania <strong>de</strong> São Paulo<br />
ou da Europa e era caro. O pão <strong>de</strong> trigo,<br />
assim, não foi um alimento do cotidiano,<br />
mesmo no ambiente das famílias <strong>de</strong> posses.<br />
Os portugueses, nas Minas, adaptaram-se<br />
à falta <strong>de</strong>sse cereal nobre. A farinha<br />
<strong>de</strong> milho e o fubá configuraram, então,<br />
produtos para a confecção <strong>de</strong> vários petiscos<br />
substitutos do pão, dando origem às<br />
tão tradicionais quitandas mineiras.<br />
Observando a lista <strong>de</strong> D. Anna Perpétua,<br />
percebemos uma oferta já regular do<br />
sal, ao final do século XVIII. O preço do<br />
produto vindo do Reino não sofreu gran<strong>de</strong>s<br />
variações, ao contrário do «sal da terra»,<br />
vindo das barrancas do rio São Francisco,<br />
que teve no <strong>de</strong>correr do tempo da<br />
listagem uma variação <strong>de</strong> 4 a 7 oitavas <strong>de</strong><br />
ouro por bruaca.<br />
Consumiam-se queijos, importados e<br />
<strong>de</strong> fatura local, além das hortaliças e frutas<br />
que, cotidianamente, enriqueciam a<br />
dieta alimentar <strong>de</strong> todas as categorias sociais.<br />
Os quintais continham bananeiras,<br />
frutas <strong>de</strong> espinho e jabuticabeiras, além<br />
<strong>de</strong> equipamentos e moinhos d’água, tudo<br />
muito <strong>de</strong>talhado nos Inventários post mortem.<br />
As frutas eram apreciadas in natura ou<br />
em doces, como a marmelada e o doce <strong>de</strong><br />
cidra e, como as hortaliças e os tubérculos,<br />
são alimentos <strong>de</strong>scritos pelos memorialistas<br />
da região e pelos relatos dos viajantes<br />
estrangeiros.<br />
A comida mineira, em sua origem setecentista,<br />
rústica em seu cotidiano, tinha<br />
requintes ocasionais. O uso <strong>de</strong> talheres à<br />
mesa, seguindo os costumes já difundidos<br />
em toda a Europa, tornou-se comum tanto<br />
para os portugueses quanto para os nascidos<br />
na América portuguesa, ou vindos da<br />
África, ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos. É<br />
gran<strong>de</strong> o número <strong>de</strong> peças <strong>de</strong>scritas nos<br />
Inventários, o que pressupõe o seu uso cotidiano,<br />
principalmente nas famílias <strong>de</strong><br />
origem reinol.<br />
D. Anna Perpétua, nossa testemunha<br />
especial neste estudo, possuía objetos <strong>de</strong>
mesa finos: pratos da Índia (rasos e fundos,<br />
gran<strong>de</strong>s e pequenos), chocolateiras <strong>de</strong> cobre,<br />
colheres, garfos e facas <strong>de</strong> prata, «faqueiro<br />
<strong>de</strong> prata com caixa forrada <strong>de</strong> veludo»,<br />
«1 talher <strong>de</strong> galhetas <strong>de</strong> vidro» e<br />
ban<strong>de</strong>jas diversas. Outros Inventários <strong>de</strong><br />
portugueses e <strong>de</strong> homens livres ou forros<br />
pobres também <strong>de</strong>talham talheres e vasilhames<br />
que vão do latão à prata, da louça<br />
simples à da Índia ou à do Porto, jogos <strong>de</strong><br />
pires com xícaras, cálices e frascos <strong>de</strong> vidro,<br />
além, é claro, das gamelas, tabuleiros<br />
e ban<strong>de</strong>jas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira.<br />
Mineira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos que Minas<br />
Gerais era Portugal, a mesa dos mineiros<br />
tem gosto e tradição paulista, africana, indígena,<br />
<strong>de</strong> tantas partes da América portuguesa<br />
e, sobretudo, <strong>de</strong> Portugal. E, em toda<br />
essa diversida<strong>de</strong>, é mineira, uai!<br />
Glossário<br />
Adubos Expressão <strong>de</strong> origem portuguesa<br />
que <strong>de</strong>ve ser entendida como temperos.<br />
Aluá Bebida refrescante feita <strong>de</strong> milho fermentado<br />
e adoçada com açúcar.<br />
Angu Prato <strong>de</strong> fubá cozido em água e sem<br />
sal.<br />
Bruaca Saco ou mala <strong>de</strong> couro cru para<br />
transporte <strong>de</strong> produtos e mercadorias<br />
sobre bestas.<br />
Canjica ou Canjiquinha Milho triturado em<br />
moinho <strong>de</strong> água com distância entre<br />
as mós suficiente para <strong>de</strong>ixar a farinha<br />
mais grossa.<br />
Catimpuera Bebida <strong>de</strong> milho ou <strong>de</strong> mandioca<br />
cozidos e fermentados adicionado<br />
<strong>de</strong> água e mel <strong>de</strong> abelhas.<br />
Frutas <strong>de</strong> espinho Laranjas. limões, limas e<br />
outros cítricos.<br />
Frissura ou fressura «Miúdos» <strong>de</strong> porco, ou<br />
seja, fígado, rim e pâncreas <strong>de</strong>sse animal,<br />
picados, temperados e cozidos.<br />
Jacuba Bebida em que se mistura farinha <strong>de</strong><br />
milho (ou fubá) com água e mel <strong>de</strong><br />
abelhas (ou açúcar). Bebia-se quente<br />
ou fria.<br />
Uai Interjeição usual e popular na fala dos<br />
habitantes <strong>de</strong> Minas Gerais que exprime<br />
surpresa, espanto, afirmação categórica,<br />
dúvida, alegria.
ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 108<br />
Portugal<br />
nos confins<br />
do mundo<br />
Roberto Ampuero<br />
109<br />
Nasci no Chile, nos confins do mundo, mas<br />
curiosamente Portugal sempre esteve perto <strong>de</strong><br />
mim, primeiro como um nome simples, belo e<br />
misterioso, <strong>de</strong>pois como uma revelação política<br />
mais que estimulante, inspiradora e, a seguir,<br />
quando o conheci, como um <strong>de</strong>sses lugares que<br />
nos parece curiosamente familiar e conhecido<br />
porque <strong>de</strong> algum modo suspeitamos que estivemos<br />
ali antes, noutra vida.<br />
Quando era criança, no pátio do colégio alemão<br />
<strong>de</strong> Valparaíso costumávamos cantar uma cantiga<br />
<strong>de</strong> roda muito famosa que dizia: «Arroz con<br />
leche, me quiero casar, con una señorita <strong>de</strong> Portugal.»<br />
Cantávamo-la <strong>de</strong> mão dada, meninas e meninos,<br />
cantávamo-la com uma fé cega, como se fosse<br />
imperativo casarmo-nos com uma rapariga <strong>de</strong> Portugal,<br />
mas a verda<strong>de</strong> é que então não pretendia casar-me<br />
e nem sequer sabia muito bem on<strong>de</strong> ficava<br />
o país ibérico. Decorriam os anos sessenta, quando<br />
o Chile era uma <strong>de</strong>mocracia estável e orgulhosa, e<br />
pensávamos que todo o mundo vivia em <strong>de</strong>mocracia.<br />
Um dia, o meu pai mostrou-me um mapa da<br />
Europa e disse-me com voz grave: «Aqui fica Por-<br />
tugal, um país belo, parecido com o Chile e que é<br />
governado por um ditador.» Confesso que me custou<br />
várias noites <strong>de</strong> sono acostumar-me à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
que a presumível rapariga com quem <strong>de</strong>via casar-<br />
-me vivia sob uma ditadura.<br />
Mais tar<strong>de</strong> ouvi, sobressaltado e incrédulo,<br />
as fabulosas histórias sobre os gran<strong>de</strong>s navegadores<br />
<strong>de</strong> Portugal. Até então eu pensava que Fernão<br />
<strong>de</strong> Magalhães era chileno, e a razão era simples: o<br />
famoso estreito que tem o seu nome pertence ao<br />
Chile e faz parte essencial da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos chilenos<br />
austrais, os quais são <strong>de</strong>scritos <strong>de</strong> forma<br />
magistral pelo narrador chileno Francisco Coloane<br />
nos seus livros que <strong>de</strong>ram a volta ao mundo. Mas<br />
a minha surpresa foi enorme ao ouvir que os navegadores<br />
portugueses haviam sido os primeiros<br />
a chegar ao Brasil, às ilhas da Ma<strong>de</strong>ira e dos Açores,<br />
à costa africana e à China. Portugal era, diziam<br />
muitos no Chile, um país que pelo clima e<br />
pelo carácter se assemelhava ao nosso, e eu sonhava<br />
secretamente com que o Chile pu<strong>de</strong>sse<br />
construir um dia um império como o iniciado<br />
pelo Infante D. Henrique.
Em 1966, inteirei-me, através da rádio e <strong>de</strong>sses<br />
álbuns com cromos <strong>de</strong> jogadores, que a estrela<br />
do mundial <strong>de</strong> futebol, que se celebrava em Inglaterra,<br />
já não era o mítico Edson Arantes do Nascimento,<br />
Pelé, mas um jogador <strong>de</strong> Portugal, <strong>de</strong> <strong>de</strong>streza<br />
inigualável, chamado Eusébio, a «Pérola Negra<br />
<strong>de</strong> Moçambique». Três coisas me chamaram a<br />
atenção nele: que sorrisse sempre como que surpreendido<br />
pelo seu próprio êxito, que tivesse o<br />
mesmo nome do meu avô paterno, um silencioso<br />
carpinteiro da ilha patagónica <strong>de</strong> Chiloé que se casou<br />
com uma francesa da Normandia, e que fosse<br />
natural <strong>de</strong> Moçambique. Creio que foi a minha<br />
primeira aula prática sobre o colonialismo. No<br />
meu colégio, on<strong>de</strong> os meus professores alemães<br />
eram quase todos ex-soldados da Segunda Guerra<br />
Mundial, não se costumava falar <strong>de</strong> política ou,<br />
melhor dito, a história morria antes <strong>de</strong> Adolfo Hitler.<br />
Eusébio levou-me, então, a compreen<strong>de</strong>r o<br />
que era aquilo que os adultos <strong>de</strong>nominavam colonialismo:<br />
era uma forma política que podia obrigar<br />
um nativo <strong>de</strong> um país a ter <strong>de</strong> jogar por outro,<br />
era levar a pátria no peito mas envergar a camisola<br />
<strong>de</strong> quem a subjugava.<br />
Portugal voltou a emergir com particular força<br />
na minha vida durante os anos setenta, quando<br />
estu<strong>de</strong>i em Cuba. Um dia inteirei-me que em Havana<br />
vivia discretamente a filha do chefe da polícia<br />
política do regime português, algo que parecia<br />
impossível, mas era verda<strong>de</strong>. Nunca soube a razão<br />
daquilo, até que há pouco li um apaixonante livro<br />
<strong>de</strong> jornalistas portugueses que <strong>de</strong>svendava o mistério:<br />
a mulher, esposa <strong>de</strong> um diplomata suíço em<br />
Havana, apaixonara-se perdidamente por Che<br />
Guevara e pela revolução cubana. Procurei então<br />
localizá-la, falar com ela para lhe dizer que eu<br />
amava Portugal e sonhava com a sua liberda<strong>de</strong>,<br />
mas nunca consegui vê-la. Morreu nos anos em<br />
que eu ainda vivia na ilha.<br />
Depois Portugal voltou a aparecer ante os<br />
meus olhos. Desta vez, porque chegou a Cuba<br />
uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>legação militar da «revolução dos<br />
cravos», altos oficiais progressistas que haviam <strong>de</strong>posto<br />
o antigo regime e implementavam medidas<br />
sociais revolucionárias, que finalmente possibilitaram<br />
o aggiornamiento <strong>de</strong> Portugal à Europa. E vi então<br />
Otelo Saraiva <strong>de</strong> Carvalho, todo um mito para<br />
mim, e também Álvaro Cunhal, outra figura emblemática<br />
da esquerda latino-americana, e o meu<br />
coração latejava entusiasta porque se acabava a ditadura<br />
<strong>de</strong> que meu pai me havia falado, e as colónias<br />
do Ultramar seriam livres e eu po<strong>de</strong>ria co-<br />
nhecer um dia um Portugal <strong>de</strong>mocrático. Pouco<br />
tempo <strong>de</strong>pois, milhares <strong>de</strong> jovens cubanos, alguns<br />
companheiros meus, foram combater em Angola,<br />
contra os sul-africanos do apartheid e as tropas <strong>de</strong><br />
Hol<strong>de</strong>n Roberto e Jonas Savimbi. De certa forma,<br />
os cubanos per<strong>de</strong>ram a sua vida nessas terras<br />
alheias como, anos antes, os portugueses.<br />
E um dia, vivia já em Bona, na Alemanha, pu<strong>de</strong><br />
ir finalmente a Portugal. Recordo que o país<br />
me fascinou pela sua gente, reservada e avessa à<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, como a minha, pela sua arquitectura<br />
histórica sem comparação, as suas paisagens, similares<br />
às da zona central do Chile, as suas cida<strong>de</strong>s<br />
tão magníficas, a sua comida caseira tão diversa,<br />
os seus vinhos e a sua música. Cheguei lá com<br />
aquela que viria a ser a minha mulher e recordo<br />
que um dia, em Albufeira, <strong>de</strong>cidi propor-lhe que<br />
nos casássemos. Dirigimo-nos à Câmara Municipal<br />
dispostos a fazê-lo, porque esse seria o melhor lugar<br />
do mundo para isso. Não me ia casar com<br />
aquela «señorita <strong>de</strong> Portugal» da cantiga, mas sim<br />
em Portugal com a mulher que amava. Mas a burocracia<br />
não no-lo permitiu. Para casar não bastava<br />
sermos solteiros e querermos casar, eram necessários<br />
selos, documentos e embaixadas.<br />
Admito que comecei tar<strong>de</strong> a estudar português.<br />
Queria ler Camões, Pessoa e Saramago na<br />
sua língua, queria <strong>de</strong>sfrutar da língua portuguesa<br />
a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e não <strong>de</strong> fora, como se faz<br />
quando se crê que se enten<strong>de</strong> português porque<br />
se fala espanhol. Mas não foi nem Portugal nem<br />
no Chile que estu<strong>de</strong>i português, mas sim em Iowa<br />
City, uma cida<strong>de</strong> do Midwest norte-americano. E a<br />
minha professora não foi alguém <strong>de</strong> Lisboa,<br />
Coimbra ou Porto, mas sim uma académica norte-<br />
-americana da Costa Leste dos Estados Unidos,<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> açorianos.<br />
Enfim, Portugal continua a perseguir-me e eu<br />
não sou surdo aos seus apelos. Quando os meus<br />
filhos cresceram, levei-os <strong>de</strong> imediato a Portugal<br />
e percorremo-lo <strong>de</strong> Lisboa para sul e para norte,<br />
até ao Promontório <strong>de</strong> Sagres e Trás-os-Montes, e<br />
enquanto o percorria com eles <strong>de</strong>i-me conta,<br />
mais uma vez, das afinida<strong>de</strong>s secretas que existem<br />
entre o Chile e Portugal: a consciência clara da<br />
sua gente <strong>de</strong> que vive num extremo do mundo, o<br />
seu carácter retraído e reservado, a sua melancolia<br />
permanente, a sua afeição pelo vinho, a comida<br />
marítima e a poesia, os nevoeiros e os céus azuis,<br />
a sua existência frente ao mar. Sim, Portugal persegue-me<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que eu cantava no colégio da minha<br />
infância.
