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O masoquismo e a relação com o feminino* - Escola Letra Freudiana

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O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong><br />

<strong>com</strong> o <strong>feminino*</strong><br />

TheodorReik<br />

Tradução: Renato Carvalho<br />

Freud afirma que o <strong>masoquismo</strong> tem uma íntima <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino. Na<br />

conduta do masoquista masculino se encontram, certamente, numerosos traços<br />

que justificam esta asserção. A passividade na conduta sexual é o fator mais<br />

visível: mas há outros ainda mais importantes. As fantasias do gpsoquista giram em<br />

torno do tema de ser sexualmente dominado, de ser engravidado. Isto pode parecer<br />

grotesco, mas a psicanálise demonstra que a inadequação anatômica desempenha um<br />

papel considerável nas fantasias masoquistas.<br />

Sem dúvida, há outras características que não confirmam que a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o<br />

feminino seja tão intensa <strong>com</strong>o supõe Freud. Esta <strong>relação</strong> de modo algum é tão simples<br />

<strong>com</strong>o no homossexual passivo. A passividade pode não ser facilmente separável da<br />

sexualidade feminina, mas o fato de experimentar dor, ser golpeado e agrilhoado, ou<br />

a vergonha e a humilhação, não formam parte, certamente, das finalidades sexuais da<br />

mulher normal. Quando tais idéias aparecem visivelmente na superfície psicológica e<br />

se convertem em condições da satisfação sexual, deve chamar-se masoquista à mulher<br />

em questão.<br />

Ainda que se incline a supor que estas características estão incluídas, de algum<br />

modo, no quadro da sexualidade feminina normal, em nenhum caso dominam a cena,<br />

<strong>com</strong>o ocorre nos indivíduos masoquistas. E tampouco se coaduna <strong>com</strong> a conduta<br />

feminina habitual a preferência da zona anal <strong>com</strong>o centro erógeno. Dito de outro modo:<br />

o <strong>masoquismo</strong>, olhado de certo ângulo, pode ser a expressão de uma inclinação<br />

feminina no homem, mas a conduta feminina em si não constitui, certamente, a<br />

expressão de sentimentos masoquistas.<br />

Outra vez experimentamos aqui, <strong>com</strong>o tão freqüentemente ocorre na observação<br />

dos fenômenos do <strong>masoquismo</strong>, uma sensação de absurdo. O masoquista que desempenha<br />

o papel feminino em suas fantasias e cenas, parece ao mesmo tempo zombar de<br />

si próprio <strong>com</strong> a deformada apresentação de suas características. O que mostra é menos<br />

um quadro da feminilidade do que uma paródia ou caricatura. Esta mofa é freqüente<br />

nos adolescentes, que a empregam conscientemente. Um enfermo recordava uma<br />

atitude similar de quando era menino. O que ele gostava especialmente era de<br />

• El <strong>masoquismo</strong> en ei hombre moderno. Editorial Nova, Buenos Aires, 1949, cap. XV.<br />

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O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

pronunciar certas palavras, a<strong>com</strong>panhando-as de gestos e movimentos particulares do<br />

corpo. Dizia esta frase romântica: "Este querido menino, tão impetuoso!" Mais tarde<br />

o enfermo descobriu, por si própio, a origem desta exclamação. Provinha de um dos<br />

livros de uma irmã adolescente. Neste livro as palavras eram pronunciadas por uma<br />

menina que pensava ternamente em um homem ausente. Ao fazer a exclamação<br />

virava-se para outro lado, tímida e ruborizada. O menino havia lido esta passagem do<br />

livr€f e mais tarde reproduzia a cena diante de um espelho, repetindo a frase em voz<br />

alta e a<strong>com</strong>panhando-a de gestos expressivos. Imaginava o esvoaçar da saia da menina<br />

ao virar-se recatadunente.<br />

Eis aqui, pois, mna nova cena frente ao espelho: Poderíamos afirmar justificadamente<br />

que o menino, que mais tarde se converteu em masoquista, revelava uma<br />

tendência feminina em sua atitude zombeteira? Certamente não. Nos atrevemos a<br />

conjeturar o motivo original deste jogo. O menino deve ter desejado que uma jovem<br />

formosa se <strong>com</strong>portasse deste modo ao pensar nele. Reconhecemos assim uma fantasia<br />

encenada em uma representação de dois papéis. Só mais tarde, depois que algo mudou<br />

na sua <strong>relação</strong> <strong>com</strong> as meninas, a cena adquiriu o matiz de farsa. A fantasia, que<br />

revelava primitivamente alguns dos desejos do menino, transformou-se logo em<br />

expressão de impulsos zombeteiros contra as meninas da idade da sua irmã. Sua<br />

timidez para aproximar-se do outro sexo torna explicável que, finalmente, adote a<br />

atitude da raposa da fábula -que recusa as uvas que não pode alcançar por serem ácidas<br />

demais.<br />

A conduta do masoquista reflete traços femininos, mas não sem desvirtuá-los; o<br />

feminino não é tanto representado quanto é desfigurado; não é tanto caracterizado<br />

quanto é deformado.<br />

A interpretação do significado original, secreto, da cena diante do espelho trouxenos<br />

algo mais acerca do elemento feminino do <strong>masoquismo</strong>, embora não o suficiente.<br />

