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<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana Número 01 Outono Inverno 2004 15C _<br />

LUGARES DE PARTIDA<br />

SAGRES LÍDIA JORGE<br />

CIDADES INVISÍVEIS<br />

FERVOR DE BUENOS AIRES<br />

VIDAS CONTADAS<br />

ENTREVISTA COM VOLODIA TEITELBOIM<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

NO RASTO DE CABRAL ANTÓNIO BORGES COELHO<br />

CRUZEIRO DO SUL<br />

NERUDA E UMA PEDRA<br />

COBERTA DE MUSGO LUIS SEPÚLVEDA


<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana Número 01 Outono Inverno 2004<br />

3 MANIFESTO EDITORIAL João Ventura<br />

4 TODOS OS NOMES<br />

6 LUGARES DE PARTIDA<br />

Sagres Lídia Jorge<br />

10 VAGA GENTE<br />

Um mineiro portimonense no Alto Peru Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

12 TRAVESSIAS<br />

Sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Chiriquí Maria Angeles Sallé<br />

16 CIDADES INVISÍVEIS<br />

FERVOR DE BUENOS AIRES<br />

18 Buenos Aires <strong>de</strong> hoje pelos caminhos <strong>de</strong> Borges João Ventura<br />

24 Na cida<strong>de</strong> dos livros João Ventura<br />

30 Os editores in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes em épocas <strong>de</strong> crise Daniel Divinsky<br />

32 Delírios porteños Carlos Cáceres Monteiro<br />

38 MALA DIPLOMÁTICA<br />

Entrevista com Jorge Faurie, embaixador da República<br />

da Argentina Beatriz Padilla<br />

42 MEMÓRIA DE FOGO<br />

A saga andina do <strong>de</strong>us Con Osvaldo Henrique Urbano<br />

46 BESTIÁRIO<br />

Peixe-boi ou peixe-mulher? Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

48 RIOS PROFUNDOS<br />

Magdalena, un río <strong>de</strong>l olvido Janet Núñez<br />

54 ALTAS SOLIDÕES<br />

Machu Picchu Pablo Neruda<br />

56 VIDAS CONTADAS<br />

Entrevista com Volodia Teitelboim Regina Rodríguez<br />

70 A BIBLIOTECA DE BABEL<br />

Aventuras e <strong>de</strong>sventuras <strong>de</strong> uma biblioteca nos trópicos<br />

Lilia Moritz Schwarcz<br />

76 A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

78 Yo vengo <strong>de</strong> las Indias Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

86 No rasto <strong>de</strong> Cabral António Borges Coelho<br />

90 Carta do Novo Mundo Américo Vespúcio<br />

92 Desassossego <strong>de</strong> uma mãe ausente Francisca <strong>de</strong> Trujillos<br />

94 Nuestra America es vasta y intricada Pablo Neruda<br />

96 A SEDE DO SUL<br />

Pisco Sonia Tello Rozas<br />

100 SINAIS DE FUMO<br />

Dos tabacos ou fumaças dos índios no Haiti no século XVI<br />

segundo um cronista espanhol<br />

102 ESTÁDIO DE SÍTIO<br />

Estádio centenário <strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u Arón Mazas<br />

104 SABORES PRINCIPAIS<br />

Da canjica ao bacalhau. Uma arqueologia dos hábitos<br />

alimentares <strong>de</strong> uma família portuguesa nas Minas Gerais setecentistas<br />

José Newton Coelho Meneses<br />

108 ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM<br />

Portugal nos confins do mundo Roberto Ampuero<br />

110 O QUE FAÇO EU AQUI<br />

O preço da minha vida João <strong>de</strong> Melo<br />

114 CRUZEIRO DO SUL<br />

Neruda e uma pedra coberta <strong>de</strong> musgo Luis Sepúlveda<br />

120 A MARESIA DO MUNDO<br />

Um poema inédito António Ramos Rosa<br />

122 FICÇÕES<br />

Lagoa Blues Tabajara Ruas<br />

128 CORRENTES ATLÂNTICAS<br />

130 O verda<strong>de</strong>iro nascimento <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l Horacio Vázquez-Rial<br />

132 O bolero em tempo <strong>de</strong> amor Alberto Mosquera Moquillaza<br />

138 Os mortos comadam os vivos<br />

ou também <strong>de</strong> motocicleta se atravessa o mar Anabela Moutinho<br />

142 A COMPANHIA DOS LIVROS


A aposta numa revista <strong>de</strong> natureza multidisciplinar<br />

sobre a experiência <strong>cultura</strong>l <strong>ibero</strong>-americana constitui<br />

um <strong>de</strong>safio ético aberto à participação daqueles que<br />

acreditam que a <strong>cultura</strong>, para além <strong>de</strong> factor <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

dos povos, é, ainda, vector <strong>de</strong> aproximação inter<strong>cultura</strong>l,<br />

na circunstância, entre as duas margens atlânticas.<br />

Pensamos que um projecto <strong>de</strong>sta natureza <strong>de</strong>verá traduzir<br />

uma certa epistemolização <strong>de</strong> um discurso sobre a<br />

Ibero-América, assente em motivações <strong>cultura</strong>is, éticas,<br />

estéticas e políticas suficientemente claras para todos os<br />

que queiram colaborar. Não recusamos, portanto, um<br />

método e uma programação que, aliás, o roteiro <strong>de</strong> conteúdos<br />

previamente <strong>de</strong>finido preten<strong>de</strong> expressar. Mas,<br />

ainda assim, esse método <strong>de</strong>ve ser entendido mais na<br />

acepção <strong>de</strong> caminho ou trajecto do que na sua expressão<br />

positivista. Por isso, embora tenhamos i<strong>de</strong>ias claras e distintas<br />

sobre a forma <strong>de</strong> abordar a experiência <strong>cultura</strong>l<br />

<strong>ibero</strong>-americana, não rejeitamos trabalhar com intenções<br />

e ficções <strong>de</strong> todo o género para nos aventurarmos nesse<br />

«jardim dos caminhos que se bifurcam» que é a Ibero-<br />

-América. E que po<strong>de</strong>rá ser também esta revista, em termos<br />

dos itinerários <strong>de</strong> sentidos a percorrer.<br />

Trata-se, então, <strong>de</strong> um exercício da nossa curiosida<strong>de</strong><br />

em relação ao «velho Novo Mundo» que há quinhentos<br />

anos os nossos navegadores começaram a inventar e ao<br />

qual, hoje, com este projecto editorial, procuramos regressar,<br />

interpretando sinais, traços, distinções, semelhanças<br />

on<strong>de</strong> se espelha a alma <strong>ibero</strong>-americana cuja<br />

matriz é, também, lusófona. Da experiência indo-afro-<br />

-<strong>ibero</strong>-americana tratará, pois, esta revista, espécie <strong>de</strong><br />

ponte sobre o Atlântico atravessada nos dois sentidos para<br />

nos reconhecermos, uns e outros, na nossa outra meta<strong>de</strong><br />

comum. Porque para nós hoje, como no passado o<br />

foi para os navegadores ibéricos, o Atlântico não separa,<br />

antes une dois continentes.<br />

Mar <strong>de</strong> encontros, portanto, apesar do <strong>de</strong>sencontro<br />

inicial da conquista. Porque as águas que fluem nas<br />

nossas praias ibéricas, atlânticas as <strong>de</strong> Portugal, mediterrânicas<br />

as da Andaluzia, são as mesmas que banham as<br />

Antilhas, entram pelo Golfo do México e correm, <strong>de</strong>pois,<br />

rumo ao sul ao longo da costa da América do Sul,<br />

unindo-se, finalmente, ao Pacífico no Estreito <strong>de</strong> Magalhães,<br />

para voltar a subir numa viagem <strong>de</strong> circum-navegação<br />

que incessantemente recomeça. Eis a geografia exterior<br />

da Ibero-América que é, também, a referência<br />

espacial da revista e que nos leva a perguntar, como<br />

Bruce Chatwin, o que fazemos ali, no outro lado do mar,<br />

quando como turistas aci<strong>de</strong>ntais percorremos as paisagens,<br />

as gentes, as <strong>cultura</strong>s, os costumes, as gastronomias<br />

e as surpresas do «velho Novo Mundo».<br />

A história comum <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros. De<br />

Vespúcio e dos cronistas das Índias a Neruda, Carpentier e<br />

Manifesto editorial<br />

João Ventura<br />

Gabriel García Márquez, quase sempre uma América inventada,<br />

imaginada, feita <strong>de</strong> encantos e <strong>de</strong>sencantos. Mas<br />

também a Ibero-América imaginada por Borges, Cortázar,<br />

Valejo, Paz, Onetti, Jorge Amado e tantos outros, cujas<br />

vidas são como as estrelas, caindo do alto do céu sobre<br />

este imenso Sul. E também aqueles que, como uma<br />

imensa corrente atlântica, <strong>de</strong>rramam nas nossas praias as<br />

novas figuras da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>ibero</strong>-americana.<br />

Os lugares <strong>de</strong> partida e <strong>de</strong> chegada da «vaga gente<br />

sem geografia cumprindo em sua carne, obscuramente,<br />

seus hábitos», como conta Borges a Pessoa. Os portos e as<br />

praias da memória. Outras travessias <strong>de</strong> ida e volta entre a<br />

sauda<strong>de</strong> e a esperança <strong>de</strong> corações emigrantes navegando<br />

num mar Atlântico em cujas águas ver<strong>de</strong>s, azuis e negras<br />

se espelha a nossa essência comum.<br />

Ver toda a América <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Machu Picchu. Das águas<br />

ver<strong>de</strong>-limão das Caraíbas às «altas solidões» dos An<strong>de</strong>s. Da<br />

infinita e ver<strong>de</strong> Amazónia aos glaciares azuis do Sul da Patagónia.<br />

Das paisagens lunares do <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> Atacama aos<br />

inumeráveis fior<strong>de</strong>s do arquipélago <strong>de</strong> Chiloé. Viagem<br />

através dos seus «rios profundos». «Rios <strong>de</strong> raças, pátrias<br />

<strong>de</strong> raízes», no dizer <strong>de</strong> Neruda. Amazonas, Magdalena,<br />

Urubamba, Orinoco. «América arvoredo, sarça selvagem<br />

entre os mares», on<strong>de</strong> crescem o jacarandá e a araucária,<br />

mas também o café, o tabaco e o chocolate. Sobrevoada<br />

por tucanos, colibris, papagaios e condores. E on<strong>de</strong>, à<br />

noite, assoma o jaguar. Também, os lugares dos antigos<br />

construtores. Chichén Itzá,Teotihuacán, Mayapán. Resgatar<br />

da «memória do fogo» os mitos fundadores, as primeiras<br />

vozes, os lugares da criação. Quetzalcóatl. Pachacamac.<br />

As cida<strong>de</strong>s. As da ausência, a Cuzco inca ou a Tenochititlán<br />

asteca, em cujos labirintos imaginários nos per<strong>de</strong>mos.<br />

E as outras, <strong>ibero</strong>-americanas. A Cida<strong>de</strong> do Panamá,<br />

espécie <strong>de</strong> ilha cercada <strong>de</strong> selva e mar. A Cida<strong>de</strong> do<br />

México, «cida<strong>de</strong> do sol parado, cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> calcinações<br />

longas, cida<strong>de</strong> a fogo lento». Ou Santiago «das mulheres<br />

formosas com olhares <strong>de</strong> uva». Ou o Rio <strong>de</strong> Janeiro, cida<strong>de</strong><br />

maravilhosa. Ou a secreta Buenos Aires inventada por<br />

Borges. Ou todas as outras que convidamos a <strong>de</strong>scobrir,<br />

«porque aquilo que nos interessa é o que o viajante vê».<br />

Outras inquirições, também. A Ibero-América nascida<br />

como tragédia que se repete, hoje, como melodrama na<br />

vida <strong>de</strong> todos os dias. Excesso e improvisação em cenário<br />

<strong>de</strong> telenovela. A «maracanização» do continente. Violência<br />

e narcotráfico. As tremendas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.<br />

Mas também os novos movimentos sociais. Outras conspirações.<br />

A política entendida como «sinónimo <strong>de</strong><br />

reconstrução, mas sobretudo <strong>de</strong> construção, na Ibero-<br />

-América». Por isso, como acredita Carlos Fuentes, a esperança<br />

<strong>de</strong> uma melhor Ibero-América, no futuro, on<strong>de</strong><br />

a utopia dos que viveram «os cem anos <strong>de</strong> solidão» possa<br />

recuperar, finalmente, o seu rosto verda<strong>de</strong>iro.


TODOS OS NOMES 4<br />

5<br />

ALBERTO MOSQUERA MOQUILLAZA [Lima, Peru] é antropólogo pela Universida<strong>de</strong> Nacional Mayor <strong>de</strong> San Marcos<br />

e Mestre em História da Filosofia na mesma Universida<strong>de</strong>, tendo exercido o jornalismo e colaborado em várias publicações<br />

periódicas da capital peruana. Actualmente é docente na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Económicas da UNMSM, on<strong>de</strong><br />

também é o coor<strong>de</strong>nador da edição da sua revista institucional. ANABELA MOUTINHO [Faro, Portugal] é professora<br />

<strong>de</strong> Filosofia do ensino secundário e Professora Convidada na Escola Superior <strong>de</strong> Educação [Universida<strong>de</strong> do Algarve]<br />

e presi<strong>de</strong>nte do Cine Clube <strong>de</strong> Faro. ANTÓNIO BORGES COELHO [Lisboa, Portugal] é Doutor em Letras e Professor<br />

Catedrático jubilado da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Fundador e Presi<strong>de</strong>nte do ICIA <strong>de</strong> 1995 a 1998. Figura cimeira<br />

da <strong>cultura</strong> portuguesa, Director do Mundo Diplomático, é autor <strong>de</strong> numerosos títulos sobre a Expansão Portuguesa, a Inquisição<br />

e os Cristãos-Novos, além <strong>de</strong> poeta, jornalista e romancista. ANTÓNIO RAMOS ROSA [Faro, Portugal] é um<br />

dos gran<strong>de</strong>s poetas portugueses contemporâneos. Poeta das coisas primordiais, da luz, da pedra e da água, recebeu<br />

inúmeros prémios nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa, em 1998. A sua vasta obra poética e ensaística<br />

encontra-se publicada em numerosos livros, revistas e antologias. ARÓN MAZAS [Montevi<strong>de</strong>u, Uruguai] é jornalista<br />

<strong>de</strong>sportivo acreditado pelo Instituto Profesional <strong>de</strong> Estudios Periodisticos. Actualmente frequenta o curso <strong>de</strong><br />

Ciência Política na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> la República Oriental <strong>de</strong>l Uruguay. BEATRIZ PADILLA [Mendoza, Argentina] obteve<br />

vários graus académicos em diferentes universida<strong>de</strong>s [Universida<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Cuyo, Argentina; Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Texas-Austin, Estados Unidos] e doutorou-se em Sociologia na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Illinois, Urbana-Champaign. É Professora<br />

Auxiliar na Universida<strong>de</strong> Autónoma <strong>de</strong> Lisboa, Professora Convidada no Instituto Superior Técnico <strong>de</strong> Lisboa e Investigadora<br />

<strong>de</strong> pós-doutoramento no CIES-ISCTE. CARLOS CÁCERES MONTEIRO [Lisboa, Portugal], jornalista e<br />

«repórter <strong>de</strong> guerra», tem <strong>de</strong>senvolvido intensa activida<strong>de</strong> jornalística. Recebeu o Gran<strong>de</strong> Prémio <strong>de</strong> Jornalismo <strong>de</strong><br />

2002 atribuído pelo Clube Português <strong>de</strong> Imprensa. É director da revista Visão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fundação. Publicou recentemente<br />

Hotel Babilónia. DANIEL DIVINSKY [Buenos Aires, Argentina] editor, é sócio e director da prestigiada editora<br />

argentina Ediciones <strong>de</strong> la Flor, fundada en 1966 e uma das poucas que subsistiram como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. O seu catálogo,<br />

<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 600 títulos, compreen<strong>de</strong> diversas temáticas, sendo o humor gráfico e escrito um dos mais significativos<br />

[com autores paradigmáticos como Quino, Fontanarrosa, Caloi e Rep, entre os dibujantes argentinos], além da narrativa<br />

do ensaio filosófico e político, do teatro argentino e latino-americano e da literatura infantil. HENRIQUE CAYATTE<br />

[Lisboa, Portugal] é presi<strong>de</strong>nte do Centro Português <strong>de</strong> Design e Professor Convidado da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro. Foi fundador<br />

e autor do <strong>de</strong>sign global, editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sign da EXPO'98 e do respectivo plano <strong>de</strong> pormenor do recinto. Co-autor do sistema <strong>de</strong> sinalética e comunicação da<br />

EXPO’98. Co-autor e responsável pelo <strong>de</strong>sign da revista Egoísta. Comissário e autor do <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> diversas exposições em<br />

Portugal e no estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu em 2003 o Prémio Nacional <strong>de</strong> Design e o Prémio Dibner<br />

Award. HORACIO VÁZQUEZ-RIAL [Buenos Aires, Argentina] é Doutor em Geografia e História pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Barcelona e autor <strong>de</strong> diversas obras <strong>de</strong> ensaio. Resi<strong>de</strong>nte há muito em Barcelona, <strong>de</strong>u-se a conhecer ao público com o<br />

livro Segundas Personas em 1983. Des<strong>de</strong> então, tem publicado numerosos livros, dois dos quais foram finalistas do Prémio<br />

Nadal e do Prémio Internacional <strong>de</strong> Romance Plaza & Janés. JANET NÚÑEZ [Barranquilla, Colômbia] é licenciada em<br />

Design <strong>de</strong> Interiores. Durante 12 anos trabalhou como directora, produtora ou assistente en diferentes projectos <strong>de</strong><br />

cinema e televisão. Nos últimos anos tem-se <strong>de</strong>dicado à promoção e produção <strong>de</strong> eventos <strong>cultura</strong>is, sendo Professora<br />

<strong>de</strong> Produção <strong>de</strong> TV e Guiões Cinematográficos. JOÃO DE MELO [Açores, Portugal] é licenciado em Românicas pela<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Escritor, tem-se notabilizado sobretudo como ficcionista, embora a sua obra se inscreva em diferentes<br />

domínios como o ensaio, a crítica literária, a poesia e a crónica. Publicou numerosos títulos e obteve vários<br />

prémios literários, entre os quais o Gran<strong>de</strong> Prémio <strong>de</strong> Romance e Novela da Associação Portuguesa <strong>de</strong> Escritores e o<br />

Prémio Cristóbal Colón das cida<strong>de</strong>s capitais <strong>ibero</strong>-americanas [Lima, Peru] com o livro Gente Feliz com Lágrimas [1989].<br />

Actualmente é adido <strong>cultura</strong>l da embaixada <strong>de</strong> Portugal em Madrid. JOÃO MARIANO [Aljezur, Portugal] é fotógrafo.<br />

Editou e coor<strong>de</strong>nou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> fotografia do portal Terràvista e actualmente<br />

dirige a agência 1000olhos – Imagem e Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993. Colabora eventualmente com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA [Portimão,<br />

Portugal] é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências<br />

Documentais [área <strong>de</strong> Bibliotecas] pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Foi leitor <strong>de</strong> Língua e Cultura Portuguesas na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Paris III e docente convidado na Escola Superior <strong>de</strong> Educação da Universida<strong>de</strong> do Algarve. Entre 1998 e 2003<br />

<strong>de</strong>sempenhou as funções <strong>de</strong> Delegado Regional do Ministério da Cultura no Algarve. Actualmente <strong>de</strong>senvolve activida<strong>de</strong><br />

na área da gestão <strong>cultura</strong>l. JORGE FAURIE [Argentina] é advogado e diplomata. Especialista em questões latinoamericanas,<br />

tem assumido vários cargos políticos <strong>de</strong> relevo, nomeadamente como Director no Mercosul e Vice--Ministro<br />

<strong>de</strong> Negócios Estrangeiros da Argentina, <strong>de</strong>sempenhando actualmente o cargo <strong>de</strong> Embaixador em Portugal. JOSÉ<br />

NEWTON COELHO MENESES [Virginópolis, Brasil] é Doutor em História Social pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense<br />

e Professor Adjunto da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. Colabora na revista brasileira Nossa História e é autor


<strong>de</strong> O Continente Rústico. Abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas [Maria Fumaça Editora] e <strong>de</strong> História & Turismo Cultural<br />

[Editora Autêntica]. JOSUÉ BARRIOS [Lima, Peru] é engenheiro comercial, formador <strong>de</strong> Recursos Humanos e fotógrafo.<br />

GABRIELA CÁNOVAS [Santiago, Chile] é artista plástica [pintura e <strong>de</strong>senho gráfico]. Fez os seus estudos académicos<br />

na Universida<strong>de</strong> do Chile e na Universida<strong>de</strong> Complutense <strong>de</strong> Madrid. Tem exposto os seus trabalhos no Chile,<br />

em Espanha, em França, na Austrália e na Argentina. LÍDIA JORGE [Boliqueime, Portugal] é uma das mais prestigiadas<br />

romancistas portuguesas. É licenciada em Filologia Românica pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Em 1970 partiu para Moçambique,<br />

observando a guerra e os últimos anos da colonização portuguesa em África. Em 1979, Vergílio Ferreira<br />

aconselhou o seu romance O Dia dos Prodígios para publicação.Torna-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então uma das mais importantes romancistas<br />

portuguesas. Recebeu vários prémios literários, entre os quais o Prémio Europeu Jean Monnet com a obra O Vale da<br />

Paixão [1998] e, em 2003, o Gran<strong>de</strong> Prémio <strong>de</strong> Romance da Associação Portuguesa <strong>de</strong> Escritores, com o romance O<br />

Vento Assobiando nas Gruas. LILIA MORITZ SCHWARCZ [São Paulo, Brasil] é professora livre-docente no Departamento<br />

<strong>de</strong> Antropologia da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo [USP]. Doutorada em Sociologia Social pela USP, tem vários títulos publicados,<br />

dos quais se <strong>de</strong>staca As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos [Assírio & Alvim]. Colaborou na História<br />

da Vida Privada do Brasil e é colaboradora da revista Nossa História editada pela Biblioteca Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

LUIS SEPÚLVEDA [Ovalle, Chile] é um prestigiado romancista chileno cuja obra se encontra traduzida em muitas línguas.<br />

Exilado durante a ditadura, acabou por ficar na Europa, residindo actualmente em Gijón on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolve intensa<br />

activida<strong>de</strong> <strong>cultura</strong>l <strong>de</strong> divulgação da literatura <strong>ibero</strong>-americana, nomeadamente como director do Salón <strong>de</strong>l Libro Iberoamericano.<br />

Autor <strong>de</strong> numerosos livros, conta com vários títulos traduzidos em português, nomeadamente Um Velho<br />

Que Lia Romances <strong>de</strong> Amor, Patagónia Express, História <strong>de</strong> uma Gaivota e do Gato Que Lhe Ensinou a Voar e, recentemente, Uma História Suja.<br />

MARIA ADELINA AMORIM [Luanda, Angola] é Mestre em História do Brasil e Assistente Convidada na Universida<strong>de</strong><br />

Lusófona em Lisboa. É autora <strong>de</strong> vários estudos sobre a missionação no Brasil e sobre a literatura <strong>de</strong> viagens. MARIA<br />

ANGELES SALLÉ [David, República do Panamá] é licenciada em Ciências Políticas e Sociologia pela Universida<strong>de</strong> Complutense<br />

<strong>de</strong> Madrid e Professora Associada em várias universida<strong>de</strong>s espanholas. É membro <strong>de</strong> grupos internacionais <strong>de</strong><br />

especialistas em emprego, <strong>de</strong>senvolvimento e género, e autora <strong>de</strong> diversos projectos <strong>de</strong> investigação, estudos e publicações,<br />

dos quais se <strong>de</strong>staca a edição do livro-disco Travesías, Historias Emigrantes <strong>de</strong> Ayer y Hoy [Metáfora Ediciones] e do livro<br />

La Vi@ en Rosa, Ciberconversaciones <strong>de</strong> Mujeres. MARIA DA GRAÇA A. MATEUS VENTURA [Portimão, Portugal] é Doutora<br />

em Letras pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa. Fundadora do ICIA, foi Vice-Presi<strong>de</strong>nte da Direcção <strong>de</strong> 1995 a 2002, sendo<br />

Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2002. Membro do Nodo Coor<strong>de</strong>nador da Cátedra <strong>de</strong> História da Ibero-América [OEI] e Coor<strong>de</strong>nadora<br />

Executiva da CEIA, é Professora Convidada na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Humanas e Sociais da Universida<strong>de</strong> do Algarve<br />

no âmbito da Cátedra <strong>de</strong> Estudos Ibero-Americanos. É autora <strong>de</strong> vários estudos sobre a Ibero-América. OSVALDO<br />

HENRIQUE URBANO [Lima, Peru] foi <strong>de</strong> Aveiro para o Canadá on<strong>de</strong> obteve o grau <strong>de</strong> PhD em Ciências Sociais [Université<br />

Laval, Québec] e foi Catedrático <strong>de</strong> Sociologia da mesma Universida<strong>de</strong>. Daqui partiu para o Peru on<strong>de</strong> fundou o<br />

Centro Las Casas [Cuzco, Peru] e a <strong>Revista</strong> Andina. Actualmente é Director do Instituto <strong>de</strong> Investigações da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Ciências da Comunicação, Turismo e Psicologia [Universida<strong>de</strong> San Martín <strong>de</strong> Porres, Lima, Peru] e Director da revista<br />

Turismo y Patrimonio. REGINA RODRÍGUEZ [Santiago, Chile] é jornalista, licenciada em Comunicação pela Universida<strong>de</strong><br />

Complutense <strong>de</strong> Madrid e diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Latinoamericano <strong>de</strong> Estudios Internacionales.<br />

Foi directora da revista Mujeres [Madrid, 1983-1987]. Actualmente é Directora <strong>de</strong> Publicaciones <strong>de</strong> Isis Internacional<br />

[Santiago do Chile]. ROBERTO AMPUERO [Valparaíso, Chile] é um dos romancistas chilenos mais lidos. O seu recente<br />

romance Los Amantes <strong>de</strong> Estocolmo, o maior êxito editorial <strong>de</strong> 2003 no Chile, foi eleito livro do ano pela prestigiada <strong>Revista</strong><br />

<strong>de</strong> Libros do Chile. Os seus romances foram traduzidos em alemão, francês, italiano e português. Em Portugal foi editado,<br />

este ano, o livro Encontro no Azul Profundo [Temas e Debates] que relata parte da saga do seu popular investigador chileno-cubano<br />

Cayetano Brulé. SONIA TELLO ROZAS [Cuzco, Peru] é Mestre em Gestão Cultural, Património e Turismo<br />

pelo Instituto Universitario Ortega y Gasset da Universida<strong>de</strong> Complutense <strong>de</strong> Madrid. Prepara o seu Doutoramento em<br />

Administração na École <strong>de</strong>s Hautes Étu<strong>de</strong>s Commerciales [Montréal, Canadá]. Foi responsável pelo Programa <strong>de</strong> Pós-<br />

-Graduação em Gestão Cultural no Centro <strong>de</strong> Estudios Bartolomé <strong>de</strong> las Casas [Cuzco, Peru] e Directora dos Programas <strong>de</strong><br />

Pós-Graduação na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Turismo da Universida<strong>de</strong> San Martín <strong>de</strong> Porres <strong>de</strong> Lima [Peru]. TABAJARA RUAS<br />

[Uruguaiana, Brasil] é romancista e cineasta. Estudou arquitectura em Porto Alegre, on<strong>de</strong> se envolveu na luta contra a ditadura<br />

militar brasileira. Por esse motivo exilou-se no Chile, Argentina, Dinamarca e Portugal. Os seus livros foram<br />

traduzidos em Portugal, Dinamarca, Itália, Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia.Trabalha como guionista e jornalista<br />

e é um dos mais <strong>de</strong>stacados escritores brasileiros da actualida<strong>de</strong>. VOLODIA TEITELBOIM [Chillán, Chile] é um<br />

dos nomes mais ilustres das letras chilenas e americanas do século XX. É um escritor multifacetado, autor <strong>de</strong> uma obra<br />

imensa que inclui romances, crónicas, memórias, biografias e ensaios. Integrou a Geração <strong>de</strong> 38 e é autor das biografias<br />

<strong>de</strong> Gabriela Mistral,Vicente Huidobro, Jorge Luis Borges [Temas e Debates] e Pablo Neruda [Temas e Debates]. Foi<br />

galardoado com o Prémio Nacional <strong>de</strong> Literatura do Chile em 2002.


LUGARES DE PARTIDA 6<br />

Sagres Lídia<br />

7<br />

Jorge


Foto <strong>de</strong> João Mariano<br />

Por que razão evitar a palavra outrora? – Outrora<br />

não havia o ruído das estradas, os céus só<br />

<strong>de</strong> muito longe a longe eram riscados pelas rotas<br />

dos aviões, e as partidas eram feitas em gran<strong>de</strong>s<br />

navios, com lenços brancos a acenar e longos<br />

mugidos que amarravam para sempre os corações<br />

amantes às pedras dos cais. Os soutiens das<br />

mulheres eram agudos como se fossem funis, e<br />

os sapatos dos homens rangiam à medida das<br />

suas passadas como se fossem <strong>de</strong> tábua. A música<br />

que se escutava era ainda predominantemente<br />

executada em presença, os lábios e os <strong>de</strong>dos próximos,<br />

a vibrarem contra os instrumentos,<br />

objectos então familiares nas nossas vidas. Hotel<br />

era ainda uma realida<strong>de</strong> mágica que só tinha<br />

consistência nos filmes americanos, e o telefone,<br />

um objecto <strong>de</strong> luxo que distinguia os senhores<br />

das vilas. Transpor distâncias geográficas, breves<br />

que fossem, era ainda uma tarefa assinalável.


LUGARES DE PARTIDA 7<br />

– Muita coisa, pouca coisa? Só o suficiente para<br />

dizer que, se penso em Sagres, é em Sagres <strong>de</strong>sse<br />

outrora que penso.<br />

Regressando lá, a esse outro tempo, em que<br />

se ouvia o pêndulo dos relógios das torres marcarem<br />

as horas íntimas <strong>de</strong> cada um, Sagres <strong>de</strong><br />

outrora não se me afigura um cabo nem um promontório,<br />

mas apenas uma luzinha brilhando no<br />

escuro da penumbra imensa em que se transformou<br />

o passado, a luz intermitente dum farol que<br />

a espaços riscava a noite, quando a noite ainda<br />

podia ser escura. Porque <strong>de</strong> dia a terra esmorecia<br />

<strong>de</strong>sse lado, as formas das casas iam-se per<strong>de</strong>ndo<br />

ao longe, confundindo-se com a rala vegetação<br />

da paisagem, e quando a lonjura quebrava a linha<br />

perceptível e se transformava ela mesma no próprio<br />

fio do horizonte, aí a distância tornava-se<br />

lilás, e <strong>de</strong>saparecia <strong>de</strong> encontro ao mar azul que<br />

por sua vez também <strong>de</strong>saparecia no céu anilado.<br />

Sagres encontrava-se lá, um espaço imerso nesse<br />

lugar vago, on<strong>de</strong> a Terra acabava diante da nossa<br />

vista e <strong>de</strong>saparecia como uma espécie <strong>de</strong> tira <strong>de</strong><br />

fumo. Quando o Outono chegava, a distância<br />

transformava-se em alguma coisa mais palpável,<br />

passava a ser uma proveniência, uma direcção<br />

precisa, um ponto car<strong>de</strong>al <strong>de</strong> on<strong>de</strong> sopravam os<br />

ventos que fustigavam as árvores. Era o local <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> provinham as chuvas arrebatadas <strong>de</strong> Novembro,<br />

as que entravam pela chaminé e aspergiam<br />

a toalha da mesa <strong>de</strong> gotas e salpicos, atingiam<br />

as nossas camas duma humida<strong>de</strong> ainda<br />

quente. Mas Sagres, o verda<strong>de</strong>iro Sagres <strong>de</strong> outrora,<br />

era muito mais do que uma barra esfumada<br />

ou as intempéries que <strong>de</strong> lá provinham.<br />

Sagres era uma pátria nocturna, uma espécie<br />

<strong>de</strong> olho vigilante na noite que vinha ter<br />

connosco à varanda, quando subir as escadas<br />

durante a noite, para ver as estrelas ou distinguir<br />

o rebordo das nuvens, se transformava numa<br />

aventura nas nossas parcas vidas. Também a<br />

Geografia ainda era uma abstracção, mas o que<br />

a nossa mãe contava é que se caminhássemos<br />

por cima do mar, a partir daquela luz, e seguíssemos<br />

sempre em frente, se nos imaginássemos<br />

permanentemente a andar por cima das ondas,<br />

apesar das nossas pernas curtas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> dois,<br />

três anos, chegaríamos à América do Norte. Se<br />

caminhássemos para sul iríamos ter a África, se<br />

nos dirigíssemos para sudoeste – e ela indicava<br />

essa direcção imprecisa com o seu braço, que<br />

nos parecia gigante – então chegaríamos aos<br />

países da América do Sul. Demoraríamos muito,<br />

9<br />

sofreríamos muito, no entanto seria bom, pois<br />

se lá chegássemos, em todos esses lugares, encontraríamos<br />

parentes.<br />

É possível que essas cenas <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong><br />

geografia humana familiar acontecessem também<br />

<strong>de</strong> dia, mas a imagem <strong>de</strong>sse Sagres <strong>de</strong> outrora,<br />

sempre a associo às explicações da noite.<br />

A nossa varanda abria-se exactamente a meio do<br />

Algarve. Mais próximo brilhava o farol do Cabo<br />

Carvoeiro, <strong>de</strong>pois piscava aquele frouxo olho <strong>de</strong><br />

Sagres, tremido, longínquo. Quanto mais tremido<br />

e mais distante, mais doloroso, mais potente,<br />

como se o seu braço <strong>de</strong> luz fizesse a ponte entre<br />

nós que havíamos ficado e todos esses que haviam<br />

partido. Não o nego, aquela luz nas noites<br />

<strong>de</strong> outrora era um lugar que separava e unia a<br />

nossa gente. Gente sem passado nem futuros assinaláveis,<br />

gente que era apenas um só corpo<br />

<strong>de</strong>sunido, disperso pelo mundo. A verda<strong>de</strong> é<br />

que ninguém dali havia partido, àquele lugar<br />

ninguém iria chegar, e no entanto, no relato escuro<br />

da varanda, era como se tudo ali tivesse<br />

acontecido, como se Lisboa, seus cais e aeroporto,<br />

on<strong>de</strong> as partidas reais se davam, não<br />

existissem em lugar nenhum. A partir da nossa<br />

varanda, aquele lugar sudoeste parecia ser o<br />

único ponto car<strong>de</strong>al das nossas vidas. Mas, logo<br />

na primeira curva da infância, viria a História e<br />

viriam os mitos.<br />

Primeiro, a História. As coisas passaram-se<br />

assim – a professora do Liceu mandou apagar<br />

da cabeça todas as histórias <strong>de</strong> luzes e varandas,<br />

para nos contar como certo dia, quinhentos<br />

anos antes, um príncipe português, casto e visionário,<br />

tinha resolvido abandonar a corte, armado<br />

<strong>de</strong> seus cavalos e escu<strong>de</strong>iros, para vir assentar<br />

casa e villa no Sul <strong>de</strong> Portugal, e aqui dar<br />

início aos Descobrimentos Marítimos. A professora<br />

parecia estar enamorada <strong>de</strong>sse príncipe.<br />

Segundo a sua narrativa <strong>de</strong> fábula, o príncipe<br />

havia <strong>de</strong>scoberto, ao atravessar o Algarve, em<br />

direcção do Norte <strong>de</strong> África, que o Promontório<br />

<strong>de</strong> Sagres, muito mais do que um rochedo,<br />

era uma gran<strong>de</strong> mão aberta cujo <strong>de</strong>do indicador<br />

estendido apontava para o futuro do Mar. Em<br />

sua bata branca <strong>de</strong> oficial impecável, a professora<br />

falava da villa, do príncipe, dos sábios italianos<br />

que ali tinham chegado para falarem da rota<br />

das estrelas, dos engenhos, dos barcos e dos<br />

mapas da pequena Terra Cógnita da época, e a<br />

mão aberta do Promontório <strong>de</strong> Sagres, mais do<br />

que um local <strong>de</strong> partida era um local <strong>de</strong> chegada


que em simultâneo ligava o seu rochedo ao extremo<br />

Sul <strong>de</strong> África, à Índia, à China e ao Japão,<br />

ao cabo Horn, como se toda essa façanha <strong>de</strong><br />

séculos tivesse jorrado da testa do príncipe,<br />

prodigiosamente, segundo a mesma lei <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong><br />

que movia o ponteiro da professora<br />

por cima do planisfério. A História tinha então<br />

a forma duma mulher enamorada. Sob o impulso<br />

daquela professora em estado <strong>de</strong> paixão, <strong>de</strong>senhámos<br />

Infantes Dom Henrique sentados nos<br />

rochedos, caravelas no seus ombros e ao seu colo,<br />

fizemos prosa e versos, houve exposições e prémios.<br />

Aquela mulher tinha razão – Sagres, segundo<br />

a sua História, não tinha nada a ver com<br />

a tira lilás que se avistava da varanda, nem com<br />

a luz intermitente que apontava para a distância<br />

do mundo que nos era contemporâneo –. Mas,<br />

como disse, ainda haveria os mitos.<br />

Aliás, <strong>de</strong> modos diferentes, eles nunca tinham<br />

estado ausentes.Talvez uma parte do afecto<br />

seja mito, talvez toda a memória também o seja.<br />

O que sabemos nós da construção do pensamento?<br />

Mas Mitos mitos, aqueles que resumem<br />

os sentidos da existência com a síntese dum alfinete<br />

afiado, esses começariam a ficar cada vez<br />

mais explícitos. Afinal, por alguma razão superior,<br />

Sagres se situava em terras <strong>de</strong> Portugal. O<br />

assunto era tão sibilino quanto resultava claro. –<br />

Por alguma razão <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m teleológica, tão estranha<br />

à vonta<strong>de</strong> humana quanto a chuva ou o<br />

trovão, tinha havido Sagres para que Portugal<br />

pu<strong>de</strong>sse ter enviado primeiro as caravelas, <strong>de</strong>pois<br />

as fundas naus sem fundo, com a Cruz <strong>de</strong><br />

Cristo arvorada nas velas e a doutrina cristã escrita<br />

nos livros. O Império <strong>de</strong> Cristo havia tido<br />

sua cabeça em Portugal. Todo o Portugal, ponta<br />

extrema da Europa, afinal não passava duma lança<br />

<strong>de</strong> Fé chamada Sagres. É preciso lembrar que<br />

nesse tempo as raparigas usavam véus para entrarem<br />

nos templos do Senhor, os cabelos das<br />

suas cabeças ainda precisavam <strong>de</strong>sse abafo contra<br />

os seus próprios males. A pouco e pouco, o Mito<br />

havia tomado conta das nossas vidas e, por isso,<br />

subir acima da varanda da nossa casa já não era<br />

subir acima da varanda da nossa casa para ver o<br />

céu à transparência. Um véu não era um véu. O<br />

simbólico havia-se instalado com sua po<strong>de</strong>rosa<br />

corte <strong>de</strong> substância entre o real e o imaginado.<br />

Só os cegos iam a Sagres e nele viam um rochedo<br />

perigoso por on<strong>de</strong> todos os navios provenientes<br />

do Mediterrâneo e do Atlântico, na rota<br />

da Europa, tinham obrigatoriamente <strong>de</strong> passar.<br />

Só os cegos. Então, felizmente, fomos a Sagres.<br />

Ainda estávamos vivos e intactos.<br />

Fomos, fazia vento, já o disse <strong>de</strong> outros modos.<br />

Éramos adolescentes. Tudo isso aconteceu outrora,<br />

quando as estradas ainda corriam às curvas<br />

entre veigas e outeiros, amarradas aos caprichos<br />

do terreno. Fomos. Chegámos lá <strong>de</strong>pois duma<br />

tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> viagem num carro que carburava mal. A<br />

distância que nos separava era curta, mas nós<br />

achávamos que por mais que andássemos nunca<br />

chegaríamos lá. E, <strong>de</strong> súbito, ali estávamos em pé,<br />

sobre as costas dum rochedo. Uma pedra gigantesca,<br />

uma escarpa nua, on<strong>de</strong> o vento assobiava<br />

como se nos quisesse arrebatar para outra parte.<br />

E, então, à medida que os re<strong>de</strong>moinhos nos levavam<br />

os cabelos, foi simples imaginar quantos enxovais<br />

por estrear se haviam misturado com a<br />

areia, quantas quilhas, quantos mastros, quantas<br />

sepulturas abertas nas ondas, para que a distância<br />

entre continentes, ao longo dos séculos, tivesse<br />

sido transposta. Foi possível compreen<strong>de</strong>r como<br />

por cada príncipe sonhador que a História oferece,<br />

sempre foram necessários exércitos incontáveis<br />

<strong>de</strong> outros homens, cujos nomes só estão<br />

escritos entre os grãos <strong>de</strong> areia on<strong>de</strong> ficaram seus<br />

<strong>de</strong>sejos e seus ossos. Tudo isso foi entendido durante<br />

essa primeira visita ao rochedo.<br />

Mas foi preciso mais tempo, sobretudo mais<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> no tempo, para que eu mesma enten<strong>de</strong>sse<br />

que em Sagres, como em toda a escarpa<br />

nua que se prolonga pelo Mar, existe o aceno<br />

que leva para longe o nómada das águas. Existe<br />

o inquieto, o curioso, o móvel, o trotamundos<br />

sem <strong>de</strong>stino à vista, o inqualificável. Aquele que<br />

sente, na sua carne e no seu espírito, que à medida<br />

que se vai afastando da sua casa, mais se<br />

aproxima da verda<strong>de</strong>ira morada. E assim se sabe<br />

que sempre que se fala do espírito do Príncipe,<br />

seus cálculos astronómicos e seu Mapa-múndi<br />

<strong>de</strong> Fra Mauro, sempre se terá <strong>de</strong> falar daquele<br />

outro infante múltiplo, sem retrato, que habita<br />

na sombra do seu silêncio e se chama Humanida<strong>de</strong>.<br />

Era essa a palavra que eu <strong>de</strong>sejaria ver escrita<br />

em letras gigantescas nas escarpas da futura<br />

Sagres. Em volta do seu relógio <strong>de</strong> sol <strong>de</strong>senhado<br />

no chão, cujos ponteiros não falam, Humanida<strong>de</strong>.<br />

– Todos os que partiram, ou não partiram<br />

<strong>de</strong> lá, ao longo dos séculos, mereceriam essa<br />

homenagem. Os ignorados, aqueles cuja vida<br />

anónima encontra no enrolar e <strong>de</strong>senrolar das<br />

ondas a sua única metáfora, seriam esses o seu<br />

<strong>de</strong>stinatário.


VAGA GENTE 10<br />

Um mineiro<br />

portimonense<br />

no Alto Peru<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Os portugueses <strong>de</strong>ixaram marcas<br />

da sua presença para além<br />

das fronteiras do território<br />

politicamente <strong>de</strong>limitado<br />

11<br />

pelos sucessivos tratados entre Portugal<br />

e Espanha.Vaga gente<br />

que in<strong>de</strong>cifravelmente forma<br />

parte do tempo, da terra e do olvido.


Afonso <strong>de</strong> Fonseca Falcão<br />

era um mineiro po<strong>de</strong>roso,<br />

pela fortuna e pela<br />

teia <strong>de</strong> relações. Foi <strong>de</strong> Portimão<br />

para o Alto Peru,<br />

quando a produção da prata<br />

já anunciava o seu <strong>de</strong>clínio,<br />

em 1621. Logo que<br />

chegou ao Potosí, Falcão ocupou-se em lavrar<br />

e beneficiar minas próprias, no Cerro<br />

Rico da Villa, à sua custa e sem qualquer<br />

ajuda <strong>de</strong> índios <strong>de</strong> cédula ou mitayos, tendo<br />

gasto muita prata e servido a Coroa com<br />

«gran<strong>de</strong>s e quantiosos serviços <strong>de</strong> interesses<br />

<strong>de</strong> quintos reais que cresceram e aumentaram<br />

a Sua Real Fazenda» em mais <strong>de</strong> 500<br />

mil pesos e, em especial, pela «grossa<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metais ricos» que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1635, pouco mais ou menos, sacara e beneficiara<br />

no asiento rico <strong>de</strong> Chocaya.<br />

Afonso Falcão foi um dos primeiros<br />

povoadores <strong>de</strong>ste asiento e dos mais interessados<br />

naVeta <strong>de</strong> Clarines don<strong>de</strong> se sacou «tão<br />

gran<strong>de</strong> soma <strong>de</strong> metais ricos» que a Coroa<br />

obteve elevadas receitas proce<strong>de</strong>ntes dos<br />

quintos. Quando as minas <strong>de</strong> Chocaya foram<br />

inundadas, Falcão foi o primeiro a<br />

<strong>de</strong>saguá-las, pelo que se pô<strong>de</strong> voltar a extrair<br />

muitos metais ricos, tudo à custa <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s gastos por se ter continuado com<br />

os ditos <strong>de</strong>saguamentos por mais cinco<br />

anos. Não po<strong>de</strong>ndo manter a exploração<br />

<strong>de</strong>sta mina, pelo «embaraço e impedimento<br />

da água», Afonso <strong>de</strong>scobriu «muchos<br />

labores» no Cerro e asiento <strong>de</strong> Tasna<br />

don<strong>de</strong> sacou elevada quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metais<br />

beneficiados no seu engenho <strong>de</strong> San Antonio<br />

<strong>de</strong> Villa Real <strong>de</strong> que era proprietário por<br />

título hereditário.<br />

Além <strong>de</strong> povoador <strong>de</strong> Tasna, Afonso<br />

Falcão explorou também as minas do Cerro<br />

e asiento <strong>de</strong> Chorolque don<strong>de</strong> sacou igualmente<br />

muitos metais, <strong>de</strong>scobrindo minas<br />

novas e limpando minas antigas que estavam<br />

«cegas e cobertas», por «ignorância e<br />

pouca indústria» dos antigos mineiros.<br />

Em 1647, este mineiro algarvio abriu<br />

mais dois filões em Chorolque, tendo <strong>de</strong><br />

novo gasto «mucha plata» para que estas<br />

minas se pu<strong>de</strong>ssem lavrar e <strong>de</strong>saguar com<br />

comodida<strong>de</strong>. Dos ditos filões extraía-se<br />

muita prata que garantia gran<strong>de</strong> rendi-<br />

Proprietário,<br />

concessionário<br />

<strong>de</strong> minas e<br />

azougueiro,<br />

Afonso <strong>de</strong> Fonseca<br />

Falcão foi, <strong>de</strong>certo,<br />

um dos homens<br />

mais ricos do Potosí<br />

mento à Coroa espanhola,<br />

até porque todo o investimento<br />

fora feito, mais uma<br />

vez, à sua custa, sem recorrer<br />

a «índios <strong>de</strong> cédula».<br />

Dos quantiosos e ricos metais,<br />

beneficiados no engenho<br />

<strong>de</strong> San Antonio e em<br />

outros que possuía na região dos Chichas<br />

e dos Lipes, haviam resultado importantes<br />

quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> marcos <strong>de</strong> prata em pinha,<br />

além do resultante da compra à Coroa <strong>de</strong><br />

muitos quintais <strong>de</strong> azougue, pago em<br />

barras <strong>de</strong> prata.<br />

Proprietário e concessionário <strong>de</strong> minas<br />

e azougueiro, Afonso <strong>de</strong> Fonseca Falcão<br />

era, <strong>de</strong>certo, um dos homens mais ricos<br />

do Potosí e um dos mais importantes na<br />

socieda<strong>de</strong> local, pois soube aliar a fortuna<br />

a um casamento estratégico. Casou com<br />

D. Juana <strong>de</strong> Villela, filha do licenciado<br />

D. Juan <strong>de</strong> Villela que foi alcai<strong>de</strong> da Corte,<br />

ouvidor da Audiência <strong>de</strong> Lima, presi<strong>de</strong>nte<br />

da Audiência <strong>de</strong> Guadalajara e membro<br />

do Conselho das Índias. D. Juana havia casado<br />

em primeiras núpcias com o governador<br />

<strong>de</strong> La Plata, facto que valorizava, ao<br />

menos simbolicamente, o seu dote. Ao<br />

excelente estatuto social da esposa, Afonso<br />

acrescentava a sua fortuna e a nobreza dos<br />

seus antepassados. Em 1647, Afonso enviou<br />

a Filipe IV e ao Conselho das Índias<br />

uma petição para que se proce<strong>de</strong>sse a<br />

uma informação sobre os seus méritos e<br />

serviços como justificação do seu pedido<br />

<strong>de</strong> mercê <strong>de</strong> cargo, renda ou hábito <strong>de</strong><br />

uma das quatro or<strong>de</strong>ns militares para o<br />

seu filho primogénito, os típicos apanágios<br />

indianos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r – cargo, renda e<br />

hábito. Consi<strong>de</strong>rava-se a si próprio como<br />

«homem quieto e pacífico e muito atento<br />

ao serviço <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> e<br />

sempre se tratou e conservou com muito<br />

lustro <strong>de</strong> sua pessoa, casa e família, tendo<br />

criados espanhóis e escravos». Não sabemos<br />

se obteve esta mercê, mas Afonso <strong>de</strong> Fonseca<br />

Falcão foi, seguramente, um dos portugueses<br />

<strong>de</strong> sucesso no Alto Peru, graças à<br />

sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciativa e <strong>de</strong> investimento<br />

numa activida<strong>de</strong> fulcral para o império<br />

espanhol – a mineração da prata, el<br />

nervio <strong>de</strong> la nación.


Sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Chiriquí<br />

Maria Angeles Sallé<br />

TRAVESSIAS 12<br />

Mais do que <strong>de</strong> uma travessia <strong>de</strong> dupla<br />

direcção, entre Chiriquí e Barcelona,<br />

trata-se <strong>de</strong> um percurso <strong>de</strong> ida<br />

e volta através da sauda<strong>de</strong><br />

e da nostalgia <strong>de</strong> um imenso coração<br />

atravessado pelo mar, uma espécie<br />

<strong>de</strong> ponte entre o cais da memória<br />

e o porto da esperança.<br />

13


Chiva, autocarro do Panamá


TRAVESSIAS 14<br />

Quando eu era menina, ir<br />

<strong>de</strong> David à capital supunha dois<br />

dias <strong>de</strong> viagem envoltos em pó,<br />

água ou, com mais frequência,<br />

na sua incómoda síntese <strong>de</strong> barro.<br />

Mas, ao chegarmos, aguardava-nos<br />

– após a travessia da ponte<br />

das Américas – uma cida<strong>de</strong><br />

caótica, <strong>de</strong> latidos e cores que<br />

me fascinavam. Nunca mais, em<br />

nenhuma das múltiplas viagens<br />

que empreendi, encontrei uma<br />

ponte que me parecesse tão<br />

imensa, nem uma cida<strong>de</strong> que<br />

encerrasse tanto mundo. Por isso<br />

o meu sonho <strong>de</strong> menina sempre<br />

foi repartir a minha vida adulta<br />

entre as duas margens daquela<br />

ponte: a da terra e água e a do ar<br />

e fogo.<br />

Mas eu, além <strong>de</strong> ter nascido<br />

em Chiriquí, também nasci espanhola,<br />

e a presença <strong>de</strong> Espanha –<br />

a sua cozinha, o seu «ceceio», as<br />

suas festas, costumes e, sobretudo,<br />

as suas nostalgias – foi a música<br />

<strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> todos os meus crescimentos.<br />

Temia a minha prematura<br />

condição emigrante.Temia-a porque<br />

colocava sobre as minhas jovens<br />

raízes outras mais fortes e<br />

melhor plantadas; quiçá, também<br />

porque pressentia que, <strong>de</strong>vido a<br />

ela, o meu sonho <strong>de</strong> viver entre<br />

as duas margens da ponte não ia<br />

po<strong>de</strong>r cumprir-se.<br />

Tinha <strong>de</strong>z anos quando vi –<br />

pela primeira vez com os meus<br />

olhos – a luz <strong>de</strong> Espanha. Foi a do<br />

Mediterrâneo, em Barcelona, no<br />

mesmo porto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> havia zarpado<br />

o meu pai, muitos anos antes,<br />

rumo às Américas. Dezasseis<br />

dias durou esse trajecto que me<br />

entregava a um <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> margens<br />

mais largas, as <strong>de</strong> um Atlântico<br />

cujas ribeiras nenhuma ponte<br />

podia aproximar, mas que os<br />

emigrantes espanhóis converteram<br />

em algo estranhamente familiar,<br />

baptizando-o <strong>de</strong> «el Charco».<br />

15<br />

Des<strong>de</strong> então, a minha existência<br />

converteu-se num ir e vir,<br />

quer fosse viajando, quer sonhando.<br />

Essa po<strong>de</strong>ria ser uma<br />

boa síntese <strong>de</strong> uma travessia pessoal<br />

na qual, mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>scobri<br />

que se espelhavam as viagens íntimas<br />

<strong>de</strong> muitos outros navegadores.<br />

Porque, para todos nós,<br />

emigrar supunha abrir uma ferida<br />

nas raízes pela qual se nos colou<br />

um bocado <strong>de</strong> terra nova. A cicatriz<br />

permanece sempre; inclusive<br />

se se regressa, as dores mestiças<br />

afloram à superfície uma e outra<br />

vez. A terra nova, por seu lado,<br />

aduba um jardim <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>s,<br />

amores, esquecimentos, sonhos<br />

possíveis, encontros com um<br />

igual ou, simplesmente, um prato<br />

<strong>de</strong> comida quente em cada<br />

dia, que continua sendo, infelizmente,<br />

a razão fundamental dos<br />

êxodos que se produzem no<br />

mundo <strong>de</strong> hoje.<br />

A minha existência, como<br />

era lógico, mudou também –<br />

entre tantas voltas – ao conhecer<br />

uma série <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong> pessoas<br />

que, como eu, sulcavam o<br />

mar repartindo o seu coração<br />

entre cá e lá.<br />

Muitos outros emigrantes se<br />

cruzaram, <strong>de</strong>pois, no meu caminho.<br />

Aventureiros <strong>de</strong> passagem,<br />

gente que fracassou no seu esforço<br />

e teve <strong>de</strong> regressar <strong>de</strong> cabeça<br />

baixa e bolsos vazios, empreen<strong>de</strong>dores<br />

que, como os meus pais,<br />

exerceram as profissões mais mirabolantes<br />

para seguir em frente<br />

(afiadores, ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> quadros,<br />

marceneiros, cafezeiros, comerciantes...),<br />

exilados da guerra<br />

civil... pessoas, todas elas, com<br />

trajectórias muito diferentes,<br />

mas, ao mesmo tempo, forjadas<br />

por uma esteira comum <strong>de</strong> lágrimas,<br />

suor e mar.<br />

Quatro milhões <strong>de</strong> espanhóis<br />

emigraram para a América<br />

ao longo do século XX. Uns<br />

quantos vieram parar ao Panamá,<br />

on<strong>de</strong> se somaram à extensa colónia<br />

<strong>de</strong> italianos, chineses, gregos,<br />

antilhanos, indianos, ju<strong>de</strong>us ou<br />

árabes aos quais o nosso país<br />

abriu generosamente as portas.<br />

Em cada uma <strong>de</strong>ssas rotas há<br />

uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> esforços e lutas na<br />

qual se gesta uma boa parte da<br />

história gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> Espanha. Não<br />

obstante, há muito que venho<br />

notando como a nossa memória<br />

se esvai entre as realida<strong>de</strong>s e as<br />

brumas do progresso, sem querer<br />

reconhecer que, se <strong>de</strong>ixamos<br />

morrer a memória do país emigrante<br />

que sempre fomos,<br />

morrerá também a essência que<br />

nos move e tornar-nos-emos<br />

nómadas <strong>de</strong> nós mesmos.<br />

Recuperar a memória supõe,<br />

do mesmo modo, actualizá-<br />

-la, reconhecer a circularida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> caminhos que, através dos<br />

nossos actos, imaginação ou memórias,<br />

percorremos quase sempre<br />

em dupla direcção. A Espanha<br />

emigrou para a América, tal<br />

como hoje a América emigra para<br />

a Espanha ou a própria América<br />

emigra entre si. E, assim, mais<br />

<strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong> latino-americanos<br />

– se consi<strong>de</strong>rarmos os legais<br />

e os ilegais – foram lá tentar<br />

a sua sorte nos últimos anos. Um<br />

bom punhado são amigos, ou filhos<br />

<strong>de</strong> amigos, que se vão somando<br />

progressivamente ao<br />

mundo dos meus afectos. Partem<br />

da Argentina, em crise, buscando<br />

horizontes mais propícios para<br />

plantar o montão <strong>de</strong> sonhos que<br />

se viram obrigados a arrumar na<br />

mala <strong>de</strong> viagem. Aterram proce<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong> uma Venezuela ferida,<br />

cujos sulcos continuam lambendo<br />

à distância. Não faltam artistas<br />

peruanos, chilenos, panamenhos...<br />

que necessitam que a Espanha<br />

<strong>de</strong>sempenhe um papel<br />

mais activo na projecção da criativida<strong>de</strong><br />

<strong>ibero</strong>-americana. Mas a


maioria são equatorianos, colombianos<br />

e peruanos que fogem<br />

<strong>de</strong> ambientes on<strong>de</strong> o futuro<br />

quase não se conjuga, <strong>de</strong>ixando<br />

atrás <strong>de</strong> si famílias <strong>de</strong>sfeitas para<br />

irem em cuidar dos nossos filhos<br />

e idosos, ou para se encarregarem<br />

do nosso ócio e bem-<br />

-estar. Um paradoxo que se tece<br />

nestes milhares <strong>de</strong> histórias individuais,<br />

temperadas com o<br />

mesmo sal <strong>de</strong> lágrimas, suor e<br />

mar que o daqueles galegos, asturianos,<br />

bascos ou andaluzes<br />

que apontaram à América a proa<br />

das suas esperanças.<br />

O que mudou? Embora a<br />

emigração continue a ser uma<br />

constante nas nossas vidas, a diferença<br />

é que agora se inverteu a<br />

direcção (em vez <strong>de</strong> cá para lá, <strong>de</strong><br />

lá para cá). Mudou também o<br />

meio: agora, aeroportos e aviões<br />

substituem prosaicamente a mítica<br />

imagem <strong>de</strong> antanho, quando<br />

portos e barcos eram os símbolos<br />

<strong>de</strong>ssa gran<strong>de</strong> mobilização<br />

atlântica. E mudou a comunicação:<br />

antes, o símbolo era a carta que<br />

jamais chegava, o tempo aprisionado,<br />

o telegrama conciso<br />

com as más notícias, a ligação<br />

telefónica <strong>de</strong> longas esperas.<br />

Agora, a cabina é o cibercafé, o<br />

sonho <strong>de</strong> agarrar o ente querido<br />

aferrando-se à sua imagem ou à<br />

sua voz, o amor virtual, o quotidiano<br />

do outro em tempo real,<br />

o <strong>de</strong>sdobramento em duas vidas:<br />

a <strong>de</strong> cá e a <strong>de</strong> lá.<br />

Mas, sobretudo, mudou a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: ontem foram eles (70%<br />

dos emigrantes espanhóis na<br />

América eram homens), enquanto<br />

hoje são elas (60% dos<br />

emigrantes latino-americanos<br />

em Espanha são mulheres) quem<br />

está embarcando <strong>de</strong>cididas a lavrar<br />

o futuro dos seus filhos.<br />

Po<strong>de</strong>m encontrar-se, apesar<br />

<strong>de</strong> tudo, gran<strong>de</strong>s similitu<strong>de</strong>s entre<br />

estes trasfegos <strong>de</strong> dupla di-<br />

recção. Porque aqueles que participaram<br />

ontem e participam<br />

hoje nesse ir e vir pelo nosso<br />

mar choraram e choram sauda<strong>de</strong>s<br />

e perdas, conheceram o valor<br />

da luta individual como ingrediente<br />

indispensável para ultrapassar<br />

a adversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolveram<br />

um forte sentido <strong>de</strong><br />

sobrevivência e constituíram todo<br />

o tipo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s solidárias a<br />

partir da consciência <strong>de</strong> que um<br />

emigrante jamais consegue o<br />

seu objectivo sozinho. Creio que<br />

isso – e uma <strong>de</strong>terminada maneira<br />

<strong>de</strong> sentir – é o que mais<br />

i<strong>de</strong>ntifica o mundo dos emigrantes<br />

<strong>de</strong> todos os tempos: é<br />

gente tão empreen<strong>de</strong>dora quanto<br />

gregária. E, como empreen<strong>de</strong>dores<br />

que são, tampouco se<br />

O Panamá é um país<br />

no qual vibra<br />

o planeta inteiro,<br />

um país-navio<br />

em travessia<br />

po<strong>de</strong> esquecer que muitos naufragaram<br />

e naufragam cada dia.<br />

Em barcos, fracassos, hipotecas<br />

ou <strong>de</strong>sesperanças.<br />

Reivindicar o direito <strong>de</strong> sobreviver,<br />

<strong>de</strong> sonhar, <strong>de</strong> ser diferentes<br />

representa hoje muito<br />

mais que resgatar do esquecimento<br />

o legado <strong>de</strong> todos aqueles<br />

que nos abriram o caminho,<br />

forjando com o seu alento – ao<br />

mesmo tempo duro e nostálgico<br />

– boa parte do bem-estar <strong>de</strong><br />

que, hoje, <strong>de</strong>sfrutamos. É legar<br />

também aos nossos filhos, habitantes<br />

<strong>de</strong> um mundo cada vez<br />

mais complexo, a chave para<br />

abrir a porta da pouca ou muita<br />

sabedoria que fomos capazes <strong>de</strong><br />

entesourar na nossa rota <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stroçadas, das<br />

nossas esperanças, lutas e fracassos.<br />

É facultar-lhes as nossas velas<br />

<strong>de</strong>sfiadas e cartas <strong>de</strong> viagem,<br />

é dizer-lhes que ser emigrantes é<br />

o seu <strong>de</strong>stino.<br />

A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> multi<strong>cultura</strong>l e<br />

emigrante está arreigada no fundo<br />

mais recôndito da alma do<br />

Panamá, se bem que no nosso<br />

caso – diferentemente ao contrário<br />

<strong>de</strong> Espanha e da maior<br />

parte da América Latina – mais<br />

pelo facto <strong>de</strong> sermos receptores<br />

(ontem <strong>de</strong> espanhóis, ju<strong>de</strong>us,<br />

árabes, jugoslavos ou indianos;<br />

hoje <strong>de</strong> colombianos ou peruanos;<br />

e sempre <strong>de</strong> chineses) do<br />

que emissores <strong>de</strong> emigração. E<br />

isso com consequências passadas<br />

– e sobretudo futuras – muito<br />

importantes para o país, ainda<br />

que aparentemente ninguém pareça<br />

reparar nisso.<br />

Negro, chocolate, branco e<br />

amarelo são as cores do istmo,<br />

se bem que no nosso Chiriquí a<br />

mestiçagem – segundo as últimas<br />

investigações a este respeito<br />

– provenha, quase na mesma<br />

proporção, do branco e do índio.<br />

O Panamá cheira a incenso, a<br />

mercado árabe e a molho chinês.<br />

Sabe a manga, a doce hebraico, a<br />

arepas e a pasta italiana. Ressoam<br />

nela as cadências do mundo,<br />

que vão <strong>de</strong>rramando pelas ruas<br />

e esquinas acentos em dó, ré,<br />

mi, fá, sol. O Panamá reza e pe<strong>de</strong><br />

perdão pelos seus pecados<br />

nas mil línguas paridas pela Torre<br />

<strong>de</strong> Babel. Foi também forjada<br />

por suor e sangue dos cinco<br />

continentes. E os mares que o<br />

banham esten<strong>de</strong>m a sua mão à<br />

Europa e à Ásia, enquanto continuam<br />

a moldá-la como a cintura<br />

<strong>de</strong> uma América Latina hoje<br />

cada vez mais presente nos nossos<br />

habitantes. O Panamá é,<br />

pois, um país no qual vibra o<br />

planeta inteiro, um país-navio<br />

em travessia.


