DossiÊ - comumLAB - DOSSIE - Giseli Vasconcelos
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dossie.comumlab.org
colaboração<br />
Por uma cartografia crítica da Amazônia<br />
recorte/processo sobre arte,<br />
política e tecnologias possíveis<br />
Em agosto/setembro de 2011 estivemos juntos<br />
em encontros promovidos pela iniciativa Networked<br />
Hacklab em sua versão amazônida - que buscou inverter<br />
o caminho usual do espetáculo para privilegiar<br />
um grupo pensante que buscasse refletir pontos críticos<br />
da Amazônia, debatendo e analisando também<br />
formas de mapeamento e processos cartográficos<br />
radicais. Esses encontros favoreceram trocas e circulação<br />
de informação sobre uma realidade amazônida,<br />
evidenciando seus processos em rede e assuntos convergentes<br />
sobre um território político historicamente<br />
complexo.<br />
A iniciativa ao norte juntou uma rede de pesquisadores,<br />
artistas, ativistas e organizações a fim de<br />
ampliar um debate sobre arte e tecnologia, de acordo<br />
com as perspectivas e reflexões sobre a relação entre<br />
poder e espaço geográfico na região amazônica. Para<br />
promover o diálogo em rede, experimentamos o cruzamento<br />
com iniciativas de outras regiões - incluindo<br />
as bordas com a América Latina, buscando compartilhar<br />
soluções para uso de tecnologias sociais em<br />
diálogo com as novas tecnologias de informação.<br />
Depois de 6 meses analisando e reunindo arquivos<br />
(artigos, relatos, entrevistas, imagens fotográficas,<br />
áudios, vídeos), o projeto é retomado em 2012<br />
para a produção de um Dossiê, uma coleção de documentos<br />
semeados durante um processo, e divididos<br />
em fascículos baseados na sumarização do álbum<br />
finalizado após as imersivas de Belém e Santarém -<br />
http://hacklab.comumlab.org/photos<br />
espaço<br />
hacker<br />
internet<br />
conectividade<br />
subjetividade<br />
mapas<br />
satélites<br />
resistência<br />
táticas<br />
desejo<br />
cabanagem<br />
estrangeiro<br />
marginal<br />
cineclubismo<br />
ZASF – Zona Autônoma Sem Fio<br />
O objetivo do dossiê é apresentar uma documentação<br />
em série, perfazendo um mapeamento que<br />
evidencia qual o recorte, pontos geográficos e quais<br />
as interações possíveis foram identificadas em torno<br />
da arte e as tecnologias na região. Os formatos de leitura<br />
são:<br />
PublicAção<br />
editAdA imPressA;<br />
geopolítica<br />
subversão<br />
Arquivo digitAl PArA<br />
distribuição<br />
em tAblets,<br />
celulAres,ebooks;<br />
rmxtxturAs, colAgem<br />
videográficA de como se vive<br />
e se enxergA A AmAzôniA, A<br />
PArtir dAs visões midiáticAs,<br />
PublicitáriAs, Produção<br />
PoPulAr e cinemAtográficA.<br />
Esta publicação é parte integrante do<br />
Dossiê – dossie.comumlab.org - mapeamento de um<br />
conhecimento sobre arte, política e tecnologias possíveis.<br />
De um ponto no Pará, olhando a Amazônia.<br />
<strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong>, Organizadora.<br />
Belém do Grão Pará - 2012<br />
fronteiras<br />
imaginário<br />
Fórum PanAmazônico de Cultura Digital<br />
Transparência Hacker<br />
pg. 6<br />
PrÓlogo: Perigoso e Divertido<br />
[rmxtxturA]<br />
“Agora abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o<br />
sonho de ver como somos vistos.” Vicente Franz<br />
Cecim<br />
* HotGlue: Hackworked Netlab - Felipe Fonseca<br />
* Carta pras Icamiabas - <strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong><br />
* Arte_ hackeamento: diferença, dissenso e<br />
reprogramabilidade tecnológica - Daniel Hora<br />
* Perigoso e Divertido - Traplev<br />
* Rio – Belém – Santarém – Rio - Tatiana Wells<br />
* AmaZone por Paulo Tavares em roda de conversa<br />
* Todas Contra a UHE Belo Monte! - Lucia Gomes<br />
* Mapa Relato em 10 pontos - Paulo Tavares<br />
pg. 90<br />
Estamos em greve<br />
[rmxtxturA]<br />
“Formas agudas de esquizofrenia cultural. ”<br />
Osmar Pinheiro Junior<br />
* Identidade e diferença de quem pinta o corpo<br />
para a guerra ou para a festa - Arthur Leandro<br />
* Divisória-Imaginária - Marisa Florido<br />
* Flor Manifesto - Leandro Haick<br />
* Pedágio - Romário Alves<br />
* Sangria Desatada: Imgs Rede [aparelho]-: relato<br />
Bruna Suelen<br />
* Pira-paz-não-quero-mais ou a difícil arte da<br />
martelada - Gil Vieira Costa<br />
* Fotonovela - Jamcine<br />
pg. 138<br />
ePÍlogo: entre ruas, rios<br />
[rmxtxturA]<br />
Como viver junto sob o ponto de vista quente e úmido.<br />
Deriva individual e coletiva através de mapas em<br />
movimento.<br />
* O imaginário social sobre a Amazônia - Samuel Sá<br />
* Paradoxo Amazônico: Entrevista com Alfredo<br />
Wagner Berno de Almeida<br />
* viver sem viver Viver: Esboço para um Terceiro<br />
Manifesto Curau - Franz Vicente Cecim<br />
pg. 46<br />
A vontade de potência<br />
≠ vontade de poder<br />
[rmxtxturA]<br />
“Cartografias como possibilidade de<br />
enfrentamento criativo” Mateus Moura<br />
pg.<br />
* Midas - Armando Queiroz<br />
* Terra do Meio - LabCart<br />
* Mapas, mapeamento e disputas territoriais<br />
na Amazônia roda de conversa com<br />
Ricardo Folhes<br />
* mapAzônia<br />
* Rio Diagnóstico: Antena Mutante<br />
* Laboratório de Cartografias Insurgentes-<br />
Descolonizar – Tatiana Wells<br />
* Sobre Lab. de Cart. Insurgentes – Geo Abreu<br />
* Mensagem Naldinho Motoboy<br />
* Outro relato para o IPE – Lorena Marín<br />
* América Latina Rebelde - Iconoclasistas<br />
* O mapas do 15M ao 15O - Pablo de Soto<br />
redes locais, autonomia<br />
[rmxtxturA]<br />
Tecnologia é uma parte da cultura; já a cultura<br />
é um vasto sistema tecnológico de todo tipo: a<br />
língua, a vestimenta, o modo de administrar<br />
relações humanas, tudo isso é tecnologia<br />
(Eduardo Viveiros de Castro)<br />
* Cidade-labirinto das mediações - Fernando<br />
Pádua<br />
* Coisa de Negro: Resistência cultural<br />
* Puraqué - TIC como uma ferramenta de inclusão<br />
social - Marie Ellen Sluis<br />
* Rede de Cineclubes – Comunidades Tradicionais<br />
de terreiros dão exemplo<br />
dossie.comumlab.org
6<br />
borracha para a vítória<br />
conta a saga dos soldados da<br />
borracha através do retrato<br />
de cinco cearenses que saíram<br />
de Fortaleza para a Amazônia<br />
em 1943, alistados pelo Serviço<br />
Especial de Mobilização<br />
de Trabalhadores para a Amazônia<br />
(SEMTA), instituição criada<br />
pelo governo de Getúlio Vargas<br />
e financiada pelos Estados Unidos<br />
como parte dos acordos com<br />
Washington, no momento em que o<br />
Brasil decide apoiar o Exército<br />
dos Aliados durante a Segunda<br />
Gerra Mundial.<br />
http://video.google.com/videoplay?<br />
docid=-7913031581915758412<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
#<br />
PrÓlogo:<br />
Perigoso e Divertido<br />
ARQUIVOS RMX : Macaquinho fofo.mp4 | Fordlândia parte 1.mp4 | MIDAS.mp4 | O massacre de El Dorado de Carajás.avi | COBRA VERDE.<br />
XVID_BY CHITA-kusuku_JiLAiaa.avi | Belém aos 80.avi | Amazonas, Amazonas - Filme Completo [Glauber Rocha].mp4 | Nas Terras do Bem Virá.avi<br />
Montanhas de ouro (Adrien Cowell).avi | Carvoaria.mp4 | Serras Da Desordem.avi | Agua, fonte da vida (Cireneu Khun).avi | Nas cinzas da<br />
floresta.avi | Maquete Eletrônica_Parque Shopping Belém.mp4 | Indios assassinos atacam engenheiro da Eletrobrás.mp4 | Jorge Mautner<br />
Xingu.mp4 | O apelo do cacique Raoni.mp4 | Eu quero viver.AVI | bike.mov cineclubismo.mp4 | LÚCIO FLÁVIO PINTO CONTRACORRENTE<br />
O FILME PARTE 1.mp4 | JAMCINE #2 um diário íntimo O SONHADOR FODIDO NO PARQUE DE ILUSÕES.WMV | 100_2213.MOV | ONIRO<br />
E SUA JABIRACA NA CIDADE.mp4 | Dj Djavan em performance no arte.mp4 | Os catadores de orvalho esperando a felicidade chegar.mp4<br />
| Perifeéricos teaser estrada.avi | Malditos Mendigos.mp4 | cabanagem.jpg | SALTOS AMAZÔNICOS - Liana Amin e Igor Amin (2011).mp4<br />
| Todas contra a UHE de Belo Monte! (Lucia Gomes 2012) (jpgs) | Leona Assassina Vingativa 1.mp4 | TECNOMELODY MARLON BRANCO<br />
PASSINHO DO BADALASOM dj marcelo impacto prod xvid.mp4 | Xarque Zone Vol.mp4 | Gatinhas mandando ver no melody - ORIGINAL<br />
;D.mp4 | VIDEO MAKING ALANZINHO BATALHA DO PASSINHO BELEM 18 E 19 MAR.mp4 | GABY AMARANTOS XIRLEY (MUSIC VIDEO).<br />
mp4 | vale___espaço_das_descobertas_640x360.mp4 | Devassa do Pará.mp4 | Os Melhores da Serragem Belém-PA 2011.mp4 | Equipe Os<br />
100 Futuro (Samuel Produções).mp4 | ladrao nao rouba ladrao.mp4 | Hora do abraço-Balanço Geral Pará -By Edgar Gonçalves.mp4 | Filho de<br />
Jader Barbalho faz caretas em entrevista do pai.mp4 | Leona Assassina Vingativa 2.mp4 | Leona Assassina Vingativa 3 - A Aliança Do Mal.mp4<br />
| Iracema - Uma Transa Amazônica.avi | FILME - OS TRAPALHÕES E UMA AVENTURA NA SELVA (completo).mp4 | carta_para_o_homemforte_640x360.mp4<br />
| JAMCINE#5 um passeio macabro PROJEÇÃO DE IDEIAS NO RIO DE TREVAS.mp4 | JAMCINE#4 um tratado de magia<br />
ENTRE.WMV | JAMCINE #6 um surto psicótico VER O PESO mp4.mp4 | tECHNoDRAMa - NeoNNDDama - qUALQUER qUOLETIVO.mp4 |<br />
O meu é especial finale.mp4 | Desculpem o transtorno - estamos em obras.mp4 | entrevista com Jader Gama parte 1 de 2.mp4 | Neto & Danilo.avi<br />
11 anos de Roda de Carimbó Coisa de Negro.mp4 | Rituais Xamânicos com daime, ayahuasca ou vinho das almas .mp4 | Mulher erê no Cosme<br />
e Damião.MOV | O.Povo.Brasileiro.Capitulo.4.DVDRip.XviD.Parkyns.avi | Belém 350 anos.mp4 | AGUIRRE_THE_WRATH_OF_GOD.m4v<br />
| Ymá Nhandehetama.mp4 | O Guarani (Carlos Gomes).mp4 | Monsarás há distância.mp3 | 08 Albery Albuquerque - Uirapuruzinho.mp3 | A<br />
alquimia negra é dourada no coito do peão.avi |
8<br />
Agora abrir<br />
os olhos.<br />
Agora, começar<br />
a sonhar o<br />
sonho de ver<br />
como somos<br />
vistos.<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
vicente franz cecim
10<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
felipe fonseca | Hotglue | http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/
Carta pras<br />
Icamiabas 1<br />
POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,<br />
OS MALES DO BRASIL SÃO! 2<br />
12<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
GISELI VASCONCELOS<br />
Tenho algumas razões a apresentá-los que<br />
funcionam como princípios básicos, a fim de elucidar<br />
os caminhos propostos para a realização do projeto<br />
Networked Hacklab em sua edição Norte, do qual<br />
sou produtora executiva junto à lei de incentivo e<br />
patrocinador, e também responsável pela concepção,<br />
planejamento e direção deste, para uma realidade<br />
localizada num pedaço da Amazônia brasileira. Este<br />
preâmbulo tenta explicar um percurso de reflexões<br />
que me fizeram repensar e rever o formato de projetos<br />
financiados através de leis de incentivo direcionados<br />
à produção em arte e tecnologia para territórios com<br />
especificidades regionais latentes.<br />
A primeira delas foi atentar às linhas gerais<br />
do projeto nacional, já que o mesmo propunha a<br />
realização em várias cidades brasileiras, objetivando<br />
o desenvolvimento e a produção de conteúdo<br />
artístico-cultural-digital e o fomento para a criação<br />
de grupos de pesquisa e experimentação, se possível<br />
entre redes nacionais e internacionais3 . Interpretei<br />
1 Icamiabas (do tupi i + kama + îaba, significando “peito<br />
rachado”) é a designação genérica dada a índias que, segundo o<br />
folclore brasileiro, teriam formado uma tribo de mulheres guerreiras<br />
que não aceitavam a presença masculina. O termo designaria<br />
também um monte nas cercanias do rio Conuris[4] (no<br />
atual território do Equador). Esta lenda teria dado origem, no século<br />
XVI, ao mito da presença das lendárias Amazonas na região<br />
Norte do Brasil.<br />
2 Referência direta ao episódio IX de Macunaíma (1928),<br />
quando Mário de Andrade utiliza-se da grafia de uma carta para<br />
satirizar o modo como a gramática manda escrever e como as<br />
pessoas efetivamente se comunicam.<br />
3 A principal premissa do Networked Hacklab é a execução<br />
de projetos colaborativos, sempre em diálogo com as novas tecnologias<br />
a partir de um laboratório apropriado para o desenvolvimento<br />
de dispositivos digitais e eletrônicos. O projeto que ocorre em Belém<br />
e também nas cidades de Belo Horizonte (MG), Salvador (BA), Cachoeira<br />
(BA) é financiado pela política de incentivo dos Estados com<br />
patrocínio do programa Vivo Lab, sob a curadoria de Rodrigo Minelli.<br />
O Programa Vivo Lab, propõem UMA REDE COLABORATIVA DE<br />
CULTURA, que cria oportunidades para que as pessoas desenvolvam<br />
- de maneira colaborativa e consciente - formas de expressão e participação<br />
na sociedade contemporânea. Ver em: http://www.hacklab.art.<br />
br | http://www.vivolab.com.br/<br />
literalmente o slogan EXPERIMENTAR-INVENTAR-<br />
RECONFIGURAR que juntou a fome com a vontade<br />
de comer - não queria perder a oportunidade de<br />
experimentar e reconfigurar ações para uma realidade<br />
no Pará, considerando que se tratava de verba pública<br />
de incentivo e fomento à cultura, onde 80% do valor<br />
patrocinado é fonte de isenção fiscal da atuação da<br />
marca no Estado. Portanto, mais do que nunca,<br />
surgia a necessidade de jogar apaixonadamente, num<br />
território onde a arte encontra-se num campo cegoobscuro-oculto<br />
- entre redes e os meios da tecnologia<br />
digital e informacional, um terreno baldio apto de ser<br />
ocupado por situações de uso tático e crítico, ativando<br />
no devir de uma iniciativa a poesia e espontaneidade<br />
necessária.<br />
Como disse anteriormente, o contexto do<br />
projeto me agarrou pelo estômago, por outro lado<br />
tinha um estranhamento com o nome N-E-T-W-O-<br />
R-K-E-D-H-A-C-K-L-A-B que não estava fácil de<br />
digerir. Ainda que eu estivesse utilizando o inglês<br />
como primeira língua nessa morada na América do<br />
Norte, o estrangeirismo parecia dissonante para a<br />
concepção de uma ação na Amazônia justamente<br />
por se tratar de uma região com conectividade baixa<br />
onde poucos usuários estão familiarizados com um<br />
glossário web.<br />
Fiquei uns meses me policiando e observando<br />
o quanto o estrangeirismo está presente na<br />
comunicação brasileira, principalmente entre as<br />
redes de arte e cultura digital do eixo centro-sul,<br />
onde termos veiculados na língua inglesa aparecem<br />
mais evidentemente na produção de conteúdos onde<br />
a banda larga apresenta significativa diferença no<br />
custo e velocidade comparados à região Norte 4 . De<br />
longe, minha intenção é negar, julgar ou forçar um<br />
“aportuguesamento” das expressões usadas na/<br />
4 Entre as regiões brasileiras, a mais afetada pela falta de disponibilidade<br />
de infraestrutura de TIC’s (Tecnologias da informação e<br />
comunicação) é a região Norte. A região apresenta a pior média de velocidade<br />
de download (758Kbps e 219Kbps de upload) e o pior tempo<br />
de latência média: 616ms (quase 10 vezes mais lenta do que a região<br />
sul); apresentando as médias mais baixas, onde 37% das velocidades<br />
situam-se até 256Kbps e 47% entre 256Kbps a 1Mbps. E ainda assim,<br />
pagando a banda larga três vezes mais que a região centro-sul. No<br />
Pará, só 7,7% das casas têm acesso. Estados isolados como Roraima<br />
e Amapá têm acessos residenciais praticamente inexistentes. Para se<br />
ter uma ideia da discrepância, no Distrito Federal a taxa de acesso é<br />
de 51%. Nos Estados do Sul e Sudeste, a penetração varia entre 20% e<br />
30%. Fontes: portais cgi.br, IPEA e IBICT; Folha de São Paulo.<br />
para/da comunicação digital entre mundos e Brasil<br />
- até porque o Inglês é a língua dominante na web 5 ,<br />
entretanto, reproduzir sem entender favorece uma<br />
forma de colonização arbitrária que se impõem pela<br />
língua e por suas expressões, reforçando seu papel<br />
social e econômico de poder num espaço geopolítico.<br />
O que quero reforçar é que o estranhamento existe<br />
por todos os lados provocando uma sensação de<br />
repulsa, atração e/ou fetiche sempre presentes entre<br />
grupos ligados à produção cultural local, muitas<br />
vezes expresso em forma de modismo, gerando a<br />
reprodução quase involuntária de um modelo de arte<br />
e cultura digital mais referenciada e dependente do<br />
centro-sul, fechando portas para compreensão de<br />
como a arte e as tecnologias estão relacionadas ao<br />
seu próprio espaço geográfico e cultural. Surgiam<br />
então reflexões pungentes: de que forma trazer à<br />
tona os conceitos por trás dessas terminologias<br />
através de uma linguagem cognitiva, mais próxima<br />
de suas percepções e experiências reais? Como<br />
escapar de modelos que reforçam o lugar que a arte<br />
ocupa nas estratégias do capitalismo financeiro? E<br />
assim, na tentativa de responder estas questões é que<br />
um détournement foi pensado para a ideia de um<br />
laboratório, como desvio: pervertendo as expressões<br />
do sistema contra ele mesmo - e ainda, centrado no<br />
entendimento de uma cultura hacker, essencialmente<br />
libertária, baseada no compartilhamento do<br />
conhecimento e na solidariedade.<br />
Continuando o quadro de inquietações<br />
contextuais em que o projeto se insere, evidencio<br />
a relação entre a política cultural e seus vícios, que<br />
muito auxiliam para obscurecer os processos da<br />
produção de arte associada às tecnologias na região,<br />
dentre estas, as possíveis e acessíveis. A primeira<br />
delas é como o nosso modelo de mecenato vem<br />
sendo estimulado por décadas: um processo em que<br />
cabe à iniciativa privada a decisão sobre uma grande<br />
parcela da produção cultural do país, onde o dinheiro<br />
que financia os projetos é na verdade público,<br />
privilegiando formatos que ganham espaço nos meios<br />
de comunicação de massa, justamente para gerar um<br />
5 São em media 500 milhões de usuários utilizando o inglês,<br />
ocupando o primeiro lugar no ranking de línguas mais utilizadas na<br />
web, de acordo com dados apresentados no site Internet World Stats<br />
- Usage and population statistics. Ver em: http://www.internetworldstats.com/stats7.htm<br />
Exército de mulheres<br />
Cobra Verde - Werner Herzog<br />
volume de eventos de entretenimento e diversão 6 . No<br />
estado do Pará, a lei de incentivo SEMEAR vem sendo<br />
utilizada há pelo menos uma década, e de lá pra cá o<br />
que se percebeu foi o crescimento de uma cadeia de<br />
produção dependente e subserviente ao mecenato,<br />
competitiva e conflituosa, pois na região são escassos<br />
os recursos da iniciativa privada, com o agravante do<br />
alto custo para estruturação de projetos por deficiência<br />
e carência de infraestrutura local, distância entre<br />
as regiões, etc 7 . Assim, no Pará como em todo país,<br />
percebemos profissionais da área artístico-cultural<br />
obrigados a improvisar a função de especialistas de<br />
marketing, ou pior, subservientes aos maneirismos<br />
das empresas e serviços publicitários, tendo que<br />
dominar uma lógica burocrática e técnica, que pouco<br />
tem a ver com a da criação 8 . A segunda agonia, que<br />
em parte também é reflexo desse mecenato, está<br />
relacionada ao modelo dos eventos pensados para<br />
arte e tecnologia, que em sua grande maioria parecem<br />
obedecer a um formato baseado em experiências do<br />
hemisfério norte e rico, apresentando abordagens<br />
herméticas que pouco ou nada correspondem às<br />
vivências da audiência em questão. Essa dissonância<br />
de linguagem parece subjugar ou não atentar às<br />
experiências locais, propondo pouca ou nenhuma<br />
reflexão de como essas tecnologias são mimetizadas<br />
em nosso ecossistema, neutralizando o sentido crítico<br />
e político destas em favor do espetáculo, propondo<br />
6 Referência ao artigo do antropólogo Marcelo Gruman:<br />
Nem tanto ao céu, nem tanto a terra: limites e possibilidades da lei de<br />
incentivo fiscal à cultura, disponível em: http://www.cultura.gov.br/<br />
site/wp-content/uploads/2010/02/artigo-de-marcelo-gruman.pdf<br />
7 O custo amazônico é um debate amplificado pela Rede Teatro<br />
da Floresta e disseminado nas edições da Conferência Nacional de<br />
Cultura, que discute formas para um orçamento diferenciado na região,<br />
uma vez que a distribuição geográfica de tecnologia e de recursos está<br />
distribuída de maneira desigual, sendo o custo de produção para artistas<br />
amazônicos é o dobro se comparado a artistas de outros estados.<br />
8 Continuando com a análise de Gruman:Os projetos passam<br />
a ser concebidos, desde seu início, de acordo com o que se crê que irá<br />
interessar a uma ou mais empresas, sendo o mérito de determinado<br />
trabalho medido pelo talento do produtor cultural em captar recursos e<br />
não pelas qualidades intrínsecas de sua criação (BOTELHO, 2001)(...)<br />
O modelo atual, ainda de acordo com o diagnóstico do MinC, exclui<br />
a inovação, a gratuidade e os projetos sem retorno de marketing; não<br />
fortalecem a sustentabilidade do mercado cultural; inibe a percepção<br />
de que os recursos são públicos; não promove a democratização do<br />
acesso aos bens culturais.
um jogo desigual, quase pernicioso, em que a ideia<br />
de futuro e avanço correspondem a um paradigma<br />
unilateral: a perspectiva dos que têm acesso e poder<br />
informacional.<br />
Ora, a Amazônia é uma periferia com escasso<br />
acesso aos meios digitais e que sofre muito com o<br />
impacto da privação tecnológica 9 justamente por se<br />
tratar de uma região vista como a grande fronteira<br />
do capital natural onde se concentram megaprojetos<br />
que se apropriam e mercantilizam o ecossistema<br />
amazônico, muito destes atendendo a uma demanda<br />
mundial de suprimentos naturais para a produção<br />
de bens eletrônicos. É nesse território de oprimidos,<br />
numa cultura em que a maior parte dos brasileiros<br />
desconhece, que parecia ser o melhor e mais excitante<br />
ambiente para jogar contra o aparelho. E para isso,<br />
tornava-se primordial re-conhecer uma comunidade<br />
e futurizar seus afluentes, dar voz às suas visões e<br />
perspectivas locais, entender seus processos políticos,<br />
poéticos, e ainda os bens simbólicos relacionados à<br />
maneira de viver na região. Assim nascia a proposta<br />
de uma carta geográfica - compartilhada entre redes,<br />
que pudesse localizar interesses em âmbito global,<br />
principalmente a fim de elucidar o entendimento<br />
9 Apesar dos números serem pouco expressivos e da maioria<br />
da população do Norte não ter internet em casa, a região apresentou<br />
um dos maiores aumentos de usuários nos últimos anos, com 171,2%,<br />
perdendo somente para o Nordeste (213%). Tudo isso ocorre pelo fato<br />
da Região Norte ser uma das mais pobres do Brasil, e consequentemente,<br />
as pessoas não têm poder aquisitivo para comprar os equipamentos<br />
de que precisam. Então, um dos principais motivos para a indisponibilidade<br />
de internet nos domicílios é o alto custo e a falta de serviço<br />
prestado para instalações telefônicas. O Norte ainda concentra o maior<br />
percentual de acesso por internet discada (31%), 11 pontos percentuais<br />
acima da média nacional. Todavia, em 2009, constatou-se uma queda<br />
de oito pontos percentuais, relembrando o mesmo dado do ano passado.<br />
Tal informação aponta para uma expansão da infraestrutura de acesso<br />
à rede para as áreas mais remotas do Brasil, contribuindo para a inclusão<br />
digital da população. São altos os investimentos entre 2010/2011<br />
por tecnologia satélite na região amazônica. O projeto GESAC, previu<br />
cerca de 9mi para distribuição de kits para áreas rurais na região. Entretanto,<br />
isso não contribuiu para suprir a necessidade nas áreas urbanas<br />
quanto ao uso das TIC’s para a produção e distribuição de conteúdos<br />
culturais.<br />
14<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
sobre a questão dos commons 10 e o imaginário<br />
midiático que mitificou a ideia do que seria a realidade<br />
amazônica para o mundo. Portanto, a proposta de<br />
H-A-C-K-L-A-B 11 (aqui foi levada ao pé da letra,<br />
do QUÊ e COMO podemos adaptar, modificar e/<br />
ou corrigir um programa/sistema para assim gerar<br />
acesso potente e mais próximo de uma realidade de<br />
fato.<br />
O passo seguinte foi desconstruir a ideia de<br />
evento desfalecendo uma programação. O mais<br />
importante era agregar em cada cidade um conjunto<br />
de pessoas que dialogavam com o contexto proposto,<br />
seja em suas atividades, projetos ou interesses. Junto<br />
a estes, os convidados não locais 12 que de alguma<br />
forma representavam nodos de outras redes com<br />
afinidades e/ou ações comuns que envolvessem a<br />
região. O convite fora à muitos, uma chamada para<br />
10 Em Commons, a revolução na produção simbólica, por<br />
Sergio Amadeu da Silveira: A palavra commons pode significar aquilo<br />
que é comum ou os espaços e as coisas que são públicas. Em alguns<br />
casos pode ter o significado de comunidade ou da produção compartilhada<br />
entre pares. http://www.cultura.gov.br/site/2007/05/03/<br />
commons-a-revolucao-na-producao-simbolica/<br />
11 Aqui, se refere ao lugar onde meu coração está, não corresponde<br />
exatamente um espaço físico, mas o poético e vívido. Por muito<br />
tempo distante entre idas e vindas por Belém do Pará, lugar onde nasci,<br />
ainda resguarda inúmeras recordações na memória de uma cultura<br />
que resiste em coexistir na ideia entre espaço, natureza e tempo.<br />
12 Os convidados não-locais da primeira imersiva: Pablo de<br />
Soto (Madri), arquiteto e membro fundador do coletivo hackitectura.net;<br />
Ricardo Folhes (STM), mestre em Ciências Ambientais e<br />
especialista em geoprocessamento; Felipe Fonseca(SP), pesquisador e<br />
articulador de projetos relacionados a redes de produção colaborativa<br />
e livre, mídia independente, software livre e apropriação crítica de<br />
tecnologia; Tatiana Wells (RJ), pesquisadora e agitadora de projetos<br />
relacionados à produção digital colaborativa, tecnologias livres<br />
e experimentação com narrativas locais; e Paulo Tavares (UK/SP),<br />
professor e organizador da plataforma mara-stream.org do Programa<br />
de Pesquisa em Arquitetura da Universidade Goldsmith. A segunda<br />
imersiva contou com a participação do coletivo colombiano Antena<br />
Mutante (Jorge Agudelo e Ali Salem/Colombia) que trabalha as<br />
relações do espaço público - as ruas e a internet, configurando mapas<br />
que evidenciam conflitos contextuais; o cineasta Bruno Viana (RJ), em<br />
continuidade de sua pesquisa com satélites geoestacionários; e Bruno<br />
Tarin (RJ) um dos fundadores da rede Imotirõ, além de pesquisador<br />
e gestor em projetos de cultura digital. Em ambas as imersivas este<br />
grupo percorreu as duas cidades, acompanhados por mim e com a<br />
mediação do artista, agitador e professor Arthur Leandro (PA).<br />
imersão, alusão para banhar-se no rio grande – a<br />
origem Tupi da palavra Pará. E envolver as pessoas<br />
de acordo com a perspectiva de horizonte do lugar:<br />
o rio infinito sempre presente nas duas cidades,<br />
Belém e Santarém. É preciso tempo e imaginação<br />
para reconhecer o lugar, perceber a quais redes ele se<br />
conecta e buscar ou produzir conhecimento. E assim,<br />
a impulsão foi provocar uma experiência promovendo<br />
um encontro entre narradores que pudessem se<br />
conectar a uma rede presencial que proporcionasse<br />
compartilhamento e troca de experiências.<br />
As imersivas favoreceram momentos importantes.<br />
O primeiro deles fora a mediação entre convidados<br />
locais e não-locais a partir de apresentações<br />
gerais sobre temas, pesquisa e processo criativo,<br />
oportunizando o surgimento de rodas de conversas,<br />
mostras e performances, realizadas de acordo com a<br />
demanda de cada grupo, sempre aberto para uma<br />
audiência livre. Os pontos dramáticos do modelo<br />
geopolítico da região gradativamente surgiam durante<br />
as apresentações, evidenciando os assuntos e<br />
palavras-chaves que poderiam compor as narrativas<br />
possíveis para um mapa em constante movimento, o<br />
que provocava um debate amplo consensual e por vezes<br />
conflituoso.<br />
Parte dessa narrativa é contada a partir do<br />
álbum fotográfico - http://hacklab.comumlab.org/<br />
photos, onde são apresentadas as tags relacionadas<br />
ao encontro, além de fragmentos de textos que<br />
permearam as situações vivenciadas durante o<br />
processo. A experiência favoreceu uma troca e<br />
suporte de material que pôde subsidiar e dar origem<br />
a tantas outras cartografias, pesquisas e produções<br />
que envolvam as tecnologias no contexto geopolítico<br />
regional, isso sem abandonar uma perspectiva poética<br />
e criativa. O resultado das imersivas fora expresso em<br />
forma de relatos, trocas bibliográficas, vídeos, filmes<br />
e muitas imagens compartilhadas através de um HD<br />
externo que à todo momento estava disponível para<br />
copiar, colar e distribuir a informação circulante.<br />
Ainda assim, era difícil perceber um resultado durante<br />
as imersões. Foi necessário ganhar um tempo para<br />
minimamente organizar as informações processadas<br />
que surgiam em forma de diário e linkanias, meses<br />
após os encontros.<br />
As informações compartilhadas evidenciaram<br />
alguns caminhos para que mais projetos se<br />
desenvolvam a partir de uma visão mais aproximada<br />
aos pontos críticos da Amazônia, e melhor, com mais<br />
contribuições propostas por amazônidas. Algumas<br />
pesquisas poderiam desencadear o planejamento<br />
de uma comunicação efetiva: via celular, para<br />
atender as redes que interagem dentro da Amazônia<br />
(cineclubismo, por exemplo); o desenvolvimento de<br />
redes autônomas sem fio a fim de gerar e distribuir<br />
informação entre bairros não atendidos ou fora<br />
do mapa das conectividades (não-públicas); a<br />
organização e formação em uso de mídias digitais para<br />
fortalecer o trabalho das organizações em direitos<br />
humanos, etc. Os relatos foram disponibilizados<br />
no wikki do projeto – http://hacklab.comumlab.<br />
org, criado durante as imersivas em colaboração<br />
com uma rede autônoma sem fio - ZASF proposta<br />
e desenvolvida por Felipe Fonseca. Além disso, um<br />
grupo também fora criado no facebook, e de lá pra<br />
cá, todo material vem sendo organizado também<br />
numa rede independente entre mais projetos latino<br />
americanos, https://n-1.cc/pg/groups/915668/poruma-cartografia-crtica-da-amaznia/,<br />
gerando uma<br />
vizinhança com projetos afins, como a proposta de<br />
Cartografias Insurgentes realizada no Rio de Janeiro.<br />
Por fim, o sentido mais importante do que se<br />
pôde barganhar com a realização desta experiência -<br />
considerando o tempo e as contingências - foi o jogo<br />
possível e estabelecido entre a nossa criatividade,<br />
liberdade e autonomia. E nesse jogo, do quem-perdeganha,<br />
como diz Vaneigen: aquilo que não é dito é<br />
mais importante do que aquilo que se diz, aquilo que<br />
é vivido é mais importante do que aquilo que se é<br />
representado no plano das aparências 13 . Portanto<br />
um espaço-tempo subjetivo, possibilitando a gestão<br />
de um conhecimento, um viver junto, mesmo que<br />
temporariamente e anônimo.<br />
13 Vaneigem, Raoul. A arte de viver para as novas gerações<br />
- Coleção Baderna. Conrad Editora. São Paulo. Pág. 199
16<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
Arte _ hackeamento<br />
diferençA, dissenso e<br />
reProgrAmAbilidAde tecnolÓgicA<br />
DANIEL DE SOUzA NEVES HORA<br />
HAckeAmento e<br />
Produção dA diferençA<br />
1.1 cÓdigo e ruPturA<br />
As antigas sociedades de soberania manejavam<br />
máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios;<br />
mas as sociedades disciplinares recentes tinham<br />
por equipamento máquinas energéticas, com<br />
o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da<br />
sabotagem; as sociedades de controle operam por<br />
máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática<br />
e computadores, cujo perigo passivo é a<br />
interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de<br />
vírus. GILLES DELEUZE, Conversações<br />
O ser / fala / sempre e em qualquer<br />
lugar / por meio de / toda / língua. 1<br />
JACQUES DERRIDA, Marges de la Philosophie<br />
1 São de nossa autoria as traduções para o português<br />
de citações de obras consultadas em outros idiomas.<br />
O hackeamento 2 é um conceito difundido a partir<br />
da informática, cujos sentidos diversos inspiram<br />
apropriações políticas e disputas sobre a sua legitimidade.<br />
Embora seja facilmente identificado com a invasão<br />
ilícita de computadores por meio de acesso remoto,<br />
via rede, o hackeamento significa basicamente<br />
a exploração dos limites daquilo que é previamente<br />
considerado possível ou admissível (STALLMAN,<br />
2002; RAYMOND, 2003). Para não ser confundida<br />
diretamente com o roubo ou corrupção de arquivos<br />
digitais, essa forma de experimentação costuma ser<br />
distinguida dos atos criminosos denominados como<br />
cracking, que envolvem o uso da tecnologia mas nem<br />
sempre são derivados de algum tipo de hackeamento.<br />
Essa desvinculação do hackeamento com o<br />
cracking se fundamenta em uma ética defendida pela<br />
comunidade hacker. Entre suas premissas estão a apologia<br />
do compartilhamento e da liberdade de informação<br />
(RAYMOND, 2003), que se aliam à aposta na<br />
descentralização do controle, à descrença nas autoridades,<br />
à confiança nas possibilidades de criação estética<br />
e de aprimoramento das condições de vida com<br />
ajuda da tecnologia e à disseminação desse conjunto<br />
de ideias para outras atividades culturais (LEVY, S.,<br />
2001).<br />
Apesar da adoção desses preceitos, a ética<br />
hacker, no entanto, não é suficiente para a absoluta<br />
separação entre hackeamento e cracking, sobretudo<br />
quando se colocam em discussão temas políticos<br />
como o acesso ao conhecimento, a privacidade e<br />
2 Os dicionários de língua portuguesa registram<br />
apenas o termo hacker, proveniente do inglês, que designa o<br />
“entusiasta de computador; aquele que é perito em programar<br />
e resolver problemas com o computador; pessoa que acessa<br />
sistemas computacionais ilegalmente” (HOUAISS, 2010). Na<br />
falta de aportuguesamento ou registro de derivações da palavra,<br />
adotamos a expressão hackeamento como tradução para<br />
os substantivos equivalentes à ação dos hackers (hacking) e ao<br />
seu resultado (hack). Traduzimos ainda a forma flexional to<br />
hack como hackear, verbo que teria conjugação semelhante à de<br />
recensear.
outras relações mediadas pela telemática. Para Tim<br />
Jordan (2008), por exemplo, o crack é um tipo transgressor<br />
de hackeamento, já que este, inicialmente, se<br />
caracteriza por alterar a normalidade da tecnologia e,<br />
em seguida, desconstruir e subverter as determinações<br />
cotidianas que dela são decorrentes.<br />
Outros como Stallman (2002), entretanto,<br />
apontam que o hackeamento é marcado pelo jogo,<br />
o humor, o imediatismo e a perspicácia. Seus resultados<br />
habituais são a reconfiguração dos aparatos<br />
tecnológicos e a adaptação de seus programas para<br />
a execução de funções imprevistas. Desse modo, são<br />
estendidas as capacidades técnicas projetadas nas<br />
etapas de desenvolvimento e fabricação dos dispositivos.<br />
Com isso, caem por terra as regras dos manuais<br />
de uso e os limites de controle impostos por administradores<br />
e proprietários da tecnologia.<br />
É essa a acepção que nos interessa como<br />
primeiro parâmetro conceitual de aproximação entre<br />
a arte e o hackeamento. A carga de transgressão,<br />
no entanto, não deve ser dispensada, pois os desvios<br />
suscitam o questionamento da tecnologia e, eventualmente,<br />
podem gerar impactos nos contextos<br />
culturais por ela influenciados. É o que comprova a<br />
afirmação histórica da contracultura hacker como<br />
atitude de reação e, ao mesmo tempo, de estímulo ao<br />
aprimoramento e disseminação da microinformática<br />
(LEMOS, 2004).<br />
Essa contribuição diz respeito sobretudo aos<br />
computadores pessoais construídos com o mesmo<br />
espírito de democratização dos clubes de hackeamento<br />
pioneiros dos anos 60 e 70 – formados com<br />
o propósito de desenvolvimento de sistemas operacionais,<br />
aplicativos e alternativas caseiras de montagem<br />
de computadores (LEVY, S., 2001, STERLING,<br />
1994). Mas também se refere aos métodos de conexão<br />
e intercâmbio de dados precursores da internet<br />
e aos sistemas de criptografia e de proteção de dados.<br />
Se não fosse o hackeamento, os dispositivos de informação<br />
e comunicação seriam diferentes daqueles<br />
que conhecemos.<br />
Também seria outro o modo como são mediadas<br />
as relações sociais. Pois, conforme Douglas<br />
Thomas (2002), o hackeamento não abarca apenas<br />
a compreensão e exploração do funcionamento dos<br />
aparelhos e das interações que com eles mantemos.<br />
Também engloba as relações inter-humanas amparadas<br />
em suas estruturas. Para o autor, o valor<br />
contracultural do hackeamento reflete, primariamente,<br />
sua interferência em duas funções sociais da<br />
telemática: a de guardar e a de desvelar os segredos.<br />
Em face do poder tecnológico crescente das corporações<br />
multinacionais e dos complexos militares e<br />
estatais, em um mundo repleto de senhas, a tecnologia<br />
é apropriada pelo hackeamento como sala de<br />
jogos e meio de experimentação dos caminhos culturais<br />
de contestação (ou de aderência) às condições<br />
18<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
socioeconômicas dominantes. Se por um lado há o<br />
desbloqueio do acesso ao conhecimento, por outro o<br />
mesmo conhecimento pode ser empregado na proteção<br />
do anonimato de quem lida com os dispositivos<br />
de informação.<br />
É nesse sentido também que Taylor (1999) diagnostica<br />
a ambivalência social do hackeamento. Por<br />
um lado, recai sobre a contracultura hacker a figura<br />
de bode expiatório da sensação generalizada de vulnerabilidade,<br />
incutida pela presença difusa de tecnologias<br />
de informação e comunicação insuficientemente<br />
seguras no cotidiano. Por outro, é essa mesma<br />
capacidade de subversão e rebeldia que alivia o receio<br />
do advento de uma ditadura cibernética consumista.<br />
O hackeamento representa, então, uma prática ao<br />
mesmo tempo temida e suportada. Por sua natureza<br />
escorregadia, seu acolhimento se transforma conforme<br />
as circunstâncias com as quais se relaciona.<br />
O hackeamento resiste, portanto, como conveniência<br />
inconveniente. Para André Lemos (2004),<br />
apesar do risco de atitudes tecnoelitistas por parte de<br />
seus praticantes mais capacitados, o hackeamento<br />
responde pela produção de uma despesa eletrônica,<br />
um excesso de dados, que sustenta uma possibilidade<br />
de resistência contra a tecnocracia e a lógica<br />
utilitária da acumulação econômica. Essa capacidade<br />
contra-hegemônica se exercita pelo micropoder das<br />
apropriações prosaicas obtidas frequentemente pelo<br />
truque e o contrabando de signos, de linguagens e de<br />
conexões. Essas vias de consumo produtivo esvaziam<br />
o totalitarismo da submissão aos programas dos<br />
dispositivos e estabelecem relações dialógicas entre<br />
suas finalidades funcionais e suas formas de apreensão<br />
políticas e psicológicas.<br />
No aspecto político, ressaltamos as mudanças<br />
socioeconômicas impulsionadas pelo hackeamento.<br />
Em primeiro lugar, encontramos a observação de<br />
Pekka Himanen (2001) sobre a substituição da ética<br />
protestante do trabalho de Max Weber pela ideologia<br />
comunitária do hackeamento. Nessa nova situação, o<br />
trabalho deixa de ser um dever, executado em turnos<br />
preestabelecidos, e passa a ser orientado pela consagração<br />
da criatividade, pela partilha de habilidades e<br />
do conhecimento, por uma atitude apaixonada pelas<br />
atividades laborais (mescladas com as atividades<br />
lúdicas) e pela doação de produtos para o uso e adaptação<br />
coletiva – sem as restrições de propriedade<br />
privada.<br />
Embora as constatações de Himanen sejam<br />
plausíveis, não dedicam a atenção necessária às<br />
questões conflitivas dos novos arranjos produtivos e<br />
improdutivos do hackeamento. Nesse sentido, recorremos<br />
ao comentário de Barbrook (2006) contra a<br />
inclusão dos hackers entre as novas classes criativas<br />
intermediárias (nem dominantes nem trabalhadoras),<br />
no entanto, destinadas a um papel de liderança<br />
econômica por conta de sua educação, energia em-<br />
preendedora e disponibilidade para autogerir sua<br />
inserção no capitalismo cognitivo pós-fordista. Conforme<br />
o autor, trata-se de uma interpretação reducionista,<br />
e não emancipadora, pois não leva em conta<br />
a atual transição do capitalismo para além de sua natureza<br />
existente. O equívoco de restringir a criatividade<br />
a um grupo seleto de pessoas, a classe criativa,<br />
torna-se flagrante quando se nota que as multidões<br />
são igualmente capazes de produzir conteúdos culturais,<br />
os quais intercambiam livremente e gratuitamente,<br />
como dádiva.<br />
De modo semelhante, McKenzie Wark (2004)<br />
argumenta que os hackers terminam por se constituir<br />
como classe produtora, em virtude da apropriação<br />
de seus feitos e restrição do acesso aos meios de<br />
produção pelas classes vetoriais. Estas são formadas<br />
por aqueles que controlam os vetores de telestesia,<br />
ou seja, as linhas sem posição fixa dos modos e dos<br />
meios, atuais e virtuais, de percepção à distância, de<br />
objetivação e comunicação da informação que é fruto<br />
do hackeamento. Para o autor, a consciência dessa<br />
disputa é necessária para que os hackers hackeiem<br />
sua própria condição de classe a partir do hackeamento<br />
da noção de propriedade de dados imateriais<br />
digitais, facilmente compartilháveis. Além disso,<br />
Wark declara que o hackeamento deve ser entendido<br />
como prática irrestrita, que independe da ação dos<br />
hackers, e envolve toda ruptura, seja dos códigos da<br />
telemática, seja das barreiras ao movimento livre de<br />
pessoas no mundo.<br />
Por fim, de acordo com Sherry Turkle (1997), o<br />
hackeamento seria um dos índices do declínio da cultura<br />
de cálculo modernista e da ascensão da cultura<br />
da simulação e da exploração anárquica do pós-modernismo.<br />
Segundo a autora (1984), o hackeamento se<br />
caracteriza por efeitos surpreendentes obtidos com<br />
meios básicos, graças ao exercício de uma maestria<br />
inconvencional, uma ciência mole, cultivada fora dos<br />
padrões da educação. Embora possa se expressar<br />
por toda parte, a autora defende a tecnologia digital<br />
como habitat apropriado ao ímpeto de experimentação<br />
do hackeamento, uma vez que ela ofereceria<br />
maior flexibilidade para a manipulação de seus objetos,<br />
sobretudo os códigos de programação e os dados<br />
numéricos.<br />
1.2 DIfERENçAS TECNOLóGICAS,<br />
TECNOLOGIAS DA diferensA<br />
Máquinas improvisadas, operações anárquicas,<br />
programas inconvencionais, algoritmos abertos<br />
à apropriação e compartilhamento, práticas<br />
colaborativas e táticas de desvio e interferência em<br />
circuitos de produção e comunicação. As adaptações<br />
e subversões da tecnologia pelo hackeamento<br />
alcançam uma abrangência maleável, que concerne<br />
tanto às aplicações corriqueiras das ferramentas,<br />
dos mecanismos e das lógicas operacionais, quanto<br />
aos experimentos que alargam as fronteiras da ciência,<br />
da indústria e da arte. Tal impacto se deve, por<br />
uma parte, à disseminação dos códigos de registro,<br />
armazenamento, compartilhamento e acionamento<br />
da informação. Por outra, deriva do ímpeto de reprogramação<br />
da cultura de exploração anárquica e do<br />
faça-você-mesmo.<br />
Para nosso estudo sobre a arte e o hackeamento,<br />
optamos proceder com essa ideia de alteração e<br />
de diferença tecnológica que o termo comporta nas<br />
diversas acepções expostas até aqui. A escolha, no<br />
entanto, não equivale a um consenso teórico, pois<br />
preserva a abertura para abordagens díspares. Como<br />
vimos, autores como Wark e Turkle admitem o hackeamento<br />
fora dos domínios da telemática. No entanto,<br />
para Jordan (2008, p. 10), o fenômeno se restringe<br />
às práticas materiais coletivas que produzem,<br />
ainda que indiretamente, alguma “diferença ou algo<br />
inédito em um computador, rede e/ou tecnologia de<br />
comunicação”.<br />
Com essa concepção, Jordan pretende evitar<br />
a diluição do hackeamento como sinônimo de<br />
qualquer ação criativa. Contudo, para escapar da<br />
propensão ao determinismo tecnológico decorrente<br />
dessa limitação, o autor (2008, p. 128-130) concede<br />
espaço para o abrigo de duas categorias subordinadas<br />
de ações indiretamente ligadas à programação<br />
e ao uso de computadores e redes de comunicação.<br />
A primeira diz respeito ao hackeamento das interações<br />
sociotécnicas, com a finalidade de promoção de<br />
mudanças sociais. São exemplos disso tanto a fusão<br />
de hackeamento e ativismos políticos no hacktivismo<br />
quanto a ciberguerra, ciberterrorismo e cibercrime. A<br />
segunda categoria abraça a inversão das leis de propriedade<br />
intelectual pelos modelos de licenciamento<br />
aberto do Creative Commons3 , o trabalho do “proletariado<br />
de programadores” (hackers assalariados de<br />
centros de pesquisa e empresas) e outras práticas que<br />
extrapolam a computação.<br />
Com essa tipologia, Jordan (2008, p. 134-141)<br />
tenta equacionar a “dificuldade conceitual que o<br />
hackeamento apresenta”, em consequência da “simultânea<br />
separação e associação entre tecnologia<br />
e sociedade” e da mútua capacidade de influência<br />
entre ambos os campos. Com amparo na ideia de<br />
“potencialidades cotidianas”, ou seja, o conjunto de<br />
possibilidades oferecido pelos artefatos aos usuários,<br />
o autor justifica a existência de posições contraditórias,<br />
porém dinâmicas e efetivas, na mídia digi-<br />
3 Creative Commons é uma instituição sem fins<br />
lucrativos dedicada a facilitar o compartilhamento de conteúdos<br />
e seu aprimoramento colaborativo. Oferece modelos de licenças<br />
abertas e outros mecanismos legais para registro de obras que<br />
regulam opções de acesso, de recombinação, de uso comercial<br />
e outras formas de apropriação e uso. Site: http://creativecommons.org/.
