Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
1.° Centenario de CARLOS GOMES<br />
Revista do Centro de Sciencias, Letras e Artes.<br />
Publicação feita sob os auspícios da<br />
COMMISSÃO CENTRAL DE FESTEJOS.<br />
Campinas. 11 de Julho de 1936.
Cr<br />
ANNO XXII CAMPINAS, — EST. DK S. PAULO — BRASIL. N.O 5(I<br />
Revista do Centro de Sciencias, Letras e Artes<br />
O Centro não sc responsabiliza<br />
pelas opiniões de seus<br />
2 . CENTRO DE SCIENCIAS, LETRAS E ARTES<br />
ÍNDICE<br />
Marques Júnior — «Carlos Gomes» . . . .<br />
Dr. Carlos Stevenson — Antonio Carlos Gomes<br />
llala Gomes Vaz de Carvalho<br />
(TRAÇOS APOLOGÉTICO)<br />
«A Aurora de um gênio»<br />
«O Zenite da Glória^<br />
«O Ocaso» . . . .<br />
Dr. Affonso de L. Taunay— «Carlos Gomes» e o «Visconde de Taunay<br />
Dr. Odecio de Camargo — «Manéco Musico»<br />
Nelson Omegna — * Retrato de Carlos Gomes»<br />
Cláudio de Souza — «Carlos Gomes»<br />
Dr. Carlos Stevenson — «Visconde de Taunay»<br />
Laurindo de Brito — «Carlos Gomes»<br />
.7. Eustachio de Azevedo — «Carlos Gomes»<br />
D. Pedro II<br />
J. Pereira de Castro — «Oração ao Gênio»<br />
Ulysses Nobre<br />
«Reminiscências de Carlos Gomes»<br />
«A primeira representação d'«0 Guarany» no Pará<br />
«Reminiscências» — Carlos Gomes 110 Pará, em 1882<br />
«Cantada pela primeira vez no Brasil «O Guarany»<br />
Leopoldo Amaral — «Brasileiros eminentes»<br />
A. Carlos Gomes — «Carta ao Imperador»<br />
«Decreto concedendo uma pensão, na Italia, a Carlos Gomes . . .<br />
«Carta do Marquez de Olinda»<br />
«Carta do Marquez de Olinda, em 11 de Dezembro de 1863 . . .<br />
Dr. Amphilophio de Mello — «Carlos Gomes»<br />
Octávio Netto — O «Guarany», voz da terra brasileira<br />
Ibrantina Cardona — «Carlos Gomes»<br />
Benedicto Octávio — «A Morte do Condor»<br />
Tiana Amarante — «Carlos Gomes, o Gênio do Som e da Harmonia»<br />
Marques Júnior — Episodios da vida de Carlos Gomes<br />
Presciliona Duarte de Almeida — «Coroa de Louros»<br />
Martins Fontes — «No tumulo de Carlos Gomes»<br />
Marques Júnior — «Sant'Anna Gomes»<br />
» 9<br />
» 12<br />
» 15<br />
» 19<br />
» 23<br />
» 37<br />
» 43<br />
» 47<br />
» 59<br />
» 60<br />
» 63<br />
» 67<br />
» 71<br />
» 72<br />
» 74<br />
» 77<br />
» 81<br />
> 85<br />
89<br />
90<br />
93<br />
94<br />
97<br />
101<br />
105<br />
109<br />
117<br />
119<br />
120<br />
» 123
muni<br />
Marques Junior<br />
Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas, num gesto<br />
largo e elevado de admiração e patriotismo, quiz homenagear,<br />
de maneira digna, o maior gênio musical do Brasil, o glorioso maestro<br />
Antonio Carlos Gomes, cujo centenário hoje se <strong>com</strong>memora.<br />
%<br />
Para tanto, emprehendeu elle, a publicação de sua Revista, fazendo-a<br />
reaparecer em numero especial, dedicado ao famoso <strong>com</strong>positor patrício,<br />
cujo nome deixou de ser uma gloria propriamente nossa, para figurar ao<br />
lado dos que conquistaram a immortalidade nos domínios internacionaes<br />
da musica e da arte.<br />
Todos os esforços despendidos <strong>com</strong> essa publicação, estão fartamente<br />
justificados, pois o genial auctor do Guarany, está acima de tudo que se<br />
possa fazer para realçar o valor de seu gênio in<strong>com</strong>parável.<br />
Seu estro musical, seu arrebatamento artístico, deram-lhe fama e<br />
renome, tornando-o uma figura marcante e destacada na galeria dos predestinados.<br />
Poucos souberam, <strong>com</strong>o elle, conhecer de modo tão perfeito<br />
e profundo os segredos da harmonia que só ás divindades era dado desvendar.<br />
Dir-se-ia que elle, conhecendo os mysterios dos deuses, procurou<br />
unir, pelos acordes suaves de sua lyra, o ceu á terra, trazendo aos homens<br />
as harmonias dulcíssimas dos paramos celestes para suavisar-lhes os ásperos<br />
caminhos da vida.<br />
Carlos Gomes, nascido de família humilde, conquistou pelo seu<br />
esforço e dedicação a celebridade e a gloria. Ainda muito moço, já era<br />
cantor e <strong>com</strong>positor em sua cidade natal. O meio, porém, não lhe permittia<br />
vôos mais altos; e elle, irriquieto e sonhador, influenciado pelos acadêmicos<br />
paulistas dos quaes tinha conquistado a admiração <strong>com</strong> a publicação<br />
de seu "Hymno Acadêmico", e <strong>com</strong> a cumplicidade de seu irmão Sant'-<br />
Anna Gomes, foge de casa para Santos e dahi para o Rio, onde, na casa<br />
do negociante Azarias Botelho, que o hospedara, derrama lagrimas de arrependimento,<br />
tocado pelo remorso da fuga e pela saudade do lar. Escreve,<br />
então, a seu pae, pedindo-lhe perdão e depois de longa espéra, passando
ANTÔNIO CARLOS GOMES<br />
(TRAÇOS APOLOGÉTICOS)<br />
A AURORA DE UM GÊNIO<br />
Dr. Carlos Stevenson (Socio Ienemérito<br />
e ex-presidente do Centro<br />
de Sciencias, Letras e Artes).<br />
"Paira-lhe na fronte aquela vaga<br />
aureola da mocidade: os raios<br />
todos da experança". :-: :-: :-: :-:<br />
Quirino dos Sayüos<br />
jjjc luminado por aquela rósea aureola da mocidade, afagado pelos promissólios<br />
raios da experança, aos vinte anos apenas, surgiu Antônio Carlos<br />
Gomes 110 largo horizonte da mais bela das artes. Era já, naquele tempo,<br />
apreciavel <strong>com</strong>positor, escrevendo musicas sacras para as festividades religiosas<br />
locais, e regente de orquestra, nos impedimentos de seu pai, o conceituado musico<br />
paulista, Manuel José Gomes.<br />
De modesto lar, veio o insigne <strong>com</strong>positor. E, pela áurea porta por<br />
onde entraram na vida muitos dos mais ilustres homens que produziu São Paulo<br />
— a gloriosa Campinas — chegou ao mundo aquele que deveria reafirmar tão<br />
honroso titulo á sua terra natal, tornando-se, do mesmo passo, a glória do Brasil<br />
e da própria America.<br />
A memorável data do nascimento de Antônio Carlos Gomes, embora<br />
conhecida e perfeitamente determinada, tem provocado controvérsias, ante a diversidade<br />
de dados oferecidos pelas efemérides e biografias do grande campineiro.<br />
E, o que é ainda mais grave, pela divulgação que acarreta, Dão estào exatas<br />
as informações constantes de reputados dicionários <strong>com</strong> carater enciclopédico.<br />
Por evitar confusões, não será descabido fazer notar êsse fato. Assim, a grande<br />
" Encyclopédia e Diccionário Internacional ", regista : " Oficialmente a data do<br />
seu nascimento é 13 de Junho de 1839amparandose, aliás, em numerosos<br />
biografos mal informados, entre os quais, Teixeira de Mello, Augusto Mauricio,<br />
Blake e Rio Branco. No " Diccionário Prático Illustrado " de Jayme de Seguier,<br />
talvez o mais utilizado em todo o Brasil, encontra-se sob o titulo — Carlos<br />
Gomes — a indicação (1830 — 1004) <strong>com</strong>o as datas limites da vida do notável<br />
<strong>com</strong>positor, ambas destituídas de veracidade.<br />
Uni dos seus historiadores explica que a confusão dada, <strong>com</strong> relação a<br />
essa data, resulta de alguns dos seus biógrafos e efemeridistas declararam que,<br />
quando Carlos Gomes, resolvendo convolar núpcias, na Italia, pediu a sua cer-
tidào de idade, para Campinas, lhe foi por engano enviada, em vez da sua a<br />
que se referia a um seu irmão de igual nome, provavelmente ^orto em tenra<br />
idade. Outros indicam, ainda, para essa data histórica, o dia 11 de Maio de 183,.<br />
O decano dos nossos lidadores da imprensa, um dos últimos representantes<br />
da velha guarda, depositário das mais antigas tradições campineiras, transcreve<br />
na sua apreciada obra, «Campinas - Recordações", um lançamento que se<br />
encontra no livro de registo dos batismos daquele tempo, arquivado na Catedral,<br />
onde está inscrito, <strong>com</strong>o nascido a 11 de Julho de 1836, António, filho legitimo de<br />
Manoel José Gomes e Fabiana Maria Cardoso. Esse Antônio era Carlos Gomes.<br />
Tendo-se oferecido oportunidade, ouvimos a Exma. Sra. D. Ana Gomes,<br />
irmã sobrevivente do inolvidável maestro, que nos confirmou esse dado, <strong>com</strong>o o<br />
verdadeiro. E' esta, aliás, a data oficialmente aceita, e fixada para as solenidades<br />
<strong>com</strong>emorativas do centenário do maior musico das duas Américas.<br />
Manuel José Gomes a todos os filhos ensinava musica. Dessa forma,<br />
desde muito jovem, entregou-se o futuro <strong>com</strong>positor ao estudo da arte em que<br />
mais tarde seria mestre. Bem cedo se revelou creador de músicas populares,<br />
tornando-se depois pianista, e a<strong>com</strong>panhando, <strong>com</strong> muito brilho e alma, o seu<br />
irmão, maestro José Pedro de Sant'Ana Gomes, notável violinista, nos seus concertos.<br />
Mas, o que o fez querido, por aquela época, foi a sua canção, "Tão<br />
Longe de Mim Distante", que se tornou famosa, e o seu "Hino Académico",<br />
a Marselhesa da mocidade, <strong>com</strong>o foi chamado. Esta vibrante <strong>com</strong>posição, calcada<br />
sóbre versos do estudante Bittencourt Sampaio, conquistou-lhe tal popularidade,<br />
que ficou êle sendo quasi que um ídolo, entre os estudantes de Direito<br />
da velha Academia de São Paulo.<br />
Sob instigações constantes désses seus ardorosos amigos, capitaneados<br />
pelo futuro bacharel Francisco Azarias de Queiroz Botelho, o mais entusiasta,<br />
e " que se tomara de apaixonada admiração pelo seu talento musical", Carlos<br />
Gomes " olha para si, titubeia, empalidece, diz Quirino dos Santos, e arde-lhe,<br />
entretanto, no peito, aquele vulcão atroz, insondável, terrível e belo ao mesmo<br />
passo, que impele para diante as vocações privilegiadas ".<br />
Havia, porém, contra a satisfação dêsse irresistível impulso da sua alma<br />
indómita, uma dificuldade invencível — a oposição paterna. Excesso de zêlo<br />
ou amor mal entendido ? A falta sensível do valente auxiliar nos seus trabalhos<br />
musicais? Deficiência pecuniária? E' difícil hoje julgar. Todavia, algumas<br />
dessas razões, talvez todas e ainda outras, se alevantaram <strong>com</strong>o intransponíveis<br />
barreiras ás soberbas aspirações do moço campineiro.<br />
Foi tremenda, naturalmente, a luta entre o submisso amor filial e as<br />
estonteantes visões de uma vitória brilhante e certa, que lhe povoavam a mente,<br />
e o assediavam, em constante e apertado cêrco. Por fim venceu, porque mais<br />
forte que qualquer vontade, aquele impulso de que fala Quirino dos Santos, o<br />
seu imperioso pendor artístico. Romperam-se os liames que ainda o prendiam<br />
ao estreito âmbito da sua terra natal, e ei-lo que, furtivamente, deixa o pátrio<br />
lar, dirigindo-se para Santos, e depois, para o Rio de Janeiro, em <strong>com</strong>panhia de<br />
Antônio Levy, a bordo do vapor " Piratininga ", a 20 de Julho de 1859.<br />
Estava pre-traçada e tinha inicio a fulgurante trajetória de um gênio •<br />
mas o presente se lhe oferecia carregado de acerbas preocupações. Hospedado<br />
no Rio por um bom amigo, Azarias Botelho, pai do estudante do mesmo nome<br />
estabelecido á rua Direita, 143, não podia o brioso jovem ir além da franca<br />
hospitalidade que recebia. Faltavam-lhe recursos. Amargamente sentindo a<br />
precipitação e desrespeito á vontade paterna, <strong>com</strong> que agiía escreveu ao paf,
pedindo perdão pelo errado passo. E, postada a carta, por toda a sua fortuna<br />
monetária, restava-lhe exigua soma — 120 reis.<br />
Longa foi a demora da ambicionada resposta, e já sem limites era a<br />
sua angústia, quando lhe chegou ás mãos a missiva paterna. O coração de pai<br />
perdoa sempre. Foi chorando que Carlos Gomes leu as muitas censuras que<br />
precediam o perdão e bênção do seu extremoso progenitor, e a ordem que lhe<br />
constituía uma pensão mensal de 30$000 rs. Era pouco; mas, para êle, representava<br />
um tesouro e, para o pai, <strong>com</strong> numerosíssima família, um grande sacrifício.<br />
•<br />
Havia de passar, entretanto, para o moço artista, o tempo de rudes dificuldades.<br />
D. Pedro II, o magnanimo monarca sempre pronto a amparar os<br />
reais valores que se faziam, estendeu-lhe carinhoso acolhimento. Viu êle firmado<br />
o primeiro passo no caminho que anciava trilhar. Conseguiu entrar para o<br />
Conservatório do Rio de Janeiro, sob a direção do laureado maestro Francisco<br />
Manuel, autor do Hino Nacional.<br />
Tinha Carlos Gomes verdadeira fascinação pelo teatro lirico que, na<br />
época, estava, talvez, no seu apogêu. Havendo o antigo teatro Provisório tornadose<br />
uma das maiores cênas do mundo musical, e podendo, assim, ouvir os grandes<br />
artistas que vinham ao Rio e as obras dos grandes mestres, anteviu êle o fulgor<br />
do seu futuro. Começou a trabalhar incessantemente. Fez o curso de harmonia<br />
e contra ponto, mas o seu desejo era escrever e não estudar, conforme frase<br />
sua. Queria <strong>com</strong>pôr nma ópera. E, quando "já <strong>com</strong>eçava a aparecer", essa<br />
aspiração tomou corpo, ante o <strong>com</strong>pleto êxito alcançado pela cantata que <strong>com</strong>pôs,<br />
110 Conservatorio, e que, premiada pela congregação, foi executada no concerto<br />
oficial do encerramento das aulas.<br />
Sentindo-se senhor da sua inspiração e confiante na sua técnica, escreveu<br />
Carlos Gomes a sua primeira ópera, a "Noite do Castelo", cantada no Rio de<br />
Janeiro, em 1861. Foi uma grande ousadia, mas corôada de ruidoso sucesso.<br />
"Ao terminar cada ato, era Carlos Gomes chamado ao procênio, vitoriado e<br />
brindado <strong>com</strong> corôas e flôres; no fim do espetáculo o entusiasmo quasi tocou<br />
as raias do delírio ". Por essa ocasião, conferiu-lhe o Imperador a venera da<br />
Ordem da Rosa; seus conterrâneos lhe ofereceram uma coróa de ouro, e o<br />
maestro Francisco Manuel, uma batuta de unicórnio, em nome da orquestra.<br />
Durante dois anos, Carlos Comes estudou <strong>com</strong> afinco, produziu várias<br />
peças para piano e, por fim a sua primeira obra de larga envergadura artística,<br />
a partitura da " Joana de Flandres ".<br />
O êxito dessa opera, cantada em 1863, sobrepujou o da "Noite do Castelo ".<br />
Foi geral o entusiasmo de que se contaminou todo o teatro, na primeira audição<br />
dessa primorosa <strong>com</strong>posição musical, contagiando o próprio Imperador, que resolveu,<br />
<strong>com</strong>o prêmio ao mérito, promover o genial artista ao oficialato da Ordem<br />
da Rosa, cuja <strong>com</strong>enda já lhe havia sido conferida. Informado Carlos Gomes<br />
da graça especial que o aguardava, correu ao soberano, para pedir que transferisse<br />
a honra que lhe fosse destinada ao seu venerando pai, sob a forma de<br />
sua nomeação para mestre da Capela Imperial, no que foi logo atendido.<br />
Não era bastante. D. Pedro II quiz testemunhar diretamente a sua admiração<br />
e a sua confiança ao novel <strong>com</strong>positor, determinando ao maestro Francisco<br />
Manuel que o premiasse <strong>com</strong> uma viagem de estudos a Europa. Assim<br />
foi feito; e a 8 de Novembro desse mesmo ano, partia o laureado campineiro<br />
para a terra da musica, onde deveria, mais tarde, cobrir-se da gloria imarcessivel<br />
dos iluminados.
O ZENITE DA GLORIA<br />
" Questo giovane <strong>com</strong>incia. lá<br />
dove finisco io".<br />
Giuseppe Verdi<br />
cio foi sem dificuldades e conseqüente desânimo que se iniciou em<br />
Milão, a nova fase da formação artística do notável musico. Incansável<br />
trabalhador, entretanto, dentro de dois anos havia conseguido tornar-se<br />
contrapontista de reconhecido valor, escrevendo, então, uma fuga magnifica, que<br />
dedicou a D. Pedro II, seu imperial protetor, a quem prestava, assim, um justo<br />
preito de gratidão, significativo e sincero.<br />
Por esse tempo, <strong>com</strong>pôs Carlos Gomes duas graciosas óperas bufas — "Se<br />
Sa Minga" e "Neila Luna" — que obtiveram franca aceitação na península.<br />
Eram a preparação do público, para o seu máximo triunfo.<br />
A 19 de Março de 1870, subia á cena, no Scala, de Milão, a grandiosa<br />
ópera, "O Guarani", inspirada nos românticos episódios da célebre obra de José<br />
de Alencar, seguudo o poema — libreto do poeta Antônio Scalvini. Foram seus<br />
principais interpretes os afamados cantores, Maria Sasse, Vilani, Maurel e Coloni.<br />
O êxito dessa primeira audição foi extraordinário e <strong>com</strong>pleto, acima de<br />
todas as espectativas. Sob o esplendor das luzes, irriquietos e anciosos pelas<br />
sinfonias selvagens que esperavam, estava presente tudo que de elegante e artístico<br />
se poderia reunir na sociedade e no mundo musical milanense. E, do<br />
súbito silêncio que aos primeiros acordes se fez, estrugiram, num constante<br />
" crescendo", <strong>com</strong> o desenrolar do emocionante drama musicado, os aplausos<br />
entusiásticos, vividos, repetidos, que abriram, ao estreante mágico da sonoridade<br />
orquestral, as fascinantes e largas portadas da glória e da imortalidade, cobrindo,<br />
<strong>com</strong> os mesmos louros dessa magnifica vitória, a terra-mãe longínqua, orgulhosa,<br />
e cada vez mais, do triunfo e da fama do seu inolvidável filho, o imortal cantor<br />
das nossas selvas.<br />
Um dos seus biógrafos, reportando-se aos triunfos parciais que foram os<br />
ensaios dessa magistral partitura, observa que o ousado <strong>com</strong>positor quasi endoideceu,<br />
ao ver-se vivamente aplaudido por Verdi, e principalmente quando, ao<br />
terminar o grandioso concertante do terceiro ato, que pela primeira vez ouvia,<br />
<strong>com</strong> entusiasmo, exclamou : " Este jovem <strong>com</strong>eça por onde termino eu ".<br />
Gounod, então presente, foi também abraçá-lo, felicitando-o e externandolhe<br />
os maiores elogios.<br />
O maestro SantfAna Gomes era a única pessoa estranha admitida a<br />
assistir a êsses ensaios, verdadeiras noitadas de arte, por exigência de Carlos<br />
Gomes. Logo após o primeiro, disse êle ao irmão: "Pois foste tu mesmo que<br />
fizeste tudo aquilo, homem! " E, por tê-lo visto censurar artistas: " Ainda, te<br />
zangas <strong>com</strong> êsses graúdos? Não te conheço mais, meu fujào de São Paulo..."
Escreveu André Rebouças, no seu Diário: — " Que prodígio! Nascer em<br />
Campinas, nos confins de São Paulo, e vir dar regras de música, de canto e<br />
de mímica teatral, na Italia!"<br />
Mas, a grande satisfação, de que se tomara tão justamente o nosso opulento<br />
<strong>com</strong>positor, não era ainda <strong>com</strong>pleta. Uma vez tão brilhantemente consagrado,<br />
na Europa, o mérito da sua nova ópera, quiz logo o autor fazê-la ouvir<br />
no Brasil. Dados os necessários passos para èsse efeito, viu êle por fim realizada<br />
a maior aspiração da sua alma, fazendo cantar o " Guarani", <strong>com</strong> grande<br />
aparato, no Rio de Janeiro, por ocasião do aniversario do Imperador, a 2 de Dezembro<br />
do mesmo ano.<br />
De brilhante e ruidoso sucesso cobriu-se esta primeira audição. O entusiasmo<br />
popular não tinha limites; a admiração despertada e os constantes<br />
aplausos chegavam ao delírio. Chamado ao camarote imperial, foi o vitorioso<br />
maestro, por entre aclamações do teatro inteiro, publicamente abraçado pelo<br />
imperante.<br />
Tinha chegado ao apogêo a sua glória!<br />
Campinas não ficou nem poderia ficar alhêia a tão conspícuo acontecimento.<br />
Foi ao Rio, por uma <strong>com</strong>issão, levando-lhe uma linda medalha de ouro<br />
<strong>com</strong> valioso brilhante. E' que, no " Guarani " não ha somente aquela sua maravilhosa<br />
sonoridade, toda a profunda beleza das penetrantes melodias que empolgaram<br />
as velhas platéias do velho mundo. Ha qualquer cousa de muito mais,<br />
que nos fala nalma, que nos enche e coração, que só êle e Campinas ouviam e<br />
tão nobremente Batista Pereira soube traduzir.<br />
Ouçamo-lo:<br />
" Toda a nossa natureza inédita e bruta, violada pelo Descobridor, coube<br />
na alma de Carlos Gomes. Desde então, cada vez que irrompe de urna orquestra<br />
a Protofonia do Guarani, ha alguma cousa ali mais do que a fuga, o contraponto,<br />
a harmonia, em serviço da arte humana. A torrente melódica vem de<br />
origens mais profundas que as da próprio inspiração. Nasce das entranhas da<br />
terra... Precipita-se <strong>com</strong> o arranque de São Paulo ao configurar o Brasil.<br />
Amplia-se <strong>com</strong>o a epopéia da Conquista. Dá pulmões á nossa floresta, aos nossos<br />
rios, aos nossos instintos, ás nossas almas. Para isso, Campinas, foi que nasceste<br />
á orilha da mata, ressoante de sonoridades estranhas, e cortada de silêncios<br />
augurais.<br />
" O intróito do Guarani é o teu hino sagrado, Campinas... Faz da sua<br />
audição um culto cívico. Alimenta da sua violência orogênica o subconciênte<br />
do teu povo. Executa-o nas noites estreladas, nos coretos dos teus jardins,<br />
quando os namorados espairecem, para que a poesia dos instintos e os mistérios<br />
do coração se embebam nas suas harmonias. Adota-o <strong>com</strong>o a Marcha Nupcial<br />
dos teus filhos".<br />
E assim, Campinas, <strong>com</strong> a devoção de um culto, ouviremos por toda<br />
parte a mágica interpretação de todas essas vozes do Brasil selvagem, que só<br />
tu soubeste <strong>com</strong> o seu imortal cantor sentir. Assim, Campinas, nesta ocasião<br />
em que celebras o centenário do heróe dos sons, atende á voz do que clama<br />
nêste deserto de sentimentos e idéias, elege, para sempre, a sinfonia magna em<br />
teu hino de todas as solenidades, executa-a nos coretos dos teus jardins, adota-a<br />
para Marcha Nupcial, nos teus casamentos. E assim, Campinas, dignamente,<br />
dia por dia, honrarás a um dos mais ilustres daqueles que, no teu seio de mãe<br />
bendita, receberam o batismo da pia e da luz.