CIDADES INVISÍVEIS 16<br />

Fervor<br />

<strong>de</strong> Buenos<br />

Aires<br />

De Buenos Aires disse Carlos Fuentes que, «se não há cida<strong>de</strong><br />

mais sólida, mais construída e “feita” na América Latina,<br />

tão-pouco há cida<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>svanecida na bruma da sua<br />

linguagem, da sua literatura, da sua música passageira».<br />

Da cida<strong>de</strong> secreta, invisível, inventada por Borges,<br />

aqui ficam alguns relatos «porque aquilo que nos interessa<br />

é o que o viajante vê».<br />

17


Murais em La Boca


Buenos Aires<br />

<strong>de</strong> hoje pelos<br />

caminhos<br />

<strong>de</strong> Borges<br />

João Ventura<br />

CIDADES INVISÍVEIS 18<br />

19<br />

Avenida Corrientes<br />

A Avenida Corrientes<br />

é uma superstição<br />

A Buenos Aires inventada<br />

por Borges nos seus livros já não<br />

existe, embora aqui e ali, se nos<br />

<strong>de</strong>ixarmos per<strong>de</strong>r pelos caminhos<br />

que o autor gostava <strong>de</strong><br />

percorrer nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> luminosos<br />

do Verão porteño, a possamos<br />

ainda imaginar. Para Borges,<br />

Buenos Aires foi muito<br />

mais que o cenário da sua obra,<br />

inspirada em personagens e histórias<br />

dos subúrbios porteños do<br />

princípio do século passado. A<br />

Buenos Aires <strong>de</strong> Borges é também<br />

a cida<strong>de</strong> recriada nas suas<br />

ficções, a cida<strong>de</strong> poética, mítica,<br />

revelada em muitas das suas histórias<br />

e poemas. Vem daí, dos<br />

textos <strong>de</strong> Borges, o meu primeiro<br />

conhecimento <strong>de</strong> uma Buenos<br />

Aires <strong>de</strong>saparecida, on<strong>de</strong> biografia<br />

e ficção convergem num<br />

espaço simultaneamente cartográfico<br />

e imaginário.<br />

Como Borges, procuro as<br />

ruas do centro numa manhã <strong>de</strong><br />

sexta-feira, com a sua «prepotência<br />

<strong>de</strong> azul» (Inquisiciones).<br />

Primeiro, a casa on<strong>de</strong> nasceu:<br />

«Nasci aqui, no coração da cida<strong>de</strong>,<br />

na Rua Tucumán, entre as<br />

ruas Suipacha e Esmeralda, numa<br />

casa (como todas as <strong>de</strong>sse<br />

tempo) pequena e sem pretensões,<br />

que pertencia aos meus<br />

avós maternos» (Autobiografia).<br />

Porque a casa já não existe,<br />

escolho um prédio ali perto, na<br />

Rua Maipú (n.º 944), que foi a<br />

última e a mais duradoura residência<br />

<strong>de</strong> Borges, e on<strong>de</strong> escreveu<br />

a maior parte da sua obra.<br />

Do terraço do apartamento,<br />

Borges podia ver as árvores da<br />

Praça San Martín, sobretudo o<br />

esplendor azul-violeta, às vezes<br />

com tonalida<strong>de</strong>s lilases, dos<br />

enormes jacarandás em flor,<br />

nos fins <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> Verão austral:<br />

«Todo o sentir se acalma/


na absolvição das árvores/jacarandás,<br />

acácias...» (Fervor <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires).<br />

Eis agora a Rua Florida cujos<br />

<strong>de</strong>zasseis quarteirões Borges<br />

percorreu a pé, durante anos, a<br />

caminho da Biblioteca Nacional,<br />

na Rua México. Aquela que<br />

foi a primeira rua pedonal <strong>de</strong><br />

Buenos Aires é hoje o epicentro<br />

comercial da cida<strong>de</strong>, com lojas<br />

das melhores marcas e on<strong>de</strong> se<br />

po<strong>de</strong>m comprar artigos <strong>de</strong> couro<br />

a preços convidativos, <strong>de</strong>pois<br />

da <strong>de</strong>svalorização do peso argentino.<br />

Ao fim da manhã, uma<br />

multidão <strong>de</strong> turistas enche a<br />

rua. A paixão pelo futebol é visível<br />

nas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> lojas <strong>de</strong> artigos<br />

<strong>de</strong>sportivos que dão colorido<br />

à rua expondo as camisolas<br />

das principais equipas argentinas<br />

e da selecção nacional.<br />

À porta das Galerias Pacífico,<br />

on<strong>de</strong> se encontram instalados<br />

o Centro Cultural Jorge Luís<br />

Borges e a Escola <strong>de</strong> Dança <strong>de</strong><br />

Julio Boca, um par <strong>de</strong> tango ensaia<br />

algumas figuras <strong>de</strong> dança<br />

ao som <strong>de</strong> La Cumparsita. Atravesso<br />

<strong>de</strong>pois a Rua Lavalle que<br />

cruza com a Florida e lhe serve<br />

<strong>de</strong> extensão comercial. Esta artéria<br />

foi outro lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ambulação<br />

<strong>de</strong> Borges que frequentava<br />

as suas salas <strong>de</strong> cinema nos<br />

anos cinquenta. Mais adiante, a<br />

livraria El Ateneo, que foi nos<br />

anos sessenta um dos lugares<br />

mais concorridos pela geração<br />

<strong>de</strong> intelectuais e escritores, e<br />

on<strong>de</strong> Borges costumava <strong>de</strong>ter-se<br />

no seu percurso diário para a<br />

Biblioteca Nacional on<strong>de</strong> era director,<br />

convida a entrar.<br />

Borges não gostava do centro.<br />

E embora durante anos tivesse<br />

que caminhar pelas suas<br />

ruas e frequentasse os cafés –<br />

como o Tortoni, na Avenida <strong>de</strong><br />

Maio –, as tertúlias – como a do<br />

café Royal Keller, na Rua Cor-<br />

rientes – e os jornais da zona –<br />

como La Prensa, na Avenida <strong>de</strong><br />

Maio –, pouco mudou a sua<br />

opinião formada na juventu<strong>de</strong><br />

sobre o centro como «um lugar<br />

pitoresco e <strong>de</strong>senraizado» (O Tamanho<br />

da Minha Esperança). Muito<br />

mais tar<strong>de</strong>, já na velhice, afirmaria<br />

que «a Avenida Corrientes<br />

é uma superstição» (Borges, el<br />

memorioso), procurando <strong>de</strong>struir<br />

o mito da mais central das ruas<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires.<br />

E é a extensa Corrientes que<br />

percorro ao crepúsculo, quando<br />

o néon dos anúncios dos teatros<br />

e dos cinemas começa já a <strong>de</strong>r-<br />

Praça San Martín<br />

ramar a ilusão sobre a avenida<br />

que já foi uma espécie <strong>de</strong><br />

Broadway porteña, cantada nas letras<br />

<strong>de</strong> tangos. E no interior das<br />

muitas livrarias – on<strong>de</strong> se compram<br />

edições <strong>de</strong>saparecidas <strong>de</strong><br />

Borges, <strong>de</strong> Casares, <strong>de</strong> Cortázar<br />

– e nos incontornáveis cafés que<br />

ainda povoam a rua, acen<strong>de</strong>m-<br />

-se as luzes, iluminando histórias<br />

escritas e conversadas.<br />

Em Corrientes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Avenida<br />

Callao até à Rua San Martín,<br />

sempre existiram cafés com sabor<br />

a tango, a política e a todo o tipo<br />

<strong>de</strong> discussões, a movidas artísticas, a<br />

conquistas e enganos, ao rescaldo<br />

do último <strong>de</strong>rby entre o Boca Juniors<br />

e o River Plate. A boémia<br />

porteña tinha o seu encontro privilegiado<br />

ao longo <strong>de</strong>sta avenida<br />

que nunca dormia, carregada <strong>de</strong><br />

sonhos e ilusões. Nos distintos<br />

cafés se pronunciaram panegíricos<br />

manifestos acerca da liberda<strong>de</strong><br />

e os intelectuais da época<br />

evocaram com gran<strong>de</strong> lirismo a<br />

autenticida<strong>de</strong> da alma artística.<br />

Borges frequentou tertúlias<br />

no Royal Keller. Carlos Gar<strong>de</strong>l e<br />

José Razzano, que actuavam no<br />

Teatro Esmeralda, hoje conhecido<br />

por Maipo, tinham todas as noites<br />

uma mesa reservada no Guarani.<br />

Horacio Quiroga frequentou<br />

La Richmond. A lista <strong>de</strong> cafés<br />

era infindável. E, embora hoje<br />

muitos já tenham <strong>de</strong>saparecido<br />

ou se tenham tornado irreconhecíveis<br />

pelas transformações sofridas,<br />

ainda se respira em Corrientes<br />

um pouco do tempo em que<br />

aquela rua nunca dormia.


CIDADES INVISÍVEIS 20<br />

Talvez Borges tenha também,<br />

numa tar<strong>de</strong> qualquer,<br />

entrado no Giralda que, na esquina<br />

da Corrientes com a Uruguai,<br />

permanece inalterado,<br />

com as suas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> azulejos,<br />

mesas <strong>de</strong> mármore, as suas luzes<br />

<strong>de</strong> néon e os empregados<br />

vestidos <strong>de</strong> branco. E, quem sabe,<br />

saboreando o mesmo chocolate<br />

com churros que bebi<br />

enquanto ouvia histórias <strong>de</strong> cafés<br />

«tangueiros» contadas por<br />

um companheiro porteño.<br />

Persigo Borges pela Corrientes,<br />

cruzando a mais larga<br />

avenida do mundo, a 9 <strong>de</strong> Julho,<br />

hoje <strong>de</strong>socupada dos piqueteros<br />

– a mais recente criação do<br />

populismo sindical argentino –<br />

que na véspera a tinham cortado<br />

exigindo compensações. E<br />

<strong>de</strong>pois, pela Avenida <strong>de</strong> Maio –<br />

a mesma avenida que mitificou<br />

Eva Perón – com os seus belíssi-<br />

21<br />

mos edifícios como o do antigo<br />

jornal La Prensa, <strong>de</strong> fachada art<br />

déco, que acolhe agora a Casa<br />

da Cultura. Imperdível a visita<br />

ao café Tortoni que parece esperar<br />

por Borges regressando do<br />

jornal Crítica.<br />

E, no reverso do mito, os<br />

edifícios ainda tingidos com as<br />

cores da revolta contra «los<br />

ladrones», como na porta principal<br />

do Banco <strong>de</strong> Boston, escolhido<br />

como símbolo da corrupção,<br />

do clientelismo e <strong>de</strong><br />

Placita Cortázar, Palermo Viejo<br />

uma <strong>de</strong>sastrosa política económica<br />

assente na parida<strong>de</strong> artificial<br />

com o dólar, que ia levando<br />

a Argentina à ruína. À porta <strong>de</strong><br />

um esplendoroso edifício, dois<br />

sem-abrigo acomodam-se para<br />

passar a noite, <strong>de</strong>smentindo o<br />

luxo do cenário. Na Praça <strong>de</strong><br />

Maio, as mães já não choram<br />

pelos <strong>de</strong>saparecidos, mas anuncia-se<br />

uma gran<strong>de</strong> manifesta-<br />

ção, para o próximo sábado,<br />

por ocasião do aniversário do<br />

golpe que instaurou a ditadura.<br />

No palanque estarão filhos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>saparecidos ao lado do presi<strong>de</strong>nte<br />

Kirchner. Porque é preciso<br />

não esquecer.<br />

Puerto Ma<strong>de</strong>ro, na «Doca<br />

Sul, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> outrora zarpavam<br />

o Saturno e o Cosmos» (Elogio da<br />

Sombra) levando Borges e a sua<br />

família até ao outro lado do rio<br />

da Prata, a Montevi<strong>de</strong>u, já não é<br />

um território <strong>de</strong> ruas picantes<br />

É em Palermo Viejo,<br />

no passado um súburbio<br />

perdido nas margens<br />

da pampa, que Borges<br />

encontra o cenário<br />

privilegiado para criar<br />

os mitos e dar corpo<br />

aos fantasmas<br />

das suas histórias<br />

on<strong>de</strong> «convivem o cosmorama<br />

e a leitaria, o bor<strong>de</strong>l e os ven<strong>de</strong>dores<br />

<strong>de</strong> Bíblias» (Ficções). Resultado<br />

<strong>de</strong> uma profunda intervenção<br />

<strong>de</strong> restauro e revalorização, o velho<br />

Puerto Ma<strong>de</strong>ro, exemplo da<br />

arquitectura industrial inglesa do<br />

início do século XX, com os seus<br />

armazéns nas margens dos diques,<br />

concentra hoje numerosos<br />

restaurantes e áreas <strong>de</strong> lazer,


constituindo uma nova centralida<strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> Buenos Aires se <strong>de</strong>bruça<br />

sobre a corrente morna e pardacenta<br />

do rio da Prata.<br />

Em Palermo Viejo<br />

É em Palermo Viejo, no passado<br />

um subúrbio perdido nas<br />

margens da pampa, que Borges<br />

encontra o cenário privilegiado<br />

para criar os mitos e dar corpo<br />

aos fantasmas das suas histórias.<br />

A dois quarteirões da Praceta Julio<br />

Cortázar, numa esquina, po<strong>de</strong><br />

ler-se, agora, o seu testemunho:<br />

«Um quarteirão inteiro,<br />

mas cuja meta<strong>de</strong>/ ficava exposta<br />

a chuvas, auroras, rajadas./ O<br />

mesmo quarteirão que há hoje<br />

no meu bairro:/ Guatemala,<br />

Serrano, Paraguai, Gurruchaga»<br />

(A Fundação Mítica <strong>de</strong> Buenos Aires).<br />

Por isso, escolho Palermo<br />

Viejo para continuar este itinerário<br />

porteño e, numa manhã <strong>de</strong> um<br />

sábado que se anuncia luminoso,<br />

perco-me pelas ruas e pracetas <strong>de</strong><br />

Palermo Viejo e, pelos caminhos<br />

<strong>de</strong> Borges, entre silêncios e milongas,<br />

<strong>de</strong>ixo que o bairro se me<br />

revele. Em Palermo Viejo, on<strong>de</strong><br />

Borges viveu, primeiro em criança<br />

e, <strong>de</strong>pois, na juventu<strong>de</strong> (na<br />

Rua Serrano, 2100, hoje chamada<br />

Jorge Luis Borges em sua memória),<br />

já não se po<strong>de</strong> ver, como<br />

Borges viu, «pares <strong>de</strong> homens<br />

dançando tangos, quando passava<br />

um acor<strong>de</strong>ão, porque as mulheres<br />

não queriam dançar». Mas o<br />

espírito do lugar permanece por<br />

ali e, às vezes, é possível assistir-<br />

-se na Praceta Serrano aos ensaios<br />

da murga Los Here<strong>de</strong>ros <strong>de</strong> Palermo<br />

que nos transporta ao<br />

tempo <strong>de</strong> Borges.<br />

A Praceta Serrano (que na<br />

realida<strong>de</strong> se chama Cortázar, em<br />

memória do autor <strong>de</strong> Rayuela), a<br />

que os moradores e frequentadores<br />

chamam carinhosamente<br />

la placita, tornou-se, nos últimos<br />

anos, o epicentro da movida jovem<br />

porteña e um lugar on<strong>de</strong><br />

acontecem numerosas activida<strong>de</strong>s<br />

<strong>cultura</strong>is e comunitárias. Ou<br />

não fosse esta placita o lugar on<strong>de</strong><br />

a toponímia junta Borges e Córtazar<br />

na esquina on<strong>de</strong> a Rua Serrano<br />

(que agora tem o nome do<br />

autor das Ficções) se cruza com a<br />

praça rebaptizada com o apelido<br />

do escritor <strong>de</strong> Rayuela.<br />

São 10 horas da manhã e<br />

no pequeno jardim central está<br />

prestes a começar um <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong><br />

Café Tortoni<br />

moda, on<strong>de</strong> os criadores locais<br />

apresentam as novas tendências<br />

para o Outono-Inverno porteño,<br />

como se estivéssemos em Paris<br />

ou Milão. Noutro canto, à sombra<br />

<strong>de</strong> magníficos plátanos, esten<strong>de</strong>-se<br />

através <strong>de</strong> algumas<br />

bancas improvisadas uma Feria<br />

<strong>de</strong>l Trueque, um lugar on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong><br />

trocar quase tudo o que já<br />

não queremos por algo <strong>de</strong> que<br />

necessitamos. Dizem-me que<br />

estas feiras informais constituíram<br />

uma resposta imaginativa<br />

dos argentinos à crise económica<br />

que se abateu sobre o país há<br />

cerca <strong>de</strong> dois anos. Hoje, não<br />

obstante os piores dias já terem<br />

passado, muitas continuam a<br />

realizar-se, aos domingos, em<br />

alguns bairros populares <strong>de</strong><br />

Buenos Aires, alimentando uma<br />

pequena economia informal <strong>de</strong><br />

troca directa <strong>de</strong> produtos e serviços.<br />

No auge da <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong><br />

há dois anos, esta intricada re<strong>de</strong><br />

chegou a ter milhares <strong>de</strong> nós<br />

espalhados por antigas fábricas<br />

e armazéns <strong>de</strong>volutos.<br />

Como o sol começa a aquecer,<br />

sento-me na esplanada do<br />

Acabar (Honduras, 5733), um<br />

esplêndido bar <strong>de</strong> sumos naturais.<br />

Aliás, muitos outros bares –<br />

El Taller, Crónico, Malas Artes –,<br />

galerias <strong>de</strong> arte, ateliers <strong>de</strong> toda a


CIDADES INVISÍVEIS 22<br />

23<br />

Porta do Banco Boston, Avenida <strong>de</strong> Mayo Club <strong>de</strong>l Vino, Palermo Viejo<br />

Puerto Ma<strong>de</strong>ro<br />

Bar Malas Artes, Palermo Viejo Praça Dorrego<br />

espécie envolvem esta placita,<br />

consi<strong>de</strong>rada, hoje, um dos lugares<br />

<strong>de</strong> passagem obrigatória<br />

do itinerário <strong>cultura</strong>l e boémio<br />

porteño.<br />

Decido, <strong>de</strong>pois, penetrar<br />

numa Buenos Aires <strong>de</strong> geografia<br />

labiríntica, errando ao longo <strong>de</strong><br />

ruas arborizadas, como a Guatemala<br />

que ainda mantém um<br />

certo ambiente tranquilo <strong>de</strong> bairro,<br />

ace<strong>de</strong>ndo a ruelas com calçadas<br />

irregulares, curvando esquinas<br />

on<strong>de</strong> florescem buganvílias,<br />

esgueirando-me por estreitas<br />

travessas e íntimos saguões<br />

– Cabrer, Soria, Santa Rosa, Russel<br />

– on<strong>de</strong> as fachadas <strong>de</strong> um casario<br />

baixo e os muros que foram<br />

cenário em muitos livros <strong>de</strong> Borges<br />

se revelam agora, renovadas,<br />

nas suas «cores <strong>de</strong> aventura» (Lua<br />

Defronte). E através <strong>de</strong> metáforas,<br />

afortunadamente irreais, sob «a<br />

clara plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um poente»<br />

(Fervor <strong>de</strong> Buenos Aires), é todo um<br />

catálogo da «mitologia bairrista»<br />

<strong>de</strong> compadritos, brigões e marginais<br />

<strong>de</strong> faca ligeira que se po<strong>de</strong><br />

imaginar.<br />

Deste Palermo on<strong>de</strong> «vivia<br />

gente <strong>de</strong> fraca qualida<strong>de</strong> juntamente<br />

com gente muito pouco<br />

agradável, como os rufiões e os<br />

compadritos, que se caracterizavam<br />

pelas suas lutas à facada»<br />

(Autobiografia) pouco ficou e,<br />

hoje, po<strong>de</strong> passear-se com relativa<br />

segurança por aquele que é<br />

consi<strong>de</strong>rado uma espécie <strong>de</strong><br />

Soho porteño. Curiosamente, a<br />

vocação cosmopolita <strong>de</strong> Palermo<br />

já Borges a <strong>de</strong>scobrira muito<br />

tempo antes, ao afirmar sentir-se<br />

«mais porteño que argentino<br />

e mais do bairro <strong>de</strong> Palermo<br />

do que <strong>de</strong> outros bairros. E até<br />

essa pátria interessante – que<br />

foi a <strong>de</strong> Evaristo Carriego – se<br />

estava a tornar em centro...»<br />

(Carta publicada na revista Nosotros,<br />

1925).


Embora não esqueça o seu<br />

passado rufião, Palermo Viejo é<br />

hoje um bairro seguro, habitado<br />

por gente com um forte sentido<br />

<strong>de</strong> pertença ao lugar e com uma<br />

notável consciência cívica, expressa<br />

nas mais variadas dinâmicas<br />

comunitárias <strong>de</strong> que mesmo<br />

um turista aci<strong>de</strong>ntal facilmente<br />

se apercebe. Gente sensível, ecológica,<br />

reciclável, apesar do snobismo<br />

congénito que os faz saltar<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> moda para<br />

uma galeria <strong>de</strong> arte e daí para a<br />

loja <strong>de</strong> agri<strong>cultura</strong> biológica<br />

mais próxima. Palermo Viejo é,<br />

ainda, um lugar para <strong>de</strong>scobrir<br />

pela noite <strong>de</strong>ntro, com os seus<br />

restaurantes sofisticados, bares e<br />

cafés literários, clubes <strong>de</strong> tango<br />

e <strong>de</strong> jazz <strong>de</strong> novo cheios <strong>de</strong> gente<br />

que prefere consumir a arriscar<br />

as poupanças nos bancos.<br />

Por Belgrano,<br />

San Telmo e La Boca<br />

As gran<strong>de</strong>s caminhadas <strong>de</strong><br />

Borges levavam-no <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Palermo<br />

até Belgrano, um bairro com<br />

alma própria, on<strong>de</strong> velhos casarões<br />

se misturam, hoje, com edifícios<br />

mo<strong>de</strong>rnos. Manhã cedo <strong>de</strong><br />

domingo, <strong>de</strong>ixo o «carinho das<br />

árvores em Belgrano» (O tamanho<br />

da minha esperança) em direcção aos<br />

bairros do sul, a San Telmo, on<strong>de</strong><br />

resi<strong>de</strong> «a essência original <strong>de</strong><br />

que Buenos Aires é feita, a (sua)<br />

forma universal ou i<strong>de</strong>ia platónica»<br />

(Buenos Aires en Tinta China). Antes,<br />

impossível não passar pela<br />

Rua Garay, perto da esquina com<br />

a Rua Bernardo <strong>de</strong> Irigoyen, no<br />

bairro da Constitución, on<strong>de</strong> se<br />

encontrava o Aleph, «o lugar<br />

on<strong>de</strong> estão, sem se confundirem,<br />

todos os lugares do mundo,<br />

vistos <strong>de</strong> todos os ângulos»<br />

(O Aleph).<br />

Através <strong>de</strong> ruas empedradas,<br />

chego à Praça Dorrego, no coração<br />

<strong>de</strong> San Telmo, bem a tempo<br />

da feira <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>s que aí<br />

funciona há mais <strong>de</strong> trinta anos.<br />

O bairro, as ruas e a praça conservam<br />

ainda a sua imagem antiga,<br />

com as casas coloniais que<br />

Borges evocou: «On<strong>de</strong> San Juan<br />

e Chabuco se cruzam/ vi as casas<br />

azuis/ vi as casas que têm as<br />

cores da aventura» (Lua Defronte).<br />

Sob as tendas que se amontoam<br />

no exíguo espaço da praça, velhos<br />

discos <strong>de</strong> tango <strong>de</strong> 78 rotações,<br />

livros e revistas esgotados,<br />

mapas e cartazes antigos acomodam-se<br />

ao lado <strong>de</strong> garrafas, taças,<br />

ferragens e brinquedos <strong>de</strong><br />

outras épocas, enquanto à sombra<br />

das árvores começa uma aula<br />

<strong>de</strong> tango.<br />

De San Telmo chega-se facilmente<br />

a La Boca, um bairro<br />

que Borges evitava, como nos<br />

conta Adolfo Bioy Casares:<br />

«Não sei porquê, mas Borges tinha<br />

um <strong>de</strong>sprezo por La Boca.<br />

Durante anos eu não fui a esse<br />

bairro por causa <strong>de</strong> Borges.<br />

E uma vez fui e achei que era<br />

lindíssimo» (Adolfo Bioy Casares, em<br />

entrevista com Carlos Aberto Zito). Ao<br />

início da tar<strong>de</strong>, o azul e amarelo<br />

da hinchada do Boca Juniors inva<strong>de</strong>m<br />

o bairro que já foi <strong>de</strong> marinheiros<br />

e artesãos genoveses,<br />

pois é dia <strong>de</strong> jogo contra o Racing,<br />

mesmo ali ao lado no mais<br />

mítico estádio <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />

a Bombonera, on<strong>de</strong> Maradona<br />

nasceu para o futebol.<br />

Na Rua Caminito, por on<strong>de</strong><br />

passava um antigo ramal ferroviário,<br />

as velhas casas feitas com<br />

chapas <strong>de</strong> zinco on<strong>de</strong> viviam os<br />

imigrantes italianos exibem fachadas<br />

<strong>de</strong> cores garridas junto das<br />

quais pintores, malabaristas, músicos<br />

e dançarinos <strong>de</strong> tango se<br />

exibem para grupos <strong>de</strong> turistas<br />

confundidos com o crescente<br />

rufar <strong>de</strong> bombos e gaitas, vindos<br />

<strong>de</strong> escondidos subúrbios pobres,<br />

a caminho da cancha do Boca.


Na cida<strong>de</strong><br />

dos livros<br />

João Ventura<br />

Livraria El Ateneo, Avenida Santa Fe<br />

CIDADES INVISÍVEIS 24<br />

25


Conta Umberto Eco que, em<br />

1970, vasculhando nas bancas <strong>de</strong><br />

um pequeno alfarrabista em<br />

Corrientes, lhe caiu nas mãos a<br />

tradução castelhana <strong>de</strong> um livro<br />

<strong>de</strong> Milo Temesvar, Do Uso dos Espelhos<br />

no Jogo <strong>de</strong> Xadrez, cuja versão<br />

original, em georgiano, se encontrava<br />

<strong>de</strong>saparecida. Com<br />

gran<strong>de</strong> surpresa, ao folhear as<br />

suas páginas amarelecidas, encontrou<br />

abundantes citações <strong>de</strong><br />

um manuscrito do monge beneditino<br />

alemão Adso <strong>de</strong> Melk que<br />

narrava uma perturbante aventura<br />

da sua adolescência vivida numa<br />

importante abadia por volta do<br />

ano 1327. Terá sido este achado<br />

que <strong>de</strong>cidiu, <strong>de</strong>finitivamente,<br />

Eco a escrever, <strong>de</strong>pois, o Nome da<br />

Rosa, cujo narrador é, como sabemos,<br />

Adso <strong>de</strong> Melk.<br />

Sessenta anos antes, conforme<br />

<strong>de</strong>screve o livreiro Arturo<br />

Peña Lillo em Los Encantadores <strong>de</strong><br />

Serpientes, num outro alfarrabista,<br />

em Lavalle, alguém <strong>de</strong>sencanta<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um amontoado <strong>de</strong> livros<br />

envoltos em <strong>de</strong>nsa poeira<br />

um volume que o livreiro avalia<br />

por cem pesos. Depois <strong>de</strong> regatear<br />

um pouco, o comprador paga<br />

finalmente oitenta e sai radiante.<br />

Algum tempo <strong>de</strong>pois<br />

soube-se que um exemplar da<br />

Bíblia <strong>de</strong> Gutenberg tinha sido<br />

encontrado em Buenos Aires e,<br />

posteriormente, vendida ao Museu<br />

Britânico por <strong>de</strong>z mil libras.<br />

Entre a realida<strong>de</strong> e a ficção,<br />

na rica história das livrarias <strong>de</strong><br />

Buenos Aires abundam histórias<br />

como estas que ajudam a construir<br />

o mito <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />

apaixonada pelos livros. Ou não<br />

fosse Buenos Aires o lugar on<strong>de</strong>,<br />

talvez mais do que em qualquer<br />

outro, melhor se percebe o oxímoro<br />

pessoano «o mito é o nada<br />

que é tudo». Por isso, só<br />

aqui seria possível aquela história<br />

do Livro <strong>de</strong> Areia que um dia<br />

veio ter com Borges, num quarto<br />

andar da Rua Belgrano. Ou<br />

aquela infinita biblioteca hexagonal,<br />

<strong>de</strong>scrita nas Ficções. Mas<br />

essas são metáforas cuja interpretação<br />

escapa aos objectivos<br />

do itinerário livreiro <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires que aqui quero <strong>de</strong>ixar.<br />

Entre a realida<strong>de</strong><br />

e a ficção,<br />

na rica história<br />

das livrarias<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires,<br />

abundam histórias<br />

como estas que ajudam<br />

a construir o mito<br />

<strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />

apaixonada<br />

pelos livros<br />

Primeiro a génese, portanto.<br />

Em Libreros, Editores e Impresores<br />

(1974), Domingo Buonocuore<br />

traça uma genealogia das bibliotecas<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires, repleta <strong>de</strong><br />

saborosos episódios e figuras<br />

singulares <strong>de</strong> livreiros porteños. E<br />

o primeiro livreiro terá sido, como<br />

o seu nome parece indicar<br />

com reduzida margem <strong>de</strong> erro,<br />

um português chamado Joaquim<br />

da Silva e Aguiar que estabeleceu,<br />

por volta <strong>de</strong> 1776, na<br />

rua hoje <strong>de</strong>nominada Suipache,<br />

o primeiro comércio <strong>de</strong> livros<br />

da cida<strong>de</strong>. A sua clientela seria<br />

composta por clérigos, funcionários<br />

coloniais e alguns mercadores<br />

ricos.<br />

Depois, à medida que os<br />

crioulos conspiradores se multiplicavam<br />

e sopravam mais fortes<br />

os ventos da in<strong>de</strong>pendência, outros<br />

comércios <strong>de</strong> livros apareceram.<br />

Data do princípio do século<br />

XVIII a livraria mais antiga <strong>de</strong><br />

Buenos Aires, na época conhecida<br />

popularmente por Librería <strong>de</strong>l<br />

Colegio, por se situar em frente<br />

do Colegio Mayor <strong>de</strong> San Ignacio.<br />

Ao longo <strong>de</strong> dois séculos <strong>de</strong> existência,<br />

a livraria Ávila (esquina<br />

Bolívar e Alsina), como é hoje<br />

<strong>de</strong>signada, foi um lugar por on<strong>de</strong><br />

passaram homens como Mitre,<br />

Sarmiento, Hernán<strong>de</strong>z, Estrada e<br />

outros. Anos <strong>de</strong>pois, numa tar<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> 1895, um homem sairá por<br />

uma porta do mesmo edifício<br />

para voltar a entrar, logo em seguida,<br />

pela porta da livraria. Trata-se<br />

do poeta nicaraguense Rubén<br />

Darío que durante algum<br />

tempo habitou um andar do<br />

mesmo edifício. Imagina-se que<br />

noutras ocasiões por aí também<br />

tenham passado os poetas Leopoldo<br />

Lugones e o boliviano Ricardo<br />

Jaimes Freyre que, conjuntamente<br />

com o inquilino do andar<br />

<strong>de</strong> cima, li<strong>de</strong>ravam o movimento<br />

mo<strong>de</strong>rnista.<br />

Actualmente, oferece uma<br />

gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> livros antigos<br />

e esgotados sobre temas indígenas,<br />

história da Argentina,<br />

antropologia, Buenos Aires, tango<br />

e Patagónia. Entre muitas outras<br />

rarida<strong>de</strong>s para coleccionadores,<br />

<strong>de</strong>parei com uma primeira<br />

edição, <strong>de</strong> 1925, <strong>de</strong> Lua Defronte,<br />

<strong>de</strong> Borges, com uma tiragem limitada<br />

<strong>de</strong> trezentos exemplares.<br />

El Ateneo é outra mítica livraria<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires. Fundada por<br />

Pedro García em 1938, foi nos<br />

anos sessenta um dos lugares<br />

mais frequentados da Rua Florida,


no n.º 340, quase em frente da<br />

velha se<strong>de</strong> <strong>de</strong> La Nación. A renovação<br />

a que foi sujeita, entretanto,<br />

não apagou as marcas <strong>de</strong> um<br />

passado luminoso, quando escritores<br />

como Jorge Luis Borges,<br />

Francisco Luis Bernár<strong>de</strong>z, Leopoldo<br />

Lugones, Eduardo Mallea,<br />

Roberto Payró, Ricardo Molinari,<br />

Arturo Cancela, González Lanuza,<br />

Miguel Angel Bustos ou Arturo<br />

Cuadrado, entre tantos outros,<br />

aí se reuniam em animadas tertúlias,<br />

inspirando a organização<br />

da primeira Feira do Livro da ci-<br />

Livraria Gandhi<br />

CIDADES INVISÍVEIS 26<br />

da<strong>de</strong>, <strong>de</strong>nominada La Primavera <strong>de</strong><br />

las Letras, que aí se realizou em<br />

1965.<br />

Enquanto bebo um café no<br />

novo bar do primeiro andar, observo<br />

a disposição das estantes e<br />

bancas em baixo. Imagino o<br />

poeta <strong>de</strong> Fervor <strong>de</strong> Buenos Aires que<br />

diariamente aqui costumava <strong>de</strong>-<br />

27<br />

ter-se, no percurso que fazia entre<br />

a sua casa e a Biblioteca Nacional<br />

on<strong>de</strong> era director, conversando<br />

com o poeta <strong>de</strong> A Cida<strong>de</strong><br />

sem Laura, Luis Bernár<strong>de</strong>z, saindo<br />

<strong>de</strong>pois ambos para uma das suas<br />

longas caminhadas pela baixa <strong>de</strong><br />

Buenos Aires.<br />

A família Gruneissen, que é<br />

hoje proprietária <strong>de</strong> El Ateneo,<br />

reconverteu, recentemente, numa<br />

belíssima livraria o antigo cine-<br />

-teatro Gran Splendid (Santa Fe,<br />

1850), transformando aquele espaço<br />

numa espécie <strong>de</strong> palco para<br />

os livros. A criação <strong>de</strong> espaços<br />

atractivos e mo<strong>de</strong>rnos, on<strong>de</strong> se<br />

combinam livros, música e recantos<br />

on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> saborear<br />

um café enquanto se lê um livro,<br />

são a resposta que as livrarias encontraram<br />

para ultrapassar a crise<br />

que paralisou as vendas entre<br />

2001 e Março <strong>de</strong> 2002. A nova<br />

El Ateneo, <strong>de</strong>senhada por Fernando<br />

Manzone, respeita a construção<br />

original <strong>de</strong> 1903, adaptando-a<br />

às necessida<strong>de</strong>s da nova<br />

função. Os acessos, a plateia, os<br />

camarotes, o palco com a sua<br />

teia sob a qual existe um café, as<br />

cortinas, as luzes, a sala <strong>de</strong> projecção,<br />

mas também o corrimão<br />

das escadas, o dourado das colunas,<br />

os lustres, tudo foi restaurado,<br />

restituindo ao velho teatro<br />

o espírito do lugar, que nem as<br />

escadas rolantes vêm perturbar.<br />

Especial cuidado mereceu o res-<br />

tauro, pela pintora Isabel Contreras,<br />

do fresco da cúpula, pintada<br />

na década <strong>de</strong> 1920 pelo artista<br />

italiano Nazareno Orlandi. Como<br />

tantas outras livrarias <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires, também esta fica aberta até<br />

tar<strong>de</strong>, sobretudo aos fins-<strong>de</strong>-semana<br />

em que encerra à uma da<br />

manhã. Como um teatro, afinal.


Mas, em vez das vozes <strong>de</strong> Carlos<br />

Gar<strong>de</strong>l, <strong>de</strong> Ignacio Corsini ou<br />

Roberto Firpo, que em soirées<br />

inesquecíveis emocionaram gerações<br />

<strong>de</strong> espectadores, ouve-se<br />

agora o silêncio dos livros nas<br />

estantes e bancas distribuídas<br />

pelo espaço da antiga plateia e<br />

camarotes, apenas interrompido,<br />

<strong>de</strong> vez em quando, por algum<br />

cliente que pe<strong>de</strong> uma informação<br />

a um empregado.<br />

Enquanto o projecto da El<br />

Ateneo da Avenida Santa Fe<br />

transformou a livraria num teatro<br />

da vida, outras tornaram-se<br />

lugares <strong>de</strong> discussão intelectual,<br />

recuperando a tradição das antigas<br />

socieda<strong>de</strong>s literárias. Há em<br />

Buenos Aires, pelo menos, dois<br />

lugares <strong>de</strong> referência que correspon<strong>de</strong>m<br />

a esta i<strong>de</strong>ia da livraria<br />

como lugar <strong>de</strong> reunião e <strong>de</strong> encontro<br />

<strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>s electivas: a<br />

Clássica y Mo<strong>de</strong>rna (Callao,<br />

892), aberta até às 3 horas da<br />

madrugada, é cada vez mais um<br />

lugar <strong>de</strong> discussão filosófica e, às<br />

vezes, também, um piano-bar; e<br />

a Ghandi (Corrientes, 1743)<br />

que, para além <strong>de</strong> livraria, é, ainda,<br />

uma espécie <strong>de</strong> salão literário<br />

contemporâneo, oferecendo um<br />

pequeno palco para recitais musicais.<br />

Ambas procuram retomar<br />

a tradição da livraria como lugar<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate público.<br />

Ainda nesta modalida<strong>de</strong>, o<br />

bar-livraria Un Gallo para Esculapio<br />

(Uriarte e Costa Rica), no<br />

borgesiano bairro <strong>de</strong> Palermo<br />

Viejo, é um lugar singular on<strong>de</strong><br />

o enigma das palavras finais <strong>de</strong><br />

Sócrates se renova entre um copo<br />

<strong>de</strong> cerveja e muitos livros. O café<br />

Oceano (Jorge Luis Borges,<br />

1985) é outro lugar em Palermo<br />

Viejo que combina uma biblioteca<br />

<strong>de</strong> 2500 títulos com a música<br />

étnica e instrumental.<br />

A Ghandi não está sozinha<br />

em Corrientes. No coração <strong>de</strong><br />

Buenos Aires, «a rua Corrientes é<br />

uma suspertição», ironizou Borges<br />

contra o prestígio da mais<br />

popular rua <strong>de</strong> Buenos Aires. Talvez<br />

a Corrientes <strong>de</strong> hoje já não<br />

seja a Corrientes cantada nas letras<br />

<strong>de</strong> tangos <strong>de</strong> outrora, com<br />

os seus cinemas, os seus teatros,<br />

os seus cafés abertos até muito<br />

tar<strong>de</strong> e, também, as suas livrarias.<br />

Um lugar <strong>de</strong> exaltação para<br />

aqueles que chegavam do outro<br />

lado do Atlântico. Também <strong>de</strong><br />

exaltação literária, quem sabe se<br />

para compensar a nostalgia das<br />

Livraria Gandhi<br />

pátrias perdidas no velho continente.<br />

Ou um certo vazio histórico<br />

<strong>de</strong> uma nação que nasceu<br />

dos barcos. Mas, ainda hoje, percorrer<br />

a pé a extensa avenida,<br />

que em épocas mais luminosas<br />

já foi uma espécie <strong>de</strong> Broadway<br />

porteña, é como passear ao longo<br />

<strong>de</strong> uma imensa montra <strong>de</strong> livros,<br />

tantas são as livrarias que por aí<br />

se encontram. E, apesar <strong>de</strong> muitas<br />

terem encerrado as suas portas<br />

nos últimos anos, a soma <strong>de</strong> todas<br />

as montras <strong>de</strong> livros que encontramos<br />

ao longo dos vários<br />

quarteirões, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Callao até ao cruzamento com a<br />

9 <strong>de</strong> Julho, configurariam uma<br />

enorme livraria com centenas <strong>de</strong><br />

metros <strong>de</strong> comprimento, o que é<br />

absolutamente surpreen<strong>de</strong>nte e<br />

sem paralelo em qualquer outro<br />

lugar. Aí se encontram nomes<br />

importantes do comércio livreiro<br />

como Hernán<strong>de</strong>z, Losada, Cúspi<strong>de</strong><br />

ou Lorraine, lado a lado<br />

com armazéns poeirentos, estreitos<br />

corredores, ínfimos saguões<br />

borgeanos on<strong>de</strong> se ven<strong>de</strong>m<br />

livros em saldo. E on<strong>de</strong>, às<br />

vezes, se po<strong>de</strong> ter a surpresa <strong>de</strong><br />

encontrar, escondido sob um<br />

amontoado <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> ginástica,


<strong>de</strong> cozinha ou <strong>de</strong> jardinagem,<br />

aquele título esgotado que julgávamos<br />

perdido. Edições baratas,<br />

troca e venda <strong>de</strong> livros usados,<br />

os «livros do dia» pelo preço<br />

<strong>de</strong> uma cerveja. Eis o que ainda<br />

é, também, Corrientes.<br />

Parece que os leitores, que<br />

mesmo durante a crise nunca<br />

per<strong>de</strong>ram o hábito <strong>de</strong> frequentar<br />

as livrarias, voltaram <strong>de</strong> novo a<br />

comprar livros. Reveladora <strong>de</strong>sta<br />

atitu<strong>de</strong> em relação ao livro foi o<br />

facto <strong>de</strong> a Feira do Livro <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires <strong>de</strong> 2002, que esteve<br />

para ser suspensa, ter registado<br />

um nível <strong>de</strong> participação surpreen<strong>de</strong>nte,<br />

como se a literatura<br />

Livraria Losada<br />

CIDADES INVISÍVEIS 28<br />

representasse a última esperança.<br />

Para o editor Daniel Divinsky,<br />

das Ediciones <strong>de</strong> la Flor, muitos<br />

argentinos terão preferido <strong>de</strong>sfrutar<br />

do dinheiro <strong>de</strong> que dispunham<br />

comprando livros, em vez<br />

<strong>de</strong> confiá-lo aos bancos. Registe-<br />

-se que, já em 2003, a Cámara<br />

Argentina <strong>de</strong>l Libro registara um<br />

número recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> 14365 títulos<br />

entre novida<strong>de</strong>s e reedições.<br />

E, se é verda<strong>de</strong> que a crise<br />

levou ao encerramento <strong>de</strong> muitas<br />

29<br />

livrarias e a uma diminuição<br />

dramática da edição <strong>de</strong> romances<br />

e poesia, outras, como<br />

as muito recentes Capítulo 2 ou<br />

Tierra <strong>de</strong> Lectores, têm ocupado<br />

os seus lugares, apostando numa<br />

relação mais directa com os<br />

clientes.<br />

Outra consequência ironicamente<br />

feliz da crise tem sido o<br />

ressurgimento dos pequenos<br />

editores que, aproveitando aquilo<br />

que as gran<strong>de</strong>s casas editoras<br />

<strong>de</strong>scartam, têm vindo a estreitar<br />

os laços com os seus autores, incentivando<br />

o aparecimento <strong>de</strong><br />

novos talentos e apostando na<br />

preservação <strong>de</strong> um fundo edito-<br />

rial próprio. Ediciones <strong>de</strong> la Flor,<br />

Manantial, Temas, Biblos, Quadrata,<br />

El Cuenco <strong>de</strong> Plata, Amorrortu,<br />

Bajo la Luna e La Crujía<br />

são algumas <strong>de</strong>ssas editoras que<br />

apostam, sobretudo, na promoção<br />

do património editorial argentino<br />

que po<strong>de</strong> ser encontrado nas<br />

livrarias <strong>de</strong> Buenos Aires.<br />

Talvez o território on<strong>de</strong> melhor<br />

se percebe a particular relação<br />

amorosa dos argentinos com<br />

os livros seja a Feira do Livro<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há 30 anos, constitui<br />

o principal acontecimento do<br />

Outono porteño. Quatrocentos expositores<br />

com milhares <strong>de</strong> livros,<br />

mesas-redondas, conferências,<br />

<strong>de</strong>bates, ateliers, maratonas<br />

<strong>de</strong> leitura, apresentação <strong>de</strong> livros<br />

e sessões <strong>de</strong> autógrafos e recitais<br />

<strong>de</strong> poesia marcaram a 30.ª edição,<br />

on<strong>de</strong> esteve presente, entre<br />

muitos outros consagrados escritores,<br />

António Lobo Antunes.<br />

Mas aquilo que se revelou, mais<br />

uma vez, a sua imagem <strong>de</strong> marca<br />

foram os grupos <strong>de</strong> amigos<br />

ou <strong>de</strong> famílias inteiras carregando<br />

sacos <strong>de</strong> livros que voltaram<br />

a comprar como antes da crise.<br />

Terminada a feira, regressemos,<br />

ainda, às livrarias. Agora,<br />

às dos livros caros, <strong>de</strong> capas bonitas,<br />

enca<strong>de</strong>rnados a pele e<br />

dourados que forram estantes<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira antiga. Livros raros,<br />

únicos, inexistentes, esgotados,<br />

exóticos, pergaminhos. Livrarias<br />

<strong>de</strong> usados, impecavelmente<br />

conservados. Elegantes antiquários<br />

livreiros. Dizem-me que,<br />

<strong>de</strong>vido à crise que se abateu sobre<br />

o país nos finais <strong>de</strong> 2001,<br />

diminuiu o público que antes<br />

se juntava nestes pequenos lugares<br />

<strong>de</strong> culto em pequenas tertúlias<br />

<strong>de</strong> coleccionadores. E que<br />

a paixão pelos livros raros é cada<br />

vez menos partilhada por<br />

argentinos. Aproveitam os estrangeiros<br />

cujo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra<br />

lhes permite adquirir, por<br />

módicas quantias, verda<strong>de</strong>iras<br />

preciosida<strong>de</strong>s. Como na Alberto<br />

Casares (Suipacha, 521), especializada<br />

em Borges, que propunha,<br />

por um preço muito<br />

aceitável, uma colecção completa<br />

da Sur, fundada e dirigida<br />

por Victoria Ocampo (1891-<br />

-1979), uma das mais importantes<br />

revistas literárias da Ibero-América<br />

na qual colaboraram,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro número


publicado em 1931 até ao n.º<br />

371 publicado em 1992, Jorge<br />

Luis Borges, José Ortega y Gasset,<br />

Alfonso Reyes, Adolfo Bioy<br />

Casares, Octavio Paz, Silvina<br />

Ocampo, Eduardo Mallea e tantos<br />

outros importantes escritores.<br />

Ou, ainda, a Acquilant<br />

(Rincón, 79) e a L’Amateur<br />

(Esmeralda, 882).<br />

Outras, mais económicas,<br />

mas nem por isso menos or<strong>de</strong>nadas<br />

e sortidas na sua penumbra<br />

discreta, e com livreiros<br />

que conversam com discreta<br />

autorida<strong>de</strong> e simpatia sobre os<br />

livros que ven<strong>de</strong>m, encontram-se<br />

um pouco por todo o lado. Como<br />

não recordar aquela pequena<br />

livraria <strong>de</strong> usados que dá pelo<br />

nome <strong>de</strong> Brujas (Rodríguez<br />

Peña, 429) on<strong>de</strong> encontrei uma<br />

primeira edição <strong>de</strong> Rayuela <strong>de</strong><br />

Julio Cortázar. Percorro as estantes<br />

e as bancas que expõem<br />

os livros cuidadosamente arrumados<br />

por temas e autores,<br />

sem qualquer mácula <strong>de</strong> poeira.<br />

Detenho-me em algumas<br />

edições <strong>de</strong> Borges, mas acabo<br />

por pegar na Rayuela, que comprarei.<br />

O livreiro conhece Pessoa,<br />

Torga, Régio, Saramago. De<br />

Saramago, diz-me, leu o Ensaio<br />

sobre a Cegueira. Mostra-me, ainda,<br />

o suplemento literário da<br />

edição do Clarín com uma entrevista<br />

ao Nobel português.<br />

Fornece-me preciosas informações<br />

sobre outras pequenas livrarias<br />

<strong>de</strong> usados que visitarei<br />

<strong>de</strong>pois, como a Romano (Ayacucho,<br />

437), El Vitral (Montevi<strong>de</strong>o,<br />

108) ou El Tunel (Avenida<br />

<strong>de</strong> Mayo, 767). Em todas ouvirei<br />

histórias sobre livros. Talvez<br />

para que a nenhuma falte uma<br />

biografia que se alimenta <strong>de</strong><br />

ficção e realida<strong>de</strong>.<br />

Mas livros usados também<br />

se po<strong>de</strong>m procurar nas feiras<br />

que po<strong>de</strong>mos encontrar no Par-<br />

que Rivadavia ou na Praça <strong>de</strong><br />

Itália, numa versão porteña dos<br />

bouquinistes do Sena – ou não fosse<br />

Buenos Aires um espelho <strong>de</strong><br />

Paris na América do Sul –, on<strong>de</strong><br />

um taxista que conhecia Lisboa<br />

me levou numa manhã <strong>de</strong> domingo.<br />

Alguém chega e abre<br />

uma mala <strong>de</strong> on<strong>de</strong> retira vários<br />

volumes que dispõe criteriosamente<br />

sobre um pano, no chão.<br />

Depois, um comprador pega<br />

num livro enca<strong>de</strong>rnado cujo título<br />

não pu<strong>de</strong> ver. Quem sabe<br />

se um livro inexistente.<br />

Há, ainda, as livrarias especializadas,<br />

on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> encontrar<br />

quase tudo sobre um tema.<br />

Livraria Losada<br />

Quem se interesse pela mítica<br />

Patagónia que conhecemos dos<br />

livros <strong>de</strong> Chatwin e <strong>de</strong> Coloane,<br />

essa terra do fim do mundo está<br />

mesmo ali, na World’s End,<br />

nas Galerias Pacífico. Se a paixão<br />

for o tango, então o melhor<br />

é procurar El Quiosco <strong>de</strong>l Tango,<br />

em Corrientes, obviamente.<br />

Entre outras preciosida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>scobri<br />

aí uma referência a uma<br />

tal «Amelia, la Portuguesa» que<br />

por volta <strong>de</strong> 1920 encantou nos<br />

cabarets <strong>de</strong> Buenos Aires. A melhor<br />

livraria borgesiana é a já<br />

mencionada Alberto Casares.<br />

Mas, se quisermos saber o que<br />

cantam os poetas argentinos <strong>de</strong><br />

agora, será na Norte (Las Heras,<br />

2237) que <strong>de</strong>vemos procurar.<br />

Esta a cida<strong>de</strong> dos livros. A<br />

cida<strong>de</strong> «on<strong>de</strong> todos os caminhos<br />

se bifurcam» conduzindo<br />

a uma livraria. Corrientes,<br />

Callao, Santa Fe, os caminhos<br />

principais que levam à «extravagante<br />

felicida<strong>de</strong>» das infinitas<br />

livrarias hexagonais ou aos estreitos<br />

armazéns <strong>de</strong> usados ou<br />

aos elegantes antiquários livreiros<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires.


CIDADES INVISÍVEIS 30<br />

31<br />

Os editores<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

em épocas <strong>de</strong> crise<br />

Daniel Divinsky


Ser editor, sem fazer parte<br />

<strong>de</strong> nenhum dos gran<strong>de</strong>s grupos<br />

editoriais, significa, num país<br />

como a Argentina, viver um estado<br />

<strong>de</strong> crise permanente. A situação<br />

agravou-se em finais <strong>de</strong><br />

2001, como consequência do<br />

<strong>de</strong>smoronamento do esquema<br />

económico neoliberal, sustentado<br />

na manutenção fictícia <strong>de</strong> uma<br />

parida<strong>de</strong> cambial (1 peso argentino<br />

= 1 dólar norte-americano),<br />

que permitia que os livros<br />

importados fossem mais<br />

baratos que os editados localmente.<br />

Em Abril <strong>de</strong> 2002, <strong>de</strong>via<br />

realizar-se a Feira Internacional<br />

do Livro <strong>de</strong> Buenos Aires e, até<br />

ao último momento, pensou-se<br />

que haveria que suspendê-la.<br />

Para surpresa <strong>de</strong> todos, não só<br />

teve uma assistência <strong>de</strong> público<br />

similar às anteriores, como as<br />

vendas foram excelentes. O que<br />

se passou no contexto <strong>de</strong> um<br />

país empobrecido até níveis<br />

nunca antes conhecidos? Simplesmente<br />

que os sectores não<br />

pauperizados que haviam confiado<br />

as suas poupanças aos<br />

bancos, os quais viriam a encerrar<br />

<strong>de</strong>vido à crise financeira,<br />

<strong>de</strong>cidiram <strong>de</strong>sfrutar do dinheiro<br />

<strong>de</strong> que ainda dispunham e, por<br />

exemplo, comprar livros. Também<br />

influiu, é certo, a afluência<br />

<strong>de</strong> visitantes dos países vizinhos<br />

que aproveitaram os preços<br />

da moeda local, subitamente<br />

abaratados.<br />

Nesse quadro, as «gran<strong>de</strong>s»<br />

editoras isto é, as que integram<br />

os grupos multinacionais que,<br />

paulatinamente, foram comprando<br />

as chancelas argentinas<br />

tradicionais, que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m o seu<br />

ritmo <strong>de</strong> lançamento das novida<strong>de</strong>s<br />

e as suas tiragens em função<br />

da venda massiva e da inundação<br />

do mercado, viram-se<br />

mais afectadas que as médias e<br />

as pequenas. Um editor médio,<br />

que não está obrigado a produzir<br />

uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

novida<strong>de</strong>s mensais para manter<br />

em funcionamento as suas<br />

equipas <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> vendas,<br />

po<strong>de</strong> reduzir ao mínimo a<br />

sua produção enquanto o seu<br />

fundo editorial, reeditado regularmente,<br />

lhe permita solver os<br />

seus gastos gerais.<br />

Os sectores não<br />

pauperizados que<br />

haviam confiado as suas<br />

poupanças aos bancos,<br />

os quais viriam<br />

a encerrar <strong>de</strong>vido à crise<br />

financeira, <strong>de</strong>cidiram<br />

<strong>de</strong>sfrutar do dinheiro<br />

<strong>de</strong> que ainda dispunham<br />

e comprar livros<br />

Ediciones <strong>de</strong> la Flor, editora<br />

fundada por mim, em 1966, e<br />

que continua sendo proprieda<strong>de</strong><br />

minha e da minha mulher, tem<br />

como base das suas vendas os<br />

livros dos gran<strong>de</strong>s humoristas<br />

argentinos (Quino, autor <strong>de</strong> Mafalda,<br />

mas também <strong>de</strong> muitos<br />

outros títulos <strong>de</strong> humor, Fontanarrosa,<br />

Caloi, Maitena) e os <strong>de</strong><br />

alguns autores como Rodolfo<br />

Walsh, um clássico da narrativa,<br />

e o jornalismo <strong>de</strong> investigação,<br />

assassinado pela ditadura militar<br />

em 1977. Estes títulos reeditam-<br />

-se regularmente e quando, a<br />

partir da <strong>de</strong>svalorização da<br />

moeda nacional, baixaram os<br />

seus preços <strong>de</strong> exportação em<br />

dólares, reencontraram o mercado<br />

<strong>de</strong> toda a América Latina e,<br />

em alguns casos, o <strong>de</strong> Espanha<br />

(quando os nossos direitos não<br />

estavam contratualmente limitados).<br />

Isso permitiu que <strong>de</strong> 7<br />

novos títulos surgidos no, economicamente<br />

funesto, ano <strong>de</strong><br />

2002, se passasse a 20 novida<strong>de</strong>s<br />

em 2003, e que serão 32<br />

em 2004. E que as reedições,<br />

que são o segredo da sobrevivência<br />

<strong>de</strong> uma editora com um<br />

fundo, passassem, no mesmo<br />

lapso, <strong>de</strong> 14 para 60. Isto mesmo<br />

permitiu apostar em novos<br />

autores, no nosso caso jovens<br />

humoristas gráficos como os<br />

que assinam Nik y Liniers, que<br />

estão aumentando a sua fama e<br />

as suas vendas <strong>de</strong> modo surpreen<strong>de</strong>nte.<br />

Há algum tempo, um alto<br />

executivo <strong>de</strong> uma multinacional<br />

da edição disse que os gran<strong>de</strong>s<br />

grupos editoriais são como bolas<br />

numa caixa: sendo esféricas,<br />

<strong>de</strong>ixam pouco espaço entre elas<br />

para que ali se alojem outras<br />

editoras que, se crescerem <strong>de</strong>masiado,<br />

serão <strong>de</strong>voradas pelas<br />

maiores.<br />

O exemplo recente do grupo<br />

Vivendi, cuja divisão editorial<br />

estourou e teve <strong>de</strong> ser vendida<br />

em parcelas, e outros que interromperam<br />

a absorção <strong>de</strong><br />

mais empresas, parece <strong>de</strong>monstrar<br />

que aquilo que é verda<strong>de</strong><br />

para outros sectores não o<br />

é para os livros. A diversida<strong>de</strong><br />

da criação literária e a inquietu<strong>de</strong><br />

dos leitores permitem escapar<br />

às estreitas margens que<br />

o marketing globalizado preten<strong>de</strong><br />

impor.