O QUE FAÇO EU AQUI 110<br />
O preço da<br />
minha vida<br />
João <strong>de</strong> Melo<br />
111
Jiron Junin, no centro <strong>de</strong> Lima
O QUE FAÇO EU AQUI 112<br />
113<br />
Cheguei a Lima a meio<br />
<strong>de</strong> uma noite brumosa e parada<br />
<strong>de</strong> Julho, em 1990, já<br />
no limite das minhas forças e<br />
após mais <strong>de</strong> trinta horas <strong>de</strong><br />
viagem – ao fim das quais<br />
senti que chegava a outro<br />
tempo, a uma nova dimensão<br />
e a um mundo muito diferente<br />
do meu. Lisboa/Madrid/São<br />
Paulo/La Paz e, finalmente,<br />
Lima. Ia ao Peru<br />
receber o prémio literário<br />
«Cristóbal Colón» das Cida<strong>de</strong>s<br />
Capitais Ibero-Americanas.<br />
Estive não mais do que<br />
um minuto na fila dos vistos<br />
e passaportes: logo um homem<br />
baixo, mas muito entroncado,<br />
com ar <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong><br />
segurança, <strong>de</strong> cabelo envernizado<br />
e lambido para a nuca, chamou repetidamente<br />
pelo meu nome («Señor <strong>de</strong> Melo! Señor <strong>de</strong><br />
Melo!»). Quando me apresentei, disse-me apenas<br />
estar ali em representação do município <strong>de</strong> Lima. E<br />
tendo-me saudado <strong>de</strong> uma forma polida e sucinta,<br />
pediu-me <strong>de</strong>licadamente que o acompanhasse. Devia<br />
ser pessoa <strong>de</strong> alguma importância, porque me<br />
subtraiu ao controlo da alfân<strong>de</strong>ga, à polícia <strong>de</strong><br />
fronteira e a tudo o mais que costuma atormentar<br />
a vida dos homens cansados <strong>de</strong> viajar.<br />
Eu vinha ao contrário do tempo e dos fusos<br />
horários, no sentido inverso ao dos ponteiros dos<br />
relógios (o biológico e o <strong>de</strong> pulso). Segui-o até à<br />
sala «vip». A embaixada risonha, simpática e<br />
tranquila que aí me aguardava, dispensando-me<br />
gran<strong>de</strong> soma <strong>de</strong> cumprimentos e adjectivos, pôs-<br />
-me então ao corrente do programa: visitas, recepções<br />
em diversas embaixadas, alguns compromissos<br />
com jornais e rádios, a cerimónia oficial<br />
do prémio. «Bienvenido, señor <strong>de</strong> Melo, a las<br />
fiestas <strong>de</strong> Lima!», concluíram.<br />
Camilo José Cela, Nobel da Literatura do ano<br />
anterior, Don Agustín Rodríguez Sahagún, o alcai<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Madrid, o escritor peruano Alfredo Bryce<br />
Echenique, que vivia no estrangeiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos<br />
do exílio (e com quem passei os momentos<br />
mais divertidos <strong>de</strong>sses nove dias <strong>de</strong> Lima), e não<br />
sei que outros ilustres convidados, já estavam na<br />
cida<strong>de</strong>. Por isso mesmo, não estranhei que cinco<br />
índios mudos, uns «cholos» colossais, todos vestidos<br />
<strong>de</strong> negro, cujas sombras passeavam nos corre-<br />
Estive não mais do que<br />
um minuto na fila<br />
dos vistos e passaportes:<br />
logo um homem baixo,<br />
mas muito entroncado,<br />
com ar <strong>de</strong> chefe<br />
<strong>de</strong> segurança,<br />
<strong>de</strong> cabelo envernizado<br />
e lambido para a nuca,<br />
chamou repetidamente<br />
pelo meu nome<br />
dores em volta da sala «vip»<br />
do aeroporto, ali estivessem<br />
<strong>de</strong> guarda, sempre <strong>de</strong> olhos<br />
postos em mim – como também<br />
não estranhei a viatura<br />
blindada que me foi atribuída<br />
(na minha qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convidado<br />
especial), nem o amplo<br />
sorriso zeloso do Sr. Bermú<strong>de</strong>z,<br />
o meu condutor (que<br />
pedia sempre licença antes <strong>de</strong><br />
trancar as portas por <strong>de</strong>ntro, o<br />
que fazia por sistema), nem<br />
os outros dois carros que<br />
abriam e fechavam o cortejo<br />
até à cida<strong>de</strong>. Semanas atrás, o<br />
país havia eleito Fujimori presi<strong>de</strong>nte<br />
da República do Peru,<br />
contra o famoso escritor Mario<br />
Vargas Llosa, talvez o cidadão<br />
peruano mais conhecido<br />
no mundo inteiro (mais até do que Pérez <strong>de</strong><br />
Cuéllar, nessa altura secretário-geral da ONU).<br />
Ainda em Lisboa, o Ministério dos Negócios<br />
Estrangeiros tinha-me prevenido: só na semana<br />
anterior, a guerrilha do Sen<strong>de</strong>ro Luminoso fizera<br />
explodir treze bombas em Lima, pondo a cida<strong>de</strong><br />
na antecâmara <strong>de</strong> uma guerra civil. Por conseguinte,<br />
não estranhasse eu ver a polícia armada<br />
<strong>de</strong> metralhadora e viseira, colete à prova <strong>de</strong> bala e<br />
capacete, a singrar pelo meio do intenso tráfego<br />
<strong>de</strong> Lima com as sirenes numa estridência caótica.<br />
Até certo ponto, achei justo que os meus<br />
guarda-costas não usassem <strong>de</strong> nenhuma subtileza<br />
com ninguém, nem mesmo comigo. Quando o<br />
Sr. Bermú<strong>de</strong>z me largava à porta do Hotel Bolívar,<br />
na baixa <strong>de</strong> Lima, eles, como que por encanto,<br />
saíam dos seus secretos escon<strong>de</strong>rijos: corriam a<br />
ro<strong>de</strong>ar a minha viatura, <strong>de</strong> metralhadora em punho,<br />
abrindo alas para eu passar; se ia até ao bar,<br />
eles seguiam-me os passos e espiavam-me o mínimo<br />
gesto; e punham-se em sentido para me<br />
anunciarem a chegada <strong>de</strong> alguém que viesse à<br />
minha procura ou uma chamada telefónica. De<br />
resto, esses perfeitos e excessivos anjos-da-guarda<br />
jamais me <strong>de</strong>ixaram em paz ou sequer entregue<br />
aos serviços do hotel; acompanhavam-me ao<br />
quarto, pedindo-me que trancasse a porta por<br />
<strong>de</strong>ntro e que nunca por nunca a abrisse a ninguém.<br />
Pensando bem, tudo ali se justificava, mas<br />
não estritamente por mim. A cida<strong>de</strong> enchera-se<br />
<strong>de</strong> gente venerável (digo: vulnerável), provinda
<strong>de</strong> não sei quantos países<br />
do Mundo, e toda ela bem<br />
mais importante do que eu.<br />
Imagine-se um atentado em<br />
Lima contra o escritor Camilo<br />
José Cela, o Nobel da<br />
Literatura, ou contra o alcai<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Madrid, ou contra<br />
um qualquer daqueles extraordinários<br />
embaixadores<br />
que nos prepararam tantas,<br />
tão magníficas e tão opíparas<br />
recepções nas suas residências<br />
oficiais! O que não<br />
se falaria do Peru (do regime,<br />
da pobreza do seu povo,<br />
do terrorismo urbano)<br />
nos cinco continentes da<br />
Terra!<br />
Por mim, vivi nove dias<br />
numa Lima <strong>de</strong> prazer e <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s tormentos; na mesma cida<strong>de</strong> dos livros <strong>de</strong><br />
Llosa, das casas que não eram casas, das ruas planas<br />
que davam para os pueblos perdidos, do seu magnífico<br />
centro colonial espanhol que era preciso salvar<br />
do tempo e da ruína. Vi-a por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
viatura blindada, é certo; mas explicada pela voz<br />
doce e muito religiosa do Sr. Bermú<strong>de</strong>z (pai <strong>de</strong><br />
nove filhos, <strong>de</strong>voto da Virgen <strong>de</strong> la Almu<strong>de</strong>na) e<br />
<strong>de</strong>pois comentada pelo diplomata português que<br />
me levou a conhecê-la, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o centro histórico<br />
até aos arredores e aos subúrbios – bela, horrível,<br />
pobre, riquíssima; uma cida<strong>de</strong> injusta e <strong>de</strong>sigual<br />
como poucas que até agora conheci.<br />
No fim, as mesmas viaturas, com seus «cholos»<br />
mudos e colossais, me levaram <strong>de</strong> regresso<br />
ao aeroporto. Os mesmos académicos e autarcas<br />
foram até lá <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> mim. O tal homem<br />
do cabelo envernizado e lambido para a nuca<br />
também não faltou. À <strong>de</strong>spedida, disse um a<strong>de</strong>us<br />
comovido ao Sr. Bermú<strong>de</strong>z, o meu motorista, que<br />
me havia contado toda a sua vida; passei as mesmas<br />
portas e cancelas do dia da chegada, fui sentar-me<br />
à conversa com um dos jurados do tal prémio<br />
literário. Estávamos já na sala <strong>de</strong> embarque,<br />
com o avião à vista. O académico «bebia» a minha<br />
permanência até ao fim, movido pelo prazer<br />
<strong>de</strong> ambos amarmos a poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa,<br />
os romances <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós e os sermões do<br />
Padre António Vieira. Por fim, chegou a hora <strong>de</strong><br />
nos <strong>de</strong>spedirmos: as vozes <strong>de</strong> feltro do aeroporto<br />
convidavam a embarcar os senhores passageiros<br />
Por mim, vivi nove dias<br />
numa Lima <strong>de</strong> prazer<br />
e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s tormentos;<br />
na mesma cida<strong>de</strong> dos livros<br />
<strong>de</strong> Llosa, das casas<br />
que não eram casas,<br />
das ruas planas que davam<br />
para os pueblos perdidos,<br />
do seu magnífico centro<br />
colonial espanhol que era<br />
preciso salvar do tempo<br />
e da ruína<br />
com <strong>de</strong>stino a Madrid. Então<br />
ele, o académico, pondo-se<br />
subitamente muito sério, e<br />
<strong>de</strong>pois ainda cheio <strong>de</strong> mistério<br />
mas já com o melhor<br />
dos sorrisos, puxou-me por<br />
um braço e levou-me até<br />
um canto da sala para que<br />
mais ninguém ouvisse.<br />
Apontou para os índios<br />
guarda-costas que ainda se<br />
disfarçavam por ali, na<br />
sombra. Pediu <strong>de</strong>sculpa,<br />
disse-me que não estranhasse<br />
as medidas <strong>de</strong> segurança<br />
com que me tinham<br />
ro<strong>de</strong>ado durante todas<br />
aqueles dias – mas o caso é<br />
que (e só agora ele achava<br />
por bem revelar-mo!) houvera<br />
uma ameaça <strong>de</strong> rapto e<br />
morte do Sen<strong>de</strong>ro Luminoso contra mim, dias<br />
antes da minha chegada...! Acusado <strong>de</strong> quê? De<br />
ter ido a Lima receber um prémio «burguês».<br />
Motivo mais do que suficiente, ao que parece, para<br />
que os guerrilheiros do Sen<strong>de</strong>ro me raptassem<br />
levando-me para as faldas da cordilheira andina e<br />
aí me <strong>de</strong>golassem sem qualquer pudor, nem<br />
consciência, nem misericórdia...<br />
Disse-mo com o mesmo sorriso simpático e<br />
prodigioso que sempre lhe conheci, um sorriso<br />
complacente e quase infantil, e tão escrupuloso<br />
como o <strong>de</strong> um bandido irrepreensivelmente<br />
educado; um sorriso que por um momento me<br />
confundiu e quase indignou, mas que logo me<br />
pôs também a sorrir como ele então sorria:<br />
olhando-me nos olhos e pedindo repetidamente<br />
<strong>de</strong>sculpa. Com um último abraço <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida,<br />
voltou a <strong>de</strong>sejar-me boa viagem, e muitos e muitos<br />
sucessos futuros na minha carreira <strong>de</strong> escritor,<br />
e um próximo regresso ao Peru, se possível<br />
menos atribulado. E então, num gesto puramente<br />
instintivo, como <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa contra os perigos visíveis<br />
e invisíveis que me haviam ameaçado em Lima<br />
sem que alguma vez tivesse dado por isso, levei<br />
a mão ao bolso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do casaco: tacteei,<br />
apalpei, enchi a mão com os cinco mil dólares<br />
americanos, disse a mim mesmo, com um suspiro<br />
<strong>de</strong> alívio, que aquele não era o dinheiro <strong>de</strong><br />
prémio literário nenhum, mas sim o preço, o incêndio<br />
e o rescaldo da minha vida toda por um<br />
fio. Em Lima, no Peru.