Nos seus dias vitoriosos esteve em Campinas o filho saudoso. Pez a sua<br />
entrada triunfal a 17 de Agosto de 1870, sendo acolhido <strong>com</strong> uma verdadeira<br />
apoteose. Foi a mais brilhante e a mais popular das recepções ate então vistas<br />
na opulenta cidade.<br />
Mas, tinha de trabalhar o consagrado maestro. Para isso tornou á Europa,<br />
<strong>com</strong> o fim de continuar as suas produções teatrais, cabendo-lhe, em 18
O OCASO<br />
" A luz da estrela da sua existência<br />
ia-se apagando lentamente: uma terrível<br />
moléstia lhe consumia a vida ".<br />
Leopoldo Amaral<br />
ntônio Carlos Gomes, por se ter feito a maior glória musical das duas<br />
Américas, nunca deixou, por isso, de ter a alma boémia, <strong>com</strong>um,<br />
dos artistas. Generoso, desprendido, desorg;misado, mesmo, na parte mais prosaica<br />
da vida, as suas finanças sempre andaram em dificuldades.<br />
Conhecedor do pouco que produz a arte, o Imperad- r, do seu bolso particular,<br />
pelo muito que lhe valia tão bela expressão da inteligência brasileira,<br />
fazia <strong>com</strong> que a êle chegasse uma mesada. Outros amigos se quotizavam para<br />
enviar-lhe auxílios que o puzessem ao abrigo de privações e vexames.<br />
Com a proclamação da República, porém, estancou se a principal fonte<br />
permanente dos seus modestíssimos recursos. O governo republicano lhe negou<br />
o auxilio que foi solicitado por intermédio do prestigioso propagandista e chefe<br />
politico campineiro, Francisco Glicério.<br />
Estava o maestro, de visita, em Campinas, quando ruiu o trono. Impressionou<br />
se vivamente, apaixonando se aquele extremado coração, ante a traidora<br />
sorte do seu ilustre protetor, o grande Brasileiro deposto. " Carlos Gomes, diz<br />
um dos seus biógrafos, aliava á sua natureza de extraordinária vivacidade, um<br />
coração profundamente sensível, um temperamento nervoso, que vibrava violentamente,<br />
ás emoções fortes ". " A sua veneração era tão grande, narrava o Dr.<br />
Cesar Bierrembach, veneração essa justificada, por I). Pedro II, — cuja proteção<br />
generosa se gloriava de haver recebido — que quando êle se achou enfermo<br />
em Milão (1888), Carlos Gomes não saía do hotel onde S. M. era hospedado".<br />
Talvez por isso, não foram amigaveis, desde o princípio, as relações<br />
entre o inolvidável maestro e os governos republicanos que se sucederam. Nem<br />
mesmo poude êle conseguir um lugar, na reforma do Conservatório do Rio de<br />
Janeiro, quando, muito ampliado, passou a ser o Instituto Nacional de Música.<br />
Até a calúnia não o poupou. Foi acoimado de estrangeiro por naturalização<br />
italiana. Era, entretanto, Carlos Gomes, que tão bem soube escrever a<br />
mais brasileira das músicas, um dos mais brasileiros dos brasileiros, sendo que<br />
a quantos tiveram a dita de conhecê-lo, 110 seu intimo, espantava o descaro de<br />
uma tal asserção. Mas, a malignidade tem asas de avião, transpôs o oceano,<br />
envenenou-lhe a vida. E, apesar da violência <strong>com</strong> que sempre repelia esta perfídia,<br />
esclamando: "Nunca deixarei de ser brasileiro", teve, para aniquilar a<br />
calúnia, de produzir prova oficial, por meio do Consulado Geral do Brasil, na<br />
Italia, publicando a certidão obtida, de que: "apesar dos muitos anos que residiu<br />
em Milão, se conservou sempre cidadão brasileiro ". Esta verdade êle a
quiz confirmar no seu testamento, em 1893, assinando-o: Antonio Carlos Gomes,<br />
maestro de música, residente em Milão, Via Marone, 8 - Brasileiro e 1 atriota.<br />
Voltou o grande Brasileiro e Patriota para a Italia, sua segunda pátria,<br />
mais acolhedora e carinhosa, a fim de trabalhar e viver. E porem sempre<br />
precária a vida dos artistas. Com o tempo, avolumaram se as dificuldades <strong>com</strong><br />
que lutava; as poucas reservas que reunira cedo se esgotaram ; <strong>com</strong> os padecimentos<br />
que lhe sobrevieram, tornava se quasi insustentável a sua situaçao, agravada<br />
por longa enfermidade de seu filho.<br />
Foi então que recebeu Carlos Gomes proposta do maestro Gama Malcher,<br />
da Associação Lirica do Pará, para a representação das suas operas, durante a<br />
estação lirica de 1895, em Belém. Para tratar desse assunto veio êle ao Pará,<br />
em março daquele ano.<br />
Sabedor Lauro Sodré, seu velho admirador, das dificuldades em que se<br />
debatia aquele que tanto soubera fazer pela arte e pelo Brasil, convidou-o, <strong>com</strong>o<br />
Governador do Estado, para dirigir o Conservatório de Musica da Capital.<br />
Em 1896, voltou ao Brasil, Carlos Gomes, para ocupar o honroso cargo<br />
em que veio a morrer.<br />
Na cidade de Belém foi recebido carinhosamente e, <strong>com</strong>o outrora dos reis<br />
do Oriente o Rei menino, teve ôle a seus pés, que o bem formado coração paraense<br />
diariamente depunha, o ouro, o incenso, a mirra, em recursos, em agrados,<br />
em demonstrações do mais delicado afeto e elevado apreço <strong>com</strong> que lhe mitigavam<br />
os grandes sofrimentos do corpo e da alma.<br />
Em São Paulo, conseguiram seus amigos, do governo do Estado, uma pensão<br />
mensal elevada e ainda auxilio para os seus dois filhos, na Itália.<br />
Completou-se, num ocaso sombrio, a trajetória luminosíssima do gônio patrício,<br />
pelo firmamento constelado da arte mundial. Poderia ter sido mais rica,<br />
mais preciosa a sua obra, dadas a sua intensa inspiração artística, as suas raras<br />
qualidades de <strong>com</strong>positor, os seus grandes conhecimentos da técnica musical, o<br />
seu harmônico e perfeito equilíbrio orquestral? Quem ousará julgá-lo? Outros<br />
fossem as condições e meio em que viveu e produziu, outro seria, talvez, o opulento<br />
tesouro do seu legado artístico. Êle, porém, era assim, viveu assim. E,<br />
assim, nunca foi entre nós igualado!<br />
Honra, pois, ao seu indiscutido valor. Honra ao mérito!<br />
Ao estinguir-se aquela nobre figura de brasileiro ilustre, todo o Brasil,<br />
depois redimido, pelas significativas homenagens <strong>com</strong>emorativas que lhe ia prestar<br />
a<strong>com</strong>panhou, ansioso, a sua longa e dolorosa agonia. E, a 16 de Setembro de<br />
1896, deixou de existir quem foi, na vida, um " artista máximo um grande<br />
coração, um extremado Brasileiro e Patriota, um verdadeiro paulista um ardoroso<br />
Campineiro, amantíssimo da sua terra natal<br />
Campinas!<br />
Campinas, 7 de Maio de 1936
CARbOS GOMES E 0 VISCONDE DE TAUNAy<br />
Dr. Affonso de L. Taunay<br />
(Da Academia Brasileira de Letras<br />
e director do Museu do Estado)<br />
.^^^^^uito queria meu Pae, o Visconde de Taunay, a Carlos Gomes.<br />
jgfgT&^S&j* Admirava-lhe a potencia do estar e tinha-o á conta de uma<br />
organisação artística absolutamente extraordinaria. E procurou, sempre<br />
que pôde servi-lo e á sua gloria, <strong>com</strong> todas as veras de amizade impaciente<br />
de valer.<br />
Arrolava-se desde os primeiros dias entre os seus mais dedicados<br />
amigos e essa affeição, tão forte quanto constante, durou de 1873 até<br />
os derradeiros momentos do <strong>com</strong>positor, em 1896.<br />
Poderosa affinidade ligava aquelles dous espíritos, sempre voltados<br />
para o Bello. Outra causa, porém, concorria para reforçar essa cohesão<br />
de sentimentos: a grande amizade que ambos votavam a André Rebouças,<br />
cuja admiração pelo <strong>com</strong>positor quasi attingia a intensidade do fanatismo.<br />
Esta liga do artista, do escriptor e do scientista assente em bases<br />
da mais elevada esphera moral e espiritual, afinou-se <strong>com</strong> as attribuições<br />
que a todos os ires trouxeram os últimos annos de existencia: o exilio<br />
voluntário de Rebouças e o retrahimento de Taunay após o 15 de novembro,<br />
o olvido e afinal a atroz e longa moléstia que victimou o autor<br />
do Guarany.<br />
Sabem todos quanto foi penosa a vida do grande musico, sempre<br />
a braços <strong>com</strong> as maiores difficuldades financeiras para se manter e á<br />
família, na Italia, vendo-se forçado a trabalhar <strong>com</strong>o um galé, a <strong>com</strong>por<br />
ás pressas para obter os minguados recursos, graças aos quaes levava<br />
a mais parca das existencias.<br />
O odio implacavel que os nullos e os medíocres votam e sempre<br />
votarão ás manifestações da capacidade creadora, a sórdida paixão dos<br />
impotentes que se sentem amesquinhados pelas manifestações do génio,<br />
perseguiam-no constantemente.<br />
"Porque não <strong>com</strong>põe no Brasil? increpavam-lhe innumeros espíritos<br />
mesquinhos, infelizmente de <strong>com</strong>patriotas''. —- E' boa! explicavam;<br />
é porque explora um pobre diabo de maestro italiano, vencido da vida,<br />
que lhe vende a inspiração mediante algumas miseráveis centenas de<br />
francos. Ahi está porque lhe é impossível <strong>com</strong>por no Brasil<br />
"Quando vem á Patria só tem em vista arranjar dinheiro; nenhuma<br />
melodia, por mais simples que seja, lhe sahe da penna fóra da<br />
Italia"; arguiam-lhe os mais benevolos destes pseudos nativistas.
E tal o volume dos clamores e calumnias que a torpíssima campanha<br />
conseguia impressionar desfavoravelmente, pessoas bem intencionadas<br />
e até esclarecidas.<br />
Havia <strong>com</strong>o que um labéu na carreira do <strong>com</strong>positor: baixo,<br />
inconfessável desprezo pela patria, a ponto de lhe estancar a veia inspiratória<br />
a simples permanencia no territorio brasileiro.<br />
Como resposta a este crime de lesa patriotismo deviam os verdadeiros<br />
patriotas abandonal-o.<br />
Em 1873 conseguiu Taunay, após certa relutancia, que o parlamento<br />
imperial lhe votasse uma pensão, de 500?000 mensaes, mil e poucas<br />
liras, mau grado vehementes protestos de vários collegas seus, entre<br />
outros os de certo deputado que se indignava <strong>com</strong> este presente de<br />
dinheiros da Nação a um rabequista (sic) <strong>com</strong>positor de operetas!<br />
E já nessa época alcançara o Guarany, verdadeira apotheose<br />
tanto no Rio de Janeiro <strong>com</strong>o nas principaes cidades brasileiras, dando<br />
depois o gyro dos grandes theatros italianos, <strong>com</strong> immenso e geral<br />
successo!<br />
De 1873 a 1879 viveu Carlos Gomes um tanto folgado, podendo<br />
trabalhar descansadamente. A este periodo se devem a Fosca, o Salvador<br />
Rosa, a Maria Tudor e os primeiros esboços do Escravo.<br />
Em 1880 cortavam-lhe a pensão justamente quando após alguns<br />
annos de desafogo assumira grandes resposabilidades financeiras, superiores<br />
aos recursos de que podia dispor, <strong>com</strong> a construcção de uma casa<br />
de campo para villegiatura, a Villa Gomes, á margem do lago de Lecco.<br />
Raros, raríssimos têm sido os homens de gênio que souberam<br />
fazer dinheiro <strong>com</strong> as producções de seu engenho. Não faltou Carlos<br />
Gomes á regra quasi geral, desprendido <strong>com</strong>o era em alto gráu. Vendeu<br />
aos editores do Guarany os direitos de propriedade sobre a opera por<br />
dous ou tres mil francos, e no emtanto a elles renderam estes quantia<br />
superior a quinhentos mil! segundo é voz corrente.<br />
A cessação da pensão e os grandes encargos da Villa Gomes<br />
puzeram-no na mais afflictiva das situações que, prolongando-se durante<br />
longa serie de annos, o torturou de modo abominavel.<br />
Viveu dia a dia, auxiliado pelos amigos do Brasil que procuravam<br />
soccorrel-o, mandando-lhe, de vez em quando, alguns recursos e promovendo<br />
concertos e benefícios <strong>com</strong> algumas de suas operas.<br />
Exultavam os gratuitos detractores e inimigos do grande musico<br />
muito embora as enchentes, que apinhavam os theatros sempre que o<br />
Guarany, a Fosca e o Salvador Rosa eram levados á scena lhes causassem<br />
fundas decepções e violentas explosões de cólera e inveja im-
potente "Era o <strong>com</strong>positor um bohemio. um jogador" berravam furibundos,<br />
brasileiro renegado, pois se naturalisara italiano, etc., etc.<br />
Na primeira plana dos grandes e incansaveis defensores do<br />
maestro figuravam André Rebouças, Alfredo d'Escragnolle Taunay e<br />
Francisco da Graça Castellões, o meu Chico <strong>com</strong>o lhe chamava Gomes.<br />
Nessas tres amizades robustas apoiou-se constantemente, nellas<br />
achou poderosos recursos <strong>com</strong> que conseguiu attenuar um pouco os terríveis<br />
golpes de prolongada adversidade.<br />
Viu-se na contingência de hypothecar a Villa Gomes e teve depois<br />
o desgosto de a passar a outras mãos. Pouco a pouco se foram minguando<br />
os parcos recursos de que dispunha, até que chegou a conhecer<br />
as agruras de uma situação que pouco distava da miséria.<br />
Neste Ínterim defendia, <strong>com</strong> todas as forças do desespero, os<br />
originaes do Escravo contra a cubiça dos editores que, vendo-o reduzido<br />
á ultima extremidade, farejavam na exploração da formosa partitura,<br />
<strong>com</strong>prada a troco de barato, novo negocio de ouro <strong>com</strong>o o do Guarany.<br />
Em 1888 era-lhe tão angustioso o estado d alma que, nos arroubos<br />
da prodigiosa imaginação, exacerbada pela crueldade <strong>com</strong> que o perseguia<br />
a sorte, confiava ao amigo que entrevia na morte, o único lenitivo<br />
aos insuportáveis males.<br />
"Vale mais o dinheiro que a gloria, declarava fóra de si, o misero<br />
homem de génio".<br />
A este appello desesperado corresponderam os amigos fieis pondose<br />
a campo <strong>com</strong> tal dedicação que, graças á grande subscripção nacional<br />
por elles lançada e o apoio munificente do Imperador e da Princeza<br />
Imperial, pôde o Escravo subir á scena no Rio de Janeiro em meiados<br />
de 1889.<br />
Nos últimos sete annos que lhe restavam passar na terra, continuou<br />
o iMaestro a soffrer novos e rudes embates.<br />
Deram-lhe o Condor e o Colombo profundas desillusões e desgostos,<br />
o segundo sobretudo, acolhido hostilmente pelas platéas e pela<br />
critica.<br />
A generosidade <strong>com</strong> que o Pará avocou o pagamento de parte<br />
da grande divida nacional para <strong>com</strong> o tão abandonado artista de génio,<br />
suavisou os últimos mezes do autor do Guarany, e morreu, <strong>com</strong>o todos<br />
sabem, cercado das mais respeitosas e <strong>com</strong>pungidas provas de admiração<br />
e affecto.<br />
Estes dias de agonia Rebouças e Taunay os a<strong>com</strong>panharam<br />
cheios de dor.
A 11 de julho de 1896 annotava o segundo em seu Diorio Intimo:<br />
"Aniiivèrsario do malsinado Antonio Carlos Gomes (büj. tsta<br />
a morrer no Pará../'<br />
E <strong>com</strong>o então se discutisse o caso da ephemeride natalícia do<br />
<strong>com</strong>positor, questiuncula irritante e pueril publicou no Commercio de<br />
S. Paulo o artiguete seguinte, sob a epigraphe II de julho.<br />
"Completou hontem 60 annos o nosso glorioso e infeliz <strong>com</strong>patriota,<br />
maestro Antonio Carlos Gomes, nascido <strong>com</strong>o foi ali de julho<br />
de 1836, na cidade de Campinas.<br />
Durante não pouco tempo laborou-se em equivoco, por confusão,<br />
<strong>com</strong> um irmão fallecido creança e que viera á luz a 11 de julho de 1839.<br />
Estando <strong>com</strong> o eminente dr. André Rebouças, o anno passado, no Funchal<br />
(Ilha da Madeira) o proprio Carlos Gomes rectificou aquellas datas.<br />
Tão proximo da morte, <strong>com</strong>o infelizmente está hoje, e já pertencendo<br />
mais á historia do que aos vivos, é de toda a conveniência assentar<br />
o ponto de partida 11 de julho de 1836 — dessa existencia que tanto<br />
honrou o Brasil, <strong>com</strong> effeito, o maior gênio por elle até agora produzido.<br />
E' mais que tempo que uma bella placa <strong>com</strong>memorativa relembre<br />
em Campinas a casa em que nasceu Carlos Gomes.<br />
Com o maior aperto de coração não podemos senão enviar tristíssimas<br />
saudações ao grande brasileiro, cujo nome a gloria, nas suas<br />
irradiações de alegria e de triunipho, levou a todos os pontos do mundo".<br />
A 26 de julho inscrevia no Diário Intimo: " A proposito do pobre<br />
Carlos Gomes um telegramma de hontem (25) o dá melhor.<br />
Bem peior para elle! sustentar-se aquelle pobre organismo minado<br />
pelas consequências de neoplasma maligno".<br />
Algumas paginas adeante lêm-se as seguinte linhas:" (16 de<br />
setembro de 1896).<br />
Falleceu hontem em Belem (Pará) o infeliz e genial Antonio<br />
Carlos Gomes.<br />
Embora esperada ha muito por causa do horrível e impiedoso<br />
cancro da língua causou a todos essa morte grande impressão.<br />
Tinha o pobre sessenta annos, nascido a 11 de julho de 1836.<br />
Não pude deixar de derramar lagrimas".<br />
No momento em que toda a Nação rememora orgulhosa o centenário<br />
natalício de uma das maiores glorias brasileiras e americanas<br />
e-me sobre-modo grato, á piedade filial, recordar quanto Alfredo d'Escragnolle<br />
aunay procurou, sempre, servir a esse amigo a quem tanto queria,<br />
e a quem tanto admirava. E quanto celebrou a sua gloria immarcessivel
jVíanéco jMusico<br />
& &<br />
X<br />
Dr. Odecio de Camargo<br />
(Advogado em Limeira)<br />
^^p||uanto mais o estudioso analysa a figura inconfundível de Carlos<br />
Gomes, tanto mais altas crescem, em seu espirito, estas per-<br />
guntas dominadoras: <strong>com</strong>o se justifica que 110 ambiente tão rudimentar<br />
de uma incipiente província brasileira, houvesse surgido a floração ex-<br />
tranha que foi até hoje o maior gênio musical do Novo Continente?<br />
Porque, milagrosa e generosamente, quiz a Providencia que a humilde<br />
Campinas de 1836 fosse o berço de Carlos Gomes, cujo poder creador<br />
ainda não foi excedido nas Américas?<br />
Que fios vibrateis e divinos urdiram a trama desses nervos ten-<br />
sos, antennas sempre distendidas para sentir as ondas mais profundas<br />
da alma americana: as vozes da selva virginal, dos passaros e das féras,<br />
de toda a nossa terra aspera e moça, na seiva púbere do seu desabrochar?<br />
Que mysteriosas forças astraes ou telluricas concentraram na-<br />
quelle cerebro o thesouro inexhaurivel de sua inspiração nababesca, em<br />
que o ardor tropical dos instinctos atropelados e confusos, harmoniosa-
mente se disciplinam, <strong>com</strong> elegancia inédita, sob a túnica patrícia da<br />
mais pura inspiração latina?<br />
De onde veio, <strong>com</strong>o era constituído, <strong>com</strong>o se formou essa figura<br />
de excepção ? Quaes as raízes, as causas, o determinismo desse phe-<br />
nomeno ?<br />
O que impressiona, não é o Carlos Gomes <strong>com</strong>pleto, artista já<br />
consagrado e universal, arrastando atraz de si o manto de suas glorias<br />
e a fatalidade dolorosa de uma vida de amarguras.<br />
O que tenho buscado ardorosamente, na tradição oral e através<br />
archivos públicos e particulares, civis e ecclesiasticos, é o homem na<br />
sua formação, na sua infancia, no seu ambiente, no seu lar, no des-<br />
pertar dos primeiros anseios, na creação physica, moral e principalmente<br />
artística de sua individualidade.<br />
Vou assim colligindo elementos, que ainda poderão fructificar<br />
um dia, quando estiverem ao serviço de mais synthetico e <strong>com</strong>petente<br />
observador.<br />
Infelizmente, a preoccupação de preconceitos <strong>com</strong>pletamente pue-<br />
ris, tem obscurecido, occultado a verdade sem utilidade alguma, falsiando<br />
muita coisa em que só a futilidade poderá encontrar pasto para male-<br />
dicência e escandalo.<br />
Não cabem taes restricções, quando se trata de avaliar uma<br />
creatura que, pela sua qualidade pessoal, muito superior ao meio e á<br />
raça, sobrepuja todas as convenções, conferindo não só aos de seu<br />
sangue, mas também aos de sua terra, a dignidade da mais alta no-<br />
breza, a única incorruptível e pura, deante a qual todos se curvam,<br />
que é a magestade do gênio.<br />
Excepção feita do estudo que em Dezembro de 1916 o brilhante<br />
Benedicto Octávio publicou nesta revista, e que é até agora o manan-<br />
cial mais preciozo que encontrei para conhecimento da formação psy-<br />
chologica de Carlos Gomes, quazi todas as outras obras, principalmente<br />
em relação aos antecedentes familiares do Maestro, são baseadas em
informações falhas e inveridicas, que se foram reproduzindo em vários<br />
trabalhos aliás de notável valor, os de Pio Vieira e <strong>com</strong> a magnifica<br />
biographia de dona ítala Gomes Vaz de Carvalho, estudo repassado<br />
de <strong>com</strong>movente amor filial.<br />
E' precizo que se renda a Benedicto Octávio a homenagem que<br />
merece <strong>com</strong>o precursor da biographia moderna, viva e palpitante do<br />
maior artista americano. A clarividência do saudoso poeta campineiro<br />
tocou o filão de ouro, o ponto de partida de onde se deve analysar<br />
modernamente um espirito, e principalmente uma alma de artista, fixando,<br />
antes de mais nada, a formação sentimental da personalidade. Dir-se-ia<br />
que em 1916, poucos annos depois que Freud fizera sua primeira ex-<br />
posição systematica em Worcester, na Clark University, já Benedicto<br />
Octávio estava applicando a psychologia de Carlos Gomes, o methodo<br />
da psychanalyse para a investigação dos <strong>com</strong>cexos.<br />
Seguindo modestamente as pégadas do biographo de 1916, outra<br />
coisa não trago aqui senão achegas para rectificação de pontos con-<br />
fusos na biographia de Carlos Gomes, fixando a personalidade de seu<br />
pae e evitando, quanto possível, repetir biographias anteriores.<br />
li<br />
Muito se tem dito de Manuel José Gomes, o velho Manéco<br />
Musico, a quem coube a gloria de ser pae de Carlos Gomes, pouco<br />
porem se disse <strong>com</strong> exactidão e segurança.<br />
Nasceu em Parnahyba, em setembro de 1792, sendo baptisado<br />
na Igreja Parochial daquella Villa do dia 29 do mesmo mez.<br />
O livro de baptisados, onde deveria estar registrado, está <strong>com</strong> a<br />
falta de varias paginas, entre as quaes a folha 129, de onde foi extra-<br />
hida a certidão <strong>com</strong> que se habilitou no processo de seu primeiro casa-<br />
mento (estante 8-gav. 28 l.°-3794 do magnifico Archivo da Curia Me-<br />
tropolitana). Ha porem uma nota relativa a seu baptismo, entre os<br />
assentamentos números 37 e 38 do livro <strong>com</strong>petente.
I T I<br />
2f> CENTRO DE SCIENCIAS, LETRAS B ARTES<br />
O que se pode affirmar <strong>com</strong> segurança, é que o pequeno Manuel<br />
residiu em Parnahyba <strong>com</strong> sua mãe, Antónia Maria de Jesus, desde<br />
que nasceu, até 1800, e sempre na casa do Ajudante Antonio José de<br />
Miranda, senhor de engenho, natural de Vianna, casado <strong>com</strong> D. Ger-<br />
trudes Maria de Mello. D. Antónia, avó de Carlos Gomes, foi também<br />
baptisada naquella villa, onde nasceu, em 20 de junho de 1768 e em<br />
11 de dezembro de 1798 casou-se <strong>com</strong> Antonio Ribeiro, também parna-<br />
hybano, nascido em 1773, militar do Batalhão dos Úteis. Em 1801,<br />
quando Manuel José Gomes não se achava mais em Parnahyba, tinha<br />
D. Antónia, mais dois filhos: Maria e Ignacio, únicos tios paternos de<br />
Carlos Gomes, de que tenho noticia.<br />
Na falta de mais <strong>com</strong>pletos elementos, tenho porem por assentado<br />
que era pae do menor Manuel o Tenente Coronel Manuel José Gomes.<br />
Esse militar era natural de S. Paulo, em cuja Sé foi baptisado<br />
em 10 de setembro de 1773, sendo filho primogênito do Sargento Mór<br />
do mesmo nome e de sua mulher D. Josepha Maria do Espirito Santo,<br />
natural do Rio de Janeiro.<br />
O Sargento Mór Manuel José Gomes, que tudo leva a crer seja<br />
o avô de Manéco Musico, era português, do Arcebispado de Bragança,<br />
desfazendo-se assim a lenda de ter Carlos Gomes uma origem espanhola.<br />
Esse sargento mór das ordenanças da Villa de Mogy, era homem de<br />
pról em S. Paulo, onde foi em 1770 Thezoureiro da Casa de Fundição<br />
e exerceu na Camara postos de relevante importancia, sendo almotacé<br />
e fiscal, e por tres vezes vereador de barrete: em 1773 (quando nasceu<br />
o filho) em 1780 e em 1797, <strong>com</strong>parecendo assiduamente ás sessões.<br />
Em 1792 é convocado, <strong>com</strong>o um dos homens bons da republica, para<br />
dar seu voto em questões de relevante interesse publico. Delle se en-<br />
contra a assignatura em fac-simile á pag. 195 do volume XVI das Actas<br />
publicadas pela Camara Municipal de S. Paulo.<br />
Residiu por muitos annos á rua da Quitanda, em S. Paulo, vi-<br />
vendo de cobranças e tinha chacara nos arrabaldes da capital. Já' em<br />
1769 era homem de algumas posses, tanto que assistiu financeiramente<br />
ao povoador de Piracicaba, <strong>com</strong>o se vê nos Documentos Interessantes<br />
vol. V pgs. 101 e 102.