Talvez ajude-nos aqui uma <strong>com</strong>paração: em certa oportunidade tive ocasião de<br />

observar um professor de dança rechonchudo, vivaz e calvo, enquanto dava lições a<br />

algumas senhorítas jovens. Depois de ensinar a suas discípulas os passos e figuras dá<br />

nova dança, tratava de dançar <strong>com</strong> cada uma delas. Naturalmente, as conduzia. Mas<br />

ocasionalmente, quando uma das moças se mostrava demasiado desajeitada, adotava<br />

o papel feminino para servir-lhe de modelo. Portanto, imitava intencionalmente o<br />

porte, passo e atitude que devia ter a <strong>com</strong>panheira de dança.<br />

Era um espetáculo bastante pitoresco, por certo, ver o corpulento e atarracado<br />

professor de dança retroceder uns passos, alçar <strong>com</strong> delicadeza as abas de seu paletó<br />

<strong>com</strong>o se fossem a cauda de um traje de noite, e avançar logo <strong>com</strong> passos miúdos em<br />

direção à sua <strong>com</strong>panheira. O homem estava tremendamente sério; evidentemente<br />

sentia-se fatigado, mas procurava manter fixo no rosto o sorriso estereotipado de seu<br />

papel, e levava a cabo seu trabalho, literalmente, <strong>com</strong> o suor de sua fronte. Como se<br />

explica que esta forçada representação produzisse uma impressão muito singular sobre<br />

a maior parte dos espectadores? Em grande parte pelo contraste de sua figura <strong>com</strong> a<br />

de uma mulher, mas depois de algumas repetições da mesma cena as pessoas torna-<br />

LETRA FREUDIANA - Ano XI - n B 10/11/12 157


O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

vam-se sérias, inclusive tristes. Resultava óbvio que só por necessidade o homem<br />

representava papel tão tragicômico.<br />

O processo da fantasia masoquista deve ser aproximadamente o contrário: a cena<br />

surge da necessidade sexual. É primitivamente séria e leva todos os signos da frustração<br />

e da derrota, e só mais tarde adquire a nota de farsa e de paródia. A cena do rapaz diante<br />

do espelho e a atitude do professor de dança têm um fator <strong>com</strong>um que os faz<br />

<strong>com</strong>paráveis às fantasias e cenas masoquistas: a meta original que <strong>com</strong> ela se persJfue.<br />

A natureza da representação é determinada pelo inequívoco desejo de que o objeto<br />

feminino imite essas ações. O jovem da cena que <strong>com</strong>entamos angia que uma jovem<br />

confesse ruborizada seu carinho por ele, e o professor de dança quer que as discípulas<br />

imitem suas posturas e passos.<br />

Para expressarmos de forma mais direta: o masoquista se conduz de um modo<br />

feminino ao indicar à mulher a atitude em que deseja vê-la; o que faz tem o caráter de<br />

uma representação; é uma espécie de cena. Esta cena parece algo assim <strong>com</strong>o uma<br />

paródia para os que a observam de fora. Digo "parece" porque nenhum psicanalista ou<br />

psicólogo examinou, até agora, este elemento de paródia. O que ocorre na verdade é<br />

que um homem reproduz a conduta sexual de uma mulher, não obstante, o ponto<br />

principal, tanto na fantasia <strong>com</strong>o na situação perversa, é que o homem atua para ela,<br />

pois em geral há uma mulher que presencia sua representação. Faz-se uma troca de<br />

papéis. Se a situaçãoutem efetivamente um sentido oculto em <strong>relação</strong> à mulher, este só<br />

pode consistir em oferecer uma representação que traduza o seguinte pensamento: o<br />

que me fazes quero fazer a ti; ou bem: quisera ver-te neste papel passivo e de<br />

sofrimento.<br />

Pelo que sei, este sentido da cena e fantasia masoquista não foi <strong>com</strong>preendido até<br />

agora. Concorda plenamente <strong>com</strong> os processos descritos acima, de inversão e demonstração,<br />

mas seu significado vai muito além. A fantasia e prática masoquista é de índole<br />

sádica, embora este sadismo se expresse por inversão, se represente pela situação<br />

oposta. Creio haver demonstrado suficientemente este ponto no que se refere ao<br />

<strong>masoquismo</strong> sexual. Sem dúvida, mesmo onde o <strong>masoquismo</strong> deixa de ser um<br />

fenômeno definitivamente sexual e adota, ao contrário, um caráter social, sua natureza<br />

permanece em essência a mesma.<br />

A suposição de que o <strong>masoquismo</strong> mostra só a fachada, que não é mais do que uma<br />

aparência, seria errônea. Constitui, principalmente, a reflexão de um processo que no<br />

interior se verifica em direção contrária. Empregando uma expressão de Goethe,<br />

denominei a este procedimento, em outro livro*, uma "reflexão recorrente". Contem-<br />

