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1.° Centenario de CARLOS GOMES<br />

Revista do Centro de Sciencias, Letras e Artes.<br />

Publicação feita sob os auspícios da<br />

COMMISSÃO CENTRAL DE FESTEJOS.<br />

Campinas. 11 de Julho de 1936.


Cr<br />

ANNO XXII CAMPINAS, — EST. DK S. PAULO — BRASIL. N.O 5(I<br />

Revista do Centro de Sciencias, Letras e Artes<br />

O Centro não sc responsabiliza<br />

pelas opiniões de seus<br />


2 . CENTRO DE SCIENCIAS, LETRAS E ARTES<br />

ÍNDICE<br />

Marques Júnior — «Carlos Gomes» . . . .<br />

Dr. Carlos Stevenson — Antonio Carlos Gomes<br />

llala Gomes Vaz de Carvalho<br />

(TRAÇOS APOLOGÉTICO)<br />

«A Aurora de um gênio»<br />

«O Zenite da Glória^<br />

«O Ocaso» . . . .<br />

Dr. Affonso de L. Taunay— «Carlos Gomes» e o «Visconde de Taunay<br />

Dr. Odecio de Camargo — «Manéco Musico»<br />

Nelson Omegna — * Retrato de Carlos Gomes»<br />

Cláudio de Souza — «Carlos Gomes»<br />

Dr. Carlos Stevenson — «Visconde de Taunay»<br />

Laurindo de Brito — «Carlos Gomes»<br />

.7. Eustachio de Azevedo — «Carlos Gomes»<br />

D. Pedro II<br />

J. Pereira de Castro — «Oração ao Gênio»<br />

Ulysses Nobre<br />

«Reminiscências de Carlos Gomes»<br />

«A primeira representação d'«0 Guarany» no Pará<br />

«Reminiscências» — Carlos Gomes 110 Pará, em 1882<br />

«Cantada pela primeira vez no Brasil «O Guarany»<br />

Leopoldo Amaral — «Brasileiros eminentes»<br />

A. Carlos Gomes — «Carta ao Imperador»<br />

«Decreto concedendo uma pensão, na Italia, a Carlos Gomes . . .<br />

«Carta do Marquez de Olinda»<br />

«Carta do Marquez de Olinda, em 11 de Dezembro de 1863 . . .<br />

Dr. Amphilophio de Mello — «Carlos Gomes»<br />

Octávio Netto — O «Guarany», voz da terra brasileira<br />

Ibrantina Cardona — «Carlos Gomes»<br />

Benedicto Octávio — «A Morte do Condor»<br />

Tiana Amarante — «Carlos Gomes, o Gênio do Som e da Harmonia»<br />

Marques Júnior — Episodios da vida de Carlos Gomes<br />

Presciliona Duarte de Almeida — «Coroa de Louros»<br />

Martins Fontes — «No tumulo de Carlos Gomes»<br />

Marques Júnior — «Sant'Anna Gomes»<br />

» 9<br />

» 12<br />

» 15<br />

» 19<br />

» 23<br />

» 37<br />

» 43<br />

» 47<br />

» 59<br />

» 60<br />

» 63<br />

» 67<br />

» 71<br />

» 72<br />

» 74<br />

» 77<br />

» 81<br />

> 85<br />

89<br />

90<br />

93<br />

94<br />

97<br />

101<br />

105<br />

109<br />

117<br />

119<br />

120<br />

» 123


muni<br />

Marques Junior<br />

Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas, num gesto<br />

largo e elevado de admiração e patriotismo, quiz homenagear,<br />

de maneira digna, o maior gênio musical do Brasil, o glorioso maestro<br />

Antonio Carlos Gomes, cujo centenário hoje se <strong>com</strong>memora.<br />

%<br />

Para tanto, emprehendeu elle, a publicação de sua Revista, fazendo-a<br />

reaparecer em numero especial, dedicado ao famoso <strong>com</strong>positor patrício,<br />

cujo nome deixou de ser uma gloria propriamente nossa, para figurar ao<br />

lado dos que conquistaram a immortalidade nos domínios internacionaes<br />

da musica e da arte.<br />

Todos os esforços despendidos <strong>com</strong> essa publicação, estão fartamente<br />

justificados, pois o genial auctor do Guarany, está acima de tudo que se<br />

possa fazer para realçar o valor de seu gênio in<strong>com</strong>parável.<br />

Seu estro musical, seu arrebatamento artístico, deram-lhe fama e<br />

renome, tornando-o uma figura marcante e destacada na galeria dos predestinados.<br />

Poucos souberam, <strong>com</strong>o elle, conhecer de modo tão perfeito<br />

e profundo os segredos da harmonia que só ás divindades era dado desvendar.<br />

Dir-se-ia que elle, conhecendo os mysterios dos deuses, procurou<br />

unir, pelos acordes suaves de sua lyra, o ceu á terra, trazendo aos homens<br />

as harmonias dulcíssimas dos paramos celestes para suavisar-lhes os ásperos<br />

caminhos da vida.<br />

Carlos Gomes, nascido de família humilde, conquistou pelo seu<br />

esforço e dedicação a celebridade e a gloria. Ainda muito moço, já era<br />

cantor e <strong>com</strong>positor em sua cidade natal. O meio, porém, não lhe permittia<br />

vôos mais altos; e elle, irriquieto e sonhador, influenciado pelos acadêmicos<br />

paulistas dos quaes tinha conquistado a admiração <strong>com</strong> a publicação<br />

de seu "Hymno Acadêmico", e <strong>com</strong> a cumplicidade de seu irmão Sant'-<br />

Anna Gomes, foge de casa para Santos e dahi para o Rio, onde, na casa<br />

do negociante Azarias Botelho, que o hospedara, derrama lagrimas de arrependimento,<br />

tocado pelo remorso da fuga e pela saudade do lar. Escreve,<br />

então, a seu pae, pedindo-lhe perdão e depois de longa espéra, passando


ANTÔNIO CARLOS GOMES<br />

(TRAÇOS APOLOGÉTICOS)<br />

A AURORA DE UM GÊNIO<br />

Dr. Carlos Stevenson (Socio Ienemérito<br />

e ex-presidente do Centro<br />

de Sciencias, Letras e Artes).<br />

"Paira-lhe na fronte aquela vaga<br />

aureola da mocidade: os raios<br />

todos da experança". :-: :-: :-: :-:<br />

Quirino dos Sayüos<br />

jjjc luminado por aquela rósea aureola da mocidade, afagado pelos promissólios<br />

raios da experança, aos vinte anos apenas, surgiu Antônio Carlos<br />

Gomes 110 largo horizonte da mais bela das artes. Era já, naquele tempo,<br />

apreciavel <strong>com</strong>positor, escrevendo musicas sacras para as festividades religiosas<br />

locais, e regente de orquestra, nos impedimentos de seu pai, o conceituado musico<br />

paulista, Manuel José Gomes.<br />

De modesto lar, veio o insigne <strong>com</strong>positor. E, pela áurea porta por<br />

onde entraram na vida muitos dos mais ilustres homens que produziu São Paulo<br />

— a gloriosa Campinas — chegou ao mundo aquele que deveria reafirmar tão<br />

honroso titulo á sua terra natal, tornando-se, do mesmo passo, a glória do Brasil<br />

e da própria America.<br />

A memorável data do nascimento de Antônio Carlos Gomes, embora<br />

conhecida e perfeitamente determinada, tem provocado controvérsias, ante a diversidade<br />

de dados oferecidos pelas efemérides e biografias do grande campineiro.<br />

E, o que é ainda mais grave, pela divulgação que acarreta, Dão estào exatas<br />

as informações constantes de reputados dicionários <strong>com</strong> carater enciclopédico.<br />

Por evitar confusões, não será descabido fazer notar êsse fato. Assim, a grande<br />

" Encyclopédia e Diccionário Internacional ", regista : " Oficialmente a data do<br />

seu nascimento é 13 de Junho de 1839amparandose, aliás, em numerosos<br />

biografos mal informados, entre os quais, Teixeira de Mello, Augusto Mauricio,<br />

Blake e Rio Branco. No " Diccionário Prático Illustrado " de Jayme de Seguier,<br />

talvez o mais utilizado em todo o Brasil, encontra-se sob o titulo — Carlos<br />

Gomes — a indicação (1830 — 1004) <strong>com</strong>o as datas limites da vida do notável<br />

<strong>com</strong>positor, ambas destituídas de veracidade.<br />

Uni dos seus historiadores explica que a confusão dada, <strong>com</strong> relação a<br />

essa data, resulta de alguns dos seus biógrafos e efemeridistas declararam que,<br />

quando Carlos Gomes, resolvendo convolar núpcias, na Italia, pediu a sua cer-


tidào de idade, para Campinas, lhe foi por engano enviada, em vez da sua a<br />

que se referia a um seu irmão de igual nome, provavelmente ^orto em tenra<br />

idade. Outros indicam, ainda, para essa data histórica, o dia 11 de Maio de 183,.<br />

O decano dos nossos lidadores da imprensa, um dos últimos representantes<br />

da velha guarda, depositário das mais antigas tradições campineiras, transcreve<br />

na sua apreciada obra, «Campinas - Recordações", um lançamento que se<br />

encontra no livro de registo dos batismos daquele tempo, arquivado na Catedral,<br />

onde está inscrito, <strong>com</strong>o nascido a 11 de Julho de 1836, António, filho legitimo de<br />

Manoel José Gomes e Fabiana Maria Cardoso. Esse Antônio era Carlos Gomes.<br />

Tendo-se oferecido oportunidade, ouvimos a Exma. Sra. D. Ana Gomes,<br />

irmã sobrevivente do inolvidável maestro, que nos confirmou esse dado, <strong>com</strong>o o<br />

verdadeiro. E' esta, aliás, a data oficialmente aceita, e fixada para as solenidades<br />

<strong>com</strong>emorativas do centenário do maior musico das duas Américas.<br />

Manuel José Gomes a todos os filhos ensinava musica. Dessa forma,<br />

desde muito jovem, entregou-se o futuro <strong>com</strong>positor ao estudo da arte em que<br />

mais tarde seria mestre. Bem cedo se revelou creador de músicas populares,<br />

tornando-se depois pianista, e a<strong>com</strong>panhando, <strong>com</strong> muito brilho e alma, o seu<br />

irmão, maestro José Pedro de Sant'Ana Gomes, notável violinista, nos seus concertos.<br />

Mas, o que o fez querido, por aquela época, foi a sua canção, "Tão<br />

Longe de Mim Distante", que se tornou famosa, e o seu "Hino Académico",<br />

a Marselhesa da mocidade, <strong>com</strong>o foi chamado. Esta vibrante <strong>com</strong>posição, calcada<br />

sóbre versos do estudante Bittencourt Sampaio, conquistou-lhe tal popularidade,<br />

que ficou êle sendo quasi que um ídolo, entre os estudantes de Direito<br />

da velha Academia de São Paulo.<br />

Sob instigações constantes désses seus ardorosos amigos, capitaneados<br />

pelo futuro bacharel Francisco Azarias de Queiroz Botelho, o mais entusiasta,<br />

e " que se tomara de apaixonada admiração pelo seu talento musical", Carlos<br />

Gomes " olha para si, titubeia, empalidece, diz Quirino dos Santos, e arde-lhe,<br />

entretanto, no peito, aquele vulcão atroz, insondável, terrível e belo ao mesmo<br />

passo, que impele para diante as vocações privilegiadas ".<br />

Havia, porém, contra a satisfação dêsse irresistível impulso da sua alma<br />

indómita, uma dificuldade invencível — a oposição paterna. Excesso de zêlo<br />

ou amor mal entendido ? A falta sensível do valente auxiliar nos seus trabalhos<br />

musicais? Deficiência pecuniária? E' difícil hoje julgar. Todavia, algumas<br />

dessas razões, talvez todas e ainda outras, se alevantaram <strong>com</strong>o intransponíveis<br />

barreiras ás soberbas aspirações do moço campineiro.<br />

Foi tremenda, naturalmente, a luta entre o submisso amor filial e as<br />

estonteantes visões de uma vitória brilhante e certa, que lhe povoavam a mente,<br />

e o assediavam, em constante e apertado cêrco. Por fim venceu, porque mais<br />

forte que qualquer vontade, aquele impulso de que fala Quirino dos Santos, o<br />

seu imperioso pendor artístico. Romperam-se os liames que ainda o prendiam<br />

ao estreito âmbito da sua terra natal, e ei-lo que, furtivamente, deixa o pátrio<br />

lar, dirigindo-se para Santos, e depois, para o Rio de Janeiro, em <strong>com</strong>panhia de<br />

Antônio Levy, a bordo do vapor " Piratininga ", a 20 de Julho de 1859.<br />

Estava pre-traçada e tinha inicio a fulgurante trajetória de um gênio •<br />

mas o presente se lhe oferecia carregado de acerbas preocupações. Hospedado<br />

no Rio por um bom amigo, Azarias Botelho, pai do estudante do mesmo nome<br />

estabelecido á rua Direita, 143, não podia o brioso jovem ir além da franca<br />

hospitalidade que recebia. Faltavam-lhe recursos. Amargamente sentindo a<br />

precipitação e desrespeito á vontade paterna, <strong>com</strong> que agiía escreveu ao paf,


pedindo perdão pelo errado passo. E, postada a carta, por toda a sua fortuna<br />

monetária, restava-lhe exigua soma — 120 reis.<br />

Longa foi a demora da ambicionada resposta, e já sem limites era a<br />

sua angústia, quando lhe chegou ás mãos a missiva paterna. O coração de pai<br />

perdoa sempre. Foi chorando que Carlos Gomes leu as muitas censuras que<br />

precediam o perdão e bênção do seu extremoso progenitor, e a ordem que lhe<br />

constituía uma pensão mensal de 30$000 rs. Era pouco; mas, para êle, representava<br />

um tesouro e, para o pai, <strong>com</strong> numerosíssima família, um grande sacrifício.<br />

•<br />

Havia de passar, entretanto, para o moço artista, o tempo de rudes dificuldades.<br />

D. Pedro II, o magnanimo monarca sempre pronto a amparar os<br />

reais valores que se faziam, estendeu-lhe carinhoso acolhimento. Viu êle firmado<br />

o primeiro passo no caminho que anciava trilhar. Conseguiu entrar para o<br />

Conservatório do Rio de Janeiro, sob a direção do laureado maestro Francisco<br />

Manuel, autor do Hino Nacional.<br />

Tinha Carlos Gomes verdadeira fascinação pelo teatro lirico que, na<br />

época, estava, talvez, no seu apogêu. Havendo o antigo teatro Provisório tornadose<br />

uma das maiores cênas do mundo musical, e podendo, assim, ouvir os grandes<br />

artistas que vinham ao Rio e as obras dos grandes mestres, anteviu êle o fulgor<br />

do seu futuro. Começou a trabalhar incessantemente. Fez o curso de harmonia<br />

e contra ponto, mas o seu desejo era escrever e não estudar, conforme frase<br />

sua. Queria <strong>com</strong>pôr nma ópera. E, quando "já <strong>com</strong>eçava a aparecer", essa<br />

aspiração tomou corpo, ante o <strong>com</strong>pleto êxito alcançado pela cantata que <strong>com</strong>pôs,<br />

110 Conservatorio, e que, premiada pela congregação, foi executada no concerto<br />

oficial do encerramento das aulas.<br />

Sentindo-se senhor da sua inspiração e confiante na sua técnica, escreveu<br />

Carlos Gomes a sua primeira ópera, a "Noite do Castelo", cantada no Rio de<br />

Janeiro, em 1861. Foi uma grande ousadia, mas corôada de ruidoso sucesso.<br />

"Ao terminar cada ato, era Carlos Gomes chamado ao procênio, vitoriado e<br />

brindado <strong>com</strong> corôas e flôres; no fim do espetáculo o entusiasmo quasi tocou<br />

as raias do delírio ". Por essa ocasião, conferiu-lhe o Imperador a venera da<br />

Ordem da Rosa; seus conterrâneos lhe ofereceram uma coróa de ouro, e o<br />

maestro Francisco Manuel, uma batuta de unicórnio, em nome da orquestra.<br />

Durante dois anos, Carlos Comes estudou <strong>com</strong> afinco, produziu várias<br />

peças para piano e, por fim a sua primeira obra de larga envergadura artística,<br />

a partitura da " Joana de Flandres ".<br />

O êxito dessa opera, cantada em 1863, sobrepujou o da "Noite do Castelo ".<br />

Foi geral o entusiasmo de que se contaminou todo o teatro, na primeira audição<br />

dessa primorosa <strong>com</strong>posição musical, contagiando o próprio Imperador, que resolveu,<br />

<strong>com</strong>o prêmio ao mérito, promover o genial artista ao oficialato da Ordem<br />

da Rosa, cuja <strong>com</strong>enda já lhe havia sido conferida. Informado Carlos Gomes<br />

da graça especial que o aguardava, correu ao soberano, para pedir que transferisse<br />

a honra que lhe fosse destinada ao seu venerando pai, sob a forma de<br />

sua nomeação para mestre da Capela Imperial, no que foi logo atendido.<br />

Não era bastante. D. Pedro II quiz testemunhar diretamente a sua admiração<br />

e a sua confiança ao novel <strong>com</strong>positor, determinando ao maestro Francisco<br />

Manuel que o premiasse <strong>com</strong> uma viagem de estudos a Europa. Assim<br />

foi feito; e a 8 de Novembro desse mesmo ano, partia o laureado campineiro<br />

para a terra da musica, onde deveria, mais tarde, cobrir-se da gloria imarcessivel<br />

dos iluminados.


O ZENITE DA GLORIA<br />

" Questo giovane <strong>com</strong>incia. lá<br />

dove finisco io".<br />

Giuseppe Verdi<br />

cio foi sem dificuldades e conseqüente desânimo que se iniciou em<br />

Milão, a nova fase da formação artística do notável musico. Incansável<br />

trabalhador, entretanto, dentro de dois anos havia conseguido tornar-se<br />

contrapontista de reconhecido valor, escrevendo, então, uma fuga magnifica, que<br />

dedicou a D. Pedro II, seu imperial protetor, a quem prestava, assim, um justo<br />

preito de gratidão, significativo e sincero.<br />

Por esse tempo, <strong>com</strong>pôs Carlos Gomes duas graciosas óperas bufas — "Se<br />

Sa Minga" e "Neila Luna" — que obtiveram franca aceitação na península.<br />

Eram a preparação do público, para o seu máximo triunfo.<br />

A 19 de Março de 1870, subia á cena, no Scala, de Milão, a grandiosa<br />

ópera, "O Guarani", inspirada nos românticos episódios da célebre obra de José<br />

de Alencar, seguudo o poema — libreto do poeta Antônio Scalvini. Foram seus<br />

principais interpretes os afamados cantores, Maria Sasse, Vilani, Maurel e Coloni.<br />

O êxito dessa primeira audição foi extraordinário e <strong>com</strong>pleto, acima de<br />

todas as espectativas. Sob o esplendor das luzes, irriquietos e anciosos pelas<br />

sinfonias selvagens que esperavam, estava presente tudo que de elegante e artístico<br />

se poderia reunir na sociedade e no mundo musical milanense. E, do<br />

súbito silêncio que aos primeiros acordes se fez, estrugiram, num constante<br />

" crescendo", <strong>com</strong> o desenrolar do emocionante drama musicado, os aplausos<br />

entusiásticos, vividos, repetidos, que abriram, ao estreante mágico da sonoridade<br />

orquestral, as fascinantes e largas portadas da glória e da imortalidade, cobrindo,<br />

<strong>com</strong> os mesmos louros dessa magnifica vitória, a terra-mãe longínqua, orgulhosa,<br />

e cada vez mais, do triunfo e da fama do seu inolvidável filho, o imortal cantor<br />

das nossas selvas.<br />

Um dos seus biógrafos, reportando-se aos triunfos parciais que foram os<br />

ensaios dessa magistral partitura, observa que o ousado <strong>com</strong>positor quasi endoideceu,<br />

ao ver-se vivamente aplaudido por Verdi, e principalmente quando, ao<br />

terminar o grandioso concertante do terceiro ato, que pela primeira vez ouvia,<br />

<strong>com</strong> entusiasmo, exclamou : " Este jovem <strong>com</strong>eça por onde termino eu ".<br />

Gounod, então presente, foi também abraçá-lo, felicitando-o e externandolhe<br />

os maiores elogios.<br />

O maestro SantfAna Gomes era a única pessoa estranha admitida a<br />

assistir a êsses ensaios, verdadeiras noitadas de arte, por exigência de Carlos<br />

Gomes. Logo após o primeiro, disse êle ao irmão: "Pois foste tu mesmo que<br />

fizeste tudo aquilo, homem! " E, por tê-lo visto censurar artistas: " Ainda, te<br />

zangas <strong>com</strong> êsses graúdos? Não te conheço mais, meu fujào de São Paulo..."


Escreveu André Rebouças, no seu Diário: — " Que prodígio! Nascer em<br />

Campinas, nos confins de São Paulo, e vir dar regras de música, de canto e<br />

de mímica teatral, na Italia!"<br />

Mas, a grande satisfação, de que se tomara tão justamente o nosso opulento<br />

<strong>com</strong>positor, não era ainda <strong>com</strong>pleta. Uma vez tão brilhantemente consagrado,<br />

na Europa, o mérito da sua nova ópera, quiz logo o autor fazê-la ouvir<br />

no Brasil. Dados os necessários passos para èsse efeito, viu êle por fim realizada<br />

a maior aspiração da sua alma, fazendo cantar o " Guarani", <strong>com</strong> grande<br />

aparato, no Rio de Janeiro, por ocasião do aniversario do Imperador, a 2 de Dezembro<br />

do mesmo ano.<br />

De brilhante e ruidoso sucesso cobriu-se esta primeira audição. O entusiasmo<br />

popular não tinha limites; a admiração despertada e os constantes<br />

aplausos chegavam ao delírio. Chamado ao camarote imperial, foi o vitorioso<br />

maestro, por entre aclamações do teatro inteiro, publicamente abraçado pelo<br />

imperante.<br />

Tinha chegado ao apogêo a sua glória!<br />

Campinas não ficou nem poderia ficar alhêia a tão conspícuo acontecimento.<br />

Foi ao Rio, por uma <strong>com</strong>issão, levando-lhe uma linda medalha de ouro<br />

<strong>com</strong> valioso brilhante. E' que, no " Guarani " não ha somente aquela sua maravilhosa<br />

sonoridade, toda a profunda beleza das penetrantes melodias que empolgaram<br />

as velhas platéias do velho mundo. Ha qualquer cousa de muito mais,<br />

que nos fala nalma, que nos enche e coração, que só êle e Campinas ouviam e<br />

tão nobremente Batista Pereira soube traduzir.<br />

Ouçamo-lo:<br />

" Toda a nossa natureza inédita e bruta, violada pelo Descobridor, coube<br />

na alma de Carlos Gomes. Desde então, cada vez que irrompe de urna orquestra<br />

a Protofonia do Guarani, ha alguma cousa ali mais do que a fuga, o contraponto,<br />

a harmonia, em serviço da arte humana. A torrente melódica vem de<br />

origens mais profundas que as da próprio inspiração. Nasce das entranhas da<br />

terra... Precipita-se <strong>com</strong> o arranque de São Paulo ao configurar o Brasil.<br />

Amplia-se <strong>com</strong>o a epopéia da Conquista. Dá pulmões á nossa floresta, aos nossos<br />

rios, aos nossos instintos, ás nossas almas. Para isso, Campinas, foi que nasceste<br />

á orilha da mata, ressoante de sonoridades estranhas, e cortada de silêncios<br />

augurais.<br />

" O intróito do Guarani é o teu hino sagrado, Campinas... Faz da sua<br />

audição um culto cívico. Alimenta da sua violência orogênica o subconciênte<br />

do teu povo. Executa-o nas noites estreladas, nos coretos dos teus jardins,<br />

quando os namorados espairecem, para que a poesia dos instintos e os mistérios<br />

do coração se embebam nas suas harmonias. Adota-o <strong>com</strong>o a Marcha Nupcial<br />

dos teus filhos".<br />

E assim, Campinas, <strong>com</strong> a devoção de um culto, ouviremos por toda<br />

parte a mágica interpretação de todas essas vozes do Brasil selvagem, que só<br />

tu soubeste <strong>com</strong> o seu imortal cantor sentir. Assim, Campinas, nesta ocasião<br />

em que celebras o centenário do heróe dos sons, atende á voz do que clama<br />

nêste deserto de sentimentos e idéias, elege, para sempre, a sinfonia magna em<br />

teu hino de todas as solenidades, executa-a nos coretos dos teus jardins, adota-a<br />

para Marcha Nupcial, nos teus casamentos. E assim, Campinas, dignamente,<br />

dia por dia, honrarás a um dos mais ilustres daqueles que, no teu seio de mãe<br />

bendita, receberam o batismo da pia e da luz.