tal. Pois essa mídia suspende o problema de oposição<br />
entre a determinação tecnológica da sociedade e a<br />
determinação social da tecnologia. Dessa forma, o<br />
hackeamento redesenha a relação entre homem e<br />
máquina (e vice-versa), ao explorar e alterar as potencialidades<br />
determinantes das “sociotecnologias<br />
da computação e das redes”.<br />
Vista com desconfiança por Jordan (2008), a<br />
extensão do conceito de hackeamento a atividades<br />
que não são diretamente ligadas à computação e à<br />
telecomunicação se apresenta, no entanto, como<br />
alternativa teórica plausível, sobretudo quando são<br />
traçados os contornos mais amplos da tecnologia no<br />
âmbito da arte e do pensamento filosófico. Nesse sentido,<br />
segundo Wark (2004, parágrafo 83) 4 , devemos<br />
admitir que hackear é diferir o real, abstrair alternativas,<br />
latências do virtual, para lançá-las no atual.<br />
Para além da parcialidade do real ou mesmo de<br />
sua falsidade, o hackeamento demonstra, conforme<br />
Wark, que “sempre há um excesso de possibilidades<br />
expresso no que é atual, o excedente do virtual”. Dessa<br />
forma, hackear significa explorar o “domínio inexaurível”<br />
daquilo que não é, mas pode vir a ser. De<br />
acordo com essa acepção, o hackeamento é realizado<br />
não apenas na informática e telemática e práticas<br />
sociais correlatas, como quer Jordan (2008). É efetuado<br />
também tanto “na biologia quanto na política,<br />
tanto na computação quanto na arte ou na filosofia”<br />
(WARK, 2004, parágrafo 75).<br />
Segundo Wark, o que o hackeamento gera e<br />
afirma em cada um desses contextos é a abstração,<br />
ou seja, a construção de um plano de arranjos de<br />
diferenciação de componentes funcionais, sobre o<br />
qual podem ser conjugados elementos que sob outras<br />
circunstâncias são separados e não-relacionados.<br />
Por meio dessa abstração, o hackeamento promove a<br />
possibilidade da produção da diferença que produz a<br />
diferença, ainda que nem toda abstração vise a uma<br />
aplicação produtiva, no sentido econômico.<br />
Enquanto abstração do que é inicialmente tomado<br />
como natural, o hackeamento proporciona a<br />
(re)duplicação da natureza em natureza secundária,<br />
e desta em natureza terciária, seguindo um desdobramento<br />
contínuo em escalas infinitas. O que Wark<br />
propõe com isso é algo bastante próximo do mundo<br />
codificado de Vilém Flusser (2007, p. 90-93), definido<br />
como universo de “fenômenos significativos, tais<br />
como o anuir com a cabeça, a sinalização de trânsito<br />
e os móveis”, que “nos faz esquecer o mundo da<br />
‘primeira natureza’”.<br />
Para Flusser, a comunicação humana, baseada<br />
na codificação, é “contranatural” por sua ação<br />
“negativamente entrópica” (ou neguentrópica), pois<br />
permite a memória e a transmissão artificial das<br />
“informações adquiridas de geração para geração”,<br />
4 O livro de Wark não possui numeração de<br />
página, mas apenas de parágrafos.<br />
20<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
que de outra maneira não se organizariam nem conservariam.<br />
Segundo o autor (2007, p. 96-97), esse<br />
processo de armazenamento de dados para a futura<br />
reedição implica o intercâmbio de conhecimentos<br />
pelo diálogo, que se revela, então, como tática plural<br />
de resistência ao “efeito entrópico da natureza”, de<br />
perda da informação, colocando em circulação subsídios<br />
imprescindíveis ao acontecimento singular de<br />
um discurso.<br />
As condições de registro, disponibilidade e partilha<br />
da informação parecem ser, portanto, aspectos<br />
incontornáveis para a produção da produção da diferença,<br />
especialmente no que concerne à adoção do<br />
hackeamento como prática artística. Pois conforme<br />
Wark (2004), para atingir seus efeitos, o hackeamento<br />
desfaz as travas impostas pelas regras tradicionais<br />
de propriedade. Essa superação se apoia em uma<br />
mudança significativa introduzida pelas tecnologias<br />
numéricas: a posse de um bem cultural em formato<br />
digital não requer a privação de acesso a ele. Dito de<br />
outra maneira, um arquivo de dados pode ser distribuído<br />
sem que se esgote o seu estoque em nenhum<br />
ponto do circuito de compartilhamento estabelecido.<br />
De acordo com Wark, a liberdade de informação<br />
é condição para o hackeamento, entendido como<br />
processo cíclico de produção baseado em conteúdos<br />
anteriores, que os desvaloriza como bem de exploração<br />
exclusiva conforme são reutilizados. Essa noção<br />
dilatada de hackeamento toca, portanto, em questões<br />
recorrentes da cultura mundial contemporânea:<br />
como a diferença se compõe e se manifesta (a partir<br />
da diferença), de que modo é partilhada e negociada<br />
e de que maneira agrega comunidades.<br />
A abordagem do tema da diferença deve, no<br />
entanto, estar atenta aos sentidos de disparidade,<br />
singularidade e discordância, conforme a reflexão<br />
proposta por Derrida (1972) a partir da invenção do<br />
neografismo da diferensa. Como sabemos, a diferensa<br />
(différance) não se distingue da diferença<br />
(différence) pela audição 5 , mas apenas pela escrita e<br />
leitura. Com a nova grafia, o autor tenta compensar<br />
o desperdício da multiplicidade semântica do verbo<br />
différer, derivado do latim. Corriqueiramente identificado<br />
com o ato de se destacar, de ser desigual, o<br />
vocábulo remete ainda à ação de dilatar, adiar, prorrogar,<br />
aguardar, reservar e, por fim, a de polemizar,<br />
dissentir. A segunda acepção é associada à protelação,<br />
à espera de ocasião mais propícia e à contempo-<br />
5 No original em francês, Derrida substitui a<br />
vogal “e” de différence pela vogal “a” de différance, criando uma<br />
nova grafia que mantém, no entanto, inalterado o valor fonético.<br />
Empregamos em português a substituição da “ç” de diferença<br />
pelo “s” de diferensa, conforme a sugestão de Nícia Adan Bonatti,<br />
tradutora de Derrida. Fonte: OTTONI, Paulo (curadoria).<br />
Folheto da exposição DERRIDA ‐ A Traduzir. Unicamp, junho<br />
de 2003. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/traduzirderrida/EXPO.htm.<br />
Acesso em: 25 de novembro de 2009.<br />
rização, ao desvio suspensivo que anula ou tempera o<br />
efeito de atendimento ou de realização de um desejo.<br />
A última referência, por sua vez, ressalta o sentido de<br />
divergência 6 .<br />
São diversas as implicações do paralelo entre<br />
hackeamento e diferensa. Em primeiro lugar, é preciso<br />
considerar que esta última é uma operação que<br />
se realiza no interior de uma gramática de escritura<br />
fonética e, por extensão, de uma cultura que lhe é<br />
inextrincável. Por analogia, o hackeamento deve ser<br />
encarado, então, como um procedimento inserido<br />
em uma tecnologia, cujas dinâmicas correspondem<br />
ao contexto técnico-cultural, funcional e social, que<br />
lhe envolvem.<br />
Por outro lado, o jogo silencioso da diferensa,<br />
conforme Derrida, remete a uma ordem nem sensível,<br />
nem inteligível, localizada entre registro e performance,<br />
que questiona a solicitação de um ponto<br />
de partida absoluto e condiciona a possibilidade de<br />
desempenho de todo signo. O hackeamento, por sua<br />
parte, se apresenta como fluxo contínuo das abstrações<br />
propostas por Wark (2004), que viabilizam sua<br />
própria sequência pela (dis)funcionalidade das (re)<br />
composições tecnológicas que articula (na e pela tecnologia),<br />
por meio do confronto entre virtualidades<br />
que se atualizam. De volta a Derrida, a significação<br />
não resulta da força compacta de um ponto central,<br />
mas antes da rede de oposições que lhe distingue.<br />
Assim como Derrida entende a diferensa, admitimos<br />
que o hackeamento se agencia com base em<br />
uma errância empírica que une acaso e necessidade<br />
em um cálculo não-objetivo, que rompe e refaz as<br />
fronteiras tecnológicas e as oportunidades para novos<br />
hackeamentos. Sem projeto preconcebido para a<br />
sua execução e engajado em uma cultura de simulação,<br />
o hackeamento seria o diferir da diferença, sem<br />
uma causa predeterminada exterior a seu próprio<br />
jogo de apropriação, expansão e subversão tecnológica<br />
voltada para a sua própria continuidade cíclica.<br />
O hacker hackeia o mundo e a si mesmo de<br />
uma vez, pois ao alterar a tecnologia expressa e absorve<br />
as singularidades de sua relação com o tecido<br />
de diferenças de que consiste todo código ou sistema<br />
de referência, conforme o que apresenta Derrida<br />
(1972). Em consequência dessa reciprocidade entre<br />
quem hackeia e o que é hackeado, o hackeamento<br />
não é função do hacker, assim como a linguagem<br />
não é função do sujeito falante. Se este se inscreve na<br />
6 No francês, conforme Derrida (1972), o diferente<br />
e o divergente também encontram nas palavras différent<br />
e différend duas grafias distintas com sonoridade idêntica.<br />
Ambos os sentidos se apoiam na produção de um intervalo, uma<br />
distância, topológica e cronológica, que separa o que é do que<br />
não é, de maneira que aquilo que é seja de fato o que é. Essa<br />
constituição do presente como síntese complexa, “não‐originária,<br />
de marcas, de traços de retenção e protensão” (p. 14) é o que<br />
Derrida denomina arquiescritura ou diferensa – que ao mesmo<br />
tempo é espaçamento e temporização.<br />
linguagem, se define por seu idioma, sua capacidade<br />
de codificação e intercâmbio neguentrópico da informação,<br />
de modo análogo, o hacker se define pelo<br />
código que é objeto de hackeamento, por seu diálogo<br />
tecnológico desviante que reprograma a abstração da<br />
natureza. Torna- se, assim, um agente de abstração<br />
que se conforma como intercambista do sistema de<br />
diferenças, seguindo e promovendo a diferensa.<br />
Essa inscrição do hacker no código que é objeto<br />
de hackeamento reitera o sentido de produção<br />
da diferença conforme a análise de Wark. O código,<br />
aliás, também é uma escrita, uma linguagem. Desse<br />
modo, o hackeamento age sobre o mundo codificado<br />
e consolida opções de atravessamento e remarcação<br />
de suas bordas. É também essa noção de diferensa<br />
das fronteiras que Bernard Stiegler (2001) atribui à<br />
técnica, cujos modos de performance são modos de<br />
expressão (e vice-versa) que suspendem as leis habituais<br />
do ambiente orgânico. Esse resultado reflete<br />
uma capacidade de ficcionar o real exercida por meio<br />
de ferramentas simples, aparatos de comunicação<br />
avançados ou engenharia genética. Desde que há<br />
técnica, a história ecoa a soma das sucessivas adaptações<br />
e registros artificiais – abstrações, diferensa,<br />
hackeamento.<br />
1.3 como dissidir/decidir<br />
junto<br />
De modo concorrente, a comunidade hacker é<br />
agente e paciente da abstração (WARK, 2004). Pois,<br />
conforme observa Wark, ao hackear novos mundos,<br />
ela se converte na categoria reconhecida por sua habilidade<br />
de atualizar a realidade a partir de sua virtualidade,<br />
de produzir a diferença. Isso não lhe confere,<br />
porém, uma situação privilegiada. Pois seus feitos<br />
terminam frequentemente apropriados pelas classes<br />
vetoriais. O hackeamento é, portanto, também uma<br />
questão comunitária, idiomática, no sentido de uma<br />
singularização produzida pela performatividade.<br />
De modo semelhante à Derrida e Stiegler, Roland<br />
Barthes (2003) descreve a linguagem como o<br />
próprio lugar da sociabilidade, o cenário político, em<br />
que o poder é exercido por meio da intimidação da<br />
linguagem. Assim como o hackeamento reprograma<br />
a tecnologia dominante, a literatura representa, para<br />
o autor, a possibilidade de refutação e de emancipação<br />
do poder do discurso. A utopia de convívio, do<br />
Viver-Junto, sugerida por Barthes, se baseia justamente<br />
na identificação de uma fantasia de autonomia<br />
e integração, presente em obras literárias, que<br />
denomina como idiorritmia (ídios = próprio + rhythmós<br />
= ritmo). A expressão emprestada do vocabulário<br />
religioso designa, por metáfora, configurações<br />
que conciliam ou tentam conciliar a vida coletiva e a<br />
vida individual. São situações que facilitam, em lugar<br />
da imposição de um único ritmo, a mobilidade geral
de um rhythmós, ou seja, fluidez, “interstícios, fugitividade<br />
do código” (pp. 15-16).<br />
O que Barthes propõe com a idiorritmia é a<br />
experiência de ajuste de intervalo crítico, entre uma<br />
singularidade e outra, que faria possível uma sociabilidade<br />
sem alienação, uma solidão sem exílio. Equilíbrio<br />
que o autor investiga por meio da simulação<br />
do espaço cotidiano, isto é, do cenário, maquete ou<br />
“lugar-problema do Viver-Junto” existente nos romances.<br />
O coabitar bem, para ele, é um fato espacial e<br />
temporal, resultante do transcurso de gestos comuns<br />
ou extraordinários dentro desse espaço dramático.<br />
Comparamos a idiorritmia com a perspectiva<br />
apontada por Wark de uma comunidade de hackeamento<br />
difuso entre quaisquer agentes interessados<br />
e em quaisquer domínios de produção da diferença.<br />
Essa comunidade suportaria o compartilhamento da<br />
abstração, de forma independente das estratégias de<br />
captura e reificação vetoriais. O cenário de tal fantasia<br />
seria constituído por meio das redes de telecomunicação,<br />
no ciberespaço, mas também por meio dos<br />
arranjos socioculturais que regulam a disponibilidade<br />
dos códigos de conduta e atividade, bem como a<br />
liberdade de reprogramação dos mesmos por gestos<br />
corriqueiros e, ao mesmo tempo, extraordinários de<br />
hackeamento.<br />
A instituição da idiorritmia para e pelo hackeamento<br />
despertaria ainda a consciência geral sobre<br />
a artefatualidade do cotidiano, ou seja, sobre<br />
a natureza fabricada da atualidade (DERRIDA;<br />
STIEGLER, 2002). Desse modo, seria possível repensar<br />
pela estética e pela ética as condições políticas<br />
que são formadas e transformadas, em sua estrutura<br />
e conteúdo, pelas teletecnologias de filtragem, investimento,<br />
interpretação performativa e “modelagem<br />
ficcional”, apoiadas em aparatos “factícios ou artificiais,<br />
hierarquizadores e seletivos” (p. 3).<br />
A contrainterpretação da artefatualidade é<br />
um dos efeitos possíveis da resistência cultural pelo<br />
hackeamento. Pois, ao mudar a configuração e a funcionalidade<br />
de dispositivos e códigos predeterminados<br />
por agentes privados e/ou estatais dominantes,<br />
o hackeamento move a própria atualidade. Desafia,<br />
por meio dessa tática, o poder “homo-hegemônico”<br />
(DERRIDA; STIEGLER, 2002, p. 47), que se fundamenta<br />
na estandardização dos fatos, por meio da<br />
intervenção em seu enquadramento, ritmo, contorno<br />
e forma. Conforme Wark (2004), é por essa estratégia<br />
que a indústria global da produção cultural e da<br />
memória se apropria e domestica o que há de inovação<br />
no hackeamento, protegendo, assim, a divisão<br />
entre produtores e consumidores – entre proprietários<br />
dos vetores de comunicação, das patentes e<br />
dos copyrights e grupos que abstraem a informação.<br />
O hackeamento, tomado como prática artística<br />
e coletivista, sublinha, portanto, o valor contracultural<br />
de uma participação irrestrita na produção da<br />
22<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
diferença – portanto, na diferensa. Ao se tornar acessível,<br />
a multiplicidade abala a cena global de aplicação<br />
das tecnologias de codificação e controle, moldadas<br />
por critérios de acumulação do poder econômico<br />
e político. No entanto, como ressalva Wark, é preciso<br />
considerar que o hackeamento fornece o próprio<br />
combustível de comando, na medida em que as atualizações<br />
da virtualidade que efetua carregam em<br />
si possibilidades de exploração comercial frequentemente<br />
sequestradas para a posse privada. A prescrição<br />
da escassez e do consumo regrado aos que<br />
são privados do acesso deve ser tomada como alvo<br />
da ruptura e da dissidência, dedicadas a prevenir a<br />
recorrência reativa da dominação.<br />
Ante essa circunstância, recorremos aqui a<br />
um jogo semântico entre dois parônimos da língua<br />
portuguesa: os verbos dissidir (discordar, divergir)<br />
e decidir (escolher e, por extensão, estabelecer uma<br />
norma). Com esse procedimento, não pretendemos<br />
obter o mesmo efeito da diferensa de Derrida, mas<br />
sim sublinhar a proximidade fonética de sentidos<br />
díspares, que também é observada em diferir (adiar,<br />
distinguir ou divergir) e deferir (condescender, atribuir<br />
ou dispensar atenção) 7 .<br />
Dissidir e decidir são ações que reverberam o<br />
paradoxo do valor divergente de abertura de códigos<br />
pelo hackeamento que, algumas vezes, é domesticado<br />
na decisão de novos sistemas proprietários.<br />
Consideramos que a questão das sociedades<br />
contemporâneas, imersas na artefatualidade gerada<br />
pela tecnologia, não se restringe à questão barthesiana<br />
de como viver junto. Se essa coexistência implica<br />
a negociação dos ritmos descompassados, requer,<br />
por outro lado, uma ampla distribuição da diferensa.<br />
Nos termos empregados por Wark, demanda o agenciamento<br />
coletivo da abstração e das atualizações da<br />
virtualidade. Sob essa perspectiva de confronto entre<br />
consensos e dissensos, a tecnologia nos convoca<br />
para a solução do dilema de como dissidir/decidir<br />
junto, que nos indaga: de que maneira a produção da<br />
diferença pode suceder como idiorritmia, sem se deixar<br />
transformar em nutriente propulsivo da homohegemonia,<br />
mas tampouco se tornar em excentricidade<br />
absoluta, improdutiva, proscrita da comunidade<br />
como algo incomunicável e inoperante?<br />
contrAProtocolo<br />
O Viver-Junto solicita um código de interação<br />
social, assim como a operatividade do aparato<br />
depende de uma organização e um acionamento<br />
sistêmico. Quando o Viver-Junto se conjuga com a<br />
7 Interessante notar ainda que embora as sonoridades<br />
em cada dupla (dissidir x decidir / diferir x deferir) se<br />
distanciem, podem também se aproximar quando a pronúncia<br />
sofre desvios.<br />
operatividade do aparato, seus códigos se emulam 8 e<br />
se dispõem em circuito. Social e maquínico se agenciam.<br />
Em qualquer caso, em comunidade, numa relação<br />
entre humanos e máquinas ou no automatismo, a<br />
interatividade com os componentes depende de protocolos.<br />
Segundo Alexander Galloway (2004), os protocolos<br />
fornecem os parâmetros convencionais dos tipos<br />
de comportamento possíveis e aceitáveis dentro<br />
de sistemas heterogêneos. Uma vez que viabilizam a<br />
comunicação das informações e de suas diferenças,<br />
podemos incluí-los entre os vetores que na análise<br />
de Wark (2004) comparecem apropriados como instrumentos<br />
de dominação. A apropriação é o que determina<br />
sua aplicação como meio de controle, pois o<br />
protocolo não traz previamente em si essa disposição.<br />
De acordo com Galloway, o protocolo reveste a<br />
informação, mas é indiferente ao seu conteúdo. Um<br />
exemplo que comprova a parcialidade de seus usos é a<br />
simbiose entre TCP/IP e DNS 9 no ambiente distribuído<br />
que define a internet. Enquanto protocolos como<br />
TCP/IP espalham o controle para localidades autônomas,<br />
permitindo relações não-hierárquicas<br />
ponto-a-ponto, par-a-par 10 , entre computadores, o<br />
DNS funciona a partir de uma base de dados de classificação<br />
rígida que localiza os endereços da rede em<br />
relação aos nomes que designam as coordenadas de<br />
sua topologia. Essa chave de operação do DNS faz<br />
com que os espaços da internet estejam sob vigilância<br />
e possam ser desconectados por aquele que detém<br />
o poder sobre seu mapeamento, ainda que as capacidades<br />
de transmissão de dados do ponto excluído<br />
sejam mantidas. A rede se revela, assim, para além<br />
8 Conforme o Dicionário Houaiss, o verbo<br />
emular tem quatro acepções: 1. esforçar‐se para a realização<br />
de um mesmo objetivo; 2. procurar emparelhar(‐se), imitar,<br />
seguir o exemplo de; 3. ter emulação com; tentar superar ou<br />
igualar‐se a; competir, rivalizar(‐se); e 4. na informática,<br />
como regionalismo brasileiro – fazer com que um dispositivo ou<br />
programa reproduza fielmente as funções de outro dispositivo<br />
ou programa, de modo a permitir a utilização do primeiro em<br />
lugar do segundo.<br />
9 O TCP/IP é um conjunto de protocolos de<br />
comunicação entre computadores em rede. Seu nome deriva de<br />
dois protocolos, o Transmission Control Protocol – TCP (Protocolo<br />
de Controle de Transmissão) e o Internet Protocol – IP<br />
(Protocolo de Interconexão). Por sua vez, o Domain Name System<br />
– DNS (Sistema de Nomes de Domínios) é um método de<br />
gerenciamento de nomes, hierárquico e distribuído, que utiliza<br />
o exame e atualização de seu banco de dados e traduz os nomes<br />
de domínios em endereços de rede (IPs).<br />
10 Aqui empregamos duas das possíveis<br />
traduções para a expressão inglesa Peer‐to‐Peer – P2P, que<br />
indica as redes de máquinas que operam sem uma relação entre<br />
clientes e servidores. A organização P2P é típica dos sistemas de<br />
compartilhamento de arquivos de música e materiais audiovisuais.<br />
Para dar ênfase à ideia de rede, poderíamos optar pela<br />
tradução ponto‐a‐ponto. No entanto, se quisermos acentuar o<br />
caráter comunitário, a tradução par‐a‐par (de igual para igual)<br />
parece mais adequada.<br />
de sua aparência corriqueira de tecnologia da idiorritmia<br />
anárquica e descentralizada. Nela, o abrigo da<br />
diferença é um espaço cibernético 11 e, portanto, supervisionado.<br />
O paradoxo do protocolo (GALLOWAY, 2004)<br />
é viabilizar coletividades em que há participação, integração<br />
e inclusão da alteridade, ao mesmo tempo<br />
em que molda as comunidades como nichos de mercado<br />
que oferecem lugar seguro para toda “diferença”<br />
codificada. O protocolo sustém, assim, a ambivalência<br />
do poder nas sociedades de controle, tornando<br />
mais complexo o seu combate por táticas de contraprotocolo<br />
como a software arte, o código aberto e o<br />
hackeamento.<br />
Nas sociedades de controle, segundo Deleuze<br />
(1995), uma terceira geração de máquinas (de informática)<br />
substitui aquelas do confinamento e da<br />
burocracia da sociedade disciplinar da era moderna<br />
(máquinas energéticas) e aquelas da violência e da<br />
gestão da morte das sociedades de soberania da era<br />
antiga (alavancas, roldanas, relógios). Essa mudança<br />
reflete uma terceira configuração das formas sociais<br />
capazes de desenvolver e utilizar seu maquinário. A<br />
partir dela, por exemplo, os moldes da disciplina das<br />
escolas e fábricas cedem lugar para os controles de<br />
estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma<br />
modulação.<br />
Outra consequência apontada por Deleuze<br />
(1995) é a desvalorização das assinaturas, números<br />
e palavras de ordem, em proveito das cifras, das<br />
senhas, que marcam a rejeição ou o acesso à informação.<br />
Nesse contexto, as massas transformam-se em<br />
amostras, dados, mercados ou bancos, ao passo que<br />
os indivíduos convertem-se em matérias dividuais,<br />
divisíveis. Por sua vez, o comando do capitalismo<br />
deixa de se ocupar da produção, relegada à periferia<br />
dos países em desenvolvimento, e passa a se dedicar<br />
à sobreprodução, ou seja, à negociação de produtos<br />
e ações, à montagem de peças destacadas e à gestão<br />
de serviços. No que concerne à economia, reencontramos<br />
aqui o vetorialismo identificado por Wark<br />
(2004) como a face preponderante do poder atual.<br />
Por sua vez, Negri e Hardt (2000, p. 23) observam<br />
que, nas sociedades de controle, os instrumentos<br />
de obediência tornam-se imanentes ao campo social,<br />
“distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos”, em<br />
lugar de constituir uma “rede difusa de dispositivos<br />
11 A palavra cibernética tem origem no vocábulo<br />
grego Κυβερνήτης (kubernetes), que significa piloto ou<br />
timoneiro. Cibernética é o estudo do controle e da comunicação<br />
em e entre sistemas orgânicos e máquinas, conforme a definição<br />
de Wiener (1954). Na cibernética, os sistemas são entendidos<br />
como circuitos de respostas cíclicas que fornecem continuamente<br />
ao controlador dados sobre os resultados de suas ações, para<br />
que este continue realizando suas operações. Na medida em que<br />
a informática se dissemina em uma série de aplicações relacionadas<br />
aos sistemas de comunicação, informação e interação,<br />
a cibernética torna‐se um termo comumente associado ao<br />
campo.
ou aparelhos que produzem e regulam os costumes,<br />
os hábitos e as práticas produtivas”. De tal modo que<br />
a contingência, a mobilidade e a flexibilidade passam<br />
a ser absorvidas e empregadas para fins de dominação.<br />
É essa a situação com a qual a resistência contraprotocolar<br />
(ou contraprotocológica 12 ) deve lidar, especialmente<br />
quando se enfrenta com as tecnologias<br />
de informação e comunicação em rede.<br />
Nesse sentido, é preciso levar em conta a análise<br />
de Galloway (2004) sobre a internet, considerada por<br />
ele não só uma tecnologia e um estilo de gestão, mas<br />
também como um diagrama. Conforme a referência<br />
deleuziana seguida pelo autor, um diagrama é uma<br />
cartografia coextensiva do campo social, um mapa<br />
que alcança as mesmas extensões da comunidade.<br />
Segundo essa perspectiva, a internet é uma rede distribuída<br />
de pontos (computadores, usuários, comunidades,<br />
corporações, países), que não são centros<br />
nem margens, e de linhas (usos, download, e-mail,<br />
conexão, criptografia, comércio, escaneamento).<br />
Galloway ressalta que nesse diagrama é possível<br />
filtrar a conexão dos pontos e regular que linhas<br />
são permitidas entre esses pontos. Dessa maneira, a<br />
informação flui, mas apenas de um modo administrado.<br />
Por um lado, a internet é comparável ao rizoma<br />
de Deleuze e Félix Guattari (2000), pois cada parte<br />
pode estabelecer comunicação com qualquer outra,<br />
sem a necessidade de recorrer a um intermediário hierárquico.<br />
No entanto, afirma Galloway, a interação<br />
pela internet obriga que os pontos usem a mesma linguagem,<br />
de modo que o acesso aos protocolos decide<br />
a “paisagem da rede – quem se conecta com quem”<br />
(2004, p. 12).<br />
O acesso e o domínio dos usos da linguagem<br />
de interação são, portanto, os critérios de inclusão e<br />
exclusão na comunidade. Por essa razão, o conceito<br />
de protocolo de Galloway é isomórfico da biopolítica,<br />
da produção da possibilidade de experiências, na<br />
sociedade de controle. O controle protocolar afeta<br />
as funções de que o corpo é capaz no espaço social e<br />
a inserção “destes corpos em formas de ‘vida artificial’<br />
que são dividuadas, sampleadas e codificadas”<br />
(2004, p. 12). Galloway fala então de um encapsulamento<br />
bioinformático do corpo individual e coletivo,<br />
gerando economias que apontam para o horizonte de<br />
transações de tecidos cultivados a partir de célulastronco<br />
e de vidas programadas pelo mapeamento e<br />
intervenção no código do DNA – tanto de plantas e<br />
animais, quanto de humanos.<br />
12 Aqui preferimos manter entre parênteses<br />
uma tradução que preserva o derivado do elemento de composição<br />
pospositivo –logia, que os dicionários definem como<br />
indicativo de ciência, arte, tratado, exposição cabal, tratamento<br />
sistemático de um tema, ou de conexão com palavra ou proporção.<br />
Na língua portuguesa, no entanto, a palavra protocolar é o<br />
único adjetivo registrado para aquilo que é relativo ou segue o<br />
protocolo.<br />
24<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
O autor segue Michel Foucault em sua adoção<br />
do conceito de biopolítica, entendido como a racionalização<br />
gerencial moderna dos problemas derivados<br />
dos agrupamentos humanos. Por consequência,<br />
a biopolítica implica um biopoder de gestão calculada<br />
da vida, que trata a população como massa de<br />
seres vivos coexistentes, com aspectos biológicos e<br />
patológicos específicos e categorizados conforme<br />
conhecimentos estatísticos e tecnologias específicas.<br />
Para Galloway, no entanto, as mesmas tecnologias<br />
que fundamentam o biopoder são a base para a<br />
resistência. Se o que está em está em jogo é o controle<br />
da vida, então, o caminho da insurreição é o vitalismo<br />
de práticas sociais que alteram ou desviam os fluxos<br />
protocolares no rumo de uma forma utópica de comunidade<br />
não- alienada. De volta à referência deleuziana,<br />
Galloway propõe que a resistência ocorra por<br />
meio da criação de interstícios de fuga, de ruptura de<br />
circuitos e de incomunicação, dentro do campo do<br />
protocolo, e não fora dele.<br />
O hackeamento se comprova, portanto, como<br />
tática contraprotocolar, na medida em que transcorre<br />
nas frestas das tecnologias políticas. Sua capacidade<br />
de abstração e inserção de dissonâncias na modulação<br />
dos aparatos de controle compõe a idiorritmia<br />
da multiplicidade. Efeito que, contudo, não se isenta<br />
dos riscos de reversão em formas mais complexas de<br />
dominação.<br />
1.5 mArginAlidAde (de/re)<br />
codificAnte<br />
As tecnologias baseadas em códigos instauram<br />
a biopolítica das sociedades de controle. Com isso, a<br />
matéria e a subjetividade são computadas no registro<br />
comum dos bits binários. Porém, apesar dos protocolos<br />
de digitalização e de regulação dos intercâmbios<br />
de dados, consideramos que a economia da diferensa<br />
segue vigente na combinatória de zeros e uns, pela<br />
solicitação do distanciamento espacial e temporal<br />
das alteridades nesse universo de inscrição.<br />
De forma dinâmica, cada valor se expressa<br />
como outro valor diferido. Conforme Derrida (1972),<br />
o inteligível aparece como sensível diferido, o conceito<br />
como intuição diferida e a cultura como natureza<br />
diferida. Seguindo essa comparação, o contraprotocolo<br />
se manifesta como protocolo diferido. A informação<br />
transformada em commodity, como abstração<br />
diferida – nos termos de Wark (2004). Os manuais<br />
de uso (restrito) da tecnologia, como hackeamento<br />
diferido.<br />
Ao adotar essa noção proveniente da economia<br />
da diferensa de Derrida, não pretendemos igualar<br />
ou subordinar as diferenças, mas sim apontar para a<br />
inadequação da ideia de dualidade total entre regra<br />
tecnológica e a transgressão do hackeamento. Pois a<br />
divergência leva também, de certo modo, a um tipo<br />
de decisão, a uma alternativa de protocolo em relação<br />
àquele hegemônico que, eventualmente, pode ser<br />
capturada como padrão predominante. Decidir e dissidir<br />
(divergir) são atos de relação que se amparam<br />
na existência da alteridade. A singularidade se faz<br />
e se agencia em conjunto. É heterogenética, porque<br />
depende da concorrência de elementos díspares para<br />
sua formação, conforme a compreensão da subjetividade<br />
proposta por Guattari (1992).<br />
Em outro sentido, devemos considerar o hackeamento<br />
segundo aquilo que Deleuze e Guattari<br />
(2000) denominam como máquinas de guerra. Esse<br />
conceito engloba conexões que se dão na exterioridade<br />
da soberania do aparelho de Estado e são dirigidas<br />
contra o fenômeno estatal e urbano de controle.<br />
A máquina de guerra se constitui como resistência à<br />
conjunção de aparelhos de captura que visam à apropriação<br />
de suas virtualidades para o objetivo exclusivo<br />
da guerra, que não lhe diz respeito de forma<br />
direta, mas apenas como relação suplementária ou<br />
sintética desenvolvida em reação à tentativa de apropriação<br />
do Estado.<br />
Conforme Deleuze e Guattari, nômades e movimentos<br />
artísticos, científicos e ideológicos são potenciais<br />
máquinas de guerra, na medida em que traçam<br />
um espaço liso de deslocamento - vetorial, projetivo<br />
ou topológico, ocupado sem medição, em oposição<br />
ao espaço estriado, métrico, que é medido para ser<br />
ocupado. Não é o nômade, porém, que define essa<br />
circunstância. Ao contrário, ele é definido pelo espaço<br />
liso, ao mesmo tempo em que este último define<br />
o fundamento da máquina de guerra. Repetindo<br />
a comparação com a inscrição do sujeito na fala<br />
que fizemos acima, o hackeamento não é função do<br />
hacker, mas, pelo contrário, é esse ato de desvio que<br />
o afirma.<br />
Outro aspecto de analogia entre o hackeamento<br />
e a máquina de guerra de Deleuze e Guattari (2000)<br />
reside na projeção desta última em uma modalidade<br />
de saber distinta daquela que o aparelho de Estado<br />
promove. Trata-se de uma ciência nômade, desenvolvida<br />
na excentricidade, não apenas como simples<br />
técnica ou prática, mas como campo científico em<br />
que os problemas de relação entre teoria e aplicação<br />
se equacionam de modo alternativo.<br />
Por sua parte, o hackeamento é a divergência<br />
que aborda os objetos tecnológicos sem seguir as regras<br />
habituais do comércio, da indústria e do poder<br />
militar, estatal e corporativo. Tanto pode desenvolver<br />
aparatos e usos dissidentes, quanto romper a caixapreta<br />
indevassável de cada artefato projetado para<br />
operar como “mecanismo de controle estratificado”,<br />
à prova do alcance e da investigação pela curiosidade<br />
coletiva (BUSCH, PALMAS, 2006, p. 59). Isso confere<br />
ao hackeamento um aspecto subversivo prontamente<br />
combatido pelas estratégias de apropriação do<br />
poder.<br />
Como apontam Deleuze e Guattari (2000), a<br />
ciência nômade é constantemente inibida, proibida<br />
ou caracterizada como instância pré, sub ou paracientífica,<br />
por conta das exigências e condições impostas<br />
pelo poder dominante e o primado legislativo<br />
e constituído da ciência régia. Essa subestimação corresponde<br />
a uma relação em que a ciência do Estado<br />
se apropria dos componentes da ciência nômade que<br />
lhe interessam, ao passo que esta permanece como<br />
um fenômeno que lhe escapa. A redução do hackeamento<br />
à criminalidade e ao terrorismo procede<br />
dessa mesma tendência de subvalorização e intimidação.<br />
Para escapar dessa armadilha, é preciso considerar<br />
a diferensa da ciência nômade em contrapartida<br />
à ciência régia, os valores diferidos de uma em<br />
relação à outra. Pois, conforme Turkle (1997), embora<br />
seja percebida como um saber indisciplinado,<br />
feminino e frágil pela cultura de cálculo modernista,<br />
a ciência nômade ou mole, como prefere chamar, é<br />
apreciada pela cultura de simulação contemporânea,<br />
devido à sua flexibilidade não-hierárquica que viabiliza<br />
um relacionamento cognitivo estreito e virtuoso<br />
com cada objeto de estudo. Nesse sentido, a abstração<br />
efetuada pelo hackeamento pode ser alienada<br />
para o reforço das sociedades de controle, ao mesmo<br />
tempo em que seus excessos impedem sua assimilação<br />
completa.<br />
hackeamento é uma excentricidade, um transbordamento.<br />
Por isso, opera em termos de marginalidade,<br />
no sentido de que sua posição do lado de<br />
fora acompanha e ajuda a delimitar os contornos do<br />
poder vetorial (WARK, 2004). Para Deleuze e Guattari<br />
(2000), no limite, o que conta é a fronteira móvel<br />
entre ciência régia e ciência nômade, os fenômenos<br />
de borda pelos quais a última pressiona a primeira<br />
e esta se apropria e transforma os dados daquela.<br />
De maneira parecida, Barthes (2003) afirma que a<br />
margem é admitida em virtude da demanda social<br />
de produção simbólica improdutiva, ou seja, sem finalidade<br />
econômica. Mas somente é tolerada quando<br />
está sujeita à regulação e codificação pelo conjunto<br />
da sociedade.<br />
Em contrapartida à captura pelo poder, a expansão<br />
da máquina de guerra também oferece seus<br />
riscos. Deleuze e Guattari (2000) ponderam que,<br />
na história recente, esse processo se revira no enfraquecimento<br />
dos Estados e na reconstrução de<br />
uma máquina mundial, da qual esses se tornam<br />
apenas meios ou partes oponíveis. A partir daí, deriva<br />
a ameaça do fascismo da guerra ilimitada e, em<br />
seguida, o pós- fascismo da máquina que adota a paz<br />
como meta ainda mais terrífica, sem respiro para a<br />
divergência. Apesar disso, surgem possibilidades de<br />
revides inusitados que orientam máquinas mutantes,<br />
minoritárias, populares e revolucionárias.
Os protocolos tecnológicos conferem o poder<br />
da máquina mundial que impõe a liberdade de cada<br />
um ser monitorado. Por isso, conforme Galloway<br />
(2004), a capacidade de resistência do hackeamento<br />
e da reflexão a seu respeito serão decorrentes do<br />
tratamento dado aos ritmos políticos de especificação,<br />
programação, desenvolvimento e desinfecção<br />
(debugging) da tecnologia, em suas dimensões informacionais<br />
e biológicas. O código, para além de<br />
linguagem, deve ser abordado como fator processual,<br />
gramatical e composicional, que gera transformações<br />
e efeitos práticos para a expressão e compartilhamento<br />
da diferença.<br />
Por fim, acreditamos que toda tática contraprotocolar<br />
de hackeamento necessita ser compreendida<br />
como agenciamento coletivo. Dessa maneira, é<br />
possível expurgar o hackeamento tanto do discurso<br />
tecnoelitista e machista, que tenta restringi-lo aos<br />
hábitos de uso dos profissionais masculinos de informática<br />
mais capacitados, quanto da histeria induzida<br />
pela mídia em favor da condenação criminal dos<br />
desvios da norma tecnológica e do livre compartilhamento<br />
da informação que desafia o copyright (ROSS,<br />
1990).<br />
Por outro lado, o hackeamento não deve se<br />
justificar apenas porque coopera na correção das<br />
falhas da tecnologia ou porque contribui para o seu<br />
desenvolvimento a partir de uma investigação livre<br />
e experimental. Tampouco deve ser reduzido a uma<br />
prática educacional e recreativa, a uma reserva de<br />
rebeldia e contravigilância para frear o advento do<br />
tecnofacismo e o uso irrestrito de aparatos de monitoramento<br />
e manipulação de dados.<br />
Segundo Ross (1990), é necessário incluir no<br />
hackeamento as práticas daqueles que desconfiam da<br />
infalibilidade da tecnologia e conseguem interromper,<br />
interferir ou redirecionar o fluxo estruturado de<br />
informação que dita a cada agente seu lugar e sua<br />
agenda de trabalho a cumprir na rede das trocas sociais.<br />
Nos termos de Derrida, o hackeamento engloba<br />
todo espaçamento e temporalização autônomos da<br />
diferensa.<br />
Além disso, concordamos com Ross (parágrafo<br />
43) em sua defesa da transformação da crítica cultural<br />
sobre a tecnocultura em um conhecimento hacker,<br />
“capaz de penetrar os sistemas existentes de racionalidade<br />
que de outro modo podem ser vistos como infalíveis”,<br />
de reprogramar os valores sociais atrelados<br />
à tecnologia e de gerar “novas narrativas populares<br />
26<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
ao redor dos usos alternativos da engenhosidade humana”.<br />
Essa abordagem coletiva e comunitária do hackeamento<br />
demanda ainda uma política hacker. Para<br />
Wark (2004), é necessário realizar o hackeamento da<br />
classe hacker como uma classe social capaz de hackear<br />
a própria noção de propriedade sobre a informação<br />
que restringe o acesso aos meios produtivos<br />
e à produtividade da mediação. Declarando-se criptomarxista,<br />
o autor defende a noção de classe com<br />
o argumento de que, embora rejeitada pelos apologistas<br />
dos interesses dos proprietários dos vetores,<br />
segue como princípio inevidente do plano vetorial<br />
que organiza o jogo de identidades como diferenças.<br />
Como vimos, é uma falácia a propalada emergência<br />
de uma classe criativa intermediária, nem trabalhadora,<br />
nem dominante (BARBROOK, 2006), uma vez<br />
que a inovação valorizada pela economia cognitiva<br />
segue elitizada.<br />
Ainda segundo Wark, a classe vetorial pretende<br />
limitar ao âmbito criminal a produtividade semântica<br />
do termo “hacker”, uma vez que teme seu potencial<br />
abstrato e múltiplo, como classe. “Em toda parte,<br />
o desejo de desvelar a virtualidade da informação, de<br />
compartilhar a informação como uma dádiva, de se<br />
apropriar do vetor de expressão, é tido como o objeto<br />
de um pânico moral” (2004, parágrafo 73). A aversão<br />
vetorial se volta, então, contra o fim do mito da escassez<br />
(insinuado pela partilha sem racionamento da informação<br />
digital), contra a abstração da própria ideia<br />
de propriedade e contra a virtualidade da ausência<br />
de classes.<br />
Para Wark, os maiores hackeamentos seriam<br />
formas de organização da expressão coletiva e contínua<br />
da multiplicidade, numa aliança de interesses<br />
entre as classes produtoras, de modo que a abstração<br />
servisse às pessoas, em vez de as massas servirem<br />
aos grupos dominantes. Nesse sentido, o autor<br />
afirma que é preciso resistir à educação formal como<br />
doutrinamento para a submissão assalariada. Em<br />
lugar dela, propõe o conhecimento transbordante e<br />
transformador das ruas e a livre produção de produtores<br />
livres. Com isso, os lances de hackeamento<br />
poderiam, de fato, se sobrepor seguidamente, desvalorizando<br />
a eventual posse de seus antecedentes,<br />
por meio da redundância provocada por sua recombinação<br />
irrestrita em nova informação.<br />
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WARK, McKenzie. A Hacker Manifesto. Cambridge, MA/ London: Harvard<br />
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28<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
Perigoso e divertido<br />
“frAse-sAmPler”<br />
A frase “Perigoso e divertido” surgiu em uma de minhas chegadas no Rio de Janeiro misturadas com as<br />
lembranças de algumas cenas do cinema marginal e também vivenciando a cidade e sua paisagem naqueles momentos.<br />
Algumas vezes andei de fusca pelo Rio de Janeiro com Melmut Batista e em um desses passeios saímos<br />
de Santa Teresa partindo para as Paineiras na floresta em morro e, aquele enquadramento das janelas do fusca<br />
me levou para outro lugar querendo transformar as coisas. O simples passeio pela cidade passando pelas praias,<br />
a lagoa, as calçadas, os prédios, as pessoas, a floresta, no olhar de dentro de um fusca de janelas em cantos ovais<br />
me inspiraram as possibilidades para (re)inventar a experiência.<br />
Chamo de “frase-sampler” por me apropriar de uma fala do filme “Bandido da Luz Vermelha” de Rogério<br />
Sganzerla e incluir uma palavra que atribuí um caráter ambíguo à afirmação evidenciada. A ideia surgiu primeiramente<br />
para fazer um cartaz que não chegou a ser produzido, mas em um convite me propuseram então para<br />
fazer o adesivo e foi nesse formato que consegui publicar e dispersar a ideia-conceito.<br />
Não importa a experiência que eu descreva para motivar a ideia, acredito que esse conceito possa ser<br />
melhor desenvolvido no pensamento de cada um que a lê, creio que a subjetividade implícita na frase motive as<br />
múltiplas identificações que venho notando que ela suscita.<br />
As cenas dos filmes do cinema marginal filmados no Rio de Janeiro me inspiram muito e acredito que essa<br />
experiência no tempo da imagem entre a arquitetura e a selva (floresta, jardim, paisagem, roteiro...) filmadas em<br />
preto e branco com o ritmo “perigoso” das histórias, subjetivam coisas que não estão ali explícitas. É nisso que<br />
transfiro a lembrança e identificação dessas imagens com a re-invenção da experiência nesses locais. Quer seja a<br />
mesa de trabalho, quer seja as noites entorpecidas com os amigos pela cidade, a concentração que deveria estar<br />
em primeiro plano ou mesmo a dispersão que está sempre disposta a impulsionar as ideias, motivam projetos e<br />
trabalhos que derivam dessas experiências mescladas na função de estar no mundo.<br />
A vivência desse limite do “perigoso”, que tanto pode estar ligado a ideia de violência como a simples tomada<br />
de decisão de fazer isto e não aquilo nos leva a tentar equilibrar sempre estas instâncias que permeiam a<br />
diversão de nossas vidas.<br />
Perigoso e Divertido equivale a esse processo que nos pertence.<br />
Traplev.<br />
Rio de Janeiro, junho de 2012.
http://hacklab.comumlab.org/photos/
io – belém – santarém – rio<br />
brAsil, 13 de Agosto de 2011, cAlendário gregoriAno<br />
TATIANA WELLS<br />
Tudo começou em Medellin, Amazônia colombiana.<br />
Em um encontro de labs de mídia chamado Labsurlab 1 ,<br />
conhecemos Antena Mutante e Pablo de Soto, que<br />
realizavam uma oficina de vídeo cartografia pelas periferias<br />
da cidade, mapeando situações de conflito social, como<br />
greve de estudantes, narcotráfico, resistência cultural via hip<br />
hop etc. A cartografia procurava criar novas leituras sobre<br />
a cidade, principalmente sob a perspectiva da resistência<br />
por trás de tantos conflitos de terra; paramilitares; presos<br />
políticos; jovens sendo assassinados; situações de crise<br />
que, mesmo tendo seus momentos de pico máximo (como<br />
em operações muito parecidas com as UPP’s 2 , só que com<br />
número considerável de assassinatos e maquinaria de<br />
guerra), ainda hoje predominam. Depois disso, iniciamos<br />
diálogos convergentes desde el sur: uma troca de e-mails<br />
entre os coletivos, linkando outros espaços: Bogotá,<br />
Madrid, Rio de Janeiro, Cali... conjurando um encontro<br />
na Amazônia e no Rio de Janeiro, que desse continuidade<br />
ao trabalho iniciado na Colômbia, mas com características<br />
locais, como inevitavelmente seria.<br />
Nos juntamos assim à iniciativa Hacklab – Por uma<br />
cartografia crítica da Amazônia, onde houve uma segunda<br />
convergência desta rede ampliada. De 4 a 7 de agosto,<br />
reencontramo-nos, eu e Pablo, em Belém, junto a Felipe<br />
Fonseca, Paulo Tavares e Ricardo Folhes - não-locais<br />
- e aproximadamente 40 pessoas de diversos coletivos<br />
artísticos, midiáticos, produtores culturais etc. da cidade.<br />
Um próximo encontro está agendado para o fim de agosto,<br />
1 Rede de iniciativas independentes que formam hacklabs,<br />
hackerspaces, medialabs e todos os tipos de laboratórios e funcionamento<br />
biopolítico coletivo para territórios da América do Sul – https://<br />
labsurlab.org/. Artigo online sobre o encontro http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=695<br />
2 Unidade de polícia pacificadora instalado nas favelas cariocas<br />
desde o ano de 2008<br />
32<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
novamente em Belém e Santarém, e mais a etapa carioca,<br />
que se inicia em setembro 3 .<br />
Chegando a Belém para o primeiro combo, sob<br />
o calorzão da cidade, abrigados no Casarão Cultural<br />
Floresta Sonora 4 , no centro da cidade, nossos anfitriões nos<br />
levaram à Feira do Açaí, no mercado público Ver-o-Peso,<br />
onde fui logo roxear minha boca (de açaí com farinha). Na<br />
casa - um espaço coletivo, ouvíamos um guitarreiro local<br />
sendo gravado e aos poucos fomos conhecendo diversas<br />
iniciativas de intervenção urbana, design, cinema, rádios<br />
livres, performers, permacultores, músicos...<br />
A última vez que cheguei à Belém – pra ficar e de<br />
bicicleta – já tinha sido uma experiência intensa. Essa<br />
também não poderia deixar de ser, mergulhando numa<br />
imersiva de re-conhecimentos. Passamos três dias em um<br />
parque de igarapés 5 , apresentando-nos e achando pontos de<br />
união e conflito entre nossas práticas, de forma espontânea,<br />
sem horários rígidos ou programação vertical. Uma Zasf<br />
(Zona Autônoma Sem Fio) foi montada e, nesse espaço<br />
comum, wikka e pastas, fomos nos inserindo. Falamos<br />
sobre a desconectividade amazônica; gênero; licenças<br />
livres; cartografias; megaprojetos x comunidades locais;<br />
a ideia de Amazônia para o mundo; América Latina; entre<br />
outros temas. A pirataria de softwares parece ser tão bem<br />
incorporada aqui que reflete, em muito pouco ou quase<br />
nenhum, o uso do software livre - apenas por integrantes<br />
do grupo Coisas de Negro que estavam justamente atrás de<br />
uma distribuição linux.<br />
À noite, participamos de múltiplas performances<br />
3 Compilação bruta & incompleta de idéias http://midiatatica.<br />
info/sur/dialogos_del_sur.pdf ; http://cartografiasinsurgentes.wordpress.com/<br />
4 http://casaraocultural.wordpress.com/<br />
5 Parque dos Igarapés - http://www.parquedosigarapes.com.<br />
br/historia.php<br />
no igarapé; mergulhos em redes e troca de arquivos por<br />
bluetooth com o público; e até um susto com os seguranças<br />
que seguraram Pedro ao vê-lo puxando sua companheira<br />
de cena pelos cabelos e jogá-la numa caixa. Tanto a<br />
performance como os vídeos disparados por celular<br />
falavam da violência contra a mulher.<br />
Diante de trabalhos tão instigantes, muitos sem<br />
nenhuma conexão direta entre si, mesmo que mergulhados<br />
num mesmo contexto, a cartografia pode servir como norte<br />
alinhavador de ações colaborativas emergentes. Assim<br />
como não há net, mas uma cultura digital subterrânea que<br />
se comunica eficientemente por troca de arquivos p2p via<br />
celulares, filmes e performances, essa rede também pode<br />
ser fomentada por iniciativas como o Hacklab Belém, que<br />
trazem diferentes ações para se conhecer e refletir sobre<br />
os próprios territórios e características políticas, sociais,<br />
culturais, criando um lugar-tempo comum. Ali todos<br />
nos tornamos metarecicleiros, feministas, ribeirinhos.<br />
Só faltou mesmo termos ido, no domingo, ao espaço do<br />
Coisas de Negro, dançar o carimbó.<br />
Fecha-se o primeiro ciclo de imersivas em Belém<br />
com muitos pontos nodais, embriões de categorias e ideias<br />
a serem tornadas ações nos próximos encontros.<br />
Inicia-se a etapa Santarém, às margens do Rio<br />
Tapajós, onde nos encontramos com hacktivistas paraenses.<br />
É realmente inspirador ver a garotada difundindo,<br />
usando e desenvolvendo o linux. No Coletivo Puraqué,<br />
conhecemos iniciativas de cinema, moeda social, oficinas<br />
de programação em computadores, encontros de gênero e<br />
tecnologia. Tudo transmitido pela rádio Muiraquitã.<br />
À noite, um cineclube mostrava produções locais<br />
em sua maior parte, mas também outros filmes com<br />
temáticas relacionadas, como Ciclovida6 , que trata da<br />
apropriação das sementes originárias por empresas,<br />
como a Cargill (a mesma que tomou a praia do centro de<br />
Santarém para instalar seu ponto de escoação de soja para<br />
o mundo). Depois de um mergulho em Alter-do-Chão,<br />
linda praia-ilha de água doce, mais um portal se abriu,<br />
como colocou Edu em sua fala: essa é a cidade do futuro<br />
- pequena, conectada, com natureza presente. O caminho<br />
aqui trilhado busca envolvimento, a solidariedade digital e<br />
o compartilhamento de saberes - geopolítica Amazônica.<br />
Conversamos muito sobre mapas por meio de um<br />
trabalho já criado por eles, dos infocentros e redes de net<br />
na cidade. Criamos à caneta um novo mapa, por cima<br />
deste, com as relações de conflito: porto da Cargill; futura<br />
hidrelétrica Rio do Norte; descoberta do aquífero de Alterdo-Chão;<br />
expansão de áreas de periferia da cidade; rota<br />
aquática das drogas; áreas de prostituição; ocupações<br />
- visualizando desde serviços públicos inexistentes aos<br />
recursos naturais extraídos de forma violenta (como a pedra<br />
descascada, que surgiu para dar espaço à rota de aviões<br />
oriundos do aeroporto) – à desenhos mais subjetivos,<br />
como o mapa dos cheiros.<br />
Foi realmente impressionante participar de duas<br />
conexões, Belém-Santarém, com tanta experiência a se<br />
somar – arte e tecnologia na Amazônia. A ação em si já é<br />
um mapeamento, criando suas peças de encaixe, ligandose<br />
por conexões físicas: observação, escuta, trânsitos,<br />
imersões. Outras mais subjetivas, como descobertas,<br />
vizinhança expandida, políticas, projetos hackeados etc.<br />
É evidente a força das práticas distribuídas. Organizá-las<br />
em uma narrativa comum, incorporando seus afluentes<br />
espaciais, óbvios, imemoriais - o necessário desafio.<br />
6 Ciclovida - http://ciclovida.org, é um documentário<br />
narrativo que segue um grupo de campesinos sem terra numa viagem<br />
atravessando o continente da América do Sul de bicicleta, na campanha<br />
de resgate das sementes naturais.
34<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
TODAS<br />
CONTRA A<br />
UHE BELO<br />
MONTE!<br />
fundAção<br />
luciA gomes<br />
2012<br />
Arquivo AmAzone<br />
PAulo tAvAres em roda de conversa<br />
Paulo: Antes de começar esse trabalho, eu era<br />
envolvido com um lugar que se chama Rádio Muda,<br />
que é uma rádio que existe lá em Campinas. É um coletivo,<br />
que é um pouco o antes e depois dessa história<br />
de coletivo, é como se fosse um organismo que junta<br />
muitos coletivos. Não sei se vocês conhecem este<br />
lugar. Para mim, a minha escola política foi fazendo<br />
rádio muda, rádio livre. Depois de fazer rádio livre eu<br />
fiz parte de um coletivo que se chamava Submidia.<br />
Ali tinha toda essa ideia de subversão das mídias, e<br />
a gente trabalhava muito montando rádio analógica<br />
e montando televisão, transmissões de rádio e televisão,<br />
no sentido de ocupar um espaço público, um<br />
espaço espectroeletromagnético... é como ocupar as<br />
ruas da cidade, você ocupa uma espécie de espaço<br />
que, de fato, não é virtual, é totalmente material, e<br />
é regulamentado por um regime latifundiário assim<br />
como é a Terra no Brasil. Então, foi dessa experiência<br />
que eu conheci a <strong>Giseli</strong>, a Tati e outras pessoas que<br />
estão aqui, mais ligadas à produção dos mídias.<br />
Depois desse momento eu estava interessado<br />
em pesquisar, algo mais material-territorial, e fui<br />
desenvolvendo essa coisa sobre a Amazônia, que<br />
por hora chama-se Projeto Amazone. Amazone é um<br />
palavra retirada,- roubada mesmo- , de um cara que<br />
se chama Eduardo Viveiro de Castro, um antropólogo<br />
do Rio de Janeiro que escreve uns textos muito<br />
legais sobre a Amazônia. Amazone foi o nome de um<br />
projeto que ele fez, ele colocou um capítulo de seu<br />
próximo livro num wiki, que chamava wikiamazone,<br />
onde todos poderiam colaborar e roubar as coisas<br />
que tinham nesse wiki. É um cara cujo o trabalho eu<br />
admiro muito. Então este nome é uma referência a<br />
ele e a seu trabalho.<br />
Eu concebo este meu projeto é como uma<br />
espécie de cartografia, mas é uma cartografia que não<br />
tem apenas duas dimensões, trabalha com diferentes<br />
camadas que se interligam, e isso significa tanto<br />
mapas “tradicionais” como mapas audiovisuais,<br />
vídeos, e textos também. A minha prática é muito<br />
relacionada com a prática do escrever porque tem<br />
processos que acontecem e que a gente vê, ou melhor,<br />
que queremos tornar visíveis, que eu acredito que<br />
devem ser acessados e tornados sensíveis por meio<br />
da escrita. Isto é importante. Então tem uma relação,<br />
vamos dizer assim, com jornalismo investigativo, uma<br />
espécie de prática etnográfica ou uma etnografia da<br />
paisagem... etnografia da terra. O que eu vou mostrar<br />
aqui é um material bruto, para dividir e ouvir as<br />
críticas e opinião de vocês. Quero abrir esta coisa que<br />
está em processo, então eu proponho a falar em cima<br />
porque elas ainda não está decupadas de maneira a<br />
se comunicar por si mesmas, logo, precisam de outra<br />
camada de significação, que será a minha voz:<br />
O governo brasileiro está investindo muito<br />
numa área da Amazônia peruana, botando grana<br />
em uma rodovia que chama Interoceânica, que até<br />
foi mostrada aqui, que é para escoar soja para a<br />
China. Então a área de tríplice fronteira do Brasil<br />
com a Bolívia e com o Peru, está passando por<br />
uma transformação territorial-geográfica-ecológica<br />
muito intensa. Tanto que os peruanos falam que<br />
o Brasil é uma espécie de força imperialista dentro<br />
do território deles, principalmente nessa área que<br />
é uma área amazônica. E este fato está relacionado<br />
com uma espécie de reposicionamento geopolítico<br />
que o Brasil assumiu nos últimos 10 anos... teve<br />
muito dinheiro para a cultura, como a gente percebe<br />
em várias dimensões, em vários lugares do país. E<br />
essa espécie de bonança interna para o ambiente<br />
cultural também se reflete no reposicionamento<br />
geopolítico do país que está relacionado com uma<br />
expansão da produção de commodities 1 , que foi o<br />
modelo desenvolvimentista que o Brasil adotou, logo<br />
o imperativo a exportação de soja para a China, e<br />
para tanto, o Brasil está fazendo uma série de obras<br />
no Peru, principalmente esta rodovia que se chama<br />
Interoceânica. E essa rodovia abriu uma grande área<br />
de fronteira, abriu uma área que não era, vamos<br />
dizer assim, colonizada ainda. Como vocês sabem,<br />
toda vez que se abre uma rodovia na Amazônia, as<br />
pessoas migram em processo caótico de ocupação,<br />
similar do que aconteceu na Transamazônica. Então,<br />
é um pouco disso que eu vou mostrar; é uma área de<br />
mineração na região de Madre de Dios, no Peru.<br />
Quando teve a crise financeira em 2008, o preço<br />
do ouro foi lá para cima... e sobe porque o mercado<br />
tem a necessidade de se apegar a um produto seguro,<br />
que é um produto que a gente nem sabe para quê<br />
que serve direito... O preço disparou no mercado,<br />
provocando “uma corrida” atrás do ouro em vários<br />
lugares, sendo um desses lugares a Amazônia peruana,<br />
onde se começou a ver um processo de transformação<br />
da paisagem muito radical porque as pessoas foram<br />
retiradas de suas terras, pelo latifúndio, passaram a<br />
migrar para a fronteira do ouro, como acontece em<br />
outros lugares da Amazônia brasileira.<br />
E eu estava interessado numa espécie de link<br />
que há entre esse capitalismo virtual-financeiro-<br />
1 . Literalmente significa mercadorias, são<br />
habitualmente substâncias extraídas da terra e que mantém<br />
até certo ponto um preço universal.
global, este processo de ‘acumulação primitiva, estava<br />
interessado nos desdobramentos materiais que essa<br />
espécie de capitalismo high-tech produz. Então<br />
estou aqui falando de tecnologia: estamos usando<br />
computador, que por sua vez usa matéria-prima<br />
tiradas da terra... esta é a base material que sustenta<br />
a economia high-tech. E dentro desse esquema nós,<br />
brasileiros, terceiros mundistas, somos muito mais<br />
consumidores do que produtores. Esse foi, em larga<br />
medida, o papel destinado para o Brasil, e não só para<br />
o Brasil, mas principalmente para esta região, que é<br />
a região Amazônica e não só a Amazônia brasileira.<br />
A gente está muito numa rede virtual, que é um<br />
barato muito legal, mas então, nesse sentido, eu acho<br />
que a discussão sobre a tecnologia passa muito por<br />
uma espécie de efeito material deste espaço virtual.<br />
Quando houve o colapso do sistema financeiro (que<br />
é na verdade produto desse tipo de tecnologia) a<br />
“bolha” não estourou apenas em Wall Street, na<br />
verdade estourou também na Amazônia, através<br />
desse processo de favelização muito acelerado, que<br />
vocês estão vendo aqui, que consome a paisagem em<br />
uma velocidade incrível, como se fosse devorando<br />
ela.<br />
Então eu acho que a minha contribuição seria<br />
neste sentido, para que a gente possa repensar ou<br />
colocar essa questão - que foi mencionada aqui pelo<br />
Felipe em relação a quanto de lixo é produzido pelos<br />
aparatos tecnológicos? Ou seja de outra maneira,<br />
pelo nosso desejo de usar tanta tecnologia digital? E<br />
quais são os desdobramentos espaciais e territoriais<br />
deste sistema tech-virtual-financeiro em uma escala<br />
globo?<br />
36<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
“...O governo brasileiro está<br />
investindo muito numa área<br />
peruana, uma rodovia que<br />
chama Interoceânica, que<br />
é para escoar soja para a<br />
China, na fronteira do Brasil<br />
com a Bolívia e com o Peru...”<br />
A gente viu que houve uma mudança em<br />
relação a cultura digital, em relação ao uso da<br />
internet, celulares, durante esses 10 anos aqui<br />
no Brasil, não é verdade? São Paulo está cheio de<br />
Hyundai, de Toyota, uns “puta” carrões existem<br />
agora em São Paulo, o que demonstra que houve<br />
aí um crescimento do PIB e o Brasil quis se<br />
reposicionar. E o modelo desenvolvimentista que o<br />
Brasil propôs e no qual tal reposicionamento está<br />
fundamentado é continuar exportando commodities,<br />
não é produzindo tecnologia! Fizeram uma empresa<br />
ali do lado da minha cidade que é Campinas, que<br />
vai produzir iPAD, então, os caras estão falando:<br />
“nós temos tecnologia!” “ nós estamos produzindo<br />
iPAD!”, sim... nós estamos montando iPAD! Nós não<br />
estamos produzindo tecnologia! E isso me parece ser<br />
uma questão essencial e paradigmática, e não só no<br />
contexto brasileiro, mas em toda a América Latina. Se<br />
você olhar o que acontece no Peru hoje, e ainda mais<br />
para o Equador, definitivamente a questão é: colocarse<br />
dentro do esquema-mundo como exportador de<br />
petróleo, um exportador de biomassa, um exportador<br />
de commodities, ou se haverá reversão do modelo de<br />
desenvolvimento. E, logo, propor uma nova solução<br />
que não é só para um país, mas é para o mundo...<br />
porque o mundo está fodido.<br />
Então, eu acredito que essa é uma reflexão<br />
importante, e eu acho que ela sai muito daqui, da<br />
Amazônia, por isso meu interesse aprender com<br />
esse território. Como diz aquela terceira frase do<br />
manifesto antropofágico do Oswald de Andrade: “Só<br />
me interessa aquilo que não é meu”. A história vinda<br />
de São Paulo, é uma história bandeirante, é aquela<br />
coisa dos bandeirantes, eles são os empreendedores,<br />
e a história do Brasil é muito contada do ponto de<br />
vista de uma mitologia meio bandeirante, que é<br />
uma mitologia colonial, que continua até hoje... já<br />
a Amazônia reverte esse ponto de vista não só pro<br />
Brasil, mas numa espécie de maneira universal,<br />
apontando coisas que são soluções, são modos de<br />
vida, são modos de pensar que são válidos para o<br />
mundo.<br />
zonas de mineração em madre de dios, Perú<br />
“...o que aconteceu no Peru em 2009, o governo do Alan Garcia<br />
decretou um estado de sítio, porque toda a região peruana da Amazônia<br />
é uma região descolonizada, praticamente, não tem muita atividade<br />
econômica, como tem no Pará, o oeste da Amazônia que é mais assim...”<br />
Bruna Suelen: A história do Brasil é bem<br />
colonial e a gente sofre com colonização ainda hoje,<br />
indubitavelmente, é por isso que a gente tem uma<br />
lógica, que quem vem de fora chama de bairrista, a<br />
gente se protege mesmo. Eu queria pensar contigo,<br />
e queria saber o que é isso, que tu chamas de um<br />
modelo de resistência que reverbera pro mundo?<br />
Luciane Bessa: Porque tu falaste naquele dia<br />
da apresentação, que tu vias a Amazônia como uma<br />
fronteira de descolonização, podes falar mais sobre<br />
esse potencial?<br />
Paulo Tavares: Por exemplo, veja o<br />
que aconteceu no Peru em 2009. Toda a região<br />
peruana da Amazônia é uma região praticamente<br />
“descolonizada”, por assim dizer, não existe muita<br />
atividade extrativista como existe no Pará. Mas<br />
esta área está sendo preparada para uma nova fase<br />
de integração com o sistema extrativista global. Em<br />
junho de 2009, houve um protesto muito grande dos<br />
indígenas de lá, através de uma associação que chama<br />
AIDESEP, e os indígenas fizeram um movimento<br />
muito forte de protesto e conseguiram barrar uma<br />
série de leis, mesmo depois do estado de sítio que<br />
o governo do Alan Garcia declarou em toda a área<br />
Amazônica.<br />
Veja o que aconteceu na Bolívia, outro<br />
exemplo, com a guerra do gás. E também<br />
aconteceu recentemente no Equador, no processo<br />
constitucional, o Equador fez uma nova constituição,<br />
nessa constituição o Equador reconhece o Estado<br />
equatoriano como plurinacional, eles falam: - Nós<br />
somos um Estado, - que é um conceito político-,<br />
“habitado por diferentes nações”,- que é um conceito<br />
cultural-, “nações indígenas desde os Andes até<br />
o Amazonas, um Estado formado por diferentes<br />
nações”. Isso significa que a comunidade política<br />
reconhece diferentes culturas, e diferentes culturas<br />
necessariamente passam pra uma relação com o<br />
meio ambiente que não poder ser mediada somente<br />
por um Estado centralizador. Então isso significa que<br />
os recursos naturais serão mediados e governados<br />
por aquelas diferentes comunidades, e isso deve<br />
ser reconhecido como fato constituinte do Estado<br />
enquanto comunidade política . Logo, eu acho que<br />
o conceito de plurinacionalidade, por exemplo,<br />
que vem de uma perspectiva Amazônica – não só<br />
Amazônica, também Andina -, ensina pro mundo<br />
o que é a descolonização do conceito ocidental de<br />
Estado-Nação.<br />
Se você for comparar isso com a Europa,<br />
por exemplo, é possível ver a diferença: lá eles<br />
dissolveram os Estados em comunidades étnicas,<br />
como por exemplo na antiga Iugoslávia: “sou eu, é<br />
minha cultura, e eu tenho um Estado!”. E isso está<br />
gerando guerra por lá, uma série de divisões, e essa<br />
é a solução dos caras para a pĺurinacionalidade...<br />
entram em conflitos, querem fazer diferentes países,<br />
cada um tem sua etnicidade, cada um tem sua<br />
própria coerência étnica, cada um tem sua cultura<br />
muito localizada, etc... e qual que é a lição que a<br />
Amazônia quer ensinar? Ela fala assim: - “Não, não!<br />
Nós precisamos de um Estado forte, para ir contra<br />
o neoliberalismo, mas nós queremos ter um Estado<br />
plurinacional, que reconheça a diversidade da qual<br />
nós somos parte!” Eu acho isso muito forte, e esse é<br />
um pensamento de origem Amazônica, e eu aprendo<br />
muito com isso, entende? E é por isso que eu estou<br />
interessado nisso.<br />
Don: Então dentro da tua pesquisa, o que tu<br />
menciona ou cita como foco de resistência indígena<br />
no Brasil, especificamente?<br />
PauloTavares : Eu acho que tem um<br />
momento paradigmático que a gente está vendo uma<br />
reverberação hoje que é o Xingu. Todo mundo sabe<br />
disso. Mas o que aconteceu em 1989... a gente falou<br />
um pouco do processo de ocupação dos militares<br />
na Amazônia, em 1984, quando o Geisel assume o<br />
poder tem o que se chama de uma abertura, depois o<br />
Figueiredo é a distensão... Esse processo de abertura<br />
foi um processo de formação de subjetividade muito<br />
interessante no Brasil. A gente vê a emergência<br />
do Partido dos Trabalhadores, uma série de<br />
movimentos populares, e também do movimento<br />
dos indígenas. Depois a gente viveu a Era Collor,<br />
que todo mundo lembra, inflação alta pra caralho,<br />
todo mundo fodido, aquela repressão. Bem, este
momento de abertura-subjetividade-criação, que é<br />
representado pelo encontro de Altamira, no Xingu<br />
em 1989, foi quando os índios realmente emergem<br />
na cena como atores políticos desse país. E nesse<br />
sentido, eu acho que os indígenas estão apontando<br />
para isso, para essa espécie de plurinacionalidade, a<br />
Amazônia é por definição um espaço plurinacional,<br />
habitado por muitas nações, e eu acho que, vamos<br />
dizer assim, esse tipo de epistemologia indígena que<br />
inverte ou critica um pensamento ocidental, que é o<br />
pensamento segundo o qual nós nos educamos, que<br />
é um pensamento importado, é fraturado... então,<br />
de certa maneira, rompe-se com o pensamento<br />
ocidental-branco-macho, de certa maneira, e eu acho<br />
que isso vem muito dos índios.<br />
Felipe Maranhão: Além da tua experiência<br />
de estar aqui, qual leitura você fez da produção sobre<br />
conhecimento da Amazônia, preferencialmente, na<br />
Amazônia?<br />
Paulo Tavares: Você pergunta assim, qual<br />
livro eu leio, qual autor daqui? Uma pessoa que eu<br />
acompanho muito em Belém, é um cara chamado<br />
Lúcio Flávio Pinto, que é uma referência muito<br />
importante pra mim, eu citaria o trabalho dele por<br />
exemplo. Ele edita o Jornal Pessoal, e eu acho até<br />
que ele poderia ter sido um bom convidado para esse<br />
debate. Porque ele é a mídia dele, não é?! Ele é uma<br />
pessoa que eu conheço, eu li outras coisas produzidas<br />
por aqui também... Eu fui trocar uma ideia com ele,<br />
na outra vez que eu vim a aqui para Belém.<br />
Felipe Maranhão: Walter Rodrigues é<br />
uma das recomendações de leituras e de textos<br />
jornalístico aqui na Amazônia, um jornalista nascido<br />
aqui no Pará, em Bragança, que trabalhou com<br />
Lício Flávio Pinto, na década de 1970, no jornal O<br />
Estado de São Paulo, fazendo as melhores matérias<br />
que já foram veiculadas nacionalmente sobre a<br />
“O Maranhão já não<br />
tem mais floresta, hoje<br />
no sul é soja e no resto<br />
é desmatamento e boi,<br />
muito capim pra boi”<br />
38<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
Amazônia. Realmente denunciaram as oligarquias se<br />
apropriando do capital local, derrubando a floresta,<br />
já mataram toda a floresta, a Amazônia Nativa na<br />
tal da pré- Amazônia lá no Maranhão. O Maranhão<br />
já não tem mais floresta, hoje no sul é soja e no<br />
resto é desmatamento e boi, muito capim pra boi, o<br />
Estado com maior rebanho do Nordeste é o Estado<br />
do Maranhão, por causa da oligarquia Sarney. E o<br />
próprio Estado de São Paulo, na década de 1990,<br />
se apropriou de terras lá pré-Amazônia, inclusive<br />
no meu município onde nasci, Turiaçú. Até hoje a<br />
família Mesquita se reivindica dona-proprietária de<br />
um grande território de terra lá, que dá no litoral,<br />
mas isso é apenas um exemplo do quanto estamos<br />
desinformados. Não vamos às fontes, não vamos<br />
aqueles que realmente se dedicam ao estudo da<br />
Amazônia, o Lúcio Flávio Pinto, lê sobre a Amazônia,<br />
profundo conhecedor da literatura, do que se foi<br />
produzido no Teatro, ele lê tudo, por mais que ele<br />
não goste, mas ele não é mesquinho a ponto de dizer<br />
que - “não, eu não leio Nazareno Tourinho, porque<br />
eu penso que Nazareno Tourinho é um ingênuo,<br />
um cara não sabe nada de Teatro”, - não! Eu vou lá<br />
leio e vou criticá-lo, com elegância, respeitando. Eu<br />
ainda não vi um texto dele assim, que desclassifique<br />
o outro, entende?! o Lúcio Flávio Pinto, portanto,<br />
para mim, é uma fonte de conhecimento, e se não<br />
é um cara que vai panfletar comigo, não vai para<br />
a Marcha da Maconha, por exemplo, o problema é<br />
dele, cumpadi! Agora, eu jamais serei um burro de<br />
negar a importância daquilo que ele faz aí nesse<br />
Jornal Pessoal, por mais anti-democrático que ele<br />
seja, R$ 3,00 entendeu?!, O que impede muita gente<br />
de ter acesso mesmo, por mais que sejam cretinas<br />
as desculpas, porque a galera tem dinheiro para<br />
se chapar, tem dinheiro pra isso, praquilo, para<br />
futilidade entenderam?! Felicidade para todos.
