Texto integral da conferência (pdf) - Apresentação
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GIOVANNI CASERTANO<br />
Porquê continuar a ler Platão hoje?<br />
Vamos supor que se faz esta pergunta a um auditório: ela tem um sentido provocatório.<br />
Vendo bem, ela apresenta-se como, ou melhor, é uma pergunta retórica. Na sua própria formulação<br />
pressupõe uma resposta positiva. Como to<strong>da</strong>s as perguntas, provoca uma expectativa. Como to<strong>da</strong>s<br />
as perguntas retóricas, tem já em si mesma o sentido <strong>da</strong> resposta. Contudo, se o sentido <strong>da</strong> expectativa<br />
é unívoco, não unívoca é a atitude com a qual ca<strong>da</strong> um dos ouvintes se põe diante desse sentido. A<br />
expectativa que provoca é: no fim ser-nos-ão <strong>da</strong><strong>da</strong>s razões, mais ou menos boas, com base nas quais<br />
nos será dito que sim, que ain<strong>da</strong> tem sentido ler Platão hoje. Isto é bastante claro. Mas ca<strong>da</strong> ouvinte<br />
colocar-se-á perante este sentido, perante as coisas que espera que lhe dirá a outra pessoa, numa<br />
situação especial. Alguém poderá pensar: “vai ser o discurso habitual, mais ou menos académico,<br />
feito mais ou menos por dever, sobre os eternos valores ditos pelos grandes pensadores do passado;<br />
não sei para que é que me vai servir, vai ser outra aula aborreci<strong>da</strong> a que sou obrigado a assistir”. Ou<br />
então: “para mim é importante, gosto de ler, e talvez me agra<strong>da</strong>sse ler também Platão: talvez ouça<br />
coisas que me interessem, talvez não”.<br />
O título de uma <strong>conferência</strong> sob forma de pergunta é então certamente uma provocação, no<br />
sentido que provoca expectativas diferentes, que poderão vir a ser decepcionantes ou satisfatórias.<br />
Mas a provocação <strong>da</strong> minha pergunta não é só esta. Ela esconde outra, anterior a esta, e mais subtil<br />
do que ela. A minha provocação esconde-se em dois termos <strong>da</strong> pergunta e consiste precisamente em<br />
ir contra os sentidos <strong>da</strong>queles termos mais comummente subentendidos, aceites, previsíveis, óbvios.<br />
Os dois termos são «ler» e «Platão». A minha provocação consiste em negar os sentidos comuns<br />
<strong>da</strong>dos a estes dois termos. «Ler»: defendo que hoje se lê muito pouco. E esta é uma afirmação que<br />
vai contra o senso comum, que contradiz todos os <strong>da</strong>dos estatísticos. Nunca houve uma época,<br />
como a nossa, em que a difusão <strong>da</strong> imprensa fosse tão vasta e massifica<strong>da</strong>, em que existissem<br />
milhares de órgãos de informação, em que se publicassem volumes sobre todos os assuntos do saber<br />
humano, até os mais especializados ou curiosos, em que as livrarias e os quiosques estivessem<br />
absolutamente cheios de qualquer tipo de publicação, aquelas para passar o tempo, as científicas, as<br />
literárias, as filosóficas, as jurídicas, etc. E ain<strong>da</strong> assim, lê-se pouco. E não quero mencionar o facto<br />
de que hoje, diz-se, a leitura do texto impresso está a ser progressivamente substituí<strong>da</strong> pela leitura<br />
electrónica, por documentos e obras em rede, que cobrem, possivelmente de modo ain<strong>da</strong> mais<br />
detalhado e minucioso, todos os campos do saber e <strong>da</strong>s activi<strong>da</strong>des humanos. Quero dizer que se<br />
está a perder o próprio sentido do termo «leitura». Como a enorme abundância <strong>da</strong>s informações<br />
acaba – como muitos já reconhecem – por determinar uma desinformação, hoje há mais livros a
serem «consumidos» do que a serem lidos. Embora a culpa não seja só do leitor: são os ritmos <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de de hoje a obrigarem-nos não a «ler» mas a «consumir» uma grande quanti<strong>da</strong>de de livros e<br />
de documentos.<br />
O outro termo é «Platão». Platão é um <strong>da</strong>queles nomes que passou a fazer parte – como<br />
estava na mo<strong>da</strong> dizer há algumas déca<strong>da</strong>s atrás – do imaginário colectivo, e aqui ocupa um lugar<br />
bem estável ain<strong>da</strong> hoje. Platão é um <strong>da</strong>queles autores de que todos sabem tudo, mesmo sem nunca<br />
ter lido um livro seu. Quem é que não sabe que Platão «é aquele <strong>da</strong>s ideias»? o que defendeu que a<br />
reali<strong>da</strong>de física, corpórea, a reali<strong>da</strong>de concreta não tem sentido nem valor, e só as ideias puras e<br />
abstractas que se encontram num mundo hiperurânio os têm? o que defendeu que o ver<strong>da</strong>deiro amor<br />
não é o físico, mas o <strong>da</strong>s almas puras que se mantêm inocentes de qualquer contacto com o corpo? o<br />
que defendeu que existem ver<strong>da</strong>des eternas que são sempre as mesmas? o que defendeu que o corpo<br />
morre e a alma se dirige pura até à mora<strong>da</strong> dos deuses?<br />
A minha ver<strong>da</strong>deira provocação portanto consiste em negar este sentido do «ler Platão» e<br />
propor outro: uma leitura que seja um colóquio consigo mesmo através de Platão, que seja um<br />
interrogar-se a si mesmo através <strong>da</strong>s perguntas de Platão, que seja um reflectir com a calma e o<br />
tempo necessário para amadurecer as próprias ideias, servindo-se <strong>da</strong>s de Platão, para interiorizar<br />
pensamentos e perspectivas novas, não só através <strong>da</strong>s ideias, mas também através <strong>da</strong>s emoções que<br />
podem ser sugeri<strong>da</strong>s pelo texto platónico. Porque há um ponto acerca do qual é preciso reflectir e<br />
sobre o qual é necessário deitar alguma luz. A leitura do passado, qualquer que seja o nível a que<br />
pertença – literário, filosófico, científico – nunca pode ser um fim em si mesma. Na ver<strong>da</strong>de, nunca<br />
