A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gênero ...
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A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 11<br />
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica<br />
<strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong>: <strong>gênero</strong>,<br />
cosmovisão e movimento social<br />
Martinus de Boer*<br />
Resumo<br />
Este ensaio analisa e desenvolve a tripla definição de Apocalíptica feita por Paul<br />
Hanson: a) como elementos formais <strong>da</strong> <strong>as</strong>sim chama<strong>da</strong> literatura <strong>apocalíptica</strong>; b)<br />
como perspectiva escatológica e cosmológica e c) como movimento social que reage<br />
a crise e alienação por meio de símbolos e escatologia <strong>apocalíptica</strong>. Estes três elementos<br />
p<strong>as</strong>sam a serem designados pelos termos Apocalipse, Escatologia Apocalíptica e<br />
Apocalipsismo, respectivamente.<br />
Palavr<strong>as</strong>-chave: Apocalíptica, Gênero literário, Cosmovisão, <strong>apocalíptica</strong>, Contexto<br />
social do cristianismo primitivo.<br />
Abstract<br />
This essay analyzes and develops the triple definition of Apocalyptic made by Paul<br />
Hanson: a) <strong>as</strong> the forma elements of so-called apocalyptic literature; b) <strong>as</strong> an<br />
eschatological and cosmological perspective; and c) <strong>as</strong> a social movement which<br />
reacts to crisis and alienation by means of symbols and apocalyptic eschatology.<br />
These three elements come to be referred to by the terms Apocalypse, Apocalyptic<br />
Eschatology and Apocalyptic, respectively.<br />
Keywords: Apocalypticism, Literary Forms, Cosmovision, Social Context of Early<br />
Christianity.<br />
* Professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Livre de Amster<strong>da</strong>n.<br />
Tradução: Paulo Augusto de Souza Nogueira.
12 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
I. Introdução<br />
Paul D. Hanson 1 fez a seguinte distinção tripla ao referir-se à<br />
<strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica antiga:<br />
Apocalipse. Este termo refere-se ao ‘<strong>gênero</strong> literário’. O livro cristão do Apocalipse de João<br />
é freqüentemente considerado como paradigma para o <strong>gênero</strong>. Ele começa com <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>:<br />
‘Apocalipse de Jesus Cristo’. A estrutura e <strong>as</strong> característic<strong>as</strong> típic<strong>as</strong> de um apocalipse são<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s nos versos introdutórios deste livro (1,1-2):<br />
‘(1) uma revelação é <strong>da</strong><strong>da</strong> por Deus, (2) por meio de um mediador (aqui Jesus Cristo, m<strong>as</strong><br />
poderia ser um anjo), (3) a um visionário, a respeito de (4) eventos futuros’.<br />
Outros apocalipses podem ser encontrados em Daniel 7-12; 1 Enoque 14-15; 4Esdr<strong>as</strong> 9,26-<br />
10,59, cap.11-12, 13; e Baruque 53-74. ‘A maioria destes apocalipses parece originar-se de<br />
contextos de perseguição, dentro do qual eles pretendem revelar ao fiel uma visão de<br />
mu<strong>da</strong>nça e de glorificação (v. Daniel 12,1)’.<br />
Uma definição mais ampla e melhor documenta<strong>da</strong> foi apresenta<strong>da</strong> por J.J.<br />
Collins 2 : Um apocalipse é<br />
um <strong>gênero</strong> de literatura de revelação com uma estrutura narrativa, na qual uma revelação<br />
é media<strong>da</strong> por um instrumento humano, que revela uma reali<strong>da</strong>de transcendente, a qual é,<br />
ao mesmo tempo, temporal, enquanto visa salvação escatológica, e espacial, ao envolver um<br />
outro mundo, um mundo <strong>sobre</strong>natural.<br />
Collins complementou esta definição com a observação de Adela Yarbro<br />
Collins de que estes tipos de escritos são tipicamente “voltados para interpretar<br />
circunstânci<strong>as</strong> terren<strong>as</strong> presentes à luz do mundo <strong>sobre</strong>natural e do futuro, e<br />
por influenciar, ao mesmo tempo, a compreensão e comportamento <strong>da</strong> audiência<br />
por meio <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de divina”. 3<br />
Escatologia Apocalíptica. Escatologia <strong>apocalíptica</strong> é uma “perspectiva<br />
religiosa, uma forma de ver os planos divinos em relação com reali<strong>da</strong>des<br />
1. “Apocalypse, Genre” and “Apocalypticism” in: Interpreter’s Dictionary of the Bible<br />
(Supplementary Volume). Philadelphia, p. 27-34.<br />
2. J. J. Collins (ed.), Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14, 1979, p. 9.<br />
3. Introduction: Early Christian Apocalypticism, in: Early Christian Apocalypticism: Genre<br />
and Social Setting, Adela Y. Collins (ed.). Semeia 36 (1986), p. 7. Ver também J. J. Collins<br />
(ed.), The Encyclopedia of Apocalypticism. New York, 1998, p. xiii.