Nos seus dias vitoriosos esteve em Campinas o filho saudoso. Pez a sua<br />

entrada triunfal a 17 de Agosto de 1870, sendo acolhido <strong>com</strong> uma verdadeira<br />

apoteose. Foi a mais brilhante e a mais popular das recepções ate então vistas<br />

na opulenta cidade.<br />

Mas, tinha de trabalhar o consagrado maestro. Para isso tornou á Europa,<br />

<strong>com</strong> o fim de continuar as suas produções teatrais, cabendo-lhe, em 18


O OCASO<br />

" A luz da estrela da sua existência<br />

ia-se apagando lentamente: uma terrível<br />

moléstia lhe consumia a vida ".<br />

Leopoldo Amaral<br />

ntônio Carlos Gomes, por se ter feito a maior glória musical das duas<br />

Américas, nunca deixou, por isso, de ter a alma boémia, <strong>com</strong>um,<br />

dos artistas. Generoso, desprendido, desorg;misado, mesmo, na parte mais prosaica<br />

da vida, as suas finanças sempre andaram em dificuldades.<br />

Conhecedor do pouco que produz a arte, o Imperad- r, do seu bolso particular,<br />

pelo muito que lhe valia tão bela expressão da inteligência brasileira,<br />

fazia <strong>com</strong> que a êle chegasse uma mesada. Outros amigos se quotizavam para<br />

enviar-lhe auxílios que o puzessem ao abrigo de privações e vexames.<br />

Com a proclamação da República, porém, estancou se a principal fonte<br />

permanente dos seus modestíssimos recursos. O governo republicano lhe negou<br />

o auxilio que foi solicitado por intermédio do prestigioso propagandista e chefe<br />

politico campineiro, Francisco Glicério.<br />

Estava o maestro, de visita, em Campinas, quando ruiu o trono. Impressionou<br />

se vivamente, apaixonando se aquele extremado coração, ante a traidora<br />

sorte do seu ilustre protetor, o grande Brasileiro deposto. " Carlos Gomes, diz<br />

um dos seus biógrafos, aliava á sua natureza de extraordinária vivacidade, um<br />

coração profundamente sensível, um temperamento nervoso, que vibrava violentamente,<br />

ás emoções fortes ". " A sua veneração era tão grande, narrava o Dr.<br />

Cesar Bierrembach, veneração essa justificada, por I). Pedro II, — cuja proteção<br />

generosa se gloriava de haver recebido — que quando êle se achou enfermo<br />

em Milão (1888), Carlos Gomes não saía do hotel onde S. M. era hospedado".<br />

Talvez por isso, não foram amigaveis, desde o princípio, as relações<br />

entre o inolvidável maestro e os governos republicanos que se sucederam. Nem<br />

mesmo poude êle conseguir um lugar, na reforma do Conservatório do Rio de<br />

Janeiro, quando, muito ampliado, passou a ser o Instituto Nacional de Música.<br />

Até a calúnia não o poupou. Foi acoimado de estrangeiro por naturalização<br />

italiana. Era, entretanto, Carlos Gomes, que tão bem soube escrever a<br />

mais brasileira das músicas, um dos mais brasileiros dos brasileiros, sendo que<br />

a quantos tiveram a dita de conhecê-lo, 110 seu intimo, espantava o descaro de<br />

uma tal asserção. Mas, a malignidade tem asas de avião, transpôs o oceano,<br />

envenenou-lhe a vida. E, apesar da violência <strong>com</strong> que sempre repelia esta perfídia,<br />

esclamando: "Nunca deixarei de ser brasileiro", teve, para aniquilar a<br />

calúnia, de produzir prova oficial, por meio do Consulado Geral do Brasil, na<br />

Italia, publicando a certidão obtida, de que: "apesar dos muitos anos que residiu<br />

em Milão, se conservou sempre cidadão brasileiro ". Esta verdade êle a


quiz confirmar no seu testamento, em 1893, assinando-o: Antonio Carlos Gomes,<br />

maestro de música, residente em Milão, Via Marone, 8 - Brasileiro e 1 atriota.<br />

Voltou o grande Brasileiro e Patriota para a Italia, sua segunda pátria,<br />

mais acolhedora e carinhosa, a fim de trabalhar e viver. E porem sempre<br />

precária a vida dos artistas. Com o tempo, avolumaram se as dificuldades <strong>com</strong><br />

que lutava; as poucas reservas que reunira cedo se esgotaram ; <strong>com</strong> os padecimentos<br />

que lhe sobrevieram, tornava se quasi insustentável a sua situaçao, agravada<br />

por longa enfermidade de seu filho.<br />

Foi então que recebeu Carlos Gomes proposta do maestro Gama Malcher,<br />

da Associação Lirica do Pará, para a representação das suas operas, durante a<br />

estação lirica de 1895, em Belém. Para tratar desse assunto veio êle ao Pará,<br />

em março daquele ano.<br />

Sabedor Lauro Sodré, seu velho admirador, das dificuldades em que se<br />

debatia aquele que tanto soubera fazer pela arte e pelo Brasil, convidou-o, <strong>com</strong>o<br />

Governador do Estado, para dirigir o Conservatório de Musica da Capital.<br />

Em 1896, voltou ao Brasil, Carlos Gomes, para ocupar o honroso cargo<br />

em que veio a morrer.<br />

Na cidade de Belém foi recebido carinhosamente e, <strong>com</strong>o outrora dos reis<br />

do Oriente o Rei menino, teve ôle a seus pés, que o bem formado coração paraense<br />

diariamente depunha, o ouro, o incenso, a mirra, em recursos, em agrados,<br />

em demonstrações do mais delicado afeto e elevado apreço <strong>com</strong> que lhe mitigavam<br />

os grandes sofrimentos do corpo e da alma.<br />

Em São Paulo, conseguiram seus amigos, do governo do Estado, uma pensão<br />

mensal elevada e ainda auxilio para os seus dois filhos, na Itália.<br />

Completou-se, num ocaso sombrio, a trajetória luminosíssima do gônio patrício,<br />

pelo firmamento constelado da arte mundial. Poderia ter sido mais rica,<br />

mais preciosa a sua obra, dadas a sua intensa inspiração artística, as suas raras<br />

qualidades de <strong>com</strong>positor, os seus grandes conhecimentos da técnica musical, o<br />

seu harmônico e perfeito equilíbrio orquestral? Quem ousará julgá-lo? Outros<br />

fossem as condições e meio em que viveu e produziu, outro seria, talvez, o opulento<br />

tesouro do seu legado artístico. Êle, porém, era assim, viveu assim. E,<br />

assim, nunca foi entre nós igualado!<br />

Honra, pois, ao seu indiscutido valor. Honra ao mérito!<br />

Ao estinguir-se aquela nobre figura de brasileiro ilustre, todo o Brasil,<br />

depois redimido, pelas significativas homenagens <strong>com</strong>emorativas que lhe ia prestar<br />

a<strong>com</strong>panhou, ansioso, a sua longa e dolorosa agonia. E, a 16 de Setembro de<br />

1896, deixou de existir quem foi, na vida, um " artista máximo um grande<br />

coração, um extremado Brasileiro e Patriota, um verdadeiro paulista um ardoroso<br />

Campineiro, amantíssimo da sua terra natal<br />

Campinas!<br />

Campinas, 7 de Maio de 1936


CARbOS GOMES E 0 VISCONDE DE TAUNAy<br />

Dr. Affonso de L. Taunay<br />

(Da Academia Brasileira de Letras<br />

e director do Museu do Estado)<br />

.^^^^^uito queria meu Pae, o Visconde de Taunay, a Carlos Gomes.<br />

jgfgT&^S&j* Admirava-lhe a potencia do estar e tinha-o á conta de uma<br />

organisação artística absolutamente extraordinaria. E procurou, sempre<br />

que pôde servi-lo e á sua gloria, <strong>com</strong> todas as veras de amizade impaciente<br />

de valer.<br />

Arrolava-se desde os primeiros dias entre os seus mais dedicados<br />

amigos e essa affeição, tão forte quanto constante, durou de 1873 até<br />

os derradeiros momentos do <strong>com</strong>positor, em 1896.<br />

Poderosa affinidade ligava aquelles dous espíritos, sempre voltados<br />

para o Bello. Outra causa, porém, concorria para reforçar essa cohesão<br />

de sentimentos: a grande amizade que ambos votavam a André Rebouças,<br />

cuja admiração pelo <strong>com</strong>positor quasi attingia a intensidade do fanatismo.<br />

Esta liga do artista, do escriptor e do scientista assente em bases<br />

da mais elevada esphera moral e espiritual, afinou-se <strong>com</strong> as attribuições<br />

que a todos os ires trouxeram os últimos annos de existencia: o exilio<br />

voluntário de Rebouças e o retrahimento de Taunay após o 15 de novembro,<br />

o olvido e afinal a atroz e longa moléstia que victimou o autor<br />

do Guarany.<br />

Sabem todos quanto foi penosa a vida do grande musico, sempre<br />

a braços <strong>com</strong> as maiores difficuldades financeiras para se manter e á<br />

família, na Italia, vendo-se forçado a trabalhar <strong>com</strong>o um galé, a <strong>com</strong>por<br />

ás pressas para obter os minguados recursos, graças aos quaes levava<br />

a mais parca das existencias.<br />

O odio implacavel que os nullos e os medíocres votam e sempre<br />

votarão ás manifestações da capacidade creadora, a sórdida paixão dos<br />

impotentes que se sentem amesquinhados pelas manifestações do génio,<br />

perseguiam-no constantemente.<br />

"Porque não <strong>com</strong>põe no Brasil? increpavam-lhe innumeros espíritos<br />

mesquinhos, infelizmente de <strong>com</strong>patriotas''. —- E' boa! explicavam;<br />

é porque explora um pobre diabo de maestro italiano, vencido da vida,<br />

que lhe vende a inspiração mediante algumas miseráveis centenas de<br />

francos. Ahi está porque lhe é impossível <strong>com</strong>por no Brasil<br />

"Quando vem á Patria só tem em vista arranjar dinheiro; nenhuma<br />

melodia, por mais simples que seja, lhe sahe da penna fóra da<br />

Italia"; arguiam-lhe os mais benevolos destes pseudos nativistas.


E tal o volume dos clamores e calumnias que a torpíssima campanha<br />

conseguia impressionar desfavoravelmente, pessoas bem intencionadas<br />

e até esclarecidas.<br />

Havia <strong>com</strong>o que um labéu na carreira do <strong>com</strong>positor: baixo,<br />

inconfessável desprezo pela patria, a ponto de lhe estancar a veia inspiratória<br />

a simples permanencia no territorio brasileiro.<br />

Como resposta a este crime de lesa patriotismo deviam os verdadeiros<br />

patriotas abandonal-o.<br />

Em 1873 conseguiu Taunay, após certa relutancia, que o parlamento<br />

imperial lhe votasse uma pensão, de 500?000 mensaes, mil e poucas<br />

liras, mau grado vehementes protestos de vários collegas seus, entre<br />

outros os de certo deputado que se indignava <strong>com</strong> este presente de<br />

dinheiros da Nação a um rabequista (sic) <strong>com</strong>positor de operetas!<br />

E já nessa época alcançara o Guarany, verdadeira apotheose<br />

tanto no Rio de Janeiro <strong>com</strong>o nas principaes cidades brasileiras, dando<br />

depois o gyro dos grandes theatros italianos, <strong>com</strong> immenso e geral<br />

successo!<br />

De 1873 a 1879 viveu Carlos Gomes um tanto folgado, podendo<br />

trabalhar descansadamente. A este periodo se devem a Fosca, o Salvador<br />

Rosa, a Maria Tudor e os primeiros esboços do Escravo.<br />

Em 1880 cortavam-lhe a pensão justamente quando após alguns<br />

annos de desafogo assumira grandes resposabilidades financeiras, superiores<br />

aos recursos de que podia dispor, <strong>com</strong> a construcção de uma casa<br />

de campo para villegiatura, a Villa Gomes, á margem do lago de Lecco.<br />

Raros, raríssimos têm sido os homens de gênio que souberam<br />

fazer dinheiro <strong>com</strong> as producções de seu engenho. Não faltou Carlos<br />

Gomes á regra quasi geral, desprendido <strong>com</strong>o era em alto gráu. Vendeu<br />

aos editores do Guarany os direitos de propriedade sobre a opera por<br />

dous ou tres mil francos, e no emtanto a elles renderam estes quantia<br />

superior a quinhentos mil! segundo é voz corrente.<br />

A cessação da pensão e os grandes encargos da Villa Gomes<br />

puzeram-no na mais afflictiva das situações que, prolongando-se durante<br />

longa serie de annos, o torturou de modo abominavel.<br />

Viveu dia a dia, auxiliado pelos amigos do Brasil que procuravam<br />

soccorrel-o, mandando-lhe, de vez em quando, alguns recursos e promovendo<br />

concertos e benefícios <strong>com</strong> algumas de suas operas.<br />

Exultavam os gratuitos detractores e inimigos do grande musico<br />

muito embora as enchentes, que apinhavam os theatros sempre que o<br />

Guarany, a Fosca e o Salvador Rosa eram levados á scena lhes causassem<br />

fundas decepções e violentas explosões de cólera e inveja im-


potente "Era o <strong>com</strong>positor um bohemio. um jogador" berravam furibundos,<br />

brasileiro renegado, pois se naturalisara italiano, etc., etc.<br />

Na primeira plana dos grandes e incansaveis defensores do<br />

maestro figuravam André Rebouças, Alfredo d'Escragnolle Taunay e<br />

Francisco da Graça Castellões, o meu Chico <strong>com</strong>o lhe chamava Gomes.<br />

Nessas tres amizades robustas apoiou-se constantemente, nellas<br />

achou poderosos recursos <strong>com</strong> que conseguiu attenuar um pouco os terríveis<br />

golpes de prolongada adversidade.<br />

Viu-se na contingência de hypothecar a Villa Gomes e teve depois<br />

o desgosto de a passar a outras mãos. Pouco a pouco se foram minguando<br />

os parcos recursos de que dispunha, até que chegou a conhecer<br />

as agruras de uma situação que pouco distava da miséria.<br />

Neste Ínterim defendia, <strong>com</strong> todas as forças do desespero, os<br />

originaes do Escravo contra a cubiça dos editores que, vendo-o reduzido<br />

á ultima extremidade, farejavam na exploração da formosa partitura,<br />

<strong>com</strong>prada a troco de barato, novo negocio de ouro <strong>com</strong>o o do Guarany.<br />

Em 1888 era-lhe tão angustioso o estado d alma que, nos arroubos<br />

da prodigiosa imaginação, exacerbada pela crueldade <strong>com</strong> que o perseguia<br />

a sorte, confiava ao amigo que entrevia na morte, o único lenitivo<br />

aos insuportáveis males.<br />

"Vale mais o dinheiro que a gloria, declarava fóra de si, o misero<br />

homem de génio".<br />

A este appello desesperado corresponderam os amigos fieis pondose<br />

a campo <strong>com</strong> tal dedicação que, graças á grande subscripção nacional<br />

por elles lançada e o apoio munificente do Imperador e da Princeza<br />

Imperial, pôde o Escravo subir á scena no Rio de Janeiro em meiados<br />

de 1889.<br />

Nos últimos sete annos que lhe restavam passar na terra, continuou<br />

o iMaestro a soffrer novos e rudes embates.<br />

Deram-lhe o Condor e o Colombo profundas desillusões e desgostos,<br />

o segundo sobretudo, acolhido hostilmente pelas platéas e pela<br />

critica.<br />

A generosidade <strong>com</strong> que o Pará avocou o pagamento de parte<br />

da grande divida nacional para <strong>com</strong> o tão abandonado artista de génio,<br />

suavisou os últimos mezes do autor do Guarany, e morreu, <strong>com</strong>o todos<br />

sabem, cercado das mais respeitosas e <strong>com</strong>pungidas provas de admiração<br />

e affecto.<br />

Estes dias de agonia Rebouças e Taunay os a<strong>com</strong>panharam<br />

cheios de dor.


A 11 de julho de 1896 annotava o segundo em seu Diorio Intimo:<br />

"Aniiivèrsario do malsinado Antonio Carlos Gomes (büj. tsta<br />

a morrer no Pará../'<br />

E <strong>com</strong>o então se discutisse o caso da ephemeride natalícia do<br />

<strong>com</strong>positor, questiuncula irritante e pueril publicou no Commercio de<br />

S. Paulo o artiguete seguinte, sob a epigraphe II de julho.<br />

"Completou hontem 60 annos o nosso glorioso e infeliz <strong>com</strong>patriota,<br />

maestro Antonio Carlos Gomes, nascido <strong>com</strong>o foi ali de julho<br />

de 1836, na cidade de Campinas.<br />

Durante não pouco tempo laborou-se em equivoco, por confusão,<br />

<strong>com</strong> um irmão fallecido creança e que viera á luz a 11 de julho de 1839.<br />

Estando <strong>com</strong> o eminente dr. André Rebouças, o anno passado, no Funchal<br />

(Ilha da Madeira) o proprio Carlos Gomes rectificou aquellas datas.<br />

Tão proximo da morte, <strong>com</strong>o infelizmente está hoje, e já pertencendo<br />

mais á historia do que aos vivos, é de toda a conveniência assentar<br />

o ponto de partida 11 de julho de 1836 — dessa existencia que tanto<br />

honrou o Brasil, <strong>com</strong> effeito, o maior gênio por elle até agora produzido.<br />

E' mais que tempo que uma bella placa <strong>com</strong>memorativa relembre<br />

em Campinas a casa em que nasceu Carlos Gomes.<br />

Com o maior aperto de coração não podemos senão enviar tristíssimas<br />

saudações ao grande brasileiro, cujo nome a gloria, nas suas<br />

irradiações de alegria e de triunipho, levou a todos os pontos do mundo".<br />

A 26 de julho inscrevia no Diário Intimo: " A proposito do pobre<br />

Carlos Gomes um telegramma de hontem (25) o dá melhor.<br />

Bem peior para elle! sustentar-se aquelle pobre organismo minado<br />

pelas consequências de neoplasma maligno".<br />

Algumas paginas adeante lêm-se as seguinte linhas:" (16 de<br />

setembro de 1896).<br />

Falleceu hontem em Belem (Pará) o infeliz e genial Antonio<br />

Carlos Gomes.<br />

Embora esperada ha muito por causa do horrível e impiedoso<br />

cancro da língua causou a todos essa morte grande impressão.<br />

Tinha o pobre sessenta annos, nascido a 11 de julho de 1836.<br />

Não pude deixar de derramar lagrimas".<br />

No momento em que toda a Nação rememora orgulhosa o centenário<br />

natalício de uma das maiores glorias brasileiras e americanas<br />

e-me sobre-modo grato, á piedade filial, recordar quanto Alfredo d'Escragnolle<br />

aunay procurou, sempre, servir a esse amigo a quem tanto queria,<br />

e a quem tanto admirava. E quanto celebrou a sua gloria immarcessivel


jVíanéco jMusico<br />

& &<br />

X<br />

Dr. Odecio de Camargo<br />

(Advogado em Limeira)<br />

^^p||uanto mais o estudioso analysa a figura inconfundível de Carlos<br />

Gomes, tanto mais altas crescem, em seu espirito, estas per-<br />

guntas dominadoras: <strong>com</strong>o se justifica que 110 ambiente tão rudimentar<br />

de uma incipiente província brasileira, houvesse surgido a floração ex-<br />

tranha que foi até hoje o maior gênio musical do Novo Continente?<br />

Porque, milagrosa e generosamente, quiz a Providencia que a humilde<br />

Campinas de 1836 fosse o berço de Carlos Gomes, cujo poder creador<br />

ainda não foi excedido nas Américas?<br />

Que fios vibrateis e divinos urdiram a trama desses nervos ten-<br />

sos, antennas sempre distendidas para sentir as ondas mais profundas<br />

da alma americana: as vozes da selva virginal, dos passaros e das féras,<br />

de toda a nossa terra aspera e moça, na seiva púbere do seu desabrochar?<br />

Que mysteriosas forças astraes ou telluricas concentraram na-<br />

quelle cerebro o thesouro inexhaurivel de sua inspiração nababesca, em<br />

que o ardor tropical dos instinctos atropelados e confusos, harmoniosa-


mente se disciplinam, <strong>com</strong> elegancia inédita, sob a túnica patrícia da<br />

mais pura inspiração latina?<br />

De onde veio, <strong>com</strong>o era constituído, <strong>com</strong>o se formou essa figura<br />

de excepção ? Quaes as raízes, as causas, o determinismo desse phe-<br />

nomeno ?<br />

O que impressiona, não é o Carlos Gomes <strong>com</strong>pleto, artista já<br />

consagrado e universal, arrastando atraz de si o manto de suas glorias<br />

e a fatalidade dolorosa de uma vida de amarguras.<br />

O que tenho buscado ardorosamente, na tradição oral e através<br />

archivos públicos e particulares, civis e ecclesiasticos, é o homem na<br />

sua formação, na sua infancia, no seu ambiente, no seu lar, no des-<br />

pertar dos primeiros anseios, na creação physica, moral e principalmente<br />

artística de sua individualidade.<br />

Vou assim colligindo elementos, que ainda poderão fructificar<br />

um dia, quando estiverem ao serviço de mais synthetico e <strong>com</strong>petente<br />

observador.<br />

Infelizmente, a preoccupação de preconceitos <strong>com</strong>pletamente pue-<br />

ris, tem obscurecido, occultado a verdade sem utilidade alguma, falsiando<br />

muita coisa em que só a futilidade poderá encontrar pasto para male-<br />

dicência e escandalo.<br />

Não cabem taes restricções, quando se trata de avaliar uma<br />

creatura que, pela sua qualidade pessoal, muito superior ao meio e á<br />

raça, sobrepuja todas as convenções, conferindo não só aos de seu<br />

sangue, mas também aos de sua terra, a dignidade da mais alta no-<br />

breza, a única incorruptível e pura, deante a qual todos se curvam,<br />

que é a magestade do gênio.<br />

Excepção feita do estudo que em Dezembro de 1916 o brilhante<br />

Benedicto Octávio publicou nesta revista, e que é até agora o manan-<br />

cial mais preciozo que encontrei para conhecimento da formação psy-<br />

chologica de Carlos Gomes, quazi todas as outras obras, principalmente<br />

em relação aos antecedentes familiares do Maestro, são baseadas em


informações falhas e inveridicas, que se foram reproduzindo em vários<br />

trabalhos aliás de notável valor, os de Pio Vieira e <strong>com</strong> a magnifica<br />

biographia de dona ítala Gomes Vaz de Carvalho, estudo repassado<br />

de <strong>com</strong>movente amor filial.<br />

E' precizo que se renda a Benedicto Octávio a homenagem que<br />

merece <strong>com</strong>o precursor da biographia moderna, viva e palpitante do<br />

maior artista americano. A clarividência do saudoso poeta campineiro<br />

tocou o filão de ouro, o ponto de partida de onde se deve analysar<br />

modernamente um espirito, e principalmente uma alma de artista, fixando,<br />

antes de mais nada, a formação sentimental da personalidade. Dir-se-ia<br />

que em 1916, poucos annos depois que Freud fizera sua primeira ex-<br />

posição systematica em Worcester, na Clark University, já Benedicto<br />

Octávio estava applicando a psychologia de Carlos Gomes, o methodo<br />

da psychanalyse para a investigação dos <strong>com</strong>cexos.<br />

Seguindo modestamente as pégadas do biographo de 1916, outra<br />

coisa não trago aqui senão achegas para rectificação de pontos con-<br />

fusos na biographia de Carlos Gomes, fixando a personalidade de seu<br />

pae e evitando, quanto possível, repetir biographias anteriores.<br />

li<br />

Muito se tem dito de Manuel José Gomes, o velho Manéco<br />

Musico, a quem coube a gloria de ser pae de Carlos Gomes, pouco<br />

porem se disse <strong>com</strong> exactidão e segurança.<br />

Nasceu em Parnahyba, em setembro de 1792, sendo baptisado<br />

na Igreja Parochial daquella Villa do dia 29 do mesmo mez.<br />

O livro de baptisados, onde deveria estar registrado, está <strong>com</strong> a<br />

falta de varias paginas, entre as quaes a folha 129, de onde foi extra-<br />

hida a certidão <strong>com</strong> que se habilitou no processo de seu primeiro casa-<br />

mento (estante 8-gav. 28 l.°-3794 do magnifico Archivo da Curia Me-<br />

tropolitana). Ha porem uma nota relativa a seu baptismo, entre os<br />

assentamentos números 37 e 38 do livro <strong>com</strong>petente.


I T I<br />

2f> CENTRO DE SCIENCIAS, LETRAS B ARTES<br />

O que se pode affirmar <strong>com</strong> segurança, é que o pequeno Manuel<br />

residiu em Parnahyba <strong>com</strong> sua mãe, Antónia Maria de Jesus, desde<br />

que nasceu, até 1800, e sempre na casa do Ajudante Antonio José de<br />

Miranda, senhor de engenho, natural de Vianna, casado <strong>com</strong> D. Ger-<br />

trudes Maria de Mello. D. Antónia, avó de Carlos Gomes, foi também<br />

baptisada naquella villa, onde nasceu, em 20 de junho de 1768 e em<br />

11 de dezembro de 1798 casou-se <strong>com</strong> Antonio Ribeiro, também parna-<br />

hybano, nascido em 1773, militar do Batalhão dos Úteis. Em 1801,<br />

quando Manuel José Gomes não se achava mais em Parnahyba, tinha<br />

D. Antónia, mais dois filhos: Maria e Ignacio, únicos tios paternos de<br />

Carlos Gomes, de que tenho noticia.<br />

Na falta de mais <strong>com</strong>pletos elementos, tenho porem por assentado<br />

que era pae do menor Manuel o Tenente Coronel Manuel José Gomes.<br />

Esse militar era natural de S. Paulo, em cuja Sé foi baptisado<br />

em 10 de setembro de 1773, sendo filho primogênito do Sargento Mór<br />

do mesmo nome e de sua mulher D. Josepha Maria do Espirito Santo,<br />

natural do Rio de Janeiro.<br />

O Sargento Mór Manuel José Gomes, que tudo leva a crer seja<br />

o avô de Manéco Musico, era português, do Arcebispado de Bragança,<br />

desfazendo-se assim a lenda de ter Carlos Gomes uma origem espanhola.<br />

Esse sargento mór das ordenanças da Villa de Mogy, era homem de<br />

pról em S. Paulo, onde foi em 1770 Thezoureiro da Casa de Fundição<br />

e exerceu na Camara postos de relevante importancia, sendo almotacé<br />

e fiscal, e por tres vezes vereador de barrete: em 1773 (quando nasceu<br />

o filho) em 1780 e em 1797, <strong>com</strong>parecendo assiduamente ás sessões.<br />

Em 1792 é convocado, <strong>com</strong>o um dos homens bons da republica, para<br />

dar seu voto em questões de relevante interesse publico. Delle se en-<br />

contra a assignatura em fac-simile á pag. 195 do volume XVI das Actas<br />

publicadas pela Camara Municipal de S. Paulo.<br />

Residiu por muitos annos á rua da Quitanda, em S. Paulo, vi-<br />

vendo de cobranças e tinha chacara nos arrabaldes da capital. Já' em<br />

1769 era homem de algumas posses, tanto que assistiu financeiramente<br />

ao povoador de Piracicaba, <strong>com</strong>o se vê nos Documentos Interessantes<br />

vol. V pgs. 101 e 102.