O segundo Manuel José Gomes, ajudante de Ordenanças desde<br />
6-10-1788, foi depois capitão do primeiro Regimento de Cavallaria Miliciana,<br />
em 1798; exerceu o cargo de Escrivão da Junta da Real Fazenda<br />
e morou <strong>com</strong> sua familia na rua "que da bica vae a Sta. Ephygenia",<br />
hoje ladeira de Sta. Ephygenia.<br />
Pelo cargo que exerceu, bem se vê que era homem de discernimento<br />
gozando bom conceito junto a seus superiores, tanto que em 2 de setembro<br />
de 1802 o Capitão General Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça<br />
propunha ao Visconde de Anadia a promoção de Manuel para Tenente<br />
Coronel effectivo, na vaga por fallecimento de Francisco Pereira de Araujo,<br />
"por ser um dos mais antigos e ter as mais dispozições necessarias para<br />
o exacto desempenho das obrigações do mesmo posto". Recebeu patente<br />
desse cargo <strong>com</strong>o se vê no volume 38 pg. 701 da Rev. do Instituto Historico<br />
de S. Paulo.<br />
Manéco Musico, desapparecendo do recenseamento de Parnahyba<br />
em 1801, não é encontrado em S. Paulo nem na casa de nenhum dos<br />
outros Manueis José Gomes, nem na casa do Mestre André da Silva Gomes,<br />
<strong>com</strong> quem (affirma Benedicto Octávio e é muito provável) aprende a arte<br />
da musica.<br />
Aos nove annos de idade, portanto, já não estava mais o futuro<br />
pae de Carlos Gomes, na sua terra natal.<br />
Só em 1809 vamos encontrá-lo de novo, já agora na villa de S.<br />
Carlos, a bella Campinas de hoje, requerendo habilitação para o seu primeiro<br />
casamento.<br />
Entre os nove e os 17 annos ha um grande espaço no qual perdemos<br />
de vista Manéco Musico.<br />
Foi nesse intervallo que lhe ensinaram a arte musical a que se dedicou<br />
e é possível (dado o seu temperamento) que nessa occasião um<br />
incidente o houvesse obrigado a sahir de Parnahyba, corno relata Cerqueira<br />
Cezar. Sabendo que ia ser recrutado, por instigação de um intrigante,<br />
Manuel José Gomes dá uma sova no delator, e foge de Parnahyba. Não<br />
creio porem que tal incidente se desse <strong>com</strong> " um seu tio, homem de certa<br />
influencia em Parnahyba<br />
D. Antónia Maria de Jesus não tinha irmãos ; a familia de Manuel<br />
José Gomes residia em S. Paulo. O padrasto de Manéco Musico era um<br />
modesto soldado dos Úteis. Influente, e <strong>com</strong> certa importancia militar, só<br />
mesmo o Ajudante Antonio José de Miranda, em cuja casa residia o casal<br />
de Antonio Ribeiro e seus filhos.<br />
A verosimilhança do facto e a probabilidade da hypothese se tornam<br />
mais evidentes, quando se sabe que governava S. Paulo áquelle tempo
(1802 a 1811) o "espirito mesquinho, friamente perverso e intrigante<br />
de Antonio José da Franca e Horta, que ao "enredo e çalumnia que introduziu<br />
nas casas de família e nos quartéis, juntou a violência dos recrutamentos<br />
em massa, nos dias de festas publicas, dentro das egrejas, em<br />
toda parte, para a organisação de novos corpos militares que se faziam<br />
necessários para a realisação da politica interventora de D. João VI no Kio<br />
da Prata", <strong>com</strong>o diz Toledo Piza.<br />
E é sabido que os officiaes de milícia, mormente os capitães-móres,<br />
exerciam discricionariamente seu poder nas villas, "sem outras restricções<br />
que não fosse o seu capricho"- (Idem)<br />
Não ha duvida também que Antonio José de Miranda era homem<br />
de consideração social e de bôa estirpe, sendo sobrinho neto do Capitão<br />
Mor Antonio Corrêa Pinto, Regente das Lages, de cuja irmã, D. Ignez<br />
Maria de Souza era filho, <strong>com</strong>o consta de sua petição publicada pelo Archivo<br />
do Estado nos Documentos Interessantes (III 63).<br />
A esse tempo o Ajudante Miranda já era homem maduro, pois em<br />
1792, quando nasceu Manuel José Gomes estava <strong>com</strong> 40 annos. Em todo<br />
o caso, si a causa de sahida de Manéco Musico de Parnahyba foi realmente<br />
uma tunda que deu, na ponte sobre o Tietê em pessoa influente<br />
que o mandara recrutar, não é impossível que o figurão fosse o proprio<br />
Miranda, então quinquagenario.<br />
Rendamos graças a Deus por essa sova que fez o filho de Antónia<br />
Maria de Jesus fugir de canoa para S. Paulo, e dahi dirigir-se a Campinas,<br />
onde se estabeleceu definitivamente : foi talvez por causa desse incidente<br />
que a villa de S. Carlos veio a ter a gloria de ser a terra do autor da Fosca.<br />
I l l<br />
Bem salienta Benedicto Octávio que só de tres casamentos de Manéco<br />
Musico se tem noticia, apesar dos biographos quasi todos insistirem<br />
na existencia de quatro matrimonios.<br />
Agora, <strong>com</strong> absoluta segurança e sem medo de contestação, podemos<br />
affirmar que o velho parnahybano casou-se apenas tres vezes- em 1809<br />
em 1840 e em 1849.<br />
Da primeira, em 1809, ás 8 horas da manhã de 11 de novembro<br />
na então villa de S. Carlos, <strong>com</strong> Maria Innocencia do Céu natural de s'<br />
João D EI Rey. Tinha o noivo 17 annos e a noiva 15! Esse casamento<br />
de creanças não deu resultado.<br />
"Logo no fim de dois mezes, por seus desencontrados gênios se<br />
separarão , explica Maneco Musico ao requerer em 26 de fevereiro de
1823 seu divorcio, que foi concedido. (Processo archivado na Curia Metropolitana<br />
de S. Paulo).<br />
Ficou Manéco Musico só em Campinas, residindo <strong>com</strong> um escravo<br />
gentio de nome José e tendo em sua <strong>com</strong>panhia dois meninotes, Antonio<br />
e Joaquim, sendo este de Parnahyba. A mulher estava ausente e seu<br />
meio de vida era até certo tempo exclusivamente o serviço de mestre de<br />
musica, dedicado e <strong>com</strong>petente. Rendia-lhe esse serviço mais ou menos<br />
cem mil reis annuaes, é o que reza o recenseamento de 1826. Nessa<br />
época, perto de sua casa residia o alfaiate Manuel Cardoso, cuja renda não<br />
era muito avultada (43$000 por anno, aproximadamente) e em sua <strong>com</strong>panhia<br />
tinha os filhos, Joaquim, Francisco, Justina e Fabiana.<br />
Afastado da esposa, ligara-se Manéco Musico <strong>com</strong> uma senhora de<br />
Porto Feliz, Anna Thereza de Jesus Garcia, filha de Salvador Garcia, que<br />
era jundiahyense. Essa ligação foi anterior a 1820, pois em primeiro de<br />
junho daquelle anno teve Anna Thereza uma filha de nome Marciana Maria,<br />
posteriormente reconhecida por Manuel José Gomes.<br />
Tal situação, tão justificável e humana, era conhecida de todos, pois<br />
os filhos que dahi surgiram, posteriormente reconhecidos pelo pae, foram<br />
pessoas distinctas e estimadas, — dahi o equivoco de todos os biographos,<br />
que suppõem ter sido esse o segundo casamento de Manuel José Gomes.<br />
A verdade é que Maria Innocencia do Céu, sua mulher legitima, o<br />
abandonou, e em 1823 o casal pediu divorcio, sem entrar em explicações<br />
detalhadas. Colhi da tradição oral o informe de que D. Maria Innocencia<br />
do Céu, de tão seraphico nome, tinha preferido seguir a familia, em Minas,<br />
abandonando o marido.<br />
Vão decorrendo os annos. Manéco Musico melhora de situação financeira.<br />
Em 1835 tem loja na cidade; em 1853, ao se justificar a sua<br />
idoneidade <strong>com</strong>o fiador de 1:0008000 annuaes, durante dez annos, a favor<br />
de seu filho Joaquim José Gomes de SanfAnna, que nesse anno se ordenou<br />
<strong>com</strong>o sacerdote, em S. Paulo, é elle visto <strong>com</strong>o homem abonado pelas<br />
testemunhas Francisco de Abreu Sampaio, Januario Máximo de Castro Camargo<br />
e Prado e Luciano Xavier de Oliveira, todos seminaristas Campineiros,<br />
que declaram ser o fiador possuidor de oito ou dez moradas de casa,<br />
alem de escravos.<br />
Mas, inquieto, viril, dotado de uma indómita energia e impulsividade,<br />
o coração de Manéco Musico — coração de artista — não descançou. Via<br />
crescer na mesma rua, junto quasi á sua casa, a bella Fabiana, filha do<br />
alfaiate Cardoso. Era, ao que se affirma, uma esplendida creatura : bella,<br />
alta, robusta, morena clara, dotada de temperamento vivo e ardente. Apesar<br />
de quasi um quarto de século mais moça que Manuel José Gomes, a elle<br />
se entregou, sem restricções. Essa ligação, levada ao gráu extremo, leva-me
a crer que Manéco Musico fosse possuidor de personahdade exœpa<br />
de uma jovialidade encantadora, <strong>com</strong>o attesta o b ' 0 g ra P ho HSn Ue yn a nn7 S " r n<br />
Nem se pode <strong>com</strong>prehender que uma linda créatura<br />
esplendor de suas illusões, houvesse assim dedicado, tão ardoro mente<br />
todo seu affecto a um homem de quarenta e quatro annos, que ja tiniia<br />
então filhas mais velhas que a propria Fabiana.<br />
Em 1.° de junho de 1840, na casa do reverendo Amaro Antunes<br />
da Conceição, em Campinas, tendo <strong>com</strong>o padrinhos seu propno genro<br />
Francisco Borges da Cunha e aquelle sacerdote, casou-se pela segunda vez<br />
Manuel José Gomes, <strong>com</strong> Fabiana Maria Cardoso, filha de Manuel Jose<br />
Cardoso e Francisca Maria de Jesus.<br />
Parece que não viveu bem Manuel José Gomes <strong>com</strong> a segunda<br />
mulher. Si no primeiro matrimonio era muito creança, neste — ao que se<br />
diz era muito velho.<br />
Nha Biana — affirmou-me pessoa da família — gostava de passear,<br />
de apparecer, o que não estava muito de accordo <strong>com</strong> o génio energico<br />
do marido. Bella e moça, parece que refreava pouco as expansões de sua<br />
natureza vivaz. Não é de estranhar que isso despertasse aos cincoenta<br />
annos de Maneco Musico um justificado ciúme.<br />
Na madrugada de 25 de julho de 1844, "no trilho de um brejal,<br />
entre festões de rosas brancas, de rosas sylvestres", appareceu o corpo<br />
da formosa Fabiana, ferido a tiros e punhalada.<br />
Morrera assassinada a mãe de Carlos Gomes, o qual tinha então<br />
apenas oito annos de idade. Levaram-na no dia seguinte, solennemente,<br />
para a Matriz, onde foi sepultada, e não no cemiterio <strong>com</strong>o affirma Benedicto<br />
Octávio.<br />
E a duvida ficou pairando no ar, sobre quem fôra o matador da<br />
desventurada Fabiana. Benedicto Octávio allega a existencia de um alibi<br />
que Manuel José Gomes havia provado. Pessoa conceituadíssima em Campinas<br />
affirmava aos descendentes de Manéco Musico que poderiam ter certeza<br />
absoluta de sua innocencia, pois naquella madrugada sangrenta o velho<br />
musico estava jogando em casa conhecida na rua de Cima, hoje Barão de<br />
Jaguara. E tudo leva também a crer que Manéco Musico não fosse culpado.<br />
Socialmente, sua consideração não diminuiu, pois pouco tempo após<br />
o crime estava dirigindo a banda que tomava parte na recepção em Campinas<br />
ao Imperador D. Pedro II, e (o que me parece mais importante)<br />
veio a se casar após cinco annos de viuvez <strong>com</strong> uma visinha da casa em<br />
que residia <strong>com</strong> Fabiana, conhecedora portanto de suas qualidades e certamente<br />
de seu infortúnio. Fosse legitima a accusação contra Manéco Musico,<br />
houvesse qualquer base positiva para se desconfiar de uma violência e<br />
certamente essa visinha, testemunha de sua vida conjugal, conhecedora intima<br />
de suas attitudes, não quereria casar <strong>com</strong> quem tanta crueldade demonstrára
Parece bem certo que Fabiana foi assassinada por ciúmes, não pelo<br />
marido, mas por um seductor a quem fôra encontrar na cerca dos fundos<br />
da própria casa. Esse moço, de familia notável de Campinas, desappareceu<br />
para sempre da cidade, depois do crime.<br />
Não se sabe bem de onde nasceu a accusação contra Manéco Musico.<br />
De alguém ouvi que a própria mãe de Fabiana andara alarmando a<br />
visinhança, <strong>com</strong> essa calumnia. Ao que se deprehende da certidão de casamento<br />
dos paes de Carlos Gomes, não é impossível que a mulher de Manuel<br />
Cardoso tivesse alguma animosidade contra o genro, para desabafar<br />
nessa opportunidade.<br />
Um ponto porem urge retificar em Benedicto Octávio e em Pio<br />
Vieira, que o repetiu no "Romance de Carlos Gomes".<br />
Explica claramente Benedicto Octávio que o crime foi praticado<br />
onde se abriu mais tarde a rua das flores (hoje José Paulino).<br />
Repitamos <strong>com</strong> o saudoso poeta: "No anno de 1844 a Campinas<br />
do tempo, reduzida <strong>com</strong>o era natural, contava em meio das ruas, hoje Regente<br />
Feijó (onde morava Manéco Musico), e Marechal Deodoro, um brejo<br />
povoado de jurumbevas, o que deu ao actual largo Correia de Mello, o<br />
nome de Jurumbeval. Ora, no logar onde fica a Rua José Paulino (antiga<br />
das Flores) entre as vias publicas nomeadas, havia enorme quantidade de<br />
rosas brancas, rosas sylvestres, o que justificou a denominação dada a essa<br />
rua aberta ao transito publico, nesse ponto, de 1854 a 1855". Foi num<br />
dos trilhos, entre esses rosaes que foi encontrado o cadaver de Fabiana.<br />
Fica assim bem certo que o crime se deu aos fundos da Rua Regente<br />
Feijó, onde nasceu Carlos Gomes.<br />
Como pois se explica que Benedicto Octávio, mais adeante escreva<br />
que a " piedade popular ergueu uma cruz no lugar do assassinato, mais ou<br />
menos, dizem-nos, á esquina da Rua General Osorio, á entrada do Largo<br />
Carlos Gomes"? Como se justificar essa enorme distracção? Si Fabiana<br />
apparece morta na Rua das Flores, proximo ao jurumbeval, <strong>com</strong>o a cruz<br />
<strong>com</strong>memorativa foi plantada no largo Carlos Gomes, esquina da General<br />
Osorio, quando entre os dois pontos ha uma distancia de seis ou sete<br />
quarteirões centraes da cidade?<br />
O distincto campineiro Dr. Enéas Cezar Ferreira affirmou-me que<br />
varias vezes seu venerando Pae lhe mostrou o logar onde se erguia a cruz<br />
que lembrava a morte de Fabiana. Era onde hoje se encontra o portão de<br />
ferro do prédio 1246 da Rua José Paulino, um pouco adeante da esquina<br />
da Rua Bernardino de Campos e aos fundos do quintal da casa hoje 1251<br />
da Rua Regente Feijó, onde em 11 de julho de 1836 nasceu o grande<br />
Tonico de Campinas.<br />
Manuel José Gomes, em 2 de agosto de 1849 casou-se pela terceira<br />
vez, sendo afinal feliz, pois escolheu para esposa a virtuosa e distinctissima<br />
senhora D. Francisca Leite Moraes.
Era viuva, essa senhora, de Laudelino Ferreira da Silva Caldas, e<br />
morava, ao tempo de casada <strong>com</strong> o primeiro marido, na casa vis.nna a de<br />
Manuel e Fabiana. Eram duas casas gemeas, ambas de porta e janeiia,<br />
<strong>com</strong> beiral muito baixo, sendo que a de cima, (mais próxima cia Kua bernardino<br />
de Campos) era a residencia de Manéco Musico, que pagava o<br />
aluguel de 1S600 mensaes.<br />
É conhecido o gênio energico, vivo e trabalhador de Manéco Musico<br />
e delle se narram/no estudo de Cerqueira Cezar e nos livros de Fio<br />
Vieira, factos que lhe pintam o caracter impulsivo. Talvez, por esse feitio,<br />
os menos Íntimos tenham acreditado na possibilidade de um desvario, agredindo<br />
Fabiana.<br />
X-V<br />
Também o interessante episodio narrado por Pio Vieira, dando a razão<br />
da sahida de Carlos Gomes da casa paterna, não me parece convincente.<br />
Diz aquelle autor em seu primeiro livro pg. 70 e no ultimo romance<br />
capitulo III que Manuel José Gomes havia amarrado um filho a uma arvore,<br />
para discipliná-lo energicamente <strong>com</strong> um cipó, quando Carlos Gomes interveio<br />
desarmando o pae e incidindo portanto na sua ira. Isso forçou-o<br />
a sahir de Campinas no dia seguinte, em <strong>com</strong>panhia de Henrique Luiz<br />
Levy e auxiliado pelo Dr. Langaard, indo para o Rio.<br />
Ora, o que me põe em duvida é o seguinte: Carlos Gomes foi<br />
para o Rio em 1859 e a esse tempo Manéco Musico ao que se saiba, não<br />
tinha nenhum filho menino. Dos anteriores ao segundo casamento, o mais<br />
novo já era sacerdote desde 1853; de Fabiana, o único filho alem de Carlos<br />
Gomes era Sant'Anna Gomes, a esse tempo <strong>com</strong> 25 annos, idade pouco<br />
propicia para ser amarrado a uma arvore e espancado. E do terceiro casamento<br />
a primeira creança era a hoje octogenaria D. Joaquina, que apenas<br />
tinha seis annos, idade em que as palmadas são geralmente distribuídas, segurando<br />
simplesmente o pirralho debaixo do braço.<br />
Thomaz, um dos meninos do terceiro casamento, tinha então dois<br />
annos apenas.<br />
Continuo a crer, em falta de outras provas, <strong>com</strong>o sempre, que Carlos<br />
Gomes, não tenha tido outro motivo para precipitar a sua sahida de Campinas<br />
senão a ambição abrasadora, que o fez vencer o respeito á intransigência<br />
paterna, e que o levou ás culminancias da gloria, achando o proprio Rio<br />
de Janeiro pequeno demais para conter a expansão luminosa do seu gênio.<br />
f „ D ã Um i i : esiste " cia P h y sica invejável, de uma vitalidade anormal<br />
falleceu Manuel Jose Gomes aos onze de fevereiro de 1868, <strong>com</strong> 76 annos,
deixando ainda uma filha de tres anno de idade, a bondosa D. Anna Gomes,<br />
a cuja gentileza devo muitos esclarecimentos, e de cuja amizade me<br />
orgulho.<br />
E falleceu, é de se notar, por haver soffrido um accidente. Estava<br />
elle construindo sua casa, numa esquina da praça que hoje tem o nome<br />
de Carlos Gomes (Rua Irmã Seraphina n.° ) quando lhe cahiu ao pescoço<br />
uma trave, que o feriu, occasionando depois a morte. Não fôra isso, e<br />
talvez o velho Manéco Musico tivesse assistido, para sua <strong>com</strong>pleta felicidade,<br />
os dias de maior gloria de seu filho.<br />
"V<br />
Ponto também que tem dado causa a desnecessária celeuma, é o<br />
caso da legitimidade da filiação de Carlos Gomes, a qual tem sido posta<br />
em duvida..<br />
Realmente, relendo os documentos trazidos á luz por Benedicto<br />
Octávio verifica-se que o TONICO DE CAMPINAS nasceu a 11 de julho<br />
e foi baptizado <strong>com</strong>o filho de pae incognito e de Fabiana Maria, estando<br />
aquelle registro mal coberto <strong>com</strong> tinta roxa, da mesma forma que o de<br />
seu irmão SanfAnna Gomes. O cancellamento feito pelo vigário de então,<br />
<strong>com</strong> licença do Ordinário, não foi, <strong>com</strong>o se suppoz, para encobrir a filiação<br />
natural. Ficou o registro intacto no indice, e existe a seu lado a nota de<br />
ter sido renovado no livro 11. A verdade é que em 1840 Manuel José<br />
Gomes casou-se <strong>com</strong> Fabiana Maria, legitimando assim da forma mais solenne,<br />
moral e jurídica, os filhos anteriormente nascidos. Não pode haver<br />
preconceito social, nem falsa pudicícia, em caso que a propia Igreja, rigorosíssima<br />
e intransigente nesse particular, considera <strong>com</strong>pletamente legitima<br />
a prole, <strong>com</strong>o se fosse anterior o casamento.<br />
A legitimação "per subsequens matrimonium" opéra ainda quando<br />
houvesse impedimento deriinente entre os paes. Era assim no Direito<br />
da época:<br />
"Porem se tal filho fosse legitimado per matrimonio seguinte, celebrado<br />
entre seu pae e sua mãe depois de seu nascimento, per que esse<br />
legitimado hé em todo perfeitamente legitimo, haveria logar a dita lei, assi<br />
<strong>com</strong>o se ao tempo de seu nascimento já o matrimonio fosse celebrado".<br />
Ord- L.° 11-35 § 12.<br />
E, em relação ao escrupulo religioso e moral, a Igreja dá ao sacramento<br />
do matrimonio a virtude de purificar toda a macula antecedente:<br />
"Matrimonium omnia praecedentia purgat, et sic próxima,<br />
sive etiam precedens causa turpitudinis sublata est...omnem<br />
maculam purgat... si desponsatur, prinde est quasi nunquam<br />
macula contracta fuisset".
E' pois necessário, de uma vez por todas, que fique claramente consignado<br />
que é certa e jurídica, religiosa e moralmente, a afíirmaçao que<br />
Carlos Gomes era filho legitimo, affirmação que não deve de forma alguma<br />
ser contestada, apenas pela frágil preoccupação de preconceitos hypocritas,<br />
que não podem pretender foros de maior importancia e rigidez, do que<br />
os princípios legaes e principalmente os dictames inflexíveis da lei canónica.<br />
Assim surgiu Carlos Gomes, da indomável sentelha de amor que<br />
fulgurou entre o áspero e agitado coração do musico parnahybano, em<br />
pleno "demon du midi" de seus quarenta e quatro annos, e a alma ardente<br />
de vibração, exhuberante de seiva moça, da Fabiana formosa.<br />
E' <strong>com</strong> ternura profunda, <strong>com</strong>movida e respeitosa, que se percebe<br />
surgir, do fundo obscuro de seu passado, esses vultos cuja carne, cujos<br />
nervos, cujo sangue transmittiram á individualidade inconfundível de Carlos<br />
Gomes, o choque das raças no seio da terra adolescente, a angustia, o<br />
esplendor, o orgulho e a grandeza da alma brasileira.<br />
Immortalizados, na eternidade de seu filho, cabe-lhes a invejável, a<br />
immensa gloria de terem creado, num instante supremo, uma dessas personalidades<br />
de eleição, oásis no deserto da mediocridade humana, que surgem,<br />
de longe em longe, em logares eleitos por Deus, <strong>com</strong>o caem ás vezes do<br />
céu, quentes ainda da gloria sideral, os bólides incandescentes.<br />
Limeira, abril de 1936.
Uma photographia inédita de Carlos Gomes,<br />
de um quadro pertencente ao Automovel Club de Campinas
1<br />
rv
RETRATO DE CARLOS GOMES<br />
iiniiii<br />
por Nelson Omegna<br />
(do Centro de Sciencias, Letras<br />
e Artes de Campinas).<br />
usta-rae tirar da penna a phrase inicial deste estudo. A primeira ideia<br />
que me occorre vem fascinada pelo nome do grande gênio, e electrizada<br />
pelo fervor patriotico de todos os que querem, 110 Brasil, glorificar a memoria<br />
do grande maestro campineiro. Vestiu se, por isto, de rithmo, luxou adjectivos,<br />
pontilhou-se de admiração, e, ao fim, pareceu-me pobre, fraca e pretenciosa...<br />
Elimino-a, porque tenho medo de parecer profano e emphatico nesta hora, em<br />
que se convocam os sentimentos generosos da sinceridade para exaltar o nome,<br />
a vida e a obra de Carlos Gomes.<br />
O refugio na vulgaridade parece-me remedio re<strong>com</strong>mendavel a quem se<br />
propõe a estudar a vida de quem quer que seja. Porque a vida, para se differençar<br />
do romance que se conta, é sempre vulgar. E se para consagrar a<br />
memoria de nosso illustre patrício nos fosse necessário fugir para a Phantasia e<br />
para o Sonho, teríamos renegado o homem para criar um idolo.<br />
Estamos plenamente <strong>com</strong> Chesterton, o glorificador das modestas coisas<br />
que parecem banaes, que só <strong>com</strong>prehende o artista dentro dos quadros das emoções<br />
<strong>com</strong>muns aos homens, porque, de caso contrario, se se deixasse empolgar<br />
por sentimentos <strong>com</strong>pletamente originaes, ou a vida não lhe bastaria para <strong>com</strong>municar<br />
aos homens as suas próprias paixões, ou a poesia deixaria de fallar<br />
atravez de sua arte.<br />
* *<br />
Em Carlos Gomes o homem não é menos interessante que o gênio.<br />
O seu retrato ahi está avultado á nossa retina, nos justos monumentos<br />
que o culto publico da nossa admiração lhe tem levantado nas praças publicas<br />
e nas casas de arte.<br />
De semblante quasi selvagem, de aspecto quasi leonino, a sua cabeça<br />
impressiona pelo traçado forte das linhas, offerecendo-se <strong>com</strong>o encarnação de<br />
um dos retratos impressionistas de Zweig. O forte gripho de seu olhar rasgado<br />
realça o massiço saliente do masseter mongoloide que sustenta o relevo desgracioso<br />
do nariz, suspenso sobre a curva alongada dos bigodes. Sob o difarce<br />
destes, rasga-se a bocca dura, de lábios contrahidos, que guardam harmonia dos<br />
traços fortes e ásperos do queixo largo. Todo o fascínio do retrato, porem, deriva<br />
do alto: a sua fronte larga e magestosa parece que cresce á medida que o<br />
rosto se esconde nos sulcos talhados a fundo pelo soffrimento. Presente-se que<br />
urna aureola espiritual puríssima illumina e transfigura em bellezas as linhas rústicas<br />
do perfil, talhado em metal que o mesticismo, a dôr e a idade oxidaram<br />
em sombra.