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 13<br />
mun<strong>da</strong>n<strong>as</strong> (terren<strong>as</strong>)”. Esta perspectiva, ou cosmovisão, pode ser abraça<strong>da</strong><br />
por diferentes grupos sociais, em diferentes níveis, em tempos diferentes.<br />
Nesta perspectiva, a ação salvífica de Deus é concebi<strong>da</strong> como uma realização<br />
para fora <strong>da</strong> ordem presente, em direção a uma nova e transforma<strong>da</strong><br />
ordem <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de (cf. Is. 65,17: “Eis que eu crio novos céus e nova terra;<br />
e não haverá lembrança <strong>da</strong>s cous<strong>as</strong> p<strong>as</strong>sa<strong>da</strong>s, já não haverá memória del<strong>as</strong>.”).<br />
A nova ordem ou reali<strong>da</strong>de não é uma reabilitação <strong>da</strong> ordem presente<br />
(como na escatologia dos profet<strong>as</strong> do Antigo Testamento), m<strong>as</strong> o seu<br />
fim e destruição. A reali<strong>da</strong>de é, portanto, dividi<strong>da</strong> em dois eons, esta era<br />
(má) e a era vindoura (de justiça, retidão e paz, cf. 4 Esdr<strong>as</strong> 7,50: “o<br />
Altíssimo não fez uma era, m<strong>as</strong> du<strong>as</strong>”). As du<strong>as</strong> er<strong>as</strong> não são apen<strong>as</strong> époc<strong>as</strong><br />
temporais, m<strong>as</strong> du<strong>as</strong> ordens ou reali<strong>da</strong>des cósmic<strong>as</strong> distint<strong>as</strong>. A<br />
escatologia <strong>apocalíptica</strong> não está preocupa<strong>da</strong> apen<strong>as</strong> com a expectativa do<br />
futuro (a era vindoura), m<strong>as</strong> também com a interpretação do p<strong>as</strong>sado e <strong>da</strong><br />
situação presente (a era presente é a ordem ou reali<strong>da</strong>de do mal). A<br />
escatologia <strong>apocalíptica</strong> não é limita<strong>da</strong> aos apocalipses, m<strong>as</strong> acha também<br />
expressão em outros <strong>gênero</strong>s de literatura.<br />
Apocalipsismo. Este termo designa “o universo simbólico dentro do<br />
qual um movimento apocalíptico codifica sua identi<strong>da</strong>de e interpretação <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de. Tal universo simbólico cristaliza-se em torno <strong>da</strong> perspectiva de<br />
escatologia <strong>apocalíptica</strong> [ver acima] que o movimento adota”. Além disso,<br />
“o universo típico apocalíptico é desenvolvido como um protesto <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />
<strong>apocalíptica</strong> contra a socie<strong>da</strong>de dominante”. O contexto social do<br />
apocalipsismo é então “a experiência grupal de alienação” frente às estrutur<strong>as</strong><br />
dominantes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de (polític<strong>as</strong>, econômic<strong>as</strong>, culturais) e de um<br />
decorrente senso de “impotência”. A resposta a esta situação é, então, a<br />
criação de “um novo universo simbólico” que deve substituir a velha ordem,<br />
a qual é a responsável pela alienação. Em um movimento<br />
apocalíptico o grupo refugia-se na escatologia <strong>apocalíptica</strong> para construir<br />
este universo simbólico alternativo. “A escatologia <strong>apocalíptica</strong> permite a<br />
uma comuni<strong>da</strong>de manter um senso de identi<strong>da</strong>de e uma visão de sua<br />
vindicação última em face <strong>da</strong>s estrutur<strong>as</strong> sociais e dos eventos históricos<br />
que negam, ao mesmo tempo, a identi<strong>da</strong>de e a plausibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> visão”.<br />
Acredita-se que o universo simbólico é mais “real” que o vivenciado no<br />
dia a dia. Assim, de acordo com Hanson, os apocalipsist<strong>as</strong> judeus antigos<br />
criaram um novo “universo simbólico” em resposta à sua experiência de
14 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
“alienação”, “opressão” ou “isolamento <strong>da</strong> comunicação” que sofrem n<strong>as</strong><br />
mãos <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des polític<strong>as</strong> e religios<strong>as</strong> dominantes. 4<br />
Segundo Hanson, os movimentos apocalípticos podem ser de dois tipos:<br />
(1) um grupo marginalizado ou oprimido dentro de uma socie<strong>da</strong>de, ou (2) uma<br />
socie<strong>da</strong>de ou nação inteira sob o jugo de um poder estrangeiro. A matriz do<br />
apocalipsismo é a alienação (exclusão e opressão), e a resposta a esta situação<br />
é a adoção <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong> escatologia <strong>apocalíptica</strong>. Tipicamente falando,<br />
a experiência grupal de alienação e a função política que resulta do universo<br />
simbólico conduzem a uma clara distinção entre os eleitos e os maus” (cf. 1º<br />
Enoque 5,6-7)”.<br />
Podemos usar a tríplice distinção de Hanson entre <strong>gênero</strong>, cosmovisão e<br />
movimento social para compreender melhor a <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica<br />
<strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> e, conseqüentemente, <strong>sobre</strong> os documentos do Novo<br />
Testamento, os quais representam a documentação primária para <strong>as</strong> <strong>origens</strong><br />
<strong>cristãs</strong>. A palavra “<strong>apocalíptica</strong>” será usa<strong>da</strong> neste ensaio para referir-se aos três.<br />
No entanto, neste ensaio eu me concentrarei na primeira e na terceira<br />
categori<strong>as</strong> de Hanson, <strong>apocalíptica</strong> como <strong>gênero</strong> literário e como movimento<br />
social, prestando particular atenção na relevância dest<strong>as</strong> du<strong>as</strong> categori<strong>as</strong> para<br />
o Novo Testamento, e <strong>as</strong>sim para <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong>. Guar<strong>da</strong>rei a segun<strong>da</strong><br />
categoria, <strong>apocalíptica</strong> como cosmovisão, para o segundo ensaio. Deve-se<br />
esclarecer que a <strong>apocalíptica</strong>, como forma de escatologia, teve <strong>influência</strong><br />
considerável <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> e <strong>sobre</strong> o Novo Testamento. Isto merece<br />
um tratamento especial. Quanto às outr<strong>as</strong> du<strong>as</strong> categori<strong>as</strong> – <strong>gênero</strong> literário e<br />
movimento social – não está claro se são relevantes para o Novo Testamento<br />
e para <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong>, como se supôs em outros tempos.<br />
II. Apocalipse: o <strong>gênero</strong> literário no Novo Testamento<br />
Um exemplo clássico de um apocalipse é o livro neotestamentário do<br />
Apocalipse de João, o qual deu nome ao <strong>gênero</strong>. Por razões compreensíveis,<br />
a <strong>apocalíptica</strong> foi <strong>as</strong>socia<strong>da</strong> com livros de <strong>gênero</strong> semelhante ao Apocalipse<br />
de João, compartilhando, até certo grau, <strong>da</strong>s característic<strong>as</strong> gerais deste. Os<br />
apocalipses ju<strong>da</strong>icos de Daniel, 1 Enoque, 4 Esdr<strong>as</strong> e 2 Baruque são os exem-<br />
4. Hanson, Paul D. The Dawn of Apocalyptic. The Historical and Sociological Roots of Jewish<br />
Apocalyptic Eschatology. Philadelphia, 1979 (2nd ed.), p. 432,440; cf. também “Apocalypse,<br />
Genre” and “Apocalypsism” ..., p. 30.