mapa-relato em 10 pontos<br />
PaUlo TavarEs<br />
Agosto de 2011.<br />
1) o grAnde cAribe PolÍtico:<br />
Primeiros decênios do século XIX: corria à<br />
boca pequena entre negros e negras, índios e mulatos,<br />
escravos e pobres que trabalhavam no porto<br />
de Belém, os zumbidos da insurgência, revolta...<br />
revolução. Entre panfletos clandestinos, rodas de<br />
cachaça e macumba, falava-se menos da tomada da<br />
prisão de Bastilha do que dos sangrentos conflitos na<br />
colônia francesa de São Domingo, uma pequena ilha<br />
do Caribe que por esta época abrigava a plantation<br />
de cana de açúcar mais lucrativa do Novo Mundo. O<br />
personagem mítico era menos o ilustrado Robespierre<br />
do que o escravo Toussaint Louverture, filho de<br />
negros capturados no Benin, que se fez liberto, organizou<br />
uma guerrilha clandestina, derrotou o exército<br />
de Napoleão e, nos primeiros anos do XIX, transformou<br />
São Domingo numa república independente,<br />
comandada por não-brancos, agora livres das amarras<br />
coloniais -- o Haiti.<br />
O poder da Revolução Haitiana estava não apenas<br />
em sua força transformadora local, mas em seu<br />
universalismo radical. Enquanto os Jacobinos declaravam<br />
que a “igualdade” era um direito universal,<br />
inalienável à todos os cidadãos, a ideia de cidadania<br />
era, em versão revolucionária francesa, algo restrito<br />
apenas aos brancos e aos homens. No Haiti a história<br />
foi diferente. Pois aqueles negros revolucionários<br />
eram, por assim dizer, “mais franceses que os franceses”,<br />
e radicalizaram a idéia de igualdade para<br />
qualquer e todo ser humano, independente de raça,<br />
sexo ou etnia: paradigma histórico do movimento<br />
abolicionista, marco inaugural dos modernos direitos<br />
humanos.<br />
Na minha imaginação sobre o grande Caribe,<br />
pequeno mapa do mundo que estende-se de Nova<br />
Orleans até os contornos da Bahia, foram as ondas<br />
livres que chegavam do Haiti até o porto de Belém<br />
que mobilizaram as paixões dos Cabanos do Grão-<br />
Pará, que lá pela terceira década do XIX rebelaramse<br />
contra tudo que era opressor: as reminiscências<br />
do poder despótico da colônia portuguesa, a falácia<br />
independentista brasileira, os business man de<br />
Londres e seus comparsas locais, os terratenientes<br />
do delta do Amazonas. E foi esta a memória, uma<br />
memória Amazônida-Cabana, que encontrei em<br />
40<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido<br />
muitos parceiros e parceiras durante nossa imersão<br />
em Belém. Não aquela memória que fala de um anticolonialismo<br />
regionalista e doméstico, mais retórica<br />
que política, e no fundo, de pouco interesse, mas sim<br />
uma subjetividade política local, de-colonial, que fala<br />
da liberdade de homens e mulheres, de vários povos,<br />
etnias e raças: universalismo de origem Amazônida,<br />
Caribenha, Haitiana. Um projeto que foi massacrado<br />
pela contrainsurgência de Napoleão e pelas elites do<br />
Império de D. Pedro subservientes ao capital Inglês.<br />
Mas a memória resiste, como bem testemunhamos, e<br />
está no corpo, na comida, na palavra, no espaço e no<br />
batuque -- de fato, o toque de três pontos do voodoo<br />
Haitiano (que também escuta-se em Nova Orleans) é<br />
semelhante ao tambor do Carimbó Paraense. “Chama<br />
o mestre Verequete”!<br />
2) o HAiti é Aqui (#1):<br />
Depois do colapso político-ecológico da antiga<br />
colônia de São Domingo com o terremoto em 2010,<br />
começaram a aparecer cidadãos Haitianos nas fronteiras<br />
do Acre, adentrando as bordas da comarca<br />
pau-brasil em direção à antiga capital do caucho,<br />
metrópole Amazônica – Manaus. O grande Caribe é<br />
sobretudo um espaço de fluxos, trocas e tráfico: refugiados<br />
políticos do Haiti, mulheres transladadas<br />
à força para servirem na indústria do sexo, pasta de<br />
cocaína, electro-beats provindos de Miami, reggae<br />
Jamaicano. Celi Abdoral, da Sociedade Paraense de<br />
Defesa dos Direitos Humanos, navegou por estas e<br />
outras histórias durante sua apresentação no Parque<br />
dos Igarapés – “outro dia me ligaram de madrugada,<br />
peguei um avião às pressas até Rio Branco para<br />
resolver a situação dos clandestinos Haitianos”. Em<br />
conversa de canto, eu e Celi ponderávamos: se as forças<br />
militares brasileiras estão presentes no Haiti e,<br />
na verdade, são mais parte do problema do que da<br />
solução, porque o governo brasileiro recusa-se em<br />
dar asilo político aos refugiados quando emigrados<br />
ao “Império Brasil”? Lógica perversa que se assemelha<br />
ao poder branco ocidental europeu, que, em nome<br />
dos direitos humanos, joga bombas sobre a Líbia<br />
mas recusa-se em receber os mulçumanos na ilha de<br />
Lampedusa.<br />
3) o HAiti é Aqui (#2):<br />
Quando Gilberto Gil canta “O Haiti é aqui” em<br />
levada de rap, o beat ressoa muito além da metáfora.<br />
O diplomata brasileiro Celso Amorim, hoje ministro<br />
das Forças Armadas, em entrevista à rede de televisão<br />
Al Jazeera, quando perguntado sobre as recentes<br />
ocupações militares dos morros cariocas, deu uma<br />
resposta precisa, que se bem me lembro, resumia-se<br />
na seguinte afirmação: “Só foi possível fazer a pacificação<br />
no Alemão porque temos know-how neste tipo<br />
de operação”. A referencia implícita ou explícita no<br />
termo “know-how” era, obviamente, a MINUSTAH<br />
-- Missão das Nações Unidas para a Estabilização do<br />
Haiti --, que está sob o comando das forças armadas<br />
tupiniquins desde 2004. Não há como não desdobrar<br />
o paralelo apresentado pelo nosso mais destacado<br />
diplomata ao massivo processo de despejo que observamos<br />
nas favelas do Rio de Janeiro atualmente (ver<br />
apresentação de Tati Wells): continuação do “processo<br />
de paz” em prol da nova economia bolha-Brasil<br />
dos grandes eventos globais. O irônico é que, como<br />
nos contou Celi Abdoral, este know-how já havia sido<br />
testado – choque-se! – durante a organização do<br />
Fórum Social Mundial em 2009, em pleno delta do<br />
Amazonas, quando em preparação para a realização<br />
do evento de onde se quer anunciar que “outro mundo<br />
é possível” , uma série de detenções arbitrárias -<br />
ou o que Celi chamou de “limpeza étnica” – foram<br />
realizadas nas periferias da capital do Grão-Pará. As<br />
ambições do novo esquema Brasil Império a um acento<br />
no Conselho de Segurança da ONU devem desencadear<br />
mais um ciclo de repressão ao movimento<br />
Cabano... para inglês ver, of course.<br />
4) belém<br />
(#1 - imPressões vAgAs, ProvAvelmente<br />
imPrecisAs, entre<br />
conversAs esPArsAs)<br />
Arranha-céus pós-modernos esvaziados: muito<br />
vidro e ar-conditioning. Lavagem de grana via<br />
produção do espaço urbano desprovido de uso social,<br />
periferia em expansão, pirataria estrutural e muita<br />
pasta-química e violência policial para manter o povo<br />
em estado de confinamento. E a elite do Grão-Pará<br />
permanece no comando das terras férteis de Marajó.<br />
5) belém (#2):<br />
Nada como chegar ou partir do aeroporto de<br />
Belém durante o dia, sobrevoar a cidade, e ver os<br />
rios, canais de água e o mato fundo.<br />
6) economiA-PolÍticA do enclAve<br />
(sAntArém):<br />
Ao lado de Santarém existe Fordlândia - antiga<br />
plantation industrial de borracha, cidade moderna<br />
incrustada nas margens do Tapajós, que operava<br />
como um enclave extrativista dentro da cadeia global<br />
fordista. Hoje “abandonada”, resta-nos a memória,<br />
que espelha-se do outro lado do Atlântico, na África,<br />
onde o Sr. Firestone fundou Harbel, cidade gêmea<br />
de Fordlândia, mas que ao contrário de sua irmã<br />
brasileira, vingou gente grande, e até hoje perpetua o<br />
esquema neo-colonial plantation na Libéria (não vou<br />
nem enumerar a série de violações de direitos humanos<br />
registrados por aí...). O Haiti é aqui porque antes<br />
de ser Haiti, como nossa comarca, era África, e todos<br />
nós fomos colocados numa posição subalterna dentro<br />
da divisão territorial do trabalho: produzir commodities,<br />
eternas fontes de acumulação primitiva no<br />
esquema mercado-mundo, destinados a se perpetuar<br />
como exportadores de matéria prima e consumidores<br />
de tecnologia. Outrora exportávamos o caucho para<br />
produzir os pneus Firestones que equipavam os carros<br />
da Ford Motors que, depois, importávamos. Hoje<br />
minérios, seja das minas do complexo Trombetas ou<br />
Carajás, que equipam os tablets, lap-tops e smartphones<br />
que retornam via nossos im-portos, ou os<br />
one-lap-top-per-child doados pelas grandes potências<br />
ou magnatas filantrópicos e respectivos programas<br />
de inclusão digital.<br />
(questão: como pensar inclusão digital dentro<br />
de um esquema que considere a divisão global da<br />
produção de tecnologia?)<br />
(questão: pensando com Felipe Fonseca: por<br />
uma cartografia materialista das digito-técnicas, mapeando<br />
todos os materiais que compõe os circuitos<br />
eletrônicos, placas e memory-cards de nossos computadores<br />
e seus respectivos – e prováveis – lugares<br />
de produção: ouro, por exemplo, vem da Amazônia<br />
Peruana ou das minas do Congo? Lítio e as novas<br />
minas da Bolívia? Terras-raras e trabalho forçado<br />
na China ou as novas fronteiras minerais no Afeganistão?<br />
O que tal mapa nos contaria sobre nossos gadgets<br />
eletrônicos e a ruptura da divisão digital global?)<br />
E claro, soja, exportamos muita soja para criar<br />
as divisas de nosso projeto bolha-Brasil. Ao lado de<br />
Fordlândia, está Belterra, cidade similar que Henry<br />
Ford mandou construir alguns km’s ao norte, quando<br />
percebeu que as coisas iam dar com os burros n’água<br />
em sua primeira utopia industrial-disciplinar no coração<br />
da Amazônia. Getúlio Vargas visitou a cidade<br />
e ali encontrou um esquema econômico-espacial adequado<br />
ao seu projeto nacional-desenvolvimentista<br />
que, posteriormente, e guardadas devidas ressalvas,
Protestos em fordlândia, circa 1930: um carro ford jogado às margens do Tapajós.<br />
foi adotado inúmeras vezes no território Amazônico,<br />
ao ponto de, não acredito ser exagero afirmar, este<br />
esquema “enclave”, já presente em Fordlandia, ter<br />
constituído um esboço de projeto (econômico, territorial<br />
e, no limite, ideológico) no qual está fundamentado<br />
uma série de programas subsequentes que<br />
foram implementados na região. Que nos diga Lúcio<br />
Flávio Pinto, ou então, veja-se: Vila Serra do Navio<br />
(manganês), Jarí (celulose), Carajás (minério), e por<br />
ai vai...<br />
Hoje, Belterra, na sua paisagem sonolenta à<br />
americana, em seu bucolismo rural, oculta a reificação<br />
desta vocação histórica que foi (forçosamente)<br />
destinada à Amazônia: já não mais cercada por plantations<br />
de haveas brasiliense, mas por monocultivos<br />
de soja. Santarém é o nó terminal deste sistema<br />
produtivo de biomassa, verdadeiro enclave global de<br />
uma cadeia produtiva em escala mundo, cujo registro<br />
na paisagem são os terminais da transnacional Cargill<br />
junto ao velho e elegante porto, no final da BR-<br />
163. Não se trata de mera coincidência o fato desta<br />
pequena cidade Amazônica ser um local dotado de<br />
infraestruturas de comunicação avançadas, regadas<br />
à fibra ótica e sistemas logísticos que devem operar<br />
em ritmo global – enclave territorial e digital.<br />
Mas se Fordlândia foi um esboço-modelo, há<br />
que se relembrar sua história de maneira integral,<br />
e daí tirar alguma lição: em 1930, trabalhadores rebelaram-se<br />
contra a dura disciplina imposta pelos<br />
técnicos da indústria, tocaram fogo nos galpões e<br />
destruíram o relógio que marcava o ritmo da fábrica.<br />
E jogaram um carro para afundar no Tapajós.<br />
42<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
7) urbAnizAção à brAsileirA<br />
A história de Fordlândia nos conta que, ao lado<br />
da cidade projetada, armou-se uma favela, na outra<br />
margem do Tapajós. Ali ficavam os bares, os bordéis,<br />
terreiros, as casas de jogos e de outros pecados, e<br />
toda a sorte de atividades que fazem parte da vida de<br />
qualquer cidade digna de ter o nome de cidade, mas<br />
que não cabiam no enclave-disciplinar imposto pelo<br />
esquema capitalista-puritano Fordista. E a história<br />
se repete: em Santarém, quando nos debruçamos<br />
sobre a cartografia da cidade com o pessoal do coletivo<br />
Puraqué, aprendemos que a grande periferia<br />
desta cidade cresceu durante a mesma época em que<br />
a Cargill e a economia da soja fortificava-se na região.<br />
História que nos é conhecida e que se repete em cada<br />
canto de nossa comarca pau-brasil, para não dizer em<br />
cada canto de nossa sub-América: o grande capital<br />
compra os pequenos sítios dos camponeses a preço<br />
de banana, formando novas plantations em grandes<br />
latifúndios. Elimina-se a produção de alimentos locais,<br />
e os camponeses e colonos, aqui também os índios,<br />
antes ricos, agora pobres, tornados sem terra,<br />
migram para a periferia das cidades, amontoando-se<br />
em bairros marginais desprovidos de água, energia<br />
elétrica e de tudo aquilo que o urbano deve oferecer.<br />
No mesmo dia em que chegamos à Santarém,<br />
um punhado de gente ocupava uma área ao longo da<br />
Avenida Fernando Guilhon. Aprendemos que, em<br />
troca de votos, políticos locais aceitam e legitimam<br />
ocupações semelhantes, e, ao mesmo tempo, liberam<br />
as áreas nobres à beira das praias para que os executivos<br />
das transnacionais que operam na região construam<br />
suas mansões no Caribe Amazônia.<br />
Ciclo perverso e recorrente que virou praticamente<br />
um padrão de cidade: urbanização à brasileira<br />
7) vivo<br />
Uma das coisas que mais impressiona na área<br />
de Santarém é a capacidade conectivo-digital implementada<br />
na cidade. Duas camadas parecem estar em<br />
operação: 1) dado a vocação de terminal global do<br />
circuito soja, parece lógico que o enclave-Santarém<br />
necessite de estrutura de comunicação e logística adequado<br />
ao tempo mundo ao qual está submetido (ver<br />
Milton Santos); 2) uma série de empreitadas voltadas<br />
à projetos de inclusão digital e práticas com novas<br />
mídias pipocam aqui e acolá.<br />
Grande parte deste investimento é capitaneado<br />
pela Vivo, conglomerado trans-nacional que<br />
desde 2010 é operado majoritariamente pela espanhola<br />
Telefônica. Aprendemos sobre um projeto que<br />
a companhia financia nas comunidades ribeirinhas<br />
do Tapajós: desenhou uma rede 3G na área e, para<br />
cada comunidade, oferece um smart-phone com 150<br />
contos de crédito ao mês. Também aprendemos sobre<br />
500 computadores que foram doados para uma<br />
área da cidade que mal conta com energia elétrica.<br />
E claro, aprendemos sobre nosso próprio papel dentro<br />
deste esquema, dado que nosso encontro é parte<br />
do que parece ser um programa de investimento gigante<br />
– tanto “pedagógico”, quanto infraestrutural,<br />
quanto de kapital – que a Vivo está implementando<br />
na região norte do Brasil.<br />
O que se anuncia, dado tal panorama, no meu<br />
entender é o seguinte: incluir digitalmente é preparar<br />
novos mercados de consumo ou subverter a própria<br />
lógica consumista no sistema new-media? Fio da navalha.<br />
Pode a ética hacker hackear o grande mecanismo<br />
coorporativo-estatal e manter certa autonomia<br />
política, apontando para novos futuros?<br />
... o Puraqué nos diz que sim.<br />
(é preciso sempre pensar o pensamento e repensar<br />
a prática a cada rotação do planeta, à la chefe<br />
Mao).<br />
8) 1989<br />
“Quando o homem branco aqui chegou<br />
Trazendo a cruel destruição<br />
A felicidade sucumbiu<br />
Em nome da civilização<br />
Mas mãe natureza<br />
Revoltada com a invasão<br />
Os seus camaleões guerreiros<br />
Com seus raios justiceiros<br />
Os caraíbas expulsarão”<br />
1983 - Como Era Verde o Meu Xingu<br />
“Mamãe eu quero Manaus<br />
Muamba, Zona Franca e Carnaval”<br />
1984 - Mamãe eu quero Manaus<br />
“E a oca virou taba<br />
A taba virou metrópole<br />
Eis aqui e grande Tupinicópolis”<br />
1987 - Tupinicópolis<br />
Verdadeiro patrimônio imaterial da memória<br />
Cabana é o hardware de Arthur Leandro, que entoava<br />
a trilogia Amazônica da Mocidade Independente<br />
de Padre Miguel dos anos 80 enquanto conversávamos<br />
na orla de Santarém. Ao que Gisele <strong>Vasconcelos</strong><br />
emendava -- “o pós-tropicalismo é samba enredo” --<br />
e isso não sai da minha cabeça. Porque para quem<br />
é filho da década de 80 -- ou da “década perdida” --<br />
como eu e tantos amigos, a memória dos anos 80 é<br />
algo a se refazer. Em 1989 a Rede Globo mostrava<br />
a novela “Vale Tudo”, anunciada por gritos estridentes<br />
da Gal Costa cantando Cazuza – “meu cartão de<br />
crédito é uma navalha”. A Inflação era rampante.<br />
Em 1989 Joãozinho Trinta entrou na Sapucaí com<br />
um Cristo Redentor coberto com uma manta negra<br />
-- porque a imagem de Cristo havia sido censurada<br />
pela justiça -- rodeado de mendigos, que carregavam<br />
todo o lixo – urubus e ratos – para fazer deles<br />
luxo, e a faixa sobre o peito de Jesus dizia: “mesmo<br />
censurado, orai por nós”. Os anos 80 foram um momento<br />
de abertura (lembrar Glauber Rocha) política<br />
e subjetiva, e a censura à Joãozinho era uma espécie<br />
de vestígio funesto do esquema militar-ditadura<br />
que, oxalá, iria sucumbir. Não foi o caso. Depois veio<br />
o esquema “combate aos marajás” e muita lambada<br />
tipo exportação, e o samba-enredo acabou que, em<br />
muitos lados, virou um negócio meio marketing. Só<br />
agora, após a ressaca neoliberal e certa inversão das<br />
regras (em escala Latino Americana) é que parece ser<br />
possível repensar a abertura político-subjetiva que<br />
ali se anunciava, e talvez re-considerar seu legado<br />
histórico. E portanto retomar Glauber, Joãozinho e<br />
a trilogia entoada por Arthur, que ao mesmo tempo<br />
que cantava a destruição da Amazônia, anunciava a<br />
revolta da “mãe natureza” – Pachamama – e a expulsão<br />
dos invasores. Isto é, cantava o colapso do esquema<br />
militar-desenvolvimentista no qual foi baseado a<br />
ocupação da Amazônia durante o regime militar até<br />
a “Nova República” e que, infelizmente, apesar do<br />
potencial, deu no que deu: continuidade-transitória<br />
para a era Collor, como outrora fora com a nossa independência<br />
feita pelo filho do Rei.<br />
Os anos 80 foram paradigmáticos não apenas<br />
porque testemunhamos a ordem bipolar da Guerra<br />
Fria desabar, mas porque novos atores apareceram<br />
em cena. Entre eles, e com toda a força como canta o<br />
samba, a Amazônia. Chico Mendes morreu assassinado<br />
em 1988, e em 1989 os índios Kayapó convocaram<br />
os engenheiros da Eletronorte e os representantes<br />
do governo Brasileiro para o Encontro de Altamira, e<br />
nesta ocasião, conseguiram suspender um empréstimo<br />
do FMI e bloquear o projeto da hidrelétrica<br />
Kararaô na Curva Grande do Xingu, projeto este que<br />
hoje o governo Lula-Dilma tenta retomar, agora com<br />
outro nome, Belo Monte. E o paradoxo se recoloca na<br />
encruzilhada Amazônia-Brasil. Mas os tempos não<br />
são mais os mesmos, pois memória que toca em samba<br />
é memória viva, e eis que a grande Tupinicópolis,<br />
nascida por volta desta mesma data, já não se curva<br />
mais tão facilmente. Chama Verequete.
9) HAckers e Peixes<br />
elétricos: PurAqué<br />
Santarém é a Tupinicópolis.<br />
Logo na chegada, enquanto a rádio Muiraquitã<br />
estava sendo armada, Marcelo do Puraqué contavanos:<br />
“montamos o transmissor em Itaituba, aí colaram<br />
os federais para sondar o que estava acontecendo.<br />
Nós falamos que aquilo ali era um experimento,<br />
que estávamos estudando tecnologia”, algo assim, se<br />
bem me lembro. De fato, o que se aprende por ali no<br />
Puraqué -- o que eu aprendi -- e o que se produz ali,<br />
é tecnologia e conhecimento. Durante muito tempo<br />
a ideia hegemônica sobre a Amazônia era de que a<br />
floresta constituía um espaço “primitivo”, tecnologicamente<br />
atrasado, e que, portanto, era preciso levar o<br />
desenvolvimento até lá, penetrar seus rios e igarapés<br />
com novas tecnologias via nossos im-portos.<br />
44<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
Uma imagem, por exemplo, circulada na Revista<br />
Manchete de 1972, auge do regime militar e<br />
de seu projeto tecno-destrutivo para a floresta: um<br />
caminhão da IBM cruzando a Transamazônica anuncia<br />
uma mensagem clara: estamos penetrando os<br />
confins da floresta com as mais novas e desenvolvidas<br />
tecnologias. Hoje esse papo para boi dormir já<br />
não cola mais. Não cola porque, aprendemos que é<br />
da Amazônia que se origina um tipo de tecnologia<br />
nãobranca que, mais do que nossos formidáveis computadores,<br />
tornou-se essencial para nosso futuro –<br />
tecnologia arraigada em saberes ancestrais, memória<br />
coletiva que sustenta uma espécie de “política do comum”<br />
– ou, política do commons, como queiram. Tal<br />
política para qual o termo sustentabilidade é um referencial<br />
muito raso, fundamenta-se na estratégia de<br />
desejar apenas o que é suficiente – e não a abundancia<br />
insaciável do fetiche-mercadoria -, na construção<br />
cotidiana do que é coletivo -- e não da propriedade<br />
privada e do individuo -- no sumak kawsay, estéticapolítica<br />
do bem viver.<br />
O potencial, a meu ver – a lição que carrego desta<br />
imersão -- é que o coletivo Puraqué desdobra o<br />
que é conhecimento via modo de vida e saber tradicional<br />
com uma pegada rigorosa para as novas tecnologias.<br />
Verdadeira ecologia do futuro que mistura<br />
o digital e a terra, o saber primeiro e o os mais luminosos<br />
equipamentos da microeletrônica, o virtual<br />
e o material, como elementos contemporâneos e em<br />
simbiose. Ecologia semiótica, midiática, social e ambiental.<br />
Política é prática.<br />
10) PedAgogiA crÍticA / cArtogrAfiA<br />
PolÍticA:<br />
Gisele <strong>Vasconcelos</strong> me contava o porquê tinha<br />
voltado para Boal, ao Teatro do Oprimido, como<br />
ponto de referência para que pudesse pensar novas<br />
articulações entre grupos, coletivos e pessoas no<br />
sistema arte-midia-tecnologia. Dois pontos: a ideia<br />
de democratização, via coletivização da performance;<br />
a ideia de transformação, via tomada de consciência<br />
através da performance coletiva. (e Boal articula,<br />
lembre-se, no contracorrente da ditadura, e, em certo<br />
sentido, como resultado dela, tal como emerge o sentido<br />
Amazônico no encontro de Altamira em 1989 ou<br />
com Chico Mendes no Acre).<br />
Me parece então que, pensando em mapas, a<br />
questão que nos cabe é: como trabalhar a ponte entre<br />
Paulo Freire, Augusto Boal e uma emergente cartografia<br />
política? Uma cartografia que inclua, necessariamente,<br />
uma dimensão pedagógica, pois só se<br />
conhece o território cartografando-o. E logo, a cartografia<br />
deve ser, por definição, uma prática:<br />
1) a ser democratizada (conversa com Pablo de<br />
Soto);<br />
2) a tornar-se comum, permitindo uma espécie<br />
de tomada de consciência coletiva sobre o território,<br />
e portanto, transformadora.<br />
Pois mapas não são representações imagéticas<br />
de um território real, mas instrumentos de criação de<br />
territórios que trazem consigo projeções de espaços<br />
futuros e abrem caminho para intervenções no presente.<br />
Durante os anos 90 e lá vai cacetada, a ideologia<br />
liberal do livre fluxo de informações, sustentada<br />
pela NASDAQ, ficava nos dizendo que internet era<br />
coisa de “não-lugar”, presença virtual, todos em tudo<br />
quanto é canto e ao mesmo tempo em canto nenhum,<br />
desterritorialização e o escambau. Me parece que a<br />
questão política mais urgente, em se tratando de cartografia,<br />
seja reverter este discurso e fazer o mapa do<br />
acesso em dupla camada: acesso ao mundo das redes<br />
virtuais e do compartilhamento, e, do outro lado,<br />
acesso à cidade, direito ao ambiente e ao urbano - cidade<br />
como mídia - espaço comum.<br />
PS: Em minhas incursões pela Amazônia<br />
sempre encontro alguma mulher cuja força me<br />
impressiona e inspira. Dois anos atrás foi Antônia<br />
Melo, liderança do movimento de defesa do Xingu,<br />
em Altamira. Este ano Dona Graça Gama, memória<br />
política Amazônida, em Santarém, a quem deixo<br />
um agradecimento pelo papo e dedico estas linhas<br />
tortas. Longas conversas, muito aprendizado, para<br />
sempre lembrar que a natureza-Amazônia é Pachamama-mulher:<br />
contra a falocracia do desenvolvimentismo<br />
macho-branco.
#<br />
46<br />
ilustração de maécio monteiro para o cartaz da festa “Party belo<br />
monster” cuja a renda era destinada à ida para o evento xingu+23<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
[rmxtxturA]<br />
vontade de Potência<br />
≠ vontade de Poder<br />
#<br />
1_2 - Transporte de bovinos vivos para o abate - rota Brasil.mp4 | Balsa Boieira-videos premiados 2009.mp4 | Bye Bye Brasil.mp4<br />
| Nas Terras do Bem Virá.avi | Imagem.jpg | image_preview.jpg | vamos-faturar-225x300.jpg | Lula fala sobre Belo Monte.mp4 |<br />
Dilma Rousseff está com Ana Júlia, a guerreira da Amazônia.mp4 | TVU1 Barragem de Belo Monte desaloja 400 em Altamira.mov<br />
| Ademar ea Onça.mp4 | #12M15M - World Revolution - Revolución Mundial (Sub. Español).mp4 | Belo Monte contrainformação<br />
à propaganda enganosa da Norte Energia 2.mp4 | Inundação no XINGU dos outros é refresco - Ação direta no IBAMA - 01 02 2012.<br />
mp4 | Xingu - A luta dos Povos pelo Rio - Parte I.mp4 | EXPOSIÇÃO ARAWETÉ IGUATEMI 069.mov | EXPOSIÇÃO ARAWETÉ<br />
IGUATEMI 067.mov | Borracha para a vitória\Soldados da Borracha.avi | 04 - soy loco por ti américa.mp3 | A Festa da Menina<br />
Morta\A Festa da Menina Morta [NACIONAL] DVDRiP XViD – Justiceiro.avi | AL_Rebelde-Iconoclasistas.jpg | p01pub01m1.gif<br />
| R-050326.jpg | rota do trafico.gif | 1.1216778940.map__amazon_old.jpg | 041214.jpg | 3746176974_19d70dec42.jpg | BRASIL<br />
ANTIGO.jpg | brasil mapa antigo.jpg | brasil-continente.jpg | mapa_americasul.jpg | mapa-brasil1.jpg | 090724125329_amazonia_<br />
map_02_466.gif | mapa_desmat_uc.jpg | estado-para-municipios.jpg | mapa_brasil_mundo.JPG | novo-mapa-com-a-divisao-dopara-se-forem-criados-os-estados-do-carajas-e.jpg<br />
| 1_2 - Transporte de bovinos vivos para o abate - rota Brasil.mp4 | Tucuruí - A<br />
Saga de um Povo.mp4 | AÇÃO NO PRÉDIO DO CCBM - CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS.mp4 | Xingu+23.mp4<br />
| calle (11).jpg | cabanagem.jpg | Quintino-Chikaoka.jpg | olab_hack#2.mov | percurso_hack#2.mov | HACK meninas<br />
grafitando.mov | hack meninas marcando mãos.mov | percurso_hack#2 | hack galera.mov | Timeline2_hack#2.mov | neo kbano.mov
48<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
http://www.youtube.com/watch?v=HElemzBbFEM<br />
midAs<br />
ArmAndo queiroz<br />
Miséria, hanseníase e abandono espreitam Serra<br />
Pelada quase trinta anos depois do início da febre<br />
do ouro. Restaram casebres abandonados, pessoas<br />
perambulando, quais mortos-vivos, numa cidade<br />
fantasma ao redor de um grande lago contaminado<br />
de mercúrio; o oco. Restaram velhos aposentados,<br />
mulheres e a prostituição infantil. O índice de HIV<br />
[Vírus da Imunodeficiência Humana] é altíssimo.<br />
O gigante ameaçador, percebido no clima tenso do<br />
local, está presente a todo o momento. O gigante<br />
quer terra, o gigante quer expulsão, o gigante tem<br />
papéis e advogados, o gigante tem anuência do poder<br />
decisório. O garimpeiro tem apenas uma amarfanhada<br />
carteirinha de autorização para exploração de minério<br />
e muita tristeza da sua atual situação. O garimpeiro<br />
tem, ao lado de si, muitas cooperativas, nem todas<br />
bem intencionadas. Muitos não deixam o local<br />
simplesmente por vergonha, não teriam condição de<br />
encarar seus familiares tantos anos depois, sem nada<br />
nas mãos. Regra geral ouvir que sairão sempre pior<br />
do que chegaram. Dos poucos que ainda exploram o<br />
minério, pouca ou nenhuma esperança. O olhar vago<br />
de um gaúcho à espera de um hipotético sócio — com<br />
dois meses de máquinas paradas — e de um também<br />
hipotético veio riquíssimo debaixo de poucos metros<br />
de rocha diz tudo.<br />
Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o<br />
nosso rei destronado, devolvido à sua solidão, fraco e<br />
pobre como o mais fraco e mais pobre dos seres.<br />
[Comentário sobre o personagem Boca de Ouro,<br />
da peça homônima de Nelson Rodrigues]<br />
Noventa mil homens, como insetos de uma<br />
gigante colônia a céu aberto, tiveram a capacidade<br />
de revolver inteiramente uma montanha! A montanha<br />
foi a Maomé! A montanha se curvou ao desejo e à<br />
cobiça. Cobiça, mãe-rainha desta colônia iracunda,<br />
deusa filicida. Rabos de dinheiro, viagens de tecoteco,<br />
em que o passageiro era apenas um chapéu<br />
prosaicamente esquecido. Mulheres, cachaça e muita<br />
coragem. “Bamburrar” foi para poucos; manter a<br />
fortuna, para pouquíssimos. Muita morte para que a<br />
montanha mantivesse suas vísceras à mostra. Reza<br />
a lenda que, em montanha que não é banhada por<br />
sangue, ouro não brota.<br />
Muita expectativa, pouca esperança. É comum<br />
a todos que vão à Serra Pelada perceber que aquele<br />
momento é um momento especial; algo de positivo irá<br />
acontecer brevemente; vã expectativa! Tudo retorna<br />
ao mesmo lugar: o lugar da espera, da desesperança.<br />
Como tatus cegos, que fuçam incessantemente a<br />
terra, esses homens não abandonam o sonho do ouro.<br />
Aquela cava submersa é ainda o jardim de rosas onde<br />
Midas acolheu o velho sátiro Sileno, mestre e pai de<br />
Ovídio.<br />
A morte paira na atmosfera de tudo. Por que<br />
fazer um vídeo de Serra Pelada e de seus mortosvivos?<br />
Reter suas dentaduras, suas bocarras? Por que<br />
gravar, aprisionar a ira de Baco vingativo? Esta bocaânus<br />
ancestral. Prazer e gozo. Lembrança de fezes e<br />
chocolate. Insetos e morte. Devoradora criatura que<br />
se deixa devorar sem fim, mãe-rainha deste golfento<br />
formigueiro. Por que aprisionar a ira do Baco<br />
ancestral? Uma ode aos primeiros vermes-insetos<br />
que irão comer nossas carnes frias. Seremos nós os<br />
garimpeiros cegos a fuçar a lama da cobiça? Onde<br />
estarão as rosas do jardim? Seremos nós o gigante<br />
ameaçador? Ou seremos todos o Midas eterno —<br />
orelhas de burro — em miséria, lepra e abandono?
50<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder
Amazônia é do brasil ou é brasil? Amazônia<br />
terra de exploração? Pensamos que querem que<br />
sim. ou melhor, que é assim, e sendo assim,<br />
do brasil. os planos de desenvolvimento são<br />
claros: a Amazônia como fronteira tropical<br />
fornecedora de matérias-primas para a região<br />
moderna do país. somos colonizados, mas somos<br />
os revoltosos*. como diria um de nós:<br />
fomos catequizados e traídos. Agora somos<br />
os traídores. desertores na linha de fuga<br />
do vôo da bruxa, a partir da micro realidade<br />
individual-coletiva de belém.<br />
Hidroelétricas, madeira, gado, soja. exportação<br />
para fora ou para dentro, que no nosso<br />
ponto de vista também é fora. A relação<br />
metrópole colônia continua sendo reproduzida<br />
interna e externamente, regida pela balança<br />
econômica especulativa, pautada na histeria<br />
do superávit, que torna a realidade a<br />
sua própria ficção. tentamos nesta cartografia<br />
um desvelamento, e se, com isso criamos<br />
uma outra ficção, ao menos criamos o embate,<br />
um contra discurso a hegemônica construção<br />
identitária imposta pelos meios de massa. o<br />
olho que tudo vê só enxerga o que quer, e<br />
a boca amplificada só reverbera o que lhe é<br />
interessante.quando o corpo que geme não é<br />
o corpo que sente, inviabiliza-se uma autobiografia<br />
possível para a imposição de uma<br />
biografia cega, falseada, distorcida e tendenciosa...<br />
e seguem-se as devastações e as<br />
matanças.<br />
52<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
com uma péssima receita de bolo, que começa<br />
desde os portugueses, passando pelos milicos<br />
e seus planos de desenvolvimento egoícos e<br />
megalomaníacos. seja com o radam que contribuiu<br />
muito mais para a escolha das melhores<br />
terras es suas tomada, legal ou ilegalmente,<br />
seja nas diversas hidroelétricas a serviço<br />
das multinacionais mineradoras. e é esse o<br />
plano de desenvolvimento para a Amazônia?<br />
isso é o melhor para o brasil? é melhor também<br />
pra Amazônia? Pensamos que não. tais<br />
planejamentos são ora abstratos ora irresponsáveis.<br />
os resíduos coletados denotam a<br />
história as avessas, avessa porque de dentro.<br />
Amazônidas falando do seu lugar, sobre<br />
o seu lugar, do micro-coletivo ao macrocosmo<br />
amazônida. somos um bando e o mapa é o nosso<br />
manifesto!<br />
o progresso aqui não traz progresso, nem<br />
soluções. traz doenças, mortes, conflitos de<br />
terra, desmatamento, inchaço populacional,<br />
alargamento dos bolsões de miséria, impunidade<br />
e pouco lucro. Pouco porque para poucos.<br />
As cifras são impressionantes, mas em<br />
que bolsos estão? estamos sendo engolidos,<br />
estuprados, saqueados e ignorados! são motivos<br />
suficientes para o levante.<br />
o mapazônia é antes de tudo uma materialização<br />
poética ou, para melhor dizer, poe(lí)<br />
tica, pois o discurso contido na forma não<br />
é alienígena a realidade de seus autores,<br />
pelo contrário, a realidade amazônica é<br />
nosso motivo, e no seus tentáculos orbitamos.<br />
um mapa tenta descrever-narrar um espaço,<br />
espaço afetivo, físico, psicológico,<br />
visível e invisível. Propomos aqui uma narrativa<br />
cartográfica entrecortada de resíduos<br />
históricos, perspectivas políticas e processos<br />
poéticos para tentar abarcar as consequências<br />
estruturais, físicas e sociais<br />
de uma região desde sempre a serviço do<br />
mercado, um lugar preso ao mercantilismo<br />
colonial, escondido por de traz do discurso<br />
positivista do progresso.<br />
como “todo”, tecemos uma macrovisão política<br />
da região confrontando os símbolos<br />
catastróficos do desenvolvimentismo com as<br />
formas de resistência nativas. falamos o<br />
que a mídia de massa não fala. contestamos<br />
a identidade a nós atribuída. o mapazônia<br />
é um relato denúncia! o faz tanto na pesquisa<br />
histórica que materializa na linha do<br />
tempo as diversas etapas dessa construção<br />
progressista destruidora, quanto na dimensão<br />
imagética-gráfica, deflagrando os diversos<br />
pontos de tensão entre o colonizador e<br />
o colonizado, entre a busca da modernidade<br />
ocidental, onde todo o mundo é matéria-prima<br />
a ser explorada, e a cultura dos povos<br />
da floresta, de integração e harmonia com a<br />
natureza.<br />
na leitura do mapa, as empreiteiras, as<br />
mineradoras, os pólos madeireiros, as áreas<br />
de grilagem, e todas os sintomas do câncer<br />
que é para nós esse tal progresso. Planos<br />
de energia, planos de desenvolvimento x resistências<br />
humanas, graficamente ilustradas,<br />
em uma superfície sem sentido fixo, onde<br />
se pode entrar e sair por qualquer ponto,<br />
acompanhando a geopolítica caótica de um<br />
espaço de luta, e é justamente desse lugar<br />
de resistência que surge esse trabalho como<br />
contra-golpe aos maioranas e aos barbalhos,<br />
a vale e seus empresários, Alcoa, Albras,<br />
icomi, orsa, cargill, eletronorte e<br />
seus políticos comprados, a morte de chico<br />
mendes e o massacre em eldorado. Há pedaços<br />
da história que não podem ser apagados, o<br />
relato, a denúncia, o resgate são nossas<br />
trincheiras poelíticas.<br />
eis uma outra história possível da amazônia<br />
hoje, a quem interessar possa...<br />
Texto-Manifesto Escrito por<br />
Hugo Nascimento e Luah Sampaio
54<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
uHe belo monte - mau me quer!<br />
fundação lucia gomes, 2011
56<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
http://iconoclasistas.com.ar/<br />
descolonizar<br />
tAtiAnA Wells<br />
Tendo como sul nossa mutante história de saque<br />
e re-significações - em enxames de caravelas, cruzes,<br />
minérios, pecuária, patriarcado, escravidão -, a nova<br />
geografia de nosso continente se redesenha, para dentro de<br />
si mesma; troca de pele neste ano da serpente. Aos poucos,<br />
acordamos do pesado sono, sendo outras.<br />
Assim, entre dois mundos, negamos os valores<br />
da vida humana como parâmetro único, mesmo que se<br />
aparentem como novos, hi-tech e ecológicos; no entanto,<br />
cada vez mais dispendiosos energeticamente, intrusivos e<br />
mortíferos; tubos de petróleo entupindo as artérias da terra;<br />
cimento, as das águas; quilômetros a dentro da superfície<br />
terrestre, no coração da selva, no horizonte - um dia guia<br />
- do pescador.<br />
Como as águas que desgelam dos Andes com<br />
força total, desconhecendo fronteiras, baixando por entre<br />
vulcões e planícies, criando a Amazônia continental, então<br />
capturada em sua potência natural para abrigar a mais nova<br />
fonte alimentadora dos caprichos artificiais das cidades<br />
maravilhas - hidrelétrica, moeda de câmbio climático. Já as<br />
capitais orientadas aos estranhos e familiares (patriarcais,<br />
severos, bélicos) desejos do entretenimento comercial<br />
global, em mais uma etapa de expulsão daqueles já<br />
desterritorializados. Êxodo e genocídio por todo lugar, da<br />
espécie humana, animal e vegetal.<br />
Belo Monte e Copa do Mundo - irmãos bastardos<br />
da nossa ignorância, de nossa despossessão de saberes e<br />
fazeres ancestrais, tudo o que havia antes do capitalismo, da<br />
colonização, sob o mesmo modelo desenvolvimentista-atodo-custo.<br />
Patrimônio genético, cultural, saúde e modelos<br />
conjurados junto com os habitantes locais, simplesmente<br />
descartados.<br />
As possíveis ferramentas de nossa descolonização<br />
estão não somente em resistir, barrar, frear os processos<br />
ditos como inescapáveis, mas também, paralelamente,<br />
reconstruir todas as categorias em que nossa racionalidade<br />
foi edificada, nossa identidade pseudo burguesa, nascida<br />
de estupro, que imita, de forma ridícula, sua ex-colônia,<br />
traumatizada, oprimindo.<br />
somos todos Índixs*, mestiços,<br />
não Há o que temer,<br />
APenAs A nossA omissão<br />
Nossa identidade vira-lata nos permite operar nesse<br />
campo das ciências menores, experimentais, e o passo<br />
atrás é o mais importante. Todas as comunidades tiveram<br />
que traduzir - a dizer, reduzir, homogeneizar, generalizar<br />
- seus valores em mercadorias e isolá-las de sua esfera de<br />
produção e sua esfera de desejo. A cultura trazida em livros<br />
que nunca lemos foi nos dividindo entre mundo interior e<br />
mundo exterior; separando consciência (ou conhecimento)<br />
e crença; expulsando, com esse mesmo gesto, todos os<br />
corpos e todas as forças que povoavam esses mundos.<br />
Encontramo-nos agora entre o desejo e a necessidade<br />
desse devir outro, ao nos sentir antecedidos. Nossa história<br />
sendo bricolada, antropofagizamos, tropicalizamos,<br />
metareciclamos, digitofagizamos, no sentido de nunca nos<br />
tornarmos fixos, provocando sempre um fluxo necessário<br />
ao movimento e à mudança. Tanto nossa ancestralidade<br />
quanto nosso futuro imaginário estão aqui, agora, entre<br />
nós, em nossos re-enraizamentos.<br />
Juntamo-nos às pessoas de cor, imigrantes,<br />
mulheres, todas as pessoas cujas experiências de vida,<br />
memórias, línguas e categorias de pensamento foram<br />
substituídas por outras. Como a permacultura latina<br />
- resgate dos conhecimentos ameríndios, tecnologias<br />
ancestrais, apropriadas; novas cartografias afetivas,<br />
na necessária reconstrução das nossas histórias locais,<br />
novas peles e traçados; redes vivas de colaboração, que<br />
fomentam a troca como as comunidades de softwares<br />
livres, sementes nativas, mingas, mutirões, encontros<br />
para a troca de conhecimentos e reconhecimento de lutas;<br />
marchas, mobilizações populares. Essa é a nossa corpopolítica,<br />
uma sensibilidade fronteiriça, em desobediência<br />
epistêmica, desprendendo-se das teorias e fazeres do<br />
mundo que se apresenta como “moderno”.<br />
Aos projetos de aceleração do crescimento, rainha<br />
dos olhos da súdita-capitã de nossa nação atual, dizemos<br />
e agimos em nossas micropolíticas: não, não queremos. É<br />
com terra, sementes, espiritualidade, arte, bicimáquinas e<br />
linux que regressamos ao nosso continente.<br />
Não há uma opção digna que não contenha<br />
simultaneamente a liberdade e o decrescer.<br />
* o x utilizAdo rePresentA A multiPlicidAde de gêneros
lAborAtÓrio de cArtogrAfiAs insurgentes<br />
O lab de cartografias se deu num momento<br />
de reconhecimento de iniciativas que giravam em<br />
torno do mesmo tema: megaeventos, megaprojetos,<br />
remoções ocorrendo por conta da Copa do Mundo<br />
de 2014 e Olimpíadas em 2016, no Rio de Janeiro,<br />
re-desenhos do espaço urbano, militarização, respectivas<br />
resistências. Paralelo ao encontro no Rio, oficinas<br />
de cartografia se deram em Medellin, por ocasião<br />
do primeiro encontro Labsurlab, e em Belém e<br />
Santarém, junto à iniciativa Hacklab, todas, de certa<br />
forma, relacionadas já há algumas pessoas e coletivos<br />
que traziam suas experiências de um encontro a<br />
outro, fortalecendo um sentimento de rede e experimentação.<br />
À época do laboratório (setembro de 2011), a<br />
cidade passava por uma série de derrotas, com as reintegrações<br />
de posse, de ocupações de moradia, e culturais<br />
(squats), como os Guerreiros Urbanos e Flor<br />
do Asfalto; enfrentava ainda a destruição de casas,<br />
como em Estradinha, e a total eliminação de comunidades,<br />
como Vila Harmonia, na zona oeste do Rio<br />
de Janeiro. Processos de resistência foram engendrados<br />
por toda a cidade, com reuniões semanais para<br />
acompanhamento dos processos de remoção, como o<br />
conselho popular, que recebe dezenas de pessoas que<br />
vêm procurar orientação para levar às suas comunidades,<br />
quando suas casas são pichadas pela Secretaria<br />
Municipal de Habitação – SMH, ou quando são<br />
somente informadas que terão de deixá-las (lugares<br />
que vivem por mais de 40, 50, 80 anos de forma<br />
autônoma); ou ainda como o comitê da Copa, que<br />
monitora, principalmente, a área central da cidade,<br />
onde se pretende que ocorra a maior das transformações;<br />
é como ocorre em outras cidades que sediarão<br />
a Copa do Mundo.<br />
A iniciativa do encontro surgiu desde um espaço<br />
chamado ip://, que, à época, ocupava uma casa<br />
no Morro da Conceição, uma mistura de mídia lab,<br />
okupa e lugar de oficinas livres relacionadas, principalmente,<br />
a tecnologias livres, arte e comunicação.<br />
Por um mês, foram conjurados encontros abertos,<br />
em que os temas cartografia e remoções foram discutidos<br />
exaustivamente com um coletivo organizador,<br />
formado por uma média de 10 a 30 pessoas. Durante<br />
o encontro, além da exposição das resistências em<br />
curso e das plataformas de trabalho colaborativas; do<br />
planejamento de ações de mídia tática e exibição de<br />
filmes relacionados ao tema; de oficinas por Skype,<br />
com o coletivo Iconoclasistas, e outras sobre redes<br />
livres; comida viva, cartografia com softwares livres<br />
e balões; uma agenda de trabalho conjunto foi traçada<br />
até o ano de 2014 (pelo menos, visto que o que<br />
acontece é só o princípio do que está por vir).<br />
Algumas das iniciativas que se agruparam durante<br />
o encontro, que surgiram logo antes, durante<br />
ou logo após (influenciadas) pelo encontro:<br />
58<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
cidade olimpica - http://cidadeolimpica.info (sítio<br />
paródia do original .com)<br />
deriva maravilha (caminhada pela cidade do<br />
rio observando os processos de re-configuração<br />
geográfica totalitária em curso)<br />
cartografia vila autódromo (cartografia feita<br />
com crianças da comunidade)<br />
reconstrução estradinha ja (campanha de<br />
reconstrução da comunidade junto a arquitetos e<br />
locais)<br />
olimpicleaks - http://olimpicleaks.midiatatica.info<br />
(sitio com informações oficiais - cartas de desoejo,<br />
tabela de indenizações, relatos, procesoss judiciários<br />
- a respeito das remoções)<br />
rio 40 kaos - http://rio40caos.com (sitio de midia<br />
tatica sobre a questao das remoções entre outros<br />
processos de “desenvolvimento” da cidade)<br />
rio toxico - http://riotoxico.hotglue.me (caminhada<br />
pelos pontos de tensão ecológica como minerdoras<br />
etc na cidade durante a rio+20)<br />
distopia - (filme sobre a questão das remoções no<br />
rio de janeiro)<br />
fronteiras imaginarias culturais (sitio<br />
experimental de cartografias afetivas)<br />
rio diagnostico (análise cultural e política dos<br />
processos em curso atualmente na cidade feita pelo<br />
coletivo colombiano antena mutante que possui<br />
experiências similares em seu local de origem)<br />
pela moradia - http://pelamoradia.wordpress.com<br />
(sitio sobre a questão da moradia no brasil)<br />
comite popular da copa e olimpiadas (comitê<br />
organizador de encontros semanais e ações com<br />
pessoas afetadas pelos processos de remoções na<br />
zona portuária do rio de janeiro)<br />
conselho popular - http://conselhopopular.<br />
wordpress.com (comitê organizador de encontros<br />
semanais e ações com pessoas afetadas pelos<br />
processos de remoções no rio de janeiro)<br />
ocupa rio - http://ocupa-rio.org (ação quase que<br />
simultânea ao lab que se beneficiou das pessoas e<br />
ações já engendradas para o encontro)<br />
dia de saturno - http:// (festa de despedida do<br />
ip:// em que o tema das remoções novamente foi<br />
pauta já que atingia o próprio coletivo)<br />
mnlm (movimento nacional de luta pela<br />
moradia)<br />
Logo após o lab de cartografias, o espaço ip://,<br />
que havia recém planejado ocupar o galpão para o<br />
encontro e pretendia manter o espaço aberto para<br />
atividades, foi tomado por pressões oriundas da especulação<br />
imobiliária no Morro da Conceição, muito<br />
provavelmente por ter sido, justamente, o espaço<br />
aglutinador de iniciativas afins ao tema remoção,<br />
sendo, assim, mais uma de suas vítimas.<br />
sobre o lAborAtÓrio de cArtogrAfiAs insurgentes<br />
Geo Abreu<br />
Cartografia: carta + -o- + -grafia, proveniente por inflexão do francês. cartographie<br />
(1832 sob a f. chartographie) 'id.', (1838 sob a forma cartographie) 'id.', de carte (t.<br />
de geografia) + -graphie;<br />
Insurgente: do latim insúrgens,éntis, particípio presente de insurgère 'levantar-se<br />
sobre, elevar-se';<br />
Enquanto o verbete 'cartografia' está cada dia<br />
mais em voga, a palavra 'insurgência', tão distante<br />
do uso coloquial, parece ter sido redescoberta. No<br />
Rio de Janeiro, a emergência de uma nova forma de<br />
governança global das cidades aportou massacrante,<br />
passando por remoções forçadas, reconfiguração<br />
do espaço da cidade, e nenhuma consulta popular a<br />
respeito dos novos fluxos de pessoas, valores e idéias.<br />
Esta é apenas uma mostra do que será o legado<br />
dos chamados megaeventos (copa 2014, olimpíadas<br />
2016) à cidade maravilhosa.<br />
Em setembro de 2011 o Morro da Conceição,<br />
na Zona Portuária do Rio de Janeiro, abrigou um<br />
encontro para investigação de espaços de ruptura e<br />
desestabilização de significados. A idéia sugerida foi<br />
a da reunião de saberes em torno da criação de novos<br />
mapas críticos+afetivos que dessem conta não<br />
apenas das mudanças em curso, mas conseguissem<br />
expressar a potência verdadeiramente criativa da cidade,<br />
aquela sob a qual repousa seu fazer diário: a<br />
Megadinâmica dos Pobres.<br />
estrAtégiAs do desejo<br />
Pesquisadores, participantes de movimentos<br />
sociais, a[r]tivistas, squatters, produtores culturais,<br />
comunicadores, trabalhadores autônomos, precários<br />
& simpatizantes formaram um grupo bastante heterogêneo<br />
cujas propostas e ações tiveram lugar em<br />
uma semana de pré-laboratório e dois dias de encontro<br />
intensivo.<br />
Sob o guarda-chuva do coletivo IP://, representantes<br />
de coletivos como Acidade, Antena Mutante,<br />
Mídia Tática, Rio 40 Caos, Hackitetura e Universidade<br />
Nômade proporcionaram a construção de<br />
um espaço de convergência para a aproximação das<br />
propostas de cartografia com as comunidades e organizações<br />
que tratam do tema das remoções, assim<br />
como a aproximação das próprias organizações – a<br />
troca de expectativas, sonhos, desejos.<br />
O chamado pré-lab contou com<br />
atividades&oficinas tão variadas quanto a composição<br />
do encontro: cartografia com pipas; redes<br />
sociais livres; comida viva; uma deriva pela região do<br />
futuro 'porto-maravilha'; e bate-papos que se estendiam<br />
noite a fora, cobrindo vasto perímetro e saindo<br />
da Rua Jogo da Bola, passando pela Pedra do Sal,<br />
Morro da Providência, Vila Autódromo, Quilombo<br />
do Campinho, Tabajaras, Lapa-Central, Cali, Gijón,<br />
Belém, Santarém, entre outros caminhos.<br />
No sábado, a apresentação de ferramentas<br />
como o FIC 1 , englobando os relatos de pessoas que<br />
já passaram pela experiência coletiva da criação de<br />
alguns dos mapas que compõem o projeto 2 , e o papo<br />
via web com os argentinos do Iconoclasistas 3 , foram<br />
os pontos altos do primeiro dia, lotando a casa.<br />
O domingo abriu com o mesmo sol generoso<br />
do dia anterior, e assim, foi publicamente lançado<br />
o Olimpi(c)leaks 4 , site que copila documentos oficiais,<br />
linkes, imagens e vídeos sobre o atual processo<br />
de remoções, com especial atenção ao caso carioca.<br />
A ideia é transformá-lo num espaço de divulgação e<br />
denúncia, mas também de contraposição de discursos,<br />
apresentando a situação de um lugar que a mídia<br />
corporativa não quer alcançar. No mais, o dia correu<br />
como previsto, com a formação de três grupos de trabalho<br />
cuja intenção seria ultrapassar o espaço-tempo<br />
do laboratório, amadurecendo as investigações: um<br />
grupo se ateve a dinâmica de transformação da Zona<br />
Portuária; um segundo focalizou as energias nas lutas<br />
em curso em duas comunidades - Vila Autódromo<br />
e Estradinha; e um terceiro propôs pensar a criação<br />
iconográfica mais adequada para composição dos<br />
mapas.<br />
Para fechar o encontro, o grupo Anarcofunk<br />
trouxe a vitalidade de suas letras e ritmo, selando assim<br />
a congregação geral e a criação de nós para desenvolvimento<br />
dos caminhos a seguir.<br />
1 “A plataforma Web FIC - Fronteiras Imaginárias<br />
Culturais - visa ser uma base de dados de conteúdos<br />
agrupados por mapas, retratando aspectos culturais de diferentes<br />
comunidades e coletivos, através de registro multimídia. Os<br />
mapas cognitivos, também entendidos como mapas mentais,<br />
mapa êmicos, psicogeografia ou cartografia social e imaginativa,<br />
podem ser apreendidos como representações gráficas de conjuntos<br />
de representações discursivas, contudo acreditamos que os<br />
mapas cognitivos extrapolam o campo da representação e abrem<br />
o horizonte das possibilidades, criam uma forma de reapreender<br />
o mundo segundo o registro da criação.” Fonte: http://fronteirasimaginarias.org<br />
2 http://fronteirasimaginarias.org/mapas<br />
3 http://iconoclasistas.com.ar/<br />
4 http://olimpicleaks.midiatatica.info/
occuPy lAborAtÓrio<br />
Mesmo com a força do encontro promovido<br />
pelo Lab de Cartografias, a composição e os espaços<br />
de investigação mantiveram-se restritos por questões<br />
demasiado humanas. No entanto, a despeito desse<br />
pequeno ponto de convergência fluminense, a conjuntura<br />
global confluiu para a criação de um espaço<br />
de discussões riquíssimo: o Movimento Occcupy 5 ,<br />
fruto da ocupação de praças por movimentos multitudinários,<br />
deu a tônica ao debate político durante o<br />
ano de 2011. Neste contexto , o Rio de Janeiro viu florescer<br />
a Ocupação da Cinelândia, cujo caráter único<br />
e ao mesmo tempo múltiplo, intrigou e atraiu 6 um<br />
grande número de pessoas e opiniões. A ocupação<br />
permanente do espaço da praça chegou a ter mais de<br />
100 barracas, abrigando estudantes, discussões, moradores<br />
de rua, leituras, aulas, atividades e assembléias<br />
públicas pensando a construção de novos espaços<br />
de representatividade e participação política. O<br />
Laboratório de Cartografias Insurgentes esteve presente<br />
e acompanhou de perto a autoformação deste<br />
monstro. A carne da multidão mostrando com toda<br />
a potência que “embaixo da pele, o corpo é uma máquina<br />
a ferver”.<br />
O também chamado Ocupario durou pouco<br />
mais de um mês no tempo-do-capital 7 , mas ainda<br />
reverbera no tempo-do-desejo e em iniciativas como<br />
o Ocupa Teoria 8 , grupo surgido na acampada e que<br />
tem organizado ciclos de discussões horizontais sobre<br />
temas como propriedade, identidade, representatividade<br />
e variações sobre o conceito de comum,<br />
intentando a ocupação temporária das praças a cada<br />
final de ciclo, levando as discussões até as pessoas e<br />
levando as pessoas até a discussão.<br />
Em dezessete de dezembro passado<br />
comemorou-se com intensa programação – mesmo<br />
sem as barracas, removidas duas semanas antes -<br />
um ano que na cidade de Sidi Bouzid, Tunísia, Tarek<br />
Bin Tayeb Bouazizi, mais conhecido como Mohamed<br />
Bouazizi, um jovem ambulante de 27 anos, saiu para o<br />
trabalho e combinou com seu tio e padrasto que fosse<br />
buscá-lo às 11h para irem juntos rezar. No decorrer<br />
da manhã Mohamed ficou furioso porque confiscaram<br />
sua mercadoria. Ele foi 3 vezes a prefeitura,<br />
reclamou, chorou, mas ninguém o ouviu, ninguém<br />
quis ajudá-lo. Ele não sabia o que fazer. A única coisa<br />
que ele queria era que lhe devolvessem as frutas,<br />
mas Fayda Hamdi, a fiscal que o atendeu disse que<br />
as tinha dado a uma entidade de caridade e não podia<br />
fazer nada por ele. Dizem que foi nesse momento<br />
que ela lhe deu um tapa na cara. Em frente à prefeitura,<br />
Mohamed subiu no seu carro de frutas, com um<br />
líquido na mão, provavelmente gasolina, derramou-<br />
5 http://en.wikipedia.org/wiki/Occupy_movement<br />
6 http://www.quadradodosloucos.com.br/2064/ocupario-e-muitos/<br />
7 http://www.quadradodosloucos.com.br/2136/ummes-de-ocupario/<br />
8 http://ocupateoria.wordpress.com/<br />
60<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
o na cabeça e ateou fogo. Um amigo tentou contê-lo<br />
antes, mas ele dizia: "Não se envolva. Respeite-me."<br />
Depois desse episódio as praças da Tunísia<br />
foram ocupadas e logo depois as praças de todo o<br />
mundo também. É com essa energia que um chamado<br />
global está sendo feito para a reocupação das praças<br />
em doze de maio. Que a globalidade das lutas siga<br />
se corporificando. E continue, e continue...<br />
De: Naldinho Motoboy <br />
Data: 22 de novembro de 2011 12:09<br />
Assunto: Re: Fwd: Festival CulturaDigital.Br - LAB - Cartografia<br />
Experimental<br />
Para: Laboratório Experimental - FCDBR Cc: tai.revelles@gmail.com, tati.xx@gmail.<br />
com, saraguchoa@gmail.com, mramaciel@gmail.com, cinthiamendonca@gmail.com,<br />
victor.ribeiro@gmail.com<br />
E ae galera, beleza?<br />
Eu sou Naldo Silva (aka Naldinho Motoboy), nasci numa<br />
antiga vila de pescadores que hoje, por cauda dos mega empreendimentos<br />
cariocas, corre risco de remoção. a vila fica à beira da<br />
lagoa Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Mas eu agora<br />
vivo no centrão do Rio. Ganho a vida como motoboy de dia e<br />
camelô de noite. Tô fazendo supletivo e tô muito afim de entrar<br />
para a universidade. Gosto bastante de internet e nesses últimos<br />
anos, trabalhando nas ruas, aprendi muito. Tô na batalha! Colaboro<br />
com o projeto Olimpicleaks, Cartografias Insurgentes e ainda<br />
com outras iniciativas de mídia, arte e ativismo. Eu conheci<br />
a galera do ipê vendendo cerva na rua. troquei uma ideia, gostei<br />
da parada e tô colando lá! Tô amarradão colaborando, tamo fazendo<br />
altas reflexões ae do que tá acontecendo agora com a vida<br />
da gente nessa cidade loka. Nessa época ae que conheci a galera,<br />
um dia eu sonhei que sequestrava um caveirão. Acordei com um<br />
paradão na porta da minha casa e resolvi bate lá. Não tinha ninguém,<br />
entrei dentro e saí pra dar um rolé. Fui pra zona sul, Copacabana,<br />
Ipanema, Leblon, céu azulão, praia, curtição. E a galera?<br />
nem preciso dize, né? tinha gente desmaiando, gente apontando,<br />
tirando foto e achando graça, gente telefonando pro governador!<br />
pena que foi só um sonho... Mas é com essa sensação de tá dirigindo<br />
um caveirão na zona sul que eu me sinto toda vez que<br />
posso fazer alguma coisa irada contra essa merda de vida que<br />
oprime a gente e que quer que a gente seja escravo dela. Eu quero<br />
uma vida livre, digna e sem medo, eu não quero ser escravo de<br />
ninguém, por isso, devez em quando, dirijo um caveirão na zona<br />
sul... Mas eu tô colando aqui pra fazê uma proposta, valeu? Fico<br />
afim demostrar pra vcs a cidade em transformação. Meio que<br />
esse é um dostemas do Cartografias Insurgentes, tá ligado? a cidade<br />
e suastranformações, os impactos sofridos por causa dessa<br />
estória deMegaeventos e tal...Sugiro ae pra todo mundo poder<br />
ver mermo de perto um pouquinho de comoestá as coisas e também<br />
pra galera poder experimentar, dou a ideia da gente faze<br />
uma deriva que vai do MAM até o Morro da Conceição onde fica<br />
a casa do Ipê. Durante essa caminhada vamos falando das coisas<br />
que interessam. chegando lá no ipê teremos uma surpresa pra<br />
vcs! vai ser irado!!! a gente sai do Mam, atravessa a passarela<br />
e sai na praça 4 de julho. dalí seguimos pra cinelândia, depois<br />
praça mauá e depois morro da conceição. esse trajeto ae tem 2,5<br />
km e deve dar 30min de caminhada. devagar, batendo papo a<br />
gente faz em 1h, no máximo. No meio do caminho vou vendendo<br />
uma cerva gelada, vou na minha bike com o isopôr cheião! chegando<br />
lá no ipê, vcs vão ver a surpresa irada que vamos preparar<br />
pra vocês com muito carinho. É porque sem amor essa vida não é<br />
nada! Bem, é isso aê! E ae o que vcs acham?<br />
Por favor, galera, colabora ae na construção dessa deriva e<br />
qualquer coisa meus companheiros vão complementar ae aquilo<br />
que eu não me liguei, valeu?<br />
um abração!<br />
Naldo.