CIDADES INVISÍVEIS 32<br />

Delírios porteños<br />

Carlos Cáceres Monteiro<br />

33


La Boca. Foto <strong>de</strong> Carlos Cáceres Monteiro


CIDADES INVISÍVEIS 34<br />

Não conheço outra cida<strong>de</strong><br />

no mundo com tanta força<br />

como Buenos Aires: nos seus<br />

bairros boémios on<strong>de</strong> a vida<br />

nunca pára; nos restaurantes on<strong>de</strong><br />

se come o bife <strong>de</strong> chorizo, por<br />

exemplo em La Mosca Blanca;<br />

na célebre Avenida Corrientes,<br />

que é um rio <strong>de</strong> luz no coração<br />

da cida<strong>de</strong>; nos lugares on<strong>de</strong> se<br />

toca e dança tangos na rua, seja<br />

na Calle Florida (que Jorge Luis<br />

Borges frequentou e celebrizou),<br />

em Palermo Viejo, em La<br />

Boca ou, ao domingo, na feira<br />

<strong>de</strong> San Telmo.<br />

Ou ainda numa outra forma<br />

<strong>de</strong> força, nas marchas <strong>de</strong> protestos:<br />

ontem as falanges peronistas,<br />

hoje os piqueteros.<br />

Este fôlego, esta energia,<br />

não <strong>de</strong>sfalece mesmo nos períodos<br />

mais difíceis. Estive em Buenos<br />

Aires em pleno tempo <strong>de</strong><br />

bancarrota, no auge do corralito,<br />

que se traduzira no confisco<br />

temporário dos <strong>de</strong>pósitos bancários.<br />

Pois, mesmo assim, apesar<br />

da profunda inquietação colectiva,<br />

a capital argentina não<br />

perdia gran<strong>de</strong> parte da sua fervilhante<br />

alegria <strong>de</strong> viver e conservava<br />

um notável sentido <strong>de</strong><br />

orgulho e dignida<strong>de</strong>; na Calle<br />

Lavalle não se calaram as concertinas<br />

e em La Recoleta as belas<br />

mulheres continuaram a sentar-<br />

-se nas esplanadas; na Calle Camiñito<br />

as casas mantiveram a<br />

pureza das suas cores vivas; e,<br />

durante o dia, o célebre Café<br />

Tortoni, na Avenida <strong>de</strong> Mayo (e<br />

que foi frequentado por Borges<br />

e Gar<strong>de</strong>l) guardou todo o seu<br />

velho esplendor e continuou a<br />

ser um dos templos do tango.<br />

Na Praça <strong>de</strong> Mayo intensificam-se<br />

os protestos frente à Casa<br />

Rosada, sob a balustrada que se<br />

celebrizou pelas aparições <strong>de</strong><br />

Juan Perón e sua mulher, Evita<br />

Perón. Em todo o caso, no Verão<br />

35<br />

<strong>de</strong> 2002, a última vez que estive<br />

na Argentina, essas manifestações<br />

não se comparam àquelas<br />

que, meio ano antes, a classe<br />

média organizou, <strong>de</strong> forma quase<br />

espontânea (por Internet) para<br />

protestar contra o corralito e contra<br />

o ministro da Economia que<br />

o gerou, o monetarista neoliberal<br />

Cavallo. Muitos milhares <strong>de</strong><br />

pessoas participaram, em 30 <strong>de</strong><br />

Dezembro <strong>de</strong> 2001, no cacerollazo.<br />

Munidos <strong>de</strong> panelas, pratos, potes<br />

e ban<strong>de</strong>jas, os argentinos rejeitaram<br />

em bloco, nas praças <strong>de</strong><br />

Mayo e do Obelisco, o rumo<br />

que o país seguia. E, mesmo assim,<br />

nunca às portas dos gran<strong>de</strong>s<br />

armazéns (em muitos dos<br />

quais eram aceites os patacones, os<br />

bónus emitidos pelo Estado falido<br />

e insolvente) se <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

cantar e dançar o tango.<br />

Foi em 1945 que se concretizou<br />

a ascensão política do caudilho<br />

argentino, <strong>de</strong>pois da<br />

maior manifestação alguma vez<br />

realizada em Buenos Aires, no<br />

dia 17 <strong>de</strong> Outubro. Ainda hoje,<br />

historiadores e jornalistas discutem<br />

qual terá sido o exacto papel<br />

da então actriz Eva Duarte na<br />

noite da manifestação na Avenida<br />

9 <strong>de</strong> Julho. Mas Perón costuma<br />

ser citado dizendo que foi a<br />

sua amiga Evita que organizou<br />

tudo. Um movimento aparentemente<br />

espontâneo <strong>de</strong> gente humil<strong>de</strong><br />

da cintura operária, que<br />

nunca antes entrara no centro <strong>de</strong><br />

Buenos Aires, ocupou a capital e<br />

impôs Perón. Facto que constitui,<br />

aliás, uma singularida<strong>de</strong>: a<br />

classe trabalhadora a colocar um<br />

coronel no po<strong>de</strong>r (já então simbolizado<br />

pela Casa Rosada, o palacete<br />

que encima a Praça <strong>de</strong><br />

Mayo). Foi no dia seguinte a esta<br />

marcha popular que nasceu o<br />

mito dos <strong>de</strong>scamisados, ainda hoje<br />

fortemente ligados à história da<br />

populista Evita. Eram os pobres<br />

da Argentina, os «sem camisa» a<br />

tomarem o seu <strong>de</strong>stino nas<br />

mãos; só que a Argentina era, na<br />

época, um dos mais ricos países<br />

do mundo; acreditava-se que teria<br />

um gran<strong>de</strong> futuro, maior do<br />

que o <strong>de</strong> qualquer outro da<br />

América Latina, incluindo o Brasil<br />

e o México. O 17 <strong>de</strong> Outubro<br />

passou a ser, ao longo dos anos,<br />

a data <strong>de</strong> todos os rituais peronistas.<br />

O mito <strong>de</strong> Evita, que entretanto<br />

se casara com Perón, avolumou-se<br />

porque as pessoas começaram<br />

a procurá-la para lhe<br />

pedir favores ou auxílio financeiro:<br />

mães pobres, crianças que<br />

necessitavam <strong>de</strong> assistência. A<br />

Newswek chamou-lhe então La Presi<strong>de</strong>nta.<br />

Eva Perón passou a ter gabinete<br />

no Ministério do Trabalho.<br />

A Fundação Eva Perón reforçou<br />

o papel beneficente da mulher<br />

do Presi<strong>de</strong>nte, a tal ponto<br />

que houve quem passasse a chamar-lhe<br />

santa (hoje, há quem<br />

sugira a sua canonização). Um<br />

ano <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter morrido, as<br />

crianças argentinas já aprendiam<br />

uma prece que lhe era <strong>de</strong>dicada,<br />

semelhante ao padre-nosso, e<br />

nos calendários vendidos em<br />

Buenos Aires aparecia uma auréola<br />

à volta da sua cabeça.<br />

Em 17 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1951,<br />

na Praça <strong>de</strong> Mayo, já muito<br />

doente, aguentando-se a doses<br />

<strong>de</strong> morfina, Evita ainda conseguiu<br />

proferir, na varanda da Casa<br />

Rosada, um extraordinário e<br />

patético discurso em que agra<strong>de</strong>ceu<br />

aos seus queridos <strong>de</strong>scamisados<br />

e gritou que dava a vida por<br />

Perón, frase que foi repetida pelo<br />

milhão e meio <strong>de</strong> argentinos<br />

presentes.<br />

Des<strong>de</strong> os anos 50, afinal<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do peronismo,<br />

que a classe média não fazia<br />

ouvir, <strong>de</strong> uma forma tão clara, a<br />

sua voz na rua.


La Boca. Foto <strong>de</strong> Carlos Cáceres Monteiro


CIDADES INVISÍVEIS 36<br />

Sob este fervor visível (e audível)<br />

sobrevivem e alimentam a<br />

alma <strong>de</strong> Buenos Aires os eternos<br />

mitos da gran<strong>de</strong> urbe. De resto,<br />

na América Latina (veja-se, por<br />

exemplo, o caso do México, do<br />

Peru ou <strong>de</strong> Cuba) os mitos e os<br />

ícones estão bem vivos, a par<br />

das histórias misteriosas e das<br />

lendas, como as do Lago Titicaca.<br />

Os dois gran<strong>de</strong>s mitos <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires, para não falarmos já<br />

do próprio Perón, são Carlos<br />

Gar<strong>de</strong>l e Eva Perón.<br />

Em Buenos Aires revisitei,<br />

munido do meu ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> repórter,<br />

a rota <strong>de</strong>ssas gran<strong>de</strong>s figuras<br />

que continuam a fazer<br />

parte do imaginário porteño. Estive,<br />

Sob este fervor visível (e audível) sobrevivem e alimentam a alma<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires os eternos mitos da gran<strong>de</strong> urbe. De resto, na América Latina<br />

(veja-se, por exemplo, o caso do México, do Peru ou <strong>de</strong> Cuba) os mitos e os<br />

ícones estão bem vivos, a par das histórias misteriosas e das lendas, como as<br />

do Lago Titicaca. Os dois gran<strong>de</strong>s mitos <strong>de</strong> Buenos Aires, para não<br />

falarmos já do próprio Perón, são Carlos Gar<strong>de</strong>l e Eva Perón<br />

37<br />

mais do que uma vez, no jazigo<br />

<strong>de</strong> Eva Perón, no cemitério <strong>de</strong><br />

La Recoleta. Na segunda vez,<br />

em 2002, a impressão que colhi<br />

foi muito forte, porque entretanto<br />

estudara os contornos<br />

da personalida<strong>de</strong> e da história<br />

<strong>de</strong>ssa mulher, cuja vida também<br />

foi recriada por mais do<br />

que uma vez no cinema (a última<br />

das quais interpretada por<br />

Madonna). E recor<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong> tal<br />

forma foi impressiva a sua presença<br />

e memória, a opereta<br />

Don’t cry for me, Argentina, que resistiu<br />

muitas e muitas temporadas<br />

na Broadway (Nova Iorque)<br />

e em Londres.<br />

Mas a força da revisitação<br />

ao cemitério <strong>de</strong> La Recoleta ganhou<br />

significado porque muitos<br />

argentinos evocaram sentidamente<br />

a combativa Eva, precisamente<br />

no pico da crise e da<br />

bancarrota. Nessa ocasião a taxa<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego atingia 21,5%, e<br />

era a mais alta da América Latina:<br />

cinco milhões <strong>de</strong> pessoas<br />

procuravam emprego. Nessa<br />

manhã <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 2002<br />

comovi-me, observando a cerimónia,<br />

na manhã soalheira do<br />

Inverno do rio <strong>de</strong> La Plata, ouvindo<br />

os dicursos <strong>de</strong> habitantes<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires e <strong>de</strong> dirigentes<br />

sindicais. Militantes do Sindicato<br />

dos Taxistas, envergando capas e<br />

ban<strong>de</strong>iras pretas e amarelas, cantavam<br />

a marcha peronista.<br />

A eleição do Presi<strong>de</strong>nte Kirchner<br />

acabou por traduzir o <strong>de</strong>senlace<br />

possível para aquilo que<br />

parecia ser um beco sem saída.<br />

Os chefes <strong>de</strong> família sem trabalho<br />

passaram a receber 150 pesos<br />

(50 euros) por mês, uma preciosa<br />

mas magra ajuda que não<br />

tirou ninguém do grupo dos<br />

50% do conjunto da população<br />

que vive em estado <strong>de</strong> pobreza<br />

(a Argentina tem 36 milhões <strong>de</strong><br />

habitantes). Por isso, leio nas<br />

mais recentes reportagens dos<br />

meus colegas jornalistas que no<br />

centro histórico há adolescentes<br />

que dormem nos passeios, cartoneros<br />

que recolhem embalagens<br />

abandonadas e crianças que<br />

abrem as portas dos táxis na esperança<br />

<strong>de</strong> receber um peso.<br />

Da primeira vez que estive<br />

em Buenos Aires, em 1985, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

logo se me impôs a força <strong>de</strong><br />

um outro mito, diferente mas<br />

nem por isso menos forte: Carlos<br />

Gar<strong>de</strong>l, que morreu em 24<br />

<strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1935 na Colômbia,<br />

quando um avião em que seguia<br />

se preparava para largar <strong>de</strong> Bogotá<br />

para Cali. Portanto, estava-


se em ano evocativo do cinquentenário<br />

da sua morte, que<br />

ainda hoje permanece envolta<br />

em mistério porque o corpo do<br />

cantor foi encontrado atravessado<br />

por um tiro.<br />

Vivia em Buenos Aires, nesse<br />

já distante ano <strong>de</strong> 1985, um<br />

gran<strong>de</strong> jornalista brasileiro, Flávio<br />

Tavares, que já <strong>de</strong>pois disso<br />

publicou livros sobre o tema, o<br />

último dos quais é (neste ano <strong>de</strong><br />

2004) um dos gran<strong>de</strong>s best-sellers<br />

das livrarias brasileiras, O Dia em<br />

que Getúlio Matou Allen<strong>de</strong>.<br />

Foi Flávio Tavares que me<br />

iniciou nos meandros do culto<br />

<strong>de</strong> Carlos Gar<strong>de</strong>l, levando-me a<br />

muitas das casas <strong>de</strong> tango que se<br />

encontravam abertas na capital<br />

argentina e on<strong>de</strong> o silêncio era<br />

imposto com uma frase simples<br />

e cortante: «Por favor, señores,<br />

que estan cantando tangos!»<br />

Por corredores longos e escuros,<br />

escadas que se <strong>de</strong>spenhavam<br />

sobre caves sombrias, entrámos<br />

na Casa <strong>de</strong> Anibal Troyo,<br />

que era ao tempo um dos principais<br />

lugares <strong>de</strong> culto e estava<br />

cheia <strong>de</strong> fiéis dos tangos, <strong>de</strong>sses<br />

tangos arrastados que cantam<br />

amores e milongas, inpirados<br />

nas pampas. «Adiós pampa<br />

mia/Me voy a tierras estrañas».<br />

Troyo dirigia a orquestra que<br />

acompanhava Gar<strong>de</strong>l no princípio<br />

da sua carreira. Um músico<br />

abraçava um violão maior do<br />

que ele próprio e um acor<strong>de</strong>onista<br />

velhinho fazia tremer as<br />

garrafas da mesa. Um par saltou<br />

para a pista e em breve as pernas<br />

se colaram, os corpos requebraram,<br />

a mão do cavalheiro <strong>de</strong>sceu<br />

pelo corpo da dama. Ou não<br />

fosse, como dizia Jorge Luis Borges,<br />

«o tango uma espécie <strong>de</strong> simulacro<br />

do coito». Foi Paul Morand<br />

que escreveu que o tango<br />

foi um dos gran<strong>de</strong>s cantos do século<br />

passado – e continuará a<br />

ser, certamente, <strong>de</strong>ste século. Como<br />

Morand o <strong>de</strong>screvia: «O tango<br />

é terno, sensual; uma mestiçagem<br />

<strong>de</strong> italiano; o tango fala<br />

andaluz com pronúncia napolitana<br />

e acor<strong>de</strong>ão alemão.» E também<br />

acrescentou (Morand) que<br />

se tratava <strong>de</strong> «uma cópula ritmada».<br />

Quais as origens do tango?<br />

Há quem diga que também há<br />

nele sangue português, porventura<br />

uma gota <strong>de</strong> fado cantado<br />

por esses muitos emigrantes lusos<br />

que embarcaram no convés<br />

dos navios, no século XIX, <strong>de</strong>mandando<br />

a foz do rio <strong>de</strong> la Plata.<br />

Quem sabe verda<strong>de</strong>iramente?<br />

Caño 16, Casa Rosada, Viejo<br />

Almacén, Camiñito – nesses dias<br />

passámos, mesmo que fugazmente,<br />

por esses lugares <strong>de</strong> culto,<br />

acabando o périplo na formal<br />

e requintada Casa Gar<strong>de</strong>l,<br />

on<strong>de</strong> os troféus do cantor estavam<br />

profusamente expostos.<br />

Sobre a realida<strong>de</strong> política,<br />

social e <strong>cultura</strong>l da Argentina<br />

muito haveria a dizer. Não é<br />

esta, contudo, a intenção <strong>de</strong>ste<br />

artigo, que preten<strong>de</strong> ser uma<br />

revistação <strong>de</strong> mitos e lugares<br />

<strong>de</strong> culto. Não foi, certamente,<br />

por acaso que, em tanta coisa<br />

bonita e interessante que há<br />

em Buenos Aires, foi esse imaginário<br />

que mais me atraiu. É<br />

que a Argentina, e em concreto<br />

o Rio <strong>de</strong> la Plata, sempre foi<br />

um ancoradouro <strong>de</strong> sonhos,<br />

tantas vezes <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios. A Argentina<br />

nasceu, ela própria, da<br />

ambição <strong>de</strong> levar a Europa, o<br />

estilo europeu, os seus hábitos<br />

e sua <strong>cultura</strong> para o Sul da<br />

América Latina. E não é por o<br />

sonho, como todos os sonhos,<br />

atravessar momentos <strong>de</strong> pesa<strong>de</strong>lo<br />

que um dia não haverá<br />

um belo <strong>de</strong>spertar. Afinal, em<br />

Buenos Aires o sono é sempre<br />

breve. E a única vida longa é a<br />

dos ícones imortais.<br />

CÁTEDRA<br />

DE HISTÓRIA DA<br />

IBERO-AMÉRICA<br />

Iniciativa aprovada na IX Cimeira<br />

Ibero-Americana <strong>de</strong> Chefes <strong>de</strong> Estado<br />

e <strong>de</strong> Governo (Havana, 1999) e incorporada<br />

na programação da OEI.<br />

FINALIDADE<br />

Contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento e<br />

consolidação da Comunida<strong>de</strong> Ibero-<br />

-Americana <strong>de</strong> nações, através do<br />

fortalecimento e da afirmação da sua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> regional, promovendo um<br />

maior e mais profundo conhecimento<br />

crítico dos processos históricos subjacentes<br />

às suas matrizes <strong>cultura</strong>is.<br />

A Re<strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Universida<strong>de</strong>s<br />

signatárias adoptou a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong><br />

CÁTEDRA DE ESTUDOS IBERO-<br />

-AMERICANOS, sediada, rotativamente,<br />

na Universida<strong>de</strong> do Algarve e<br />

na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa.<br />

TRIÉNIO 2004-2007<br />

PROGRAMA DE ACÇÃO<br />

Formação Inicial História<br />

e Cultura da Ibero-América.<br />

Literatura Ibero-Americana<br />

Formação Contínua <strong>de</strong> Docentes<br />

Encontros Científicos<br />

Edições<br />

Biblioteca Especializada<br />

PARCERIAS<br />

Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

Câmara Municipal <strong>de</strong> Portimão<br />

Portal Universia, S.A.


MALA DIPLOMÁTICA 38<br />

A CORRENTE MIGRATÓRIA<br />

DA IBERO-AMÉRICA<br />

PARA A EUROPA PODE SER<br />

ENTENDIDA COMO<br />

UMA ESPÉCIE DE REGRESSO<br />

ÀS ORIGENS<br />

Entrevista com Jorge Faurie<br />

Beatriz Padilla<br />

39<br />

embaixador da República da Argentina<br />

Durante muito tempo, a Argentina foi vista como uma transposição europeia na<br />

América do Sul. Um país com um elevado nível <strong>de</strong> bem-estar. Depois, nas<br />

últimas décadas, fruto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastrosas políticas económicas, o empobrecimento<br />

atingiu limites nunca antes vistos, até ao quase-colapso <strong>de</strong> há três anos. Parece,<br />

contudo, que o pior já passou, e o país procura agora novos horizontes capazes<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>volver a esperança aos argentinos. Jorge Faurie, embaixador da Argentina,<br />

fala-nos <strong>de</strong>sses novos horizontes que passam também pela renovação<br />

<strong>de</strong> relações privilegiadas com Portugal, no quadro do espaço <strong>ibero</strong>-americano<br />

em que ambos os países se integram.


Como caracteriza as relações actuais entre a Argentina e Portugal?<br />

É uma relação que assenta numa história comum, cujas raízes remontam ao<br />

período colonial em que Portugal marcou presença, nomeadamente no Rio da<br />

Prata. Depois, já no século XX, haveria um período <strong>de</strong> forte presença <strong>de</strong> portugueses<br />

na Argentina, através <strong>de</strong> uma corrente imigratória para países da América<br />

Latina. Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses portugueses regressaria a Portugal após a instauração da<br />

<strong>de</strong>mocracia em Abril <strong>de</strong> 1974 e consequente abertura económica que abriu novos<br />

caminhos <strong>de</strong> esperança e <strong>de</strong>senvolvimento económico. Em silmultâneo, a integração<br />

<strong>de</strong> Portugal na União Europeia abrandaria gradualmente o seu interesse pela<br />

América Latina, levando a alguma estagnação no relacionamento entre os dois países.<br />

Ainda assim, após a crise económica <strong>de</strong> 2002, a Argentina tem procurado contrariar<br />

este afastamento, assistindo-se, agora, a uma lenta mas efectiva reaproximação<br />

económica e <strong>cultura</strong>l.<br />

Po<strong>de</strong> precisar os contornos <strong>de</strong>ssa reaproximação?<br />

Em termos comerciais, as exportações argentinas para o mercado português ultrapassam<br />

os 150 milhões <strong>de</strong> dólares por ano. Reciprocamente, creio que há muito<br />

espaço para o crescimento do comércio português no mercado argentino. E já hoje<br />

os investimentos directos <strong>de</strong> Portugal na Argentina ultrapassm os 500 milhões <strong>de</strong><br />

dólares, em diversas áreas <strong>de</strong> produção, sobretudo na vitivini<strong>cultura</strong>, na indústria<br />

corticeira, no fabrico <strong>de</strong> equipamentos eléctricos e ainda na marmoraria, azulejaria<br />

e porcelana. Uma área adicional, que creio que oferece muitas possibilida<strong>de</strong>s para<br />

uma boa complementarida<strong>de</strong>, é o sector científico e tecnológico. Creio po<strong>de</strong>r afirmar<br />

que a Argentina possui um nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico bastante interessante.<br />

A cooperação científica entre ambos os países constitui, por isso, um <strong>de</strong>safio<br />

em que que o governo argentino aposta, tendo para isso estabelecido contactos<br />

com o Ministério da Ciência e do Ensino Superior. O relacionamento económico é<br />

acompanhado por um diálogo político muito positivo, porque Portugal e a Argentina,<br />

para além <strong>de</strong> integrarem o mesmo espaço histórico-<strong>cultura</strong>l <strong>ibero</strong>-americano,<br />

partilham visões do mundo que são muito semelhantes, sendo por isso fácil a aproximação<br />

entre ambos os países nos mais diversos foros internacionais.<br />

E em termos <strong>cultura</strong>is?<br />

Creio que os portugueses têm uma espécie <strong>de</strong> visão mítica da Argentina, como<br />

uma terra rica que ofereceu níveis <strong>de</strong> bem-estar a uma corrente migratória e que,<br />

ao mesmo tempo, produziu um mundo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> pensamento que lhes parece<br />

atraente. Muitos portugueses conhecem Jorge Luis Borges, como <strong>de</strong>monstra o interesse<br />

pela edição em Portugal das suas Obras Completas. Mas também Julio Cortázar e<br />

Bioy Casares. Diria que se revêem na interacção <strong>de</strong> alguns escritores portugueses<br />

que foram coetâneos do período <strong>de</strong>stes escritores argentinos. Aliás, a entida<strong>de</strong> tutelar,<br />

o prócer sobre a qual se celebra a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Portugal, é um escritor, e aqui se<br />

ren<strong>de</strong> uma homenagem extensiva aos escritores. E, entre os arquétipos, Borges é o<br />

homem da essência argentina, como Pessoa é o homem da essência portuguesa no<br />

século XX.<br />

Como caracteriza a comunida<strong>de</strong> argentina que hoje resi<strong>de</strong> em Portugal?<br />

A comunida<strong>de</strong> não é numericamente muito representativa, quando comparada<br />

com a <strong>de</strong> outros países. Diria que, no total, entre os resi<strong>de</strong>ntes que estão<br />

inscritos e os que não estão, não supera as 1000 pessoas. Desse conjunto, aproximadamente<br />

uns 40% são cidadãos nascidos em território argentino que, pela<br />

disposição da lei argentina, serão sempre argentinos, que nasceram <strong>de</strong> pais portugueses<br />

naquela etapa emigratória a que fiz referência, na primeira meta<strong>de</strong> do


MALA DIPLOMÁTICA 40<br />

41<br />

século XX, e que beneficiaram da circunstância positiva <strong>de</strong> terem<br />

crescido numa Argentina próspera, com altos padrões <strong>de</strong> justiça social<br />

e distributiva, o que lhes permite guardar uma auto-estima muito<br />

positiva relativamente à Argentina. Embora pela lei portuguesa,<br />

como filhos <strong>de</strong> portugueses, tenham adquirido a cidadania portuguesa,<br />

mantêm fortes vínculos com a Argentina. Há, também, um<br />

conjunto <strong>de</strong> argentinos que foram emigrando nas diferentes etapas,<br />

algumas difíceis, da vida política, social e económica do país, procurando<br />

níveis <strong>de</strong> excelência na sua formação ou novos horizontes<br />

profissionais e que, hoje, se encontram relativamente bem inseridos<br />

no país <strong>de</strong> acolhimento porque, por um lado, os portugueses têm<br />

uma atitu<strong>de</strong> positiva face ao estrangeiro e, por outro, os argentinos<br />

integram-se bem, graças às afinida<strong>de</strong>s <strong>cultura</strong>is e à relativa facilida<strong>de</strong><br />

idiomática, para além <strong>de</strong> apresentarem excelentes níveis <strong>de</strong> qualificação<br />

profissional que beneficiam a socieda<strong>de</strong> portuguesa.<br />

Uma <strong>de</strong>ssas etapas, difíceis, da vida da Argentina foi a crise económica e social que se abateu sobre o país nos finais<br />

<strong>de</strong> 2001 e que levou, conforme escreveu o jornalista e escritor Tomás Eloy Martínez, a um «êxodo real e catastrófico»<br />

<strong>de</strong> quadros técnicos.<br />

Talvez a expressão «êxodo catrastófico» seja exagerada. Mas é<br />

um facto que, no momento mais agudo da crise, muita gente qualificada<br />

– cientistas, professores, famílias inteiras – <strong>de</strong>ixou o país em<br />

busca <strong>de</strong> melhores horizontes, o que constituiu um preocupante<br />

movimento migratório, agora por razões económicas. Mas também<br />

é verda<strong>de</strong> que o pior já passou e muitos dos que partiram regressaram,<br />

entretanto, ao país.<br />

Como vê o futuro das relações entre a Europa e a Ibero-América?<br />

Situo-as num esforço extremadamente importante dos países da<br />

América Latina para manter a atracção, através do Atlântico, dos países<br />

europeus e, muito particularmente, dos dois países ibéricos, o que<br />

<strong>de</strong>verá passar pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> aproximação no<br />

quadro da cooperação entre a União Europeia e o Mercosul. E isso<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá tanto da nossa capacida<strong>de</strong> em encontrar, conjuntamente<br />

com a Europa, soluções para os nossos problemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

como da predisposição da própria União Europeia em<br />

abrir-se mais aos países da América Latina, quer em termos económicos,<br />

quer em termos sociais, colocando menos obstáculos, por<br />

exemplo, à circulação <strong>de</strong> latino-americanos no espaço europeu.<br />

Acha que essa abertura po<strong>de</strong> ser histórica e eticamente justificada, conforme a inscrição «Estamos aqui porque vocês<br />

estiveram lá» que podia ler-se num cartaz ostentado por um imigrante <strong>ibero</strong>-americano durante uma recente manifestação<br />

numa capital europeia?<br />

Há uma justificação histórica e ética para uma maior abertura<br />

da Europa à imigração <strong>de</strong> cidadãos oriundos da América Latina. A<br />

corrente migratória actual po<strong>de</strong> ser entendida como uma espécie <strong>de</strong><br />

regresso às origens, pois, afinal, somos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> sucessivas<br />

correntes migratórias <strong>de</strong> cidadãos europeus, sobretudo <strong>de</strong> Espanha,<br />

da Alemanha ou <strong>de</strong> Itália. Não foi por acaso que a Argentina foi<br />

vista, durante muitos anos, como uma transposição europeia na América<br />

do Sul. Por isso, mais do que um protesto, esse cartaz expressaria,<br />

julgo, uma reivindicação e a exigência do reconhecimento dos vínculos<br />

entre os dois lados do Atlântico.


MEMÓRIA DE FOGO 42<br />

43<br />

A saga andina<br />

do <strong>de</strong>us Con<br />

Osvaldo Henrique Urbano


A saga andina do Deus Con; tapeçaria pré-colombina [Costa do Peru]


MEMÓRIA DE FOGO 44<br />

45<br />

Entre as tradições pré-colombinas da<br />

América do Sul, recolhidas pela cronística<br />

espanhola do século XVI, existe um relato<br />

que nos chama muito a atenção, não só<br />

pela forma, mas também pelo conteúdo.<br />

Recompilou-o López <strong>de</strong> Gómara [1552].<br />

Reza assim: “Dizem que no princípio do<br />

mundo veio pela parte setentrional um homem<br />

cujo nome era Con. Não tinha ossos.<br />

Caminhava muito e ligeiro e, para que o<br />

caminho fosse mais curto, baixava as serras<br />

e levantava os vales com a força da vonta<strong>de</strong><br />

e da palavra, como filho do Sol que dizia<br />

ser. Encheu a terra com homens e mulheres,<br />

<strong>de</strong>u-lhes muita fruta e pão e todas as<br />

coisas necessárias para viver. Mas um dia<br />

zangou-se com alguma ofensa que eles lhe<br />

fizeram. Então converteu a terra boa que<br />

lhes tinha dado em areais secos e estéreis,<br />

como se vêem hoje na costa, tirou-lhes a<br />

chuva e nunca mais ali choveu. Só lhes <strong>de</strong>ixou,<br />

por pieda<strong>de</strong>, os rios para que pu<strong>de</strong>ssem<br />

manter-se com o regadio e trabalho.<br />

Apareceu então Pachacama, também filho<br />

do Sol e da Lua, que significa Criador, e<br />

<strong>de</strong>sterrou Con, transformando os seus homens<br />

em gatos com riscas pretas. E <strong>de</strong>pois<br />

criou novamente os homens e mulheres<br />

como hoje são, dando-lhes as coisas que<br />

têm agora. Para agra<strong>de</strong>cer-lhe essas mercês,<br />

proclamaram-no seu Deus e assim o guardaram<br />

e honraram em Pachacama, até que<br />

os cristãos o <strong>de</strong>sterraram do lugar.”<br />

O templo <strong>de</strong> Pachacama ficava perto<br />

<strong>de</strong> Lima, era famosíssimo pelos seus oráculos,<br />

visitado por todos com muita <strong>de</strong>voção.<br />

Aparecia aí o diabo e falava com os sacerdotes<br />

que lá moravam. Os espanhóis que o<br />

visitaram com Fernando Pizarro, após a<br />

prisão <strong>de</strong> Atabalipa, <strong>de</strong>spojaram o templo<br />

do muito ouro e prata que possuía, e com<br />

a cruz e o sacramento também cessaram os<br />

oráculos e as visões.<br />

Afirmam também que durante muito<br />

tempo choveu tanto que inundou todas as<br />

terras baixas, e todos os homens, aqueles<br />

que pu<strong>de</strong>ram, refugiaram-se numas covas<br />

feitas em serras muito altas, com portas<br />

pequeninas para que a água não entrasse.<br />

Meteram lá os víveres e os animais que cabiam.<br />

Quando sentiram que já não chovia,<br />

soltaram dois cães. E, como eles voltassem<br />

limpos, mas molhados, viram que as chuvas<br />

não tinham cessado. Depois soltaram<br />

mais cães que voltaram com lama, mas enxutos,<br />

sinal <strong>de</strong> que as chuvas tinham acabado.<br />

Então saíram a ocupar as terras. E o<br />

que mais trabalho <strong>de</strong>u foi o gran<strong>de</strong> número<br />

<strong>de</strong> cobras gran<strong>de</strong>s que ainda existiam.<br />

Tinham-se criado na humida<strong>de</strong> e no lodo<br />

das cheias. Mas, finalmente, mataram-nas e<br />

agora vivem em segurança. Acreditam também<br />

no fim do mundo que será precedido<br />

por uma gran<strong>de</strong> seca. Nela se per<strong>de</strong>rão o<br />

Sol e a Lua que adoram; por isso dão gran<strong>de</strong>s<br />

berros e choram quando há eclipses,<br />

sobretudo do Sol, porque pensam que vão<br />

<strong>de</strong>saparecer, não só eles mas também o<br />

mundo inteiro.<br />

Do <strong>de</strong>us Con, pouco ou nada sabemos.<br />

Mas os vocabulários antigos dizem que essa<br />

palavra, usada nas línguas dos territórios<br />

nortenhos andinos, concretamente em<br />

Huamachuco, significava «água». É um<br />

bom ponto <strong>de</strong> partida porque o mito dá<br />

uma <strong>de</strong>finição que exprime metaforicamente<br />

as formas <strong>de</strong> um rio ou <strong>de</strong> um curso<br />

<strong>de</strong> água que se vai adaptando às condições<br />

geográficas por on<strong>de</strong> passa: «Con não tem<br />

ossos», isto é, não tem uma estrutura fixa.<br />

Ao contrário, serpenteia, transforma-se em<br />

lago, lança-se por uma ribanceira, atira-se<br />

em catarata e corre ligeiro porque amansa<br />

os cumes das montanhas e torna mais acessíveis<br />

os vales. O castigo que Con <strong>de</strong>u aos<br />

que ele tinha criado também está relacionado<br />

com a água. Privou as gentes <strong>de</strong>la e secou-lhes<br />

a terra. Há uma outra referência à<br />

água. É o dilúvio. Não diz o relato que tal<br />

acontecera em tempos do <strong>de</strong>us Con. Mas<br />

também se po<strong>de</strong> supor que se trata <strong>de</strong> uma<br />

das muitas expressões das chuvas abundantes<br />

que, <strong>de</strong> tempos a tempos, aparecem na<br />

costa peruana, fenómeno conhecido mundialmente<br />

como «Niño» ou Menino, em<br />

referência à época em que ocorre, ou seja,<br />

pelo Natal, tempo do Menino Jesus. Dizem<br />

os especialistas que a subida das águas frias<br />

do hemisfério sul fica aquém dos limites<br />

que em tempos normais atinge. Daí resultam<br />

as temperaturas muito altas na costa<br />

norte do Peru e as consequentes chuvas diluvianas,<br />

com outras expressões meteorológicas<br />

continentais.


CON E PACHACAMA<br />

O relato mítico introduz o <strong>de</strong>us Pachacama<br />

e associa-o ao santuário que existiu no<br />

sul da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lima, em tempos pré-colombinos.<br />

E, entre as coisas notáveis que fez,<br />

transformou os homens <strong>de</strong> Con em gatos<br />

pretos. O gesto <strong>de</strong> Pachacama não tem uma<br />

explicação fácil. A geografia e a fauna não<br />

<strong>de</strong>slindam o mistério. Entre algumas razões<br />

míticas que o explicariam, podíamos recorrer<br />

à força do Sol que transformou a primeira<br />

geração <strong>de</strong> seres humanos em pedras calcinadas<br />

pelo fogo. Cabe também recordar a<br />

presença da cor preta dos animais que<br />

acompanhavam os <strong>de</strong>funtos nas suas peregrinações<br />

por rios <strong>de</strong> águas escuras, antes <strong>de</strong><br />

chegarem à última morada. Mas não eram<br />

gatos, eram cães.<br />

CON E CONTITI<br />

Não passa <strong>de</strong>sapercebido, a quem tenha<br />

um pouco <strong>de</strong> informação sobre os antigos<br />

relatos míticos dos An<strong>de</strong>s, o herói ou <strong>de</strong>miurgo<br />

Contiti que veio das alturas do lago<br />

Titicaca e organizou as regiões lacustres,<br />

avançando até à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cuzco e, finalmente,<br />

chegando à costa norte dos An<strong>de</strong>s,<br />

para <strong>de</strong>saparecer nas águas do Oceano Pacífico.<br />

A relação com a água é evi<strong>de</strong>nte, porque<br />

o lago foi o seu berço, e as águas do<br />

mar a sua última morada.<br />

Como aparece na região austral a palavra<br />

«con» oriunda dos territórios nortenhos,<br />

talvez <strong>de</strong>sses povos que se chamavam<br />

Conchucos, «Terras <strong>de</strong> água»? Não o sabemos.<br />

O certo é que Contiti partilha com o<br />

herói mítico Con as honras do <strong>de</strong>miurgo<br />

que põe or<strong>de</strong>m nas coisas e que se irrita<br />

também quando os seus criados <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cem<br />

às suas or<strong>de</strong>ns. Contiti transforma as<br />

suas gentes em pedra; Con, no Norte, seca a<br />

terra e torna-a estéril, forma comparável à<br />

esterilida<strong>de</strong> das rochas. E o cronista Betanzos<br />

[1551], a quem <strong>de</strong>vemos a referência a<br />

Contiti, anota a escuridão que então reinava<br />

nesse primeiro momento do mundo. Talvez<br />

por isso Pachacama transformasse os seres<br />

criados por Con, nas terras nortenhas, em<br />

animais pretos. Eram tempos que ainda não<br />

tinham Sol e Lua. Promessas doutros seres.


BESTIÁRIO 46<br />

Peixe-boi ou<br />

peixe-mulher?<br />

Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

47


Existi há muito nas águas pouco profundas dos<br />

mares, bor<strong>de</strong>jando as costas das Índias e os mangues<br />

do Brasil.<br />

Nada sabia <strong>de</strong> geografia, muito menos que a<br />

minha casa era um Oceano, pois sempre pensei que<br />

fosse um aquário.<br />

Um dia percebi que a vida tinha mudado. Chegaram<br />

monstros estranhos em gran<strong>de</strong>s cascas <strong>de</strong><br />

noz enfeitadas <strong>de</strong> lenços triangulares e redondos<br />

que o vento enfunava como se fosse a minha barriga<br />

grávida. Ouvi dizer que eram velas, e os bichos,<br />

homens.<br />

Curiosos, observaram-me como se eu fosse um<br />

boi. Diziam entre si que mais parecia uma vaca.<br />

Perplexos, apreciavam como conseguia nadar mais<br />

rapidamente que os seus barcos aparelhados. Chamaram-me<br />

peixe. Não contentes com isso, <strong>de</strong>ram-<br />

-me um nome: «Guaraguá»: «Goaràgoá é o peixe a<br />

que os Portugueses chamam boi, que anda na água<br />

salgada e nos rios junto da água doce, <strong>de</strong> que eles<br />

bebem [...]; o qual peixe tem o<br />

corpo tamanho como um novilho<br />

<strong>de</strong> dois anos, e tem dois cotos<br />

com braços, e neles uma mão<br />

sem <strong>de</strong>dos: não tem escama, mas<br />

pele parda e grossa.»<br />

Inventaram mil estórias a<br />

meu respeito, confundindo-me<br />

com sereias. Afinal, diziam que tinha<br />

rabo <strong>de</strong> peixe e corpo <strong>de</strong> mulher.<br />

Mesmo assim, classificaram-<br />

-me na or<strong>de</strong>m dos sirénios, classe<br />

dos mamíferos. Eu tinha mamas com que alimentava<br />

<strong>de</strong> leite as minhas crias: «Guaragua é a vaca do<br />

mar, é da compridão <strong>de</strong> <strong>de</strong>z ou doze palmos, é<br />

grosso como uma vaca, é pardo cor <strong>de</strong> cinza, tem<br />

as tripas e a fressura como uma vaca e cria seus filhos<br />

<strong>de</strong> leite e tem as mamas <strong>de</strong>baixo dos braços.»<br />

Com elas confundi os mais espertos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

Aldrovandri (1612), que me <strong>de</strong>senhou como se eu<br />

fosse um Manati Indorum, a Ron<strong>de</strong>let, que no seu<br />

Libri di Piscibus registou as duas gran<strong>de</strong>s tetas com que alimentava<br />

os meus filhos.<br />

Afinal, em que ficamos?<br />

Tentaram <strong>de</strong> tudo. Pescaram-me (ou caçaram-<br />

-me) com gran<strong>de</strong>s arpões como se eu fosse uma<br />

baleia. Investigaram o meu corpo para <strong>de</strong>scobrir<br />

como seria por <strong>de</strong>ntro (mulher? peixe? vaca?). Inventaram<br />

que eu tinha duas pedras como se fossem<br />

botões para tratarem neles a «dor da pedra, coisa<br />

experimentada em França»: «O qoal tem os <strong>de</strong>ntes<br />

como boi, e na cabeça entre os miolos tem uma pe-<br />

Inventaram mil histórias<br />

a meu respeito,<br />

confundindo-me<br />

com sereias. Afinal,<br />

diziam que tinha rabo<br />

<strong>de</strong> peixe e corpo<br />

<strong>de</strong> mulher<br />

dra tamanha como um ovo <strong>de</strong> pata, feita em três<br />

peças, a qual é muito alva e dura como marfim e<br />

tem gran<strong>de</strong>s virtu<strong>de</strong>s contra a dor <strong>de</strong> pedra.»<br />

Hoje chamariam àquilo «otólitos» se eu fosse<br />

peixe. Como não sou, ainda continuam a pensar...<br />

Comeram toda a minha carne. Cozeram-na<br />

com couves, fritaram-na em estrugido, <strong>de</strong>sfizeram<br />

a minha gordura em banha e manteiga. Cada um<br />

<strong>de</strong>les inventava uma receita nova e <strong>de</strong>la se gabava<br />

nos seus livros científicos: «Este peixe he muito<br />

gostoso em gran<strong>de</strong> maneira, e totalmente parece<br />

carne, assi na semelhança, como no sabor, e assado<br />

na tem nenhuma differença <strong>de</strong> lombo <strong>de</strong> porco.<br />

Também se coze com couves e guisa-se como carne...»<br />

Agora também sou porco!<br />

Finalmente, percebiam que eu também existia<br />

em Angola (sou peixe-mulher) e na Guiné, e novamente<br />

me chamaram peixe-booze: «há nos rios<br />

muito peixe, corcodilos, cavalos-marinhos, baozes,<br />

que são os que no Brasil chamam peixe-boi».<br />

Há uma coisa em que todos se<br />

puseram <strong>de</strong> acordo. Sou muito mãe e<br />

alimento os meus filhos com o meu<br />

leite até eles po<strong>de</strong>rem ir apanhar as<br />

ervas e as folhas dos rios doces (que<br />

eu não como animais, sou muito<br />

evoluída). Já viram que optei pela vaca<br />

já que só assim teria as tetas, e<br />

nem me atrevo a dizer o que disseram<br />

dos machos (coisas como «vergalho<br />

<strong>de</strong> boi» e outras barbarida<strong>de</strong>s)...<br />

Tal como as mulheres, só tenho um filho em<br />

cada parto e fiquei muito feliz quando escreveram<br />

que «as fêmeas parem só uma criança». Criança é<br />

<strong>de</strong> mulher, não é assim?<br />

E tão forte e profundo é o meu lado maternal<br />

que Frei Cristóvão <strong>de</strong> Lisboa, na sua História dos Animais<br />

e Árvores do Maranhão, assim o <strong>de</strong>screve: «Vi matar<br />

uma fêmea e esfolarem-na e botarem a pele em terra<br />

à borda <strong>de</strong> água; e quando foi ao outro dia, indo<br />

buscar água, acharam o filho <strong>de</strong>itado em riba da<br />

pele...»<br />

Comovente?<br />

Hoje estou praticamente extinto <strong>de</strong> todos os<br />

mares. Apenas restarei nas lendas camonianas das<br />

sereias e nos livros <strong>de</strong> História Natural.<br />

Lembrem-me como vaca do mar, peixe-mulher<br />

ou peixe-boi, mas não me esqueçam.<br />

Espero que um dia não cheguem outros monstros<br />

em carcaças voadoras para escreverem sobre<br />

vocês uma história parecida com a minha.


Magdalena, un río <strong>de</strong>l olvido<br />

Janet Núñez<br />

RIOS PROFUNDOS 48<br />

49


Rio Magdalena em Barranquilla, princípio do século XX. Fotos do Archivo Histórico da Biblioteca Piloto <strong>de</strong> Barranquilla


RIOS PROFUNDOS 50<br />

51<br />

Como todos os rios que se sabem<br />

fecundos e vigorosos, o Rio Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

la Magdalena apresentou-se, num meio-<br />

-dia can<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> 1501, aos olhos do<br />

conquistador espanhol Rodrigo <strong>de</strong> Bastidas,<br />

também fundador – 24 anos mais<br />

tar<strong>de</strong> – da primeira cida<strong>de</strong> da Colômbia,<br />

Santa Marta. Assim, o Magdalena, que<br />

havia sido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais<br />

uma fonte <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> sobrevi-<br />

Hoje, o rio agoniza <strong>de</strong>vastado<br />

pelo abate dos bosques,<br />

pelo abuso permanente<br />

dos seus recursos,<br />

pelo asssalto <strong>de</strong> predadores humanos<br />

que durante mais <strong>de</strong> cem anos<br />

têm violado normas<br />

e exterminado a sua fauna<br />

vência para as tribos colombianas assentadas<br />

nas suas ribeiras, converteu-se<br />

também no eixo sobre o qual giraram as<br />

expedições colonizadoras.<br />

Encravada a sua origem no páramo<br />

<strong>de</strong> Las Papas, no <strong>de</strong>partamento do Huila,<br />

as cordilheiras Central e Oriental bifurcam-se<br />

como as pernas <strong>de</strong> uma indígena<br />

milenária no transe <strong>de</strong> dar à luz uma<br />

corrente <strong>de</strong> águas cristalinas que os nativos<br />

paeces chamaram Yuma. E do Yuma, saltou<br />

a vida. Pelo verdor húmido da selva,


RIOS PROFUNDOS 52<br />

53<br />

entre uma fauna selvagem <strong>de</strong> caimões, tigres,<br />

papagaios, monos e manatins, abriu<br />

passagem a sua força visceral, numa travessia<br />

<strong>de</strong> 1540 quilómetros até ao Norte,<br />

e o rio cresceu como nunca, passando<br />

por cida<strong>de</strong>s como Mompóx, vitais para o<br />

armazenamento e exploração <strong>de</strong> ouro e<br />

prata durante o colonialismo espanhol,<br />

até encontrar em «Bocas <strong>de</strong> Ceniza»,<br />

muito perto <strong>de</strong> Barranquilla, a sua <strong>de</strong>sembocadura,<br />

<strong>de</strong>stino e abraço com o<br />

mar Caribe.<br />

A sua recordação nas últimas gerações<br />

é feliz e dolorosa. As minhas imagens<br />

mais remotas provêm da minha infância,<br />

naquelas tranquilas e pegajosas<br />

noites barranquenhas. Pela mão – ou pela<br />

voz – da minha avó, registávamos histórias<br />

que giravam em torno do rio. Ao<br />

cair o tépido vapor da tar<strong>de</strong>, a avó reunia-nos<br />

à sombra <strong>de</strong> uma pereira, no pátio<br />

traseiro, a cantar. E, entre canto e canto, a<br />

avó tecia o seu passado com fios <strong>de</strong> nostalgia<br />

e <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> agulha que <strong>de</strong>ixava<br />

dançar como plumas no ar, enquanto recuperava<br />

dos seus tempos <strong>de</strong> menina<br />

tristezas idas ou amores clan<strong>de</strong>stinos<br />

com o avô.<br />

Recordava minha avó – recordo –<br />

um homem alto e acobreado, todo vestido<br />

<strong>de</strong> linho branco, imaculado lenço engomado<br />

na algibeira junto à lapela e chapéu<br />

<strong>de</strong> lã, que partia nos primeiros dias<br />

<strong>de</strong> cada mês com o seu rudimentar instrumental<br />

numa maleta negra e alguma<br />

roupa noutra maleta. Era o avô, um <strong>de</strong>ntista<br />

que havia conhecido aos 14 anos e<br />

do qual nunca se separaria em toda a sua<br />

vida. Esse homem que <strong>de</strong>via partir cada<br />

quatro semanas num vapor pelo rio para<br />

visitar os seus pacientes.<br />

Dois dias antes da partida, a casa toda<br />

se agitava. A avó engomava três ou<br />

quatro camisas, passava a ferro e dobrava<br />

com mestria a roupa na maleta. Os nove<br />

filhos alvoroçavam a casa e enlouqueciam<br />

o pai, meu avô, fazendo-lhe todo o tipo<br />

<strong>de</strong> encomendas, quase todas <strong>de</strong>lícias culinárias<br />

populares. A toda a pressa se escreviam<br />

cartas que <strong>de</strong>viam ser entregues a<br />

comadres e amigos <strong>de</strong> outras margens. A<br />

minha tia mais velha preparava farnéis<br />

para a travessia. Os vizinhos mais chegados<br />

vinham <strong>de</strong>sejar-lhe boa viagem e solicitar<br />

uma ou outra encomenda.<br />

Na primeiríssima hora do dia seguinte,<br />

todos se encaminhavam para o<br />

porto. Junto à embarcação, os ven<strong>de</strong>dores<br />

ambulantes <strong>de</strong> comida confundiam-se<br />

com os carregadores <strong>de</strong> mercadorias. No<br />

momento <strong>de</strong> embarcar, homens e mulheres<br />

<strong>de</strong>spediam-se com sentidos abraços. A<br />

viagem só <strong>de</strong>via durar três ou quatro horas<br />

até chegar ao primeiro <strong>de</strong>stino, mas,<br />

enquanto o vapor iniciava a sua marcha<br />

sobre as águas, todos, passageiros a bordo<br />

e familiares <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a margem, acenavam<br />

os lenços em última <strong>de</strong>spedida, enquanto<br />

a minha avó secava discretas lágrimas na<br />

sua face.<br />

Referia-se a Barranquilla do primeiro<br />

quarto do século XX. Uma cida<strong>de</strong> cosmopolita<br />

que acolhia 60% <strong>de</strong> todos os<br />

estrangeiros do país e já contava com comodida<strong>de</strong>s<br />

como energia eléctrica e algeroz<br />

nas suas magníficas mansões republicanas<br />

do bairro «O Prado». A cida<strong>de</strong><br />

que recebia muitas companhias <strong>de</strong> teatro<br />

e ópera no teatro Apolo, mas uma cida<strong>de</strong><br />

que pouco a pouco virava as costas ao<br />

rio, <strong>de</strong>ixando à ribeira as fábricas e seringueiros<br />

marginais.<br />

Talvez por falta <strong>de</strong> memória ou excesso<br />

<strong>de</strong> indiferença, ninguém tinha<br />

consciência <strong>de</strong> que a bacia do Magdalena<br />

integrava uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> rios que configuram<br />

uma zona <strong>de</strong> influência <strong>de</strong> mais <strong>de</strong><br />

250 000 quilómetros que, anos mais tar<strong>de</strong>,<br />

viria a gerar, por exemplo, 85% do<br />

PIB do país e 70% da sua produção hidroeléctrica.<br />

Por isso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que<br />

todos <strong>de</strong>cidiram abandoná-lo, o Río<br />

Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> la Magdalena <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser<br />

gran<strong>de</strong> e converteu-se num rio <strong>de</strong> esquecimento.<br />

Hoje, o rio agoniza <strong>de</strong>vastado pelo<br />

abate dos bosques, pelo abuso permanente<br />

dos seus recursos, pelo assalto <strong>de</strong><br />

predadores humanos que durante mais<br />

<strong>de</strong> cem anos têm violado normas e exterminado<br />

a sua fauna. Todo ele <strong>de</strong>finhou<br />

com a afluência <strong>de</strong> outros rios, em especial<br />

o Bogotá, um dos mais contaminados<br />

do mundo, pois recolhe os <strong>de</strong>jectos <strong>de</strong>


8 milhões <strong>de</strong> habitantes da capital e verte<br />

a sua nefasta imitação <strong>de</strong> petróleo no generoso<br />

e cansado Magdalena.<br />

Tudo isto é lamentável, sobretudo<br />

para quem o conheceu no seu esplendor.<br />

E, à falta <strong>de</strong> uma mão re<strong>de</strong>ntora, uma boa<br />

maneira <strong>de</strong> preservar o perdido e fazê-lo<br />

presença permanente é através <strong>de</strong> expressões<br />

populares, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mitos e<br />

lendas como a do homem caimão, a mojana<br />

e o mohan, até à patasola e outros endriagos<br />

das suas águas, sem excluir a música silvestre<br />

que emana das suas ribeiras pela<br />

voz das cantoras Petrona Martínez, Totó a<br />

momposina, a Niña Emilia, Irene Martínez<br />

e José Barros, além <strong>de</strong> outro longo<br />

etcétera.<br />

No que toca à literatura, «El Inventario<br />

incompleto <strong>de</strong> las obras <strong>de</strong> ficción en<br />

las que está presente el río Magdalena<br />

nos revela que si el país le ha dado la espalda<br />

al río, nuestra literatura no» – assinala<br />

o investigador e crítico colombiano<br />

Ariel Castillo. No seu ensaio El Río y las Letras<br />

menciona, entre outras, as obras poéticas<br />

<strong>de</strong> Manuel María Madiedo (também<br />

narrativa), Juan <strong>de</strong> Castellanos, Can<strong>de</strong>lario<br />

Obeso, Rafael Núñez, Tallullah Flores,<br />

Pablo Neruda ou Nicolás Guillén; assinala<br />

o investigador que o rio também serve <strong>de</strong><br />

pano <strong>de</strong> fundo às tramas <strong>de</strong> obras narrativas,<br />

como El Desertor <strong>de</strong> Plinio Apuleyo<br />

Mendoza, La Sombra <strong>de</strong> Marvel Luz Moreno,<br />

Río Abajo, <strong>de</strong> Rafael Vega Jácome ou Los<br />

Domingos <strong>de</strong> Charito <strong>de</strong> Julio Olaciregui; que<br />

o rio assume carácter simbólico em La<br />

Casa Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> Álvaro Cepeda Samudio e é<br />

objecto <strong>de</strong> aproximação mítica em La Otra<br />

Raya <strong>de</strong>l Tigre <strong>de</strong> Pedro Gómez Val<strong>de</strong>rrama.<br />

Finalmente, assinala Castillo, que a nota<br />

<strong>de</strong> imprensa El Río <strong>de</strong> la Vida <strong>de</strong> García Márquez<br />

é a chave para enten<strong>de</strong>r a sua obra<br />

posterior O Amor nos Tempos da Cólera e O General<br />

no seu Labirinto, romances com marcada<br />

presença do rio. De produção mais recente,<br />

recordo alguns episódios <strong>de</strong> El Tumbao<br />

<strong>de</strong> Macorina, <strong>de</strong> Jaime Cabrera González.<br />

E tudo o que eles contam é verda<strong>de</strong>,<br />

como verda<strong>de</strong> é que o seu abandono se<br />

torna infinitamente doloroso para quem<br />

<strong>de</strong>scobriu noutras latitu<strong>de</strong>s maneiras<br />

opostas <strong>de</strong> enfrentar as cida<strong>de</strong>s fluviais.<br />

XI JORNADAS<br />

DE HISTÓRIA<br />

IBERO-AMERICANA<br />

Portimão, 5, 6 e 7 Maio <strong>de</strong> 2005<br />

O ASSOCIATIVISMO<br />

EM PORTUGAL E<br />

NA IBERO-AMÉRICA<br />

Confrarias<br />

Socieda<strong>de</strong>s literárias<br />

e científicas<br />

Socieda<strong>de</strong>s secretas<br />

Associações operárias<br />

Programa <strong>cultura</strong>l<br />

Concertos, teatro, exposições,<br />

livros<br />

Organização<br />

INSTITUTO DE CULTURA<br />

IBERO-ATLÂNTICA<br />

Informações<br />

Casa Museu Manuel<br />

Teixeira Gomes<br />

Rua Júdice Biker, 1<br />

8500-538 Portimão<br />

T 282 470 822 F 282 470 749<br />

iciaptm@mail.telepac.pt<br />

www.instituto<strong>cultura</strong><strong>ibero</strong>-atlantica.pt<br />

Patrocínio<br />

Câmara Municipal <strong>de</strong> Portimão


Excerto da conferência Algo<br />

sobre mi poesía y mi vida,<br />

pronunciada por Neruda na<br />

Universida<strong>de</strong> do Chile, em 1954.<br />

Foi publicada na revista Aurora,<br />

n.º 1, Julho <strong>de</strong> 1954.<br />

ALTAS SOLIDÕES 54<br />

Machu Picchu<br />

Pablo Neruda<br />

55<br />

Entonces subimos por sen<strong>de</strong>ros ásperos<br />

y a lomo <strong>de</strong> mulo hasta la ciudad perdida<br />

y añorada: Machu Picchu, la misteriosa.<br />

Aquella altísima ciudad se había<br />

avergonzado <strong>de</strong> su propia época, se había<br />

reducido al silencio y se había escondido<br />

en su propio bosque. ¿Qué les sucedió a<br />

sus constructores? ¿Qué había sido <strong>de</strong> sus<br />

habitantes? ¿Qué nos <strong>de</strong>jaron, excepto la<br />

dignidad <strong>de</strong> la piedra, para darnos noticias<br />

<strong>de</strong> su vida, <strong>de</strong> sus propósitos, <strong>de</strong> su<br />

<strong>de</strong>saparición? Nos respondió un silencio<br />

sonoro. Yo ya conocía el silencio <strong>de</strong> otra<br />

ruinas monumentales, mas siempre fue<br />

un silencio humillado, <strong>de</strong> mármoles <strong>de</strong>finitivamente<br />

vencidos. Allí, en las alturas<br />

<strong>de</strong>l Perú, la imponente arquitectura se había<br />

conservado secretamente en el profundo<br />

silencio <strong>de</strong> las cumbres andinas.Todo<br />

era cielo en torno <strong>de</strong> los sagrados vestigios.<br />

El bosque ver<strong>de</strong> se interrumpía con<br />

las rápidas y pequeñas nubes, que pasaban<br />

<strong>de</strong>sflorando y besando aquella espléndida<br />

obra <strong>de</strong> lo eterno que hay en el<br />

hombre. En el punto más alto <strong>de</strong> la ciudad<br />

se levantaba el Reloj o Intihuatana,<br />

especie <strong>de</strong> calendario formado por<br />

inmensas piedras, con una meridiana <strong>de</strong>stinada<br />

quizá a señalar las horas en aquellas<br />

excelsas alturas. Estos relojes astronómicos<br />

fueron tenazmente perseguidos por<br />

los conquistadores, ansiosos, como siempre,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir el núcleo <strong>cultura</strong>l. La ciudad<br />

<strong>de</strong> Machu Picchu los <strong>de</strong>rrotó: se escondió<br />

entre peñas abruptas, multiplicó<br />

sus mantos <strong>de</strong> ver<strong>de</strong>, y los intrusos <strong>de</strong>structores<br />

pasaron por su vera sin sospechar<br />

jamás su existencia.<br />

Machu Picchu se reveló ante mí como<br />

el perdurar <strong>de</strong> la razón por encima <strong>de</strong>l <strong>de</strong>lirio,<br />

y la ausencia <strong>de</strong> sus habitantes, <strong>de</strong> sus<br />

creadores, el misterio <strong>de</strong> su origen y <strong>de</strong> silenciosa<br />

tenacidad <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>naron para mí<br />

la lección <strong>de</strong>l or<strong>de</strong>n, que el hombre pue<strong>de</strong><br />

establecer a través <strong>de</strong> los siglos con su voluntad<br />

solidaria: el edificio colectivo capaz<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar el <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>n <strong>de</strong> la naturaleza y<br />

<strong>de</strong> la humana <strong>de</strong>sventura. Recordé entonces<br />

las construcciones mejicanas <strong>de</strong> Teotihuacán,<br />

los edificios <strong>de</strong> Monte Albán, <strong>de</strong> Chichén<br />

Itzá, el cuadrilátero <strong>de</strong> Uxmal, los<br />

templos <strong>de</strong> Palenque, las pirámi<strong>de</strong>s religiosas<br />

con sus prodigiosas moles, con su simetría<br />

radial, que en todo el territorio mejicano<br />

se alzaron hacia la sangre y la luz. Comprendí<br />

que por encima <strong>de</strong> las estructuras<br />

perdidas en el martirio y en la sombra, por<br />

encima <strong>de</strong> la creación formal <strong>de</strong> figuras,<br />

joyas y objetos subterráneos, más allá <strong>de</strong> la<br />

inmensidad vencida y <strong>de</strong>rrotada <strong>de</strong> aquella<br />

América, que hoy está renaciendo <strong>de</strong> sus<br />

propias tinieblas, los antiguos maestros<br />

americanos habían erigido un alma aérea,<br />

invulnerable, capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar con su ser el<br />

dominio y las olas embravecidas <strong>de</strong> la agresión<br />

y <strong>de</strong>l olvido.<br />

Estos <strong>de</strong>scubrimientos me revelaron<br />

muchos caminos, y entre ellos el recordar<br />

mi <strong>de</strong>stino con aquella verdad tan dura<strong>de</strong>ra,<br />

con aquellas creaciones colectivas, en las<br />

que todos los componentes, esperanza y<br />

dolor, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za y po<strong>de</strong>río, se habían unido<br />

muchas veces en un organismo central,<br />

que dirigía todas las posibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acción<br />

y daba origen a un nuevo silencio sonoro,<br />

lleno <strong>de</strong> inteligencia y <strong>de</strong> música.