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 15<br />
plos mais citados (embora, diferenciando-se destes, o Apocalipse de João não<br />
seja pseudônimo). A questão, então, que se levanta é se o termo “apocalíptico”<br />
deveria ser usado exclusivamente em relação às obr<strong>as</strong> deste <strong>gênero</strong> e com os<br />
tem<strong>as</strong> atestados neles. Por exemplo, para John J. Collins, escatologia<br />
<strong>apocalíptica</strong> é, em primeira instância, a escatologia encontra<strong>da</strong> em um<br />
apocalipse, 5 e sempre que uma escatologia similar for encontra<strong>da</strong> em qualquer<br />
outro lugar, ela pode ser chama<strong>da</strong> “escatologia <strong>apocalíptica</strong>” apen<strong>as</strong> “em um<br />
sentido amplo”.<br />
(b) Pode-se duvi<strong>da</strong>r que algum livro antigo ju<strong>da</strong>ico como um todo possa<br />
ser chamado de apocalipse. O livro de Daniel, do Antigo Testamento, é<br />
freqüentemente citado neste c<strong>as</strong>o. M<strong>as</strong> de fato, apen<strong>as</strong> os capítulos 7-12 contêm<br />
revelações que cabem n<strong>as</strong> definições de Hanson e de Collins. Da mesma forma,<br />
apen<strong>as</strong> partes de 1 Enoque, 4 Esdr<strong>as</strong> e 2 Baruque cabem dentro <strong>da</strong> definição.<br />
John J. Collins também observou 6 que um apocalipse é apen<strong>as</strong> “uma<br />
estrutura geral”, que incorpora outros <strong>gênero</strong>s literários (carta, testamento,<br />
parábola, hino, oração etc.). Segundo ele, um apocalipse “não é constituído<br />
por um ou mais tem<strong>as</strong> distintivos, m<strong>as</strong> por uma combinação de elementos, os<br />
quais são encontrados em outros lugares”. Hanson, 7 por sua vez, observa que<br />
um apocalipse “não é necessariamente o <strong>gênero</strong> exclusivo, dominante na<br />
maioria dos escritos apocalípticos, m<strong>as</strong> é encontrado junto a muitos outros,<br />
incluindo o testamento, os oráculos de julgamento e de salvação, e a parábola”.<br />
Est<strong>as</strong> considerações tornam qualquer tentativa de <strong>da</strong>r uma clara definição<br />
do <strong>gênero</strong>, em que um apocalipse (como obra autônoma) possa ser suficientemente<br />
distinto de outros <strong>gênero</strong>s literários (outros livros), qu<strong>as</strong>e impossível.<br />
(c) Além do mais, há dúvi<strong>da</strong>s se há obr<strong>as</strong> ju<strong>da</strong>ic<strong>as</strong> que podem ser considera<strong>da</strong>s<br />
‘apocalipses’ antes do segundo século d.C.. Collins escreve que “o<br />
uso do título grego apokalypsis (revelação) não é comprovado no período anterior<br />
ao cristianismo. A primeira obra apresenta<strong>da</strong> como um apokalypsis é<br />
o Apocalipse de João, e mesmo lá não é claro se a palavra denota um tipo especial<br />
de literatura ou se é usado mais geralmente no sentido de revelação”.<br />
5. The Apocalyptic imagination. An introduction to the Jewish Matrix of Christianity. New<br />
York, 1984, p. 9.<br />
6. The Apocalyptic Imagination ..., p.8-9.<br />
7. “Apocalypse, Genre” and “Apocalypticism” in: Interpreter’s Dictionary of the Bible<br />
(Supplementary Volume). Philadelphia, p. 27-34.