o é, embora haja uma faixa de leitores que teima em defender que a sua tarefa é a de reconstruir<br />
uma ver<strong>da</strong>de que seja o mais possível “objectiva”, entendendo por objectiva a utópica reprodução<br />
de um mundo que teve certas características bem defini<strong>da</strong>s e delimita<strong>da</strong>s num tempo bem preciso e<br />
apenas nesse tempo. Fun<strong>da</strong>mentalmente são duas as perguntas que se poderiam fazer a este propósito.<br />
Em primeiro lugar: é ver<strong>da</strong>deiramente possível uma leitura deste tipo? E depois: que sentido pode<br />
ela ter para nós que a fazemos? Honestamente creio que deveríamos responder à primeira pergunta<br />
de forma negativa. É um facto que a leitura do passado faz-se sempre, e não pode senão ser feita,<br />
através de óculos que são os de quem faz investigação: as suas crenças, a sua cultura, as suas<br />
expectativas, numa palavra, as ferramentas hermenêuticas de que dispõe; to<strong>da</strong>s condições de que o<br />
leitor não se pode separar, mesmo que queira fazer uma investigação “pura”, “histórica”,<br />
“objectiva”. Com efeito, acho que isto não se pode negar: quantas interpretações do passado<br />
tivemos na nossa história cultural? Quantas vezes, nas diversas épocas, mudámos as nossas ideias<br />
sobre um autor, uma corrente cultural? To<strong>da</strong> a nossa história não é senão este suceder-se de<br />
mu<strong>da</strong>nças nas nossas perspectivas históricas. Porque a nossa leitura nunca é objectiva, é sempre
histórica, entendendo “histórica” em dois sentidos: não só porque se propõe compreender um<br />
momento histórico, isto é, do passado, mas principalmente porque pertence à nossa história,<br />
pertence ao nosso momento histórico, individual e colectivo. E, por conseguinte, interessar-nos-ia,<br />
seria realmente interessante para nós, poderia dizer-nos ver<strong>da</strong>deiramente alguma coisa estabelecer<br />
de maneira exacta o sentido de um autor, de uma afirmação, de uma filosofia, que estivessem<br />
confina<strong>da</strong>s exclusivamente num passado que na<strong>da</strong> tem a ver com o nosso presente? Na ver<strong>da</strong>de, se<br />
o passado é por definição algo que deixou de ser, o sentido do passado pertence ao presente, é<br />
nosso, faz parte de nós seres humanos que vivemos hoje, e é fun<strong>da</strong>mental para projectar o nosso<br />
futuro. Como todos os animais, mas de maneira mais complica<strong>da</strong> e complexa, muito mais mediata e<br />
articula<strong>da</strong>, nós recor<strong>da</strong>mos os factos, as vicissitudes, as experiências, quer <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong> individual<br />
quer <strong>da</strong> <strong>da</strong> espécie, em vista de algo, em vista <strong>da</strong> atitude que tomamos perante o nosso futuro.<br />
É assim, no que diz respeito ao nosso tema, isto é, ler Platão. Se ler Platão hoje significasse<br />
simplesmente reconfirmar aquela imagem de uma filosofia completamente vira<strong>da</strong> para a fuga deste<br />
mundo, para o estabelecimento de um nítido dualismo entre este mundo e o <strong>da</strong>s perfeições ideais<br />
que com o nosso mundo na<strong>da</strong> tem a ver, para a defesa <strong>da</strong> mortificação <strong>da</strong> nossa corporei<strong>da</strong>de em<br />
vista de uma vi<strong>da</strong> futura feita apenas de puras almas desencarna<strong>da</strong>s e felizes nos campos Elíseos,<br />
confesso que para mim não faria absolutamente sentido ler ain<strong>da</strong> Platão.<br />
Por isso, escolhi três temas, três problemas fun<strong>da</strong>mentais, sobre os quais a leitura de Platão<br />
nos convi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> hoje a reflectir. A ver<strong>da</strong>de, a morte e o amor.<br />
1) A ver<strong>da</strong>de. Se procurarmos nos textos de Platão uma definição de ver<strong>da</strong>de, para além <strong>da</strong><br />
afirmação <strong>da</strong> exigência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> afirmação que a ver<strong>da</strong>de deve ser o fim de todos os nossos<br />
discursos e de to<strong>da</strong>s as nossas pesquisas, encontrá-la-emos formaliza<strong>da</strong> pelo menos em dois diálogos:<br />
o Crátilo e o Sofista. No Crátilo, na página 385 B, lemos: «Existem um discurso ver<strong>da</strong>deiro e um<br />
discurso falso... E o que diz os entes como são é ver<strong>da</strong>deiro, enquanto que o que os diz como não<br />
são é falso». No Sofista, na página 263 B, depois de ter esclarecido que ca<strong>da</strong> discurso tem uma certa<br />
quali<strong>da</strong>de e que a quali<strong>da</strong>de do discurso é o de ser ver<strong>da</strong>deiro ou falso, Platão escreve: «O que é<br />
ver<strong>da</strong>deiro, diz acerca de ti as coisas que são como são, o falso diz coisas diferentes <strong>da</strong>s que são,<br />
portanto diz que são as coisas que não são». Como se vê, na reali<strong>da</strong>de não nos encontramos perante<br />
uma definição <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, mas sim perante uma definição de “discurso ver<strong>da</strong>deiro”. Porque a<br />
ver<strong>da</strong>de, ou a falsi<strong>da</strong>de, não são outra coisa senão “quali<strong>da</strong>des” do discurso, e concernem<br />
exclusivamente ao plano <strong>da</strong> linguagem. Não existe a ver<strong>da</strong>de na reali<strong>da</strong>de que me circun<strong>da</strong>, mas<br />
existe a possibili<strong>da</strong>de de dizer a ver<strong>da</strong>de. Porém, se reflectirmos sobre as definições que lemos,<br />
elas, claríssimas do ponto de vista formal, escondem to<strong>da</strong> uma série de dificul<strong>da</strong>des teóricas não<br />
fáceis de esmiuçar, e muito inquietantes.