CRUZEIRO DO SUL 114<br />
Neruda<br />
e uma pedra<br />
coberta<br />
<strong>de</strong> musgo<br />
Luis Sepúlveda<br />
115
Neruda na Isla Negra . Foto <strong>de</strong> Antonio Quintana. Archivo Fundación Pablo Neruda
CRUZEIRO DO SUL 116<br />
117<br />
Há algumas semanas, a<br />
jornalista chilena Isabel Lipthay<br />
enviou-me da Alemanha<br />
uma história comovente<br />
que falava <strong>de</strong> outro<br />
Neruda, à margem das justas<br />
celebrações pelos cem<br />
anos do seu nascimento e<br />
que, se tivesse <strong>de</strong> atribuir-<br />
-lhe um título, <strong>de</strong>veria chamar-se<br />
«As razões do silêncio».<br />
Não conheci Pablo Neruda<br />
na sua intimida<strong>de</strong>,<br />
apenas o vi três vezes, mas<br />
essas três ocasiões foram<br />
para mim <strong>de</strong>cisivas para<br />
concluir que, nos olhos <strong>de</strong><br />
Neruda, havia uma tristeza singular, algo assim<br />
como a tristeza dos náufragos que, uma vez salvos<br />
e regressados aos seus lugares <strong>de</strong> origem, não <strong>de</strong>ixam<br />
<strong>de</strong> sentir sauda<strong>de</strong>s da ilha <strong>de</strong>serta na qual foram<br />
Robinson Crusoe, tristeza que cresce com a<br />
certeza <strong>de</strong> que nunca mais regressarão a essa ilha.<br />
A história <strong>de</strong> Isabel Lipthay, brevemente escrita<br />
como <strong>de</strong>vem ser as boas histórias, levou-me a<br />
antecipar uma viagem à Holanda, prevista para<br />
Outubro, e parti <strong>de</strong>cidido a encontrar também<br />
uma pedra esquecida e coberta <strong>de</strong> musgo.<br />
Durante a viagem procurei na melhor biografia<br />
<strong>de</strong> Pablo Neruda, a escrita pelo seu amigo e<br />
companheiro do Partido Comunista Chileno,Volodia<br />
Teitelboim, certamente a melhor que se escreveu,<br />
dados sobre María Antonieta Hagenaar, a mítica<br />
«Holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Java», primeira esposa <strong>de</strong> Neruda<br />
e à qual <strong>de</strong>dicou versos cheios <strong>de</strong> temor e<br />
que mostravam o <strong>de</strong>samor que só se resolve com<br />
o distanciamento <strong>de</strong>finitivo. Não encontrei <strong>de</strong>masiada<br />
informação, apenas pinceladas que confirmam<br />
que esteve, sim, casada com o poeta e que,<br />
juntos, tiveram uma filha, Malva Marina.<br />
Diz-se e sabe-se que as mulheres que acompanharam<br />
Neruda tiveram uma importância capital<br />
na obra do poeta. Com María Antonieta Hagenaar<br />
partilhou os anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterro nos quais a sua<br />
genialida<strong>de</strong> encontrou os elementos para escrever<br />
Resi<strong>de</strong>ncia en la Tierra.<br />
Malva Marina Reyes – Neruda chamava-se<br />
Neftalí Reyes – nasceu em Madrid a 18 <strong>de</strong> Agosto<br />
<strong>de</strong> 1934, foi talvez chamada a ser a flor mais importante<br />
<strong>de</strong>ssa casa madrilena à qual os amigos do<br />
poeta, Antonio Machado, María Teresa León, Gar-<br />
Os versos em que Neruda<br />
fala da sua filha<br />
são tristes, enigmáticos,<br />
como se o poeta<br />
tivesse tentado<br />
salvar-se da dor<br />
com a perfeição<br />
do génio<br />
cía Lorca, Miguel Hernán<strong>de</strong>z,<br />
Rafael Alberti, chamavam com<br />
razão «a casa das flores». Mas<br />
Malva Marina nasceu com o<br />
in<strong>de</strong>lével selo das flores transitórias,<br />
daquelas que não chegam<br />
a mostrar a plenitu<strong>de</strong> das<br />
suas pétalas nem a oferecer a<br />
embriaguez dos seus aromas.<br />
A menina nasceu hidrocéfala e<br />
o seu nascimento marcou<br />
talvez o poeta com uma dor<br />
<strong>de</strong>finitiva, pois não existe dor<br />
mais intensa que a certeza <strong>de</strong><br />
que sobreviveremos aos nossos<br />
filhos.<br />
Os versos em que Neruda<br />
fala da sua filha são tristes,<br />
enigmáticos, como se o poeta tivesse tentado salvar-se<br />
da dor com a perfeição do seu génio: «Oh<br />
niña entre las rosas, oh presión <strong>de</strong> palomas/ oh<br />
presidio <strong>de</strong> peces y rosales/ tu alma es una botella<br />
<strong>de</strong> sal sedienta...» (Oda con un lamento). De toda a rica<br />
correspondência mantida por Neruda, apenas<br />
numa carta dirigida a seu pai menciona a presença<br />
da filha: «Parece que la niña nació antes <strong>de</strong> tiempo,<br />
y ha costado mucho que viva...»<br />
En 1936, os madrilenos preparam-se para a<br />
gran<strong>de</strong> tragédia do fascismo, a República está em<br />
perigo, Neruda é um activista da <strong>de</strong>mocracia, abre<br />
a sua casa a todos os que estão <strong>de</strong>cididos a lutar<br />
contra Franco, e abre também o seu coração a outra<br />
mulher: Delia <strong>de</strong>l Carril, «A Formiguinha»,<br />
pintora e companheira <strong>de</strong> causa. María Antonieta<br />
Hagenaar, a «Holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Java» <strong>de</strong>saparece da<br />
sua vida, e com ela a pequena Malva Marina, que<br />
se retira da vida do poeta com o mesmo silêncio<br />
com que uma sombra <strong>de</strong>saparece.<br />
Nesse mesmo ano <strong>de</strong> 1936, «a la hora <strong>de</strong>l<br />
fuego, al año <strong>de</strong>l balazo», como tão bem o <strong>de</strong>finiu<br />
César Vallejo, a «Holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Java», a sua solidão<br />
<strong>de</strong> abandonada e a pequena Malva Marina <strong>de</strong>ixam<br />
Espanha e partem para a Holanda. Na sua mala,<br />
levam talvez, como única gran<strong>de</strong> recordação, os<br />
versos que lhe escreveu Fe<strong>de</strong>rico García Lorca:<br />
«Niñita <strong>de</strong> Madrid, Malva Marina/ no quiero darte<br />
flor ni caracola:/ ramo <strong>de</strong> sal y amor, celeste<br />
lumbre/ pongo pensando en ti sobre tu boca».<br />
Alheia à beleza e ao horror, longe do amor e<br />
do ódio, Malva Marina continuou a sua existência<br />
vegetal em Gouda, abandonada inclusive pela sua<br />
mãe, que confiou a sua custódia a um casal <strong>de</strong>
Neruda em Machu Picchu, 1943. Archivo Fundación Pablo Neruda
CRUZEIRO DO SUL 118<br />
119<br />
Porque crescem os fetos<br />
nos cemitérios<br />
esquecidos?<br />
Porque escolhem<br />
as pegas esses lugares<br />
para ensaiar<br />
os seus grasnidos?<br />
Porque é o musgo<br />
o sinónimo<br />
do esquecimento?<br />
holan<strong>de</strong>ses. Não soube do fim da República em<br />
Espanha, nem da morte <strong>de</strong> García Lorca, nem da<br />
morte <strong>de</strong> Machado, nem da morte <strong>de</strong> Miguel<br />
Hernán<strong>de</strong>z, nem da morte da poesia quando caiu<br />
a última barricada do bairro madrileno <strong>de</strong> Lavapies.<br />
Não soube que os nazis invadiram a Holanda<br />
e que o horror marchava com música wagneriana<br />
por toda a Europa.Tampouco soube que seu<br />
pai organizava a partir <strong>de</strong> Trompeloup, próximo<br />
<strong>de</strong> Bordéus, a maior operação <strong>de</strong> salvamento <strong>de</strong><br />
republicanos espanhóis perseguidos por Franco e<br />
pelas autorida<strong>de</strong>s pró-nazis da França ocupada. A<br />
água que afogava a sua cabeça manteve-a flutuando<br />
no ventre benigno dos ausentes, e negou-se a<br />
nascer num mundo <strong>de</strong> medo e espanto.<br />
O velho cemitério <strong>de</strong> Gauda é um monumento<br />
nacional, assim mo explica o meu amigo<br />
Gerd Kooster, nenhuma sepultura po<strong>de</strong> ser aberta<br />
ou fechada, <strong>de</strong> tal maneira que a sua eternida<strong>de</strong> é<br />
a mesma frágil eternida<strong>de</strong> do planeta.<br />
Após percorrer durante uma hora os estreitos<br />
carreiros do cemitério, invadidos por uma vegetação<br />
em que predomina o ténue ver<strong>de</strong> da humida<strong>de</strong>,<br />
encontramos a campa <strong>de</strong> Malva Marina, essa<br />
pequena presença do sangue <strong>de</strong> um dos maiores<br />
poetas <strong>de</strong> todos os tempos, e talvez a responsável<br />
pelo ricto <strong>de</strong> tristeza que sempre acompanhou<br />
o seu rosto, como se a água que afogava<br />
Malva Marina se tivesse instalado nas suas olheiras<br />
eternas.<br />
A inscrição que cobre essa lápi<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> cresce<br />
o musgo, é lacónica: «Aquí yace nuestra querida<br />
Malva Marina Reyes nacida en Madrid el 18<br />
<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1934/ fallecida en Gouda el 2 <strong>de</strong><br />
Marzo <strong>de</strong> 1943.»<br />
Porque crescem os fetos nos cemitérios esquecidos?<br />
Porque escolhem as pegas esses lugares<br />
para ensaiar os seus grasnidos? Porque é o musgo<br />
o sinónimo do esquecimento? Porque escreve<br />
Neruda, no seu poema «Farawell»: «<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el<br />
fondo <strong>de</strong> ti y arrodillado/ un niño triste como yo<br />
nos mira»?<br />
Salve, Pablo, Salve Poeta, como tão bem escreveu<br />
Atahualpa Yupanqui, «gracias por la ternura<br />
que nos diste». Quando erguer a minha taça<br />
para brindar pelos teus cem anos <strong>de</strong> Poeta e companheiro,<br />
far-te-ei essas perguntas e muitas outras.<br />
E quando regressar à Isla Negra, às tuas carrancas<br />
<strong>de</strong> proas, às tuas colecções <strong>de</strong> garrafas e<br />
objectos infantis, olharei à beira das escarpas on<strong>de</strong><br />
ainda crescem as Malvas embaladas pela salobre<br />
brisa Marina.
A MARESIA DO MUNDO 120<br />
Ouvir na noite a maresia e ver o arco inteiro dos astros<br />
é pertencer inteiramente ao gran<strong>de</strong> harmónio do universo<br />
Mas nós vivemos em quartos poeirentos<br />
e já não vemos as constelações ofuscadas pelas luzes da cida<strong>de</strong><br />
O silêncio já não tem a placi<strong>de</strong>z planetária<br />
<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> bálsamo <strong>de</strong> sombra universal<br />
Lembro-me ainda na minha terra solar <strong>de</strong> me esten<strong>de</strong>r ao comprido no ladrilho do terraço<br />
<strong>de</strong> frente para as estrelas<br />
e o firmamento inteiro abria-se num vasto leque tranquilamente cintilante<br />
Ondulava na gran<strong>de</strong> embarcação do universo<br />
e respirava o seu vagaroso e rescen<strong>de</strong>nte pulmão<br />
Ninguém navega já assim no espaço<br />
e por isso se per<strong>de</strong>u a fértil lentidão da terra<br />
Se o poema é um búzio em que ressoa a maresia do mundo<br />
po<strong>de</strong>rá ele suscitar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> pertencer à terra<br />
como uma árvore que se inclina sobre as ondas<br />
ou uma torre vegetal <strong>de</strong> sombras embriagadas pela brisa marinha?<br />
Poema inédito <strong>de</strong><br />
António Ramos Rosa<br />
121
Foto <strong>de</strong> João Mariano
FICÇÕES 122<br />
Lagoa Blues<br />
Tabajara Ruas<br />
123
Era raro encontrar alguém que gostasse como<br />
ele <strong>de</strong> Chet Baker.<br />
Pensou isso porque o aparelho <strong>de</strong> som pendurado<br />
num canto do café rodava um CD <strong>de</strong> Stan<br />
Getz. Ao menos parecia <strong>de</strong> Stan Getz, já que uma<br />
voz brasileira emitia um lalálá sincopado e afinadíssimo,<br />
e ele fez a asneira <strong>de</strong> comentar com a<br />
cliente a seu lado que <strong>de</strong>testava esse mingau<br />
aguado que Stan Getz servia.<br />
O café era minúsculo, num canto do posto<br />
<strong>de</strong> gasolina em frente à lagoa, e se chamava Café<br />
do Tom, o que o estimulou a fazer o comentário<br />
com a cliente. A cliente afastou para a testa os<br />
óculos escuros e contemplou-o com todo o <strong>de</strong>sprezo<br />
dos seus olhos ver<strong>de</strong>s.<br />
Sabia que aqueles olhos eram ver<strong>de</strong>s. Era perito<br />
em feições, fora cientificamente preparado<br />
na aca<strong>de</strong>mia em Washington e <strong>de</strong>senvolvera esse<br />
preparo em doze anos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> permanente<br />
na Polícia Fe<strong>de</strong>ral.<br />
Quando a mulher levantou os óculos, saboreou<br />
seu pequeno triunfo, ignorando o <strong>de</strong>sprezo.<br />
A cliente tinha pernas longas e queimadas <strong>de</strong> sol,<br />
o short curtíssimo e <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> pulseiras nos<br />
braços. Ela po<strong>de</strong>ria ser paulista, paranaense ou<br />
gaúcha: a maioria dos freqüentadores do café vinha<br />
<strong>de</strong>sses estados, como as placas dos carros estacionados<br />
em frente mostravam. O feriado <strong>de</strong> Finados<br />
estava em cima e o centrinho da Lagoa da<br />
Conceição estava cheio <strong>de</strong> turistas.<br />
A mulher <strong>de</strong> olhos ver<strong>de</strong>s não tinha jeito <strong>de</strong><br />
turista. Há muito tempo a Lagoa não era apenas o<br />
paraíso buscado pelos visitantes dos feriadões,<br />
mas por pessoas que <strong>de</strong>sejavam uma alternativa<br />
<strong>de</strong> vida ao stress dos gran<strong>de</strong>s centros. A pacata vila<br />
<strong>de</strong> pescadores tinha se transformado rapidamente<br />
num bairro <strong>de</strong> classe média internacional.<br />
Não apenas paulistas e gaúchos tinham aberto casas<br />
<strong>de</strong> comércio ou bares ou restaurantes ou escolas<br />
<strong>de</strong> todo tipo – <strong>de</strong> idiomas, <strong>de</strong> caratê, dança,<br />
meditação transcen<strong>de</strong>ntal – também uma enorme<br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> argentinos, uruguaios, chilenos e<br />
mesmo ingleses e alemães tinham escolhido a Lagoa<br />
para viver.<br />
O cara que ele buscava era francês.<br />
Olhou o relógio. Onze e vinte e cinco. Tinha<br />
cinco minutos para pegar a barca.<br />
Pagou o café, <strong>de</strong>u um último olhar para as<br />
pernas da mulher e saiu procurando manter certa<br />
dignida<strong>de</strong>. Caminhou até a ponte começando a se<br />
tomar <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> vaga e não premeditada<br />
euforia.