16 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
As obr<strong>as</strong> chama<strong>da</strong>s de <strong>apocalíptica</strong>s antes do final do primeiro século ou do<br />
começo do segundo, conforme Collins, “ain<strong>da</strong> não tinham adotado uma autoconsciência<br />
geral”, como é evidente em obr<strong>as</strong> tardi<strong>as</strong> e, portanto, “têm afini<strong>da</strong>des<br />
com mais de um <strong>gênero</strong>”. 8 Ele chega então a afirmar que não podemos<br />
de fato falar de apocalipse como um <strong>gênero</strong> específico até o começo do segundo<br />
século d.C.<br />
(d) A definição de Collins, apresenta<strong>da</strong> acima, parece ser uma definição<br />
do que pode ser chamado uma ‘visão’, ou melhor, um relato escrito, na forma<br />
de narrativa, de uma visão (do futuro, de reali<strong>da</strong>des celestiais, de Deus, de<br />
reali<strong>da</strong>des presentes ou p<strong>as</strong>sa<strong>da</strong>s).Tal enti<strong>da</strong>de literária não é um Gattung literário<br />
por si mesmo (Gattung = um livro autônomo), m<strong>as</strong> um elemento menor<br />
(uma forma, como na história <strong>da</strong>s form<strong>as</strong>) de um todo literário mais amplo,<br />
semelhante a uma parábola, um hino ou uma narrativa de milagre. Assim,<br />
“apocalipses” seriam o que se pode chamar de um “sub-<strong>gênero</strong>” de literatura,<br />
pequen<strong>as</strong> “form<strong>as</strong>” literári<strong>as</strong> conti<strong>da</strong>s em obr<strong>as</strong> literári<strong>as</strong> maiores (como Daniel<br />
ou 2 Baruque), <strong>as</strong> quais, enquanto complexos literários (obr<strong>as</strong>), não são<br />
apocalipses em si mesmos, no sentido estrito. 9 Esta pressuposição também é<br />
confirma<strong>da</strong> por J. VanderKam, o qual observa que “os únicos apocalipses de<br />
que não se pode duvi<strong>da</strong>r [note o plural] na Bíblia Hebraica são <strong>as</strong> diferentes<br />
visões revela<strong>da</strong>s a Daniel em capítulos 7-12”. 10<br />
Livros como Daniel e 4 Esdr<strong>as</strong> contêm não apen<strong>as</strong> apocalipses, m<strong>as</strong><br />
também outr<strong>as</strong> form<strong>as</strong> literári<strong>as</strong>, como reconhecem Collins e Hanson.<br />
(e) O Apocalipse de João, mencionado acima, é o único livro do Novo<br />
Testamento considerado um apocalipse. Este é, de fato, o paradigma do <strong>gênero</strong>.<br />
M<strong>as</strong>, no entanto, como já dissemos acima, a abertura do livro (“Apocalipse<br />
de Jesus Cristo”) poderia não descrever o <strong>gênero</strong> do livro, m<strong>as</strong> seus conteúdos,<br />
ou simplesmente aquele que é mostrado pelo conteúdo, ou seja, Jesus Cristo.<br />
Além do mais, à parte do prefácio de abertura (1,1-3), que pode ter sido até<br />
um acréscimo posterior, o restante do livro tem a estrutura formal de uma<br />
carta antiga, como mostra uma comparação com <strong>as</strong> cart<strong>as</strong> paulin<strong>as</strong>:<br />
8. The Apocalyptic Imagination, p. 3.<br />
9. Ver meus comentários em The Defeat of Death. Apocalyptic Eschatology in 1 Corinthians<br />
15 and Romans 5. Sheffield, 1988, p. 197, n.4.<br />
10. Messianism and Apocalypticism, in: J. J. Collins, (ed.) The Encyclopedia of Apocalypticism,<br />
p.196 (itálico meu). Ver também p. 200.
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 17<br />
João às sete igrej<strong>as</strong> que estão na Ásia: graça e paz <strong>da</strong> parte <strong>da</strong>quele que é, que era, e que<br />
virá ... (Ap 1 ,4)<br />
Paulo, apóstolo .... às igrej<strong>as</strong> <strong>da</strong> Galácia: Graça a vós e paz <strong>da</strong> parte de Deus nosso pai e<br />
do Senhor Jesus Cristo (Gl 1,1-3)<br />
A graça do Senhor Jesus seja com todos os santos. Amém. (Ap 22,21)<br />
A graça do Senhor Jesus seja contigo. Amém (1Tes 5,28)<br />
Em concordância com esta estrutura formal está o fato de que o apocalipse<br />
de João não é pseudônimo (em contr<strong>as</strong>te com a literatura <strong>apocalíptica</strong><br />
ju<strong>da</strong>ica, como Daniel, 4 Esdr<strong>as</strong> e 2 Baruque). Esta carta, exagera<strong>da</strong>mente<br />
longa, tinha por intenção ser li<strong>da</strong> em voz alta n<strong>as</strong> igrej<strong>as</strong> <strong>da</strong> Ásia Menor.<br />
Esta longa carta contém uma série contínua de “apocalipses”, ou seja,<br />
uma descrição narrativa de visões do futuro, de reali<strong>da</strong>des celestiais ou espirituais,<br />
de Deus e do Cristo, que se estende de 1,9 a 22,5. Enquanto to<strong>da</strong>s<br />
est<strong>as</strong> visões são liga<strong>da</strong>s um<strong>as</strong> às outr<strong>as</strong> e, evidentemente, tomam lugar no<br />
mesmo dia (1,9-10), el<strong>as</strong> to<strong>da</strong>s podem ser considera<strong>da</strong>s como um (longo)<br />
“apocalipse”, mais que uma série de apocalipses distintos. Seja como for, o tamanho<br />
enorme desta série contínua de apocalipses, ou deste único e longo<br />
apocalipse, contribuiu para a suposição de que o livro como um todo é um<br />
apocalipse, suposição esta apoia<strong>da</strong> pela linha inicial <strong>da</strong> obra e por usos posteriores<br />
do termo “apocalipse” (no começo do segundo século d.C.). M<strong>as</strong> o<br />
livro do Apocalipse de João realmente é distinto nesta questão: a quanti<strong>da</strong>de<br />
de material apocalíptico é de fato sem paralelo n<strong>as</strong> fontes ju<strong>da</strong>ic<strong>as</strong> (ou <strong>cristãs</strong>)<br />
contemporâne<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim como na riqueza do simbolismo do livro e de su<strong>as</strong><br />
imagens. 11 Em todo c<strong>as</strong>o foi composto na forma de uma carta (além do mais,<br />
os três primeiros capítulos contém mensagens separa<strong>da</strong>s em forma de epístol<strong>as</strong><br />
para ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s sete igrej<strong>as</strong>).<br />
(f) Há apocalipses em outr<strong>as</strong> partes do Novo Testamento (definidos como<br />
uma forma ou um sub-<strong>gênero</strong>)? 1 Tes 4,13-18 o é provavelmente, uma vez<br />
que contém: (1) uma revelação supostamente <strong>da</strong><strong>da</strong> por Deus, (2) por meio de<br />
um mediador (o Espírito, o Cristo ressuscitado?), (3) para um visionário (Paulo)<br />
a respeito de (4) eventos futuros (a ressurreição dos cristãos mortos).<br />
Marcos 13 é comumente mencionado como o Apocalipse Sinótico, m<strong>as</strong> em<br />
sua forma atual ele foi caracterizado por Adela Yarbro Collins como um<br />
11. ver Bauckham, Richard. The Theology of the Book of Revelation. Cambridge, 1994, p. 9-12.