O segundo Manuel José Gomes, ajudante de Ordenanças desde<br />

6-10-1788, foi depois capitão do primeiro Regimento de Cavallaria Miliciana,<br />

em 1798; exerceu o cargo de Escrivão da Junta da Real Fazenda<br />

e morou <strong>com</strong> sua familia na rua "que da bica vae a Sta. Ephygenia",<br />

hoje ladeira de Sta. Ephygenia.<br />

Pelo cargo que exerceu, bem se vê que era homem de discernimento<br />

gozando bom conceito junto a seus superiores, tanto que em 2 de setembro<br />

de 1802 o Capitão General Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça<br />

propunha ao Visconde de Anadia a promoção de Manuel para Tenente<br />

Coronel effectivo, na vaga por fallecimento de Francisco Pereira de Araujo,<br />

"por ser um dos mais antigos e ter as mais dispozições necessarias para<br />

o exacto desempenho das obrigações do mesmo posto". Recebeu patente<br />

desse cargo <strong>com</strong>o se vê no volume 38 pg. 701 da Rev. do Instituto Historico<br />

de S. Paulo.<br />

Manéco Musico, desapparecendo do recenseamento de Parnahyba<br />

em 1801, não é encontrado em S. Paulo nem na casa de nenhum dos<br />

outros Manueis José Gomes, nem na casa do Mestre André da Silva Gomes,<br />

<strong>com</strong> quem (affirma Benedicto Octávio e é muito provável) aprende a arte<br />

da musica.<br />

Aos nove annos de idade, portanto, já não estava mais o futuro<br />

pae de Carlos Gomes, na sua terra natal.<br />

Só em 1809 vamos encontrá-lo de novo, já agora na villa de S.<br />

Carlos, a bella Campinas de hoje, requerendo habilitação para o seu primeiro<br />

casamento.<br />

Entre os nove e os 17 annos ha um grande espaço no qual perdemos<br />

de vista Manéco Musico.<br />

Foi nesse intervallo que lhe ensinaram a arte musical a que se dedicou<br />

e é possível (dado o seu temperamento) que nessa occasião um<br />

incidente o houvesse obrigado a sahir de Parnahyba, corno relata Cerqueira<br />

Cezar. Sabendo que ia ser recrutado, por instigação de um intrigante,<br />

Manuel José Gomes dá uma sova no delator, e foge de Parnahyba. Não<br />

creio porem que tal incidente se desse <strong>com</strong> " um seu tio, homem de certa<br />

influencia em Parnahyba<br />

D. Antónia Maria de Jesus não tinha irmãos ; a familia de Manuel<br />

José Gomes residia em S. Paulo. O padrasto de Manéco Musico era um<br />

modesto soldado dos Úteis. Influente, e <strong>com</strong> certa importancia militar, só<br />

mesmo o Ajudante Antonio José de Miranda, em cuja casa residia o casal<br />

de Antonio Ribeiro e seus filhos.<br />

A verosimilhança do facto e a probabilidade da hypothese se tornam<br />

mais evidentes, quando se sabe que governava S. Paulo áquelle tempo


(1802 a 1811) o "espirito mesquinho, friamente perverso e intrigante<br />

de Antonio José da Franca e Horta, que ao "enredo e çalumnia que introduziu<br />

nas casas de família e nos quartéis, juntou a violência dos recrutamentos<br />

em massa, nos dias de festas publicas, dentro das egrejas, em<br />

toda parte, para a organisação de novos corpos militares que se faziam<br />

necessários para a realisação da politica interventora de D. João VI no Kio<br />

da Prata", <strong>com</strong>o diz Toledo Piza.<br />

E é sabido que os officiaes de milícia, mormente os capitães-móres,<br />

exerciam discricionariamente seu poder nas villas, "sem outras restricções<br />

que não fosse o seu capricho"- (Idem)<br />

Não ha duvida também que Antonio José de Miranda era homem<br />

de consideração social e de bôa estirpe, sendo sobrinho neto do Capitão<br />

Mor Antonio Corrêa Pinto, Regente das Lages, de cuja irmã, D. Ignez<br />

Maria de Souza era filho, <strong>com</strong>o consta de sua petição publicada pelo Archivo<br />

do Estado nos Documentos Interessantes (III 63).<br />

A esse tempo o Ajudante Miranda já era homem maduro, pois em<br />

1792, quando nasceu Manuel José Gomes estava <strong>com</strong> 40 annos. Em todo<br />

o caso, si a causa de sahida de Manéco Musico de Parnahyba foi realmente<br />

uma tunda que deu, na ponte sobre o Tietê em pessoa influente<br />

que o mandara recrutar, não é impossível que o figurão fosse o proprio<br />

Miranda, então quinquagenario.<br />

Rendamos graças a Deus por essa sova que fez o filho de Antónia<br />

Maria de Jesus fugir de canoa para S. Paulo, e dahi dirigir-se a Campinas,<br />

onde se estabeleceu definitivamente : foi talvez por causa desse incidente<br />

que a villa de S. Carlos veio a ter a gloria de ser a terra do autor da Fosca.<br />

I l l<br />

Bem salienta Benedicto Octávio que só de tres casamentos de Manéco<br />

Musico se tem noticia, apesar dos biographos quasi todos insistirem<br />

na existencia de quatro matrimonios.<br />

Agora, <strong>com</strong> absoluta segurança e sem medo de contestação, podemos<br />

affirmar que o velho parnahybano casou-se apenas tres vezes- em 1809<br />

em 1840 e em 1849.<br />

Da primeira, em 1809, ás 8 horas da manhã de 11 de novembro<br />

na então villa de S. Carlos, <strong>com</strong> Maria Innocencia do Céu natural de s'<br />

João D EI Rey. Tinha o noivo 17 annos e a noiva 15! Esse casamento<br />

de creanças não deu resultado.<br />

"Logo no fim de dois mezes, por seus desencontrados gênios se<br />

separarão , explica Maneco Musico ao requerer em 26 de fevereiro de


1823 seu divorcio, que foi concedido. (Processo archivado na Curia Metropolitana<br />

de S. Paulo).<br />

Ficou Manéco Musico só em Campinas, residindo <strong>com</strong> um escravo<br />

gentio de nome José e tendo em sua <strong>com</strong>panhia dois meninotes, Antonio<br />

e Joaquim, sendo este de Parnahyba. A mulher estava ausente e seu<br />

meio de vida era até certo tempo exclusivamente o serviço de mestre de<br />

musica, dedicado e <strong>com</strong>petente. Rendia-lhe esse serviço mais ou menos<br />

cem mil reis annuaes, é o que reza o recenseamento de 1826. Nessa<br />

época, perto de sua casa residia o alfaiate Manuel Cardoso, cuja renda não<br />

era muito avultada (43$000 por anno, aproximadamente) e em sua <strong>com</strong>panhia<br />

tinha os filhos, Joaquim, Francisco, Justina e Fabiana.<br />

Afastado da esposa, ligara-se Manéco Musico <strong>com</strong> uma senhora de<br />

Porto Feliz, Anna Thereza de Jesus Garcia, filha de Salvador Garcia, que<br />

era jundiahyense. Essa ligação foi anterior a 1820, pois em primeiro de<br />

junho daquelle anno teve Anna Thereza uma filha de nome Marciana Maria,<br />

posteriormente reconhecida por Manuel José Gomes.<br />

Tal situação, tão justificável e humana, era conhecida de todos, pois<br />

os filhos que dahi surgiram, posteriormente reconhecidos pelo pae, foram<br />

pessoas distinctas e estimadas, — dahi o equivoco de todos os biographos,<br />

que suppõem ter sido esse o segundo casamento de Manuel José Gomes.<br />

A verdade é que Maria Innocencia do Céu, sua mulher legitima, o<br />

abandonou, e em 1823 o casal pediu divorcio, sem entrar em explicações<br />

detalhadas. Colhi da tradição oral o informe de que D. Maria Innocencia<br />

do Céu, de tão seraphico nome, tinha preferido seguir a familia, em Minas,<br />

abandonando o marido.<br />

Vão decorrendo os annos. Manéco Musico melhora de situação financeira.<br />

Em 1835 tem loja na cidade; em 1853, ao se justificar a sua<br />

idoneidade <strong>com</strong>o fiador de 1:0008000 annuaes, durante dez annos, a favor<br />

de seu filho Joaquim José Gomes de SanfAnna, que nesse anno se ordenou<br />

<strong>com</strong>o sacerdote, em S. Paulo, é elle visto <strong>com</strong>o homem abonado pelas<br />

testemunhas Francisco de Abreu Sampaio, Januario Máximo de Castro Camargo<br />

e Prado e Luciano Xavier de Oliveira, todos seminaristas Campineiros,<br />

que declaram ser o fiador possuidor de oito ou dez moradas de casa,<br />

alem de escravos.<br />

Mas, inquieto, viril, dotado de uma indómita energia e impulsividade,<br />

o coração de Manéco Musico — coração de artista — não descançou. Via<br />

crescer na mesma rua, junto quasi á sua casa, a bella Fabiana, filha do<br />

alfaiate Cardoso. Era, ao que se affirma, uma esplendida creatura : bella,<br />

alta, robusta, morena clara, dotada de temperamento vivo e ardente. Apesar<br />

de quasi um quarto de século mais moça que Manuel José Gomes, a elle<br />

se entregou, sem restricções. Essa ligação, levada ao gráu extremo, leva-me


a crer que Manéco Musico fosse possuidor de personahdade exœpa<br />

de uma jovialidade encantadora, <strong>com</strong>o attesta o b ' 0 g ra P ho HSn Ue yn a nn7 S " r n<br />

Nem se pode <strong>com</strong>prehender que uma linda créatura<br />

esplendor de suas illusões, houvesse assim dedicado, tão ardoro mente<br />

todo seu affecto a um homem de quarenta e quatro annos, que ja tiniia<br />

então filhas mais velhas que a propria Fabiana.<br />

Em 1.° de junho de 1840, na casa do reverendo Amaro Antunes<br />

da Conceição, em Campinas, tendo <strong>com</strong>o padrinhos seu propno genro<br />

Francisco Borges da Cunha e aquelle sacerdote, casou-se pela segunda vez<br />

Manuel José Gomes, <strong>com</strong> Fabiana Maria Cardoso, filha de Manuel Jose<br />

Cardoso e Francisca Maria de Jesus.<br />

Parece que não viveu bem Manuel José Gomes <strong>com</strong> a segunda<br />

mulher. Si no primeiro matrimonio era muito creança, neste — ao que se<br />

diz era muito velho.<br />

Nha Biana — affirmou-me pessoa da família — gostava de passear,<br />

de apparecer, o que não estava muito de accordo <strong>com</strong> o génio energico<br />

do marido. Bella e moça, parece que refreava pouco as expansões de sua<br />

natureza vivaz. Não é de estranhar que isso despertasse aos cincoenta<br />

annos de Maneco Musico um justificado ciúme.<br />

Na madrugada de 25 de julho de 1844, "no trilho de um brejal,<br />

entre festões de rosas brancas, de rosas sylvestres", appareceu o corpo<br />

da formosa Fabiana, ferido a tiros e punhalada.<br />

Morrera assassinada a mãe de Carlos Gomes, o qual tinha então<br />

apenas oito annos de idade. Levaram-na no dia seguinte, solennemente,<br />

para a Matriz, onde foi sepultada, e não no cemiterio <strong>com</strong>o affirma Benedicto<br />

Octávio.<br />

E a duvida ficou pairando no ar, sobre quem fôra o matador da<br />

desventurada Fabiana. Benedicto Octávio allega a existencia de um alibi<br />

que Manuel José Gomes havia provado. Pessoa conceituadíssima em Campinas<br />

affirmava aos descendentes de Manéco Musico que poderiam ter certeza<br />

absoluta de sua innocencia, pois naquella madrugada sangrenta o velho<br />

musico estava jogando em casa conhecida na rua de Cima, hoje Barão de<br />

Jaguara. E tudo leva também a crer que Manéco Musico não fosse culpado.<br />

Socialmente, sua consideração não diminuiu, pois pouco tempo após<br />

o crime estava dirigindo a banda que tomava parte na recepção em Campinas<br />

ao Imperador D. Pedro II, e (o que me parece mais importante)<br />

veio a se casar após cinco annos de viuvez <strong>com</strong> uma visinha da casa em<br />

que residia <strong>com</strong> Fabiana, conhecedora portanto de suas qualidades e certamente<br />

de seu infortúnio. Fosse legitima a accusação contra Manéco Musico,<br />

houvesse qualquer base positiva para se desconfiar de uma violência e<br />

certamente essa visinha, testemunha de sua vida conjugal, conhecedora intima<br />

de suas attitudes, não quereria casar <strong>com</strong> quem tanta crueldade demonstrára


Parece bem certo que Fabiana foi assassinada por ciúmes, não pelo<br />

marido, mas por um seductor a quem fôra encontrar na cerca dos fundos<br />

da própria casa. Esse moço, de familia notável de Campinas, desappareceu<br />

para sempre da cidade, depois do crime.<br />

Não se sabe bem de onde nasceu a accusação contra Manéco Musico.<br />

De alguém ouvi que a própria mãe de Fabiana andara alarmando a<br />

visinhança, <strong>com</strong> essa calumnia. Ao que se deprehende da certidão de casamento<br />

dos paes de Carlos Gomes, não é impossível que a mulher de Manuel<br />

Cardoso tivesse alguma animosidade contra o genro, para desabafar<br />

nessa opportunidade.<br />

Um ponto porem urge retificar em Benedicto Octávio e em Pio<br />

Vieira, que o repetiu no "Romance de Carlos Gomes".<br />

Explica claramente Benedicto Octávio que o crime foi praticado<br />

onde se abriu mais tarde a rua das flores (hoje José Paulino).<br />

Repitamos <strong>com</strong> o saudoso poeta: "No anno de 1844 a Campinas<br />

do tempo, reduzida <strong>com</strong>o era natural, contava em meio das ruas, hoje Regente<br />

Feijó (onde morava Manéco Musico), e Marechal Deodoro, um brejo<br />

povoado de jurumbevas, o que deu ao actual largo Correia de Mello, o<br />

nome de Jurumbeval. Ora, no logar onde fica a Rua José Paulino (antiga<br />

das Flores) entre as vias publicas nomeadas, havia enorme quantidade de<br />

rosas brancas, rosas sylvestres, o que justificou a denominação dada a essa<br />

rua aberta ao transito publico, nesse ponto, de 1854 a 1855". Foi num<br />

dos trilhos, entre esses rosaes que foi encontrado o cadaver de Fabiana.<br />

Fica assim bem certo que o crime se deu aos fundos da Rua Regente<br />

Feijó, onde nasceu Carlos Gomes.<br />

Como pois se explica que Benedicto Octávio, mais adeante escreva<br />

que a " piedade popular ergueu uma cruz no lugar do assassinato, mais ou<br />

menos, dizem-nos, á esquina da Rua General Osorio, á entrada do Largo<br />

Carlos Gomes"? Como se justificar essa enorme distracção? Si Fabiana<br />

apparece morta na Rua das Flores, proximo ao jurumbeval, <strong>com</strong>o a cruz<br />

<strong>com</strong>memorativa foi plantada no largo Carlos Gomes, esquina da General<br />

Osorio, quando entre os dois pontos ha uma distancia de seis ou sete<br />

quarteirões centraes da cidade?<br />

O distincto campineiro Dr. Enéas Cezar Ferreira affirmou-me que<br />

varias vezes seu venerando Pae lhe mostrou o logar onde se erguia a cruz<br />

que lembrava a morte de Fabiana. Era onde hoje se encontra o portão de<br />

ferro do prédio 1246 da Rua José Paulino, um pouco adeante da esquina<br />

da Rua Bernardino de Campos e aos fundos do quintal da casa hoje 1251<br />

da Rua Regente Feijó, onde em 11 de julho de 1836 nasceu o grande<br />

Tonico de Campinas.<br />

Manuel José Gomes, em 2 de agosto de 1849 casou-se pela terceira<br />

vez, sendo afinal feliz, pois escolheu para esposa a virtuosa e distinctissima<br />

senhora D. Francisca Leite Moraes.


Era viuva, essa senhora, de Laudelino Ferreira da Silva Caldas, e<br />

morava, ao tempo de casada <strong>com</strong> o primeiro marido, na casa vis.nna a de<br />

Manuel e Fabiana. Eram duas casas gemeas, ambas de porta e janeiia,<br />

<strong>com</strong> beiral muito baixo, sendo que a de cima, (mais próxima cia Kua bernardino<br />

de Campos) era a residencia de Manéco Musico, que pagava o<br />

aluguel de 1S600 mensaes.<br />

É conhecido o gênio energico, vivo e trabalhador de Manéco Musico<br />

e delle se narram/no estudo de Cerqueira Cezar e nos livros de Fio<br />

Vieira, factos que lhe pintam o caracter impulsivo. Talvez, por esse feitio,<br />

os menos Íntimos tenham acreditado na possibilidade de um desvario, agredindo<br />

Fabiana.<br />

X-V<br />

Também o interessante episodio narrado por Pio Vieira, dando a razão<br />

da sahida de Carlos Gomes da casa paterna, não me parece convincente.<br />

Diz aquelle autor em seu primeiro livro pg. 70 e no ultimo romance<br />

capitulo III que Manuel José Gomes havia amarrado um filho a uma arvore,<br />

para discipliná-lo energicamente <strong>com</strong> um cipó, quando Carlos Gomes interveio<br />

desarmando o pae e incidindo portanto na sua ira. Isso forçou-o<br />

a sahir de Campinas no dia seguinte, em <strong>com</strong>panhia de Henrique Luiz<br />

Levy e auxiliado pelo Dr. Langaard, indo para o Rio.<br />

Ora, o que me põe em duvida é o seguinte: Carlos Gomes foi<br />

para o Rio em 1859 e a esse tempo Manéco Musico ao que se saiba, não<br />

tinha nenhum filho menino. Dos anteriores ao segundo casamento, o mais<br />

novo já era sacerdote desde 1853; de Fabiana, o único filho alem de Carlos<br />

Gomes era Sant'Anna Gomes, a esse tempo <strong>com</strong> 25 annos, idade pouco<br />

propicia para ser amarrado a uma arvore e espancado. E do terceiro casamento<br />

a primeira creança era a hoje octogenaria D. Joaquina, que apenas<br />

tinha seis annos, idade em que as palmadas são geralmente distribuídas, segurando<br />

simplesmente o pirralho debaixo do braço.<br />

Thomaz, um dos meninos do terceiro casamento, tinha então dois<br />

annos apenas.<br />

Continuo a crer, em falta de outras provas, <strong>com</strong>o sempre, que Carlos<br />

Gomes, não tenha tido outro motivo para precipitar a sua sahida de Campinas<br />

senão a ambição abrasadora, que o fez vencer o respeito á intransigência<br />

paterna, e que o levou ás culminancias da gloria, achando o proprio Rio<br />

de Janeiro pequeno demais para conter a expansão luminosa do seu gênio.<br />

f „ D ã Um i i : esiste " cia P h y sica invejável, de uma vitalidade anormal<br />

falleceu Manuel Jose Gomes aos onze de fevereiro de 1868, <strong>com</strong> 76 annos,


deixando ainda uma filha de tres anno de idade, a bondosa D. Anna Gomes,<br />

a cuja gentileza devo muitos esclarecimentos, e de cuja amizade me<br />

orgulho.<br />

E falleceu, é de se notar, por haver soffrido um accidente. Estava<br />

elle construindo sua casa, numa esquina da praça que hoje tem o nome<br />

de Carlos Gomes (Rua Irmã Seraphina n.° ) quando lhe cahiu ao pescoço<br />

uma trave, que o feriu, occasionando depois a morte. Não fôra isso, e<br />

talvez o velho Manéco Musico tivesse assistido, para sua <strong>com</strong>pleta felicidade,<br />

os dias de maior gloria de seu filho.<br />

"V<br />

Ponto também que tem dado causa a desnecessária celeuma, é o<br />

caso da legitimidade da filiação de Carlos Gomes, a qual tem sido posta<br />

em duvida..<br />

Realmente, relendo os documentos trazidos á luz por Benedicto<br />

Octávio verifica-se que o TONICO DE CAMPINAS nasceu a 11 de julho<br />

e foi baptizado <strong>com</strong>o filho de pae incognito e de Fabiana Maria, estando<br />

aquelle registro mal coberto <strong>com</strong> tinta roxa, da mesma forma que o de<br />

seu irmão SanfAnna Gomes. O cancellamento feito pelo vigário de então,<br />

<strong>com</strong> licença do Ordinário, não foi, <strong>com</strong>o se suppoz, para encobrir a filiação<br />

natural. Ficou o registro intacto no indice, e existe a seu lado a nota de<br />

ter sido renovado no livro 11. A verdade é que em 1840 Manuel José<br />

Gomes casou-se <strong>com</strong> Fabiana Maria, legitimando assim da forma mais solenne,<br />

moral e jurídica, os filhos anteriormente nascidos. Não pode haver<br />

preconceito social, nem falsa pudicícia, em caso que a propia Igreja, rigorosíssima<br />

e intransigente nesse particular, considera <strong>com</strong>pletamente legitima<br />

a prole, <strong>com</strong>o se fosse anterior o casamento.<br />

A legitimação "per subsequens matrimonium" opéra ainda quando<br />

houvesse impedimento deriinente entre os paes. Era assim no Direito<br />

da época:<br />

"Porem se tal filho fosse legitimado per matrimonio seguinte, celebrado<br />

entre seu pae e sua mãe depois de seu nascimento, per que esse<br />

legitimado hé em todo perfeitamente legitimo, haveria logar a dita lei, assi<br />

<strong>com</strong>o se ao tempo de seu nascimento já o matrimonio fosse celebrado".<br />

Ord- L.° 11-35 § 12.<br />

E, em relação ao escrupulo religioso e moral, a Igreja dá ao sacramento<br />

do matrimonio a virtude de purificar toda a macula antecedente:<br />

"Matrimonium omnia praecedentia purgat, et sic próxima,<br />

sive etiam precedens causa turpitudinis sublata est...omnem<br />

maculam purgat... si desponsatur, prinde est quasi nunquam<br />

macula contracta fuisset".


E' pois necessário, de uma vez por todas, que fique claramente consignado<br />

que é certa e jurídica, religiosa e moralmente, a afíirmaçao que<br />

Carlos Gomes era filho legitimo, affirmação que não deve de forma alguma<br />

ser contestada, apenas pela frágil preoccupação de preconceitos hypocritas,<br />

que não podem pretender foros de maior importancia e rigidez, do que<br />

os princípios legaes e principalmente os dictames inflexíveis da lei canónica.<br />

Assim surgiu Carlos Gomes, da indomável sentelha de amor que<br />

fulgurou entre o áspero e agitado coração do musico parnahybano, em<br />

pleno "demon du midi" de seus quarenta e quatro annos, e a alma ardente<br />

de vibração, exhuberante de seiva moça, da Fabiana formosa.<br />

E' <strong>com</strong> ternura profunda, <strong>com</strong>movida e respeitosa, que se percebe<br />

surgir, do fundo obscuro de seu passado, esses vultos cuja carne, cujos<br />

nervos, cujo sangue transmittiram á individualidade inconfundível de Carlos<br />

Gomes, o choque das raças no seio da terra adolescente, a angustia, o<br />

esplendor, o orgulho e a grandeza da alma brasileira.<br />

Immortalizados, na eternidade de seu filho, cabe-lhes a invejável, a<br />

immensa gloria de terem creado, num instante supremo, uma dessas personalidades<br />

de eleição, oásis no deserto da mediocridade humana, que surgem,<br />

de longe em longe, em logares eleitos por Deus, <strong>com</strong>o caem ás vezes do<br />

céu, quentes ainda da gloria sideral, os bólides incandescentes.<br />

Limeira, abril de 1936.


Uma photographia inédita de Carlos Gomes,<br />

de um quadro pertencente ao Automovel Club de Campinas


1<br />

rv


RETRATO DE CARLOS GOMES<br />

iiniiii<br />

por Nelson Omegna<br />

(do Centro de Sciencias, Letras<br />

e Artes de Campinas).<br />

usta-rae tirar da penna a phrase inicial deste estudo. A primeira ideia<br />

que me occorre vem fascinada pelo nome do grande gênio, e electrizada<br />

pelo fervor patriotico de todos os que querem, 110 Brasil, glorificar a memoria<br />

do grande maestro campineiro. Vestiu se, por isto, de rithmo, luxou adjectivos,<br />

pontilhou-se de admiração, e, ao fim, pareceu-me pobre, fraca e pretenciosa...<br />

Elimino-a, porque tenho medo de parecer profano e emphatico nesta hora, em<br />

que se convocam os sentimentos generosos da sinceridade para exaltar o nome,<br />

a vida e a obra de Carlos Gomes.<br />

O refugio na vulgaridade parece-me remedio re<strong>com</strong>mendavel a quem se<br />

propõe a estudar a vida de quem quer que seja. Porque a vida, para se differençar<br />

do romance que se conta, é sempre vulgar. E se para consagrar a<br />

memoria de nosso illustre patrício nos fosse necessário fugir para a Phantasia e<br />

para o Sonho, teríamos renegado o homem para criar um idolo.<br />

Estamos plenamente <strong>com</strong> Chesterton, o glorificador das modestas coisas<br />

que parecem banaes, que só <strong>com</strong>prehende o artista dentro dos quadros das emoções<br />

<strong>com</strong>muns aos homens, porque, de caso contrario, se se deixasse empolgar<br />

por sentimentos <strong>com</strong>pletamente originaes, ou a vida não lhe bastaria para <strong>com</strong>municar<br />

aos homens as suas próprias paixões, ou a poesia deixaria de fallar<br />

atravez de sua arte.<br />

* *<br />

Em Carlos Gomes o homem não é menos interessante que o gênio.<br />

O seu retrato ahi está avultado á nossa retina, nos justos monumentos<br />

que o culto publico da nossa admiração lhe tem levantado nas praças publicas<br />

e nas casas de arte.<br />

De semblante quasi selvagem, de aspecto quasi leonino, a sua cabeça<br />

impressiona pelo traçado forte das linhas, offerecendo-se <strong>com</strong>o encarnação de<br />

um dos retratos impressionistas de Zweig. O forte gripho de seu olhar rasgado<br />

realça o massiço saliente do masseter mongoloide que sustenta o relevo desgracioso<br />

do nariz, suspenso sobre a curva alongada dos bigodes. Sob o difarce<br />

destes, rasga-se a bocca dura, de lábios contrahidos, que guardam harmonia dos<br />

traços fortes e ásperos do queixo largo. Todo o fascínio do retrato, porem, deriva<br />

do alto: a sua fronte larga e magestosa parece que cresce á medida que o<br />

rosto se esconde nos sulcos talhados a fundo pelo soffrimento. Presente-se que<br />

urna aureola espiritual puríssima illumina e transfigura em bellezas as linhas rústicas<br />

do perfil, talhado em metal que o mesticismo, a dôr e a idade oxidaram<br />

em sombra.