Por detrás de Platão, e bem presentes nas definições que lemos, estão as dramáticas<br />
discussões dos sofistas sobre a negação de uma ver<strong>da</strong>de absoluta e váli<strong>da</strong> para todos, sobre o<br />
necessário relativismo <strong>da</strong>s nossas sensações e dos nossos conhecimentos, que tinham animado o<br />
debate filosófico na segun<strong>da</strong> metade do século V a.C. Por detrás dos sofistas estava a potente<br />
afirmação parmenídea <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de ser-pensar-dizer. Ca<strong>da</strong> dizer é um pensar e ca<strong>da</strong> pensar radica-<br />
se no ser (fragmentos 3 e 8). Esta é a garantia <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de cognoscitiva dos nossos discursos sobre a<br />
reali<strong>da</strong>de. Com a nossa linguagem, dizemos e pensamos sempre algo que é e esta é precisamente a<br />
garantia <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do que dizemos. Mas esta ligação ser-pensar-dizer, que para Parménides<br />
constituía justamente a garantia <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de dos nossos conhecimentos, tinha servido aos sofistas<br />
para derrubar a própria possibili<strong>da</strong>de de uma ver<strong>da</strong>de unívoca e absoluta. Se ca<strong>da</strong> vez que falamos<br />
não fazemos outra coisa senão reflectir uma reali<strong>da</strong>de, e a reflexão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de no discurso é a<br />
garantia <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, então ca<strong>da</strong> vez que falamos, qualquer que seja o discurso que fazemos, mesmo<br />
o mais contraditório possível sobre o mesmo argumento, dizemos sempre a ver<strong>da</strong>de. Por outras<br />
palavras, não existe o falso, não existe um discurso falso, mas to<strong>da</strong>s as nossas afirmações são<br />
ver<strong>da</strong>deiras. A rigorosi<strong>da</strong>de e a assertivi<strong>da</strong>de com as quais esta tese fora afirma<strong>da</strong> por Protágoras e<br />
por Górgias comprometeu Platão, pode-se dizer, por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, numa obra de crítica e de<br />
repensamento do próprio fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> doutrina parmenídea. O princípio parmenídeo não se pode<br />
negar: o princípio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de não pode ser outro senão a correspondência entre o que dizemos e o<br />
que é, a reali<strong>da</strong>de objectiva. Mas o princípio parmenídeo não se pode aceitar tal como é: se ca<strong>da</strong> vez<br />
que falássemos disséssemos coisas reais, então tudo, isto é, ca<strong>da</strong> discurso, seria ver<strong>da</strong>deiro. E isto<br />
não é aceitável. A questão fun<strong>da</strong>mental é: não é aceitável de um ponto de vista lógico,<br />
epistemológico, ou de um ponto de vista ético, político? Questão, de resto, não ignota pelos sofistas,<br />
especialmente a Protágoras, para quem, se é ver<strong>da</strong>de que ca<strong>da</strong> discurso é ver<strong>da</strong>deiro, é ver<strong>da</strong>deiro<br />
também que nem todo o discurso é útil à ci<strong>da</strong>de, isto é, à comuni<strong>da</strong>de dos homens: porque neste<br />
campo, diante de tantos discursos ver<strong>da</strong>deiros, o homem deve empenhar-se em defender o discurso<br />
melhor, o que sendo melhor do que os outros serve quer para construir a saúde do indivíduo quer<br />
para construir a <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em que o homem vive.<br />
Pois bem, todo o esforço de Platão consiste em procurar ligar de novo o plano ético e<br />
político ao plano lógico e epistemológico. Simplificando: o discurso correcto, política e eticamente,<br />
deve ser também o único discurso ver<strong>da</strong>deiro. Mas para se obter isto, deve ser modifica<strong>da</strong> a<br />
perspectiva parmenídea. Nela, não existindo o não ser, não se pode sequer dizer o não ser, o que<br />
não é. Mas se não se pode dizer o não ser, o que não é, então tudo é ver<strong>da</strong>deiro. Portanto, a táctica<br />
estratégica de Platão é a afirmação de que o não ser, as coisas que não são, se podem dizer e nisto<br />
consiste precisamente dizer o falso. Só que aqui é preciso distinguir dois sentidos de não ser: há um
não ser absoluto, um não ser como não existir, e disto, como afirmara Parménides, não se pode<br />
falar. Mas há um não ser relativo, que não significa não existir, e dele se pode falar, e falar dele<br />
significa precisamente fazer um discurso falso. Mas o que é o não ser que existe? Se “existe”, deve<br />
ser uma reali<strong>da</strong>de; se “não é”, é uma reali<strong>da</strong>de “outra”: é o diverso, são coisas diversas <strong>da</strong>s que são,<br />
como vimos pela definição do Sofista. É a aparência, são os phantasmata: as aparências são coisas<br />
que existem, certamente, mas que se apresentam como “outra” coisa relativamente ao que são. Por<br />
outros termos, são, existem, como algo, mas querem ser, isto é, proclamam-se e querem aparecer<br />
como aquilo que não são. E isto é precisamente o falso, ética e politicamente, mas também, na<br />
perspectiva platónica, lógica e gnoseologicamente.<br />
Para <strong>da</strong>r um exemplo relativo aos dias de hoje: há discursos que querem parecer discursos de<br />
paz mas são “outra” coisa, isto é, são discursos de guerra; manifestam-se como discursos éticos e<br />