Um corpo athletico, musculoso, alonga-se <strong>com</strong>o pedestal para enaltar o<br />
contorno da fronte e o desalinho da cabelleira ondeaute.<br />
O enthusiasmo dos milanezes que o aplaudiram, ^Urífaoào<br />
Fosca, pagou foros de admiração ao seu porte impressionante, nesta exclamação<br />
expressiva : — " Che bello indiano ! "<br />
No envolucro vistoso do corpo floresce o espirito trabalhado pelo dualismo<br />
mais divergente, patenteando a caprichosa amphimixia que o tece" <strong>com</strong><br />
medida igual, de sangue paterno e fibras maternas. As qualidades mentaes do<br />
progenitor, o velho e sisudo Maneco Musico, e o seu temperamento artístico e ao<br />
mesmo tempo ríspido, casaram-se, na alma de Carlos Gomes, <strong>com</strong> a sensibilidade<br />
mórbida de n- a Fabiana, a sua desventurada màe, cuja vida e morte ofierecem<br />
indícios do seu temperamento talhado ao molde dos romances e das aventuras.<br />
E se ao pai deveu a herança de seu talento musical, ficou-lhe da mãe a hypersensibilidade<br />
quasi feminil de sua alma.<br />
Entre esses dois poios, hesita e agita-se toda sua vida intima e artística.<br />
Ora é timido e terno, ora arrojado e decisivo. A fuga para a Côrte sem<br />
licença paterna, e a ansia e <strong>com</strong>oção <strong>com</strong> que, no Rio, aguarda o perdão do<br />
velho Maneco, são quadros que parecem vividos por dois homens distinctos. Ora<br />
é suggestionavel, ora impulsivo. E' romântico e sonhador, mas é também alegre<br />
e brincalhão <strong>com</strong>o attestam as suas cartas cheias de chiste e de humour. Nunca<br />
nos parece uma só coisa. Os adjectivos precisam casar-se pela medida dos contrastes,<br />
pela tonalidade dos claros-escuros, para definir os aspectos mais variados,<br />
que fazem sua alma fascinante e encantadora.<br />
A oscillação é constante. E' que o nivel de seu <strong>com</strong>portamento apoia-se<br />
sobre um milhão de nervos a vibrar e cuja sensibilidade é quasi mórbida. Um<br />
gallo que canta nas vizinhanças deixa-o irritadiço, insomne; os applausos prolongados<br />
amedrontain-no a ponto de fugir do palco, quando da glorificação do<br />
Guarani/; mas tem o arrojo e a coragem das attitudes definidas, por isso que,<br />
na lua de mel da Republica, quando monarchistas de até 14 de Novembro, cantam<br />
loas ao novo regimem, por amor de interesses pingues, elle não trepida em<br />
se confessar fiel ao Imperador, naquella hora em que o apoio do Governo significava<br />
grandes facilidades para sua vida de Artista.<br />
As suas mãos finas, delicadas, nobres, penduradas de espaduas largas,<br />
offerecem á chiromancia banal de qualquer observador, elementos para adivinhar<br />
a mistura do masculino e do feminino que existia nelle, do passo vigoroso e do<br />
andar sinuoso, das arremettidas e das paradas, da perseverança e do abatimento<br />
brusco.<br />
A sua própria arte não poude escapar a esse dualismo. O Guarany tem<br />
tonalidades sentimentaes que evocam a Norma de Bellini e suaves delicadezas<br />
de Verdi, mas tem brados de selvagem, tem rumor de inubias, tem balouço cantante<br />
de florestas, clangor de borés, torrenciar de largas aguas, traduzidos para<br />
o concerto das mais bellas melodias, num processo onomatopaico, imitativo em<br />
que se derramou o selvagismo e a rudeza do filho de Maneco Musico. '<br />
No processo de seu trabalho novamente se faz presente essa dualidade<br />
que lhe engendrou o Destino. Se ama o trabalho e nelle se atufa <strong>com</strong> afinco e<br />
gosto, o que <strong>com</strong>prova o acervo volumoso e caro de suas <strong>com</strong>posições, o esforço<br />
creador parece que nem sempre corresponde a uma elaboração calma e lenta.<br />
Muita vez vai o genial artista estratificando, em largos e pacientes períodos
toda cry8tallizaçào dos seus sonhos e da sua musicalidade, e do demorado trabalho<br />
surde o Guarany. Outra vez, num único relampago, em instantes fugazes,<br />
a inspiração jorra-lhe d'alma <strong>com</strong>o em borbotões, e é a Se sa minga que em<br />
sete breves dias se <strong>com</strong>põe.<br />
Para essa alma feita de duas metades que não se confundem nunca,<br />
porque distinetas surgiram do berço, produzir é enthusiasmo e aniquilamento,<br />
extase e espasmo, volúpia e tormenta; por isso que ao mesmo tempo que tem<br />
gozo em narrar aos amigos as novas realizações e novos planos, deixa transparecer<br />
o queixume e a amargura pelo excesso de trabalho em que lhe vai a vida.<br />
Mas esse dualismo se torna patente ainda em mil e um episodios e lances<br />
de sua vida, que trazia nas próprias cellulas inconscientes, e nas torrentes<br />
do proprio sangue, o <strong>com</strong>bate, o antagonismo de dois temperamentos, que, no<br />
nascedouro, desaguaram na sua alma formosa e atribulada, para tecer a gloria<br />
do seu gênio, e a tortura de sua tragedia.<br />
Mascula é a sua intelligencia e a sua vocação. Feminil é aquella sua<br />
desconfiança, aquella susceptibilidade, que o faz soffrer exageradamente quando,<br />
apenas, vê protelada a sua chimerica proposta de fundar na Campinas de 1880<br />
um theatro Lyrico ou um Conservatorio Musical.<br />
Másculo é o seu porte, o seu physico, que vai despertando pela Italia<br />
interjeições: — " Clie simpático! Che bello giovanotto!" Mas feminil é a sua<br />
attitude de indifferença para <strong>com</strong> as mulheres, o que não escapou á observação<br />
de seu dilecto amigo André Rebouças, que registou esse aspecto de sua vida intima:"<br />
"O maestro tem o desprezo pelo sexo feminino... Gomes raras vezes<br />
tem um accesso de jovialidade para Adelina" e para <strong>com</strong> ella " está sempre<br />
impaciente e de mau humor".<br />
Desconhece-se um romance suave de amor em 6ua vida. O seu lar foi<br />
uma ara em que tudo se sacrificou pela arte e pela gloria, inclusive a felicidade<br />
e a harmonia do casal. Em <strong>com</strong>pensação tem para <strong>com</strong> os filhos uma ternura<br />
mais que paternal, por que é cheia de doçuras quasi que feminis. Mas a sua<br />
vida, sem leves vislumbres de grandes paixões, foi enfeitada por grandes amizades<br />
e devoções que soube inspirar a homens de todas as classes.<br />
Os que delle se aproximavam, podiam deparar, de prompto, "<strong>com</strong> a<br />
rudeza de seus modos, <strong>com</strong> o bizarro de seu todo ", e colher a enganosa impressão<br />
de ter pela frente uma alma despida de expansibilidade ; mas adivinhavam<br />
a seguir que seu espirito era, na essencia, semelhante a esses gazes que quanto<br />
maior a sua capacidade de concentração e retraimento, maior a sua potencia de<br />
expanção. 0 retrahido maestro expandia-se logo em demonstrações generosas e<br />
nobres de grande amizade, sacrificando-se até por amor dos outros.<br />
O proprio sentimento nativista, que é acendrado e constante em toda sua<br />
vida, não fugiu á lei das antinomias, surdindo <strong>com</strong>o centelhas dos poloe eléctricos<br />
de toda a sua emotividade, nos contrastes chocantes dos elementos psychicos.<br />
Os que lhe têm estudado a vida não lhe regateiam applausos ao seu apurado<br />
patriotismo. Por patriotismo se impoz á tarefa hercúlea de realizar o velho<br />
sonho do Imperador do Brasil, quanto á Opera Nacional. Confessa em carta a<br />
Francisco Manoel, seu mestre e seu amigo, que levara para Itália o proposito,<br />
inspirado nas conversas <strong>com</strong> o velho monarcha, de escrever algo que fizesse a<br />
Patria conhecida e louvada. A Providencia deparou-lhe o ensejo de avistar,<br />
num velho alfarrabista de uma escura viela de Milão, o romance de José de
Alencar, nacionalizado para o italiano por autor desconhecido Por{ patno ismo<br />
repassa os seus olhares de fogo sobre as paginas trescalantes de poesia<br />
e sua aima levanta, pelo arrebatamento súbito dos seus sentidos estheticos, 0<br />
espirito de nossas selvas, as lendas dos nossos Íncolas, os costumes e as tradições<br />
de nossa gente, figurando tudo nos sons barbaros e christàos da opera em que<br />
ia amanhecer a arte musical brasileira. Por patriotismo não se naturaliza italiano,<br />
sacrificando, <strong>com</strong> esse gesto de recusa, alto e honroso cargo na direcção<br />
do mundo artistico na patria de Verdi. Por patriotismo não permitte que seu<br />
filho Carlos vista farda de soldado da Italia. Por patriotismo declara innumeras<br />
vezes que deseja que seus ossos de "bugre" sejam enterrados no solo pátrio.<br />
Amou a Patria <strong>com</strong> devoção do mestiço, que, gerado pelo consorcio<br />
de duas fontes ethnicas, não ensaia remontar ás suas origens alem do berço<br />
modesto, mesmo porque isto significaria uma preterição d'este ou d aquelle progenitor.<br />
Presta assim á mãe patria o culto único e exclusivista.<br />
Mais que uma região distante, a patria, que precisou deixar tantas vezes,<br />
era-lhe um estado, uma tensão, uma <strong>com</strong>bustão de nostalgias. Mas, dentro desse<br />
fervor repleto de exaltações liricas, surdia-lhe <strong>com</strong> frequencia a acrimonia contra<br />
tolas insinuações de anonymos. Exagera a significação de alguns episodios, a<br />
ponto de interpretá-los <strong>com</strong>o um desprezo da patria. "No Rio não me querem<br />
nem para porteiro do Conservatorio; em São Paulo, acho que não me darão<br />
nem um lugar de bolieiro, e em Campinas julgam-me um arrivista<br />
O seu patriotismo desbordante não soffre os erros e as injustiças de alguns<br />
patrícios, e por elles olvida, de prompto, o grande acatamento, amizades,<br />
admiração e soccorros de um grande numero de brasileiros.<br />
Mas no processo dos contrastes vivos em que o seu espirito actua sempre,<br />
por predestinação de forças antagônicas, esses instantes de descrenças e amarguras<br />
passam logo para que elle retorne ao pensamento cheio de paixão e de<br />
encanto pela patria.<br />
E' que da confluência efervescente do caldeamento, de que lhe saiu a<br />
alma ardente e apaixonada, derivou a desconfiança do mestiço, por isso que, no<br />
cambio dos affectos, julgava-se um lesado que mais ama do que é amado. Estremecia<br />
a patria, mas ao menor incidente <strong>com</strong> levianos, prophetizava ingratidões<br />
e esquecimento de todos os seus patrícios.<br />
Era ainda isso um aspecto da lueta eterna da feminilidade indecisiva e<br />
enciumada, <strong>com</strong> a generosidade mascula e nobre.
Parte do museu de objectos que pertenceram<br />
ao grande <strong>com</strong>positor
Claudio de Souza<br />
(da Academia Brasileira)<br />
ARLOS GOMES é para nós, paulistas—que nos orgulhamos de<br />
nosso fanatismo exaltado pela terra e pela raça—uma das glo-<br />
rias mais altas e mais queridas de nosso invejado mas inegável génio.<br />
Com as bandeiras o paulista havia doado ao Brasil, a custa<br />
de ingentes sacrifícios, territorios que bastavam para formar algumas<br />
nações. Com suas explorações mineiras havia extraído das terras que<br />
desbravara, e havia oferecido ao Brasil oiro e gemas que bastariam<br />
para constituir a opulência de alguns povos. Com sua lavoura, depois^<br />
creára uma renda para o Brasil egual a que lhe davam todos os outros<br />
filhos reunidos. E já prometia <strong>com</strong> a multiplicação de suas industrias<br />
o milagre que levou a fim de prover o Brasil de tudo que se manu-<br />
fatura.<br />
Isso, porém, se operara e se vinha operando sem que o mundo<br />
tivesse noticia dos assombrosos feitos de seu génio. Tinha o paulista<br />
necessidade de alguém que traduzisse toda sua epopeia para uma lín-<br />
gua universal, levando ao mundo a mensagem de sua cultura. Carlos<br />
Gomes incumbiu-se disso. Foi o mensageiro do génio paulista ao uni-<br />
verso. E do génio paulista puro, cento por cento, na sua espontanei-<br />
dade, sem intervenção ou ensinamento estrangeiro. Reproduziu em suas<br />
operas a conquista bandeirante da floresta primitiva na sua agressivi-<br />
dade, nos seus riscos, nos seus perigos, nos seus heroismos obscuros;<br />
instrumentou as harmonias e as polifonias da pompa orquestral da na-<br />
tureza selvagem, e o saudosismo romântico da canção do aventureiro.<br />
Cantou a aventura, a abnegação, o heroísmo e os grandes lances de<br />
amor da raça que se formava. Na sua musica fala toda a galeria imor-
tal dos brasiliadas paulistas dos dilatadores da patria, dos sertanistas<br />
audazes desde o primeiro bandeirante até o ultimo sonhador das serras<br />
de esmeraldas.<br />
E porisso, nós, paulistas, lhe devemos o culto que todas as raças<br />
prestam aos que dedicaram a luz inteira de seu gênio a exaltar e far<br />
zer resplandecer as paginas imortaes de sua historia.
M O N U M E N T O Á C A R L O S G O M E S<br />
ERIGUO E.vl CAMPINAS E- M 2 UE. JULHO DEL 18C5
I<br />
(RESUMO)<br />
(Dous Artistas Máximos)<br />
Ephemerides de Carlos Gomes<br />
Dr. Carlos Stevenson<br />
1836 — Antonio Carlos Gomes nasceu em Campinas—São Paulo<br />
—a 11 de Julho.<br />
1859 — Matriculou-se nas aulas de contra-ponto, sendo professor<br />
Joaquim Gianini.<br />
Foi premiado <strong>com</strong> Menção Honrosa de 1.' classe.<br />
1860 — Premiado <strong>com</strong> a pequena medalha de ouro.<br />
Na solennidade de distribuição de prémios da Academia de Bellas<br />
Artes, a 15 de Março, foi executada uma cantada de sua <strong>com</strong>posição.<br />
1861 —Em sessão da Congregação dessa Academia, a 1.° de<br />
Outubro, foi unanimemente approvada a proposta do Conservatorio de<br />
Musica, para que se solicitasse uma condecoração para Carlos Gomes,<br />
pela sua opera «Noite do Castello», cantada no Theatro Lyrico Provisorio,<br />
a 4 e 7 de Setembro.<br />
A 8 de Novembro lhe foi entregue a venera, de brilhantes, <strong>com</strong><br />
o diploma, mandada por S. M. o Imperador.<br />
1863 — Foi escolhido pelo Director do Conservatório de Musica<br />
o alumno Carlos Gomes, autor das operas «Noite do Castello» e «Joanna<br />
de Flandres-, para ir, a expensas da Empresa Opera Lyrica Nacional,<br />
conforme seu contracto <strong>com</strong> o Governo, aperfeiçoar-se num Conservatorio<br />
da Italia.
1869-70 - Estréa do .Guarany* em Milão. Narroa um diletante<br />
italiano ... Parecia que brisa suave e perfumada percorria o theatro inteiro.<br />
Não se applaudiu para não interromper os cantores; os amigos<br />
de Carlos Gomes, porém, olhavam uns aos outros sorrindo, a dizer <strong>com</strong><br />
os olhos: —O «Guarany* está salvo... Gomes ganhou a Victoria, t,<br />
dahi em deante, <strong>com</strong>eçaram os applausos em progressão sempre crescente,<br />
a terminar em delirante ovação a Carlos Gomes.<br />
1870 — 2 de Dezembro. Dia e noite bellos. 45.° anniversario do<br />
Imperador D. Pedro II. Estréa, em grande gala, do «Guarany», no Theatro<br />
Lyrico Provrsorio.<br />
3 de Dezembro — 2. a representação do «Guarany».<br />
7 de Dezembro — 4.' recita, em beneficio de Carlos Gomes.<br />
O pianista Achilles Arnaud apresenta, antes do 3° acto, Carlos Gomes<br />
a André Rebouças.<br />
Depois do espectáculo houve marche aux flambeaux, <strong>com</strong> musica<br />
até o Largo da Carioca, onde estava hospedado o maestro.<br />
11 de Dezembro — Carlos Gomes visita a André Rebouças. A<br />
tarde André Rebouças o apresenta ao ministro do império, João Alfredo<br />
Correia de Oliveira.<br />
13 de Dezembro — Carlos Gomes, <strong>com</strong> André Rebouças, visita<br />
o Imperador, em São Christováo. Conversação muito paternal. Aconse-<br />
Iha-lhe ir á Allemanha. Promette escrever aos reis de Portugal, para ser<br />
representado o «Guarany» em Lisboa.<br />
15 de Dezembro — A convite de Carlos Gomes, o Ministro do<br />
Império assiste, de um camarote, a 6. a recita do «Guarany*. Desejava<br />
uma pensão permanente que lhe permittisse trabalhar livre da pressão das<br />
necessidades.<br />
Só em Julho de 1873 foi esta pensão votada pelo Parlamento<br />
graças aos esforços do deputado A. d'Escragnolle Taunay.<br />
1871 — Carlos Gomes vai a Campinas, em visita a seu irmão<br />
e protector, José Pedro de SanfAnna Gomes.<br />
/ de Janeiro-Penúltima recita do «Guarany*, no Rio de Janeiro.
9 de Janeiro — Ultima recita. Termina a estação lyrica.<br />
16 de Fevereiro — Chega Carlos Gomes de Campinas.<br />
18 de Fevereiro — Vai <strong>com</strong> André Rebouças despedir-se do Imperador,<br />
em São Christovão. Mesmo tratamento paternal.<br />
23 de Fevereiro — Parte Carlos Gomes para a Europa. No «Jornal»<br />
de 24 vem a sua despedida que termina: — A gratidão é a maior<br />
virtude d'alma. Eu a sinto e portanto julgo-me feliz ! Adeus !<br />
16 de Dezembro — Carlos Gomes casa-se <strong>com</strong> Adelina Peri, filha<br />
legitima de Francisco Peri e Gertrudes Peri. O casamento celebrouse<br />
na Chiesa di San Carlo, no Corso Vittorio Emmanuele, em Milão.<br />
1872 — 14 de Dezembro — André Rebouças, em viagem pela<br />
Italia, escreve a Carlos Gomes, pedindo-lhe um ponto de encontro<br />
23 de Dezembro — Encontro em Turim. Carlos Gomes ensaia,<br />
no Theatro Régis o «Guarany». Sua preocupação era a «Fosca» que<br />
ia ser representada em Milão, no Scala.<br />
27 de Dezembro — Diz o meu «Diário»:<br />
«Enche-me de orgulho ver nos ensaios <strong>com</strong>o os italianos respeitam<br />
a Carlos Gomes, desde Perotti, o illustre Maestro, regente da orchestra,<br />
até os últimos coristas, aos quais êle ensina gesto por gesto».<br />
«Que prodígio ! Nascer em Campinas, nos confins de São Paulo,<br />
e vir dar regras de musica, de canto e até de mimica, na Italia !<br />
28 de Dezembro — 1.' recita do «Guarany», em Turim Carlos<br />
Gomes foi chamado dez vezes á scena Applausos enthusiasticos, desde<br />
a ouvertura<br />
29 de Dezembro — Partida de Carlos Gomes para Milão, afim<br />
de activar os ensaios e preparativos da «Fosca».<br />
1873 — 29 de Janeiro — Nasce ás 8 horas o primogénito de<br />
Carlos Gomes.
da «Fosca».<br />
13 de Fevereiro — Carlos Gomes trabalha nos últimos ensaios<br />
16 de Fevereiro — Estréa da «Fosca-. Theatro em maxima enchente<br />
; o publico manifesta-se logo no fim da 2. a scena. Carlos Gomes<br />
vem ao proscênio, sem a menor distincção honorifica, agradece rapidamente<br />
e desapparece <strong>com</strong>o por encanto. Os milaneses exclamam : Che<br />
bravo giovanetto! Che bello indiano! O dueto final do 3.° acto produziu<br />
murmurio de admiração desde a 1 a frase; tres salvas unanimes de<br />
applausos.<br />
2 de Março — Baptisado de Carlos André Gomes, ás 2 horas<br />
da tarde, na Chiesa di San Carlo.<br />
Assistimos, á noite, á 5.' representação da «Fosca», em grande<br />
gala, <strong>com</strong> o Scala illuminado a giorno. Era festejado o domingo seguinte<br />
ao carnaval, <strong>com</strong>o termo da semana <strong>com</strong>pleta de carnaval.<br />
10 de Março — Carlos Gomes vai <strong>com</strong> André Rebouças a Malgrato,<br />
á casa do poeta Antonio Ghislanzoni e contrata o libreto do «Salvator<br />
Rosa». Para esse libreto, deu-lhe Carlos Gomes o romance «Masaniello»,<br />
de Mirecourt. A opera chamava-se também «Masaniello*, mas<br />
passou depois a ser «Salvador Rosa», para evitar confusão <strong>com</strong> outra<br />
do mesmo nome, pertencente á casa Ricordi.<br />
12 de Março—Contrato do «Salvador Rosa». 2.000 francos pelo<br />
libreto, sendo 1.500 pagos por Carlos Gomes e 500 pelo editor.<br />
13 de Março — Partida inopinada do tenor Carlos Bulterini, para<br />
Buenos Aires, interrompendo as representações da «Fosca».<br />
Julho — Decreto, concedendo uma pensão a Carlos Gomes, obtido<br />
por esforço do deputado Taunay.<br />
O «Guarany» teve grande ovação em Santiago do Chile.<br />
O Imperador ouve a partitura da «Fosca», ao piano pelo Dr<br />
Martins Pinheiro, a 30 de Agosto.<br />
1874 — Março — Triumphal estréa do «Salvador Rosa»<br />
I w
Abril — Denominação da Praça Carlos Gomes, em Campinas.<br />
1875 — Nascimento de Mario Antonio Gomes, fallecido a 25<br />
de Agosto de 1879.<br />
1876 — Agosto — »Guarany» em Montevideu.<br />
Setembro — Em Montevideu offerecem um rico album a Carlos<br />
Gomes.<br />
1878 — 12 de Outubro — Representação do «Guaranyno<br />
Rio de Janeiro, pela «Companhia Ferrari». Extraordinário enthusiasmo.<br />
Março — Estréa da «Maria Tudor», no Scala.<br />
Julho — Estréa do «Guarany», na Bahia.<br />
26 de Julho — Extraordinaria ovação a Carlos Gomes; libertam<br />
duas creanças em sua honra.<br />
1880 — Abril — Carlos Gomes na Bahia. Representação do<br />
«Guarany» e do «Salvador Rosa».<br />
Julho, 18 — Triumphal recepção de Carlos Gomes, no Rio de<br />
Janeiro.<br />
17 de Agosto — Estréa do «Salvador Rosa» pela Companhia Ferrari.<br />
2 de Setembro — Festival a Carlos Gomes no Cassino Fluminense.<br />
9 de Novembro — Volta Carlos Gomes á Europa, depois de representar<br />
suas operas em São Paulo, <strong>com</strong> a Companhia Ferrari.<br />
1882 — Junho — Carlos Gomes em Pernambuco.<br />
1884 — Março — Abolição do elemento servil no Ceará. Carlos<br />
Gomes <strong>com</strong>põe a «Marcha Popular do Ceará Livre.<br />
1889 — 9 de Julho — Chegada ao Rio, <strong>com</strong> sua filhinha.
Isabel.<br />
26 de Agosto - Grande concerto promovido pela Princeza D.<br />
26 de Setembro — Estréa da Opera «Schiavo».<br />
28 de Setembro — Representação de Grande Gala.<br />
2 de Outubro — Beneficio. Condecorado pelo Imperador, <strong>com</strong>o<br />
grande dignatario da Ordem da Rosa.<br />
Paulo.<br />
9 de Novembro — Primeira representação do «Schiavo» em São<br />
1891 — Fevereiro — Estréa da opera «Condor», no Scala.<br />
1892 — Outubro — Estréa do «Colombo», no Rio de Janeiro.<br />
1805 — Março — Carlos Gomes em Lisboa. Condecorado <strong>com</strong><br />
a <strong>com</strong>enda de S. Thiago, em pleno theatro, tendo a orchestra tocado a<br />
ouverture do «Guarany».<br />
Em viagem para Belem, passa no vapor «Sobralluse» por Funchal<br />
— Encontro <strong>com</strong> André Rebouças.<br />
1896 — 8 de Abril — Operação na lingua, em Lisboa.<br />
5 de Março — Passa novamente por Funchal, no vapor «Obidence».<br />
Tristíssima visita de André Rebouças.<br />
Operas de Carlos Gomes, não concluídas:<br />
«Gabriella de Blossac». Libreto do poeta d'Orneville.<br />
«Palma»<br />
«Morena»<br />
«Cavalleiro Bizarro».<br />
(a) André Rebouças
^ ^<br />
Resoem vozes crystalinas<br />
No céo,<br />
Para glorificar na terra<br />
O grande filho de Campinas,<br />
Que outrora,<br />
Embora triste e doente, pobre e calumniado,<br />
Com o coração torturado<br />
Pelos espinhos cruéis da ingratidão;<br />
Nobre entre os vis, heroico entre os covardes,<br />
Como um sol entre os vermes refulgindo;<br />
Transformando<br />
Os apodos da inveja e as pedradas do egoísmo<br />
Na transfiguração<br />
Das rosas de oiro da belleza,<br />
Conquistou,<br />
Para orgulho de sua Patria,<br />
Para a immortalidade de seu Povo,<br />
Com as harmonias triumphaes do «Guarany»,<br />
Entre bençams e flores, glorias e explendores,<br />
A Eternidade n'uma Hora...<br />
A tua Musica divina<br />
Traduz,<br />
Oh! Carlos Gomes!<br />
Na sublime orchestração<br />
Da Natureza,<br />
Ora triste, sorrindo, ora alegre, chorando,<br />
Os suspiros das frondes e os clamores do Oceano;<br />
Os mysterios das sombras e as apoteoses da luz ;<br />
Os rugidos e os sonhos, os encantos e os pavores<br />
Das selvas americanas;<br />
As ancias e os delírios, as dores e as agonias,<br />
Das paixões humanas,<br />
Espelhando<br />
Num arroubo profundo<br />
As paysagens da Terra e as tragedias do Mundo.<br />
Rio, 28 de Abril de 1936<br />
Laurindo de Brito
Palavras proferidas por J. Eustachio de Azevedo,<br />
orador da "Mina Litteraria". do Pará ha 40<br />
annos. por occasião de ser transportado da casa<br />
mortuaria para o cemiterio da Soledade o feretro<br />
glorioso do grande génio musical brasileiro.<br />
, enhores! Quando Elie morreu toldaram-se os céus de minha terra e as nuvens,<br />
" rasgando-se de desespero, encobriram por instantes o bellissimo clarão da lua.<br />
As pyraustas, em revoada de loucas, debatiam-se no espaço, semi-mortas.<br />
Quando Elie morreu as flores murcharam tristuosas, e evaporou-se-lhes o perfume;<br />
as aves emudeceram, <strong>com</strong>o que oppresas pela suffocação que produz o pezar... Quando<br />
Elie morreu o altaneiro condor desappareceu por entre a neve dos Andes, louco de dor ; as florestas<br />
americanas desfolharam seus viridentes ramos, e cada folha que cahia, —era uma lagrima!<br />
Quando Elie morreu o Amazonas rugiu, aculeado pela noticia fúnebre e rebentou<br />
a mais forte de suas porôrócas, ensopando <strong>com</strong> o salso pranto a planicie! Quando Elie<br />
morreu a mulher brasileira ajoelhou-se, e rezou uma prece tão sentida que a natureza estremeceu<br />
de angustia. A mocidade perguntou por Deu, transida de saudade e de amargura ...<br />
Quando Elie morreu calou-se a musica dos orgãos, numa ultima nota pungitiva!...<br />
O Brasil inteiro chorou quando Elie morreu ! Campinas immergiu-se em pranto,<br />
Belem, banhou-se de lagrimas; São Paulo cobriu-se de lucto, o Pará velou-se de crêpe,<br />
quando Elie morreu ! Uma voz apenas se ouviu, vinda do meio das selvas brasileiras:<br />
"Sento una forza indómita"<br />
"que ognor mi traggè a te /"<br />
Era Pery, era Pery, personificado no brasileiro de raça, que já não tendo mais lagrimas<br />
cantava a elegia da morte, enchendo as nossas mattas virgens <strong>com</strong> as melodiosas<br />
notas do Guarany... Era Pery que lamentava, a seu modo, a morte do Génio que o immortalizara !<br />
Quando Elie morreu,., a sussuarana procurou a lua para indagar o que era feito<br />
d'Elle, mas foi em vão! Noetiluca conservou-se, <strong>com</strong>o sempre, prateada e muda. Então a<br />
féra, ferida pelos espinhos da saudade, soltou um rugido de dôr que encontrou écho no coração<br />
do jaguar! Até as féras choraram quando Elie morreu !<br />
Quando Elie morreu a italia, pela voz de seus gondoleiros, cantava <strong>com</strong>o eterna<br />
recordação;<br />
"Mia piccerella ! den ! viene a lu mare,<br />
"Neila barchetta ve un letto di fior..."<br />
Céos, terras, mares, tudo vergou ao peso de tamanha fatalidade !...<br />
Quando Elie morreu o velho e o novo mundo se uniram pelas lagrimas, — irmãos<br />
de um mesmo sentimento, <strong>com</strong>panheiros de uma só amargura, porque tinha tombado o monarcha<br />
dos sons; porque desapparecera um verdadeiro Génio; porque extinguira-se um dos<br />
maiores artistas do mundo, irmão de Donizetti, de Bellini, de Verdi, e de tantos outros;<br />
porque, finalmente, desapparecera de entre os vivos aquella alma de illuminado, aquelle espirito<br />
in<strong>com</strong>parável, aquelle éstro de fogo, aquelle génio de titão, que foi, é e será — uma<br />
das mais patentes glorias americanas e o mais evidente orgulho nacional!<br />
Só o Pantheon da Fama estava em festas, só a Historia sorria : aquelle, porque recebia<br />
o estremecido arcaboiço de mais um heróe; esta, porque inscrevia no seu livro de<br />
ouro mais um nome fulgentissimo: — CARLOS GOMES, o IMMORTAL.<br />
Senhores !<br />
Como brasileiro e em nome da Mina Litteraria, eu prostro-me de joelhos, <strong>com</strong> ocoração<br />
affhcto, <strong>com</strong> a alma dilacerada diante do feretro estupendo da maior gloria musical de meu paiz !<br />
Pará, 20-9-1896 — A trasladação do corpo de Carlos Gomes para Soledade foi a<br />
maior e a mais extraord.nar.a romana cívica que até hoje, tem havido entre nós Pôde se<br />
dizer que o Para inteiro a ella <strong>com</strong>pareceu <strong>com</strong>pungido.