* Surprise and lhepsychoanalist (Londres e Nova York, 1937). Goethe tomou esta designação da origem dos<br />

entóptioos. O poeta escreveu acerca de algumas passagens críticas do seu Fausto: "Posto que temos tantas<br />

experiências que não podemos expressar e <strong>com</strong>unicar simplesmente, adotei o método de revelar seu sentido<br />

oculto aos leitores atentos por meio de imagens confrontadas e que estão, por assim dizer, refletidas uma na<br />

outra". É evidente que este método de elucidação recíproca deve ser convenientemente modificado para sua<br />

aplicação no campo da psicologia.<br />

158 LETRA FREUDIANA - Ano XI - n» HV11/12


O masoquistno e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

plando os fenômenos do <strong>masoquismo</strong> social desde este ângulo, <strong>com</strong>prova-se também<br />

aqui a apresentação das tendências primárias através de inversões. A ilimitada submissão<br />

expressa uma rebeldia inconsciente; a renúncia, a obstinação, o servilismo, o<br />

desafio, a auto-humilhação e a ignorância.<br />

Mas, <strong>com</strong>o nasce este caráter inconsciente burlão ou de paródia que, secreta,<br />

embora distintamente, adota a fantasia ou prática masoquista? Este caráter se origina<br />

em drffersas fontes. Aqui quero limitar-me a assinalar o aspecto histórico, que se revela<br />

ao observador psicanalítico simplesmente observando os fenômenos durante o tempo<br />

suficiente e <strong>com</strong> baftpnte atenção. Este aspecto não o explica todo, mas esclarece um<br />

bom número de traços grotescos e burlões de algumas práticas e idéias masoquistas.<br />

Estas cenas e fantasias não são somente inversões dè idéias sádicas, mas também<br />

uma reanimação e reprodução das figuras infantis em <strong>relação</strong> às atividades sexuais dos<br />

adultos. Retorna inconscientemente às idéias infantis sobre o curso da <strong>relação</strong> sexual.<br />

A grotesca mescla de verdade e erro destas teorias sexuais infantis reaparece aqui na<br />

teoria e na prática. O caráter infantil, a que se apega inconscientemente o homem<br />

adulto, se traduz miA vezes em alguns detalhes destas fantasias e ações. Exemplo<br />

disto é a parte importante que desempenham neles os excrementos e a urina, assim<br />

<strong>com</strong>o a falta de vergonha ou de asco que só aparecem tardiamente na criança, <strong>com</strong>o<br />

conseqüência da educação. Assim, o elemento da paródia se origina em idéias infantis<br />

já esquecidas há muito tempo, <strong>com</strong>o por exemplo a de que a mulher é tratada <strong>com</strong><br />

crueldade pelo homem, que este urina ou defeca sobre ela, etc.<br />

Em todas estas idéias, invertidas <strong>com</strong>o aparecem na prática masoquista, existe a<br />

vibração de uma nota agressiva e violenta. A mulher aparece <strong>com</strong>o um ser dominado,<br />

sofredor, submetido à vontade do homem.<br />

Quero provar esta suposição <strong>com</strong> um só exemplo significativo que trago à memória<br />

do leitor. Referi-me a ele ao descrever o <strong>masoquismo</strong> feminino na discussão da teoria<br />

de Freud. Trata-se do enfermo cuja satisfação sexual consistia em colocar-se em certa<br />

posição vestindo, para a execução desta cena, um par de calças negras. Discuti<br />

previamente a origem psíquica de suas condições específicas para o prazer, ou seja a<br />

inversão de uma cena infantil. O menino havia irrompido no banheiro de sua mãe no<br />

momento em que esta, <strong>com</strong> as pernas cobertas de lama, se inclinava para levantar algo<br />

do solo. À vista das nádegas de sua mãe, o menino sentiu um impulso de dar-lhe uma<br />

palmada. Isto eqüivaleria a uma ação sádica, manifestação de um precoce impulso<br />

agressivo e sensual. Além disso, o menino se identificava assim <strong>com</strong> seu pai, que<br />

costumava fazer a mesma carícia em sua mãe ou na criada.<br />

Nos encontramos, pois, diante de uma atitude definidamente masculina no mesmo<br />

menino que mais tarde, na cena masoquista, adota outra inteiramente passiva e<br />

feminina. Nesta cena desempenha o papel feminino, e em lugar de bater faz <strong>com</strong> que<br />

batam nele. Mas estaria já esclarecido o significado da cena perversa? Não, é preciso<br />

aprofundar algo mais. O que faz o enfermo é desempenhar o papel que, segundo seus<br />

desejos e idéias, a mulher deveria representar. Ele o representa em lugar dela. É aqui<br />

que devemos buscar a conexão <strong>com</strong>o feminino, e a inversão nos resulta <strong>com</strong>preensível.<br />