18 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
“diálogo escolástico com conteúdo profético ou apocalíptico”. 12 Exceto no c<strong>as</strong>o<br />
do Apocalipse de João, o debate <strong>sobre</strong> o <strong>gênero</strong> apocalipse é de pouca importância<br />
para a compreensão dos escritos do Novo Testamento e <strong>da</strong>s form<strong>as</strong> que<br />
eles contém.<br />
III. Apocalipsismo: movimentos apocalípticos no cristianismo primitivo<br />
(a) O Apocalipsismo é definido por Hanson, em termos sociológicos,<br />
como um “movimento” de pesso<strong>as</strong> oprimi<strong>da</strong>s, aliena<strong>da</strong>s e excluí<strong>da</strong>s, que<br />
adotam a perspectiva <strong>da</strong> escatologia <strong>apocalíptica</strong> como uma estratégia de esperança<br />
e de <strong>sobre</strong>vivência. Além do mais, na perspectiva de Hanson, esta<br />
estratégia mostra um pessimismo extremo acerca <strong>da</strong> habili<strong>da</strong>de dos oprimidos<br />
e alienados promoverem mu<strong>da</strong>nç<strong>as</strong>. A escatologia <strong>apocalíptica</strong> representa<br />
“uma abdicação <strong>da</strong> preocupação para com este mundo em favor do mundo<br />
que está por vir”. É uma forma de escapismo <strong>da</strong> “reali<strong>da</strong>de” para a fant<strong>as</strong>ia<br />
“visionária”. 13 Desta forma, ele perpetua a velha avaliação <strong>da</strong> escatologia<br />
<strong>apocalíptica</strong> (cf. G. von Rad e G.F. Moore) como um contr<strong>as</strong>te em relação<br />
à escatologia profética (a escatologia dos profet<strong>as</strong> do Antigo Testamento),<br />
a qual era considera<strong>da</strong> “otimista” acerca <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nça social<br />
e <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de do engajamento político. Se esta avaliação <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong><br />
ju<strong>da</strong>ica no p<strong>as</strong>sado e <strong>da</strong>s vári<strong>as</strong> form<strong>as</strong> de <strong>apocalíptica</strong> cristã hoje em dia é<br />
correta, é uma questão que não posso discutir agora. M<strong>as</strong> a compreensão do<br />
apocalipsismo de Hanson, em todo c<strong>as</strong>o, dificilmente pode ser aplica<strong>da</strong> ao<br />
estudo <strong>da</strong>s <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong>.<br />
(b) Consideremos o apóstolo Paulo. As cart<strong>as</strong> paulin<strong>as</strong> deixam claro que<br />
sua perspectiva escatológica em relação a Deus e na relação de Deus com o<br />
mundo não emerge de um pessimismo em relação à capaci<strong>da</strong>de humana de<br />
mu<strong>da</strong>nça moral, nem de uma experiência de alienação política ou mesmo de<br />
qualquer outra forma de alienação, isto é, de seu povo ou de sua educação<br />
religiosa ju<strong>da</strong>ica. De acordo com o testemunho de Paulo – e não vejo razão<br />
para duvi<strong>da</strong>r dele, neste c<strong>as</strong>o, o contrário é ver<strong>da</strong>deiro: alienação social, política<br />
ou religiosa (freqüentemente acompanha<strong>da</strong>s de perseguição) são conseqüênci<strong>as</strong><br />
e não caus<strong>as</strong> de seu encontro com Cristo.<br />
12. Collins, A.Y. Mark 13: An Apocalyptic Discourse, in: In the beginning of the Gospel:<br />
Probings of Mark in Context. Minneapolis, 1992, p. 73-91. Ver Marcos 13, 3-4.<br />