FICÇÕES 124<br />
125<br />
Era uma manhã <strong>de</strong> primavera, o vento tinha<br />
parado e o sol caía em cheio na lagoa, que brilhava<br />
como um diamante.<br />
Isto era tudo que queria. Lutara muito pela<br />
transferência para este posto, que só conseguira<br />
graças a sua folha e amigos influentes. Nascera e<br />
vivera em Porto Alegre e, como boa parte dos<br />
porto-alegrenses, alimentava uma secreta fantasia<br />
com Florianópolis e suas praias e seus morros.<br />
Em nenhum momento sentiu <strong>de</strong>cepção. O<br />
trabalho era bem mais fácil: a burocracia cotidiana<br />
com os estrangeiros, carimbar documentos,<br />
certificar-se <strong>de</strong> que os passaportes estavam em dia<br />
e <strong>de</strong> que os vistos estavam nos prazos.<br />
Essa história do tal francês é que estava um<br />
pouco fora dos eixos, mas até que servia <strong>de</strong> pretexto<br />
para um revigorante passeio na lagoa.<br />
A barca da linha chegou, os passageiros <strong>de</strong>sembarcaram<br />
e ele entrou com mais uma dúzia<br />
<strong>de</strong> turistas e moradores da Costa da Lagoa.<br />
A travessia durava quarenta minutos até a Costa,<br />
on<strong>de</strong> só se chegava <strong>de</strong> barca ou a pé, por uma<br />
trilha escarpada. As potentes lanchas particulares,<br />
as «voa<strong>de</strong>iras» segundo os nativos, levavam quando<br />
muito quinze minutos, e passavam vigorosamente<br />
por eles, levantando ondas. Mas apreciava<br />
essa lentidão. Ia em pé, na proa, gozando o sol e a<br />
brisa, acompanhando as gaivotas em vôos circulares,<br />
apreciando os a<strong>de</strong>ptos do wind surf com suas<br />
enormes velas multicores passando perto da barca<br />
e pensando como fora duro <strong>de</strong>ixar o cigarro ao<br />
vislumbrar esse <strong>de</strong>sejo que o assalta <strong>de</strong> repente,<br />
enquanto observa as recém construídas casas dos<br />
ricaços invasores manchando o ver<strong>de</strong> dos morros.<br />
Antes <strong>de</strong> falar com a velha passaria no restaurante<br />
do Índio e encomendaria um almoço, como<br />
lhe recomendara Tomás, veterano freqüentador<br />
dos restaurantes da Costa.<br />
Camarão, dissera Tomás, frito, ao molho, com<br />
pirão, empanado, como quiser. E uma tainha frita,<br />
que é pescada ali mesmo, diante do restaurante.<br />
As tainhas pulavam <strong>de</strong> longe em longe, causando<br />
exclamações dos turistas.<br />
A conversa com a velha não levaria mais do<br />
que alguns minutos. O tal francês tinha <strong>de</strong>saparecido<br />
e o último lugar on<strong>de</strong> tinha sido visto fora<br />
na Costa, on<strong>de</strong> alugara um quartinho da velha. Isso<br />
era tudo. O consulado insistira, o caso caíra na<br />
sua mesa e agora estava aí, <strong>de</strong>sembarcando no trapiche<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, on<strong>de</strong> pneus velhos serviam <strong>de</strong><br />
amortecedores para a barca encostar.<br />
Passou no restaurante do Índio, bebeu um<br />
guaraná, encomendou o almoço e se informou<br />
on<strong>de</strong> era a casa <strong>de</strong> Dona Severina. Antes perguntou<br />
pelo francês. Sim, era conhecido, um bom rapaz,<br />
ficava lá com seus livros, gostava <strong>de</strong> dar gran<strong>de</strong>s<br />
caminhadas, nunca incomodou ninguém. Fazia<br />
algumas semanas que não o viam, já <strong>de</strong>via ter<br />
ido embora.<br />
Caminhou algumas quadras constatando, maravilhado,<br />
que nas ruelas da vila não circulavam<br />
automóveis. Parou numa casinhola um pouco<br />
afastada das <strong>de</strong>mais, a menos <strong>de</strong> quatro metros da<br />
beira da lagoa. Bateu palmas diante do portão.<br />
A velhota era baixinha, dava um pouco acima da<br />
sua cintura, e tinha a postura curvada, como se fosse<br />
corcunda ou tivesse algum grave <strong>de</strong>feito na coluna.<br />
Convidou-o para entrar, que não reparasse<br />
que era casa <strong>de</strong> gente simples, ofereceu um cafezinho<br />
que ele aceitou, sentou na pequena poltrona<br />
forrada <strong>de</strong> plástico, sentiu o cheiro <strong>de</strong> fritura<br />
vindo dos fundos, ouviu latidos.<br />
O moço foi embora, sim, senhor, pagou tudo<br />
direitinho, era um moço muito bom, nunca incomodou.<br />
Desapareceu? Virge. Nunca conheci nenhum<br />
amigo <strong>de</strong>le não senhor.<br />
Nunca recebeu carta não senhor.<br />
Namorada? A velha <strong>de</strong>u um risinho esperto.<br />
Ele era moço, não tem? Moço e bem bonito.<br />
Se mora alguém comigo? Não senhor. Só a<br />
Imaculada. Hóspe<strong>de</strong> ele foi o último. Até que<br />
seria bom. Minha esperança é que agora já vem o<br />
verão, po<strong>de</strong> ser que alugue o quartinho.<br />
Fez mais algumas perguntas sem convicção,<br />
olhando ao redor e vendo quadros <strong>de</strong> familiares<br />
nas pare<strong>de</strong>s, um calendário, uma imagem <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora da Conceição.<br />
A velha tinha uma almofada com bilros na<br />
sua frente e uma toalha <strong>de</strong> renda ainda por terminar.<br />
Deveria ser essa sua principal fonte <strong>de</strong> renda.<br />
Terminou <strong>de</strong> tomar o café, pousou a xícara na<br />
mesinha <strong>de</strong> centro, levantou-se.<br />
A senhora disse que morava com alguém.<br />
Agora ela não está.<br />
Bom...<br />
Percebeu que estava com fome, já passava do<br />
meio-dia, havia camarões e uma tainha esperando<br />
à beira da lagoa. Escolheu uma mesa ao ar livre,<br />
perto do trapiche, e ficou vendo os turistas chegarem<br />
em bandos barulhentos. A comida fazia jus<br />
à fama, acha que abusou um pouco, sentiu-se pesado<br />
e com sono.Tomou um café, pediu a conta e<br />
perguntou com quem Dona Severina morava.
Com ninguém. Ela mora só. Há anos ela mora<br />
só.<br />
Ficou cismando enquanto esperava o troco e<br />
calculava quanto tempo teria antes da próxima<br />
barca. Talvez fosse um <strong>de</strong>talhe sem importância,<br />
mas um francês <strong>de</strong>saparecido po<strong>de</strong> trazer complicações<br />
para um <strong>de</strong>partamento inteiro. Precisava<br />
fazer um relatório. Um <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong>sses não passaria<br />
por alto aos tiras do consulado e muito menos na<br />
embaixada.<br />
Tornou a bater palmas diante do portão.<br />
Dona Severina não apareceu. Esperou um<br />
pouco, abriu o portão e avançou pelo pequeno<br />
pátio. Espiou pela porta entreaberta. Ninguém na<br />
sala. Deu a volta à casa, ficou outra vez diante da<br />
imensidão da lagoa, observou os paragli<strong>de</strong>s coloridos<br />
flutuando no céu, aproximou-se da porta<br />
que <strong>de</strong>veria ser da cozinha, ninguém ali <strong>de</strong>ntro.<br />
Mas havia pequenos ruídos, algo rangendo.<br />
Enfiou a cabeça na cozinha, uma porta ligava<br />
a outra peça. Na penumbra <strong>de</strong>ssa peça viu um pé,<br />
calçado com botina, escapando <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong>, e<br />
não era o pé <strong>de</strong> Dona Severina. Era <strong>de</strong> um homem,<br />
e dormia uma sesta pesada.<br />
O senhor voltou.<br />
Dona Severina estava atrás <strong>de</strong>le. Tinha levado<br />
um pequeno susto, foi obrigado a sorrir.<br />
Preciso lhe perguntar mais uma coisa, se não<br />
incomodo.<br />
Deram a volta à casa, entraram outra vez na<br />
sala, sentou outra vez na poltrona forrada <strong>de</strong> plástico,<br />
aceitou o cafezinho.<br />
Dormindo na re<strong>de</strong>? O Antônio.<br />
Não, ele não é hóspe<strong>de</strong>. Mais açúcar?<br />
Ah, a Imaculada. Ela só aparece <strong>de</strong> noite.<br />
Me ajuda um pouco.<br />
Mais café? O senhor está ficando branco.<br />
O banheiro é aqui do lado. O senhor não<br />
repare.<br />
Levantou-se amaldiçoando o almoço, o café,<br />
o vento da lagoa que começava a soprar. O assoalho<br />
pareceu mover-se, agarrou a porta do banheiro<br />
para não cair, viu o homem na re<strong>de</strong>, enorme,<br />
ressonando. Um frio o invadia, um frio enorme,<br />
um frio paralisante e viu que sua mão escorregava<br />
lentamente pela porta do banheiro. Era patético,<br />
mas sentiu que ia <strong>de</strong>smaiar, abriu a boca para pedir<br />
ajuda, mas não conseguiu dizer nada.<br />
O assoalho aproximou-se rapidamente <strong>de</strong> sua<br />
cabeça e ouviu um estrondo misturado ao grito<br />
das gaivotas lá fora.<br />
Abriu os olhos muito <strong>de</strong>vagar, sentindo alí-<br />
vio, sentindo os membros amolecidos. Estava recostado<br />
numa cama no quarto em penumbra, o<br />
homem ainda ressonava na re<strong>de</strong>, a três passos <strong>de</strong>le,<br />
mas teve a impressão <strong>de</strong> que passara bastante<br />
tempo.<br />
Pela janela entreaberta viu que o céu estava<br />
rosado. Já era o crepúsculo! Moveu o rosto. Dona<br />
Severina, na sala, trabalhava na toalha <strong>de</strong> renda,<br />
movendo com habilida<strong>de</strong> os bilros. Abriu a boca<br />
para chamar por ela, mas não conseguiu articular<br />
nenhum som. Percebeu que estava encharcado <strong>de</strong><br />
suor, e <strong>de</strong> que era um suor frio, quase gelado.<br />
O homem na re<strong>de</strong> continuava imóvel. Estava<br />
vestido com uma roupa caqui, grossa, e suas pesadas<br />
botinas pendiam para fora da re<strong>de</strong>. O homem<br />
se moveu. Usava uma jaqueta <strong>de</strong> couro, forrada<br />
<strong>de</strong> lã e uma coisa estranha na cabeça. O homem<br />
se acomodou melhor.Viu, então, espantado,<br />
que o homem usava um capacete <strong>de</strong> aviador, um<br />
<strong>de</strong>sses capacetes <strong>de</strong> pilotos da Segunda Guerra,<br />
com óculos gran<strong>de</strong>s e barbicacho pen<strong>de</strong>ndo dos<br />
lados do rosto.<br />
Tentou falar, tentou se mover, mas sentia uma<br />
fraqueza <strong>de</strong>molidora, que o <strong>de</strong>ixava imóvel e in<strong>de</strong>feso.<br />
Dona Severina fazia sua toalha. Um mosquito<br />
começou a circular perto da sua cabeça.<br />
Uma lua enorme, uma lua cheia, uma lua amarela<br />
e ameaçadora apareceu na fresta da janela e esparramou<br />
sua luz na penumbra do quarto.<br />
O homem na re<strong>de</strong> tinha a cara <strong>de</strong> Saint-Exupéry.<br />
Nunca se enganava com um rosto. Sabia que<br />
era uma bobagem, mas nunca se enganava com<br />
um rosto.<br />
Tentou respirar fundo, tentou com toda a calma<br />
articular algum som e mover pelo menos um<br />
<strong>de</strong>do da mão, mas era impossível. Foi quando percebeu<br />
o leve ranger. Um vulto rastejava no assoalho.<br />
Dona Severina fazia sua toalha. O piloto se<br />
mexeu na re<strong>de</strong>. Um vulto rastejava no assoalho,<br />
percebeu pequenos brilhos que se <strong>de</strong>slocavam.<br />
Na faixa <strong>de</strong> luar apareceu a cabeça da cobra. Rastejou<br />
até a perna do piloto, pen<strong>de</strong>ndo da re<strong>de</strong>, e<br />
se enroscou nela, suavemente.<br />
Agora vou me levantar, vou gritar, vou fazer<br />
um escarcéu, mas continuava paralisado, entorpecido<br />
<strong>de</strong> frio e começando a achar que era hora <strong>de</strong><br />
acordar do pesa<strong>de</strong>lo.<br />
Dona Severina olhou para ele. Dona Severina<br />
disse Imaculada chegou, sem parar <strong>de</strong> fazer a<br />
toalha.<br />
O piloto olhou para os lados, talvez sem saber<br />
porquê, <strong>de</strong>spertara <strong>de</strong> repente.
FICÇÕES 126<br />
127<br />
Precisava avisá-lo, precisava avisá-lo! Com <strong>de</strong>sespero,<br />
observava o imenso animal subindo em<br />
direção à cabeça do piloto.<br />
O piloto sente algo. Isso morno sobe na sua<br />
perna, sem fazer pressão nem vacilar, confiante. A<br />
cabeça é esguia e larga, a língua pequena e pontuda,<br />
os olhos circulares e friamente sem expressão.<br />
O piloto duvidou um momento entre ter<br />
medo e aceitar o estranho companheiro.<br />
Cuidado, precisava gritar, a cobra! Um esticão,<br />
o recolher da perna como se um escorpião a<br />
tivesse picado e o pequeno grito. E, então, Imaculada<br />
passou da langui<strong>de</strong>z amorosa para a velocida<strong>de</strong><br />
do caçador saltando sobre a presa.<br />
Subiu no ar escurecido, alta, curva, e durante<br />
segundos que parecem pingos <strong>de</strong> água crescendo<br />
na ponta <strong>de</strong> uma torneira, imobilizou-se, agora<br />
ameaçadora.<br />
Banhado no suor do seu terror, a viu como<br />
um animal <strong>de</strong> outra época, um dragão aquático,<br />
ver<strong>de</strong> escuro e liso, quase roçando o teto <strong>de</strong> palha,<br />
curvado sobre a re<strong>de</strong>, começando a tornar-se<br />
fosfóreo, inchando <strong>de</strong> excitação ou malda<strong>de</strong> ou<br />
apenas susto. E viu também o branco horror do<br />
piloto, sua contração, a <strong>de</strong>ntadura postiça que vomitou<br />
e o espasmo que o acometeu quando viu a<br />
gran<strong>de</strong> cobra imóvel no ar morno, fitando-o com<br />
seus dois olhos perfeitamente circulares. A cobra<br />
<strong>de</strong>sceu sobre ele antes que pu<strong>de</strong>sse fazer um gesto<br />
e o envolveu num abraço apertado. Descobriu<br />
que não podia escapar. Descobriu que se urinava<br />
e as vísceras afrouxavam. Uivou. O piloto uivava.<br />
Imaculada lançou com um som mole novo abraço<br />
e envolveu o tórax do piloto com um segundo<br />
anel, grosso como pneu <strong>de</strong> caminhão. A cabeça <strong>de</strong><br />
Imaculada ergueu-se ameaçadora sobre a cabeça<br />
do piloto. O piloto livrou um braço, o braço esticou<br />
como catapultado e a gran<strong>de</strong> mão peluda a<br />
agarrou um palmo abaixo da cabeça. O piloto era<br />
forte: a mão grudou-se como tenaz à pele escamosa,<br />
o esforço o fazia mudar <strong>de</strong> cor, os olhos<br />
pareciam prestes e explodir. Caíram da re<strong>de</strong> com<br />
um som fofo, embolados. Imaculada aliviou a<br />
pressão e o piloto livrou o outro braço e <strong>de</strong>senroscou-se<br />
numa agitação histérica, chocou contra<br />
a pare<strong>de</strong> e a peça toda estremeceu. Compreen<strong>de</strong>u<br />
que não podia fazer absolutamente nada para salvar<br />
a vida, a não ser fechar os olhos e ficar completamente<br />
imóvel. O corpo vertebrado <strong>de</strong> Imaculada<br />
apertou a perna do piloto até este pensar<br />
que ela seria triturada e viu o animal erguer-se<br />
bem alto e preparar o bote. Estava outra vez fosfo-<br />
rescente ou talvez fosse o luar entrando pelas<br />
frestas da pare<strong>de</strong>. Os insetos <strong>de</strong> longas asas circulavam<br />
alucinados, Imaculada <strong>de</strong>u o bote e enlaçou<br />
a outra perna. O homenzarrão caiu com estrépito,<br />
uivando outra vez, gritando, papai, papai,<br />
como uma criança, tentando mor<strong>de</strong>r a cabeça do<br />
bicho que <strong>de</strong>u mais uma laçada, afrouxou e então<br />
apertou com firmeza fazendo algo estalar <strong>de</strong>ntro<br />
do piloto. Agora afrouxou novamente, <strong>de</strong>senroscou-se<br />