Machu Picchu


VIDAS CONTADAS 56<br />

NERUDA FOI<br />

UM HOMEM<br />

COMPROMETIDO<br />

COM O SEU<br />

TEMPO Entrevista com Volodia Teitelboim<br />

Regina Rodríguez<br />

Fotos<br />

Josué Barrios<br />

e Archivo <strong>de</strong> la Fundación Pablo Neruda<br />

Documentação<br />

María Andrés Salazar.<br />

Biblioteca Nacional <strong>de</strong> Chile<br />

Ilustração<br />

Gabriela Cánovas, pintora chilena<br />

57<br />

O escritor chileno Volodia Teitelboim acaba<br />

<strong>de</strong> lançar em Portugal a biografia <strong>de</strong><br />

Neruda. O livro é um olhar profundo so-<br />

bre os gran<strong>de</strong>s acontecimentos do século<br />

XX que ambos partilharam na dupla posição<br />

<strong>de</strong> poetas e homens comprometidos.<br />

Volodia foi secretário-geral do Partido<br />

Comunista Chileno, senador, mas sobretudo<br />

testemunha lúcida e activa do seu tempo.<br />

Com quase 90 anos, mantém a vivacida<strong>de</strong><br />

do seu pensamento e a esperança <strong>de</strong> que<br />

o direito das pessoas à felicida<strong>de</strong> seja<br />

uma realida<strong>de</strong>.


VIDAS CONTADAS 58<br />

59<br />

Em sua casa, discreta, situada num belo bairro <strong>de</strong> Santiago,<br />

repleto <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong> pássaros, Volodia acaricia a sua gata<br />

Miel, enquanto olha a história com uma serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem<br />

viveu muito e conseguiu compreen<strong>de</strong>r algumas coisas, sem<br />

per<strong>de</strong>r a confiança no ser humano. Falamos da amiza<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

poesia, <strong>de</strong> política e dos sonhos que ainda tem. Vai conver-<br />

sando, incansável, com um tom profundo e doce, sem afectação,<br />

pura sabedoria.<br />

Sabemos que a sua amiza<strong>de</strong> com Neruda durou mais <strong>de</strong> quarenta anos. Como começou?<br />

A amiza<strong>de</strong> com Neruda iniciou-se com um poeta ausente.<br />

Eu era um adolescente que estudava no liceu <strong>de</strong> Talca, e o professor<br />

<strong>de</strong> castelhano, um dia, levou para a aula um livro <strong>de</strong><br />

poesia e começou a ler, com gran<strong>de</strong> entusiasmo, poemas <strong>de</strong><br />

amor que se atreviam a falar muito directamente <strong>de</strong> sexo, algo<br />

que nessa época, nos anos 1924-25, era inaceitável. Eu, ainda<br />

criança, <strong>de</strong>scobri que o idioma, a língua serve não só para comunicar<br />

com o outro, mas também para que a palavra mágica<br />

provoque certo estremecimento. Depois, já maduro, pareceu-<br />

-me que ela representava a <strong>de</strong>scoberta da beleza. Gabriela Mistral,<br />

através das suas rimas infantis, foi a «Mãe» que nos levou<br />

a <strong>de</strong>scobrir a poesia. Des<strong>de</strong> então, eu procurava-a porque necessitava<br />

<strong>de</strong>la, porque algo em mim requeria essa presença<br />

enigmática. Então, quando cheguei a Santiago para estudar na<br />

universida<strong>de</strong>, já tinha duas <strong>de</strong>finições que foram duas linhas<br />

paralelas na minha vida: a poesia e a política.<br />

Em 1932, li no jornal que Neruda ia dar um recital, mas<br />

eu era um rapaz tímido, tinha 16 anos e não podia aproximar-<br />

-me <strong>de</strong> um homem famoso. Sentei-me na galeria com a esperança<br />

<strong>de</strong> vê-lo e ouvi-lo. Ouvi-o, mas não o vi porque ele fez<br />

todo o seu recital atrás <strong>de</strong> uns enormes biombos chineses que<br />

lhe tapavam todo o corpo. A sua poesia era enigmática e <strong>de</strong>sconcertante<br />

porque não tinha nada a ver com os vinte poemas,<br />

era mais complicada, mais complexa, eram poemas <strong>de</strong> Resi<strong>de</strong>ncia<br />

en la Tierra. Então, não o conheci. Foi em 1937, quando ele<br />

regressou da Ásia, que o fui entrevistar. Recebeu-me muito<br />

bem e aí começou a nossa amiza<strong>de</strong>; quando Neruda vivia no<br />

Chile, e não estava <strong>de</strong>sempenhando cargos diplomáticos, víamo-nos<br />

todos os dias. Começou como amiza<strong>de</strong> jornalística,<br />

<strong>de</strong>pois tornou-se política, a seguir poética, no sentido do interesse<br />

pela poesia, e, finalmente, pessoal, quotidiana, partilhávamos<br />

tudo, ele tomava a iniciativa porque era intruso, era curioso,<br />

era intrometido, gostava muito <strong>de</strong> participar da vida das<br />

pessoas e fazê-las mais felizes, se pu<strong>de</strong>sse.


A FIGURA MATERNA<br />

A mãe <strong>de</strong> Neruda morreu <strong>de</strong> parto. Como influiu este facto na sua poesia?<br />

Eu creio que influiu em tudo, influiu na sua vida, influiu na<br />

sua poesia, influiu na sua relação com as mulheres. Eu creio que<br />

Neruda não procurava a beleza clássica, nem sequer quando era<br />

um homem maduro lhe interessavam as jovens, mas sim as mulheres<br />

maduras. Ele não se aproximava das mulheres <strong>de</strong>slumbrantes,<br />

famosas pela sua beleza. A sua primeira esposa, Delia <strong>de</strong>l Carril,<br />

«A Formiga», tinha mais vinte anos que ele. Eu creio que, <strong>de</strong><br />

um modo inconsciente, estava procurando a mãe que nunca tinha<br />

conhecido, mas cuja falta sentiu durante toda a vida, apesar<br />

<strong>de</strong> ter tido uma mãe substituta que o amou e o tratou muito<br />

bem, mas esse vínculo sanguíneo era absolutamente único.<br />

A POESIA: NERUDA QUIS SER A SUA PRÓPRIA VANGUARDA<br />

Referindo-se à palavra «sauda<strong>de</strong>», Neruda disse no Crepusculario: «essa doce palavra <strong>de</strong> perfumes ambíguos».<br />

Porquê essa tristeza da sua primeira fase?<br />

Porque tudo tinha sido irregular, o seu nascimento significou<br />

a morte da sua mãe, porque teve <strong>de</strong> viver em casa <strong>de</strong> familiares,<br />

avós, amamentado por uma camponesa que estava criando...<br />

creio que sentia a falta da mãe. O pai levava-o a um Temuco<br />

que acabava <strong>de</strong> nascer<br />

(Temuco era a cida<strong>de</strong><br />

mais jovem do Chile, fundada<br />

em 1885), um<br />

acampamento militar<br />

construído à custa do <strong>de</strong>sterro<br />

da população indígena<br />

que ocupava essas<br />

«Eu creio que Neruda não<br />

procurava a beleza clássica<br />

nas mulheres»<br />

terras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais, era uma cida<strong>de</strong> que nascia e<br />

também uma vida que nascia difícil, com uma situação familiar<br />

que não era próspera. O pai conseguiu trabalho nos caminhos-<br />

-<strong>de</strong>-ferro e levava-o consigo nas suas viagens até à selva profunda.<br />

E é uma tristeza que se agudiza quando está no Oriente, tem a ver com a sua condição <strong>de</strong> estrangeiro?<br />

Ele parte para o Oriente, creio, para escapar do Chile. Aqui havia<br />

conhecido uma glória precoce, mas estava a afundar-se na companhia<br />

dos seus amigos <strong>de</strong> geração, os poetas malditos da boémia.<br />

Eram jovens <strong>de</strong> 20 anos como ele, assediados pela tuberculose, que<br />

era o gran<strong>de</strong> fantasma da juventu<strong>de</strong>. Eram tempos em que se morria<br />

facilmente, sobretudo os que não comiam e se embebedavam todos<br />

os dias, e ele sabia que tinha <strong>de</strong> viver, como um impulso <strong>de</strong> sobrevivência<br />

natural, mas também porque ele se sabia poeta, sabia que ainda<br />

não havia dito tudo o que tinha para dizer e queria escapar para<br />

uma terra on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse fugir a este tipo <strong>de</strong> vida, concentrar-se em si<br />

mesmo. Desejava mudar a sua poesia, eram os tempos da vanguarda,<br />

chegavam todas estas mensagens indirectas <strong>de</strong> Paris, conhecia a


VIDAS CONTADAS 60<br />

61<br />

poesia francesa, Bau<strong>de</strong>laire, Mallarmé, começava a falar-se <strong>de</strong> uma<br />

poesia distinta, <strong>de</strong> Apollinaire e outros. Ele queria mudar, mas não<br />

queria mudar em Paris, queria ser a sua própria vanguarda e fê-lo reconcentrando-se<br />

em si mesmo, na inóspita vida asiática on<strong>de</strong> estava<br />

sozinho e podia conversar consigo mesmo. Daí nasceu essa poesia<br />

que é um corte radical com a sua poesia anterior que é a primeira<br />

Resi<strong>de</strong>ncia, um livro fundamental na poesia latino-americana. Queria<br />

sobreviver como poeta, di-lo num verso: «el lugar que yo quiero<br />

guardar para mí eternamente». Era um homem consciente do seu<br />

valor e da sua responsabilida<strong>de</strong> perante si próprio e o mundo.<br />

Diz Gonzalo Rojas que Gabriela Mistral é a poetisa fundamental. É pouco conhecida na Europa, embora tenha<br />

recebido o primeiro prémio Nobel para um poeta da América Latina, em 1945. Qual foi a relação <strong>de</strong> Neruda com<br />

Gabriela Mistral?<br />

Qual é a teoria <strong>de</strong> Neruda sobre os elefantes e os poetas?<br />

Eu, que admiro muito Gonzalo Rojas, creio que é o melhor<br />

poeta chileno vivo, sublinho na sua <strong>de</strong>claração a palavra fundamental.<br />

Gabriela é uma poetisa dos fundamentos, ou seja, da vida, da<br />

infância, da morte também; aí estão os seus Sonetos <strong>de</strong> la Muerte, e<br />

Neruda creio que a sentiu assim. Escrevia versos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> miúdo e<br />

não tinha um juízo alheio que lhe dissesse se estavam bem ou<br />

mal, até que chegou a Temuco, proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Punta Arenas, esta<br />

mulher que era directora do liceu e da qual Neruda conhecia Los<br />

Sonetos <strong>de</strong> la Muerte. Porque Gabriela Mistral não tinha publicado nenhum<br />

livro, mas era muito conhecida pelos livros <strong>de</strong> leitura dos<br />

liceus que haviam reproduzido os seus poemas. Neruda, menino,<br />

tinha estudado por esses textos e sabia-os <strong>de</strong> cor, então quis atrever-se<br />

e levou uns quantos versos seus para que ela lhe <strong>de</strong>sse<br />

uma opinião. Gabriela, muito severa e muito verda<strong>de</strong>ira, disse ao<br />

miúdo que tem 14 ou 15 anos: «há em si um poeta», mas tem<br />

<strong>de</strong> trabalhar muito, leia muito, não só poesia, mas também romance,<br />

e não literatura francesa, «leia os russos, Tolstoi e Dostoievski».<br />

Neruda seguiu o seu conselho e, entre esses gran<strong>de</strong>s<br />

escritores, também leu Eça <strong>de</strong> Queirós.<br />

Neruda sempre manteve uma excelente relação com Gabriela<br />

Mistral, coisa que tem importância porque alguns trataram <strong>de</strong><br />

inimizá-los na base <strong>de</strong> que um era melhor que o outro, mas eles<br />

nunca aceitaram participar nessa discórdia fabricada.<br />

Na época da polémica dos poetas no Chile, em 1935, Neruda<br />

disse: «Lamento esta polémica entre os escritores, <strong>de</strong>veriam<br />

apren<strong>de</strong>r com os elefantes, são tão gran<strong>de</strong>s e convivem pacificamente<br />

na selva; sejamos como os elefantes.»<br />

O senhor disse que, em Espanha, Neruda recupera a confiança em si mesmo. Porquê?<br />

Porque no Chile era flagelado pelo seu grémio, por aqueles<br />

que, tendo <strong>de</strong>z anos mais que ele e aspirando a conquistar o galardão<br />

mundial da poesia, e vêem que um provinciano, fraco,<br />

azeitonado, verdoso, morto <strong>de</strong> fome, que havia feito parte <strong>de</strong>sse


Os espanhóis são mais generosos com ele?<br />

bando <strong>de</strong> indigentes e famintos começa a subir na vida literária e<br />

os vai eclipsando a todos. Há uma gran<strong>de</strong> campanha contra ele,<br />

particularmente por parte <strong>de</strong> Vicente Huidobro.<br />

Ao invés, chega a Espanha, é recebido <strong>de</strong> braços abertos por<br />

García Lorca e por toda a nova geração, a chamada geração <strong>de</strong> 27.<br />

Lorca apresenta-o na universida<strong>de</strong>, convidando a que se <strong>de</strong>scubra<br />

este poeta: «Muitos dos poetas que chegam da América têm uma<br />

certa marca parisiense; ao contrário, este poeta há que lê-lo com<br />

atenção porque é a voz <strong>de</strong> um continente, é um gran<strong>de</strong> poeta.»<br />

Convidam-no para director da revista Caballo Ver<strong>de</strong>, ele aceita e, aí,<br />

comete o gran<strong>de</strong> agravo contra o «papa» espanhol da poesia pura<br />

– Juan Ramón Jiménez – porque escreve um texto, «Por una poesía<br />

sin pureza». E isto é uma revolução na poesia porque proclama<br />

o direito <strong>de</strong> as coisas simples, supostamente Prosaicas, entrarem<br />

na casa da poesia, sempre que tenham a condição <strong>de</strong> rei Midas,<br />

<strong>de</strong> transformarem em ouro tudo o que tocam. Porque, se há<br />

um verda<strong>de</strong>iro poeta que po<strong>de</strong> falar da coisa mais mesquinha e a<br />

converte numa poesia significativa, gran<strong>de</strong>, que estremeça o coração<br />

humano, isso transforma-se em poesia, abre as portas. É uma espécie<br />

<strong>de</strong> proposição <strong>de</strong>mocratizadora da poesia, uma anunciação<br />

da sua própria poesia e, inclusive, daqueles que se sentem antipoetas<br />

porque a antipoesia também tem <strong>de</strong> ser poesia.<br />

Tudo isso começa, mas logo se enche <strong>de</strong> sangue porque vem<br />

a guerra e então ele próprio vai pôr em prática a sua teoria, isso<br />

lho impõe a história, o que está vendo com os seus olhos, sofrendo<br />

directamente.


VIDAS CONTADAS 62<br />

63<br />

O que lhe evoca o nome <strong>de</strong> García Lorca em relação com Neruda?<br />

Eram duas personalida<strong>de</strong>s muito distintas: García Lorca era a<br />

graça espanhola, talvez com alguma raiz cigana, que fazia da vida<br />

uma fantasia, que tinha <strong>de</strong> lhe agregar sempre algo que saísse<br />

dos eixos, no sentido <strong>de</strong> acrescentar beleza, porque ele sentava-se<br />

ao piano, cantava, era amigo <strong>de</strong> toureiros... toda esta coisa andaluza,<br />

forte; Neruda era a anti-Andaluzia, embora ele não o quisesse,<br />

porque vinha <strong>de</strong> uma zona chuvosa, solitária, <strong>de</strong>sconstruída,<br />

com um péssimo <strong>de</strong>senvolvimento verbal, porque as pessoas<br />

dali quase não falam. E, <strong>de</strong> repente, conhece García Lorca<br />

em Buenos Aires, com quem havia partilhado a história <strong>de</strong> recitar<br />

em grupo, e isto naturalmente repete-se em Espanha e todos os<br />

jovens espanhóis consi<strong>de</strong>ram que ele é um marco novo na poesia<br />

<strong>de</strong> língua espanhola não só da poesia latino-americana, mas também<br />

para eles. Ali conheceu o direito à alegria. Neruda disse que<br />

García Lorca irradiava felicida<strong>de</strong>, criava situações <strong>de</strong> prazer para<br />

os outros, o gosto pelas conversas e por uma certa <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

uma geração grandiosa, não só na poesia, mas também na pintura,<br />

é a geração <strong>de</strong> Picasso e <strong>de</strong> Dalí.<br />

A POLÍTICA: A GUERRA TRANSFORMA O OLHAR DO POETA<br />

Depois da Guerra Civil Espanhola e com a <strong>de</strong>rrota da República, Neruda pe<strong>de</strong> para ser enviado como cônsul<br />

especial para a emigração espanhola. Porquê?<br />

A Guerra Civil atira-o para a política. Em criança, no Chile, tinha<br />

gran<strong>de</strong> inclinação para o povo, mas eram inclinações anárquicas.<br />

Quando chegou a Espanha, disse: «Eu não sou comunista nem<br />

socialista, sou antifascista ou esquerdista, essa é a minha <strong>de</strong>finição.»<br />

Nesse momento, simultaneamente com a revista que Neruda<br />

dirige, que é claramente literária, há outra revista dos republicanos<br />

dirigida pelo seu gran<strong>de</strong> amigo Rafael Alberti que se chama El Mono<br />

Azul. Rafael Alberti diz-lhe: «Porquê isto <strong>de</strong> Caballo Ver<strong>de</strong>? Não há<br />

cavalos ver<strong>de</strong>s. Tens <strong>de</strong> assumir uma atitu<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>finida». «Sou<br />

poeta», respon<strong>de</strong>-lhe Neruda. Mas a guerra lança-o na política, a<br />

guerra transforma-o e diz: «Eu, da Guerra <strong>de</strong> Espanha, saí com outros<br />

olhos e olhei o mundo <strong>de</strong> maneira diferente.»<br />

Neruda ocupou-se pessoalmente do envio para o Chile do barco Winnipeg repleto <strong>de</strong> refugiados espanhóis<br />

republicanos. O senhor fala também <strong>de</strong> um barco português que realizou um feito similar e saiu para a América<br />

Latina a partir <strong>de</strong> Casablanca...<br />

Algum português do meu tempo <strong>de</strong>ve recordá-lo, o barco<br />

chamava-se Serpa Pinto. Foi um gesto muito nobre porque essas<br />

pessoas estavam na iminência <strong>de</strong> morrer.<br />

Era uma época em que a América era um continente <strong>de</strong> acolhimento para os europeus. Acha que a Europa<br />

esqueceu isto ou tem boa memória?<br />

Eu creio que o século XXI ou, <strong>de</strong> modo mais empolado, o<br />

terceiro milénio será uma época em que as relações entre os povos


Volodia e Neruda na época da construção da casa La Chascona, Santiago, 1953<br />

vão sofrer uma mudança colossal. Para mim, o mais importante<br />

<strong>de</strong>sta mudança é a i<strong>de</strong>ia da mestiçagem a que se está a assistir na<br />

Europa. A gente do Magrebe vai para Espanha, Portugal e França, e<br />

chega também a gente do Leste. Isto ocorre também na América,<br />

porque a América Latina está a entrar nos EUA com um vigor<br />

enorme, o que faz García<br />

Márquez dizer que, no ano<br />

2050, os EUA serão uma fusão,<br />

um encontro ou um <strong>de</strong>sencontro<br />

entre o latino e o<br />

saxão. Então, vamos fazer a<br />

fusão que, por outro lado, é<br />

«Era um homem consciente<br />

do seu valor e da sua<br />

responsabilida<strong>de</strong> perante<br />

o mundo»<br />

a história e a riqueza da humanida<strong>de</strong>; essa diversida<strong>de</strong>, essa mescla,<br />

essa mestiçagem é algo que me dá a maior confiança. Há elementos<br />

religiosos fundamentalistas que agora se manifestam com<br />

mais força do que no passado, mas esses fundamentalismos partem<br />

do princípio <strong>de</strong> que uma pessoa é superior a outra e que a<br />

sua convivência é impossível. Há que esperar que se aceite o contrário,<br />

porque um é a morte e o outro é a vida e o tesouro maior.<br />

A propósito <strong>de</strong>ste tema, o senhor diz que é fundamental porque se encontra com a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> latino-americana.<br />

Sim, claro, Neruda, curiosamente, estava sempre ro<strong>de</strong>ado pelo<br />

povo mapuche porque o seu pai o levava aos três ou quatro<br />

anos à zona da Frontera, que se chama assim porque até ali chegava<br />

o «Chile branco», para lá vivem os mapuches e não se po<strong>de</strong><br />

passar sem a sua autorização. Neruda chegou lá, conheceu-os, viu<br />

a sua situação <strong>de</strong>teriorada, a inferiorida<strong>de</strong> imposta <strong>de</strong> fora pelo<br />

preconceito, a negação dos seus direitos, mas não fez disso tema<br />

principal. Sendo já famoso, explica por que se pronuncia a favor


VIDAS CONTADAS 64<br />

65<br />

da justiça e da causa dos aborígenes: «Pela <strong>cultura</strong>, formei uma<br />

consciência com base nos antece<strong>de</strong>ntes, nas leituras e vejo que<br />

correspon<strong>de</strong> à realida<strong>de</strong> que eu também vivi.» Neruda tinha a<br />

obsessão <strong>de</strong> criar a Universida<strong>de</strong> da Araucânia on<strong>de</strong> se ensinasse o<br />

idioma mapuche, o mapudungum, para que o Chile tivesse consciência<br />

<strong>de</strong> que não é um país <strong>de</strong> uma só vertente, mas um país<br />

pluri<strong>cultura</strong>l.<br />

O poema «Alturas <strong>de</strong> Machu Picchu» <strong>de</strong>svenda a transcendência <strong>de</strong>sse lugar?<br />

Machu Picchu é a imagem sintética, con<strong>de</strong>nsada <strong>de</strong> toda a<br />

América, particularmente da América Latina, <strong>de</strong>sse mundo pré-<br />

-colombino, com toda a majesta<strong>de</strong> e significação que tem.<br />

Machu Picchu existia antes <strong>de</strong> Neruda, mas esta <strong>de</strong>scoberta que<br />

ele faz converte a sua poesia numa gran<strong>de</strong> poesia que vai <strong>de</strong>svendar<br />

aos olhos <strong>de</strong> quem a lê e também dos governos que ali há algo que<br />

é muito mais do que parece, o passado da América. Quem vai a Machu<br />

Picchu também po<strong>de</strong> recuperar a América antes da chegada dos<br />

conquistadores: havia uma civilização própria, havia uma <strong>cultura</strong>,<br />

havia uma mitologia, uma filosofia, uma história, una medição do<br />

tempo. Mas, no poema, Neruda não faz – há que sublinhar isto – o<br />

elogio do Inca nem dos sábios. A ele, interessam-lhe o «João corta-<br />

-pedras» e o «João pé-<strong>de</strong>scalço», ou seja, os inonimados, os anónimos<br />

que construíram essa cida<strong>de</strong>la e que nunca foram nomeados, os<br />

sem-nome da história. Ele fala não só para quem não o po<strong>de</strong> ouvir,<br />

mas também para os aborígenes que estão ali, que estão no Peru,<br />

que estão em toda a parte e diz-lhes: «Sube a nacer conmigo hermano,<br />

hablad con mis palabras y mi sangre.» Converte-o num manifesto<br />

revolucionário dirigido aos povoadores da América.<br />

Neruda foi perseguido pelo governo <strong>de</strong> González Vi<strong>de</strong>la em 1946. Saiu do Chile ajudado por muitas pessoas. Lembra-se<br />

como foi?<br />

Era uma operação clan<strong>de</strong>stina que <strong>de</strong>via fazer-se com reserva<br />

e ninguém podia saber que eu estava envolvido nessa missão. Estávamos<br />

em 1946, terminara no ano anterior a Segunda Guerra<br />

Mundial, e González Vi<strong>de</strong>la persegue os comunistas e quem o<br />

elegeu. É a guerra fria, e o presi<strong>de</strong>nte do Chile tinha <strong>de</strong> estar <strong>de</strong><br />

acordo com os EUA a qualquer preço, inclusive o preço <strong>de</strong> queimar<br />

todas as suas ban<strong>de</strong>iras e perseguir aqueles que o tinham<br />

apoiado, entre eles Neruda. Neruda <strong>de</strong>nunciou a traição, acusouo<br />

no Senado e enviou o texto do discurso ao proprietário do El<br />

Nacional, na Venezuela, «Carta para millones». Isso <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />

uma furiosa perseguição. Neruda entrou na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>. Eu<br />

convivi com Neruda durante esse tempo e <strong>de</strong>i-me conta do seu<br />

sentido <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Foi ali, na clausura, que escreveu a<br />

maior parte do seu Canto Geral on<strong>de</strong> faz uma verda<strong>de</strong>ira «biografia<br />

da América», <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que surgiu em tempos imemoriais e estava<br />

sozinho porque não havia ninguém. O homem vem pelo lado<br />

asiático, através do estreito <strong>de</strong> Bering, do Norte, numa espécie <strong>de</strong><br />

caminhada que dura 10 mil anos e que lhe permite povoar <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o Alasca até à Terra do Fogo. Neruda converte-se numa espécie <strong>de</strong>


Volodia e Neruda no México, 1949<br />

secretário da história, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a sua condição <strong>de</strong> cronista e diz<br />

que não se vai calar em relação aos tempos contemporâneos, inclusive<br />

faz pagar o preço da infâmia a González Vi<strong>de</strong>la e a outros<br />

que o acompanharam, nomeando-os no livro e contando as suas<br />

malfeitorias, algo que foi criticado por alguns porque dizem que<br />

<strong>de</strong>sfeiam a sua poesia, mas é uma poesia combatente, uma poesia<br />

«punitiva» para castigar o malvado.<br />

Há uma profunda imbricação entre a sua vida e a <strong>de</strong> Neruda com os gran<strong>de</strong>s acontecimentos do século. Que influência<br />

po<strong>de</strong> ter tido o golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong> 1973 na morte <strong>de</strong> Neruda? Para muitos, foi uma<br />

surpresa que tivesse morrido poucos dias <strong>de</strong>pois do golpe.<br />

Teve uma influência muito directa. Após a eleição, Allen<strong>de</strong> nomeia<br />

Neruda embaixador em França. De lá chegam notícias alarmantes<br />

sobre a sua saú<strong>de</strong>. Então, pe<strong>de</strong>m-me que vá ver o que se<br />

passa e qual é a sua enfermida<strong>de</strong>. Matil<strong>de</strong>, sua mulher, disse-me:<br />

«Pablo tem um cancro.» Os médicos dizem que é um cancro <strong>de</strong><br />

evolução retardada e que po<strong>de</strong> viver muito tempo, a não ser que<br />

ocorra algum transtorno fisiológico ou se dê um golpe <strong>de</strong>molidor<br />

<strong>de</strong> fora que afecte a sua saú<strong>de</strong>. Em Setembro <strong>de</strong> 1973, está doente<br />

na Isla Negra, mas espera ter tempo <strong>de</strong> receber, no seu 70.º aniversário,<br />

os sete livros que tinha escrito no seu leito. Morre poucos<br />

dias <strong>de</strong>pois do golpe <strong>de</strong> Estado... foi <strong>de</strong>masiado para ele.<br />

Qual é a sua relação pessoal com Portugal?<br />

PORTUGAL: FORMOSÍSSIMO, GRATO E GENEROSO<br />

Se tivesse <strong>de</strong> sair do Chile novamente, coisa que não <strong>de</strong>sejo,<br />

escolheria Portugal. Quando era jovem, lia Eça <strong>de</strong> Queirós,<br />

que era um gran<strong>de</strong> escritor português muito conhecido nos<br />

colégios <strong>de</strong>ssa época. Tem vários livros como O Crime do Padre


VIDAS CONTADAS 66<br />

67<br />

Amaro a partir do qual foi feito um filme, recentemente, mas<br />

também outros. Talvez tivesse sido silenciado por ser um autor<br />

anticlerical. Tem um livro que causou sensação porque era um<br />

livro radical, intitula-se A Relíquia e é uma crítica aos beatos<br />

que vão à Terra Santa para encontrar um pedacito da cruz <strong>de</strong><br />

Cristo. Há outro que se chama A Cida<strong>de</strong> e as Serras que é uma espécie<br />

<strong>de</strong> premonição do ecológico. Eça era um gran<strong>de</strong> narrador<br />

que envolvia o leitor.<br />

Que importância confere à publicação do seu livro em língua portuguesa?<br />

Portugal mostrou-se generoso, tudo foi surpreen<strong>de</strong>nte porque<br />

não foi um livro trabalhado por um agente literário, trabalhei<br />

com alguns portugueses que em dado momento leram esse<br />

livro em espanhol e pensaram que era necessário traduzi-lo para<br />

português.Trata-se também <strong>de</strong> um livro orientado para Portugal,<br />

país formosíssimo, grato, generoso, mo<strong>de</strong>sto na sua gran<strong>de</strong>za,<br />

náutico, admirável. O idioma português, marinheiro, navegador,<br />

é, além do mais, falado em meta<strong>de</strong> da América do Sul e, para<br />

mim, a relação entre estes dois idiomas <strong>de</strong> mãe comum é íntima.<br />

Des<strong>de</strong> a minha infância que gosto dos fados que se cantam em<br />

Portugal, formosíssimos, profundos, aí está também a sauda<strong>de</strong>.<br />

Por isso fiquei feliz com esta edição.<br />

Gabriela Mistral escreveu nas suas Crónicas sobre a Europa, a seguir ao título El escenario maravilloso<br />

<strong>de</strong> la nación portuguesa uma epígrafe que diz: «Quem tiver estada prolongada na Europa venha a estes<br />

Portugais recompor-se do seu cansaço.» A ternura vegetal portuguesa é a índole do país. Vai publicar a sua biografia<br />

<strong>de</strong> Gabriela Mistral em português?<br />

Seria algo justo e também uma <strong>de</strong>scoberta porque Gabriela<br />

está ofuscada por Neruda, sem que Neruda o preten<strong>de</strong>sse. Neruda<br />

é uma árvore muito frondosa que projecta muita sombra, não<br />

porque seja sua intenção, mas porque os outros o fazem assim.<br />

A MEMÓRIA: AS DITADURAS MALTRATAM AS CONSCIÊNCIAS<br />

Com estas obras, o senhor contribui para a recuperação da memória histórica. É uma missão assumida?<br />

Eu creio que o pior dano das ditaduras, juntamente com a<br />

atrocida<strong>de</strong> dos assassinatos, dos <strong>de</strong>saparecimentos e das violações,<br />

é um dano um pouco secreto, interno, é o dano que se produz<br />

nas consciências. O dano produzido ao ser humano, a um povo, a<br />

um país, é um dano que perdura. Essa é a razão pela qual eu escrevi<br />

estas biografias, para que os cidadãos <strong>de</strong>ste país e aqueles<br />

que sofreram a ditadura possam voltar à sua condição <strong>de</strong> países<br />

<strong>de</strong>mocráticos.<br />

Eu resistia a escrever algo que parecesse personalista porque<br />

temo muito os <strong>de</strong>smandos do ego, porque o vejo noutros escritores,<br />

o ego há que controlá-lo para que não se <strong>de</strong>sboque. Mas o<br />

meu filho, que tem mais <strong>de</strong> 50 anos, disse-me: «Tu tens uma<br />

obrigação, não po<strong>de</strong>s levar para <strong>de</strong>baixo da terra tudo o que viste,<br />

tudo o que viveste, as pessoas precisam <strong>de</strong> o saber.» Mas eu não


A gata <strong>de</strong> Volodia, Miel<br />

É também um resgate dos valores?<br />

quero falar <strong>de</strong> mim, insisto. «O eu existe, disse-me, e a única<br />

maneira <strong>de</strong> torná-lo suportável é rir-se <strong>de</strong> si mesmo».<br />

Sim, porque são valores permanentes. Nós não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong> um regime nem <strong>de</strong> um sistema, o que abraçamos é uma causa,<br />

uma gran<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ia, um i<strong>de</strong>al que é, no fundo, o humanismo, a<br />

humanida<strong>de</strong>, e isso nunca <strong>de</strong>saparecerá<br />

e não foi inventado no<br />

século XIX, apesar <strong>de</strong> Carlos<br />

Marx o ter visto pela sua própria<br />

óptica, atravessou, sim, milé-<br />

«Neruda conheceu<br />

em Espanha o direito<br />

à alegria»<br />

nios, as religiões, os sonhos dos gran<strong>de</strong>s transformadores ou dos<br />

pequenos maltratados pelo mundo que pensaram que seria bom<br />

ter uma vida diferente. Isso se moverá se alguém o está movendo,<br />

e esse alguém tem <strong>de</strong> ser uma multidão.<br />

Cortázar escreveu, referindo-se à herança <strong>de</strong> Neruda: «Sei que um dia voltaremos à Isla Negra, que o seu povo<br />

entrará por aquela porta e se encontrará em cada pedra, em cada folha <strong>de</strong> árvore, em cada grito <strong>de</strong> ave marinha,<br />

a poesia sempre viva <strong>de</strong>ste homem que tanto a amou.» Crê que a memória <strong>de</strong> Neruda está a ser fiel ao seu espírito<br />

e à sua obra?<br />

Há diversos usos <strong>de</strong> Neruda, há usos nerudianos e há usos<br />

extranerudianos, e Neruda já não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, foi incorporado<br />

na indústria <strong>cultura</strong>l, e isso é também o mercado, isso significa<br />

que há um Neruda pós-nerudiano ou contranerudiano, inclusive<br />

alguns interrogam-se: o que seria Neruda agora? Seria<br />

um poeta neoliberal? Nunca!<br />

Ele é um planeta, um mundo à sua disposição, e po<strong>de</strong>-se escolher<br />

uma ilha, uma montanha, o que cada um preferir. É como


VIDAS CONTADAS 68<br />

69<br />

os An<strong>de</strong>s, tem altos cumes como o Aconcagua e também muitas<br />

funduras, a sua obra também é assim, tem poemas esplêndidos e<br />

poemas que não alcançam essa categoria, algo compreensível,<br />

porque foi o poeta mais prolífico do século, mas há que consi<strong>de</strong>rá-lo<br />

na sua totalida<strong>de</strong>, não é possível esquartejá-lo. A sua obra é<br />

tão gigantesca, tão colossal que não creio que haja alguém que a<br />

conheça toda, continuarão os especialistas a estudá-lo <strong>de</strong> distintas<br />

maneiras, e os juízos po<strong>de</strong>m ser diferentes. A Neruda há que<br />

usá-lo, alguém po<strong>de</strong> roubar versos seus para fazer uma <strong>de</strong>claração<br />

<strong>de</strong> amor a uma míuda – Neruda estava encantado com esses roubos<br />

–, ele era propagandista do amor. Mas não se po<strong>de</strong> abusar <strong>de</strong><br />

Neruda para fabricar Nerudas que nunca existiram.<br />

OS SONHOS: É IMPORTANTE PROPOR O DIREITO AO PARAÍSO<br />

A epígrafe do seu último livro, Antes <strong>de</strong>l Olvido, diz: «Valparaíso foi <strong>de</strong>clarado pela UNESCO património da<br />

humanida<strong>de</strong>. Eu estou à espera que “o paraíso” seja <strong>de</strong>clarado património da humanida<strong>de</strong>.» Ou seja, o direito à<br />

felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os seres humanos, Neruda também o dizia, a começar pela <strong>de</strong>mocracia do almoço. Sonhava<br />

que a terra inteira seria ro<strong>de</strong>ada por uma gran<strong>de</strong> mesa circular e haveria uma ca<strong>de</strong>ira, uma colher e um prato<br />

para cada ser humano [ri!]. «Estamos nessa!» Lutar por um i<strong>de</strong>al, por um sonho, por um mundo mais justo! Por<br />

isso é muito importante propor o direito ao paraíso, que não se alcançará, mas permitirá adiantar algo, no sentido<br />

<strong>de</strong> tornar a vida melhor.<br />

Há um conto on<strong>de</strong> falo <strong>de</strong> um sonho que tive. Vêm visitar-<br />

-me os representantes das Ilhas Encantadas, porque sabem que<br />

eu sou propagandista do Paraíso Terreal. Dizem-me que o Paraíso<br />

Terreal são as Ilhas on<strong>de</strong> eles vivem e pe<strong>de</strong>m-me ajuda para que<br />

a UNESCO reconheça as Ilhas Encantadas como o Paraíso Terreal.<br />

Digo-lhes: Eu sou partidário não só para as Ilhas, mas também<br />

para toda a Humanida<strong>de</strong>. «O senhor está louco, isso nunca po<strong>de</strong>rá<br />

acontecer!», dizem-me. Nesse momento <strong>de</strong>sperto e fico com<br />

o discurso feito. Chama-se «Un sueño intervenido». Além disso,<br />

eu interrogava-me como é que eles conheciam esse livro, se ele<br />

ainda não havia saído.<br />

Uma jovem pediu-me que lhe fizesse esta pergunta: tem medo da morte?<br />

O jovem tem mais medo da morte que o velho, porque a vida<br />

nos vai aproximando da aceitação, que não é renúncia à vida.<br />

Queremos morrer o mais tar<strong>de</strong> possível... a morte é prematura<br />

[reflecte], mas, já que é um facto inevitável, aceitemo-la simplesmente<br />

como o último acto da vida.<br />

BIOGRAFIA DE VOLODIA TEITELBOIM VOLOSKY Filho <strong>de</strong> emigrantes, <strong>de</strong> pai ucraniano e mãe moldava, é um escritor imprescindível das letras chilenas. Publica <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1935 e conta com mais <strong>de</strong> vinte livros. Foi jornalista, ensaísta, romancista, poeta e biógrafo. Alguns dos seus romances, como Hijo <strong>de</strong>l Salitre (1952), La<br />

Semilla en la Arena (1957) ou La Guerra Interna (1979), foram traduzidos em vários idiomas. Entre os seus ensaios sobre a realida<strong>de</strong> latino-americana,<br />

contam-se: El Amanecer <strong>de</strong>l Capitalismo y la Conquista <strong>de</strong> América (1943), Hombre y Hombre (1969), El Oficio Ciudadano<br />

(1973), El Pan y las Estrellas (1973), Pólvora <strong>de</strong>l Exilio (1976), La Letra y la Sangre (1986), En el País Prohibido (1988). Publicou as biografias<br />

<strong>de</strong> Neruda, Gabriela Mistral, Vicente Huidobro e Borges. Durante 15 anos, na Rádio Moscovo, leu as suas crónicas, mais tar<strong>de</strong> recolhidas no livro Noches<br />

<strong>de</strong> Radio. El Tiempo es un Viaje.<br />

Jornalista, advogado, <strong>de</strong>putado, senador e secretário-geral do Partido Comunista do Chile até 1994.


«A «A morte é é simplesmente o o último acto da da vida»


A BIBLIOTECA DE BABEL 70<br />

Aventuras e <strong>de</strong>sventuras<br />

<strong>de</strong> uma biblioteca<br />

nos trópicos<br />

Lilia Moritz Schwarcz<br />

71


O TERREMOTO DE 1755<br />

OU «O MAL VEM DA TERRA»<br />

Em Portugal contava-se que o rei D.<br />

João I, conhecido como O <strong>de</strong> Boa Memória<br />

(1356-1433), já possuía uma boa biblioteca<br />

– ou livraria, como se chamava na<br />

época. D. Duarte (1391-1438), seu sucessor,<br />

<strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> à coleção, sendo ele<br />

mesmo um poeta e escritor.<br />

E assim caminhou<br />

a tradição: D. Afonso V<br />

(1432-1481) reuniu tantas<br />

obras valiosas que<br />

sua biblioteca passou a<br />

ser reconhecida como<br />

uma das mais famosas e<br />

completas do Velho<br />

Mundo. O fato é que no<br />

século XVIII o acervo<br />

real português era motivo<br />

<strong>de</strong> orgulho e avaliado<br />

como um dos melhores<br />

conjuntos bibliográficos<br />

<strong>de</strong> toda a Europa. D. João<br />

V (1689-1750) costumava<br />

dizer que os muitos<br />

mil volumes que<br />

compunham a Real Biblioteca<br />

quase não cabiam<br />

mais em seu gran<strong>de</strong><br />

edifício, no Palácio<br />

da Ribeira, e tinham importância<br />

maior que todo<br />

o ouro remetido do<br />

Brasil.<br />

Por sinal, o Seiscentos<br />

português é sempre<br />

lembrado em função da<br />

riqueza e do luxo que o<br />

ouro do Brasil trouxe<br />

para a corte portuguesa.<br />

Gran<strong>de</strong>s festas, procissões, edificações majestosas<br />

como Mafra, uma corte mais<br />

mundana... muitos eram os sinais do brilho<br />

fácil que chegava em Lisboa. Junto<br />

com tanto fausto, também a Real Biblioteca<br />

foi sendo aumentada, bem ao gosto dos<br />

tempos: livros, incunábulos, códices, manuscritos,<br />

mapas, obras <strong>de</strong> arte e alguns<br />

objetos para romper com a monotonia<br />

dos livros. Por essas e por outras é que a<br />

livraria real era quase um troféu, uma es-<br />

Livros narram<br />

histórias, mas assim<br />

«ajuntados» valem até<br />

boas aventuras.<br />

Para o país<br />

recém-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />

uma Biblioteca como<br />

essa contava muito:<br />

era a tradição<br />

acumulada<br />

que permanecia<br />

em uma nação<br />

<strong>de</strong> tradição recente<br />

e a ser inventada<br />

pécie <strong>de</strong> ícone da erudição e do conhecimento<br />

possíveis e assim acumulados.<br />

Mas a sina <strong>de</strong>ssa biblioteca iria mudar.<br />

No só o monarca D. João morria em 31 <strong>de</strong><br />

Julho <strong>de</strong> 1755, como no sábado, 1.º <strong>de</strong><br />

Novembro <strong>de</strong> 1755, Dia <strong>de</strong> Todos-os-Santos,<br />

um gran<strong>de</strong> terremoto caiu sobre Lisboa.<br />

Dizia uma testemunha, Francisco José<br />

Freire, em suas Memorias<br />

das principaes provi<strong>de</strong>ncias que<br />

se <strong>de</strong>rão no Terremoto, que pa<strong>de</strong>ceo<br />

a Corte <strong>de</strong> Lisboa no anno<br />

<strong>de</strong> 1755 que «[...] às<br />

nove horas e quatro minutos<br />

da manhã, estando<br />

o céu limpo, o ar sereno<br />

e o mar em calma, se<br />

viu Lisboa surpreendida<br />

com um Terremoto dos<br />

mais horrorosos que a<br />

tradição conserva, ou<br />

<strong>de</strong>screvem os livros. Seus<br />

efeitos provam esta verda<strong>de</strong>;<br />

porque em tão<br />

breve tempo <strong>de</strong>ixou reduzidos<br />

a ruínas quase<br />

todos os edifícios da<br />

mesma cida<strong>de</strong>, sepultando<br />

nos estragos um<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> seus<br />

habitadores, especialmente<br />

nos templos, que<br />

por ser dia <strong>de</strong> tanta solenida<strong>de</strong>,<br />

todos se achavam<br />

assistidos <strong>de</strong> numeroso<br />

povo».<br />

Pouco sobrou da capital<br />

dos portugueses.<br />

Devastada, elevava-se a<br />

mais <strong>de</strong> 30 mil o número<br />

<strong>de</strong> habitantes mortos<br />

por entre os escombros. E o que nos interessa<br />

mais <strong>de</strong> perto: o Paço da Ribeira foi<br />

<strong>de</strong>struído e, com ele, quase toda a Livraria<br />

<strong>de</strong> El Rey, que mais se parecia nesse momento<br />

com um amontoado <strong>de</strong> cinzas.<br />

Esse artigo conta um pouco da história<br />

<strong>de</strong>ssa Real Biblioteca que, reconstruída<br />

logo <strong>de</strong>pois do terremoto, se converteu<br />

em uma das metas políticas do governo<br />

pombalino. Depois disso acompanharia,<br />

com um pouco <strong>de</strong> atraso, a família real ao


A BIBLIOTECA DE BABEL 72<br />

73<br />

Brasil e se transformaria no pivô <strong>de</strong> uma<br />

batalha bibliográfica. A Livraria Real ficaria<br />

na ex-colônia americana e mostraria como<br />

a verda<strong>de</strong>ira in<strong>de</strong>pendência se faz, também,<br />

entre livros; muitos livros.<br />

«AJUNTANDO LIVROS»:<br />

NO MUNDO DAS BIBLIOTECAS<br />

Logo <strong>de</strong>pois do incêndio que se seguiu<br />

ao terremoto, junto com os trabalhos<br />

que começavam a reconstruir e a reinventar<br />

a velha Lisboa, o rei D. José I empenhou-se<br />

em resgatar as sobras do fogo e a dar início<br />

a uma nova coleção. A partir da compra<br />

<strong>de</strong> acervos privados, da requisição <strong>de</strong><br />

livros <strong>de</strong> alguns mosteiros,<br />

da incorporação <strong>de</strong><br />

bibliotecas dos jesuítas<br />

(expulsos <strong>de</strong> Portugal e<br />

<strong>de</strong> suas colônias), ou<br />

doações (como as <strong>de</strong><br />

Diogo Barbosa Machado<br />

e <strong>de</strong> G. Dugood), a Real<br />

Biblioteca, agora no Palácio<br />

da Ajuda, não parou<br />

<strong>de</strong> crescer, mesmo<br />

após a morte <strong>de</strong> D. José,<br />

em 1777.<br />

Em finais do século<br />

XVIII estava recomposta.<br />

Po<strong>de</strong>-se imaginar o trabalho<br />

e quantos esforços<br />

<strong>de</strong>positavam-se a seu redor.<br />

Sua importância<br />

não residia apenas no<br />

valor monetário dos livros,<br />

mapas, estampas,<br />

etc. A biblioteca expressava<br />

aspirações, projetos<br />

e representações <strong>de</strong> uma<br />

monarquia culta e marcada<br />

por esse acervo que<br />

revelava o universo intelectual da elite<br />

portuguesa ou, ao menos, o que se imaginava<br />

significar a erudição naquele momento.<br />

Mas a nova Biblioteca trazia as aspirações<br />

dos novos tempos, e do po<strong>de</strong>roso<br />

ministro <strong>de</strong> D. José I, o marquês <strong>de</strong> Pombal.<br />

A Livraria seria então convertida numa das<br />

pontas <strong>de</strong> lança do iluminismo português,<br />

por certo paradoxal entre seus movimentos<br />

Assim, a Real Biblioteca<br />

passou a fazer parte<br />

do novo país, mudou<br />

<strong>de</strong> nome ao longo<br />

dos anos, adicionou<br />

aquisições e doações<br />

ao seu acervo até<br />

tornar-se, segundo<br />

a UNESCO, na oitava<br />

instituição do gênero<br />

no mundo<br />

<strong>de</strong> abertura e <strong>de</strong> cerceamento e censura.<br />

Os livros apreendidos eram incorporados<br />

à Biblioteca que, por sua vez, era frequentada<br />

apenas por funcionários ou pessoas<br />

ligadas à corte.<br />

No entanto, a sorte da política portuguesa<br />

estava também para virar. Com a<br />

morte do rei D. José e a ascensão <strong>de</strong> sua filha<br />

D. Maria I, tudo que lembrasse a Pombal<br />

seria <strong>de</strong>stituído, substituído ou postergado<br />

e o mesmo ocorreria com a sorte da<br />

Real Livraria.<br />

Por sinal, nessa época iniciavam-se os<br />

trabalhos <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> uma nova biblioteca<br />

– a Real Biblioteca Pública – instalada<br />

bem no Terreiro do Paço<br />

e organizada segundo<br />

princípios mais mo<strong>de</strong>rnos.<br />

À frente estava António<br />

Ribeiro dos Santos,<br />

um profissional acostumado<br />

com a reforma<br />

da Biblioteca <strong>de</strong> Coimbra<br />

e que imprimiria<br />

nova direção aos trabalhos<br />

em Lisboa.<br />

Mas <strong>de</strong>ixemos essa<br />

disputa um pouco <strong>de</strong> lado,<br />

uma vez que o ambiente<br />

não estava para<br />

esse tipo <strong>de</strong> contenda. A<br />

política internacional<br />

andava remexida e o<br />

exército napoleônico estava<br />

para chegar em terras<br />

portuguesas.<br />

A VIAGEM:<br />

HOMENS<br />

E LIVROS AO MAR<br />

Diante da iminente<br />

invasão das tropas francesas,<br />

em novembro <strong>de</strong> 1807, o príncipe<br />

regente <strong>de</strong> Portugal, D. João, a família real<br />

e parte da corte – uma multidão estimada<br />

em 10 mil pessoas – que conseguira embarcar<br />

apressadamente nos 36 navios levantaram<br />

ferros <strong>de</strong> Lisboa, rumo ao Brasil,<br />

sua colônia d’além mar. Foram quase dois<br />

meses em alto mar, intempéries, água<br />

pouca e limpeza nenhuma, piolhos, tempesta<strong>de</strong>s<br />

e inseguranças <strong>de</strong> todo tipo.


E se a Real Biblioteca não veio junto,<br />

pois lugar não havia, sua história ficou ligada<br />

ao fado dos Bragança que, em inícios<br />

do século XIX, lidavam com os impasses<br />

criados pela França e pela Inglaterra: as<br />

duas gran<strong>de</strong>s nações que disputavam nesse<br />

contexto o controle político e econômico<br />

da Europa.<br />

Diante <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>s<br />

e da situação frágil vivenciada pela<br />

metrópole – sem dirigentes reais a partir<br />

<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1807 e sempre exposta a<br />

novas invasões –, a saída (tantas vezes <strong>de</strong>senhada)<br />

foi optar pela transferência para<br />

a rica colônia brasileira. E era o próprio<br />

príncipe regente quem,<br />

já em terras tropicais e<br />

dando-se conta da falta,<br />

or<strong>de</strong>na a vinda <strong>de</strong> seus<br />

acervos <strong>de</strong> livros e documentos,<br />

como se não<br />

fosse possível governar<br />

apartado <strong>de</strong>les.<br />

Na verda<strong>de</strong>, a pressa<br />

do embarque, em finais<br />

<strong>de</strong> 1807, havia feito das<br />

suas, mas não impediu<br />

que, entre a multidão <strong>de</strong><br />

nobres e muitas bagagens,<br />

viesse boa parte<br />

dos documentos políticos<br />

e administrativos do<br />

Estado lusitano. A mesma<br />

atenção não coube,<br />

porém, à Real Biblioteca.<br />

Por mais que se tenha<br />

alar<strong>de</strong>ado, no navio Medusa,<br />

acondicionada precariamente,acomodouse<br />

apenas a biblioteca<br />

do Con<strong>de</strong> da Barca. O<br />

imenso acervo ficou esquecido<br />

no porto e teve que ser guardado,<br />

novamente, às pressas.<br />

Mas com a segunda invasão francesa,<br />

em 1810, a partida da Real Livraria seria<br />

questão <strong>de</strong> tempo. Entraria na colônia em<br />

três remessas, como se a ilustração chegasse<br />

ao Brasil em caixotes e sem aviso expresso.<br />

Tanto esforço <strong>de</strong>veria valer a pena.<br />

Composta por dois acervos – o da Livraria<br />

do Rei e o da Casa do Infantado, este <strong>de</strong>s-<br />

Diante da iminente<br />

invasão das tropas<br />

francesas,<br />

em novembro <strong>de</strong> 1807,<br />

o príncipe regente<br />

<strong>de</strong> Portugal, D. João,<br />

a família real e parte<br />

da Corte levantaram<br />

ferros <strong>de</strong> Lisboa, rumo<br />

ao Brasil, sua colônia<br />

d’além-mar<br />

tinado ao uso dos príncipes –, a Real Biblioteca<br />

era consi<strong>de</strong>rada na época uma das<br />

maiores e melhores bibliotecas do mundo.<br />

O acervo não veio inteiro <strong>de</strong>vido às<br />

óbvias dificulda<strong>de</strong>s da partida. Do que ficara,<br />

certamente bem escondido para escapar<br />

dos butins dos tempos <strong>de</strong> guerra,<br />

outro lote aportaria no Brasil em 1811,<br />

com o bibliotecário Luís Joaquim dos Santos<br />

Marrocos. É certo que o príncipe regente<br />

queria mais, e uma outra leva aportou<br />

poucos meses <strong>de</strong>pois, ainda em 1811.<br />

Chegara mesmo a or<strong>de</strong>nar a vinda <strong>de</strong> documentos<br />

constantes na Torre do Tombo e<br />

livros da Real Biblioteca Pública <strong>de</strong> Lisboa,<br />

mas o que veio foi o<br />

bastante para que em<br />

1876 Ramiz Galvão, então<br />

diretor da Biblioteca,<br />

afirmasse que naquele<br />

conjunto estavam reunidas<br />

«todas as províncias<br />

do saber humano».<br />

Vale a pena perguntar<br />

por que em meio ao<br />

caos dos primeiros anos<br />

não se esquecera a Real<br />

Biblioteca. Com efeito, o<br />

que viajara junto com a<br />

família era uma espécie<br />

<strong>de</strong> «política do conhecimento»:<br />

transportava-se<br />

não um amontoado <strong>de</strong><br />

livros, mas o espírito<br />

pombalino, uma verda<strong>de</strong>ira<br />

política <strong>de</strong> Estado,<br />

a idéia <strong>de</strong> que uma biblioteca<br />

era um repositório<br />

universal <strong>de</strong> saber. A<br />

ilustração aportava <strong>de</strong>finitivamente<br />

no Brasil e<br />

com ela o espírito mental<br />

dos Bragança, bem no início do agitado<br />

século XIX. Chegavam juntos a administração<br />

e a <strong>cultura</strong> oficial.<br />

Nesse momento começava também<br />

essa original história brasileira, tão vinculada<br />

à vinda da família real ao Brasil. De<br />

fato, é no mínimo inusitado pensar numa<br />

colônia sediando a capital <strong>de</strong> um império,<br />

assim como numa biblioteca que atravessou<br />

o Atlântico. Tal qual uma «internalização


A BIBLIOTECA DE BABEL 74<br />

75<br />

da metrópole», a instalação da corte portuguesa<br />

no Brasil significou não apenas<br />

um aci<strong>de</strong>nte fortuito, mas antes um momento<br />

angular da história nacional; a origem<br />

<strong>de</strong> um processo singular <strong>de</strong> emancipação.<br />

Transformado em Reino Unido no<br />

ano <strong>de</strong> 1815, o Brasil distanciava-se <strong>de</strong> seu<br />

antigo estatuto colonial, ganhando uma<br />

autonomia relativa, jamais conhecida. Humilhado,<br />

perseguido e transplantado, o Estado<br />

português reproduziu aqui o seu aparelho<br />

administrativo. E do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

D. João, <strong>de</strong>nominado «rei do Brasil», governava<br />

todo o seu Império.<br />

UMA BIBLIOTECA<br />

EM TERRAS TROPICAIS<br />

A Real Biblioteca entrou <strong>de</strong>finitivamente<br />

na história brasileira em 27 <strong>de</strong> junho<br />

<strong>de</strong> 1810, quando, por alvará régio,<br />

foi mandada instalar em parte do hospital<br />

da Or<strong>de</strong>m Terceira do Carmo, nos fundos<br />

da igreja <strong>de</strong> mesmo nome, nas proximida<strong>de</strong>s<br />

do Paço Real. Ainda no mesmo<br />

ano, em 29 <strong>de</strong> Outubro, vendo que o local<br />

não era apropriado para sua biblioteca<br />

– que tinha que dividir espaço com doentes,<br />

remédios e até ossos –, o príncipe regente<br />

manda que se erijam nas catacumbas<br />

da Or<strong>de</strong>m do Carmo os cômodos necessários<br />

para «o arranjamento e manutenção<br />

do referido estabelecimento».<br />

Em 1811 a Biblioteca era aberta ao<br />

público, se bem que <strong>de</strong> maneira seletiva:<br />

só para eruditos que obtivessem o consentimento<br />

régio, o que não era difícil. No<br />

entanto, em 1814 a autorização prévia foi<br />

suprimida, ficando <strong>de</strong>finitivamente franqueado<br />

o acesso. Já ocupava todo o prédio<br />

que abrigara o hospital, possuía cerca <strong>de</strong><br />

60 mil livros e era a maior das Américas.<br />

Todo cuidado era pouco diante das<br />

preciosida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse acervo: livros <strong>de</strong> horas<br />

renascentistas, incunábulos (<strong>de</strong> Cícero<br />

à Bíblia <strong>de</strong> Mogúncia), partituras, libretos,<br />

vilancicos, códices, <strong>de</strong>senhos e estampas<br />

(<strong>de</strong> Dürer, Rafael, Rembrandt, Piranesi,<br />

van Dick, entre outros), livros <strong>de</strong> história,<br />

ciência e filosofia (da História Natural <strong>de</strong><br />

Buffon à Enciclopédia <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot e D’Alembert),<br />

literatura sacra, obras <strong>de</strong> autores<br />

quinhentistas portugueses (Camões, João<br />

<strong>de</strong> Barros, etc.) ou catecismos e gramáticas<br />

raras.<br />

Aqui seria acrescida <strong>de</strong> valiosas doações<br />

(como a coleção do frei José Mariano<br />

da Conceição Veloso) e aquisições (<strong>de</strong> José<br />

da Costa e Silva e do Con<strong>de</strong> da Barca).<br />

Além disso, foram incorporadas propinas –<br />

<strong>de</strong>nominação da época para o recolhimento<br />

obrigatório <strong>de</strong> livros e periódicos editados<br />

em Portugal e no Brasil – e documentos<br />

oficiais do Estado.<br />

TEMPOS DE REVOLUÇÃO E DE<br />

DEFINIÇÃO: A BIBLIOTECA FICA<br />

Mas a história <strong>de</strong>ssa gran<strong>de</strong> livraria<br />

ainda passaria por conturbações. Em conseqüência<br />

da Revolução Liberal do Porto,<br />

D. João VI volta para Portugal em 1821 e<br />

a sina da Real Biblioteca mudaria mais<br />

uma vez.<br />

Não é hora <strong>de</strong> discutir os acontecimentos<br />

que culminaram, em 7 <strong>de</strong> setembro<br />

<strong>de</strong> 1822, com a proclamação da In<strong>de</strong>pendência<br />

e mesmo a nova li<strong>de</strong>rança política<br />

que surgia. O fato é que o padre Joaquim<br />

Dâmaso, então prefeito da Real Biblioteca,<br />

recusa-se a a<strong>de</strong>rir ao movimento<br />

autonomista e retorna a Portugal. A sua<br />

postura intransigente nos custaria caro:<br />

transportou consigo boa parte dos manuscritos<br />

da instituição. Ou seja, dos mais <strong>de</strong><br />

6 mil códices existentes no acervo, levou<br />

<strong>de</strong> volta mais <strong>de</strong> 5 mil. E queixou-se ainda<br />

<strong>de</strong> não ter conseguido carregar também os<br />

impressos. E esta «disputa bibliográfica»<br />

não foi um mero <strong>de</strong>talhe. A partir <strong>de</strong>la<br />

po<strong>de</strong>-se ter idéia da luta travada, <strong>de</strong> um lado,<br />

no sentido <strong>de</strong> conseguir que a biblioteca<br />

voltasse a seu <strong>de</strong>stino original, e <strong>de</strong><br />

outro para mantê-la, como parte <strong>de</strong> uma<br />

política para fortalecimento científico e<br />

<strong>cultura</strong>l da nova nação.<br />

Se essa batalha acabou sendo ganha<br />

pelo Brasil, a vitória teve um alto custo. O<br />

valor da Biblioteca Imperial e Pública da Corte,<br />

<strong>de</strong>nominação adotada após a In<strong>de</strong>pendência,<br />

virou motivo <strong>de</strong> cláusulas e atos diplomáticos,<br />

firmados com vista a consolidar a<br />

emancipação. Através da Convenção Adicional<br />

ao Tratado <strong>de</strong> Paz e Amiza<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