outro relAto PArA o iPe<br />
Faz quase um ano desde que me senti atraída<br />
pelas cartografias, espelhismos transformadores de<br />
representações, coletivos, consensual e dissidentes,<br />
uma rede que se traça desde as memórias até os futuros<br />
de ação... Toda uma atração cativante que uma<br />
antropóloga, com interesse nas narrativas, não pode<br />
evitar, justamente quando se trata de uma possibilidade<br />
que já estava procurando em Cali, a cidade<br />
onde se constrói meu olhar enraizado. Cali, cidade<br />
sub-dimensionada, alegre, salsera, gostosa e completamente<br />
desigual. Um 80% de pobreza com avenidas<br />
que dividem cidades irreconciliáveis. Violência na<br />
Calicalentura, muito quente. Subverter as representações<br />
de identidades acabadas, perfeitamente autocomplacentes<br />
com as lógicas do turismo, políticas de<br />
desenvolvimento e investimento estrangeiro e poder<br />
conceber ações estratégicas para complementar isso<br />
era um dos meus maiores anseios. Faz quase um ano<br />
desde que comecei a enfitar um rizoma que só tinha<br />
que misturar os desejos diversos, já acumulados pelos<br />
anos, e essa enorme vontade de re-conhecer o<br />
país vizinho, o Brasil.<br />
A PrimeirA semente<br />
colAborAtivA<br />
Dentro das redes de colaboração e cumplicidade,<br />
nasceu a primeira semente da minha residência<br />
não oficial no ipê; no encontro de laboratórios do sul,<br />
Labsurlab, em Medellín, Colômbia, em abril de 2011.<br />
Atraída por algumas experiências, como fadaiat, entre<br />
outras, Oskar e eu nos inscrevemos na oficina de<br />
videocartografia metropolitana - novamente a cartografia<br />
como ponte, uma conexão. Ali mesmo consegui<br />
falar pela primeira vez em portunhol com a Tati Wells<br />
e o Ricardo Brazileiro. Sim, visualizei a possibilidade<br />
de conectar os nodos. Lembro desse email, que escrevi<br />
pra eles, inspirado no texto construído coletivamente<br />
depois do Lsl; “Há muito pra fazer sobre o<br />
que vocês chamam de tecnoxamanismo digitofágico<br />
e considero que aqui em Cali, pelo menos, podemos<br />
traçar alguns caminhos conjuntamente.” A resposta<br />
chegou com o convite pra participar no laboratório<br />
de cartografías insurgentes. Minha residência não ia<br />
ser como as outras; eu não fui chamada por ter experiências<br />
ou reconhecimentos acumulados. Nesse<br />
sentido, foi uma residência não oficial, com uma<br />
vontade clara: aprender e compartilhar. Assim foi se<br />
fiando o caminho da semente como manifestação das<br />
possíveis convergências do sul.<br />
62<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
PensAr esPAciAlmente é<br />
refletir sobre A morAdiA.<br />
descolonizAr nossAs<br />
PráticAs.<br />
O ipê me foi apresentado como um espaço nômade.<br />
O ipê, germinação de outros sonhos. A casita mostrava seus<br />
anos bem levados nas paredes e no chão (um chão bem<br />
frágil!). A casa 24, da rua Jogo da Bola, Morro da Conceição,<br />
na zona portuária, foi a maior interface de aprendizagem<br />
no Rio. Quando eu cheguei, estava se cozinhando<br />
o que ia ser o laboratório de cartografias insurgentes e fui<br />
me inserindo nesse ambiente tão cálido; sorrisos no rosto<br />
e muita cadência ao falar; disposição na convergência em<br />
meio das mudanças da “cidade maravilhosa”. Mas... foi<br />
assim mesmo? Eu quero compartilhar minha observação<br />
desde o sentir, e desde a moradia de setembro até novembro<br />
de 2011, para contribuir na reflexão sobre nossas práticas<br />
colaborativas.<br />
Achei muito interessante a convocatória; experiências<br />
tão ricas e diversas; tantas vozes e caminhos andados<br />
dentro das possíveis linhas de fuga. Mas o lab não conseguiu<br />
(nesse momento específico) convergir as diferentes<br />
dinâmicas que percebi um pouco atomizadas. Os espaços<br />
de experimentação foram substituídos por uma sequência<br />
de apresentações sobre o que poderia ser a melhor experiência<br />
cartográfica. Por que isso acontece?<br />
O encontro foi chamado de laboratório de cartografias<br />
insurgentes. A insurgência é uma dessas<br />
palavras cativantes, mas, quando está esvaziada de<br />
problematização, termina por reproduzir aquilo que<br />
tenta combater e se torna pouco coerente na prática.<br />
Acho que a insurgência vem de dentro, das<br />
práticas cotidianas, das micropolíticas que compõem<br />
o espectro de possíveis ações a nos juntar contra essa<br />
máquina de guerra e desapropriação que é o projeto<br />
Cidade Olímpica. Especificamente e com as exceções<br />
respectivas, a sensação dentro do evento foi de um<br />
afastamento das iniciativas dentro de poucas mãos<br />
que nesse momento, e como piada, senti como egos<br />
insurgentes. De repente, achei que algumas formas<br />
reconhecidas de fazer e tanta certeza sobre as ferramentas<br />
e sobre a tática insubmissa, às vezes, impossibilita<br />
a criação coletiva. O lugar incômodo e libertário<br />
é esse que tá todo o tempo se perguntando; não<br />
fica tranquilo. Encontrar e reproduzir as mesmas<br />
perguntas sem olhar além de seus próprios passos<br />
(inclusive se nossos contextos se refletem), não contribui<br />
a convergir nas diferenças para se transformar.<br />
Com certeza, o laboratório é um processo lento...<br />
“vamos lento, porque vamos lejos”, e os caminhos<br />
que conectam realidades globais continuam se<br />
reconhecendo dentro dessas vozes e rostos irmãos.<br />
Assim, as tentativas de desconstrução desses abusos<br />
disfarçados de maravilhas podem ser alimentadas<br />
e reforçadas em outros contextos, e contribui para<br />
melhor repensar as táticas colaborativas.<br />
A vivência mais profunda, a moradia foi quem<br />
me mostrou o caminho de descolonização. A casita<br />
estava cada dia mais perigosa lá em cima e o Tuninho<br />
e Assim...cAli cHAmAndo<br />
Eu quis sair de casa pra morar um tempo no<br />
Brasil. Eu queria tanto, que ainda tinha que voltar<br />
na minha cidade pra compreender algumas lógicas<br />
deslocalizadas, algumas contradições... sim, bem refletidas<br />
em outros contextos com ritmos e cadências<br />
diferentes.<br />
Nessa moradia, senti chegar a onda dos movimentos<br />
occupy na cidade; muita gente se encontrando<br />
nas praças e ruas. Assim mesmo, eu olhava todo o<br />
tempo pra Colômbia, que tinha aberto seu processo<br />
de mobilização pela educação; muitas ações de alegre<br />
rebeldia florescendo. Quando voltei em Cali, percebi<br />
a moradia refletida pela galera do baobá voador, uma<br />
descolonização efetiva desde o cotidiano, com permacultura<br />
e mais proximidade com a comunidade do<br />
bairro. Também continuei seguindo o processo contínuo<br />
das cartografias táticas, as múltiplas possibilidades<br />
de subversão dos megaeventos no Rio. Nesse<br />
momento, senti a fortaleza de algumas conexões latentes,<br />
que continuam até hoje, sensações e formas<br />
de interagir aqui e ali, um terreno fértil pra futuros<br />
encontros.<br />
e o Peixe, que estavam tentando consertar isso que<br />
os anos tinham roído tanto, foram meus melhores<br />
parceiros lá na casa, desde o almoço até falar sobre<br />
o que constituem as diferenças entre os vizinhos<br />
países; foi sempre a ponte de convívio, de intercâmbio<br />
constante. Em um nível mais geral, o morro está<br />
no centro do projeto Porto Maravilha, que consegui<br />
conhecer pela deriva maravilha feita dentro do prelab<br />
(assim mesmo foi com Vila Autódromo e Tabajaras,<br />
núcleos de resistência territorial). Essa iniciativa<br />
faz parte dos grandes megaprojetos que têm, no centro,<br />
uma contradição muito grande: se apresentam<br />
com benefícios incrivelmente exagerados nas mídias<br />
e têm nomes muito lindos (como é o caso do projeto<br />
de revitalização do centro de Cali, “Ciudad Paraíso”),<br />
Paraíso, Maravilha, Transcarioca... grandes contrastes<br />
com o fato inevitável de remoção e aniquilação<br />
das opções de permanência, e um aumento da precariedade<br />
numa cidade tão grande, tão rica e tão pobre.<br />
Como a casita estava sendo reformada e tinha<br />
muito pó todo o tempo, os outros residentes ficaram<br />
doentes. Morei sozinha ali mesmo, onde estava<br />
reforçando minha afetividade com um lugar que<br />
tanto clamava convívio e ações conjuntas. A galera do<br />
anarcofunk começou a chegar com as possibilidades<br />
de ocupação.<br />
Um dos melhores momentos de discussão<br />
dentro do ipê, pra mim, foi precisamente a questão<br />
da ocupação como reflexão íntima da situação geral<br />
compartilhada na cidade. A casa caindo em pedaços<br />
exigia repensar as formas de morar e resistir desde o<br />
cotidiano.<br />
outrA voltA Ao sul<br />
Hoje novamente posso tentar fiar alguns pontos<br />
nessa rede da qual faço parte, uma rede tecida por<br />
eventos, processos dentro e fora do Brasil, pessoas,<br />
contextos, apropriações, ferramentas livres e táticas.<br />
Há pouco, novamente no labsurlab, em Quito, senti<br />
um pouco encontrar isso que eu estava procurando<br />
quando quis sair correndo para o vizinho país; compartilhar<br />
das formas de ação, cada contexto, cada<br />
forma de se encontrar e colaborar, as cumplicidades<br />
do sul para o sul.<br />
Em cada região, continuam se refletindo e se<br />
juntando cumplicidades, recolhemos as experiências<br />
similares com as bicicletas, os festivais de troca troca,<br />
as hortas se expandindo, projeções de filmes, as reflexões<br />
e ações nas ruas.<br />
Continuamos cartografiando nuestros territorios,<br />
pero nos encontramos para hacerle el quiebre<br />
a este sistema, comprendemos así que las magias<br />
invisibles siguen orbitando señales de resistencia y<br />
rebeldía.<br />
La red, como la semilla se expande. Que se sigan<br />
expandiendo más encuentros en el sur!
io distÓPico.<br />
controle e segregAção<br />
no ArquiPélAgo cArcerário.<br />
COLETIVO ANTENA MUTANTE<br />
Este texto faz uma série de reflexões sobre nossa<br />
experiência no Rio de Janeiro, a cidade em que estivemos<br />
percorrendo durante quase um mês e meio.<br />
Queremos mostrar-lhes como nos situamos em uma<br />
grande e complexa urbe com o fim de estabelecer<br />
uma série de conexões que nos permitiram analisar<br />
o que acontece na cidade, o projeto transformação<br />
urbana abrigada na cidade global. Realizaremos isto<br />
jogando com a idéia de arquipélago e os enclaves.<br />
Concentrando-nos no caso da zona portuária do Rio<br />
de Janeiro que está sendo revitalizada em função do<br />
megaprojeto Porto Maravilha.<br />
Aproximando-nos à idéia de arquipélago queremos<br />
trabalhar para compreender como são as dinâmicas<br />
de uma cidade global, desenhada em função da<br />
indústria do turismo. Local onde implementam-se<br />
alguns fortes dispositivos de regulação, instaurando<br />
um controle social, onde tudo o que acontece deve ser<br />
aceito como algo necessário.<br />
Começaremos, então, nossa deriva pelo Rio<br />
Distópico.<br />
Estar contra as purificações, as reproduções<br />
do disciplinamento e uma arquitetura<br />
obsidional<br />
entre guetos, prisões e fortalezas, deixar<br />
emergir o nomadismo, movimento, a diversidade<br />
que<br />
faz a diferença, é o<br />
que nos motiva. Romper com a simbiose da<br />
cidade como uma<br />
prisão ou das partes da cidade como prisão.<br />
Vera Malaguti<br />
64<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
A deriva pelo centro e pela zona sul do<br />
Rio de Janeiro.<br />
Caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, nos<br />
encontramos desprevenidamente com uma cidade<br />
bonita, onde misturam-se praias, cultura, natureza e<br />
uma grande cidade com marcantes contrastes dentro<br />
dela. Permitindo-nos experimentar a cidade vertical<br />
que se confunde com os morros, lugar onde localizam-se<br />
as famosas favelas.<br />
Pouco a pouco vamos experimentando diferentes<br />
situações que vão provocando um distanciamento<br />
desta cidade bonita e deslumbrante. Sobretudo<br />
porque fomos convidados a um encontro de<br />
cartografias insurgentes para apresentar uma proposta<br />
de mapeamento sobre as problemáticas da cidade<br />
do Rio de Janeiro, com relação aos problemas<br />
pontuais de desalojos e remoções dentro do contexto<br />
dos megaeventos transnacionais a realizar-se na cidade.<br />
Referindo-se sobretudo ao mundial de futebol<br />
e às olimpíadas.<br />
O Rio de Janeiro é uma cidade de grande interesse<br />
para a indústria do turismo global, depois de<br />
ter entrado em decadência ao deixar de ser a capital<br />
do Brasil. Concentram-se em consolidá-la em uma<br />
cidade acolhedora para os turistas. Estes empreendimentos<br />
relacionam-se em função de mesclar atrativos<br />
turísticos com todo o imaginário em torno dos<br />
esportes, este primerio esforço já ocorreu nos Jogos<br />
Panamericanos de 2007, mas as tranformações urbanas<br />
que aconteceram não cumpriram as expectativas.<br />
“O Rio de janeiro é uma cidade em decadência,<br />
abandonada pelas instituições oficiais e dominada<br />
pelos interesses especulativos e a demagogia política.<br />
Um momento de brilho, que poderia ter sido gerado<br />
para a celebração dos Jogos Panamericanoenclaves<br />
(2007), foi negado pela mediocridade e opacidade<br />
das obras realizadas, que além do mais, não geraram<br />
intervenções radicais na deteriorada estrutura urbana.<br />
É triste verificar que no início do século XXI<br />
apagaram-se as luzes do teatro da Cidade Maravilhosa”.<br />
(Segre, p. 34, 2008)<br />
Agora retorna o projeto, mas já com características<br />
globais e isto provoca as remoções e desalojos<br />
em busca do novo desenho de cidade que propõe-se<br />
como uma cidade global. Por cidade global poderiamos<br />
entender o seguinte, exposto por Saskia Sassen,<br />
a criadora do conceito: “ O enfoque dirige-se às<br />
práticas que constituem o que se entende por “globalização<br />
econômica” e “controle global”, ou seja,<br />
produzir e reproduzir a organização e a administração<br />
de um sistema de produção global e de um mercado<br />
global de capital, ambos marcados pela concentração<br />
econômica”. (p. 125, 2007). Vemos esta cidade<br />
focada na indústria do turismo e dos megaeventos.<br />
Neste contexto nos encontramos com uma sociedade<br />
mobilizada em torno destes aspectos com<br />
um tema que os atravessa desde as políticas públicas<br />
e é o da mudança. Que, por sua vez, é geral para o<br />
contexto Brasileiro.<br />
rio, A cidAde globAl. controle<br />
e segregAção.<br />
Quando falamos do global devemos antes<br />
compreender sobre qual cidade estamos falando e<br />
vivendo. O Rio de Janeiro arrasta uma tradição escravocrata,<br />
a cidade tem tomado forma segregando<br />
socioespacialmente a seus habitantes, especialmente<br />
os descendentes de escravos africanos, um passado<br />
marcado por processos de resistência e dominação<br />
onde adquiriu a forma atual e as favelas emergiram<br />
desejando misturar-se com a cidade.<br />
Estes conflitos históricos deverão ser solucionados<br />
para chegada dos espectadores da cidade. Além<br />
disso, a Prefeitura tem a necessidade de dar acesso<br />
aos habitantes das Favelas à cidade planificada para<br />
que o Rio de Janeiro não se esfrie – com no caso<br />
do carnaval – requerendo gerar controle sobre os<br />
cidadãos e cidadãs tanto nas Favelas com na cidade<br />
planificada, para que encontrem-se em certos momentos<br />
nas ruas. “ O Rio de Janeiro deverá funcionar<br />
nos próximos 6 anos como território produtivo das<br />
práticas de controle e captura das dinâmicas e conflitos<br />
sociais, através de sistemas de ação e sistemas de<br />
objetos conduzidos por um capitalismo que precisa<br />
atualizar sua gestão do desenvolvimento desigual<br />
através da construção de inúmeras fronteiras nas cidades<br />
e entre os países.” (Cunca, p.2009,54)<br />
Neste contexto necessita-se entrar e controlar<br />
diretamente as Favelas, pois também fazem parte do<br />
atrativo turístico das cidades, tanto pela vista privilegiada<br />
que possuem, como pelas pessoas que as<br />
habitam e a cultura que elas produzem. Esta lógica<br />
de cidade global consiste no seguinte: “o capitalismo<br />
global tem de reestrutar a combinação entre a lógica<br />
do capital e a lógica territorial, via uma institucionalização<br />
do comando das redes e fluxos financeirizados<br />
montando um padrão ou regime de controle territorial<br />
sobre os homens e os objetos”.(idem, p.45)<br />
A mArcHA dos excluÍdos:<br />
A poucos dias no Rio de janeiro participamos<br />
da contra marcha da independência (grito dos excluídos)<br />
que se realiza no 7 de setembro, onde o Estado<br />
do Rio de Janeiro exibe todo seu armamento e quem<br />
os operam. A contra marcha mobiliza algumas pessoas<br />
que saem às ruas para denunciar na paralela<br />
da avenida Presidente Vargas, onde se apresenta o<br />
desfile militar. Mobilizados sobre o tema de violação<br />
aos direitos humanos e direito à cidade. É ali aonde<br />
vemos emergir as grandes questões em torno à essa<br />
proposta de mudança e como tem afetado aos cidadãos:<br />
o tema das remoções, o tema do transporte,<br />
os agrotóxicos, a cidade policial, o tema do racismo,<br />
entre outras problemáticas.<br />
exPeriênciA nA zonA sul,<br />
centro e zonA PortuáriA<br />
Conseguimos experimentar a cidade em percusos<br />
desprevenidos que nos foram aparecendo em<br />
certos lugares de referência que marcaram o transcurso<br />
da experiência no Rio de janeiro. Em poucos<br />
dias conhecemos grande parte do centro histórico da<br />
cidade, duas Favelas – Rocinha e Santa Marta-, as<br />
praias do sul, o parque da Tijuca, a zona norte e algo<br />
de suas academias.<br />
Neste sentido quisemos conhecer os detalhes<br />
do projeto Rio40Caos que vinha trabalhando em torno<br />
do que acontecia na cidade, além de nos apresentar<br />
um contexto desde o qual conseguiamos ter uma<br />
perspectiva mas ampla dela, onde nos foi apresentada<br />
a mobilização da contra marcha chamada “grito dos<br />
excluídos” em 7 de Setembro. As fortalezas instaladas<br />
como projetos urbanos nos complexos, com no caso<br />
de Manguinhos, o bonito bairro de Santa Teresa, as<br />
mobilizações da Rádio Pulga – Rádio livre que teve<br />
seu transmissor apreendido pela policia dentro da<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de<br />
Filosofia e Ciências Sociais -, o lugar de encontro dos<br />
nordestinos e muitas outras coisas. Neste contexto,<br />
sempre considerando o contexto de controle, o tema<br />
da cidade policial e da segregação socioespacial que<br />
se apresenta, mostrando-nos as situações em que se<br />
encontram o Complexo do Alemão e Manguinhos.
cArtogrAfiA crÍticA.<br />
ArquiPélAgo cArcerário. cidAde<br />
PoliciAl e vigilânciA.<br />
Preparando-nos para o encontro de cartografia<br />
que abordamos desde uma perspectiva crítica,<br />
gostaríamos de apresentar uma proposta e nos atrevemos<br />
a sugerir a idéia de compreender o Rio de<br />
Janeiro como um arquipélago de ilhas carcerárias;<br />
“uma coleção de cidades carcerárias, um arquipélago<br />
de e espaços fortificados<br />
que atrincheram, tanto voluntaria como involuntariamente<br />
aos indivíduos e às comunidades em ilhas<br />
urbanas visíveis e não tão visíveis, supervisadas por<br />
formas reestruturadas de poder e autoridade pública<br />
e privada” (Soja, 2008:420).<br />
Esta hipótese de trabalho da cidade nos permitia<br />
compreender uma série de novas configurações<br />
territoriais impostas sobre a militarização e a vigilância,<br />
introduzindo as desconexões das problemáticas<br />
que lhes concernem a todos os habitantes da cidade,<br />
como as remoções e os desalojos. Também a consideramos<br />
importante porque pode-se indagar sobre o<br />
passado e entender como o Rio de Janeiro chegou<br />
a adquirir esta forma. O exemplo mais evidente é o<br />
que tem-se gerado em torno das UPPs – Unidade de<br />
Polícia Pacificadora – instaladas nas Favelas e o aumento<br />
da polícia militar fortemente armada por toda<br />
a cidade.<br />
“As políticas de segurança pública implementadas<br />
recentemente em distintas favelas da cidade<br />
do Rio de Janeiro fazem parte de projetos mais<br />
amplos de renovação urbana, visando preparar a<br />
cidade para a realização de importantes eventos internacionais,<br />
como a Copa do Mundo de 2014 e os<br />
Jogos Olímpicos de 2016. Assim, desde dezembro de<br />
2008, começaram a ser instaladas em favelas cariocas<br />
as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), uma<br />
forma de ocupação por um determinado contingente<br />
66<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
policial com a finalidade de garantir a segurança local<br />
e, sobretudo, o cessar da criminalidade violenta<br />
ligada ao tráfico de drogas nesses espaços”.(Vieira da<br />
Cunha, p. 371, 2011)<br />
Estas questões não eram muito distantes de<br />
nossas indagações sobre a Colômbia – especialmente<br />
Bogotá e Medellin -, e também com a referência que<br />
temos dos territórios Palestinos, que poderiam chegar<br />
a ser úteis em algum momento. “... aparece sempre<br />
como o questionamento básico das obras de urbanização<br />
propostas, os seus riscos e impactos bem como<br />
a sua relação com o conjunto de ações de ocupação<br />
policial que criam um quadro de alta complexidade,<br />
no qual são manejadas as mais variadas imagens,<br />
muitas das quais remetem aos modelos aplicados em<br />
Bogotá e Medellín”. (Cunca, p. 51, 2009)<br />
A cidade conta com um contingente de polícia<br />
militar muito grande, sistemas de intervenção nas<br />
Favelas como é o caso de Santa Marta, com o traçado<br />
de um muro e vários experimentos das UPP – Unidade<br />
de Polícia Pacificadora -, também encontraremos<br />
um sistema de transporte bastante segmentado<br />
como no caso do metrô que cobre do centro à zona<br />
sul da cidade.<br />
O arquipélago está sendo implementado pela<br />
Prefeitura, agrupando algumas Favelas em Complexos<br />
como o Alemão e Manguinhos. Também resguardando<br />
territórios como as praias do sul – Copacabana<br />
e Ipanema – e o enclave barra da Tijuca – a<br />
Miami Carioca -, iniciando processos de revitalização<br />
como o da zona portuária e a infraestrutura dos equipamentos<br />
olímpicos.<br />
Este processo isola as populações da Favela do<br />
mar e controla o acesso e circulação dos habitantes<br />
da cidade. Um ponto que gostaríamos de enfatizar é<br />
sobre como a estrutura social dominante se produz<br />
sobre uma série de desigualdades e segregações que<br />
ronda desde o passado da cidade.<br />
“O fato das UPPs estarem restritas ao espaço<br />
de favelas, e de algumas favelas, já seria um indício<br />
luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a<br />
ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza<br />
que se localizam em regiões estratégicas aos eventos<br />
desportivos do capitalismo vídeo-financeiro. É o<br />
caso do que Souza exemplifica no Estado que “governa<br />
mais para o interesse hegemônico do que para a<br />
sociedade brasileira”. Com isso queremos frisar que<br />
as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregações<br />
socioespaciais no Rio de Janeiro”.(Malaguti,p.<br />
2, 2011)<br />
Neste ponto entra o que se conhece como a<br />
“Pacificacão”, que está sendo implantada nas Favelas<br />
vizinhas à urbe planificada, é o processo de intervenção<br />
que a Prefeitura tem para controlar os habitantes<br />
em seus territórios, eles contam com uma vista privilegiada<br />
da cidade e têm passado por processos de<br />
resistência e organização onde acabam sendo capturados.<br />
Este processo já ocorreu no Brasil onde recuperaram<br />
os territórios no norte do país; “O estabelecimento<br />
da centralização do território para o Império<br />
brasileiro também foi chamado de pacificação. Só no<br />
estado do Grão-Pará foi massacrada quase a metade<br />
da população na luta pelo domínio do território dos<br />
cabanos” (idem, p. 4)<br />
A pacificação consiste em intervir militarmente<br />
nas Favelas, dado que ali se encontram os nichos do<br />
tráfico de drogas para a cidade dos turistas e o controle<br />
armado dos territórios – Territórios exercidos<br />
e definidos por diferentes atores que habitam as<br />
Favelas, problema complexo no qual não poderíamos<br />
aprofundar com clareza. Além de intervir nos<br />
processos culturais, gerar projetos de intervenção<br />
urbana como no caso do Complexo do Alemão e do<br />
Morro da Providência onde planeja-se um teleférico,<br />
baseado na experiência da Comuna 13 em Medellin,<br />
além da presença de ONGS – turistas militantes – do<br />
“primeiro mundo” que mediam estes conflitos.<br />
O problema de tudo isto é que se intervêm<br />
de uma forma armada com sérios mecanismos de<br />
repressão e criminalização – questões que não solucionam<br />
o conflito – e sim, criam profundos problemas<br />
ao não permitir espaços autônomos para que<br />
estas populações gestionem os seus projetos de vida<br />
e sejam parte do projeto de cidade em seu conjunto<br />
desde suas particularidades, questões que, segundo<br />
Vera Malaguti, conserva e preserva todo o tema da<br />
segregação socioespacial.<br />
Esta consideração foi levada em conta para trabalhar<br />
de forma diferenciada cada uma das ilhas que<br />
a prefeitura define e a polícia militar delimita ativando<br />
sistemas de vigilância e ordem policial diferenciados<br />
para cada uma delas, tudo isto em função da<br />
“livre” circulação de pessoas, informação e dinheiro.<br />
Este tema é considerado e relacionado ao controle<br />
social da cidade e como este controle se efetua pela<br />
necessidade de realizar rapidamente uma transformação<br />
à uma cidade que deve estar preparada para<br />
ser visitada por muitos consumidores – turistas- que<br />
esperam o melhor da cultura, das mulheres, lugares<br />
históricos, desportivos e todo tipo de diversão.<br />
A cidade se constrói de acordo com os interesses<br />
de circulação do dinheiro, informação e pessoas,<br />
até às desconexões e conexões que provocam o novo<br />
desenho da metrópole. Esta questão em primeira<br />
instância requer pacificar as Favelas que inevitavelmente<br />
não podem ser removidas e que encontram-se<br />
próximas ao centro e à zona sul.<br />
Dentro do nosso trabalho estivemos residindo<br />
no Morro da Conceição na casa do Coletivo IP, um<br />
morro que não é uma Favela, onde na parte mais alta<br />
encontra-se o ministério de guerra dos governos anteriores.<br />
Um bairro constantemente sob custódia de<br />
um batalhão militar, localizado em frente à zona portuária<br />
e perto do centro. Ficamos onde a avenida Rio<br />
Branco cruza com a avenida Presidente Vargas.
sensibilizAção e medo.<br />
Produto do controle sociAl.<br />
Observamos uma cidade sensibilizada pelas<br />
transformações da cidade global. Neste contexto<br />
fazemos referência à obra de Vera Malaguti, na qual<br />
propõe, baseando-se em Eagleton, a seguinte reflexão<br />
em torno da questão estética no marco do medo do<br />
Rio de Janeiro: “Acontece , então, um processo de<br />
estetização do regime. A obediência à lei vem agora<br />
do interior do sujeito, fixada através de “hábitos, devoções,<br />
sentimentos e afetos”. (Malaguti,p.76,2003).<br />
Esta questão da estetização do regime apresenta-se<br />
e a relacionamos com a questão da memória, o processo<br />
de trazer o passado ao presente no marco da<br />
cidade proposta. Vemos como o projeto se articula a<br />
“Criar uma condição amnésica na qual essas noções<br />
pareçam jamais ter existido, colocá-las num espaço<br />
para além de nossos poderes de concepção”. (idem).<br />
Fazemos referência a isto porque neste projeto de cidade<br />
volta-se a ratificar a segregação desde as formas<br />
contemporâneas de controle e exclusão.<br />
É importante destacar o tema das sociedades<br />
de controle na medida em que os habitantes do Rio<br />
de Janeiro que têm acesso à cidade urbanizada, à<br />
produção cultural e à educação relacionada com o<br />
global, encontram-se já conformados frente ao que<br />
está acontecendo e buscam permanecer em uma<br />
posição cômoda dentro da mudança. Uma posição de<br />
servidão ao turista.<br />
“Na base deste desenvolvimento tem uma<br />
ideologia de mercado total, que é a ideologia de luta.<br />
Interpretando e tratando a sociedade inteira sob o<br />
ponto de vista do progresso em função do mercado<br />
total. A mística do mercado total transforma-se em<br />
uma mística de luta de mercados, à qual submetemse<br />
todas as esferas da sociedade. Nesta perspectiva<br />
total, aparece agora a mística de uma guerra contra<br />
os que resistem a este submetimento de todas as esferas<br />
da sociedade à luta de mercado. Aparece assim<br />
a imagem de um inimigo que é o produto mesmo<br />
desta mística da luta de mercados. Este inimigo não<br />
é um adversário competitivo na luta dos mercados,<br />
não é participante no mercado, e sim o adversário<br />
na vigência do mercado total e de seu resultado. É<br />
inimigo quem resiste à transformação da luta de<br />
mercado no princípio único e básico da organização<br />
inteira”(Mattellard, p.173,2009)<br />
No Rio de Janeiro apresentam-se uma série de<br />
elementos que sustentariam a crítica à cidade global.<br />
Tomamos então a decisão de trabalhar a cidade<br />
68<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
por fragmentos, estes fragmentos são territórios que<br />
vão-se demarcando em torno à dispositivos de controle<br />
empregados pela Prefeitura – ilhas-. Isto nos<br />
serve para introduzir o tema do medo que vive esta<br />
cidade, o medo ao que não vive ou não está disposto<br />
a viver na cidade feita para os turistas e consumidores.<br />
Este medo encontra-se nas pessoas mais conformadas<br />
com a mudança e que exigem políticas de<br />
segurança pública, sentem-se ainda mais em perigo<br />
quando percebem a quantidade de pessoas que estão<br />
sendo encurraladas e forçadas a entrar nas dinâmicas<br />
propostas pelo novo projeto de cidade.<br />
Outro aspecto a considerar é como estes territórios<br />
seguros demarcados no centro e na zona sul<br />
da cidade desfrutam de uma infraestrutura de conectividade<br />
ampla, enquanto as outras zonas encontramse<br />
em condições precárias de acesso às tecnologias<br />
de informação e comunicação. É importante também<br />
levar em conta porque os conectados através das máquinas<br />
de informática são os que estão tendo acesso<br />
às informações sobre o novo projeto de cidade, enquanto<br />
os demais são afetados e estão sendo forçados<br />
a ter acesso à estes meios para que se conheçam suas<br />
problemáticas, sem obter resposta sobre o porque<br />
dessas obras já terem sido aprovadas.<br />
Neste panorama e dadas as problemáticas anteriormente<br />
descritas, vimos a necessidade de concentrarmos<br />
em um fragmento da cidade. Dados os<br />
inconvenientes de mobilidade e os inconvenientes<br />
para conectar com posturas críticas da cidade, decidimos<br />
experimentar a transformação da cidade global<br />
em uma área acessível e que poderia ser lida sob<br />
diferentes aspectos e referências que nos brindaram<br />
os membros da okupacão Flor do Asfalto e o projeto<br />
Rio40caos.<br />
A zona portuária do Rio de Janeiro possui uma<br />
carga histórica que sob nosso ponto de vista contém<br />
muitos elementos que permitiram trabalhar o que<br />
acontece na cidade. Neste momento a zona portuária<br />
e a área demarcada pelo projeto Porto Maravilha esta<br />
habitado por:<br />
“Neste contexto, a área limítrofe à zona portuária<br />
da cidade recebeu uma grande quantidade de<br />
população de baixa renda, expulsas da então valorizada<br />
área central da cidade, em função das obras de<br />
modernização impostas nas gestões citadas. A nova<br />
localização possibilitou a esse contingente de mão de<br />
obra barata, situar-se em um lugar “perto, mas longe<br />
do centro”, para assim ter acesso às oportunidades<br />
que esta oferecia”.(Lima Carlos,p.36,2010)<br />
revitAlizAção dA zonA PortuáriA<br />
do rio de jAneiro<br />
O encontro com a ocupação Flor do Asfalto nos<br />
apresentou as relações com o passado que guarda a<br />
zona portuária do Rio de Janeiro, onde chegaram os<br />
escravos, onde formou-se a primeira Favela e ocorreu<br />
uma das grandes revoltas da cidade – A Revolta<br />
da Chibata - , esta área da zona portuária é a que se<br />
intervirá neste projeto de revitalização e desde a okupação<br />
observa-se como este processo acobertará esse<br />
passado.<br />
Em seu relato, esta nova cidade caracteriza-se<br />
por “níveis crescentes de manipulação e vigilância”<br />
e “novas formas de segregação” colocadas a serviço<br />
de uma “cidade de simulações, a cidade da televisão,<br />
a cidade como um parque temático” (xiii-xiv). David<br />
Harvey (1994) reitera a preocupação, frequentemente<br />
expressa, acerca de que as cidades estão sendo<br />
transformadas em cópias higiênicas e monótonas<br />
umas das outras, “praticamente idênticas de cidade<br />
em cidade”(Judd,p. 52,2003)<br />
Esta história se segue, na medida em que hoje,<br />
a área que compreende a revitalização da zona portuária<br />
é ocupada por muitas famílias que têm tomado<br />
edifícios e bodegas do porto para morar. Um caso<br />
especial é o espaço do coletivo da okupação Flor do<br />
Asfalto – que encontra-se ali há mais de 5 anos – um<br />
lugar que se produz graças ao trânsito de diversas<br />
pessoas do Brasil. Um lugar de encontro de nômades<br />
latinoamericanos. Também encontramo-nos com<br />
uma experiência de ocupação popular de moradia<br />
chamada Chiquinha Gonzaga.<br />
É interessante isso que acontece neste fragmento<br />
da cidade porque é uma margem que tem<br />
tentado tomar a cidade, criando experimetações de<br />
encontro e sobrevivência, gerando uma densidade<br />
política e cultural com referências ao passado, de<br />
organização e que nestes momentos elabora-se toda<br />
uma campanha midiática para sinalizá-la como um<br />
lugar degradado, sem considerar o contexto e as intenções<br />
com as quais o lugar é produzido.<br />
Porto mArAvilHA - Porto<br />
morte dA vidA-<br />
A zona portuária do Rio de Janeiro tem sido<br />
sempre descrita como uma zona obscura, a nossa<br />
forma de ver o lugar é o da resistência e portadora da<br />
memória da cidade. Tomamos a decisão de gerar uma<br />
análise e representação do projeto Porto Maravilha<br />
por que nos permite compreender alguns aspectos<br />
socioespaciais da cidade e por que a partir da análise<br />
e reflexão que realizam-se nesta zona, poderíamos<br />
deixar para cidade uma experiência de cartografia<br />
crítica, com representações própias da cidade que<br />
poderiam ser retomados para outros processos de<br />
análises e representação.<br />
Neste sentindo poderíamos jogar um pouco<br />
com o tema dos arquipélagos e os enclaves. Quem<br />
vêm sendo trabalhado nos temas do urbanismo crítico<br />
contemporâneo – Soja(2008), Petit(2007) -, isto<br />
para sugerir como desde estas iniciativas urbanísticas<br />
apresenta-se a conservação da matriz de segregação<br />
socioespacial.<br />
O arquipélagos compreendem-se como uma<br />
série de ilhas interconectadas onde apresenta-se uma<br />
série de conexões para os turistas dentro de uma cidade<br />
e são resguardadas por extremas medidas de<br />
vigilância e controle policial. Propomos isto desde a<br />
observação do paradigma da segurança e o controle<br />
que expande-se nos territórios palestinos.<br />
“A cidade e o território contemporâneo estão<br />
modificando-se segundo um desenho espacial preciso<br />
ditado pelo paradigma da segurança e do controle.<br />
Tal desenho é evidente nos Territórios ocupados palestinos,<br />
mas está presente, em diversas formas e com<br />
intensidade diferente, em outros contextos geográficos.<br />
Ilhas residências costeiras (Dubái), cidades<br />
turísticas (Sharm El Sheikh), comunidades segregadas<br />
– urbanizações privadas – (Estados Unidos), vias<br />
secundárias expressas (Los Ângeles, Toronto, Melbourne),<br />
centros de confinamentos para estrangeiros<br />
(Europa), cúpulas mundiais (G8), são algumas das<br />
possíveis inclinações de um modelo espacial que<br />
tem-se denominado arquipélago-enclave”. (idem)
No caso do Rio, o projeto Porto Maravilha é um<br />
nodo de interconexão do arquipélago carcerário onde<br />
se gera toda uma infraestrutura de uma densidade<br />
cultural resguardada em museos e infraestrutura de<br />
comércio. “Lo spazio contemporaneo puó essere descritto<br />
e interpretato attraverso la contrapposizione<br />
di due figue: l’arcipelago (lo spazio liscio dei flussi) e<br />
l’enclave (lo spazio dell’eccezione)”(idem).<br />
As UPP fazem parte das ilhas do arquipélago, a<br />
UPP conforma-se para resguardar acesso aos morros<br />
da cidade e começar a conectar toda a infraestrutura<br />
da cidade planificada; luz, esgoto, água, telefone,<br />
televisão e internet. Gerando um processo de gentrificação<br />
no sentido que muitos habitantes das Favelas<br />
deverão sair pois não conseguirão pagar por estas novas<br />
mercadorias na lógica na inclusão social.<br />
Neste processo começamos a trabalhar com<br />
três linhas de análises que construiram-se desde a<br />
experiência de transitar pela revitalização da zona<br />
portuária e os diversos referentes de crítica que fomos<br />
encontrando e fazendo alusão a outros trabalhos<br />
que havíamos realizado em Antena Mutante-Geo-<br />
Malla, atravessando a fronteira, WarLab – desejando<br />
encontrar como poderíamos começar este processo<br />
de cartografia crítica. Os tópicos para a observação,<br />
investigação e análises foram: gentrificação, especulação<br />
e pacificação. Estes três processos que vive a<br />
zona portuária poderiam-se ser descritos da seguinte<br />
maneira.<br />
Gentrificação: o processo de revitalização<br />
de uma área da cidade que busca expulsar os habitantes<br />
e começar um processo onde dá vida novamente<br />
às construções que marcaram a presença do<br />
poder político, econômico e cultural de uma cidade.<br />
Observamos este processo em torno aos desalojos<br />
das ocupações e as remoções das edificações com as<br />
ocupações de moradia, algumas representadas pelo<br />
movimento Sem Teto. Produzindo um processo de<br />
especulação imobiliária.<br />
Estes processos de revitalização devem desenvolver-se<br />
com base na história do lugar, quem<br />
os habita, e gerando toda uma forma de intervenção<br />
que possa levar em conta como tem-se produzido o<br />
espaço dentro da zona portuária.<br />
“a conservação das variáveis materiais e imateriais<br />
dos sítios urbanos (conceito de lugar), iniciada<br />
pela Convenção para Conservação do Patrimônio<br />
Cultural Imaterial (Unesco,2003). Posteriomente,<br />
essa tendência foi confirmada e difundida por meio<br />
da Declaração de Quebec, sobre a preservação do<br />
“spiritu loci” -espírito do lugar- (Icomos, 2008), elemento<br />
fundamental na caracterização das áreas<br />
70<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
urbanas. Dita declaração destacou que as “comunidades<br />
que habitam o lugar, especialmente quando<br />
trata-se de sociedades tradionais, deveriam estar intimamente<br />
associadas à proteção de sua memória, vitalidade,<br />
continuidade e espiritualidade”(Lima Carlos,<br />
p.26, 2010)<br />
O que se esta vivendo na zona portuária compreende-se<br />
como um processo de gentrificação: “Este<br />
fenômeno define-se como uma forma de apropriação<br />
de determinadas áreas urbanas por “máscaras poderosas<br />
e de capital privado, que a “re-qualificam” de<br />
maneira concentrada com outros atores, incluindo o<br />
poder público, criando-se uma situação de exclusão e<br />
especulação, que converte espaços remanescentes e<br />
degradados em espaços de consumo para uma classe<br />
social ascendente. (Godet,1999)”. (idem, p.27)<br />
Espetacularização: este processo onde a cidade<br />
torna-se um espetáculo, onde trata-se de apresentar<br />
uma cidade cheia de cores e de construções<br />
ostentosas, revitalizando, gerando vida novamente a<br />
tudo aquilo que marcou a vitória sobre a cidade negra.<br />
Vemos isto no tema das reformas à abandonada<br />
zona portuária, aos museus que estão criando e em<br />
toda questão<br />
dos equipamentos olímpicos que empregaramse<br />
nela. Com a finalidade de que os turistas que cheguem<br />
encontrem uma ordem e uma boa imagem da<br />
cidade global.<br />
“De acordo com os investigadores urbanos, os<br />
enclaves turísticos faciliam o controle autoritário do<br />
espaço urbano, modificando o consumo e destruindo<br />
a cultura local com “ambientes Disney”. Tim Edensor<br />
(1998) reitera a observação de Lefebvre (1991) acerca<br />
de que os espaços turísticos “são planificados com o<br />
maior cuidado: centralizados, organizados, hierarquizados,<br />
simbolizados e programados ao enésimo<br />
grau” (384). De modo similar, John Hannigan (1998)<br />
afirma que a uniformidade dos espaços que habitam<br />
os turistas sujeita-os a “uma forma de experiência<br />
urbana medida, controlada e organizada” (6), que<br />
elimina a imprevisível qualidade de vida cotidiana<br />
nas ruas”. (Judd, 52, 2003)<br />
A questão é que não encontra-se como pode<br />
o projeto Porto Maravilha resistir às questões de<br />
segregação, pelo contrário, o que vemos é como o<br />
projeto dá o golpe final para que esta cidade fique<br />
sem nenhuma referência de cidade negra e elimine<br />
qualquer possibilidade para que se pratique o urbano<br />
de acordo com sua espiritualidade e espontaneidade.<br />
“Trata-se de uma tendência predominantemente<br />
política relacionada com a gestão das cidades<br />
mundiais dirigida, infelizmente e cada vez mais, ao<br />
objetivo de expandir e diversificar os benefícios urbanos<br />
para responder às crecentes demandas das classes<br />
sociais privilegiadas. Neste sentido observa-se que<br />
as experiências de conservação urbanas mundiais<br />
vincularam-se às estratégias de marketing cultural e<br />
aos empreendimentos turísticos, que identificaramse<br />
com a competência entre cidades instauradas sob<br />
os efeitos globalizadores de uma economia mundial<br />
apoiada em princípios neoliberais. (Lima Carlos,<br />
p.29, 2010)<br />
Além do mais ignora-se o que tem-se produzido<br />
sem o menor interesse de compreender e dar<br />
potência ao que tem-se conseguido por parte dos habitantes<br />
da zona portuária.<br />
“Essa nova ordem imposta “nega a singularidade<br />
dos lugares, as memórias, as estratégias e táticas<br />
de sobrevivência das camadas populares”, que<br />
compõem uma trama íntima ligada à materialidade<br />
dos lugares. Sem ela não existe urbanizaçao, somente<br />
“artificialidade”, ou seja, o cenário desejado pelas<br />
grandes corporações, pelos proprietários dos meios<br />
de comunicação e pelos donos das marcas. O novo<br />
modelo de cidade global, caracterizado pelo artificial,<br />
“tem sido cuidadosamente confeccionado pelo novo<br />
economicismo, através de vínculos operacionais entre<br />
economia, política e cultura”.(idem)<br />
É importante destacar também o processo que<br />
se conhece como musealização. “Essa postura baseia-se<br />
em intervenções que resaltam o caráter físico<br />
e funcional do sítio, dirigidas à intervenções cenográficas,<br />
definidas por Arantes (2001: 125) como “uma<br />
verdadeira consagração da eternidade da cena – bem<br />
polida, limpa, adornada, transformada em museu”.<br />
(idem, p.33)<br />
A memória, o fantasma da cidade do Rio de<br />
Janeiro segue vagando pela cidade nos camelôs, okupações,<br />
mídia livre, samba, Capoeira Angola, hiphop,<br />
funk, etc. O processo de musealização que está<br />
chegando opera sobre os lugares da “memória cruel”<br />
onde somente se dá conta da morte e tráfico de escravos,<br />
como o cemitério dos novos pretos, Cais do<br />
Valongo, etc. Caberia a pergunta, qual é a mensagem<br />
que a Prefeitura e seu projeto de cidade olímpica deixa?<br />
A escravidão terminou ou a morte espera aquele<br />
que procura conhecer o passado?<br />
Pacificação: Nesta linha buscamos, dentro<br />
do processo de revitalização, todo o tema da cidade<br />
policial. Incluindo a UPP na Favela da Providência, a<br />
qual começa a intervir em territórios, criminalizando<br />
a população.<br />
Algo a ressaltar é como a zona portuária tem,<br />
além do mais, uma grande presença de edificações da<br />
polícia, além de que no Morro da Conceição encontra-se<br />
o ministério de guerra dos governos anteriores<br />
e existe um batalhão que opera ali. Estas questões<br />
nos interessaram na medida em que não são visiveis<br />
no projeto Porto Maravilha, mas estão igualmente<br />
envolvidas dentro do marco da zona de intervenção<br />
do projeto. Além de que na zona portuária encontrase<br />
a primeira Favela.<br />
“em 1897, do morro da Favela (atual morro da<br />
Providência), lugar de habitação da população de<br />
baixa renda, formada originalmente por ex-combatentes<br />
da campanha militar de Canudos, que foram<br />
autorizados pelos “chefes militares, a instalarem-se<br />
ali”, apesar das autoridades municipais. A concessão<br />
se deu a título de benefícios relacionados aos serviços<br />
prestados à pátria”(Valladares, 2005:26). (idem)<br />
Analisando o projeto de revitalização do Porto<br />
Maravilha descobrimos que este emerge com um<br />
nodo de interconexões entre diferentes nodos turísticos<br />
da cidade, apresentando-se desde a perspectiva<br />
que perde toda a inoperância no traçado da cidade<br />
e pode permanecer conectado aos fluxos de turistas<br />
que a cidade global quer provocar. Para isto conectou-se<br />
com o estádio Maracanã, com o corcovado, as<br />
praias de Copacabana, Lapa e os aeroportos. Lugares<br />
emblemáticos da cidade onde o turista poderá visitar<br />
depois de haver experimentado um contexto cultural<br />
dentro da matriz de segregação socioespacial da cidade,<br />
dentro dos museus que foram preparados na<br />
zona portuária.<br />
Neste contexto queremos compreender como<br />
funciona o arquipélago carcerário para a cidade<br />
turística, como desde o projeto Porto Maravilha vaise<br />
desdobrando um processo de revitalização que<br />
lida com o mar e não havia sido confiscado para o<br />
turismo nem para o espetáculo.<br />
“Os turistas que habitam espaços enclávicos<br />
são animados a atuar essencialmente como operários<br />
de uma fábrica, sujeitos a “um horário, a um controlador<br />
de tempo, um informante e multas” (Thompson,<br />
1967). Por enquanto encontram-se limitados<br />
por barreiras físicas e são destinados à atividades<br />
especializadas, certos lugares como os estádios esportivos,<br />
centros de convenções e shoppings podem<br />
efetuar uma regulação quase total do corpo. (Judd,<br />
55, 2003)<br />
A zona portuária deverá estar limpa e segura<br />
para isto, deverão ordenar tudo o que escape desta<br />
compressão. Neste sentido compreender como este<br />
projeto requereu pacificar a primeira Favela e as<br />
áreas próximas à favela como a central de transportes,<br />
empregando-se agentes da polícia militar para<br />
despejar os camelôs – vendedores de rua - e os moradores<br />
de rua.