da perna e tornou a dar um longo, silencioso<br />
abraço, lentamente <strong>de</strong>scendo em curva, envolvente<br />
e vivo, pulsando duma energia ávida. O<br />
piloto começou a ser estrangulado. A cobra fez<br />
mais uma pressão e outro estalo seco fez ferida<br />
no seu cérebro. Não queria mais ver isso! Escon<strong>de</strong>u<br />
a cabeça no peito. Imaculada agora envolvia,<br />
outra vez, e com certa pressa nos movimentos, as<br />
pernas do piloto, fazendo-o dar voltas sobre voltas,<br />
já com o rosto completamente roxo e os olhos esbugalhados.<br />
Imaculada foi afrouxando o aperto, a<br />
cor roxa foi <strong>de</strong>saparecendo do rosto do piloto,<br />
soltou um braço, soltou o outro. Abriu um olho e<br />
não acredita, mas parece que viu um brilho <strong>de</strong><br />
satisfação no olhar do monstro fosfóreo que farfalhava<br />
suavemente na habitação, <strong>de</strong>senroscando-se<br />
do corpo do piloto que esten<strong>de</strong>u os braços livres<br />
e agarrou com as duas mãos peludas dois palmos<br />
abaixo da cabeça sorri<strong>de</strong>nte do animal. Imaculada<br />
abriu a boca e todo seu longo e pesado corpo se<br />
contraiu como acumulando forças. As mãos do<br />
piloto a levantavam vagamente ver<strong>de</strong> e vagamente<br />
luminosa no lusco fusco riscado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s insetos<br />
e sua boca foi crescendo. Paralisado na cama a<br />
viu crescer. Ela abriu a bocarra com um ranger <strong>de</strong><br />
molas e foi abrindo ainda mais do que ele acreditava<br />
e a língua pontuda e negra passeou nas orelhas<br />
do piloto e então as rangentes mandíbulas se<br />
fecharam e engoliram a cabeça arrepiada. Parecia<br />
que o monstro <strong>de</strong>vorava a si mesmo. O silêncio<br />
absoluto envolveu o quarto. Escutou o fremir das<br />
asas dos insetos e o cicio das folhas no matagal<br />
distante. O monstro era um corpo circular, grosso<br />
e fosforescente, imobilizado na penumbra do<br />
quarto. O piloto era aquele corpo paralisado pelas<br />
várias voltas que o monstro <strong>de</strong>ra nele, o tórax estalante<br />
on<strong>de</strong> o coração pulsava apertado e os pulmões<br />
não bombeavam ar. Imaculada não havia<br />
utilizado os <strong>de</strong>ntes. Apertava a cabeça do piloto<br />
com os músculos que circundavam sua boca. O<br />
piloto começou a retirar as mãos peludas <strong>de</strong> redor<br />
do corpo <strong>de</strong> Imaculada e <strong>de</strong>bateu-as no ar, lentas<br />
e patéticas e sem uso. E Imaculada inteira estre-
meceu percorrida por um calafrio e houve uma<br />
vertiginosa sucessão <strong>de</strong> contrações e cada contração<br />
correspon<strong>de</strong>u a um estalo nas pernas do piloto<br />
que se contorceu <strong>de</strong> repente num furor apoplético,<br />
tornou a grudar as mãos peludas no corpo<br />
do animal e começou a forcejar como alguém<br />
que tem um capuz apertado enfiado na cabeça.<br />
Banhado no suor <strong>de</strong> seu terror viu, comovido,<br />
horrorizado, afogado pelo soluço trancado na<br />
garganta, o corpo todo dormente e gelado, num<br />
<strong>de</strong>slumbramento viu o piloto arrancar <strong>de</strong> sua cabeça<br />
a cabeça do monstro como um ser nascendo<br />
num parto fantástico. O piloto engoliu ar e uivou<br />
com toda a força dos seus pulmões achatados um<br />
grito cavernoso e flamejante e continuou gritando<br />
ou talvez já não fosse o grito o que continuava<br />
a ressoar em seus ouvidos mas seu próprio grito<br />
<strong>de</strong> terror porque a cabeça do piloto caíra mole<br />
para um lado embora continuasse a emitir o resto<br />
do grito.<br />
Deixou a cabeça bater na guarda <strong>de</strong> ferro da<br />
cama, exausta <strong>de</strong> horror. Descobriu o silêncio da<br />
peça. Há o fremir das asas dos gran<strong>de</strong>s insetos e<br />
há o mato imóvel, prateado pela lua, e ciciando<br />
intrigas <strong>de</strong> coruja para coruja e <strong>de</strong> galho para galho.<br />
Há, ainda, o rufar do coração e o indiferente<br />
mosquito que busca insistente um alvo para sua<br />
ávida agulha. Imaginou o animal (a cobra) tornando-se<br />
mais brilhante, quase azul, e imaginou<br />
que ele sobe novamente no ar parado. Uma gota<br />
<strong>de</strong> suor <strong>de</strong>sliza pela testa, sabe quando ela pinga<br />
no assoalho. O piloto está calado. Tudo respira<br />
ofegante.<br />
Uma vez por ano há um crepúsculo em Porto<br />
Alegre que é o mais belo <strong>de</strong> todos os crepúsculos<br />
já havidos no planeta e concebeu para si a pequena<br />
lenda <strong>de</strong> que o dia que visse esse crepúsculo<br />
sentado num banco da Praça Argentina e tivesse a<br />
coragem <strong>de</strong> escolher esse crepúsculo como o<br />
mais belo crepúsculo jamais havido seria honrado<br />
com uma graça e se tornaria po<strong>de</strong>roso.<br />
Já escolheu esse crepúsculo e talvez tenha havido<br />
um equívoco na forma como recebeu o po<strong>de</strong>r,<br />
pois se é que o possui ainda não <strong>de</strong>scobriu a<br />
maneira <strong>de</strong> utilizá-lo. Sentiu a picada do mosquito<br />
sugando o lóbulo <strong>de</strong> sua orelha direita. Sentiu<br />
uma gana <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> espantá-lo, <strong>de</strong> acertar-<br />
-lhe um tapa, <strong>de</strong> coçar o lugar que latejava como<br />
um nervo.<br />
Porto Alegre completamente vazia numa<br />
quinta-feira chuvosa às cinco horas da tar<strong>de</strong>. Nenhuma<br />
pessoa, nenhum carro, nenhum ruído a<br />
não ser o da chuva e dos meus passos. Todos <strong>de</strong>sapareceram.<br />
Subo a gola do meu impermeável.<br />
Olho ao redor imaginando o crepúsculo que se<br />
esvai no meu coração.<br />
Imaculada está dando mais uma volta no<br />
tórax do piloto e agora o comprime.<br />
Fecha os olhos simultaneamente com o estalo<br />
das costelas. Imaculada abre a gran<strong>de</strong> boca com o<br />
ranger <strong>de</strong> molas e fecha-a suavemente sobre o rosto<br />
<strong>de</strong>stroçado do piloto, sem fazer nenhum movimento<br />
brusco, mas com certo cuidado e atenção.<br />
Deu ainda mais duas voltas no corpo e <strong>de</strong> repente<br />
contraiu-se com imperceptível espasmo, triturando<br />
como numa mó os ossos das pernas do piloto.<br />
Ficou longamente imóvel. A aura fosforescente foi<br />
se tornando mais fraca, o tom azulado foi ce<strong>de</strong>ndo<br />
a uma alvura menor e mais fria, e o silêncio foi<br />
restabelecendo uma or<strong>de</strong>m nova e sossegada no<br />
âmbito ainda trêmulo da habitação.<br />
Havia longuíssimos hiatos <strong>de</strong> silêncio, cortados<br />
pelo discreto estalar <strong>de</strong> ossos quando Imaculada<br />
acomodava seus anéis através <strong>de</strong> leves estremeções<br />
que se propagavam como uma onda.<br />
Dona Severina continuava a tecer sua toalha.<br />
Lembrou da mulher <strong>de</strong> olhos ver<strong>de</strong>s que encontrara<br />
pela manhã no café e então tirou todo e<br />
qualquer pensamento da cabeça enquanto olhava<br />
os estranhos e enigmáticos <strong>de</strong>senhos que a lua<br />
cheia traçava na pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> bambu e enquanto a<br />
dimensão do seu ódio pelo minúsculo vampiro<br />
que dava voltas em torno <strong>de</strong> sua orelha crescia e<br />
enquanto um pequeno lagarto ver<strong>de</strong> estirava a rápida<br />
língua em direção aos insetos, apanhava-os e<br />
os engolia com um ar regalado.<br />
Não tem?
CORRENTES ATLÂNTICAS 128<br />
129<br />
O que vem das Américas. Às<br />
vezes, são boleros que nos<br />
fazem reencontrar com a pai-<br />
xão, como os que nos chega-<br />
ram através do projecto<br />
«Buenavista Social Club», ao<br />
som <strong>de</strong> Compay Segundo,<br />
Rúben González, Ibrahim<br />
Ferrer e Omara Portuondo<br />
ou, mais recentemente, com
vozes como as <strong>de</strong> Pablo Mila-<br />
nés, Tania Libertad e Soledad<br />
Bravo. Outras vezes, po<strong>de</strong> ser<br />
uma motocicleta <strong>de</strong> Che atra-<br />
vessando o Atlântico para<br />
nos fazer acreditar <strong>de</strong> novo<br />
na utopia. Ou até o mito <strong>de</strong><br />
Gar<strong>de</strong>l, fragilizado por uma<br />
biografia que oscila entre a<br />
verda<strong>de</strong> e a ficção.
CORRENTES ATLÂNTICAS 130<br />
E se Gar<strong>de</strong>l não fosse argentino nem tivesse morrido<br />
num aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> aviação, mas <strong>de</strong> um complot mafioso?<br />
Movendo-se entre os limites do histórico e do ficcional,<br />
Horacio Vázquez-Rial reconstrói <strong>de</strong> forma apaixonante<br />
a biografia do cantor no seu livro As Duas<br />
Mortes <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l, recentemente editado em<br />
Portugal. O autor <strong>de</strong>ixa-nos agora mais alguns dados<br />
para melhor se compreen<strong>de</strong>r a ficção.<br />
O verda<strong>de</strong>iro<br />
nascimento <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l<br />
Horacio Vázquez-Rial<br />
131
O falso coronel Carlos Escayola,<br />
que nunca fez carreira<br />
militar, foi um precursor do<br />
pior: tinha algo dos repressores<br />
que no século XX fariam <strong>de</strong>saparecer<br />
os cidadãos incómodos,<br />
algo do que os torturadores<br />
exerceriam com os <strong>de</strong>saparecidos<br />
e também algo do agora célebre<br />
Marc Doutroux. Na sua estância,<br />
entravam opositores políticos<br />
ao governo que jamais voltariam<br />
a sair, aos quais se obrigava<br />
a confessar coisas que jamais<br />
haviam feito. A casa em<br />
que vivia, em Tacuarembó, comunicava<br />
por uma entrada interior<br />
com a que ocupavam a argentina<br />
Juana Sghirla, mulher<br />
forte, atraente e <strong>de</strong> má fama, e o<br />
marido, Juan Bautista Oliva,<br />
cônsul italiano em Tacuarembó.<br />
O domicílio dos Oliva Sghirla<br />
constituiu-se em viveiro <strong>de</strong> meninas<br />
para <strong>de</strong>sfrute do coronel.<br />
Escayola e Juana Sghirla<br />
eram amantes, quiçá a sabendas<br />
<strong>de</strong> Oliva e apesar <strong>de</strong> a mulher ser<br />
bastante mais velha do que ele.<br />
Isso não impediu que a senhora<br />
incentivasse as bodas sucessivas<br />
do coronel com as suas filhas<br />
Clara, com a qual se casou em<br />
1868, Blanca, com a qual se<br />
uniu em 1873, ao enviuvar da<br />
primeira, e María Lelia, que seguiu<br />
o mesmo <strong>de</strong>stino em 1889,<br />
após a morte <strong>de</strong> Blanca.Tudo parece<br />
indicar que María Lelia, a<br />
mais nova, era filha <strong>de</strong> Escayola,<br />
pelo que o santo matrimónio <strong>de</strong><br />
ambos supunha a prática <strong>de</strong> incesto.<br />
Claro que esse é um pecado<br />
menor, à vista dos acontecimentos<br />
que prece<strong>de</strong>ram a sua<br />
boda: em 1883, quando só tinha<br />
catorze anos e <strong>de</strong>sempenhava o<br />
papel <strong>de</strong> cunhada, María Lelia ficou<br />
grávida do coronel, e po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>duzir-se dos relatos fragmentários<br />
que os investigadores recolheram,<br />
muitos anos <strong>de</strong>pois,<br />
que a menina não se prestou voluntariamente<br />
aos apetites <strong>de</strong> seu<br />
pai biológico, mas que foi violada.<br />
Uma vez constatada a gravi<strong>de</strong>z<br />
da vítima, houve consenso<br />
familiar quanto à conveniência<br />
<strong>de</strong> retirá-la <strong>de</strong> circulação até que<br />
parisse: ninguém <strong>de</strong>veria inteirar-se<br />
da existência <strong>de</strong>sse ventre,<br />
nem da do menino que nasceria<br />
<strong>de</strong>le, <strong>de</strong> modo que foi enviada<br />
para a estância Santa Blanca, a<br />
E sobre essa voz<br />
gravada podia-se construir<br />
uma história,<br />
qualquer uma. Por<br />
exemplo, a do bom<br />
filho da boa mãe<br />
solteira, trabalhadora<br />
e dignamente pobre.<br />
Pura hagiografia.<br />
A realida<strong>de</strong> é<br />
sempre mais terrível<br />
que a ficção<br />
mesma que servia <strong>de</strong> cárcere e<br />
<strong>de</strong> matadouro político. Aí, no<br />
maior dos segredos, viu a luz,<br />
em finais <strong>de</strong> 1883, um menino,<br />
oportunamente apagado <strong>de</strong> todos<br />
os registos. Esse menino, filho<br />
do estupro, da violação e do<br />
incesto, foi, com o correr do<br />
tempo, Carlos Gar<strong>de</strong>l.<br />
A suposta mãe, Berta Gardés,<br />
uma imigrante francesa,<br />
amante ocasional do coronel Escayola<br />
e prostituta ocasional, viu-<br />
-se comprometida com o cuidado<br />
da criatura contra a sua vonta<strong>de</strong>.<br />
Nunca houve entre eles confiança,<br />
nem sequer simpatia, e<br />
Gar<strong>de</strong>l afastou-se <strong>de</strong>la tão <strong>de</strong>pressa<br />
quanto pô<strong>de</strong>. A sua passagem à<br />
história como mãe do cantor <strong>de</strong>-<br />
veu-se à morte imprevista <strong>de</strong>ste<br />
em Me<strong>de</strong>llín, sem filhos reconhecidos,<br />
nem casamento, nem<br />
parentes: inventou-se-lhe uma<br />
mãe, e falsificaram-se um testamento<br />
e um registo <strong>de</strong> nascimento,<br />
para que os seus bens, os<br />
que tinha em vida e os que as<br />
suas obras e discos gerariam durante<br />
largos anos, não fossem<br />
parar ao Estado por direito público.<br />
Dona Berta herdou e em<br />
seguida ce<strong>de</strong>u o seu legado a testas-<strong>de</strong>-ferro<br />
e gerentes das máfias<br />
que sempre pulularam em<br />
torno da indústria do espectáculo:<br />
Holywood, Las Vegas, Havana<br />
e as carreiras <strong>de</strong> artistas como<br />
Frank Sinatra são produto das<br />
máfias, sobretudo a italiana e secundariamente<br />
a judia, que encontraram<br />
no teatro, no cinema,<br />
nos discos e nos casinos um negócio<br />
óptimo para os gran<strong>de</strong>s<br />
investimentos, com excelsas<br />
margens <strong>de</strong> lucro, e para a correspon<strong>de</strong>nte<br />
lavagem <strong>de</strong> dinheiro<br />
proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outros tráficos,<br />
ainda mais obscuros.<br />
O mito <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l não se<br />
construiu durante a sua vida. Até<br />
à sua morte, Gar<strong>de</strong>l fez uma carreira<br />
normal, e não seria arriscado<br />
dizer que a sua passagem ao cinema<br />
e ao disco teve a ver com a<br />
<strong>de</strong>cadência da sua voz, que começava<br />
já a ser dificilmente audível<br />
nas salas <strong>de</strong> teatro, que não<br />
dispunham dos recursos técnicos<br />
que hoje sustentam qualquer<br />
garganta para além das suas possibilida<strong>de</strong>s<br />
reais. Morto, já não<br />
haveria mudanças: a voz seria<br />
para sempre a que estava gravada.<br />
E sobre essa voz gravada<br />
podia-se construir uma história,<br />
qualquer uma. Por exemplo, a<br />
do bom filho da boa mãe solteira,<br />
trabalhadora e dignamente<br />
pobre. Pura hagiografia. A realida<strong>de</strong><br />
é sempre mais terrível que<br />
a ficção.