LETRA FREUDIANA - Ano XI - a» 10/11/12 159


O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

O caráter primitivo da representação é um convite à dança. Por outro lado, a origem<br />

infantil da idéia masoquista não pode ser posta em dúvida.<br />

É este o papel que a mulher anseia para si mesma? A resposta é um decisivo "não..."<br />

seguido, sem dúvida, por estranho que isso pareça, de um tímido "sim". Quer dizer:<br />

segundo as reações que o menino podia observar nas mulheres de sua casa, e era<br />

permitido supor que as mulheres, em geral, não se opunham de todo a semelhante<br />

tratamento. E se é que se opunham, sua resistência, muitas vezes, não era de kxttséria<br />

e era a<strong>com</strong>panhada de risinhos ou de riso franco. Mas ainda que se admita que este<br />

tipo de carícias não seja muito desagradável para as mulheres^ indiscutível que a<br />

imaginação do menino exagerava demasiadamente as coisas. Tomava uma introdução<br />

pela ação <strong>com</strong>pleta. Em sua fantasia a pancada era o elemento essencial e verdadeiramente<br />

prazeiroso do misterioso procedimento sexual dos adultos. Mais tarde, depois<br />

de haver-se tornado masoquista, o mesmo golpe, aplicado em circunstâncias especiais,<br />

bastava para provocar o orgasmo.<br />

O erro está em supor que a mulher tira prazer dessa pancada, e que este prazer é<br />

suficiente para produzir satisfação plena. Esta crença era res^fcdo das concepções<br />

infantis sádicas e antes concordava <strong>com</strong> os próprios desejos violentos do menino do<br />

que <strong>com</strong> os da mulher. A forma feminina de satisfação sexual não coincidia <strong>com</strong> o fato<br />

de apanhar, embora possa existir alguns pontos de contato entre ambos. A origem<br />

sádica desta cena ficou demonstrada plenamente durante a psicanálise, quando foi<br />

substituída, mais adiante, por outra cruamente sádica. A inversão desapareceu. Quando<br />

o enfermo agora percorria as ruas em passeios noturnos, imaginava-se <strong>com</strong>o um<br />

assassino sexual, à espreita de suas vítimas femininas. Quando saía para passear <strong>com</strong><br />

uma garota, sentia às vezes o impulso de converter um movimento de carinho em outro<br />

brutalmente ofensivo. Quando lhe rodeava o pescoço <strong>com</strong> os braços, perguntava-se se<br />

em realidade não queria estrangulá-la.<br />

O masoquista abriga secreta e inconscientemente a idéia de que a mulher consideraria<br />

agradável o tratamento a que ele se submete; que inclusive o angustia. O pouco<br />

de verdade que jaz no fundo desta idéia é tremenda e grotescamente exagerado. As<br />

mulheres não desejam ser castigadas, insultadas, atormentadas ou flageladas, mas sim<br />

querem ser amadas. Podem apreciar um pouco de audácia no momento apropriado e<br />

que não se tome muito a sério sua resistência; o que seria uma prova de energia<br />

masculina e do desejo do homem de possuí-la. Sem dúvida, a quantidade aceitável de<br />

rudeza masculina tem seus limites.<br />

O erro psicológico do masoquista, se pudéssemos chamá-lo assim, consiste em crer<br />

que a satisfação sexual feminina implica um disfarce do sofrimento e da vergonha.<br />

Recordemos o enfermo que experimentava excitação sexual à vista de figuras medievais<br />

de mártires e se identificava <strong>com</strong> elas em suas fantasias. Pensava que certa figura<br />

de São Lourenço torturado não era "convincente", porque o rosto do santo tinha uma<br />

expressão tranqüila, suave, em lugar de um gesto estático em que a dor se mesclasse<br />

<strong>com</strong> o mais intenso prazer. Se o <strong>masoquismo</strong>, <strong>com</strong>o sustenta Freud, é a expressão do<br />

feminino, é certamente uma expressão deformada e caricatural. Como tal, tem sem<br />

160 LETRA FREUDIANA-Ano X]-n s 10/11/12


O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

dúvida o significado de uma representação: "isto é o que eu gostaria de fazer a uma<br />

mulher, e ela se <strong>com</strong>portaria então de tal e qual modo". É uma representação plástica<br />

de um desejo invertido. Qual é este desejo original? O que traduz esta frase: trate-as<br />

<strong>com</strong> dureza e faça <strong>com</strong> que elas gostem.<br />

Não quero senão indicar aqui que a fase de evolução intermediária, durante a qual<br />

o indivíduo desempenha desta maneira inconsciente os dois papéis, é seguida pelo<br />

masó^uismo pleno e franco. A fantasia inconsciente reveste tal importância para esta<br />

satisfação instintiva que a realidade <strong>com</strong>o tal é insuficiente, se não se apoia nela. E<br />

bem, na fantasia o masoquista não abandona seu caráter masculino, apesar de sua<br />

conduta aparentemente feminina.<br />

Outro traço corrente nestas cenas: o masoquista se imaginando <strong>com</strong>o um animal,<br />

submetido à vontade de sua dona, favorece também esta opinião. Muitas vezes imagina<br />

que é um cavalo de raça cavalgado por uma mulher.<br />

Os admiradores de Goethe recordarão o poema "O parque de Lily", onde o poeta<br />