o enclAve – A fAvelA do es-<br />
PAço de exceção Ao Projeto<br />
de esPAço de fluxos<br />
O interessante das UPP é que a partir de sua existência<br />
abre-se uma área conformada por fronteiras<br />
reais e imaginárias, que originam-se através do passado<br />
que carregam nestas ilhas da cidade. No caso<br />
de Santa Marta e no caso da Providência, estes serão<br />
lugares de interconexão do arquipélago carcerário do<br />
Rio de Janeiro, onde planeja-se o turismo de Favela.<br />
Outro tema a destacar é como o porto, uma<br />
área com um passado tão forte na cidade, vem a<br />
ser revitalizado de acordo com os requerimentos da<br />
cultura global. Deixar para trás o passado obscuro<br />
da cidade do Rio de Janeiro, condenar a cultura da<br />
Favela aos ditames da UPP social é sintoma de como<br />
este projeto conserva toda questão da segregação socioespacial<br />
da cidade do Rio de Janeiro. Apresentase<br />
a compreensão do enclave compreendido como<br />
espaço de exceção. Gerando intervenção direta na<br />
produção cultural, proibindo as expressões do Funk<br />
e do Hip-Hop.<br />
“O Estado de exceção permanente ganha formato<br />
constitucional e jurídico- político como Estado<br />
de Segurança. O processo de construção de um<br />
modelo ideal para essa lógica neo-imperial de controle<br />
sobre fontes energéticas, sobre movimentos de<br />
protesto e rebeldia social, na conjuntura pós-Guerra<br />
Fria, se ergue como institucionalidade na gestação do<br />
experimento do regime de segurança máxima como<br />
ocorre na política colombiana de Álvaro Uribe”.<br />
(Cunca, p.45, 2009)<br />
A excepcionalidade sobre os territórios será<br />
cada vez mais marcada. Algo interessante é que o<br />
próprio movimento de resistência cultural metamorfoseia-se<br />
e gera novas formas de expressão em movi-<br />
72<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
mento, sem perder as referências do passado. O<br />
problema é tratar de pensar nestes territórios pacificados<br />
como conseguirão adquirir movimento, como<br />
poderão estabelecer novas conexões e encontros<br />
nestes contextos de controle social e de criminalização?<br />
Todo este percurso que acabamos de apresentar-lhes<br />
é parte das referências que fomos produzindo<br />
para fazer emergir mensagens em forma de: mapas,<br />
músicas, gráficos, vídeos e fotografias. É parte também<br />
de um projeto que vinhamos explorando com o<br />
coletivo Rio40Caos, que chamamos DISTOPIA 021,<br />
que busca apresentar algumas destas considerações<br />
em um formato documental, gerando uma experimentação<br />
com a proposta de trabalho coletivo.<br />
São temas que temos investigado e fazemos<br />
circular para que apresentem-se diferentes visões sobre<br />
a cidade global, para que venha surgir perguntas<br />
sobre a situação de controle nas cidades da América<br />
Latina.<br />
De nossa parte, para levar em conta que o conflito<br />
armado na Colômbia não é interno como querem<br />
fazer-nos acreditar, as políticas de segurança<br />
democrática foram exportadas.<br />
Estas questões também nos fazem pensar sobre<br />
o movimento de pessoas à escala latinoamericana,<br />
escolhendo de forma seletiva cidades para ativar a<br />
circulação de pessoas e condicionando de tal maneira,<br />
que a cidade fique igual a qualquer outra das<br />
que se têm selecionadas. Nestas circunstâncias os encontros<br />
e conexões desde as quais nos encontramos<br />
na América Latina serão cada vez mais complexas de<br />
estabelecer.<br />
Em função destes arquipélagos que vão se<br />
conformando e os enclaves que vão emergindo seria<br />
possível geral outros arquipélagos conectando os enclaves<br />
desconectados?<br />
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Conflito e Controle Social - Vol. 4 - no 3 - JUL/AGO/<br />
SET 2011 - pp. 371-401
os mapas do 15m ao 15o<br />
PabLo dE SoTo<br />
Chegam vozes (desde a outra margem do mediterrâneo) é um vídeo clip que começa<br />
com um mapa do mediterrâneo, no qual uma luz começa a aparecer na margem sul.<br />
Ver vídeo em: http://www.youtube.com/watch?v=cgI5Jwkuzjc<br />
O novo ciclo de lutas, que começou com a Primavera<br />
Árabe e a Revolução Islandesa, e que tem<br />
tido reflexo na margem norte do mediterrâneo com<br />
o movimento 15M e Democracia Real Já, propaga-se<br />
na atualidade a uma escala global.<br />
Estes movimentos se caracterizam por (a) trabalhar<br />
em dois níveis, na internet e nas ruas, com a<br />
ocupação de praças e assembleias; (b) ter uma organização<br />
autopoiética 1 de enorme escalabilidade e<br />
interatividade; e (c) produzir revoluções de código<br />
aberto, onde saberes, técnicas, práticas e estratégias<br />
são aprendidas e replicadas com melhorias pelas distintas<br />
sociedades conectadas.<br />
Como parte fundamental da tekné 2 deste novo<br />
movimento global, está a cartografia, que revela sua<br />
enorme importância para os processos de auto-organização,<br />
de ação distribuída e descentralizada, inclusão<br />
e imaginação social.<br />
1 A autopoieses é um neologismo proposto em 1971 pelos biólogos<br />
chilenos Maturana e Varela, para designar a organização dos<br />
sistemas vivos. Uma descrição breve seria dizer que a autopoieses é<br />
a condição de existência dos seres vivos na contínua produção de si<br />
mesmos.<br />
2 Aristóteles descreve a arte (tekné) como uma ação a partir da<br />
qual o homem produz uma realidade que antes não existia.<br />
74<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
Esta dimensão emancipadora da cartografia<br />
tem como referente o pensamento dos filósofos franceses<br />
Deleuze e Guattari, que foram os primeiros a<br />
teorizar sobre a potência da apropriação da arte da<br />
cartografia pelos movimentos sociais:<br />
“Fazer mapas, como fazem a orquídea<br />
e a vespa, é mais ação que representação;<br />
a cartografia, antes de representar<br />
um mundo que esteja dado, supõe a<br />
identificação de novos componentes, a<br />
criação de novas relações e territórios,<br />
de novas máquinas.” 3<br />
3 Félix Guattari e Gilles Deleuze que, em Mil Platôs<br />
(1980), propunham os princípios de cartografia e decalcomania para<br />
explicar o conceito de rizoma. Ainda hoje nos referimos mais aos territórios<br />
reticulares do que ao rizoma. Continua sendo interessante a relação<br />
que Guattari estabelece entre seu conceito de cartografia e os de<br />
agenciamento, máquina e produção de subjetividade. O arquiteto José<br />
Pérez de Lama tem escrito extensivamente a respeito.<br />
A cartografia, como ferramenta de conhecimento<br />
crítico e insurgência, tem uma larga trajetória<br />
no estado espanhol, e vale destacar o trabalho de<br />
Cartac ou hackitectura.net. Vinculados em um momento<br />
inicial, ao que a mídia de massa denominou<br />
como movimento antiglobalização, nos últimos anos,<br />
produziram-se mapas alternativos do território geopolítico<br />
do Estreito de Gibraltar e das cidades de Sevilha,<br />
Málaga, Barcelona, Veneza e Atenas. Desde<br />
muito tempo, a cartografia vem convertendo-se em<br />
uma forma de ativismo global 1<br />
O objetivo deste artigo é re-compilar e sistematizar<br />
as diversas cartografias produzidas desde o<br />
movimento 15M, começando nas sequências anteriores<br />
– a partir da crise de 2008 -, percorrendo mapas<br />
da corrupção até o momento atual, da organização<br />
de campanhas contra os despejos e culminando com<br />
o mapa de movimentações globais do 15 de Outubro.<br />
É uma produção própria da era digital em que<br />
nos encontramos, de caráter audiovisual e definida<br />
pelas comunicações instantâneas em rede. Sobre a<br />
tecnologia de software empregada, alguns dos mapas<br />
são mash ups (remixes) do google maps (serviço de<br />
pesquisa e visualização de mapas e imagens em satélite<br />
da terra), que têm acertado em sua definição e<br />
ímpeto. Outros são projetos desenvolvidos com software<br />
livre, em servidores autogestionados.<br />
4<br />
Ver o trabalho de Bureau de Etudes da França ou<br />
Iconoclasistas da Argentina.<br />
4 .<br />
mAPAs de Análises e diAgnÓstico<br />
Casas tristes<br />
Plataforma web2.0, que visualiza as casas vazias na<br />
Espanha, esclarecendo de maneira gráfica e acessível,<br />
diferentes aspectos econômicos e sociais vinculados<br />
ao problema de acesso à moradia na Espanha.<br />
Denuncia a elevada porcentagem de casas vazias na<br />
Espanha.<br />
http://casastristes.org<br />
Desde o ponto de vista dos conteúdos, poderíamos<br />
classificar as cartografias do 15M em quatro categorias<br />
principais:<br />
Mapas de análises e diagnóstico<br />
São mapas descritivos, que analisam dados públicos<br />
e constroem representações críticas com os mesmos.<br />
Respondem à primeira fase de “indignação” do movimento.<br />
Mapas de representação do movimento<br />
São mapas que funcionam por agregação e são,<br />
por definição, interativos. São os mapas das acampadas,<br />
de marchas e dos fluxos de atividades nas redes<br />
sociais.<br />
Mapas conceituais<br />
O mapa conceitual é uma prática usada para a<br />
representação gráfica do conhecimento. Desenvolvese<br />
uma rede na qual os nodos representam os conceitos<br />
e as conexões, as relações entre os conceitos.<br />
Mapas para a ação<br />
A última categoria é, quiçá, a mais nova e transformadora<br />
na fase atual da arte da cartografia cidadã<br />
insurgente e a que possui maior potencial para nos<br />
conduzir como sociedade a territórios inexplorados.<br />
São mapas criados em sua maior parte por hacktivistas<br />
e que, em muitos casos, supõem a programação e<br />
melhoria de novas ferramentas de software.<br />
Cidades sem fronteiras<br />
Campanha impulsionada por uma extensa rede de cidadãos<br />
espanhóis e estrangeiros, com e sem papéis,<br />
que se rebelam contra a discriminação e reivindicam<br />
a igualdade, denunciam a precarização e ressaltam<br />
os direitos de todas as pessoas que habitam as nossas<br />
cidades. Localiza espaços de exclusão, barreiras,<br />
faz denúncias, assinala lugares de encontros e tudo<br />
aquilo que possa se pensar desde a cidade com e sem<br />
fronteiras.<br />
http://www.ciudadessinfronteras.net
Corruptódromo<br />
Elaborado pela plataforma cidadã Não votem nel@s,<br />
situa os pontos cruciais de nosso país, onde se têm<br />
denunciado casos de corrupção política. Destacam<br />
especialmente o litoral levantino (parte do mediterrâneo<br />
ocidental da Espanha) e a Comunidade de<br />
Madri. A plataforma Não vote nel@s, que pede o<br />
não-voto ao PP, PSOE e CiU, tem desenvolvido um<br />
Wiki (ferramenta de edição online), onde os internautas<br />
podem incorporar mais lugares e onde se tem<br />
denunciado casos de corrupção. Já contam com 177<br />
casos documentados.<br />
http://wiki.nolesvotes.org/wiki/Corruptódromo<br />
76<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
O Disparate<br />
mAPAs de rePresentAção do movimento<br />
Mapas das acampadas<br />
No mapa, podem-se observar tanto as acampadas<br />
que atualmente estão surgindo nas distintas praças,<br />
quanto as que têm previsão de acontecer nos próximos<br />
dias e as que foram desocupadas pela polícia.<br />
“As acampadas são somente um símbolo. Na<br />
realidade estamos em todos os lados. Educamos<br />
seus filhos, preparamos suas comidas,<br />
recolhemos seu lixo, conectamos suas chamadas,<br />
dirigimos suas ambulâncias e inclusive os<br />
protegemos enquanto dormem. As pessoas não<br />
deveriam temer o governo, o governo deveria<br />
temer a seu povo. Nós somos o povo, nós somos<br />
o sistema, somos anônimos, somos legião. Não<br />
esquecemos, não perdoamos, espere-nos.”<br />
http://www.thetechnoant.info/campmap/<br />
A Espanha é um dos principais atores na compra e<br />
venda internacional de armas. Cada ano, as distintas<br />
comunidades autônomas importam e exportam armas<br />
a diversos países, com valores de milhões de euros.<br />
Quem conhece quanto gasta a sua comunidade com<br />
a compra de material bélico? Quem sabe a que países<br />
se vendem as armas produzidas em sua comunidade?<br />
O Disparate é uma iniciativa que pretende mostrar<br />
com claridade o opaco mercado das armas, o grande<br />
disparate do comércio legal da morte.<br />
http://www.eldisparate.de<br />
Mapa das conversas<br />
Trends Map é uma ferramenta de “escuta ativa” que,<br />
em tempo real, analisa todas as conversas que se produzem<br />
no twitter. Tem uma visualização em tempo<br />
real sobre o mapa, geolocalizando as palavras, os<br />
hashtags que estão sendo produzidos no momento,<br />
para poder observar quais são os temas por países e<br />
cidades.<br />
http://trendsmap.com/topic/%2315o<br />
Interações entre usuários 15M<br />
Mostra geoposicionada de mensagens entre os participantes<br />
do movimento 15M em redes sociais. Uma<br />
linha entre os pontos indica o que o nodo de partida<br />
tem mencionado nesse momento ao nodo de chegada.<br />
Realizado pelo Instituto de Investigação em Biocomputação<br />
e Física de Sistemas Complexos da Universidade<br />
de Zaragoza.<br />
http://15m.bifi.es<br />
mAPAs conceituAis<br />
Mapa conceitual da acampadasol<br />
Este mapa conceitual se transborda a cada instante<br />
e está permanentemente atualizado. É somente uma<br />
ajuda para pintar o irrepresentável. É um mapa humilde,<br />
incompleto, inerentemente precário.<br />
http://www.unalineasobreelmar.net/mapa-conceptual-de-la-acampada/<br />
mAPAs PArA A Ação<br />
Mapa para a denúncia do 27M<br />
É um mapa da praça Catalunha (Barcelona, Espanha),<br />
que inclui um formulário criado com o objetivo<br />
de reunir informação sobre o que sucedeu no dia<br />
27 de maio de 2011, na “operação de limpeza”, por<br />
parte dos órgãos de segurança. Na dita operação, o<br />
corpo policial agrediu muitas pessoas, roubaram objetos<br />
pessoais, foi limitado o direito de reunião, entre<br />
muitas outras violações dos direitos humanos. A finalidade<br />
deste mapa-formulário é saber quantas pessoas<br />
foram prejudicadas e de que maneira o foram,<br />
para poder fazer um informe mais completo.<br />
http://acampadadebarcelona.org/denunciacolectiva27m<br />
Mapa da não-violência<br />
http://www.unalineasobreelmar.net/2011/08/15/<br />
mapa-conceptual-de-la-no-violencia-del-15-m/<br />
Campanha Pare os Despejos<br />
Os ativistas de tomalaplaza.net, em colaboração<br />
com a PAH (Plataforma de Afetados pela Hipoteca),<br />
têm desenvolvido um mapa de despejos, para que<br />
qualquer pessoa que queira colaborar (agregando<br />
informação, participando na resistência anti-despejo<br />
ou solicitando ajuda contra seu próprio despejo),<br />
pode agora fazê-lo facilmente. A ferramenta envia<br />
alertas para se saber quando e onde famílias vão ser<br />
despejadas .[5]<br />
http://stopdesahucios.tomalaplaza.net
15o: um mAPA de Ação do tAmAnHo do PlAnetA<br />
Cinco meses depois do 15 de Maio, repete-se uma convocatória como a de então, mas o mapa já não é mais o<br />
do estado espanhol, mas o mapa do mundo. A demanda por uma democracia participativa se estendeu a quase<br />
metade dos países do planeta e, em mil cidades, acontecerão marchas e ocupações de praças sob o lema unitário<br />
de “Unidos pela mudança global”.<br />
Mapa da mobilização global de 15 de outubro<br />
Dando uma olhada no mapa do mundo sobre o qual se tem representado com um ponto vermelho cada um dos<br />
atos programados, dá para se ter uma ideia de como, em poucos meses, a indignação tem se estendido como<br />
uma mancha de tinta. As ocupações que começaram em setembro, nos Estados Unidos, continuam e existem<br />
manifestações previstas em lugares tão distintos e afastados como Santo Domingo, Hong Kong, Dakar, Belo<br />
Horizonte, Johanesburgo, Cairo, Melbourne e Moscou.<br />
http://map.15october.net<br />
http://convocatorias.democraciarealya.es/?id_plan=3<br />
78<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
“RT @isaachacksimov: vejo mais de<br />
80 petições/segundo a 15october.net<br />
há 36 horas, algo vai acontecer… algo<br />
grande… #15Oready”<br />
mapas, mapeamento e disputas<br />
territoriais na Amazônia<br />
ricArdo folHes em roda de conversa<br />
Minha última experiência de pesquisa vem<br />
acontecendo no Vale do Jari, que fica numa região<br />
de fronteira entre os Estados do Amapá e Pará. Fui<br />
convidado pra fazer um trabalho de mapeamento dos<br />
conflitos no Vale do Jari pelo Sindicato dos Trabalhadores<br />
Rurais de Santarém- STTR, e lá chegando, em<br />
novembro do ano passado, na região de Monte Dourado<br />
– município de Almeirim, constatei que a situação<br />
fundiária era bem mais complexa do que o STTR<br />
poderia imaginar. Vimos que com o conhecimento<br />
que possuíamos tanto da região como da situação dos<br />
diferentes posseiros lá existentes não teríamos como<br />
fazer nenhum trabalho de mapeamento participativo<br />
ou poderíamos correr o risco de fazer um mapa que<br />
nem de longe tivesse capacidade de representar a<br />
complexidade da situação de conflito lá existente.<br />
Foi então proposto ao STTR a necessidade de<br />
permanecermos mais tempo na região convivendo<br />
com os posseiros, fazendo levantamento da história,<br />
tentando entender melhor a situação. Durante esses<br />
contatos iniciais começamos a receber várias doações<br />
de vídeos. Existe uma situação de conflito lá entre<br />
mais de 1000 famílias com uma grande empresa que<br />
no último ano deu origem a uma série de processos de<br />
reintegração de posse. A empresa chegava, derrubava<br />
a casa de muita gente, expulsava eles da terra e<br />
eles começaram a registrar isso com celular, com máquina<br />
digital. E quando eu estive lá eles começaram<br />
a me passar – inclusive alguns depoimentos que eles<br />
registravam. Surgiu então a ideia de editarmos um<br />
filme que pudesse contar um pouco da história das<br />
relações políticas da região hoje, enfim, que a gente<br />
pudesse materializar um pouco a situação de conflito<br />
num documentário.<br />
Bem, a história dos mapas é tão antiga quanto<br />
a história da civilização. Inicialmente, mapas foram<br />
muito utilizados como apoio ao planejamento da divisão<br />
de terras e aí tem alguns registros bem interessantes<br />
de mapas realizados no Delta do Rio Nilo que<br />
serviam ao planejamento territorial, anualmente.<br />
Eram feitos em argila, nas pedras, etc. A partir do<br />
século XVI esse processo ganha corpo com uma dis-
ciplina, ele começa a se tecnificar, fica meio que excludente<br />
- quer dizer, o mapeador passou a ser um<br />
matemático que detinha um determinado conhecimento<br />
científico, que seguia um método científico, e<br />
ele é que tinha a legitimidade pra poder fazer.<br />
Dando um corte temporal grande, podemos<br />
dizer que hoje a cartografia é uma área do<br />
conhecimento amplamente tecnificada que permite<br />
fazer cruzamento de grandes bases de dados, embora<br />
simbolicamente o processo de representação dele<br />
seja simples, mas eles agregam uma complexidade<br />
de dados muito grande e sistemas de informação<br />
bastante complexos, que por outro lado também<br />
vem possibilitando atualmente que o processo seja<br />
democratizado novamente. A produção cartográfica<br />
brasileira desse século ficou na mão do governo, dos<br />
órgãos públicos até os anos 60, 70. A partir de então<br />
o processo ainda era bastante caro, com algumas<br />
empresas ainda entrando no mercado, e a partir<br />
dos anos 90, principalmente nos últimos dez anos<br />
as tecnologias de informação: software livre, enfim,<br />
essas novas mídias vem possibilitando que haja um<br />
processo de democratização novamente. E a gente<br />
tem que problematizar esse processo.<br />
Historicamente, mapas muitas vezes foram<br />
utilizados pra legitimar determinadas posições<br />
hegemônicas em relação ao território. Tem um<br />
exemplo bem clássico: os mapas produzidos pelos<br />
americanos na Guerra Fria que uniam o território<br />
do Alasca ao território da Sibéria pra aumentar<br />
o temor de uma invasão russa entre os próprios<br />
americanos, e isso fazia com que houvesse uma<br />
legitimidade política. Internamente havia destinação<br />
de recursos pra indústria bélica. E na história recente<br />
da Amazônia brasileira isso não foi diferente. Se a<br />
gente for analisar o projeto RADAM1 ...vocês sabem<br />
o que é o projeto RADAM? O projeto RADAM foi<br />
talvez o primeiro mapeamento de larga escala da<br />
Amazônia realizado por instituições brasileiras – com<br />
apoio de órgãos internacionais. O projeto RADAM<br />
mapeou em grande escala a distribuição de recursos<br />
naturais a distribuição de florestas. Ele deu um<br />
1 Assim, em 1970, no âmbito do Ministério de Minas e<br />
Energia, cria-se o Projeto RADAM propriamente dito, com a<br />
finalidade de implementar um Programa de Sensoriamento<br />
Remoto por Satélite e realizar, com base nas imagens assim<br />
obtidas, o levantamento integrado dos recursos naturais em<br />
uma área de restrita a 1.500.000 Km² ao longo da rodovia<br />
Transamazônica, posteriormente ampliada até abranger a<br />
totalidade da Amazônia Legal. Fonte: http://www.projeto.<br />
radam.nom.br/metodologia.html<br />
80<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
impulso significativo ao planejamento territorial da<br />
Amazônia, mas fundamentalmente ao planejamento<br />
de atividades econômicas, ao loteamento dos recursos<br />
naturais da Amazônia.<br />
É muito curioso observar que o projeto RADAM<br />
em nenhum momento humaniza os mapas. Não<br />
há distribuição de comunidades, de municípios, de<br />
gente. Em grosso modo toda essa ausência de dados<br />
sociais nos mapas produzidos pelo Projeto RADAM<br />
contribuiu com a legitimação do lema “Terra sem<br />
gente pra gente sem terra” do governo militar.<br />
cAdê A gente dessA<br />
terrA nessA região?<br />
Existe um processo de migração bastante antigo.<br />
Nos anos 70, foram criadas grandes políticas<br />
regionais, de integração regional, de colonização – a<br />
Transamazônica e antes dela, a Belém-Brasília foram<br />
criadas a partir desses projetos. Então você começa<br />
a ter políticas públicas concorrentes também. Em 70<br />
foi criado o INCRA, os projetos de integração, integrados<br />
de colonização na região da Transamazônica<br />
em construção. Em 1973 foi criado o Estatuto do Índio<br />
2 . Começava ali já a criação de legislações que depois<br />
da Constituição de 88 deram emergência a uma<br />
série de direitos: direitos a terra, direitos étnicos,<br />
etc...<br />
A partir dos anos 90, mais nos últimos dez anos<br />
na Amazônia, várias experiências de cartografia participativa<br />
vem apresentando de alguma maneira contestações<br />
a essa conjuntura instalada pelos grandes<br />
projetos e de certa medida a coisa caminhou de tal<br />
forma que hoje a gente já não sabe mais pra quem a<br />
participação está servindo.<br />
Um exemplo de disputa cartográfica, derivada<br />
de uma disputa territorial: Rio Tapajós – Rio Amazonas.<br />
Santarém fica na confluência dos dois rios. Divisa<br />
do Estado do Amazonas e do Estado do Pará. Aqui<br />
uma das últimas regiões de floresta em terras públicas<br />
estaduais do Pará que recentemente foi palco de<br />
uma disputa muito grande que fez com que a Ana<br />
Júlia (ex-Governadora do Pará) decretasse em 2008<br />
uma área de limitação administrativa provisória pra<br />
toda essa região, pra que esses conflitos pudessem<br />
ser mediados.<br />
2 O Estatuto do Índio é o nome pelo qual ficou conhecida<br />
a lei brasileira Nº 6.001 , que dispõe sobre as relações do<br />
estado e da sociedade com os povos indígenas.<br />
Eu participei da mobilização, da elaboração de<br />
uma proposta dos movimentos sociais e acompanhava<br />
toda a mobilização do setor madeireiro, que também<br />
produziu muitos mapas com vários indicativos<br />
de áreas para a exploração madeireira, reserva para<br />
futuras explorações madeireiras. São perspectivas<br />
amplamente antagônicas.<br />
A gente tá agora na região vendo acontecer a<br />
concessão de florestas públicas. Existe uma lei no<br />
Brasil chamada Lei de gestão de florestas públicas,<br />
desde 2006, que prevê a licitação de florestas públicas<br />
para grupos empresariais. Então, essa região toda<br />
compõe uma área de quase 800.000 hectares que<br />
vão ficar à disposição do processo de licenciamento<br />
de florestas, e a área é bastante habitada.<br />
Nós temos no Brasil o Instituto Nacional de Pesquisas<br />
Espaciais - INPE que há pelo menos sete anos<br />
disponibiliza imagens recentes do mundo inteiro<br />
de dois satélites diferentes, um satélite americano e<br />
um satélite produzido pelo Brasil em parceria com<br />
a China. Essas imagens juntas ao uso de softwares<br />
livres possibilitam a realização de vários trabalhos -<br />
num site do INPE você também baixa o software pra<br />
poder fazer mapas, manusear essas bases de dados.<br />
Isso em convergência com o uso de GPS que também<br />
se popularizou bastante, onde muitas organizações<br />
sociais já tem pelo menos acesso a 1 GPS e pontos<br />
de internet livre. Na Flona – Floresta Nacional do<br />
Tapajós pelo menos três comunidades têm acesso aos<br />
telecentros de inclusão digital, do outro lado do rio<br />
também tem. Existem programas de integração entre<br />
esses telecentros. Na época que eu trabalhava numa<br />
ONG local, o Projeto Saúde e Alegria de Santarém, a<br />
gente pensava muito na integração da produção cartográfica<br />
associada ao uso dos telecentros pra poder<br />
disseminar e criar desde sistemas de vigilância até a<br />
democratização das informações coletadas.<br />
Atualmente você vê o processo de mapeamento<br />
participativo sendo desenvolvido pela academia: são<br />
vários etnomapeamentos em curso, etnozoneamento,<br />
mapeamento de uso da terra que são utilizados em<br />
processos de pesquisa. As ONGs trabalhando cada<br />
vez mais nisso: fazendo inventário de recursos<br />
naturais, apoiando as questões indígenas, realizando<br />
etnozoneamentos, muitas fazendo mapas de<br />
conflitos. Mais recentemente está entrando na cena<br />
fundações criadas por empresas para realização de<br />
mapeamento participativo. Vocês viram no vídeo<br />
a Fundação ORSA que é uma organização não<br />
governamental criada por uma empresa pra fazer<br />
intermediação de conflitos. Muitas dessas fundações<br />
estão entrando no viés da cartografia participativa.<br />
E tem também as políticas públicas, por exemplo,<br />
o Sistema nacional de unidades de conservação que<br />
foi criado em 2000 e que pressupõe a elaboração<br />
de planos de manejo participativos pra algumas<br />
modalidades de unidades de conservação, como as<br />
reservas extrativistas. Toda reserva extrativista tem<br />
que ter um processo participativo de elaboração de<br />
planos de manejo. E o mapeamento participativo<br />
é uma ferramenta muito usada. Entretanto, o que<br />
muitas vezes poderia ser entendido como um direito<br />
ou benefício, acaba funcionando como ferramenta<br />
de controle e vigilância, que procuram - pelo viés da<br />
participação, legitimar ações e políticas de Estado, de<br />
empresas e de ONGs, numa tentativa de apaziguar<br />
conflitos fora dos limites territoriais das unidades de<br />
conservação.<br />
<strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong>: Esses inventários e<br />
planos participativos que viraram tara nacional, o<br />
zoneamento econômico e ecológico passa por fora.<br />
Queria que tu colocasse a visão que tu tens do zoneamento<br />
econômico e ecológico.<br />
Ricardo Folhes: Eu trabalhei no zoneamento<br />
econômico e ecológico do Estado do Pará. Fazia<br />
a integração de dados produzidos por dezenas de<br />
pesquisadores do meio físico e socioeconômico. Excelente<br />
trabalho de pesquisa que depois de integrado<br />
era apresentado em audiências públicas com objetivo<br />
de realizar de maneira participativa o mapeamento<br />
em cima daquela base integrada. No entanto, a capacidade<br />
dos participantes das audiências públicas<br />
fazerem contribuições qualificadas sobre as bases<br />
cartográficas disponibilizadas foi muito prejudicada<br />
pelo tempo destinado a essa atividade, que não<br />
possibilitava a realização de debates aprofundados.<br />
Porém, como de fato mapas eram disponibilizados e<br />
pessoas variadas rabiscavam sobre eles, a “participação”<br />
mesmo desorganizada e pouco qualificada acabou<br />
legitimando as audiências públicas, que foram<br />
vendidas como participativas.<br />
Celi Abdoral: Não existe modelo de desenvolvimento<br />
que seja sustentável. Essa é a forma como<br />
eu penso.<br />
Artur Leandro: É que gera aquele termo<br />
(sustentável) e de repente o capital ou o meio de<br />
produção se apropria do termo pra transformar a<br />
ideia que se tem de desenvolvimento sustentável<br />
numa coisa completamente diferente.<br />
Ricardo Folhes: A experiência da Fundação<br />
ORSA é bem emblemática nisso que você tá dizendo.<br />
Penso que devo explicar o que é o FSC, acho que quase<br />
ninguém deve saber aqui. FSC é um certificadora de<br />
boas práticas sociais e ambientais. Ela certifica a exploração<br />
de produtos madeireiros e não madeireiros.<br />
E ela ratifica que naquela exploração as comunidades<br />
foram incorporadas nos processos produtivos<br />
e a legislação nacional foi obedecida. Teoricamente<br />
haveria um sistema de inclusão social e de respeito<br />
às questões ambientais. Embora o FSC seja a organização<br />
com maior respaldo em nível mundial, em<br />
vários lugares do mundo já sofre contestações muito<br />
sérias. Por exemplo, ela começou a certificar há alguns<br />
anos a produção de Eucalipto na Amazônia, ela
certifica o grupo ORSA. Então que lógica ambiental é<br />
essa que entende ser viável ambientalmente falando<br />
a produção de eucalipto na Amazônia?<br />
Eu coloquei aqui rapidamente “cadastros participativos<br />
viraram tara nacional”, por que vocês não<br />
imaginam o quanto hoje as comunidades são procuradas<br />
por pesquisadores, ONGs, governos, diferentes<br />
projetos. Todo mundo chega com o GPS, muitos querem<br />
fazer oficina de capacitação de GPS, depois pega<br />
todos os dados que o cara coletou e nunca mais retorna<br />
na comunidade. Você não sabe pra quê isso está<br />
sendo usado. Tem um cara que numa mesma árvore<br />
já bateu mais de cem vezes um ponto com GPS...tô<br />
exagerando bastante... mas é mais ou menos por aí.<br />
Existe uma série de metodologias de mapeamento<br />
participativo, na verdade não existe uma<br />
maneira única de fazer isso, mas as diferenciações<br />
acontecem desde a escolha dos objetivos. Muitos<br />
projetos de mapeamento chegam prontos às comunidades<br />
ou a um determinado movimento social, quer<br />
dizer, eles não tem nem a oportunidade de discutir<br />
o que eles vão fazer. Eles são incluídos no processo<br />
porque são parceiros de uma determinada ONG, que<br />
se beneficiam de outros projetos, e o mapeamento é<br />
mais um deles.<br />
Alguns procedimentos de mapeamento discutem<br />
a questão metodológica antes de fazer o mapeamento<br />
propriamente dito – isso eu acho fundamental:<br />
os caras tem que opinar a forma de fazer e<br />
estar envolvidos desde o início mesmo. O processo<br />
82<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
tem que ser participativo inclusive na discussão de<br />
concepções.<br />
Na coleta de dados, a participação e capacitação<br />
de GPS, muitas experiências usam apenas imagens,<br />
bases cartográficas, e a partir dessas bases<br />
cartográficas o pessoal desenha, faz inventários<br />
de recursos ou de limites comunitários ou de<br />
limites de áreas reivindicadas, disputas territoriais.<br />
Pouquíssimas experiências trabalham de maneira<br />
participativa com a definição de cores, os mapas,<br />
dos símbolos, da melhor maneira de representar<br />
determinado problema ou conflito ou zona. Menos<br />
experiências ainda discutem os resultados dos mapas:<br />
quais usos políticos esses mapas devem ter, quais são<br />
as estratégias políticas que eles podem orientar. E<br />
depois na gestão de dados, os resultados são gerados<br />
por aquele que levou o recurso. E as populações<br />
locais em suas variações identitárias e de mobilização<br />
política, como ficam? Essa é uma discussão boa. Essas<br />
denominações, autodenominações, denominações<br />
exógenas: a “população tradicional” não deixa de ser<br />
uma, largamente aceita, “povos da floresta”, outra...<br />
Celi Abdoral: Exatamente, a nomenclatura<br />
vai ser, de certa forma, o olhar que se dá...É um dos<br />
paradigmas interessantes na cartografia é que a<br />
gente possa ter a atenção de olhar a forma como as<br />
pessoas se autoidentificam. É a escuta, a atenção no<br />
momento do traçado da cartografia...<br />
Ricardo Folhes: Tive uma experiência num<br />
assentamento de reforma agrária em duas reservas<br />
extrativistas no Estado do Amazonas, foi muito interessante.<br />
Fui fazer o mapeamento de uso da terra, e os<br />
agentes ambientais do ICMBio3 ficavam preocupados<br />
quando as comunidades mostravam no mapa o uso<br />
da terra fora dos limites da unidade de conservação.<br />
Um limite de unidade de conservação é um limite imposto,<br />
um rio que na verdade não limita a interação<br />
de quem tá de um lado da margem do rio pro outro...<br />
aqui unidade de conservação, aqui reserva extrativista,<br />
aqui terra indígena e ali é uma outra modalidade<br />
de unidade de conservação que por lei não permite a<br />
presença humana, embora muitas vezes elas sejam<br />
criadas aonde há bastante gente morando secularmente...<br />
No momento em que a gente fazia o mapa de<br />
zoneamento, o mapa de uso da terra, as comunidades<br />
mostravam os seus usos pra dentro da terra indígena<br />
e os caras do ICMBio ficavam descontentes por que<br />
isso provavelmente causaria um problema institucional<br />
com a FUNAI.<br />
Celi Abdoral: Um outro exemplo dessa manipulação<br />
é quando se compara dois mapas importantes<br />
que foram cartografados ali na área da Volta<br />
Grande onde vai ser construído o projeto de Belo<br />
Monte. E vê uma diferença muito clara quando percebe<br />
que o mapa cartografado pelo grupo que coordena<br />
a implantação da hidrelétrica: diversas comunidades<br />
não aparecem no mapa, e esse mapa é<br />
referenciado pela FUNAI. Então a gente se pergunta,<br />
Quem é que indica o Diretor da FUNAI? O Presidente<br />
da República... Já no mapa que foi construído<br />
por técnicos e apoiadores do Comitê Xingu Vivo<br />
para sempre, várias comunidades que aparecem não<br />
foram identificadas no mapa oficial da implementação<br />
do projeto. Como é que isso vai impactar nessas<br />
comunidades? Isso vai impedir que essas comunidades<br />
possam ser beneficiadas ao menos do processo<br />
de mitigação que já é por si só um processo terrível,<br />
porque implica numa não escolha, numa aceitação, e<br />
essa não escolha também vem acompanhada de um<br />
pagamento em dinheiro, você é indenizado de certa<br />
forma porque é considerado um atingido. E aí a gente<br />
vai ver um novo nível de tensão política, a disputa de<br />
quem é e quem não é atingido nesse grande projeto.<br />
Ricardo Folhes: Vimos aqui o projeto Jari.<br />
Na primeira vez que eu estive lá, recebi de alguns<br />
comunitários um mapa produzido por duas ONGs que<br />
tinham estado lá meses antes, em nome de um projeto<br />
de desenvolvimento sustentável para o município<br />
de Almeirim. Eles fizeram uma cartografia bastante<br />
intensa, foram mais de vinte mapas produzidos. Me<br />
chamaram atenção pelo menos dois mapas: um mapa<br />
3 Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade<br />
é uma autarquia em regime especial. Criado dia 28 de<br />
agosto de 2007, pela Lei 11.516, o ICMBio é vinculado ao Ministério<br />
do Meio Ambiente e integra o Sistema Nacional do Meio<br />
Ambiente. Fonte: http://www.icmbio.gov.br/portal/quemsomos/o-instituto.html<br />
de comunidades, que só aparecem 5 comunidades<br />
em um universo de 127, sendo que as 5 comunidades<br />
são justamente as parceiras da empresa; e o mapa<br />
de uso econômico onde aparecem somente os<br />
arranjos produtivos de interesse da empresa.<br />
Algumas coisas pra gente discutir: Como surgem<br />
estas experiências de mapeamento? Existe um<br />
processo muito intenso de vir de cima pra baixo, de<br />
ser ofertado às comunidades, havendo pouco tempo<br />
para a discussão da validade de um projeto desses.<br />
Se os caras querem fazer mesmo ou não, mapear pra<br />
que? Vamos mapear o quê?<br />
Então, muitos processos participativos, no caso<br />
do zoneamento econômico e ecológico, são feitos pra<br />
legitimar uma ação de Estado que já foi levada pronta<br />
pra eles, e que ganhou uma conotação participativa<br />
porque num dia juntou um monte de gente de movimento<br />
social em torno de um mapa e a partir dali,<br />
aquele mapa de zoneamento ganhou a alcunha de um<br />
mapa participativo.<br />
Celi Abdoral: Eu só queria fazer uma<br />
complementação dessa ideia do participativo. Como<br />
é que esse processo de implementação participativa<br />
do projeto de Belo Monte tá acontecendo na Região<br />
do Xingu, que ali é a região da Terra do Meio é a<br />
última reserva de Mogno do Estado. O processo<br />
participativo acontece a partir de audiências públicas<br />
onde as comunidades vão ser ouvidas e as partes<br />
envolvidas também vão ser ouvidas, e o fruto desse<br />
processo é uma consulta à comunidade, uma consulta<br />
de autorização. No plano ideal, esse instrumento é<br />
muito interessante de exercício direto de democracia,<br />
mas quando a gente pensa em Amazônia, Brasil e<br />
Latino América a gente não pode pensar em um<br />
substrato ideal de democracia. Podemos no máximo<br />
falar que existe uma democracia formal nos códigos<br />
processuais, nos substratos legislativos, mas não se<br />
pode falar de uma democracia substancial. Então<br />
esses processos de consulta à comunidade, que<br />
na maioria das vezes são audiências públicas, são<br />
processos que substancialmente não são válidos<br />
porque a comunidade chega no espaço, a mesa<br />
é tomada por autoridades, a divisão dos tempos<br />
de falas são desiguais e na maioria das vezes as<br />
comunidades não tem acesso à informação segura.<br />
A gente tem percebido também que em algumas<br />
audiências públicas existe a presença ostensiva<br />
armada dos grupos de segurança, e em especial da<br />
Força Nacional. Ao final de tudo, esses processos<br />
de audiências públicas servem muito mais pra<br />
legitimar a pretensão governamental e dos grandes<br />
grupos empresariais do que promover um processo<br />
democrático de diálogo e de consulta à comunidade,<br />
como deveria ser.
invisibilidades e questões de gênero<br />
CELI ABDORAL<br />
Tomando o vídeo exibido como ponto de partida,<br />
gostaria de fazer algumas considerações sobre<br />
lugares e não lugares, questões de invisibilidade e<br />
de reconhecimento; além de outras questões que<br />
são reflexos das demarcações simbólicas sobre a divisão<br />
sexual do trabalho, presentes no contexto dos<br />
Grandes Projetos e nas propostas de desenvolvimento<br />
pensadas para a Amazônia. Essas demarcações<br />
influenciaram e influenciam decisivamente não só<br />
no processo de colonização recente da região como<br />
também as definições cartográficas clássicas que são<br />
traçadas sobre ela.<br />
No filme, as falas dos representantes das instituições<br />
e órgãos envolvidos nesse Grande Projeto, e,<br />
até mesmo a fala das lideranças do movimento social<br />
local, são quase sempre masculinas. Quer dizer,<br />
feitas por homens, ainda que os problemas atinjam<br />
mulheres e homens.<br />
Assim, o vídeo vai mostrando essas demarcações<br />
dos lugares, onde tudo o que é público acaba<br />
sendo do âmbito masculino e tudo que é privado do<br />
âmbito feminino, não reconhecido ou subvalorizado<br />
- em termos comparativos e proporcionais podemos<br />
pensar no Congresso Nacional, por exemplo. É a falta<br />
desse reconhecimento que infelizmente reforça a superexploração<br />
feminina e a invisibiliza.<br />
Traçar uma outra cartografia da ocupação da<br />
Amazônia, possibilita reconhecer que nesse processo,<br />
juntamente com os homens pioneiros vieram<br />
também as mulheres pioneiras - e elas vieram para<br />
fazer esse serviço do lugar que é estabelecido para<br />
nós na sociedade, na divisão sexual do trabalho, que<br />
é o âmbito do privado. Apesar de não haver o devido<br />
reconhecimento - são atividades que possuem a mesma<br />
dignidade que as desenvolvidas por homens.<br />
Então vieram para cozinhar, para lavar, para<br />
passar, para prestar serviços sexuais. Também faziam<br />
atividade de garimpo, coleta do látex e agricultura. O<br />
filme é muito interessante e mostra, na primeira fala<br />
uma mulher relatando justamente essa realidade de<br />
migração feminina para a Amazônia. São mulheres<br />
em busca de estratégias de sobrevivência, como no<br />
caso desse Projeto, onde se estabeleceram nas casas<br />
de prostituição, tabernas, vendas e cozinhas ali no<br />
entorno do “beiradão” e do “beiradinho”. A questão<br />
também é dialética, pois no caminho, cada vez mais<br />
conquistamos espaços e formas de reconhecimento,<br />
presidimos sindicatos e nos auto organizamos.<br />
Não é a toa que, o conteúdo imagético de fora,<br />
84<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
a visão primeira da coleta do látex, na colonização<br />
do Acre, por exemplo, é geralmente a de um homem<br />
com uma cuia na mão e uma faca, que vai lá lascar a<br />
árvore nos seringais, como se nesse processo não existisse<br />
também nenhum dos trabalhos das mulheres.<br />
Da mesma maneira, podemos pensar que uma<br />
grande a companhia, sempre adota como um de seus<br />
marketings a estampa de cuidado, limpeza e eficiência,<br />
e nessa lógica os trabalhadores devem se apresentar<br />
sempre com o uniforme impecável - e isso é<br />
capital social para a empresa. Aí me vem a pergunta:<br />
quem cuida dos uniformes dos trabalhadores dessas<br />
grandes companhias? Certamente são, em grande<br />
maioria, as mulheres, que lavam, engomam e passam<br />
esses uniformes, e isso é apropriado em forma<br />
de capital social; mas, no entanto o trabalho dessas<br />
mulheres é invisibilizado. E nessa relação perversa<br />
de invisibilidade, a apropriação do trabalho feminino<br />
por grandes empresas que se instauram na Amazônia<br />
ocorrem de diversas maneiras. Esses são só alguns<br />
exemplos.<br />
É por isso que eu costumo dizer; se a gente<br />
parar para pensar nós somos muito filhos das putas,<br />
e somos mesmo. Resignificando o sentido do termo,<br />
no processo do serviço sexual na Amazônia, foi onde<br />
os filhos nasceram - então nós somos mesmo filhos<br />
das putas com muito orgulho. E vejam, não se quer<br />
com isso, em hipótese alguma, reduzir o trabalho<br />
feminino ao trabalho sexual.<br />
Eu queria dizer assim, quando falamos de prostituição<br />
e das prostituas, a ideia da vitimização não<br />
é uma ideia boa, por que ela traz uma ideia de passividade.<br />
Na verdade, nós mulheres também ingressamos<br />
no mercado do sexo, como estratégia de sobrevivência,<br />
nem sempre somos enganadas, sabemos<br />
que iremos desenvolver o mercado do sexo, muitas<br />
sabem de tudo isso. O problema é que costumamos<br />
colocar no lugar comum “ai coitadinhas, elas iam trabalhar<br />
como babá e não sabiam”. Algumas sim! Mas<br />
outras sabiam. O fato de se trabalhar no mercado do<br />
sexo, o fato de você trabalhar em uma fazenda ou carvoaria,<br />
o fato de você precisar tanto, que essa necessidade<br />
faz com você disponibilize sua dignidade não<br />
dá ao outro o direito de a aviltar. Quando a gente fala<br />
de aviltamento da dignidade na exploração sexual<br />
não estamos falando de usar ou não usar o serviço da<br />
prostituição, mas sim de exploração sexual, que é o<br />
uso do trabalho desrespeitando a dignidade da profissional,<br />
ou do profissional do sexo, sobretudo no<br />
bela gorda - Paloma franca Amorim<br />
que diz respeito a sua autonomia e as garantias mínimas<br />
de desempenho de um trabalho, como acontece<br />
em qualquer outro. Não existe trabalho indigno, o<br />
que existe são condições indignas de trabalho!<br />
E assim, gosto sempre de falar sobre isso,<br />
porque é um processo que acaba sendo invisibilizado,<br />
ao final de contas, quando se discute cartografia,<br />
ou se discute a questão social dos impactos dos<br />
Grandes Projetos pouco se discute o papel das mulheres<br />
neles. Em Serra Pelada, por exemplo, e aquele<br />
“formigueiro” de homem andando com baldes na cabeça.<br />
Na foto tão famosa sobre a Serra Pelada não se<br />
vê, por exemplo, a referência do trabalho feminino,<br />
nenhuma fotografia, nenhum documentário - e é<br />
uma parcela muito expressiva desse trabalho. A cidade<br />
que se ergueu no entorno, agregando famílias<br />
e pessoas, recebeu muitas mulheres que migraram<br />
para Serra Pelada, não só para trabalhar como garimpeiras,<br />
mas também em serviços domésticos, pequenas<br />
vendas, cozinha e para trabalhar no mercado do<br />
sexo, se é que a gente pode falar assim, porque na<br />
verdade; no contexto desses Grandes Projetos o que<br />
mais se vê é exploração sexual e não prostituição, que<br />
são coisas completamente diferentes. A primeira é violação<br />
dos direitos humanos fundamentais da pessoa<br />
explorada; a segunda é estratégia de sobrevivência de<br />
mulheres autônomas – é, portanto trabalho. Atualmente,<br />
a comunidade de Serra Pelada ainda existe,<br />
mas vive esquecida na poeira tóxica da estrada que<br />
corta a comunidade, Hoje, é a localidade com o maior<br />
número de hansenianos do mundo; enorme número<br />
de idosos e mulheres vivendo no calabouço do fundo<br />
do poço da linha da pobreza; e hoje não podem sequer<br />
explorar a mina, já que o conflito envolve outro<br />
Projeto, o da mineradora “Serra Leste” cuja principal<br />
responsável é a Vale.<br />
A gente costuma falar muito em trabalho escravo,<br />
e a sua característica política do aviamento<br />
em fazendas e carvoarias: nela o trabalhador já sai<br />
de casa devendo o dinheiro da passagem, chega lá<br />
deve o sabonete que custa 30 reais, deve o aparelho<br />
de barbear que custa 30 reais, e, assim ele se vê numa<br />
divida que se transforma no seu próprio cárcere, ele<br />
não sai da fazenda. Primeiro porque a mesma está<br />
vigiada ou ele não viu por onde entrou; devendo pode<br />
morrer; ou ainda acredita que deve honrar a dívida,<br />
mesmo ela sendo injusta, pois o que lhe resta é sua<br />
honra de pessoa honesta, e por isso, muitas vezes<br />
consente com a exploração de si, por não ter outra<br />
opção melhor. É o que eu chamo de consentimento<br />
inoptável de aviltamento da dignidade.<br />
No entanto, ainda no processo de invisibilidade<br />
sequer vemos que também as mulheres são<br />
alvos dessa política do aviamento no âmbito da exploração<br />
sexual como forma de trabalho escravo nos<br />
mesmos moldes. Se passarmos em uma estrada ao<br />
lado de uma pensão onde tem o peão de trecho, ali<br />
aguardando para ser arregimentado pelo “gato”, para<br />
ir para as fazendas ou garimpos - lá tem também a<br />
outra pensão – a casa de tolerância (como dizem no
mais perverso machismo), pois lá elas toleram tudo,<br />
as garotas de programa, as meninas de programa que<br />
também chegam nesses lugares, através da mesma<br />
lógica do trabalho escravo.<br />
As suas passagens também são “financiadas” a<br />
um preço exorbitante, ou são levadas sob violência; e<br />
lá, precisam pagar muito caro pelo perfume, pelo sabonete,<br />
pela comida, pelo absorvente. São obrigadas<br />
a transar mesmo estando doentes de malária, sem<br />
pausa na menstruação, com extensas jornadas de<br />
trabalho. Se quiserem fugir, não podem - tem capanga<br />
armado vigiando; vivem em uma situação também<br />
de escravidão. E essa forma de trabalho indigno, se<br />
replica para todos os espaços ou conjunturas. Quem<br />
não conhece uma casa, na Capital mesmo, onde mandaram<br />
buscar uma menina pretinha de preferência e<br />
do interior pra trabalhar? “damos comida, estudo e<br />
roupa”, dizem. Aí, as roupas são as que não servem<br />
mais na filha, a escola é a pública e a comida é o que<br />
sobra do almoço.<br />
E a situação se agrava ainda mais na geografia<br />
inter-fronteiras, porque, muita das vezes, a mulher<br />
estrangeira quando entra ou a mulher brasileira<br />
quando sai ficam em uma situação de ilegalidade<br />
– ou porque já assim chegaram ou porque muitas<br />
chegam portando passaporte, documentação, visto<br />
aprovado; mas têm seus documentos tomados ou<br />
destruídos - isso deixa as pessoas em uma situação<br />
de não documentadas, o que as faz cair nas “garras”<br />
da ilegalidade, da clandestinidade. Então, sem a situação<br />
de legalidade, não têm como acessar nenhum<br />
86<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
Aurora - Paloma franca Amorim<br />
tipo de política publica, se sofrem violação de direito,<br />
não podem ir à delegacia, porque se forem, acabam<br />
deportadas. Se sofrerem alguma agressão ou ficam<br />
doentes não podem ir a um posto de saúde, rebeber<br />
atendimento médico, porque lá vão constatar a situação<br />
de ilegalidade e serão criminalizadas, cuja pena<br />
mais comum é a prisão ou detenção até a data da deportação.<br />
Se sofrerem algum abuso no âmbito dos direitos<br />
trabalhistas, também não pode ir até a justiça<br />
do trabalho, porque também acabam deportadas. Se<br />
pararmos para analisar, isso é extremamente lucrativo<br />
dentro da lógica da máxima apreensão do lucro<br />
no capitalismo, tanto dentro do Brasil, que também<br />
recebe muitos migrantes (país emergente, sabe como<br />
é!!!) quanto com as pessoas que vão trabalhar fora<br />
daqui. É um mercado extremamente lucrativo e exploratório<br />
esse de migrantes não documentados, pois<br />
não podem reclamar nenhum direito e se submetem<br />
a todas as regras do jogo.<br />
E importa atentarmos, pois, muitas das vezes<br />
mudam-se alguns termos e no entanto, as práticas<br />
continuam as mesmas. Nessa imposição de uma<br />
“globalização” de cima para baixo; a gente sai aí só<br />
falando, now how, folow, in side/ out side, buusines,<br />
development, green energy, agrobusines, palavras<br />
super estrangeiras e atraentes - que no processo de<br />
cooptação ideológica também são estrangeiradas<br />
para que se reduza o impacto do dano e destruição<br />
que causam.<br />
Hoje, escutamos com frequência se falar de<br />
bio combustível ou Green energy, mas poucos discu-<br />
tem os processos de desestruturação das atividades<br />
tradicionais e ancestrais no uso do dendê e do coco<br />
de babaçu para a produção do biodiesel. Ruralistas<br />
passam a desenvolver agrobusiness, forma de maquiar<br />
uma velha prática - a monocultura de latifúndio<br />
- agora com requintes de crueldade, pois trata as<br />
pessoas como lixo de difícil reciclagem humanística.<br />
A palavra só mudou, mas a lógica é a mesma, monocultura,<br />
latifúndio e trabalho escravo. E vejam, reflorestamento,<br />
também é monocultura de latifúndio –<br />
Tem fábrica de lápis que adora fazer, reflorestamento<br />
de eucalipto. Quando se planta uma monocultra de<br />
eucalipto nos solos da Amazônia, e depois usa a sua<br />
madeira pra fazer lápis, dá-se a mesma lógica da cana<br />
de açúcar e do álcool. Eucalipto sendo usado na mesma<br />
lógica, da monocultura, da apropriação do lucro,<br />
então é muita cara de pau querermos falar em reflorestamento<br />
com eucalípto no Amazônia. Apesar de<br />
que agrobusiness é uma palavra bem bonita...<br />
Vistas de perto, as propostas de (des) envolvimento<br />
sustentável (última tendência da moda) não<br />
respeitam as comunidades locais e as afastam dos<br />
processos de decisão, por isso eu escarneço dizendo<br />
que essas propostas “(des) envolvem a comunidade”.<br />
No caso de Belo Monte- Rio Xingu- Pará o discurso<br />
é o da energia limpa, renovável e sustentável. Diversas<br />
comunidades indígenas e não indígenas perderão<br />
seu território, sua fonte de alimentação, pois o desvio<br />
afetará muitas piracemas.<br />
O estudo de impacto ambiental e seu relatório<br />
- o EIA-RIMA, ainda que com diversas falhas, impôs<br />
o cumprimento de 64 condicionantes antes do início<br />
do Projeto. O Estado Brasileiro autorizou o início<br />
das obras, tendo o Consórcio Energético que é formado<br />
por multinacionais (dentre elas empresas subsidiárias<br />
da Vale) só cumprido 04 das 64. Um político<br />
da região, identificando-se com o projeto discursou<br />
em plena conferencia nacional dos povos indígenas,<br />
que aconteceu ano passado no Xingu- em Altamira/<br />
PA dizendo: “a vocês exigem 64 condicionantes?<br />
Então tá, 64: 6-4=2, 4 é mais que 2 - cumprimos mais<br />
da metade, vocês estão é com sorte!!!”<br />
Esse é o campo que se imergimos nossa ação,<br />
por isso gostaria de finalizar como eu gostaria de ter<br />
começado toda essa conversa, refletindo qual imaginário<br />
que a gente ocupa nos corações e nas cabeças<br />
dessas pessoas. Quanto mais se globaliza o discurso<br />
da globalização, mais exóticos nós nos tornamos, até<br />
para nós mesmos. E por falar em exoticidade, lembrei<br />
das feiras dos bairros daqui da Amazônia onde a<br />
maioria só vende maçã, pera e uva. Passamos a tratar<br />
como exótico nosso cupuaçu, o bacuri a castanha –<br />
frutas que não encontramos mais com tanta facilidade<br />
nem na feira do Ver-O-Peso.<br />
Essa é a parte antropofágica do processo de<br />
globalização, onde eu incluo o desejo e, falando em<br />
desejo ... E falamos muito sobre desejo hoje de manhã<br />
eu e Luizan – tornamo-nos iguarias exóticas também.<br />
No mercado do sexo e do turismo sexual globalizado<br />
os turistas e pessoas não buscam apenas nossas<br />
comidas exóticas, ou floresta e suas plantas e animais<br />
exóticos; buscam também degustar as pessoas e especialmente<br />
a mulher brasileira em sua exoticitade<br />
- agora imaginem quando se pensa nessa parte dita<br />
misteriosa do Brasil, que é a Amazônia.<br />
É temos que driblar as armadilhas do assistencialismo,<br />
que hoje repaginado, vem acrescido de<br />
métodos sutis e sofisticados como as teorias de participação,<br />
consulta e parceria com a sociedade civil,<br />
acabando por se colocar - sem uma avaliação mais<br />
crítica e autônoma sobre o novo papel do estado e das<br />
possibilidades de mudança - como melhor opção para<br />
a política de dominação, pacificação e de integração<br />
dos povos indígenas e das comunidades afetadas pelos<br />
impactos dessa proposta de (des) envolvimento<br />
pensada para a Amazônia e a Latino América. E/ou<br />
especialmente como alternativa à política de extermínio<br />
e limpeza étnica tão marcante no processo de<br />
formação do Estado Brasileiro.