13. The Dawn of Apocalyptic, p. 26, p. 440.
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 19<br />
Se algum outro pensa que pode confiar na carne, eu ain<strong>da</strong> mais: Circunci<strong>da</strong>do<br />
ao oitavo dia, <strong>da</strong> linhagem de Israel, <strong>da</strong> tribo de Benjamim, hebreu de<br />
hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor <strong>da</strong> igreja; quanto à<br />
justiça que há na lei, irrepreensível. M<strong>as</strong> o que para mim era lucro, isto considerei<br />
per<strong>da</strong> por causa <strong>da</strong> sublimi<strong>da</strong>de do conhecimento de Cristo Jesus meu<br />
Senhor: por amor do qual, perdi to<strong>da</strong>s <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> e <strong>as</strong> considero como refugo,<br />
para ganhar a Cristo, e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede<br />
<strong>da</strong> lei, senão a que é mediante a fé, a justiça que procede de Deus, b<strong>as</strong>ea<strong>da</strong> na<br />
fé; para o conhecer e o poder <strong>da</strong> sua ressurreição e a comunhão dos seus<br />
sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte; para de algum modo<br />
alcançar a ressurreição dentre os mortos (Fl 3,4b-11).<br />
Porque ouvistes qual foi meu proceder outrora no ju<strong>da</strong>ísmo, como <strong>sobre</strong>maneira<br />
perseguia eu a igreja de Deus e a dev<strong>as</strong>tava. E, na minha nação,<br />
quanto ao ju<strong>da</strong>ísmo, avantajava-me a muitos <strong>da</strong> minha i<strong>da</strong>de, sendo extremamente<br />
zeloso <strong>da</strong>s tradições de meus pais. Quando, porém, ao que me separou<br />
antes de eu n<strong>as</strong>cer e me chamou pela sua graça, aprouve revelar seu filho em<br />
mim, para que eu o preg<strong>as</strong>se entre os gentios, sem detença não consultei carne<br />
e sangue ...” (Gl 1,13-16).<br />
Paulo não se tornou um missionário cristão apocalíptico por causa de sua<br />
falta de satisfação com o farisaísmo, ou porque estava alienado de seu povo,<br />
ou por sentir-se inadequado ou desprovido de poder. Pelo contrário, ele senti<strong>as</strong>e<br />
em c<strong>as</strong>a em seu ju<strong>da</strong>ísmo, realizado em sua devoção pela lei. Nest<strong>as</strong> du<strong>as</strong><br />
p<strong>as</strong>sagens Paulo apresenta característic<strong>as</strong> de uma identi<strong>da</strong>de ju<strong>da</strong>ica otimista.<br />
Não há evidência em qualquer lugar de que a falta de satisfação de Paulo<br />
com a lei de Moisés, ou com sua identi<strong>da</strong>de ju<strong>da</strong>ica, tenham-no conduzido a<br />
Cristo ou a uma compreensão <strong>apocalíptica</strong> de sua pessoa. Antes, a inespera<strong>da</strong><br />
e surpreendente “revelação (apokalypsis) de Jesus Cristo” (Gl 1,12), manifestou<br />
e levou a cabo sua alienação em relação a seu p<strong>as</strong>sado farisaico.<br />
O mesmo pode ser dito <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des que ele fundou. Para os<br />
tessalonicenses, por exemplo, ele escreve: “ ... é que, tendo vós recebido a<br />
palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de<br />
homens, e, sim, como, em ver<strong>da</strong>de é, a palavra de Deus, a qual, com efeito,<br />
está operando eficazmente em vós, os que credes”. Em segui<strong>da</strong> ele refere-se<br />
à perseguição que estes novos cristãos sofreram em Tessalônica, como<br />
conseqüência <strong>da</strong> fé provoca<strong>da</strong> por esta palavra divina (2,13-15; cf. 1,6). Estes<br />
tessalonicenses não se tornaram cristãos por causa de sua experiência de alienação<br />
e sofrimento. É mais provável que o contrário tenha sido o c<strong>as</strong>o.
20 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
(c) O que dizer <strong>sobre</strong> o livro do Apocalipse? Elisabeth Schüssler<br />
Fiorenza, especialista neste livro e teóloga feminista, escreveu: “é difícil<br />
decidir se uma perseguição severa é uma reali<strong>da</strong>de atual ou um perigo iminente,<br />
ou se apen<strong>as</strong> parte <strong>da</strong> experiência do autor que tenta demover cristãos<br />
prósperos sob [o imperador] Domiciano de uma postura complacente e que<br />
tendem a esquecer a perseguição de Nero [o imperador, nos anos 60]” 14 .<br />
Aqui temos uma questão central para a interpretação deste livro: ele emerge<br />
de uma situação de crise (perseguição)? Ou busca provocar crise entre seus<br />
leitores (cristãos)?<br />
Na primeira possibili<strong>da</strong>de, a escatologia <strong>apocalíptica</strong> do livro do Apocalipse<br />
é uma resposta para a crise de cristãos que vivem sob perseguição, sendo<br />
portanto um livro de consolo para estes perseguidos, incluindo os mártires.<br />
Estes cristãos seriam os pobres e marginalizados na socie<strong>da</strong>de greco-romana<br />
<strong>da</strong> Ásia Menor.<br />
De acordo com a segun<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de, a escatologia <strong>apocalíptica</strong> de<br />
João é uma arma por meio <strong>da</strong> qual o autor tenta sacudir seus leitores cristãos<br />
de sua postura benevolente, despertá-los de seus compromissos e de sua <strong>as</strong>similação<br />
com a ordem presente e má. Os leitores seriam pesso<strong>as</strong> relativamente<br />
ab<strong>as</strong>ta<strong>da</strong>s que estariam integra<strong>da</strong>s na cultura, política e economia do Império<br />
Romano.<br />
Adela Yarbro Collins é mais direta: “alguns intérpretes do Apocalipse o<br />
vêem como um livro de consolo de cristãos que sofrem perseguição ordena<strong>da</strong><br />
por Domiciano. Outros argumentam que a perseguição incluía tentativ<strong>as</strong> de<br />
forçar cristãos a adorarem o imperador... amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> conclusões são fals<strong>as</strong>”. O<br />
propósito de João era, antes, “provocar uma crise” que ele podia perceber, m<strong>as</strong><br />
não seus leitores. 15<br />
Em minha opinião a escatologia <strong>apocalíptica</strong> do livro é usa<strong>da</strong> para despertar<br />
cristãos de sua postura positiva e de compromisso com a ordem política,<br />
econômica e cultural romana (ver especialmente os capítulos 2-3, 13). M<strong>as</strong><br />
deixa ilusões <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> prováveis conseqüênci<strong>as</strong>. O tempo de Nero mostrou<br />
quão perigos<strong>as</strong> e hostis <strong>as</strong> autori<strong>da</strong>des roman<strong>as</strong> podiam ser para os cristãos.<br />
O livro, portanto, não apen<strong>as</strong> procura despertar os leitores cristãos para sua<br />
ver<strong>da</strong>deira identi<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>des, m<strong>as</strong> também os consola por ante-<br />