Um corpo athletico, musculoso, alonga-se <strong>com</strong>o pedestal para enaltar o<br />

contorno da fronte e o desalinho da cabelleira ondeaute.<br />

O enthusiasmo dos milanezes que o aplaudiram, ^Urífaoào<br />

Fosca, pagou foros de admiração ao seu porte impressionante, nesta exclamação<br />

expressiva : — " Che bello indiano ! "<br />

No envolucro vistoso do corpo floresce o espirito trabalhado pelo dualismo<br />

mais divergente, patenteando a caprichosa amphimixia que o tece" <strong>com</strong><br />

medida igual, de sangue paterno e fibras maternas. As qualidades mentaes do<br />

progenitor, o velho e sisudo Maneco Musico, e o seu temperamento artístico e ao<br />

mesmo tempo ríspido, casaram-se, na alma de Carlos Gomes, <strong>com</strong> a sensibilidade<br />

mórbida de n- a Fabiana, a sua desventurada màe, cuja vida e morte ofierecem<br />

indícios do seu temperamento talhado ao molde dos romances e das aventuras.<br />

E se ao pai deveu a herança de seu talento musical, ficou-lhe da mãe a hypersensibilidade<br />

quasi feminil de sua alma.<br />

Entre esses dois poios, hesita e agita-se toda sua vida intima e artística.<br />

Ora é timido e terno, ora arrojado e decisivo. A fuga para a Côrte sem<br />

licença paterna, e a ansia e <strong>com</strong>oção <strong>com</strong> que, no Rio, aguarda o perdão do<br />

velho Maneco, são quadros que parecem vividos por dois homens distinctos. Ora<br />

é suggestionavel, ora impulsivo. E' romântico e sonhador, mas é também alegre<br />

e brincalhão <strong>com</strong>o attestam as suas cartas cheias de chiste e de humour. Nunca<br />

nos parece uma só coisa. Os adjectivos precisam casar-se pela medida dos contrastes,<br />

pela tonalidade dos claros-escuros, para definir os aspectos mais variados,<br />

que fazem sua alma fascinante e encantadora.<br />

A oscillação é constante. E' que o nivel de seu <strong>com</strong>portamento apoia-se<br />

sobre um milhão de nervos a vibrar e cuja sensibilidade é quasi mórbida. Um<br />

gallo que canta nas vizinhanças deixa-o irritadiço, insomne; os applausos prolongados<br />

amedrontain-no a ponto de fugir do palco, quando da glorificação do<br />

Guarani/; mas tem o arrojo e a coragem das attitudes definidas, por isso que,<br />

na lua de mel da Republica, quando monarchistas de até 14 de Novembro, cantam<br />

loas ao novo regimem, por amor de interesses pingues, elle não trepida em<br />

se confessar fiel ao Imperador, naquella hora em que o apoio do Governo significava<br />

grandes facilidades para sua vida de Artista.<br />

As suas mãos finas, delicadas, nobres, penduradas de espaduas largas,<br />

offerecem á chiromancia banal de qualquer observador, elementos para adivinhar<br />

a mistura do masculino e do feminino que existia nelle, do passo vigoroso e do<br />

andar sinuoso, das arremettidas e das paradas, da perseverança e do abatimento<br />

brusco.<br />

A sua própria arte não poude escapar a esse dualismo. O Guarany tem<br />

tonalidades sentimentaes que evocam a Norma de Bellini e suaves delicadezas<br />

de Verdi, mas tem brados de selvagem, tem rumor de inubias, tem balouço cantante<br />

de florestas, clangor de borés, torrenciar de largas aguas, traduzidos para<br />

o concerto das mais bellas melodias, num processo onomatopaico, imitativo em<br />

que se derramou o selvagismo e a rudeza do filho de Maneco Musico. '<br />

No processo de seu trabalho novamente se faz presente essa dualidade<br />

que lhe engendrou o Destino. Se ama o trabalho e nelle se atufa <strong>com</strong> afinco e<br />

gosto, o que <strong>com</strong>prova o acervo volumoso e caro de suas <strong>com</strong>posições, o esforço<br />

creador parece que nem sempre corresponde a uma elaboração calma e lenta.<br />

Muita vez vai o genial artista estratificando, em largos e pacientes períodos


toda cry8tallizaçào dos seus sonhos e da sua musicalidade, e do demorado trabalho<br />

surde o Guarany. Outra vez, num único relampago, em instantes fugazes,<br />

a inspiração jorra-lhe d'alma <strong>com</strong>o em borbotões, e é a Se sa minga que em<br />

sete breves dias se <strong>com</strong>põe.<br />

Para essa alma feita de duas metades que não se confundem nunca,<br />

porque distinetas surgiram do berço, produzir é enthusiasmo e aniquilamento,<br />

extase e espasmo, volúpia e tormenta; por isso que ao mesmo tempo que tem<br />

gozo em narrar aos amigos as novas realizações e novos planos, deixa transparecer<br />

o queixume e a amargura pelo excesso de trabalho em que lhe vai a vida.<br />

Mas esse dualismo se torna patente ainda em mil e um episodios e lances<br />

de sua vida, que trazia nas próprias cellulas inconscientes, e nas torrentes<br />

do proprio sangue, o <strong>com</strong>bate, o antagonismo de dois temperamentos, que, no<br />

nascedouro, desaguaram na sua alma formosa e atribulada, para tecer a gloria<br />

do seu gênio, e a tortura de sua tragedia.<br />

Mascula é a sua intelligencia e a sua vocação. Feminil é aquella sua<br />

desconfiança, aquella susceptibilidade, que o faz soffrer exageradamente quando,<br />

apenas, vê protelada a sua chimerica proposta de fundar na Campinas de 1880<br />

um theatro Lyrico ou um Conservatorio Musical.<br />

Másculo é o seu porte, o seu physico, que vai despertando pela Italia<br />

interjeições: — " Clie simpático! Che bello giovanotto!" Mas feminil é a sua<br />

attitude de indifferença para <strong>com</strong> as mulheres, o que não escapou á observação<br />

de seu dilecto amigo André Rebouças, que registou esse aspecto de sua vida intima:"<br />

"O maestro tem o desprezo pelo sexo feminino... Gomes raras vezes<br />

tem um accesso de jovialidade para Adelina" e para <strong>com</strong> ella " está sempre<br />

impaciente e de mau humor".<br />

Desconhece-se um romance suave de amor em 6ua vida. O seu lar foi<br />

uma ara em que tudo se sacrificou pela arte e pela gloria, inclusive a felicidade<br />

e a harmonia do casal. Em <strong>com</strong>pensação tem para <strong>com</strong> os filhos uma ternura<br />

mais que paternal, por que é cheia de doçuras quasi que feminis. Mas a sua<br />

vida, sem leves vislumbres de grandes paixões, foi enfeitada por grandes amizades<br />

e devoções que soube inspirar a homens de todas as classes.<br />

Os que delle se aproximavam, podiam deparar, de prompto, "<strong>com</strong> a<br />

rudeza de seus modos, <strong>com</strong> o bizarro de seu todo ", e colher a enganosa impressão<br />

de ter pela frente uma alma despida de expansibilidade ; mas adivinhavam<br />

a seguir que seu espirito era, na essencia, semelhante a esses gazes que quanto<br />

maior a sua capacidade de concentração e retraimento, maior a sua potencia de<br />

expanção. 0 retrahido maestro expandia-se logo em demonstrações generosas e<br />

nobres de grande amizade, sacrificando-se até por amor dos outros.<br />

O proprio sentimento nativista, que é acendrado e constante em toda sua<br />

vida, não fugiu á lei das antinomias, surdindo <strong>com</strong>o centelhas dos poloe eléctricos<br />

de toda a sua emotividade, nos contrastes chocantes dos elementos psychicos.<br />

Os que lhe têm estudado a vida não lhe regateiam applausos ao seu apurado<br />

patriotismo. Por patriotismo se impoz á tarefa hercúlea de realizar o velho<br />

sonho do Imperador do Brasil, quanto á Opera Nacional. Confessa em carta a<br />

Francisco Manoel, seu mestre e seu amigo, que levara para Itália o proposito,<br />

inspirado nas conversas <strong>com</strong> o velho monarcha, de escrever algo que fizesse a<br />

Patria conhecida e louvada. A Providencia deparou-lhe o ensejo de avistar,<br />

num velho alfarrabista de uma escura viela de Milão, o romance de José de


Alencar, nacionalizado para o italiano por autor desconhecido Por{ patno ismo<br />

repassa os seus olhares de fogo sobre as paginas trescalantes de poesia<br />

e sua aima levanta, pelo arrebatamento súbito dos seus sentidos estheticos, 0<br />

espirito de nossas selvas, as lendas dos nossos Íncolas, os costumes e as tradições<br />

de nossa gente, figurando tudo nos sons barbaros e christàos da opera em que<br />

ia amanhecer a arte musical brasileira. Por patriotismo não se naturaliza italiano,<br />

sacrificando, <strong>com</strong> esse gesto de recusa, alto e honroso cargo na direcção<br />

do mundo artistico na patria de Verdi. Por patriotismo não permitte que seu<br />

filho Carlos vista farda de soldado da Italia. Por patriotismo declara innumeras<br />

vezes que deseja que seus ossos de "bugre" sejam enterrados no solo pátrio.<br />

Amou a Patria <strong>com</strong> devoção do mestiço, que, gerado pelo consorcio<br />

de duas fontes ethnicas, não ensaia remontar ás suas origens alem do berço<br />

modesto, mesmo porque isto significaria uma preterição d'este ou d aquelle progenitor.<br />

Presta assim á mãe patria o culto único e exclusivista.<br />

Mais que uma região distante, a patria, que precisou deixar tantas vezes,<br />

era-lhe um estado, uma tensão, uma <strong>com</strong>bustão de nostalgias. Mas, dentro desse<br />

fervor repleto de exaltações liricas, surdia-lhe <strong>com</strong> frequencia a acrimonia contra<br />

tolas insinuações de anonymos. Exagera a significação de alguns episodios, a<br />

ponto de interpretá-los <strong>com</strong>o um desprezo da patria. "No Rio não me querem<br />

nem para porteiro do Conservatorio; em São Paulo, acho que não me darão<br />

nem um lugar de bolieiro, e em Campinas julgam-me um arrivista<br />

O seu patriotismo desbordante não soffre os erros e as injustiças de alguns<br />

patrícios, e por elles olvida, de prompto, o grande acatamento, amizades,<br />

admiração e soccorros de um grande numero de brasileiros.<br />

Mas no processo dos contrastes vivos em que o seu espirito actua sempre,<br />

por predestinação de forças antagônicas, esses instantes de descrenças e amarguras<br />

passam logo para que elle retorne ao pensamento cheio de paixão e de<br />

encanto pela patria.<br />

E' que da confluência efervescente do caldeamento, de que lhe saiu a<br />

alma ardente e apaixonada, derivou a desconfiança do mestiço, por isso que, no<br />

cambio dos affectos, julgava-se um lesado que mais ama do que é amado. Estremecia<br />

a patria, mas ao menor incidente <strong>com</strong> levianos, prophetizava ingratidões<br />

e esquecimento de todos os seus patrícios.<br />

Era ainda isso um aspecto da lueta eterna da feminilidade indecisiva e<br />

enciumada, <strong>com</strong> a generosidade mascula e nobre.


Parte do museu de objectos que pertenceram<br />

ao grande <strong>com</strong>positor


Claudio de Souza<br />

(da Academia Brasileira)<br />

ARLOS GOMES é para nós, paulistas—que nos orgulhamos de<br />

nosso fanatismo exaltado pela terra e pela raça—uma das glo-<br />

rias mais altas e mais queridas de nosso invejado mas inegável génio.<br />

Com as bandeiras o paulista havia doado ao Brasil, a custa<br />

de ingentes sacrifícios, territorios que bastavam para formar algumas<br />

nações. Com suas explorações mineiras havia extraído das terras que<br />

desbravara, e havia oferecido ao Brasil oiro e gemas que bastariam<br />

para constituir a opulência de alguns povos. Com sua lavoura, depois^<br />

creára uma renda para o Brasil egual a que lhe davam todos os outros<br />

filhos reunidos. E já prometia <strong>com</strong> a multiplicação de suas industrias<br />

o milagre que levou a fim de prover o Brasil de tudo que se manu-<br />

fatura.<br />

Isso, porém, se operara e se vinha operando sem que o mundo<br />

tivesse noticia dos assombrosos feitos de seu génio. Tinha o paulista<br />

necessidade de alguém que traduzisse toda sua epopeia para uma lín-<br />

gua universal, levando ao mundo a mensagem de sua cultura. Carlos<br />

Gomes incumbiu-se disso. Foi o mensageiro do génio paulista ao uni-<br />

verso. E do génio paulista puro, cento por cento, na sua espontanei-<br />

dade, sem intervenção ou ensinamento estrangeiro. Reproduziu em suas<br />

operas a conquista bandeirante da floresta primitiva na sua agressivi-<br />

dade, nos seus riscos, nos seus perigos, nos seus heroismos obscuros;<br />

instrumentou as harmonias e as polifonias da pompa orquestral da na-<br />

tureza selvagem, e o saudosismo romântico da canção do aventureiro.<br />

Cantou a aventura, a abnegação, o heroísmo e os grandes lances de<br />

amor da raça que se formava. Na sua musica fala toda a galeria imor-


tal dos brasiliadas paulistas dos dilatadores da patria, dos sertanistas<br />

audazes desde o primeiro bandeirante até o ultimo sonhador das serras<br />

de esmeraldas.<br />

E porisso, nós, paulistas, lhe devemos o culto que todas as raças<br />

prestam aos que dedicaram a luz inteira de seu gênio a exaltar e far<br />

zer resplandecer as paginas imortaes de sua historia.


M O N U M E N T O Á C A R L O S G O M E S<br />

ERIGUO E.vl CAMPINAS E- M 2 UE. JULHO DEL 18C5


I<br />

(RESUMO)<br />

(Dous Artistas Máximos)<br />

Ephemerides de Carlos Gomes<br />

Dr. Carlos Stevenson<br />

1836 — Antonio Carlos Gomes nasceu em Campinas—São Paulo<br />

—a 11 de Julho.<br />

1859 — Matriculou-se nas aulas de contra-ponto, sendo professor<br />

Joaquim Gianini.<br />

Foi premiado <strong>com</strong> Menção Honrosa de 1.' classe.<br />

1860 — Premiado <strong>com</strong> a pequena medalha de ouro.<br />

Na solennidade de distribuição de prémios da Academia de Bellas<br />

Artes, a 15 de Março, foi executada uma cantada de sua <strong>com</strong>posição.<br />

1861 —Em sessão da Congregação dessa Academia, a 1.° de<br />

Outubro, foi unanimemente approvada a proposta do Conservatorio de<br />

Musica, para que se solicitasse uma condecoração para Carlos Gomes,<br />

pela sua opera «Noite do Castello», cantada no Theatro Lyrico Provisorio,<br />

a 4 e 7 de Setembro.<br />

A 8 de Novembro lhe foi entregue a venera, de brilhantes, <strong>com</strong><br />

o diploma, mandada por S. M. o Imperador.<br />

1863 — Foi escolhido pelo Director do Conservatório de Musica<br />

o alumno Carlos Gomes, autor das operas «Noite do Castello» e «Joanna<br />

de Flandres-, para ir, a expensas da Empresa Opera Lyrica Nacional,<br />

conforme seu contracto <strong>com</strong> o Governo, aperfeiçoar-se num Conservatorio<br />

da Italia.


1869-70 - Estréa do .Guarany* em Milão. Narroa um diletante<br />

italiano ... Parecia que brisa suave e perfumada percorria o theatro inteiro.<br />

Não se applaudiu para não interromper os cantores; os amigos<br />

de Carlos Gomes, porém, olhavam uns aos outros sorrindo, a dizer <strong>com</strong><br />

os olhos: —O «Guarany* está salvo... Gomes ganhou a Victoria, t,<br />

dahi em deante, <strong>com</strong>eçaram os applausos em progressão sempre crescente,<br />

a terminar em delirante ovação a Carlos Gomes.<br />

1870 — 2 de Dezembro. Dia e noite bellos. 45.° anniversario do<br />

Imperador D. Pedro II. Estréa, em grande gala, do «Guarany», no Theatro<br />

Lyrico Provrsorio.<br />

3 de Dezembro — 2. a representação do «Guarany».<br />

7 de Dezembro — 4.' recita, em beneficio de Carlos Gomes.<br />

O pianista Achilles Arnaud apresenta, antes do 3° acto, Carlos Gomes<br />

a André Rebouças.<br />

Depois do espectáculo houve marche aux flambeaux, <strong>com</strong> musica<br />

até o Largo da Carioca, onde estava hospedado o maestro.<br />

11 de Dezembro — Carlos Gomes visita a André Rebouças. A<br />

tarde André Rebouças o apresenta ao ministro do império, João Alfredo<br />

Correia de Oliveira.<br />

13 de Dezembro — Carlos Gomes, <strong>com</strong> André Rebouças, visita<br />

o Imperador, em São Christováo. Conversação muito paternal. Aconse-<br />

Iha-lhe ir á Allemanha. Promette escrever aos reis de Portugal, para ser<br />

representado o «Guarany» em Lisboa.<br />

15 de Dezembro — A convite de Carlos Gomes, o Ministro do<br />

Império assiste, de um camarote, a 6. a recita do «Guarany*. Desejava<br />

uma pensão permanente que lhe permittisse trabalhar livre da pressão das<br />

necessidades.<br />

Só em Julho de 1873 foi esta pensão votada pelo Parlamento<br />

graças aos esforços do deputado A. d'Escragnolle Taunay.<br />

1871 — Carlos Gomes vai a Campinas, em visita a seu irmão<br />

e protector, José Pedro de SanfAnna Gomes.<br />

/ de Janeiro-Penúltima recita do «Guarany*, no Rio de Janeiro.


9 de Janeiro — Ultima recita. Termina a estação lyrica.<br />

16 de Fevereiro — Chega Carlos Gomes de Campinas.<br />

18 de Fevereiro — Vai <strong>com</strong> André Rebouças despedir-se do Imperador,<br />

em São Christovão. Mesmo tratamento paternal.<br />

23 de Fevereiro — Parte Carlos Gomes para a Europa. No «Jornal»<br />

de 24 vem a sua despedida que termina: — A gratidão é a maior<br />

virtude d'alma. Eu a sinto e portanto julgo-me feliz ! Adeus !<br />

16 de Dezembro — Carlos Gomes casa-se <strong>com</strong> Adelina Peri, filha<br />

legitima de Francisco Peri e Gertrudes Peri. O casamento celebrouse<br />

na Chiesa di San Carlo, no Corso Vittorio Emmanuele, em Milão.<br />

1872 — 14 de Dezembro — André Rebouças, em viagem pela<br />

Italia, escreve a Carlos Gomes, pedindo-lhe um ponto de encontro<br />

23 de Dezembro — Encontro em Turim. Carlos Gomes ensaia,<br />

no Theatro Régis o «Guarany». Sua preocupação era a «Fosca» que<br />

ia ser representada em Milão, no Scala.<br />

27 de Dezembro — Diz o meu «Diário»:<br />

«Enche-me de orgulho ver nos ensaios <strong>com</strong>o os italianos respeitam<br />

a Carlos Gomes, desde Perotti, o illustre Maestro, regente da orchestra,<br />

até os últimos coristas, aos quais êle ensina gesto por gesto».<br />

«Que prodígio ! Nascer em Campinas, nos confins de São Paulo,<br />

e vir dar regras de musica, de canto e até de mimica, na Italia !<br />

28 de Dezembro — 1.' recita do «Guarany», em Turim Carlos<br />

Gomes foi chamado dez vezes á scena Applausos enthusiasticos, desde<br />

a ouvertura<br />

29 de Dezembro — Partida de Carlos Gomes para Milão, afim<br />

de activar os ensaios e preparativos da «Fosca».<br />

1873 — 29 de Janeiro — Nasce ás 8 horas o primogénito de<br />

Carlos Gomes.


da «Fosca».<br />

13 de Fevereiro — Carlos Gomes trabalha nos últimos ensaios<br />

16 de Fevereiro — Estréa da «Fosca-. Theatro em maxima enchente<br />

; o publico manifesta-se logo no fim da 2. a scena. Carlos Gomes<br />

vem ao proscênio, sem a menor distincção honorifica, agradece rapidamente<br />

e desapparece <strong>com</strong>o por encanto. Os milaneses exclamam : Che<br />

bravo giovanetto! Che bello indiano! O dueto final do 3.° acto produziu<br />

murmurio de admiração desde a 1 a frase; tres salvas unanimes de<br />

applausos.<br />

2 de Março — Baptisado de Carlos André Gomes, ás 2 horas<br />

da tarde, na Chiesa di San Carlo.<br />

Assistimos, á noite, á 5.' representação da «Fosca», em grande<br />

gala, <strong>com</strong> o Scala illuminado a giorno. Era festejado o domingo seguinte<br />

ao carnaval, <strong>com</strong>o termo da semana <strong>com</strong>pleta de carnaval.<br />

10 de Março — Carlos Gomes vai <strong>com</strong> André Rebouças a Malgrato,<br />

á casa do poeta Antonio Ghislanzoni e contrata o libreto do «Salvator<br />

Rosa». Para esse libreto, deu-lhe Carlos Gomes o romance «Masaniello»,<br />

de Mirecourt. A opera chamava-se também «Masaniello*, mas<br />

passou depois a ser «Salvador Rosa», para evitar confusão <strong>com</strong> outra<br />

do mesmo nome, pertencente á casa Ricordi.<br />

12 de Março—Contrato do «Salvador Rosa». 2.000 francos pelo<br />

libreto, sendo 1.500 pagos por Carlos Gomes e 500 pelo editor.<br />

13 de Março — Partida inopinada do tenor Carlos Bulterini, para<br />

Buenos Aires, interrompendo as representações da «Fosca».<br />

Julho — Decreto, concedendo uma pensão a Carlos Gomes, obtido<br />

por esforço do deputado Taunay.<br />

O «Guarany» teve grande ovação em Santiago do Chile.<br />

O Imperador ouve a partitura da «Fosca», ao piano pelo Dr<br />

Martins Pinheiro, a 30 de Agosto.<br />

1874 — Março — Triumphal estréa do «Salvador Rosa»<br />

I w


Abril — Denominação da Praça Carlos Gomes, em Campinas.<br />

1875 — Nascimento de Mario Antonio Gomes, fallecido a 25<br />

de Agosto de 1879.<br />

1876 — Agosto — »Guarany» em Montevideu.<br />

Setembro — Em Montevideu offerecem um rico album a Carlos<br />

Gomes.<br />

1878 — 12 de Outubro — Representação do «Guaranyno<br />

Rio de Janeiro, pela «Companhia Ferrari». Extraordinário enthusiasmo.<br />

Março — Estréa da «Maria Tudor», no Scala.<br />

Julho — Estréa do «Guarany», na Bahia.<br />

26 de Julho — Extraordinaria ovação a Carlos Gomes; libertam<br />

duas creanças em sua honra.<br />

1880 — Abril — Carlos Gomes na Bahia. Representação do<br />

«Guarany» e do «Salvador Rosa».<br />

Julho, 18 — Triumphal recepção de Carlos Gomes, no Rio de<br />

Janeiro.<br />

17 de Agosto — Estréa do «Salvador Rosa» pela Companhia Ferrari.<br />

2 de Setembro — Festival a Carlos Gomes no Cassino Fluminense.<br />

9 de Novembro — Volta Carlos Gomes á Europa, depois de representar<br />

suas operas em São Paulo, <strong>com</strong> a Companhia Ferrari.<br />

1882 — Junho — Carlos Gomes em Pernambuco.<br />

1884 — Março — Abolição do elemento servil no Ceará. Carlos<br />

Gomes <strong>com</strong>põe a «Marcha Popular do Ceará Livre.<br />

1889 — 9 de Julho — Chegada ao Rio, <strong>com</strong> sua filhinha.


Isabel.<br />

26 de Agosto - Grande concerto promovido pela Princeza D.<br />

26 de Setembro — Estréa da Opera «Schiavo».<br />

28 de Setembro — Representação de Grande Gala.<br />

2 de Outubro — Beneficio. Condecorado pelo Imperador, <strong>com</strong>o<br />

grande dignatario da Ordem da Rosa.<br />

Paulo.<br />

9 de Novembro — Primeira representação do «Schiavo» em São<br />

1891 — Fevereiro — Estréa da opera «Condor», no Scala.<br />

1892 — Outubro — Estréa do «Colombo», no Rio de Janeiro.<br />

1805 — Março — Carlos Gomes em Lisboa. Condecorado <strong>com</strong><br />

a <strong>com</strong>enda de S. Thiago, em pleno theatro, tendo a orchestra tocado a<br />

ouverture do «Guarany».<br />

Em viagem para Belem, passa no vapor «Sobralluse» por Funchal<br />

— Encontro <strong>com</strong> André Rebouças.<br />

1896 — 8 de Abril — Operação na lingua, em Lisboa.<br />

5 de Março — Passa novamente por Funchal, no vapor «Obidence».<br />

Tristíssima visita de André Rebouças.<br />

Operas de Carlos Gomes, não concluídas:<br />

«Gabriella de Blossac». Libreto do poeta d'Orneville.<br />

«Palma»<br />

«Morena»<br />

«Cavalleiro Bizarro».<br />

(a) André Rebouças


^ ^<br />

Resoem vozes crystalinas<br />

No céo,<br />

Para glorificar na terra<br />

O grande filho de Campinas,<br />

Que outrora,<br />

Embora triste e doente, pobre e calumniado,<br />

Com o coração torturado<br />

Pelos espinhos cruéis da ingratidão;<br />

Nobre entre os vis, heroico entre os covardes,<br />

Como um sol entre os vermes refulgindo;<br />

Transformando<br />

Os apodos da inveja e as pedradas do egoísmo<br />

Na transfiguração<br />

Das rosas de oiro da belleza,<br />

Conquistou,<br />

Para orgulho de sua Patria,<br />

Para a immortalidade de seu Povo,<br />

Com as harmonias triumphaes do «Guarany»,<br />

Entre bençams e flores, glorias e explendores,<br />

A Eternidade n'uma Hora...<br />

A tua Musica divina<br />

Traduz,<br />

Oh! Carlos Gomes!<br />

Na sublime orchestração<br />

Da Natureza,<br />

Ora triste, sorrindo, ora alegre, chorando,<br />

Os suspiros das frondes e os clamores do Oceano;<br />

Os mysterios das sombras e as apoteoses da luz ;<br />

Os rugidos e os sonhos, os encantos e os pavores<br />

Das selvas americanas;<br />

As ancias e os delírios, as dores e as agonias,<br />

Das paixões humanas,<br />

Espelhando<br />

Num arroubo profundo<br />

As paysagens da Terra e as tragedias do Mundo.<br />

Rio, 28 de Abril de 1936<br />

Laurindo de Brito


Palavras proferidas por J. Eustachio de Azevedo,<br />

orador da "Mina Litteraria". do Pará ha 40<br />

annos. por occasião de ser transportado da casa<br />

mortuaria para o cemiterio da Soledade o feretro<br />

glorioso do grande génio musical brasileiro.<br />

, enhores! Quando Elie morreu toldaram-se os céus de minha terra e as nuvens,<br />

" rasgando-se de desespero, encobriram por instantes o bellissimo clarão da lua.<br />

As pyraustas, em revoada de loucas, debatiam-se no espaço, semi-mortas.<br />

Quando Elie morreu as flores murcharam tristuosas, e evaporou-se-lhes o perfume;<br />

as aves emudeceram, <strong>com</strong>o que oppresas pela suffocação que produz o pezar... Quando<br />

Elie morreu o altaneiro condor desappareceu por entre a neve dos Andes, louco de dor ; as florestas<br />

americanas desfolharam seus viridentes ramos, e cada folha que cahia, —era uma lagrima!<br />

Quando Elie morreu o Amazonas rugiu, aculeado pela noticia fúnebre e rebentou<br />

a mais forte de suas porôrócas, ensopando <strong>com</strong> o salso pranto a planicie! Quando Elie<br />

morreu a mulher brasileira ajoelhou-se, e rezou uma prece tão sentida que a natureza estremeceu<br />

de angustia. A mocidade perguntou por Deu, transida de saudade e de amargura ...<br />

Quando Elie morreu calou-se a musica dos orgãos, numa ultima nota pungitiva!...<br />

O Brasil inteiro chorou quando Elie morreu ! Campinas immergiu-se em pranto,<br />

Belem, banhou-se de lagrimas; São Paulo cobriu-se de lucto, o Pará velou-se de crêpe,<br />

quando Elie morreu ! Uma voz apenas se ouviu, vinda do meio das selvas brasileiras:<br />

"Sento una forza indómita"<br />

"que ognor mi traggè a te /"<br />

Era Pery, era Pery, personificado no brasileiro de raça, que já não tendo mais lagrimas<br />

cantava a elegia da morte, enchendo as nossas mattas virgens <strong>com</strong> as melodiosas<br />

notas do Guarany... Era Pery que lamentava, a seu modo, a morte do Génio que o immortalizara !<br />

Quando Elie morreu,., a sussuarana procurou a lua para indagar o que era feito<br />

d'Elle, mas foi em vão! Noetiluca conservou-se, <strong>com</strong>o sempre, prateada e muda. Então a<br />

féra, ferida pelos espinhos da saudade, soltou um rugido de dôr que encontrou écho no coração<br />

do jaguar! Até as féras choraram quando Elie morreu !<br />

Quando Elie morreu a italia, pela voz de seus gondoleiros, cantava <strong>com</strong>o eterna<br />

recordação;<br />

"Mia piccerella ! den ! viene a lu mare,<br />

"Neila barchetta ve un letto di fior..."<br />

Céos, terras, mares, tudo vergou ao peso de tamanha fatalidade !...<br />

Quando Elie morreu o velho e o novo mundo se uniram pelas lagrimas, — irmãos<br />

de um mesmo sentimento, <strong>com</strong>panheiros de uma só amargura, porque tinha tombado o monarcha<br />

dos sons; porque desapparecera um verdadeiro Génio; porque extinguira-se um dos<br />

maiores artistas do mundo, irmão de Donizetti, de Bellini, de Verdi, e de tantos outros;<br />

porque, finalmente, desapparecera de entre os vivos aquella alma de illuminado, aquelle espirito<br />

in<strong>com</strong>parável, aquelle éstro de fogo, aquelle génio de titão, que foi, é e será — uma<br />

das mais patentes glorias americanas e o mais evidente orgulho nacional!<br />

Só o Pantheon da Fama estava em festas, só a Historia sorria : aquelle, porque recebia<br />

o estremecido arcaboiço de mais um heróe; esta, porque inscrevia no seu livro de<br />

ouro mais um nome fulgentissimo: — CARLOS GOMES, o IMMORTAL.<br />

Senhores !<br />

Como brasileiro e em nome da Mina Litteraria, eu prostro-me de joelhos, <strong>com</strong> ocoração<br />

affhcto, <strong>com</strong> a alma dilacerada diante do feretro estupendo da maior gloria musical de meu paiz !<br />

Pará, 20-9-1896 — A trasladação do corpo de Carlos Gomes para Soledade foi a<br />

maior e a mais extraord.nar.a romana cívica que até hoje, tem havido entre nós Pôde se<br />

dizer que o Para inteiro a ella <strong>com</strong>pareceu <strong>com</strong>pungido.