D. Pedro II, amigo e protector de Carlos Gomes<br />
ír
D. PEDRO II<br />
(0 grande amigo de Carlos Gomes)<br />
ítala Gomes Vaz de Carvalho<br />
ontou-me uma testemunha ocular, que a 5 de Novembro de 1881,<br />
estava uma noite no theatro S. Carlos, em Lisboa, e já a orchestra<br />
havia dado inicio aos primeiros <strong>com</strong>passos do preludio do Rigoleto, quando<br />
surgira no Camarote Real o Rei D. Luiz 1-°, a<strong>com</strong>panhado de Carlos Gomes,<br />
de regresso, naquelle mesmo dia do Brasil, onde havia sido acclamado<br />
<strong>com</strong> sua segunda grande opera "Fosca", na Bahia e no Rio de<br />
Janeiro. Todos se levantaram e a orchestra, de pé, atacou a protophonia<br />
do «Guarany» <strong>com</strong>o se fosse o hymno nacional brasileiro que os<br />
portugueses entoassem em honra do illustre hospede brasileiro! — A<br />
desvanecedora homenagem que se prestou n'aquella noite ao grande<br />
campineiro, fôra certamente uma ordem expressiva do proprio Rei D.<br />
Luiz 1.°, a quem Carlos Gomes havia pela segunda vez, ha 15 annos<br />
de distancia, entregue as credenciaes de que o Imperador D. Pedro II o<br />
munira, <strong>com</strong> especial carinho, re<strong>com</strong>mendando ao illustre sobrinho, o estimado<br />
cantor de sua terra!<br />
E assim sempre, ao longo de sua atormentada existencia, Carlos<br />
Gomes recebera o amparo, o consolo moral e o attento interesse de<br />
D. Pedro II.<br />
— «Se não fosse o Imperador, eu não seria Carlos Gomes!»<br />
repetia frequentemente meu Pae aos que lhe observaram que finalmente,<br />
o amparo do Chefe da Nação Brasileira, não fôra o que poderia ter sido<br />
e que justamente faltou ao artista o esteio material que na pujança<br />
de sua melhor producção artistica não poude ultrapassar os píncaros de<br />
perfeição, aos quaes tinha chegado pela necessidade reles de escrever<br />
muita musica que se pudesse vender <strong>com</strong> facilidade.<br />
Certos biographos de Carlos Gomes faliam defuma pensão obtida<br />
pelo Maestro após múltiplas e reiteradas diligencias postas em pratica pelo<br />
grande amigo de meu Pae, o Visconde d'Escragnole Taunay e de André<br />
Rebouças, no ann.o de 1876-78 — e divulgou-se, <strong>com</strong> sabor anedoctico,<br />
uma phrase que o Imperador teria proferido ao despachar o documento:<br />
— "Eis um decreto que assigno <strong>com</strong> grande satisfação!" — Mas<br />
está averiguado que o Maestro nunca beneficiou de semelhante cousa.<br />
A pensão foi certamente pedida, mas não chegou ao seu destino,<br />
e seria para dar ao <strong>com</strong>positor a possibilidade de ir <strong>com</strong>pletar seus<br />
estudos na Allemanha e na França, onde teria certamente colhido outros<br />
elementos de perfeição para maior gloria e renome seu e do Brasil, que<br />
no emtanto já havia feito universalmente conhecer através de suas harmonias<br />
sublimes ! Se Carlos Gomes a tivesse recebido, um só dia, te-
G4<br />
ria immediatamente partido <strong>com</strong> mulher e filhos para Berlim, cumprindo<br />
sem contesto o desejo do Imperador, que era para elle sagrado, mas<br />
não sei porque, o decreto não foi posto em execução. Meu Pae nunca<br />
nos fallou nisso, nem a meu irmão nem a mim, porem grande devia ter<br />
sido a sua magoa por haver constatado que o elemento contrario ao<br />
seu progresso, junto a D. Pedro 11, tinha tido ganho de causa! Minha<br />
tia Josephina Peri, irmã de minha mãe, que partilhou do viver do casal<br />
Carlos Gomes, contára-me innumeras vezes dos anceios e das espectativas<br />
em que meu Pae vivera, á espera daquelle auxilio pecuniário que<br />
finalmente nunca chegou ! —<br />
Na verdade, a protecção do Imperador, em moeda sonante, limitou-se<br />
áquelles 4 annos de pensão de 150 mil réis mensaes, durante os<br />
quatro annos de estudos em Milão e aos 10 ou 20 contos de réis que<br />
o Monarca concedeu a Carlos Gomes para a enscenação do *Guarany»<br />
no «Scala» de Milão e no «Theatro Provisorio* do Rio de Janeiro, a 2<br />
de dezembro de 1870, dia dos annos de D. Pedro II.<br />
Quando, naquelle mesmo anno, meu Pae quiz regressar á Italia,<br />
onde o esperavam diversos <strong>com</strong>promissos e en<strong>com</strong>mendas de novas<br />
operas, achou-se muito necessitado, tendo embora levado vida modestíssima<br />
de estudante pobre, dormindo num pequeno quarto que lhe cedera<br />
o amigo Julio de Freitas, morador num sobrado no Largo da Carioca.<br />
Sem recursos, apesar de tantas glorias, vendeu então os direitos de<br />
edição do «Guarany*, para todo o Brasil, á Casa Arthur Napoleão pela<br />
quantia, irrisória, de 800 mil réis!— Carlos Gomes foi, desde o inicio<br />
de sua carreira, positivamente abandonado pelas autoridades de seu paiz,<br />
entre as mãos dos editores e dos emprezarios internacionaes ! —<br />
Bem pouco, todavia, teria custado ao imperador proteger Carlos<br />
Gomes de uma maneira mais generosa e continuada, coroando sua obra<br />
de Mecenas, tão lindamente iniciada, amparando o grande gênio brasileiro<br />
da musica, ao par do que fizera o Rei Luiz II da Baviera <strong>com</strong><br />
Ricardo Wagner! — Ai de mim! desgraçadamente D. Pedro II, rodeado<br />
de ministros e cortezãos hostis á idéa de gastar dinheiro <strong>com</strong>,<br />
"fabricantes de operetas" — <strong>com</strong>o qualificaram de modo pejorativo o<br />
grande Mestre Campineiro, não teve coragem de firmar o seu gesto louvável,<br />
amparando o artista que já havia coberto de gloria o seu amado<br />
paiz e dado tamanho brilho ao seu império ! Não foi certamente o desejo<br />
que lhe faltou, foi apenas a ousadia de ir de encontro ás opiniões<br />
do seu Governo formado em sua maioria de homens incapazes de <strong>com</strong>prehender<br />
a belleza da musica e o prestigio que ganha um paiz quando<br />
possa apresentar ao mundo culto, artistas da envergadura de Carlos Gomes<br />
! Lamentavel in<strong>com</strong>prehensão que todavia não conseguio refrear os arremessos<br />
de illimitada gratidão que meu pae sempre alimentava pelo seu<br />
grande amigo, o Imperador D. Pedro II.<br />
Rio, 28- VI- 1930
I<br />
II<br />
1<br />
D. 1 Adelina Péri Gomes, esposa do saudoso maestro<br />
& % - .?<br />
- v "v<br />
r t >i%
eminiscências de<br />
CARLOS GOMES<br />
por ítala Gomes Vaz de Carvalho<br />
(Filha do autor de "0 Guarany")<br />
TRANSCRIPÇÀO DA <strong>REV</strong>ISTA O CRUZEIRO E A CIGARRA<br />
mrimeira recordação bem nitida que eu tenho de meu pae, remonta<br />
ao tempo em que, ainda pequenina, eu estava uma manhã de verão<br />
ao collo de minha ama, na varanda de nosso appartamento, vendo approximarse<br />
ao longe uma musica militar que vinha em direcção de nossa casa. Moravamos<br />
então em Milão, no corso Magenta, no 3.° andar de um vetusto palacio de<br />
tijolos rubros, <strong>com</strong>o ha muitos na Capital Lombarda. Os soldados vinham chegando<br />
numa marcha cadenciada pelo rythmo da musica. Deveriam ser tropas<br />
que partiam para os primeiros <strong>com</strong>bates desastrados na Africa, contra o liei<br />
Menelick. O toque dos clarins exasperava-me! Papae também sahiu do estudio<br />
vindo para a sacada olhar o que se estava passando. Eu devo ter ficado de repente<br />
indignada <strong>com</strong> o barulho ensurdecedor porque, num arremesso de raiva,<br />
joguei o boneco de páu que tinha nas mãos, sobre a cabeça do trombone que<br />
passava bem em baixo de nossas janellas.<br />
— Bravos "fifia" ! gritou papae enthusiasmado, "dê pancada no homem<br />
que desafina e toca musica feia!..." Mas eu já chorava <strong>com</strong> saudade do boneco<br />
e foi preciso que meu pae fosse <strong>com</strong>prar outro brinquedo ás pressas para<br />
me acalmar !<br />
Papae adorava as crianças e tinha por mim, que cheguei por ultimo, depois<br />
de uma serie de rapazes, uma verdadeira idolatria! Por certo eu encantava-o<br />
duplamente, porque substituía no seu coração cheio de ternura, o logar<br />
deixado vazio por minha irmã Carlota-Maria, a primeira filha do casal Péry-<br />
Carlos Gomes, que morrera <strong>com</strong> poucos annos de edade.<br />
Meus irmãos não eram dados a musica e quando eu cheguei, tarde, sem<br />
que ninguém mais contasse <strong>com</strong>migo, papae teve uma esperança nova e julgou<br />
ter ganho emfim uma herdeira que seria mais tarde a digna representante da<br />
illustre tradição musical que elle deixou.<br />
Mas esta também foi uma mera illusão.<br />
Ein vão deu-me elle os melhores professores de piano e de violino. Eu<br />
fui, e ainda sou, um dos maiores desmentidos da herança espiritual e artística<br />
que se pôde constatar. E' campo em que, filho de peixe não é peixinho, e querendo<br />
nadar afoga!<br />
Meu pae foi um dos maiores <strong>com</strong>positores musicaes das duas Américas.<br />
Sua inspiração era genial! Minha mãe, fôra uma eximia pianista de grande talento,<br />
primeiro premio dos conservatorios de Milão e de Roma e no emtanto eu<br />
sou incapaz embora ame e conheça a musica a fundo, de modular espontaneamente<br />
um qualquer accorde simples de õ'* ou sexta dominante l Quando papae<br />
considerava, <strong>com</strong> desapontamento, meus esforços pianisticos, mal coroados de<br />
algum magro successo, dizia-me <strong>com</strong> bondade:
— Não faz mal fifia: ser pianista não vale nada... Estude somente para<br />
conhecer bem a musica e quando você crescer, terá uma bonita voz para cantar .<br />
A morte levou-o antes que eu tivesse alcançado a edade cm que lhe daria<br />
mais uma decepção de arte!<br />
Lembro-me da paciência <strong>com</strong> que elle aturava os exercícios pianisticos<br />
que eu fazia diariamente, embora num quarto longe do estúdio, mas que fatalmente<br />
deviam perturba-lo nas suas inspirações.<br />
Papae dormia pouquíssimo. Sempre nervoso, agitado, trabalhava durante<br />
a noite. Quantas vezes eu accordei ás 2 e 3 horas da madrugada ouvindo os<br />
accordes do piano de papai.<br />
Compunha e fumava... fumava sem cessar aquelles horrendos charutos<br />
milanezes chamados Sigari Virgínia, munidos de uma piteirinha de palha dura,<br />
que deve ter sido a causa inicial do mal que o levou iào cedo quando poderia<br />
ainda produzir tanta cousa para a maior gloria do seu Paiz! O amor da Patria<br />
era o traço dominante do caracter de meu pae. Manifestava-se nas menores<br />
cousas. No Sitio de Maggianico perto do Lago de Lecco onde havia feito edificar<br />
uma villa simples, de estylo colonial, rodeou-se de tudo quanto lhe podia<br />
lembrar a terra onde nasceu. Kecordo-me <strong>com</strong> saudade dos dias de ferias quando<br />
vinha do collegio e me achava de novo entre as araras e os papagaios que<br />
enchiam as varandas em volta da casa! Todos falavam portuguez, mas por fim misturavam<br />
vocábulos do dialecto lombardo numa charanga que divertia immenso<br />
meu pae.<br />
Tínhamos lá um grande viveiro cheio de passaros do Brasil que papae<br />
trazia das viagens. Até arapongas lá viviam em <strong>com</strong>panhia de patativas, sabiás<br />
e caboclinhos que se domesticaram muito bem. Saliiam a esvoaçar pelo jardim<br />
durante o dia e á tardinha voltavam ao viveiro em busca do abrigo para a noite.<br />
No pomar, habitavam famílias de sagüis que mal resistiam ao clima frio,<br />
apegar das casinholas de madeira onde se podiam refugiar. Quando morria um<br />
delles, eu e meus irmãos, <strong>com</strong> as primas Maria e Elisa Monteiro, que moravam<br />
<strong>com</strong>nosco, organizavamos pomposos enterros dos nossos <strong>com</strong>panheiros de brincadeiras.<br />
Papae <strong>com</strong>puzera especialmente uma marcha para as cerimonias fúnebres,<br />
mas tenho a impressão que a toada era antes alegre!<br />
Infelizmente não achei, entre os manuscriptos, esta pagina evocadora de<br />
tocantes episodios da minha infancia!<br />
Cada recanto do Sitio era baptisado <strong>com</strong> nomes brasileiros.<br />
Havia um lago chamado Lagoa Formosa e uma canoa <strong>com</strong> o nome de<br />
Pindamonhangaba pintado na popa em verde e amarello.<br />
Íamos assim remando no bosque dos Jequilibás. que na realidade eram<br />
umas immcnsas figueiras bravas, até a uma moita de bambus nanicos e soffredores<br />
que, <strong>com</strong> as neves dos invernos nunca puderam ultrapassar os 2 metros<br />
de altura, mas papae adorava aquelles aspectos da natureza que lhe davam uma<br />
pallida impressão da flora e da fauna do amado Brasil! Atraz das cerejeiras de<br />
Maggianico elle idealizava contemplar os cafeeiros, as jaboticabeiras, e as palmeiras<br />
da Patria distante.<br />
Era um ambiente, embora falso, forjado pela intensa nostalgia do perfume<br />
e do verde negro das florestas da Serra do Mar; e foi lá, todavia, que meu pae<br />
saturado da mais pungente saudade, <strong>com</strong>puzera a sublime melodia do Céu de<br />
Parahyba da opera O Escravo. Somente por isso o nosso culto deveria também<br />
immortalizar a memoria do Sitio de Maggianico!
Sala de estudos do Centro de Sciencias, Letras e Artes
HPHP<br />
J. Pereira de Castro<br />
te admiro e venéro, ó Génio do Som e da Harmonia, no sumptuoso esplendor<br />
de tua gloria, na glorificação universal de teu nome — a mais fulgurante estrella<br />
da constellação da arte musical nas Américas.<br />
Abstráio-me na contricta genuflexão do fanatizado deante do seu idolo, no deslumbramento<br />
do sêr terreno fitando a luz dos astros, para dizer-te, ó Génio da Arte, todo o<br />
fervor do meu culto á luminosidade de tua inspiração, á imprevista originalidade do indianismo<br />
patriotico, ao fecundo poder e á brasilidade de tua imaginação flammejante, cujos<br />
surtos arrojados se elevam muito acima do talento humano e pairam bem alto, mais proximos<br />
do céo do que da terra.<br />
Surgiste <strong>com</strong> a finalidade do sol: inundaste de luz o mundo inteiro, <strong>com</strong>o de harmonia<br />
o inundaste ainda antes de attingires o zenith de tua gloria.<br />
E, para honra nossa, nasceste ó Génio, no Brasil.<br />
Tua vida de predestinado, desde os primeiros remigios de tua quasi divina destinação,<br />
desde o «Hymno Académico», «Noites do Castello», «Joanna de Flandres,» «Se sa<br />
minga», e «Bella Luna», ioi sempre uma escalada progressiva de triumphos, uma vertiginosa<br />
ascensão para o Ideal, que tão cedo te cingiu a fronte augusta, <strong>com</strong> o diadema sideral da<br />
immortalidade, qual resplendor dos consagrados do céo, dos eleitos de Deus.<br />
Luminosa via lactea foi a tua irrivalizavel trajectória sobre a terra, lentejoilada, <strong>com</strong>o<br />
larga faixa do céo pontilhada de estrellas, por victorias inexcediveis, que te elevaram á<br />
admiração dos povos cultos e á sagração de tua Patria, orgulhosa de tão grande filho.<br />
Embalaste e embeveceste, aos accordes impressionantes, de tua musica, inimitavelmente<br />
lyrica, o Brasil e o mundo todo, porque, de extrema a extrema do planeta, são as<br />
nações sacudidas pelas fortes emoções do "Guarany", a realização d'arte nacional que mais<br />
envaidece a nossa raça.<br />
Nacionalizaste e enriqueceste a musica, a cujo precioso thesouro juntaste a pedraria<br />
inegualavel de fulgores extranhos e valor sem limite, que são as scentelhas mais vivas<br />
de teu talento creador: «Guarany». «Fosca», «Maria Tudor», «O Escravo», «Condor» e<br />
«Salvador Rosa».<br />
A tudo excedeste, entretanto, na primeira dessas obras geniaes, em a qual se espelha<br />
a imagem querida da nossa nacionalidade, nos mais Íntimos encantos de sua belleza nativa.<br />
Neila <strong>com</strong>pletaste, em um atordoante coriscar de rythmos regionaes, a bemaventurada<br />
trilogia da poesia, da musica e da prosa, formando entre Gonçalves Dias e José de Alencar.<br />
Creaste e refundiste, nessas paginas de harmonia divina, de enlevos e exaltações<br />
indescriptiveis, um symbolico ideal de arte para as brasílicas terras de Pery, em prodigiosa<br />
polytonia de sons, de luz e de cores, desde a verde trama das florestas invias e do sibilar<br />
das flexas selvagens, ao fulgor do sol equatorial e aos preconceitos burguezes de nossos coevos.<br />
E depois de tanta gloria em vida, legaste ao Brasil, <strong>com</strong> tua morte, um nome glorioso.<br />
Teus olhos grandes e expressivos, que contemplaram o mundo a te render homenagem,<br />
quizeram cerrar-se ó Génio, para o eterno somno da posteridade, á luz do nosso<br />
sol, sob o azul do formoso céo paraense.<br />
Capricho feliz do destino que te fez admirado e querido por toda a tua Patria:<br />
nasceste no sul e morreste no norte, abrindo as tuas luminosas asas de condor do norte<br />
ao sul do paiz, que teve a fortuna de vêr nascer e morrer dentro do seu coração, e que é<br />
feliz por ter sido o berço de teu nascimento.<br />
Eu te admiro e te venéro, ó Génio!
A primeira representação d' "0GUARANY"<br />
IsTO F - A ^ - Á .<br />
Ulysses Nobre<br />
^^Kraseirosamente voltamos a tratar de Carlos Gomes, o portentoso artista<br />
que tanto elevou este immenso Brasil <strong>com</strong> a linguagem<br />
universal dos sons no Velho Mundo.<br />
E assim, revive na alma de todos os brasileiros que apreciam um<br />
pouco de musica, o nome do gigantesco cantor das paginas douradas do<br />
romance de José de Alencar.<br />
A attracção do seu nome immortal sacode a nervosidade do mais<br />
indiferente dos mortaes ante a musica viva, audaz, terna e magestosa d' "O<br />
Guarany", que nesta data, em 1880, a platéa paraense teve a suprema<br />
ventura de ouvir pela primeira vez o "capolavoro" do inesquecível <strong>com</strong>positor<br />
paulista.<br />
Foi "O Guarany" a primeira opera nacional que se cantou no Pará.<br />
Não houve penna que pudesse relatar o que foi essa saudosa noite<br />
no Theatro da Paz.<br />
Coube a honra de representar 4 'O Guarany" pela primeira vez no<br />
Pará, a <strong>com</strong>panhia lyrica italiana Thomaz Pacini, aqui chegada em 3 de<br />
agosto do anno acima, e embarcada na Bahia no paquete nacional "Pernambuco".<br />
Foi este o primeiro conjuncto lyrico que veiu a esta terra, tendo<br />
causado uni verdadeiro acontecimento artístico em Belém pelo inéditismo<br />
dos seus espectáculos.<br />
A estréa da <strong>com</strong>panhia teve logar a 7 de agosto <strong>com</strong> a opera "Ernâni",<br />
de G. Verdi, sendo estes os principaes artistas que formavam o seu<br />
elenco : Enrico Bernardi, maestro concertador e director da orchestra ; Philomena<br />
Savio, soprano dramatico ; Josephina Senespleda, soprano ligeiro ;<br />
Julia Consolani, contralto; Clímene Kals, meio soprano; A. Giraud e u!<br />
Gigli, tenores; R. Poito, barytono ; R. Mailini, baixo; Luigi Logheder,<br />
maestro pianista e ensaiador dos coros ; <strong>com</strong>primarios Salvatore Gustinelli<br />
e Amadeu Peroni ; Lydia Galli e Bianca Zatelli, primeiras bailarinas ; 20<br />
coristas de ambos os sexos e 26 professores de orchestra.
Mereceu do saudoso maestro Bernardi, vigorosa organização artística<br />
á qual se deve incontestavelmente o extraordinário desenvolvimento que<br />
teve a musica em nosso meio, meticuloso cuidado os ensaios da partitura<br />
formidável d' "O Guarany", e dahi veiu parte do successo que obteve a<br />
primeira representação daquella opera entre nós.<br />
Annunciada a "première" d' "O Guarany", <strong>com</strong>eçou-se a notar um<br />
desusado enthusiasmo que se tornava o assumpto obrigado em todas as<br />
camadas sociaes, e assim, tres dias antes, já não havia um só bilhete disponível,<br />
pois, as en<strong>com</strong>mendas na "Casa Havaneza" que era então a agencia<br />
theatral, sita á rua João Alfredo, onde hoje está installada a Sapataria<br />
Pelicano, eram superiores á lotação do theatro.<br />
Desde essa época nasceu a veneração e o respeito pelo nome de<br />
Carlos Gomes, que ainda não impallideceu, pois ao contrario, dia a dia<br />
mais se avoluma nos corações dos paraenses.<br />
Nessa noite inolvidável de 9 de Setembro de 1880, o Theatro da<br />
Paz <strong>com</strong>portava o que se chama uma enchente real formada por uma sociedade<br />
escolhida e elegante. Após o primeiro acto, <strong>com</strong>o o publico não<br />
pudesse victoriar pessoalmente a Carlos Gomes, chamou á scena o maestro<br />
Bernardi, regente da orchestra, simulou que tinha em sua presença o inesquecível<br />
paulista e victoriou-o estrondosamente. De todos os lados eram<br />
arrojados lindos bouquets, flores e até poesias.<br />
Mal acabava um acto a mesma scena era repetida, até que o enthusiasmo<br />
tocou ao delirio, no fim do 3.° e 4 0 actos, <strong>com</strong> especialidade neste,<br />
em que já não havendo flores, atiravam-se ao palco, chapéos, lenços, etc.<br />
Enrico Bernardi veiu ao Pará varias vezes em <strong>com</strong>panhias lyricas,<br />
tendo depois residido em Belém algum tempo, chegando a ser director do<br />
nosso extincto Conservatorio Carlos Gomes, sentindo-se doente, embarcou<br />
para a sua linda Italia, lá fallecendo.<br />
No desempenho, que esteve magistral, as honras da noite couberam<br />
á senhora Savio que foi uma Cecy adoravel; sr. Giraud, um Pery <strong>com</strong><br />
toda a flagrancia de "Selvaggio geloso" e, finalmente, ao sr. Mailini, que<br />
foi um Dom Antonio (pae de Cecy) muito amoroso.<br />
Os srs. Poito e Peroni também foram alvo de muitos e merecidos<br />
applausos.<br />
A l- a bailarina, senhora Galli, mereceu innumeros cumprimentos pelo<br />
cuidado <strong>com</strong> que preparou as danças dos Aymorés e que lhe valeu o<br />
excellente êxito que obteve.<br />
Foi, pois, um successo estupendo a "première" d' "O Guarany",<br />
no Pará.
Depois de dez annos da glorificação do Pontífice da musica americana<br />
no grande templo de arte e de fama mundial — o Theatro Scala, de<br />
Milão, o Pará travou conhecimento <strong>com</strong> a musica d' "O Guarany , que<br />
consideramos o nosso verdadeiro Hymno Nacional e que o gênio de Carlos<br />
Gomes produziu num diapasão em que se sente a vibratilidade dos<br />
habitantes da selva brasileira, em arroubos de melodias matizadas dum colorido,<br />
através do qual reflecte o amor pátrio transformado em orchestrações,<br />
cujo "laitmotif" tem o encanto do nosso céo e das nossas estrellas!<br />
R E M I N I S C Ê N C I A S<br />
A chegada de Carlos Gomes ao Pará, em 1882<br />
Os estudantes do Lyceu Paraense, precedidos de uma banda de<br />
musica e de muito povo, levantando vivas durante o itinerário, seguiram<br />
em direcção ao Café Chie.<br />
Carlos Gomes achava-se no Theatro da Paz dirigindo os ensaios<br />
do "Salvator Rosa", mas, sendo avisado, veiu recebel-os. Um dos estudantes<br />
offereceu-lhe, então, um artístico ramalhete de flores naturaes, e os<br />
srs. Paulino de Brito e Theodorico Magno recitaram, em honra do maestro,<br />
duas poesias que foram muito applaudidas.<br />
Carlos Gomes agradeceu em eloquentes palavras interrompidas a<br />
cada instante por vivas e applausos aquella manifestação tão espontanea,<br />
que lhe era ainda mais grata, disse elle, ao se lembrar que foi de outros<br />
estudantes, egualmente enthusiastas, que recebeu as primeiras animações e<br />
os primeiros applausos na sua carreira artística. Terminou erguendo vivas<br />
á mocidade estudiosa, ao futuro da patria, aos artistas brasileiros, á província<br />
do Pará e ao maestro Henrique Gurjão, sendo correspondido por<br />
outros, a Carlos Gomes, ao maior artista americano, á Província e aos<br />
estudantes de São Paulo.<br />
Do Café Chie a<strong>com</strong>panharam-n'o até ao theatro, donde regressou<br />
a passeata, percorrendo varias ruas, sendo sempre victoriado o nome<br />
excelso de Carlos Gomes.
iilillÍLU i ifflJ&XZt1<br />
Placa <strong>com</strong>memorativa do 1.° Centenario de Carlos Gomes, offerecida pelo<br />
Centro de Sciencias, Letras e Artes de Campinas, ao Estado do Pará.