luanda - Paloma franca Amorim<br />
88<br />
#vontade de Potência ≠ vontade de Poder<br />
Na luta, vamos buscando estratégias de sobrevivência,<br />
construindo redes alternativas (alternativa<br />
é uma palavra que também voltou à moda) negociando<br />
nossa moeda de troca em ações coletivas (ações<br />
coletivas também é uma palavra que está na moda).<br />
Nessas terras daqui ainda são presentes os casos de<br />
extermínio, pistolagem, criminalização e imposição<br />
cultural.<br />
Pra dizer por fim que nesse processo de enfrentamento<br />
e resistência, descobri - a partir da<br />
minha experiencia com a rede aparelho, e as pessoas<br />
que eu conheci Arthur, Pedro, Bruna, Ângelo, <strong>Giseli</strong>,<br />
Nando, Darling, Luah, Romáio, Lucas (e tantas outras<br />
que não nominei por pura sequela) – que a arte<br />
despojada de sua arrogância é uma estratégia interessante<br />
para criar condições de possibilidades ao estranhamento,<br />
à critica, à ação e à reação.<br />
Poder, por exemplo, falar sobre direitos humanos<br />
usando outras linguagens além do megafone ou<br />
de duas horas de palestra em uma conferência; poder<br />
estar na rua com a arte, a musica, a poesia o teatro, o<br />
cinema, a intervenção, a performance – tem me possibilitado<br />
de maneira mais fluida mobilizar as pessoas<br />
que queremos.<br />
E aprender a reconhecer também a potencia<br />
dessas comunidades e pessoas e suas incursões<br />
artísticas. Reafirmar a arte feita por indígenas e<br />
quilombolas artistas como arte e o direito que estas<br />
comunidades têm de terem seu acervo artístico dentro<br />
da comunidade e não recluso em um museu da<br />
Europa ou de qualquer outro país rico.<br />
Eu não estou falando daquele discurso da arte<br />
engajada, como espécie do gênero arte, mas de arte,<br />
que em um momento foi música de protesto, em<br />
outro foi grafitte e performance em todos. Ou seja,<br />
eu estou falando de causar estranhamento, mesmo<br />
por 2 segundos, se for já estará valendo, se a gente<br />
consegue causar estranhamento por 5minutos já está<br />
valendo.<br />
Então hoje a SDDH tem o café com direitos humanos,<br />
eu acho o termo meio quadradinho, porque é<br />
uma luta dentro de instituições tradicionais, no entanto<br />
vamos tentando, ainda que pela via da institucionalidade,<br />
propor essa nova linguagem, ou melhor,<br />
essa outra linguagem, que não é nada de nova, mas<br />
na verdade apenas conta com novos aparelhos tecnológicos.<br />
E é uma luta se desprender, é uma luta fazer o<br />
velho militante operar um notebook, um datashow,<br />
uma câmera de celular (dependendo de quem ler<br />
isso essas coisas já serão antiquadas) . Também a<br />
apropriação da tecnologia por nós certas mulheres,<br />
que temos medo ou não temos acesso à tecnologia,<br />
porque esse é um lugar masculino.<br />
Participei de um evento com 350 mulheres e a<br />
professora palestrante solicitou a presença “do rapaz<br />
responsável para ligar o datashow”. Uma menina do<br />
interior lá de Moju/PA disse “professora, nós somos<br />
300 mulheres, por que a senhora está chamando por<br />
algum rapaz... Eu sei ligar o datashow!”.<br />
Se não é possível falar em revolução ainda, vamos<br />
causando fissuras, de estranhamento, do reconhecimento<br />
de diversos paradigmas como igualmente<br />
válidos e dignos. Não cabe a essa realidade um paradigma<br />
que separa o sujeito do objeto; o a pessoa da<br />
natureza... Falávamos de porosidade, ontem de porosidade...<br />
Eu tenho a pretensão de criar aqui alguma<br />
uma porosidade, se alguém vem junto, se a cena é<br />
coletiva, caótica, diversa e divertida melhor ainda!.<br />
melanchta- Paloma franca Amorim<br />
http://plmfa.wordpress.com/
90<br />
#estamos de greve<br />
https://www.facebook.com/m0nt4g3nsb3l3m<br />
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CCBEU.mp4 | Ymá Nhandehetama.mp4 | DIVISORIAIMAGINARIA.mp4 | pró-logos.mp4<br />
HINO DO PARÁ.mov | VER O PESO Max Martins.mov
identidade e diferença<br />
de quem pinta o corpo<br />
para a guerra ou para a festa:<br />
A trAjetÓriA dA PoéticA de resistênciA<br />
do gruPo urucum no PerÍodo de 2001 A 2005<br />
ARTHUR LEANDRO<br />
Preâmbulo<br />
Minha intenção é analisar a produção de<br />
trabalhos coletivos do Grupo Urucum no período de<br />
2001 a 2005 - período em que participo ativamente<br />
do grupo, perguntando se podemos chamá-la de uma<br />
produção de arte contemporânea, e, mais, qual a<br />
necessidade de caracterizá-la assim.<br />
São nove as ações do universo dos trabalhos<br />
do grupo que tomo como objeto: 1) “Os catadores<br />
de orvalho esperando a felicidade chegar” (Macapá<br />
- 2001); 2) “Desculpem o transtorno – estamos<br />
em obras” (Rio de Janeiro – 2002); 3) Projeto<br />
Rejeitados (2002/03); 4) “Mensagens Vazias”<br />
(Macapá-2002/03); 5) “Divisória - Imaginária”<br />
(Macapá-2003); 6)“Bicicletas elétricas” (Nova<br />
Iorque-2003/04); 7) “Lotação de paus mandados”<br />
(Macapá-2004); 8) Corpo Fechado (Rio de<br />
Janeiro-2004); 9) “Concerto de Roque-roques”<br />
(Macapá/Kassel-2005).<br />
Estas ações coletivas do grupo são realizadas<br />
a partir de motivações baseadas na realidade local,<br />
mesclando questões poéticas com a tensão social,<br />
a vivência na cidade de Macapá, as relações entre a<br />
cultura amazônica e a globalização ou tencionando<br />
a relação entre artistas e instituições mesmo quando<br />
são ações realizadas para participação em eventos<br />
em instituições culturais.<br />
A participação do Grupo em eventos em<br />
instituições culturais acontece pela conexão em<br />
rede de comunicação com outros artistas, como no<br />
“Desculpem o Transtorno – estamos em obras”,<br />
realizado no Palácio Gustavo Capanema – sede<br />
da FUNARTE no Rio de Janeiro; do “Projeto<br />
Rejeitados”, pensado para o Museu de Arte Moderna<br />
da Bahia e nunca realizado; e do “Bicicletas<br />
elétricas”, realizado no American Society, em Nova<br />
Iorque. E a partir de então, por convite direto como<br />
no “Mensagens Vazias”, realizado a partir de convite<br />
para intervenção na Casa das 11 janelas – Museu de<br />
Arte Contemporânea do Pará - o trabalho foi pensado<br />
e realizado para uma intervenção para a qual fomos<br />
convidados e que nunca aconteceu; “Corpo Fechado”,<br />
pensado em Macapá e realizado na praia de Ipanema<br />
no Rio de Janeiro - proposição para o projeto de<br />
92<br />
#estamos de greve<br />
intercâmbio INTERFACES, entre a EBA/UFRJ e<br />
o Reseau L’age d’Or - o Grupo Urucum participa a<br />
partir da argumentação de que minha pesquisa para<br />
doutoramento naquela escola tratava da poética do<br />
coletivo do Urucum e não caberia uma proposição<br />
individual se meu trabalho era no Grupo; e “Concerto<br />
de Roque-roques”, realizado simultaneamente na<br />
Feira Maluca em Macapá e no Kunsthalle Museum<br />
Fridericianum, em Kassel – Alemanha.<br />
contexto<br />
Apesar de em Macapá não haver espaços<br />
de exposição integrados ao circuito oficial e<br />
mercadológico da arte brasileira, de alguma forma<br />
os membros do grupo puderam tomar contato e se<br />
relacionar diretamente com o universo institucional<br />
(impositivo) que legitima e controla a produção<br />
artística brasileira, e nesse contato assumiu o<br />
trânsito institucional sem integrar-se totalmente a<br />
ele, assumiu uma postura crítica que tenta não ser<br />
submissa ao poder.<br />
O meu interesse por essa parcela da produção<br />
do Grupo Urucum dá-se pelo uso de estratégias<br />
diferenciadas em relação ao procedimento<br />
tradicional e secularizado de legitimação artística.<br />
Pela experimentação poética de relação direta com<br />
a sociedade e realização de propostas em espaços<br />
urbanos – sem a mediação institucional. Pela<br />
participação crítica quando em eventos no interior<br />
das instituições culturais. Pela participação em<br />
redes de comunicação e ações conjuntas com outros<br />
artistas e coletivos artísticos.<br />
O que pressuponho é que os usos dessas<br />
estratégias caracterizam as ações do coletivo como<br />
atividades de resistência política e cultural1 .<br />
Na minha proposição e no meu texto eu falo<br />
na primeira pessoa alternando o posicionamento do<br />
singular com o plural, mas em todo caso declarando a<br />
proximidade com as ações e com o grupo, eu também<br />
faço parte do objeto e para mim é difícil especificar<br />
1 E também nas duas participações do Grupo no “Dia do<br />
Nada”, em 2003 e 2004, com os trabalhos “Estamos em pleno<br />
rio-mar… Doido espaço… Estamos em pleno rio-mar… Dois infinito…”;<br />
e “Farofa de ovo – ou Tudo o que há no rio, nada!”,<br />
respectivamente.<br />
qual é a pessoa que fala, a do singular ou a do plural,<br />
e para usar a alegoria poética: me imagino como<br />
um peixe na pirapora»> pira=peixe, pora=salto»>.<br />
Como quem salta para encontrar sua singularidade<br />
fora do coletivo (o plural) e novamente mergulhar<br />
na massa social liquida tentando analisar aquilo que<br />
percebeu tanto na convivência coletiva quanto na<br />
singularidade do salto que realizou na tentativa de<br />
vencer a corrente do rio, a análise é na contracorrente<br />
e não separo o artista do teórico e nem do ativista.<br />
Mesma mistura, ou alternância de posições, com que<br />
caracterizo minha participação nas ações do grupo<br />
Urucum.<br />
identidAdes, diferençAs e<br />
estrAtégiAs diAnte<br />
do sistemA<br />
O exemplo dos projetos modernistas – de<br />
uma arte “desinfetada” – que acompanham a<br />
racionalização imposta pela modernização acaba<br />
por gerar códigos artísticos que impossibilitam cada<br />
vez mais o acesso do homem comum às produções<br />
simbólicas consideradas legítimas. Estes projetos<br />
implantados na América latina são denunciados por<br />
Nestor Garcia Canclini como um simulacro urdido<br />
pelas elites e pelos aparelhos estatais, sobretudo os<br />
que se ocupam da arte e da cultura, mas que por isso<br />
mesmo os torna irrepresentativos e inverossímeis<br />
da cultura viva e híbrida que se manifesta paralela<br />
ao crescimento da vida urbana. As elites – que<br />
pretendiam manter sua distinção em relação às outras<br />
classes através do monopólio dos códigos estéticos<br />
considerados superiores quando comparados aos<br />
populares ou massivos – não consideravam as<br />
desigualdades em seus projetos modernos, sendo<br />
estes sempre excludentes da maioria da população,<br />
à qual restam as opções do folclore popular ou das<br />
produções massivas geradas pela indústria cultural 2 .<br />
No início do século XIX a história lusobrasileira<br />
foi marcada por dois grandes acontecimentos:<br />
a invasão de Portugal pelo exército francês e a<br />
transferência da família real e da Corte portuguesa<br />
para o Brasil. Consequência direta da invasão francesa,<br />
a chegada da Corte lusitana, em 1808, representou<br />
para o Brasil um momento de profunda mudança<br />
institucional e cultural. Diante da nova condição de<br />
sede do governo metropolitano, a colônia americana<br />
passou por uma importante reestruturação políticoadministrativa,<br />
entre 1808 e 1810 o governo lusitano<br />
promove a abertura dos portos às nações amigas;<br />
revoga as proibições à manufatura; cria instituições<br />
como as escolas de medicina na Bahia e no Rio de<br />
2 CANCLINI, Nestor Garcia Culturas Hibridas: estratégias<br />
para entrar y salyr de la modernidad. Buenos Aires, Barcelona,<br />
Mexico: Paidos. 2001.<br />
Janeiro, academias militares e intendência de polícia<br />
- entre outras, dando início à construção do aparato<br />
burocrático-estatal necessário para atender as novas<br />
exigências de sede do governo português.<br />
Como parte da (re)estruturação administrativa<br />
e política, em 1816 D. João VI contrata um grupo<br />
de artistas franceses encarregados de implantar<br />
a Academia de Belas Artes, que passa a funcionar<br />
a partir de 1826, e cujo objetivo era o ensino e<br />
propagação das artes e ofícios artísticos segundo os<br />
modelos vigentes na Europa.<br />
Alguns anos depois, Marx e Engels, no Manifesto<br />
do Partido Comunista, apontaram a necessidade<br />
de expansão (a partir da Europa) de mercados para<br />
a produção industrial, expansão que revoluciona<br />
constantemente a tecnologia e seus instrumentos de<br />
produção e arremessa todas as nações para a torrente<br />
da civilização. Eles dizem ainda que, para a inserção<br />
no seio da chamada civilização, a burguesia obriga<br />
“todas as nações (…) a adotarem o [seu] modo de<br />
produção”, imposição que identificam como o projeto<br />
de reprodução das relações burguesas por toda parte,<br />
para assim conquistar a terra inteira 3 .<br />
O Manifesto do Partido Comunista se refere<br />
apenas aos meios de produção de bens e de capital,<br />
mas facilmente podemos projetar esse universo para<br />
a produção artística e cultural. Para tanto recorro<br />
ao conceito de hegemonia formulado por Antônio<br />
Gramsci. Gramsci fala da hegemonia e a caracteriza<br />
como a liderança cultural que garante a dominação,<br />
considerando que os mundos imaginários funcionam<br />
como matéria espiritual para se alcançar um consenso<br />
reordenador das relações sociais, conseqüentemente<br />
orientado para a transformação e explica que as<br />
formas históricas da hegemonia nem sempre são as<br />
mesmas e variam conforme a natureza das forças<br />
sociais que a exercem. Sérgio Buarque de Holanda<br />
exemplifica o caso brasileiro de hegemonia e<br />
dominação ao dizer que a tentativa de implantação da<br />
cultura européia no extenso território e em condições<br />
naturais hostis está nas raízes do Brasil, e conclui<br />
dizendo que somos desterrados na nossa terra, e,<br />
ainda, pergunta se realmente podemos representar<br />
as formas de convívio, instituições e ideias das quais<br />
acreditamos que somos herdeiros.<br />
Sem considerar a experiência da produção<br />
artística que, à revelia dos desejos dos mandatários<br />
do Estado, acontecia misturando signos culturais de<br />
diversas etnias de três continentes distintos, a missão<br />
francesa oficializa a arte produzida segundo o gosto<br />
do governante e relega à planos inferiores todas as<br />
demais produções artísticas fruto da diversidade<br />
cultural brasileira. A história registra esse período<br />
como de grande efervescência cultural, mas<br />
analisada pela ótica da dominação cultural, a história<br />
3 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido<br />
comunista. Porto Alegre: L & PM. 2002, p. 28-32.
da arte brasileira torna-se ambígua. Se a política<br />
oficial para a cultura registra em nossa história<br />
alguns governantes como grandes incentivadores<br />
e financiadores das artes, a política aqui aplicada,<br />
inclusive a cultural, também é responsável pela<br />
imposição de uma identidade única, hegemônica,<br />
dominadora e opressora.<br />
Então, a história da arte brasileira pode ser<br />
entendida como fruto da tensão pelo embate entre a<br />
manutenção de identidades culturais diversificadas<br />
frente à hegemonia da herança da modernidade<br />
européia, ou como ocorre na contemporaneidade,<br />
com a expansão da sociedade de consumo norteamericana<br />
e no mundo neoliberal do mercado<br />
globalizado, a imposição de um único modo de<br />
produção e circulação de arte e bens culturais em<br />
constante conflito com identidades resultantes da<br />
experiência dos povos dominados, escravizados ou<br />
imigrantes.<br />
O manifesto do partido comunista prevê a<br />
globalização do mercado para a manutenção do<br />
sistema capitalista, que trás em si as relações de<br />
domínio, subordinação e dependência, pois os<br />
instrumentos de produção de bens e o conhecimento<br />
tecnológico que impulsiona o progresso, inicialmente<br />
posse exclusiva da burguesia que Marx e Engels<br />
criticavam, e que permanecem sob o domínio de<br />
uma elite econômica agora representada pelas<br />
corporações transnacionais na economia neoliberal,<br />
cujos interesses de mercado passam a interferir em<br />
todas as instâncias de decisão em escala mundial,<br />
inclusive nas políticas nacionais.<br />
O Brasil, não possuindo meios de produção,<br />
está sujeito a imposição de interesses dos países<br />
industrializados e suas corporações econômicas<br />
transnacionais, inclusive no meio artístico.<br />
Na crítica Arte e burocracia, de 1967, Mario<br />
Pedrosa diz que o “Brasil é assim, o único pais do<br />
mundo que reconhece duas espécies de arte, uma<br />
‘acadêmica’ ou ‘clássica’ e outra moderna” 4 , sua<br />
crítica propõe a reflexão sobre a confusão na prática<br />
artística provocada a partir do duplo investimento<br />
da política cultural brasileira que nos últimos anos<br />
da década de 1960 concedia prêmios de viagens<br />
e bolsas para o exterior em dois salões de arte<br />
distintos e divergentes, mas que permitia aos artistas<br />
concorrerem em ambos “o exercício do sistema<br />
já criou mesmo a aberração. Como? Permitindo a<br />
um participante do Salão acadêmico, (…) no dia<br />
seguinte apresentar-se ao Salão “moderno” e ganhar<br />
neste o grande prêmio de viagem cobiçado. Assim<br />
reconhece-se oficialmente a possibilidade de um<br />
sujeito, já consagrado como artista “acadêmico” ou<br />
“clássico” ser meses depois consagrado como artista<br />
“moderno” 5 .<br />
4 PEDROSA, Mario Mundo, homem, arte em crise. São<br />
Paulo: Perspectiva. 1986. p 104.<br />
5 Idem<br />
94<br />
#estamos de greve<br />
Pedrosa ainda especula os motivos desse<br />
duplo investimento, ele supõe que talvez seja por<br />
que nesse período fosse necessário responder<br />
com investimentos à produção “acadêmica” para<br />
a elite que sustentava a política interna ao mesmo<br />
tempo em que o pais deveria parecer “moderno”<br />
para as conexões internacionais, mas ainda assim<br />
discriminatório à produções artísticas que não se<br />
enquadrem em suas regras.<br />
O próprio Pedrosa afirma que os “artistas<br />
jovens (não apenas de idade) e revolucionários dos<br />
nossos dias estão marginalizados, conservados<br />
bem a distancia dela [a arte], enquanto burocratas,<br />
confinados no seu isolamento, tratam de montar ali<br />
uma arte oficial, a seu gosto e pequena dimensão”,<br />
e com isso avalia os interesses estatais na política<br />
cultural que classifica como “fora do compasso da<br />
atualidade, indiferente ou estranho ao que se faz hoje<br />
no Brasil de mais arriscado, de mais vivo e de mais…<br />
brasileiro.” 6<br />
Em meados da década de 1980 a função de<br />
“montar ali uma arte oficial” e indiferente ao que se<br />
produz de “mais vivo e de mais… brasileiro” migra do<br />
aparato estatal para outros agentes, desta vez ligados<br />
ao mercado, que criam, também isoladamente, as<br />
novas regras para a arte brasileira. São agora os<br />
jornalistas e dirigentes de instituições culturais<br />
no Rio de Janeiro e São Paulo quem vão traçar<br />
identidades únicas para a inserção da produção do<br />
Brasil no mercado internacional.<br />
Em São Paulo, Sheila Leirner defende uma<br />
geração feliz no jornal Estado de São Paulo. No Rio<br />
de Janeiro, Roberto Pontual, autor do opúsculo<br />
Explode Geração! Encomendado pelo galerista<br />
Thomas Cohn, apresentava os jovens artistas no<br />
contexto do pós-modernismo internacional e da<br />
abertura política brasileira, situando-os como<br />
opositores do “isolacionismo e do autoritarismo<br />
conceitual da geração precedente”(1984). No O<br />
Globo, Frederico Morais dava sequência a uma<br />
série de artigos, que vinha escrevendo desde<br />
1982, difundindo as teorias do crítico italiano<br />
Achille Bonito Oliva, mentor da transvanguarda 7<br />
e interlocutor do neoconservadorismo artístico no<br />
cenário internacional...<br />
As exposições Europa 79, Bienal de Veneza,<br />
Documenta 7, e Bienal de Paris (1) difundem<br />
a transvanguarda e dão impulso ao mercado<br />
internacional de arte nos fins dos anos 70 e início<br />
dos anos 80. O Retorno à Pintura enquanto “última<br />
tendência da arte contemporânea” - tal como na<br />
ocasião chegou a ser festejado pela crítica dos anos<br />
de 1980 - representou mais do que uma confissão<br />
do mercado quanto a sua limitação para continuar<br />
absorvendo as transformações da linguagem da<br />
arte contemporânea que havia décadas vinham<br />
6 Ibidem.<br />
7 Ou “retorno à pintura!”<br />
sendo promovidas por sucessivos movimentos<br />
vanguardistas.<br />
Em verdade, “o Retorno à Pintura foi um<br />
movimento artístico e teórico representativo de<br />
diversos grupos de artistas, críticos e acadêmicos<br />
defensores de uma cultura pós-moderna opositiva à<br />
cultura do chamado alto modernismo” 8 . Analisando<br />
as edições da Bienal de São Paulo de 1983 e de<br />
1985, além da mostra “Como vai você, Geração<br />
80?” 9 , realizada no Rio de Janeiro em 1984, chegase<br />
facilmente à constatação de que esses eventos<br />
não apenas introduziram o fenômeno do Retorno<br />
à Pintura e sua estética anti-historicista como<br />
símbolos da “chegada” do pós-modernismo no Brasil,<br />
como também serviram para propagar na órbita<br />
do mercado de arte e do mecenato institucional<br />
do país a “pirâmide da felicidade” em que havia se<br />
transformado mundialmente aquele fenômeno.<br />
Ricardo Basbaum esclarece que o corpo teórico<br />
formulado por Bonito Oliva foi gerado a partir<br />
da produção de seu país e, devido ao seu amplo e<br />
rápido destaque, foi estendido a outras tendências<br />
internacionais da nova pintura 10 . Em outras palavras,<br />
novamente o Brasil absorve tendências que lhe são<br />
estranhas através da invenção intencional de uma<br />
situação que lhe aproxima da produção internacional<br />
dominada pelo mercado. A história da arte brasileira<br />
absorveu facilmente os preceitos ditados por Oliva<br />
e relegou ao esquecimento parte da produção “mais<br />
viva e (talvez) mais… brasileira” de toda a década,<br />
Márcia X, artista performática atuante na década<br />
de 1980 11 , disse que o problema é a incompreensão<br />
que existe no meio das artes plásticas, o descrédito<br />
que existe no Brasil em relação à performance, à arte<br />
política, à arte das minorias, e que “é preciso lembrar<br />
que a geração 80 não produziu somente pintores, e<br />
que esse pensamento se difundiu porque junto com<br />
os pintores o mercado de arte se fortaleceu e fez<br />
surgir essa “versão oficial” da década de 80.” 12<br />
Essa prática invencionista que em ciclos muito<br />
bem definidos obriga a adesão às regras adotadas<br />
pelos agentes das instituições culturais no Brasil foi<br />
implantada pela monarquia absolutista portuguesa<br />
8 REIS, Ronaldo Rosas Conformismo pós-moderno e<br />
nostalgia moderna. In Cyberlegenda. Revista, numero 1, Niterói:<br />
UFF, 1998.<br />
9 Participam da exposição : Antônio Dias, Cildo Meireles,<br />
Ivens Machado, Jorge Guinle, Leda Catunda, Leonilson, Roberto<br />
Magalhães, Sérgio Romagnolo, Tunga e Victor Arruda.<br />
10 BASBAUM, Ricardo. Pintura dos anos 80: Algumas observações<br />
críticas. Gávea no.6. R Revista do Curso de Especialização<br />
em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Rio de Janeiro.<br />
PUC-RJ, 1988<br />
11 Uma entre tantos esquecidos pela historia da arte oficial<br />
dos anos 80, como, apenas no contexto carioca : “Alex Hamburger”,<br />
“Dupla especializada”, “Grupo A Moreninha”, “Aimberê Cesar”<br />
e outros.<br />
12 X, Márcia, em entrevista datada de 2001. Fonte: http://<br />
www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=5&sText=3<br />
e permanece na contemporaneidade como se fosse<br />
um DNA que passa como herança do Estado para<br />
a sociedade, ou do financiamento estatal para o<br />
mercado – através do desmanche dos serviços<br />
públicos desde o governo Collor de Mello, e da<br />
criação das Leis de incentivos fiscais que afastam a<br />
arte oficial do gosto e dos interesses do governante<br />
para jogá-la no seio do mercado.<br />
A história da arte brasileira, quando relacionada<br />
às políticas culturais oficiais, é a historia do controle<br />
sobre a produção, sobre a manipulação e sobre a<br />
circulação de bens simbólicos, visando à manutenção<br />
do poder sob o domínio político e cultural de uma<br />
elite conectada com interesses internacionais que<br />
oficializa a arte que lhe interessa e marginaliza<br />
qualquer tentativa de diferença.<br />
Talvez o melhor exemplo dessa prática tenha<br />
sido a política adotada pela ditadura militar depois<br />
do golpe de1964. Se por um lado o governo militar<br />
implanta a censura e a repressão à produção<br />
ideologicamente contrária ou crítica ao regime<br />
opressor, por outro foi o regime militar um grande<br />
financiador da arte brasileira. É nesse período que<br />
é criado – como já havia acontecido na ditadura<br />
anterior, a de Vargas – o aparato institucional, e a<br />
dotação orçamentária, que até hoje dita às regras<br />
da política cultural no Brasil, instituições como a<br />
FUNARTE, EMBRAFILME, Conselho Federal de<br />
Cultura, Instituto Nacional do Cinema, Pró-Memória,<br />
que, ainda sobreviventes ou remodeladas em outras<br />
siglas (juntamente com outras entidades oficiais<br />
criadas posteriormente que também) permanecem<br />
na estrutura do Estado brasileiro.<br />
Se não é possível afirmar que os governantes<br />
da ditadura militar eram intelectuais preocupados<br />
em criar incentivos estatais para a produção artística,<br />
podemos especular que a criação desse aparato visava<br />
a utilização da produção de bens simbólicos para a<br />
legitimação do poder constituído.<br />
No discurso proferido pelo presidente Médici<br />
sobre a economia brasileira 13 , no início de seu<br />
governo, ele afirmou ser muito simples a política<br />
econômica dos militares, resumindo tal pensamento<br />
na frase “os ricos devem ficar mais ricos para que,<br />
por sua vez, os pobres possam ficar menos pobres”.<br />
É possível transpor esse pensamento para a política<br />
cultural da ditadura militar, aliás, para uma analogia<br />
mais razoável temos no Manual Básico da Escola<br />
Superior de Guerra 14 as diretrizes do tratamento<br />
dado aos meios de comunicação, ditando que quando<br />
estes forem “bem utilizados pelas elites constituir-seão<br />
em fator muito importante para o aprimoramento<br />
da Expressão Política; [mas quando] utilizados<br />
13 CNN, Para além de cidadão Kane. Vídeo-documentário.<br />
Londres: CNN, 1992.<br />
14 Departamento de estudos MBtin75,p. 121. Apud OR-<br />
TIZ, Renato A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense.<br />
2001.
tendenciosamente podem gerar e incrementar<br />
inconformismo”. Como no conceito de Gramsci, o<br />
controle serve para obter a hegemonia, que leva à<br />
liderança, que garante a dominação cultural, que<br />
funciona como matéria espiritual para se alcançar<br />
um consenso (re)ordenador das relações sociais.<br />
Renato Ortiz diz que, para a cultura brasileira, a Lei<br />
de Segurança Nacional não detinha apenas o poder<br />
de repressão, mas interessava-se no desenvolvimento<br />
de uma determinada produção cultural submetida à<br />
razão do Estado, reconhecendo as relações de poder<br />
na produção cultural e entendendo a produção<br />
cultural como benéfica quando circunscrita no poder<br />
autoritário15 .<br />
A ditadura militar fortaleceu economicamente<br />
a elite brasileira e ampliou o aparato institucional<br />
para controle ideológico dos meios de comunicação e<br />
fez o mesmo com a produção cultural, transformando<br />
a produção artística em aparelho ideológico para<br />
manter o conformismo na população e com isso<br />
atingir sem muito esforço a manutenção do poder<br />
político.<br />
Embora em ambiente hostil, artistas<br />
promoveram a resistência no seio das instituições<br />
culturais, como Artur Barrio que lançou em 1969 seu<br />
“manifesto contra as categorias de arte, contra os<br />
salões, contra as premiações, contra os júris, contra<br />
a crítica de arte (Manifesto Estética do Terceiro<br />
Mundo)”. Contra, portanto, o sistema de arte e suas<br />
categorias, considerando-as uma imposição aos<br />
artistas latinoamericanos. Barrio considerava sua<br />
situação econômica particular e dos artistas como um<br />
todo quando dizia que “no sentido do uso cada vez<br />
maior de materiais considerados caros para nossa,<br />
minha realidade, num aspecto socioeconômico de<br />
3º mundo (América Latina inclusive)”, e, ainda,<br />
avalia a imposição do uso de material importado ao<br />
dizer que “devido aos produtos industrializados não<br />
estarem ao nosso, meu, alcance, mas sob o poder<br />
de uma elite que eu contesto”, lança sua proposta<br />
libertária afirmando que “… a criação não pode estar<br />
condicionada, tem de ser livre”. E acrescenta num<br />
manifesto escrito à mão distribuído na abertura<br />
do II Salão de Verão, em 1970, que os Salões estão<br />
“desestimulando novos valores e revelando o que já<br />
deixou de existir há muito tempo” 16 .<br />
Para Barrio, a utilização de materiais caros e<br />
convencionais em trabalhos artísticos representava<br />
a continuidade dos “serviços” da arte ao gosto das<br />
elites, e em contraponto propõe materiais baratos e<br />
perecíveis para problematizar a questão econômica<br />
na arte. Fernando Cochiarale explica que “a partir<br />
15 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São<br />
Paulo: Brasiliense. 2001, p.116.<br />
16 BARRIO, Artur. Manifesto da estética do terceiro mundo<br />
In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a<br />
metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São<br />
Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000.<br />
96<br />
#estamos de greve<br />
da crítica a essa realidade socioeconômica, étnicopolítica<br />
e estética Barrio deduz, com uma clareza<br />
rara na arte brasileira, o eixo fundamental de sua<br />
singular poética: conspirar contra o gosto das classes<br />
dominantes - no campo em que essas exercem seu<br />
poder cultural e operatório (poder assentado na<br />
crença da existência de um campo verdadeiro e puro<br />
da arte) - pela utilização de materiais precários e<br />
perecíveis, colhidos nos rejeitos de nossos trânsito<br />
no fluxo da vida” 17 .<br />
“Trouxas de carne”, situação proposta por Artur<br />
Barrio para o evento “Do corpo à terra” 18 , é composta<br />
de pedaços de carne e ossos embrulhados em trouxas<br />
de pano espalhadas em espaços públicos, segue o<br />
princípio da transcendência da natureza cotidiana<br />
na qual se origina para a transposição de resquícios<br />
dessa vivência para o mundo da arte, onde, segundo<br />
Cochiarale, eles perdem a conotação da propriedade<br />
física, visual e, por vezes, olfativa para assumir um<br />
estatuto crítico19 .<br />
Para sua conspiração contra o gosto das elites,<br />
Barrio vai às ruas e intervém no cotidiano das cidades<br />
sem perguntar às pessoas se é isso que elas queriam.<br />
Age a partir da sua percepção da realidade, inclusive<br />
a econômica, usando os rejeitos da sociedade de<br />
consumo para fazer seu trabalho em relação direta<br />
com a sociedade. Paulo Herkenhoff diz que a atitude<br />
de Barrio sustentou dois debates: o primeiro pela<br />
liberdade de expressão na ditadura e o segundo<br />
contra a desigualdade de expressão no capitalismo. 20<br />
A consciência dos efeitos da economia<br />
mundial na economia e na produção artística latinoamericana<br />
somados aos aspectos socioeconômicos<br />
17 COCHIARALE, Fernando. Arte em trânsito: do objeto ao<br />
sujeito. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio,<br />
a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São<br />
Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000, p.17,18 e 19.<br />
18 Realizado no Parque Municipal de Belo Horizonte, em abril<br />
de 1970. “O evento Do Corpo à Terra durou três dias, durante<br />
os quais foram realizadas ações, rituais e celebrações tais como<br />
a queima de animais vivos por Cildo Meireles, a explosão de<br />
granadas coloridas por Décio Noviello, o lançamento de ‘trouxas<br />
ensangüentadas' por Barrio num ribeirão que corta a capital<br />
mineira, a queima de faixas de plástico com napalm por Luiz Alphonsus,<br />
trilhas de açúcar na terra por Hélio Oiticica ou o emprego<br />
de carimbos com frases de impacto por Teresa Simões. O<br />
crítico Francisco Bittencourt referiu-se a esse grupo de artistas<br />
como Geração Tranca-Ruas, e Frederico Morais, organizador do<br />
evento, no texto Contra a Arte Afluente: O Corpo É o Motor da<br />
Obra (Revista Vozes, 1970), afirmava: 'O artista hoje é uma espécie<br />
de guerrilheiro”. Apresentação Ernest Robert de Carvalho<br />
Mange In MORAIS, Frederico. Panorama das artes plásticas séculos<br />
XIX e XX.São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1991.<br />
19 COCHIARALE, Fernando Arte em trânsito: do objeto ao<br />
sujeito. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio,<br />
a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São<br />
Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000, p. 17,18 e 19.<br />
20 HERKENHOFF, Paulo Barrio – liberdade, igualdade e ira.<br />
In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora<br />
dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo:<br />
MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000, p. 26.<br />
dos artistas brasileiros é o que impulsiona o<br />
manifesto de Barrio, uma declaração da existência<br />
de imposições econômicas externas à arte e ao<br />
contexto da arte brasileira, inclusive imposição das<br />
indústrias de materiais artísticos. Ele reconhece a<br />
interferência na critica, nos júris, nas premiações, e<br />
nos salões que mantém a classificação e distinção das<br />
categorias das artes plásticas em pintura, escultura,<br />
desenho e gravura 21 ; e a contestação política, reflexão<br />
critica das relações de poder, ou mesmo proposições<br />
provocativas à reação e enfrentamento feitas direto<br />
ao público impulsionam a experimentação poética<br />
dos artistas plásticos durante os anos de chumbo.<br />
Se não de todos, ao menos de parte qualitativa e<br />
quantitativamente relevante de artistas atuantes<br />
nesse período.<br />
Ações e trabalhos classificados como ‘de<br />
resistência’ foram realizados por artistas desde a<br />
implantação da ditadura militar brasileira e da sua<br />
política cultural autoritária. Antônio Manuel faz,<br />
em 1968, “Imagens da violência”, em referência<br />
direta às imagens de conflitos entre a sociedade<br />
civil e o governo militar, um ano antes Carlos Zilio<br />
havia exposto “Lute (Marmita)”, uma marmita<br />
de alumínio, objeto do cotidiano de operários e<br />
outros trabalhadores assalariados, com um rosto<br />
anônimo em papier maché – a marmita é coberta<br />
com um filme plástico com a inscrição: LUTE. “Do<br />
It Yourself: freedom Territiry” (1968) [Faça você<br />
mesmo: território de liberdade], de Antônio Dias,<br />
apresentada no Museu Nacional de Arte Moderna<br />
de Tókio, é composto de demarcações no chão de<br />
espaços quadrados com adesivos (ou plotagem) de<br />
um metro de comprimento, formando um retângulo<br />
de 6×4 m., a proposição nos dá várias possibilidades<br />
de significações, inclusive a de provocação ao público<br />
do museu.<br />
Para fora do circuito oficial da arte, mas nem<br />
por isso fora da crítica ao sistema, Cildo Meireles<br />
veicula seus trabalhos em meios cotidianos e oficiais<br />
de uso popular, assim são suas “Inserções em<br />
circuitos ideológicos” – uma operação provocadora<br />
da ordem pública, interferência nas estruturas que<br />
simbolizam e garantem o poder estabelecido. Em<br />
1970 realiza o “Projeto coca-cola” – garrafas de cocacola<br />
com a inscrição “yankees go home”, em branco<br />
- frase que somente era vista quando as garrafas<br />
estavam cheias do refrigerante símbolo do poder<br />
do Imperialismo norte-americano – e na operação<br />
de Cildo, a mesma garrafa que difundia o império<br />
capitalista divulgava, como uma imprensa oculta<br />
também difundia a mensagem antiimperialista. Da<br />
mesma forma a mensagem “Quem matou Herzog?”<br />
carimbada em notas de cruzeiro de baixo valor agia<br />
21 E que hoje podemos acrescentar a fotografia, o vídeo e<br />
demais meios eletrônicos absorvidos sob o novo termo de Artes<br />
Visuais.<br />
contra a violação dos direitos individuais na ditadura.<br />
Na mesma direção provocativa, Carlos Vergara<br />
apresenta a obra “Fome” (1972) na ‘EX-Posição’,<br />
com as letras da palavra FOME escritas com grãos de<br />
feijão sobre algodão umedecido. Os grãos germinam<br />
e as letras se misturam, entrelaçam e perdem a forma<br />
original não podendo mais haver a leitura da palavra,<br />
referência direta ao slogan dos governos militares<br />
“em se plantando, tudo dá”.<br />
Esses artistas que trabalhavam com questões<br />
muito particulares do momento político brasileiro,<br />
distanciam a produção nacional da filiação à obra<br />
dos chamados ‘mestres’ consagrados pela história<br />
da arte universal, procedimento comum desde a<br />
vinda da missão francesa e a fundação da Academia<br />
Nacional de Belas Artes que se constitui através do<br />
estudo dos códigos de representação utilizados pelos<br />
artistas consagrados pela “história da arte” para<br />
depois atualizá-los... Ou seja: adaptá-los à temáticas<br />
locais, subvertê-los, contestá-los etc., procedimento<br />
moderno de produzir arte referendada na própria<br />
(história da) arte – arte pela arte. Ao se distanciar<br />
desses procedimentos, os artistas, os críticos e o<br />
público criam condições para que o ambiente artístico<br />
brasileiro subverta o interdito oficial e funcione como<br />
espaço vivo de debate e circulação de ideias, bem<br />
como de resistência política e cultural 22 .<br />
A emergênciA neocAbAnA<br />
“Na realidade, arrancado debaixo de canhões<br />
e baionetas alugadas a dom Pedro I, o acordo angloportuguês<br />
de falsa capitulação e rendição das forças<br />
coloniais portuguesas no Pará abafa e tira de cena<br />
a luta independentista do povo paraense coerente<br />
com sua antiga história em sempre pertencer a velha<br />
terra dos Tapuias ao grande país do Cruzeiro do<br />
Sul. (...) o Pará velho de guerra pegou fogo e o povo<br />
assumiu o poder em armas (1835-1836). Historiadores<br />
conservadores escondem os crimes do Império no<br />
genocídio dos cabanos (30 mil mortos numa população<br />
de, aproximadamente, 100 mil habitantes) sob falsa<br />
acusação de separatismo: na verdade, ao contrário,<br />
uma longa luta popular para a brava gente do norte ser<br />
brasileira de parte inteira.” José Varela Pereira 23<br />
Primeiramente, embora eu não vá fazer isso<br />
aqui, é necessário rever a historiografia regional e<br />
difundir a história do Grão-Pará antes e depois da<br />
“adesão” à independência do Brasil, se faz necessário<br />
que a população da região norte compreenda<br />
como nos tornamos a “Amazônia brasileira”. No<br />
momento que se compreende o processo histórico de<br />
incorporação do território do Grão-Pará, se evidencia<br />
a origem do sentimento de ‘não pertencimento’ em<br />
22 Tanto quanto nas artes cênicas e na musica. E viva Cacilda<br />
Becker!<br />
23 In http://viagemphilosophica.blogspot.com.<br />
br/2010/08/o-dia-que-o-grao-para-se-tornou.html
elação ao Brasil e podemos compreender melhor a<br />
sensação de que nós por aqui deixamos de ser colônia<br />
portuguesa para nos tornarmos colônia brasileira.<br />
Na Amazônia os contextos de produção artística<br />
são agravados pelo isolamento histórico da região, o<br />
processo de dominação que o Brasil sofre dos países<br />
industrializados, ele reproduz na região amazônica e<br />
impõe uma identidade artística nacional (única) que<br />
desrespeita a diversidade da produção regional e as<br />
formas de circulação de trabalhos artísticos.<br />
No período colonial, seja a colônia da monarquia<br />
portuguesa ou do império brasileiro, o reflexo da<br />
segregação também atinge a arte que, importada para<br />
o deleite da elite, é negada à maioria da população.<br />
João de Jesus Paes Loureiro afirma que do ponto<br />
de vista oficial da classe dominante sobre a cultura<br />
amazônica, e “refletindo a separação qualitativa<br />
entre o alto e o baixo, [a visão oficial] tem entendido<br />
rigidamente como alto a produção alienígena e,<br />
como baixo, a produção local, regional” 24 . E explica<br />
que no período da borracha, ápice na economia<br />
regional, consagrou-se esse modelo que legitima o<br />
‘importado’ como boa arte, relegando a produção<br />
local à sua própria sorte na luta por sobrevivência<br />
e afirmação. Esse entendimento chega aos anos de<br />
1980 como o que Paes Loureiro chama de ‘história<br />
trágica de uma queda’, que instituiu a marca da elite<br />
em depressão psicossocial – um estado psicossocial<br />
maníaco depressivo traduzido pela tristeza<br />
generalizada pela perda do refinamento artístico que<br />
o declínio econômico trouxe como consequência.<br />
Olhando de outra perspectiva, Osmar Pinheiro<br />
Junior afirma que o isolamento cultural da região em<br />
relação à produção artística brasileira, ou mesmo a<br />
de outro país, criou “formas agudas de esquizofrenia<br />
cultural”, pois na Amazônia “discutia-se questões<br />
de arte, sem obras, e caminhos sem referenciais,<br />
movimentos de arte sem cronologia, ou seja, sem<br />
história” (sic), resultado da “prática de uma elite<br />
sequiosa de diferenciação cultural, [que] determinou<br />
uma forma de estagnação cujas consequências se<br />
fazem sentir ainda hoje”. Para ele a história da arte<br />
amazônica é culturalmente dependente de modelos<br />
externos, uma “sucessão de episódios isolados sem<br />
nenhuma organicidade.” 25<br />
Osmar Pinheiro percebe nas coloridas pinturas<br />
de fachadas de casas, de embarcações, e em toda a<br />
produção de cultura na mestiçagem amazônica, a<br />
revelação de “condições particulares de uma outra<br />
ordem, onde não existe mercado de arte, onde<br />
o suporte da obra é a casa, o barco, o boteco, o<br />
24 PAES LOUREIRO, João de Jesus Por uma fala amazônica.<br />
In FUNARTE, As artes visuais na Amazônia, reflexões sobre<br />
uma visualidade regional. Rio de Janeiro/Belém: FUNARTE/<br />
SEMEC. 1985. p.112 - 122..<br />
25 PINHEIRO JR., Osmar A visualidade amazônica. In<br />
FUNARTE, As artes visuais na Amazônia, reflexões sobre uma<br />
visualidade regional. Rio de Janeiro/Belém: FUNARTE/ SE-<br />
MEC. 1985. p.51<br />
98<br />
#estamos de greve<br />
papagaio, o brinquedo. Onde o artista são todos…<br />
(...) Onde arte e trabalho são parte de um mesmo<br />
movimento cuja razão é o afeto; que quatro séculos<br />
de violência colonizadora não foram capazes de<br />
destruir.” 26<br />
Paes Loureiro acrescenta, ainda, que essa<br />
produção subalterna é nossa contracultura, forma de<br />
resistência. É uma inversão na ótica da exploração,<br />
já que propõe a apropriação da herança cultural do<br />
colonizador para que se ‘capture o capturante’, e a<br />
região passe “a ser vista por dentro, como quem olha<br />
‘da região’, e não como quem, mesmo de dentro, olha<br />
‘a região’.” 27<br />
Em outras palavras, a segregação, que foi<br />
marca da origem colonial, ainda é percebida como<br />
um colonialismo interno há cerca de vinte anos atrás,<br />
tanto na política cultural do Brasil pós-ditadura<br />
militar quanto na historiografia regional que legitima<br />
a versão da decadente elite local.<br />
A possibilidade de resistência cultural se<br />
apresenta, senão na hipótese improvável de se tornar<br />
pura, ao menos na consideração das nossas relações<br />
com a natureza, ordem social e seus símbolos, que<br />
nos livra da mordaça dos cânones modernistas e nos<br />
alforria daquilo que nada acrescenta para fazer soar<br />
a voz dos marginalizados no processo controlador de<br />
desenvolvimento regional.<br />
No nosso caso no Grupo Urucum, entendo<br />
como um voltar-se pra si que não exclua um expandirnos<br />
para os outros aliados às ações que visem à<br />
consciência de existência e possa contribuir com a<br />
mobilidade social de capacidade transformadora.<br />
Entendo esse movimento como o questionamento<br />
à autonomia moderna na instituição arte, percebida<br />
pela população como pertencente a um espaço<br />
separado e sem comunicação com outras esferas<br />
da vida que afasta a arte da sociedade para outro<br />
mundo onde a arte quer bastar-se em si mesma,<br />
essa separação a torna (ela, a arte) entorpecente e<br />
inofensiva.<br />
PArA A guerrA ou<br />
PArA A festA<br />
Macapá, capital do Estado do Amapá, ainda<br />
hoje não possui espaços físicos que lhe possa garantir<br />
um circuito de arte consolidado, apenas a galeria do<br />
SESC funciona regularmente e não há nenhum museu<br />
de arte. Tem, ainda, uma escola de artes plásticas<br />
que funciona com cursos livres de ensino de técnicas,<br />
outra de música, e o curso de licenciatura em artes<br />
visuais da Universidade Federal do Amapá. 28 Situa-se<br />
geograficamente na Amazônia oriental, na foz do rio<br />
26 Idem<br />
27 Obra citada.<br />
28 Criado em 1991 como licenciatura plena em Educação<br />
Artística do Núcleo de Educação de Macapá – NEM/UFPA<br />
Amazonas, sendo conhecida por ser a única cidade<br />
brasileira cortada pela linha do Equador.<br />
Urucum é palavra da linguagem indígena,<br />
uru’ku, ‘vermelho’, cuja polpa é usada como pigmento,<br />
e também evoca rituais dos povos indígenas, ditos<br />
primitivos, porque com ela se faz sulcos cor de<br />
sangue na pele e que é, ao mesmo tempo, identidade<br />
e diferença de quem pinta o corpo: para a guerra ou<br />
para a festa.<br />
Quando em 1996 eu fui para o Amapá o Grupo<br />
Urucum já existia, minha integração ao grupo<br />
acontece em 2001, quando retornava novamente<br />
para a cidade depois de passar uma temporada<br />
no Rio de Janeiro. Participei de alguns debates no<br />
atelier de trabalho do grupo onde discutimos sobre<br />
a política cultural do Amapá, as questões propostas<br />
na produção individual dos membros do grupo –<br />
inclusive na minha -, e sobre a realidade da cidade<br />
de Macapá. Como o grupo é formado pelas pessoas<br />
que dividem o espaço de trabalho naquele local,<br />
e eu não ocupei o espaço físico do Urucum para o<br />
desenvolvimento das minhas propostas individuais,<br />
a mim passou despercebido o momento em que fui<br />
reconhecido como parte integrante da comunidade.<br />
O grupo, que havia se formado como<br />
alternativa solidária para realização de propostas<br />
individuais na perspectiva de formação de mercado,<br />
e experimentava a criação coletiva em esculturas/<br />
monumentos, marcos comemorativos em Macapá e<br />
Kourou, na Guiana, 29 e planejava uma ação para a<br />
‘esquina das andorinhas’- cruzamento das avenidas<br />
Padre Julio Maria Lombaerd e Cândido Mendes, na<br />
área comercial de Macapá. É uma espécie de parada<br />
de descanso na rota migratória das andorinhas,<br />
fenômeno natural que gera um debate constante na<br />
cidade, inclusive de saúde pública, por deixar resíduos<br />
fecais nas vias públicas do centro de Macapá.<br />
Da realidade local e do debate público sobre<br />
as consequências do fenômeno natural da migração<br />
das andorinhas que param na cidade durante sua<br />
29 Encomendas oficiais por parte do governo estadual<br />
para esculpir totens, na realidade marcos-monumentos, com elementos<br />
da cultura amazônica na estação rodoviária de Macapá<br />
em 1999, e em 2000 para um entroncamento rodoviário entre<br />
Kourou e Cayenne, que é o símbolo da integração entre o Amapá<br />
e a Guiana, Brasil e França. Existe outro inacabado em Laranjal<br />
do Jarí, de 2002-03<br />
“os catadores de orvalho esperando a felicidade chegar”<br />
gruPo urucum<br />
rota migratória e afetam a vida urbana, fizemos<br />
uma ação: ocupamos a ‘esquina das andorinhas’<br />
espalhando penicos coloridos pelos quatro cantos<br />
das duas vias. Éramos “Os catadores de orvalho<br />
esperando a felicidade chegar” (titulo do trabalho),<br />
chegamos vestindo uniforme preto com touca de<br />
natação, meias brancas e óculos de descanso no<br />
mesmo momento que iniciou o “balé” do pouso das<br />
andorinhas na rede elétrica. Passamos a noite toda<br />
velando o descanso dos pássaros e movimentando<br />
cores na esquina, andando, dançando e mudando de<br />
posição para procurar o melhor lugar para acertar<br />
no alvo do penico a mira dos projéteis fisiológicos<br />
das andorinhas, a merda que gera o debate entre os<br />
ambientalistas e o poder publico e tanto incomoda o<br />
comércio e agências bancárias localizadas na esquina.<br />
Nossa presença e a falta de reconhecimento<br />
de objetivos práticos para aquela movimentação em<br />
torno das andorinhas resultou em interpretações<br />
diversas no público passante, e tensões que por<br />
pouco não resultaram em conflito. Tensão com o<br />
poder político-econômico, ao ser interpretado como<br />
ação da administração pública ou do comércio para<br />
afastar – ou matar – as andorinhas e seus dejetos da<br />
área comercial.<br />
Poética e política confundem-se na ação que<br />
provoca a reação popular ao poder constituído, e que<br />
quer transformar merda em orvalho e proporcionar<br />
o encontro da felicidade, a felicidade de presenciar<br />
a revoada das andorinhas, de parar na esquina<br />
para ver o que acontece, de reconhecer o diferente,<br />
de movimentar objetos coloridos pelos prédios<br />
cinzentos. Criamos um evento, uma tragédia –<br />
no sentido sociológico de quebra da rotina – que<br />
permitiu o deslocamento da percepção de alguns dos<br />
próprios habitantes sobre a realidade de Macapá.<br />
O cotidiano da cidade se torna matéria poética.<br />
Raoul Vaneigem trata da familiaridade entre a vida<br />
cotidiana e aquilo que a destrói, e diz que existe<br />
um momento definido historicamente, pela força<br />
e fraqueza do poder, de superação nessa relação, e<br />
que a superação está na realização do projeto de<br />
liberdade individual, construído pela subjetividade<br />
e espontaneidade, o modo de ser da criatividade,<br />
que é um estado de subjetividade. Para ele a poesia<br />
é a organização da espontaneidade criadora que a
difunde no mundo e gera novas realidades, gesto<br />
revolucionário por excelência30 . Mário Pedrosa<br />
identifica a integração da arte na vida social como o<br />
problema em questão, e a integração do homem ao<br />
seu trabalho e às relações sociais implícitas nesse<br />
processo, com isso criam-se as possibilidades da arte<br />
se afastar do circuito oficial – e dos seus agentes, e da<br />
lógica do mercado, para integrar-se na coletividade,<br />
dissolvendo o artista e a autoria da obra de arte na<br />
sociedade31 .<br />
Buscamos essa situação de inserção no corpo<br />
social, em outras palavras podemos até veicular os<br />
registros dos trabalhos em instituições culturais,<br />
mas as ações desenvolvidas pelo grupo visam atingir<br />
diretamente a população e suas questões, e assim<br />
colocamos nosso trabalho no debate [embate] das<br />
tensões da natureza do lugar em que vivemos.<br />
A população e seus anseios é a questão<br />
do “Mensagens vazias” 32 , realizado a partir<br />
do convite para uma intervenção na sala de<br />
experimentação da Casa das Onze Janelas - Museu<br />
de Arte Contemporânea do Pará. O convite partiu da<br />
curadora Rosely Nakagaw, consultora do Museu e o<br />
grupo aceitou fazer um trabalho para as ‘11 janelas’<br />
desde que não fosse uma obra, mas os registros de<br />
uma proposta de ação relacionada à vida amazônica<br />
realizada nas duas capitais da foz do rio Amazonas33 .<br />
Trabalhamos com a ideia de evento, e mais<br />
especificamente da festa, mas na fissura temporal, na<br />
passagem… onde não podemos definir exatamente<br />
em que ano estamos.<br />
Instalamos-nos próximo à Fortaleza de São<br />
José de Macapá durante a passagem de ano, de<br />
2002 para 2003, e abordávamos as pessoas pedindo<br />
que escrevessem seus desejos em pedaços de papel<br />
para colocar esses bilhetes em garrafões que foram<br />
lançados ao rio Amazonas. Integrada a essa ação<br />
criamos uma instalação/ intervenção com garrafas<br />
vazias na área de Santa Inês durante a maré seca<br />
- que também foram levadas pelo movimento de<br />
maré -. Aqueles que aceitavam a sedução do grupo<br />
terminavam por compartilhar seus desejos com<br />
outros desconhecidos, misturando pedidos, vontades<br />
e desejos íntimos aos desejos também secretos de<br />
todos os outros. Independente de credos, origem<br />
social ou étnica, os transeuntes transformaram os<br />
garrafões numa grande integração dos anseios do<br />
povo de Macapá.<br />
O real e a representação são parte do jogo<br />
proposto pelo grupo. Se a arte sintetiza emoções<br />
através de sua representação, nós convocávamos<br />
30 VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações.<br />
São Paulo: Conrad. 2002. (Col. Baderna) p. 175 – 214<br />
31 PEDROSA, Mario Mundo, homem, arte em crise. p. 87.<br />
32 Concebido em conjunto com a poeta Josete Lassance.<br />
33 Não sabemos os motivos pelos quais esses registros<br />
nunca foram expostos na sala para o qual foi concebido à convite<br />
do próprio museu.<br />
100<br />
#estamos de greve<br />
todos a exporem suas emoções ao escreverem seus<br />
desejos e com isso relembrarem os motivos que os<br />
fazem desejar. O sentimento não é mais escamoteado,<br />
está todo aqui no momento do agora! Dessa forma não<br />
emolduramos representações, mas engarrafamos as<br />
emoções da população em um escambo onde a arte<br />
está no campo da vida – não se trata de trazer a vida<br />
para a arte, mas confundi-las – e ao se completarem<br />
caminham para o domínio do real e não mais da<br />
representação.<br />
A postura é inversa à garrafa do gênio que<br />
surge da fumaça para realizar seus desejos, aqui você<br />
os coloca nas garrafas, as garrafas vão para o rio e é<br />
você quem pode realizá-los.<br />
Sobre o real e a representação do real Claude<br />
Levy-Strauss observa na arte dos Caduceus uma<br />
operação diferenciada dos estudos artísticos<br />
europeus, de percepção e representação (inclusive<br />
a mimética) do real, os caduceus, como a maioria<br />
dos povos autóctones, pinta, ou grava em tatuagens,<br />
sobre o corpo em carne e osso – diretamente no real.<br />
Da observação straussiana, Mario Pedrosa reflete<br />
sobre a diferença de atitude entre os povos (ditos)<br />
primitivos e a concepção de arte européia: a tradição<br />
artística ocidental tende para a representação do real,<br />
enquanto a manifestação e manipulação simbólica<br />
das sociedades tribais intervêm no corpo, no real 34 .<br />
Já Richard Huelsenbeck, no manifesto Dadá de 1918,<br />
apontava para a necessidade de uma prática cultural<br />
de caráter libertário no seio da sociedade, para ele “a<br />
arte, para sua execução e desenvolvimento, depende<br />
do tempo no qual vive”, e que a arte maior será aquela<br />
que apresentar conteúdos conscientes dos múltiplos<br />
problemas de seu tempo, “aquela que se fará sentir<br />
como sendo sacudida pelas explosões da semana<br />
precedente, aquela que tenta se recompor depois<br />
das vacilações da noite anterior”, pois pra ele os<br />
artistas são um produto de sua época, e “os melhores<br />
e mais insólitos artistas são aqueles que a qualquer<br />
momento arrancam pedaços do próprio corpo, do<br />
caos da catarata da vida e os recompõe”.<br />
Na experiência coletiva vivenciada pelo<br />
Grupo Urucum a arte se aproxima das questões<br />
cotidianas daqueles que se envolvem no trabalho, e<br />
por isso mesmo tende a atingir diretamente a vida<br />
dos membros da comunidade e tornar-se reflexo da<br />
sociedade em contrapartida da ideia de arte como<br />
produto de gênios criadores que vivem em um mundo<br />
inalcançável aos ‘seres comuns’.<br />
A concepção é da arte com função social,<br />
como pregava Huelsenbeck, em contrapartida da<br />
doutrina da arte pela arte, que Benjamim identifica<br />
como antecessora da ‘teologia negativa’ da arte sob<br />
a forma de arte pura, a arte que rejeita toda função<br />
34 PEDROSA, Mario Mundo, homem, arte em crise. p.<br />
222.<br />
social e determinação objetiva 35 e ele mesmo já havia<br />
dito, em relação às práticas dadaístas, que “o menor<br />
fragmento autêntico da vida diária diz mais do que a<br />
(representação pela) pintura” 36 .<br />
À formulação de exigências revolucionárias na<br />
política artística, que Benjamim propõe na introdução<br />
da ‘A obra de arte na época de sua reprodutibilidade<br />
técnica’ 37 , e que já estavam no manifesto dadaísta,<br />
encontra ressonância em Jean-Jacques Lebel, que<br />
aponta com a possibilidade de falar de arte e política<br />
em termos dionisíacos. Sem importar-se se é uma<br />
formulação legítima, ele conceitua anarcodadaísmo<br />
como ‘um sentimento de alegria que faz dançar’.<br />
Para ele é necessário dadaizar “o discurso e a ação<br />
revolucionários, conferindo-lhes um corpo” 38 . Lebel<br />
reclama do ‘reino da ordem mortífera’, com que<br />
chama a calma absoluta, a glaciação, provocada pela<br />
submissão resignada obtida por narcose medial,<br />
e aponta o incentivo musical, poético, artístico e<br />
filosófico à dança (no sentido anarcodadaísta) como<br />
alternativa à imobilidade social, “de modo que essa<br />
[sociedade] possa recomeçar a dançar os próprios<br />
desejos, em vez de negá-los ou militarizá-los” 39 .<br />
Mesmo que a historia da arte, o manifesto<br />
dadaísta ou mesmo os textos de Lebel sejam<br />
desconhecidos da maioria dos integrantes do Grupo<br />
Urucum, e que o debate público, a mobilidade social<br />
e outros preceitos artísticos ditos revolucionários<br />
estão presentes nas ações do grupo, bem como a<br />
intenção de agir no seio da sociedade e de que nossos<br />
trabalhos tenham ressonância social. O caminho<br />
para que essas coisas aconteçam é que foi diferente<br />
daqueles pressupostos para legitimação artística – o<br />
que construímos foi a poética como referência social.<br />
Sinto como se tivéssemos trilhado o caminho oposto<br />
para convergir pro mesmo ponto, porém é como<br />
se a consciência de que não foi o caminho da arte<br />
potencializa a ação....<br />
Entenda este texto como anotações para<br />
construções teóricas que virão no futuro, o que me<br />
interessa aqui é dizer que isso tudo não precisa ser<br />
arte porque está vivo na sociedade enquanto a arte<br />
está morta em paredes de museus – pra mim é<br />
resistência política e cultural.<br />
35 BENJAMIM, Walter Obras escolhidas: magia e técnica,<br />
arte e política.Vol.I. São Paulo: Brasiliense. 1994.p.171.<br />
36 Idem.<br />
37 Idem<br />
38 LEBEL, Jean-Jacques. Dadaizar a sociedade. In Revista<br />
Libertária. São Paulo: Imaginário, janeiro de 1998<br />
39 Idem.<br />
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divisória – imaginária<br />
MARISA fLORIDO<br />
Ao meio- dia do equinócio a incidência do sol -<br />
aqui na linha do equador - é vertical, 90º em relação<br />
à Terra, a sombra não existe ou oculta-se sob o corpo,<br />
não extrapola o espaço do corpo (por isso o titulo<br />
da minha tese é "Pra pisar na própria sombra"). É<br />
um momento ínfimo, impossível de ser medido, esse<br />
em que ficamos sem sombras nos equinócios... 1<br />
Arthur Leandro (Grupo Urucum, Macapá)<br />
Macapá, no último Equinócio de outono. O sol,<br />
em seu movimento aparente, intercepta o equador<br />
celeste. O Grupo Urucum borda em linhas vermelhas,<br />
sobre lenços brancos, as palavras: Divisória e Imaginária.<br />
Estão todos sentados sobre o monumento que<br />
desenha, sobre o corpo terrestre, a abstrata linha do<br />
Equador, o marco zero que reparte o mundo em dois.<br />
Indiferente às simbologias imaginárias que<br />
essa divisão constrói, a vida escorre lentamente na<br />
ponta da agulha. Os bordados desconhecem históricas<br />
rivalidades ou geografias fixas circunscritas de<br />
exclusões ou de pertencimentos: sobre o tecido branco,<br />
o mundo não se separa em binários norte/sul,<br />
ricos/pobres, o eu/o outro. Ao largo das grandes disputas<br />
mundiais, dos poderes e privilégios autorizados,<br />
das grandes verdades e racionalizações modernas,<br />
o cotidiano parece tecer-se apenas de pequenas<br />
suposições.<br />
E de morar no norte pertencendo ao sul, se o<br />
mundo é dividido aqui na fronteira não entendemos<br />
isso, talvez estejamos numa parte ainda impossível<br />
de qualificar nesse mapa. Temporalidades e<br />
territorialidades estranhas, alheias! Contudo tão<br />
próximas... 2<br />
No Equinócio, a duração do dia iguala-se à da<br />
noite. Ao meio-dia, suspende-se a dialética de luz e<br />
sombra. Esta não se inclina para lado algum, nem ao<br />
norte, nem ao sul. Sem sombras, ou circunscrito o<br />
seu contorno, o corpo parece situado em seu próprio<br />
eixo enquanto transita pelo mundo nas fissuras ínfimas<br />
do espaço e do tempo, em suas geografias circunstanciais.<br />
Nesse espaço/tempo fronteiriço, intersticial,<br />
emergem figuras complexas de alteridade<br />
e estranhamento, temporalidades e espacialidades<br />
1 Carta eletrônica enviada por Arthur Leandro, artista<br />
paraense integrante do Grupo Urucum em Macapá, onde leciona<br />
na Universidade Federal. Foi doutorando na Pós-graduação em<br />
Artes Visuais, na EBA/UFRJ. Esta, assim como as demais citações<br />
e fotografias de trabalhos que constam deste texto me foram<br />
enviadas por artistas de diversas localidades do país, quase sempre<br />
pela internet, no decorrer destes últimos dois anos.<br />
2 Ibidem.<br />
102<br />
#estamos de greve<br />
fortuitas e contraditórias que colocam a necessidade<br />
de se transpor as polaridades e subjetividades originárias<br />
para acolher a diferença e o alheamento em<br />
sua fenda.<br />
As imagens do evento circulam pelas redes eletrônicas:<br />
signos que chegarão a outros locais, outros<br />
contextos, outros sistemas. Alcançarão, quem sabe,<br />
latitudes do orbe em que as noites são longas e frias,<br />
que desconhecem um Estado brasileiro chamado<br />
Amapá, que ignoram esse estranho idioma chamado<br />
português.<br />
Apenas as palavras: Divisória e Imaginária.<br />
Permanecendo separadas, bordadas sobre dois círculos<br />
que não se interceptam.<br />
fronteirAs mÓveis<br />
As especulações contemporâneas cedem um<br />
lugar de destaque à fronteira. Nela, as delimitações<br />
geopolíticas desvelam-se nebulosas e contestáveis.<br />
As identidades fechadas dos Estados-nações, da cultura,<br />
da língua, de povo, de território, das etnias, exibem-se<br />
como ficções da totalidade. Estratégias das<br />
grandes narrativas modernas, da razão iluminista.<br />
Os poderes que a controlam, e exilam o estrangeiro,<br />
reforçam o seu aparato coercitivo na proporção em<br />
que a fronteira se torna a arena de conflitos, mas<br />
também de perigosos, complexos e ricos intercâmbios.<br />
Suas instituições disciplinadoras parecem não<br />
deter movimentos cada vez mais nômades: circulam<br />
não só migrantes, como também o capital global, as<br />
imagens do mundo pela mídia, as informações processadas<br />
e emitidas pelas novas tecnologias.<br />
Os antigos repertórios que supunham homogeneidades<br />
cerradas, dicotomias mistificadoras (como<br />
o civilizado e o selvagem, o nacional e o estrangeiro, o<br />
mesmo e o outro, o público e o privado, o indivíduo e<br />
a sociedade), grandes estruturas coerentes de decodificação<br />
de uma cultura e de uma sociedade, - velhas<br />
coleções desbotadas e erodidas - não dão conta de responder<br />
à complexidade da vida contemporânea. Sequer<br />
de enunciar a pergunta apta a interrogar nossa<br />
perplexidade diante destas épocas e suas identidades<br />
“diacrônicas”, destas disjunções e descontinuidades<br />
no tempo e no espaço. São simultaneamente desterritorializações<br />
e “territorialidades estranhas e alheias”:<br />
fragmentações e heterogeneidades que se mesclam<br />
e se reconstroem sem cessar. Algo se passa nas<br />
fronteiras de nossa percepção do mundo, do outro,<br />
de nós mesmos.<br />
Se as fronteiras desejam preservar as identi-<br />
dades, também são epidermes porosas nas quais as<br />
contaminações ocorrem. Ali, as identidades se tornam<br />
mutáveis e instáveis: se fundem, se metamorfoseiam<br />
e se extraviam em fugas imprevisíveis. “É<br />
um momento ínfimo, impossível de ser medido,<br />
esse em que ficamos sem sombras nos equinócios”,<br />
escreve o artista do Urucum. Se atravessarmos as<br />
fronteiras, elas também nos atravessaram: fronteiras<br />
“portáteis” 3<br />
, diz Fredrik Barth; “hibridismos<br />
e interculturalidade” 4<br />
, conclui Nestor García Canclini.<br />
As fronteiras são móveis, e isto implica que, se o<br />
Outro não pode ser mais “reificado como absoluto”<br />
– como uma ontologia negativa da qual derivaríamos<br />
as identidades essencialistas e autênticas -, é porque<br />
vivemos uma espécie de complexa pluralidade cultural<br />
e polissêmica. Não só coexistem mundos diversos,<br />
mas principalmente estes se relacionam por “inúmeros<br />
entrecruzamentos” 5<br />
, como revela Barth, por<br />
“alianças fecundas” 6<br />
, como reitera Canclini.<br />
A supressão de um sistema hegemônico permite-nos<br />
fazer emergir espacialidades alheias, diversas<br />
temporalidades, acontecimentos e narrativas<br />
pequenas,ou discretas, como percebe Canclini. Permite<br />
que bordados sutis da vida cotidiana participem<br />
do universo (antes erudito e excludente) da Arte.<br />
O homem desloca-se por várias teias que se<br />
interconectam, “participa de universos de discurso<br />
múltiplos, mais ou menos discrepantes”, reconstruindo-se<br />
nos contatos ao qual é exposto. Percorremos<br />
vários mundos e camadas da vida, pertencemos a<br />
3 BARTH, Fredrik. Apresentação. In: O guru, o iniciador,<br />
e outras variações antropológicas. Org. Tome Lask. Rio de<br />
Janeiro: Contra Capa, 2002. p.21.<br />
4 CANCLINI, Néstor García. Notícias recientes sobre la<br />
hibridación. In: Arte Latina, cultura, globalização e identidades<br />
cosmopolitas. Org. Heloísa Buarque de Holanda e Beatriz Rezende.<br />
Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005. p.60.<br />
5 BARTH, Fredrik. Op.cit. p.217.<br />
6 CANCLINI, Néstor García. op.cit. p.64.<br />
“Divisória Imaginária”<br />
gruPo urucum<br />
múltiplos grupos, desempenhamos diversos papéis,<br />
por uma subjetivação processual e aberta, em um<br />
mundo fluidamente interconectado: a fronteira deixa<br />
de ser uma barreira, um muro, e passa a ser o espaço<br />
e o tempo liminar de intercâmbios e contaminações.<br />
Logo, surgem as questões: Como nos situar em meio<br />
à heterogeneidade? Como perceber as relações de<br />
novos sentidos que se reconstroem nas mesclas?<br />
Se aos habitantes das zonas fronteiriças, como<br />
o Grupo Urucum, fosse indagado sobre sua identidade<br />
(étnica, nacional, de classe, de hemisfério), não<br />
ocorreria uma palavra (apenas) que a definisse: ou<br />
ela foi suprimida de seu vocabulário ou coloca múltiplas<br />
designações em constante atualização: “E de<br />
morar no norte pertencendo ao sul, se o mundo é dividido<br />
aqui na fronteira não entendemos isso, talvez<br />
estejamos numa parte ainda impossível de qualificar<br />
nesse mapa...”<br />
E longe dos centros que continuam devaneando<br />
sobre sua Origem, sua Loba-mãe, sua Roma extraviada,<br />
as margens demonstram que metamorfoses<br />
ocorrem de ambos os lados. Remo ousou atravessar a<br />
fronteira e foi assassinado pelo irmão Rômulo. Quais<br />
assassinatos hoje nos ocorrem? Que estranha fronteira<br />
é esta que nos constitui, já que atravessamos<br />
tramas distintas que se interceptam, vários contextos<br />
em que representamos vários papéis, em que criamos<br />
nossos próprios percursos transversais de significação?<br />
Algo similar ocorre às inquietações subentendidas<br />
nas experimentações artísticas atuais em todo<br />
o país. Há um interesse, no momento, pela constituição<br />
de uma rede orgânica e descentralizada de<br />
artistas de todo o país, ou atuando em projetos coletivos,<br />
em um sistema de trocas, ou em iniciativas<br />
individuais ainda que de algum modo conectadas.<br />
Comunicando-se, principalmente pelas redes eletrônicas,<br />
eles atuam tanto nas ruas das cidades, como
em suas casas, onde vivem, trabalham, recebem e<br />
hospedam outros artistas, onde abrigam exposições<br />
de arte. Eles intervêm, enfim, naquela que foi por<br />
tradição, a arena dos conflitos e da convivência de<br />
complexas diferenças: a cidade; e naquele que foi o<br />
espaço da intimidade doméstica, abrigo metafórico<br />
da interioridade do sujeito e das relações familiares,<br />
a casa. Como escreve a curadora Juliana Monachesi,<br />
“a potência maior da arte contemporânea está na rua<br />
ou está na casa – duas possibilidades não antagônicas<br />
de encontro, troca e afeto. (...) do ponto de vista<br />
do museu, a rua é a casa também. Teríamos chegado<br />
a um descompasso tal que a epifania da arte só não é<br />
mais possível em espaços tradicionais?” 7<br />
.<br />
Tais experiências vêm colocando em questão<br />
o que pode ser considerado como esfera pública e/<br />
ou privada, e como dimensão estética, quais os campos<br />
por elas interceptados, o que elas determinam.<br />
Ao ensaiar o engendramento de outros modos de<br />
convivência, impõem a redefinição do sentido de coletividade,<br />
e explicitam que a arte só pode ser compreendida<br />
como “um ângulo de visão ou um modo de<br />
apreensão que só se abre em e por meio de um coabertura<br />
com outro” 8<br />
, tal como a define Jean-Luc<br />
Nancy. São fronteiras móveis, erguidas e diluídas na<br />
co-abertura com outro.<br />
conclusão<br />
Este texto é um rascunho, impregnado de<br />
dúvidas e imprudências. É a reunião de observações<br />
tecidas a partir de contatos com alguns artistas. Contatos<br />
realizados pessoalmente, por trocas freqüentes<br />
de e-mails e por conversas ao telefone. E, uma vez<br />
que essa articulação dos artistas em redes é bastante<br />
recente, se tentássemos extrair destas, um traço comum,<br />
seria essa zona fronteira, esse busca de novos<br />
modos de endereçamento ao outro não-absoluto,<br />
mas inscrito em contingências e particularidades.<br />
A arte como fronteira é uma superfície de contato:<br />
um entre-dois, um entre-lugares, entre-dispersões,<br />
entre-outros, múltiplos. Essa zona liminar que, se<br />
afasta o estranho, também adere ao seu desconhecimento<br />
e à sua revelação. Uma senda/fenda relativa<br />
e relacional nos re-agenciamentos dos processos de<br />
intersubjetivações.<br />
104<br />
(........)<br />
7 MONACHESI, Juliana. A casa onírica. In: Catálogo da<br />
exposição realizada no Espaço Cultural Fernando Arrigucci,no<br />
período de 26 de abril a 11 de maio de 2003, em São João de Boa<br />
Vista, São Paulo.<br />
8 NANCY, Jean-Luc.Uma Conversa. In: Arte & Ensaios<br />
8, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais<br />
EBA/UFRJ. Rio de Janeiro: 2001. p. 146.<br />
#estamos de greve<br />
Qual o papel da arte?" Qual é o lugar que esta<br />
pode ainda ocupar no mundo em que vivemos?<br />
Talvez no lapso do desejo, responderia o Urucum.<br />
Nas mensagens vazias como resposta ao Tempo.<br />
No lapso do desejo. Resposta ao tempo:<br />
Grupo Urucum recolhe desejos e envia “Mensagens<br />
Vazias”<br />
Instalados próximo à Fortaleza de São José durante<br />
o réveillon para 2003, os artistas do Urucum<br />
abordavam as pessoas pedindo que escrevessem seus<br />
desejos para colocar os bilhetes em garrafões que<br />
foram lançados ao rio. Integrada a essa ação criaram<br />
uma instalação/ intervenção com garrafas vazias na<br />
área de Santa Inês durante a maré seca, também<br />
levada pelo movimento de maré.<br />
Mensagens Vazias” faz parte de uma intervenção<br />
proposta para a Casa das 11 Janelas, que<br />
é o Museu de Arte Contemporânea do Pará, o<br />
grupo aceitou fazer um trabalho para a sala de<br />
experimentação do Museu desde que não fosse<br />
uma obra, mas os registros de uma proposta<br />
poética relacionados à vida amazônica, para<br />
realização nas duas cidades. Daqui de Macapá<br />
aqueles que aceitavam a sedução do grupo terminavam<br />
por compartilhar seus desejos com<br />
outros desconhecidos, misturando pedidos,<br />
vontades e desejos íntimos aos desejos também<br />
secretos de todos os outros. Independente de<br />
credos, origem social ou étnica, os transeuntes<br />
transformaram os garrafões numa grande integração<br />
dos anseios do povo de Macapá.<br />
A população correspondeu às abordagens<br />
dos artistas, ainda que houvesse aqueles que,<br />
desconfiados, perguntavam se era pago ou se<br />
tratava de feitiçaria. (...) Mas como no jogo dos<br />
desejos realizados pelo gênio, o Urucum também<br />
tem um correspondente hipotético, alguém<br />
que vai olhar para essas garrafas n’água<br />
como algo mais do que sucata, mesmo que a<br />
temporalidade desse achado não possa ser determinada.<br />
E se este alguém se dispuser a se<br />
corresponder com os desejos da cidade de Macapá,<br />
completará o ciclo da comunicação, mas<br />
quem sabe ainda assim será com mensagens<br />
vazias”.<br />
Jornal de Macapá, Janeiro de 2003<br />
Como o Divisória-Imaginária, Mensagens Vazias<br />
escolhe uma ocasião, um hiato na circularidade<br />
do tempo: o Equinócio lá, a passagem do ano ali - o<br />
intervalo de tempo correspondente a uma revolução<br />
completa da Terra em torno do Sol como aos desejos<br />
de uma renovação da vida. Atuando em duas cidades,<br />
Belém e Macapá, e ainda convidando outras cidades<br />
litorâneas ou ribeirinhas a participar da ação 9<br />
, operam,<br />
assim, em um tempo transitivo na ubiqüidade<br />
do espaço.<br />
Em ambos os casos [Divisória-imaginária e<br />
Mensagens Vazias] trabalhamos com ritos de passagem,<br />
com a sensação de não estar em 2002 e nem<br />
em 2003, mas apenas no lugar do desejo. 10<br />
O presente deixa de ser o momento de torção<br />
entre o passado e o futuro, entre signos já compartilhados<br />
e sua atualização, para ser o intervalo ampliado<br />
e descentrado da experiência. E a experiência<br />
da vida não pode ser reduzida nem a uma distinção<br />
entre o que pode ser mostrado e o que deve ser oculto<br />
– entre o público e o íntimo –, nem circunscrita à sua<br />
inversão moderna que revelou como o oculto pode<br />
ser rico e múltiplo em situações de intimidade.<br />
Ao convidar as pessoas na passagem do ano a<br />
expor seus desejos mais secretos e enviá-los a estações<br />
e destinos desconhecidos, o Urucum incita-os a<br />
um rito de iniciação extraterritorial e intervalar, a um<br />
trânsito intersticial que ignora polaridades e identidades<br />
primordiais e fixas, que subverte as leis duais:<br />
as muitas dimensões da vida possuem e conectam-se<br />
por intermitências. O que é rico e múltiplo não habita<br />
a interioridade, mas se constrói nas permutas com<br />
a exterioridade. A ação do grupo chama cada um na<br />
9 O convite era geralmente feito via e-mail. Não temos<br />
informações se outros grupos ou artistas concordaram em participar<br />
da ação.<br />
10 Relato de Arthur Leandro sobre as ações realizadas<br />
pelo grupo Urucum.<br />
“Mensagens vazias”<br />
gruPo urucum<br />
praia amapaense, no réveillon equatorial, a inscrever<br />
a existência nos deslocamentos do desejo. Pois este<br />
opera no lapso: de um outro tempo e de um outro<br />
lugar, de um adiamento e de um deslocamento da alteridade.<br />
A tensão do desejo rasga e exibe o espaço de<br />
cisão de uma identidade como reflexo de um outro.<br />
O Urucum, ao convocar a pequena multidão a uma<br />
publicação, explicita o artifício ilusório da existência<br />
solipsita. Existir não é refugiar-se em sua consciência<br />
de um Eu privado, não é refugiar-se no teatro interno<br />
em que o sujeito é o único espectador solitário.<br />
É uma demanda, uma evocação a manifestar-se para<br />
o fora, adquirindo existência e sentido, colocando-se<br />
sob o olhar de sua alteridade e estendendo-se a ela.<br />
É a marca desse lapso que as garrafas contêm,<br />
mas como estratégia de sobrevivência, para que as<br />
vozes polissêmicas e dissonantes da Amazônia se<br />
enunciem em seu próprio nome, tanto sem o enquadramento<br />
autorizado do poder, como no desejo<br />
de encontrar e misturar-se a outras vozes e segredos<br />
de local e data imprevistos. As mensagens chegarão<br />
vazias a algum posto incidental que renova e irrompe<br />
a atuação tanto do tempo circular dos rituais, o tempo<br />
mágico dos feitiços, quanto do tempo linear das<br />
causalidades e finalidades. Um “entre” que deverá<br />
ser preenchido – ou não – pelos desejos de outros.<br />
Mas, cuja garrafa encerra, sem dúvida, o desejo por<br />
uma renovação criativa da existência.