D. Pedro II, amigo e protector de Carlos Gomes<br />

ír


D. PEDRO II<br />

(0 grande amigo de Carlos Gomes)<br />

ítala Gomes Vaz de Carvalho<br />

ontou-me uma testemunha ocular, que a 5 de Novembro de 1881,<br />

estava uma noite no theatro S. Carlos, em Lisboa, e já a orchestra<br />

havia dado inicio aos primeiros <strong>com</strong>passos do preludio do Rigoleto, quando<br />

surgira no Camarote Real o Rei D. Luiz 1-°, a<strong>com</strong>panhado de Carlos Gomes,<br />

de regresso, naquelle mesmo dia do Brasil, onde havia sido acclamado<br />

<strong>com</strong> sua segunda grande opera "Fosca", na Bahia e no Rio de<br />

Janeiro. Todos se levantaram e a orchestra, de pé, atacou a protophonia<br />

do «Guarany» <strong>com</strong>o se fosse o hymno nacional brasileiro que os<br />

portugueses entoassem em honra do illustre hospede brasileiro! — A<br />

desvanecedora homenagem que se prestou n'aquella noite ao grande<br />

campineiro, fôra certamente uma ordem expressiva do proprio Rei D.<br />

Luiz 1.°, a quem Carlos Gomes havia pela segunda vez, ha 15 annos<br />

de distancia, entregue as credenciaes de que o Imperador D. Pedro II o<br />

munira, <strong>com</strong> especial carinho, re<strong>com</strong>mendando ao illustre sobrinho, o estimado<br />

cantor de sua terra!<br />

E assim sempre, ao longo de sua atormentada existencia, Carlos<br />

Gomes recebera o amparo, o consolo moral e o attento interesse de<br />

D. Pedro II.<br />

— «Se não fosse o Imperador, eu não seria Carlos Gomes!»<br />

repetia frequentemente meu Pae aos que lhe observaram que finalmente,<br />

o amparo do Chefe da Nação Brasileira, não fôra o que poderia ter sido<br />

e que justamente faltou ao artista o esteio material que na pujança<br />

de sua melhor producção artistica não poude ultrapassar os píncaros de<br />

perfeição, aos quaes tinha chegado pela necessidade reles de escrever<br />

muita musica que se pudesse vender <strong>com</strong> facilidade.<br />

Certos biographos de Carlos Gomes faliam defuma pensão obtida<br />

pelo Maestro após múltiplas e reiteradas diligencias postas em pratica pelo<br />

grande amigo de meu Pae, o Visconde d'Escragnole Taunay e de André<br />

Rebouças, no ann.o de 1876-78 — e divulgou-se, <strong>com</strong> sabor anedoctico,<br />

uma phrase que o Imperador teria proferido ao despachar o documento:<br />

— "Eis um decreto que assigno <strong>com</strong> grande satisfação!" — Mas<br />

está averiguado que o Maestro nunca beneficiou de semelhante cousa.<br />

A pensão foi certamente pedida, mas não chegou ao seu destino,<br />

e seria para dar ao <strong>com</strong>positor a possibilidade de ir <strong>com</strong>pletar seus<br />

estudos na Allemanha e na França, onde teria certamente colhido outros<br />

elementos de perfeição para maior gloria e renome seu e do Brasil, que<br />

no emtanto já havia feito universalmente conhecer através de suas harmonias<br />

sublimes ! Se Carlos Gomes a tivesse recebido, um só dia, te-


G4<br />

ria immediatamente partido <strong>com</strong> mulher e filhos para Berlim, cumprindo<br />

sem contesto o desejo do Imperador, que era para elle sagrado, mas<br />

não sei porque, o decreto não foi posto em execução. Meu Pae nunca<br />

nos fallou nisso, nem a meu irmão nem a mim, porem grande devia ter<br />

sido a sua magoa por haver constatado que o elemento contrario ao<br />

seu progresso, junto a D. Pedro 11, tinha tido ganho de causa! Minha<br />

tia Josephina Peri, irmã de minha mãe, que partilhou do viver do casal<br />

Carlos Gomes, contára-me innumeras vezes dos anceios e das espectativas<br />

em que meu Pae vivera, á espera daquelle auxilio pecuniário que<br />

finalmente nunca chegou ! —<br />

Na verdade, a protecção do Imperador, em moeda sonante, limitou-se<br />

áquelles 4 annos de pensão de 150 mil réis mensaes, durante os<br />

quatro annos de estudos em Milão e aos 10 ou 20 contos de réis que<br />

o Monarca concedeu a Carlos Gomes para a enscenação do *Guarany»<br />

no «Scala» de Milão e no «Theatro Provisorio* do Rio de Janeiro, a 2<br />

de dezembro de 1870, dia dos annos de D. Pedro II.<br />

Quando, naquelle mesmo anno, meu Pae quiz regressar á Italia,<br />

onde o esperavam diversos <strong>com</strong>promissos e en<strong>com</strong>mendas de novas<br />

operas, achou-se muito necessitado, tendo embora levado vida modestíssima<br />

de estudante pobre, dormindo num pequeno quarto que lhe cedera<br />

o amigo Julio de Freitas, morador num sobrado no Largo da Carioca.<br />

Sem recursos, apesar de tantas glorias, vendeu então os direitos de<br />

edição do «Guarany*, para todo o Brasil, á Casa Arthur Napoleão pela<br />

quantia, irrisória, de 800 mil réis!— Carlos Gomes foi, desde o inicio<br />

de sua carreira, positivamente abandonado pelas autoridades de seu paiz,<br />

entre as mãos dos editores e dos emprezarios internacionaes ! —<br />

Bem pouco, todavia, teria custado ao imperador proteger Carlos<br />

Gomes de uma maneira mais generosa e continuada, coroando sua obra<br />

de Mecenas, tão lindamente iniciada, amparando o grande gênio brasileiro<br />

da musica, ao par do que fizera o Rei Luiz II da Baviera <strong>com</strong><br />

Ricardo Wagner! — Ai de mim! desgraçadamente D. Pedro II, rodeado<br />

de ministros e cortezãos hostis á idéa de gastar dinheiro <strong>com</strong>,<br />

"fabricantes de operetas" — <strong>com</strong>o qualificaram de modo pejorativo o<br />

grande Mestre Campineiro, não teve coragem de firmar o seu gesto louvável,<br />

amparando o artista que já havia coberto de gloria o seu amado<br />

paiz e dado tamanho brilho ao seu império ! Não foi certamente o desejo<br />

que lhe faltou, foi apenas a ousadia de ir de encontro ás opiniões<br />

do seu Governo formado em sua maioria de homens incapazes de <strong>com</strong>prehender<br />

a belleza da musica e o prestigio que ganha um paiz quando<br />

possa apresentar ao mundo culto, artistas da envergadura de Carlos Gomes<br />

! Lamentavel in<strong>com</strong>prehensão que todavia não conseguio refrear os arremessos<br />

de illimitada gratidão que meu pae sempre alimentava pelo seu<br />

grande amigo, o Imperador D. Pedro II.<br />

Rio, 28- VI- 1930


I<br />

II<br />

1<br />

D. 1 Adelina Péri Gomes, esposa do saudoso maestro<br />

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eminiscências de<br />

CARLOS GOMES<br />

por ítala Gomes Vaz de Carvalho<br />

(Filha do autor de "0 Guarany")<br />

TRANSCRIPÇÀO DA <strong>REV</strong>ISTA O CRUZEIRO E A CIGARRA<br />

mrimeira recordação bem nitida que eu tenho de meu pae, remonta<br />

ao tempo em que, ainda pequenina, eu estava uma manhã de verão<br />

ao collo de minha ama, na varanda de nosso appartamento, vendo approximarse<br />

ao longe uma musica militar que vinha em direcção de nossa casa. Moravamos<br />

então em Milão, no corso Magenta, no 3.° andar de um vetusto palacio de<br />

tijolos rubros, <strong>com</strong>o ha muitos na Capital Lombarda. Os soldados vinham chegando<br />

numa marcha cadenciada pelo rythmo da musica. Deveriam ser tropas<br />

que partiam para os primeiros <strong>com</strong>bates desastrados na Africa, contra o liei<br />

Menelick. O toque dos clarins exasperava-me! Papae também sahiu do estudio<br />

vindo para a sacada olhar o que se estava passando. Eu devo ter ficado de repente<br />

indignada <strong>com</strong> o barulho ensurdecedor porque, num arremesso de raiva,<br />

joguei o boneco de páu que tinha nas mãos, sobre a cabeça do trombone que<br />

passava bem em baixo de nossas janellas.<br />

— Bravos "fifia" ! gritou papae enthusiasmado, "dê pancada no homem<br />

que desafina e toca musica feia!..." Mas eu já chorava <strong>com</strong> saudade do boneco<br />

e foi preciso que meu pae fosse <strong>com</strong>prar outro brinquedo ás pressas para<br />

me acalmar !<br />

Papae adorava as crianças e tinha por mim, que cheguei por ultimo, depois<br />

de uma serie de rapazes, uma verdadeira idolatria! Por certo eu encantava-o<br />

duplamente, porque substituía no seu coração cheio de ternura, o logar<br />

deixado vazio por minha irmã Carlota-Maria, a primeira filha do casal Péry-<br />

Carlos Gomes, que morrera <strong>com</strong> poucos annos de edade.<br />

Meus irmãos não eram dados a musica e quando eu cheguei, tarde, sem<br />

que ninguém mais contasse <strong>com</strong>migo, papae teve uma esperança nova e julgou<br />

ter ganho emfim uma herdeira que seria mais tarde a digna representante da<br />

illustre tradição musical que elle deixou.<br />

Mas esta também foi uma mera illusão.<br />

Ein vão deu-me elle os melhores professores de piano e de violino. Eu<br />

fui, e ainda sou, um dos maiores desmentidos da herança espiritual e artística<br />

que se pôde constatar. E' campo em que, filho de peixe não é peixinho, e querendo<br />

nadar afoga!<br />

Meu pae foi um dos maiores <strong>com</strong>positores musicaes das duas Américas.<br />

Sua inspiração era genial! Minha mãe, fôra uma eximia pianista de grande talento,<br />

primeiro premio dos conservatorios de Milão e de Roma e no emtanto eu<br />

sou incapaz embora ame e conheça a musica a fundo, de modular espontaneamente<br />

um qualquer accorde simples de õ'* ou sexta dominante l Quando papae<br />

considerava, <strong>com</strong> desapontamento, meus esforços pianisticos, mal coroados de<br />

algum magro successo, dizia-me <strong>com</strong> bondade:


— Não faz mal fifia: ser pianista não vale nada... Estude somente para<br />

conhecer bem a musica e quando você crescer, terá uma bonita voz para cantar .<br />

A morte levou-o antes que eu tivesse alcançado a edade cm que lhe daria<br />

mais uma decepção de arte!<br />

Lembro-me da paciência <strong>com</strong> que elle aturava os exercícios pianisticos<br />

que eu fazia diariamente, embora num quarto longe do estúdio, mas que fatalmente<br />

deviam perturba-lo nas suas inspirações.<br />

Papae dormia pouquíssimo. Sempre nervoso, agitado, trabalhava durante<br />

a noite. Quantas vezes eu accordei ás 2 e 3 horas da madrugada ouvindo os<br />

accordes do piano de papai.<br />

Compunha e fumava... fumava sem cessar aquelles horrendos charutos<br />

milanezes chamados Sigari Virgínia, munidos de uma piteirinha de palha dura,<br />

que deve ter sido a causa inicial do mal que o levou iào cedo quando poderia<br />

ainda produzir tanta cousa para a maior gloria do seu Paiz! O amor da Patria<br />

era o traço dominante do caracter de meu pae. Manifestava-se nas menores<br />

cousas. No Sitio de Maggianico perto do Lago de Lecco onde havia feito edificar<br />

uma villa simples, de estylo colonial, rodeou-se de tudo quanto lhe podia<br />

lembrar a terra onde nasceu. Kecordo-me <strong>com</strong> saudade dos dias de ferias quando<br />

vinha do collegio e me achava de novo entre as araras e os papagaios que<br />

enchiam as varandas em volta da casa! Todos falavam portuguez, mas por fim misturavam<br />

vocábulos do dialecto lombardo numa charanga que divertia immenso<br />

meu pae.<br />

Tínhamos lá um grande viveiro cheio de passaros do Brasil que papae<br />

trazia das viagens. Até arapongas lá viviam em <strong>com</strong>panhia de patativas, sabiás<br />

e caboclinhos que se domesticaram muito bem. Saliiam a esvoaçar pelo jardim<br />

durante o dia e á tardinha voltavam ao viveiro em busca do abrigo para a noite.<br />

No pomar, habitavam famílias de sagüis que mal resistiam ao clima frio,<br />

apegar das casinholas de madeira onde se podiam refugiar. Quando morria um<br />

delles, eu e meus irmãos, <strong>com</strong> as primas Maria e Elisa Monteiro, que moravam<br />

<strong>com</strong>nosco, organizavamos pomposos enterros dos nossos <strong>com</strong>panheiros de brincadeiras.<br />

Papae <strong>com</strong>puzera especialmente uma marcha para as cerimonias fúnebres,<br />

mas tenho a impressão que a toada era antes alegre!<br />

Infelizmente não achei, entre os manuscriptos, esta pagina evocadora de<br />

tocantes episodios da minha infancia!<br />

Cada recanto do Sitio era baptisado <strong>com</strong> nomes brasileiros.<br />

Havia um lago chamado Lagoa Formosa e uma canoa <strong>com</strong> o nome de<br />

Pindamonhangaba pintado na popa em verde e amarello.<br />

Íamos assim remando no bosque dos Jequilibás. que na realidade eram<br />

umas immcnsas figueiras bravas, até a uma moita de bambus nanicos e soffredores<br />

que, <strong>com</strong> as neves dos invernos nunca puderam ultrapassar os 2 metros<br />

de altura, mas papae adorava aquelles aspectos da natureza que lhe davam uma<br />

pallida impressão da flora e da fauna do amado Brasil! Atraz das cerejeiras de<br />

Maggianico elle idealizava contemplar os cafeeiros, as jaboticabeiras, e as palmeiras<br />

da Patria distante.<br />

Era um ambiente, embora falso, forjado pela intensa nostalgia do perfume<br />

e do verde negro das florestas da Serra do Mar; e foi lá, todavia, que meu pae<br />

saturado da mais pungente saudade, <strong>com</strong>puzera a sublime melodia do Céu de<br />

Parahyba da opera O Escravo. Somente por isso o nosso culto deveria também<br />

immortalizar a memoria do Sitio de Maggianico!


Sala de estudos do Centro de Sciencias, Letras e Artes


HPHP<br />

J. Pereira de Castro<br />

te admiro e venéro, ó Génio do Som e da Harmonia, no sumptuoso esplendor<br />

de tua gloria, na glorificação universal de teu nome — a mais fulgurante estrella<br />

da constellação da arte musical nas Américas.<br />

Abstráio-me na contricta genuflexão do fanatizado deante do seu idolo, no deslumbramento<br />

do sêr terreno fitando a luz dos astros, para dizer-te, ó Génio da Arte, todo o<br />

fervor do meu culto á luminosidade de tua inspiração, á imprevista originalidade do indianismo<br />

patriotico, ao fecundo poder e á brasilidade de tua imaginação flammejante, cujos<br />

surtos arrojados se elevam muito acima do talento humano e pairam bem alto, mais proximos<br />

do céo do que da terra.<br />

Surgiste <strong>com</strong> a finalidade do sol: inundaste de luz o mundo inteiro, <strong>com</strong>o de harmonia<br />

o inundaste ainda antes de attingires o zenith de tua gloria.<br />

E, para honra nossa, nasceste ó Génio, no Brasil.<br />

Tua vida de predestinado, desde os primeiros remigios de tua quasi divina destinação,<br />

desde o «Hymno Académico», «Noites do Castello», «Joanna de Flandres,» «Se sa<br />

minga», e «Bella Luna», ioi sempre uma escalada progressiva de triumphos, uma vertiginosa<br />

ascensão para o Ideal, que tão cedo te cingiu a fronte augusta, <strong>com</strong> o diadema sideral da<br />

immortalidade, qual resplendor dos consagrados do céo, dos eleitos de Deus.<br />

Luminosa via lactea foi a tua irrivalizavel trajectória sobre a terra, lentejoilada, <strong>com</strong>o<br />

larga faixa do céo pontilhada de estrellas, por victorias inexcediveis, que te elevaram á<br />

admiração dos povos cultos e á sagração de tua Patria, orgulhosa de tão grande filho.<br />

Embalaste e embeveceste, aos accordes impressionantes, de tua musica, inimitavelmente<br />

lyrica, o Brasil e o mundo todo, porque, de extrema a extrema do planeta, são as<br />

nações sacudidas pelas fortes emoções do "Guarany", a realização d'arte nacional que mais<br />

envaidece a nossa raça.<br />

Nacionalizaste e enriqueceste a musica, a cujo precioso thesouro juntaste a pedraria<br />

inegualavel de fulgores extranhos e valor sem limite, que são as scentelhas mais vivas<br />

de teu talento creador: «Guarany». «Fosca», «Maria Tudor», «O Escravo», «Condor» e<br />

«Salvador Rosa».<br />

A tudo excedeste, entretanto, na primeira dessas obras geniaes, em a qual se espelha<br />

a imagem querida da nossa nacionalidade, nos mais Íntimos encantos de sua belleza nativa.<br />

Neila <strong>com</strong>pletaste, em um atordoante coriscar de rythmos regionaes, a bemaventurada<br />

trilogia da poesia, da musica e da prosa, formando entre Gonçalves Dias e José de Alencar.<br />

Creaste e refundiste, nessas paginas de harmonia divina, de enlevos e exaltações<br />

indescriptiveis, um symbolico ideal de arte para as brasílicas terras de Pery, em prodigiosa<br />

polytonia de sons, de luz e de cores, desde a verde trama das florestas invias e do sibilar<br />

das flexas selvagens, ao fulgor do sol equatorial e aos preconceitos burguezes de nossos coevos.<br />

E depois de tanta gloria em vida, legaste ao Brasil, <strong>com</strong> tua morte, um nome glorioso.<br />

Teus olhos grandes e expressivos, que contemplaram o mundo a te render homenagem,<br />

quizeram cerrar-se ó Génio, para o eterno somno da posteridade, á luz do nosso<br />

sol, sob o azul do formoso céo paraense.<br />

Capricho feliz do destino que te fez admirado e querido por toda a tua Patria:<br />

nasceste no sul e morreste no norte, abrindo as tuas luminosas asas de condor do norte<br />

ao sul do paiz, que teve a fortuna de vêr nascer e morrer dentro do seu coração, e que é<br />

feliz por ter sido o berço de teu nascimento.<br />

Eu te admiro e te venéro, ó Génio!


A primeira representação d' "0GUARANY"<br />

IsTO F - A ^ - Á .<br />

Ulysses Nobre<br />

^^Kraseirosamente voltamos a tratar de Carlos Gomes, o portentoso artista<br />

que tanto elevou este immenso Brasil <strong>com</strong> a linguagem<br />

universal dos sons no Velho Mundo.<br />

E assim, revive na alma de todos os brasileiros que apreciam um<br />

pouco de musica, o nome do gigantesco cantor das paginas douradas do<br />

romance de José de Alencar.<br />

A attracção do seu nome immortal sacode a nervosidade do mais<br />

indiferente dos mortaes ante a musica viva, audaz, terna e magestosa d' "O<br />

Guarany", que nesta data, em 1880, a platéa paraense teve a suprema<br />

ventura de ouvir pela primeira vez o "capolavoro" do inesquecível <strong>com</strong>positor<br />

paulista.<br />

Foi "O Guarany" a primeira opera nacional que se cantou no Pará.<br />

Não houve penna que pudesse relatar o que foi essa saudosa noite<br />

no Theatro da Paz.<br />

Coube a honra de representar 4 'O Guarany" pela primeira vez no<br />

Pará, a <strong>com</strong>panhia lyrica italiana Thomaz Pacini, aqui chegada em 3 de<br />

agosto do anno acima, e embarcada na Bahia no paquete nacional "Pernambuco".<br />

Foi este o primeiro conjuncto lyrico que veiu a esta terra, tendo<br />

causado uni verdadeiro acontecimento artístico em Belém pelo inéditismo<br />

dos seus espectáculos.<br />

A estréa da <strong>com</strong>panhia teve logar a 7 de agosto <strong>com</strong> a opera "Ernâni",<br />

de G. Verdi, sendo estes os principaes artistas que formavam o seu<br />

elenco : Enrico Bernardi, maestro concertador e director da orchestra ; Philomena<br />

Savio, soprano dramatico ; Josephina Senespleda, soprano ligeiro ;<br />

Julia Consolani, contralto; Clímene Kals, meio soprano; A. Giraud e u!<br />

Gigli, tenores; R. Poito, barytono ; R. Mailini, baixo; Luigi Logheder,<br />

maestro pianista e ensaiador dos coros ; <strong>com</strong>primarios Salvatore Gustinelli<br />

e Amadeu Peroni ; Lydia Galli e Bianca Zatelli, primeiras bailarinas ; 20<br />

coristas de ambos os sexos e 26 professores de orchestra.


Mereceu do saudoso maestro Bernardi, vigorosa organização artística<br />

á qual se deve incontestavelmente o extraordinário desenvolvimento que<br />

teve a musica em nosso meio, meticuloso cuidado os ensaios da partitura<br />

formidável d' "O Guarany", e dahi veiu parte do successo que obteve a<br />

primeira representação daquella opera entre nós.<br />

Annunciada a "première" d' "O Guarany", <strong>com</strong>eçou-se a notar um<br />

desusado enthusiasmo que se tornava o assumpto obrigado em todas as<br />

camadas sociaes, e assim, tres dias antes, já não havia um só bilhete disponível,<br />

pois, as en<strong>com</strong>mendas na "Casa Havaneza" que era então a agencia<br />

theatral, sita á rua João Alfredo, onde hoje está installada a Sapataria<br />

Pelicano, eram superiores á lotação do theatro.<br />

Desde essa época nasceu a veneração e o respeito pelo nome de<br />

Carlos Gomes, que ainda não impallideceu, pois ao contrario, dia a dia<br />

mais se avoluma nos corações dos paraenses.<br />

Nessa noite inolvidável de 9 de Setembro de 1880, o Theatro da<br />

Paz <strong>com</strong>portava o que se chama uma enchente real formada por uma sociedade<br />

escolhida e elegante. Após o primeiro acto, <strong>com</strong>o o publico não<br />

pudesse victoriar pessoalmente a Carlos Gomes, chamou á scena o maestro<br />

Bernardi, regente da orchestra, simulou que tinha em sua presença o inesquecível<br />

paulista e victoriou-o estrondosamente. De todos os lados eram<br />

arrojados lindos bouquets, flores e até poesias.<br />

Mal acabava um acto a mesma scena era repetida, até que o enthusiasmo<br />

tocou ao delirio, no fim do 3.° e 4 0 actos, <strong>com</strong> especialidade neste,<br />

em que já não havendo flores, atiravam-se ao palco, chapéos, lenços, etc.<br />

Enrico Bernardi veiu ao Pará varias vezes em <strong>com</strong>panhias lyricas,<br />

tendo depois residido em Belém algum tempo, chegando a ser director do<br />

nosso extincto Conservatorio Carlos Gomes, sentindo-se doente, embarcou<br />

para a sua linda Italia, lá fallecendo.<br />

No desempenho, que esteve magistral, as honras da noite couberam<br />

á senhora Savio que foi uma Cecy adoravel; sr. Giraud, um Pery <strong>com</strong><br />

toda a flagrancia de "Selvaggio geloso" e, finalmente, ao sr. Mailini, que<br />

foi um Dom Antonio (pae de Cecy) muito amoroso.<br />

Os srs. Poito e Peroni também foram alvo de muitos e merecidos<br />

applausos.<br />

A l- a bailarina, senhora Galli, mereceu innumeros cumprimentos pelo<br />

cuidado <strong>com</strong> que preparou as danças dos Aymorés e que lhe valeu o<br />

excellente êxito que obteve.<br />

Foi, pois, um successo estupendo a "première" d' "O Guarany",<br />

no Pará.


Depois de dez annos da glorificação do Pontífice da musica americana<br />

no grande templo de arte e de fama mundial — o Theatro Scala, de<br />

Milão, o Pará travou conhecimento <strong>com</strong> a musica d' "O Guarany , que<br />

consideramos o nosso verdadeiro Hymno Nacional e que o gênio de Carlos<br />

Gomes produziu num diapasão em que se sente a vibratilidade dos<br />

habitantes da selva brasileira, em arroubos de melodias matizadas dum colorido,<br />

através do qual reflecte o amor pátrio transformado em orchestrações,<br />

cujo "laitmotif" tem o encanto do nosso céo e das nossas estrellas!<br />

R E M I N I S C Ê N C I A S<br />

A chegada de Carlos Gomes ao Pará, em 1882<br />

Os estudantes do Lyceu Paraense, precedidos de uma banda de<br />

musica e de muito povo, levantando vivas durante o itinerário, seguiram<br />

em direcção ao Café Chie.<br />

Carlos Gomes achava-se no Theatro da Paz dirigindo os ensaios<br />

do "Salvator Rosa", mas, sendo avisado, veiu recebel-os. Um dos estudantes<br />

offereceu-lhe, então, um artístico ramalhete de flores naturaes, e os<br />

srs. Paulino de Brito e Theodorico Magno recitaram, em honra do maestro,<br />

duas poesias que foram muito applaudidas.<br />

Carlos Gomes agradeceu em eloquentes palavras interrompidas a<br />

cada instante por vivas e applausos aquella manifestação tão espontanea,<br />

que lhe era ainda mais grata, disse elle, ao se lembrar que foi de outros<br />

estudantes, egualmente enthusiastas, que recebeu as primeiras animações e<br />

os primeiros applausos na sua carreira artística. Terminou erguendo vivas<br />

á mocidade estudiosa, ao futuro da patria, aos artistas brasileiros, á província<br />

do Pará e ao maestro Henrique Gurjão, sendo correspondido por<br />

outros, a Carlos Gomes, ao maior artista americano, á Província e aos<br />

estudantes de São Paulo.<br />

Do Café Chie a<strong>com</strong>panharam-n'o até ao theatro, donde regressou<br />

a passeata, percorrendo varias ruas, sendo sempre victoriado o nome<br />

excelso de Carlos Gomes.


iilillÍLU i ifflJ&XZt1<br />

Placa <strong>com</strong>memorativa do 1.° Centenario de Carlos Gomes, offerecida pelo<br />

Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas, ao Estado do Pará.