Monumento á Carlos Gomes em Curytiba<br />
Vendo-se a Commissào promotora
Ha sessenta annos nesta data, em que fazia anniversario Pedro II,<br />
era eantada pela primeira vez no Brasil a opera<br />
"0 Guarany", do genial Carlos Gomes<br />
Ulysses Nobre<br />
î® °lvemos hoje a tratar da impressionante personalidade artistica de<br />
' Carlos Gomes, <strong>com</strong> o mesmo affecto e admiração que agora, <strong>com</strong>o<br />
dantes, constitue para nós um culto, uma religião a sua imperecível memoria.<br />
Carlos Gomes fôra um abençoado de Deus, cuja trajectória artistica na<br />
vida planetária, brilhara inconfundivelmente, deixando em seu rasto a dolência<br />
da sua inspiração adornada pela pureza do estylo que o sagrou Titão da musica<br />
do Brasil, quiçá na America do Sul.<br />
Em seguida ao primeiro triumpho obtido pelo immortal maestro no grande<br />
Theatro Scala, de Milão, <strong>com</strong> «O Guarany», Carlos Gomes partiu para o Brasil<br />
a mitigar saudades da patria, da família e dos amigos. Teve uma recepção<br />
triumphal 110 Rio de Janeiro onde chegou a 8 de agosto de 1870.<br />
Carlos Gomes desde esse dia era alvo de innumeras manifestações. Nas<br />
vitrines das principaes casas de musica, occupava logar de honra o «spartito»<br />
d' < O Guarany». Tal evidencia era motivo de alto orgulho para aquelle em<br />
cujo sentimento era sincero 110 culto da arte e de um nome que brilhava 11a<br />
historia da musica nacional.<br />
Por fortuna sua Carlos Gomes poude tornar conhecida da platéa carioca<br />
daquelle tempo o seu formidável trabalho — « O Guarany », porquanto dias depois<br />
da sua chegada aportava 110 Rio, uma <strong>com</strong>panhia lyrica procedente de<br />
Buenos Aires, na qual figuravam optimos artistas.<br />
A presença de Carlos Gomes alli, animou o emprezario da mesma <strong>com</strong>panhia<br />
a propor a primeira representação d' « O Guarany», 110 Rio. O estudo<br />
do « spartito » absorveu o mez de outubro inteiro e parte de novembro. Finalmente<br />
a « première » teve logar a 2 de dezembro de 1870, data muito cara aos<br />
brasileiros, porque assignalava o nascimento do imperador D. Pedro II. Que<br />
linda solennidade foi aquella! Que noite de exhuberante exaltação de enthusiasmo<br />
palpitante, a emoção ardente dos primeiros accordes de uma opera, que<br />
dolirantemente penetrava 11a alma de um publico selecto <strong>com</strong> toda a inspiração<br />
melódica do gênio brasileiro, foi a 2 de dezembro!<br />
A representação realizou-se 110 vasto theatro « Provisorio », que surgiu<br />
110 então deserto Campo de Santanna, demolido em 1878, circumdado de silencio<br />
e pallida luz, mas resplendente, naquella noite, dum imponderável fluido de<br />
ansia e espectativa.<br />
A's oito horas a sala do theatro já estava repleta de espectadores. Os<br />
olhos dos intellectuaes, do publico inteiro tinham extranhos reflexos, a respiração<br />
parecia irregular, os corpos agitados nas poltronas, esperando debaixo de uma<br />
atrnosphera calida a sensação ineffavel que deviam sentir ao primeiro contacto<br />
<strong>com</strong> a melodia arrebatante da opera do glorioso <strong>com</strong>positor brasileiro.
Na tribuna imperial contigua ao palco, quatro pagens attendiam S. Majestade<br />
que devia assistir a representação.<br />
A primeira fila de cadeiras era occupada pelas principaes famílias da<br />
alta aristocracia que brilhavam de elegancia e sorriam de contentamento.<br />
O camarote imperial situado em frente ao palco, ricamente adornado,<br />
tendo nos anguloa dois enormes candelabros <strong>com</strong> velas accesas, era occupado<br />
pela <strong>com</strong>missào de concidadãos do illustre maestro, vinda propositadamente de<br />
Campinas, para assistir a apothéose e prestar homenagem ao seu conterrâneo,<br />
que em nome daquella cidade offereceu a Carlos Gomes uma joia de riquissimo<br />
valor : uma grande medalha <strong>com</strong> um brilhante solitário.<br />
Finalmente <strong>com</strong> o ultimo toque da sineta do palco a onda liumana^que<br />
enchia a platéa ficou silenciosa. Nesse momento surgiu uma figura austera, de<br />
barba exquisita empunhando a batuta ; chama á ordem a massa orchestral e inicia<br />
depois do Hymno Brasileiro, a execução da opera.<br />
Aquella personalidade séria e circumspecta, de voz rouca, olhos brilhantes,<br />
intelligente, brusco e quasi violento no reger de uma opera, mas fino e optimo<br />
interprete de qualquer "spartito" sob a sua direcçiio, era o maestro Angelo<br />
Ferrari, um artista de eleiçào, autor da opera «Una vendetta», representada<br />
pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1873, <strong>com</strong> extraordinário successo, mezes<br />
antes da sua morte.<br />
Todo o desempenho d' «O Guarany» correu afinadíssimo, recebendo francos<br />
applausos a soprano Gasc, o barytono Spalazzi, o tenor Lelmi e o baixo<br />
Ordinas. Findo o primeiro acto, Carlos Gomes foi chamado delirantemente ao<br />
proscênio e recebeu a primeira ovação.<br />
Das tribunas, galerias, platéa, era impressionante um golpe de vista : senhoras<br />
e cavalheiros em pé applaudiam e aclamavam o saudoso artista paulista<br />
que se fazia a<strong>com</strong>panhar em scena por todos os interpretes da sua opera.<br />
O imperador e a imperatriz sorridentes, o publico fascinado, a patria ernfim<br />
cheia de orgulho, podiam dizer : «No Brasil lia um maestro digno dos maestros<br />
do velho mundo!»<br />
No segundo acto o enthusiasmo se manifestou de uma maneira mais fulgurante,<br />
depois do publico ouvir a celebre «balata» — «C'era una volta un principe»,<br />
que a senhora Gasc cantou divinamente.<br />
O enthusiasmo crescia sempre e para corôar o ruidoso successo daquella<br />
noite inesquecivel, o imperador mandou chamar á sua augusta presença Carlos<br />
Gomes e collocou em seu peito a <strong>com</strong>menda da Ordem da Rosa. Ao terminar o<br />
espectáculo, percorreu as ruas da cidade grande massa popular erguendo vivas<br />
a Carlos Gomes.<br />
O cortejo rumou para o largo da Carioca. Ahi, da sacada de sua residencia,<br />
o autor d' « O Guarany » recebeu estrepitosa manifestação da enorme multidão.<br />
Cessados os applausos, um senhor do povo, <strong>com</strong> o coraçíio de artista pronunciou<br />
emocionante discurso, saudando o grande maestro que tanto tinha exaltado<br />
o Brasil <strong>com</strong> o seu talento e <strong>com</strong> o triumpho d' «O Guarany». Carlos Gomes,<br />
devéras emocionado, agradeceu aquella prova de carinho dos seus patrícios,<br />
erguendo vivas ao povo brasileiro.<br />
O cortejo se dissolveu sob a impressão de um momento sublime em que<br />
a arte de um genial patricio tinha invadido a alma de todo um povo.<br />
E assim foi a solenne e jamais esquecida apotheose que a cidade do Rio de<br />
Janeiro fez ao immortal cantor d' «O Guarany», na noite de 2 de dezembro de 1870.<br />
O nome de Carlos Gomes é hoje a maior gloria musical do Brasil.<br />
Exaltar essa gloria é um dever de todos os brasileiros.
: l i »Ai<br />
Q<br />
O<br />
a<br />
d<br />
O<br />
«<br />
ctf<br />
CÖ<br />
g<br />
00<br />
rt<br />
^<br />
o<br />
'Ö<br />
o<br />
ici<br />
rt<br />
M<br />
rf<br />
fS<br />
Pi<br />
I<br />
4ff
asileiros eminentes<br />
arlos tornes g Santos iumont<br />
Leopoldo Amaral<br />
uito justo e dignificante é, por certo, o movimento que se observa<br />
» entre nós, <strong>com</strong> a finalidade que tem sido rodeada de francas<br />
sympathias e applausos unanimes — a <strong>com</strong>memoração do centenário do excelso<br />
campineiro maestro Carlos Gomes.<br />
A imprensa, ha tempos, se vem occupando deste transcendente assumpto,<br />
procurando irradial-o tanto quanto possível <strong>com</strong> minúcias, afim de que a glorificação<br />
da memoria de Carlos Gomes corresponda á importancia moral que<br />
ella encerra.<br />
O assumpto, dentro mesmo de sua grandiosidade, é muito nosso, isto é,<br />
genuinamente campineiro, permittindo, portanto, <strong>com</strong> propriedade, que se mencionem<br />
aqui algumas notas sobre factos locaes, que se relacionam <strong>com</strong> as homenagens<br />
projectadas.<br />
Entre as manifestações em honra do saudoso maestro, realisadas em<br />
Campinas, em diversas épocas, destaca-se, certamente, o seu monumento-tumulo,<br />
sobre o qual se ergue, imponente, a sua estatua, e se ostenta também o vulto<br />
symbolico da cidade de Campinas, tudo em bronze. Este bell-> trabalho artístico<br />
foi executado por um distincto esculptor Rodolpo Bernardelli, grande amigo<br />
do maestro.<br />
Uma outra circunstancia, porem, existe na historia desse monumento,<br />
que é digna de ser aqui relembrada: — alem dos nomes desses dois eminentes<br />
artistas patrícios, um outro também notável — verdadeira gloria nacional — se<br />
acha ligado á historia desse testemunho da estima e admiração á memoria do<br />
maestro: referimo-nos a Santos Dumont. Foi elle quem, no dia 18 de Setembro<br />
de 1903, perante enorme assistência, entre acclamações enthusiastieas, collocou<br />
a pedra fundamental do monumento, depositando alli uma urna que encerrava<br />
a acta da cerimonia, jornaes, moedas, etc.<br />
A propósito do memorável acontecimento, escrevemos, então, as seguintes<br />
linhas, cuja reproducção vem de molde nestas reminiscências:<br />
"Ao ser deposta a urna por Santos Dumont, houve uma delirante explosão<br />
de palmas do seio da assistência, que era enorme e uma das bandas de<br />
musica encheu o ambiente <strong>com</strong> as harmonias da magestosa protophonia do<br />
" Guarany Nesse momento Cesar Bierrenbach, orador da <strong>com</strong>inissuo executiva,
j<br />
fez ouvir a sua palavra elegante, no meio de indescriptivel enthusiasmo popular,<br />
dizendo, entre os arroubos de sua imaginação ardorosa, o seguinte :<br />
"Unamonos todos, sem distincçâo de crenças ou de grupos, em torno<br />
da sympathica figura do joven predestinado que, <strong>com</strong> suas mãos sagradas pela<br />
gloria, collocou a pedra fundamental desse monumento, que, mais uma vez, exprimirá<br />
a gratidão da Patria.<br />
O rei dos ares, baixando até a terra natal do gênio immortal do "Guarany<br />
vem tocar ao ciiüo santificado pelo dever dos campineiros para o altar<br />
perpetuo do seu semi deus da Harmonia. Presente na terra paulista quando<br />
Campinas ergue essa ara bendicta, nao poderia o gênio alado no Brasil, deixar<br />
de ser presente neste acto em que <strong>com</strong>eça a elevaçào da effigie de Carlos Gomes,<br />
para ficar eutre o azul, que é o dominio daquelle, e a terra que foi o berço<br />
e vae ser a tumba deste.<br />
No limiar da crypta de Carlos Gomes, a dextra que domina os ares,<br />
subiu sobre todos os povos, erguerá o nome do Brasil e a bençam da Patria,<br />
mostrando na cadeia de seus grandes homens a successáo dos espíritos que<br />
sabem engrandecel-o.<br />
De sua immortalidade augusta, o cantor dessa magestosa terra oscula,<br />
de certo, a mão glorificada que lhe vae dar, emfim, um leito de paz perpetua,<br />
entre as acclamações da Harmonia de seus conterrâneos.<br />
Bemdicto instante!"<br />
Janellas e sacadas de todos os prédios visinhos estavam repletas de senhoras<br />
; sobre degraus, sobre bancos, procurando cada qual melhor observar a<br />
cerimonia em que se entrelaçavam os nomes de dois grandes brasileiros — Santos<br />
Dumont e Carlos Gomes.<br />
* * *<br />
O corpo do maestro, que estivera depositado desde outubro de 1890, no<br />
jasigo Ferreira Penteado, no cemiterio municipal, foi trasladado para a crypta<br />
do monumento a 29 de junho de 1904, acto que se revestiu de máximo respeito,<br />
<strong>com</strong> a presença de autoridades locaes, <strong>com</strong>missào executiva, bandas de musica<br />
e enorme multidüo.<br />
Dessa cerimonia solenne, foi lavrada uma acta por quem, tantos annos<br />
passados, vem hoje relembrar, nestas linhas, taes occorrencias quasi esquecidas,<br />
que entretanto, honram as paginas da historia de Campinas. Aquelle documento,<br />
devidamente assignado, ficou junto ao ataúde do laureado <strong>com</strong>positor.<br />
Nunca é demais avivar-se a memoria publica, <strong>com</strong> algumas recordações<br />
de acontecimentos dignificantes <strong>com</strong>o esses.<br />
Campinas, Maio 1936.
4 atita dt Citta 4m\p ao jí»{pqtttlot{<br />
Senhor:<br />
oi-me <strong>com</strong>municado ter sido eu designado para ir d Italia <strong>com</strong>pletar os meus<br />
estudos na <strong>com</strong>posição musical, de conformidade <strong>com</strong> o § 7,° Art°. 2.° do contracto<br />
entre a empreza da Opera Nacional e o Governo de V. M. Imperial.<br />
Julgaria faltar á mais sagrada das obrigações, se não viesse testemunhar perante<br />
V. Al. Imperial o meu profundo reconhecimento por ter sido eu o designado para aproveitar<br />
o benefico pensamento do Governo, consignado no referido contracto. Cumprindo<br />
<strong>com</strong> este grato dever, venho respeitosamente impetrar de V. M. Imperial mais uma graça<br />
da Vossa Imperial Munificência, para a qual jamais se appella em vão.<br />
Razões de economia e de mudança de clima aconselham que eu embarque no proximo<br />
paquete francês, para que eu possa em fins de Dezembro proximo futuro achar-me<br />
no meu destino.<br />
Comquanto o Director do Conservatorio tenha já providenciado para, de accordo<br />
<strong>com</strong> o Inspector dos theatros e por meio de uma casa bancaria, receber na Europa a<br />
mensalidade de 150è000 rs., em trimestres adiantados. Comtudo não ha nada providenciado<br />
a respeito dos meios pecuniários indispensáveis para a passagem de mar e a viagem<br />
por terra desde Bordéos, logar do desembarque, até Milão na Italia, logar em que<br />
devo <strong>com</strong>pletar os meus estudos; por isso preciso, pelo menos, a quantia de 800$0G0 rs.<br />
para este fim.<br />
Se eu possuísse esta somrna, de certo, Imperial Senhor, não importunaria o Governo<br />
de V. Al. para que providenciasse a este respeito, mas estou desempregado desde<br />
que José Amat terminou o seu contracto <strong>com</strong> o Governo de V. M. Imperial, ha mais de<br />
um anno, e neste tempo tenho contra/lido dividas para occorrer ás mais indispensáveis<br />
despezas.<br />
O produeto do meu beneficio apenas chega para pagar essas dividas: considero<br />
um dever de honra, ao separar-me temporariamente de minha querida patria, satisfazer<br />
os meus credores, que tiveram a bondade de confiar em mim. Cumprindo, pois, este dever,<br />
não me resta outro recurso mais qne a munificência de V. M. Imperial.<br />
Ha um meio, para se me facilitar aquella somma de 800$000 rs., e é autorizar<br />
o Inspector dos theatros a me fazer desta quantia das mensalidades que devem ficar em<br />
seu poder, quando receber as seis loterias que foram designadas para pagamento dos artistas.<br />
Segundo o que foi <strong>com</strong>binado entre o Director do Conservatorio e o mesmo Inspe-
ctor, este deve deduzir da importancia daquellas loterias a quantia de um conto e oitocentos<br />
mil réis, correspondentes ás doze mensalidades do alumno, quantia que a empreza<br />
deveria ter depositada, conforme o seu contracto.<br />
Nenhuma falta pode fazer essa quantia de oitocentos mil réis para os futuros pagamentos<br />
do alumno, visto que além do conto de réis que ainda ficará em deposito para<br />
esse fim, tem mais as dez mensalidades que a empreza deve entregar no anno proximo<br />
futuro, alem da quantia de cinco contos quinhentos e cincoenta mil reis, importancia de<br />
meia loteria que se acha depositada no Thesouro <strong>com</strong> destino especial para attender ás<br />
despezas do referido alumno, depois de terminado o contracto <strong>com</strong> a actual empreza da<br />
Opera Nacional.<br />
Assim pois, Imperial Senhor, que se acham depositados no<br />
Thesouro; 5:550$000<br />
O que deve ficar agora em poder do Juiz Inspector dos theatros; 1:800$000<br />
As dez mensalidades que a empreza deve pagar no anno<br />
proximo f,; 1:500$000<br />
Prefazem a somma de 8:850$000<br />
O que o alumno pôde despender nos quatro atuios que deve<br />
estar na Europa, eleva-se á quantia de 7:200$000<br />
Restam, pois, Rs. 1:650$000<br />
Fazendo-se a entrega da quantia de » 800$000<br />
Fica ainda um saldo de Rs. 850$000<br />
Portanto, Imperial Senhor, supplico respeitosamente a V. Al. Imperial se digne<br />
ordenar ao referido inspector para que, da quantia de um conto e oitocentos mil réis, que<br />
deve ficar em seu poder, pelas razões expendidas, seja entregue a somma de oitocentos<br />
mil réis ao supplicante para as despezas de sua viagem até o logar de seu destino, outrosim,<br />
que, no caso que se demore ainda alguns dias o desconto das mencionadas loterias,<br />
que deve ser feito para pagamento dos artistas, seja autorizado o referido Juiz dos theatros<br />
a me pagar adiantada essa quantia, a qual será paga logo que se fizer o referido<br />
desconto,<br />
Rio de Janeiro, 25 de Outubro de 1863.<br />
(a) A. Carlos Gomes
c/><br />
C><br />
tZ<br />
C3-.<br />
O<br />
cò<br />
o<br />
t—<br />
"cc<br />
<br />
P 1<br />
o<br />
<br />
Cl<br />
£<br />
.bp<br />
"c<br />
03<br />
CÖ<br />
La><br />
"O<br />
<br />
cz<br />
o<br />
GO<br />
<<br />
o<br />
Q-<br />
O<br />
O<br />
ar
Copia do decreto concedendo uma pensão, na Italia,<br />
ao alumno Antonio Carlos Gomes<br />
^®k nstrucções es P eciaes concernentes ao alumno do Conservatorio de Musica, Antonio<br />
Carlos Gomes, que vai á Italia por quatro annos, <strong>com</strong>o pensionista, ás expensas do<br />
subsidio da Opera Nacional, aperfeiçoar-se no estudo da Musica e do contraponto.<br />
Art.° 1.° — O alumno Antonio Carlos Gomes vai <strong>com</strong> subsidio annual de um conto<br />
e oitocentos mil réis, pagos em trimestres adeantados, os quaes <strong>com</strong>eçarão a contar-se do<br />
dia que foi approvada a sua nomeação. Estes trimestres serão pagos pela Casa Commercial<br />
que for indicada em presença do attestado de frequencia do Conservatorio onde estiver matriculado,<br />
<strong>com</strong> o visto de qualquer Agente Consular Brasileiro.<br />
Art.° 2.° — O alumno, logo que chegar ao lugar do seu destino, apresentar-se-ha<br />
ao Ministro ou outra autoridade brasileira próxima á cidade onde for residir, para que lhe<br />
facilite e proporcione os meios de ser admittido no Conservatorio de Musica d'aquella Capital,<br />
no qual se deverá inscrever no menor prazo possível.<br />
Art,° 3.° — Frequentará o dito Conservatorio <strong>com</strong> a maior assiduidade e zêlo, não<br />
podendo em caso algum receber a sua pensão sem apresentar á Legação um attestado de<br />
frequencia passado pelo Professor ou Empregado <strong>com</strong>petente do mesmo Estabelecimento.<br />
Empregará além disto todos os seus esforços, solicitando os bons officios da Legação ou<br />
outra Autoridade Brasileira se forem necessários, para, sem prejuízo do seu estudo regular<br />
assistir aos concertos e reuniões em que se executarem musicas classicas.<br />
Art.° 4.° — Deverá remetter de seis em seis mezes, ao mais tardar, ao Director<br />
do Conservatorio de Musica do Rio de Janeiro, por intermedio da Legação Brasileira, as<br />
lições ou exercícios que tiver feito em cada um desses prazos.<br />
Art.° 5.° — Deverá outrosim remetter no fim de cada anno escolar uma certidão<br />
passada por cada um dos seus respectivos professores, da qual conste o seu aproveitamento<br />
e progresso.<br />
Art.° 6.° — Deverá também, logo que tiver <strong>com</strong>posto alguma obra, que mereça a<br />
approvação do Conservatorio em que estiver estudando, ou de algum Professor de nomeada<br />
envial-a ao Director do Conservatorio de Musica do Rio de Janeiro.<br />
Art.° 7.° — Tanto o attestado exigido pelo Art°. 5.°, <strong>com</strong>o a obra de que trata o<br />
Art. 6.°, serão authenticados pelo Ministro Brasileiro ou outra Autoridade próxima.<br />
Art.° 8.° — Os trabalhos de que faz menção o Art. 0 6.°, são essenciaes para o<br />
Governo resolver se convém que o pensionista vá para outros Paizes, afim de continuar a<br />
aperfeiçoar a sua instrucção musical, e estudar os methodos práticos de ensino de outros<br />
Conservatorios que mereçam conceito.<br />
Art. 0 9.° — A' deliberação do Governo precederá requisição do Director do Conservatorio<br />
de Musica do Rio de Janeiro, ouvida a Junta dos Professores.<br />
Art 0 10.° — O pensionista não poderá dar publicidade a nem uma <strong>com</strong>posição<br />
que fizer, por pequena que seja, sem sujeital-a á revisão de seu Mestre, e sem a approvação<br />
deste.<br />
Art. 0 11.° — Deverá colligír, e remetter ao Conservatorio do Rio de Janeiro cópias<br />
dos Regulamentos e Methodos adoptados no Conservatorio da Cidade onde residir e<br />
nos outros que frequentar, e bem assim informar sobre quaesquer obras classicas que possam<br />
interessar ao estudo e progresso da musica no Brasil.<br />
Art. 0 12.° — Si no fim de dois annos não tiver enviado alguma <strong>com</strong>posição que<br />
mostre o seu aproveitamento, será retirado para o Brasil, e perderá a pensão. O mesmo<br />
lhe acontecerá, si por falta de applicação, ou por seu máo procedimento for excluído do<br />
Conservatorio em que estudar, si for executado por dividas ou prazo por ellas; si for convencido<br />
de ter apresentado attestados falsos, ou enganado a Legação ou ao Director do<br />
Conservatorio de Musica; e finalmente se tiver um procedimento contrario á moral e aos<br />
bons costumes, depois de advertido duas vezes pelo Ministro do Brasil. Rio de Janeiro, 26<br />
de Novembro de 1863. — Francisco Manuel da Silva, Director do Conservatorio de Musica.<br />
Confere<br />
(a) Fausto Augusto d Aguiar
Carta do Marquez de Olinda ao director do Conservatorio de<br />
Musica do Rio de Janeiro, <strong>com</strong> relação ao alumno<br />
Antonio Carlos Gomes, em 24 de Outubro de 1863<br />
— -m ——<br />
4. A SECÇÃO. RIO DE JANEIRO - MINISTÉRIO DOS NEGOCIOS DO IMPÉRIO.<br />
Governo Imperial fica inteirado de que o alumno Antonio Car-<br />
|0S Gomes foi designado por V.Mcê. para ir á Europa aperfeiçoar-se<br />
na arte de <strong>com</strong>posição musical, em cumprimento da disposição<br />
do Art.° 2.° § 7.° do contracto celebrado pelo mesmo Governo em o<br />
1." de Setembro do anno passado <strong>com</strong> o Dr. Antonio José de Araujo,<br />
e Joaquim Norberto de Souza e Silva, para sustentação da opera lyrica<br />
Nacional.<br />
Ao Inspector dos theatros subvencionados determinam, conforme<br />
V.Mcê. pede, que do producto das loterias que deve receber, reserve a<br />
quantia de 1:800$000, correspondente ao 1.° anno do referido contracto,<br />
segundo o que se fez no tempo do contracto assignado <strong>com</strong> José Augusto<br />
a qual deve ser depositada n'uma casa bancaria que se incumba<br />
de remetter para a Europa ao alumno, por trimestres adiantados, a razão<br />
de 150S000 rs. mensaes.<br />
Fazendo-lhe esta <strong>com</strong>municação, autoriso a V.Mcê. a dar ao referido<br />
alumno as instrucções que lhe parecerem convenientes para o bom<br />
desempenho de sua missão, e enviará cópia delias a este Ministério: e<br />
bem assim o autorizo a designar o Conservatorio de Musica em que<br />
elle deve <strong>com</strong>pletar os seus estudos; fazendo-lhe V.Mcê. sentir que o auxilio<br />
que se lhe presta não excederá o tempo do contracto acima declarado.<br />
Deus guarde V.Mcê.<br />
(a) Marquez de Olinda.<br />
p. Director do Conservatorio de Musica.