flor manifesto<br />
LEANDRO HAICk<br />
A Flor Manifesto surge de uma necessidade<br />
de comunicar, de elevar a voz na cidade, como<br />
uma forma de grito na rua, sendo que a imagem<br />
é a prioridade desse acontecimento, servindo<br />
de canal para esta comunicação aberta - digo<br />
aberta por entender que o outro, o transeunte,<br />
o espectador andarilho, pode e deve fazer<br />
suas significações sobre aquilo que vê, dentro<br />
de sua própria perspectiva. O surgimento<br />
dessa performance é oriunda de algumas<br />
necessidades; uma delas é a acadêmica, que, à<br />
época da disciplina que cursava (Performance),<br />
exigia a criação de uma performance livre, a<br />
critério do aluno; uma necessidade pessoal, pois<br />
embora sendo um acadêmico, sou um indivíduo/<br />
performer inquieto com o meio em que vivo, e<br />
tenho a ânsia de articular pensamentos junto<br />
com o coletivo. Nesse mesmo contexto surgiame<br />
a incomodação da não-atitude com relação<br />
a ausência de ações públicas que manifestassem<br />
o descontentamento em relação a uma série<br />
de questões diante das quais a sociedade se<br />
encontra aflita, mas, no entanto, limita-se a se<br />
queixar nas rodas de conversa, nas mesas de<br />
bares, dentro de suas casas; uma indignação<br />
comportada na cama da acomodação, como algo<br />
106<br />
#estamos de greve<br />
que lhes protegesse de alguma forma. Isso me<br />
incomodava muito, como nós não tivéssemos<br />
alguma liberdade de expressão para preencher<br />
as ruas onde todos os dias, debaixo de um sol de<br />
labuta, não pudéssemos nos fazer perceber. E<br />
por essas inquietações surgia a Flor Manifesto; e,<br />
usando uma expressão que os mais próximos se<br />
referem ao meu respeito, “o homem kamikaze”, é<br />
que eu me arvorei em utilizar do meu corpo como<br />
forma de manifestação dos meus pensamentos<br />
inquietantes, algo que também não é raro,<br />
dentro de minhas experimentações artísticas e<br />
performáticas. Mas para a Flor Manifesto cair na<br />
avenida foi necessário reunir alguns signos, de<br />
forma que tornasse real e contundente o seu ato.<br />
São eles: A flor de papel/poema, o nu, o trajeto<br />
santo urbano.<br />
A flor de papel/poema, imprime a ideia da<br />
segunda pele, como se fosse uma espécie de<br />
armadura surreal, uma utopia vestida que,<br />
ao invés de faixas com dizeres panfletários,<br />
as flores simplesmente ficariam penduradas<br />
neste corpo “kamikaze” à espera da leitura de<br />
quem as pegasse, ou somente sendo observadas<br />
efemeramente, sendo que no trajeto percorrido<br />
elas seriam oferecidas, através de uma pergunta:<br />
você aceita o meu manifesto? A abordagem, seca<br />
e direta, sem espaço para alguma hesitação, e<br />
quem a tomasse como sua teria como resposta um<br />
poema metafórico, que dialoga com a sociedade,<br />
chamando atenção para os valores simples da<br />
natureza do homem, os direitos humanos e a sua<br />
liberdade. O poema que me refiro é o Estatutos<br />
do Homem, do poeta manauara Tiago de Melo,<br />
um dos poetas mais influentes e respeitados,<br />
reconhecido como um ícone da literatura<br />
regional. Esse poema foi criado no exílio em<br />
que ele se encontrava, durante a ditadura, em<br />
Santiago do Chile, em abril de 1964. Além disso,<br />
o fato de que o outro tome a atitude de receber<br />
a Flor Manifesto o faz coparticipante da arte<br />
manifestada e do pensamento que ali está sendo<br />
proposto, sendo motivado pela curiosidade,<br />
ou por alguma forma de entendimento através<br />
da identificação. Confesso que não conhecia<br />
nem o poeta e muito menos o poema, mas um<br />
amigo filósofo, que sabia do meu trabalho,<br />
ofereceu-me de presente este achado e que sem<br />
dúvida nenhuma, caiu como uma luva. Setenta<br />
flores estiveram penduradas em meu corpo,<br />
mas somente dez foram aceitas, seguiram<br />
caminhando com outros corpos. Fracasso no<br />
resultado? Não, considerando que as flores<br />
eram uma extensão viva do meu corpo pensante,<br />
gritante, ambulante. A negativa, uma resposta<br />
de quem esteve de alguma forma comigo, uma<br />
recepção daquele que vê e sente, dentro do seu<br />
entendimento particular.<br />
O nu, “O corpo como meio de expressão artística”<br />
(Glusberg, 2008, p.51), a ação do performer<br />
acontece por gestos físicos e miméticos do<br />
cotidiano ou por ações que demonstrem seus<br />
pensamentos e sentimentos. Como não há uma<br />
fala verbal, a apresentação teatral é substituída<br />
por gestos e atitudes algo que é comum na<br />
performance. E em outros aspectos o corpo pode<br />
recriar significações.<br />
“O corpo nu, ou vestido, as transformações<br />
que podem operar-se nele, são exemplos das<br />
inúmeras possibilidades que se oferecem a<br />
partir do simples, do imprevisto trabalho com<br />
o corpo. Porém as performances e a body art<br />
particularizam o corpo, da mesma forma que<br />
o arquiteto particulariza o espaço natural e o<br />
transforma em espaço humano. A nudez é uma<br />
espécie de reencontro consigo mesmo, como uma<br />
forma de regresso ao ser primitivo, uma volta às<br />
origens. Ao mesmo tempo é lidar com o real, com
aquilo que as pessoas não estão acostumadas<br />
a falar, tocar no proibido; o corpo despido<br />
ainda é visto como segredo, algo tão intimo que<br />
não pode ser mostrado em público. E como a<br />
performance, o nu é visceral, quebra com a<br />
ilusão, é pele com pele, os poros estão totalmente<br />
abertos, para um possível caos instalado. “Não<br />
há proibição que não possa ser transgredida.<br />
Frequentemente uma transgressão é admitida,<br />
e, às vezes, até recomendada.” (Bataille, 1968,<br />
p.56) Muitas vezes a atitude de negação para<br />
quem observa é tão real que chega a assustar.<br />
Linguagens misturadas de um corpo nu: morte,<br />
transcendência, transgressão, indigência, sexo,<br />
carne, semiótica, satisfação, medo, manifesto,<br />
entre outros. Umas das intenções de expor o nu<br />
era de incitar na sociedade a exposição dos seus<br />
preconceitos, que na maioria das vezes se encontra<br />
velado, por de trás uma falsa educação ou de um<br />
comportamento politizado a favor das minorias.<br />
A flor manifesto na rua é quase um homem bomba<br />
para sociedade; a flor por sua vez é leve, suave<br />
e mais fácil de ser recebida. Mas poderia dizer<br />
108<br />
#estamos de greve<br />
também que este homem desnudo é a própria<br />
flor desabrochando a olhos nus, emanando seu<br />
odor extremamente forte sobre as pessoas. Vou<br />
para rua com alguns questionamentos, através<br />
de uma frase muito usada pelos antigos: guarde<br />
tua vergonha, menino! Se as pessoas não têm<br />
pudores de mostrar suas vergonhas (intolerância<br />
sexual, o preconceito racial, o desrespeito sobre<br />
a liberdade, sexual, religiosa, étnica e social),<br />
por que então eu teria vergonha de mostrar as<br />
minhas, que seria simplesmente o meu falo?<br />
Para maioria das religiões o corpo é algo sagrado,<br />
ou melhor dizendo, a sua alma, pois a carne é<br />
corrupta. O maior problema da humanidade está<br />
na fragmentação. Vemos a espiritualidade como<br />
algo de ordem superior, localizada da cabeça<br />
para cima ou acima dela e, em contrapartida,<br />
colocamos a sexualidade na esfera do inferior,<br />
situando-a da cintura para baixo. O corpo é<br />
visto como fonte de impurezas, típico de uma<br />
cultura judaico-cristã. Por isso que as pessoas se<br />
ofendem tanto sem pensar de fato o porquê de<br />
suas ofensas.<br />
O trajeto da “santa”, o homem que de sagrado<br />
não tinha nada sai na trajetória do percurso<br />
nazareno a olhos nu. O traslado do corpo nu<br />
ressignifica uma berlinda de carne e osso, de<br />
sentimentos e desejos, carregando em seu meio<br />
toda a minoria, os que vivem à margem, que<br />
sofrem de alguma forma direta ou indireta a<br />
discriminação, pelo seu credo, raça, etnia, sua<br />
condição sócio econômica e sua sexualidade; a<br />
“santa” são eles, onde a sociedade já se encontra<br />
anestesiada. O performer vai alterando o espaço<br />
onde ele passa, desconstruindo a rotina dos<br />
transeuntes e trabalhadores, e reciprocamente o<br />
corpo do performer vai se alterando também. O<br />
sol instigante, as ofensas das pessoas o oprimem,<br />
a quentura do asfalto torna mais difícil o trajeto.<br />
Neste percurso podemos fazer também um<br />
paralelo do sacrifício religioso do Círio, com<br />
o sacrifício do homem performer dentro de<br />
sua manifestação, mas também algo interno<br />
se faz perceber; como que aquele caminho<br />
feito diariamente por ele se tornara uma única<br />
mistura, a rua era ele, e ele era a rua.<br />
Chegar ao seu objetivo era, a princípio,<br />
impossível, e o percurso poderia ter tido vários<br />
desfechos. Porém, o que houve foi uma proteção<br />
tecnológica, o aparato das câmeras e filmadoras<br />
no local, tendo em vista que a apropriação<br />
desses equipamentos, na sua maioria, pertence<br />
a uma classe social mais elevada, criando sem<br />
intenção alguma quase que uma barreira de<br />
proteção contra a imputação deste manifesto,<br />
deixando paralisados os que de fato poderiam<br />
ter se manifestado em poder da autoridade<br />
pública (a polícia). Mas seguiu livremente pelas<br />
ruas de asfalto quente e de teto formado pelas<br />
copas das mangueiras, adentrou no santuário da<br />
mãe de deus, de um chão de mármore infernal<br />
que o sol beijava e que, por sua vez, castigava os<br />
pés do andarilho de causa justa, e findando vai<br />
de encontro ao vergalhão das almas padecentes,<br />
onde por fim põe sua carcaça de flores.<br />
Combatendo assim o bom combate! ( II carta a<br />
Timóteo, 4, 7)
110 https://www.facebook.com/indiatransex.brasil<br />
#estamos de greve<br />
formas agudas de<br />
esquizofrenia<br />
cultural<br />
osmar Pinheiro junior<br />
Androgino - ismael nery
sangria desatada<br />
rede [APArelHo]-:<br />
112<br />
#estamos de greve<br />
“Demarcação [mapeamento] dos locais usados pela ditadura militar para a prática de tortura em<br />
Belém do Grão Pará, rede [aparelho]-: + Corredor Polonês Atelier Cultural + quem se juntar a nós.<br />
A partir do dia 31 de março de 2009 e a qualquer momento, e continua…São lugares comuns do<br />
cotidiano da cidade, alguns transcodificados em espaços de arte e de beleza, entretanto, de suas<br />
paredes ainda ecoam gritos de torturados… A cada nova informação, demarcamos o lugar com<br />
uma mancha vermelha, mancha de alerta e de memória…” 1<br />
Dia 31 de março de 2009 comemorou-se os 45 anos do golpe militar que deu inicio a ditadura no Brasil. Em 17 de Fevereiro<br />
de 2009, foi publicado na folha de São Paulo um editorial se referindo ao Hugo Chavéz, presidente da Venezuela, como<br />
maior ditador da América do Sul, e que a ditadura no Brasil na verdade teria sido uma “Ditabranda”, haja visto o “horror”<br />
que os venezuelanos estavam passando:<br />
limites A cHávez:<br />
Apesar da vitória eleitoral do caudilho venezuelano, oposição ativa e crise do petróleo vão dificultar<br />
perpetuação no poder, o rolo compressor do bonapartismo chavista destruiu mais um pilar do sistema de pesos e<br />
contrapesos que caracteriza a democracia. Na Venezuela, os governantes, a começar do presidente da República,<br />
estão autorizados a concorrer a quantas reeleições seguidas desejarem. Hugo Chávez venceu o referendo de domingo,<br />
a segunda tentativa de dinamitar os limites a sua permanência no poder. Como na consulta do final de 2007, a<br />
votação de anteontem revelou um país dividido. Desta vez, contudo, a discreta maioria (54,9%) favoreceu o projeto<br />
presidencial de aproximar-se do recorde de mando do ditador Fidel Castro. Outra diferença em relação ao referendo<br />
de 2007 é que Chávez, agora vitorioso, não está disposto a reapresentar a consulta popular. Agiria desse modo<br />
apenas em caso de nova derrota. Tamanha margem de arbítrio para manipular as regras do jogo é típica de regimes<br />
autoritários compelidos a satisfazer o público doméstico, e o externo, com certo nível de competição eleitoral. Mas,<br />
se as chamadas “ditabrandas”- caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois<br />
preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latinoamericano,<br />
inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito, mina as instituições<br />
e os controles democráticos por dentro, paulatinamente. Em dez anos de poder, Hugo Chávez submeteu, pouco<br />
a pouco, o Legislativo e o Judiciário aos desígnios da Presidência. Fechou o círculo de mando ao impor-se à<br />
PDVSA, a gigante estatal do petróleo. A inabilidade inicial da oposição, que em 2002 patrocinou um golpe de<br />
Estado fracassado contra Chávez e depois boicotou eleições, abriu caminho para a marcha autoritária; as receitas<br />
extraordinárias do petróleo a impulsionaram. Como num populismo de manual, o dinheiro fluiu copiosamente<br />
para as ações sociais do presidente, garantindo-lhe a base de sustentação. Nada de novo, porém, foi produzido na<br />
economia da Venezuela, tampouco na sua teia de instituições políticas; Chávez apenas a fragilizou ao concentrar<br />
poder. A política e a economia naquele país continuam simplórias -e expostas às oscilações cíclicas do preço do<br />
petróleo. O parasitismo exercido por Chávez nas finanças do petróleo e do Estado foi tão profundo que a inflação<br />
disparou na Venezuela antes mesmo da vertiginosa inversão no preço do combustível. Com a reviravolta na cotação,<br />
restam ao governo populista poucos recursos para evitar uma queda sensível e rápida no nível de consumo dos<br />
venezuelanos. Nesse contexto, e diante de uma oposição revigorada e ativa, é provável que o conforto de Hugo<br />
Chávez diminua bastante daqui para a frente, a despeito da vitória de domingo.<br />
Folha de S. Paulo - 17 de fevereiro de 2009<br />
Esta publicação revela o caráter corruptível e editável das informações nas grandes mídias, de acordo com seus próprios<br />
interesses políticos; já que um jornal, neste caso, este, um dos mais lidos do País, tem potência imensurável de formação<br />
de opinião. Dentro dessas mídias abertas e consumidas pela maioria da população brasileira, as informações passam por<br />
mecanismos de construções de verdades, e a noticia só é dada de acordo com “jogadas” políticas previamente estabelecidas,<br />
seja da oposição, seja do governo e seja ainda do setor privado que paga por publicidade. Sendo que o dinheiro é o único<br />
limite e a realidade da informação absolutamente editável.<br />
Sangria Desatada foi uma ação feita para questionar esses mecanismos, e fazer uma crítica direta a este editorial. Esta<br />
1 Anúncio publicado em http://aparelho.comumlab.org/archives/96.<br />
intervenção fez parte de um movimento artístico chamado 48h Ditadura Nunca Mais que articulou várias manifestações em<br />
território nacional em repúdio a publicação da Folha de São Paulo e à comemoração dos 45 anos do golpe.<br />
Na escala do real, isto é, nas ruas da cidade, a Rede[Aparelho]-: fez um mapeamento da tortura em Belém. Rememorando<br />
e demarcando os locais onde eram torturados os presos políticos na época da ditadura militar; com tinta sangue de Urucum,<br />
vegetal tipicamente amazônico, pintou-se em frente aos espaços onde o derramamento de sangue humano foi fato: Uma<br />
Sangria Desatada.<br />
Muitos gigas de registros fotográficos e audiovisuais foram feitos e publicados em vários sites de mídia independente,<br />
fazendo circular assim a memória histórica de um povo maltratado e que a grande mídia quis fazer esquecida. Essa<br />
intervenção é um bom exemplo de ação direta que escapa aos domínios do poder maior, atuando como Máquina de Guerra,<br />
cada vez que esses registros são acessados, logo, mantendo a memória desse período duro na história do Brasil.<br />
Bruna Suelen
114<br />
#estamos de greve<br />
Pedágio. 2010. romário Alves.<br />
amai-vos, lúcia Gomes, 2005, ação de distribuir beijus (bolacha regional feita com<br />
farinha de mandioca) com a inscrição “amai-vos”, pintada com tinta vermelha comestível.
Pira-paz-não-quero-mais ou a<br />
difícil arte da martelada*<br />
gil vieirA costA<br />
quAl o lugAr dAs ideiAs que não se AcomodAm?<br />
A produção artística de Lúcia Gomes ocupa territórios<br />
diversos. É marginal. À margem das convenções<br />
da arte, mas também à margem da apatia que<br />
acomete a cultura. Sua militância iconoclasta não<br />
permite qualquer política de boa vizinhança, somente<br />
marteladas.<br />
Não se trata, diga-se de passagem, de marteladas<br />
única-mente destrutivas. Seus alvos em geral<br />
possuem nome e sobrenome, e nem sempre seus<br />
golpes objetivam derrubar, e sim, também, esculpir<br />
consciências e ideias. Em um país no qual os poderes<br />
e as justiças escrevem o monólogo exaustivamente<br />
reproduzido, é bastante incômodo o ruído de sua arte.<br />
Sua voz mórbida canta e ainda espanta o mau agouro,<br />
nessa terra onde o silêncio literalmente é de ouro...<br />
oi, tudo bem?<br />
Tudo bem... fora o tédio que me consome todas<br />
as vinte e quatro horas do dia, fora a decepção de ontem,<br />
a decepção de hoje e a desesperança crônica no<br />
amanhã. Fora a adolescente que ficou presa em uma<br />
cela com mais de vinte homens, pelos quais foi diariamente<br />
estuprada. Fora a incompreensível ab$olvição<br />
do ex-deputado Luiz Sefer, depois do mesmo ter encomendado<br />
a vinda de uma criança para sua casa e<br />
(supostamente) abusado sexualmente da mesma durante<br />
anos. Fora a decisão do Supremo Tribunal Federal<br />
de empossar o político Ficha Suja Jader Barbalho.<br />
A arte de Lúcia Gomes dói como um soco na<br />
boca do estômago. Sua lucidez farpada atinge meu<br />
marasmo existencial sem meias palavras. Que não se<br />
engane o espectador desatento: não há ingenuidade,<br />
talvez malícia, mas, seguramente, resistência. Que,<br />
aliás, é o título da ação realizada neste 18 de maio, dia<br />
116<br />
#estamos de greve<br />
nacional de combate ao abuso e à exploração sexual<br />
contra crianças.<br />
A poética da guerra. De travesseiros, obviamente.<br />
De um sono interrompido pelo estampido dos<br />
estouros. Dos balões que se rompem deixando uma<br />
fronha esmirrada, vazia. Deve haver beleza nisso aí,<br />
mas não, obrigado, não estou interessado. A pira-paz<br />
contemplativa eu não aceito, eu quero é a guerra. De<br />
travesseiros. Ou de ideias. Não sei se faz sentido falar<br />
de arte uma hora dessas, portanto quero falar mesmo<br />
é de travesseiros, de balões rompidos, de fronhas magrelas,<br />
de crianças tocadas. O pai é o agressor mais<br />
comum, seguido do padrasto, do tio, de algum primo.<br />
Os vizinhos e desconhecidos são a minoria. O perigo<br />
está dentro de casa, o silêncio mora ao lado, e/ou:<br />
dormindo com o inimigo. Tenha um bom sono. Quero<br />
é martelar travesseiradas na consciência alheia.<br />
Quero é amolaecer os corpos. Quero é o estranhamento<br />
do brincar, tanto de quem vê quanto de<br />
quem faz. Quero é contrapor ao corpo adestrado (pela<br />
etiqueta e normas de bom comportamento) o corpo<br />
atentado do moleque que já não somos. O moleque<br />
atentado que busca do próprio corpo o prazer, a liberdade,<br />
a resistência. Quero é demolir meus pudores,<br />
minhas vergonhas. Afinal, melhor empunhar o travesseiro<br />
que a arma, melhor martelar ideias que mãos de<br />
cristos. Quero é resistir.<br />
Mas quero meu corpo pra divertir, não pra<br />
violentar. Pra provocar o riso, jamais o trauma. Pra<br />
martelar as ideias e incomodar as consciências, como<br />
quem derruba a anacrônica e ensebada muralha que<br />
divide o mundo...<br />
PrA não dizer que não fAlei dAs flores:<br />
“Resistência”, a ação de Lúcia Gomes, não<br />
é somente um ato contrário à violência sexual<br />
perpetuada em nossa sociedade, mas igualmente um<br />
ato de resistência contra algumas noções cristalizadas<br />
a respeito da arte. Sim, a arte, aquela tão pretendida<br />
e inacessível princesa, encastelada atrás de inúmeros<br />
dragões.<br />
Ancorada em uma tradição conceitual, que se<br />
inicia nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil e no<br />
mundo, a arte de Lúcia Gomes não busca a beleza<br />
das formas, mas a pertinência das ideias. De cara já<br />
chega invertendo todos os pressupostos: Lúcia Gomes<br />
instiga a ação do outro lado do oceano, na Suíça, país<br />
em que reside há alguns anos. Daqui, respondem<br />
às provocações tantos outros inquietos. Nada de<br />
dominar pincéis e tintas – o colorido das fronhas e<br />
balões se faz com o movimento dos corpos, e a ação<br />
jamais pode ser capturada por um flash momentâneo.<br />
Também o rigor e reverência dos templos da Arte<br />
aqui não se enquadram: qualquer lugar é lugar, e<br />
tanto melhor quanto mais diverso for em relação<br />
aos museus e territórios artísticos. O que vale é a<br />
incitação, a desordem conceitual. A utopia: qualquer<br />
lugar, qualquer coisa, qualquer pessoa... arte.<br />
“resistência” - Fundação lucia Gomes<br />
(realizado no Gempac. No Puta Dei)<br />
Recusar o espaço delimitado e frio e se apropriar<br />
dos espaços cotidianos, flexíveis, polifônicos.<br />
Onde as muitas vozes são proferidas, silenciadas,<br />
extravasadas, admitidas, contrapostas, negadas.<br />
Basta à ação e à arte que sejam um ato de resistência.<br />
Portanto, que não se calem.<br />
Que sejam como a frieza do prego incomodando<br />
a língua que se delicia com o doce. Que sejam como<br />
o estouro das balas/balões nas guerras que travamos<br />
desde sempre. Que sejam como portas, diante das<br />
quais aquele que vê jamais permanece o mesmo.<br />
Portas – tanto obstáculos quanto passagens. Tanto<br />
limite quanto saída. Que a arte soe como atrevimento.<br />
Quanto às ideias arcaicas, quanto às violências<br />
da opressão, quanto às perversões do espírito, quanto<br />
às ganâncias humanas, quanto aos vícios enrijecidos<br />
dos egos inflexíveis, só resta ao martelo de s p e d<br />
a ç a r<br />
------------------<br />
* Texto fotocopiado e distribuído no dia 18 de maio<br />
de 2012, no hall da ESMAC (Escola Superior Madre<br />
Celeste), durante a realizAÇÃO de “Resistência” por<br />
alunos e professores da instituição.<br />
“PIPaZ”.2004. Brasilia. Fundação lucia Gomes
118<br />
#estamos de greve<br />
http://www.youtube.com/user/qualquerjamcine
120<br />
#redes locais e Autonomia<br />
a Moeda Muiraquitã foi confeccionada artesanalmente, com<br />
barro, mas seu principal valor está no objetivo de sua<br />
utilização, como troca ou bônus que pode promover a educação<br />
ambiental ao mesmo tempo em que abre portas para novos<br />
conhecimentos no mundo da cultura digital.<br />
coletivo Puraqué<br />
[rmxtxturA]<br />
redes locais<br />
#<br />
e Autonomia<br />
ARQUIVOS RMX : capixaua_part2.mpg - YouTube.mp4 | FUNK DA LAMA - BELÉM PA (BALANÇO GERAL).mp4 |<br />
bernardo sayam.avi | brega_sa_xvid_2009.avi | bboy002.mpeg | Ctdn d - Ciclovia Au gosto n’ Montelixo.mpeg | Bicicleta<br />
em Afuá PA – Report.mpeg | Vídeo0013.mpeg | Tem Boto Na Rede do Tunico_x264.mpeg | Necronomicon parte 1.mpeg<br />
| ABATE 25.avi | Entrevista Marat 1.mov | Teia Amazônica INOVACINE intervenção.mp4 | APJCC apresenta Crítica pra<br />
quê - Parte 2.mp4 | ambul- 004.mpeg | Belo Monte - anuncio de uma guerra.mp4 | Banco Comunitário Muiraquitã - Prêmio<br />
FBB de TS 2011.mp4 | MVI_7788.mov | MVI_7788.mp4 | Museu do Marajó em Cachoeira do Arari - Ilha de Marajó<br />
– PA.mp4 | ladrao nao rouba ladrão.mp4 | Rumo Norte.AVI
cidade; labirinto das mediações.<br />
FERNANDO D’ PáDUA<br />
Quem nunca se perdeu em um labirinto? Aqui<br />
e ali alguém se perde quando não se tem um mapa<br />
definido. Mas para que serve um mapa? De onde vêm<br />
os mapas? Quem os desenhou? Quem os programou?<br />
No grande labirinto, muita coisa se recombina na<br />
dinâmica dos encontros. Na efemeridade própria<br />
da duração dos acontecimentos em constante<br />
movimento. A cidade-labirinto, assim como a vida,<br />
é o que é por ser o que não é: um espaço fechado.<br />
Cidade como um labirinto elaborado para mediações<br />
variadas se transforma em uma dinâmica inversa,<br />
múltipla e rizomática por ser constituir no presente,<br />
no entre de uma coisa e outra. Assim, a ideia de<br />
cidade idealizada é posta a prova na contraposição<br />
das mimetizações presentes nos modos de operar,<br />
de ver e no agir coletivo próprio dos processos de<br />
condicionamento urbano; nas ilusões forjadas a<br />
ferro e fogo, compactas e incrustadas como verrugas<br />
sobre a pele da massa dispersa induzida pelo<br />
discurso oficial representadas nas mil estratégias de<br />
dominação das paixões e dos desejos para controle da<br />
subjetividade como prática de coerção do corpo. Palco<br />
material das disseminações de sentidos estetizados,<br />
produzidos pelo sistema de produção predominante<br />
para um melhor o controle social, ideológico,<br />
político e cultural das relações sociais. Amálgamas<br />
122<br />
#redes locais e Autonomia<br />
atravessadas por práticas poe[lí]ticas 1 na dimensão<br />
ordinária da experiência estética; chapa de ferro,<br />
plásticos, arames e madeira fundidos aos suportes,<br />
conectadas aos costumes e tecnologias possíveis.<br />
Somente vivendo a cidade-real que encontraremos<br />
os motivos para não nos comportarmos como<br />
meros observadores passivos. Precisamos assumir a<br />
tarefa de desconstruir o que é posto como verdade<br />
absoluta, afirmando práticas libertárias e criativas.<br />
E para que isso ocorra, precisamos “descascar essa<br />
pupunha” de qualquer maneira, apropriando-se da<br />
cidade-labirinto como lugar favorável para provocar<br />
situações de forma irreverente e no jogo direto com<br />
as pessoas.<br />
O relato a seguir faz parte de uma experiência<br />
de viagem à uma cidade-labirinto no meio da Amazônia<br />
paraense, onde é possível experimentar estes<br />
outros lugares, outras cidades, não-lugares.<br />
1 Prática rizomática para tratar sobre as questões ligadas<br />
ao funcionamento da cidade, no combate a lógica instaurada<br />
pelos discursos normativos sobre os aspectos que tratam da produção<br />
em arte em relação à cidade. O neologismo poe[lí]tica,<br />
foi elaborado por mim, durante o próprio fluxo das trocas em<br />
práticas autônomas de intervenção urbana, nas experiências em<br />
campo ampliado, observando e interagindo com as produções<br />
ordinárias e situações comuns próprias da cidade. (N.A)<br />
Afuá, ArquiPélAgo do mArAjÓ, PArá. jAneiro de 2011<br />
Antes mesmo de conhecer a estrutura física da<br />
cidade do Afuá e experimentar sua dimensão psicogeográfica,<br />
escutei muitas histórias de pessoas oriundas<br />
desta cidade e também relatos de navegantes que<br />
encantados, descreveram algumas curiosidades que<br />
revelam características e peculiaridades relacionadas<br />
ao hábito cotidiano de pedalar sobre rodas em um<br />
labirinto erguido sobre palafitas. Afuá é conhecida<br />
por muitos como “Veneza da Amazônia” por conta<br />
de estar construída sobre as águas, e ser parecida, de<br />
longe, com a cidade Italiana. Comparação que não<br />
cabe aqui contestar, já que não conheço de fato esta<br />
outra cidade.<br />
Afuá localiza-se no arquipélago do Marajó,<br />
no extremo norte do Estado do Pará, às margens do<br />
Rio Afuá com o Igarapé Jaranduba do rio Cajaúna,<br />
já próximo ao Amapá, constituindo-se como uma<br />
cidade ribeirinha erguida sobre palafitas. Nessa viagem,<br />
foi preciso pegar um avião para Macapá, capital<br />
do Amapá, já que o trajeto pelo rio segundo alguns<br />
viajantes se encontra muito perigoso em decorrência<br />
do grande índice de ação de piratas na região 2 .<br />
Já em Macapá, junto de minha companheira<br />
de viagem, pesquisas e da vida, Bruna Suelen,<br />
podemos perceber ao caminhar e pedalar pelas<br />
ruas desniveladas da cidade, muitas similaridades<br />
negativas em sua concepção espacial urbana, visto<br />
que todas são planejadas para o fluxo de veículos<br />
automotivos; sinais de trânsito por todos os lados,<br />
ausência de ciclovias, nomes de avenidas principais<br />
semelhantes as de outras cidades do Brasil e o típico<br />
comportamento agressivo praticado pelos motoristas<br />
de automóveis envoltos pelos simulacros da vida<br />
moderna.<br />
Entre uma caminhada e outra à deriva pela<br />
cidade, nos deparavámos com estruturas inusitadas<br />
2 Os piratas utilizam embarcações como canoas a remos<br />
ou rabetas com motor de poupa adaptada estrutura da embarcação<br />
para um melhor fluxo nos rios e igarapés as regiões ribeirinhas,<br />
são comumente chamadas de montarias.<br />
utilizadas como suporte para venda de produtos<br />
artesanais e industrializados traçando uma trajetória<br />
sinuosa cheia de molejo pelas margens das ruas.<br />
Estruturas que denomino conceitualmente de<br />
feituras, por tratar de objetos que demandam um<br />
saber ordinário elaborado empiricamente. Estruturas<br />
móveis/movíveis elaboradas em serralherias<br />
utilizando material residual, caracterizadas<br />
comumente por estar sempre em processo de<br />
“atualização”, reformulação.<br />
Prestação – Macapá, 2011.<br />
Percebendo a existência de tantas feituras<br />
que utilizam dessas tecnologias para ganhar a vida,<br />
busquei conhecer alguns serralheiros da região para<br />
saber um pouco mais sobre seus processos criativos.<br />
Fiz logo amizade com Seu Zé, nordestino imigrante<br />
que fora para Macapá na década de 80, por conta das<br />
promessas da cidade morena em pleno processo de<br />
ocupação urbana. Seu Zé trabalha com compra de<br />
peças de bicicletas e grades para residências, além<br />
de outras sucatas trazidas por coletores. Em sua oficina,<br />
que fica no pátio de sua casa, conheci parte de<br />
seus filhos e netos que vivem em contato direto com<br />
o modo de produção do pai/avô. A conversa rendeu<br />
bastante, percebi nele uma semelhança comum entre<br />
os demais serralheiros, que estabelecem relações ordinárias<br />
de concepção estrutural, utilizando resíduos,<br />
arcabouços sucateados da indústria. Uma prática<br />
de sobrevivência muito comum das zonas periféricas<br />
urbanas ou não, próprias do podemos chamar de<br />
uma estética da existência.<br />
Uma relação direta com a seleção dos objetos<br />
em função de sua significação prática. As estruturas<br />
empurradas por trabalhadores autônomos carregadas<br />
de produtos ordenadamente agrupados, ficam<br />
expostas sobre o suporte móvel feito de peças de<br />
bicicletas e motocicletas, são compostas de produtos<br />
industrializados para comercialização de objetos de<br />
desejo; “andarilhos” aparentemente em deriva, co-<br />
mumente chamados de “prestação” 3 que trafegam a<br />
cidade na maestria própria de quem equilibra-se na<br />
corda bamba da vida.<br />
Seguindo percurso pela capital do Amapá, fomos<br />
à busca de registros na Secretaria de Cultura do<br />
município e na Biblioteca Pública sobre as manifestações<br />
artísticas que, de alguma forma, envolveriam as<br />
produções dos afuaenses, principal foco da viajem,<br />
por estar tratando de uma manifestação cultural desta<br />
cidade e pelo fato de apresentarem entre si uma<br />
ligação geográfica muito aproximada.<br />
Sem muita informação, achamos prudente<br />
viajar o mais breve para o Afuá. Ainda no porto da<br />
cidade, de dentro do barco, dava para observar os<br />
detalhes das feituras ali estacionadas; coisas como<br />
acabamento, improvisação de peças e materiais,<br />
combinações de cores e formas, galiqueiras, traquinarias,<br />
gambiarras compunham a produção e as<br />
funções de cada elemento na relação com o todo.<br />
Após sairmos do porto, ainda sobre as águas<br />
do rio daquela região que divide os dois Estados,<br />
Pará e Amapá, outras estruturas móveis instigavam<br />
a imaginação, provocando novas ligações conceituais<br />
com o objeto da minha pesquisa. Visto que as feituras,<br />
sejam elas elaboradas para transitar na cidade ou<br />
sobre as águas, fazem parte de dinâmicas orgânicas<br />
próprias da sensibilidade humana, desenvolvidas e<br />
adaptadas por métodos intuitivos e improvisações.<br />
Neste caso me refiro às rabetas, embarcações de madeira<br />
com motor de poupa, reconhecidas como um<br />
dos principais meios de transporte das populações<br />
ribeirinhas.<br />
Quanto mais adentrávamos as “bocas” dos<br />
rios, outra paisagem se mostrava predominante:<br />
açaizeiros, anhingas, palafitas e casas suspensas<br />
surgindo entre as matas. Aqui e ali, serrarias e mais<br />
serrarias construíam montanhas de serragens com<br />
tons variados de marrom. Dentro do nosso barco,<br />
muita gente compunha um cenário bem comum por<br />
essa região. Deitadas em suas redes, criavam massas<br />
de cores espalhadas por toda sua extremidade, que<br />
amarradas às colunas de madeira da embarcação,<br />
seguiam o ritmo da maresia no balançar dos corpos<br />
suspensos.<br />
Ao se aproximar da cidade, parecíamos estar<br />
delirando diante de tantas bikes, que tão logo se apresentaram<br />
comuns como os carros da cidade grande.<br />
Surgiam de toda parte: triciclos, quadriciclos, conhecidos<br />
como bicitaxi, carrinhos de empurrar e bicicleteiros<br />
por toda parte, indo de um lado para o outro.<br />
Após nos alojarmos, demos início à caminhada,<br />
ficamos vislumbrados com a possibilidade de desdobramentos<br />
das feituras utilizadas como meio de<br />
transporte e vinculação de conteúdos em trânsito na<br />
3 Vendedores ambulantes que comercializam produtos<br />
importados utilizando um sistema de crédito em boleto.
cidade. Verdadeiras gambiarras tecnológicas criadas<br />
para suprir necessidades primárias para subsistência<br />
da família dos muitos anônimos que mostrando certo<br />
orgulho, pareciam nos convidar para experimentar.<br />
Desconhecendo os hábitos dos afuaenses, assim<br />
como a estrutura semi-urbana da cidade, iniciamos<br />
a caminhada pelos labirintos erguidos sobre o rio e<br />
logo nos perdemos intencionalmente. Fomos do centro<br />
conhecido como Entroncamento, por conta do<br />
fluxo comercial, até o bairro do Capim Marinho I e<br />
Capim Marinho II, para conhecer os caminhos por<br />
dentro da cidade. .<br />
Após o primeiro dia observando e se adaptando<br />
aos hábitos locais, trocamos muitas ideias com a comunidade,<br />
várias reflexões passaram a ser esboçadas<br />
como, por exemplo, o poder da mídia na produção<br />
de bens de consumo 4 , facilmente encontrada em vários<br />
níveis de relações nesta cidade que na ausên-<br />
4 A cultura-mercadoria se constitui no que Félix Guattari<br />
chamou de terceiro núcleo semântico onde se encontram todos<br />
os bens da cultura de massa como elemento fundamental da<br />
produção de subjetividade capitalística: “A cultura são todos os<br />
bens: todos os equipamentos (como as casas de cultura), todas<br />
as referencias teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento,<br />
tudo que contribui para a produção de objetos semióticos<br />
(tais como livros e filmes), difundidos num mercado determinado<br />
de circulação monetária ou estatal” In. GUATTARI,Félix.<br />
ROLNIK,Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis:<br />
Ed. Vozes, 2010. p.23.<br />
Bairro do Capim Marinho I – Afuá, 2011. Bicitrio. Afuá, 2011.<br />
124<br />
#redes locais e Autonomia<br />
Feituras de lotação para transporte de mercadorias-Afuá, 2011.<br />
cia de outros meios, criou os seus, afirmando assim<br />
suas individualidades diante dos insistentes apelos<br />
midiáticos. Mercadorias de desejo materializadas no<br />
que os afuaenses chamaram de bicitaxi 5 , podem ser<br />
consideradas nesta dimensão ordinária, como uma<br />
ramificação da cultura automotiva que se instalou<br />
no cotidiano dos indivíduos da cidade, pelo fato de<br />
apresentar um formato muito próximo dos automóveis<br />
disseminados pela indústria. A cidade possui<br />
uma variedade de feituras singulares: triciclos, quadriciclos<br />
e bicicletas dos mais variados formatos, indo<br />
de simples estruturas à estruturas complexas, como<br />
a bicitrio que possuía um sistema de som conectado<br />
a um notebook com alimentação de energia independente<br />
que partia de um gerador a base de diesel.<br />
Dente os acontecimentos, uma pergunta ficou<br />
no ar: quem fabrica estas estruturas? Ao perguntar<br />
para a primeira pessoa que atravessou nosso<br />
caminho, logo o nome do fazedor surgiu. Conhecido<br />
como Baixote, o serralheiro que mora no Capim<br />
Marinho II, foi indicado para falar sobre esse modo<br />
de operar dos afuaenses.<br />
Fomos então ao encontro do Baixote, estava em<br />
seu ambiente de trabalho em uma serralheria próxima<br />
ao antigo porto da cidade. Em meio às sucatas e<br />
5 Termo utilizado para denominar as feituras utilizadas<br />
para lotação. Quadriciclos que substituem os automóveis (N.A)<br />
peças de embarcação, Baixote esmerilava uma peça<br />
no torno ao fundo do estabelecimento. Desviando das<br />
peças para não me machucar, me aproximei do fazedor<br />
sem dar alarde. Mostrando-se bastante receptivo,<br />
logo fizemos amizade. Iniciamos um “diálogo”<br />
informal para saber como ele elaborava suas estruturas,<br />
seu processo de feitura e concepção estrutural.<br />
Ele nos relatou sobre o modo de fazer ao pegar um<br />
projeto para desenvolver. Em suas próprias palavras:<br />
“Pelo papel não tem medida de nada né?! Aí<br />
tu vai desenvolver tudinho né?! somente na<br />
mente. Aí vai cortando, fazendo. Adaptando<br />
o tamanho que é e que não é. Pra ficar toda<br />
adaptadinha, normal. Tem coisa que dá certo,<br />
e tem coisa que não dá, aí a cosia vai se desenrolando<br />
até dá... quando o cara não tem a peça<br />
né?! o cara vai pensando. Toda peça tem seu<br />
devido lugar. Tem que adaptar né?! Vai adaptando<br />
tudo. Corta uma aí não dá certo, aí vai<br />
atrás de outra...”<br />
Saímos então em direção a sua casa para ele me<br />
mostrar uma de suas obras, uma bicicleta feita com<br />
de ferro de uma cama tubular que faz o maior sucesso<br />
na cidade. A partir daí, outras produções foram<br />
surgindo; maneiras de fazer, pensar e lidar com as<br />
tecnologias pareciam bem frequentemente em uma<br />
cidade tão longe das grandes capitais do mundo.<br />
Dentre as curiosidades, a que mais despertou<br />
atenção é a utilização de bicicletas como principal<br />
meio de transporte da população pelo fato da cidade<br />
ser erguida sob palafitas, motivo que impossibilita a<br />
tráfego de veículos automotivos em decorrência do<br />
peso que estas estruturas possuem. Uma resistência<br />
natural ao processo de ocupação das terras na<br />
Amazônia, que diferente de outras cidades que sofreram<br />
processo de aterramento das áreas de várzea<br />
para que o “desenvolvimento” se instalasse como<br />
Macapá e Belém. A cidade do Afuá apresenta um índice<br />
zero de morte por acidentes de trânsito.<br />
Bicitáxi. Afuá, 2011.<br />
Uma realidade urbana singular de resistên-<br />
cia em meio a Amazônia, que apesar de fazer parte<br />
do grande simulacro de representações, proporciona<br />
uma realidade lúdica onde crianças, jovens e<br />
adultos, podem transitar sem correr o risco de ser<br />
surpreendido por algum agente mal intencionado.<br />
Palafitas que constituem a “limitação” estrutural da<br />
cidade por não comportarem os produtos oferecidos<br />
pela indústria de consumo implantada no inconsciente<br />
coletivo. Limitação subvertida pelo potencial<br />
criativo que proporcionou sua superação, levando-os<br />
à readaptarem seus desejos, transformando as matérias<br />
de acordo com seus interesses, construindo seus<br />
próprios produtos “semelhantes” ao propagado pela<br />
mídia. Fato que não exclui a interesse particular e hierarquizante<br />
de alguns indivíduos que possuindo um<br />
rendimento mais confortável, podem diferenciar-se<br />
de outros indivíduos customizando, ou “apimentando”<br />
a seu gosto suas feituras.<br />
Quadriciclo- Afuá, 2011.<br />
Bicilância , Afuá, 2011.