14. The Book of Revelation. Justice and Judgement. Philadelphia, 1985, p. 20.<br />
15. Crisis and Catharsis, p. 77.
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 21<br />
cipação, ao fazer referência à perseguição que ele sabe que virá: Deus não<br />
deixará mais su<strong>as</strong> testemunh<strong>as</strong> perecerem, pois ele deixou Cristo, a testemunha<br />
por excelência <strong>da</strong> vontade Deus <strong>sobre</strong> o mundo (1, 5), perecer.<br />
(d) Movimentos de Jesus. Havia grupos apocalípticos no cristianismo primitivo<br />
palestinense? Richard Horsley 16 procurou demonstrar recentemente que<br />
estes grupos existiam na Palestina. Ele se refere a eles como os “movimentos<br />
de Jesus”. Sua presença pode ser constata<strong>da</strong>, afirma, nos evangelhos sinóticos.<br />
Horsley faz uma distinção níti<strong>da</strong> entre aqueles que produziram literatura<br />
<strong>apocalíptica</strong> e os movimentos de Jesus. “A literatura <strong>apocalíptica</strong>, diz, foi<br />
produzi<strong>da</strong> para literatos, para uma elite cultural (m<strong>as</strong> não elite sócio-econômica).<br />
Jesus e seus discípulos, entre os quais originou-se a tradição sinótica,<br />
eram camponeses iletrados que cultivavam su<strong>as</strong> própri<strong>as</strong> tradições israelit<strong>as</strong><br />
e comuni<strong>da</strong>des aldeãs”. 17 Ele apela aqui a “uma distinção feita por antropólogos”<br />
entre uma elite que produz a “grande” tradição, “normalmente de forma<br />
oral, m<strong>as</strong> freqüentemente também em forma escrita”, e os “camponeses”, que<br />
cultivam uma tradição “pequena” ou uma tradição popular, totalmente oral,<br />
“de acordo com a qual é conduzi<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> na comuni<strong>da</strong>de local”. É possível<br />
que estes dois grupos interajam, m<strong>as</strong>, na ver<strong>da</strong>de, têm “lugares sociais e interesses<br />
distintos”, de forma que normalmente há conflito entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> tradições.<br />
Horsley ilustra isso com um apelo a Marcos 7,1-13, em que Jesus defende<br />
os interesses dos camponeses galileus em reter sua produção econômica<br />
para manutenção de su<strong>as</strong> famíli<strong>as</strong> (sendo de certa forma coerente com o<br />
man<strong>da</strong>mento de honrar pai e mãe), contra a “tradição sacerdotal dos escrib<strong>as</strong>”,<br />
que esperava que os camponeses dessem seus recursos econômicos para<br />
manutenção do Templo. 18<br />
Na ver<strong>da</strong>de Horsley também acredita que no tempo de Jesus houve<br />
uma interação considerável entre os círculos de escrib<strong>as</strong> e os camponeses,<br />
conformando <strong>as</strong>sim “um grau considerável de cultura comum entre os, socialmente<br />
divididos, grupos sacerdotais e vilarejos camponeses”. 19 Os evan-<br />
16. The Kingdom of God and the Renewal of Israel: Synoptic Gospels, Jesus Movements, and<br />
Apocalypticism, in: J.J. Collins (ed.), The Encyclopedia of Apocalypticism, p. 303-344.<br />
17. The Kingdom of God ..., p. 307.<br />
18. The Kingdom of God ..., p. 307.<br />
19. The Kingdom of God ..., p. 308.
22 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
gelhos sinóticos preservam tradições de camponeses, mesmo quando são “secun<strong>da</strong>riamente<br />
reescrit<strong>as</strong>” por “escrib<strong>as</strong>”, tais como Mateus, ou escritores<br />
cultos como Luc<strong>as</strong>.<br />
Horsley acredita que, especialmente Q, a fonte hipotética dos ditos incorpora<strong>da</strong><br />
nos evangelhos de Mateus e de Luc<strong>as</strong>, era “o documento de um movimento”<br />
(315). Ele apela a Luc<strong>as</strong> 9,57-10,16, uma p<strong>as</strong>sagem de Q, para apoiar<br />
esta opinião. Além do mais, a linguagem mais <strong>apocalíptica</strong> de Q é encontra<strong>da</strong><br />
em Luc<strong>as</strong> (Q) 10,21-24 (com reflexos joaninos), onde “Jesus dá graç<strong>as</strong> ao Pai<br />
que ‘revelou’ (apekalyps<strong>as</strong>) to<strong>da</strong>s est<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> às ‘crianç<strong>as</strong>’, ou seja, ao povo<br />
simples, e de fato <strong>as</strong> escondeu <strong>da</strong> elite sapiencial, a elite de escrib<strong>as</strong> e sábios<br />
profissionais que cultivavam e recebiam ‘revelações’. Para Horsley, esta p<strong>as</strong>sagem<br />
“indica explicitamente que os discursos de Q eram o produto de um movimento<br />
popular oposto à elite política e cultural de governantes e seus representantes,<br />
os escrib<strong>as</strong>. A literatura <strong>apocalíptica</strong>, tal como seções de 1Enoque, era<br />
produzi<strong>da</strong> por círculos de escrib<strong>as</strong> dissidentes que também se opunham ao<br />
sumo-sacerdócio <strong>da</strong> Judéia. Q, no entanto, era ‘revelação’ especificamente para<br />
um movimento popular de renovação, conscientemente posicionado contra os<br />
escrib<strong>as</strong> <strong>as</strong>sim como contra os governantes”. Ele acrescenta: “não deveríamos<br />
esperar nestes discursos um tipo linguagem de escriba e de reflexão e especulação<br />
que encontramos na literatura <strong>apocalíptica</strong>”. 20<br />
A versão de Q <strong>da</strong> oração do Pai Nosso, ain<strong>da</strong> preserva<strong>da</strong> em Luc<strong>as</strong> 11,2-<br />
4, é muito concreta quando compara<strong>da</strong> com a versão encontra<strong>da</strong> em Mateus<br />
6,9-13 que foi edita<strong>da</strong> profun<strong>da</strong>mente pelo autor do evangelho mateano. A<br />
versão de Q reflete o fato que os camponeses galileus defrontavam-se com<br />
uma fome crônica e com um grave endivi<strong>da</strong>mento (impostos, necessi<strong>da</strong>de de<br />
alimentar a família). “Na oração pelo reino, Jesus ensinou ao povo a pedir ao<br />
Pai celeste pelo pão <strong>da</strong> <strong>sobre</strong>vivência e pelo cancelamento de dívi<strong>da</strong>s”. 21<br />
Horsley compara a comuni<strong>da</strong>de de Q com a comuni<strong>da</strong>de de Qumran, que<br />
é o mais claro exemplo de um movimento apocalíptico no ju<strong>da</strong>ísmo do primeiro<br />
século. “Assim como a comuni<strong>da</strong>de de escrib<strong>as</strong> e sacerdotes em Qumran,<br />
o movimento camponês que produziu os ditos de Q estava engajado na renovação<br />
de Israel. O movimento de Q ... no entanto, não se retirou do resto <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de, seja como comuni<strong>da</strong>de monástica no deserto, seja como um grupo<br />