29 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1825, D. Pedro I, Imperador<br />

do Brasil, concordava em in<strong>de</strong>nizar a


família real portuguesa por seus bens e<br />

proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ixados no país, inclusive a<br />

biblioteca real.<br />

E na verda<strong>de</strong> se pagou muito, pela «famosa<br />

conta» que Portugal cobrava do Brasil.<br />

No Arquivo da Torre do Tombo, po<strong>de</strong><br />

ser encontrado o documento <strong>de</strong>nominado<br />

– «Carta dos objetos que Portugal teria direito<br />

<strong>de</strong> reclamar» aon<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> ajuizar a<br />

posição privilegiada da Biblioteca, que vinha<br />

logo em segundo lugar <strong>de</strong>pois da «dívida<br />

pública»<br />

A Biblioteca surgia avaliada em 800<br />

contos <strong>de</strong> réis, um valor tremendamente<br />

alto <strong>de</strong>ntro do montante geral. Para se ter<br />

idéia, tal valor correspondia a 12,5% do<br />

total a ser pago, quatro mais do que a famosa<br />

prataria da coroa, assim como 4 vezes<br />

mais do que a equipagem elencada na<br />

conta. Significava portanto muito e para<br />

nós muito mais.<br />

Assim, a Real Biblioteca passou a fazer<br />

parte do novo país, mudou <strong>de</strong> nome ao<br />

longo dos anos, adicionou aquisições e<br />

doações ao seu acervo até tornar-se, se-<br />

gundo a UNESCO, na oitava instituição do<br />

gênero no mundo.<br />

Livros narram histórias, mas assim<br />

«ajuntados» valem até boas aventuras. Para<br />

o país recém-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte uma Biblioteca<br />

como essa contava muito: era a tradição<br />

acumulada que permanecia em uma nação<br />

<strong>de</strong> tradição recente e a ser inventada. Como<br />

dizia o Bibliotecário <strong>de</strong> S. Majesta<strong>de</strong>,<br />

«as bibliotecas fazem o adorno principal e<br />

mais precioso dos Paços Reais e merecerão<br />

com toda a justiça que as Letras o olhem e<br />

reconheçam por seu valioso protetor».<br />

«Adorno principal, jóia do reino ...», aí estão<br />

algumas expressões que falam do valor<br />

simbólico acumulado por uma biblioteca.<br />

Mais do que os livros, leis e tratados era o<br />

conhecimento (infinito por <strong>de</strong>finição) que<br />

se pretendia colecionar e classificar.<br />

A sina <strong>de</strong>ssa Livraria como que reconta,<br />

à sua maneira, um pouco da história <strong>de</strong><br />

Portugal e do Brasil. Os personagens são<br />

diferentes, assim como o recorte. Dessa<br />

vez é por meio <strong>de</strong> livros que se narra uma<br />

mesma história.<br />

Al<strong>de</strong>amento da Bemposta Apartado 59<br />

8501-909 PORTIMÃO<br />

telef. 282 430 200 fax: 282 415 261<br />

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Site: www.bemposta-sa.pt


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 76<br />

77<br />

«AL OCCIDENTE<br />

VAN LAS NAVES<br />

INVENTORAS<br />

DE REGIONES»,<br />

ESCREVEU JUAN<br />

DE CASTELLANOS.<br />

MIRAGEM DE<br />

COLOMBO,<br />

INVENÇÃO<br />

EUROPEIA,<br />

A AMÉRICA<br />

DEMOROU A<br />

GANHAR IDENTIDADE<br />

PRÓPRIA NO<br />

UNIVERSO MENTAL<br />

DO VELHO MUNDO.<br />

A RESISTÊNCIA<br />

DOS VELHOS<br />

PARADIGMAS


CONDICIONOU<br />

A RECEPÇÃO<br />

DA NOVIDADE,<br />

MOLDANDO<br />

O NOVO MUNDO.<br />

DESLUMBRAMENTO,<br />

DESENCANTO,<br />

SAUDADE,<br />

DESASSOSSEGO<br />

SÃO SENTIMENTOS<br />

EXPRESSOS<br />

NAS FONTES<br />

NARRATIVAS,<br />

NA TOPONÍMIA<br />

E NAS CARTAS<br />

PRIVADAS<br />

DE EMIGRANTES.<br />

Organização <strong>de</strong> Maria da Graça A. Mateus Ventura


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 78<br />

79<br />

Yo vengo<br />

<strong>de</strong> las Indias<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Fauna marinha fantástica na costa do Brasil. Theodorus <strong>de</strong> Bry, Historia Americae, Frankfurt, 1590 [BN, HG 2612 A]


«Ao oci<strong>de</strong>nte rumam as naus inventoras<br />

<strong>de</strong> regiões», escreveu Juan <strong>de</strong><br />

Castellanos no seu canto épico da conquista<br />

da América pelos espanhóis, em<br />

1589. Descobrimento ou invenção, a<br />

Quarta parte do mundo, precipitadamente<br />

baptizada <strong>de</strong> América por Waldseemuller,<br />

em 1507, apresentava-se aos europeus<br />

como um jardim <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias.<br />

A primeira percepção do Novo<br />

Mundo foi fruto <strong>de</strong> uma projecção da<br />

mentalida<strong>de</strong> europeia na nova geografia.<br />

Captou-se o <strong>de</strong>sconhecido em função do<br />

conhecido. Baptizaram-se as terras, os<br />

mares e os rios <strong>de</strong> acordo com o imaginário,<br />

as expectativas e as recordações.<br />

A tradicional visão ptolemaico-cristã<br />

da Terra dificultava a aceitação <strong>de</strong> uma<br />

nova realida<strong>de</strong> geográfica como entida<strong>de</strong><br />

espacial, temporal e <strong>cultura</strong>l. Se nas<br />

vésperas da expansão marítima os<br />

europeus dispunham <strong>de</strong> informação vaga<br />

e dispersa sobre a África e a Ásia, <strong>de</strong> um<br />

quarto continente nem sequer se suspeitava.<br />

A constatação da existência da<br />

América e a sua gradual aparição como<br />

uma entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> direito próprio constituíram,<br />

pois, um <strong>de</strong>safio maior a todo<br />

um conjunto <strong>de</strong> preconceitos tradicionais,<br />

crenças e atitu<strong>de</strong>s. A dimensão<br />

<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>safio permite-nos compreen<strong>de</strong>r<br />

um dos factos mais surpreen<strong>de</strong>ntes da<br />

história intelectual do século XVI: a<br />

aparente lentidão da Europa no ajustamento<br />

mental necessário à integração da<br />

América no seu campo <strong>de</strong> visão. A<br />

reacção dos europeus aos primeiros textos<br />

publicados sobre o Novo Mundo,<br />

manifestada na avi<strong>de</strong>z da leitura e nas<br />

sucessivas edições das cartas <strong>de</strong> Américo<br />

Vespúcio, <strong>de</strong> Cristóvão Colombo e <strong>de</strong><br />

muitas outras narrativas, reflecte emoção<br />

e <strong>de</strong>slumbramento, sentimentos progressivamente<br />

esfriados pelo <strong>de</strong>sbravamento<br />

do espaço real. Às <strong>de</strong>scrições edénicas da<br />

paisagem e dos índios, suce<strong>de</strong>ram-se<br />

relatos que suscitaram inquietações <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m teológica e filosófica, como a<br />

condição humana dos índios. Se os<br />

europeus não viajados conservaram,<br />

durante todo o século XVI, uma imagem<br />

paradisíaca do Novo Mundo, patente nas<br />

Índios brasileiros como Adão e Eva. Theodorus <strong>de</strong> Bry, Historia Americae, Frankfurt, 1590 [BN, HG 2612 A]


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 80<br />

81<br />

iluminuras e gravuras, os viageiros<br />

europeus constatavam o contraste civilizacional<br />

e sublinhavam o estado <strong>de</strong> «barbárie»<br />

das socieda<strong>de</strong>s índias. Na verda<strong>de</strong>,<br />

a resistência <strong>de</strong> filósofos e cosmógrafos<br />

em incorporar a nova informação proporcionada<br />

pela <strong>de</strong>scoberta da América é um<br />

exemplo da dificulda<strong>de</strong> do Velho Mundo<br />

em gerir a diversida<strong>de</strong> <strong>cultura</strong>l e, em particular,<br />

os efeitos <strong>de</strong>sta nova realida<strong>de</strong>.<br />

Sob o ponto <strong>de</strong> vista intelectual, a<br />

<strong>de</strong>scoberta da América constituiu um<br />

<strong>de</strong>safio à Europa, na medida em que pôs<br />

em causa preconceitos europeus sobre a<br />

geografia, a história e a natureza do<br />

homem. Uma primeira barreira mental<br />

dos <strong>de</strong>scobridores era configurada por<br />

um sistema mítico com profundo<br />

enraizamento <strong>cultura</strong>l, como o É<strong>de</strong>n, os<br />

mitos da Antilha e <strong>de</strong> São Brandão, as Sete<br />

Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cibola, as Amazonas, o Eldorado.<br />

Por outro lado, a influência dos<br />

livros <strong>de</strong> cavalaria moldou um código <strong>de</strong><br />

conduta do conquistador que reproduzia<br />

o código <strong>de</strong> honra e fama próprio do cavaleiro<br />

medieval. A obsessão pela fama e pela<br />

riqueza fácil constituiu outro entrave a<br />

uma clara percepção do Novo Mundo. Os<br />

conquistadores manifestam uma visão economicista<br />

da natureza, <strong>de</strong>slumbrando-se<br />

com a riqueza em pérolas do Caribe ou<br />

com os tesouros mexicanos e peruanos.<br />

À medida que se avançava no <strong>de</strong>scobrimento<br />

e na conquista e os limites do<br />

Novo Mundo se alargavam, a experiência<br />

e a familiarida<strong>de</strong> com o continente permitiram<br />

um olhar mais atento e distanciado<br />

por parte dos cronistas europeus, sempre<br />

condicionados pela sua função no processo,<br />

interesses (materiais ou espirituais),<br />

formação <strong>cultura</strong>l e grau <strong>de</strong> vivência<br />

da diversida<strong>de</strong>. Daí que o soldado <strong>de</strong>screva<br />

a terra em função das condições<br />

para a conquista, o colonizador se fixe nas<br />

condições do território para a sua exploração<br />

e o evangelizador se centre num<br />

estudo etnográfico e antropológico.<br />

Em termos cognitivos, a mudança<br />

joga-se na controvérsia entre o velho e o<br />

novo, numa profunda resistência à novida<strong>de</strong><br />

e no apego aos velhos paradigmas.<br />

Os primeiros <strong>de</strong>scobridores estão profun-<br />

damente constrangidos pelos mo<strong>de</strong>los<br />

<strong>cultura</strong>is europeus, pelo que a sua percepção<br />

peca por <strong>de</strong>formação. Os cronistas-conquistadores,<br />

condicionados<br />

pelas duras condições <strong>de</strong> sobrevivência e<br />

pelos imperativos <strong>de</strong> imposição militar,<br />

estavam limitados a uma leitura utilitária,<br />

mas revelam algum distanciamento na<br />

<strong>de</strong>scrição da natureza americana. Os cronistas-evangelizadores<br />

manifestam um<br />

maior empenho na <strong>de</strong>scrição antropológica<br />

e <strong>cultura</strong>l que na <strong>de</strong>scrição geográfica<br />

e, nesse campo, apresentam um forte<br />

eurocentrismo, ainda que a imagem do<br />

índio chegue à Europa associada a virtu<strong>de</strong>s<br />

como a bonda<strong>de</strong>, a humilda<strong>de</strong> e a<br />

afabilida<strong>de</strong>. Os cronistas-gerais, como<br />

António <strong>de</strong> Herrera, mais ou menos distanciados<br />

do seu objecto narrativo,<br />

oscilam entre a contemplação e a especulação.<br />

Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo representa a<br />

primeira atitu<strong>de</strong>, enquanto o padre José<br />

<strong>de</strong> Acosta é o expoente máximo da<br />

segunda.<br />

Em 1528, o humanista espanhol Hernán<br />

Pérez <strong>de</strong> Oliva escreveu, a propósito da<br />

preparação da segunda viagem <strong>de</strong> Colombo,<br />

que esta se <strong>de</strong>stinava a «mesclar o mundo<br />

e dar àquelas terras estranhas a forma da<br />

nossa». Segundo Edmundo O’Gorman, a<br />

América não foi <strong>de</strong>scoberta, mas inventada<br />

pelos europeus do século XVI.<br />

Oviedo apresenta Cristóvão Colombo<br />

como «primeiro inventor e <strong>de</strong>scobridor e<br />

almirante <strong>de</strong>stas Índias», enquanto Juan<br />

<strong>de</strong> Castellanos inicia o canto II das suas<br />

Elegias <strong>de</strong> varones illustres exactamente com o<br />

verso «Al oci<strong>de</strong>nte van encaminadas las<br />

naves inventoras <strong>de</strong> regiones». Nesta<br />

medida, ambos se aproximam <strong>de</strong> Nelson<br />

Goodman quando este conceptualiza o<br />

mundo como uma leitura e não como<br />

uma realida<strong>de</strong>. A visão do novo dos<br />

viageiros europeus estava condicionada<br />

pela sua expectativa, viam o que queriam<br />

ver e ignoravam aquilo para o qual não<br />

estavam preparados, num puro acto <strong>de</strong><br />

supressão e completação. Neste sentido,<br />

os navegadores, os cartógrafos, os cronistas<br />

foram inventores <strong>de</strong> regiões não só<br />

por lhes terem atribuído novos nomes,<br />

mas sobretudo porque a sua representação


do mundo novo constituía uma invenção<br />

mais ou menos presa a interesses particulares<br />

e a padrões <strong>cultura</strong>is e mentais. Não<br />

esqueçamos que o nome <strong>de</strong> Índias,<br />

atribuído por Colombo a esta quarta<br />

parte do mundo, logo em 1492, rapidamente<br />

se impôs e prevaleceu na terminologia<br />

oficial até ao século XVIII. É uma<br />

invenção também porque a América foi<br />

construída por agentes que transmudaram<br />

para esse mundo novo a imagem<br />

da Europa – organização urbana, sistema<br />

político-administrativo e, até, a toponímia<br />

europeia.<br />

Alegoria do <strong>de</strong>scobrimento: Américo Vespúcio encontra a América. Jan van <strong>de</strong>r Stralt (1523-1605) [BN, EA 15 (22) P.]<br />

A cartografia, embora marcada pela<br />

geografia <strong>de</strong> Ptolomeu, vai representando<br />

os contornos dos Novos Mundos, recheando-os<br />

<strong>de</strong> topónimos míticos, religiosos,<br />

profanos, reflectindo a passagem<br />

do estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>slumbramento, manifestado<br />

nas esmeradas iluminuras com animais<br />

exóticos, a uma progressiva<br />

racionalização da concepção do espaço. A<br />

geografia do imaginário apresenta na<br />

América uma primeira configuração<br />

cujos elementos fundamentais são os rios<br />

e os espaços insulares. Da Boca <strong>de</strong>l Drago,<br />

nas costas venezuelanas, à costa da<br />

Florida, encontramos Paraíso, Matinino,<br />

Ofir, Bimini, o rio Jordão, o Eldorado.


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 82<br />

83<br />

Trata-se <strong>de</strong> um percurso encantatório<br />

sucessivamente transposto para o interior<br />

meridional, mas sempre associado aos<br />

rios e às ilhas. Logo na primeira viagem,<br />

Colombo afirmou ter visto uma ilha<br />

habitada só por mulheres a que chamou<br />

Matinino. Mais não fez que ajustar o mito<br />

das Amazonas a uma ilha on<strong>de</strong> as mulheres<br />

acorreram à praia à vista das caravelas.<br />

Enrique <strong>de</strong> Gandía relaciona a convicção<br />

colombina <strong>de</strong> ter chegado à costa oriental<br />

da Ásia com o baptismo da ilha Matinino,<br />

pois Marco Polo difundira a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

no Oriente havia uma ilha feminina e<br />

uma ilha masculina. De facto, Colombo<br />

distingue o Caribe (masculino) <strong>de</strong><br />

Matinino (feminino). Segundo Gandía,<br />

esta é a principal explicação para a transposição<br />

do mito das Amazonas para a<br />

América. O Eldorado surge pela primeira<br />

vez em 1539, sendo atribuído a Sebastián<br />

<strong>de</strong> Benalcázar o baptismo <strong>de</strong> um lugar<br />

com este nome em Nova Granada. Parece<br />

que nesta região um cacique mergulhava<br />

todas as manhãs num tanque e que saía<br />

da água coberto <strong>de</strong> pó <strong>de</strong> ouro. Este<br />

tanque transformou-se, na mitologia dos<br />

conquistadores, num lago localizado<br />

sucessivamente em vários lugares, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

Colômbia ao rio Amazonas. Este mito,<br />

que remonta à mitologia grega, atormentou<br />

mentes obcecadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobridores e<br />

conquistadores da América, como<br />

Fe<strong>de</strong>rmann, Jiménez <strong>de</strong> Quesada,<br />

Benálcazar e Pizarro. A <strong>de</strong>scoberta do<br />

tesouro <strong>de</strong> Atahualpa viria a configurar o<br />

mito na região do Peru. Avançam os conquistadores,<br />

retroce<strong>de</strong> o Eldorado, sempre<br />

inacessível. Associado à obsessão pelo<br />

ouro, este foi um dos móbiles da exploração<br />

das profun<strong>de</strong>zas do continente<br />

americano.<br />

O cenário mítico do Novo Mundo<br />

convocou o <strong>de</strong>lírio perante a riqueza<br />

fácil, amplificado pelos relatos dos navegadores<br />

e dos conquistadores <strong>de</strong>sejosos<br />

<strong>de</strong> acrescentar as suas hostes. A expectativa<br />

e a obsessão, <strong>de</strong>formando a realida<strong>de</strong>,<br />

acabaram por suscitar a <strong>de</strong>silusão. As<br />

crónicas estão repletas <strong>de</strong> exemplos. Díaz<br />

<strong>de</strong> Guzmán expressa este contraste: os<br />

espanhóis encontraram na província <strong>de</strong><br />

Guairá «umas pedras mui cristalinas»<br />

que se criavam no subsolo e que assumiam<br />

cores diversas, com «tanta diafanida<strong>de</strong><br />

e brilho» que pareciam pedras<br />

preciosíssimas. Com esta ilusão, os conquistadores<br />

«acreditaram que possuíam a<br />

maior das riquezas do mundo» e <strong>de</strong>cidiram<br />

<strong>de</strong>ixar esta terra e caminhar para a<br />

costa a fim <strong>de</strong> partir para Espanha com as<br />

suas famílias.<br />

Se o estado <strong>de</strong> maravilha correspon<strong>de</strong><br />

ao primeiro impacto do contacto com a<br />

Natureza do Novo Mundo, o estado <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sencanto vai-se instalando à medida<br />

que se frustram as expectativas <strong>de</strong> riqueza<br />

fácil. O êxito militar da conquista e o<br />

sucesso relativo da evangelização não<br />

foram acompanhados <strong>de</strong> um igual grau<br />

<strong>de</strong> satisfação individual e colectiva por<br />

parte dos conquistadores e colonizadores.<br />

A luta pelo po<strong>de</strong>r, a iniquida<strong>de</strong> na repartição<br />

dos saques, o <strong>de</strong>sajustamento entre<br />

as expectativas e a realida<strong>de</strong> e uma natureza<br />

muitas vezes adversa justificam o<br />

<strong>de</strong>sencanto que as fontes revelam. São<br />

memoriais <strong>de</strong> conquistadores em que<br />

estes se queixam que «pa<strong>de</strong>cem necessida<strong>de</strong>»,<br />

são cartas <strong>de</strong> mulheres viúvas ou<br />

<strong>de</strong> maridos ausentes a reclamar da imensa<br />

sauda<strong>de</strong>. Lope <strong>de</strong> Vega, no epitáfio do<br />

poeta Medina Medinilla, escreveu «No<br />

mar da América se per<strong>de</strong>u a flor e a nata<br />

<strong>de</strong> nossa época», i<strong>de</strong>ia corroborada por<br />

Gôngora e outros autores. Afogados nos<br />

rios, nos portos ou em mar alto, morreram<br />

muitos marinheiros, capitães, a<strong>de</strong>lantados<br />

e viageiros, muitos dos quais não<br />

sabiam nadar nem tinham alguma vez<br />

visto o mar.<br />

Uma leitura diacrónica do baptismo<br />

do Novo Mundo permite-nos percorrer o<br />

espaço mental dos colonizadores. Se na<br />

fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento se baptizou o<br />

Novo Mundo <strong>de</strong> acordo com critérios<br />

essencialmente míticos e litúrgicos, embora<br />

surjam também critérios <strong>de</strong> funcionalida<strong>de</strong><br />

e evocativos <strong>de</strong> espaços<br />

ausentes e semelhantes, na fase <strong>de</strong> conquista<br />

e colonização a toponímia corporiza<br />

a frustração e o <strong>de</strong>sencanto.<br />

A civilização oci<strong>de</strong>ntal estava profundamente<br />

marcada pela tradição clássica e


cristã. Logo, a leitura do Novo Mundo era<br />

condicionada por referências <strong>cultura</strong>is e<br />

religiosas profundamente enraizadas. A<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r uma diversida<strong>de</strong><br />

geográfica e humana levaria, por um<br />

lado, a uma revisão do conhecimento<br />

divulgado por autores como Man<strong>de</strong>ville<br />

e, por outro, a um processo <strong>de</strong> transposição<br />

dos mitos cristãos para um novo<br />

espaço. O mito <strong>de</strong> Ofir, associado <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Heródoto a uma terra/<strong>de</strong>serto <strong>de</strong> areias<br />

auríferas, é transferido geograficamente<br />

para o Atlântico. Cristóvão Colombo<br />

situa-o no Haiti: «esta ilha é Tharsis, é<br />

Cethia, é Ophir e Ophaz e Cipango, e nós<br />

lhe chamámos Espanhola». Aqui se <strong>de</strong>scobriu<br />

um mundo virgem, como que<br />

recém-nascido, on<strong>de</strong><br />

não havia indícios <strong>de</strong><br />

velhice. Toda a natureza<br />

se encontrava<br />

num estado <strong>de</strong> perpétua<br />

juventu<strong>de</strong>. Ofir<br />

e Cibola aparecem<br />

sucessivamente nos<br />

relatos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobridores,<br />

do Atlântico ao<br />

Pacífico. O mito <strong>de</strong><br />

Ofir está ligado ao<br />

Eldorado que mobilizou<br />

numerosos aventureiros que se<br />

sujeitavam aos maiores perigos, movidos<br />

pela obsessão do ouro. O seu rasto ficou<br />

nas crónicas e na toponímia. Sabendo que<br />

cristãos e hebreus acreditavam que o universo<br />

havia sido criado no equinócio da<br />

Primavera, não admira que os primeiros<br />

navegadores julgassem ter chegado ao<br />

paraíso perdido. Daí a sucessão <strong>de</strong> topónimos<br />

míticos. Era a transmutação <strong>de</strong> um<br />

mundo i<strong>de</strong>al, remoto no tempo, para um<br />

mundo remoto no espaço.<br />

A alusão directa ao paraíso é frequente<br />

na toponímia hispano-americana:<br />

Valle <strong>de</strong>l Paraiso, nome atribuído por<br />

Colombo – «e o vale gran<strong>de</strong> on<strong>de</strong> estão<br />

povoações, e disse que outra coisa mais<br />

formosa não havia visto, por meio do<br />

qual vale vem aquele rio... pus nome ao<br />

vale, Vale do Paraíso» (Colombo, Diário <strong>de</strong>l<br />

primer viaje (1492). Na sua 3.ª viagem,<br />

Colombo chegou à foz do Orinoco e<br />

ficou <strong>de</strong>slumbrado com a imensidão <strong>de</strong><br />

água doce. Julgou ter avistado o Paraíso<br />

«porque o sítio é conforme à opinião<br />

<strong>de</strong>stes santos e sacros teólogos. E assim<br />

mesmo os sinais são muito conformes,<br />

que eu jamais li nem ouvi que tanta<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água doce fosse assim<br />

a<strong>de</strong>ntro e vizinha com a salgada; e nisso<br />

ajuda assim mesmo a suavíssima temperança.<br />

E se dali do Paraíso não sai, parece<br />

ainda maior maravilha...» (Colombo,<br />

1498). Também Vespúcio ficou maravilhado<br />

com a diversida<strong>de</strong> e a beleza da<br />

paisagem a sul do equador, embora não<br />

fosse partidário dos sonhos obsessivos <strong>de</strong><br />

Colombo.<br />

Além do Eldorado, também o mito<br />

das Sete Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Cibola, frequente na<br />

literatura cristã, se<br />

foi corporizando na<br />

cartografia do <strong>de</strong>scobrimento<br />

do Novo<br />

Mundo. A sua localização<br />

foi-se <strong>de</strong>slocando<br />

cada vez mais<br />

para terra firme, a<br />

partir das Antilhas.<br />

Em 1520, corriam<br />

notícias <strong>de</strong> que na<br />

governação <strong>de</strong> Pedrárias Dávila (América<br />

Central) se havia encontrado uma ilha tão<br />

rica que se po<strong>de</strong>riam lastrar as naus com<br />

ouro. Os conquistadores acreditavam que<br />

as Sete Cida<strong>de</strong>s regurgitavam <strong>de</strong> ouro e<br />

outras riquezas. Esta crença reflecte a confluência<br />

dos mitos paradisíacos e <strong>de</strong> um<br />

imaginário marcado pela ambição e pela<br />

expectativa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> viável, algures,<br />

no espaço ainda <strong>de</strong>sconhecido. Em 1539,<br />

o fra<strong>de</strong> português Marcos <strong>de</strong> Niza, com<br />

autorização do vice-rei <strong>de</strong> Nova Espanha,<br />

percorreu o Oeste americano (actual<br />

Novo México) on<strong>de</strong> afirmou ter encontrado<br />

as Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cibola. No Islário<br />

General <strong>de</strong> Alonso <strong>de</strong> Santa Cruz (1541), as<br />

Sete Cida<strong>de</strong>s já são representadas a norte<br />

do México, último refúgio da lenda em<br />

finais do século XVI. No planisfério<br />

Anónimo – João Baptista Lavanha-Luís<br />

Teixeira (1597-1612) – está inscrito o<br />

topónimo Sete Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cibola, a


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 84<br />

85<br />

nor<strong>de</strong>ste da Califórnia, o que reflecte a sua<br />

busca incessante. Na ilha <strong>de</strong> S. Miguel<br />

(Açores) subsiste ainda o eco <strong>de</strong>ssa<br />

primeira i<strong>de</strong>ntificação na Lagoa das Sete<br />

Cida<strong>de</strong>s. Perduram ainda, nomeadamente<br />

na cartografia mexicana, topónimos que<br />

ilustram a emocionalida<strong>de</strong> dos viageiros:<br />

do <strong>de</strong>slumbramento – El Encanto, Islas Encantadas,<br />

La Encantada, El Edén, El Delirio,<br />

El I<strong>de</strong>al, Las Delicias, Esmeralda, Eldorado<br />

(em Nuevo León, San Luis <strong>de</strong> Potosí,<br />

Sinaloa), Paraíso (em Campeche, México,<br />

Oaxaca, Yucatán, Querétaro, Quintanaro,<br />

Guanajuato) – ao <strong>de</strong>sencanto – El<br />

Purgatorio, El Infierno, El Triste, El Perdido,<br />

El Olvido, El Imposible.<br />

No campo da evocação, as efeméri<strong>de</strong>s<br />

religiosas constituem o principal critério<br />

usado pelos primeiros navegadores.<br />

Cristóvão Colombo usou a nomenclatura<br />

cristã, logo na 1.ª viagem, no baptismo das<br />

terras que avistou: San Salvador, Navidad,<br />

Santa María <strong>de</strong> Guadalupe, Santa María <strong>de</strong><br />

Monserrate, Once Mil Virgens, San Juan<br />

Baptista... Assim também o Brasil, primeiro<br />

«Terra dos papagaios», seria baptizado Terra<br />

<strong>de</strong> Santa Cruz por Pedro Álvares Cabral,<br />

embora o nome actual, <strong>de</strong> origem mítica<br />

(Hy Bressail ou Brazil) ou profana, cedo se<br />

impusesse, mau grado o protesto <strong>de</strong> João<br />

<strong>de</strong> Barros (1555) e <strong>de</strong> Pêro <strong>de</strong> Magalhães<br />

Gândavo (1576). Os conquistadores espanhóis<br />

baptizaram inúmeras vilas e cida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> acordo com o calendário litúrgico:<br />

Pedro <strong>de</strong> Alvarado fundou um povoado,<br />

entre o Volcán <strong>de</strong> Agua e o Volcán <strong>de</strong> Fuego,<br />

a que chamou Santiago <strong>de</strong> los Caballeros <strong>de</strong><br />

Guatemala, esperando por uma segunda-<br />

-feira, 25 <strong>de</strong> Julho, para baptizar a vila com<br />

o nome do santo padroeiro <strong>de</strong> Espanha;<br />

Santa María <strong>de</strong> la Victoria (em Tabasco), Los<br />

Reyes (Lima, Peru), fundado no dia da<br />

Epifania,Triunfo <strong>de</strong> la Cruz (Honduras), ou<br />

Santa Cruz (na ilha <strong>de</strong> Cozumel), Santa Fe<br />

(<strong>de</strong> Bogotá), Gracias a Dios, Nombre <strong>de</strong><br />

Dios, Corpus Christi (no Rio da Prata e no<br />

México), ou Santo Domingo, ou ainda São<br />

Salvador da Baía, São Paulo, Santa Catarina,<br />

São Luís do Maranhão (Brasil). No campo<br />

da simbologia cristã, o calendário litúrgico<br />

foi o principal sistema <strong>de</strong> referência usado<br />

por navegadores ibéricos. Contudo, os<br />

espanhóis e, em menor grau, os portugueses<br />

não se limitaram à liturgia, adoptando<br />

também os dogmas como critério <strong>de</strong> baptismo<br />

– Trinidad, Triunfo <strong>de</strong> la Cruz,<br />

Espíritu Santo, San Salvador, Corpus Christi.<br />

Por vezes, o novo nome concilia diferentes<br />

critérios, como Villa Rica <strong>de</strong> la Veracruz, na<br />

costa oriental do México: «E logo or<strong>de</strong>námos<br />

<strong>de</strong> fazer e fundar e povoar uma vila,<br />

que se nomeou a Villa Rica <strong>de</strong> la Veracruz,<br />

porque chegámos quinta-feira da Ceia, e<br />

<strong>de</strong>sembarcámos sexta-feira Santa da Cruz, e<br />

rica por aquele cabaleiro que... se chegou a<br />

Cortés e lhe disse que mirasse as terras<br />

ricas...» (Oviedo).<br />

O viageiro europeu lia o novo à luz do<br />

familiar, pelo que o sistema classificativo<br />

traduz uma gramática percepcional que<br />

evoca a semelhança e a analogia da configuração<br />

externa visível. Os espanhóis foram<br />

prolixos na evocação do espaço ausente: à<br />

ilha <strong>de</strong> Haiti, ou Bohio, Colombo chamou<br />

La Española porque «A ilha é muito<br />

gran<strong>de</strong>... vi que é toda muito lavrada... este<br />

porto... ao cabo <strong>de</strong>le tem duas bocas <strong>de</strong> nós<br />

que trazem pouca água; em frente <strong>de</strong>le há<br />

umas vegas as mais formosas do mundo e<br />

quase semelhantes às terras <strong>de</strong> Castela,<br />

antes estas têm vantagem, pelo qual pus<br />

nome à dita ilha a ilha Espanhola»<br />

(Colombo, 1492); na primeira incursão<br />

pelo México, um grupo <strong>de</strong> portugueses da<br />

hoste <strong>de</strong> Cortés rebaptizou o povoado <strong>de</strong>


Ixtac-Imaxtitlán, próximo <strong>de</strong> Tlaxcala: «e<br />

quando vimos branquear muitas açoteias, e<br />

as casas do cacique e os cues... pareciam<br />

muito bem, como alguns povoados da<br />

nossa Espanha, e pusemos-lhe nome<br />

Castilblanco, porque disseram uns soldados<br />

portugueses que parecia a vila <strong>de</strong> Castelo<br />

Branco <strong>de</strong> Portugal, e assim se chama<br />

agora»; Venezuela tem origem nas semelhanças<br />

com Veneza: «quando os espanhóis<br />

<strong>de</strong>scobriram pela primeira vez esta Laguna,<br />

acharam gran<strong>de</strong>s povoações <strong>de</strong> índios formados<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> água por todas as suas<br />

margens; e daqui tomaram motivo para<br />

chamá-la Venezuela, pela semelhança que<br />

tinha a sua planta com a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Veneza;<br />

nome que se esten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>pois a toda a<br />

província...» (Díaz <strong>de</strong>l Castillo). É extensa a<br />

lista <strong>de</strong> topónimos evocativos <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong><br />

com espaços ausentes: Cartagena, Nueva<br />

España, Nueva Galicia, Nueva Vizcaya,<br />

Nuevo Reino <strong>de</strong> Granada, Nova Lusitânia.<br />

As fontes espanholas mencionam<br />

vários referenciais políticos, embora estes<br />

viessem a <strong>de</strong>saparecer a favor dos nomes<br />

pré-colombinos. Foi Colombo quem baptizou<br />

Cuba <strong>de</strong> Fernandina, logo na 1.ª<br />

viagem, segundo Oviedo, «em memória do<br />

sereníssimo e católico Rei Dom Fernando...».<br />

Desconhecendo a configuração<br />

real <strong>de</strong> Cuba, Colombo atribuiu a outra<br />

parte da ilha o nome <strong>de</strong> Juana, em homenagem<br />

à princesa filha <strong>de</strong> D. Fernando.<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do critério adoptado,<br />

o tempo, o espaço, a herança <strong>cultura</strong>l<br />

e a linguagem condicionaram a leitura do<br />

mundo e a incorporação do Novo Mundo<br />

no horizonte intelectual da Europa. A diversida<strong>de</strong><br />

nas leituras justifica-se pelo modo<br />

como a tradição, a experiência e a expectativa<br />

se conjugaram na formação e nos interesses<br />

<strong>de</strong> cada protagonista. Com Fernando<br />

Gil, concluiríamos que o viageiro<br />

europeu <strong>de</strong> Quatrocentos e Quinhentos representava,<br />

na literatura ou na cartografia,<br />

«colocando tanto o que havia, quanto o que<br />

não havia, no mesmo plano da imaginação<br />

em que a expectativa prece<strong>de</strong> o conhecimento,<br />

a interpretação se sobrepõe à observação<br />

e a analogia neutraliza a diferença».<br />

Tropeço inesperado <strong>de</strong> um genovês,<br />

invenção <strong>de</strong> um cosmógrafo alemão a par-<br />

tir das cartas do veneziano Américo<br />

Vespúcio, a América metaforiza a conflitualida<strong>de</strong><br />

entre a tradição e a inovação, entre<br />

o Novo e o Velho Mundo. Mas representa<br />

também uma dolorosa caminhada <strong>de</strong><br />

viageiros que perseguiram e perseguem<br />

ainda, em ambas as margens do Atlântico,<br />

sonhos, fantasias e expectativas <strong>de</strong> riqueza,<br />

tão <strong>de</strong>sajustados ontem como hoje. A globalização,<br />

timidamente inaugurada há 500<br />

anos pelos Estados Ibéricos e por outros<br />

europeus que os seguiram, atenuou os<br />

contrastes <strong>cultura</strong>is pela imposição <strong>de</strong><br />

padrões <strong>de</strong> comportamento e <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />

<strong>de</strong> organização, mas não eliminou as profundas<br />

barreiras sociais responsáveis pelo<br />

<strong>de</strong>sencanto <strong>de</strong> tantos emigrantes. O mito<br />

do Eldorado, como metáfora do inatin-<br />

gível, perdura ainda, obsessivamente, na<br />

mente <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong> mulheres<br />

que partem para um <strong>de</strong>sconhecido<br />

longínquo em busca <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.<br />

Diversificaram-se as rotas <strong>de</strong> encanto-<strong>de</strong>sencanto,<br />

manteve-se o espírito aventureiro<br />

dos viageiros <strong>de</strong> outrora. A diferença resi<strong>de</strong><br />

na inversão da relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio: os<br />

«índios» naturais foram submetidos pela<br />

tecnologia dos que chegaram ruidosamente<br />

pelo mar, atordoando-os com o trovejar<br />

dos canhões e o relinchar <strong>de</strong>svairado<br />

dos cavalos; os emigrantes <strong>de</strong> hoje chegam<br />

silenciosamente, em pequenas vagas,<br />

disponíveis para todos os sacrifícios em<br />

troca <strong>de</strong> algum conforto material.<br />

PARA SABER MAIS:<br />

Bernal Díaz <strong>de</strong>l Castillo,<br />

Historia Verda<strong>de</strong>ra <strong>de</strong><br />

la Conquista <strong>de</strong> la<br />

Nueva España. (Ed. Lit. <strong>de</strong><br />

Carmelo Sáenz <strong>de</strong> Santa<br />

María). Madrid: CSIC, 1982<br />

Cristóbal Colón: Textos y<br />

Documentos<br />

Completos. Ed. <strong>de</strong><br />

Consuelo Varela. Madrid:<br />

Alianza Editorial, 1992<br />

Edmundo O’Gorman, The<br />

Invention of America.<br />

Bloomington: 1961<br />

Enrique <strong>de</strong> Gandía, História<br />

<strong>de</strong> los Mitos y<br />

Leyendas <strong>de</strong> la<br />

Conquista Americana.<br />

Buenos Aires: Centro Difusor<br />

<strong>de</strong>l Libro, 1946<br />

Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo, História<br />

General y Natural <strong>de</strong><br />

las Indias. (Ed. Lit. <strong>de</strong> Juan<br />

Pérez <strong>de</strong> Tu<strong>de</strong>la Bueso).<br />

Madrid: Ed. Atlas, 1992<br />

Juan Gil, Mitos y Utopías<br />

<strong>de</strong>l Descubrimiento. 3<br />

vols. Madrid: Alianza Editorial,<br />

1988<br />

Hernán Pérez <strong>de</strong> Oliva, História<br />

<strong>de</strong> la Invención <strong>de</strong> las<br />

Indias. Bogotá, 1965<br />

J. H. Elliott, El Viejo Mundo<br />

y el Nuevo (1492-1650).<br />

Madrid: Alianza Editorial, 1995<br />

Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda,<br />

Visão do Paraíso.<br />

Os motivos edênicos<br />

no <strong>de</strong>scobrimento e<br />

colonização do Brasil.<br />

São Paulo: Editora Brasiliense,<br />

1994


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 86<br />

No rasto <strong>de</strong> Cabral<br />

António Borges Coelho<br />

87<br />

OS NAVEGANTES<br />

Ao lermos os mais antigos relatos <strong>de</strong><br />

aportagem à costa brasileira, sentimo-nos<br />

como Noé a olhar da barca. As águas<br />

baixaram, a terra emerge do azul. Começamos<br />

a dar nome às coisas, aos cabos, aos<br />

rios, às plantas, aos animais. Ao nomeá-las,<br />

marcamo-las para a posse. A bordo da arca<br />

vão carneiros, galinhas. Mas outros animais<br />

estão já há milhares e milhões <strong>de</strong> anos no<br />

terreno.Animais e homens.<br />

Mediada pelos oradores sagrados, a Bíblia<br />

constituía a matriz europeia da história e da<br />

explicação do Mundo. Mas se Noé <strong>de</strong>sembarcou,<br />

lançou as sementes à terra, comeu as<br />

uvas, bebeu o vinho e ficou ébrio, estes<br />

primeiros nautas não chegam como sobreviventes<br />

do dilúvio nem só ao sabor das<br />

águas. Manobram navios veleiros, <strong>de</strong>terminam<br />

vitoriosamente o rumo com a bússola,<br />

a medição da altura do sol e das estrelas,<br />

lêem o não visível caminho nas folhas inventadas<br />

e em correcção das cartas <strong>de</strong> marear.<br />

Nos primeiros tempos, o Atlântico Sul<br />

é um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> água. A todo o momento,<br />

as vagas po<strong>de</strong>m abrir-se e engolir um<br />

navio, o <strong>de</strong> Vasco <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, sem nos ficar<br />

um grito, um sinal no murmurar das águas.<br />

Numa viagem <strong>de</strong> mês e meio, podiam não<br />

avistar uma vela. Mas a armada <strong>de</strong> Pedro<br />

Álvares Cabral, formada por 13 navios e<br />

1500 homens, era uma das gran<strong>de</strong>s vilas<br />

ou cida<strong>de</strong>s portuguesas que navegava no<br />

Mar Oceano.<br />

Em 1530, Pêro Lopes <strong>de</strong> Sousa encontrava<br />

uma caravela e um navio que regressavam<br />

das pescarias do Cabo Branco; em<br />

Cabo Ver<strong>de</strong>, uma nau e uma chalupa<br />

castelhanas que pretendiam alcançar o<br />

Maranhão; e, na costa, duas naus francesas<br />

na carga do pau-brasil e uma caravela portuguesa<br />

cujo <strong>de</strong>stino era Sofala, mas<br />

preferiu a caça aos escravos ameríndios. O<br />

Atlântico povoava-se <strong>de</strong> veleiros.<br />

E, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, os navegantes têm <strong>de</strong><br />

apelar às armas, às <strong>de</strong> metal e às da fé, para<br />

se precaverem contra os maus encontros. O<br />

perigo não estava só nas tempesta<strong>de</strong>s, no<br />

mau estado dos navios roídos pelo gusano,<br />

mas principalmente nos franceses<br />

huguenotes, nos ingleses, nos holan<strong>de</strong>ses e<br />

mouriscos. Jorge <strong>de</strong> Albuquerque Coelho<br />

embarcou em Olinda na Santo António, em<br />

1565. A nau abriu tanta água que davam à<br />

bomba dia e noite. Depois encontraram<br />

corsários franceses, primeiro junto das<br />

ilhas <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> e, mais tar<strong>de</strong>, ao largo<br />

dos Açores. Os corsários, além <strong>de</strong> franceses,<br />

incluíam ingleses, escoceses e alguns<br />

portugueses, um <strong>de</strong>les conhecido <strong>de</strong> Jorge<br />

<strong>de</strong> Albuquerque. Este resistiu ao assalto<br />

com as poucas armas que levava, mas o<br />

navio foi entregue pelo piloto, o mestre e<br />

os marinheiros. Maltratados, roubados e<br />

abandonados, sem leme e sem provisões,<br />

andaram três semanas à <strong>de</strong>riva. Durante<br />

<strong>de</strong>zassete dias não beberam água. Alguns<br />

morreram <strong>de</strong> fome. Outros pediram licença<br />

ao capitão para comerem os que morriam.<br />

Jorge <strong>de</strong> Albuquerque Coelho respon<strong>de</strong>u<br />

com os olhos rasos <strong>de</strong> água: enquanto fosse<br />

vivo, tal não havia <strong>de</strong> consentir e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

morto, que o comessem a ele primeiro.<br />

Os companheiros <strong>de</strong> Pedro Álvares<br />

Cabral e dos outros capitães que aportaram<br />

ao Brasil eram filhos <strong>de</strong> camponeses,<br />

capitães, pilotos, mestres, calafates, carpinteiros,<br />

tanoeiros, ferreiros, marinheiros,<br />

fidalgos, fra<strong>de</strong>s, mercadores, aventureiros,<br />

<strong>de</strong>gredados, escravos e alguns línguas, como<br />

o piloto Pêro Anes.<br />

Com pilotos, mestres e alguns capitães<br />

capazes <strong>de</strong> manobrar o quadrante e o<br />

astrolábio, e tantas vezes <strong>de</strong> sonda na mão


ou dia e noite por baixo da coberta a<br />

bombear a água, estes navegantes obravam<br />

por «experiência verda<strong>de</strong>ira». Pêro Lopes<br />

<strong>de</strong> Sousa fez construir em terra dois<br />

bergantins <strong>de</strong> 15 bancos e na nau uma jangada<br />

em que lançou ferro e a forja para<br />

fazer os pregos necessários ao batel que a<br />

bordo construía. Jorge <strong>de</strong> Albuquerque<br />

Coelho empenhava-se no fabrico dos pregos<br />

que pregava ainda quentes nas tábuas<br />

do resto da nau Santo António.<br />

As relíquias e os santos esculpidos e<br />

pintados na proa das naus esconjuravam os<br />

<strong>de</strong>mónios e protegiam os nautas contra<br />

todos os perigos. Mas não faltaram prisioneiros,<br />

náufragos, afogados, <strong>de</strong>spedaçados<br />

pelas balas e as espadas ou mortos <strong>de</strong><br />

pasmo. Empurrados pela pressa da morte,<br />

se faltava padre, confessavam-se uns aos<br />

outros em altas vozes: Não matarás, matei!<br />

Não roubarás, roubei! Não <strong>de</strong>sejarás a mulher<br />

do próximo, <strong>de</strong>sejei e tomei!<br />

Estes navegadores portugueses têm as<br />

pernas arqueadas <strong>de</strong> tanto sofrer nas tábuas<br />

os baldões das vagas.Têm olhos <strong>de</strong> albatroz.<br />

Vêem até ao mais fundo do horizonte.<br />

Nas caravelas e nas naus viajavam também<br />

passageiros invisíveis: os armadores,<br />

os mercadores que fretavam os navios, os<br />

seguradores, os contratadores do pau-<br />

-brasil, do trato dos escravos, o próprio rei<br />

a cuja lei mais ou menos obe<strong>de</strong>cem,<br />

mesmo que a ban<strong>de</strong>ira da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

Cristo, e não a do rei, on<strong>de</strong>ie na primeira<br />

missa celebrada no Brasil.<br />

DA TERRA E DOS HOMENS<br />

Os primeiros olhares exprimem espanto,<br />

<strong>de</strong>sconfiança, cálculos do proveito.<br />

Admiram a terra em vários tons. É <strong>de</strong><br />

muito bons ares, frios e temperados como<br />

os <strong>de</strong> Entre Douro e Minho. É a mais<br />

aprazível que jamais cui<strong>de</strong>i <strong>de</strong> ver: não<br />

havia homem que se fartasse <strong>de</strong> olhar os<br />

campos e a formosura <strong>de</strong>les. Os montes<br />

parecem formosos jardins e hortas, e nunca<br />

eu vi tapeçaria <strong>de</strong> Flandres tão formosa.<br />

Formosa, formosa. É algum tanto<br />

melancólica, regada <strong>de</strong> muitas águas, <strong>de</strong> rios<br />

caudais e do céu; é cheia <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s arvoredos<br />

que todo o ano são ver<strong>de</strong>s, e montuosa,<br />

principalmente nas fraldas do mar.<br />

Quando os ameríndios saem da sombra<br />

das árvores e caminham pela praia <strong>de</strong><br />

Porto Seguro, as imagens vivas trazem à<br />

memória a nu<strong>de</strong>z bíblica e imaginária <strong>de</strong><br />

Adão e Eva, cercados pelas bonda<strong>de</strong>s do<br />

paraíso terreal. Os portugueses, vestidos,<br />

sentem-se nus. Olham sem vergonha as<br />

vergonhas. É um olhar <strong>de</strong> homens. Percorre<br />

<strong>de</strong>vagar a nu<strong>de</strong>z das ameríndias que não<br />

temem comparação com as mulheres da<br />

rua Nova <strong>de</strong> Lisboa e repara que os homens<br />

silvestres não são circuncidados, ao contrário<br />

dos hebreus.<br />

A inocência <strong>de</strong>sta gente é tal, que a <strong>de</strong><br />

Adão, em vergonha, não seria maior. Um<br />

ameríndio nu, coberto <strong>de</strong> penas, lembra o<br />

corpo trespassado <strong>de</strong> setas <strong>de</strong> São Sebastião.<br />

Portugueses e ameríndios dançam ao som<br />

do gaiteiro <strong>de</strong> Diogo Dias e dum tamboril,<br />

<strong>de</strong> tal maneira confiados «que são muito<br />

mais nossos amigos que nós seus». Mais<br />

amigos porque os europeus já fazem os<br />

seus cálculos: para os convertermos à fé<br />

cristã e, portanto, para os usarmos ao nosso<br />

serviço, não falta mais do que «enten<strong>de</strong>rem-nos»<br />

e não enten<strong>de</strong>rmo-nos.<br />

Trinta anos volvidos, Pêro Lopes <strong>de</strong><br />

Sousa preserva a i<strong>de</strong>ia da inocência e da<br />

beleza dos ameríndios. Abraçam os portugueses,<br />

choram com as suas <strong>de</strong>sventuras<br />

e ficam tão contentes <strong>de</strong> os verem que<br />

«queriam sair fora <strong>de</strong> seu siso».<br />

No primeiro diálogo entre Pedro<br />

Álvares Cabral e os ameríndios, os<br />

europeus usam logo o alfabeto do ouro e<br />

da prata. Não obtêm respostas satisfatórias.<br />

«Até agora não po<strong>de</strong>mos saber<br />

que haja ouro, nem prata, nem nenhuma<br />

cousa <strong>de</strong> metal, nem <strong>de</strong> ferro; nem lho<br />

vimos.» Ainda se mostraram esperançados<br />

quando os índios, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> admirarem o<br />

colar <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> Pedro Álvares, acenaram<br />

para terra. Mas Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha<br />

<strong>de</strong>sconfia que é tomar os <strong>de</strong>sejos pela<br />

realida<strong>de</strong>. «Isto tomávamos nós por o<br />

<strong>de</strong>sejarmos; mas se ele queria dizer que<br />

levaria as contas e mais o colar, isto não<br />

queríamos nós enten<strong>de</strong>r, porque não lhos<br />

havíamos <strong>de</strong> dar.»<br />

Nas primeiras viagens, estão já presentes<br />

as personagens do futuro: a massa<br />

dos ameríndios, senhores da terra; os


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 88<br />

89<br />

pequenos <strong>de</strong>stacamentos portugueses e<br />

europeus; e anónimos, nas equipagens, os<br />

africanos. Não têm nome mas estão lá.<br />

Até ao final do século XVI, o confronto<br />

principal será entre as comunida<strong>de</strong>s ameríndias<br />

e os europeus que chegavam nos seus<br />

veleiros em busca do pau-brasil e dos<br />

escravos.<br />

Nos primeiros tempos, a atracção<br />

maior provinha das comunida<strong>de</strong>s ameríndias.<br />

Pedro Álvares Cabral <strong>de</strong>ixou na terra<br />

dois <strong>de</strong>gredados, a que se juntaram dois<br />

grumetes fugitivos. O mesmo aconteceu<br />

na armada <strong>de</strong> Martim Afonso <strong>de</strong> Sousa.<br />

João Ramalho, o povoador <strong>de</strong> Piratininga,<br />

vivia ro<strong>de</strong>ado das suas mulheres índias, filhos<br />

e netos. No Rio <strong>de</strong> Janeiro, alguns<br />

franceses da França Antárctica adoptaram o<br />

viver dos índios, incluindo nalguns casos a<br />

prática da antropofagia. Os clérigos concubinavam.<br />

O sertão estava cheio <strong>de</strong> filhos <strong>de</strong><br />

cristãos, gran<strong>de</strong>s e pequenos, machos e<br />

fêmeas que viviam e se criavam nos costumes<br />

do gentio, escrevia o padre Manuel<br />

da Nóbrega.<br />

A partir <strong>de</strong> meados do século, quando<br />

começa a <strong>de</strong>senvolver-se a nova socieda<strong>de</strong>, a<br />

visão europeia dos ameríndios sofre conotações<br />

extremamente negativas, em boa<br />

parte <strong>de</strong>vidas à prática da antropofagia, à<br />

poligamia e à recusa dos mol<strong>de</strong>s europeus.<br />

Manuel da Nóbrega chama-lhes «negros»,<br />

embora não seja essa a cor da sua pele.<br />

Mesmo cristianizados, não per<strong>de</strong>m <strong>de</strong> todo<br />

a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negros. A princípio, o padre<br />

ainda ridiculariza os seus irmãos <strong>de</strong><br />

Coimbra que se escandalizavam com a<br />

nu<strong>de</strong>z das ameríndias: «por falta <strong>de</strong> algumas<br />

ceroulas não <strong>de</strong>ixa uma alma <strong>de</strong> ser cristã e<br />

conhecer a seu Criador e Senhor e dar-lhe<br />

glória». Mas, mais tar<strong>de</strong>, levanta dúvidas aos<br />

letrados do Colégio <strong>de</strong> Coimbra: «parece<br />

que andar nu é contra lei <strong>de</strong> natura e quem<br />

a não guarda peca mortalmente». No Diálogo<br />

sobre a Conversão do Gentio, o irmão Gonçalo<br />

Alvarez afirma que algumas pessoas avisadas<br />

levantavam a questão <strong>de</strong> saber se os ameríndios<br />

eram nossos próximos, duvidando<br />

mesmo se seriam humanos. Respon<strong>de</strong>-lhe o<br />

irmão Mateus Nogueira, ferreiro pelo ofício:<br />

todo o homem é uma mesma natureza<br />

e po<strong>de</strong> conhecer Deus e salvar a sua alma.<br />

O elogio da inocência e a visão negativa<br />

prosseguem nos textos jesuíticos. Num<br />

<strong>de</strong>sabafo, o padre José Anchieta <strong>de</strong>clara os<br />

ameríndios mais próximos da natureza dos<br />

animais selvagens que da dos homens. No<br />

entanto, o padre Fernão Cardim, que confessava<br />

índios e índias por meio <strong>de</strong> intérprete,<br />

consi<strong>de</strong>rava-os candidíssimos e com<br />

menos pecados do que os portugueses.<br />

Esta visão contraditória tem a ver com a<br />

maior ou menor resistência dos ameríndios<br />

à integração na nova socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> os<br />

jesuítas pretendiam <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />

dominante. «A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro chegará ao<br />

mundo austral», escreve o autor anónimo<br />

do poema «De rebus gestis Mendi <strong>de</strong> Saa».<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, «quando os povos do Brasil<br />

observarem as tuas leis».<br />

À MANEIRA DE HARPA<br />

O rosto da terra aparece figurado logo<br />

em 1502 no mapa português chamado <strong>de</strong><br />

Cantino que sobre ela pinta papagaios vermelhos.<br />

Outros mapas vão <strong>de</strong>svendando a<br />

terra, os índios e o seu trabalho na recolha<br />

do pau-brasil. Por volta <strong>de</strong> 1506, Duarte<br />

Pacheco Pereira me<strong>de</strong> a costa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a angra<br />

<strong>de</strong> S. Roque, a 3 graus e 30 minutos a sul do<br />

equador, até à ilha <strong>de</strong> Santo Amaro em 28<br />

graus e 30 minutos. Este será o cenário fundamental<br />

da nova socieda<strong>de</strong> no século XVI.<br />

E anota já o cabo <strong>de</strong> Santo Agostinho, o rio<br />

<strong>de</strong> S. Francisco, a aguada <strong>de</strong> São Miguel, o<br />

Porto Real, a Angra <strong>de</strong> Todos-os-Santos,<br />

Porto Seguro, o rio <strong>de</strong> Santa Luzia, a ilha <strong>de</strong><br />

Santa Bárbara, o rio dos Reféns, a ilha <strong>de</strong><br />

Santa Clara, o Cabo Frio, a ilha <strong>de</strong> Fernão e a<br />

ilha <strong>de</strong> Santo Amaro. Esta notação da costa<br />

brasileira liga-se à notação da carreira da<br />

Índia: ilha da Ascensão, Angra Formosa e a<br />

índica ilha <strong>de</strong> São Lourenço.<br />

Numa cartografia <strong>de</strong> palavras, escrita<br />

pelo ano <strong>de</strong> 1575, o humanista Pêro <strong>de</strong><br />

Magalhães Gândavo <strong>de</strong>screve <strong>de</strong>ste modo a<br />

Província <strong>de</strong> Santa Cruz: «Está situada<br />

naquela gran<strong>de</strong> América, uma das quatro<br />

partes do Mundo. Dista o seu princípio dois<br />

graus da Equinocial para a banda do Sul e<br />

daí se vai esten<strong>de</strong>ndo para o mesmo sul até<br />

quarenta e cinco graus. Está formada à<br />

maneira <strong>de</strong> uma harpa. Pela banda do Norte<br />

corre do Oriente a Oci<strong>de</strong>nte e está olhando


a Equinocial. Pela do Sul confina com outras<br />

províncias da mesma América, povoadas e<br />

possuídas <strong>de</strong> povo gentílico com que ainda<br />

não temos comunicação. Pela do Oriente<br />

com o Mar Oceano Áfrico e olha direitamente<br />

os reinos <strong>de</strong> Congo e Angola até o<br />

Cabo da Boa Esperança que é o seu opósito.<br />

E pela do Oci<strong>de</strong>nte confina com as altíssimas<br />

terras dos An<strong>de</strong>s e fraldas do Peru.»<br />

O mar assegurava a unida<strong>de</strong> do território.<br />

O Oceano e os rios eram as estradas<br />

naturais, sulcadas no final do século por<br />

alguns milhares <strong>de</strong> embarcações, sem contar<br />

os navios gran<strong>de</strong>s e mais pequenos que<br />

atravessavam o Mar Oceano. Todas as fazendas<br />

se serviam por mar. Não havia engenho<br />

que não possuísse quatro ou mais embarcações.<br />

Em 1587, só na Baía, podiam juntar-<br />

-se 1400 barcos, assim distribuídos: 100, <strong>de</strong><br />

45 para 70 palmos <strong>de</strong> quilha, muito fortes,<br />

que podiam levar 2 falcões por proa e 2<br />

berços por banda; 800, <strong>de</strong> 35 a 44 palmos<br />

on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> jogar, no mínimo, 1 berço por<br />

proa; 300 barcos, <strong>de</strong> 34 palmos para baixo,<br />

e 200 canoas bem rumadas.<br />

No final do século, a nova socieda<strong>de</strong><br />

ainda ficava presa ao litoral e ao território<br />

ligado pelas estradas fluviais. A cunha mais<br />

avançada em direcção ao interior era a vila<br />

<strong>de</strong> Piratininga.<br />

Devido às condições naturais e à sua<br />

posição estratégica que lhe permitia um<br />

acesso mais rápido a Lisboa, Pernambuco<br />

constituía zona <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

seguido pela Baía on<strong>de</strong> se fixava o Governo-<br />

-Geral. A capitania <strong>de</strong> S. Vicente e mesmo a<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro queixavam-se <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> escoamento da sua produção por<br />

os navios do reino aportarem com menos<br />

regularida<strong>de</strong>. Ao visitar a vila <strong>de</strong> Piratininga,<br />

Fernão Cardim registou que os moradores<br />

se vestiam <strong>de</strong> burel e pelotes pardos e azuis,<br />

<strong>de</strong> pertinas compridas, como antigamente,<br />

o que contrastava com as sedas, os damascos<br />

e os luxos das mulheres <strong>de</strong> Olinda.<br />

Em 1590, a nova socieda<strong>de</strong> estendia-se<br />

da Paraíba a Santo Amaro e po<strong>de</strong>ria contar,<br />

segundo um estudo recente, com 101 705<br />

habitantes, dos quais 30 855 eram portugueses,<br />

28 600 eram índios escravos ou<br />

vivendo nos al<strong>de</strong>amentos dos jesuítas, e<br />

42 250 africanos. As capitanias mais<br />

povoadas eram a <strong>de</strong> Pernambuco com<br />

31 000 habitantes, a da Baía com 29 850, e<br />

a do Espírito Santo com 11 900. O Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, com 5240 moradores, distanciava-se<br />