CORRENTES ATLÂNTICAS 132<br />
Se Cuba foi o berço do bolero, o México e Porto Rico<br />
perfilharam-no e universalizaram-no, fazendo <strong>de</strong>le,<br />
<strong>de</strong>finitivamente, verso e dança, intimida<strong>de</strong> ímpar,<br />
colóquio e sensualida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o par ia fundindo sentimentos<br />
e ansieda<strong>de</strong>s, alimentando sonhos e utopias<br />
românticas.<br />
O bolero<br />
em tempo <strong>de</strong> amor<br />
Alberto Mosquera Moquillaza<br />
133
A Buenavista Social Club, a<br />
banda cubana do momento,<br />
tem o mérito <strong>de</strong> ter afrontado<br />
a globalizada indolência sentimental<br />
com que o Oci<strong>de</strong>nte<br />
encerrou o século XX. Os seus<br />
sons e boleros clássicos, com<br />
tantos ou mais anos que os<br />
seus cansados mas rejuvenescidos<br />
cantores, voltaram a<br />
electrizar multidões, como se<br />
tivéssemos entrado no túnel<br />
do tempo para nos reencontrarmos<br />
com a paixão e o sabor<br />
<strong>de</strong> que os nossos pais e<br />
avós fizeram gala, quando,<br />
apesar da dureza da vida, o<br />
cantar e o bailar, ao aproximá-<br />
-los, os tornava verda<strong>de</strong>iramente<br />
humanos.<br />
Para o gozo do amor não<br />
há limites no tempo porque, assim<br />
como po<strong>de</strong> haver amores<br />
que durem toda uma vida, também<br />
po<strong>de</strong>m existir os tempestuosamente<br />
efémeros, mas <strong>de</strong><br />
marcas in<strong>de</strong>léveis, e – porque<br />
não? – os amores <strong>de</strong> ocasião. A<br />
ida<strong>de</strong> tampouco é uma barreira<br />
intransponível: em cada um <strong>de</strong><br />
nós, homem ou mulher, po<strong>de</strong><br />
escon<strong>de</strong>r-se um Florentino Ariza<br />
ou uma Fermina Daza, os velhos<br />
amantes <strong>de</strong> O Amor nos Tempos<br />
da Cólera que, com os seus corações<br />
estilhaçados – não precisamente<br />
pelo tempo, mas pelo<br />
amor – alcançaram o paraíso no<br />
final das suas vidas. «Eu creio,<br />
com Florentino Ariza, que, se a<br />
gente continua, o corpo continua.<br />
E eu creio que a gente continua<br />
se há amor. Sempre», diria<br />
García Márquez, autor <strong>de</strong>sse<br />
monumento literário, numa entrevista<br />
em torno do amor, da<br />
velhice e da morte.<br />
DOS GARDENIAS<br />
Dessas encruzilhadas <strong>de</strong><br />
paixões, com os seus altos e<br />
baixos, surgiu e expandiu-se o<br />
bolero para levar ao êxtase os<br />
encontros furtivos ou abertos,<br />
consentidos ou proibidos, ou<br />
para mitigar na nostalgia a dor<br />
da separação ou da traição trapera;<br />
ainda que muitos prefiram a<br />
encantadora celestinaje dos seus<br />
versos e compassos para exclamar,<br />
com a cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Isolina Carrillo: «Dos gar<strong>de</strong>nias<br />
para ti:/ con ellas quiero <strong>de</strong>cir:/<br />
«Te quiero, te adoro, mi vida»./<br />
Ponle toda tu atención,/ que serán<br />
tu corazón y el mío/»; ou,<br />
quiçá, a partir da nossa ansiosa<br />
sauda<strong>de</strong>, alentados pela criativida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> María Graver, <strong>de</strong>sejar: «Si<br />
yo encontrara un alma/ como la<br />
mía,/ ¡cuántas cosas secretas/ le<br />
contaría!:/ un alma que, al mirarme,<br />
sin <strong>de</strong>cir nada,/ me lo dijese<br />
todo/ con la mirada;/ un alma<br />
que embriagase/ con suave<br />
aliento,/ que al besarme sintiera<br />
/ lo que yo siento.»<br />
Não interessava que Carrillo<br />
fosse cubana ou mexicana; o<br />
mais importante era a sua linguagem,<br />
a do amor, cultivado e<br />
enriquecido em cada um dos<br />
boleros que os inspirados criadores<br />
nos foram entregando,
CORRENTES ATLÂNTICAS 134<br />
durante décadas, nos quais milhões<br />
<strong>de</strong> latino-americanos embalaram<br />
as suas ansieda<strong>de</strong>s, sem<br />
saberem, muitas vezes, no caso<br />
dos varões, que podiam estar<br />
afogando as suas emoções por<br />
uma mulher nas sentimentais letras<br />
escritas por outra mulher.<br />
Porque se não era Carrillo ou<br />
Graver, podia ser a mexicana<br />
Consuelo Velásquez que embelezava<br />
com o seu «Bésame/ bésame<br />
mucho/ como si fuera esta<br />
noche/ la última vez/ Bésame/<br />
bésame mucho/ que tengo miedo<br />
a per<strong>de</strong>rte/ per<strong>de</strong>rte otra vez».<br />
Se Cuba foi o berço do<br />
bolero, o México e Porto Rico<br />
perfilharam-no e universalizaram-no,<br />
fazendo <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>finitivamente,<br />
verso e dança, intimida<strong>de</strong><br />
sem par, colóquio e sensualida<strong>de</strong>,<br />
on<strong>de</strong> o par ia fundindo<br />
sentimentos e ansieda<strong>de</strong>s, alimentando<br />
sonhos e utopias românticas<br />
<strong>de</strong> alta voltagem, num<br />
ca<strong>de</strong>nciado movimento corporal<br />
que, para os especialistas,<br />
não <strong>de</strong>via ultrapassar o espaço<br />
<strong>de</strong> uma pequena lousa. E se nasceu<br />
nas ruas e esquinas <strong>de</strong> Santiago<br />
<strong>de</strong> Cuba, da simples, mas<br />
inflamada inspiração <strong>de</strong> guitarristas<br />
enamorados – virtuosos<br />
expoentes da fusão <strong>de</strong> elementos<br />
hispânicos, africanos e cubanos<br />
–, conforme avançou para<br />
Havana, Veracruz, San Juan <strong>de</strong><br />
Puerto Rico ou outras cida<strong>de</strong>s<br />
latino-americanas, foi ganhando<br />
em soli<strong>de</strong>z musical e lirismo,<br />
para expressar com liberda<strong>de</strong> as<br />
infinitas estações e situações do<br />
amor, que costumam ir do êxtase<br />
da alma pelo amor <strong>de</strong>sejado<br />
ou conquistado até à dor <strong>de</strong><br />
uma separação irreversível.<br />
Assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras<br />
décadas do século XX, o bolero<br />
abriu cenários inéditos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />
musical, que eliminou<br />
fronteiras e <strong>de</strong>marcações so-<br />
135<br />
Dessas encruzilha-<br />
das <strong>de</strong> paixões,<br />
com os seus altos<br />
e baixos,<br />
surgiu o bolero<br />
para levar ao êxtase os<br />
encontros furtivos ou<br />
abertos, consentidos<br />
ou proibidos<br />
ciais. Esplêndidas gerações <strong>de</strong><br />
autores e intérpretes lendários,<br />
cantando a vida a partir da vida,<br />
confundiram-se num só rosto<br />
<strong>de</strong> entregas musicais, nas quais<br />
o bolero alcançou novas dimensões,<br />
ao confundir-se e enriquecer-se<br />
com o son, o chachachá e o<br />
mambo, <strong>de</strong> raiz cubana, e a ranchera<br />
<strong>de</strong> origem mexicana; e cujos<br />
cultores, ao fazerem da noite, da<br />
lua e das estrelas um reino <strong>de</strong><br />
fantasia – alheio às convenções<br />
e às hipocrisias sociais –, alimentaram<br />
a imaginação popular,<br />
os seus mitos e rituais amorosos.<br />
Ao maestro Miguel Matamoros,<br />
também <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong><br />
Cuba, coube injectar cadência<br />
tropical no bolero cubano. A sua<br />
antológica «Lágrimas negras»<br />
«Aunque tú me has <strong>de</strong>jado en<br />
el abandono/ aunque ya han<br />
muerto todas mis ilusiones/ en<br />
vez <strong>de</strong> mal<strong>de</strong>cirte con justo encono/<br />
en mis sueños te colmo<br />
<strong>de</strong> bendiciones» continua sendo<br />
um convite à i<strong>de</strong>ntificação com<br />
a sensualida<strong>de</strong> caribenha, o calor<br />
das ruas havanesas e as fragrâncias<br />
e o sabor do rum cubano.<br />
Interpretam-no o próprio<br />
«Trío Matamoros», «Los Compadres»,<br />
Rolando Laserie, o<br />
«Buenavista Social Club». Muitos<br />
ainda continuam enamorados<br />
dos versos <strong>de</strong> Ernesto Lecuona<br />
que, com «Damisela Encantadora»<br />
– «Por tus ojazos negros<br />
llenos <strong>de</strong> amor/ por tu boquita<br />
roja que es una flor/ por tu<br />
cuerpo <strong>de</strong> palmera lindo y gentil/<br />
se muere mi corazón» –,<br />
«Siboney», «Noche azul»,<br />
«Siempre en mi corazón» (que<br />
hoje faz parte do repertório do<br />
tenor Plácido Domingo) e a sua<br />
«Lecuona’s Cuban Boys» ganhou<br />
os corações <strong>de</strong> quem, na<br />
América Latina, na América do<br />
Norte ou na Europa, teve oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> escutá-los para viver<br />
e morrer <strong>de</strong> amor.<br />
Uns e outros, contudo, não<br />
regateiam as suas preferências<br />
pelo maestro dos maestros, o<br />
gran<strong>de</strong> Benny Moré, que era capaz<br />
<strong>de</strong> compor e entoar uma<br />
«guajira» como um som montanhês,<br />
um «mambo» como<br />
um bolero, dando ré<strong>de</strong>a solta à<br />
sua inspiração vagabunda e<br />
montaraz. Ninguém como ele<br />
para cantar os amores perdidos:<br />
«Para qué per<strong>de</strong>r el tiempo/ para<br />
qué volvernos locos/ si tú sabes<br />
que nosotros/ no nos compren<strong>de</strong>mos<br />
ya/ tengo fe en que tú<br />
comprendas/ como yo lo he<br />
comprendido/ que nuestro amor<br />
se ha perdido/ como una estrella<br />
fugaz/».<br />
Arráncame la vida<br />
A grafonola e o disco, a rádio,<br />
o cinema e a própria televisão
contribuíram para a difusão do<br />
género que, a partir das noites<br />
<strong>de</strong> ronda e serenata, se colaria<br />
nos lares, nos selectos salões <strong>de</strong><br />
baile, assim como nos mais famosos<br />
bordéis das principais cida<strong>de</strong>s<br />
latino-americanas. Num<br />
<strong>de</strong>les, no México, Agustín Lara,<br />
lânguido <strong>de</strong> amor e ao pé <strong>de</strong><br />
um piano, começou a ganhar<br />
eternida<strong>de</strong> na letra e no espírito<br />
<strong>de</strong> cada uma das suas composições,<br />
gran<strong>de</strong> parte das quais reflectia<br />
o frenesim da sua azarada<br />
vida sentimental, galardoada<br />
com a conquista <strong>de</strong> uma mulher<br />
como María Félix, bela entre<br />
as belas; mas também com<br />
uma chuçada no rosto, com que<br />
uma das suas amantes <strong>de</strong>ixou a<br />
marca dos seus en<strong>de</strong>moninhados<br />
ciúmes.<br />
Com Agustín Lara, o amor<br />
chegou a ser efectivamente pão<br />
da vida e sortilégio total. Nada<br />
escapou ao génio e sentimento<br />
impulsivo: a entrega total, as<br />
ânsias, os ciúmes, a nostalgia<br />
arrebatadora, o culto da mulher<br />
(nas suas palavras: «la más<br />
completa expresión <strong>de</strong> la belleza,/<br />
vida en don<strong>de</strong> principia la<br />
vida,/ luz en don<strong>de</strong> el sol encien<strong>de</strong><br />
los luceros,/ ríos <strong>de</strong> todas<br />
las lágrimas/ selva y rosal/<br />
amor y perdón)», a dor e a angústia<br />
provocados pela paixão<br />
(como diria Jorge Amado, «o<br />
amor não é uma espinha que se<br />
arranca, um tumor que se corta,<br />
é uma dor rebel<strong>de</strong>, pertinaz,<br />
que mata por <strong>de</strong>ntro»), levado<br />
ao clímax em «Arráncame la<br />
vida»: «Arráncame la vida con<br />
el último beso <strong>de</strong> amor/ arráncala,<br />
toma mi corazón/ arráncame<br />
la vida/ y, si acaso te hiere<br />
un dolor,/ ha <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> no<br />
verme/ porque al fin tus ojos<br />
me los llevo yo».<br />
Sintonizando com a azáfama<br />
amorosa da vida, o mesmo<br />
Tal como na Argentina,<br />
os enamorados do<br />
Chile, Panamá,<br />
Venezuela, Peru,<br />
Colômbia e Equador<br />
encontram no bolero o<br />
elixir musical para<br />
continuarem a sonhar<br />
com o ser amado<br />
Amado perguntava-se: quem<br />
po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as coisas do coração,<br />
quem po<strong>de</strong> explicá-las?<br />
Longe daqueles ilustrados literatos<br />