Monumento á Carlos Gomes em Curytiba<br />

Vendo-se a Commissào promotora


Ha sessenta annos nesta data, em que fazia anniversario Pedro II,<br />

era eantada pela primeira vez no Brasil a opera<br />

"0 Guarany", do genial Carlos Gomes<br />

Ulysses Nobre<br />

î® °lvemos hoje a tratar da impressionante personalidade artistica de<br />

' Carlos Gomes, <strong>com</strong> o mesmo affecto e admiração que agora, <strong>com</strong>o<br />

dantes, constitue para nós um culto, uma religião a sua imperecível memoria.<br />

Carlos Gomes fôra um abençoado de Deus, cuja trajectória artistica na<br />

vida planetária, brilhara inconfundivelmente, deixando em seu rasto a dolência<br />

da sua inspiração adornada pela pureza do estylo que o sagrou Titão da musica<br />

do Brasil, quiçá na America do Sul.<br />

Em seguida ao primeiro triumpho obtido pelo immortal maestro no grande<br />

Theatro Scala, de Milão, <strong>com</strong> «O Guarany», Carlos Gomes partiu para o Brasil<br />

a mitigar saudades da patria, da família e dos amigos. Teve uma recepção<br />

triumphal 110 Rio de Janeiro onde chegou a 8 de agosto de 1870.<br />

Carlos Gomes desde esse dia era alvo de innumeras manifestações. Nas<br />

vitrines das principaes casas de musica, occupava logar de honra o «spartito»<br />

d' < O Guarany». Tal evidencia era motivo de alto orgulho para aquelle em<br />

cujo sentimento era sincero 110 culto da arte e de um nome que brilhava 11a<br />

historia da musica nacional.<br />

Por fortuna sua Carlos Gomes poude tornar conhecida da platéa carioca<br />

daquelle tempo o seu formidável trabalho — « O Guarany », porquanto dias depois<br />

da sua chegada aportava 110 Rio, uma <strong>com</strong>panhia lyrica procedente de<br />

Buenos Aires, na qual figuravam optimos artistas.<br />

A presença de Carlos Gomes alli, animou o emprezario da mesma <strong>com</strong>panhia<br />

a propor a primeira representação d' « O Guarany», 110 Rio. O estudo<br />

do « spartito » absorveu o mez de outubro inteiro e parte de novembro. Finalmente<br />

a « première » teve logar a 2 de dezembro de 1870, data muito cara aos<br />

brasileiros, porque assignalava o nascimento do imperador D. Pedro II. Que<br />

linda solennidade foi aquella! Que noite de exhuberante exaltação de enthusiasmo<br />

palpitante, a emoção ardente dos primeiros accordes de uma opera, que<br />

dolirantemente penetrava 11a alma de um publico selecto <strong>com</strong> toda a inspiração<br />

melódica do gênio brasileiro, foi a 2 de dezembro!<br />

A representação realizou-se 110 vasto theatro « Provisorio », que surgiu<br />

110 então deserto Campo de Santanna, demolido em 1878, circumdado de silencio<br />

e pallida luz, mas resplendente, naquella noite, dum imponderável fluido de<br />

ansia e espectativa.<br />

A's oito horas a sala do theatro já estava repleta de espectadores. Os<br />

olhos dos intellectuaes, do publico inteiro tinham extranhos reflexos, a respiração<br />

parecia irregular, os corpos agitados nas poltronas, esperando debaixo de uma<br />

atrnosphera calida a sensação ineffavel que deviam sentir ao primeiro contacto<br />

<strong>com</strong> a melodia arrebatante da opera do glorioso <strong>com</strong>positor brasileiro.


Na tribuna imperial contigua ao palco, quatro pagens attendiam S. Majestade<br />

que devia assistir a representação.<br />

A primeira fila de cadeiras era occupada pelas principaes famílias da<br />

alta aristocracia que brilhavam de elegancia e sorriam de contentamento.<br />

O camarote imperial situado em frente ao palco, ricamente adornado,<br />

tendo nos anguloa dois enormes candelabros <strong>com</strong> velas accesas, era occupado<br />

pela <strong>com</strong>missào de concidadãos do illustre maestro, vinda propositadamente de<br />

Campinas, para assistir a apothéose e prestar homenagem ao seu conterrâneo,<br />

que em nome daquella cidade offereceu a Carlos Gomes uma joia de riquissimo<br />

valor : uma grande medalha <strong>com</strong> um brilhante solitário.<br />

Finalmente <strong>com</strong> o ultimo toque da sineta do palco a onda liumana^que<br />

enchia a platéa ficou silenciosa. Nesse momento surgiu uma figura austera, de<br />

barba exquisita empunhando a batuta ; chama á ordem a massa orchestral e inicia<br />

depois do Hymno Brasileiro, a execução da opera.<br />

Aquella personalidade séria e circumspecta, de voz rouca, olhos brilhantes,<br />

intelligente, brusco e quasi violento no reger de uma opera, mas fino e optimo<br />

interprete de qualquer "spartito" sob a sua direcçiio, era o maestro Angelo<br />

Ferrari, um artista de eleiçào, autor da opera «Una vendetta», representada<br />

pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1873, <strong>com</strong> extraordinário successo, mezes<br />

antes da sua morte.<br />

Todo o desempenho d' «O Guarany» correu afinadíssimo, recebendo francos<br />

applausos a soprano Gasc, o barytono Spalazzi, o tenor Lelmi e o baixo<br />

Ordinas. Findo o primeiro acto, Carlos Gomes foi chamado delirantemente ao<br />

proscênio e recebeu a primeira ovação.<br />

Das tribunas, galerias, platéa, era impressionante um golpe de vista : senhoras<br />

e cavalheiros em pé applaudiam e aclamavam o saudoso artista paulista<br />

que se fazia a<strong>com</strong>panhar em scena por todos os interpretes da sua opera.<br />

O imperador e a imperatriz sorridentes, o publico fascinado, a patria ernfim<br />

cheia de orgulho, podiam dizer : «No Brasil lia um maestro digno dos maestros<br />

do velho mundo!»<br />

No segundo acto o enthusiasmo se manifestou de uma maneira mais fulgurante,<br />

depois do publico ouvir a celebre «balata» — «C'era una volta un principe»,<br />

que a senhora Gasc cantou divinamente.<br />

O enthusiasmo crescia sempre e para corôar o ruidoso successo daquella<br />

noite inesquecivel, o imperador mandou chamar á sua augusta presença Carlos<br />

Gomes e collocou em seu peito a <strong>com</strong>menda da Ordem da Rosa. Ao terminar o<br />

espectáculo, percorreu as ruas da cidade grande massa popular erguendo vivas<br />

a Carlos Gomes.<br />

O cortejo rumou para o largo da Carioca. Ahi, da sacada de sua residencia,<br />

o autor d' « O Guarany » recebeu estrepitosa manifestação da enorme multidão.<br />

Cessados os applausos, um senhor do povo, <strong>com</strong> o coraçíio de artista pronunciou<br />

emocionante discurso, saudando o grande maestro que tanto tinha exaltado<br />

o Brasil <strong>com</strong> o seu talento e <strong>com</strong> o triumpho d' «O Guarany». Carlos Gomes,<br />

devéras emocionado, agradeceu aquella prova de carinho dos seus patrícios,<br />

erguendo vivas ao povo brasileiro.<br />

O cortejo se dissolveu sob a impressão de um momento sublime em que<br />

a arte de um genial patricio tinha invadido a alma de todo um povo.<br />

E assim foi a solenne e jamais esquecida apotheose que a cidade do Rio de<br />

Janeiro fez ao immortal cantor d' «O Guarany», na noite de 2 de dezembro de 1870.<br />

O nome de Carlos Gomes é hoje a maior gloria musical do Brasil.<br />

Exaltar essa gloria é um dever de todos os brasileiros.


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arlos tornes g Santos iumont<br />

Leopoldo Amaral<br />

uito justo e dignificante é, por certo, o movimento que se observa<br />

» entre nós, <strong>com</strong> a finalidade que tem sido rodeada de francas<br />

sympathias e applausos unanimes — a <strong>com</strong>memoração do centenário do excelso<br />

campineiro maestro Carlos Gomes.<br />

A imprensa, ha tempos, se vem occupando deste transcendente assumpto,<br />

procurando irradial-o tanto quanto possível <strong>com</strong> minúcias, afim de que a glorificação<br />

da memoria de Carlos Gomes corresponda á importancia moral que<br />

ella encerra.<br />

O assumpto, dentro mesmo de sua grandiosidade, é muito nosso, isto é,<br />

genuinamente campineiro, permittindo, portanto, <strong>com</strong> propriedade, que se mencionem<br />

aqui algumas notas sobre factos locaes, que se relacionam <strong>com</strong> as homenagens<br />

projectadas.<br />

Entre as manifestações em honra do saudoso maestro, realisadas em<br />

Campinas, em diversas épocas, destaca-se, certamente, o seu monumento-tumulo,<br />

sobre o qual se ergue, imponente, a sua estatua, e se ostenta também o vulto<br />

symbolico da cidade de Campinas, tudo em bronze. Este bell-> trabalho artístico<br />

foi executado por um distincto esculptor Rodolpo Bernardelli, grande amigo<br />

do maestro.<br />

Uma outra circunstancia, porem, existe na historia desse monumento,<br />

que é digna de ser aqui relembrada: — alem dos nomes desses dois eminentes<br />

artistas patrícios, um outro também notável — verdadeira gloria nacional — se<br />

acha ligado á historia desse testemunho da estima e admiração á memoria do<br />

maestro: referimo-nos a Santos Dumont. Foi elle quem, no dia 18 de Setembro<br />

de 1903, perante enorme assistência, entre acclamações enthusiastieas, collocou<br />

a pedra fundamental do monumento, depositando alli uma urna que encerrava<br />

a acta da cerimonia, jornaes, moedas, etc.<br />

A propósito do memorável acontecimento, escrevemos, então, as seguintes<br />

linhas, cuja reproducção vem de molde nestas reminiscências:<br />

"Ao ser deposta a urna por Santos Dumont, houve uma delirante explosão<br />

de palmas do seio da assistência, que era enorme e uma das bandas de<br />

musica encheu o ambiente <strong>com</strong> as harmonias da magestosa protophonia do<br />

" Guarany Nesse momento Cesar Bierrenbach, orador da <strong>com</strong>inissuo executiva,


j<br />

fez ouvir a sua palavra elegante, no meio de indescriptivel enthusiasmo popular,<br />

dizendo, entre os arroubos de sua imaginação ardorosa, o seguinte :<br />

"Unamonos todos, sem distincçâo de crenças ou de grupos, em torno<br />

da sympathica figura do joven predestinado que, <strong>com</strong> suas mãos sagradas pela<br />

gloria, collocou a pedra fundamental desse monumento, que, mais uma vez, exprimirá<br />

a gratidão da Patria.<br />

O rei dos ares, baixando até a terra natal do gênio immortal do "Guarany<br />

vem tocar ao ciiüo santificado pelo dever dos campineiros para o altar<br />

perpetuo do seu semi deus da Harmonia. Presente na terra paulista quando<br />

Campinas ergue essa ara bendicta, nao poderia o gênio alado no Brasil, deixar<br />

de ser presente neste acto em que <strong>com</strong>eça a elevaçào da effigie de Carlos Gomes,<br />

para ficar eutre o azul, que é o dominio daquelle, e a terra que foi o berço<br />

e vae ser a tumba deste.<br />

No limiar da crypta de Carlos Gomes, a dextra que domina os ares,<br />

subiu sobre todos os povos, erguerá o nome do Brasil e a bençam da Patria,<br />

mostrando na cadeia de seus grandes homens a successáo dos espíritos que<br />

sabem engrandecel-o.<br />

De sua immortalidade augusta, o cantor dessa magestosa terra oscula,<br />

de certo, a mão glorificada que lhe vae dar, emfim, um leito de paz perpetua,<br />

entre as acclamações da Harmonia de seus conterrâneos.<br />

Bemdicto instante!"<br />

Janellas e sacadas de todos os prédios visinhos estavam repletas de senhoras<br />

; sobre degraus, sobre bancos, procurando cada qual melhor observar a<br />

cerimonia em que se entrelaçavam os nomes de dois grandes brasileiros — Santos<br />

Dumont e Carlos Gomes.<br />

* * *<br />

O corpo do maestro, que estivera depositado desde outubro de 1890, no<br />

jasigo Ferreira Penteado, no cemiterio municipal, foi trasladado para a crypta<br />

do monumento a 29 de junho de 1904, acto que se revestiu de máximo respeito,<br />

<strong>com</strong> a presença de autoridades locaes, <strong>com</strong>missào executiva, bandas de musica<br />

e enorme multidüo.<br />

Dessa cerimonia solenne, foi lavrada uma acta por quem, tantos annos<br />

passados, vem hoje relembrar, nestas linhas, taes occorrencias quasi esquecidas,<br />

que entretanto, honram as paginas da historia de Campinas. Aquelle documento,<br />

devidamente assignado, ficou junto ao ataúde do laureado <strong>com</strong>positor.<br />

Nunca é demais avivar-se a memoria publica, <strong>com</strong> algumas recordações<br />

de acontecimentos dignificantes <strong>com</strong>o esses.<br />

Campinas, Maio 1936.


4 atita dt Citta 4m\p ao jí»{pqtttlot{<br />

Senhor:<br />

oi-me <strong>com</strong>municado ter sido eu designado para ir d Italia <strong>com</strong>pletar os meus<br />

estudos na <strong>com</strong>posição musical, de conformidade <strong>com</strong> o § 7,° Art°. 2.° do contracto<br />

entre a empreza da Opera Nacional e o Governo de V. M. Imperial.<br />

Julgaria faltar á mais sagrada das obrigações, se não viesse testemunhar perante<br />

V. Al. Imperial o meu profundo reconhecimento por ter sido eu o designado para aproveitar<br />

o benefico pensamento do Governo, consignado no referido contracto. Cumprindo<br />

<strong>com</strong> este grato dever, venho respeitosamente impetrar de V. M. Imperial mais uma graça<br />

da Vossa Imperial Munificência, para a qual jamais se appella em vão.<br />

Razões de economia e de mudança de clima aconselham que eu embarque no proximo<br />

paquete francês, para que eu possa em fins de Dezembro proximo futuro achar-me<br />

no meu destino.<br />

Comquanto o Director do Conservatorio tenha já providenciado para, de accordo<br />

<strong>com</strong> o Inspector dos theatros e por meio de uma casa bancaria, receber na Europa a<br />

mensalidade de 150è000 rs., em trimestres adiantados. Comtudo não ha nada providenciado<br />

a respeito dos meios pecuniários indispensáveis para a passagem de mar e a viagem<br />

por terra desde Bordéos, logar do desembarque, até Milão na Italia, logar em que<br />

devo <strong>com</strong>pletar os meus estudos; por isso preciso, pelo menos, a quantia de 800$0G0 rs.<br />

para este fim.<br />

Se eu possuísse esta somrna, de certo, Imperial Senhor, não importunaria o Governo<br />

de V. Al. para que providenciasse a este respeito, mas estou desempregado desde<br />

que José Amat terminou o seu contracto <strong>com</strong> o Governo de V. M. Imperial, ha mais de<br />

um anno, e neste tempo tenho contra/lido dividas para occorrer ás mais indispensáveis<br />

despezas.<br />

O produeto do meu beneficio apenas chega para pagar essas dividas: considero<br />

um dever de honra, ao separar-me temporariamente de minha querida patria, satisfazer<br />

os meus credores, que tiveram a bondade de confiar em mim. Cumprindo, pois, este dever,<br />

não me resta outro recurso mais qne a munificência de V. M. Imperial.<br />

Ha um meio, para se me facilitar aquella somma de 800$000 rs., e é autorizar<br />

o Inspector dos theatros a me fazer desta quantia das mensalidades que devem ficar em<br />

seu poder, quando receber as seis loterias que foram designadas para pagamento dos artistas.<br />

Segundo o que foi <strong>com</strong>binado entre o Director do Conservatorio e o mesmo Inspe-


ctor, este deve deduzir da importancia daquellas loterias a quantia de um conto e oitocentos<br />

mil réis, correspondentes ás doze mensalidades do alumno, quantia que a empreza<br />

deveria ter depositada, conforme o seu contracto.<br />

Nenhuma falta pode fazer essa quantia de oitocentos mil réis para os futuros pagamentos<br />

do alumno, visto que além do conto de réis que ainda ficará em deposito para<br />

esse fim, tem mais as dez mensalidades que a empreza deve entregar no anno proximo<br />

futuro, alem da quantia de cinco contos quinhentos e cincoenta mil reis, importancia de<br />

meia loteria que se acha depositada no Thesouro <strong>com</strong> destino especial para attender ás<br />

despezas do referido alumno, depois de terminado o contracto <strong>com</strong> a actual empreza da<br />

Opera Nacional.<br />

Assim pois, Imperial Senhor, que se acham depositados no<br />

Thesouro; 5:550$000<br />

O que deve ficar agora em poder do Juiz Inspector dos theatros; 1:800$000<br />

As dez mensalidades que a empreza deve pagar no anno<br />

proximo f,; 1:500$000<br />

Prefazem a somma de 8:850$000<br />

O que o alumno pôde despender nos quatro atuios que deve<br />

estar na Europa, eleva-se á quantia de 7:200$000<br />

Restam, pois, Rs. 1:650$000<br />

Fazendo-se a entrega da quantia de » 800$000<br />

Fica ainda um saldo de Rs. 850$000<br />

Portanto, Imperial Senhor, supplico respeitosamente a V. Al. Imperial se digne<br />

ordenar ao referido inspector para que, da quantia de um conto e oitocentos mil réis, que<br />

deve ficar em seu poder, pelas razões expendidas, seja entregue a somma de oitocentos<br />

mil réis ao supplicante para as despezas de sua viagem até o logar de seu destino, outrosim,<br />

que, no caso que se demore ainda alguns dias o desconto das mencionadas loterias,<br />

que deve ser feito para pagamento dos artistas, seja autorizado o referido Juiz dos theatros<br />

a me pagar adiantada essa quantia, a qual será paga logo que se fizer o referido<br />

desconto,<br />

Rio de Janeiro, 25 de Outubro de 1863.<br />

(a) A. Carlos Gomes


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Copia do decreto concedendo uma pensão, na Italia,<br />

ao alumno Antonio Carlos Gomes<br />

^®k nstrucções es P eciaes concernentes ao alumno do Conservatorio de Musica, Antonio<br />

Carlos Gomes, que vai á Italia por quatro annos, <strong>com</strong>o pensionista, ás expensas do<br />

subsidio da Opera Nacional, aperfeiçoar-se no estudo da Musica e do contraponto.<br />

Art.° 1.° — O alumno Antonio Carlos Gomes vai <strong>com</strong> subsidio annual de um conto<br />

e oitocentos mil réis, pagos em trimestres adeantados, os quaes <strong>com</strong>eçarão a contar-se do<br />

dia que foi approvada a sua nomeação. Estes trimestres serão pagos pela Casa Commercial<br />

que for indicada em presença do attestado de frequencia do Conservatorio onde estiver matriculado,<br />

<strong>com</strong> o visto de qualquer Agente Consular Brasileiro.<br />

Art.° 2.° — O alumno, logo que chegar ao lugar do seu destino, apresentar-se-ha<br />

ao Ministro ou outra autoridade brasileira próxima á cidade onde for residir, para que lhe<br />

facilite e proporcione os meios de ser admittido no Conservatorio de Musica d'aquella Capital,<br />

no qual se deverá inscrever no menor prazo possível.<br />

Art,° 3.° — Frequentará o dito Conservatorio <strong>com</strong> a maior assiduidade e zêlo, não<br />

podendo em caso algum receber a sua pensão sem apresentar á Legação um attestado de<br />

frequencia passado pelo Professor ou Empregado <strong>com</strong>petente do mesmo Estabelecimento.<br />

Empregará além disto todos os seus esforços, solicitando os bons officios da Legação ou<br />

outra Autoridade Brasileira se forem necessários, para, sem prejuízo do seu estudo regular<br />

assistir aos concertos e reuniões em que se executarem musicas classicas.<br />

Art.° 4.° — Deverá remetter de seis em seis mezes, ao mais tardar, ao Director<br />

do Conservatorio de Musica do Rio de Janeiro, por intermedio da Legação Brasileira, as<br />

lições ou exercícios que tiver feito em cada um desses prazos.<br />

Art.° 5.° — Deverá outrosim remetter no fim de cada anno escolar uma certidão<br />

passada por cada um dos seus respectivos professores, da qual conste o seu aproveitamento<br />

e progresso.<br />

Art.° 6.° — Deverá também, logo que tiver <strong>com</strong>posto alguma obra, que mereça a<br />

approvação do Conservatorio em que estiver estudando, ou de algum Professor de nomeada<br />

envial-a ao Director do Conservatorio de Musica do Rio de Janeiro.<br />

Art.° 7.° — Tanto o attestado exigido pelo Art°. 5.°, <strong>com</strong>o a obra de que trata o<br />

Art. 6.°, serão authenticados pelo Ministro Brasileiro ou outra Autoridade próxima.<br />

Art.° 8.° — Os trabalhos de que faz menção o Art. 0 6.°, são essenciaes para o<br />

Governo resolver se convém que o pensionista vá para outros Paizes, afim de continuar a<br />

aperfeiçoar a sua instrucção musical, e estudar os methodos práticos de ensino de outros<br />

Conservatorios que mereçam conceito.<br />

Art. 0 9.° — A' deliberação do Governo precederá requisição do Director do Conservatorio<br />

de Musica do Rio de Janeiro, ouvida a Junta dos Professores.<br />

Art 0 10.° — O pensionista não poderá dar publicidade a nem uma <strong>com</strong>posição<br />

que fizer, por pequena que seja, sem sujeital-a á revisão de seu Mestre, e sem a approvação<br />

deste.<br />

Art. 0 11.° — Deverá colligír, e remetter ao Conservatorio do Rio de Janeiro cópias<br />

dos Regulamentos e Methodos adoptados no Conservatorio da Cidade onde residir e<br />

nos outros que frequentar, e bem assim informar sobre quaesquer obras classicas que possam<br />

interessar ao estudo e progresso da musica no Brasil.<br />

Art. 0 12.° — Si no fim de dois annos não tiver enviado alguma <strong>com</strong>posição que<br />

mostre o seu aproveitamento, será retirado para o Brasil, e perderá a pensão. O mesmo<br />

lhe acontecerá, si por falta de applicação, ou por seu máo procedimento for excluído do<br />

Conservatorio em que estudar, si for executado por dividas ou prazo por ellas; si for convencido<br />

de ter apresentado attestados falsos, ou enganado a Legação ou ao Director do<br />

Conservatorio de Musica; e finalmente se tiver um procedimento contrario á moral e aos<br />

bons costumes, depois de advertido duas vezes pelo Ministro do Brasil. Rio de Janeiro, 26<br />

de Novembro de 1863. — Francisco Manuel da Silva, Director do Conservatorio de Musica.<br />

Confere<br />

(a) Fausto Augusto d Aguiar


Carta do Marquez de Olinda ao director do Conservatorio de<br />

Musica do Rio de Janeiro, <strong>com</strong> relação ao alumno<br />

Antonio Carlos Gomes, em 24 de Outubro de 1863<br />

— -m ——<br />

4. A SECÇÃO. RIO DE JANEIRO - MINISTÉRIO DOS NEGOCIOS DO IMPÉRIO.<br />

Governo Imperial fica inteirado de que o alumno Antonio Car-<br />

|0S Gomes foi designado por V.Mcê. para ir á Europa aperfeiçoar-se<br />

na arte de <strong>com</strong>posição musical, em cumprimento da disposição<br />

do Art.° 2.° § 7.° do contracto celebrado pelo mesmo Governo em o<br />

1." de Setembro do anno passado <strong>com</strong> o Dr. Antonio José de Araujo,<br />

e Joaquim Norberto de Souza e Silva, para sustentação da opera lyrica<br />

Nacional.<br />

Ao Inspector dos theatros subvencionados determinam, conforme<br />

V.Mcê. pede, que do producto das loterias que deve receber, reserve a<br />

quantia de 1:800$000, correspondente ao 1.° anno do referido contracto,<br />

segundo o que se fez no tempo do contracto assignado <strong>com</strong> José Augusto<br />

a qual deve ser depositada n'uma casa bancaria que se incumba<br />

de remetter para a Europa ao alumno, por trimestres adiantados, a razão<br />

de 150S000 rs. mensaes.<br />

Fazendo-lhe esta <strong>com</strong>municação, autoriso a V.Mcê. a dar ao referido<br />

alumno as instrucções que lhe parecerem convenientes para o bom<br />

desempenho de sua missão, e enviará cópia delias a este Ministério: e<br />

bem assim o autorizo a designar o Conservatorio de Musica em que<br />

elle deve <strong>com</strong>pletar os seus estudos; fazendo-lhe V.Mcê. sentir que o auxilio<br />

que se lhe presta não excederá o tempo do contracto acima declarado.<br />

Deus guarde V.Mcê.<br />

(a) Marquez de Olinda.<br />

p. Director do Conservatorio de Musica.