se <strong>com</strong>para a um urso que é golpeado por sua amada e que se inclina diante dela, "até<br />

certo ponto, naturalmente". O poema conclui <strong>com</strong> o rogo aos deuses de que o liberem<br />

desta escuridão, seguido destas palavras: "sem dúvida, oxalá não me enviareis nenhuma<br />

ajuda; não de todo em vão posso todavia estirar meus ombros! Sinto, juro, que no<br />

entanto possuo alguma força". Em minha opinião, o contraste entre o poder e o fervor<br />

masculino de que o masoquista conserva consciência, e sua manifesta submissão e<br />

debilidade, contraste exagerado na fantasia, contribui consideravelmente para o seu<br />

prazer.<br />

A inconsciente <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o homem, dissimulada na cena <strong>com</strong> a figura da mulher,<br />

que aparece em primeiro plano, deve ser considerada <strong>com</strong>o outra expressão de<br />

feminilidade. Em um caso citado anteriormente era a idéia do homem, que ameaçava<br />

tornar-se consciente, à vista do manto de pele que pôs fim à perversão. Sempre que se<br />

mantenha recalcada, a fantasia constitui uma das condições importantes da satisfação<br />

masoquista. A pele, conhecida <strong>com</strong>o atributo da cena perversa desde Sacher-Masoch,<br />

as botas altas, o látego ou vara, todos estes são atributos reveladores. Na realidade, só<br />

são emprestados à mulher, pois pertencem ao equipamento do homem sádico, que<br />

permanece no fundo durante o curso da cena perversa. Desde este ponto de vista há<br />

uma transmutação da fantasia sexual passiva: "sou utilizado e espancado por meu pai".<br />

Esta transferência, <strong>com</strong>parável a uma transposição de uma escala maior a outra menor,<br />

fica excluída da consciência.<br />

Só se aceita esta idéia quando está suficientemente desfigurada e desligada da<br />

própria pessoa, de maneira que é impossível <strong>com</strong>preender seu verdadeiro significado.<br />

Um masoquista pensa, por exemplo, que as gravuras em que aparecem as alunas de<br />

um colégio de meninas no momento de serem espancadas por uma professora, nas<br />

nádegas desnudas, são extraordinariamente excitantes. Isto constitui uma transferência<br />

ao sexo oposto. A fantasia primária foi invertida, se lhe fez fazer uma rotação de 180<br />

graus. O enfermo só aceita a uma mulher <strong>com</strong>o pessoa ativa, e rechaçaria qualquer<br />

fantasia em que o castigo fosse levado a cabo por um homem.<br />

LETRA FREUDIANA -Ano XI -n» 10/11/12 161


Q <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

Mas porque e <strong>com</strong>o aparece o homem na cena masoquista? O que significa esta<br />

aparição, ainda que permaneça no fundo e na obscuridade? Adotemos por um momento<br />

o ponto de vista psicanalítico. O conteúdo da fantasia original era o seguinte: "sou<br />

amado e castigado por meu pai". Depois <strong>com</strong>eçamos a perguntar-nos por que razão<br />

nem o carinho, nem o amor do pai ou seu substituto feminino aparecem na cena do<br />

castigo, onde só se revelam sua severidade e crueldade. A resposta é a seguinte: tanto<br />

na cena quanto na fantasia, o erotismo homossexual coincide <strong>com</strong> a satisfação dos<br />

sentimentos inconscientes de culpa.<br />

Com quê estão ligados estes sentimentos de culpa? Com os desejos incestuosos do<br />

menino, que reconhece <strong>com</strong>o proibidos, e <strong>com</strong> os impulsos hostis que nascem da<br />

rivalidade <strong>com</strong> o outro homem, ou seja, primitivamente o pai. A cena masoquista seria<br />

assim a reação contra o castigo e a expiação dos impulsos instintivos da situação do<br />

Édipo. De modo que a fórmula "sou amado e castigado por meu pai" agregaria outra<br />

quase reversão, seria um substituto tardiamente transformado de uma fantasia mais<br />

antiga: "Quero possuir a mulher e matar o rival". A ordem de sucessão das mudanças<br />

é uma ordem histórica, correspondente a diferentes extratos psicológicos.<br />

Esta interpretação da conduta feminina do masoquista <strong>com</strong>o resultado de uma<br />

atitude carinhosa passiva em <strong>relação</strong> ao pai é respaldada por Freud e seus discípulos.<br />

Seu fundamento psicológico é inquestionável; mas existe também outro problema: o<br />

da valorização psíquica das diferentes motivações. É aqui, precisamente, onde me<br />

separo dos demais psicanalistas e <strong>com</strong>eço a caminhar por trilhas diferentes.<br />