Capta do (Darquez de Olinda ao Direetor do Conservatorio de<br />
ÍDusiea do Rio de Janeiro, eom relação ao alumno<br />
Antonio Garlos Gomes, em 11 de Dezembro de 1863.<br />
~ ir=<br />
4.' SECÇÃO. RIO DE JANEIRO - MINISTÉRIO DOS NEOOCIOS DO IMPÉRIO.<br />
sido approvadas, <strong>com</strong> algumas modificações, as instrucções<br />
dadas por V.Mcê. em 26 do mez proximo passado ao alum-<br />
no desse Conservatorio, Antonio Carlos Gomes, que vai á Italia aper-<br />
feiçoar-se na arte de <strong>com</strong>posição musical; assim lh'o <strong>com</strong>munico para<br />
a sua intelligencia, declarando que ao referido alumno, e ao Ministro do<br />
Brasil em Turim se remetterão em 7 do corrente, cópias das mesmas<br />
instrucções, das quaes envio também uma cópia a V.Mcê. para que pos-<br />
sa ter conhecimento das ditas modificações, que consistem: 1.° na sup-<br />
pressão dos artigos 10.° e 11.°, porque não é conveniente que o Gover-<br />
no se <strong>com</strong>prometia desde já a fazer as concessões de que ellas fazem<br />
mensão, as quaes, ao passo que podem encontrar embaraço para sua<br />
realização, serão sem prejuízos resolvidas na occasião que houverem de<br />
ter logar á vista do que V.Mcê. representar; 2-° na alteração da redac-<br />
ção do ultimo artigo, que está concluído em termos genericos, para que<br />
somente <strong>com</strong>prehenda o alumno de que se trata.<br />
Deus guarde a V.Mcê.<br />
(a) Marquez de Olinda.<br />
Sr. Director do Conservatorio de Musica.
m ® S®1§<br />
Dr. Amphilophio Mello<br />
(Vice-presidente do "Centro de<br />
Sciencias. Letras e Artes". :-: :-:<br />
^ ^T ive o prazer de tomar algumas providencias no sentido de interessar<br />
li» o "Centro de Sciencias, Letras e Artes" no movimento da <strong>com</strong>memoração<br />
centenaria do nascimento do grande e immortal campineiro,<br />
cujo nome encima estas linhas.<br />
Estamos acostumados a discutir politica; invadir a vida privada de<br />
nossos semelhantes; fazer criticas improcedentes e servir, sempre, á nossa<br />
vaidade, deixando, em segundo plano, as bôas iniciativas, as necessarias<br />
consagrações.<br />
Vivemos, pois, de futilidades, de aggressões e de actos inúteis na<br />
maioria das vezes.<br />
Mas é preciso convir em que ha causas santas a defender; interesses<br />
colletivos a cuidar.<br />
Commetnorar o Centenario do Nascimento de Carlos Gomes é um<br />
dever de todos nós, do Brasil inteiro porque elle não foi tão somente<br />
gloria regional mas sim do continente a que deu, profusamente, seu itiexcedivel<br />
talento musical,<br />
Vindo de origem humilde, o notável maestro soube subir.<br />
Subiu não por ter nascido em berço de ouro mas subiu pelo mérito,<br />
pelo valor proprio, por si, o que não é muito <strong>com</strong>mum.<br />
E achou, no magnanimo Imperador Dom Pedro Segundo, amparo<br />
bastante para galgar as alturas a que tinha direito pela sua raríssima mentalidade<br />
musical.<br />
Carlos Gomes é, sem favor, um nobre vulto de nossa historia de<br />
homens valorosos.<br />
Dahi a necessidade de prestarmos á sua sagrada memoria homenagem<br />
de profunda estima e sincera sympathia.<br />
Estamos certos de que todos os elementos sociaes desta bella e<br />
grandiosa cidade dispensarão a Carlos Gomes, preito de admiração a que<br />
fez jús em vida.<br />
Campinas — 1936
O "Guarany", voz da terra brasileira<br />
ih<br />
Octávio Netto<br />
"Guarany', — sabemos todos, — não foi a primeira, e não é,<br />
sob o ponto de vista technico, a maior das obras do grande <strong>com</strong>posi-<br />
tor campineiro. O proprio mestre, entre todas ellas, elegêra para sua predilecta<br />
a "Fosca", que é a manifestação flagrante da autoridade que elle ganhára<br />
após haver penetrado a subtil contextura da escola italiana, que era toda<br />
melodia, e experimentado a influencia da vigorosa objectividade da forma<br />
wagneriana, que repousa na polyphonia orchestral.<br />
A "Fosca" é a revelação do mestre. O "Guarany" é um hymno<br />
em que canta a voz do Brasil; é um grito de saudade da alma moça e<br />
ardente que, lá na suave e poética Italia, permanece brasileira e impetuo-<br />
sa ; é <strong>com</strong>o que um pouco do Brasil ainda bravio e indomito, a palpitar<br />
sob o céu macio da terra Itálica. Essa partitura que empolga pela riqueza<br />
do colorido sonoro, não podia deixar de ser <strong>com</strong>o a própria natureza que<br />
a inspirou, estuante de vigor juvenil e de grandeza selvagem. Si, na opi-<br />
nião de críticos abalisados, falta-lhe por vezes perfeição technica, — coisa<br />
que só uma longa experiencia pôde dar, mesmo aos grandes talentos, —<br />
sobeja-lhe aquillo que constitue a qualidade a mais preciosa numa grande<br />
concepção artística: a sinceridade <strong>com</strong> que ella é concebida e realizada.<br />
O "Guarany", quando não tivesse outros predicados que lhe va-<br />
lessem a consagração de uma obra de grande envergadura, — e elle os<br />
tem de sobra, — teria, para tanto, a sua admiravel fidelidade descriptiva<br />
e o seu cunho genuinamente brasileiro. O que Carlos Gomes plasmou<br />
nessa opera que representa o seu primeiro trabalho de pulso para o thea-<br />
tro lyrico, foi a própria terra brasileira em toda a sua pujança, vivendo<br />
dentro da sua natureza tão cheia de luz, de poesia e de alegria selvagem.<br />
Ha, no "Guarany \ o romantismo de José de Alencar e a poesia<br />
de Gonçalves Dias. Esses foram, certamente, para Carlos Gomes, duas fon-
tes generosas de inspiração. 0 nosso grande conterrâneo, <strong>com</strong> peregrino<br />
senso artístico, reunio nessa obra a serenidade romantica do escriptor e o<br />
ardor nativo do poeta, para cantar, <strong>com</strong>o elles cantaram, a bellcza lumino-<br />
sa, robusta e indómita da natureza brasílica dentro a qual resoa, <strong>com</strong>o um<br />
hosanna da terra promissora ao porvir em que ella resplandecerá num ful-<br />
gor de alvorada esplendorosa, a voz do Brasil.<br />
Nessa partitura tão opulenta de poesia descriptiva e tão fiel, na sua<br />
feição regional, ao quadro maravilhoso que a inspirou, estão enfeixadas as<br />
primeiras paginas da historia do drama lyrico em terras do Novo-Mundo;<br />
nella se reflete, <strong>com</strong> toda a sua vibratilidade emotiva, <strong>com</strong> toda a sua<br />
candencia nativa, a grande alma sonhadora, generosa e brasileira de Carlos<br />
Gomes.<br />
Esse, — quando, outros ella não tivesse, — seria, de per si, o seu<br />
mérito. Uma grande concepção artística vive pela personalidade peregrina<br />
do gênio que a realizou e que ella revela nos mínimos detalhes da sua<br />
imponente estructura. E o "Guarany", innegavelmente é a revelação de<br />
um gênio. E' a pedra fundamental do theatro lyrico brasileiro.<br />
Não esqueçamos jamais, nós, brasileiros, que o grande Verdi, na<br />
sua velhice gloriosa, teve, para exprimir o seu conceito sobre o grande<br />
conterrâneo, esta phrase tão bella na sua sinceridade :<br />
— Este rapaz <strong>com</strong>eça por onde eu terminei.<br />
Estas palavras significam a maior consagração de Carlos Gomes<br />
<strong>com</strong>o grande artista ; é a sua auréola de gloria!<br />
O "Guarany" é a voz da terra "graciosa" e forte que canta<br />
dentro da sua natureza esplendorosa. Tudo, nessa pagina immortal da<br />
nossa arte, é força, vida e amor. E' a alma de Carlos Gomes. E' o<br />
Brasil.
Monumento do Carlos Gomes, ornamentado no dia das festividades que se realizaram<br />
em Campinas em 11 de julho 1936, 1.« Centenario do immortal maestro.
GAKiOS GOMES<br />
Ibrnntina Cardona<br />
(Da Academia Fluminense de Letras)<br />
A natureza, a mãe enorme, gigantesca,<br />
De quem, tu, arrojada inspiração dantesca,<br />
Pelo teu (Juuravy fecundo de harmonia,<br />
Na força musical, reproduziste um dia,<br />
O vigor da floresta indígena; a linguagem,<br />
A vida, a raiva do amor e a dança do selvagem ;<br />
Das aves o gorgeio, o rugido das féras,<br />
O écho dos trovões e a calma das espheras;<br />
A injusta Natureza, a quem, por toda a parte,<br />
Na epopéa sublime e immácula da Arte,<br />
Tu tornaste immortal; <strong>com</strong> seu pulso assassino,<br />
Aniquillou-te agora o cerebro divino!<br />
E tu tombaste, oh! Águia audaz e torturada!<br />
N'uma explosão de luz, tombaste ao Grande Nada!<br />
Tombaste, sim ! mas vendo a immensa cordilheira<br />
Da America gigante; ouvindo a derradeira<br />
Harmonia da selva, esmorecendo aos poucos,<br />
Nas fibras da tu'alma; ouvindo os échos roucos<br />
Das cascatas caudaes do soberbo Amazonas,<br />
Imflammado do Sol tropical destas zonas!<br />
Sol que, jorrando luz dos pincaros dos Andes,<br />
Alaga a tua Patria em radiações tào grandes<br />
Como essas vibrações de notas primorosas,<br />
Da tu'alma de Artista, echoando gloriosas<br />
Pelo Universo inteiro!<br />
Oh ! grande Brasileiro !<br />
Typo des<strong>com</strong>munal! Oh ! cabeça estupenda !<br />
Hade haver quem tu'alma extraordiuaria entenda;<br />
Quem na sua a recolha, ouvindo-a a todo instante;<br />
Quem a sinta, através dos sec'los, palpitante,<br />
Emquanto do Progresso hastear-se o baluarte,<br />
E no Brasil houver um culto pela Arte!<br />
Na musica, a pular, hasde viver, oh! Artista,<br />
No grande coração da mocidade altruísta !<br />
Viverá, sim! Aquelle em quem, no Velho Mundo,<br />
Tantas vezes gritou, desmedido e profundo,<br />
O nosso pátrio orgulho, ao vêl-o festejado,<br />
E pela culta gente ouvido e proclamado!
Sim! Esse mesmo em quem todo o Brasil radiante<br />
De louros viu cingida a fronte de gigante!...<br />
Viverá, <strong>com</strong>o vive o Génio nos que ouvem<br />
Harmonias de Listz, de Wagner, de Beethoven,<br />
De Chopin e Mozart, de Verdi e Paganini!<br />
Sim, elle viverá, <strong>com</strong>o vive Bellini,<br />
E <strong>com</strong>o vive o Herz e Gottschalk — o bravo!<br />
Nào! nào morreste, oh! Artista, autor da Fosca e Escravo<br />
* * *<br />
Levanta-te, Caboclo! Agora é que te accordas<br />
No grande Pantheon, para ajuntar-te ás hordas<br />
Dos vultos immortaes! A' tua trajectória<br />
Levanta-te, que agora é que te accorda a gloria!<br />
E assim <strong>com</strong>o Noé, outr'ora sobre o Oceano,<br />
Contemplava o diluvio, em sua immensa barca,<br />
Tu, erecto e de pé, no portico da Historia,<br />
Olharás, através dos sec'los, altaneiro,<br />
Passando a3 gerações...<br />
E se um dia o estrangeiro<br />
Te perguntar: Quem és ? Responderá, ufano,<br />
Por ti o teu Brasil:<br />
E' o grande Patriarcha<br />
Da Arte musical. — Carlos Gomes ! Primeiro<br />
Vulto de excepcional Artista americano!<br />
Setembro, 17, de 1896.
§<br />
Benedicto Octávio<br />
(Poesia publicada no 1.° n.° de "O<br />
Guarany" e na Revista do Centro).<br />
«Elie nào morre!» a multidão dizia.<br />
E o precito <strong>com</strong>sigo respondia:<br />
— «Ah! mas nunca vivi!»<br />
Dos plainos do Poente aos plainos do Levante,<br />
Ouviste erguer-se um dia, ó sombra lancinante !<br />
— Um coro triumphal !...<br />
E ouviram-n'o decerto as mais longínquas plagas,<br />
Dos ventos o passar, o marulhar das vagas,<br />
— Enorme, colossal !<br />
Castro Alves<br />
E breve, o fundo valle, as nuvens densumbrosas,<br />
O cerúleo dos ceus, as pétalas das rosas,<br />
O horisonte infinito e o sol a refulgir...<br />
E seguindo este hosanna além por mundo em fóra,<br />
Dir-se-ia despontar uma fulgente aurora<br />
No Oriente do porvir!<br />
Escutaram-n'o a matta e as verdejantes zonas,<br />
Dos Pampas o esplendor, as ondas do Amazonas<br />
Por entre mil festões floridos a rolar,<br />
E os passaros cantando á sombra das palmeiras<br />
E o tapuya que habita as selvas brazileiras<br />
Ostentando na fronte as plumas do cocar...<br />
E disse a Gloria alçando a voz nos horisontes,<br />
Os valles percorrendo e o pincaro dos montes,<br />
E os ceus cheios de paz e o mar cheio de horror :<br />
« Salvé, patria ditosa ! E' a sagração de um gênio<br />
« Que por ti foi vencer nas luctas do proscênio !<br />
« E' a aguia que o vôo eleva, impávido condor ! »<br />
* * *<br />
Tu, porém, murmuraste, ó sombra horrenda e crua,<br />
Em cujo peito fero a fera raiva estua,<br />
Disseste, ó vil phantasma ! alevantando a voz :<br />
« Sobe, sobe, condor ! O teu vôo descerra<br />
c E vae de mar em mar, e vae de terra em terra !<br />
« Mas eu te cortarei o vôo altivo após ! »
E o tempo foi correndo: as éras após èras,<br />
Os invernos seguindo após as primaveras,<br />
A noite após a noite, os sóes após os sóes!<br />
E o condor se alteiava, o grande dentre os grandes,<br />
Ultrapassando o cimo olympico dos Andes,<br />
Conquistando os lauréis vcnustos dos heróes!<br />
Apresentava o Génio em melodia rara,<br />
O affecto de Cecília, a dor cruel de Ilára,<br />
Da Tudor a paixão, de Condor o revés;<br />
Da floresta o ciciar que vae de riba em riba,<br />
E o doce murmurar do calmo Parahyba,<br />
E o horrisono rugir dos fortes Aymorés;<br />
De Salvator o esforço e, do mar ao ribombo,<br />
A esperança a fulgir nos olhos de Colombo,<br />
Os medonhos parceis passando sem temor!<br />
E ao som da symphonia assim clamava a Gloria :<br />
« Génio! Tu viverás nas paginas da Historia,<br />
«O' aguia portentosa, impávido condor!»<br />
* * *<br />
E vinte annos depois, quando iam nossas almas<br />
Explodir a seus pés num turbilhão de palmas,<br />
Sonoras estrugir,<br />
Quizeste, ó sombra mesta, á bocca feia ura rictus<br />
Merencorio a enflorar os teus lábios madictos,<br />
Do passaro este vôo altivolo ferir!<br />
Ergueste a foice, oh! Deus! E do Génio o santelmo<br />
— Como aos golpes da maça esphacela-se um elmo.<br />
Desfez-se neste dia! E essa ave foi ao chão!<br />
Sorriste ao derribar o grande dentre os grandes,<br />
Cuja fronte altaneira ultrapassava os Andes,<br />
Cujo vôo sem par devassava a amplidão !<br />
Tripudiaste, julgando essa Victoria tua,<br />
O' morte formidanda, ó morte torpe e crua!<br />
Ceifadora eternal de fúnebre trophéo!<br />
— E o viste além soffrer, perante o azul celeste,<br />
Porque se a Fama é o céu que de astros se reveste,<br />
A Dor que segue o Génio é a nuvem deste céu !<br />
* * *<br />
Mas, não venceste, não! Que indo através das éras,<br />
Das estrellas, dos sóes, dos mares, das espheras,<br />
A Gloria brada sempre, em rutilo fulgor:<br />
«Salvé, ó pátria ditosa! Eterna entre altos nomes<br />
« E' a epopéa do Génio! »<br />
E é a tua, ó Carlos Gomes!<br />
— Aguia da minha terra, impávido condor!
s o o<br />
£ O<br />
et «<br />
H s<br />
o O<br />
ce a><br />
© »ö<br />
4»<br />
a o<br />
fl)<br />
£ 6<br />
a ®<br />
5 o<br />
0) 10<br />
w<br />
- /O<br />
0><br />
o<br />
»<br />
ce<br />
o<br />
S u<br />
? o<br />
o a<br />
ri o<br />
» °<br />
^ a<br />
a<br />
* o<br />
«
"(ãmkOfe o
A perfectibilidade correlativa desse todo, seres e cousas, manifesta-se<br />
sobremodo no collectivismo das grandes aspirações humanas: religião, politica<br />
e arte.<br />
A maior crença seria a que absorvesse a fé de tudo: <strong>com</strong>o luz,<br />
seiva, calor, vida, mórte. A politica maior a da fraternidade do mundo.<br />
Não o equilíbrio aristocrático das balanças de precisão, que accusam differenças<br />
minimas entre o ouro e o ferro, egualmente valorisados no seu<br />
mister, na sua profissão.<br />
E a arte maior a que alcançasse foros de universalismo.<br />
Tudo através de causas e cousas, condições geographicas e raciaes,<br />
impondo-se pela amplitude da sua força, a visão panoramica do seu fim :<br />
Os primeiros dois terrenos são energias militantes, o terceiro, energia<br />
triumphante. A arte já é um mundo que gravita por si, levando <strong>com</strong>o<br />
pharol da sua constellação os nomes dos artistas, que successivamente se<br />
apagam e accendem na rotação eterna do seu desenvolvimento, <strong>com</strong>o os<br />
luminosos letreiros das importantes capitaes.<br />
Nesse giro incessante surge o de Carlos Gomes, que escreveu o<br />
nome do Brasil <strong>com</strong> caracteres de estrellas entre os povos de cultura superior.<br />
Devemos chamal-o representante da musica brasileira, da musica<br />
americana ? Encraval-o egoisticamente á orbita do nosso patriotismo ? Não<br />
existem céos nem terras particulares aos povos nos domínios régios da arte.<br />
Ella é uma espiral traçada no infinito!<br />
Os génios, portanto, excluem-se ao academismo e regionalismo<br />
corriqueiros.<br />
O artista verdadeiro não é o virtuose das magnificiencias da sua<br />
terra, que o virtuosismo se circumscreve a planos geometricos, impedindo<br />
a elasticidade desse corpo que traz em si, <strong>com</strong>o nervos, as raizes mysteriosas<br />
do infinito.<br />
Os génios não têm patria e tendem ao universalismo.<br />
Estão perfeitamente identificados no todo a que aspiram as demais<br />
organizações humanas, <strong>com</strong>o plasma da sua indestructibilidade. Arte pequena,<br />
arte regional, é primavera <strong>com</strong> botões e flores, só promissora da<br />
arte grande, arte outomnal, <strong>com</strong> fructos sazonados e espigas de ouro. Não<br />
menosprezo o popular, que em arte para mim o máximo é o sentimento.<br />
Assim, o elemento grande não é o grego, o latino, o oriental, mas<br />
o verdadeiramente humano, isto é, visto <strong>com</strong>prehendido, e, sobretudo,<br />
sentido e vivido.<br />
Espíritos criadores <strong>com</strong>o Wagner, Beethoven, Schumann, Schubert,<br />
exploraram a inspiração popular <strong>com</strong>o minas de pedras preciosas, delia arrancando<br />
fagulhas mais incendiarias que as tochas dos deuses mythicos.
As deidades medievaes, recortadas na doçura de camafeus pallidos,<br />
sem a elegancia olympica das divindades gregas, o escrínio das lendas célticas,<br />
germanicas, nórdicas, fadas, ondinas, elfos, valkirias, <strong>com</strong> suas formas<br />
ethereas de ondas, azas, conchas, elmos, plumas, e romances de cavallaria,<br />
enriqueceram a historia dos povos.<br />
Mas na ascensão classica e racional dos valores artísticos, arte regional<br />
é a escada que nos alça ao throno da arte universal. Suppor arte<br />
e mesmo gênios sem evolução, sem gradação chromatica de progresso, é<br />
não ter senso critico-artistico. Nada surge constituído.<br />
Tudo é producto elaborativo de forças latentes, de crystallizações<br />
subterrâneas. O mesmo gênio que nos parece esporádico, <strong>com</strong>o <strong>com</strong>eta<br />
temporário, não é outra cousa que sedimentação paciente de raças, de indivíduos,<br />
cellulas que geraram outras. Refinamento da quantidade para a<br />
qualidade, através de processos biologicos, intellectuaes e moraes, embora<br />
a sciencia o estigmatize <strong>com</strong>o doente, o determine <strong>com</strong>o pyramide truncada,<br />
sem o ápice onde as faculdades se reúnem em agulha, mesmo sem a regularidade<br />
escholastica das parallelas.<br />
Pelo proprio dymnamismo cosmico o gênio repelle um sólo.<br />
E si o pisa tem a cabeça tão alta que divisa o mundo inteiro.<br />
Razão porque peço um nome maior para Carlos Gomes. E' grande, bella,<br />
rica, fórte a sua terra!<br />
O attributo de brasileiro não é um adjectivo fóssil, porem de nervos<br />
sadios, vitalizados. Mas satisfeito nosso regionalismo instinctivo, deixemol-o<br />
seguir a via lactea dos gênios. Elie falará de nós á terra inteira,<br />
semeando estrellas da sua altura, que o fim desses seres previlegiados está<br />
muito alem das nossas exigencias patrióticas, só justificadas pela honra de<br />
pertencermos a uma raça fórte e nobre.<br />
São egualmente nossos, nascidos sob céos brumosos ou transparentes,<br />
Shakespeare, Milton, Dante, Goethe, Racine, Platão e outros. Os artistas<br />
são homens ecleticos e cosmicos. Só os sentidos percebem difíerenlemente<br />
as cousas.<br />
A intelligencia vê tudo a uma só luz merediana: a da verdade.<br />
O gênio é criação, redempção, glorificação !<br />
Eguala tempos, idades, para chegar á sublime egualdade dos povos,<br />
alcançar o universal para todos, para cada um, dando-nos o direito de gozar<br />
num minuto as alegrias e as energias dos séculos.<br />
Talvez sem o sentir e quasi sem o saber, a doutrina nitcheana do<br />
mais fórte se me infiltrou nos tecidos.<br />
Mas ante a lei cio mais fórte, sou pela lei do maior, do melhor.
E a arte, muito menos que qualquer especulação humana, pôde<br />
ser <strong>com</strong>primida. O limite é característico da sciencia.<br />
A arte só tem horizontes.<br />
Pouco importa que por ella não cheguemos ás conclusões positivas<br />
da primeira. Além de seus objectivos formarem um hiato, em arte o homem<br />
só progride quando está evoluindo.<br />
A crystallização importa senão num rétrocesso, numa estabilidade<br />
modorrenta, cansada, de cellulas envelhecidas, que caem <strong>com</strong> mais tristeza<br />
das folhas amarellas no inverno. O embalsamento nem sempre é gloria.<br />
A renovação é sempre vida differente.<br />
Além de que, a arte influe mais poderosamente no destino das gentes.<br />
Está-se junto do canhão pela bandeira. Recebe-se uma ferida para<br />
se evitar uma chaga. A força material ergue-se nos tempos, cobre ruínas<br />
<strong>com</strong> a artimanha da hera, occultando fissuras e lacunas, fazendo dum muro<br />
de lamentação uma muralha chineza de repressão.<br />
A outra é um estigma do qual o sangue da tradição corre, sem<br />
nunca redimir, embora delia nasçam as obras imperecíveis dos póvos, em<br />
holocaustos purificadores aos dias de captiveiro. Senão, vede: o <strong>com</strong>mercio<br />
phenicio desappareceu ! As descobertas luzitanas limitaram-se! As<br />
conquistas cesarinas affrouxaram-se !<br />
Só os póvos que pratif içaram a arte ficaram intactos no seu corpo<br />
de civilização. As sociedades são molleculas que, cohesas, resistem á fragmentação<br />
de causas adversas.<br />
A arte ainda realiza esse milagre.<br />
E' o cultivo do sentimento. Sentindo, a gente ama.<br />
Amando, unifica-se. A integridade dum paiz mantem-se mais por ella<br />
que pelas armas, tanto que o vencedor impõe ao vencido sua civilização.<br />
Na lucta dos christãos <strong>com</strong> os mouros hespanhóes deu-se esse curioso<br />
facto psycho-artistico.<br />
Por muito tempo o povo rechaçado para os abrazadores areiaes<br />
africanos, conseguiu reviver-se na corte castelhana pelo byzantismo da sua<br />
arte, que impoz até á formosa Andaluzia, então a pérola da civilização<br />
europea. Tal explanação poderá parecer aos vossos olhos desvio de imaginação<br />
nervosa, occultando fraqueza cultural do assumpto.<br />
Não vesti, porem, ideias magras de saia balão, nem fiz <strong>com</strong>o illusionistas<br />
de palco que tiram de prosaicos guarda-chuvas quinquilharias deliciosas,<br />
interessantes bibelots, figuras que saltam das varetas dum leque,
para, num salão de ouro, dançar a gentileza dum minuetto. Apezar de<br />
as ideias mais lindas deste mundo serem as que não criam nada...<br />
a<br />
Átomos sem nome dansando na * poeira da luz...<br />
Onde só exista uma volúpia cerebral na doce inutilidade sonhar,<br />
que, si as crianças são embaladas paro o somno, nós, só enganados para<br />
a felicidade<br />
Aquilatando-se, porem, o valor da arte, melhor <strong>com</strong>prehender-se-á<br />
a sublimidade do Artista.<br />
E também porque vejo mais a obra que o auctor, e porque também<br />
o auctor para mim é a obra. A de Carlos Gomes importa não só<br />
na gloria da Patria, na conservação da raça, mas na riqueza feudal artística<br />
dos povos.<br />
Mais que o orgulho de o sabermos nosso, a grandeza de o sabermos<br />
universal. São elles, artistas, que criam os povos. E ser collocado<br />
<strong>com</strong>o eixo á roda brilhante das lidimas civilizações, é ter alcançado para a<br />
Patria o verdadeiro patriotismo, não só o das bandeiras, pondo marcos<br />
entre nós mesmos, mas o das cruzadas, collocando monumentos pelo mundo<br />
inteiro, <strong>com</strong>o os gregos que erigiam estatuas até nos proprios bosques.<br />
Sentir hosannas é mais que sentir alleluias!<br />
Carlos Gomes voou altíssimo para ser um dos condores de ouro<br />
que assistem a eternidade do sói, a eternidade da arte!<br />
Tinha o patriotismo dos génios, que abre os braços não para apertar<br />
montanhas, delimitar rios, mas para abraçar o infinito e todas as raças.<br />
Ser brasileiro no Brasil e americano na America, eram-lhe pouco, porque<br />
em si havia a intuição divinatória do fim a que devem chegar os povos<br />
<strong>com</strong> sua civilização.<br />
Fez o Brasil dentro do mundo! Semeador idealista, de idealismo<br />
que si não dá fructos para a machina, accende o <strong>com</strong>bustível das estrellas<br />
para as officinas de trabalho. Dos semeadores que não abrem covas para<br />
sementes, mas plantam sorrindo pétalas de estrellas que na terra se fizeram<br />
flores. A terra embriaga-se de perfume e dorme. Quando accorda exclama<br />
diversamente de Kant: a vida não é um dever, é uma belleza!<br />
A arvore cresce e canta! Cantando seus galhos florescem de amôr,<br />
e o corpo do tronco se lhe estrella de pomos que estalam de vida, deixando<br />
cahir sementes de ouro, grânulos de pedras preciosas.<br />
Carlos Gomes não plantou perfume, plantou som !<br />
E a terra, transpirando o calor perfumado da juventude, percorrida<br />
de ondas sonoras <strong>com</strong>o nervos de luz, sente a carne morena transfigurada:<br />
distende-se, entesa-se e vibra! E' a Symphonia do Guarany, a mais bella
onomatopéia musical de terras ameríndias! E' um côro esdrúxulo das vozes<br />
do sólo pátrio, arrepiadas de superstição ou tocadas de lenda. Musica descriptiva<br />
<strong>com</strong> notas de brilhante sobre pautas de ouro, subindo e descendo,<br />
<strong>com</strong>o fio dum collar magico, que desenhasse contornos luminosos, agrupando-se<br />
no pingente dos accordes, quaes brincos trêmulos de orvalho,<br />
pendurados na orelha verde das folhas.<br />
Musica pictaral, reflectindo nossa natureza etherogenea e ubertosa,<br />
em grandes quadros de pincel a fogo.<br />
Aquarellas deliciosas e suavíssimos cartões postaes, mostrando auroras<br />
meninas e nossos passaros cantores, tão lindos de pennas que nas arvores<br />
parecem flores de azas abertas, sussurantes, no cochicho amoroso dos chilreios<br />
que tecem os ninhos, na successão das notas puras e brancas que<br />
determinam a escalada dos grandes vôos.<br />
Musica que fala da raça nativa, ainda.<br />
Que tem o estrepito dos nossos maracás, o sibilo das flechas do<br />
nosso indio, que vigia, astucioso e vingativo, por detraz das moitas, vestido<br />
de papagaio ou de onça, o civilizado que viola o templo do barbaro.<br />
O indianismo de Alencar é de ficção, o que não desmerece sua<br />
obra. Carlos Gomes musicando o libreto do romance, dá-lhe a tônica<br />
maior da realidade.<br />
Arranca da terra accordes que foram suffocados e ao ar respiram<br />
pela bocca quente das notas, em haustos que estremecem !<br />
Saccode arvores mortas e ellas ressuscitam ! Desafoga rios, tirando-lhe<br />
as pedras, e eil-os estrugindo em cascatas, espumando de gozo e de alegria!<br />
Ressente-se-lhe o romantismo verdiano, quem sabe si pelo proprio<br />
romantismo da raça a que pertence, a lembrança da Patria que fica atravéz<br />
de mares, e só vista na miragem da saudade? Os sentimentos amorosos<br />
predominam no artista e determinam suas obras mais que os outros impulsos<br />
de ordem social.<br />
Salientou-se muito <strong>com</strong>o auctor lyrico, theatral, <strong>com</strong>pondo <strong>com</strong><br />
assombrosa fertilidade, apezar de na vida ser-lhe preciso prover necessidades<br />
materiaes <strong>com</strong> o valor do seu talento.<br />
E' sempre assim: os artistas plantam flores em torno das cruzes.<br />
Guarany e Lo Schiavo são as fontes directas da nossa historia musical,<br />
embora a musica deste ultimo possua o desenho lindo da musica italiana,<br />
disfarçando ás vezes a profundidade na forma poética, que ha muitos<br />
parece superficial. No Salvador Rosa e Fosca, concebeu originalmente a<br />
alma italiana, feita de posses e immaterializações, de querer e respeito,<br />
beijos e gestos de redempção.