são vulgares discursos de interesse; parecem discursos de economia sã e são discursos de<br />
exploração; parecem discursos de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e são discursos de subjugação. E então, pode servir<br />
ain<strong>da</strong> para qualquer coisa, a exigência platónica de distinguir a aparência de ser do ser real?<br />
2) A morte. À morte é dedicado um diálogo, o Fédon, o mais explorado e ao mesmo tempo,<br />
talvez por isso mesmo, o menos conhecido de Platão. O Fédon foi lido por séculos, e ain<strong>da</strong> hoje é<br />
lido, como o diálogo em que se demonstra a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma e a mortali<strong>da</strong>de do corpo.<br />
Naturalmente, isto é ver<strong>da</strong>de, mas parar nesta afirmação significa transformar uma ver<strong>da</strong>de numa<br />
falsi<strong>da</strong>de. Porque essas demonstrações estão no interior de um discurso que mistura de maneira<br />
sapiente (e também dramática, isto é, artisticamente) mito com discurso lógico, exigência ética e<br />
postulado teorético; e é só tendo presente esta trama complexa que se poderá perceber o significado<br />
<strong>da</strong> morte e <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de platónicas. Este diálogo contém dois núcleos teoréticos fun<strong>da</strong>mentais<br />
para a doutrina platónica: a teoria <strong>da</strong>s ideias e a teoria <strong>da</strong> anamnese. Porém, eles estão inseridos no<br />
“conto” de uma morte, a de Sócrates, o homem-símbolo <strong>da</strong> filosofia, e este conto, como todos os<br />
contos, deixa um amplo espaço ao mito, à metáfora, à analogia. Se não se agarrar esta íntima<br />
ligação de mito e logos no Fédon, fica-se condenado a uma leitura simplista e superficial do diálogo.<br />
Convém, diz Sócrates ao ínicio do diálogo, no último dia <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> terrena, sobretudo para<br />
quem está para se ir embora, não só investigar, como sempre se fez, mas também contar mitos sobre<br />
esta viagem. E todo o Fédon não será senão esta íntima ligação de discursos, que investigam<br />
aspectos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> doutrina platónica, e de mitos sobre a morte e sobre o que está para além <strong>da</strong><br />
morte. No Fédon há pelo menos três sentidos para o conceito de morte, e em todo o diálogo Platão<br />
joga, consciente e proposita<strong>da</strong>mente, com a ambigui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua ligação. Por um lado, a morte é a<br />
“separação”, a decomposição dos elementos que constituem ca<strong>da</strong> composto e, por conseguinte,<br />
também o homem que, simplificando, é um composto de corpo e de alma. É o sentido “filosófico”,
pré-socrático, do termo morte: Parménides, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito, todos defenderam<br />
que aquilo que os homens chamam “nascer” não é senão a agregação dos elementos eternos num<br />
composto individual; e aquilo a que chamam “morte” não é senão a desagregação desse composto e o<br />
permanecer desses elementos na sua eterni<strong>da</strong>de. Por outro lado, há o sentido comum <strong>da</strong> morte como<br />
aniquilação, destruição, corrupção: e este é o sentido que causa mais medo na maioria <strong>da</strong>s pessoas, e<br />
contra este medo, como veremos, não há raciocínio que ganhe; só o mito pode tentar “encantá-lo”,<br />
exorcizá-lo. Sob estes sentidos e atrás deles, há a alusão explícita a um terceiro sentido, metafórico, <strong>da</strong><br />
morte, que se liga intimamente à mensagem ética: morte como um morrer para a vi<strong>da</strong> que a maioria<br />
<strong>da</strong>s pessoas leva e, por conseguinte, como a necessi<strong>da</strong>de de abandonar riquezas, poder, prazer<br />
desenfreado, para se dedicar “à alma”, que significa precisamente «viver com virtude e sabedoria».<br />
Portanto, se a morte é qualquer coisa, ela é separação de elementos que podem subsistir separa<strong>da</strong>mente<br />
uns dos outros, ou podem compor-se <strong>da</strong>ndo lugar àquilo que nós chamamos simplesmente vi<strong>da</strong>. De<br />
facto, «estar morto» não é outra coisa senão esta condição de separação, quer do corpo quer <strong>da</strong> alma,<br />
que “vivem” ca<strong>da</strong> um por conta própria. Portanto, morte é, rigorosamente falando, a vi<strong>da</strong> separa<strong>da</strong><br />
dos elementos que compõem o homem. Neste horizonte, é claro, não há espaço para uma imortali<strong>da</strong>de<br />
que não a dos elementos que formam o composto “homem”. O homem é mortal, imortais são a sua<br />
alma e o seu corpo.<br />
A este sentido <strong>da</strong> morte sobrepõe-se imediatamente outro, metafórico, que é introduzido<br />
com uma série de “alterações de sentido” <strong>da</strong>s expressões comuns, que são típicas <strong>da</strong> filosofia<br />
platónica. Sócrates convi<strong>da</strong> Eveno a segui-lo, isto é, a morrer. Que raio de exortação, comenta<br />
Símias! Sim, porque os filósofos não se ocupam senão de morrer e de estar mortos. E Símias ri, ao<br />
pensar no sentido que a maioria dá à afirmação, isto é, que os filósofos são como os moribundos<br />
que vagueiam tristemente entre os homens. Mas o sentido <strong>da</strong>s expressões é: que os homens sejam<br />