Capta do (Darquez de Olinda ao Direetor do Conservatorio de<br />

ÍDusiea do Rio de Janeiro, eom relação ao alumno<br />

Antonio Garlos Gomes, em 11 de Dezembro de 1863.<br />

~ ir=<br />

4.' SECÇÃO. RIO DE JANEIRO - MINISTÉRIO DOS NEOOCIOS DO IMPÉRIO.<br />

sido approvadas, <strong>com</strong> algumas modificações, as instrucções<br />

dadas por V.Mcê. em 26 do mez proximo passado ao alum-<br />

no desse Conservatorio, Antonio Carlos Gomes, que vai á Italia aper-<br />

feiçoar-se na arte de <strong>com</strong>posição musical; assim lh'o <strong>com</strong>munico para<br />

a sua intelligencia, declarando que ao referido alumno, e ao Ministro do<br />

Brasil em Turim se remetterão em 7 do corrente, cópias das mesmas<br />

instrucções, das quaes envio também uma cópia a V.Mcê. para que pos-<br />

sa ter conhecimento das ditas modificações, que consistem: 1.° na sup-<br />

pressão dos artigos 10.° e 11.°, porque não é conveniente que o Gover-<br />

no se <strong>com</strong>prometia desde já a fazer as concessões de que ellas fazem<br />

mensão, as quaes, ao passo que podem encontrar embaraço para sua<br />

realização, serão sem prejuízos resolvidas na occasião que houverem de<br />

ter logar á vista do que V.Mcê. representar; 2-° na alteração da redac-<br />

ção do ultimo artigo, que está concluído em termos genericos, para que<br />

somente <strong>com</strong>prehenda o alumno de que se trata.<br />

Deus guarde a V.Mcê.<br />

(a) Marquez de Olinda.<br />

Sr. Director do Conservatorio de Musica.


m ® S®1§<br />

Dr. Amphilophio Mello<br />

(Vice-presidente do "Centro de<br />

Sciencias. Letras e Artes". :-: :-:<br />

^ ^T ive o prazer de tomar algumas providencias no sentido de interessar<br />

li» o "Centro de Sciencias, Letras e Artes" no movimento da <strong>com</strong>memoração<br />

centenaria do nascimento do grande e immortal campineiro,<br />

cujo nome encima estas linhas.<br />

Estamos acostumados a discutir politica; invadir a vida privada de<br />

nossos semelhantes; fazer criticas improcedentes e servir, sempre, á nossa<br />

vaidade, deixando, em segundo plano, as bôas iniciativas, as necessarias<br />

consagrações.<br />

Vivemos, pois, de futilidades, de aggressões e de actos inúteis na<br />

maioria das vezes.<br />

Mas é preciso convir em que ha causas santas a defender; interesses<br />

colletivos a cuidar.<br />

Commetnorar o Centenario do Nascimento de Carlos Gomes é um<br />

dever de todos nós, do Brasil inteiro porque elle não foi tão somente<br />

gloria regional mas sim do continente a que deu, profusamente, seu itiexcedivel<br />

talento musical,<br />

Vindo de origem humilde, o notável maestro soube subir.<br />

Subiu não por ter nascido em berço de ouro mas subiu pelo mérito,<br />

pelo valor proprio, por si, o que não é muito <strong>com</strong>mum.<br />

E achou, no magnanimo Imperador Dom Pedro Segundo, amparo<br />

bastante para galgar as alturas a que tinha direito pela sua raríssima mentalidade<br />

musical.<br />

Carlos Gomes é, sem favor, um nobre vulto de nossa historia de<br />

homens valorosos.<br />

Dahi a necessidade de prestarmos á sua sagrada memoria homenagem<br />

de profunda estima e sincera sympathia.<br />

Estamos certos de que todos os elementos sociaes desta bella e<br />

grandiosa cidade dispensarão a Carlos Gomes, preito de admiração a que<br />

fez jús em vida.<br />

Campinas — 1936


O "Guarany", voz da terra brasileira<br />

ih<br />

Octávio Netto<br />

"Guarany', — sabemos todos, — não foi a primeira, e não é,<br />

sob o ponto de vista technico, a maior das obras do grande <strong>com</strong>posi-<br />

tor campineiro. O proprio mestre, entre todas ellas, elegêra para sua predilecta<br />

a "Fosca", que é a manifestação flagrante da autoridade que elle ganhára<br />

após haver penetrado a subtil contextura da escola italiana, que era toda<br />

melodia, e experimentado a influencia da vigorosa objectividade da forma<br />

wagneriana, que repousa na polyphonia orchestral.<br />

A "Fosca" é a revelação do mestre. O "Guarany" é um hymno<br />

em que canta a voz do Brasil; é um grito de saudade da alma moça e<br />

ardente que, lá na suave e poética Italia, permanece brasileira e impetuo-<br />

sa ; é <strong>com</strong>o que um pouco do Brasil ainda bravio e indomito, a palpitar<br />

sob o céu macio da terra Itálica. Essa partitura que empolga pela riqueza<br />

do colorido sonoro, não podia deixar de ser <strong>com</strong>o a própria natureza que<br />

a inspirou, estuante de vigor juvenil e de grandeza selvagem. Si, na opi-<br />

nião de críticos abalisados, falta-lhe por vezes perfeição technica, — coisa<br />

que só uma longa experiencia pôde dar, mesmo aos grandes talentos, —<br />

sobeja-lhe aquillo que constitue a qualidade a mais preciosa numa grande<br />

concepção artística: a sinceridade <strong>com</strong> que ella é concebida e realizada.<br />

O "Guarany", quando não tivesse outros predicados que lhe va-<br />

lessem a consagração de uma obra de grande envergadura, — e elle os<br />

tem de sobra, — teria, para tanto, a sua admiravel fidelidade descriptiva<br />

e o seu cunho genuinamente brasileiro. O que Carlos Gomes plasmou<br />

nessa opera que representa o seu primeiro trabalho de pulso para o thea-<br />

tro lyrico, foi a própria terra brasileira em toda a sua pujança, vivendo<br />

dentro da sua natureza tão cheia de luz, de poesia e de alegria selvagem.<br />

Ha, no "Guarany \ o romantismo de José de Alencar e a poesia<br />

de Gonçalves Dias. Esses foram, certamente, para Carlos Gomes, duas fon-


tes generosas de inspiração. 0 nosso grande conterrâneo, <strong>com</strong> peregrino<br />

senso artístico, reunio nessa obra a serenidade romantica do escriptor e o<br />

ardor nativo do poeta, para cantar, <strong>com</strong>o elles cantaram, a bellcza lumino-<br />

sa, robusta e indómita da natureza brasílica dentro a qual resoa, <strong>com</strong>o um<br />

hosanna da terra promissora ao porvir em que ella resplandecerá num ful-<br />

gor de alvorada esplendorosa, a voz do Brasil.<br />

Nessa partitura tão opulenta de poesia descriptiva e tão fiel, na sua<br />

feição regional, ao quadro maravilhoso que a inspirou, estão enfeixadas as<br />

primeiras paginas da historia do drama lyrico em terras do Novo-Mundo;<br />

nella se reflete, <strong>com</strong> toda a sua vibratilidade emotiva, <strong>com</strong> toda a sua<br />

candencia nativa, a grande alma sonhadora, generosa e brasileira de Carlos<br />

Gomes.<br />

Esse, — quando, outros ella não tivesse, — seria, de per si, o seu<br />

mérito. Uma grande concepção artística vive pela personalidade peregrina<br />

do gênio que a realizou e que ella revela nos mínimos detalhes da sua<br />

imponente estructura. E o "Guarany", innegavelmente é a revelação de<br />

um gênio. E' a pedra fundamental do theatro lyrico brasileiro.<br />

Não esqueçamos jamais, nós, brasileiros, que o grande Verdi, na<br />

sua velhice gloriosa, teve, para exprimir o seu conceito sobre o grande<br />

conterrâneo, esta phrase tão bella na sua sinceridade :<br />

— Este rapaz <strong>com</strong>eça por onde eu terminei.<br />

Estas palavras significam a maior consagração de Carlos Gomes<br />

<strong>com</strong>o grande artista ; é a sua auréola de gloria!<br />

O "Guarany" é a voz da terra "graciosa" e forte que canta<br />

dentro da sua natureza esplendorosa. Tudo, nessa pagina immortal da<br />

nossa arte, é força, vida e amor. E' a alma de Carlos Gomes. E' o<br />

Brasil.


Monumento do Carlos Gomes, ornamentado no dia das festividades que se realizaram<br />

em Campinas em 11 de julho 1936, 1.« Centenario do immortal maestro.


GAKiOS GOMES<br />

Ibrnntina Cardona<br />

(Da Academia Fluminense de Letras)<br />

A natureza, a mãe enorme, gigantesca,<br />

De quem, tu, arrojada inspiração dantesca,<br />

Pelo teu (Juuravy fecundo de harmonia,<br />

Na força musical, reproduziste um dia,<br />

O vigor da floresta indígena; a linguagem,<br />

A vida, a raiva do amor e a dança do selvagem ;<br />

Das aves o gorgeio, o rugido das féras,<br />

O écho dos trovões e a calma das espheras;<br />

A injusta Natureza, a quem, por toda a parte,<br />

Na epopéa sublime e immácula da Arte,<br />

Tu tornaste immortal; <strong>com</strong> seu pulso assassino,<br />

Aniquillou-te agora o cerebro divino!<br />

E tu tombaste, oh! Águia audaz e torturada!<br />

N'uma explosão de luz, tombaste ao Grande Nada!<br />

Tombaste, sim ! mas vendo a immensa cordilheira<br />

Da America gigante; ouvindo a derradeira<br />

Harmonia da selva, esmorecendo aos poucos,<br />

Nas fibras da tu'alma; ouvindo os échos roucos<br />

Das cascatas caudaes do soberbo Amazonas,<br />

Imflammado do Sol tropical destas zonas!<br />

Sol que, jorrando luz dos pincaros dos Andes,<br />

Alaga a tua Patria em radiações tào grandes<br />

Como essas vibrações de notas primorosas,<br />

Da tu'alma de Artista, echoando gloriosas<br />

Pelo Universo inteiro!<br />

Oh ! grande Brasileiro !<br />

Typo des<strong>com</strong>munal! Oh ! cabeça estupenda !<br />

Hade haver quem tu'alma extraordiuaria entenda;<br />

Quem na sua a recolha, ouvindo-a a todo instante;<br />

Quem a sinta, através dos sec'los, palpitante,<br />

Emquanto do Progresso hastear-se o baluarte,<br />

E no Brasil houver um culto pela Arte!<br />

Na musica, a pular, hasde viver, oh! Artista,<br />

No grande coração da mocidade altruísta !<br />

Viverá, sim! Aquelle em quem, no Velho Mundo,<br />

Tantas vezes gritou, desmedido e profundo,<br />

O nosso pátrio orgulho, ao vêl-o festejado,<br />

E pela culta gente ouvido e proclamado!


Sim! Esse mesmo em quem todo o Brasil radiante<br />

De louros viu cingida a fronte de gigante!...<br />

Viverá, <strong>com</strong>o vive o Génio nos que ouvem<br />

Harmonias de Listz, de Wagner, de Beethoven,<br />

De Chopin e Mozart, de Verdi e Paganini!<br />

Sim, elle viverá, <strong>com</strong>o vive Bellini,<br />

E <strong>com</strong>o vive o Herz e Gottschalk — o bravo!<br />

Nào! nào morreste, oh! Artista, autor da Fosca e Escravo<br />

* * *<br />

Levanta-te, Caboclo! Agora é que te accordas<br />

No grande Pantheon, para ajuntar-te ás hordas<br />

Dos vultos immortaes! A' tua trajectória<br />

Levanta-te, que agora é que te accorda a gloria!<br />

E assim <strong>com</strong>o Noé, outr'ora sobre o Oceano,<br />

Contemplava o diluvio, em sua immensa barca,<br />

Tu, erecto e de pé, no portico da Historia,<br />

Olharás, através dos sec'los, altaneiro,<br />

Passando a3 gerações...<br />

E se um dia o estrangeiro<br />

Te perguntar: Quem és ? Responderá, ufano,<br />

Por ti o teu Brasil:<br />

E' o grande Patriarcha<br />

Da Arte musical. — Carlos Gomes ! Primeiro<br />

Vulto de excepcional Artista americano!<br />

Setembro, 17, de 1896.


§<br />

Benedicto Octávio<br />

(Poesia publicada no 1.° n.° de "O<br />

Guarany" e na Revista do Centro).<br />

«Elie nào morre!» a multidão dizia.<br />

E o precito <strong>com</strong>sigo respondia:<br />

— «Ah! mas nunca vivi!»<br />

Dos plainos do Poente aos plainos do Levante,<br />

Ouviste erguer-se um dia, ó sombra lancinante !<br />

— Um coro triumphal !...<br />

E ouviram-n'o decerto as mais longínquas plagas,<br />

Dos ventos o passar, o marulhar das vagas,<br />

— Enorme, colossal !<br />

Castro Alves<br />

E breve, o fundo valle, as nuvens densumbrosas,<br />

O cerúleo dos ceus, as pétalas das rosas,<br />

O horisonte infinito e o sol a refulgir...<br />

E seguindo este hosanna além por mundo em fóra,<br />

Dir-se-ia despontar uma fulgente aurora<br />

No Oriente do porvir!<br />

Escutaram-n'o a matta e as verdejantes zonas,<br />

Dos Pampas o esplendor, as ondas do Amazonas<br />

Por entre mil festões floridos a rolar,<br />

E os passaros cantando á sombra das palmeiras<br />

E o tapuya que habita as selvas brazileiras<br />

Ostentando na fronte as plumas do cocar...<br />

E disse a Gloria alçando a voz nos horisontes,<br />

Os valles percorrendo e o pincaro dos montes,<br />

E os ceus cheios de paz e o mar cheio de horror :<br />

« Salvé, patria ditosa ! E' a sagração de um gênio<br />

« Que por ti foi vencer nas luctas do proscênio !<br />

« E' a aguia que o vôo eleva, impávido condor ! »<br />

* * *<br />

Tu, porém, murmuraste, ó sombra horrenda e crua,<br />

Em cujo peito fero a fera raiva estua,<br />

Disseste, ó vil phantasma ! alevantando a voz :<br />

« Sobe, sobe, condor ! O teu vôo descerra<br />

c E vae de mar em mar, e vae de terra em terra !<br />

« Mas eu te cortarei o vôo altivo após ! »


E o tempo foi correndo: as éras após èras,<br />

Os invernos seguindo após as primaveras,<br />

A noite após a noite, os sóes após os sóes!<br />

E o condor se alteiava, o grande dentre os grandes,<br />

Ultrapassando o cimo olympico dos Andes,<br />

Conquistando os lauréis vcnustos dos heróes!<br />

Apresentava o Génio em melodia rara,<br />

O affecto de Cecília, a dor cruel de Ilára,<br />

Da Tudor a paixão, de Condor o revés;<br />

Da floresta o ciciar que vae de riba em riba,<br />

E o doce murmurar do calmo Parahyba,<br />

E o horrisono rugir dos fortes Aymorés;<br />

De Salvator o esforço e, do mar ao ribombo,<br />

A esperança a fulgir nos olhos de Colombo,<br />

Os medonhos parceis passando sem temor!<br />

E ao som da symphonia assim clamava a Gloria :<br />

« Génio! Tu viverás nas paginas da Historia,<br />

«O' aguia portentosa, impávido condor!»<br />

* * *<br />

E vinte annos depois, quando iam nossas almas<br />

Explodir a seus pés num turbilhão de palmas,<br />

Sonoras estrugir,<br />

Quizeste, ó sombra mesta, á bocca feia ura rictus<br />

Merencorio a enflorar os teus lábios madictos,<br />

Do passaro este vôo altivolo ferir!<br />

Ergueste a foice, oh! Deus! E do Génio o santelmo<br />

— Como aos golpes da maça esphacela-se um elmo.<br />

Desfez-se neste dia! E essa ave foi ao chão!<br />

Sorriste ao derribar o grande dentre os grandes,<br />

Cuja fronte altaneira ultrapassava os Andes,<br />

Cujo vôo sem par devassava a amplidão !<br />

Tripudiaste, julgando essa Victoria tua,<br />

O' morte formidanda, ó morte torpe e crua!<br />

Ceifadora eternal de fúnebre trophéo!<br />

— E o viste além soffrer, perante o azul celeste,<br />

Porque se a Fama é o céu que de astros se reveste,<br />

A Dor que segue o Génio é a nuvem deste céu !<br />

* * *<br />

Mas, não venceste, não! Que indo através das éras,<br />

Das estrellas, dos sóes, dos mares, das espheras,<br />

A Gloria brada sempre, em rutilo fulgor:<br />

«Salvé, ó pátria ditosa! Eterna entre altos nomes<br />

« E' a epopéa do Génio! »<br />

E é a tua, ó Carlos Gomes!<br />

— Aguia da minha terra, impávido condor!


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A perfectibilidade correlativa desse todo, seres e cousas, manifesta-se<br />

sobremodo no collectivismo das grandes aspirações humanas: religião, politica<br />

e arte.<br />

A maior crença seria a que absorvesse a fé de tudo: <strong>com</strong>o luz,<br />

seiva, calor, vida, mórte. A politica maior a da fraternidade do mundo.<br />

Não o equilíbrio aristocrático das balanças de precisão, que accusam differenças<br />

minimas entre o ouro e o ferro, egualmente valorisados no seu<br />

mister, na sua profissão.<br />

E a arte maior a que alcançasse foros de universalismo.<br />

Tudo através de causas e cousas, condições geographicas e raciaes,<br />

impondo-se pela amplitude da sua força, a visão panoramica do seu fim :<br />

Os primeiros dois terrenos são energias militantes, o terceiro, energia<br />

triumphante. A arte já é um mundo que gravita por si, levando <strong>com</strong>o<br />

pharol da sua constellação os nomes dos artistas, que successivamente se<br />

apagam e accendem na rotação eterna do seu desenvolvimento, <strong>com</strong>o os<br />

luminosos letreiros das importantes capitaes.<br />

Nesse giro incessante surge o de Carlos Gomes, que escreveu o<br />

nome do Brasil <strong>com</strong> caracteres de estrellas entre os povos de cultura superior.<br />

Devemos chamal-o representante da musica brasileira, da musica<br />

americana ? Encraval-o egoisticamente á orbita do nosso patriotismo ? Não<br />

existem céos nem terras particulares aos povos nos domínios régios da arte.<br />

Ella é uma espiral traçada no infinito!<br />

Os génios, portanto, excluem-se ao academismo e regionalismo<br />

corriqueiros.<br />

O artista verdadeiro não é o virtuose das magnificiencias da sua<br />

terra, que o virtuosismo se circumscreve a planos geometricos, impedindo<br />

a elasticidade desse corpo que traz em si, <strong>com</strong>o nervos, as raizes mysteriosas<br />

do infinito.<br />

Os génios não têm patria e tendem ao universalismo.<br />

Estão perfeitamente identificados no todo a que aspiram as demais<br />

organizações humanas, <strong>com</strong>o plasma da sua indestructibilidade. Arte pequena,<br />

arte regional, é primavera <strong>com</strong> botões e flores, só promissora da<br />

arte grande, arte outomnal, <strong>com</strong> fructos sazonados e espigas de ouro. Não<br />

menosprezo o popular, que em arte para mim o máximo é o sentimento.<br />

Assim, o elemento grande não é o grego, o latino, o oriental, mas<br />

o verdadeiramente humano, isto é, visto <strong>com</strong>prehendido, e, sobretudo,<br />

sentido e vivido.<br />

Espíritos criadores <strong>com</strong>o Wagner, Beethoven, Schumann, Schubert,<br />

exploraram a inspiração popular <strong>com</strong>o minas de pedras preciosas, delia arrancando<br />

fagulhas mais incendiarias que as tochas dos deuses mythicos.


As deidades medievaes, recortadas na doçura de camafeus pallidos,<br />

sem a elegancia olympica das divindades gregas, o escrínio das lendas célticas,<br />

germanicas, nórdicas, fadas, ondinas, elfos, valkirias, <strong>com</strong> suas formas<br />

ethereas de ondas, azas, conchas, elmos, plumas, e romances de cavallaria,<br />

enriqueceram a historia dos povos.<br />

Mas na ascensão classica e racional dos valores artísticos, arte regional<br />

é a escada que nos alça ao throno da arte universal. Suppor arte<br />

e mesmo gênios sem evolução, sem gradação chromatica de progresso, é<br />

não ter senso critico-artistico. Nada surge constituído.<br />

Tudo é producto elaborativo de forças latentes, de crystallizações<br />

subterrâneas. O mesmo gênio que nos parece esporádico, <strong>com</strong>o <strong>com</strong>eta<br />

temporário, não é outra cousa que sedimentação paciente de raças, de indivíduos,<br />

cellulas que geraram outras. Refinamento da quantidade para a<br />

qualidade, através de processos biologicos, intellectuaes e moraes, embora<br />

a sciencia o estigmatize <strong>com</strong>o doente, o determine <strong>com</strong>o pyramide truncada,<br />

sem o ápice onde as faculdades se reúnem em agulha, mesmo sem a regularidade<br />

escholastica das parallelas.<br />

Pelo proprio dymnamismo cosmico o gênio repelle um sólo.<br />

E si o pisa tem a cabeça tão alta que divisa o mundo inteiro.<br />

Razão porque peço um nome maior para Carlos Gomes. E' grande, bella,<br />

rica, fórte a sua terra!<br />

O attributo de brasileiro não é um adjectivo fóssil, porem de nervos<br />

sadios, vitalizados. Mas satisfeito nosso regionalismo instinctivo, deixemol-o<br />

seguir a via lactea dos gênios. Elie falará de nós á terra inteira,<br />

semeando estrellas da sua altura, que o fim desses seres previlegiados está<br />

muito alem das nossas exigencias patrióticas, só justificadas pela honra de<br />

pertencermos a uma raça fórte e nobre.<br />

São egualmente nossos, nascidos sob céos brumosos ou transparentes,<br />

Shakespeare, Milton, Dante, Goethe, Racine, Platão e outros. Os artistas<br />

são homens ecleticos e cosmicos. Só os sentidos percebem difíerenlemente<br />

as cousas.<br />

A intelligencia vê tudo a uma só luz merediana: a da verdade.<br />

O gênio é criação, redempção, glorificação !<br />

Eguala tempos, idades, para chegar á sublime egualdade dos povos,<br />

alcançar o universal para todos, para cada um, dando-nos o direito de gozar<br />

num minuto as alegrias e as energias dos séculos.<br />

Talvez sem o sentir e quasi sem o saber, a doutrina nitcheana do<br />

mais fórte se me infiltrou nos tecidos.<br />

Mas ante a lei cio mais fórte, sou pela lei do maior, do melhor.


E a arte, muito menos que qualquer especulação humana, pôde<br />

ser <strong>com</strong>primida. O limite é característico da sciencia.<br />

A arte só tem horizontes.<br />

Pouco importa que por ella não cheguemos ás conclusões positivas<br />

da primeira. Além de seus objectivos formarem um hiato, em arte o homem<br />

só progride quando está evoluindo.<br />

A crystallização importa senão num rétrocesso, numa estabilidade<br />

modorrenta, cansada, de cellulas envelhecidas, que caem <strong>com</strong> mais tristeza<br />

das folhas amarellas no inverno. O embalsamento nem sempre é gloria.<br />

A renovação é sempre vida differente.<br />

Além de que, a arte influe mais poderosamente no destino das gentes.<br />

Está-se junto do canhão pela bandeira. Recebe-se uma ferida para<br />

se evitar uma chaga. A força material ergue-se nos tempos, cobre ruínas<br />

<strong>com</strong> a artimanha da hera, occultando fissuras e lacunas, fazendo dum muro<br />

de lamentação uma muralha chineza de repressão.<br />

A outra é um estigma do qual o sangue da tradição corre, sem<br />

nunca redimir, embora delia nasçam as obras imperecíveis dos póvos, em<br />

holocaustos purificadores aos dias de captiveiro. Senão, vede: o <strong>com</strong>mercio<br />

phenicio desappareceu ! As descobertas luzitanas limitaram-se! As<br />

conquistas cesarinas affrouxaram-se !<br />

Só os póvos que pratif içaram a arte ficaram intactos no seu corpo<br />

de civilização. As sociedades são molleculas que, cohesas, resistem á fragmentação<br />

de causas adversas.<br />

A arte ainda realiza esse milagre.<br />

E' o cultivo do sentimento. Sentindo, a gente ama.<br />

Amando, unifica-se. A integridade dum paiz mantem-se mais por ella<br />

que pelas armas, tanto que o vencedor impõe ao vencido sua civilização.<br />

Na lucta dos christãos <strong>com</strong> os mouros hespanhóes deu-se esse curioso<br />

facto psycho-artistico.<br />

Por muito tempo o povo rechaçado para os abrazadores areiaes<br />

africanos, conseguiu reviver-se na corte castelhana pelo byzantismo da sua<br />

arte, que impoz até á formosa Andaluzia, então a pérola da civilização<br />

europea. Tal explanação poderá parecer aos vossos olhos desvio de imaginação<br />

nervosa, occultando fraqueza cultural do assumpto.<br />

Não vesti, porem, ideias magras de saia balão, nem fiz <strong>com</strong>o illusionistas<br />

de palco que tiram de prosaicos guarda-chuvas quinquilharias deliciosas,<br />

interessantes bibelots, figuras que saltam das varetas dum leque,


para, num salão de ouro, dançar a gentileza dum minuetto. Apezar de<br />

as ideias mais lindas deste mundo serem as que não criam nada...<br />

a<br />

Átomos sem nome dansando na * poeira da luz...<br />

Onde só exista uma volúpia cerebral na doce inutilidade sonhar,<br />

que, si as crianças são embaladas paro o somno, nós, só enganados para<br />

a felicidade<br />

Aquilatando-se, porem, o valor da arte, melhor <strong>com</strong>prehender-se-á<br />

a sublimidade do Artista.<br />

E também porque vejo mais a obra que o auctor, e porque também<br />

o auctor para mim é a obra. A de Carlos Gomes importa não só<br />

na gloria da Patria, na conservação da raça, mas na riqueza feudal artística<br />

dos povos.<br />

Mais que o orgulho de o sabermos nosso, a grandeza de o sabermos<br />

universal. São elles, artistas, que criam os povos. E ser collocado<br />

<strong>com</strong>o eixo á roda brilhante das lidimas civilizações, é ter alcançado para a<br />

Patria o verdadeiro patriotismo, não só o das bandeiras, pondo marcos<br />

entre nós mesmos, mas o das cruzadas, collocando monumentos pelo mundo<br />

inteiro, <strong>com</strong>o os gregos que erigiam estatuas até nos proprios bosques.<br />

Sentir hosannas é mais que sentir alleluias!<br />

Carlos Gomes voou altíssimo para ser um dos condores de ouro<br />

que assistem a eternidade do sói, a eternidade da arte!<br />

Tinha o patriotismo dos génios, que abre os braços não para apertar<br />

montanhas, delimitar rios, mas para abraçar o infinito e todas as raças.<br />

Ser brasileiro no Brasil e americano na America, eram-lhe pouco, porque<br />

em si havia a intuição divinatória do fim a que devem chegar os povos<br />

<strong>com</strong> sua civilização.<br />

Fez o Brasil dentro do mundo! Semeador idealista, de idealismo<br />

que si não dá fructos para a machina, accende o <strong>com</strong>bustível das estrellas<br />

para as officinas de trabalho. Dos semeadores que não abrem covas para<br />

sementes, mas plantam sorrindo pétalas de estrellas que na terra se fizeram<br />

flores. A terra embriaga-se de perfume e dorme. Quando accorda exclama<br />

diversamente de Kant: a vida não é um dever, é uma belleza!<br />

A arvore cresce e canta! Cantando seus galhos florescem de amôr,<br />

e o corpo do tronco se lhe estrella de pomos que estalam de vida, deixando<br />

cahir sementes de ouro, grânulos de pedras preciosas.<br />

Carlos Gomes não plantou perfume, plantou som !<br />

E a terra, transpirando o calor perfumado da juventude, percorrida<br />

de ondas sonoras <strong>com</strong>o nervos de luz, sente a carne morena transfigurada:<br />

distende-se, entesa-se e vibra! E' a Symphonia do Guarany, a mais bella


onomatopéia musical de terras ameríndias! E' um côro esdrúxulo das vozes<br />

do sólo pátrio, arrepiadas de superstição ou tocadas de lenda. Musica descriptiva<br />

<strong>com</strong> notas de brilhante sobre pautas de ouro, subindo e descendo,<br />

<strong>com</strong>o fio dum collar magico, que desenhasse contornos luminosos, agrupando-se<br />

no pingente dos accordes, quaes brincos trêmulos de orvalho,<br />

pendurados na orelha verde das folhas.<br />

Musica pictaral, reflectindo nossa natureza etherogenea e ubertosa,<br />

em grandes quadros de pincel a fogo.<br />

Aquarellas deliciosas e suavíssimos cartões postaes, mostrando auroras<br />

meninas e nossos passaros cantores, tão lindos de pennas que nas arvores<br />

parecem flores de azas abertas, sussurantes, no cochicho amoroso dos chilreios<br />

que tecem os ninhos, na successão das notas puras e brancas que<br />

determinam a escalada dos grandes vôos.<br />

Musica que fala da raça nativa, ainda.<br />

Que tem o estrepito dos nossos maracás, o sibilo das flechas do<br />

nosso indio, que vigia, astucioso e vingativo, por detraz das moitas, vestido<br />

de papagaio ou de onça, o civilizado que viola o templo do barbaro.<br />

O indianismo de Alencar é de ficção, o que não desmerece sua<br />

obra. Carlos Gomes musicando o libreto do romance, dá-lhe a tônica<br />

maior da realidade.<br />

Arranca da terra accordes que foram suffocados e ao ar respiram<br />

pela bocca quente das notas, em haustos que estremecem !<br />

Saccode arvores mortas e ellas ressuscitam ! Desafoga rios, tirando-lhe<br />

as pedras, e eil-os estrugindo em cascatas, espumando de gozo e de alegria!<br />

Ressente-se-lhe o romantismo verdiano, quem sabe si pelo proprio<br />

romantismo da raça a que pertence, a lembrança da Patria que fica atravéz<br />

de mares, e só vista na miragem da saudade? Os sentimentos amorosos<br />

predominam no artista e determinam suas obras mais que os outros impulsos<br />

de ordem social.<br />

Salientou-se muito <strong>com</strong>o auctor lyrico, theatral, <strong>com</strong>pondo <strong>com</strong><br />

assombrosa fertilidade, apezar de na vida ser-lhe preciso prover necessidades<br />

materiaes <strong>com</strong> o valor do seu talento.<br />

E' sempre assim: os artistas plantam flores em torno das cruzes.<br />

Guarany e Lo Schiavo são as fontes directas da nossa historia musical,<br />

embora a musica deste ultimo possua o desenho lindo da musica italiana,<br />

disfarçando ás vezes a profundidade na forma poética, que ha muitos<br />

parece superficial. No Salvador Rosa e Fosca, concebeu originalmente a<br />

alma italiana, feita de posses e immaterializações, de querer e respeito,<br />

beijos e gestos de redempção.