O fator da secreta inclinação homossexual me parece menos importante do que o<br />

sentimento de culpa mesclado à satisfação. Para expressá-lo de outro modo: o castigo<br />

conseguido mediante a precipitação do desenlace, e que alivia o masoquista de sua<br />

ansiedade, é mais fundamental para ele do que o fato de ser amado. Não é tanto o<br />

carinho quanto a ansiedade que faz que o homem se ofereça inconscientemente <strong>com</strong>o<br />

objeto homossexual. A idéia grotesca "quero ser amado pelo meu pai <strong>com</strong>o uma<br />

mulher" não expressa unicamente uma disposição feminina, mas também o desdenhoso<br />

rechaço desta. Se há aqui amor por um homem, este amor zomba de si mesmo e não<br />

sabe até que ponto. "Que homem foi cortejado desta maneira?" Gostaríamos de<br />

perguntar, <strong>com</strong>o Ricardo III. Assim, pois, esta forte resistência corresponde a uma luta<br />

contra a idéia de ser amado e castigado pelo pai.<br />

A resistência se manifesta logo que a idéia em questão vai se aproximando da<br />

consciência, por exemplo, se em lugar de figuras imaginadas se adianta ao primeiro<br />

plano a própria pessoa de alguém em uma clara <strong>relação</strong> <strong>com</strong> outro homem. A certa<br />

altura do tratamento psicanalítico, o enfermo, cujas idéias de sacrifícios astecas<br />

mencionamos tantas vezes, resistia <strong>com</strong> todas suas forças à necessidade de <strong>com</strong>unicar<br />

certas idéias que acabava de associar durante a psicanálise. Aos meus repetidos<br />

pedidos, manifestou, por último, que preferia que eu o torturasse, ou ainda que o<br />

matasse, antes que revelasse a fantasia que acabava de elaborar. Sem dúvida, tive que<br />

admitir imediatamente que <strong>com</strong> esta mesma atitude havia deixado transparecer o<br />

conteúdo de seus pensamentos. Em sua fantasia havia <strong>com</strong>parado o diva em que estava<br />

162 LETRA FREUDIANA-Ano XI-n 9 10/11/12


O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o<br />

estendido durante a psicanálise <strong>com</strong> o altar dos sacrifícios. Viu-se <strong>com</strong>o o prisioneiro<br />

colocado ali na qualidade de vitima, e por último me identificou <strong>com</strong> o calvo sumo<br />

sacerdote que devia levar a cabo a execução. Que luxuosa e supérflua delicadeza de<br />

sentimentos, ocultar uma fantasia tão transparente!<br />

Não cabe aqui abrigar a menor dúvida <strong>com</strong> <strong>relação</strong> à existência e influxo da idéia<br />

homossexual passiva no <strong>masoquismo</strong>, mas, pode-se duvidar, e muito, que tenha uma<br />

importância fundamental. Esta idéia não aparece regularmente e nem sempre se reveste<br />

da mesma significação. Uma das fantasias do enfermo, que acabamos de mencionar,<br />

era a seguinte: rapazes jovens e vigorosos são postos à venda publicamente no mercado<br />

e adquiridos por senhoras de certa idade a quem devem servir sexualmente. Estas<br />

senhoras, necessitadas de amor, pagam somas consideráveis ao Estado por estes<br />

escravos, dos quais só uma pequena quantidade é entregue aos homens. Esta é a<br />

situação geral imaginada e a fantasia propriamente dita <strong>com</strong>eça na resistência de um<br />

novo escravo, que não quer satisfazer sua recente <strong>com</strong>pradora. Se a ereção não é<br />

suficiente para o ato sexual, os jovens são chicoteados pela mulher até que esta obtenha<br />

o resultado desejado.,Neste exemplo se manifestam <strong>com</strong> toda evidência as inversões<br />

e desfigurações do pensamento básico: as senhoras de certa idade são substitutos da<br />

mãe, a ordem de cumprir o ato sexual, inversões da respectiva proibição. É igualmente<br />

evidente que o castigo estava dirigido primitivamente contra a ereção e não contra o<br />

fracasso em produzi-la. Sem dúvida nenhuma, é a geração dos pais que reage, desde<br />

o fundo, <strong>com</strong> ameaças de castigo contra os impulsos incestuosos. Até agora nossa<br />

concepção concorda, em geral, <strong>com</strong> a de quase todos os psicanalistas; mas pensamos<br />

que se oculta, por trás da fachada, a atitude homossexual feminina em <strong>relação</strong> aos pais.<br />

Esta não se reveste, sem dúvida, de uma importância decisiva.<br />

Com isto nos achamos novamente na questão da valorização psíquica deste fator.<br />

A atitude erótica em <strong>relação</strong> ao homem tem menos importância que o castigo. Isto<br />

significa que se interpõe a visão ameaçadora do pai, ou seu substituto, dificultando o<br />

desejo pela mulher. Por último, resulta em parte admitida, em parte rechaçada, essa<br />

forma peculiarmente <strong>com</strong>binada da mulher <strong>com</strong> atributos masculinos. Em conseqüência,<br />

pois, esta figura do pai, apesar de permanecer invisível, penetra na esfera da cena<br />

masoquista, converte-se em uma parte da adivinhação, que deste modo encerra a<br />

pergunta: onde está o homem? O pai que, segundo se supõe, há de amar é menos<br />

importante do que o que há de castigar, castigar pelo desejo proibido e antecipando-se<br />

a sua realização que, paradoxalmente, torna possível este mesmo castigo. O que aflige<br />

ao masoquista não é senão isto: quer que se lhe aplique o castigo "por trás dele mesmo",<br />