filósofos e que cuidem <strong>da</strong> alma durante a sua vi<strong>da</strong>. Este sentido aparece claramente <strong>da</strong>s páginas 64<br />
A-69 E, nas quais o discurso é feito com a ligação de mito e de logos, ligação que pretende delinear<br />
uma contraposição entre vi<strong>da</strong> e morte, que não é outra coisa senão uma contraposição entre dois<br />
tipos de vi<strong>da</strong>. A morte aqui torna-se o sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, isto é, a activi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma que, só se se<br />
esquecer do corpo, “separando-se” dele, pode adquirir a sabedoria, pode entrar em contacto com a<br />
ver<strong>da</strong>de, pode raciocinar, pode “ver” as ideias, que não se vêem com os olhos do corpo, mas com os<br />
<strong>da</strong> alma. É a nossa alma, portanto, que quanto menos estiver mistura<strong>da</strong> às necessi<strong>da</strong>des, aos medos<br />
e aos obstáculos que o nosso corpo lhe apresenta, mais consegue alcançar o ver<strong>da</strong>deiro objectivo <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> do filósofo, que é sempre o de conhecer to<strong>da</strong>s as coisas, de adquirir ver<strong>da</strong>de e inteligência: em<br />
suma, de adquirir o saber. E então a morte, isto é, o morrer para os medos, para as ninharias, a
purificação <strong>da</strong>s tarefas quotidianas no amplo horizonte dos conhecimentos, é vivi<strong>da</strong> plenamente<br />
pelo filósofo já nesta vi<strong>da</strong>.<br />
Mas isto pode não ser suficiente para os homens comuns, e também para os filósofos de<br />
nível não elevado. Eles têm necessi<strong>da</strong>de de saber que, quando se morre, a alma, com to<strong>da</strong>s as suas<br />
facul<strong>da</strong>des e a sua inteligência, existe ain<strong>da</strong> em algum lugar e não se destrói e perece no momento<br />
em que o homem morre. Mas para estas pessoas não podemos senão contar mitos, diz Sócrates, para<br />
ver se aquela esperança é verosímil. O mito de que estamos a falar é aquele antigo discurso dos<br />
órficos, segundo os quais as almas chegam ao Hades partindo do nosso mundo e de lá regressam<br />
novamente a este. Se assim é, ou seja, se os vivos se regeneram dos mortos, deve existir este<br />
mundo. De facto, as almas não poderiam renascer se não existissem e assim haveria uma prova<br />
suficiente <strong>da</strong> sua existência. Mas se isto ain<strong>da</strong> não for suficiente para “garantir” a própria<br />
imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma? Neste momento do diálogo, a intervenção do interlocutor de Sócrates,<br />
Símias, é extremamente significativa. A persuasão derivante do discurso que se acabou de concluir<br />
é indiscutível. To<strong>da</strong>via, a demonstração parece ain<strong>da</strong> claudicante, e pede-se outra completa (77 C5).<br />
Mas aqui Sócrates recusa-se: no plano demonstrativo, o logos que se fez está completo. E Platão é<br />
excepcional. Evidentemente a demonstração, o logos demonstrativo, racional, correcto, não basta<br />
para convencer e persuadir, porque a convicção e a persuasão pertencem também ao plano do<br />
affectus, e há uma “paixão” que neste momento entra em jogo, uma paixão que é forte, na maioria<br />
<strong>da</strong>s pessoas, e que cria obstáculos àquela convicção e persuasão: é o medo <strong>da</strong> morte, que na<strong>da</strong> tem a<br />
ver com a sua compreensão racional. Por isso a intervenção de Cebes a este ponto é extremamente<br />
significativa: «Sócrates, tenta convencer-nos como se tivéssemos medo. Ou melhor, não como se<br />
nós tivéssemos medo: talvez haja em nós uma espécie de criança que tem medo destas coisas». Esta<br />
intervenção é um indício do facto que Cebes (e com ele os que são filósofos do seu nível) está<br />
plenamente consciente de que o discurso demonstrou e, por conseguinte, convenceu aquela parte dele<br />
que filosofa, mas não é suficiente para a criança que está nele e que não consegue filosofar. Mas<br />
aqui não são mais necessários os discursos demonstrativos: com as crianças não se raciocina; são<br />
precisos discursos não que demonstrem, mas que encantem, e Sócrates declara ser bom nestas<br />
coisas como tantos outros homens bons, gregos ou bárbaros. Como se dissesse que enfeitiçar a<br />
morte, isto é, tranquilizar as almas medrosas, pode ser feito por qualquer “homem bom”. Pelo<br />
contrário, olhar a morte nos olhos com um raciocínio rigoroso que insira a vi<strong>da</strong> humana numa maior<br />
e mais vasta vi<strong>da</strong> cósmica, isto, só um “homem filósofo” é capaz de o fazer.<br />
Com efeito, diz Sócrates, se nem sequer consigo convencer os amigos filósofos, como posso<br />
esperar convencer todos os outros de que o momento que estou a viver na<strong>da</strong> tem de diferente de<br />
todos os outros que vivi? Em ca<strong>da</strong> instante que o homem vive, encontra-se perante a morte, e para o
filósofo, que discorre e investiga em ca<strong>da</strong> momento <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, um instante não é diferente do<br />
outro. Quando muito, encontrando-se numa condição como a que está a viver neste momento, isto<br />
é, com a consciência de estar a viver o último instante <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, Sócrates discorrerá melhor e<br />