<strong>de</strong> São Vicente/Santo Amaro com 10 100, e<br />

do Espírito Santo, com 7595.<br />

Os números indiciam uma baixa integração<br />

dos ameríndios na nova socieda<strong>de</strong>,<br />

embora no total dos portugueses se contassem<br />

muitos mestiços <strong>de</strong> mães ameríndias<br />

e africanas. A maior parte dos habitantes<br />

<strong>de</strong> Piratininga eram filhos <strong>de</strong> índias e<br />

<strong>de</strong> portugueses.<br />

Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa escreveu que a<br />

vila <strong>de</strong> Olinda e o seu termo po<strong>de</strong>riam pôr<br />

em campo mais <strong>de</strong> 3000 homens <strong>de</strong> peleja,<br />

entre os quais 400 <strong>de</strong> cavalo, a que juntariam<br />

4000 a 5000 escravos <strong>de</strong> Guiné e<br />

muitos gentios da terra. Pelo seu lado, em<br />

1583, Fernão Cardim atribuiu à Baía, certamente<br />

à cida<strong>de</strong> e ao termo, 3000 vizinhos<br />

portugueses, 8000 índios cristãos e 3000 a<br />

4000 escravos da Guiné. Pernambuco li<strong>de</strong>rava<br />

a produção açucareira, a Baía constituía<br />

o centro político do território e, porventura,<br />

a principal praça mercantil e financeira,<br />

como sugerem os valores das letras <strong>de</strong><br />

câmbio do mercador Miguel Dias Santiago.<br />

As letras da Baía sobre Lisboa, entre 1596 e<br />

1599, elevavam-se a 7 925 398 reais, enquanto<br />

as <strong>de</strong> Pernambuco sobre Lisboa,<br />

entre 1599 e 1601, se ficavam pelos<br />

3 272 099. Por outro lado, as letras da Baía<br />

sobre Pernambuco, ainda nos anos <strong>de</strong> 1596<br />

a 1599, somaram 1 055 440 reais, enquanto<br />

as <strong>de</strong> Pernambuco sobre a Baía, entre os anos<br />

<strong>de</strong> 1599 e 1601, se ficaram pelos 201 500.<br />

O mercador movimentou ainda, entre 1599<br />

e 1601, 434 760 reais <strong>de</strong> Pernambuco sobre<br />

a praça do Porto e 55 000 reais <strong>de</strong> Pernambuco<br />

sobre Viana.<br />

Demograficamente, que outra cida<strong>de</strong>,<br />

com excepção <strong>de</strong> Lisboa, e do ponto <strong>de</strong><br />

vista financeiro, com excepção <strong>de</strong> Lisboa e<br />

Porto, se po<strong>de</strong>ria ufanar do peso humano e<br />

<strong>de</strong> fortunas <strong>de</strong> 10 000 a 80 000 cruzados,<br />

incluídos 100 a 300 escravos, como alguns<br />

moradores <strong>de</strong> Olinda e da Baía? Gândavo lá<br />

tinha as suas razões quando incitava os portugueses<br />

a <strong>de</strong>mandarem o Brasil: Deus<br />

tinha <strong>de</strong> há muito reservada esta terra à<br />

Cristanda<strong>de</strong>.<br />

PARA SABER MAIS:<br />

Frédéric Mauro, Le Portugal,<br />

le Brésil et l’Atlantique<br />

(1570-1670), Paris,<br />

Fundação Calouste<br />

Gulbenkian, 1983<br />

Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa,<br />

Notícia do Brasil, Lisboa,<br />

Publicações Alfa, 1989<br />

Jorge Couto, A Construção<br />

do Brasil, Lisboa,<br />

Edições Cosmos, 1995<br />

Pêro <strong>de</strong> Magalhães Gândavo,<br />

História da Província<br />

Santa Cruz a que<br />

vulgarmente<br />

chamamos Brasil,<br />

ed., fac-similada, Lisboa,<br />

Biblioteca Nacional, 1984<br />

Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha,<br />

Carta a El-Rei<br />

D. Manuel,<br />

ed. <strong>de</strong> M. Viegas Guerreiro<br />

e Eduardo Nunes, Lisboa,<br />

Imprensa Nacional-Casa<br />

da Moeda, 1974


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 90<br />

Carta do Novo<br />

Mundo<br />

Ao serviço <strong>de</strong> D. Manuel, Américo Vespúcio realizou<br />

uma viagem ao litoral sul-americano, em 1501, tendo<br />

<strong>de</strong>sembarcado em Terra Firme, algures entre a Vene-<br />

zuela e o Brasil, e permanecido 27 dias com os índios<br />

do Brasil. Ressaltam, da carta que escreveu ao chegar a<br />

Lisboa, o <strong>de</strong>slumbramento pela Natureza edénica e a<br />

surpresa por tanta diversida<strong>de</strong>.<br />

91<br />

Américo Vespúcio escreve, <strong>de</strong> Lisboa, a Lorenzo di Pierfrancesco <strong>de</strong>’ Medici, em Florença


[...] Esta tierra es muy amena y llena<br />

<strong>de</strong> infinitos árboles ver<strong>de</strong>s y muy gran<strong>de</strong>s,<br />

y nunca pier<strong>de</strong>n la hoja, y todos tienen<br />

olor suavísimo y aromático, y producen<br />

infinitisimas frutas, y muchas <strong>de</strong> ellas<br />

buenas al gusto y salutíferas al cuerpo. Los<br />

campos producen mucha hierba, flores y<br />

raíces muy suaves y buenas, que alguna<br />

vez me maravillaba <strong>de</strong>l suave olor <strong>de</strong> las<br />

hierbas y flores, y <strong>de</strong>l sabor <strong>de</strong> estas frutas<br />

y raíces, tanto que entre mí pensaba estar<br />

cerca <strong>de</strong>l Paraíso Terrenal: entre todos estos<br />

elementos hubiera creído estar cerca<br />

<strong>de</strong> él. ¿Qué diremos <strong>de</strong> la cantidad <strong>de</strong> los<br />

pájaros y <strong>de</strong> sus plumajes y colores y cantos,<br />

y cuantas especies y <strong>de</strong> cuanta hermosura<br />

(no quiero alargarme en esto porque<br />

dudo ser creído)? ¿Quién podría enumerar<br />

la infinita cosa <strong>de</strong> los animales silvestres,<br />

tanta copia <strong>de</strong> leones, onzas, gatos,<br />

no ya <strong>de</strong> España, sino <strong>de</strong> las antípodas,<br />

tantos lobos, cervales, babuinos y macacos<br />

<strong>de</strong> tantas suertes y muchas sierpes gran<strong>de</strong>s?<br />

Y vimos tantos otros animales, que<br />

creo que tantas suertes no entrasen en el<br />

arca <strong>de</strong> Noé, y tantos jabalís y corzos y<br />

ciervos y gamos y liebres y conejos; y animales<br />

domésticos no vimos ninguno.<br />

Volvamos a los animales racionales.<br />

Encontramos toda la tierra habitada por<br />

gente toda <strong>de</strong>snuda, así los hombres como<br />

las mujeres, sin cubrirse vergüenza ninguna.<br />

Son <strong>de</strong> cuerpo bien dispuesto y proporcionados,<br />

<strong>de</strong> colores blancos y <strong>de</strong> cabellos<br />

largos y negros, y <strong>de</strong> poca barba o<br />

ninguna. Mucho trabajé para conocer su<br />

vida y costumbres, porque 27 días comí y<br />

dormí entre ellos, y lo que conocí <strong>de</strong> ellos<br />

es lo que sigue enseguida.<br />

No tienen ni ley ni fe ninguna, viven<br />

<strong>de</strong> acuerdo a la naturaleza, no conocen la<br />

inmortalidad <strong>de</strong>l alma. No tienen entre<br />

ellos bienes propios, porque todo es común;<br />

no tienen límites <strong>de</strong> reinos ni <strong>de</strong><br />

provincia, no tienen rey ni obe<strong>de</strong>cen a nadie:<br />

cada uno es señor <strong>de</strong> sí mismo. No<br />

administran la justicia, la que no les es necesaria,<br />

porque no reina entre ellos codicia.<br />

Habitan en común en casas hechas a la<br />

manera <strong>de</strong> cabañas muy gran<strong>de</strong>s, y para<br />

gentes que no tienen hierro ni otro metal<br />

ninguno, se pue<strong>de</strong>n consi<strong>de</strong>rar sus caba-<br />

ñas, o bien sus casas, maravillosas, porque<br />

he visto casas <strong>de</strong> 220 pasos <strong>de</strong> largo y 30<br />

<strong>de</strong> ancho, y construidas con arte, y en una<br />

<strong>de</strong> estas casas hay 500 o 600 almas. Duermen<br />

en re<strong>de</strong>s tejidas <strong>de</strong> algodón, colgadas<br />

en el aire sin otra cobertura; comen sentados<br />

en el suelo: sus viandas son muchas<br />

raíces y hierbas y frutas muy buenas, infinito<br />

pescado, gran copia <strong>de</strong> mariscos, erizos<br />

y cangrejos <strong>de</strong> mar, ostras, langostas,<br />

camarones, y muchas otras cosas que produce<br />

el mar. La carne que comen, máxime<br />

la común, es carne humana, <strong>de</strong>l modo que<br />

se dirá. Cuando pue<strong>de</strong>n tener otra carne<br />

<strong>de</strong> animales o <strong>de</strong> aves, se la comen, pero<br />

toman pocos, porque no tienen perros, y<br />

la tierra está muy poblada <strong>de</strong> bosques, los<br />

cuales están llenos <strong>de</strong> fieras crueles, y por<br />

eso no acostumbram internarse en los<br />

bosques, si no es con mucha gente.<br />

[...] En cuanto a la disposición <strong>de</strong> la<br />

tierra, digo que es tierra muy amena y<br />

templada y sana, porque durante el tiempo<br />

que anduvimos por ella, que fueron 10<br />

meses, no sólo no murió ninguno <strong>de</strong> nosotros,<br />

sino que pocos se enfermaron: como<br />

he dicho, ellos viven mucho tiempo, y<br />

no sienten enfermedad <strong>de</strong> peste ni <strong>de</strong> corrupción<br />

<strong>de</strong>l aire, excepto <strong>de</strong> muerte natural<br />

o causada por su mano o sofocamiento;<br />

y en conclusión, los médicos tendrían<br />

un mal pasar en tal lugar.<br />

Encontramos infinito brasil y muy<br />

bueno para cargar cuantos navíos están<br />

hoy en el mar, y sin costo alguno, y lo<br />

mismo <strong>de</strong> cañafístula. Vimos cristal e infinitos<br />

sabores y olores <strong>de</strong> especiería y droguería,<br />

pero <strong>de</strong>sconocidas. Los hombres<br />

<strong>de</strong>l país dicen sobre el oro y otros metales<br />

y droguerías muchos milagros, pero yo<br />

soy <strong>de</strong> aquellos <strong>de</strong> Santo Tomás: el tiempo<br />

hará todo.<br />

[...]<br />

Lisboa, 1502<br />

Amerigo Vespucci, Cartas <strong>de</strong><br />

viaje, Madrid, Alianza Editorial,<br />

1986


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 92<br />

93<br />

Desassossego<br />

<strong>de</strong> uma mãe<br />

ausente<br />

Os emigrantes ibéricos na América mantinham com<br />

os amigos e familiares ausentes uma relação afectiva<br />

reafirmada nas cartas que circulavam para cá e para<br />

lá. Para nós, leitores, <strong>de</strong>svendar o mundo dos afectos e<br />

das inquietações <strong>de</strong>sses homens e <strong>de</strong>ssas mulheres que<br />

partiram movidos pela fortuna, mas <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong><br />

reagrupar a família, é uma viagem ao fundo das<br />

emoções. Eis uma carta <strong>de</strong> uma mãe espanhola,<br />

emigrante no Panamá, para a filha, recém-casada<br />

com um livreiro em Valladolid.


Panamá, 9 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 1578<br />

Amados hijos:<br />

Vuestras cartas he recibido, las unas<br />

con mi hermano Hernando Pecero y las<br />

otras con Juan Jiménez <strong>de</strong>l Río, el cual está<br />

al presente en esta ciudad y os escribe. En<br />

lo que, hija, me enviáis a <strong>de</strong>cir habéis pasado<br />

y pasáis mucho trabajo, yo estoy informada<br />

que será así, y duéleme tanto y hame<br />

dolido que no sé cómo lo signifique. Para<br />

eso nacimos en este mundo, para pasar trabajo,<br />

y que si yo significase los que he pasado,<br />

son hartos, pero con ser las gentes<br />

buenas y virtuosas Dios se acuerda <strong>de</strong> ellas<br />

a las mayores necesida<strong>de</strong>s. Pésame que<br />

vuestro tío haya usado tantas cruelda<strong>de</strong>s<br />

con vos; débelo haber hecho no haber vos<br />

sabido llevarle la voluntad. Como quiera<br />

que sea, es vuestra sangre, y habéis <strong>de</strong> sufrirle<br />

como vuestro padre, pues no conociestes<br />

otro. A las buenas y a los buenos da<br />

Dios trabajos en este mundo, y se acuerda<br />

<strong>de</strong> ellos. Y así, hija mía, os ruego que no<br />

tengáis odio con vuestro tío, sino que lo<br />

obe<strong>de</strong>zcáis como a padre, y le tengáis como<br />

a señor, si él no hiciere lo que <strong>de</strong>be o<br />

no lo ha hecho. Es menester que perdáis<br />

ese rencor, y no os acordéis <strong>de</strong> nada, sino<br />

enten<strong>de</strong>r que Dios os hace mucha merced,<br />

y que no naciesteis en su hucia [?], sino en<br />

la <strong>de</strong> Dios, que es padre <strong>de</strong> todos.<br />

Escribísme sois casada con un librero,<br />

hombre <strong>de</strong> bien, y que estáis pobre y pasáis<br />

trabajos. De que vos tengáis buen marido<br />

me da mucho contento. Que no sea rico, si<br />

es virtuoso y hombre <strong>de</strong> bien y buen cristiano,<br />

Dios le hará la hacienda, mayormente<br />

que, pues Dios me ha dado vida hasta saber<br />

<strong>de</strong> vosotros, espero en Su Divina Majestad<br />

me la dará hasta veros muy bien remediados.Y<br />

así es mi <strong>de</strong>terminación que, vista ésta,<br />

procuréis que vuestro marido saque licencia<br />

<strong>de</strong>l Consejo Real para po<strong>de</strong>r venir a<br />

estas partes y al Perú, y, sacada, vendáis las<br />

hereda<strong>de</strong>s que vuestro tío os dio, y os vengáis<br />

hasta Sevilla, don<strong>de</strong> es mi voluntad <strong>de</strong><br />

que estéis hasta que tengáis or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> lo<br />

que habéis <strong>de</strong> hacer.Y para esto os escribirá<br />

mi marido y vuestro señor, y os enviará alguna<br />

plata. Lo que os enviare tendréis en<br />

mucho, y sabréislo gobernar asentándolo a<br />

las espaldas <strong>de</strong> vuestra carta <strong>de</strong> dote, y escribiendo<br />

luego el recibo <strong>de</strong> ello.Y aunque<br />

sea poco, tenedlo en mucho, porque quien<br />

os ha <strong>de</strong> dar siempre y remediaros como a<br />

hijos, es menester que vaya sabiendo vuestro<br />

marido lo que vale el real. Y venidos<br />

acá, Dios queriendo, os remediaremos y<br />

daremos or<strong>de</strong>n en vuestras vidas.Y para esto<br />

escribe el señor Juan <strong>de</strong>l Río una memoria<br />

cómo os habéis <strong>de</strong> guiar, para que no<br />

erréis en lo que os conviene y cumple para<br />

vuestro buen aviamiento. Dios lo encamine<br />

como pue<strong>de</strong> y os me <strong>de</strong>je ver con bien, y<br />

veros y remediaros y <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> mi ala.<br />

Esta sirva para vos y para vuestro marido.Yo<br />

os ruego, hija, que, pues habéis sido<br />

mujer honrada, y tales nuevas tengo <strong>de</strong><br />

vos, que tengáis siempre <strong>de</strong>lante <strong>de</strong> los<br />

ojos esta honra, queriendo siempre bien a<br />

vuestro marido, ausente y presente, y estimándole<br />

en mucho. Y a él digo por ésta<br />

que le tengo por hijo y me huelgo esté casado<br />

con vos, y le ruego os trate bien y<br />

honradamente, apartándose <strong>de</strong> malas compañías,<br />

y procurando <strong>de</strong> hacer como hombre<br />

honrado.Y haciéndolo así, lo tendré en<br />

mucho y lo estimaré, aunque sea más pobre<br />

que pue<strong>de</strong> ser, porque las virtu<strong>de</strong>s sobrepujan<br />

a las riquezas.<br />

Así que, hijos, no os tengo más que os<br />

avisar, sino que, gloria a Nuestro Señor, tengo<br />

salud, y vuestro señor padre también la<br />

tiene, y vuestros hermanos y todos se os<br />

encomiendan y ruegan a Dios os tenga <strong>de</strong><br />

su mano y os me <strong>de</strong>je ver con bien. Decirme<br />

tenéis un hijo y nieto mío, y no me enviáis<br />

a <strong>de</strong>cir cómo se llama ni qué edad tiene.<br />

Avisarme eis <strong>de</strong> todo y escribiéndole a<br />

vuestro señor padre, y respondiéndole. Y<br />

con tanto Nuestro Señor os me guar<strong>de</strong> por<br />

muchos años, amén.<br />

De Panamá, y a 9 <strong>de</strong> mayo <strong>de</strong> 1578<br />

años, vuestra madre, que vuestra honra y<br />

<strong>de</strong>scanso <strong>de</strong>sea,<br />

Francisca <strong>de</strong> Trujillos<br />

Vuestra hermana os quería enviar<br />

unas joyas <strong>de</strong> oro: por no haber <strong>de</strong> quien<br />

fiarlo, no os lo envía. Cuando vengáis acá<br />

lo gozaréis.<br />

(Para los muy <strong>de</strong>seados hijos Diego<br />

<strong>de</strong> Torres y Juana <strong>de</strong> Trujillos, en la calle <strong>de</strong><br />

la librería, en Valladolid)<br />

Enrique Otte, Cartas<br />

Privadas <strong>de</strong><br />

Emigrantes a Indias<br />

(1540-1616), Sevilla,<br />

EEHAA, s.d.


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 94<br />

Nuestra America<br />

es vasta y intricada<br />

Pablo Neruda*<br />

95


Entre los invasores <strong>de</strong> Méjico –oscuros al<strong>de</strong>anos,<br />

braceros <strong>de</strong>l campo, forzados, aventureros<br />

y fugitivos – había un joven soldado llamado<br />

Bernal Díaz <strong>de</strong>l Castillo, el cual escribió<br />

sus memorias en edad ya bastante avanzada,<br />

cincuenta años más tar<strong>de</strong>, siendo consejero<br />

municipal en la América Central. He visto, he<br />

tenido en mis manos y he leído el enorme<br />

manuscrito, asegurado con una ca<strong>de</strong>na a una<br />

mesa, al alcance <strong>de</strong> todos, en el municipio <strong>de</strong><br />

Guatemala. Es curioso ver enca<strong>de</strong>nado ese<br />

gran libro, escrito con una caligrafía clara y<br />

esmerada, quizá por alguno <strong>de</strong> aquellos copistas<br />

que abundaban en España, dictado posiblemente<br />

por el viejo soldado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su sillón<br />

o <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el fondo <strong>de</strong> la cama, pero, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el fondo, <strong>de</strong> la increíble verdad.<br />

Bernal, a pesar <strong>de</strong> su edad, tenía una memoria<br />

que podía facilitarnos los nombres <strong>de</strong> los<br />

caballos y <strong>de</strong> las yeguas y <strong>de</strong> cada uno <strong>de</strong> los<br />

hombres, que siguieron a Hernán Cortés.<br />

[...] Aunque discutible, lo cierto es que<br />

aquel esplendor fue aniquilado por la sangre<br />

y las sombras. Hombres y vestiduras, templos<br />

y construcciones, dioses y reyes, todo fue <strong>de</strong>vorado,<br />

<strong>de</strong>struido y sepultado. La Conquista<br />

fue un gran incendio. Los conquistadores <strong>de</strong><br />

todos los tiempos y todas las latitu<strong>de</strong>s reciben<br />

un mundo vasto y resonante, <strong>de</strong>jan un planeta<br />

cubierto <strong>de</strong> cenizas. Siempre ha sido así. Nosotros<br />

los americanos, <strong>de</strong>scendientes <strong>de</strong> aquellas<br />

vidas y <strong>de</strong> aquella <strong>de</strong>strucción, hemos tenido<br />

que excavar, para buscar <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> las<br />

cenizas imperiales las gemas <strong>de</strong>slumbradoras<br />

y los colosales fragmentos <strong>de</strong> los dioses perdidos.<br />

O también hemos tenido que mirar a las<br />

alturas: a veces una torre <strong>de</strong> los antiguos<br />

tiempos, venciendo el miserable paso <strong>de</strong> los<br />

siglos, eleva su orgullo sobre el continente.<br />

Porque yo distingo el arte subterráneo y el<br />

arte <strong>de</strong> los espacios abiertos <strong>de</strong> los antiguos<br />

americanos. Y ésta es mi propia manera <strong>de</strong><br />

conocerlos y compren<strong>de</strong>rlos.<br />

Cuando, en años ya lejanos, vivía exiliado<br />

en la Ciudad <strong>de</strong> Méjico, vinieron dos extraños<br />

visitantes con la pretensión <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>rme su<br />

mercancía: traían un voluminoso paquete, envuelto<br />

en pringoso papel <strong>de</strong> periódico, que<br />

<strong>de</strong>satamos y abrimos allí, en mi mesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>spacho.<br />

Había centenares <strong>de</strong> figurillas <strong>de</strong> oro,<br />

acaso chimúes, chibchas o chiriquíes: un tesoro<br />

que palpitaba sobre mi pobre mesa con<br />

el fulgor amarillo <strong>de</strong>l pasado. Eran pendientes,<br />

anillos, pectorales, insignias, figuras <strong>de</strong><br />

pececillos, <strong>de</strong> extrañas aves, eran estrellas abstractas,<br />

círculos, líneas, discos, mariposas. Por<br />

aquella maravilla me pidieron doce mil dólares,<br />

cantidad que yo no poseía. Este tesoro lo<br />

habían encontrado trabajando en una carretera,<br />

entre Costa Rica y Panamá. Y se apresuraron<br />

a sacarlo <strong>de</strong>l país para ven<strong>de</strong>rlo en cualquier<br />

lugar. Abandonaron mi casa con su tesoro<br />

bajo el brazo, envuelto en periódicos viejos,<br />

y ya no he sabido a don<strong>de</strong> fueron a parar<br />

aquellos peces, aquellas mariposas, aquellos<br />

<strong>de</strong>stellos <strong>de</strong> oro.<br />

[...] Nuestra América es vasta e intrincada.<br />

Y a lo largo <strong>de</strong> su línea espiral, a lo largo<br />

<strong>de</strong> sus <strong>de</strong>smesurados ríos, <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> los<br />

montes y en los <strong>de</strong>siertos, e incluso en las<br />

calles <strong>de</strong> las ciuda<strong>de</strong>s recientemente excavadas<br />

y puestas al <strong>de</strong>scubierto, aparecen todos<br />

los días estos testimonios <strong>de</strong> oro. Son estatuillas<br />

antropomorfas, aztecas, olmecas,<br />

quimbayas, incas, chancayas, mochicas, nazcas,<br />

chimúes. Son millones <strong>de</strong> vasijas <strong>de</strong> cerámica<br />

y <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ra, enigmáticas figuras <strong>de</strong><br />

turquesas, <strong>de</strong> oro, trabajadas, tejidas: son<br />

millones <strong>de</strong> obras maestras rituales, figurativas,<br />

abstractas. Son escuelas y disciplinas, estilos<br />

excelsos, que representan la crueldad, la<br />

adoración, la humillación, la tristeza, la locura,<br />

la verdad, la alegría. Todo un mundo que<br />

palpitaba con las gran<strong>de</strong>s fiestas <strong>de</strong>saparecidas<br />

en torno a los enigmas <strong>de</strong> la vida y <strong>de</strong> la<br />

muerte, con los acontecimientos que alimentarán<br />

la poesía y la teogonía, en homenaje a<br />

la resurrección y consagración <strong>de</strong> la primavera,<br />

con su infinita sabiduría sexual, con el goce<br />

<strong>de</strong> la tierra en todas sus tentaciones y sus<br />

frutos, o ante el misterio <strong>de</strong>l silencio absoluto<br />

y <strong>de</strong> las posibles resurrecciones. Nuestros<br />

museos <strong>de</strong> Méjico, <strong>de</strong> Colombia y <strong>de</strong> Lima<br />

están repletos <strong>de</strong> estas figuras, que jamás fueron<br />

<strong>de</strong>gradadas ni aniquiladas bajo tierra.<br />

Precipitadamente fueron arrebatadas, sepultadas<br />

a lo largo <strong>de</strong> un camino cualquiera, fueron<br />

excomulgadas en todos los púlpitos coloniales,<br />

y al igual que sus creadores fueron<br />

perseguidas por centuriones y matarifes. Mas,<br />

<strong>de</strong>bajo <strong>de</strong> la tierra y <strong>de</strong>l agua, tras siglos <strong>de</strong><br />

oscuridad, continúan apareciendo, continúan<br />

dando su imperece<strong>de</strong>ro testimonio <strong>de</strong> múltiple<br />

gran<strong>de</strong>za.<br />

* Excerto do texto escrito por<br />

Neruda para a apresentação<br />

do livro Civilización<br />

Andina, <strong>de</strong> Roberto Magni e<br />

Enrique Guidoni, Valência,<br />

Mas-Ivars, 1972


A SEDE DO SUL 96<br />

Pisco<br />

Sonia Tello Rozas<br />

97


Baco. Jan van <strong>de</strong>r Straet [BN, EA 15 (42) P.]<br />

Nos últimos anos, com alguma<br />

indolência, eclodiu uma<br />

guerra entre produtores e comerciantes<br />

<strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte chilenos<br />

e peruanos. Não se trata da<br />

Guerra do Pacífico em que os<br />

chilenos saíram airosos e triunfantes,<br />

é a Guerra do «pisco».<br />

Até agora não houve mortos<br />

nem feridos. Mas as batalhas suce<strong>de</strong>m-se<br />

em distintos cenários<br />

e em regiões que não respeitam<br />

os espaços tradicionais. Falemos<br />

<strong>de</strong>las.<br />

Há já muito tempo que o<br />

Chile registou nos organismos<br />

internacionais a palavra «pisco»<br />

como produto chileno. A ousadia<br />

tinha um objectivo: comercializar<br />

um produto, neste caso a<br />

aguar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uva com as características<br />

químicas <strong>de</strong>finidas segundo<br />

os critérios requeridos<br />

pela legislação internacional em<br />

matéria <strong>de</strong> produção vinícola.<br />

Não se falou muito no Peru<br />

quando o país vizinho obteve o<br />

galardão. Mas, pouco a pouco,<br />

os produtores peruanos foram<br />

tomando consciência do que se<br />

estava a passar. E, <strong>de</strong> repente,<br />

lançaram-se no campo <strong>de</strong> batalha<br />

com a única arma que tinham<br />

ao seu alcance: a multicentenária<br />

tradição <strong>de</strong> fabrico <strong>de</strong><br />

aguar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> indiscutível<br />

e <strong>de</strong> excelente sabor. E<br />

nesse pé <strong>de</strong> guerra estamos.<br />

O certo é que a palavra<br />

«pisco» é peruana, isto é, <strong>de</strong><br />

origem quéchua, que po<strong>de</strong> ser<br />

traduzida por «pássaro». Mas é<br />

também o nome da cida<strong>de</strong> e do<br />

porto <strong>de</strong> mar que estão situados<br />

a sul da capital, Lima. O porto<br />

<strong>de</strong> mar, Pisco, <strong>de</strong>u o nome ao<br />

produto exportado, a aguar<strong>de</strong>nte,<br />

e as terras da região, o húmus<br />

necessário para o sabor e<br />

os cheiros específicos dos mostos<br />

<strong>de</strong> uva. Ao transformarem o<br />

«pisco» em produto chileno, os


A SEDE DO SUL 98<br />

Tinalhas <strong>de</strong> pisco com formas pré-colombinas<br />

99


vizinhos do Sul, <strong>de</strong> certo modo,<br />

invadiram um território com<br />

nome e tradição. Mas não conseguiram<br />

o que, geralmente, se ganha<br />

numa batalha: a honra e a<br />

fama. Os últimos acontecimentos<br />

são prova disso. E o «pisco»<br />

peruano ganhou ultimamente<br />

vários concursos internacionais<br />

em que não faltaram concorrentes<br />

famosos e reconhecidos. Este<br />

ano, na Praça <strong>de</strong> Bruxelas e também<br />

em França.<br />

Tenho a impressão que foi o<br />

sabor tão fácil <strong>de</strong> reconhecer do<br />

«pisco» peruano que <strong>de</strong>rrotou a<br />

química falácia do produto chileno,<br />

que se ven<strong>de</strong> já elaborado em<br />

garrafas pouco elegantes. O<br />

marketing não é todo-po<strong>de</strong>roso. E,<br />

neste caso, o gosto e o sabor foram<br />

capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotá-lo. A uva<br />

«quebranta» é <strong>de</strong>liciosa. Dá um<br />

perfume muito especial ao mosto.<br />

A uva «itália» é uma Nossa<br />

Senhora. Das a<strong>de</strong>gas <strong>de</strong> Ocucaje,<br />

saem uns aromas nunca vistos,<br />

ar<strong>de</strong>ntes e voluptuosos. E os<br />

alambiques das vinhas Tacama<br />

<strong>de</strong>stilam umas aguar<strong>de</strong>ntes, sendo<br />

a mais famosa a que tem o<br />

nome <strong>de</strong> Demónio dos An<strong>de</strong>s,<br />

para honrar o que foi um dos<br />

primeiros conquistadores que se<br />

revoltou contra o próprio rei <strong>de</strong><br />

Espanha.<br />

Não há, nos anais do «pisco»<br />

peruano, aguar<strong>de</strong>ntes velhas<br />

ou, pelo menos, não são<br />

muito conhecidas. Existem algumas<br />

fabricadas em alambiques<br />

artesanais.<br />

As mais conhecidas e populares<br />

vêm do Sul, como aliás toda<br />

a produção pisquenha. Uma<br />

região que confina com a fronteira<br />

chilena é reconhecida como<br />

famosa nesses produtos envelhecidos<br />

em casco <strong>de</strong> carvalho:<br />

Moquegua.<br />

Era uma região famosa durante<br />

a Colónia e, no século XVII,<br />

já produzia uva <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />

Diz-se que os vinhos generosos,<br />

que então se produziam,<br />

competiam com os bons vinhos<br />

<strong>de</strong> Jerez <strong>de</strong> la Frontera. Com a filoxera,<br />

<strong>de</strong>sapareceu a maior parte<br />

da produção. Já avançado o século<br />

XX, os vinhedos voltaram à região<br />

e, hoje em dia, há excelentes<br />

mostos moqueguanos. Com eles<br />

renasceram também as antigas<br />

tradições <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>ntes velhas,<br />

com laivos <strong>de</strong> doçura e fragrâncias<br />

<strong>de</strong> mel.<br />

O certo é que o «pisco» acabou<br />

por impor-se ao Peru e ao<br />

mundo. Há tradições literárias<br />

que relatam como as festas tanto<br />

em Lima como nas regiões do<br />

Sul, Ica, Arequipa, Moquegua,<br />

contavam sempre com a presença<br />

inevitável da aguar<strong>de</strong>nte pisqueira.<br />

Ricardo Palma, o gran<strong>de</strong> contista<br />

peruano do século XIX, recorda-se<br />

das gran<strong>de</strong>s festas do<br />

Natal em que a bebida por excelência<br />

era o «pisco». Os serões<br />

terminavam sempre com dança e<br />

«pisco». E como as autorida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>cidiram um dia aplicar um imposto<br />

à aguar<strong>de</strong>nte, o povo revoltado<br />

cantou: «Santa Rosa <strong>de</strong> Lima,/¿Como<br />

consientes/que un<br />

impuesto le pongas/al aguardiente?»<br />

Hoje já vai sendo costume<br />

oferecer aos convidados um bom<br />

«pisco sour» antes que cheguem<br />

os pratos <strong>de</strong> comida. E também é<br />

frequente ver tomar um «pisquinho»<br />

após as refeições, como na<br />

Europa um bom cognac ou uma<br />

aguar<strong>de</strong>nte velha com o café. É<br />

uma boa maneira <strong>de</strong> terminar<br />

com chave <strong>de</strong> ouro um saboroso<br />

ágape. E com o «pisco» a saú<strong>de</strong><br />

está garantida. Assim canta o povo:<br />

«Eso es lo que no se explica/no<br />

miro claro, estoy bizco;/pero<br />

la razón me indica/que<br />

nadie se muere en Ica/estando el<br />

remedio en “pisco’’.»


SINAIS DE FUMO 100<br />

Dos tabacos<br />

ou fumaças dos índios<br />

no Haiti no século XVI<br />

segundo<br />

um cronista<br />

espanhol<br />

Os sinais <strong>de</strong> fumo surpreen<strong>de</strong>ram os navegadores espanhóis<br />

logo nas Antilhas. Fumar era um <strong>de</strong>vaneio dos índios, para<br />

os europeus um vício. Os efeitos inebriantes das fumaças fi-<br />

zeram do tabaco um produto valioso para colonizadores da<br />

América Central e do Norte,numa perfeita e lucrativa conju-<br />

gação do ócio com o negócio. O cronista espanhol Gonzalo<br />

Fernán<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo, em 1535, <strong>de</strong>screve o tabaco e os rituais<br />

do fumo no Haiti.<br />

101


Usavam os índios <strong>de</strong>sta ilha, entre<br />

outros vícios, um muito mau, que é o <strong>de</strong><br />

tomar fumaças, que eles chamam tabaco,<br />

para sair do sentido. E isto faziam com o<br />

fumo <strong>de</strong> certa erva que, ao que pu<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r,<br />

é da qualida<strong>de</strong> do meimendro;<br />

mas não daquele feitio ou forma, segundo<br />

parece, porque esta erva é um talo ou<br />

pimpolho com quatro ou cinco palmos,<br />

ou menos, <strong>de</strong> altura, e com umas folhas<br />

largas e grossas e macias e velosas, e o<br />

verdor assemelha-se algo à cor das folhas<br />

da língua-<strong>de</strong>-vaca (ou buglossa, assim<br />

chamada pelos herbolários ou médicos).<br />

Esta erva a que me refiro, <strong>de</strong> alguma maneira<br />

ou género, é semelhante ao meimendro.<br />

A qual tomam <strong>de</strong>sta maneira: os<br />

caciques e homens principais tinham uns<br />

pauzinhos ocos, do tamanho <strong>de</strong> um jeme*,<br />

ou menos, da grossura do <strong>de</strong>do mindinho,<br />

e estes canudos tinham dois canhões<br />

respon<strong>de</strong>ntes a um, e tudo numa peça. E<br />

punham os dois nas narinas, e o outro no<br />

fumo e erva que estava ar<strong>de</strong>ndo ou queimando-se;<br />

e estavam muito lisos e bem<br />

lavrados. E queimavam as folhas daquela<br />

erva, amarrotadas ou envoltas, do modo<br />

que os pagens cortesãos costumam <strong>de</strong>itar<br />

as suas fumaças; e aspiravam o fumo para<br />

si, uma e duas e três e mais vezes, quanto<br />

o podiam porfiar, até que ficavam sem<br />

sentidos, muito tempo, estendidos no<br />

chão, ébrios, ou adormecidos <strong>de</strong> um grave<br />

e pesado sono. Os índios que não tinham<br />

aqueles pauzinhos tomavam aquele<br />

fumo com uns cálamos ou caninhas <strong>de</strong><br />

carriços, e a esse dito instrumento com<br />

que tomam o fumo, ou as ditas caninhas,<br />

chamam os índios tabaco, e não a erva<br />

ou o sono que os toma (como pensavam<br />

alguns).<br />

Esta erva, tinham os índios por coisa<br />

muito apreciada e criavam-na nas suas<br />

hortas e lavouras, para o dito efeito; dando-se<br />

a enten<strong>de</strong>r que tomar aquela erva e<br />

<strong>de</strong>fumadoiro não só era coisa sã, mas<br />

também coisa santa. E logo que o cacique<br />

ou principal cai no chão, tomam-no as<br />

suas mulheres (que são muitas) e <strong>de</strong>itam-<br />

-no na sua cama ou re<strong>de</strong>, se ele assim o<br />

mandou antes <strong>de</strong> cair; mas se não o disse<br />

antes <strong>de</strong> cair, não quer senão que o <strong>de</strong>i-<br />

xem ficar assim, no chão, até que lhe passe<br />

aquela embriaguez ou adormecimento.<br />

Eu não posso pensar que prazer se<br />

obtém <strong>de</strong> tal acto, a não ser da gula do<br />

beber, que primeiro o fazem antes que tomem<br />

o fumo ou o tabaco; e alguns bebem<br />

tanto <strong>de</strong> certo vinho que eles fazem,<br />

que antes que se <strong>de</strong>fumem caem bêbedos;<br />

mas quando se sentem cansados e fartos,<br />

aco<strong>de</strong>m a tal perfume. E muitos também,<br />

sem que bebam <strong>de</strong>masiado, tomam o tabaco<br />

e fazem o que é dito, até caírem <strong>de</strong><br />

costas no chão, mas sem náuseas, só como<br />

homem adormecido. Sei que alguns<br />

cristãos já o usam, em especial alguns que<br />

estão tocados pelo mal das bubas, porque<br />

dizem que esses, no tempo em que estão<br />

assim enlevados, não sentem as dores da<br />

sua enfermida<strong>de</strong>. Não me parece que isto<br />

não seja outra coisa senão estar morto em<br />

vida, aquele que tal faz; o qual tenho por<br />

pior que a dor <strong>de</strong> que se escusam, pois<br />

não se curam com isso.<br />

Presentemente, muitos negros dos<br />

que estão nesta cida<strong>de</strong> e em toda a ilha<br />

tomaram o mesmo costume e criam nas<br />

fazendas e herdamentos dos seus amos<br />

esta erva, para o que foi dito, e tomam as<br />

mesmas fumaças ou tabacos; porque dizem<br />

que quando <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> trabalhar e<br />

tomam o tabaco se lhes tira o cansaço.<br />

Aqui me parece que quadra um costume<br />

vicioso e mau que a gente da Trácia<br />

usava entre os seus criminosos vícios, segundo<br />

Abulensis escreve sobre Eusebio De<br />

los tiempos, on<strong>de</strong> diz que têm todos por costume,<br />

varões e mulheres, <strong>de</strong> comer à volta<br />

da fogueira, e que folgam muito <strong>de</strong> estar<br />

embriagados, ou <strong>de</strong> o parecer; e que como<br />

não têm vinho, tomam sementes <strong>de</strong> algumas<br />

ervas que há entre eles, as quais, lançadas<br />

nas brasas, dão <strong>de</strong> si um tal aroma<br />

que embriagam todos os presentes, sem<br />

beber. Em meu parecer, isto é o mesmo<br />

que os tabacos que estes índios tomam. Traduzido <strong>de</strong> Gonzalo Fernán-<br />

<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Oviedo, História<br />

General y Natural <strong>de</strong><br />

las Indias, Libro V, Cap.<br />

II, Sevilha, 1535<br />

* Distância máxima entre o polegar<br />

e o indicador


Estádio Centenário<br />

<strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u<br />

Arón Mazas<br />

ESTÁDIO DE SÍTIO 102<br />

103<br />

Nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, começou a <strong>de</strong>senvolver-se no Uruguai<br />

uma activida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pressa ocuparia um lugar central na vida social e <strong>cultura</strong>l do povo uruguaio.<br />

O futebol ultrapassou o âmbito <strong>de</strong>sportivo para se tornar um elemento-chave da história do país.<br />

Rapidamente, o Uruguai<br />

afirmou-se como uma inigualável<br />

potência nesta modalida<strong>de</strong>,<br />

vencendo os Jogos Olímpicos <strong>de</strong><br />

Colombes em 1924 e <strong>de</strong> Amesterdão<br />

em 1928.Tendo em conta<br />

que nessa época os campeões<br />

olímpicos se consi<strong>de</strong>ravam como<br />

campeões do mundo, o Uruguai<br />

chega à década do 30 sendo bicampeão<br />

mundial.<br />

Com o início <strong>de</strong> uma nova<br />

década e aproximando-se o<br />

centenário do Juramento da<br />

Constituição <strong>de</strong> 1930, que melhor<br />

maneira <strong>de</strong> festejar este feito<br />

histórico que organizando o<br />

primeiro mundial <strong>de</strong> futebol<br />

em Montevi<strong>de</strong>u?!<br />

O país dos campeões olímpicos<br />

apostaria na organização<br />

<strong>de</strong> um «gran<strong>de</strong>» mundial encarregando-se<br />

<strong>de</strong> todos os gastos.<br />

No começo do ano <strong>de</strong> 1930, o<br />

Uruguai concentrou-se no<br />

«seu» mundial que, naturalmente,<br />

teria <strong>de</strong> se jogar num<br />

gran<strong>de</strong> estádio. Assim que obteve<br />

a responsabilida<strong>de</strong> da organização<br />

do mundial, <strong>de</strong>u-se início<br />

à construção do mítico e gran<strong>de</strong><br />

Estádio Centenário.<br />

Foi uma obra inovadora<br />

em termos <strong>de</strong> arquitectura <strong>de</strong>sportiva<br />

pela sua disposição<br />

quase circular em volta do relvado.<br />

O autor da obra, o arquitecto<br />

Juan Scasso, confessou<br />

ter-se inspirado nos teatros gregos<br />

clássicos no que respeita ao<br />

aproveitamento dos <strong>de</strong>clives<br />

naturais.


A monumental obra é ainda<br />

hoje um símbolo iniludível da<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u. A «gran<strong>de</strong>»<br />

tribuna olímpica é toda uma<br />

«tribuna <strong>cultura</strong>l» com o seu<br />

museu do futebol e uma escola<br />

pública. Para além dos espectáculos<br />

<strong>de</strong>sportivos, <strong>de</strong>ntro do estádio<br />

têm-se realizado gran<strong>de</strong>s<br />

concertos que marcaram a história<br />

da vida <strong>cultura</strong>l do país: Luciano<br />

Pavarotti, Plácido Domingo,<br />

«El Gusto es nuestro» (Serrat,<br />

Ana Belén, Victor Manuel e Miguel<br />

<strong>de</strong>l Río), «Los Olimareños»<br />

e Merce<strong>de</strong>s Sosa, entre outros.<br />

O MUNDIAL DE 30<br />

A seleção uruguaia estreou-<br />

-se no Mundial no dia em que<br />

se comemorou o centenário da<br />

Constituição, em 18 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong><br />

1930. O primeiro jogo dos<br />

comandados pelo «gran<strong>de</strong> capitão»<br />

José Nasazzi foi contra o<br />

Peru, tendo os «celestes» triunfado<br />

por um 1-0, com golo <strong>de</strong><br />

Héctor, «el manco Castro». No<br />

jogo seguinte, venceram a Roménia<br />

por 4-0, com golos <strong>de</strong><br />

Dorado, Héctor Scarone, Anselmo<br />

e «o basco» Cea. Depois, a<br />

Jugoslávia seria esmagada por<br />

um conclu<strong>de</strong>nte 6-1, com golos<br />

<strong>de</strong> Cea, Anselmo e Iriarte. Na<br />

gran<strong>de</strong> final, perante um mar <strong>de</strong><br />

chapéus <strong>de</strong> feltro que inundava<br />

as bancadas, a selecção uruguaia<br />

disputou o clássico do Rio da<br />

Plata com a Argentina: o Uruguai<br />

arrebatou a taça ao vencer<br />

por 4-2, graças aos goleadores<br />

Pablo Dorado, Cea, Iriarte e Castro.<br />

A imprensa europeia quase<br />

ignorou a façanha dos rioplatenses,<br />

ofendida com o fulgor do<br />

melhor futebol do mundo.<br />

A galeria <strong>de</strong> honra dos futebolistas<br />

uruguaios era constituída<br />

por operários e boémios que fizeram<br />

da camisola azul-celeste o<br />

seu estandarte <strong>de</strong> glória: o «Ma-<br />

riscal» Nasazzi (capitão das gestas<br />

<strong>de</strong> Colombes 1924, Amesterdão<br />

1928 e Montevi<strong>de</strong>u 1930),<br />

cortador <strong>de</strong> pedras <strong>de</strong> mármore,<br />

várias vezes campeão sul-americano<br />

e uruguaio com o Nacional<br />

<strong>de</strong> Montevi<strong>de</strong>u, <strong>de</strong>ntro do<br />

campo mandava, gritava e atemorizava<br />

os rivais; José Leandro<br />

Andra<strong>de</strong>, músico <strong>de</strong> Carnaval e<br />

engraxador, maravilhou o mundo<br />

não só pelo seu futebol criativo,<br />

mas também por ser o primeiro<br />

jogador negro visto e admirado<br />

na Europa; Lorenzo Fernán<strong>de</strong>z,<br />

o gran<strong>de</strong> «caudillo» do<br />

Peñarol daquele tempo, atemorizava<br />

<strong>de</strong> tal modo os seus adversários<br />

que estes não tinham<br />

coragem <strong>de</strong> olhá-lo <strong>de</strong> frente,<br />

após o primeiro embate; Héctor<br />

Scarone, conhecido como o<br />

Gar<strong>de</strong>l do futebol, foi consi<strong>de</strong>rado<br />

o primeiro «melhor jogador<br />

do mundo» e nunca falhou um<br />

penálti; Héctor Castro era manco<br />

e nos cantos apertava o estômago<br />

dos guarda-re<strong>de</strong>s com o<br />

coto; Pedro Cea, cortador <strong>de</strong> gelo,<br />

era o preparador físico da<br />

equipa; Pedro Petrone, hortaliceiro,<br />

etc.<br />

Neste mítico estádio, o Uruguai<br />

sagrou-se quatro vezes campeão<br />

sul-americano <strong>de</strong> futebol<br />

(1942, 1956, 1967 e 1995),<br />

uma vez campeão sul-americano<br />

juvenil (1979) e campeão<br />

do Mundialito <strong>de</strong> 1980-81. No<br />

seu relvado <strong>de</strong>sfilaram as gran<strong>de</strong>s<br />

equipas do Peñarol (1960,<br />

1961, 1966, 1982, 1987) e do<br />

Nacional (1971, 1980, 1988)<br />

vencedoras da Taça Libertadores<br />

da América.<br />

«EL NEGRO JEFE»<br />

E A IDIOSSINCRASIA<br />

DO MARACANÃ<br />

O dia 16 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1950<br />

tornou-se uma data histórica<br />

para o Uruguai – a vitória dos<br />

«celestes»sobre o Brasil por 2-1,<br />

em terreno brasileiro, num Maracanã<br />

a abarrotar com 200 000<br />

espectadores (a maior multidão<br />

alguma vez vista num campo <strong>de</strong><br />

futebol) –, constituindo uma<br />

referência incontornável na<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da nação.<br />

O gran<strong>de</strong> capitão daquela<br />

equipa, Obdulio Varela, «el negro<br />

jefe», construiu a maravilhosa<br />

vitória. Logo que o Brasil fez<br />

1-0, temia-se uma avalancha <strong>de</strong><br />

golos, mas Obdulio fez arrefecer<br />

os corações brasileiros. Conta-se<br />

que o «negro jefe» disse aos<br />

seus rapazes «... los <strong>de</strong> afuera<br />

son <strong>de</strong> palo» e, a partir daí, a<br />

«guerra» recomeçou e o Uruguai<br />

<strong>de</strong>u a volta ao resultado.<br />

OUTRAS LENDAS<br />

DO FUTEBOL<br />

Pelo Centenário passaram<br />

outros fabulosos jogadores que<br />

marcaram a história do futebol<br />

mundial: Roque Gastón Maspoli,<br />

Anibal Paz, o «mono» Gambetta,<br />

Julio Pérez, Walter Gomes (ídolo<br />

no River Plate argentino on<strong>de</strong><br />

nasceu a frase «la gente ya no<br />

come por ver a Walter Gomes»),<br />

Jorge Gonçalvez, Luis Ubiñas,<br />

Montero Castillo, «cien gramos»<br />

Rodriguez, Roberto Matosas, Ladislao<br />

Mazur-kiewicz, etc.<br />

Inesquecíveis avançados do<br />

Peñarol: Ghiggia, Hohbreg, Miguez,<br />

Schiaffino (consi<strong>de</strong>rado o<br />

melhor estrangeiro da história<br />

do Milão <strong>de</strong> Itália e um dos melhores<br />

jogadores do mundo) e<br />

Vidal, nas décadas <strong>de</strong> 40-50;<br />

Abbadie, Sacia, o equatoriano<br />

Spencer, Pedro Rocha e o peruano<br />

Joya, na década do 70; e do<br />

Nacional: Ciocca, Castro, o argentino<br />

Atilio García, Porta e<br />

Zapirain na década do 40, e<br />

Cubillas, Espárrago, o argentino<br />

Luis Artime, Ildo Maneiro e<br />

Morales na década <strong>de</strong> 70.


SABORES PRINCIPAIS 104<br />

Da canjica ao bacalhau.<br />

Uma arqueologia dos hábitos alimentares<br />

<strong>de</strong> uma família portuguesa<br />

nas Minas Gerais setecentistas<br />

José Newton Coelho Meneses<br />

105


Portuguesa, indígena, africana, com<br />

influência paulista e <strong>de</strong> outras partes da<br />

América portuguesa, a comida mineira<br />

tem herança ampla. Se nos primeiros tempos<br />

da ocupação territorial das Minas do<br />

Ouro os mineiros tinham «sua melhor<br />

bo<strong>de</strong>ga nos matos e nos rios», como nos<br />

informa o mestre Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda,<br />

no <strong>de</strong>correr do século XVIII a comida<br />

da região vai ampliando e diversificando<br />

sua base alimentar, fundamentada<br />

em uma produção mais diversa e no acesso<br />

a produtos <strong>de</strong> outras regiões do espaço<br />

colonial português na América e da Europa.<br />

A «civilização do milho», aludida pelo<br />

gran<strong>de</strong> historiador acima citado, transforma-se<br />

e diversifica-se com a se<strong>de</strong>ntarização<br />

dos habitantes e com a fixação das populações<br />

nos arraiais e nas vilas mineiras.<br />

Naturalmente que não se per<strong>de</strong>ram os<br />

costumes dos primeiros tempos: continuaram<br />

a ser consumidos os produtos do milho<br />

e os da mata. Angu, milho ver<strong>de</strong> em<br />

espiga (cozido ou assado), pipoca, curau,<br />

pamonha, farinha («o verda<strong>de</strong>iro pão da<br />

terra»), canjica grossa, canjiquinha, cuscuz,<br />

catimpuera, aluá e jacuba, originários<br />

do milho, além do broto <strong>de</strong> samambaia,<br />

do palmito, das caças e dos peixes, do mel<br />

<strong>de</strong> abelhas e outros produtos dos matos<br />

continuam a freqüentar a mesa dos habitantes<br />

das Minas, associando-se àquela<br />

maior oferta <strong>de</strong> alimentos e, ainda, amalgamando-se<br />

mais perfeitamente aos costumes<br />

reinóis e aos <strong>de</strong> índios e <strong>de</strong> africanos.<br />

O milho, entretanto, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o<br />

alimento mais consumido e <strong>de</strong> modo mais<br />

<strong>de</strong>mocrático freqüenta a mesa <strong>de</strong> pessoas<br />

<strong>de</strong> posse e do homem do povo, como nos<br />

prova o costume <strong>de</strong> comer angu <strong>de</strong> fubá<br />

que, <strong>de</strong> alimento <strong>de</strong>stinado à escravaria,<br />

passa à mesa <strong>de</strong> todos.<br />

Mas não po<strong>de</strong>mos nos esquecer que o<br />

homem português e sua família não abdicaram<br />

totalmente <strong>de</strong> seus costumes alimentares.<br />

Além disso, com o tempo, encontraram<br />

na produção local produtos que<br />

satisfizessem o gosto por comestíveis <strong>de</strong><br />

origem animal, baseados em pratos da tradição<br />

portuguesa e da sua influência da<br />

cozinha francesa. Esses pratos adquiriram<br />

maior complexida<strong>de</strong> à medida que se jun-<br />

tavam diversos «adubos» à carne <strong>de</strong> porco,<br />

<strong>de</strong> boi, <strong>de</strong> carneiro, aos pombos, codornas,<br />

pacas e frangos, além das amêndoas,<br />

azeites doces e ovos em quantida<strong>de</strong>,<br />

porque comida portuguesa que se preze<br />

não os dispensa.<br />

Po<strong>de</strong>mos inventariar a mesa <strong>de</strong> D. Anna<br />

Perpétua Marcelina da Fonseca, chefe<br />

<strong>de</strong> uma família portuguesa nas Minas Gerais.<br />

D. Anna era viúva do Dr. Luiz José <strong>de</strong><br />

Figueiredo, homem que, em vida, teve<br />

posses e influências no Tejuco (hoje Diamantina).<br />

Ele morreu em 1793 e sua viúva<br />

e inventariante foi cuidadosa em fazer a<br />

relação <strong>de</strong> Despesas <strong>de</strong><br />

Mantimentos no perío-<br />

do <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1793<br />

a outubro <strong>de</strong> 1796,<br />

quarenta meses em<br />

que se <strong>de</strong>senrolou o<br />

processo <strong>de</strong> Inventário<br />

post mortem do<br />

marido. Da mesma<br />

forma, D. Anna listou<br />

em outro documento<br />

anexo ao Inventário<br />

do marido,<br />

os Lucros que tem tido a<br />

Erança, no mesmo<br />

período. Assim, nos<br />

informa sobre a<br />

produção <strong>de</strong> alimentos<br />

em suas terras<br />

<strong>de</strong> lavoura e dos<br />

produtos que ela,<br />

por ter produção<br />

própria, adquiria<br />

em menor quanti-<br />

Nas Minas Gerais,<br />

a base alimentar<br />

das famílias abastadas<br />

e das pobres<br />

se distinguia pouco.<br />

Os modos à mesa<br />

é que <strong>de</strong>notavam<br />

as distinções entre<br />

as categorais sociais<br />

da<strong>de</strong> no comércio local. A lista <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas<br />

arrola 42 itens <strong>de</strong> consumo distinguindo<br />

os produtos «do Reino» e os «da terra»,<br />

possibilitando-nos evi<strong>de</strong>nciar a procedência<br />

dos mantimentos, a maior parte produzida<br />

na própria região do Tejuco. A produção<br />

«da roça» da família concorria para<br />

minorar em muito as <strong>de</strong>spesas com a<br />

aquisição <strong>de</strong> produtos no mercado local.<br />

Incluíam-se aí o feijão, o arroz, o milho e<br />

a sua farinha, carne <strong>de</strong> boi, leite, hortaliças,<br />

algodão (que se mandava para fiar),<br />

azeite para iluminação, lenhas, carvões e<br />

sebo para sabão. O consumo do arroz,


SABORES PRINCIPAIS 106<br />

claramente percebido, contraria as interpretações<br />

tradicionais que não o colocam<br />

como hábito alimentar dos mineiros, no<br />

período.<br />

A dieta cotidiana no domicílio <strong>de</strong><br />

D. Anna apresentava variações mensais. O<br />

consumo <strong>de</strong> peixe fresco, a título <strong>de</strong><br />

exemplo, crescia durante os períodos que<br />

incluem os dias <strong>de</strong> jejum, notadamente os<br />

meses <strong>de</strong> março e <strong>de</strong> abril, correspon<strong>de</strong>ntes<br />

ao período da quaresma. O mesmo<br />

acontece com o bacalhau que é adquirido,<br />

basicamente, nos meses <strong>de</strong> março, abril e<br />

<strong>de</strong>zembro, ou, eventualmente,<br />

como compra<br />

«para as sextas e<br />

sábados». Já a carne<br />

<strong>de</strong> porco, seus miúdos<br />

e o toucinho são<br />

compras cotidianas,<br />

o que confirma-nos<br />

o uso do toucinho<br />

não só como componente<br />

<strong>de</strong> diversos<br />

pratos das pessoas <strong>de</strong><br />

posse ou dos escravos<br />

e <strong>de</strong> pobres (no feijão<br />

e em «torresmos»,principalmente),<br />

mas como ingrediente<br />

na cocção <strong>de</strong><br />

cereais, tubérculos e<br />

hortaliças e, também,<br />

como meio <strong>de</strong> conservação<br />

das carnes. A<br />

mandioca, mesmo<br />

não sendo um alimento<br />

preferencial<br />

como na região litorânea,<br />

era consumida como farinha ou cozida.<br />

A família <strong>de</strong> D. Anna Perpétua adquiriu<br />

pouca farinha <strong>de</strong> mandioca, apenas em<br />

dois meses dos quarenta que compõem a<br />

listagem.<br />

Po<strong>de</strong>mos admitir que, nas Minas Gerais,<br />

a base alimentar das famílias abastadas<br />

e das pobres se distinguia pouco. Os<br />

modos à mesa é que <strong>de</strong>notavam as distinções<br />

entre as categorias sociais, como evi<strong>de</strong>nciam<br />

as análises <strong>de</strong> Jean-Louis Flandrin<br />

para os costumes europeus à mesa, no<br />

mesmo período.<br />

Mineira <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

os tempos que Minas<br />

Gerais era Portugal,<br />

a mesa dos mineiros<br />

tem gosto e tradição<br />

paulista, africana,<br />

indígena, <strong>de</strong> tantas partes<br />

da América portuguesa e,<br />

sobretudo, <strong>de</strong> Portugal<br />

107<br />

Alguns produtos eram escassos nas<br />

mesas mineiras, inclusive nas das famílias<br />

abastadas. O trigo, por exemplo, <strong>de</strong> consumo<br />

raro – embora fosse produzido em pequenas<br />

quantida<strong>de</strong>s nas regiões contíguas<br />

às minas –, vinha da Capitania <strong>de</strong> São Paulo<br />

ou da Europa e era caro. O pão <strong>de</strong> trigo,<br />

assim, não foi um alimento do cotidiano,<br />

mesmo no ambiente das famílias <strong>de</strong> posses.<br />

Os portugueses, nas Minas, adaptaram-se<br />

à falta <strong>de</strong>sse cereal nobre. A farinha<br />

<strong>de</strong> milho e o fubá configuraram, então,<br />

produtos para a confecção <strong>de</strong> vários petiscos<br />

substitutos do pão, dando origem às<br />

tão tradicionais quitandas mineiras.<br />

Observando a lista <strong>de</strong> D. Anna Perpétua,<br />

percebemos uma oferta já regular do<br />

sal, ao final do século XVIII. O preço do<br />

produto vindo do Reino não sofreu gran<strong>de</strong>s<br />

variações, ao contrário do «sal da terra»,<br />

vindo das barrancas do rio São Francisco,<br />

que teve no <strong>de</strong>correr do tempo da<br />

listagem uma variação <strong>de</strong> 4 a 7 oitavas <strong>de</strong><br />

ouro por bruaca.<br />

Consumiam-se queijos, importados e<br />

<strong>de</strong> fatura local, além das hortaliças e frutas<br />

que, cotidianamente, enriqueciam a<br />

dieta alimentar <strong>de</strong> todas as categorias sociais.<br />

Os quintais continham bananeiras,<br />

frutas <strong>de</strong> espinho e jabuticabeiras, além<br />

<strong>de</strong> equipamentos e moinhos d’água, tudo<br />

muito <strong>de</strong>talhado nos Inventários post mortem.<br />

As frutas eram apreciadas in natura ou<br />

em doces, como a marmelada e o doce <strong>de</strong><br />

cidra e, como as hortaliças e os tubérculos,<br />

são alimentos <strong>de</strong>scritos pelos memorialistas<br />

da região e pelos relatos dos viajantes<br />

estrangeiros.<br />

A comida mineira, em sua origem setecentista,<br />

rústica em seu cotidiano, tinha<br />

requintes ocasionais. O uso <strong>de</strong> talheres à<br />

mesa, seguindo os costumes já difundidos<br />

em toda a Europa, tornou-se comum tanto<br />

para os portugueses quanto para os nascidos<br />

na América portuguesa, ou vindos da<br />

África, ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos. É<br />

gran<strong>de</strong> o número <strong>de</strong> peças <strong>de</strong>scritas nos<br />

Inventários, o que pressupõe o seu uso cotidiano,<br />

principalmente nas famílias <strong>de</strong><br />

origem reinol.<br />

D. Anna Perpétua, nossa testemunha<br />

especial neste estudo, possuía objetos <strong>de</strong>


mesa finos: pratos da Índia (rasos e fundos,<br />

gran<strong>de</strong>s e pequenos), chocolateiras <strong>de</strong> cobre,<br />

colheres, garfos e facas <strong>de</strong> prata, «faqueiro<br />

<strong>de</strong> prata com caixa forrada <strong>de</strong> veludo»,<br />

«1 talher <strong>de</strong> galhetas <strong>de</strong> vidro» e<br />

ban<strong>de</strong>jas diversas. Outros Inventários <strong>de</strong><br />

portugueses e <strong>de</strong> homens livres ou forros<br />

pobres também <strong>de</strong>talham talheres e vasilhames<br />

que vão do latão à prata, da louça<br />

simples à da Índia ou à do Porto, jogos <strong>de</strong><br />

pires com xícaras, cálices e frascos <strong>de</strong> vidro,<br />

além, é claro, das gamelas, tabuleiros<br />

e ban<strong>de</strong>jas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira.<br />

Mineira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos que Minas<br />

Gerais era Portugal, a mesa dos mineiros<br />

tem gosto e tradição paulista, africana, indígena,<br />

<strong>de</strong> tantas partes da América portuguesa<br />

e, sobretudo, <strong>de</strong> Portugal. E, em toda<br />

essa diversida<strong>de</strong>, é mineira, uai!<br />

Glossário<br />

Adubos Expressão <strong>de</strong> origem portuguesa<br />

que <strong>de</strong>ve ser entendida como temperos.<br />

Aluá Bebida refrescante feita <strong>de</strong> milho fermentado<br />

e adoçada com açúcar.<br />

Angu Prato <strong>de</strong> fubá cozido em água e sem<br />

sal.<br />

Bruaca Saco ou mala <strong>de</strong> couro cru para<br />

transporte <strong>de</strong> produtos e mercadorias<br />

sobre bestas.<br />

Canjica ou Canjiquinha Milho triturado em<br />

moinho <strong>de</strong> água com distância entre<br />

as mós suficiente para <strong>de</strong>ixar a farinha<br />

mais grossa.<br />

Catimpuera Bebida <strong>de</strong> milho ou <strong>de</strong> mandioca<br />

cozidos e fermentados adicionado<br />

<strong>de</strong> água e mel <strong>de</strong> abelhas.<br />

Frutas <strong>de</strong> espinho Laranjas. limões, limas e<br />

outros cítricos.<br />

Frissura ou fressura «Miúdos» <strong>de</strong> porco, ou<br />

seja, fígado, rim e pâncreas <strong>de</strong>sse animal,<br />

picados, temperados e cozidos.<br />

Jacuba Bebida em que se mistura farinha <strong>de</strong><br />

milho (ou fubá) com água e mel <strong>de</strong><br />

abelhas (ou açúcar). Bebia-se quente<br />

ou fria.<br />

Uai Interjeição usual e popular na fala dos<br />

habitantes <strong>de</strong> Minas Gerais que exprime<br />

surpresa, espanto, afirmação categórica,<br />

dúvida, alegria.


ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 108<br />

Portugal<br />

nos confins<br />

do mundo<br />

Roberto Ampuero<br />

109<br />

Nasci no Chile, nos confins do mundo, mas<br />

curiosamente Portugal sempre esteve perto <strong>de</strong><br />

mim, primeiro como um nome simples, belo e<br />

misterioso, <strong>de</strong>pois como uma revelação política<br />

mais que estimulante, inspiradora e, a seguir,<br />

quando o conheci, como um <strong>de</strong>sses lugares que<br />

nos parece curiosamente familiar e conhecido<br />

porque <strong>de</strong> algum modo suspeitamos que estivemos<br />

ali antes, noutra vida.<br />

Quando era criança, no pátio do colégio alemão<br />

<strong>de</strong> Valparaíso costumávamos cantar uma cantiga<br />

<strong>de</strong> roda muito famosa que dizia: «Arroz con<br />

leche, me quiero casar, con una señorita <strong>de</strong> Portugal.»<br />

Cantávamo-la <strong>de</strong> mão dada, meninas e meninos,<br />

cantávamo-la com uma fé cega, como se fosse<br />

imperativo casarmo-nos com uma rapariga <strong>de</strong> Portugal,<br />

mas a verda<strong>de</strong> é que então não pretendia casar-me<br />

e nem sequer sabia muito bem on<strong>de</strong> ficava<br />

o país ibérico. Decorriam os anos sessenta, quando<br />

o Chile era uma <strong>de</strong>mocracia estável e orgulhosa, e<br />

pensávamos que todo o mundo vivia em <strong>de</strong>mocracia.<br />

Um dia, o meu pai mostrou-me um mapa da<br />

Europa e disse-me com voz grave: «Aqui fica Por-<br />

tugal, um país belo, parecido com o Chile e que é<br />

governado por um ditador.» Confesso que me custou<br />

várias noites <strong>de</strong> sono acostumar-me à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

que a presumível rapariga com quem <strong>de</strong>via casar-<br />

-me vivia sob uma ditadura.<br />

Mais tar<strong>de</strong> ouvi, sobressaltado e incrédulo,<br />

as fabulosas histórias sobre os gran<strong>de</strong>s navegadores<br />

<strong>de</strong> Portugal. Até então eu pensava que Fernão<br />

<strong>de</strong> Magalhães era chileno, e a razão era simples: o<br />

famoso estreito que tem o seu nome pertence ao<br />

Chile e faz parte essencial da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos chilenos<br />

austrais, os quais são <strong>de</strong>scritos <strong>de</strong> forma<br />

magistral pelo narrador chileno Francisco Coloane<br />

nos seus livros que <strong>de</strong>ram a volta ao mundo. Mas<br />

a minha surpresa foi enorme ao ouvir que os navegadores<br />

portugueses haviam sido os primeiros<br />

a chegar ao Brasil, às ilhas da Ma<strong>de</strong>ira e dos Açores,<br />

à costa africana e à China. Portugal era, diziam<br />

muitos no Chile, um país que pelo clima e<br />

pelo carácter se assemelhava ao nosso, e eu sonhava<br />

secretamente com que o Chile pu<strong>de</strong>sse<br />

construir um dia um império como o iniciado<br />

pelo Infante D. Henrique.


Em 1966, inteirei-me, através da rádio e <strong>de</strong>sses<br />

álbuns com cromos <strong>de</strong> jogadores, que a estrela<br />

do mundial <strong>de</strong> futebol, que se celebrava em Inglaterra,<br />

já não era o mítico Edson Arantes do Nascimento,<br />

Pelé, mas um jogador <strong>de</strong> Portugal, <strong>de</strong> <strong>de</strong>streza<br />

inigualável, chamado Eusébio, a «Pérola Negra<br />

<strong>de</strong> Moçambique». Três coisas me chamaram a<br />

atenção nele: que sorrisse sempre como que surpreendido<br />

pelo seu próprio êxito, que tivesse o<br />

mesmo nome do meu avô paterno, um silencioso<br />

carpinteiro da ilha patagónica <strong>de</strong> Chiloé que se casou<br />

com uma francesa da Normandia, e que fosse<br />

natural <strong>de</strong> Moçambique. Creio que foi a minha<br />

primeira aula prática sobre o colonialismo. No<br />

meu colégio, on<strong>de</strong> os meus professores alemães<br />

eram quase todos ex-soldados da Segunda Guerra<br />

Mundial, não se costumava falar <strong>de</strong> política ou,<br />

melhor dito, a história morria antes <strong>de</strong> Adolfo Hitler.<br />

Eusébio levou-me, então, a compreen<strong>de</strong>r o<br />

que era aquilo que os adultos <strong>de</strong>nominavam colonialismo:<br />

era uma forma política que podia obrigar<br />

um nativo <strong>de</strong> um país a ter <strong>de</strong> jogar por outro,<br />

era levar a pátria no peito mas envergar a camisola<br />

<strong>de</strong> quem a subjugava.<br />

Portugal voltou a emergir com particular força<br />

na minha vida durante os anos setenta, quando<br />

estu<strong>de</strong>i em Cuba. Um dia inteirei-me que em Havana<br />

vivia discretamente a filha do chefe da polícia<br />

política do regime português, algo que parecia<br />

impossível, mas era verda<strong>de</strong>. Nunca soube a razão<br />

daquilo, até que há pouco li um apaixonante livro<br />

<strong>de</strong> jornalistas portugueses que <strong>de</strong>svendava o mistério:<br />

a mulher, esposa <strong>de</strong> um diplomata suíço em<br />

Havana, apaixonara-se perdidamente por Che<br />

Guevara e pela revolução cubana. Procurei então<br />

localizá-la, falar com ela para lhe dizer que eu<br />

amava Portugal e sonhava com a sua liberda<strong>de</strong>,<br />

mas nunca consegui vê-la. Morreu nos anos em<br />

que eu ainda vivia na ilha.<br />

Depois Portugal voltou a aparecer ante os<br />

meus olhos. Desta vez, porque chegou a Cuba<br />

uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>legação militar da «revolução dos<br />

cravos», altos oficiais progressistas que haviam <strong>de</strong>posto<br />

o antigo regime e implementavam medidas<br />

sociais revolucionárias, que finalmente possibilitaram<br />

o aggiornamiento <strong>de</strong> Portugal à Europa. E vi então<br />

Otelo Saraiva <strong>de</strong> Carvalho, todo um mito para<br />

mim, e também Álvaro Cunhal, outra figura emblemática<br />

da esquerda latino-americana, e o meu<br />

coração latejava entusiasta porque se acabava a ditadura<br />

<strong>de</strong> que meu pai me havia falado, e as colónias<br />

do Ultramar seriam livres e eu po<strong>de</strong>ria co-<br />

nhecer um dia um Portugal <strong>de</strong>mocrático. Pouco<br />

tempo <strong>de</strong>pois, milhares <strong>de</strong> jovens cubanos, alguns<br />

companheiros meus, foram combater em Angola,<br />

contra os sul-africanos do apartheid e as tropas <strong>de</strong><br />

Hol<strong>de</strong>n Roberto e Jonas Savimbi. De certa forma,<br />

os cubanos per<strong>de</strong>ram a sua vida nessas terras<br />

alheias como, anos antes, os portugueses.<br />

E um dia, vivia já em Bona, na Alemanha, pu<strong>de</strong><br />

ir finalmente a Portugal. Recordo que o país<br />

me fascinou pela sua gente, reservada e avessa à<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, como a minha, pela sua arquitectura<br />

histórica sem comparação, as suas paisagens, similares<br />

às da zona central do Chile, as suas cida<strong>de</strong>s<br />

tão magníficas, a sua comida caseira tão diversa,<br />

os seus vinhos e a sua música. Cheguei lá com<br />

aquela que viria a ser a minha mulher e recordo<br />

que um dia, em Albufeira, <strong>de</strong>cidi propor-lhe que<br />

nos casássemos. Dirigimo-nos à Câmara Municipal<br />

dispostos a fazê-lo, porque esse seria o melhor lugar<br />

do mundo para isso. Não me ia casar com<br />

aquela «señorita <strong>de</strong> Portugal» da cantiga, mas sim<br />

em Portugal com a mulher que amava. Mas a burocracia<br />

não no-lo permitiu. Para casar não bastava<br />

sermos solteiros e querermos casar, eram necessários<br />

selos, documentos e embaixadas.<br />

Admito que comecei tar<strong>de</strong> a estudar português.<br />

Queria ler Camões, Pessoa e Saramago na<br />

sua língua, queria <strong>de</strong>sfrutar da língua portuguesa<br />

a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e não <strong>de</strong> fora, como se faz<br />

quando se crê que se enten<strong>de</strong> português porque<br />

se fala espanhol. Mas não foi nem Portugal nem<br />

no Chile que estu<strong>de</strong>i português, mas sim em Iowa<br />

City, uma cida<strong>de</strong> do Midwest norte-americano. E a<br />

minha professora não foi alguém <strong>de</strong> Lisboa,<br />

Coimbra ou Porto, mas sim uma académica norte-<br />

-americana da Costa Leste dos Estados Unidos,<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> açorianos.<br />

Enfim, Portugal continua a perseguir-me e eu<br />

não sou surdo aos seus apelos. Quando os meus<br />

filhos cresceram, levei-os <strong>de</strong> imediato a Portugal<br />

e percorremo-lo <strong>de</strong> Lisboa para sul e para norte,<br />

até ao Promontório <strong>de</strong> Sagres e Trás-os-Montes, e<br />

enquanto o percorria com eles <strong>de</strong>i-me conta,<br />

mais uma vez, das afinida<strong>de</strong>s secretas que existem<br />

entre o Chile e Portugal: a consciência clara da<br />

sua gente <strong>de</strong> que vive num extremo do mundo, o<br />

seu carácter retraído e reservado, a sua melancolia<br />

permanente, a sua afeição pelo vinho, a comida<br />

marítima e a poesia, os nevoeiros e os céus azuis,<br />

a sua existência frente ao mar. Sim, Portugal persegue-me<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que eu cantava no colégio da minha<br />

infância.


O QUE FAÇO EU AQUI 110<br />

O preço da<br />

minha vida<br />

João <strong>de</strong> Melo<br />

111


Jiron Junin, no centro <strong>de</strong> Lima


O QUE FAÇO EU AQUI 112<br />

113<br />

Cheguei a Lima a meio<br />

<strong>de</strong> uma noite brumosa e parada<br />

<strong>de</strong> Julho, em 1990, já<br />

no limite das minhas forças e<br />

após mais <strong>de</strong> trinta horas <strong>de</strong><br />

viagem – ao fim das quais<br />

senti que chegava a outro<br />

tempo, a uma nova dimensão<br />

e a um mundo muito diferente<br />

do meu. Lisboa/Madrid/São<br />

Paulo/La Paz e, finalmente,<br />

Lima. Ia ao Peru<br />

receber o prémio literário<br />

«Cristóbal Colón» das Cida<strong>de</strong>s<br />

Capitais Ibero-Americanas.<br />

Estive não mais do que<br />

um minuto na fila dos vistos<br />

e passaportes: logo um homem<br />

baixo, mas muito entroncado,<br />

com ar <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong><br />

segurança, <strong>de</strong> cabelo envernizado<br />

e lambido para a nuca, chamou repetidamente<br />

pelo meu nome («Señor <strong>de</strong> Melo! Señor <strong>de</strong><br />

Melo!»). Quando me apresentei, disse-me apenas<br />

estar ali em representação do município <strong>de</strong> Lima. E<br />

tendo-me saudado <strong>de</strong> uma forma polida e sucinta,<br />

pediu-me <strong>de</strong>licadamente que o acompanhasse. Devia<br />

ser pessoa <strong>de</strong> alguma importância, porque me<br />

subtraiu ao controlo da alfân<strong>de</strong>ga, à polícia <strong>de</strong><br />

fronteira e a tudo o mais que costuma atormentar<br />

a vida dos homens cansados <strong>de</strong> viajar.<br />

Eu vinha ao contrário do tempo e dos fusos<br />

horários, no sentido inverso ao dos ponteiros dos<br />

relógios (o biológico e o <strong>de</strong> pulso). Segui-o até à<br />

sala «vip». A embaixada risonha, simpática e<br />

tranquila que aí me aguardava, dispensando-me<br />

gran<strong>de</strong> soma <strong>de</strong> cumprimentos e adjectivos, pôs-<br />

-me então ao corrente do programa: visitas, recepções<br />

em diversas embaixadas, alguns compromissos<br />

com jornais e rádios, a cerimónia oficial<br />

do prémio. «Bienvenido, señor <strong>de</strong> Melo, a las<br />

fiestas <strong>de</strong> Lima!», concluíram.<br />

Camilo José Cela, Nobel da Literatura do ano<br />

anterior, Don Agustín Rodríguez Sahagún, o alcai<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Madrid, o escritor peruano Alfredo Bryce<br />

Echenique, que vivia no estrangeiro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos<br />

do exílio (e com quem passei os momentos<br />

mais divertidos <strong>de</strong>sses nove dias <strong>de</strong> Lima), e não<br />

sei que outros ilustres convidados, já estavam na<br />

cida<strong>de</strong>. Por isso mesmo, não estranhei que cinco<br />

índios mudos, uns «cholos» colossais, todos vestidos<br />

<strong>de</strong> negro, cujas sombras passeavam nos corre-<br />

Estive não mais do que<br />

um minuto na fila<br />

dos vistos e passaportes:<br />

logo um homem baixo,<br />

mas muito entroncado,<br />

com ar <strong>de</strong> chefe<br />

<strong>de</strong> segurança,<br />

<strong>de</strong> cabelo envernizado<br />

e lambido para a nuca,<br />

chamou repetidamente<br />

pelo meu nome<br />

dores em volta da sala «vip»<br />

do aeroporto, ali estivessem<br />

<strong>de</strong> guarda, sempre <strong>de</strong> olhos<br />

postos em mim – como também<br />

não estranhei a viatura<br />

blindada que me foi atribuída<br />

(na minha qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convidado<br />

especial), nem o amplo<br />

sorriso zeloso do Sr. Bermú<strong>de</strong>z,<br />

o meu condutor (que<br />

pedia sempre licença antes <strong>de</strong><br />

trancar as portas por <strong>de</strong>ntro, o<br />

que fazia por sistema), nem<br />

os outros dois carros que<br />

abriam e fechavam o cortejo<br />

até à cida<strong>de</strong>. Semanas atrás, o<br />

país havia eleito Fujimori presi<strong>de</strong>nte<br />

da República do Peru,<br />

contra o famoso escritor Mario<br />

Vargas Llosa, talvez o cidadão<br />

peruano mais conhecido<br />

no mundo inteiro (mais até do que Pérez <strong>de</strong><br />

Cuéllar, nessa altura secretário-geral da ONU).<br />

Ainda em Lisboa, o Ministério dos Negócios<br />

Estrangeiros tinha-me prevenido: só na semana<br />

anterior, a guerrilha do Sen<strong>de</strong>ro Luminoso fizera<br />

explodir treze bombas em Lima, pondo a cida<strong>de</strong><br />

na antecâmara <strong>de</strong> uma guerra civil. Por conseguinte,<br />

não estranhasse eu ver a polícia armada<br />

<strong>de</strong> metralhadora e viseira, colete à prova <strong>de</strong> bala e<br />

capacete, a singrar pelo meio do intenso tráfego<br />

<strong>de</strong> Lima com as sirenes numa estridência caótica.<br />

Até certo ponto, achei justo que os meus<br />

guarda-costas não usassem <strong>de</strong> nenhuma subtileza<br />

com ninguém, nem mesmo comigo. Quando o<br />

Sr. Bermú<strong>de</strong>z me largava à porta do Hotel Bolívar,<br />

na baixa <strong>de</strong> Lima, eles, como que por encanto,<br />

saíam dos seus secretos escon<strong>de</strong>rijos: corriam a<br />

ro<strong>de</strong>ar a minha viatura, <strong>de</strong> metralhadora em punho,<br />

abrindo alas para eu passar; se ia até ao bar,<br />

eles seguiam-me os passos e espiavam-me o mínimo<br />

gesto; e punham-se em sentido para me<br />

anunciarem a chegada <strong>de</strong> alguém que viesse à<br />

minha procura ou uma chamada telefónica. De<br />

resto, esses perfeitos e excessivos anjos-da-guarda<br />

jamais me <strong>de</strong>ixaram em paz ou sequer entregue<br />

aos serviços do hotel; acompanhavam-me ao<br />

quarto, pedindo-me que trancasse a porta por<br />

<strong>de</strong>ntro e que nunca por nunca a abrisse a ninguém.<br />

Pensando bem, tudo ali se justificava, mas<br />

não estritamente por mim. A cida<strong>de</strong> enchera-se<br />

<strong>de</strong> gente venerável (digo: vulnerável), provinda


<strong>de</strong> não sei quantos países<br />

do Mundo, e toda ela bem<br />

mais importante do que eu.<br />

Imagine-se um atentado em<br />

Lima contra o escritor Camilo<br />

José Cela, o Nobel da<br />

Literatura, ou contra o alcai<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Madrid, ou contra<br />

um qualquer daqueles extraordinários<br />

embaixadores<br />

que nos prepararam tantas,<br />

tão magníficas e tão opíparas<br />

recepções nas suas residências<br />

oficiais! O que não<br />

se falaria do Peru (do regime,<br />

da pobreza do seu povo,<br />

do terrorismo urbano)<br />

nos cinco continentes da<br />

Terra!<br />

Por mim, vivi nove dias<br />

numa Lima <strong>de</strong> prazer e <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s tormentos; na mesma cida<strong>de</strong> dos livros <strong>de</strong><br />

Llosa, das casas que não eram casas, das ruas planas<br />

que davam para os pueblos perdidos, do seu magnífico<br />

centro colonial espanhol que era preciso salvar<br />

do tempo e da ruína. Vi-a por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

viatura blindada, é certo; mas explicada pela voz<br />

doce e muito religiosa do Sr. Bermú<strong>de</strong>z (pai <strong>de</strong><br />

nove filhos, <strong>de</strong>voto da Virgen <strong>de</strong> la Almu<strong>de</strong>na) e<br />

<strong>de</strong>pois comentada pelo diplomata português que<br />

me levou a conhecê-la, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o centro histórico<br />

até aos arredores e aos subúrbios – bela, horrível,<br />

pobre, riquíssima; uma cida<strong>de</strong> injusta e <strong>de</strong>sigual<br />

como poucas que até agora conheci.<br />

No fim, as mesmas viaturas, com seus «cholos»<br />

mudos e colossais, me levaram <strong>de</strong> regresso<br />

ao aeroporto. Os mesmos académicos e autarcas<br />

foram até lá <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> mim. O tal homem<br />

do cabelo envernizado e lambido para a nuca<br />

também não faltou. À <strong>de</strong>spedida, disse um a<strong>de</strong>us<br />

comovido ao Sr. Bermú<strong>de</strong>z, o meu motorista, que<br />

me havia contado toda a sua vida; passei as mesmas<br />

portas e cancelas do dia da chegada, fui sentar-me<br />

à conversa com um dos jurados do tal prémio<br />

literário. Estávamos já na sala <strong>de</strong> embarque,<br />

com o avião à vista. O académico «bebia» a minha<br />

permanência até ao fim, movido pelo prazer<br />

<strong>de</strong> ambos amarmos a poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa,<br />

os romances <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós e os sermões do<br />

Padre António Vieira. Por fim, chegou a hora <strong>de</strong><br />

nos <strong>de</strong>spedirmos: as vozes <strong>de</strong> feltro do aeroporto<br />

convidavam a embarcar os senhores passageiros<br />

Por mim, vivi nove dias<br />

numa Lima <strong>de</strong> prazer<br />

e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s tormentos;<br />

na mesma cida<strong>de</strong> dos livros<br />

<strong>de</strong> Llosa, das casas<br />

que não eram casas,<br />

das ruas planas que davam<br />

para os pueblos perdidos,<br />

do seu magnífico centro<br />

colonial espanhol que era<br />

preciso salvar do tempo<br />

e da ruína<br />

com <strong>de</strong>stino a Madrid. Então<br />

ele, o académico, pondo-se<br />

subitamente muito sério, e<br />

<strong>de</strong>pois ainda cheio <strong>de</strong> mistério<br />

mas já com o melhor<br />

dos sorrisos, puxou-me por<br />

um braço e levou-me até<br />

um canto da sala para que<br />

mais ninguém ouvisse.<br />

Apontou para os índios<br />

guarda-costas que ainda se<br />

disfarçavam por ali, na<br />

sombra. Pediu <strong>de</strong>sculpa,<br />

disse-me que não estranhasse<br />

as medidas <strong>de</strong> segurança<br />

com que me tinham<br />

ro<strong>de</strong>ado durante todas<br />

aqueles dias – mas o caso é<br />

que (e só agora ele achava<br />

por bem revelar-mo!) houvera<br />

uma ameaça <strong>de</strong> rapto e<br />

morte do Sen<strong>de</strong>ro Luminoso contra mim, dias<br />

antes da minha chegada...! Acusado <strong>de</strong> quê? De<br />

ter ido a Lima receber um prémio «burguês».<br />

Motivo mais do que suficiente, ao que parece, para<br />

que os guerrilheiros do Sen<strong>de</strong>ro me raptassem<br />

levando-me para as faldas da cordilheira andina e<br />

aí me <strong>de</strong>golassem sem qualquer pudor, nem<br />

consciência, nem misericórdia...<br />

Disse-mo com o mesmo sorriso simpático e<br />

prodigioso que sempre lhe conheci, um sorriso<br />

complacente e quase infantil, e tão escrupuloso<br />

como o <strong>de</strong> um bandido irrepreensivelmente<br />

educado; um sorriso que por um momento me<br />

confundiu e quase indignou, mas que logo me<br />

pôs também a sorrir como ele então sorria:<br />

olhando-me nos olhos e pedindo repetidamente<br />

<strong>de</strong>sculpa. Com um último abraço <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida,<br />

voltou a <strong>de</strong>sejar-me boa viagem, e muitos e muitos<br />

sucessos futuros na minha carreira <strong>de</strong> escritor,<br />

e um próximo regresso ao Peru, se possível<br />

menos atribulado. E então, num gesto puramente<br />

instintivo, como <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa contra os perigos visíveis<br />

e invisíveis que me haviam ameaçado em Lima<br />

sem que alguma vez tivesse dado por isso, levei<br />

a mão ao bolso <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do casaco: tacteei,<br />

apalpei, enchi a mão com os cinco mil dólares<br />

americanos, disse a mim mesmo, com um suspiro<br />

<strong>de</strong> alívio, que aquele não era o dinheiro <strong>de</strong><br />

prémio literário nenhum, mas sim o preço, o incêndio<br />

e o rescaldo da minha vida toda por um<br />

fio. Em Lima, no Peru.


CRUZEIRO DO SUL 114<br />

Neruda<br />

e uma pedra<br />

coberta<br />

<strong>de</strong> musgo<br />

Luis Sepúlveda<br />

115


Neruda na Isla Negra . Foto <strong>de</strong> Antonio Quintana. Archivo Fundación Pablo Neruda


CRUZEIRO DO SUL 116<br />

117<br />

Há algumas semanas, a<br />

jornalista chilena Isabel Lipthay<br />

enviou-me da Alemanha<br />

uma história comovente<br />

que falava <strong>de</strong> outro<br />

Neruda, à margem das justas<br />

celebrações pelos cem<br />

anos do seu nascimento e<br />

que, se tivesse <strong>de</strong> atribuir-<br />

-lhe um título, <strong>de</strong>veria chamar-se<br />

«As razões do silêncio».<br />

Não conheci Pablo Neruda<br />

na sua intimida<strong>de</strong>,<br />

apenas o vi três vezes, mas<br />

essas três ocasiões foram<br />

para mim <strong>de</strong>cisivas para<br />

concluir que, nos olhos <strong>de</strong><br />

Neruda, havia uma tristeza singular, algo assim<br />

como a tristeza dos náufragos que, uma vez salvos<br />

e regressados aos seus lugares <strong>de</strong> origem, não <strong>de</strong>ixam<br />

<strong>de</strong> sentir sauda<strong>de</strong>s da ilha <strong>de</strong>serta na qual foram<br />

Robinson Crusoe, tristeza que cresce com a<br />

certeza <strong>de</strong> que nunca mais regressarão a essa ilha.<br />

A história <strong>de</strong> Isabel Lipthay, brevemente escrita<br />

como <strong>de</strong>vem ser as boas histórias, levou-me a<br />

antecipar uma viagem à Holanda, prevista para<br />

Outubro, e parti <strong>de</strong>cidido a encontrar também<br />

uma pedra esquecida e coberta <strong>de</strong> musgo.<br />

Durante a viagem procurei na melhor biografia<br />

<strong>de</strong> Pablo Neruda, a escrita pelo seu amigo e<br />

companheiro do Partido Comunista Chileno,Volodia<br />

Teitelboim, certamente a melhor que se escreveu,<br />

dados sobre María Antonieta Hagenaar, a mítica<br />

«Holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Java», primeira esposa <strong>de</strong> Neruda<br />

e à qual <strong>de</strong>dicou versos cheios <strong>de</strong> temor e<br />

que mostravam o <strong>de</strong>samor que só se resolve com<br />

o distanciamento <strong>de</strong>finitivo. Não encontrei <strong>de</strong>masiada<br />

informação, apenas pinceladas que confirmam<br />

que esteve, sim, casada com o poeta e que,<br />

juntos, tiveram uma filha, Malva Marina.<br />

Diz-se e sabe-se que as mulheres que acompanharam<br />

Neruda tiveram uma importância capital<br />

na obra do poeta. Com María Antonieta Hagenaar<br />

partilhou os anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterro nos quais a sua<br />

genialida<strong>de</strong> encontrou os elementos para escrever<br />

Resi<strong>de</strong>ncia en la Tierra.<br />

Malva Marina Reyes – Neruda chamava-se<br />

Neftalí Reyes – nasceu em Madrid a 18 <strong>de</strong> Agosto<br />

<strong>de</strong> 1934, foi talvez chamada a ser a flor mais importante<br />

<strong>de</strong>ssa casa madrilena à qual os amigos do<br />

poeta, Antonio Machado, María Teresa León, Gar-<br />

Os versos em que Neruda<br />

fala da sua filha<br />

são tristes, enigmáticos,<br />

como se o poeta<br />

tivesse tentado<br />

salvar-se da dor<br />

com a perfeição<br />

do génio<br />

cía Lorca, Miguel Hernán<strong>de</strong>z,<br />

Rafael Alberti, chamavam com<br />

razão «a casa das flores». Mas<br />

Malva Marina nasceu com o<br />

in<strong>de</strong>lével selo das flores transitórias,<br />

daquelas que não chegam<br />

a mostrar a plenitu<strong>de</strong> das<br />

suas pétalas nem a oferecer a<br />

embriaguez dos seus aromas.<br />

A menina nasceu hidrocéfala e<br />

o seu nascimento marcou<br />

talvez o poeta com uma dor<br />

<strong>de</strong>finitiva, pois não existe dor<br />

mais intensa que a certeza <strong>de</strong><br />

que sobreviveremos aos nossos<br />

filhos.<br />

Os versos em que Neruda<br />

fala da sua filha são tristes,<br />

enigmáticos, como se o poeta tivesse tentado salvar-se<br />

da dor com a perfeição do seu génio: «Oh<br />

niña entre las rosas, oh presión <strong>de</strong> palomas/ oh<br />

presidio <strong>de</strong> peces y rosales/ tu alma es una botella<br />

<strong>de</strong> sal sedienta...» (Oda con un lamento). De toda a rica<br />

correspondência mantida por Neruda, apenas<br />

numa carta dirigida a seu pai menciona a presença<br />

da filha: «Parece que la niña nació antes <strong>de</strong> tiempo,<br />

y ha costado mucho que viva...»<br />

En 1936, os madrilenos preparam-se para a<br />

gran<strong>de</strong> tragédia do fascismo, a República está em<br />

perigo, Neruda é um activista da <strong>de</strong>mocracia, abre<br />

a sua casa a todos os que estão <strong>de</strong>cididos a lutar<br />

contra Franco, e abre também o seu coração a outra<br />

mulher: Delia <strong>de</strong>l Carril, «A Formiguinha»,<br />

pintora e companheira <strong>de</strong> causa. María Antonieta<br />

Hagenaar, a «Holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Java» <strong>de</strong>saparece da<br />

sua vida, e com ela a pequena Malva Marina, que<br />

se retira da vida do poeta com o mesmo silêncio<br />

com que uma sombra <strong>de</strong>saparece.<br />

Nesse mesmo ano <strong>de</strong> 1936, «a la hora <strong>de</strong>l<br />

fuego, al año <strong>de</strong>l balazo», como tão bem o <strong>de</strong>finiu<br />

César Vallejo, a «Holan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Java», a sua solidão<br />

<strong>de</strong> abandonada e a pequena Malva Marina <strong>de</strong>ixam<br />

Espanha e partem para a Holanda. Na sua mala,<br />

levam talvez, como única gran<strong>de</strong> recordação, os<br />

versos que lhe escreveu Fe<strong>de</strong>rico García Lorca:<br />

«Niñita <strong>de</strong> Madrid, Malva Marina/ no quiero darte<br />

flor ni caracola:/ ramo <strong>de</strong> sal y amor, celeste<br />

lumbre/ pongo pensando en ti sobre tu boca».<br />

Alheia à beleza e ao horror, longe do amor e<br />

do ódio, Malva Marina continuou a sua existência<br />

vegetal em Gouda, abandonada inclusive pela sua<br />

mãe, que confiou a sua custódia a um casal <strong>de</strong>


Neruda em Machu Picchu, 1943. Archivo Fundación Pablo Neruda


CRUZEIRO DO SUL 118<br />

119<br />

Porque crescem os fetos<br />

nos cemitérios<br />

esquecidos?<br />

Porque escolhem<br />

as pegas esses lugares<br />

para ensaiar<br />

os seus grasnidos?<br />

Porque é o musgo<br />

o sinónimo<br />

do esquecimento?<br />

holan<strong>de</strong>ses. Não soube do fim da República em<br />

Espanha, nem da morte <strong>de</strong> García Lorca, nem da<br />

morte <strong>de</strong> Machado, nem da morte <strong>de</strong> Miguel<br />

Hernán<strong>de</strong>z, nem da morte da poesia quando caiu<br />

a última barricada do bairro madrileno <strong>de</strong> Lavapies.<br />

Não soube que os nazis invadiram a Holanda<br />

e que o horror marchava com música wagneriana<br />

por toda a Europa.Tampouco soube que seu<br />

pai organizava a partir <strong>de</strong> Trompeloup, próximo<br />

<strong>de</strong> Bordéus, a maior operação <strong>de</strong> salvamento <strong>de</strong><br />

republicanos espanhóis perseguidos por Franco e<br />

pelas autorida<strong>de</strong>s pró-nazis da França ocupada. A<br />

água que afogava a sua cabeça manteve-a flutuando<br />

no ventre benigno dos ausentes, e negou-se a<br />

nascer num mundo <strong>de</strong> medo e espanto.<br />

O velho cemitério <strong>de</strong> Gauda é um monumento<br />

nacional, assim mo explica o meu amigo<br />

Gerd Kooster, nenhuma sepultura po<strong>de</strong> ser aberta<br />

ou fechada, <strong>de</strong> tal maneira que a sua eternida<strong>de</strong> é<br />

a mesma frágil eternida<strong>de</strong> do planeta.<br />

Após percorrer durante uma hora os estreitos<br />

carreiros do cemitério, invadidos por uma vegetação<br />

em que predomina o ténue ver<strong>de</strong> da humida<strong>de</strong>,<br />

encontramos a campa <strong>de</strong> Malva Marina, essa<br />

pequena presença do sangue <strong>de</strong> um dos maiores<br />

poetas <strong>de</strong> todos os tempos, e talvez a responsável<br />

pelo ricto <strong>de</strong> tristeza que sempre acompanhou<br />

o seu rosto, como se a água que afogava<br />

Malva Marina se tivesse instalado nas suas olheiras<br />

eternas.<br />

A inscrição que cobre essa lápi<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> cresce<br />

o musgo, é lacónica: «Aquí yace nuestra querida<br />

Malva Marina Reyes nacida en Madrid el 18<br />

<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1934/ fallecida en Gouda el 2 <strong>de</strong><br />

Marzo <strong>de</strong> 1943.»<br />

Porque crescem os fetos nos cemitérios esquecidos?<br />

Porque escolhem as pegas esses lugares<br />

para ensaiar os seus grasnidos? Porque é o musgo<br />

o sinónimo do esquecimento? Porque escreve<br />

Neruda, no seu poema «Farawell»: «<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el<br />

fondo <strong>de</strong> ti y arrodillado/ un niño triste como yo<br />

nos mira»?<br />

Salve, Pablo, Salve Poeta, como tão bem escreveu<br />

Atahualpa Yupanqui, «gracias por la ternura<br />

que nos diste». Quando erguer a minha taça<br />

para brindar pelos teus cem anos <strong>de</strong> Poeta e companheiro,<br />

far-te-ei essas perguntas e muitas outras.<br />

E quando regressar à Isla Negra, às tuas carrancas<br />

<strong>de</strong> proas, às tuas colecções <strong>de</strong> garrafas e<br />

objectos infantis, olharei à beira das escarpas on<strong>de</strong><br />

ainda crescem as Malvas embaladas pela salobre<br />

brisa Marina.


A MARESIA DO MUNDO 120<br />

Ouvir na noite a maresia e ver o arco inteiro dos astros<br />

é pertencer inteiramente ao gran<strong>de</strong> harmónio do universo<br />

Mas nós vivemos em quartos poeirentos<br />

e já não vemos as constelações ofuscadas pelas luzes da cida<strong>de</strong><br />

O silêncio já não tem a placi<strong>de</strong>z planetária<br />

<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> bálsamo <strong>de</strong> sombra universal<br />

Lembro-me ainda na minha terra solar <strong>de</strong> me esten<strong>de</strong>r ao comprido no ladrilho do terraço<br />

<strong>de</strong> frente para as estrelas<br />

e o firmamento inteiro abria-se num vasto leque tranquilamente cintilante<br />

Ondulava na gran<strong>de</strong> embarcação do universo<br />

e respirava o seu vagaroso e rescen<strong>de</strong>nte pulmão<br />

Ninguém navega já assim no espaço<br />

e por isso se per<strong>de</strong>u a fértil lentidão da terra<br />

Se o poema é um búzio em que ressoa a maresia do mundo<br />

po<strong>de</strong>rá ele suscitar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> pertencer à terra<br />

como uma árvore que se inclina sobre as ondas<br />

ou uma torre vegetal <strong>de</strong> sombras embriagadas pela brisa marinha?<br />

Poema inédito <strong>de</strong><br />

António Ramos Rosa<br />

121


Foto <strong>de</strong> João Mariano


FICÇÕES 122<br />

Lagoa Blues<br />

Tabajara Ruas<br />

123


Era raro encontrar alguém que gostasse como<br />

ele <strong>de</strong> Chet Baker.<br />

Pensou isso porque o aparelho <strong>de</strong> som pendurado<br />

num canto do café rodava um CD <strong>de</strong> Stan<br />

Getz. Ao menos parecia <strong>de</strong> Stan Getz, já que uma<br />

voz brasileira emitia um lalálá sincopado e afinadíssimo,<br />

e ele fez a asneira <strong>de</strong> comentar com a<br />

cliente a seu lado que <strong>de</strong>testava esse mingau<br />

aguado que Stan Getz servia.<br />

O café era minúsculo, num canto do posto<br />

<strong>de</strong> gasolina em frente à lagoa, e se chamava Café<br />

do Tom, o que o estimulou a fazer o comentário<br />

com a cliente. A cliente afastou para a testa os<br />

óculos escuros e contemplou-o com todo o <strong>de</strong>sprezo<br />

dos seus olhos ver<strong>de</strong>s.<br />

Sabia que aqueles olhos eram ver<strong>de</strong>s. Era perito<br />

em feições, fora cientificamente preparado<br />

na aca<strong>de</strong>mia em Washington e <strong>de</strong>senvolvera esse<br />

preparo em doze anos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> permanente<br />

na Polícia Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Quando a mulher levantou os óculos, saboreou<br />

seu pequeno triunfo, ignorando o <strong>de</strong>sprezo.<br />

A cliente tinha pernas longas e queimadas <strong>de</strong> sol,<br />

o short curtíssimo e <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> pulseiras nos<br />

braços. Ela po<strong>de</strong>ria ser paulista, paranaense ou<br />

gaúcha: a maioria dos freqüentadores do café vinha<br />

<strong>de</strong>sses estados, como as placas dos carros estacionados<br />

em frente mostravam. O feriado <strong>de</strong> Finados<br />

estava em cima e o centrinho da Lagoa da<br />

Conceição estava cheio <strong>de</strong> turistas.<br />

A mulher <strong>de</strong> olhos ver<strong>de</strong>s não tinha jeito <strong>de</strong><br />

turista. Há muito tempo a Lagoa não era apenas o<br />

paraíso buscado pelos visitantes dos feriadões,<br />

mas por pessoas que <strong>de</strong>sejavam uma alternativa<br />

<strong>de</strong> vida ao stress dos gran<strong>de</strong>s centros. A pacata vila<br />

<strong>de</strong> pescadores tinha se transformado rapidamente<br />

num bairro <strong>de</strong> classe média internacional.<br />

Não apenas paulistas e gaúchos tinham aberto casas<br />

<strong>de</strong> comércio ou bares ou restaurantes ou escolas<br />

<strong>de</strong> todo tipo – <strong>de</strong> idiomas, <strong>de</strong> caratê, dança,<br />

meditação transcen<strong>de</strong>ntal – também uma enorme<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> argentinos, uruguaios, chilenos e<br />

mesmo ingleses e alemães tinham escolhido a Lagoa<br />

para viver.<br />

O cara que ele buscava era francês.<br />

Olhou o relógio. Onze e vinte e cinco. Tinha<br />

cinco minutos para pegar a barca.<br />

Pagou o café, <strong>de</strong>u um último olhar para as<br />

pernas da mulher e saiu procurando manter certa<br />

dignida<strong>de</strong>. Caminhou até a ponte começando a se<br />

tomar <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> vaga e não premeditada<br />

euforia.


FICÇÕES 124<br />

125<br />

Era uma manhã <strong>de</strong> primavera, o vento tinha<br />

parado e o sol caía em cheio na lagoa, que brilhava<br />

como um diamante.<br />

Isto era tudo que queria. Lutara muito pela<br />

transferência para este posto, que só conseguira<br />

graças a sua folha e amigos influentes. Nascera e<br />

vivera em Porto Alegre e, como boa parte dos<br />

porto-alegrenses, alimentava uma secreta fantasia<br />

com Florianópolis e suas praias e seus morros.<br />

Em nenhum momento sentiu <strong>de</strong>cepção. O<br />

trabalho era bem mais fácil: a burocracia cotidiana<br />

com os estrangeiros, carimbar documentos,<br />

certificar-se <strong>de</strong> que os passaportes estavam em dia<br />

e <strong>de</strong> que os vistos estavam nos prazos.<br />

Essa história do tal francês é que estava um<br />

pouco fora dos eixos, mas até que servia <strong>de</strong> pretexto<br />

para um revigorante passeio na lagoa.<br />

A barca da linha chegou, os passageiros <strong>de</strong>sembarcaram<br />

e ele entrou com mais uma dúzia<br />

<strong>de</strong> turistas e moradores da Costa da Lagoa.<br />

A travessia durava quarenta minutos até a Costa,<br />

on<strong>de</strong> só se chegava <strong>de</strong> barca ou a pé, por uma<br />

trilha escarpada. As potentes lanchas particulares,<br />

as «voa<strong>de</strong>iras» segundo os nativos, levavam quando<br />

muito quinze minutos, e passavam vigorosamente<br />

por eles, levantando ondas. Mas apreciava<br />

essa lentidão. Ia em pé, na proa, gozando o sol e a<br />

brisa, acompanhando as gaivotas em vôos circulares,<br />

apreciando os a<strong>de</strong>ptos do wind surf com suas<br />

enormes velas multicores passando perto da barca<br />

e pensando como fora duro <strong>de</strong>ixar o cigarro ao<br />

vislumbrar esse <strong>de</strong>sejo que o assalta <strong>de</strong> repente,<br />

enquanto observa as recém construídas casas dos<br />

ricaços invasores manchando o ver<strong>de</strong> dos morros.<br />

Antes <strong>de</strong> falar com a velha passaria no restaurante<br />

do Índio e encomendaria um almoço, como<br />

lhe recomendara Tomás, veterano freqüentador<br />

dos restaurantes da Costa.<br />

Camarão, dissera Tomás, frito, ao molho, com<br />

pirão, empanado, como quiser. E uma tainha frita,<br />

que é pescada ali mesmo, diante do restaurante.<br />

As tainhas pulavam <strong>de</strong> longe em longe, causando<br />

exclamações dos turistas.<br />

A conversa com a velha não levaria mais do<br />

que alguns minutos. O tal francês tinha <strong>de</strong>saparecido<br />

e o último lugar on<strong>de</strong> tinha sido visto fora<br />

na Costa, on<strong>de</strong> alugara um quartinho da velha. Isso<br />

era tudo. O consulado insistira, o caso caíra na<br />

sua mesa e agora estava aí, <strong>de</strong>sembarcando no trapiche<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, on<strong>de</strong> pneus velhos serviam <strong>de</strong><br />

amortecedores para a barca encostar.<br />

Passou no restaurante do Índio, bebeu um<br />

guaraná, encomendou o almoço e se informou<br />

on<strong>de</strong> era a casa <strong>de</strong> Dona Severina. Antes perguntou<br />

pelo francês. Sim, era conhecido, um bom rapaz,<br />

ficava lá com seus livros, gostava <strong>de</strong> dar gran<strong>de</strong>s<br />

caminhadas, nunca incomodou ninguém. Fazia<br />

algumas semanas que não o viam, já <strong>de</strong>via ter<br />

ido embora.<br />

Caminhou algumas quadras constatando, maravilhado,<br />

que nas ruelas da vila não circulavam<br />

automóveis. Parou numa casinhola um pouco<br />

afastada das <strong>de</strong>mais, a menos <strong>de</strong> quatro metros da<br />

beira da lagoa. Bateu palmas diante do portão.<br />

A velhota era baixinha, dava um pouco acima da<br />

sua cintura, e tinha a postura curvada, como se fosse<br />

corcunda ou tivesse algum grave <strong>de</strong>feito na coluna.<br />

Convidou-o para entrar, que não reparasse<br />

que era casa <strong>de</strong> gente simples, ofereceu um cafezinho<br />

que ele aceitou, sentou na pequena poltrona<br />

forrada <strong>de</strong> plástico, sentiu o cheiro <strong>de</strong> fritura<br />

vindo dos fundos, ouviu latidos.<br />

O moço foi embora, sim, senhor, pagou tudo<br />

direitinho, era um moço muito bom, nunca incomodou.<br />

Desapareceu? Virge. Nunca conheci nenhum<br />

amigo <strong>de</strong>le não senhor.<br />

Nunca recebeu carta não senhor.<br />

Namorada? A velha <strong>de</strong>u um risinho esperto.<br />

Ele era moço, não tem? Moço e bem bonito.<br />

Se mora alguém comigo? Não senhor. Só a<br />

Imaculada. Hóspe<strong>de</strong> ele foi o último. Até que<br />

seria bom. Minha esperança é que agora já vem o<br />

verão, po<strong>de</strong> ser que alugue o quartinho.<br />

Fez mais algumas perguntas sem convicção,<br />

olhando ao redor e vendo quadros <strong>de</strong> familiares<br />

nas pare<strong>de</strong>s, um calendário, uma imagem <strong>de</strong><br />

Nossa Senhora da Conceição.<br />

A velha tinha uma almofada com bilros na<br />

sua frente e uma toalha <strong>de</strong> renda ainda por terminar.<br />

Deveria ser essa sua principal fonte <strong>de</strong> renda.<br />

Terminou <strong>de</strong> tomar o café, pousou a xícara na<br />

mesinha <strong>de</strong> centro, levantou-se.<br />

A senhora disse que morava com alguém.<br />

Agora ela não está.<br />

Bom...<br />

Percebeu que estava com fome, já passava do<br />

meio-dia, havia camarões e uma tainha esperando<br />

à beira da lagoa. Escolheu uma mesa ao ar livre,<br />

perto do trapiche, e ficou vendo os turistas chegarem<br />

em bandos barulhentos. A comida fazia jus<br />

à fama, acha que abusou um pouco, sentiu-se pesado<br />

e com sono.Tomou um café, pediu a conta e<br />

perguntou com quem Dona Severina morava.


Com ninguém. Ela mora só. Há anos ela mora<br />

só.<br />

Ficou cismando enquanto esperava o troco e<br />

calculava quanto tempo teria antes da próxima<br />

barca. Talvez fosse um <strong>de</strong>talhe sem importância,<br />

mas um francês <strong>de</strong>saparecido po<strong>de</strong> trazer complicações<br />

para um <strong>de</strong>partamento inteiro. Precisava<br />

fazer um relatório. Um <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong>sses não passaria<br />

por alto aos tiras do consulado e muito menos na<br />

embaixada.<br />

Tornou a bater palmas diante do portão.<br />

Dona Severina não apareceu. Esperou um<br />

pouco, abriu o portão e avançou pelo pequeno<br />

pátio. Espiou pela porta entreaberta. Ninguém na<br />

sala. Deu a volta à casa, ficou outra vez diante da<br />

imensidão da lagoa, observou os paragli<strong>de</strong>s coloridos<br />

flutuando no céu, aproximou-se da porta<br />

que <strong>de</strong>veria ser da cozinha, ninguém ali <strong>de</strong>ntro.<br />

Mas havia pequenos ruídos, algo rangendo.<br />

Enfiou a cabeça na cozinha, uma porta ligava<br />

a outra peça. Na penumbra <strong>de</strong>ssa peça viu um pé,<br />

calçado com botina, escapando <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong>, e<br />

não era o pé <strong>de</strong> Dona Severina. Era <strong>de</strong> um homem,<br />

e dormia uma sesta pesada.<br />

O senhor voltou.<br />

Dona Severina estava atrás <strong>de</strong>le. Tinha levado<br />

um pequeno susto, foi obrigado a sorrir.<br />

Preciso lhe perguntar mais uma coisa, se não<br />

incomodo.<br />

Deram a volta à casa, entraram outra vez na<br />

sala, sentou outra vez na poltrona forrada <strong>de</strong> plástico,<br />

aceitou o cafezinho.<br />

Dormindo na re<strong>de</strong>? O Antônio.<br />

Não, ele não é hóspe<strong>de</strong>. Mais açúcar?<br />

Ah, a Imaculada. Ela só aparece <strong>de</strong> noite.<br />

Me ajuda um pouco.<br />

Mais café? O senhor está ficando branco.<br />

O banheiro é aqui do lado. O senhor não<br />

repare.<br />

Levantou-se amaldiçoando o almoço, o café,<br />

o vento da lagoa que começava a soprar. O assoalho<br />

pareceu mover-se, agarrou a porta do banheiro<br />

para não cair, viu o homem na re<strong>de</strong>, enorme,<br />

ressonando. Um frio o invadia, um frio enorme,<br />

um frio paralisante e viu que sua mão escorregava<br />

lentamente pela porta do banheiro. Era patético,<br />

mas sentiu que ia <strong>de</strong>smaiar, abriu a boca para pedir<br />

ajuda, mas não conseguiu dizer nada.<br />

O assoalho aproximou-se rapidamente <strong>de</strong> sua<br />

cabeça e ouviu um estrondo misturado ao grito<br />

das gaivotas lá fora.<br />

Abriu os olhos muito <strong>de</strong>vagar, sentindo alí-<br />

vio, sentindo os membros amolecidos. Estava recostado<br />

numa cama no quarto em penumbra, o<br />

homem ainda ressonava na re<strong>de</strong>, a três passos <strong>de</strong>le,<br />

mas teve a impressão <strong>de</strong> que passara bastante<br />

tempo.<br />

Pela janela entreaberta viu que o céu estava<br />

rosado. Já era o crepúsculo! Moveu o rosto. Dona<br />

Severina, na sala, trabalhava na toalha <strong>de</strong> renda,<br />

movendo com habilida<strong>de</strong> os bilros. Abriu a boca<br />

para chamar por ela, mas não conseguiu articular<br />

nenhum som. Percebeu que estava encharcado <strong>de</strong><br />

suor, e <strong>de</strong> que era um suor frio, quase gelado.<br />

O homem na re<strong>de</strong> continuava imóvel. Estava<br />

vestido com uma roupa caqui, grossa, e suas pesadas<br />

botinas pendiam para fora da re<strong>de</strong>. O homem<br />

se moveu. Usava uma jaqueta <strong>de</strong> couro, forrada<br />

<strong>de</strong> lã e uma coisa estranha na cabeça. O homem<br />

se acomodou melhor.Viu, então, espantado,<br />

que o homem usava um capacete <strong>de</strong> aviador, um<br />

<strong>de</strong>sses capacetes <strong>de</strong> pilotos da Segunda Guerra,<br />

com óculos gran<strong>de</strong>s e barbicacho pen<strong>de</strong>ndo dos<br />

lados do rosto.<br />

Tentou falar, tentou se mover, mas sentia uma<br />

fraqueza <strong>de</strong>molidora, que o <strong>de</strong>ixava imóvel e in<strong>de</strong>feso.<br />

Dona Severina fazia sua toalha. Um mosquito<br />

começou a circular perto da sua cabeça.<br />

Uma lua enorme, uma lua cheia, uma lua amarela<br />

e ameaçadora apareceu na fresta da janela e esparramou<br />

sua luz na penumbra do quarto.<br />

O homem na re<strong>de</strong> tinha a cara <strong>de</strong> Saint-Exupéry.<br />

Nunca se enganava com um rosto. Sabia que<br />

era uma bobagem, mas nunca se enganava com<br />

um rosto.<br />

Tentou respirar fundo, tentou com toda a calma<br />

articular algum som e mover pelo menos um<br />

<strong>de</strong>do da mão, mas era impossível. Foi quando percebeu<br />

o leve ranger. Um vulto rastejava no assoalho.<br />

Dona Severina fazia sua toalha. O piloto se<br />

mexeu na re<strong>de</strong>. Um vulto rastejava no assoalho,<br />

percebeu pequenos brilhos que se <strong>de</strong>slocavam.<br />

Na faixa <strong>de</strong> luar apareceu a cabeça da cobra. Rastejou<br />

até a perna do piloto, pen<strong>de</strong>ndo da re<strong>de</strong>, e<br />

se enroscou nela, suavemente.<br />

Agora vou me levantar, vou gritar, vou fazer<br />

um escarcéu, mas continuava paralisado, entorpecido<br />

<strong>de</strong> frio e começando a achar que era hora <strong>de</strong><br />

acordar do pesa<strong>de</strong>lo.<br />

Dona Severina olhou para ele. Dona Severina<br />

disse Imaculada chegou, sem parar <strong>de</strong> fazer a<br />

toalha.<br />

O piloto olhou para os lados, talvez sem saber<br />

porquê, <strong>de</strong>spertara <strong>de</strong> repente.


FICÇÕES 126<br />

127<br />

Precisava avisá-lo, precisava avisá-lo! Com <strong>de</strong>sespero,<br />

observava o imenso animal subindo em<br />

direção à cabeça do piloto.<br />

O piloto sente algo. Isso morno sobe na sua<br />

perna, sem fazer pressão nem vacilar, confiante. A<br />

cabeça é esguia e larga, a língua pequena e pontuda,<br />

os olhos circulares e friamente sem expressão.<br />

O piloto duvidou um momento entre ter<br />

medo e aceitar o estranho companheiro.<br />

Cuidado, precisava gritar, a cobra! Um esticão,<br />

o recolher da perna como se um escorpião a<br />

tivesse picado e o pequeno grito. E, então, Imaculada<br />

passou da langui<strong>de</strong>z amorosa para a velocida<strong>de</strong><br />

do caçador saltando sobre a presa.<br />

Subiu no ar escurecido, alta, curva, e durante<br />

segundos que parecem pingos <strong>de</strong> água crescendo<br />

na ponta <strong>de</strong> uma torneira, imobilizou-se, agora<br />

ameaçadora.<br />

Banhado no suor do seu terror, a viu como<br />

um animal <strong>de</strong> outra época, um dragão aquático,<br />

ver<strong>de</strong> escuro e liso, quase roçando o teto <strong>de</strong> palha,<br />

curvado sobre a re<strong>de</strong>, começando a tornar-se<br />

fosfóreo, inchando <strong>de</strong> excitação ou malda<strong>de</strong> ou<br />

apenas susto. E viu também o branco horror do<br />

piloto, sua contração, a <strong>de</strong>ntadura postiça que vomitou<br />

e o espasmo que o acometeu quando viu a<br />

gran<strong>de</strong> cobra imóvel no ar morno, fitando-o com<br />

seus dois olhos perfeitamente circulares. A cobra<br />

<strong>de</strong>sceu sobre ele antes que pu<strong>de</strong>sse fazer um gesto<br />

e o envolveu num abraço apertado. Descobriu<br />

que não podia escapar. Descobriu que se urinava<br />

e as vísceras afrouxavam. Uivou. O piloto uivava.<br />

Imaculada lançou com um som mole novo abraço<br />

e envolveu o tórax do piloto com um segundo<br />

anel, grosso como pneu <strong>de</strong> caminhão. A cabeça <strong>de</strong><br />

Imaculada ergueu-se ameaçadora sobre a cabeça<br />

do piloto. O piloto livrou um braço, o braço esticou<br />

como catapultado e a gran<strong>de</strong> mão peluda a<br />

agarrou um palmo abaixo da cabeça. O piloto era<br />

forte: a mão grudou-se como tenaz à pele escamosa,<br />

o esforço o fazia mudar <strong>de</strong> cor, os olhos<br />

pareciam prestes e explodir. Caíram da re<strong>de</strong> com<br />

um som fofo, embolados. Imaculada aliviou a<br />

pressão e o piloto livrou o outro braço e <strong>de</strong>senroscou-se<br />

numa agitação histérica, chocou contra<br />

a pare<strong>de</strong> e a peça toda estremeceu. Compreen<strong>de</strong>u<br />

que não podia fazer absolutamente nada para salvar<br />

a vida, a não ser fechar os olhos e ficar completamente<br />

imóvel. O corpo vertebrado <strong>de</strong> Imaculada<br />

apertou a perna do piloto até este pensar<br />

que ela seria triturada e viu o animal erguer-se<br />

bem alto e preparar o bote. Estava outra vez fosfo-<br />

rescente ou talvez fosse o luar entrando pelas<br />

frestas da pare<strong>de</strong>. Os insetos <strong>de</strong> longas asas circulavam<br />

alucinados, Imaculada <strong>de</strong>u o bote e enlaçou<br />

a outra perna. O homenzarrão caiu com estrépito,<br />

uivando outra vez, gritando, papai, papai,<br />

como uma criança, tentando mor<strong>de</strong>r a cabeça do<br />

bicho que <strong>de</strong>u mais uma laçada, afrouxou e então<br />

apertou com firmeza fazendo algo estalar <strong>de</strong>ntro<br />

do piloto. Agora afrouxou novamente, <strong>de</strong>senroscou-se<br />

da perna e tornou a dar um longo, silencioso<br />

abraço, lentamente <strong>de</strong>scendo em curva, envolvente<br />

e vivo, pulsando duma energia ávida. O<br />

piloto começou a ser estrangulado. A cobra fez<br />

mais uma pressão e outro estalo seco fez ferida<br />

no seu cérebro. Não queria mais ver isso! Escon<strong>de</strong>u<br />

a cabeça no peito. Imaculada agora envolvia,<br />

outra vez, e com certa pressa nos movimentos, as<br />

pernas do piloto, fazendo-o dar voltas sobre voltas,<br />

já com o rosto completamente roxo e os olhos esbugalhados.<br />

Imaculada foi afrouxando o aperto, a<br />

cor roxa foi <strong>de</strong>saparecendo do rosto do piloto,<br />

soltou um braço, soltou o outro. Abriu um olho e<br />

não acredita, mas parece que viu um brilho <strong>de</strong><br />

satisfação no olhar do monstro fosfóreo que farfalhava<br />

suavemente na habitação, <strong>de</strong>senroscando-se<br />

do corpo do piloto que esten<strong>de</strong>u os braços livres<br />

e agarrou com as duas mãos peludas dois palmos<br />

abaixo da cabeça sorri<strong>de</strong>nte do animal. Imaculada<br />

abriu a boca e todo seu longo e pesado corpo se<br />

contraiu como acumulando forças. As mãos do<br />

piloto a levantavam vagamente ver<strong>de</strong> e vagamente<br />

luminosa no lusco fusco riscado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s insetos<br />

e sua boca foi crescendo. Paralisado na cama a<br />

viu crescer. Ela abriu a bocarra com um ranger <strong>de</strong><br />

molas e foi abrindo ainda mais do que ele acreditava<br />

e a língua pontuda e negra passeou nas orelhas<br />

do piloto e então as rangentes mandíbulas se<br />

fecharam e engoliram a cabeça arrepiada. Parecia<br />

que o monstro <strong>de</strong>vorava a si mesmo. O silêncio<br />

absoluto envolveu o quarto. Escutou o fremir das<br />

asas dos insetos e o cicio das folhas no matagal<br />

distante. O monstro era um corpo circular, grosso<br />

e fosforescente, imobilizado na penumbra do<br />

quarto. O piloto era aquele corpo paralisado pelas<br />

várias voltas que o monstro <strong>de</strong>ra nele, o tórax estalante<br />

on<strong>de</strong> o coração pulsava apertado e os pulmões<br />

não bombeavam ar. Imaculada não havia<br />

utilizado os <strong>de</strong>ntes. Apertava a cabeça do piloto<br />

com os músculos que circundavam sua boca. O<br />

piloto começou a retirar as mãos peludas <strong>de</strong> redor<br />

do corpo <strong>de</strong> Imaculada e <strong>de</strong>bateu-as no ar, lentas<br />

e patéticas e sem uso. E Imaculada inteira estre-


meceu percorrida por um calafrio e houve uma<br />

vertiginosa sucessão <strong>de</strong> contrações e cada contração<br />

correspon<strong>de</strong>u a um estalo nas pernas do piloto<br />

que se contorceu <strong>de</strong> repente num furor apoplético,<br />

tornou a grudar as mãos peludas no corpo<br />

do animal e começou a forcejar como alguém<br />

que tem um capuz apertado enfiado na cabeça.<br />

Banhado no suor <strong>de</strong> seu terror viu, comovido,<br />

horrorizado, afogado pelo soluço trancado na<br />

garganta, o corpo todo dormente e gelado, num<br />

<strong>de</strong>slumbramento viu o piloto arrancar <strong>de</strong> sua cabeça<br />

a cabeça do monstro como um ser nascendo<br />

num parto fantástico. O piloto engoliu ar e uivou<br />

com toda a força dos seus pulmões achatados um<br />

grito cavernoso e flamejante e continuou gritando<br />

ou talvez já não fosse o grito o que continuava<br />

a ressoar em seus ouvidos mas seu próprio grito<br />

<strong>de</strong> terror porque a cabeça do piloto caíra mole<br />

para um lado embora continuasse a emitir o resto<br />

do grito.<br />

Deixou a cabeça bater na guarda <strong>de</strong> ferro da<br />

cama, exausta <strong>de</strong> horror. Descobriu o silêncio da<br />

peça. Há o fremir das asas dos gran<strong>de</strong>s insetos e<br />

há o mato imóvel, prateado pela lua, e ciciando<br />

intrigas <strong>de</strong> coruja para coruja e <strong>de</strong> galho para galho.<br />

Há, ainda, o rufar do coração e o indiferente<br />

mosquito que busca insistente um alvo para sua<br />

ávida agulha. Imaginou o animal (a cobra) tornando-se<br />

mais brilhante, quase azul, e imaginou<br />

que ele sobe novamente no ar parado. Uma gota<br />

<strong>de</strong> suor <strong>de</strong>sliza pela testa, sabe quando ela pinga<br />

no assoalho. O piloto está calado. Tudo respira<br />

ofegante.<br />

Uma vez por ano há um crepúsculo em Porto<br />

Alegre que é o mais belo <strong>de</strong> todos os crepúsculos<br />

já havidos no planeta e concebeu para si a pequena<br />

lenda <strong>de</strong> que o dia que visse esse crepúsculo<br />

sentado num banco da Praça Argentina e tivesse a<br />

coragem <strong>de</strong> escolher esse crepúsculo como o<br />

mais belo crepúsculo jamais havido seria honrado<br />

com uma graça e se tornaria po<strong>de</strong>roso.<br />

Já escolheu esse crepúsculo e talvez tenha havido<br />

um equívoco na forma como recebeu o po<strong>de</strong>r,<br />

pois se é que o possui ainda não <strong>de</strong>scobriu a<br />

maneira <strong>de</strong> utilizá-lo. Sentiu a picada do mosquito<br />

sugando o lóbulo <strong>de</strong> sua orelha direita. Sentiu<br />

uma gana <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> espantá-lo, <strong>de</strong> acertar-<br />

-lhe um tapa, <strong>de</strong> coçar o lugar que latejava como<br />

um nervo.<br />

Porto Alegre completamente vazia numa<br />

quinta-feira chuvosa às cinco horas da tar<strong>de</strong>. Nenhuma<br />

pessoa, nenhum carro, nenhum ruído a<br />

não ser o da chuva e dos meus passos. Todos <strong>de</strong>sapareceram.<br />

Subo a gola do meu impermeável.<br />

Olho ao redor imaginando o crepúsculo que se<br />

esvai no meu coração.<br />

Imaculada está dando mais uma volta no<br />

tórax do piloto e agora o comprime.<br />

Fecha os olhos simultaneamente com o estalo<br />

das costelas. Imaculada abre a gran<strong>de</strong> boca com o<br />

ranger <strong>de</strong> molas e fecha-a suavemente sobre o rosto<br />

<strong>de</strong>stroçado do piloto, sem fazer nenhum movimento<br />

brusco, mas com certo cuidado e atenção.<br />

Deu ainda mais duas voltas no corpo e <strong>de</strong> repente<br />

contraiu-se com imperceptível espasmo, triturando<br />

como numa mó os ossos das pernas do piloto.<br />

Ficou longamente imóvel. A aura fosforescente foi<br />

se tornando mais fraca, o tom azulado foi ce<strong>de</strong>ndo<br />

a uma alvura menor e mais fria, e o silêncio foi<br />

restabelecendo uma or<strong>de</strong>m nova e sossegada no<br />

âmbito ainda trêmulo da habitação.<br />

Havia longuíssimos hiatos <strong>de</strong> silêncio, cortados<br />

pelo discreto estalar <strong>de</strong> ossos quando Imaculada<br />

acomodava seus anéis através <strong>de</strong> leves estremeções<br />

que se propagavam como uma onda.<br />

Dona Severina continuava a tecer sua toalha.<br />

Lembrou da mulher <strong>de</strong> olhos ver<strong>de</strong>s que encontrara<br />

pela manhã no café e então tirou todo e<br />

qualquer pensamento da cabeça enquanto olhava<br />

os estranhos e enigmáticos <strong>de</strong>senhos que a lua<br />

cheia traçava na pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> bambu e enquanto a<br />

dimensão do seu ódio pelo minúsculo vampiro<br />

que dava voltas em torno <strong>de</strong> sua orelha crescia e<br />

enquanto um pequeno lagarto ver<strong>de</strong> estirava a rápida<br />

língua em direção aos insetos, apanhava-os e<br />

os engolia com um ar regalado.<br />

Não tem?