e poetas que faziam serpentinas<br />
com os seus versos, os<br />
mexicanos procuraram a resposta<br />
em trovadores da dimensão<br />
<strong>de</strong> Lara, enquanto os porto-riquenhos<br />
vibravam com<br />
Pedro Flores, mas também com<br />
o mítico Rafael Hernán<strong>de</strong>z que<br />
fez «Lamento Borincano»,<br />
«Canción <strong>de</strong>l Alma», «Diez<br />
Años», «Amigo», «No me<br />
quieras tanto» ou «¿Qué te importa?»,<br />
entre outras tantas<br />
criações <strong>de</strong> sonho para os verda<strong>de</strong>iros<br />
amantes.<br />
Na Argentina, o bolero arrancou<br />
espaços importantes ao<br />
tango.Talvez a precoce morte <strong>de</strong><br />
Carlos Gar<strong>de</strong>l em 1935, as letras<br />
prostibulárias do tango, a difusão<br />
radial e a própria presença<br />
em Buenos Aires <strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong>s<br />
do bolero como Agustín Lara,<br />
Pedro Vargas ou José Mojica<br />
tivessem permitido que nesse<br />
país aparecessem, entre outros<br />
gran<strong>de</strong>s compositores, um Don<br />
Fabián, para entregar-nos «Dos<br />
almas», ou um Mario Clavel e<br />
«Somos»: «Después que nos besamos/<br />
con el alma y con la vida,/<br />
te fuiste con la noche/ <strong>de</strong><br />
aquella <strong>de</strong>spedida», como <strong>de</strong>monstração<br />
do enraizamento<br />
que o género romântico havia<br />
alcançado na nossa América. Tal<br />
como na Argentina, os enamorados<br />
do Chile, Panamá, Venezuela,<br />
Peru, Colômbia, Equador,<br />
etc., encontraram no bolero o<br />
elixir musical para continuarem<br />
a sonhar com o ser amado, ou o<br />
antídoto para a frustração que<br />
os amores inatingíveis costumam<br />
gerar.<br />
Todavia, a força sedutora do<br />
bolero não residia apenas na letra<br />
e no espírito sentimental do<br />
bardo. Seria injusto subestimar<br />
a soli<strong>de</strong>z interpretativa ou musical<br />
<strong>de</strong> quem encantava com a<br />
sua voz ou as suas guitarras,<br />
quando não com os seus harmoniosos<br />
sons orquestrais. Como<br />
escapar do influxo <strong>de</strong> vozes<br />
como as <strong>de</strong> Pedro Vargas («Noche<br />
<strong>de</strong> Ronda», «Vereda Tropical»,<br />
«Mujer»), <strong>de</strong> Toña la Negra<br />
(«Cenizas», «Arráncame la<br />
vida», «Cada noche un amor»,<br />
«Veracruz»), <strong>de</strong> Bienvenido<br />
Granda («Señora», «Angustia»,<br />
«Nostalgia», «Por dos caminos»),<br />
<strong>de</strong> Tito Rodríguez<br />
(«Inolvidable», «Llanto <strong>de</strong> luna»,<br />
«Tu pañuelo», «Cuando ya<br />
no me quieras»), <strong>de</strong> Lucho Gatica<br />
(«Tú me acostumbraste»,<br />
«Enca<strong>de</strong>nados», «Si me comprendieras»)<br />
e <strong>de</strong> Javier Solís<br />
(«Sigamos pecando», «Llorarás»,<br />
«Perdóname, mi vida»);<br />
<strong>de</strong> trios como «Los Panchos»
CORRENTES ATLÂNTICAS 136<br />
(«Amorcito corazón», «Rayito<br />
<strong>de</strong> luna», «Flor <strong>de</strong> azalea»,<br />
«Perdida») ou Los Tres Diamantes<br />
(«Usted», «Sigamos pecando»,<br />
«Embrujo, Júrame»); sem<br />
esquecer, certamente, o íman <strong>de</strong><br />
orquestras como a eterna «Sonora<br />
Matancera» com os seus<br />
boleristas <strong>de</strong> antologia, <strong>de</strong> que<br />
Leo Marini, Celio González ou<br />
Vicentico Valdés são algo assim<br />
como a ponta <strong>de</strong> um gigantesco<br />
icebergue formado <strong>de</strong> boleros e<br />
cantores imortais?<br />
A lista <strong>de</strong> intérpretes é, certamente,<br />
maior, como a relação <strong>de</strong><br />
boleros criados, sobretudo entre<br />
1935 e 1965, consi<strong>de</strong>rada a<br />
«época <strong>de</strong> ouro», que vai culminar<br />
gloriosamente com Armando<br />
Manzanero, o último dos gran<strong>de</strong>s<br />
compositores e intérpretes que,<br />
com «Adoro», «Esta tar<strong>de</strong> vi llover»,<br />
«Mía», «Aquel señor»,<br />
«Contigo aprendí» e milhares <strong>de</strong><br />
outras criações, <strong>de</strong>monstrou que<br />
o amor é fonte inesgotável <strong>de</strong><br />
poesia e música, que na sua interpretação<br />
por vozes como as <strong>de</strong><br />
Roberto Le<strong>de</strong>sma, ou do próprio<br />
Manzanero, vão continuar retroalimentando<br />
gozos e paixões porque,<br />
parafraseando o ilustre mexicano,<br />
sempre haverá enamorados<br />
que, cegos <strong>de</strong> amor, tentarão,<br />
on<strong>de</strong> quer que estejam, contemplar<br />
a aurora, o brilho da lua ou,<br />
simplesmente, apagar a luz para<br />
<strong>de</strong>ixar voar a imaginação.<br />
Cada um impôs ao bolero o<br />
seu próprio estilo, aproveitando<br />
ao máximo, no caso dos cantores,<br />
as qualida<strong>de</strong>s da sua voz, a<br />
sua força interpretativa, a sua<br />
maneira particular <strong>de</strong> tocar os<br />
sentimentos dos seus seguidores.<br />
Por exemplo, Lucho Gatica<br />
sussurrava as suas canções, levando-as<br />
do coração aos lábios,<br />
apoiado na doçura das letras <strong>de</strong><br />
Roberto Cantoral («La barca»,<br />
«El reloj», «Regálame esta no-<br />
137<br />
As suas vozes contin-<br />
uam a animar os <strong>de</strong>sve-<br />
los amorosos daqueles<br />
que encontram nas<br />
suas canções um<br />
remanso sentimental<br />
che», «La noche <strong>de</strong>l adiós»,<br />
etc.), que tanto encantaram as<br />
belda<strong>de</strong>s dos anos 50; as mesmas<br />
que se <strong>de</strong>svaneciam com<br />
Nat King Cole e a sua maneira<br />
tão especial <strong>de</strong> cantar «Ansiedad»,<br />
«Cachito» e «Yo vendo<br />
unos ojos negros»; enquanto Javier<br />
Solís, seguindo as pegadas<br />
<strong>de</strong> Jorge Negrete e Pedro Infante,<br />
fez do bolero-ranchera um<br />
convite para morrer <strong>de</strong> amor,<br />
mas <strong>de</strong> pé, cantando e recordando,<br />
no recanto <strong>de</strong> uma tasca,<br />
exigindo mais e mais à rockola,<br />
para que não <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> incentivar<br />
a recordação do amado ou<br />
malquerido, com «Vendaval sin<br />
rumbo», «Escándalo», «Ay, cariño»,<br />
«Que se mueran <strong>de</strong> envidia»,<br />
entre tantas outras interpretações<br />
que em seu tempo invadiam<br />
até ao último beco on<strong>de</strong><br />
podia acolher-se uma alma enamorada.<br />
NO JOGO DA VIDA<br />
Muitos <strong>de</strong>sses intérpretes já<br />
não existem. Não obstante, as<br />
suas vozes continuam a animar<br />
os <strong>de</strong>svelos amorosos daqueles<br />
que encontram nas suas canções<br />
um remanso sentimental. Os<br />
velhos discos <strong>de</strong> 33 e 45 rotações<br />
por minuto, filhos queridos<br />
dos discos <strong>de</strong> carvão, que se tocavam<br />
nos memoráveis pick-up e<br />
suas intermináveis agulhas, ou<br />
os mo<strong>de</strong>rnos discos compactos,<br />
continuam a manter acesas as<br />
lembranças dos amores do passado<br />
ou reforçam os do presente.<br />
Existe também, nessa magia,<br />
a lenda que acompanhou a vida<br />
<strong>de</strong> compositores e cantores, que<br />
originou a mitificação dos mesmos<br />
quando os seus seguidores<br />
encontraram neles modos <strong>de</strong> vida,<br />
costumes, vivências, histórias,<br />
fantasias, com as quais estavam<br />
plenamente i<strong>de</strong>ntificados,<br />
ao fazer parte do seu próprio<br />
quotidiano ou das suas mais caras<br />
ilusões.<br />
Por isso é que Daniel Santos,<br />
o «Inquieto Anacobero» <strong>de</strong><br />
Porto Rico, foi e continua a ser<br />
um paradigma existencial. Com<br />
o seu estilo inconfundível, passou<br />
à história como o melhor<br />
dos intérpretes das canções <strong>de</strong><br />
Rafael Hernán<strong>de</strong>z e Pedro Flores,<br />
ou como o gran<strong>de</strong> ídolo <strong>de</strong><br />
Cuba nos tempos da Sonora<br />
Matancera, on<strong>de</strong> cantou e bailou<br />
durante 15 anos consecutivos.<br />
Não obstante, foi a sua própria<br />
vida, para além dos cenários,<br />
que ajudou a convertê-lo<br />
num mito. A pobreza das suas<br />
origens, a lenda da sua aproximação<br />
às marquesinhas do êxito,<br />
o seu <strong>de</strong>ambular pelo álcool,<br />
as drogas e as prisões, o seu patriotismo<br />
purificado, a sua <strong>de</strong>sfaçatez<br />
para enfrentar «o jogo<br />
da vida» ou, finalmente, a sua<br />
turbulenta vida sentimental
converteram-no num herói para<br />
a in<strong>de</strong>lével imaginação popular.<br />
E o mesmo po<strong>de</strong>ríamos<br />
dizer <strong>de</strong> Julio Jaramillo, que<br />
<strong>de</strong>ixou cinco esposas e vinte e<br />
seis filhos, ou do inolvidável<br />
Héctor Lavoe, cuja folha <strong>de</strong> vida<br />
é tão mítica como as suas electrizantes<br />
interpretações <strong>de</strong> «Taxi»,<br />
«Ausencia», «Plazos traicioneros»<br />
ou «Un amor <strong>de</strong> la<br />
calle», nas quais o son, confundindo-se<br />
com o bolero, continua<br />
a dar corda aos corações<br />
enamorados, ainda que o sonero,<br />
tal como Daniel ou Julio, já não<br />
esteja connosco.<br />
EPÍLOGO<br />
Ao contrário do que tradicionalmente<br />
se pensa, a música<br />
popular é um po<strong>de</strong>roso factor<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Estamos a pensar<br />
naquelas criações que, por<br />
surgirem <strong>de</strong> baixo, da rua ou da<br />
esquina, expressando sem ro<strong>de</strong>ios<br />
a azáfama e o sentir quotidiano<br />
<strong>de</strong> homens e mulheres:<br />
a sua ancestral luta pela sobrevivência,<br />
as suas alegrias, tristezas<br />
e amores, conquistam rapidamente<br />
os sentimentos e a<br />
consciência das multidões. O<br />
bolero é uma daquelas criações<br />
que, ao reflectir a idiossincrasia<br />
amorosa do latino-americano,<br />
foi tecendo uma trama invisível<br />
que converteu os nossos pais e<br />
avós, cubanos, mexicanos, peruanos<br />
ou porto-riquenhos, em<br />
verda<strong>de</strong>iros militantes da internacional<br />
do amor, sem mais<br />
mandatos que o da sua paixão<br />
amorosa, levada sempre à flor<br />
<strong>de</strong> pele, prestes a transbordar<br />
ao mais leve impacto dos dardos<br />
melosos <strong>de</strong> um sorriso coquete,<br />
<strong>de</strong> um olhar inquietante<br />
ou, simplesmente, <strong>de</strong> um caminhar<br />
insinuante.<br />
Contra isso, todavia, têm<br />
conspirado, por um lado, a<br />
mercantilização <strong>de</strong>ssas criações,<br />
que nesse processo costumam<br />
per<strong>de</strong>r as suas essências íntimas<br />
e poéticas, que as entrelaçam<br />
com a própria vida; e, por outro<br />
lado, a invasão <strong>de</strong> ritmos forasteiros<br />
que, através <strong>de</strong> grupos<br />
e cantores <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> duvidosa<br />
e apoiados numa tecnologia<br />
ruidosa, vão acantonando e<br />
diluindo a nossa <strong>cultura</strong> musical<br />
e sentimental. Com o bolero<br />
passou-se isso. Felizmente, iniciativas<br />
como as do «Buenavista<br />
Social Club» (que juntou Compay<br />
Segundo, Rúben González,<br />
Ibrahin Ferrer e Omara Portuondo),<br />
ou a incursão nesse<br />
género <strong>de</strong> vozes como as <strong>de</strong> Pablo<br />
Milanés, Tania Libertad e<br />
Soledad Bravo ten<strong>de</strong>m a revitalizar<br />
o bolero e a restituir-nos o<br />
sentimento, a paixão, os estilos<br />
e hábitos <strong>de</strong> todo o bom escravo<br />
e amo do amor porque, como<br />
costumava cantar Roberto<br />
Le<strong>de</strong>sma, lá por mil novecentos<br />
sessenta e tantos, «el día que<br />
<strong>de</strong>je <strong>de</strong> salir el Sol,/ y la Luna<br />
<strong>de</strong>je <strong>de</strong> alumbrar,/ y las estrellas<br />
<strong>de</strong>jen <strong>de</strong> brillar,» nesse dia, só<br />
nesse dia, <strong>de</strong>ixaremos <strong>de</strong> amar.