mais agra<strong>da</strong>velmente do que no passado. Exactamente como os cisnes que, quando se apercebem de<br />
que estão para morrer, cantam mais e melhor que no passado. Pelo contrário, são os homens<br />
comuns que, precisamente por causa do seu medo <strong>da</strong> morte, dizem que os cisnes cantam pela dor e<br />
pelo sofrimento. Portanto Sócrates está pronto para o seu “canto do cisne”. As páginas que se<br />
seguem, praticamente até ao fim do diálogo, constituem a delineação de uma teoria <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> alma to<strong>da</strong> inseri<strong>da</strong> num horizonte puramente ético. Por um lado, aqui a lógica reduz-se a<br />
tautologia, e “alma” acaba por tornar-se sinónima de vi<strong>da</strong>. O que realmente é imortal, então, é a<br />
vi<strong>da</strong> e dizer que “a alma do homem” é imortal, reduz-se a dizer que ele, como indivíduo, vive<br />
enquanto vive; depois a vi<strong>da</strong>, isto é, a alma, em si imortal, passará para outros. Por outro lado,<br />
reduz-se a mito: um belo mito que só a imaginação e a fantasia do génio platónico podiam narrar-<br />
nos. E o mito tem apenas um sentido ético, não é outra coisa senão o convite a cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> nossa alma<br />
para que ela seja regra<strong>da</strong> e sábia; numa palavra, para que nesta vi<strong>da</strong> se cultive a filosofia e se tenha<br />
a coragem de o fazer. Portanto, há também uma necessi<strong>da</strong>de que o mito, junto com o discurso,<br />
complete a persuasão do homem para que este viva bem, isto é, cultive a virtude e o conhecimento.<br />
E quando mito e logos estão de acordo, então o seu sentido é um só, e diz respeito exclusivamente a<br />
esta vi<strong>da</strong> que o homem vive na terra. Platão di-lo de maneira explícita, a meio dos mitos que conta:<br />
a ver<strong>da</strong>deira “purificação” <strong>da</strong> alma, ou melhor, a purificação absolutamente suficiente, não é a que<br />
se alcança depois <strong>da</strong> morte, mas aquela que se realiza pela filosofia, e é necessário «fazer tudo para<br />
participar <strong>da</strong> virtude e <strong>da</strong> inteligência nesta vi<strong>da</strong>». Então, segundo o mito, a alma é imortal porque<br />
vai para o Hades; segundo o logos, a alma é imortal só durante aquele tempo, mais ou menos longo,<br />
que ca<strong>da</strong> homem quis e soube dedicar à inteligência <strong>da</strong>s coisas e ao bem agir.<br />
Para <strong>da</strong>r um exemplo relativo aos dias de hoje: perante o medo <strong>da</strong> morte que também hoje se<br />
manifesta na desenfrea<strong>da</strong> busca de divertimento e de evasão, que não são outra coisa senão uma<br />
tentativa de se esquecer de si mesmo; perante este medo <strong>da</strong> morte que se manifesta nos mil discursos<br />
consoladores que construímos, em boa ou má fé, para o exorcizar; perante o espectáculo quotidiano<br />
de homens que provocam com extrema facili<strong>da</strong>de a morte de outros por banais interesses<br />
individuais, colectivos ou estatais: ain<strong>da</strong> tem sentido o discurso platónico sobre a morte, que outra<br />
coisa não é senão um convite a bem viver, com virtude e inteligência, como homens, como género<br />
humano, esta única vi<strong>da</strong> concedi<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> indivíduo?<br />
3) O amor. A imortali<strong>da</strong>de, portanto, pode ser conquista<strong>da</strong> pelo homem com conhecimento e<br />
recta acção, só no tempo <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> mortal. Esta perspectiva transparece também em algumas
elíssimas páginas de outro diálogo, o Banquete. Nele, ao conhecimento se acrescenta o amor,<br />
como o dissera Empédocles. Um e o outro são indispensáveis para a imortali<strong>da</strong>de humana. Como se<br />
sabe, o Banquete é o diálogo que Platão dedica explicitamente ao elogio do amor, ou melhor, aos<br />
diversos elogios do amor, pronunciados pelas várias personagens que participam do banquete. Entre<br />
eles, o diálogo entre Sócrates e Diotima, sacerdotisa de Mantineia, desempenha um papel central.<br />
Na sua estrutura, as páginas 207-209 são muito importantes e são as que nos interessam. Trata-se <strong>da</strong><br />
“causa” do amor e encontramo-nos perante algumas <strong>da</strong>s mais belas páginas de Platão, as quais, só<br />
por si, bastariam para destruir a imagem (ain<strong>da</strong> hoje dura de morrer) de um Platão metafísico e<br />
defensor <strong>da</strong> “contemplação”, ou <strong>da</strong> fuga do mundo do devir, etc. Pelo contrário, dessas páginas<br />
aparece a imagem de um Platão não só grande pensador dialéctico, mas também defensor de uma<br />
concepção do saber como contínua e infinita busca e aquisição de conhecimentos sempre novos e<br />
que se renovam sempre.<br />
Vejamos: qual é a causa deste amor e desejo? Há uma “atitude” de todos os animais, uma<br />
sua “disposição amorosa” para o acasalamento e criação <strong>da</strong> prole, e esta atitude não deriva de uma<br />
disposição racional. Qual é então a causa desta “atitude”? Ela reside precisamente no facto de que a<br />
natureza mortal procura, o mais possível, ser sempre, isto é, ser imortal. E pode sê-lo só com a<br />
geração, porque com ela deixa outro ser novo no lugar do velho. E aqui cai por terra uma<br />