Já <strong>com</strong>munga, ahi, fóra do altar da Patria.<br />

Foge ao noviciado para ser sacerdote. Sacerdote estheta, pois prefere<br />

á disciplina ascética do canto-chão, o côro polyphonico das vozes, cheias<br />

dos seus instinctos e sentimentos. Queima nos thuribulos, em vez do incenso<br />

bento, rosas colhidas no coração da primavera, e fala desencantando<br />

imagens, e reza, encantando criaturas.<br />

Nas demais obras, Maria Tudor, Condor, Colombo, demonstra o<br />

mesmo vigor de <strong>com</strong>posição.<br />

Sua linha melódica se curva <strong>com</strong> a belleza do arco-iris que emmoldura<br />

o céo, onde a chuva lava os desenhos velhos das nuvens de hontem<br />

e o sói pinta as cousas novas de hoje.<br />

E' de se lembrar, dentro do Guarany, o recitativo antecedente á<br />

bailada que canta a doce Cecy. Tem qualquer cousa da fala e do canto<br />

das florentinas da idade media : não se sabe quando Cecy recita e Cecy<br />

canta, tal é a fala da musica, tal a musica da fala.<br />

Cielo di Taraiba, de Lo Schiavo, a gente sente a luz que nasce<br />

pelos póros do ar, gradativamente colorindo a natureza, até chegar ao seu<br />

incêndio de ouro. Não ha quebra da melodia, inteiriça <strong>com</strong>o um véo de<br />

noivado...<br />

E é de Campinas, vosso irmão, o artista cujas glorias <strong>com</strong>eçaes a<br />

celebrar, em regozijo ao seu centenário.<br />

Nasceu no vosso berço, palmilhou vossas ruas, frequentou vossas<br />

escolas, viu vossas palmeiras crescerem e vossas andorinhas se amarem.<br />

Não o olhastes <strong>com</strong> vossos olhos, mas sabeis delle vivamente.<br />

Era um menino de bella cabelleira, onde os sonhos se emaranhavam, pupillas<br />

interrogadoras e vivas.<br />

Fugia, ás vezes, aos camaradas, para, á tenda duma sombra de arvore,<br />

no fundo do quintal, só, isolado, tocar um instrumento, cantar um<br />

verso, fazer um cacho de notas.<br />

Era o menino da banda de musica nos dias das vossas festas religiosas<br />

e patrióticas.<br />

Era só um menino que a gente em vez de chamar de extraordinário,<br />

chama de exquisito.<br />

Com os tempos essa criança recebe na pja da arte o nome de<br />

Carlos Gomes.<br />

Faz-se brazão de Campinas, do Brasil, augmenta ainda o patrimonio<br />

universal dos povos <strong>com</strong> sua arte.


Eu sinto que Campinas velha tem vontade de ressuscitar para vêr<br />

o filho glorificado ! As entranhas de vossa terra estremecem ! Ha inquietação<br />

de luz, de sons, de verde no vosso ambiente ! E essa inquietação não é<br />

de berços, mas de vidas que querem retornar! E vós, que dizeis de tudo<br />

isso? Que a<strong>com</strong>panhastes a rota luminosa do perpetuador das vossas tradições<br />

culturaes ? Vós que o sabeis aqui! Alli mesmo no seu monumento<br />

tumulo, que essa é a sepultura gloriosa dos artistas! Que o ouvis em<br />

musica e lhe falaes, cultivando-lhe a arte! Que o tendes presente <strong>com</strong>o o<br />

ar e a luz ! Que podeis desfructar <strong>com</strong>o próprias, diante do mundo inteiro,<br />

as glorias do vosso filho !<br />

Não lhe preparaes um centenário de ouro?<br />

Não vestis a Princeza do Oeste de suas galas reaes?<br />

Elie estará mais aqui nesse dia, que em toda parte, <strong>com</strong>o Verdi<br />

na pequenina Busseto na Italia que é toda musica, onde até as pedras não<br />

se contêm, partem-se cantando, cheias de vida, onde não se pisa terra, mas<br />

cantos inteiros e restos de cantos esfolhados pelo chão. Elie estará mais<br />

aqui, entre vossas flores, vossas palavras, vosso jubilo, vossa arte que procura<br />

homal-o ! E' vosso e por direito vos pertence nesse dia !<br />

A própria Arte colloca-o aqui, afim de que reveja a terra donde<br />

sahiu, o ambiente que o formou !<br />

Só depois ella o levará, na sua missão universal, através de outras<br />

gentes, de outros logares, de outros povos.<br />

Si não bastam as flores dos vossos jardins, extendei as mãos para<br />

os vossos céos! Apanhae estrellas que ellas também se despetalam. Eu<br />

vos saúdo, Campineiros, e vos trago, já, meus sentimentos de alegria e<br />

admiração desfolhados em palavras.


Episodios da vida de Êarlos Gomes<br />

M. J.<br />

ao foram poucas as difficuldades que teve de enfrentar em sua lu-<br />

^ minosa carreira, o grande génio americano, Antonio Carlos Gomes.<br />

Para attingir a gloria que legou á Patria, soffreu elle nào só a falta de recursos<br />

<strong>com</strong>o a hostilidade de seus gratuitos desaffectos que 110 Brasil e na Italia lhe<br />

moveram atroz campanha de descredito.<br />

De sua copiosa correspondência que manteve <strong>com</strong> amigos do Brasil, fica-se<br />

sabendo a serie de desgostos que teve de suportar. Os maestros e <strong>com</strong>positores<br />

italianos, sentindo perder o seu prestigio diante do vulto gigantesco do joven<br />

brasileiro (<strong>com</strong> excepção apenas dos grandes vultos da musica <strong>com</strong>o Verdi),<br />

tudo fizeram para desacredital-o perante o publico, procurando mesmo impedir<br />

a representação de uma de suas operas — a Maria Tudor, levada á scena 110<br />

Theatro Scala em 1879. Na noite da representação da opera mcnsionada, a platéa<br />

manifestou-se francamente hostil, vaiando e apupando o seu autor. No entanto,<br />

tudo leva a crer que essa hostilidade fora en<strong>com</strong>mendada por pessoas que tinham<br />

enteresse em desmoralizai o, pois na noite seguinte elle foi <strong>com</strong>pletamente reliabilitado<br />

pelo grande publico que nào cansou de aplaudir a opera, bisando mesmo<br />

o duelto do 2.° acto. Mas esse aparente desastre valeu <strong>com</strong>o uma revelação do<br />

caracter recto e elevado de Carlos Gomes, que nào se deixou vencer pelo golpe<br />

soffrido, ainda que por momentos chegasse a duvidar do valor e merecimento<br />

de sua obra. Outra revelação de sua nobreza e austeridade foi a attitude que<br />

assumiu para <strong>com</strong> a imprensa que violentamente o atacou, e para <strong>com</strong> o publico,<br />

nào <strong>com</strong>parecendo á 2. a representação de sua opera.<br />

A esse proposito escreveu elle ao Visconde de Taunay a carta seguinte<br />

que transcrevemos de Lafavette Silva: "... a opera principiou applaudida, mas<br />

sentia-se uma corrente contraria, especial, vinda ao theatro para fazer rumor.<br />

Logo 110 principio do 2.° acto arrebentou a trovoada; calmou-se um pouco 110 3.°<br />

e deu o estouro 110 4." (o melhor da opera!) Nesta primeira noite a opera acabou<br />

a<strong>com</strong>panhada de gaitas, assobios, sanfonas e. . nào faltou o famoso cri-cri! Voltei<br />

para casa fumando tranquillamente em <strong>com</strong>panhia do Celega e do Paulo Lecour,<br />

meus Íntimos amigos, um italiano e outro francez. Você ha de ficar de bocaaberta<br />

sabendo que na segunda noite a opera obteve um successo <strong>com</strong>pleto e foi<br />

até bisado o duelto do 2.» acto "colui che non canta", desapparcceram as gaitas<br />

e assobios e só se applaudiu ; mas o caipira nào estava 110 theatro. O publico<br />

que me baptisou em 1870 <strong>com</strong> o Guarany foi grosseiro na noite de 27 (de abril<br />

de 1879), ou estava bebedo! Na segunda noite já lhe tinha passado a carraspana,<br />

mas nào era merecedor de vêr a cara do paulista e tem de esperar muito para<br />

esse gosto!<br />

A imprensa toda foi contra mim e ainda mais, não quiz confessar o successo<br />

da segunda noite; era necessário que eu fosse uma esperança da Italia,<br />

ura maestro italiano de sangue; e <strong>com</strong>positor que <strong>com</strong>pra artigos de jornaes,<br />

coisa que nunca fiz e nào farei nunca, ainda que arrebente."


Cutros epi3odios enteressantes conta-nos Lafayette Silva da vida do grande<br />

<strong>com</strong>positor. Diz elle: " Carlos Gomes era um espirito alegre, simples, despido<br />

de vaidades. Quando trabalhava <strong>com</strong> Salvador de Mendonça na <strong>com</strong>posição de<br />

sua segunda opera, a Joanna de Flandres, tinha 23 annos e ia <strong>com</strong> frequencia<br />

á casa de Salvador, que morava em Nictheroy.<br />

Nessa época, emmoldurava a sua linda cabeça uma basta cabelleira negra.<br />

Fazia-se, entào, tanto aqui, <strong>com</strong>o na vizinha cidade, a propaganda de um efficaz<br />

preparado para evitar a quéda do cabello e as ruas andavam cheias de cartazes<br />

<strong>com</strong> estes dizeres, em caracteres berrantes "Usem o X, tonico para o cabello".<br />

Uma tarde, ao se approximar da casa do amigo intimo, onde era conhecido<br />

pelo seu appellido familiar de Tonico, Carlos Gomes viu-se a<strong>com</strong>panhado de<br />

grande numero de garotos, todos elles risonhos, alegres.<br />

O maestro deteve-se á porta e não pôde também dominar o riso. Na<br />

parede fôra affixado um dos placards de propaganda e um espirito brincalhão<br />

havia supprimido o nome do especifico e alterado os dizeres desta fôrma singela:<br />

antes de "para o cabello" accrescentou a letra a, lendo-se, entào, isto: Tonico,<br />

apara o cabello! Carlos Gomes achou graça 110 conselho, mas nào o adoptou.<br />

Irritava se quando ouvia executar sem afinaçào qualquer trecho, e mais<br />

ainda se este era de sua lavra. Uma tarde, descia elle, a rua do Riachuelo, saboreando<br />

o seu charuto, quando escutou, partidos de um piano familiar, de<br />

magnifico som, os primeiros accordes do Guarany. Carlos Gomes estacou. Nunca<br />

a sua protophonia famosa fôra tilo impiedosamente assassinada.<br />

Quando o piano emmudeceu, o maestro bateu á porta, nervosamente.<br />

Recebeu-o uma gentil senhora, que nào tinha fechado ainda o teclado do<br />

seu custoso instrumento. Carlos Gomes, carregado o cenho, pediu licença para<br />

occupar o piano. E, antes de ouvir o assentimento, executou aquella pagina<br />

cheia de vibração, que dá a impressão do despertar das nossas florestas virgens.<br />

A dona da casa mantinha-se extasiada.<br />

Quando acabou, sem mesmo lhe estender a mào, Carlos Gomes disse á<br />

sua única ouvinte:<br />

— Minha senhora. A symphonia do Guarany toca-se assim!<br />

A dama elegante, cheia de rubor, <strong>com</strong>prehendeu, entào, tudo, e agradeceu<br />

aos seus deuses a graça recebida de, pela sua negaçáo para o teclado, ter ouvido<br />

Carlos Gomes executar, sô para ella, o trecho mais famoso da opera que o elevou<br />

aos paramos da gloria.<br />

Como se sabe, o maestro era ura grande fumante ; deveu mesmo ao abuso<br />

desse vicio o cancro que lhe tomou a lingua e lhe deu a morte, em meio de<br />

cruedelissimas dôres, supportadas <strong>com</strong> estóica resignação.<br />

Uma noite, em Veneza, recolhia-se elle á casa, aborrecidíssimo por nào<br />

ter encontrado um charuto para fumar.<br />

Insurgia-se contra o destino, quando o cocheiro do carro que o conduzia»<br />

respeitosamente mostrou desejo de falar-lhe. Queria, pedir ao maestro, que lhe<br />

desse uma entrada para ouvir o Salvador liosa. Carlos Gomes sorriu e, encarando<br />

o homem simples, disse-lhe :<br />

— Dou-te o bilhete, mas <strong>com</strong> uma condiçào...<br />

— Imponha-a respondeu o cocheiro.<br />

— A de me dares tu, em troca, agora mesmo, esse charuto que indiscretamente<br />

se mostra 110 bolso do teu casaco.<br />

O operário rude lisonjeou-se <strong>com</strong> o pedido e, devido a essa semcerimonia,<br />

pôde o maestro alcançar o charuto para aquella noite e que tão barato lhe custou.


Ballata do Guarany,<br />

Que eu cantava quando môça,<br />

Sem lembrar quanto senti<br />

Será possível que eu ouça ?...<br />

Se Mia Piccirella escuto,<br />

Que cantei, que tanto ouvi,<br />

Da gloria os louros e fructos<br />

Carlos Gomes, vejo em ti!<br />

Prisciliana Duarte de Almeida<br />

(Da Academia Paulista de Letras)<br />

E quando eu era criança,<br />

De noite e de dia ouvi,<br />

Como os hymnos da esperança,<br />

As arias do Guarany!<br />

Campinas, 17 de Julho de 1936.


Cantai florestas do Brasil, cantai!<br />

Ventos, aguas dos mares e cachoeiras,<br />

Centuplicando estrophes condoreiras,<br />

Tãobadalai, rolai, symphonisai!<br />

Martins Fontes<br />

Nossa harmonia louve o excelso Pai!<br />

E ouça-se a voz das plagas Campineiras<br />

Que dominando os hymnos das palmeiras,<br />

Chore e soluce em convulso guai!<br />

São Paulo a Carlos Gomes interpreta,<br />

Erige-lhe um altar sobre o alcantil,<br />

Que no espaço e no tempo se projecta!<br />

E em cada cume, em cada campanil,<br />

Redobre um carrilhão e exalce o Poeta<br />

Das orchestras de fogo do Brasil!


O maestro Sant'Anna Gomes, irmão de Carlos Gomes


Maestro SanVAnna Gomes<br />

(seu ULTIMO RETRATO)


I<br />

M. Junior<br />

studar os homens á margem dos factos e das circumstancias do meio que<br />

os cercaram, procurando izolal-os do ambiente em que viveram, é fazer<br />

obra imperfeita e in<strong>com</strong>pleta, pois o homem é, até certo ponto, um producto<br />

do meio ambiente. Mas nào basta conhecer-se apenas o meio: é preciso<br />

procurar-se muita vez nas leis e princípios do atavismo a explicação de muitas<br />

das manifestações da vida psychica e social dos indivíduos. Assim, na apreciação<br />

da biographia dos grandes gênios da humanidade, vamos quasi sempre<br />

encontrar nesses factores uma explicaçào razoavel para a manifestação da sua<br />

potencialidade creadora.<br />

Carlos Gomes foi incontestavelmente um gênio previlegiado e nunca igualado<br />

nas Américas, mas isso se deve, não só ao facto de descender elle de uma<br />

família de músicos illustres, mas especialmente ao meio favoravel em que esse<br />

gênio pôde desenvolver-se e produzir as obras que o immortalizaram.<br />

Traçando-se um parallelo entre o auctor do Guarany e seu irmão e grande<br />

amigo Sant'Anna Gomes, nota-se, desde logo, a semelhança intima entre os dois,<br />

fazendo-os tão estreitamente ligados <strong>com</strong>o se fossem irmãos siamezes.<br />

De temperamento delicado, e profundamente sensível, ambos foram verdadeiros<br />

artistas na acepção exacta da palavra.<br />

Desta semelhança de temperamento nasceu, por certo, a grande amizade<br />

entre os dois irmãos e que foi, sem duvida alguma, a porta aberta para que<br />

Carlos Gomes palmilhasse a estrada da immortalidade.<br />

Sant'Anna Gomes, foi o grande protector de seu irmão: facilitou-lhe a<br />

fuga do lar paterno, estimulou-lhe o desejo ardente de aperfeiçoar os seus estudos<br />

de musica e, quando já seu irmão se tornara o idolo das platéas italianas e<br />

brasileiras, continuou a dispensar-lhe auxílios inestimáveis, tanto de ordem moral<br />

<strong>com</strong>o financeira.<br />

Para a representação do Guarany em Milão, concorrera elle <strong>com</strong> importância<br />

superior a 7:000$000, fructo de suas laboriosas economias. Mais do que<br />

isto: por occasi;'io da vinda de Carlos (Jomes ao Rio de Janeiro onde levou pela<br />

primeira vez no Brasil á scena o Guarany, devendo voltar á Italia nào teve os<br />

meios necessários para a viagem pela má vontade do elemento official da epocha,<br />

e se nào fossem a bondade e o desprendimento de Sant'Anna Gomes, ficaria a<br />

vegetar no Brasil sem os recursos para proseguir na obra iniciada. A esse<br />

respeito diz André Rebouças: "Sem as 300 libras de seu irmào teria de ser<br />

condem nado a vegetar nesta terra de Botocudos e de Ay mores sem generosidade,<br />

sem nobreza, só capaz de villanias e de inveja


Este é, na verdade, o aspecto mais interessante da vida do glorioso<br />

maestro SanfAnna Gomes que, se outros predicados nào possuisse, por si só<br />

bastaria para o immortalizar.<br />

Não ciiegou ás cumiadas da gloria porque sacrificou a sua carreira artística<br />

em beneficio do irmão, deixando-se ficar no Brasil para amparal-o na ltalia.<br />

Se outras fossem as circumstancias e outro o meio em que vivesse, quem<br />

poderia dizer que não teria transposto elle os pórticos da gloria, na escalada<br />

luminosa da immortalidade <strong>com</strong>o seu irmão?<br />

Mas se nào chegou a ser um nome mundial pelo valor da sua arte, nem<br />

por isso deixou de ser um grande <strong>com</strong>positor e musico, aureolando ainda mais<br />

a sua fronte por se ter tornado o factor principal da gloria daquelle que levou<br />

nas azas da fama e do gênio, da inspiração e da harmonia, o nome do Brasil<br />

ainda quasi selvagem ás terras de além mar. A SanfAnna Gomes, mais do que<br />

a ninguém, deve-se, pois, o successo do illustre <strong>com</strong>patriota.<br />

Transcrevemos abaixo, na integra, as notas biographicas do grande <strong>com</strong>positor<br />

campineiro que nos foram dadas por seu filho Snr. Arlindo Gomes :<br />

"José Pedro de Sant'Anna Gomes, irmão mais velho de Carlos Gomes<br />

fui, sem duvida, também um grande musico campineiro, nào só emerito <strong>com</strong>positor<br />

<strong>com</strong>o também eximio violinista.<br />

Poderia ter alcançado as glorias de seu irmão, porém, preferiu na sua<br />

modéstia ficar em sua terra natal e ajudar o irmão querido na Europa, emprestando-lhe<br />

todo o seu apoio moral e material.<br />

O escriptor Silio Boccanera Junior, escrevendo sobre Sant'Anna Gomes,<br />

assim expressa :<br />

" Pobre Sant'Anna Gomes! deixando-se embalar pelas auras<br />

confortáveis da carinhosa esperança, appelando, sempre, para<br />

o futuro, sempre confiante no dia de amanhã, nào <strong>com</strong>pehendeu,<br />

nunca, uma só vez não soube, ou nào quiz <strong>com</strong>prenetrar-se<br />

desta grande verdade: uma das primeiras qualidades<br />

para um artista de talento, em o nosso meio, — é a morte!<br />

Realmente: ser artista, hoje, em nossa terra, sob todas as<br />

modalidades do BELLO, qualquer que seja a elevada espliera,<br />

vibrante de sonoridades estranhas á lutulenta terra, — é uma<br />

grande infelicidade<br />

Sant'Anna Gomes, sem querer fitar tão de perto a luz<br />

incandescente do Sói, tornou-se um dos mais notáveis violinistas<br />

brasileiros, legando-nos <strong>com</strong>posições de grande mérito<br />

para esse dorido instrumento, mésto <strong>com</strong>panheiro do plangente<br />

violoncello, qual mais fiel interprete dos soluços d'Alma<br />

Sant'Anna Gomes, juntamente <strong>com</strong> seu irmào Carlos Gomes, realisou concertos<br />

em Campinas e Sào Paulo. Foi nessa occasiào, em 1859, que após o<br />

concerto realisado em Campinas, os irmàos Gomes ficaram conhecidos dos estudantes<br />

de Sào Paulo, e originando desse conhecimento, a ida de Carlos Gomes<br />

para o Rio, depois da realisaçào de concertos em Sào Paulo. Sant'Anna Gomes<br />

voltou a Campinas, para junto de seu velho pae, ajudando-o nos serviços musicaes.


Emquanto Carlos Gomes, na Italia, elevava de maneira a mais brilhante, o<br />

nome artístico do Brasil, fallecia em Campinas o progenitor dos irmãos amigos.<br />

Sant'Amia Gomes, tomando o lugar do pae, cria banda e orchestra e coopera<br />

para a fuudaçào do Club Semanal de Cultura Artística, onde mantém uma<br />

orchestra. No Club Campineiro e Centro de Sciencias, Letras e Artes, sua acção<br />

em prol da musica, também foi das mais efficientes. Compunha, dirigia os serviços<br />

de musicas <strong>com</strong> a realisaçào de concertos nestas sociedades e também dava<br />

grande brilho ás festividades da Semana Santa <strong>com</strong> sua orchestra que então era<br />

considerada uma das melhores do Estado.<br />

Dos 5 filhos de Sant'Anna Gomes, 3 se fizeram músicos: Paulino, fallecido<br />

na Italia quando se aprimorava na arte; Alice Gomes Grosso eximia<br />

pianista e Alfredo Gomes, violoncelista, 1.° premio do Real Conservatorio de<br />

Bruxellas.<br />

E' grande a bagagem de <strong>com</strong>posições de SanfAnna Gomes; banda, orchestra,<br />

musica de camera e sacra, duas operas: Semira, que deixou in<strong>com</strong>pleta<br />

e "Alda" era 4 actos, libreto de Emilio Duccati, enviado da Italia por seu irmão.<br />

Compoz um hymno " Carlos Gomes " para grande banda, letra da poetisa Exma.<br />

esposa do Dr. Silio Boccanera Júnior, executado por occasiào da inauguração<br />

da estatua de Carlos Gomes a 2 de Julho de 1905.<br />

Das musicas de camera de SanfAnna Gomes, destacam-se "Saudade"<br />

melodia para 2 violinos, viola, violoncello e contrabasso, dedicada a seu queiido<br />

irmão Carlos Gomes, <strong>com</strong>posta em Março de 1862, " Lamento dos Orphàos " <strong>com</strong>posta<br />

por accasiào da epidemia em Campinas, " Berceuse " dedicada a sua discípula<br />

Noemia Bierrembach, e um quartetto para 2 violinos, viola e violoncello,<br />

dedicado a D. Pedro II. I)as musicas sacras destacam-se uma " Ave Maris<br />

Stelia " para soprano, viola d'amor e orchestra executada e cantada por occasiào<br />

da inauguração da Matriz Nova a 8 de Dezembro de 18t


annos, o seguinte: Primeiro executaram-se os grandes mestres<br />

do quartetto. A pedido de alguns amigos, Sant'Anna<br />

Gomes não poude eximir-se de fazer musica sua. O ouvido<br />

sente-se delicadamente acariciado por essa musica dum verdadeiro<br />

mestre. Não ha salto, ha, apenas, uma transição<br />

d'urna individualidade para outra, servida por uma sciencia<br />

indiscutível. As qualidades principaes do Maestro campineiro<br />

sào a graça, a elegancia, sobre tudo a distinção».<br />

ainda são de Silio Boccanera as seguintes palavras:<br />

«Do ciborio dos meus castos affectos, o maestro e amigo,<br />

que encerra todos os mais delicados sentimentos de minh'alma,<br />

uma saudade — eu deixo partir, em demanda de tua<br />

sepultura. E lá... debruçada sobre o teu sarcophago venerando,<br />

ella deporá em tua gélida fronte, frágoa apagada do<br />

trabalho, incendida, outr'ora, pelos lumes da inspiração, o<br />

osculo sagrado deste meu derradeiro ADEUS!<br />

Nascido a 1.° de agosto de 1834, depois de uma existencia toda de relevantes<br />

serviços musicaes prestados á sua terra, falleceu aos 74 annos de edade<br />

a 4 de abril de 1008.<br />

Os seus amigos e admiradores fizeram erigir no cemitério da Saudade, em<br />

terreno da irmandade do S. S. de Santa Cruz, hoje Ordem Terceira do Carmo,<br />

um artístico e significativo tumulo <strong>com</strong> o busto do maestro, obra de arte do escultor<br />

Marcelino Velez, encimado em uma columna donde se vê esculpido no<br />

mármore, em chumbo, um trecho de sua melodia «Saudade», dedicada a Carlos<br />

Gomes e mais abaixo uma lvra de bronze.<br />

v<br />

E assim, deixou de existir aquelle que em vida se chamou Sant'Anna<br />

Gomes, deixando uma profunda saudade no coração daquelles que o conheceram,<br />

saudade essa, eterna, porque a musica é divina e o que é divino é eterno».


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. •• f• ^<br />

Kr vis ta <strong>com</strong>posta c impressa no Estabelecimento Graphiro «CASA LIVRO AZUL »-Campina 1 »<br />

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00039039500403<br />

Revista do Centro de Sciencias<br />

SP Rev.CSLA56 1936<br />

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