CORRENTES ATLÂNTICAS 138<br />
«As fronteiras são fictícias e arbitrárias», reconhece o<br />
actor mexicano Gael García Bernal que encarna a personagem<br />
<strong>de</strong> Che em Diários <strong>de</strong> Che Guevara.<br />
Eis a lição <strong>de</strong> continentalida<strong>de</strong> da tão pobre e rica<br />
América do Sul renovada neste último filme <strong>de</strong> Walter<br />
Salles.<br />
Os mortos<br />
comandam os vivos<br />
ou também <strong>de</strong> motocicleta<br />
se atravessa o mar<br />
Anabela Moutinho<br />
139
Walter Salles é meu conhecido<br />
<strong>de</strong> há uns anos a esta parte.<br />
Gosto <strong>de</strong> o cumprimentar, sinto-me<br />
bem por trocar olhares,<br />
emoções e <strong>de</strong>scobertas em sotaque<br />
brasileiro. Não chega a ser<br />
meu amigo, porque esse é<br />
quem te toca sempre e não só a<br />
espaços. Mas, seja como for, enternece-<br />
me a vonta<strong>de</strong> louca, a<br />
<strong>de</strong>le, <strong>de</strong> ser o seu país em mensagem<br />
universal. E, quando o<br />
consegue, apetece- me ser convidada<br />
para entrar naquela sua<br />
casa. Porque aí ela seria minha<br />
também. Um pouquinho, mas o<br />
suficiente.<br />
Da obra <strong>de</strong> Walter Salles, o<br />
filho e por isso Júnior, se afastaram<br />
os caminhos diplomáticos<br />
<strong>de</strong> seu pai mas não o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
errância ou, pelo menos, o fantasma<br />
<strong>de</strong>la que a sua própria vida<br />
lhe forneceu durante anos <strong>de</strong><br />
infância e adolescência. Os errantes<br />
são seres em <strong>de</strong>manda, e<br />
nas histórias <strong>de</strong> Salles o Santo<br />
Graal são eles próprios. Ora, em<br />
todos os seus filmes <strong>de</strong> ficção –<br />
melhor dito, em todas as suas<br />
longas-metragens porque não vi<br />
nem as curtas-metragens, nem<br />
os filmes para televisão, nem os<br />
documentários, nem os filmes<br />
publicitários (isto é, o grosso da<br />
sua filmografia...) –, o cálice<br />
que se busca é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. E<br />
jogos entre ela e a do realizador,<br />
e a do povo, e a do continente,<br />
e a do mundo.<br />
Quando Waltinho chega ao<br />
cinema, carrega já um olhar: o<br />
do fotógrafo que ele foi – e não<br />
por acaso a sua primeira longa-<br />
-metragem, A Gran<strong>de</strong> Arte (1991),<br />
adaptada do romance homónimo<br />
<strong>de</strong> Rubem Fonseca, é protagonizada<br />
por um fotógrafo, tornado<br />
no guião em norte-americano<br />
pela vonta<strong>de</strong>, muito inicial<br />
como se vê, <strong>de</strong> internacionalizar<br />
os filmes como estratégia<br />
comercial e fruto <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong><br />
económica – mas também o do<br />
cinema próximo das pessoas que<br />
assume como sua herança e influência,<br />
ou seja, o neo-realismo<br />
italiano, a Nouvelle Vague francesa<br />
e o Cinema Novo Brasileiro.<br />
E <strong>de</strong>sta mistura – Cartier-Bresson,<br />
Kertesz e Kubelka guiando<br />
Salles, como o próprio confessa,<br />
nesses gestos <strong>de</strong> fixar instantâneas<br />
pessoas a preto e branco, Sica<br />
ou Truffaut ou Glauber a inspirar<br />
o mesmo em gente do<br />
campo ou da cida<strong>de</strong> em imagens<br />
em movimento – dizem particularmente<br />
bem o início e o final<br />
<strong>de</strong> A Gran<strong>de</strong> Arte: Peter Mandrake<br />
(interpretado por Peter Coyote)<br />
vai disparando a sua máquina a<br />
esses meninos loucos que <strong>de</strong>safiam<br />
a vida no «trem-surf»,<br />
imobilizando assim em imagens<br />
a preto e branco essas aventuras<br />
a cores <strong>de</strong> quem ama o risco da<br />
morte para dar algum sentido a<br />
existências sem nenhum, para<br />
terminar reconciliando-se com o<br />
amor após uma história cruel <strong>de</strong><br />
vingança indomável, fotografando<br />
beijos carinhosos da gente<br />
simples que dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar.<br />
Os filmes <strong>de</strong> Salles oscilam<br />
assim entre uma preocupação<br />
lúcida e um optimismo cândido<br />
quanto ao <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>ssa gente<br />
que é a <strong>de</strong>le. Aliás, esse não é o<br />
único traço comum na sua obra.<br />
Em todas as suas longas-<br />
-metragens «os mortos comandam<br />
os vivos», frase que roubo a<br />
uma personagem <strong>de</strong> Abril Despedaçado;<br />
em A Gran<strong>de</strong> Arte, que é a <strong>de</strong><br />
ferir com cruelda<strong>de</strong> quem nos<br />
feriu, manejando as navalhas<br />
com a sabedoria <strong>de</strong> samurais dos<br />
bas-fonds, a morte surge como<br />
consequência natural <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>svario<br />
ético; em Terra Estrangeira<br />
(1996), é a mãe basca falecida<br />
que conduz o seu filho <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
São Paulo a uma San Sebastián<br />
Da obra<br />
<strong>de</strong> Walter Salles,<br />
o filho e por isso<br />
Júnior,<br />
se afastaram<br />
os caminhos<br />
diplomáticos<br />
<strong>de</strong> seu pai,<br />
mas não o <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> errância ou,<br />
pelo menos,<br />
o fantasma <strong>de</strong>la
CORRENTES ATLÂNTICAS 140<br />
Ora, <strong>de</strong> qualquer<br />
viagem,<br />
o que recordamos<br />
são momentos,<br />
e são esses<br />
os que me<br />
comovem<br />
em Walter Salles<br />
141<br />
que ele não alcançará nunca<br />
pois pelo meio fica este Portugal<br />
que «não é sítio para se encontrar<br />
ninguém, é uma terra<br />
<strong>de</strong> gente que partiu para o<br />
mar, o lugar i<strong>de</strong>al para se per<strong>de</strong>r<br />
alguém ou para se per<strong>de</strong>r a<br />
si próprio», como certeiramente<br />
diz a personagem belissimamente<br />
interpretada pelo<br />
nosso João Lagarto; em Central<br />
do Brasil (1998), é a figura do<br />
pai ausente, nem se sabe se vivo<br />
ou morto, que se persegue até<br />
ao Brasil mais profundo e esquecido,<br />
e nessa busca um menino<br />
encontra uma mãe e uma<br />
mulher encontra-se a si mesma;<br />
em O Primeiro Dia (1998),<br />
são os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> armas clan<strong>de</strong>stinas<br />
que são filmados como<br />
livros em bibliotecas públicas,<br />
e <strong>de</strong>ssas letras escritas com<br />
pólvora se faz uma história <strong>de</strong><br />
felicida<strong>de</strong> impossível para<br />
quem se comprometeu com<br />
um assassínio; em Abril Despedaçado<br />
(2001), <strong>de</strong> novo uma incursão<br />
em obra literária prévia,<br />
<strong>de</strong>sta vez <strong>de</strong> Ismail Kadaré, é a<br />
tradição <strong>de</strong> raízes sicilianas da<br />
honra da família «cobrada pelo<br />
sangue» presente no Nor<strong>de</strong>ste<br />
brasileiro do início do século<br />
passado, que aliás ainda se encontra,<br />
<strong>de</strong>svirtuada embora, nas<br />
favelas do final <strong>de</strong>le (não foi<br />
portanto por acaso que Walter<br />
Salles foi o produtor <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Deus <strong>de</strong> Fernando Meirelles,<br />
adaptação do romance homónimo<br />
<strong>de</strong> Paulo Lins sobre a favela<br />
com o mesmo nome, o filme-<br />
-choque que <strong>de</strong>u a volta ao<br />
mundo em 2002 recordando o<br />
mesmo efeito que Pixote <strong>de</strong><br />
Hector Babenco tinha provocado<br />
nos idos dos anos 80). Os<br />
mortos comandando os vivos.<br />
E, como se começa a perceber,<br />
em todos eles o estilo é<br />
o do road-movie ou literal por-<br />
que são viagens que se contam,<br />
ou metafórico porque até nos<br />
mais negros films noirs uma viagem<br />
interior acontece. Ora, <strong>de</strong><br />
qualquer viagem, o que recordamos<br />
são momentos, e são<br />
esses os que me comovem em<br />
Walter Salles: o Tonho <strong>de</strong> Abril<br />
Despedaçado a quebrar a tradição<br />
familiar quando se permite<br />
uma viagem <strong>de</strong> baloiço filmada<br />
como se <strong>de</strong> voo <strong>de</strong> pássaro se<br />
tratasse e nos ares planasse a<br />
alegria e não mais a dor; o João<br />
<strong>de</strong> O Primeiro Dia disparando a<br />
sua 9 mm, antes responsável<br />
pela morte do seu melhor amigo<br />
que ele mesmo executou<br />
ce<strong>de</strong>ndo a chantagem policial<br />
que nesse acordo lhe garantia a<br />
liberda<strong>de</strong>, agora para o ar, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> salvar Maria do suicídio<br />
e assim se juntando ao fogo-<strong>de</strong>-artifício<br />
que à meia-noite<br />
explo<strong>de</strong> com o Corcovado<br />
ao fundo e gritando «nunca<br />
mais a morte», projecto <strong>de</strong><br />
uma nova felicida<strong>de</strong> para todo<br />
um povo num milénio que se<br />
inicia; a Dora «escrevedora <strong>de</strong><br />
cartas» <strong>de</strong> Central do Brasil no final<br />
do filme escrevendo uma<br />
em seu nome e já não, a troco<br />
<strong>de</strong> 1 real («2, se for pra botar<br />
no correio»), a gentinha analfabeta<br />
que confiava nela as suas<br />
ilusões e esperanças que por<br />
sua vez ela <strong>de</strong>itava no lixo, Dora<br />
finalmente a confessar que<br />
tem sauda<strong>de</strong>s do seu pai, que<br />
tem sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tudo, e por<br />
isso enten<strong>de</strong>mos que o seu cinismo<br />
<strong>de</strong>u lugar a um coração<br />
<strong>de</strong> novo quente, <strong>de</strong> novo coração;<br />
a Alex do seu melhor filme,<br />
Terra Estrangeira, a soluçar o<br />
Vapor Barato enquanto Paco se<br />
esvai em sangue no seu colo, e<br />
finalmente a voz <strong>de</strong> Gal Costa<br />
a continuar a canção porque<br />
Alex tem que ir sossegando<br />
inutilmente eu te levo a casa,
meu amor, eu te levo a San Sebastián,<br />
meu amor, nós vamos<br />
para casa, meu amor, meu<br />
amor eu te levo a casa; e o<br />
Mandrake <strong>de</strong> A Gran<strong>de</strong> Arte a<br />
<strong>de</strong>scobrir no final <strong>de</strong> um negro<br />
passeio pelo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />
que só tem medo do escuro<br />
quem nunca o afrontou. Mortos<br />
comandando vivos em viagem.<br />
Mortos e vivos <strong>de</strong> um<br />
país. Com a minha língua.<br />
Com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria. E por<br />
isso, só por isso, com todos<br />
nós. Porque, como sabiamente<br />
(e po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra maneira<br />
nela?) disse Agustina Bessa-<br />
-Luís ao receber o recente Prémio<br />
Camões, «o riso e as lágrimas<br />
não têm sotaque».<br />
Parece portanto evi<strong>de</strong>nte<br />
que, <strong>de</strong> outra ou da mesma maneira,<br />
o com curiosida<strong>de</strong> esperado<br />
Os Diários da Motocicleta –<br />
que em Portugal se chamam Os<br />
Diários <strong>de</strong> Che Guevara – se integrará<br />
nesta mesma linha, nesta<br />
mesma coerência, nesta mesma<br />
urgência. Uma reconstituição<br />
da viagem <strong>de</strong> motocicleta que<br />
Che fez em 1952, aos 24 anos,<br />
com o seu amigo Alberto Granado,<br />
a partir da sua Buenos Aires<br />
natal ao encontro do espírito<br />
transfronteiriço que foi a sua<br />
i<strong>de</strong>ologia, a sua paixão e a sua<br />
morte. «As fronteiras são fictícias<br />
e arbitrárias», reconhece<br />
ainda hoje quem o encarnou na<br />
tela, o mexicano Gael García<br />
Bernal. Dessa lição <strong>de</strong> continentalida<strong>de</strong><br />
da tão pobre e rica<br />
América do Sul espero eu que<br />
Salles, mais uma vez, me ofereça<br />
as ocasiões que me fazem<br />
sentir bem aconchegada em sua<br />
casa. Desta vez não só em momentos,<br />
mas para sempre. Para<br />
que eu lhe possa enfim chamar<br />
Walter, meu caro amigo.<br />
Também <strong>de</strong> motocicleta se<br />
atravessa o mar?
A COMPANHIA DOS LIVROS 142<br />
143<br />
O Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong>, em colaboração<br />
com as Edições Colibri, editou quatro títulos da Colecção<br />
Travessias. Travessia do Mar Oceano feita em múltiplas<br />
direcções e acepções, norteada pelo prazer da viagem e<br />
da companhia dos livros.<br />
Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
NEGREIROS PORTUGUESES NAS ROTAS DAS ÍNDIAS DE CASTELA (1541-1556)<br />
1998, 191 pp.<br />
Feitores, agentes lidam com o dinheiro dos outros, traficam o que não é seu.Viajam por esse<br />
Atlântico fora, buscando também o seu próprio <strong>de</strong>stino.Vão e voltam. Ou ficam por lá com<br />
as suas famílias e alguns criados. Dispensados das provas <strong>de</strong> pureza <strong>de</strong> sangue, amalham-<br />
-se no cargo do trato. Judaizantes, aos molhos, tecem re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tráfico em terra, em correlação<br />
com as outras que, do mar, lhes trazem as mãos e os corpos para o trabalho e a fortuna.<br />
Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />
PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO E CONQUISTA DA HISPANOAMÉRICA:<br />
VIAGENS E EXPEDIÇÕES (1492-1557)<br />
1999, 274 pp.<br />
Os Estados ibéricos, acordando em Tor<strong>de</strong>silhas a partilha do mundo, <strong>de</strong>limitaram áreas <strong>de</strong> influência<br />
e <strong>de</strong> jurisdição, mas não impediram que os homens circulassem por todo o lado, navegando,<br />
combatendo ou traficando, alheios a fronteiras ou a vínculos nacionais. Italianos, flamengos,<br />
franceses, gregos, alemães ou portugueses circulariam, apesar <strong>de</strong> proibições conjunturais,<br />
num vasto território em processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e configuração cartográfica e política.<br />
Ivone Correia Alves<br />
GAMAS E CONDES DA VIDIGUEIRA: PERCURSOS E GENEALOGIAS<br />
2001, 347 pp.<br />
Tal como nos brasões <strong>de</strong> armas, a memória dos Gamas e do primeiro con<strong>de</strong> da Vidigueira<br />
plasma-se nas Casas que lhe vão suce<strong>de</strong>ndo. Não há como retomar o fio original <strong>de</strong>stes<br />
meandros <strong>de</strong> arquivos e famílias. Os seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes são uns e outros, mas talvez os Gamas<br />
<strong>de</strong> fora do condado nos transmitam com maior fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aquele obscuro e <strong>de</strong>terminado<br />
Vasco da Gama que aceitou o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> vencer «O mostrengo que está no fim do mar» e no<br />
princípio <strong>de</strong> outros novos mares.<br />
Virgínia Trinda<strong>de</strong> Valadares<br />
ELITES MINEIRAS SETECENTISTAS: CONJUGAÇÃO DE DOIS MUNDOS<br />
2004, 541 pp.<br />
A insubmissão, a rebeldia, o espírito anticolonialista, antiesclavagista, libertário, característicos<br />
do mineiro, e tão <strong>de</strong>cantados pela historiografia <strong>de</strong> Minas Gerais, não me parece ser<br />
a tónica da elite formada em Coimbra. Vale dizer, entretanto, que este segmento da socieda<strong>de</strong><br />
não era homogéneo e que havia, na elite mineira instruída na própria capitania, elementos<br />
que não representavam a mentalida<strong>de</strong> coimbrã e que foram refractários aos ditames<br />
metropolitanos e a eles se opuseram. Na verda<strong>de</strong>, a elite mineira que se bacharelava em<br />
Coimbra assumiu, em Minas, o papel do agente régio, reinol <strong>de</strong> nascimento, que substituiu o<br />
turbulento conquistador, caudilho e potentado.
NOVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />
Gémeos<br />
Mário Cláudio<br />
«Um romance perfeito.»<br />
António Lobo Antunes<br />
Triunfo do Amor Português<br />
Mário Cláudio<br />
Doze gran<strong>de</strong>s casos <strong>de</strong> amor da História <strong>de</strong> Portugal.<br />
Prefácio <strong>de</strong> Agustina Bessa-Luís e ilustrações <strong>de</strong> Rogério Ribeiro.<br />
Transatlântico<br />
Paulo Nogueira<br />
Um romance vertiginoso, divertido e tocante.<br />
DAMOS VALOR AO QUE É NOSSO<br />
Eu hei-<strong>de</strong> amar uma pedra<br />
António Lobo Antunes<br />
O mais recente e emocionante romance <strong>de</strong> António Lobo Antunes<br />
nos 25 anos <strong>de</strong> vida literária do Autor.<br />
Fotobiografia António Lobo Antunes<br />
Tereza Coelho<br />
Vida e obra <strong>de</strong> António Lobo Antunes<br />
num extraordinário álbum ilustrado.<br />
O Anjo da Tempesta<strong>de</strong><br />
Nuno Júdice<br />
O novo e surpreen<strong>de</strong>nte romance <strong>de</strong> Nuno Júdice.<br />
Pena Suspensa<br />
Fernando Pinto do Amaral<br />
O brilho e a maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dos nossos gran<strong>de</strong>s poetas.<br />
Cruz das Almas<br />
Patrícia Reis<br />
Uma estreia literária <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />
Ilustrações <strong>de</strong> Rodrigo Saias.<br />
Nua e Crua<br />
Marta Gautier<br />
Um romance sobre a revolta, o encontro e o renascer<br />
<strong>de</strong> uma jovem mulher.
PUBLICAÇÃO SEMESTRAL<br />
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