Já <strong>com</strong>munga, ahi, fóra do altar da Patria.<br />
Foge ao noviciado para ser sacerdote. Sacerdote estheta, pois prefere<br />
á disciplina ascética do canto-chão, o côro polyphonico das vozes, cheias<br />
dos seus instinctos e sentimentos. Queima nos thuribulos, em vez do incenso<br />
bento, rosas colhidas no coração da primavera, e fala desencantando<br />
imagens, e reza, encantando criaturas.<br />
Nas demais obras, Maria Tudor, Condor, Colombo, demonstra o<br />
mesmo vigor de <strong>com</strong>posição.<br />
Sua linha melódica se curva <strong>com</strong> a belleza do arco-iris que emmoldura<br />
o céo, onde a chuva lava os desenhos velhos das nuvens de hontem<br />
e o sói pinta as cousas novas de hoje.<br />
E' de se lembrar, dentro do Guarany, o recitativo antecedente á<br />
bailada que canta a doce Cecy. Tem qualquer cousa da fala e do canto<br />
das florentinas da idade media : não se sabe quando Cecy recita e Cecy<br />
canta, tal é a fala da musica, tal a musica da fala.<br />
Cielo di Taraiba, de Lo Schiavo, a gente sente a luz que nasce<br />
pelos póros do ar, gradativamente colorindo a natureza, até chegar ao seu<br />
incêndio de ouro. Não ha quebra da melodia, inteiriça <strong>com</strong>o um véo de<br />
noivado...<br />
E é de Campinas, vosso irmão, o artista cujas glorias <strong>com</strong>eçaes a<br />
celebrar, em regozijo ao seu centenário.<br />
Nasceu no vosso berço, palmilhou vossas ruas, frequentou vossas<br />
escolas, viu vossas palmeiras crescerem e vossas andorinhas se amarem.<br />
Não o olhastes <strong>com</strong> vossos olhos, mas sabeis delle vivamente.<br />
Era um menino de bella cabelleira, onde os sonhos se emaranhavam, pupillas<br />
interrogadoras e vivas.<br />
Fugia, ás vezes, aos camaradas, para, á tenda duma sombra de arvore,<br />
no fundo do quintal, só, isolado, tocar um instrumento, cantar um<br />
verso, fazer um cacho de notas.<br />
Era o menino da banda de musica nos dias das vossas festas religiosas<br />
e patrióticas.<br />
Era só um menino que a gente em vez de chamar de extraordinário,<br />
chama de exquisito.<br />
Com os tempos essa criança recebe na pja da arte o nome de<br />
Carlos Gomes.<br />
Faz-se brazão de Campinas, do Brasil, augmenta ainda o patrimonio<br />
universal dos povos <strong>com</strong> sua arte.
Eu sinto que Campinas velha tem vontade de ressuscitar para vêr<br />
o filho glorificado ! As entranhas de vossa terra estremecem ! Ha inquietação<br />
de luz, de sons, de verde no vosso ambiente ! E essa inquietação não é<br />
de berços, mas de vidas que querem retornar! E vós, que dizeis de tudo<br />
isso? Que a<strong>com</strong>panhastes a rota luminosa do perpetuador das vossas tradições<br />
culturaes ? Vós que o sabeis aqui! Alli mesmo no seu monumento<br />
tumulo, que essa é a sepultura gloriosa dos artistas! Que o ouvis em<br />
musica e lhe falaes, cultivando-lhe a arte! Que o tendes presente <strong>com</strong>o o<br />
ar e a luz ! Que podeis desfructar <strong>com</strong>o próprias, diante do mundo inteiro,<br />
as glorias do vosso filho !<br />
Não lhe preparaes um centenário de ouro?<br />
Não vestis a Princeza do Oeste de suas galas reaes?<br />
Elie estará mais aqui nesse dia, que em toda parte, <strong>com</strong>o Verdi<br />
na pequenina Busseto na Italia que é toda musica, onde até as pedras não<br />
se contêm, partem-se cantando, cheias de vida, onde não se pisa terra, mas<br />
cantos inteiros e restos de cantos esfolhados pelo chão. Elie estará mais<br />
aqui, entre vossas flores, vossas palavras, vosso jubilo, vossa arte que procura<br />
homal-o ! E' vosso e por direito vos pertence nesse dia !<br />
A própria Arte colloca-o aqui, afim de que reveja a terra donde<br />
sahiu, o ambiente que o formou !<br />
Só depois ella o levará, na sua missão universal, através de outras<br />
gentes, de outros logares, de outros povos.<br />
Si não bastam as flores dos vossos jardins, extendei as mãos para<br />
os vossos céos! Apanhae estrellas que ellas também se despetalam. Eu<br />
vos saúdo, Campineiros, e vos trago, já, meus sentimentos de alegria e<br />
admiração desfolhados em palavras.
Episodios da vida de Êarlos Gomes<br />
M. J.<br />
ao foram poucas as difficuldades que teve de enfrentar em sua lu-<br />
^ minosa carreira, o grande génio americano, Antonio Carlos Gomes.<br />
Para attingir a gloria que legou á Patria, soffreu elle nào só a falta de recursos<br />
<strong>com</strong>o a hostilidade de seus gratuitos desaffectos que 110 Brasil e na Italia lhe<br />
moveram atroz campanha de descredito.<br />
De sua copiosa correspondência que manteve <strong>com</strong> amigos do Brasil, fica-se<br />
sabendo a serie de desgostos que teve de suportar. Os maestros e <strong>com</strong>positores<br />
italianos, sentindo perder o seu prestigio diante do vulto gigantesco do joven<br />
brasileiro (<strong>com</strong> excepção apenas dos grandes vultos da musica <strong>com</strong>o Verdi),<br />
tudo fizeram para desacredital-o perante o publico, procurando mesmo impedir<br />
a representação de uma de suas operas — a Maria Tudor, levada á scena 110<br />
Theatro Scala em 1879. Na noite da representação da opera mcnsionada, a platéa<br />
manifestou-se francamente hostil, vaiando e apupando o seu autor. No entanto,<br />
tudo leva a crer que essa hostilidade fora en<strong>com</strong>mendada por pessoas que tinham<br />
enteresse em desmoralizai o, pois na noite seguinte elle foi <strong>com</strong>pletamente reliabilitado<br />
pelo grande publico que nào cansou de aplaudir a opera, bisando mesmo<br />
o duelto do 2.° acto. Mas esse aparente desastre valeu <strong>com</strong>o uma revelação do<br />
caracter recto e elevado de Carlos Gomes, que nào se deixou vencer pelo golpe<br />
soffrido, ainda que por momentos chegasse a duvidar do valor e merecimento<br />
de sua obra. Outra revelação de sua nobreza e austeridade foi a attitude que<br />
assumiu para <strong>com</strong> a imprensa que violentamente o atacou, e para <strong>com</strong> o publico,<br />
nào <strong>com</strong>parecendo á 2. a representação de sua opera.<br />
A esse proposito escreveu elle ao Visconde de Taunay a carta seguinte<br />
que transcrevemos de Lafavette Silva: "... a opera principiou applaudida, mas<br />
sentia-se uma corrente contraria, especial, vinda ao theatro para fazer rumor.<br />
Logo 110 principio do 2.° acto arrebentou a trovoada; calmou-se um pouco 110 3.°<br />
e deu o estouro 110 4." (o melhor da opera!) Nesta primeira noite a opera acabou<br />
a<strong>com</strong>panhada de gaitas, assobios, sanfonas e. . nào faltou o famoso cri-cri! Voltei<br />
para casa fumando tranquillamente em <strong>com</strong>panhia do Celega e do Paulo Lecour,<br />
meus Íntimos amigos, um italiano e outro francez. Você ha de ficar de bocaaberta<br />
sabendo que na segunda noite a opera obteve um successo <strong>com</strong>pleto e foi<br />
até bisado o duelto do 2.» acto "colui che non canta", desapparcceram as gaitas<br />
e assobios e só se applaudiu ; mas o caipira nào estava 110 theatro. O publico<br />
que me baptisou em 1870 <strong>com</strong> o Guarany foi grosseiro na noite de 27 (de abril<br />
de 1879), ou estava bebedo! Na segunda noite já lhe tinha passado a carraspana,<br />
mas nào era merecedor de vêr a cara do paulista e tem de esperar muito para<br />
esse gosto!<br />
A imprensa toda foi contra mim e ainda mais, não quiz confessar o successo<br />
da segunda noite; era necessário que eu fosse uma esperança da Italia,<br />
ura maestro italiano de sangue; e <strong>com</strong>positor que <strong>com</strong>pra artigos de jornaes,<br />
coisa que nunca fiz e nào farei nunca, ainda que arrebente."
Cutros epi3odios enteressantes conta-nos Lafayette Silva da vida do grande<br />
<strong>com</strong>positor. Diz elle: " Carlos Gomes era um espirito alegre, simples, despido<br />
de vaidades. Quando trabalhava <strong>com</strong> Salvador de Mendonça na <strong>com</strong>posição de<br />
sua segunda opera, a Joanna de Flandres, tinha 23 annos e ia <strong>com</strong> frequencia<br />
á casa de Salvador, que morava em Nictheroy.<br />
Nessa época, emmoldurava a sua linda cabeça uma basta cabelleira negra.<br />
Fazia-se, entào, tanto aqui, <strong>com</strong>o na vizinha cidade, a propaganda de um efficaz<br />
preparado para evitar a quéda do cabello e as ruas andavam cheias de cartazes<br />
<strong>com</strong> estes dizeres, em caracteres berrantes "Usem o X, tonico para o cabello".<br />
Uma tarde, ao se approximar da casa do amigo intimo, onde era conhecido<br />
pelo seu appellido familiar de Tonico, Carlos Gomes viu-se a<strong>com</strong>panhado de<br />
grande numero de garotos, todos elles risonhos, alegres.<br />
O maestro deteve-se á porta e não pôde também dominar o riso. Na<br />
parede fôra affixado um dos placards de propaganda e um espirito brincalhão<br />
havia supprimido o nome do especifico e alterado os dizeres desta fôrma singela:<br />
antes de "para o cabello" accrescentou a letra a, lendo-se, entào, isto: Tonico,<br />
apara o cabello! Carlos Gomes achou graça 110 conselho, mas nào o adoptou.<br />
Irritava se quando ouvia executar sem afinaçào qualquer trecho, e mais<br />
ainda se este era de sua lavra. Uma tarde, descia elle, a rua do Riachuelo, saboreando<br />
o seu charuto, quando escutou, partidos de um piano familiar, de<br />
magnifico som, os primeiros accordes do Guarany. Carlos Gomes estacou. Nunca<br />
a sua protophonia famosa fôra tilo impiedosamente assassinada.<br />
Quando o piano emmudeceu, o maestro bateu á porta, nervosamente.<br />
Recebeu-o uma gentil senhora, que nào tinha fechado ainda o teclado do<br />
seu custoso instrumento. Carlos Gomes, carregado o cenho, pediu licença para<br />
occupar o piano. E, antes de ouvir o assentimento, executou aquella pagina<br />
cheia de vibração, que dá a impressão do despertar das nossas florestas virgens.<br />
A dona da casa mantinha-se extasiada.<br />
Quando acabou, sem mesmo lhe estender a mào, Carlos Gomes disse á<br />
sua única ouvinte:<br />
— Minha senhora. A symphonia do Guarany toca-se assim!<br />
A dama elegante, cheia de rubor, <strong>com</strong>prehendeu, entào, tudo, e agradeceu<br />
aos seus deuses a graça recebida de, pela sua negaçáo para o teclado, ter ouvido<br />
Carlos Gomes executar, sô para ella, o trecho mais famoso da opera que o elevou<br />
aos paramos da gloria.<br />
Como se sabe, o maestro era ura grande fumante ; deveu mesmo ao abuso<br />
desse vicio o cancro que lhe tomou a lingua e lhe deu a morte, em meio de<br />
cruedelissimas dôres, supportadas <strong>com</strong> estóica resignação.<br />
Uma noite, em Veneza, recolhia-se elle á casa, aborrecidíssimo por nào<br />
ter encontrado um charuto para fumar.<br />
Insurgia-se contra o destino, quando o cocheiro do carro que o conduzia»<br />
respeitosamente mostrou desejo de falar-lhe. Queria, pedir ao maestro, que lhe<br />
desse uma entrada para ouvir o Salvador liosa. Carlos Gomes sorriu e, encarando<br />
o homem simples, disse-lhe :<br />
— Dou-te o bilhete, mas <strong>com</strong> uma condiçào...<br />
— Imponha-a respondeu o cocheiro.<br />
— A de me dares tu, em troca, agora mesmo, esse charuto que indiscretamente<br />
se mostra 110 bolso do teu casaco.<br />
O operário rude lisonjeou-se <strong>com</strong> o pedido e, devido a essa semcerimonia,<br />
pôde o maestro alcançar o charuto para aquella noite e que tão barato lhe custou.
Ballata do Guarany,<br />
Que eu cantava quando môça,<br />
Sem lembrar quanto senti<br />
Será possível que eu ouça ?...<br />
Se Mia Piccirella escuto,<br />
Que cantei, que tanto ouvi,<br />
Da gloria os louros e fructos<br />
Carlos Gomes, vejo em ti!<br />
Prisciliana Duarte de Almeida<br />
(Da Academia Paulista de Letras)<br />
E quando eu era criança,<br />
De noite e de dia ouvi,<br />
Como os hymnos da esperança,<br />
As arias do Guarany!<br />
Campinas, 17 de Julho de 1936.
Cantai florestas do Brasil, cantai!<br />
Ventos, aguas dos mares e cachoeiras,<br />
Centuplicando estrophes condoreiras,<br />
Tãobadalai, rolai, symphonisai!<br />
Martins Fontes<br />
Nossa harmonia louve o excelso Pai!<br />
E ouça-se a voz das plagas Campineiras<br />
Que dominando os hymnos das palmeiras,<br />
Chore e soluce em convulso guai!<br />
São Paulo a Carlos Gomes interpreta,<br />
Erige-lhe um altar sobre o alcantil,<br />
Que no espaço e no tempo se projecta!<br />
E em cada cume, em cada campanil,<br />
Redobre um carrilhão e exalce o Poeta<br />
Das orchestras de fogo do Brasil!
O maestro Sant'Anna Gomes, irmão de Carlos Gomes
Maestro SanVAnna Gomes<br />
(seu ULTIMO RETRATO)
I<br />
M. Junior<br />
studar os homens á margem dos factos e das circumstancias do meio que<br />
os cercaram, procurando izolal-os do ambiente em que viveram, é fazer<br />
obra imperfeita e in<strong>com</strong>pleta, pois o homem é, até certo ponto, um producto<br />
do meio ambiente. Mas nào basta conhecer-se apenas o meio: é preciso<br />
procurar-se muita vez nas leis e princípios do atavismo a explicação de muitas<br />
das manifestações da vida psychica e social dos indivíduos. Assim, na apreciação<br />
da biographia dos grandes gênios da humanidade, vamos quasi sempre<br />
encontrar nesses factores uma explicaçào razoavel para a manifestação da sua<br />
potencialidade creadora.<br />
Carlos Gomes foi incontestavelmente um gênio previlegiado e nunca igualado<br />
nas Américas, mas isso se deve, não só ao facto de descender elle de uma<br />
família de músicos illustres, mas especialmente ao meio favoravel em que esse<br />
gênio pôde desenvolver-se e produzir as obras que o immortalizaram.<br />
Traçando-se um parallelo entre o auctor do Guarany e seu irmão e grande<br />
amigo Sant'Anna Gomes, nota-se, desde logo, a semelhança intima entre os dois,<br />
fazendo-os tão estreitamente ligados <strong>com</strong>o se fossem irmãos siamezes.<br />
De temperamento delicado, e profundamente sensível, ambos foram verdadeiros<br />
artistas na acepção exacta da palavra.<br />
Desta semelhança de temperamento nasceu, por certo, a grande amizade<br />
entre os dois irmãos e que foi, sem duvida alguma, a porta aberta para que<br />
Carlos Gomes palmilhasse a estrada da immortalidade.<br />
Sant'Anna Gomes, foi o grande protector de seu irmão: facilitou-lhe a<br />
fuga do lar paterno, estimulou-lhe o desejo ardente de aperfeiçoar os seus estudos<br />
de musica e, quando já seu irmão se tornara o idolo das platéas italianas e<br />
brasileiras, continuou a dispensar-lhe auxílios inestimáveis, tanto de ordem moral<br />
<strong>com</strong>o financeira.<br />
Para a representação do Guarany em Milão, concorrera elle <strong>com</strong> importância<br />
superior a 7:000$000, fructo de suas laboriosas economias. Mais do que<br />
isto: por occasi;'io da vinda de Carlos (Jomes ao Rio de Janeiro onde levou pela<br />
primeira vez no Brasil á scena o Guarany, devendo voltar á Italia nào teve os<br />
meios necessários para a viagem pela má vontade do elemento official da epocha,<br />
e se nào fossem a bondade e o desprendimento de Sant'Anna Gomes, ficaria a<br />
vegetar no Brasil sem os recursos para proseguir na obra iniciada. A esse<br />
respeito diz André Rebouças: "Sem as 300 libras de seu irmào teria de ser<br />
condem nado a vegetar nesta terra de Botocudos e de Ay mores sem generosidade,<br />
sem nobreza, só capaz de villanias e de inveja
Este é, na verdade, o aspecto mais interessante da vida do glorioso<br />
maestro SanfAnna Gomes que, se outros predicados nào possuisse, por si só<br />
bastaria para o immortalizar.<br />
Não ciiegou ás cumiadas da gloria porque sacrificou a sua carreira artística<br />
em beneficio do irmão, deixando-se ficar no Brasil para amparal-o na ltalia.<br />
Se outras fossem as circumstancias e outro o meio em que vivesse, quem<br />
poderia dizer que não teria transposto elle os pórticos da gloria, na escalada<br />
luminosa da immortalidade <strong>com</strong>o seu irmão?<br />
Mas se nào chegou a ser um nome mundial pelo valor da sua arte, nem<br />
por isso deixou de ser um grande <strong>com</strong>positor e musico, aureolando ainda mais<br />
a sua fronte por se ter tornado o factor principal da gloria daquelle que levou<br />
nas azas da fama e do gênio, da inspiração e da harmonia, o nome do Brasil<br />
ainda quasi selvagem ás terras de além mar. A SanfAnna Gomes, mais do que<br />
a ninguém, deve-se, pois, o successo do illustre <strong>com</strong>patriota.<br />
Transcrevemos abaixo, na integra, as notas biographicas do grande <strong>com</strong>positor<br />
campineiro que nos foram dadas por seu filho Snr. Arlindo Gomes :<br />
"José Pedro de Sant'Anna Gomes, irmão mais velho de Carlos Gomes<br />
fui, sem duvida, também um grande musico campineiro, nào só emerito <strong>com</strong>positor<br />
<strong>com</strong>o também eximio violinista.<br />
Poderia ter alcançado as glorias de seu irmão, porém, preferiu na sua<br />
modéstia ficar em sua terra natal e ajudar o irmão querido na Europa, emprestando-lhe<br />
todo o seu apoio moral e material.<br />
O escriptor Silio Boccanera Junior, escrevendo sobre Sant'Anna Gomes,<br />
assim expressa :<br />
" Pobre Sant'Anna Gomes! deixando-se embalar pelas auras<br />
confortáveis da carinhosa esperança, appelando, sempre, para<br />
o futuro, sempre confiante no dia de amanhã, nào <strong>com</strong>pehendeu,<br />
nunca, uma só vez não soube, ou nào quiz <strong>com</strong>prenetrar-se<br />
desta grande verdade: uma das primeiras qualidades<br />
para um artista de talento, em o nosso meio, — é a morte!<br />
Realmente: ser artista, hoje, em nossa terra, sob todas as<br />
modalidades do BELLO, qualquer que seja a elevada espliera,<br />
vibrante de sonoridades estranhas á lutulenta terra, — é uma<br />
grande infelicidade<br />
Sant'Anna Gomes, sem querer fitar tão de perto a luz<br />
incandescente do Sói, tornou-se um dos mais notáveis violinistas<br />
brasileiros, legando-nos <strong>com</strong>posições de grande mérito<br />
para esse dorido instrumento, mésto <strong>com</strong>panheiro do plangente<br />
violoncello, qual mais fiel interprete dos soluços d'Alma<br />
Sant'Anna Gomes, juntamente <strong>com</strong> seu irmào Carlos Gomes, realisou concertos<br />
em Campinas e Sào Paulo. Foi nessa occasiào, em 1859, que após o<br />
concerto realisado em Campinas, os irmàos Gomes ficaram conhecidos dos estudantes<br />
de Sào Paulo, e originando desse conhecimento, a ida de Carlos Gomes<br />
para o Rio, depois da realisaçào de concertos em Sào Paulo. Sant'Anna Gomes<br />
voltou a Campinas, para junto de seu velho pae, ajudando-o nos serviços musicaes.
Emquanto Carlos Gomes, na Italia, elevava de maneira a mais brilhante, o<br />
nome artístico do Brasil, fallecia em Campinas o progenitor dos irmãos amigos.<br />
Sant'Amia Gomes, tomando o lugar do pae, cria banda e orchestra e coopera<br />
para a fuudaçào do Club Semanal de Cultura Artística, onde mantém uma<br />
orchestra. No Club Campineiro e Centro de Sciencias, Letras e Artes, sua acção<br />
em prol da musica, também foi das mais efficientes. Compunha, dirigia os serviços<br />
de musicas <strong>com</strong> a realisaçào de concertos nestas sociedades e também dava<br />
grande brilho ás festividades da Semana Santa <strong>com</strong> sua orchestra que então era<br />
considerada uma das melhores do Estado.<br />
Dos 5 filhos de Sant'Anna Gomes, 3 se fizeram músicos: Paulino, fallecido<br />
na Italia quando se aprimorava na arte; Alice Gomes Grosso eximia<br />
pianista e Alfredo Gomes, violoncelista, 1.° premio do Real Conservatorio de<br />
Bruxellas.<br />
E' grande a bagagem de <strong>com</strong>posições de SanfAnna Gomes; banda, orchestra,<br />
musica de camera e sacra, duas operas: Semira, que deixou in<strong>com</strong>pleta<br />
e "Alda" era 4 actos, libreto de Emilio Duccati, enviado da Italia por seu irmão.<br />
Compoz um hymno " Carlos Gomes " para grande banda, letra da poetisa Exma.<br />
esposa do Dr. Silio Boccanera Júnior, executado por occasiào da inauguração<br />
da estatua de Carlos Gomes a 2 de Julho de 1905.<br />
Das musicas de camera de SanfAnna Gomes, destacam-se "Saudade"<br />
melodia para 2 violinos, viola, violoncello e contrabasso, dedicada a seu queiido<br />
irmão Carlos Gomes, <strong>com</strong>posta em Março de 1862, " Lamento dos Orphàos " <strong>com</strong>posta<br />
por accasiào da epidemia em Campinas, " Berceuse " dedicada a sua discípula<br />
Noemia Bierrembach, e um quartetto para 2 violinos, viola e violoncello,<br />
dedicado a D. Pedro II. I)as musicas sacras destacam-se uma " Ave Maris<br />
Stelia " para soprano, viola d'amor e orchestra executada e cantada por occasiào<br />
da inauguração da Matriz Nova a 8 de Dezembro de 18t
annos, o seguinte: Primeiro executaram-se os grandes mestres<br />
do quartetto. A pedido de alguns amigos, Sant'Anna<br />
Gomes não poude eximir-se de fazer musica sua. O ouvido<br />
sente-se delicadamente acariciado por essa musica dum verdadeiro<br />
mestre. Não ha salto, ha, apenas, uma transição<br />
d'urna individualidade para outra, servida por uma sciencia<br />
indiscutível. As qualidades principaes do Maestro campineiro<br />
sào a graça, a elegancia, sobre tudo a distinção».<br />
ainda são de Silio Boccanera as seguintes palavras:<br />
«Do ciborio dos meus castos affectos, o maestro e amigo,<br />
que encerra todos os mais delicados sentimentos de minh'alma,<br />
uma saudade — eu deixo partir, em demanda de tua<br />
sepultura. E lá... debruçada sobre o teu sarcophago venerando,<br />
ella deporá em tua gélida fronte, frágoa apagada do<br />
trabalho, incendida, outr'ora, pelos lumes da inspiração, o<br />
osculo sagrado deste meu derradeiro ADEUS!<br />
Nascido a 1.° de agosto de 1834, depois de uma existencia toda de relevantes<br />
serviços musicaes prestados á sua terra, falleceu aos 74 annos de edade<br />
a 4 de abril de 1008.<br />
Os seus amigos e admiradores fizeram erigir no cemitério da Saudade, em<br />
terreno da irmandade do S. S. de Santa Cruz, hoje Ordem Terceira do Carmo,<br />
um artístico e significativo tumulo <strong>com</strong> o busto do maestro, obra de arte do escultor<br />
Marcelino Velez, encimado em uma columna donde se vê esculpido no<br />
mármore, em chumbo, um trecho de sua melodia «Saudade», dedicada a Carlos<br />
Gomes e mais abaixo uma lvra de bronze.<br />
v<br />
E assim, deixou de existir aquelle que em vida se chamou Sant'Anna<br />
Gomes, deixando uma profunda saudade no coração daquelles que o conheceram,<br />
saudade essa, eterna, porque a musica é divina e o que é divino é eterno».
m m
. •• f• ^<br />
Kr vis ta <strong>com</strong>posta c impressa no Estabelecimento Graphiro «CASA LIVRO AZUL »-Campina 1 »<br />
•<br />
&
fgM • •<br />
mM<br />
00039039500403<br />
Revista do Centro de Sciencias<br />
SP Rev.CSLA56 1936<br />
wfmm<br />
mê* ^