observação importante a propósito <strong>da</strong> conexão dialéctica realiza<strong>da</strong> pela linguagem, pelos “nomes”<br />
que usamos: a conexão entre idêntico e diverso e, por conseguinte, entre morte e vi<strong>da</strong>. De facto, de<br />
ca<strong>da</strong> ser vivo, diz-se que “vive” e que “é o mesmo”. E dizer que um homem é sempre a mesma<br />
pessoa, desde criança até velho, serve-nos para identificar aquele homem e distingui-lo, entre outras<br />
coisas, dos outros homens com o “nome” que lhe é próprio. Esta operação de “identificação”,<br />
literalmente falando, isto é, a de considerar sempre idêntico um homem que é sempre diferente, é<br />
indispensável nos nossos discursos, para podermos referir-nos a ele. Mas esta é precisamente um<br />
fingimento linguístico, embora necessário. Diz-se que é o mesmo, diz-se que é sempre igual, quando,<br />
na reali<strong>da</strong>de, aquele homem nunca tem em si as mesmas coisas, aliás torna-se sempre novo. Não só;<br />
a sua vi<strong>da</strong>, o seu estar vivo, é tal justamente porque ele vai morrendo continuamente em todo o seu<br />
corpo. E isto não acontece só relativamente ao corpo, mas sim no que diz respeito à alma: os hábitos,<br />
as opiniões, os desejos, os prazeres, as dores, os temores nunca permanecem idênticos, nunca são os<br />
mesmos, uns nascendo e outros desaparecendo. A identi<strong>da</strong>de, portanto, de um homem é <strong>da</strong><strong>da</strong><br />
precisamente pelo seu próprio modo de ser sempre diferente.<br />
Ain<strong>da</strong> mais surpreendente, continua Platão, é o facto de que também as nossas experiências<br />
intelectuais, os nossos conhecimentos, o nosso “saber”, nunca são os mesmos, mas passam também<br />
pela situação do nosso ser vivos morrendo, isto é, renovando-nos. Com efeito, se a vi<strong>da</strong> é um
contínuo morrer e renascer, uma renovação, também o nosso saber, que faz parte <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong>, que<br />
é vi<strong>da</strong>, para poder estar vivo, deve renovar-se continuamente, ou seja, perecer e renascer. Tal como<br />
um homem, para se aproximar <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de, deve, segundo o corpo, deixar um ser novo no lugar<br />
do velho, também segundo a alma, deveria deixar um pensamento novo no lugar do velho. De facto,<br />
diz Platão que também os conhecimentos nascem e morrem, razão pela qual os homens nunca são<br />
os mesmos relativamente ao seu saber. E ca<strong>da</strong> conhecimento apresenta esta mesma característica. O<br />
que chamamos ‘estu<strong>da</strong>r’, isto é, cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> própria alma, cui<strong>da</strong>r dos próprios conhecimentos, é um<br />
processo dinâmico e nunca uma aquisição definitiva, que se deu uma só vez e permanece sempre<br />
idêntica em nós. “Cui<strong>da</strong>r dos nossos conhecimentos” significa então possuir qualquer coisa no seu<br />
contínuo devir, razão pela qual o nosso saber é tal só e somente se se renovar continuamente. Saber<br />
realmente algo é tal só se não for um saber fossilizado, só se nunca for idêntico, envelhecido, só se<br />
se rejuvenescer e se transformar. Só desta forma tudo o que é mortal se conserva, se salva: não com<br />
o ser sempre absolutamente idêntico, como o divino, mas com o deixar no seu lugar, no lugar do<br />
que envelhece e se vai embora, outro ser jovem tal como ele era. É com este subterfúgio que o que é<br />
mortal participa <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de.<br />
Portanto, o homem não é imortal, como os deuses, ou como os elementos sempre idênticos<br />
que compõem os aspectos sempre diferentes <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, mas possui “subterfúgios” para poder<br />
alcançar uma sua forma própria de imortali<strong>da</strong>de. Um desses, vimos, é o conhecimento, com o qual<br />
ele, na sua vi<strong>da</strong> mortal, ao renovar aspectos sempre diversos do saber, participa <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de de<br />
um saber que está sempre para além de todos os nascimentos e mortes dos homens que o alcançam.<br />
O outro subterfúgio é precisamente o amor, que é o fim mais alto <strong>da</strong> activi<strong>da</strong>de humana. Estamos<br />
nas páginas 209-212 do diálogo, que medem as etapas de uma ascensão intelectual e cognoscitiva<br />
que se pode <strong>da</strong>r só se se for tomado pelo eros. Também aqui por demasiado tempo se viu uma<br />
ascensão à qual se fazia corresponder de forma muito simplista uma ascese, um processo que<br />
culminava numa espécie de visão estática e inefável <strong>da</strong> ideia. Mas não é assim: esta ascensão tem<br />
para Platão um valor cognoscitivo e ético que na<strong>da</strong> tem a ver com a “fuga do mundo”. As suas<br />
etapas são o amor pela beleza dos corpos, depois pela beleza <strong>da</strong>s almas, depois pela beleza <strong>da</strong>s<br />
acções e <strong>da</strong>s normas, e em segui<strong>da</strong> pela beleza <strong>da</strong>s ciências. Assim, fixando o olhar no belo já tão<br />
amplo e deixando de se afeiçoar à beleza que existe num único objecto como um servo, deixa de ser<br />
um homem trivial e mesquinho. Mas virando-se para o amplo mar do belo e contemplando-o, ele<br />
concebe muitos, belos e excelentes discursos e pensamentos num infinito amor pelo saber.<br />
Portanto o amor, por quem quer que se manifeste, é sempre amor pelo belo, pela beleza.<br />