<strong>com</strong>o se expressava um perverso que obtinha seu prazer quando o golpeavam no<br />

traseiro. O castigo deve aplicar-se de tal modo que permita alcançar o prazer proibido.<br />

Admitindo isto, designa um lugar secundário, ou historicamente mais recente, à<br />

satisfação do sentimento de culpa inconsciente. O elemento principal não é o castigo,<br />

mas o logro da finalidade pulsional. Só que o castigo é o único caminho que conduz<br />

ali.<br />

A situação psicológica é muito <strong>com</strong>plicada, e simplificá-la eqüivaleria a uma fraude<br />

intelectual. Na confusão que ameaça nos prender nesta situação emaranhada cujos<br />

LETRA FREUDIANA -Ano XI -a s 10/11/12 163


O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

deslocamentos e inversões a tornam tão difícil de <strong>com</strong>preender, brilha uma luz, <strong>com</strong>o<br />

se nos chegasse de um farol distante para indicar-nos o caminho. É o conteúdo essencial<br />

da fantasia e cena masoquista em que uma mulher golpeia ou mortifica um homem.<br />

Daqui poderia nascer uma espécie de tradução do pensamento inconsciente para a<br />

linguagem da consciência: "Se devo ser golpeado, humilhado, castigado, que seja ao<br />

menos por uma mulher". A idéia do castigo é admitida, mesmo aceita <strong>com</strong> agrado, mas<br />

sob a condição de que a ponha em prática uma mulher, não um homem. Este permanece<br />

excluído, ao menos, da superfície do pensamento consciente, e sua mera aparição é<br />

suficiente para que desapareça a excitação sexual.<br />

O enfermo tantas vezes mencionado tinha um ciclo de fantasias em que virgens<br />

formosas acariciavam os órgãos genitais de um prisioneiro algemado até que por fim,<br />

contra sua vontade, se produzia a ejaculação. Esta satisfação "apesar de tudo" se<br />

produzia na fantasia "sincronizada" de masturbação. Uma vez surgiu esta idéia no<br />

curso da fantasia: "E se a mão acariciadora fosse de um homem...!" O pensamento foi<br />

tão perturbador que toda a excitação se desvaneceu. O masoquista se aferra à <strong>relação</strong><br />

<strong>com</strong> a mulher, o antigo objeto é conservado. Poderíamos inctasive descobrir que o<br />

antigo fim perseguido não deixa de estar presente, ainda que invertido e em último<br />

plano. Sem dúvida alguma, a mulher que castiga substitui o pai. Assumiu o poder<br />

executivo, mas continua sendo sem dúvida, o verdadeiro objeto dos desejos, objeto<br />

pelo qual se suportam alegremente, inclusive <strong>com</strong> prazer, tanto sofrimento e humilhação.<br />

Não é a dor o objeto perseguido, mas sim a subseqüente satisfação sexual. Por<br />

último, o castigo não só produz uma reação antecipada por uma ação proibida, mas<br />

além disso produz o prazer.<br />

Os masoquistas que põe em prática sua perversão se caracterizam também por uma<br />

atitude similar em <strong>relação</strong> às mulheres. O masoquista, <strong>com</strong>o ninguém parece ter<br />

reparado até o presente, é hiper-idealista ou ainda um romântico. O sofrimento lhe é<br />

doce não por si mesmo, mas <strong>com</strong>o condição prévia de uma re<strong>com</strong>pensa. Desfruta de<br />

suas dores tal <strong>com</strong>o Don Quixote gozava <strong>com</strong> suas derrotas... pelo amor de sua dama.<br />

Nas formas mais sublimadas do <strong>masoquismo</strong>, um ideal abstrato passa a ocupar o lugar<br />

da mulher desejada. Assim São Francisco acolhia alegremente seus sofrimentos, pelo<br />

amor de sua dama: a Pobreza.<br />

Uma engenhosa vienense expressou-se certa vez assim: "Os homens são jovens<br />

enquanto uma mulher pode fazê-los felizes ou desgraçados. Quando só pode fazê-los<br />

felizes é porque alcançaram a idade madura, e se não pode fazê-los nem felizes nem<br />

desgraçados é que chegaram à velhice". Agora bem, deixando de lado a questão da<br />

idade, em que categoria devemos fazer entrar o masoquista? É um homem a que uma<br />

mulher pode fazer feliz só no caso de fazê-lo desgraçado.<br />

Depois de haver considerado, examinado e posto tudo isso na balança, subsiste<br />

ainda uma dúvida. Esta poderia suprimir-se em prol da simplificação e facilidade ou<br />

a fim de que a exposição resulte mais bonita e elegante. Mas a sinceridade mental<br />

constitui o dever, tanto quanto a glória, do investigador psicanalítico. Esta sinceridade<br />

nos obriga a não ceder à tentação de tal trapaça intelectual. A dúvida que permanece<br />

164 LETRA FREUDIANA - Ano XI - n 8 10/11/12


- O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

de pé é a seguinte: considerado geneticamente, o extrato mais antigo do <strong>masoquismo</strong>,<br />