CORRENTES ATLÂNTICAS 128<br />

129<br />

O que vem das Américas. Às<br />

vezes, são boleros que nos<br />

fazem reencontrar com a pai-<br />

xão, como os que nos chega-<br />

ram através do projecto<br />

«Buenavista Social Club», ao<br />

som <strong>de</strong> Compay Segundo,<br />

Rúben González, Ibrahim<br />

Ferrer e Omara Portuondo<br />

ou, mais recentemente, com


vozes como as <strong>de</strong> Pablo Mila-<br />

nés, Tania Libertad e Soledad<br />

Bravo. Outras vezes, po<strong>de</strong> ser<br />

uma motocicleta <strong>de</strong> Che atra-<br />

vessando o Atlântico para<br />

nos fazer acreditar <strong>de</strong> novo<br />

na utopia. Ou até o mito <strong>de</strong><br />

Gar<strong>de</strong>l, fragilizado por uma<br />

biografia que oscila entre a<br />

verda<strong>de</strong> e a ficção.


CORRENTES ATLÂNTICAS 130<br />

E se Gar<strong>de</strong>l não fosse argentino nem tivesse morrido<br />

num aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> aviação, mas <strong>de</strong> um complot mafioso?<br />

Movendo-se entre os limites do histórico e do ficcional,<br />

Horacio Vázquez-Rial reconstrói <strong>de</strong> forma apaixonante<br />

a biografia do cantor no seu livro As Duas<br />

Mortes <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l, recentemente editado em<br />

Portugal. O autor <strong>de</strong>ixa-nos agora mais alguns dados<br />

para melhor se compreen<strong>de</strong>r a ficção.<br />

O verda<strong>de</strong>iro<br />

nascimento <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l<br />

Horacio Vázquez-Rial<br />

131


O falso coronel Carlos Escayola,<br />

que nunca fez carreira<br />

militar, foi um precursor do<br />

pior: tinha algo dos repressores<br />

que no século XX fariam <strong>de</strong>saparecer<br />

os cidadãos incómodos,<br />

algo do que os torturadores<br />

exerceriam com os <strong>de</strong>saparecidos<br />

e também algo do agora célebre<br />

Marc Doutroux. Na sua estância,<br />

entravam opositores políticos<br />

ao governo que jamais voltariam<br />

a sair, aos quais se obrigava<br />

a confessar coisas que jamais<br />

haviam feito. A casa em<br />

que vivia, em Tacuarembó, comunicava<br />

por uma entrada interior<br />

com a que ocupavam a argentina<br />

Juana Sghirla, mulher<br />

forte, atraente e <strong>de</strong> má fama, e o<br />

marido, Juan Bautista Oliva,<br />

cônsul italiano em Tacuarembó.<br />

O domicílio dos Oliva Sghirla<br />

constituiu-se em viveiro <strong>de</strong> meninas<br />

para <strong>de</strong>sfrute do coronel.<br />

Escayola e Juana Sghirla<br />

eram amantes, quiçá a sabendas<br />

<strong>de</strong> Oliva e apesar <strong>de</strong> a mulher ser<br />

bastante mais velha do que ele.<br />

Isso não impediu que a senhora<br />

incentivasse as bodas sucessivas<br />

do coronel com as suas filhas<br />

Clara, com a qual se casou em<br />

1868, Blanca, com a qual se<br />

uniu em 1873, ao enviuvar da<br />

primeira, e María Lelia, que seguiu<br />

o mesmo <strong>de</strong>stino em 1889,<br />

após a morte <strong>de</strong> Blanca.Tudo parece<br />

indicar que María Lelia, a<br />

mais nova, era filha <strong>de</strong> Escayola,<br />

pelo que o santo matrimónio <strong>de</strong><br />

ambos supunha a prática <strong>de</strong> incesto.<br />

Claro que esse é um pecado<br />

menor, à vista dos acontecimentos<br />

que prece<strong>de</strong>ram a sua<br />

boda: em 1883, quando só tinha<br />

catorze anos e <strong>de</strong>sempenhava o<br />

papel <strong>de</strong> cunhada, María Lelia ficou<br />

grávida do coronel, e po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>duzir-se dos relatos fragmentários<br />

que os investigadores recolheram,<br />

muitos anos <strong>de</strong>pois,<br />

que a menina não se prestou voluntariamente<br />

aos apetites <strong>de</strong> seu<br />

pai biológico, mas que foi violada.<br />

Uma vez constatada a gravi<strong>de</strong>z<br />

da vítima, houve consenso<br />

familiar quanto à conveniência<br />

<strong>de</strong> retirá-la <strong>de</strong> circulação até que<br />

parisse: ninguém <strong>de</strong>veria inteirar-se<br />

da existência <strong>de</strong>sse ventre,<br />

nem da do menino que nasceria<br />

<strong>de</strong>le, <strong>de</strong> modo que foi enviada<br />

para a estância Santa Blanca, a<br />

E sobre essa voz<br />

gravada podia-se construir<br />

uma história,<br />

qualquer uma. Por<br />

exemplo, a do bom<br />

filho da boa mãe<br />

solteira, trabalhadora<br />

e dignamente pobre.<br />

Pura hagiografia.<br />

A realida<strong>de</strong> é<br />

sempre mais terrível<br />

que a ficção<br />

mesma que servia <strong>de</strong> cárcere e<br />

<strong>de</strong> matadouro político. Aí, no<br />

maior dos segredos, viu a luz,<br />

em finais <strong>de</strong> 1883, um menino,<br />

oportunamente apagado <strong>de</strong> todos<br />

os registos. Esse menino, filho<br />

do estupro, da violação e do<br />

incesto, foi, com o correr do<br />

tempo, Carlos Gar<strong>de</strong>l.<br />

A suposta mãe, Berta Gardés,<br />

uma imigrante francesa,<br />

amante ocasional do coronel Escayola<br />

e prostituta ocasional, viu-<br />

-se comprometida com o cuidado<br />

da criatura contra a sua vonta<strong>de</strong>.<br />

Nunca houve entre eles confiança,<br />

nem sequer simpatia, e<br />

Gar<strong>de</strong>l afastou-se <strong>de</strong>la tão <strong>de</strong>pressa<br />

quanto pô<strong>de</strong>. A sua passagem à<br />

história como mãe do cantor <strong>de</strong>-<br />

veu-se à morte imprevista <strong>de</strong>ste<br />

em Me<strong>de</strong>llín, sem filhos reconhecidos,<br />

nem casamento, nem<br />

parentes: inventou-se-lhe uma<br />

mãe, e falsificaram-se um testamento<br />

e um registo <strong>de</strong> nascimento,<br />

para que os seus bens, os<br />

que tinha em vida e os que as<br />

suas obras e discos gerariam durante<br />

largos anos, não fossem<br />

parar ao Estado por direito público.<br />

Dona Berta herdou e em<br />

seguida ce<strong>de</strong>u o seu legado a testas-<strong>de</strong>-ferro<br />

e gerentes das máfias<br />

que sempre pulularam em<br />

torno da indústria do espectáculo:<br />

Holywood, Las Vegas, Havana<br />

e as carreiras <strong>de</strong> artistas como<br />

Frank Sinatra são produto das<br />

máfias, sobretudo a italiana e secundariamente<br />

a judia, que encontraram<br />

no teatro, no cinema,<br />

nos discos e nos casinos um negócio<br />

óptimo para os gran<strong>de</strong>s<br />

investimentos, com excelsas<br />

margens <strong>de</strong> lucro, e para a correspon<strong>de</strong>nte<br />

lavagem <strong>de</strong> dinheiro<br />

proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outros tráficos,<br />

ainda mais obscuros.<br />

O mito <strong>de</strong> Gar<strong>de</strong>l não se<br />

construiu durante a sua vida. Até<br />

à sua morte, Gar<strong>de</strong>l fez uma carreira<br />

normal, e não seria arriscado<br />

dizer que a sua passagem ao cinema<br />

e ao disco teve a ver com a<br />

<strong>de</strong>cadência da sua voz, que começava<br />

já a ser dificilmente audível<br />

nas salas <strong>de</strong> teatro, que não<br />

dispunham dos recursos técnicos<br />

que hoje sustentam qualquer<br />

garganta para além das suas possibilida<strong>de</strong>s<br />

reais. Morto, já não<br />

haveria mudanças: a voz seria<br />

para sempre a que estava gravada.<br />

E sobre essa voz gravada<br />

podia-se construir uma história,<br />

qualquer uma. Por exemplo, a<br />

do bom filho da boa mãe solteira,<br />

trabalhadora e dignamente<br />

pobre. Pura hagiografia. A realida<strong>de</strong><br />

é sempre mais terrível que<br />

a ficção.


CORRENTES ATLÂNTICAS 132<br />

Se Cuba foi o berço do bolero, o México e Porto Rico<br />

perfilharam-no e universalizaram-no, fazendo <strong>de</strong>le,<br />

<strong>de</strong>finitivamente, verso e dança, intimida<strong>de</strong> ímpar,<br />

colóquio e sensualida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> o par ia fundindo sentimentos<br />

e ansieda<strong>de</strong>s, alimentando sonhos e utopias<br />

românticas.<br />

O bolero<br />

em tempo <strong>de</strong> amor<br />

Alberto Mosquera Moquillaza<br />

133


A Buenavista Social Club, a<br />

banda cubana do momento,<br />

tem o mérito <strong>de</strong> ter afrontado<br />

a globalizada indolência sentimental<br />

com que o Oci<strong>de</strong>nte<br />

encerrou o século XX. Os seus<br />

sons e boleros clássicos, com<br />

tantos ou mais anos que os<br />

seus cansados mas rejuvenescidos<br />

cantores, voltaram a<br />

electrizar multidões, como se<br />

tivéssemos entrado no túnel<br />

do tempo para nos reencontrarmos<br />

com a paixão e o sabor<br />

<strong>de</strong> que os nossos pais e<br />

avós fizeram gala, quando,<br />

apesar da dureza da vida, o<br />

cantar e o bailar, ao aproximá-<br />

-los, os tornava verda<strong>de</strong>iramente<br />

humanos.<br />

Para o gozo do amor não<br />

há limites no tempo porque, assim<br />

como po<strong>de</strong> haver amores<br />

que durem toda uma vida, também<br />

po<strong>de</strong>m existir os tempestuosamente<br />

efémeros, mas <strong>de</strong><br />

marcas in<strong>de</strong>léveis, e – porque<br />

não? – os amores <strong>de</strong> ocasião. A<br />

ida<strong>de</strong> tampouco é uma barreira<br />

intransponível: em cada um <strong>de</strong><br />

nós, homem ou mulher, po<strong>de</strong><br />

escon<strong>de</strong>r-se um Florentino Ariza<br />

ou uma Fermina Daza, os velhos<br />

amantes <strong>de</strong> O Amor nos Tempos<br />

da Cólera que, com os seus corações<br />

estilhaçados – não precisamente<br />

pelo tempo, mas pelo<br />

amor – alcançaram o paraíso no<br />

final das suas vidas. «Eu creio,<br />

com Florentino Ariza, que, se a<br />

gente continua, o corpo continua.<br />

E eu creio que a gente continua<br />

se há amor. Sempre», diria<br />

García Márquez, autor <strong>de</strong>sse<br />

monumento literário, numa entrevista<br />

em torno do amor, da<br />

velhice e da morte.<br />

DOS GARDENIAS<br />

Dessas encruzilhadas <strong>de</strong><br />

paixões, com os seus altos e<br />

baixos, surgiu e expandiu-se o<br />

bolero para levar ao êxtase os<br />

encontros furtivos ou abertos,<br />

consentidos ou proibidos, ou<br />

para mitigar na nostalgia a dor<br />

da separação ou da traição trapera;<br />

ainda que muitos prefiram a<br />

encantadora celestinaje dos seus<br />

versos e compassos para exclamar,<br />

com a cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Isolina Carrillo: «Dos gar<strong>de</strong>nias<br />

para ti:/ con ellas quiero <strong>de</strong>cir:/<br />

«Te quiero, te adoro, mi vida»./<br />

Ponle toda tu atención,/ que serán<br />

tu corazón y el mío/»; ou,<br />

quiçá, a partir da nossa ansiosa<br />

sauda<strong>de</strong>, alentados pela criativida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> María Graver, <strong>de</strong>sejar: «Si<br />

yo encontrara un alma/ como la<br />

mía,/ ¡cuántas cosas secretas/ le<br />

contaría!:/ un alma que, al mirarme,<br />

sin <strong>de</strong>cir nada,/ me lo dijese<br />

todo/ con la mirada;/ un alma<br />

que embriagase/ con suave<br />

aliento,/ que al besarme sintiera<br />

/ lo que yo siento.»<br />

Não interessava que Carrillo<br />

fosse cubana ou mexicana; o<br />

mais importante era a sua linguagem,<br />

a do amor, cultivado e<br />

enriquecido em cada um dos<br />

boleros que os inspirados criadores<br />

nos foram entregando,


CORRENTES ATLÂNTICAS 134<br />

durante décadas, nos quais milhões<br />

<strong>de</strong> latino-americanos embalaram<br />

as suas ansieda<strong>de</strong>s, sem<br />

saberem, muitas vezes, no caso<br />

dos varões, que podiam estar<br />

afogando as suas emoções por<br />

uma mulher nas sentimentais letras<br />

escritas por outra mulher.<br />

Porque se não era Carrillo ou<br />

Graver, podia ser a mexicana<br />

Consuelo Velásquez que embelezava<br />

com o seu «Bésame/ bésame<br />

mucho/ como si fuera esta<br />

noche/ la última vez/ Bésame/<br />

bésame mucho/ que tengo miedo<br />

a per<strong>de</strong>rte/ per<strong>de</strong>rte otra vez».<br />

Se Cuba foi o berço do<br />

bolero, o México e Porto Rico<br />

perfilharam-no e universalizaram-no,<br />

fazendo <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>finitivamente,<br />

verso e dança, intimida<strong>de</strong><br />

sem par, colóquio e sensualida<strong>de</strong>,<br />

on<strong>de</strong> o par ia fundindo<br />

sentimentos e ansieda<strong>de</strong>s, alimentando<br />

sonhos e utopias românticas<br />

<strong>de</strong> alta voltagem, num<br />

ca<strong>de</strong>nciado movimento corporal<br />

que, para os especialistas,<br />

não <strong>de</strong>via ultrapassar o espaço<br />

<strong>de</strong> uma pequena lousa. E se nasceu<br />

nas ruas e esquinas <strong>de</strong> Santiago<br />

<strong>de</strong> Cuba, da simples, mas<br />

inflamada inspiração <strong>de</strong> guitarristas<br />

enamorados – virtuosos<br />

expoentes da fusão <strong>de</strong> elementos<br />

hispânicos, africanos e cubanos<br />

–, conforme avançou para<br />

Havana, Veracruz, San Juan <strong>de</strong><br />

Puerto Rico ou outras cida<strong>de</strong>s<br />

latino-americanas, foi ganhando<br />

em soli<strong>de</strong>z musical e lirismo,<br />

para expressar com liberda<strong>de</strong> as<br />

infinitas estações e situações do<br />

amor, que costumam ir do êxtase<br />

da alma pelo amor <strong>de</strong>sejado<br />

ou conquistado até à dor <strong>de</strong><br />

uma separação irreversível.<br />

Assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras<br />

décadas do século XX, o bolero<br />

abriu cenários inéditos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />

musical, que eliminou<br />

fronteiras e <strong>de</strong>marcações so-<br />

135<br />

Dessas encruzilha-<br />

das <strong>de</strong> paixões,<br />

com os seus altos<br />

e baixos,<br />

surgiu o bolero<br />

para levar ao êxtase os<br />

encontros furtivos ou<br />

abertos, consentidos<br />

ou proibidos<br />

ciais. Esplêndidas gerações <strong>de</strong><br />

autores e intérpretes lendários,<br />

cantando a vida a partir da vida,<br />

confundiram-se num só rosto<br />

<strong>de</strong> entregas musicais, nas quais<br />

o bolero alcançou novas dimensões,<br />

ao confundir-se e enriquecer-se<br />

com o son, o chachachá e o<br />

mambo, <strong>de</strong> raiz cubana, e a ranchera<br />

<strong>de</strong> origem mexicana; e cujos<br />

cultores, ao fazerem da noite, da<br />

lua e das estrelas um reino <strong>de</strong><br />

fantasia – alheio às convenções<br />

e às hipocrisias sociais –, alimentaram<br />

a imaginação popular,<br />

os seus mitos e rituais amorosos.<br />

Ao maestro Miguel Matamoros,<br />

também <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong><br />

Cuba, coube injectar cadência<br />

tropical no bolero cubano. A sua<br />

antológica «Lágrimas negras»<br />

«Aunque tú me has <strong>de</strong>jado en<br />

el abandono/ aunque ya han<br />

muerto todas mis ilusiones/ en<br />

vez <strong>de</strong> mal<strong>de</strong>cirte con justo encono/<br />

en mis sueños te colmo<br />

<strong>de</strong> bendiciones» continua sendo<br />

um convite à i<strong>de</strong>ntificação com<br />

a sensualida<strong>de</strong> caribenha, o calor<br />

das ruas havanesas e as fragrâncias<br />

e o sabor do rum cubano.<br />

Interpretam-no o próprio<br />

«Trío Matamoros», «Los Compadres»,<br />

Rolando Laserie, o<br />

«Buenavista Social Club». Muitos<br />

ainda continuam enamorados<br />

dos versos <strong>de</strong> Ernesto Lecuona<br />

que, com «Damisela Encantadora»<br />

– «Por tus ojazos negros<br />

llenos <strong>de</strong> amor/ por tu boquita<br />

roja que es una flor/ por tu<br />

cuerpo <strong>de</strong> palmera lindo y gentil/<br />

se muere mi corazón» –,<br />

«Siboney», «Noche azul»,<br />

«Siempre en mi corazón» (que<br />

hoje faz parte do repertório do<br />

tenor Plácido Domingo) e a sua<br />

«Lecuona’s Cuban Boys» ganhou<br />

os corações <strong>de</strong> quem, na<br />

América Latina, na América do<br />

Norte ou na Europa, teve oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> escutá-los para viver<br />

e morrer <strong>de</strong> amor.<br />

Uns e outros, contudo, não<br />

regateiam as suas preferências<br />

pelo maestro dos maestros, o<br />

gran<strong>de</strong> Benny Moré, que era capaz<br />

<strong>de</strong> compor e entoar uma<br />

«guajira» como um som montanhês,<br />

um «mambo» como<br />

um bolero, dando ré<strong>de</strong>a solta à<br />

sua inspiração vagabunda e<br />

montaraz. Ninguém como ele<br />

para cantar os amores perdidos:<br />

«Para qué per<strong>de</strong>r el tiempo/ para<br />

qué volvernos locos/ si tú sabes<br />

que nosotros/ no nos compren<strong>de</strong>mos<br />

ya/ tengo fe en que tú<br />

comprendas/ como yo lo he<br />

comprendido/ que nuestro amor<br />

se ha perdido/ como una estrella<br />

fugaz/».<br />

Arráncame la vida<br />

A grafonola e o disco, a rádio,<br />

o cinema e a própria televisão


contribuíram para a difusão do<br />

género que, a partir das noites<br />

<strong>de</strong> ronda e serenata, se colaria<br />

nos lares, nos selectos salões <strong>de</strong><br />

baile, assim como nos mais famosos<br />

bordéis das principais cida<strong>de</strong>s<br />

latino-americanas. Num<br />

<strong>de</strong>les, no México, Agustín Lara,<br />

lânguido <strong>de</strong> amor e ao pé <strong>de</strong><br />

um piano, começou a ganhar<br />

eternida<strong>de</strong> na letra e no espírito<br />

<strong>de</strong> cada uma das suas composições,<br />

gran<strong>de</strong> parte das quais reflectia<br />

o frenesim da sua azarada<br />

vida sentimental, galardoada<br />

com a conquista <strong>de</strong> uma mulher<br />

como María Félix, bela entre<br />

as belas; mas também com<br />

uma chuçada no rosto, com que<br />

uma das suas amantes <strong>de</strong>ixou a<br />

marca dos seus en<strong>de</strong>moninhados<br />

ciúmes.<br />

Com Agustín Lara, o amor<br />

chegou a ser efectivamente pão<br />

da vida e sortilégio total. Nada<br />

escapou ao génio e sentimento<br />

impulsivo: a entrega total, as<br />

ânsias, os ciúmes, a nostalgia<br />

arrebatadora, o culto da mulher<br />

(nas suas palavras: «la más<br />

completa expresión <strong>de</strong> la belleza,/<br />

vida en don<strong>de</strong> principia la<br />

vida,/ luz en don<strong>de</strong> el sol encien<strong>de</strong><br />

los luceros,/ ríos <strong>de</strong> todas<br />

las lágrimas/ selva y rosal/<br />

amor y perdón)», a dor e a angústia<br />

provocados pela paixão<br />

(como diria Jorge Amado, «o<br />

amor não é uma espinha que se<br />

arranca, um tumor que se corta,<br />

é uma dor rebel<strong>de</strong>, pertinaz,<br />

que mata por <strong>de</strong>ntro»), levado<br />

ao clímax em «Arráncame la<br />

vida»: «Arráncame la vida con<br />

el último beso <strong>de</strong> amor/ arráncala,<br />

toma mi corazón/ arráncame<br />

la vida/ y, si acaso te hiere<br />

un dolor,/ ha <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> no<br />

verme/ porque al fin tus ojos<br />

me los llevo yo».<br />

Sintonizando com a azáfama<br />

amorosa da vida, o mesmo<br />

Tal como na Argentina,<br />

os enamorados do<br />

Chile, Panamá,<br />

Venezuela, Peru,<br />

Colômbia e Equador<br />

encontram no bolero o<br />

elixir musical para<br />

continuarem a sonhar<br />

com o ser amado<br />

Amado perguntava-se: quem<br />

po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as coisas do coração,<br />

quem po<strong>de</strong> explicá-las?<br />

Longe daqueles ilustrados literatos<br />

e poetas que faziam serpentinas<br />

com os seus versos, os<br />

mexicanos procuraram a resposta<br />

em trovadores da dimensão<br />

<strong>de</strong> Lara, enquanto os porto-riquenhos<br />

vibravam com<br />

Pedro Flores, mas também com<br />

o mítico Rafael Hernán<strong>de</strong>z que<br />

fez «Lamento Borincano»,<br />

«Canción <strong>de</strong>l Alma», «Diez<br />

Años», «Amigo», «No me<br />

quieras tanto» ou «¿Qué te importa?»,<br />

entre outras tantas<br />

criações <strong>de</strong> sonho para os verda<strong>de</strong>iros<br />

amantes.<br />

Na Argentina, o bolero arrancou<br />

espaços importantes ao<br />

tango.Talvez a precoce morte <strong>de</strong><br />

Carlos Gar<strong>de</strong>l em 1935, as letras<br />

prostibulárias do tango, a difusão<br />

radial e a própria presença<br />

em Buenos Aires <strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong>s<br />

do bolero como Agustín Lara,<br />

Pedro Vargas ou José Mojica<br />

tivessem permitido que nesse<br />

país aparecessem, entre outros<br />

gran<strong>de</strong>s compositores, um Don<br />

Fabián, para entregar-nos «Dos<br />

almas», ou um Mario Clavel e<br />

«Somos»: «Después que nos besamos/<br />

con el alma y con la vida,/<br />

te fuiste con la noche/ <strong>de</strong><br />

aquella <strong>de</strong>spedida», como <strong>de</strong>monstração<br />

do enraizamento<br />

que o género romântico havia<br />

alcançado na nossa América. Tal<br />

como na Argentina, os enamorados<br />

do Chile, Panamá, Venezuela,<br />

Peru, Colômbia, Equador,<br />

etc., encontraram no bolero o<br />

elixir musical para continuarem<br />

a sonhar com o ser amado, ou o<br />

antídoto para a frustração que<br />

os amores inatingíveis costumam<br />

gerar.<br />

Todavia, a força sedutora do<br />

bolero não residia apenas na letra<br />

e no espírito sentimental do<br />

bardo. Seria injusto subestimar<br />

a soli<strong>de</strong>z interpretativa ou musical<br />

<strong>de</strong> quem encantava com a<br />

sua voz ou as suas guitarras,<br />

quando não com os seus harmoniosos<br />

sons orquestrais. Como<br />

escapar do influxo <strong>de</strong> vozes<br />

como as <strong>de</strong> Pedro Vargas («Noche<br />

<strong>de</strong> Ronda», «Vereda Tropical»,<br />

«Mujer»), <strong>de</strong> Toña la Negra<br />

(«Cenizas», «Arráncame la<br />

vida», «Cada noche un amor»,<br />

«Veracruz»), <strong>de</strong> Bienvenido<br />

Granda («Señora», «Angustia»,<br />

«Nostalgia», «Por dos caminos»),<br />

<strong>de</strong> Tito Rodríguez<br />

(«Inolvidable», «Llanto <strong>de</strong> luna»,<br />

«Tu pañuelo», «Cuando ya<br />

no me quieras»), <strong>de</strong> Lucho Gatica<br />

(«Tú me acostumbraste»,<br />

«Enca<strong>de</strong>nados», «Si me comprendieras»)<br />

e <strong>de</strong> Javier Solís<br />

(«Sigamos pecando», «Llorarás»,<br />

«Perdóname, mi vida»);<br />

<strong>de</strong> trios como «Los Panchos»


CORRENTES ATLÂNTICAS 136<br />

(«Amorcito corazón», «Rayito<br />

<strong>de</strong> luna», «Flor <strong>de</strong> azalea»,<br />

«Perdida») ou Los Tres Diamantes<br />

(«Usted», «Sigamos pecando»,<br />

«Embrujo, Júrame»); sem<br />

esquecer, certamente, o íman <strong>de</strong><br />

orquestras como a eterna «Sonora<br />

Matancera» com os seus<br />

boleristas <strong>de</strong> antologia, <strong>de</strong> que<br />

Leo Marini, Celio González ou<br />

Vicentico Valdés são algo assim<br />

como a ponta <strong>de</strong> um gigantesco<br />

icebergue formado <strong>de</strong> boleros e<br />

cantores imortais?<br />

A lista <strong>de</strong> intérpretes é, certamente,<br />

maior, como a relação <strong>de</strong><br />

boleros criados, sobretudo entre<br />

1935 e 1965, consi<strong>de</strong>rada a<br />

«época <strong>de</strong> ouro», que vai culminar<br />

gloriosamente com Armando<br />

Manzanero, o último dos gran<strong>de</strong>s<br />

compositores e intérpretes que,<br />

com «Adoro», «Esta tar<strong>de</strong> vi llover»,<br />

«Mía», «Aquel señor»,<br />

«Contigo aprendí» e milhares <strong>de</strong><br />

outras criações, <strong>de</strong>monstrou que<br />

o amor é fonte inesgotável <strong>de</strong><br />

poesia e música, que na sua interpretação<br />

por vozes como as <strong>de</strong><br />

Roberto Le<strong>de</strong>sma, ou do próprio<br />

Manzanero, vão continuar retroalimentando<br />

gozos e paixões porque,<br />

parafraseando o ilustre mexicano,<br />

sempre haverá enamorados<br />

que, cegos <strong>de</strong> amor, tentarão,<br />

on<strong>de</strong> quer que estejam, contemplar<br />

a aurora, o brilho da lua ou,<br />

simplesmente, apagar a luz para<br />

<strong>de</strong>ixar voar a imaginação.<br />

Cada um impôs ao bolero o<br />

seu próprio estilo, aproveitando<br />

ao máximo, no caso dos cantores,<br />

as qualida<strong>de</strong>s da sua voz, a<br />

sua força interpretativa, a sua<br />

maneira particular <strong>de</strong> tocar os<br />

sentimentos dos seus seguidores.<br />

Por exemplo, Lucho Gatica<br />

sussurrava as suas canções, levando-as<br />

do coração aos lábios,<br />

apoiado na doçura das letras <strong>de</strong><br />

Roberto Cantoral («La barca»,<br />

«El reloj», «Regálame esta no-<br />

137<br />

As suas vozes contin-<br />

uam a animar os <strong>de</strong>sve-<br />

los amorosos daqueles<br />

que encontram nas<br />

suas canções um<br />

remanso sentimental<br />

che», «La noche <strong>de</strong>l adiós»,<br />

etc.), que tanto encantaram as<br />

belda<strong>de</strong>s dos anos 50; as mesmas<br />

que se <strong>de</strong>svaneciam com<br />

Nat King Cole e a sua maneira<br />

tão especial <strong>de</strong> cantar «Ansiedad»,<br />

«Cachito» e «Yo vendo<br />

unos ojos negros»; enquanto Javier<br />

Solís, seguindo as pegadas<br />

<strong>de</strong> Jorge Negrete e Pedro Infante,<br />

fez do bolero-ranchera um<br />

convite para morrer <strong>de</strong> amor,<br />

mas <strong>de</strong> pé, cantando e recordando,<br />

no recanto <strong>de</strong> uma tasca,<br />

exigindo mais e mais à rockola,<br />

para que não <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> incentivar<br />

a recordação do amado ou<br />

malquerido, com «Vendaval sin<br />

rumbo», «Escándalo», «Ay, cariño»,<br />

«Que se mueran <strong>de</strong> envidia»,<br />

entre tantas outras interpretações<br />

que em seu tempo invadiam<br />

até ao último beco on<strong>de</strong><br />

podia acolher-se uma alma enamorada.<br />

NO JOGO DA VIDA<br />

Muitos <strong>de</strong>sses intérpretes já<br />

não existem. Não obstante, as<br />

suas vozes continuam a animar<br />

os <strong>de</strong>svelos amorosos daqueles<br />

que encontram nas suas canções<br />

um remanso sentimental. Os<br />

velhos discos <strong>de</strong> 33 e 45 rotações<br />

por minuto, filhos queridos<br />

dos discos <strong>de</strong> carvão, que se tocavam<br />

nos memoráveis pick-up e<br />

suas intermináveis agulhas, ou<br />

os mo<strong>de</strong>rnos discos compactos,<br />

continuam a manter acesas as<br />

lembranças dos amores do passado<br />

ou reforçam os do presente.<br />

Existe também, nessa magia,<br />

a lenda que acompanhou a vida<br />

<strong>de</strong> compositores e cantores, que<br />

originou a mitificação dos mesmos<br />

quando os seus seguidores<br />

encontraram neles modos <strong>de</strong> vida,<br />

costumes, vivências, histórias,<br />

fantasias, com as quais estavam<br />

plenamente i<strong>de</strong>ntificados,<br />

ao fazer parte do seu próprio<br />

quotidiano ou das suas mais caras<br />

ilusões.<br />

Por isso é que Daniel Santos,<br />

o «Inquieto Anacobero» <strong>de</strong><br />

Porto Rico, foi e continua a ser<br />

um paradigma existencial. Com<br />

o seu estilo inconfundível, passou<br />

à história como o melhor<br />

dos intérpretes das canções <strong>de</strong><br />

Rafael Hernán<strong>de</strong>z e Pedro Flores,<br />

ou como o gran<strong>de</strong> ídolo <strong>de</strong><br />

Cuba nos tempos da Sonora<br />

Matancera, on<strong>de</strong> cantou e bailou<br />

durante 15 anos consecutivos.<br />

Não obstante, foi a sua própria<br />

vida, para além dos cenários,<br />

que ajudou a convertê-lo<br />

num mito. A pobreza das suas<br />

origens, a lenda da sua aproximação<br />

às marquesinhas do êxito,<br />

o seu <strong>de</strong>ambular pelo álcool,<br />

as drogas e as prisões, o seu patriotismo<br />

purificado, a sua <strong>de</strong>sfaçatez<br />

para enfrentar «o jogo<br />

da vida» ou, finalmente, a sua<br />

turbulenta vida sentimental


converteram-no num herói para<br />

a in<strong>de</strong>lével imaginação popular.<br />

E o mesmo po<strong>de</strong>ríamos<br />

dizer <strong>de</strong> Julio Jaramillo, que<br />

<strong>de</strong>ixou cinco esposas e vinte e<br />

seis filhos, ou do inolvidável<br />

Héctor Lavoe, cuja folha <strong>de</strong> vida<br />

é tão mítica como as suas electrizantes<br />

interpretações <strong>de</strong> «Taxi»,<br />

«Ausencia», «Plazos traicioneros»<br />

ou «Un amor <strong>de</strong> la<br />

calle», nas quais o son, confundindo-se<br />

com o bolero, continua<br />

a dar corda aos corações<br />

enamorados, ainda que o sonero,<br />

tal como Daniel ou Julio, já não<br />

esteja connosco.<br />

EPÍLOGO<br />

Ao contrário do que tradicionalmente<br />

se pensa, a música<br />

popular é um po<strong>de</strong>roso factor<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Estamos a pensar<br />

naquelas criações que, por<br />

surgirem <strong>de</strong> baixo, da rua ou da<br />

esquina, expressando sem ro<strong>de</strong>ios<br />

a azáfama e o sentir quotidiano<br />

<strong>de</strong> homens e mulheres:<br />

a sua ancestral luta pela sobrevivência,<br />

as suas alegrias, tristezas<br />

e amores, conquistam rapidamente<br />

os sentimentos e a<br />

consciência das multidões. O<br />

bolero é uma daquelas criações<br />

que, ao reflectir a idiossincrasia<br />

amorosa do latino-americano,<br />

foi tecendo uma trama invisível<br />

que converteu os nossos pais e<br />

avós, cubanos, mexicanos, peruanos<br />

ou porto-riquenhos, em<br />

verda<strong>de</strong>iros militantes da internacional<br />

do amor, sem mais<br />

mandatos que o da sua paixão<br />

amorosa, levada sempre à flor<br />

<strong>de</strong> pele, prestes a transbordar<br />

ao mais leve impacto dos dardos<br />

melosos <strong>de</strong> um sorriso coquete,<br />

<strong>de</strong> um olhar inquietante<br />

ou, simplesmente, <strong>de</strong> um caminhar<br />

insinuante.<br />

Contra isso, todavia, têm<br />

conspirado, por um lado, a<br />

mercantilização <strong>de</strong>ssas criações,<br />

que nesse processo costumam<br />

per<strong>de</strong>r as suas essências íntimas<br />

e poéticas, que as entrelaçam<br />

com a própria vida; e, por outro<br />

lado, a invasão <strong>de</strong> ritmos forasteiros<br />

que, através <strong>de</strong> grupos<br />

e cantores <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> duvidosa<br />

e apoiados numa tecnologia<br />

ruidosa, vão acantonando e<br />

diluindo a nossa <strong>cultura</strong> musical<br />

e sentimental. Com o bolero<br />

passou-se isso. Felizmente, iniciativas<br />

como as do «Buenavista<br />

Social Club» (que juntou Compay<br />

Segundo, Rúben González,<br />

Ibrahin Ferrer e Omara Portuondo),<br />

ou a incursão nesse<br />

género <strong>de</strong> vozes como as <strong>de</strong> Pablo<br />

Milanés, Tania Libertad e<br />

Soledad Bravo ten<strong>de</strong>m a revitalizar<br />

o bolero e a restituir-nos o<br />

sentimento, a paixão, os estilos<br />

e hábitos <strong>de</strong> todo o bom escravo<br />

e amo do amor porque, como<br />

costumava cantar Roberto<br />

Le<strong>de</strong>sma, lá por mil novecentos<br />

sessenta e tantos, «el día que<br />

<strong>de</strong>je <strong>de</strong> salir el Sol,/ y la Luna<br />

<strong>de</strong>je <strong>de</strong> alumbrar,/ y las estrellas<br />

<strong>de</strong>jen <strong>de</strong> brillar,» nesse dia, só<br />

nesse dia, <strong>de</strong>ixaremos <strong>de</strong> amar.


CORRENTES ATLÂNTICAS 138<br />

«As fronteiras são fictícias e arbitrárias», reconhece o<br />

actor mexicano Gael García Bernal que encarna a personagem<br />

<strong>de</strong> Che em Diários <strong>de</strong> Che Guevara.<br />

Eis a lição <strong>de</strong> continentalida<strong>de</strong> da tão pobre e rica<br />

América do Sul renovada neste último filme <strong>de</strong> Walter<br />

Salles.<br />

Os mortos<br />

comandam os vivos<br />

ou também <strong>de</strong> motocicleta<br />

se atravessa o mar<br />

Anabela Moutinho<br />

139


Walter Salles é meu conhecido<br />

<strong>de</strong> há uns anos a esta parte.<br />

Gosto <strong>de</strong> o cumprimentar, sinto-me<br />

bem por trocar olhares,<br />

emoções e <strong>de</strong>scobertas em sotaque<br />

brasileiro. Não chega a ser<br />

meu amigo, porque esse é<br />

quem te toca sempre e não só a<br />

espaços. Mas, seja como for, enternece-<br />

me a vonta<strong>de</strong> louca, a<br />

<strong>de</strong>le, <strong>de</strong> ser o seu país em mensagem<br />

universal. E, quando o<br />

consegue, apetece- me ser convidada<br />

para entrar naquela sua<br />

casa. Porque aí ela seria minha<br />

também. Um pouquinho, mas o<br />

suficiente.<br />

Da obra <strong>de</strong> Walter Salles, o<br />

filho e por isso Júnior, se afastaram<br />

os caminhos diplomáticos<br />

<strong>de</strong> seu pai mas não o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

errância ou, pelo menos, o fantasma<br />

<strong>de</strong>la que a sua própria vida<br />

lhe forneceu durante anos <strong>de</strong><br />

infância e adolescência. Os errantes<br />

são seres em <strong>de</strong>manda, e<br />

nas histórias <strong>de</strong> Salles o Santo<br />

Graal são eles próprios. Ora, em<br />

todos os seus filmes <strong>de</strong> ficção –<br />

melhor dito, em todas as suas<br />

longas-metragens porque não vi<br />

nem as curtas-metragens, nem<br />

os filmes para televisão, nem os<br />

documentários, nem os filmes<br />

publicitários (isto é, o grosso da<br />

sua filmografia...) –, o cálice<br />

que se busca é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. E<br />

jogos entre ela e a do realizador,<br />

e a do povo, e a do continente,<br />

e a do mundo.<br />

Quando Waltinho chega ao<br />

cinema, carrega já um olhar: o<br />

do fotógrafo que ele foi – e não<br />

por acaso a sua primeira longa-<br />

-metragem, A Gran<strong>de</strong> Arte (1991),<br />

adaptada do romance homónimo<br />

<strong>de</strong> Rubem Fonseca, é protagonizada<br />

por um fotógrafo, tornado<br />

no guião em norte-americano<br />

pela vonta<strong>de</strong>, muito inicial<br />

como se vê, <strong>de</strong> internacionalizar<br />

os filmes como estratégia<br />

comercial e fruto <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong><br />

económica – mas também o do<br />

cinema próximo das pessoas que<br />

assume como sua herança e influência,<br />

ou seja, o neo-realismo<br />

italiano, a Nouvelle Vague francesa<br />

e o Cinema Novo Brasileiro.<br />

E <strong>de</strong>sta mistura – Cartier-Bresson,<br />

Kertesz e Kubelka guiando<br />

Salles, como o próprio confessa,<br />

nesses gestos <strong>de</strong> fixar instantâneas<br />

pessoas a preto e branco, Sica<br />

ou Truffaut ou Glauber a inspirar<br />

o mesmo em gente do<br />

campo ou da cida<strong>de</strong> em imagens<br />

em movimento – dizem particularmente<br />

bem o início e o final<br />

<strong>de</strong> A Gran<strong>de</strong> Arte: Peter Mandrake<br />

(interpretado por Peter Coyote)<br />

vai disparando a sua máquina a<br />

esses meninos loucos que <strong>de</strong>safiam<br />

a vida no «trem-surf»,<br />

imobilizando assim em imagens<br />

a preto e branco essas aventuras<br />

a cores <strong>de</strong> quem ama o risco da<br />

morte para dar algum sentido a<br />

existências sem nenhum, para<br />

terminar reconciliando-se com o<br />

amor após uma história cruel <strong>de</strong><br />

vingança indomável, fotografando<br />

beijos carinhosos da gente<br />

simples que dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar.<br />

Os filmes <strong>de</strong> Salles oscilam<br />

assim entre uma preocupação<br />

lúcida e um optimismo cândido<br />

quanto ao <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>ssa gente<br />

que é a <strong>de</strong>le. Aliás, esse não é o<br />

único traço comum na sua obra.<br />

Em todas as suas longas-<br />

-metragens «os mortos comandam<br />

os vivos», frase que roubo a<br />

uma personagem <strong>de</strong> Abril Despedaçado;<br />

em A Gran<strong>de</strong> Arte, que é a <strong>de</strong><br />

ferir com cruelda<strong>de</strong> quem nos<br />

feriu, manejando as navalhas<br />

com a sabedoria <strong>de</strong> samurais dos<br />

bas-fonds, a morte surge como<br />

consequência natural <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>svario<br />

ético; em Terra Estrangeira<br />

(1996), é a mãe basca falecida<br />

que conduz o seu filho <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

São Paulo a uma San Sebastián<br />

Da obra<br />

<strong>de</strong> Walter Salles,<br />

o filho e por isso<br />

Júnior,<br />

se afastaram<br />

os caminhos<br />

diplomáticos<br />

<strong>de</strong> seu pai,<br />

mas não o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> errância ou,<br />

pelo menos,<br />

o fantasma <strong>de</strong>la


CORRENTES ATLÂNTICAS 140<br />

Ora, <strong>de</strong> qualquer<br />

viagem,<br />

o que recordamos<br />

são momentos,<br />

e são esses<br />

os que me<br />

comovem<br />

em Walter Salles<br />

141<br />

que ele não alcançará nunca<br />

pois pelo meio fica este Portugal<br />

que «não é sítio para se encontrar<br />

ninguém, é uma terra<br />

<strong>de</strong> gente que partiu para o<br />

mar, o lugar i<strong>de</strong>al para se per<strong>de</strong>r<br />

alguém ou para se per<strong>de</strong>r a<br />

si próprio», como certeiramente<br />

diz a personagem belissimamente<br />

interpretada pelo<br />

nosso João Lagarto; em Central<br />

do Brasil (1998), é a figura do<br />

pai ausente, nem se sabe se vivo<br />

ou morto, que se persegue até<br />

ao Brasil mais profundo e esquecido,<br />

e nessa busca um menino<br />

encontra uma mãe e uma<br />

mulher encontra-se a si mesma;<br />

em O Primeiro Dia (1998),<br />

são os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> armas clan<strong>de</strong>stinas<br />

que são filmados como<br />

livros em bibliotecas públicas,<br />

e <strong>de</strong>ssas letras escritas com<br />

pólvora se faz uma história <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong> impossível para<br />

quem se comprometeu com<br />

um assassínio; em Abril Despedaçado<br />

(2001), <strong>de</strong> novo uma incursão<br />

em obra literária prévia,<br />

<strong>de</strong>sta vez <strong>de</strong> Ismail Kadaré, é a<br />

tradição <strong>de</strong> raízes sicilianas da<br />

honra da família «cobrada pelo<br />

sangue» presente no Nor<strong>de</strong>ste<br />

brasileiro do início do século<br />

passado, que aliás ainda se encontra,<br />

<strong>de</strong>svirtuada embora, nas<br />

favelas do final <strong>de</strong>le (não foi<br />

portanto por acaso que Walter<br />

Salles foi o produtor <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Deus <strong>de</strong> Fernando Meirelles,<br />

adaptação do romance homónimo<br />

<strong>de</strong> Paulo Lins sobre a favela<br />

com o mesmo nome, o filme-<br />

-choque que <strong>de</strong>u a volta ao<br />

mundo em 2002 recordando o<br />

mesmo efeito que Pixote <strong>de</strong><br />

Hector Babenco tinha provocado<br />

nos idos dos anos 80). Os<br />

mortos comandando os vivos.<br />

E, como se começa a perceber,<br />

em todos eles o estilo é<br />

o do road-movie ou literal por-<br />

que são viagens que se contam,<br />

ou metafórico porque até nos<br />

mais negros films noirs uma viagem<br />

interior acontece. Ora, <strong>de</strong><br />

qualquer viagem, o que recordamos<br />

são momentos, e são<br />

esses os que me comovem em<br />

Walter Salles: o Tonho <strong>de</strong> Abril<br />

Despedaçado a quebrar a tradição<br />

familiar quando se permite<br />

uma viagem <strong>de</strong> baloiço filmada<br />

como se <strong>de</strong> voo <strong>de</strong> pássaro se<br />

tratasse e nos ares planasse a<br />

alegria e não mais a dor; o João<br />

<strong>de</strong> O Primeiro Dia disparando a<br />

sua 9 mm, antes responsável<br />

pela morte do seu melhor amigo<br />

que ele mesmo executou<br />

ce<strong>de</strong>ndo a chantagem policial<br />

que nesse acordo lhe garantia a<br />

liberda<strong>de</strong>, agora para o ar, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> salvar Maria do suicídio<br />

e assim se juntando ao fogo-<strong>de</strong>-artifício<br />

que à meia-noite<br />

explo<strong>de</strong> com o Corcovado<br />

ao fundo e gritando «nunca<br />

mais a morte», projecto <strong>de</strong><br />

uma nova felicida<strong>de</strong> para todo<br />

um povo num milénio que se<br />

inicia; a Dora «escrevedora <strong>de</strong><br />

cartas» <strong>de</strong> Central do Brasil no final<br />

do filme escrevendo uma<br />

em seu nome e já não, a troco<br />

<strong>de</strong> 1 real («2, se for pra botar<br />

no correio»), a gentinha analfabeta<br />

que confiava nela as suas<br />

ilusões e esperanças que por<br />

sua vez ela <strong>de</strong>itava no lixo, Dora<br />

finalmente a confessar que<br />

tem sauda<strong>de</strong>s do seu pai, que<br />

tem sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tudo, e por<br />

isso enten<strong>de</strong>mos que o seu cinismo<br />

<strong>de</strong>u lugar a um coração<br />

<strong>de</strong> novo quente, <strong>de</strong> novo coração;<br />

a Alex do seu melhor filme,<br />

Terra Estrangeira, a soluçar o<br />

Vapor Barato enquanto Paco se<br />

esvai em sangue no seu colo, e<br />

finalmente a voz <strong>de</strong> Gal Costa<br />

a continuar a canção porque<br />

Alex tem que ir sossegando<br />

inutilmente eu te levo a casa,


meu amor, eu te levo a San Sebastián,<br />

meu amor, nós vamos<br />

para casa, meu amor, meu<br />

amor eu te levo a casa; e o<br />

Mandrake <strong>de</strong> A Gran<strong>de</strong> Arte a<br />

<strong>de</strong>scobrir no final <strong>de</strong> um negro<br />

passeio pelo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si<br />

que só tem medo do escuro<br />

quem nunca o afrontou. Mortos<br />

comandando vivos em viagem.<br />

Mortos e vivos <strong>de</strong> um<br />

país. Com a minha língua.<br />

Com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria. E por<br />

isso, só por isso, com todos<br />

nós. Porque, como sabiamente<br />

(e po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra maneira<br />

nela?) disse Agustina Bessa-<br />

-Luís ao receber o recente Prémio<br />

Camões, «o riso e as lágrimas<br />

não têm sotaque».<br />

Parece portanto evi<strong>de</strong>nte<br />

que, <strong>de</strong> outra ou da mesma maneira,<br />

o com curiosida<strong>de</strong> esperado<br />

Os Diários da Motocicleta –<br />

que em Portugal se chamam Os<br />

Diários <strong>de</strong> Che Guevara – se integrará<br />

nesta mesma linha, nesta<br />

mesma coerência, nesta mesma<br />

urgência. Uma reconstituição<br />

da viagem <strong>de</strong> motocicleta que<br />

Che fez em 1952, aos 24 anos,<br />

com o seu amigo Alberto Granado,<br />

a partir da sua Buenos Aires<br />

natal ao encontro do espírito<br />

transfronteiriço que foi a sua<br />

i<strong>de</strong>ologia, a sua paixão e a sua<br />

morte. «As fronteiras são fictícias<br />

e arbitrárias», reconhece<br />

ainda hoje quem o encarnou na<br />

tela, o mexicano Gael García<br />

Bernal. Dessa lição <strong>de</strong> continentalida<strong>de</strong><br />

da tão pobre e rica<br />

América do Sul espero eu que<br />

Salles, mais uma vez, me ofereça<br />

as ocasiões que me fazem<br />

sentir bem aconchegada em sua<br />

casa. Desta vez não só em momentos,<br />

mas para sempre. Para<br />

que eu lhe possa enfim chamar<br />

Walter, meu caro amigo.<br />

Também <strong>de</strong> motocicleta se<br />

atravessa o mar?


A COMPANHIA DOS LIVROS 142<br />

143<br />

O Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong>, em colaboração<br />

com as Edições Colibri, editou quatro títulos da Colecção<br />

Travessias. Travessia do Mar Oceano feita em múltiplas<br />

direcções e acepções, norteada pelo prazer da viagem e<br />

da companhia dos livros.<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

NEGREIROS PORTUGUESES NAS ROTAS DAS ÍNDIAS DE CASTELA (1541-1556)<br />

1998, 191 pp.<br />

Feitores, agentes lidam com o dinheiro dos outros, traficam o que não é seu.Viajam por esse<br />

Atlântico fora, buscando também o seu próprio <strong>de</strong>stino.Vão e voltam. Ou ficam por lá com<br />

as suas famílias e alguns criados. Dispensados das provas <strong>de</strong> pureza <strong>de</strong> sangue, amalham-<br />

-se no cargo do trato. Judaizantes, aos molhos, tecem re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tráfico em terra, em correlação<br />

com as outras que, do mar, lhes trazem as mãos e os corpos para o trabalho e a fortuna.<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO E CONQUISTA DA HISPANOAMÉRICA:<br />

VIAGENS E EXPEDIÇÕES (1492-1557)<br />

1999, 274 pp.<br />

Os Estados ibéricos, acordando em Tor<strong>de</strong>silhas a partilha do mundo, <strong>de</strong>limitaram áreas <strong>de</strong> influência<br />

e <strong>de</strong> jurisdição, mas não impediram que os homens circulassem por todo o lado, navegando,<br />

combatendo ou traficando, alheios a fronteiras ou a vínculos nacionais. Italianos, flamengos,<br />

franceses, gregos, alemães ou portugueses circulariam, apesar <strong>de</strong> proibições conjunturais,<br />

num vasto território em processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e configuração cartográfica e política.<br />

Ivone Correia Alves<br />

GAMAS E CONDES DA VIDIGUEIRA: PERCURSOS E GENEALOGIAS<br />

2001, 347 pp.<br />

Tal como nos brasões <strong>de</strong> armas, a memória dos Gamas e do primeiro con<strong>de</strong> da Vidigueira<br />

plasma-se nas Casas que lhe vão suce<strong>de</strong>ndo. Não há como retomar o fio original <strong>de</strong>stes<br />

meandros <strong>de</strong> arquivos e famílias. Os seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes são uns e outros, mas talvez os Gamas<br />

<strong>de</strong> fora do condado nos transmitam com maior fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aquele obscuro e <strong>de</strong>terminado<br />

Vasco da Gama que aceitou o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> vencer «O mostrengo que está no fim do mar» e no<br />

princípio <strong>de</strong> outros novos mares.<br />

Virgínia Trinda<strong>de</strong> Valadares<br />

ELITES MINEIRAS SETECENTISTAS: CONJUGAÇÃO DE DOIS MUNDOS<br />

2004, 541 pp.<br />

A insubmissão, a rebeldia, o espírito anticolonialista, antiesclavagista, libertário, característicos<br />

do mineiro, e tão <strong>de</strong>cantados pela historiografia <strong>de</strong> Minas Gerais, não me parece ser<br />

a tónica da elite formada em Coimbra. Vale dizer, entretanto, que este segmento da socieda<strong>de</strong><br />

não era homogéneo e que havia, na elite mineira instruída na própria capitania, elementos<br />

que não representavam a mentalida<strong>de</strong> coimbrã e que foram refractários aos ditames<br />

metropolitanos e a eles se opuseram. Na verda<strong>de</strong>, a elite mineira que se bacharelava em<br />

Coimbra assumiu, em Minas, o papel do agente régio, reinol <strong>de</strong> nascimento, que substituiu o<br />

turbulento conquistador, caudilho e potentado.


NOVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />

Gémeos<br />

Mário Cláudio<br />

«Um romance perfeito.»<br />

António Lobo Antunes<br />

Triunfo do Amor Português<br />

Mário Cláudio<br />

Doze gran<strong>de</strong>s casos <strong>de</strong> amor da História <strong>de</strong> Portugal.<br />

Prefácio <strong>de</strong> Agustina Bessa-Luís e ilustrações <strong>de</strong> Rogério Ribeiro.<br />

Transatlântico<br />

Paulo Nogueira<br />

Um romance vertiginoso, divertido e tocante.<br />

DAMOS VALOR AO QUE É NOSSO<br />

Eu hei-<strong>de</strong> amar uma pedra<br />

António Lobo Antunes<br />

O mais recente e emocionante romance <strong>de</strong> António Lobo Antunes<br />

nos 25 anos <strong>de</strong> vida literária do Autor.<br />

Fotobiografia António Lobo Antunes<br />

Tereza Coelho<br />

Vida e obra <strong>de</strong> António Lobo Antunes<br />

num extraordinário álbum ilustrado.<br />

O Anjo da Tempesta<strong>de</strong><br />

Nuno Júdice<br />

O novo e surpreen<strong>de</strong>nte romance <strong>de</strong> Nuno Júdice.<br />

Pena Suspensa<br />

Fernando Pinto do Amaral<br />

O brilho e a maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dos nossos gran<strong>de</strong>s poetas.<br />

Cruz das Almas<br />

Patrícia Reis<br />

Uma estreia literária <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />

Ilustrações <strong>de</strong> Rodrigo Saias.<br />

Nua e Crua<br />

Marta Gautier<br />

Um romance sobre a revolta, o encontro e o renascer<br />

<strong>de</strong> uma jovem mulher.


PUBLICAÇÃO SEMESTRAL<br />

EDIÇÃO<br />

Instituto <strong>de</strong> Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

(Associação <strong>cultura</strong>l sem fins lucrativos)<br />

DIRECTOR<br />

João Ventura<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

António Borges Coelho (Portugal)<br />

Caio Boschi (Brasil)<br />

Gerardo Caetano (Uruguai)<br />

João <strong>de</strong> Melo (Portugal)<br />

Luis Sepúlveda (Chile)<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

(Portugal)<br />

Mempo Giardinelli (Argentina)<br />

Osvaldo Henrique Urbano (Peru)<br />

Plínio Apuleyo Mendoza (Colômbia)<br />

Teódulo Menén<strong>de</strong>z López<br />

(Venezuela)<br />

PROJECTO EDITORIAL<br />

João Ventura<br />

DESIGN<br />

Atelier Henrique Cayatte<br />

com Susana Cruz e Sónia Oliveira<br />

FOTOGRAFIA<br />

Carlos Cáceres Monteiro<br />

João Mariano<br />

João Ventura<br />

Josué Barrios<br />

CAPA E CONTRACAPA<br />

João Mariano<br />

ILUSTRAÇÃO<br />

Gabriela Cánovas<br />

Fotocopie este cupão e envie-o para:<br />

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

R. Júdice Biker, n.º 1<br />

8500-538 Portimão – Portugal<br />

Fax (351) 282 470 749<br />

E-mail: iciaptm@mail.telepac.pt<br />

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COLABORARAM<br />

NESTA EDIÇÃO<br />

Alberto Mosquera Moquillaza<br />

Anabela Moutinho<br />

António Borges Coelho<br />

António Ramos Rosa<br />

Arón Mazas<br />

Beatriz Padilla<br />

Carlos Cáceres Monteiro<br />

Daniel Divinsky<br />

Horacio Vásquez-Rial<br />

Janet Núñez<br />

João <strong>de</strong> Melo<br />

João Ventura<br />

Jorge Faurie<br />

José Newton Coelho Meneses<br />

Lídia Jorge<br />

Lilia Moritz Schwarcz<br />

Luis Sepúlveda<br />

Maria A<strong>de</strong>lina Amorim<br />

Maria Angeles Sallé<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Osvaldo Henrique Urbano<br />

Regina Rodríguez<br />

Roberto Ampuero<br />

Sonia Tello Rozas<br />

Tabajara Ruas<br />

Volodia Teitelboim<br />

<strong>Revista</strong> atlântica <strong>de</strong> <strong>cultura</strong> <strong>ibero</strong>-americana<br />

EXCERTOS AUTORIZADOS<br />

Pablo Neruda<br />

COLABORAÇÃO EDITORIAL<br />

Nossa História (Brasil)<br />

TRADUÇÃO<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

REVISÃO & COPY DESK<br />

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CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS<br />

Biblioteca Nacional<br />

Archivo Histórico<br />

<strong>de</strong> la Biblioteca Piloto<br />

<strong>de</strong> Barranquilla<br />

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Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

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Coor<strong>de</strong>nadora Adjunta<br />

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Vogais<br />

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