Passar do amor por um corpo belo ao amor pelos corpos belos e pelas almas belas é uma aquisição<br />
importante neste processo de educação e de enriquecimento <strong>da</strong> nossa sensibili<strong>da</strong>de; significa
econhecer que o que amamos é precisamente esta “expansão” do nosso ser, do nosso modo de ser;<br />
uma expansão que tem o nome justamente de beleza. Este algo que chamamos “belo” aparece-nos<br />
sempre mais como algo que se mostra não limita<strong>da</strong>mente, mas que é perceptível numa plurali<strong>da</strong>de<br />
de coisas, de aspectos, que é precisamente o que no-los torna desejáveis, objectos do nosso desejo<br />
amoroso. E tudo isto torna-nos melhores, torna melhor quem ama e quem é amado, empenhando-os<br />
na construção contínua de novos “belos discursos”. Quando se chega a este nível, alcança-se a<br />
primeira plena consciência do modo “amoroso” de agir no mundo.<br />
É a conquista de um maior fôlego “vital” que permite compreender e fazer mais: não nos<br />
esqueçamos que aqui Platão está a descrever precisamente as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que a tornam<br />
digna de ser vivi<strong>da</strong> para o homem.<br />
Parece-me evidente que Platão cria o horizonte <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de como uma liber<strong>da</strong>de que não<br />
separa, que não pode separar o agir do perceber. O homem que alcançou a capaci<strong>da</strong>de de olhar para<br />
dentro deste horizonte amplo, de fixar o olhar no que é belo neste sentido sempre mais amplo, é o<br />
homem que se libertou <strong>da</strong> escravidão, é o homem livre. Também aqui, o que se alarga sempre mais<br />
é o horizonte dos discursos que o homem é capaz de fazer: o homem servo é aquele cujo horizonte é<br />
limitado, o homem livre é aquele vê longe; o homem servo é o que faz pequenos discursos, aliás o<br />
seu pequeno e limitado discurso, o homem livre é aquele que é capaz de fazer muitos, belos e<br />
excelentes discursos, que é capaz de conceber os próprios pensamentos no quadro de uma filosofia<br />
não mesquinha, mas de horizontes amplos.<br />
A presença do amor neste processo de aprendizagem, de ampliação dos nossos conhecimentos<br />
e dos nossos saberes, é fun<strong>da</strong>mental para Platão. Ela significa não somente a aquisição de uma série<br />
sempre mais ampla de noções, mais ou menos especializa<strong>da</strong>s, mas a capaci<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r um sentido<br />
novo às coisas que sabemos e que fazemos. E o sentido novo não é só conseguir ver que há beleza e<br />
maravilha na plurali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s acções e de pensamentos, mas é também e principalmente conseguir<br />
adquirir esta mesma capaci<strong>da</strong>de. Portanto, a beleza não reside nas coisas, mas na capaci<strong>da</strong>de de a<br />
ver nas coisas. Reconhecê-la nas coisas que nascem e perecem, que mu<strong>da</strong>m, significa poder<br />
reconhecê-la sempre, enquanto ser que é sempre igual em algo que não o é: o igual e o diverso são<br />
sempre necessários.<br />
Aqui, no Banquete, a ideia do belo é a condição que nos consente desfrutar do amplo mar<br />
<strong>da</strong>s coisas belas, não de as transcender ou renegar. Alcançar esta “ideia do belo” é um acto de amor,<br />
tal como educar outrem para esta ideia é um acto de amor. Este é o fim de Eros e do que os homens<br />
fazem em nome do amor. E este fim não é uma mera contemplação estática, uma “visão” que<br />
determina a afasia: não tem absolutamente na<strong>da</strong> de místico. Pelo contrário, é o início de uma nova<br />
activi<strong>da</strong>de, contínua e infinita, e que tem uma forte conotação ética. As coisas, e o homem também,
nascem e morrem. Reconhecer o belo que nasce e morre em coisas sempre diversas, e portanto o<br />
belo que não nasce e não morre, ser educados no seu reconhecimento, saber reconhecê-lo, é o acto<br />
de amor mais elevado a que o homem possa aspirar. Quando consegue, está em contacto com a<br />
ver<strong>da</strong>de (212 A), e só então consegue “procriar” a ver<strong>da</strong>deira excelência. Virtude e ver<strong>da</strong>de são<br />
portanto sinais não de uma fuga do mundo, mas de um novo modo de viver no mundo, que é pensar<br />
e agir com beleza e com amor, com excelência e ver<strong>da</strong>de. E esta é também a imortali<strong>da</strong>de mortal<br />
dos homens.<br />
Para <strong>da</strong>r um exemplo relativo aos dias de hoje: perante o viver o amor como posse egoísta ou<br />
simples e superficial gratificação; perante o viver o amor como limitação nos horizontes de uma vi<strong>da</strong><br />
feita de pequenos discursos; numa palavra, perante o viver o amor como servos, que significa<br />
fechamento para o novo, incapaci<strong>da</strong>de de se renovar: ain<strong>da</strong> tem sentido a perspectiva platónica do<br />
amor como tensão e abertura para o amplo mar <strong>da</strong>s coisas belas, como conquista <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de<br />
ver a beleza <strong>da</strong>s coisas, dos corpos, <strong>da</strong>s almas, dos conhecimentos, como desejo de se ser belos e de<br />
fazer coisas belas, juntamente com a ama<strong>da</strong>, juntamente com todos os outros homens?<br />
tradução de Maria <strong>da</strong> Graça Gomes de Pina