<strong>com</strong>o fantasia e ação, não retorna, depois de tudo, à <strong>relação</strong> mãe-filho <strong>com</strong>o a uma<br />

realidade histórica? Nos referimos a uma idade em que ainda não se produziu a situação<br />

do Édipo e em que a educação deve cumprir, todavia, tarefas distintas da de dominar<br />

os impulsos incestuosos. Nesta época da infância a mãe é verdadeiramente a autoridade<br />

de poder ilimitado que deve inculcar na criança o asseio, a pontualidade e a obediência,<br />

e o ameaça, por certo, ocasionalmente, <strong>com</strong> castigos. O <strong>masoquismo</strong> representaria<br />

assim uma recordação tardia das dificuldades de adaptação a uma realidade que<br />

resultava desagradável à criança. A sucessão de submissão e desafio, de castigo e<br />

satisfação pulsional, seria, pois, um eco das dificuldades, esquecidas, da educação<br />

materna. Nessa época a mãe deve ter sido temida <strong>com</strong>o objeto de quem provinha a<br />

ameaça do castigo e a perda de amor.<br />

Levanta-se diante dos olhos de nossa imaginação uma procissão de deusas mães<br />

cruéis, de culturas antigas: a Kali hindu, <strong>com</strong> seus braços múltiplos; a Istar babilônica,<br />

deusa da guerra, da caça e da prostituição; a destruidora Astarté dos assírios; a deusa<br />

minóica das serpentes, <strong>com</strong>o igualmente muitas outras, todas personificações do<br />

formoso e do terrível. A atormentadora feminina tem para o masoquista o mesmo<br />

encanto irresistível destes ídolos; é a deusa Astarté dos tempos modernos.<br />

Este é quiçá o lugar adequado para mencionar a extensa sucessão de figuras<br />

femininas místicas de característica crueldade, tais <strong>com</strong>o Salomé, Brunilda, Turandot,<br />

as quais ameaçavam matar ou decapitar o homem, e que são os substitutos da mãe<br />

primária, tal <strong>com</strong>o concebida na fantasia masoquista. A evolução individual poderia,<br />

portanto, ser um reflexo da pré-história humana. A disciplina e severidade do pai,<br />

atuante no fundo da cena masoquista, não representam senão a continuação do poder<br />

pedagógico da mãe, tal <strong>com</strong>o o domínio do pai sucedeu ao matriarcado mais primitivo.<br />

A esfinge, que classificamos <strong>com</strong>o representação plástica de extratos históricos, seria<br />

assim uma figura primitivamente feminina à qual se acrescentaram posteriormente as<br />

partes masculinas. Estará, portanto, certo Heine, ao afirmar: "A figura da verdadeira<br />

esfinge é idêntica â de uma mulher ... e a adição do corpo do leão <strong>com</strong> garras não é<br />

mais que uma troça".<br />

De nenhum modo contradiria semelhante hipótese o fato de que a cena masoquista<br />

é de origem posterior e sofreu múltiplas desfigurações, pois sempre é possível que as<br />

formações posteriores retomem os moldes antigos. Para empregar uma <strong>com</strong>paração:<br />

a posição dominante das mulheres na vida social e cultural da América pode interpretar-se,<br />

certamente, <strong>com</strong>o resultado de condições históricas. Por exemplo, foi condicionada<br />

pelos efeitos do período pioneiro, quando mulheres enérgicas deviam ocupar-se<br />

muitas vezes de obrigações e fainas próprias dos homens. Isto não exclui a possibilidade<br />

de que possa constituir, além disso, um retorno parcial à organização social da<br />

sociedade primitiva.<br />

Se esta hipótese fosse certa, se manifestaria no <strong>masoquismo</strong> alguma hostilidade e<br />

desafio contra as mulheres; <strong>com</strong>o um eco e resíduo de sentimentos parecidos da criança<br />

contra a mulher que desempenhava papel tão predominante nos primeiros anos de sua<br />

ÜTRA FREUDIANA - Ano XI - n* 10/11/12 165


O <strong>masoquismo</strong> e a <strong>relação</strong> <strong>com</strong> o feminino<br />

vida. Mas, por outro lado, deixando de lado a questão de se a hipótese é acertada ou<br />

não, reconhecemos no <strong>masoquismo</strong> traços de ressentimento e mofa contra a mulher.<br />

Sem dúvida, a impressão decisiva é que o secreto desafio, a inconsciente sabotagem,<br />

dirige-se principalmente contra o homem <strong>com</strong>o autoridade interditora.<br />

Esta impressão é confirmada ainda nos mesmo casos em que tornam-se visíveis os<br />

impulsos agressivos e zombeteiros em <strong>relação</strong> à mulher, pela maneira diferente que se<br />

adota frente a esta e frente ao homem. É <strong>com</strong>o se ameaçar alguém <strong>com</strong> o indicador e<br />

a outro <strong>com</strong> o punho.<br />

166 LETRA FREUDIANA -Ano XI -n»10/l 1/12

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