20. The Kingdom of God ..., p. 315-316.<br />
21. The Kingdom of God ..., p. 316.
A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica <strong>sobre</strong> <strong>as</strong> <strong>origens</strong> <strong>cristãs</strong> 23<br />
de ‘peregrinos carismáticos’, m<strong>as</strong> priorizou a renovação de comuni<strong>da</strong>des campones<strong>as</strong>,<br />
a forma social fun<strong>da</strong>mental na qual Israel estava constituí<strong>da</strong>”. 22<br />
Segundo Horsley, Q não era um apocalipse, m<strong>as</strong> mesmo <strong>as</strong>sim compartilha<br />
<strong>as</strong> três principais preocupações <strong>da</strong> literatura <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica: julgamento<br />
dos governantes opressores, restauração do povo de Israel e vingança<br />
dos mártires. 23 As imagens com <strong>as</strong> quais est<strong>as</strong> questões são trata<strong>da</strong>s são mais<br />
pobremente elabora<strong>da</strong>s que na literatura ju<strong>da</strong>ica do período, incluindo a de<br />
Qumran. O movimento de Jesus representado em Q tem seus pés <strong>sobre</strong> no<br />
chão. Não se permitiu especulações misterios<strong>as</strong> ou bizarr<strong>as</strong>. A comuni<strong>da</strong>de de<br />
Q viu na vin<strong>da</strong> e no ministério de Jesus o começo <strong>da</strong> renovação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />
Desta forma Horsley esvazia de sentido concreto os tem<strong>as</strong> apocalípticos <strong>da</strong><br />
ressurreição dos mortos, que também é encontra<strong>da</strong> em Q, 24 e <strong>da</strong> expectativa<br />
de um julgamento escatológico dos governantes maus. A expectativa de uma<br />
ressurreição futura e de julgamento escatológico, bem como a aceitação <strong>da</strong><br />
existência de Satanás e de demônios no presente, são considerados por<br />
Horsley como característic<strong>as</strong> do “sistema simbólico-cultural ou do universo<br />
simbólico pressuposto por Q”. 25 Não há “reflexão sistemática” <strong>sobre</strong> est<strong>as</strong><br />
questões em Q, segundo Horsley, como há na literatura <strong>apocalíptica</strong> ju<strong>da</strong>ica<br />
(de escrib<strong>as</strong>). Criticando Horsley, podemos dizer que a falta de “reflexão sistemática”<br />
<strong>sobre</strong> est<strong>as</strong> questões não significa que a comuni<strong>da</strong>de de Q não adere<br />
a uma cosmovisão de fato <strong>apocalíptica</strong>, que aguar<strong>da</strong> que Deus estabeleça uma<br />
nova era em escala cósmica no futuro próximo. Movimentos apocalípticos não<br />
precisam escrever apocalipses cheios de “estilo de apocalíptico de escrib<strong>as</strong>”.<br />
Eles apen<strong>as</strong> necessitam ter uma compreensão apocalíptico-escatológica <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de. M<strong>as</strong> estes comentários apen<strong>as</strong> levantam a questão <strong>sobre</strong> a definição<br />
de escatologia <strong>apocalíptica</strong>, à qual quero retornar no próximo ensaio.<br />
(e) Como conclusão, gostaria de enfatizar que, em minha opinião, a<br />
adoção de uma escatologia <strong>apocalíptica</strong> como uma perspectiva <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />
não é limita<strong>da</strong> a grupos em crise, nem necessita emergir destes grupos. Deixando<br />
Q de lado, os evangelhos sinóticos, em sua forma atual, mostram que<br />
tem<strong>as</strong> e tradições <strong>apocalíptica</strong>s podem ser adotados e usados por gente de<br />
22. The Kingdom of God ..., p. 321.<br />
23. The Kingdom of God ..., p. 322.<br />
24. Ver Luc<strong>as</strong> 6,23; 7,35; 11,49-51; 12,2-12, listados por Horsley em The Kingdom of God ... p. 323).<br />
25. The Kingdom of God ..., p. 323.
24 Apocalíptica e <strong>as</strong> Origens Cristãs<br />
diversos contextos e em diversos contextos sociais. A pressuposição é que<br />
todos os que adotam esta perspectiva <strong>sobre</strong> a reali<strong>da</strong>de, é de que esta perspectiva<br />
não tem origem humana (seja de indivíduos ou de grupos), m<strong>as</strong> de que ela<br />
é <strong>da</strong><strong>da</strong> por Deus, em outr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, é uma revelação de Deus. Esta é também<br />
a pressuposição básica <strong>da</strong> fé cristã: ela não tem a ver com invenções human<strong>as</strong>,<br />
planos ou program<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> com <strong>as</strong> que se referem a Deus.