coisa de negro:<br />
resistência cultural<br />
icoArAci – belém – PArá – brAsil - 2012<br />
CLEVER DOS SANTOS - LUIzINHO LINS – NEGO RAy<br />
LUCIANE BESSA – NEy LIMA – GLEIDSON CARRERA<br />
Luisinho Lins: Nesses 12 anos são mais de 500<br />
domingos que a gente vem fazendo vivências do<br />
carimbó no Espaço Cultural Coisa de Negro. Onde as<br />
pessoas vão para dançar, e para quem tem um certo<br />
conhecimento de música, sobe no palco e toca também.<br />
Temos a pretensão de fazer com que a vivência<br />
da música regional paraense funcione, pois falamos<br />
do carimbó, mas não tocamos só o carimbó, tocamos<br />
o xote, o retumbão, o lundu, tudo quanto ritmo que<br />
seja regional...o banguê, samba de cacete... A gente<br />
não se fecha em uma coisa segregada de só tocar<br />
carimbó, só tocar lundu, tentamos fazer uma coisa<br />
que chamamos de “globalizar o regional e regionalizar<br />
o global”.<br />
A gente começou a fazer que isso se tornasse parte<br />
do cotidiano, principalmente das pessoas que moram<br />
em Icoaraci, que começaram a participar das rodas<br />
regularmente. Por exemplo, o mestre Coutinho,<br />
quem conhecia o mestre Coutinho? Aqui, quem conhece<br />
o mestre Coutinho? Mas se eu chegar e cantar:<br />
“eu tava na praia, na praia de Marudá, brincando<br />
com mariinha, quando vi pássaro voar, avoou avoou,<br />
passarinho do mar, avoou avoou...” esse é o mestre<br />
Coutinho: “areia areia areiê, areiê, areia areia<br />
areia, areiá”. Quer dizer, um senhor que mora em<br />
Icoaraci, que está vivo, dança para caramba, e hoje<br />
está sendo conhecido, por ir para o espaço tocar aos<br />
domingos. E ainda tem uma nova geração que está<br />
tocando desde criança, que é o pessoal do Paramuru,<br />
um grupo de uma família, são todos filhos de um<br />
mesmo Senhor que toca carimbó já a muitos anos e<br />
agora tem um espaço pra tocar aqui em Belém . Antes<br />
os tocadores não tinham um espaço específico para<br />
as tocadas...<br />
Clever dos Santos: Eu gostaria de falar um pouco<br />
do que é o início de tudo. Esse instrumento chamado<br />
curimbó, que vem da língua tupi CURI-N'-BÓ, que<br />
significa: pau-furado que faz som. Então ele é tocado<br />
dessa maneira: o tambor fica deitado, e a pessoa fica<br />
em cima montada, em cada localidade tem um sotaque<br />
diferente, um som diferente que esse tambor<br />
faz. Quem toca curimbó não toca porque aprendeu na<br />
academia, ou aprendeu numa apostila, num software<br />
que está disponível, aprendeu vivenciando, olhando,<br />
escutando e tocando. A única maneira que se tem<br />
126<br />
#redes locais e Autonomia<br />
de aprender carimbó, é vivenciando. A transmissão<br />
que tinha até então, era única, através da oralidade.<br />
Então a partir daquele momento que pega-se aquele<br />
tambor e transforma em uma linguagem digital, tu<br />
pode disponibilizar também essas informações de<br />
maneira digital, então o nosso objetivo é fazer uma<br />
reutilização das mídias, principalmente fazer a documentação<br />
e registro, e repassar para todos esse dados,<br />
esses saberes, essas vivências. Carimbó não é apenas<br />
música, não é só ritmo, não é somente dança, mas é<br />
um coletivo, um conjunto de informações culturais,<br />
vivenciadas por cada localidade onde ele se encontra.<br />
Não existe um só toque de carimbó, ou seja não<br />
se toca e se dança carimbó de uma só maneira, cada<br />
localidade do Estado do Pará (que é gigantesco!), tem<br />
uma batida diferente.<br />
Para nós foi uma abertura muito grande para gente<br />
estar aqui agora. Durante o FSM em 2009 nós<br />
fizemos contato com o Submidialogia, com várias<br />
cabeças ligadas a mídia tática e uma vontade particular,<br />
que reverberava lá coletivamente no Coisa<br />
de Negro. Até convidei o Ney pra gente fazer essa<br />
vivencia lá, mostrar o carimbó, com esse pé de usar<br />
essa vanguarda tecnológica e aí criar uma outra linguagem,<br />
para que as pessoas pudessem ter acesso<br />
e que a gente pudesse documentar e registrar esse<br />
patrimônio imaterial. Nessa época, a gente já tinha<br />
acesso a nomenclatura do Iphan que é o registro e<br />
documentação do patrimônio imaterial, a campanha<br />
do carimbó já tinha deslanchado em 2005. Então, depois<br />
desse contato trocamos informações através das<br />
listas, e lá foi se ampliando o diálogo com essas novas<br />
linguagens, de fazer a própria mídia. Um ano depois<br />
o que era uma ideia concretizou-se com editais: o do<br />
BASA, quando a gente alavancou o primeiro festival<br />
de carimbó de Icoaraci, com essa perspectiva de mapear<br />
de dentro da campanha do carimbó; e do Min C,<br />
foi o prêmio de cultura popular Humberto Maracanã,<br />
dando suporte pra gente repensar e restruturar o Espaço<br />
Cultural Coisa de Negro com essa finalidade:<br />
registro, documentação e acesso.<br />
Luizinho Lins: Fomos contemplados também com<br />
o Carimbó.net, a Luciane escreve o projeto pra desenvolver<br />
esse trabalho lá no Coisa de Negro que<br />
eram oficinas de produção de música que pudessem<br />
disponibilizar material virtual. Com o dinheiro deu<br />
pra comprar o notebook, a mesa do som e um projetor.<br />
Com a aquisição desse material acabamos desenvolvendo<br />
um estúdio para fazer gravação, e desse<br />
estúdio, começamos a fazer uma produção de conteúdo<br />
disponibilizando eles para as pessoas. A gente<br />
já tinha ideia de fazer uma rádio, então eu pesquisava<br />
algumas ferramentas na internet, também querendo<br />
transmitir a roda no Coisa de Negro ao vivo. Agora,<br />
neste último momento a gente conseguiu fazer pelo<br />
LIVESTREAM, basta ter uma conexão boa, a gente já<br />
transmitiu algumas rodas nesse processo! A primeira<br />
transmissão que a gente fez foi da oficina de banjo,<br />
no IAP - Instituto de Artes do Pará, e nessa brincadeira<br />
percebemos o interesse online pela oficina. Aos<br />
domingos nós fazemos a transmissão da roda, mas<br />
quando a conexão está muito baixa, acaba virando<br />
uma web rádio.<br />
Clever dos Santos: O Carimbó.net é um projeto<br />
que foi financiado pela Fapespa e pela bolsa de pesquisa<br />
da Proex-UFPA com a finalidade de criar um<br />
blog, uma rádio web e disponibilizar acesso a uma<br />
biblioteca digital do carimbó, através de oficinas de<br />
capacitação e montagem do acervo digital do carimbó.<br />
Ney Lima: Mas não do carimbó vivenciado dentro<br />
do Coisa de Negro.<br />
Clever dos Santos: Do Carimbó em geral, tendo<br />
como ponto de partida o Coisa de Negro. O projeto<br />
ainda está em execução. O blog já existe, é o http://<br />
projetoscoisasdenegro.blogspot.com.br/ . O que tem<br />
nele é a oficina de audiovisual, captação e edição de<br />
áudio em software livre e a radio web, assim como<br />
a web TV. Que a partir das ferramentas, notebook,<br />
webcam, modem e servidor, em pouco tempo a<br />
gente começou a transmitir, só que ainda temos o<br />
problema da conectividade, e ainda só uma webcam,<br />
o que limita a transmissão pra uma imagem de cada<br />
vez, e o áudio é ambiente.<br />
Gleidson Carrera: Queremos melhorar.<br />
Clever dos Santos: Então esse é o “plus” do<br />
Carimbó.net, que seria o isolamento acústico do<br />
espaço já que o barulho incomoda e pagamos multas<br />
por ele, então há a necessidade do isolamento<br />
acústico e a pontencialização da WebTV, com mais<br />
de uma câmera e melhor a qualidade de transmissão.<br />
Luciane Bessa: Sobre o Carimbó.Net tu já falou<br />
bacana, eu queria mesmo falar um pouco sobre a<br />
relação do Coisa de Negro com a universidade, que<br />
começou por meio de eventos dentro de programações<br />
culturais. A gente começou a levar pros congressos<br />
estudantis o grupo de carimbó do espaço, isso<br />
começou a fomentar a pesquisa em torno do espaço,<br />
e já tiveram monografias na área de comunicação,<br />
turismo, além de artigos sobre gestão cultural, sobre<br />
identidade, todos com o Coisa de Negro como objeto<br />
de pesquisa. Uma delas, a minha monografia sobre<br />
identidade relaciona com outras pesquisas que já<br />
foram feitas lá, como por exemplo a de um grupo de<br />
comunicação com um trabalho sobre a representação<br />
da identidade paraense, que perguntavam: qual<br />
é a música do Pará? E a maioria esmagadora respondeu,<br />
era carimbó. Mas aí se tu perguntas, tu vais no<br />
carimbó? Tu compras CD de carimbó? O que que tu<br />
conhece de carimbó? A pessoas não conhecem nada,<br />
ou seja, a identidade do Pará tá na merda, na lama, tá<br />
lá atrás jogada às traças.<br />
O Coisa de Negro faz parte de um processo que não é<br />
só local, mas parte de um projeto mundial de revalorização<br />
das raízes, e que por meio de várias estratégias<br />
ele tem consigo repercussão, trevalorização dos antigos<br />
mestres e tudo mais. Também, traz um processo<br />
assim, a identidade da Amazônia, como um todo ela é<br />
considerada ultrapassada, porque as pessoas confundem<br />
tradição com ultrapassado, quando na verdade é<br />
continuidade, uma coisa antiga que continua. E aí no<br />
Coisa de Negro, tu podes ver o cara com uma guitarra<br />
em cima do palco intervindo na roda de carimbó... as<br />
coisas se transformam, a cultura é dinâmica. Então a<br />
gente tá vivendo a tradição, num contexto que hoje é<br />
mundializado, globalizado.<br />
O contexto da globalização, da mundialização das<br />
mídias e tudo mais, acaba contribuindo para a revalorização<br />
das nossas raízes, no olhar para dentro de si,<br />
no olhar para o nosso passado, para nossa história.<br />
É interessante também ver que o tema do meu trabalho<br />
foi Identidade e Resistência na Globalização,<br />
que é parte do que o carimbó vem trazendo, do<br />
carimbó que é feito lá Coisa de Negro. Ele vem carregado<br />
de uma identidade de resistência, o próprio<br />
nome Espaço Cultural Coisa de Negro, se tu perguntares<br />
pro Nego Ray - que é o proprietário do local,<br />
ele diz – “eu coloquei esse nome mesmo, como um<br />
soco na cara do preconceito, é uma reação contra a<br />
discriminação da nossa cultura”.<br />
Luizinho Lins: Nós criamos reuniões lá pra fazer<br />
essa conceituação do que estávamos fazendo, tinha<br />
todas essas frases que consideravam carimbó uma<br />
tradição, que não podia ser modificado... Quando na<br />
verdade é uma coisa onde o passado vai se renovando,<br />
que cada um ali tá vivenciando. Foi em reunião<br />
que a gente começou a refletir os conceitos baseados<br />
no copyleft, creative commons, economia criativa,<br />
e sobre a própria origem afro-brasileira, pra gente<br />
definir o que é o Coisa de Negro hoje, para as pessoas<br />
chegarem e se identificarem com os discursos, uma<br />
coisa afinada com o que é a realidade do espaço sem<br />
inventar ou querer adicionar coisas que não somos.<br />
Luciane Bessa: o primeiro título do meu trabalho é:<br />
Dançar carimbó é um ato político, porque eu via ali
curimbó do grupo de carimbó Paramuru / belém - Pa Web-tv coisa de negro<br />
uma identidade política, uma identidade de resistência,<br />
formada muito pela história. Quando a gente diz<br />
quem a gente é, a gente tá assumido a história de um<br />
povo e a dança do carimbó traz a história do afro e<br />
indígena. O carimbó é representativo - lá dentro do<br />
Coisa de Negro, ele é representante dessas histórias<br />
de lutas e de resistências.<br />
Outro ponto é sobre a economia da cultura, mais<br />
baseada na economia solidária e na economia criativa.<br />
O que eu vi aqui das experiências, reforçam a<br />
ideia de que a cultura está se organizando em torno<br />
da economia solidária que é mais essa produção colaborativa<br />
e a autogestão. Lá no Coisa de Negro estamos<br />
fazendo shows, cobrando ingresso, buscando<br />
formas de resistência econômica por meio da colaboração.<br />
Então, a economia da cultura está crescendo,<br />
o termo indústria cultural está cada vez menos sendo<br />
pesquisado dentro da universidade, e está cada<br />
vez mais aparecendo o termo Economia da Cultura.<br />
A gente tá precisando se ligar que a gente faz economia<br />
solidaria para assim poder acessar as políticas<br />
públicas relacionadas.<br />
ConheCImento trAnsversAL<br />
Luisinho Lins: Por ser música regional, tocada<br />
com instrumento rústico, os caras acham que não<br />
precisam ter pesquisa, um bom tratamento e uma<br />
boa qualidade de som. Isso foi uma das coisas que<br />
a gente começou a se questionar: Por que o carimbó<br />
não pode ter esse mesmo tratamento? Por que os<br />
grupos regionais não podem ter essa preocupação de<br />
fazer pesquisa e registro? Foi aí que a gente passou<br />
a fazer um trabalho de pesquisa sobre o banjo, um<br />
instrumento que existia nos relatos há mais de 200<br />
anos, mas que estava desaparecendo da cena. Então,<br />
fomos rever e estudar esse instrumento, de alguma<br />
uma maneira melhorá-lo e depois desenvolver oficinas.<br />
Clever dos Santos: Esse banjo aí foi feito pelo Ney<br />
Lima pela necessidade de tocar e de ter o instrumento.<br />
Andando na rua ele viu um pedaço de madeira e<br />
enxergou um banjo. Se você observar ele é todo lata,<br />
uma pele de tamborim foi doada, e o resto é tudo resíduo...<br />
foi corda de pesca, o captador também foi<br />
128<br />
#redes locais e Autonomia<br />
doado, uma sucata, o braço também foi feito manualmente,<br />
os traços, então esse é um objeto sonoro<br />
metareciclado, que foi feito na cidade, mas com uma<br />
conotação lá do rural, do pau que é utilizado para<br />
fazer o carimbó. Esse é um exemplo bem clássico,<br />
bem claro, do que a gente está falando aqui em termo<br />
de reciclagem, de reutilização de resíduos sólidos e<br />
metareciclagem. E não podemos deixar de falar que<br />
temos o Nego Ray, que é o responsável por essa parte<br />
de instrumentos, e a partir dos ensinamentos dele, o<br />
Ney começou também a produzir os próprios instrumentos.<br />
Gleidson Carrera: Tem o seu Lourival também.<br />
Clever dos Santos: O Seu Lourival Igarapé é um<br />
cara que faz também instrumentos. O Ronaldo Farias<br />
é outro.<br />
Ney Lima: Uma informação, o Seu Lourival é militante<br />
da cultura popular. O que eu achei interessante<br />
quando eu cheguei lá na casa dele foi ver uma muda<br />
de cuieira, que ele plantou, que cresceu, agora está<br />
bem frondosa. Ele está usando as cuias de lá para<br />
fazer maracas, com sons incríveis...a do Gleidson é<br />
uma delas. Então, para mim isso aí, ele sentiu a necessidade<br />
de ter esse material para poder produzir e<br />
plantou.<br />
Gleidson Carrera: Ele plantou na casa dele, no<br />
fundo do quintal, para poder depois desfrutar.<br />
Ney Lima: Ele já deve ter, pelo menos, uns 8 pares<br />
de maracas. E maracas boas... ele chegou com o Ray,<br />
e disse: - “olha, fiz essa!”. Quando ele ouviu, respondeu:<br />
“eu vou ficar com essa aqui!” E justamente essa<br />
questão, a do repasse de informação, na oralidade:<br />
Seu Lourival usa para desbastar a cuia um instrumento<br />
que é meio difícil usarem agora, chamado grosa.<br />
É como se fosse um ralador, só que esticado, mais<br />
ou menos, como se fosse uma chave de fenda, só que<br />
achatada e com estrias. é ele que cava os curimbós<br />
do Ray.<br />
Pois é, então ele usa isso, e vai desbastando, balançando<br />
até encontrar a diferenciação do som das duas<br />
maracas, e principalmente da intensidade do som<br />
de cada uma, por conta dessa desbastação já que é<br />
muito grossa a cuia.
coletivo Puraqué<br />
ativismo de base<br />
TIC 1 - umA ferrAmentA de inclusão sociAl<br />
mArie ellen sluis 2<br />
1 Tecnologias da Informação e Comunicação<br />
2 Este artigo pertence a um capitulo da tese Ellen: Amazonian<br />
Geeks and Social Activism: An ethnographic study on<br />
the appropriation of ICTs in the Brazilian Amazon.<br />
A gambiarra tem sido um elemento fundamental<br />
nas inúmeras iniciativas de ativismo de base que<br />
emergiram em todo o Brasil. Essas iniciativas buscam<br />
a apropriação do “faça-vc-mesmx” e da baixa<br />
tecnologia à realidade espacial local, buscando uma<br />
alternativa aos projetos de inclusão digital de cimapara-baixo<br />
– que ocorrem com frequência no setor<br />
público e privado – de uma forma que busque criar<br />
uma autonomia dentro do atual modelo capitalista<br />
desigual. Em Santarém, Puraqué é um coletivo de<br />
ativistas sociais que espalham a ideologia na região,<br />
buscando engajamento social e emancipação por<br />
meio de um conhecimento coletivo crescente. Como<br />
brasileiros inovadores, eles procuram uma forma de<br />
sustentabilidade baseada na geração de riqueza e por<br />
meio do conhecimento sobre a realidade cotidiana e<br />
local (exploração, violência, drogas, sexo e desemprego)<br />
das pessoas 1 .<br />
HistÓriA<br />
Aproximadamente oito anos atrás, Jader e<br />
Tarcísio fundaram o Puraqué, na vizinhança de<br />
Mapirí, em uma época em que aquela era uma das<br />
piores vizinhanças da cidade. Muitos adolescentes<br />
estavam envolvidos em gangues, tráfico de drogas e<br />
violência extrema nas ruas, causando mortes. Ambos<br />
vieram de famílias que sempre haviam se envolvido<br />
em movimentos sociais. Dona Alice, mãe de Tarcísio,<br />
considera a si mesma uma feminista e o pai e a mãe<br />
de Jader sempre foram membros do movimento social<br />
local. Tarcísio também me contou que, quando<br />
eram adolescentes, eles já tinham criado um grupo<br />
de amigos chamado Gaepa (Grupo de Amigos Estudando<br />
para Agir) com o objetivo de lutar contra os<br />
crimes ambientais. Por exemplo, criaram uma campanha<br />
contra os pescadores que usavam bombas na<br />
água para matar grandes quantidades de peixe, mas<br />
1 Gama, J. “PURAQUÉ: Uma história do futuro do<br />
software livre na Amazônia”. Retirado de http://puraque.comumlab.org/?page_id=2<br />
em 07/08/2010 e Lima, P. “Santarém<br />
terá Pontão de Cultura Digital”, Retirado de http://pontaotapajos.redemocoronga.org.br/2009/03/18/pontao-de-culturadigital-do-tapajos/<br />
em 07/08/2010<br />
130<br />
#redes locais e Autonomia<br />
simultaneamente matando vegetação e outros animais.<br />
Quando cresceram, eles se distanciaram. Alguns<br />
foram para a universidade em outras cidades,<br />
outros casaram ou decidiram que tinham que arrumar<br />
um emprego e renda. Jader, por exemplo,<br />
começou uma gráfica. No entanto, por conflitos internos<br />
com seu companheiro, ele decidiu deixá-la. Oito<br />
anos depois da separação dos jovens ativistas, Jader<br />
reencontra Tarcísio, que já estava desapontado com<br />
o setor corporativo. Ambos se conscientizam da importância<br />
de um tipo de projeto social que envolvesse<br />
tecnologia e que pudesse melhorar a situação terrível<br />
da vizinhança. Desde então, eles estão determinados<br />
a continuar trabalhando na mesma direção.<br />
Desde sua primeira base em Mapirí, os<br />
puraquean@s2 têm se movido pela cidade, trabalhando<br />
em uma série de vizinhanças à procura de<br />
um projeto que promova coesão social. Em Mapirí,<br />
por exemplo, suas atividades tiveram um significativo<br />
impacto na situação do bairro. Tarcísio me disse<br />
que, naquela época, Mapirí era considerado o bairro<br />
mais perigoso, com alto índice de criminalidade<br />
e pobreza. Naturalmente, isso era a principal razão<br />
para começar o projeto justo ali, com o propósito de<br />
ocupar os jovens criminosos por meio de cursos e<br />
oficinas de informática e provê-los com um espaço<br />
alternativo à rua. No primeiro ano, o espaço alternativo<br />
foi uma pequena garagem em uma casa de seus<br />
pais. Usaram dois computadores velhos para realizar<br />
suas primeiras oficinas. Para juntar os estudantes,<br />
eles se aproximaram dos líderes das gangues mais<br />
perigosas e os convenceram a assistir às aulas e frequentar<br />
o projeto. Rogerio, um ex-puraquean@, me<br />
disse: “Surpreendentemente, esses caras, até quando<br />
eram de outras gangues, realmente se respeitavam<br />
dentro do projeto. Enquanto eles podiam se matar<br />
fora do prédio, ali dentro eles colaboravam. E eram<br />
da mesma sala!”. O objetivo principal do Puraqué era<br />
2 Eles escrevem puraquean@s, ao invés de puraqueanos<br />
ou puraqueanas, ao se referir a homens e mulheres, respectivamente,<br />
porque não querem distinguir entre participantes<br />
masculinos ou femininos. Todos são considerados iguais.<br />
rádio e conectividade da Casa Puraqué<br />
oferecer um espaço alternativo para esses jovens, já<br />
que normalmente não tinham nenhum outro lugar<br />
para ir. Infelizmente, nas primeiras semanas, uma<br />
tensão crescente entre duas gangues levou ao assassinato<br />
de um homem por três pessoas de uma das<br />
gangues. Como resultado, esses três foram sentenciados<br />
à prisão até hoje e deixaram o Puraqué. Isso<br />
joga luz na situação daquela vizinhança, que ainda é<br />
realidade em muitas outras.<br />
Tarcísio me contou uma história da participação<br />
de um menino num jornal mensal, à época de um<br />
dos cursos. Para uma das edições, ele escreveu sobre<br />
sua situação em casa: ele escreveu como percebia o<br />
álcool arruinando sua família e prometeu nunca provar<br />
de uma garrafa de álcool. Ele desenhou uma garrafa<br />
de Cachaça 51 com uma cruz vermelha grande<br />
sobre ela. Como as crianças dependem de seus pais<br />
e, normalmente, os tomam como exemplos, é muito<br />
difícil achar um caminho para fora da miséria. Mesmo<br />
que a criança odiasse o comportamento de seu<br />
pai naquele momento, se a ele faltasse uma forma<br />
de se manter, ter esperança ou confiança para viver<br />
independentemente, ele muito provavelmente terminaria<br />
da mesma forma.<br />
No Puraqué, ele achou um espaço para refletir<br />
sobre seus problemas e expressar seus sentimentos<br />
sobre seus pais, sem sentir a opressão deles.<br />
Em Mapirí, a vida mudou significantemente.<br />
Durante minha estadia em Santarém, eu vivi em Mapirí<br />
e, mesmo que permaneça uma vizinhança simples,<br />
a vida nas ruas é relativamente calma e pacífica.<br />
A vizinhança de Dona Alice, a senhora que me recebeu,<br />
sabia da gringa que estava visitando Santarém.<br />
Até à noite, as pessoas sentavam às portas de suas<br />
casas, curtindo a brisa fresca, e normalmente tinham<br />
breves conversas comigo. Nada parecia apontar à atmosfera<br />
violenta e agressiva que era tão preponderante<br />
uns dois anos atrás.<br />
Para atender uma área maior, eles operavam<br />
em bairros diferentes. Quando as coisas melhoraram<br />
em Mapirí, eles foram para outras áreas. Recentemente,<br />
deslocaram-se para uma periferia bem<br />
distante, chamada Santo Amaro, onde as atividades<br />
começarão em breve. Hoje, Santo Amaro também<br />
é uma vizinhança muito pobre. Quando eles ainda<br />
estavam construindo sua nova base, os moradores<br />
locais estavam curiosos, quase suspeitos. Normalmente<br />
toma um tempo até que os locais aceitem o<br />
projeto e comecem a participar das atividades. Além<br />
dos cursos em suas bases, eles dão oficinas em associações<br />
vizinhas ou em escolas do município e viajam<br />
para disseminar a cultura digital - por meio da<br />
implementação de Telecentros - e formar monitores<br />
em diversas comunidades fora da área urbana. Assim,<br />
eles operam simultaneamente em sua localidade<br />
e na região.<br />
AtividAdes e estruturA<br />
A base do Puraqué é onde eles realizam suas<br />
atividades regulares. Durante minha estadia, eles<br />
ainda estavam construindo sua nova base em Santo<br />
Amaro. Tinham recém comprado uma casa branca,<br />
de tamanho mediano, com três quartos e uma pequena<br />
cozinha; é cercada de um terreno grande, com uma<br />
variedade de plantas e árvores. Os três quartos da<br />
casa servirão, respectivamente, de auditório, de estúdio<br />
multimídia e de quarto para possíveis visitantes.<br />
Notavelmente, o quarto e o fato de ter uma cozinha<br />
demonstra o caráter acolhedor e caseiro do projeto.<br />
Qualquer um é bem-vindo. A cozinha é usada para o<br />
almoço e, especialmente, para o preparo de lanches<br />
para os participantes. A grande garagem à direita da<br />
casa servirá como um laboratório de computadores,<br />
que será equipado com mais de vinte máquinas. No<br />
amplo jardim, um mastro para uma antena de 15<br />
metros estava sendo instalado para receber o sinal de<br />
internet. Estavam ainda construindo uma oca 3 de 30<br />
m2, que eles usarão para atividades particulares, oficinas<br />
e outros eventos. Cada parede, dentro e fora da<br />
casa, foi grafitada, variando da palavra puraqué, na<br />
frente, a verdadeiros trabalhos de arte e um enorme<br />
e assustador peixe poraquê nas paredes de dentro da<br />
casa.<br />
3 Uma oca é uma moradia robusta, construída<br />
pelos povos indígenas brasileiros.
Em sua base, usualmente ocorrem inúmeras<br />
atividades. São diversos cursos de três meses, entre<br />
eles: básico de informática; informática avançada;<br />
áudio; vídeo; multimídia; uso de blogs e internet; e<br />
metareciclagem. Cada curso dura de 25 a 30 aulas,<br />
de uma hora e meia ou duas horas cada, e, depois de<br />
três meses, os participantes recebem um certificado.<br />
As pessoas podem fazer quantos cursos desejarem,<br />
contanto que se inscrevam. Uma vez que um<br />
curso está com turma completa, só é possível participar<br />
da próxima, três meses depois. Durante as horas<br />
livres dos cursos, as pessoas são sempre bem-vindas<br />
no laboratório, para ajudá-los em suas atividades e<br />
oficinas, ou para ganhar responsabilidades, como<br />
voluntários.<br />
Quando um participante é capaz de ensinar em<br />
um curso, ele vai fazer isso, ou pelo menos ajudar,<br />
paralelo ao curso em que está inserido no momento.<br />
A uma jovem mulher chamada Biene, por exemplo,<br />
já lhe foi permitido que ensine a metareciclagem e<br />
ela mesma assume a função do professor usual, caso<br />
ele não possa ir; ao mesmo tempo, ela participa das<br />
aulas de informática avançada.<br />
As pessoas são encorajadas a desenvolver<br />
múltiplas habilidades, no sentido de manter uma estrutura<br />
horizontal. Assim, as pessoas são tanto professoras<br />
quanto alunas e não há um “professor principal”,<br />
com poder decisivo absoluto. Dessa forma,<br />
como projeto, eles não dependem exclusivamente<br />
de uma pessoa só e todos têm chance de desenvolver<br />
um conhecimento mais amplo, já que eles sabem um<br />
pouquinho sobre muitas coisas.<br />
A participação no Puraqué é totalmente voluntária.<br />
O grupo central, que sempre varia, consiste<br />
de pessoas que mantém uma renda em outro lugar e<br />
gastam seu tempo livre no Puraqué. Jader trabalha<br />
no Ministério da Cultura como “consultor de cultura<br />
digital” e, simultaneamente, participa em diversas<br />
atividades quando está em Santarém. Marcelo,<br />
que é outro membro central, por dois anos agora, é<br />
132<br />
#redes locais e Autonomia<br />
cosntrução de mapas na imersiva Hacklab Santarém as pessoas são encorajadas a desenvolver múltiplas habilidades.<br />
contratado da Secretaria de Educação do município,<br />
para manter os computadores reciclados nos laboratórios<br />
das escolas públicas. Assim, eles combinam<br />
as atividades do Puraqué por meio de trabalhos que<br />
correspondem a essas atividades ou que eles possam<br />
aplicar ou combiná-las.<br />
metodologiA PurAqueAn@<br />
Valendo-se de um discurso mais profundo<br />
sobre as TICs, Puraqué tende a ir além dos seus<br />
princípios básicos de uso. No lugar disso, eles focam<br />
nos assuntos sócio-políticos que estão relacionados<br />
às TICs e à sociedade atual - como o capitalismo, o<br />
consumismo e os assuntos ambientais -, tendendo<br />
a usar as TICs de forma a pensar alternativas. O<br />
ponto de partida é a ideia da gambiarra; no lugar<br />
de consumir cegamente tudo o que é produzido no<br />
mundo ocidental, eles focam no que está ao redor<br />
deles, nas ruas, ou no para quê eles podem usar<br />
aquilo4 . Uma vez criaram antenas de internet usando<br />
latas de óleo, por exemplo. E em diversas cidades e<br />
vilas, foram construídos transmissores de rádio FM<br />
a partir de velhos componentes e peças de uma fonte<br />
de PC. Assim eles demonstram que não somente não<br />
dependem do Ocidente ou do mercado capitalista<br />
ou de recursos financeiros, mas que podem<br />
criar alternativas sustentáveis. Essas atividades<br />
demonstram às pessoas como prover acesso às<br />
TICs de uma forma alternativa e, simultaneamente,<br />
encorajar os indivíduos a, coletivamente, usar<br />
esse conhecimento para transformar uma região<br />
que está sujeita à exploração em outra, na qual o<br />
desenvolvimento de tecnologias digitais possa ser<br />
sua principal característica.<br />
Atualmente, as atividades se tornaram razoavelmente<br />
organizadas e vão além da gambiarra.<br />
Suas atividades não são mais ações táticas e efêmeras<br />
4 ROSAS, R. "The Gambiarra: Consideration on a Recombinatory<br />
Technology", in Boler, M., (ed) Digital Media and<br />
Democracy. Tactics in Hard Times. Massachusetts Institute os<br />
Techonology, 2008<br />
para se opor às estruturas e iniciativas públicoprivadas.<br />
As atividades informais se transformaram<br />
em cursos organizados e com uma metodologia<br />
didática, que estimula a colaboração, a solidariedade<br />
e o pensamento crítico. Assim, eles se opõem<br />
ao modelo educacional paternalista tradicional, que<br />
notoriamente funciona a serviço do sistema capitalista5<br />
. Dessa forma, eles não focam em prover acesso<br />
às TICs como um fim e, sim, em usá-las como uma<br />
ferramenta de um tipo de melhoramento social, buscando<br />
a autonomia e o desenvolvimento sustentável.<br />
Acompanhando suas atividades, pude reconhecer<br />
quatro elementos de sua metodologia, consistindo<br />
em metareciclagem, uso de lixo eletrônico,<br />
Floss6 (software livre e de código aberto) e pensamento<br />
crítico; juntos, formam um discurso sóciopolítico<br />
que envolve todo o Puraqué.<br />
A internet PArA o<br />
PensAmento crÍtico<br />
Finalmente, e crucial para a sua metodologia,<br />
Puraqué busca aumentar o conhecimento crítico dos<br />
participantes. Os puraquean@s argumentam que o<br />
conhecimento é o que falta na região a fim de desenvolvê-la<br />
de uma forma igualitária e sustentável, sendo<br />
que as TICs podem servir como uma ferramenta para<br />
obter esse conhecimento. Portanto, eles não meramente<br />
focam em acessar, usar e entender as TICs,<br />
eles também mergulham o discurso em uma série de<br />
atividades extras. Por exemplo, eles organizam muitos<br />
projetos e eventos em que essas questões são dis-<br />
5 KUCUKAYDIN, I, and TISDELL, E. "the<br />
discourse on the digital divide: are we being co-opted?", in:<br />
InterActions: UCLA Journal of Education and Information<br />
studies. Vol. 4, (1), 2008.<br />
6 Como a diferença entre os movimentos "Software<br />
Livre" e "Código Aberto" está apenas na argumentação em prol<br />
dos mesmos softwares, é comum que esses grupos se unam em<br />
diversas situações ou que sejam citados de uma forma agregadora<br />
através da sigla "FLOSS" (Free/Libre and Open Source<br />
Software).<br />
cutidas. Teve lugar aqui a 1º Feira de Conhecimentos<br />
Livres nos Bairros com a presença de centenas de<br />
pessoas. E elas não eram somente participantes do<br />
projeto, mas pessoas dos setores público e privado,<br />
que estavam interessadas nas ideias do Floss, da reciclagem<br />
(de código-aberto) de hardware e projetos<br />
colaborativos. Também organizaram debates e eventos<br />
sobre tópicos sócio-políticos e noites de cineclube<br />
(assistir filmes de arte da casa e discuti-los depois).<br />
Eles também implementaram esse discurso<br />
através dos cursos. Assisti a diversas aulas em<br />
que os estudantes desenham um flyer sobre os<br />
perigos ambientais. Um grupo fez um flyer sobre o<br />
desmatamento. Eles tinham que acessar a internet<br />
para retirar informação relevante sobre o tópico que<br />
eles queriam escrever. Depois de visitar alguns sítios<br />
relevantes, eles copiavam-e-colavam partes de textos<br />
e reescreviam outras partes para informar sobre as<br />
consequências ambientais e sociais do desmatamento.<br />
Também procuravam por imagens que editavam no<br />
Gimp (programa de manipulação de imagens GNU).<br />
Consequentemente, eles importavam tanto o texto<br />
quanto a imagem para o Inkscape (editor gráfico),<br />
para terminar o desenho do flyer. Como é uma tarefa<br />
de grupo, os estudantes interagem uns com os outros,<br />
trocam opiniões e discutem a informação. Assim, de<br />
forma colaborativa, aumentam seu conhecimento<br />
tanto em conteúdo quanto em forma. Problemas<br />
ocorrem, por exemplo, com certas imagens que<br />
querem usar, mas que parte do texto dessa imagem não<br />
corresponde ao conteúdo do texto. Quando discutem<br />
isso e comparam com a imagem em particular, eles<br />
se engajam profundamente com o tópico da classe.<br />
Como encorajam os participantes a usar a internet<br />
como recurso para adquirir informação sobre<br />
tópicos sócio-políticos, os estudantes aprendem<br />
como usar outras funcionalidades da internet. Isso<br />
é importante, já que um dos objetivos do Puraqué<br />
é obter conhecimento e desenvolver habilidades de<br />
pensamento crítico, mais que meramente usá-la para<br />
redes sociais e consumo.
134<br />
#redes locais e Autonomia<br />
muirAquitã<br />
De acordo com sua ideologia de desenvolvimento<br />
sustentável e autonomia, eles desenvolveram<br />
um sistema alternativo de pagamento para a participação<br />
nos cursos. Em Santarém, o lixo é um problema<br />
sério. Nunca vi tantos urubus – uma ave-derapina<br />
da família do Condor, cuja dieta é composta<br />
de carcaças, matéria de plantas mortas e lixo – nas<br />
ruas urbanas. Puraqué reconheceu a importância<br />
de criar consciência sobre essa questão, além de<br />
achar uma solução sustentável para esse problema.<br />
Também querem que o curso seja acessível a todos.<br />
Eles não queriam cobrar dinheiro pela participação.<br />
Então decidiram criar uma moeda social específica,<br />
chamada Muraquitã 7 , que simultaneamente provê<br />
uma solução para o problema do lixo da cidade. O<br />
Muraquitã equivale a vinte garrafas PET. Espera-se<br />
que os participantes tragam uma quantidade suficiente<br />
de garrafas PET para pagar pelo curso (um curso<br />
de três meses custará por volta de 30 muraquitãs)<br />
e o Puraqué vende 8 o plástico para um reciclador<br />
de plástico. Assim, o lixo plástico nas ruas diminuirá,<br />
as pessoas tomarão consciência do problema do<br />
lixo e todos poderão participar dos cursos. Eles estão<br />
tentando disseminar a moeda pela cidade, mais ainda<br />
poucos lugares estão realmente dispostos a reconhecer<br />
a moeda como uma forma de pagamento.<br />
7 Muiraquitã (do tupi mbïraki'tã, "nó das árvores", nó<br />
das madeiras", de muyrá ou mbyra, "árvore", "pau", "madeira"<br />
e quitã, "nó", "verruga", "objeto de forma arredondada"), para<br />
os índios brasileiros do Baixo Amazonas, é um artefato talhado<br />
em pedra (na maior parte das vezes feito a partir do jade, pela<br />
cor esverdeada) ou madeira, representando pessoas ou animais<br />
(uma rã, peixe, tartaruga, por exemplo), ao qual são atribuídas<br />
as qualidades sobrenaturais de amuleto. Também é conhecido<br />
pelos nomes de pedra-das-amazonas e pedra-verde.<br />
8 Para cada quilo de garrafas PET (que equivale a 20 garrafas)<br />
eles ganham um real. Em média, custa a eles 33 centavos<br />
para criar a moeda e eles têm que cortar e prensar manualmente<br />
cada garrafa. Assim, eles não têm nenhum lucro significativo<br />
nesse processo.<br />
Quando o primeiro passo é criar um conhecimento<br />
técnico profundo das TICs para estimular um<br />
engajamento social e autonomia, eles eventualmente<br />
buscam aumentar o conhecimento crítico como um<br />
recurso valioso na região. Ao contaminar e educar<br />
os outros, esse conhecimento crescerá exponencialmente.<br />
Como os puraquean@s são ativistas, sua<br />
ideologia de fato é o seu bastão principal no processo<br />
de inclusão digital. Eles lutam contra o capitalismo<br />
que explora a região, destrói o meio-ambiente e causa<br />
pobreza. De acordo com as teorias presentes no<br />
“capitalismo digital olhando para o Sul” e “capitalismo<br />
informacional” introduzido no capítulo 2, eles<br />
são cautelosos com o setor privado e tendem a criar<br />
autonomia através de tecnologias de código aberto<br />
(hardware e software). Eles querem que as pessoas<br />
tomem consciência disso e, de forma colaborativa,<br />
trabalhem nessa alternativa ao modelo existente,<br />
aumentando o conhecimento colaborativo e usando<br />
isso para pensar e criar alternativas sustentáveis. Isso<br />
também inclui uma forma de participação ativa, em<br />
que os usuários são capazes de produzir conteúdo ou,<br />
criticamente, analisar informação, ao invés de ser um<br />
consumidor passivo. O mais importante, no entanto,<br />
é socialmente elevar o indivíduo, partindo da ideia de<br />
que o usuário pode decidir o que é benéfico para ele<br />
sem implicar com isso certas regras ou ideias 9 .<br />
9 Veja em: BUZATO, M., "Inclusão digital como<br />
invenção do quotidiano: um estudo de caso". IN: Rev. Bras.<br />
Educ. [online], vol.13, (38), 2008, pp.325-342. Fonte: http://<br />
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-<br />
24782008000200010&lng=pt&nrm=iso em 11/12/2009. Ele<br />
mostra uma série de exemplos concretos de um colaborador<br />
de Telecentro que tem uma determinada visão sobre como<br />
“incluir” um usuário e como ensiná-lo, desde a perspectiva de<br />
um “já incluído”. O usuário, de outro lado, muitas vezes usa a<br />
tecnologia de uma forma diferente, que diretamente beneficia<br />
suas necessidades.
ede de cineclubes<br />
comunidAdes trAdicionAis de<br />
terreiros dão o exemPlo.<br />
Arthur Leandro, francisco Weyl,<br />
Isabela do Lago, Rodrigo Barros<br />
(Gt de Comunidades Tradicionais da PaRaCINE)<br />
A primeira experiência com projeção de filmes<br />
no Mansu Nangetu aconteceu em 2005. Arthur<br />
Leandro voltava a morar em Belém depois de uma<br />
longa temporada residindo em outras cidades,<br />
trouxe em sua bagagem dois rolos de filmes de<br />
16mm que conseguiu quando comprou móveis para<br />
a mobília de sua residência temporária para cursar<br />
doutorado. Fez as compras de um ferro velho na<br />
periferia da cidade do Rio de Janeiro, os móveis<br />
eram de um leilão de alienação do Centro Técnico<br />
do Audiovisual/CTAV - MinC, e nas gavetas veio<br />
o brinde de duas películas: “Egungun” e “Mito e<br />
metamorfoses das mães Nagô” (Iya-Mi-Agbá - Arte<br />
sacra negra II), ambos produzidos pela Sociedade de<br />
Estudos da Cultura Negra no Brasil – SECNEB, em<br />
parceria com o CTAV, e a descoberta dos “brindes”<br />
foi considerada uma benção.<br />
Em dezembro de 2005, quando já residia novamente<br />
na capital paraense, organizou um evento<br />
cultural para exibir essas relíquias audiovisuais para<br />
a comunidade afro-religiosa da zona metropolitana<br />
de Belém, pediu um projetor emprestado para a<br />
Fundação Curro Velho – FCV, e com a colaboração<br />
do funcionário da instituição, Eduardo Kaliff, e com<br />
a divulgação feita na base do boca-a-boca projetou o<br />
filme nas paredes brancas do terreiro para um publico<br />
de seis pessoas. Quando do acender das luzes<br />
ao final do filme, um intenso debate espontâneo<br />
tomou conta dos presentes, com o mote da necessidade<br />
da comunidade afro-religiosa ter acesso e poder<br />
conhecer a produção audiovisual brasileira que tem<br />
como assunto e argumento a cultura religiosa de matriz<br />
africana no Brasil.<br />
Essa projeção em parceria com a FCV foi o<br />
embrião para o Cineclube Nangetu. Foi a conversa<br />
depois do filme que despertou os membros do ter-<br />
136<br />
#redes locais e Autonomia<br />
ii diálogos cineclubistas - construindo<br />
a jornada Paraense de cineclubes<br />
(mAnsu nAgentu - marco da légua - belém)<br />
reiro para a potência do cinema para colocar em<br />
questão assuntos relacionados com a cidadania afrobrasileira,<br />
e no ano seguinte repetiram timidamente<br />
a mesma experiência com os dois filmes, pois sempre<br />
havia alguém cobrando de nós uma nova projeção,<br />
mas nem sempre o equipamento da Fundação estava<br />
disponível.<br />
Mais ou menos no mesmo período que a atuação<br />
da rede [aparelho]-: ganha força pelas ruas da<br />
cidade, e da parceria que se formou entre as duas organizações<br />
o Cineclube pode ter acesso a mídias digitais<br />
e acervo de filmes disponíveis na internet e, com<br />
isso, manter maior regularidade em suas atividades.<br />
E assim, entre parcerias solidárias e colaborações<br />
dos membros da comunidade do Mansu que o<br />
Cineclube Nangetu mantém a regularidade de sessões<br />
de cinema no terreiro, colocando em discussão<br />
problemas sociais e abordando temas difíceis para a<br />
sociedade brasileira como o racismo e a intolerância<br />
religiosa.<br />
Ano após ano a ação foi ganhando força e os<br />
impactos que causou contribuiu para a formação da<br />
Rede de Cineclubes nos Terreiros da zona metropolitana<br />
de Belém, uma proposição para o GT de Povos<br />
e Comunidades Tradicionais da Federação Paraense<br />
de Cineclubes/ PARACINE, da qual fazem parte:<br />
Cineclube Nangetu, Cineclube ti Bamburucema,<br />
Cineclube ACIYOMI, Cineclube ACAOÃ, Cineclube<br />
Maristrela (AFAIA), Cineclube Estrela Guia Aldeia<br />
de Tupynambá, Cineclube do Turco Jaguarema,<br />
Cineclube da ARCAXA, Cineclube da Irmandade de<br />
São Benedito, FEUCABEP, Cineclube do Turco Ricardinho.<br />
A comunidade afro-religiosa da zona<br />
metropolitana de Belém é bastante heterogênea<br />
e agrega pessoas oriundas de outras cidades, de<br />
sessão no cineclube marestrela<br />
(conj. maguary - icoaracy - belém)<br />
diversos bairros de Belém e de distintas classes<br />
sociais. Entretanto, na grande maioria são pessoas<br />
que vivem num universo de exclusão social e<br />
cultural, e que sobrevivem de prestação de serviços<br />
domésticos [faxina e cozinha], na base da pirâmide<br />
da hierarquia de produção: agentes de serviços<br />
gerais [motorista, faxineiro, vigia, segurança e outras<br />
atividades], ou usam suas habilidades para inserir<br />
produtos no mercado informal, principalmente na<br />
oferta de quitutes em bancas e tabuleiros ambulantes.<br />
Nesse universo, o acesso aos bens culturais também é<br />
deficiente: é um público que não freqüenta exposições,<br />
nem teatros e tampouco o circuito comercial de<br />
cinema, pois não tem recursos financeiros para tal, e<br />
que consome produtos culturais basicamente através<br />
da circulação promovida pela industria da pirataria.<br />
A ausência de equipamentos culturais nos bairros<br />
periféricos e nas demais cidades da zona metropolitana<br />
acentua a exclusão cultural e, falando especificamente<br />
de cinema, a situação se agrava com a<br />
extinção dos cinemas de bairro em razão do circuito<br />
'moviecom' - contexto aparentemente inevitável que<br />
afastou ainda mais essa parcela da população das salas<br />
de exibição públicas.<br />
As atividades cineclubistas que desenvolvemos<br />
tem incentivado a comunidade para a produção de<br />
seus próprios filmes - mesmo que não tenhamos<br />
realizado oficinas especificas de formação em audiovisual,<br />
imaginamos que com o acesso freqüente<br />
principalmente aos documentários exibidos, aliado<br />
à popularização de equipamentos portáteis como<br />
câmeras fotograficas e celulares com recursos de mídia,<br />
foram fatores determinantes para a circulação na<br />
internet de registros e documentação das atividades<br />
e das historias de personagens da comunidade. Assim,<br />
as ações cineclubistas realizadas pela rede de<br />
sessão no cineclube AcAoã<br />
(canudos - belém)<br />
cineclubes nos terreiros, atendem tanto as demandas<br />
de bairros desprovidos de salas de cinema quanto<br />
de comunidades historicamente excluidas de todo o<br />
sistema produtivo brasileiro.<br />
Apresentamos prioritariamente filmes com<br />
a temática afro-brasileira, e com isso valorizamos<br />
a afro-brasilidade assim como a comunidade afroreligiosa.<br />
São documentários sobre as relações com<br />
o continente de origem, sobre personalidades afrobrasileiras,<br />
sobre a visão preconceituosa que a cristandade<br />
tem da afro-religiosidade, sobre a musica,<br />
até documentários sobre a cosmologia afro-amazônica<br />
e sobre o cotidiano dos terreiros. Também tem<br />
filmes que tratam da construção da imagem do negro<br />
e da religiosidade afro-brasileira na nossa sociedade,<br />
abordagens da condição socioeconômica, moradia,<br />
violência e resistência política e cultural. Mas também<br />
trazemos temas de cidadania, como a discussao<br />
da condição feminina, temas de meio ambiente<br />
e outros. Em cada exibição propomos uma roda de<br />
conversas com membros das comunidades e/ou com<br />
outros convidados para discutir os assuntos tratados<br />
nos filmes.<br />
A rede tem utilizado o calendário festivo e<br />
ritualístico dos terreiros como estratégia para a realização<br />
de exibições. Nos dias festivos encaixamos<br />
a exibição ou antes ou depois da festividade, como<br />
um atrativo a mais para os convidados. Por vezes há<br />
rituais que exigem a presença de sacerdotes por dias<br />
seguidos no Terreiro, temos usado os intervalos de<br />
tempo de folga desses dias de rituais internos para<br />
o cineclube, como uma alternativa de lazer e de convivência<br />
lúdica da comunidade.<br />
O importante dessa rede é registrar que de uma<br />
formiguinha já se fornou um formigueiro.
138<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
Projeções realizadas na fachada da igreja da sé,<br />
belém-Pa. durante o segundo encontro do Hacklab.<br />
#<br />
epilógo:<br />
entre ruas e rios...<br />
ARQUIVOS RMX : Belo Monte - anuncio de uma guerra.mp4 | FITZCARRALDO.m4v | Nas cinzas da floresta.avi | A descoberta<br />
da Amazonia pelos turcos encantados.AVI | Chama Verequete Parte 02.mp4 | 1_Muragens_DV.mp4 | Eu.Receberia.<br />
As.Piores.Noticias.Dos.Seus.Lindos.Labios.DVDRip.XviD-3LT0N.avi | Antitemplo.mp4 | Creature From the Black Lagoon<br />
O Monstro da Lagoa Negra – 1954.mp4 | LÚCIO FLÁVIO PINTO CONTRACORRENTE O FILME PARTE 2.avi | TambordaUniao.avi
o imaginário social sobre a Amazônia:<br />
antropologia dos conhecedores<br />
SAMUEL MARIA DE AMORIM Sá<br />
introdução<br />
Tomamos o imaginário no contexto de um<br />
estudo sobre conhecedores. Imaginar ou fabular é<br />
um dos papéis de quem busca ou produz conhecimento.<br />
Então entendemos inicialmente que o imaginário<br />
é muito mais que um produto anônimo, que<br />
um processo cognitivo congelado. Nesse muito mais,<br />
destacamos componentes que são sujeitos e não<br />
objetos, narradores e narratários, como se diz em<br />
análise de narrativas. Desse modo, acentuamos uma<br />
posição que traz à cena possibilidades intersubjetivas<br />
do imaginário. Quer dizer, assumimos que conhecedores<br />
são pacientes e agentes em um coral de polifonia<br />
(e de polissemia?), em resposta à necessidade<br />
de tratar com a realidade objetiva, porém buscando a<br />
mediação de representações mutuamente inteligíveis<br />
visando à intercomunicação. Para essa abordagem,<br />
nos valemos do filósofo Luiz Carlos Bombassaro<br />
(1997), em seu estudo sobre As fronteiras do conhecimento<br />
e em particular quando detalha sua argumentação<br />
a respeito das relações entre historicidade<br />
e racionalidade. Bombassaro, que se faz apoiar em<br />
Habermas e Rorty, destaca, no conhecer, a produção,<br />
o produto e o produtor; de certo modo, ele replica<br />
o esquema do processo de comunicação, ou seja, a<br />
mensagem, as mediações e os interlocutores processadores.<br />
Adicionalmente, tomamos para diálogo o<br />
conceito de atos de fala de John R. Searle (1981, pp.<br />
29, 30-1, 27). Neste contexto nos apoiamos em duas<br />
referências desse autor: 1) “Freqüentemente, o que<br />
dizemos significa mais do que (aquilo que) realmente<br />
dizemos”; e 2) “Falar é uma forma de comportamento<br />
regida por regras”. Na primeira sentença, o que nos<br />
140<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
O artigo aborda o tema do imaginário social sobre a Amazônia, e<br />
se fundamenta em uma base teórica que vê o imaginário como parcela<br />
da realidade social e como meio relevante para formar conhecedores.<br />
faz referência a situações e autores que tratam direta ou indiretamente<br />
sobre o tema. Um dos aspectos analisados no artigo é a relação da saúde<br />
pública com o imaginário. A conclusão destaca a importância do imaginário<br />
para que não se importem padrões de comportamento e soluções<br />
para problemas locais acriticamente, como uma modalidade de consumismo,<br />
mas que se combinem instituições ou soluções de fora e de dentro<br />
ou tradições endógenas e exógenas em contínuo reprocessamento.<br />
PALAVRAS-CHAVE: imaginário social, Amazônia, conhecedores,<br />
antropologia dos conhecedores.<br />
interessa? Interessa-nos aquele “mais” (com um al<br />
dila da canção italiana de Domenico Modugno). Esse<br />
“mais” ou esse al dila transborda a materialidade e a<br />
intencionalidade da fala. O imaginário, aqui tomado<br />
como equivalente, é “ato de fala” e não ato falhado.<br />
Há, por hipótese, uma como “terceira margem”, ou<br />
seja, um flanco explícito ou implícito, mas aberto,<br />
disponível ou para se perder como um “demais” ou<br />
para ser recanalizar como uma exuberância de energia,<br />
a qual por analogia da antropóloga Mary Douglas<br />
(1998, p. 116), retomando Ilya Prigogine poderá<br />
tanto ser simplesmente “dissipada” ou esquecida, ou<br />
até ser “aproveitada” ou “usada em novos padrões de<br />
complexidade”. Aqui também podemos resumir e assumir<br />
o alcance proposto pelo semiólogo Humberto<br />
Eco com seu construto de “obra aberta”. Ademais,<br />
nosso entendimento se constrói na trilha de Cornelius<br />
Castoriadis (1980), com o conceito de instituinte.<br />
Deste autor, podemos reconceituar hipoteticamente<br />
o imaginário social como ato de fala instituído ou<br />
ato de fala instituinte como movimentação de tensão<br />
do primeiro. Foi esse posicionamento que nos levou<br />
a assumir o sentido do imaginário social a ser visto<br />
como possibilidade intersubjetiva, já referida assim<br />
há uma possível “colheita” de sentido que o traz, hoje,<br />
para os exercícios pré-decisórios, os quais aparecem<br />
na construção de cenários para fins de planejamento<br />
estratégico tramado em escala regional ou nacional.<br />
Como podemos tornar mais explícito o conceito<br />
de imaginário no contexto de um estudo sobre<br />
conhecedores? Por contraste, se há conhecimento<br />
entendido como produto e objeto, há também conhecedores<br />
como sujeitos que observam, indagam,<br />
aceitam ou não aceitam, imaginam ao fazer asso-<br />
ciações e dialogam com outros conhecedores e com<br />
outros conhecimentos que equivalem a situações<br />
prazerosas e provocadoras de interlocução e admiração.<br />
Dialogar quer dizer estabelecer interlocução,<br />
ultrapassando o diletantismo do tipo “conhecer por<br />
conhecer”, supõe articular atos de fala que levam a<br />
atos “de fato” presentes ou em vista de ação futura.<br />
Desse modo, a realidade nascida em experiências<br />
dos outros pode gerar passividade e conformismos,<br />
mas pode igualmente provocar avanços no sentido<br />
“primeiros passos”, “primeiras versões” ou de simulações<br />
úteis e práticas. É assim que temos projeções,<br />
como são os mapas de geografia, que atualmente já<br />
têm em Mercator uma relíquia, e nos de Peters que já<br />
se valem de dados tomados por satélites. Gerard Mercator,<br />
cartógrafo flamengo sistematizou idéias sobre<br />
representação plana de superfícies curvas (Melo,<br />
2000, p. 21), verdadeiras precursoras de cenários de<br />
planejamento estratégico, que funcionam como uma<br />
representação antecipatória, sob o nome de cenários<br />
com obstáculos para situações desejadas ou não desejadas.<br />
Como exemplo, podemos citar os Cenários<br />
Brasil 2020, formulados para o Centro de Estudos<br />
Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia<br />
(dez. 1997). Desse modo, o imaginário pode ser uma<br />
prisão ou uma construção libertária em lugar de o<br />
congelar admitimos por hipótese que ele é como um<br />
porto apenas medianamente seguro e, portanto, aberto<br />
a novos sentidos e desdobramentos.<br />
Faz sentido trabalhar com o imaginário se os<br />
admitimos na órbita de atos de fala na trilha de John<br />
R. Searle (1984). Searle, filósofo da linguagem, conceitua<br />
atos de fala como objetos de várias questões,<br />
entre as quais destacamos a seguinte: “Como fazem<br />
as palavras as vezes das coisas?” Quer dizer, o imaginário<br />
falado ou escrito não é marginal por parecer<br />
que nasceu apenas ao acaso, como luxo ou excesso<br />
desnecessário e irrelevante. Também, ele não cabe<br />
na categoria de maktub, isto é, de ato mágico ou fatalista,<br />
pelo contrário, ele é espelho de experiências<br />
com e sem datação, com e sem autoria; e poderá ser<br />
também um recurso intencional de antecipação e extrapolação<br />
visionária. Não esqueçamos esta virada<br />
do milênio, quando muitas incertezas tentam ser acolhidas<br />
em outro tipo de predição. Se assim for, como<br />
pôr os pés no “chão” do imaginário, ou seja, em situações<br />
onde ele aparecera antes e aparece agora?<br />
um Acervo<br />
Um acervo do imaginário social sobre a<br />
Amazônia assim se apresenta: ora são falas a respeito<br />
da Amazônia como “celeiro do mundo” (Humboldt,<br />
cientista), paraíso perdido (Euclides da Cunha,<br />
geólogo), inferno verde (Alberto Rangel, romancista),<br />
El Dorado (conquistadores espanhóis), pulmão do<br />
mundo (anônimo contemporâneo), counterfiet para-<br />
dise (Betty Meggers, arqueóloga). Analiticamente,<br />
esses modos de falar são modos de olhar mais de<br />
longe que de perto e podem recair em pólos de uma<br />
dicotomia que o cientista político José Murilo de Carvalho(1998)<br />
expressou para o Brasil, considerando-o<br />
como um todo: o ponto de vista edênico e o ponto<br />
de vista satânico. Mas é muito limitado permanecer<br />
na bipolarização. Será possível não descobrir outras<br />
instâncias de presença do imaginário que, sem esquecer<br />
o que há de advertência ou de fantasia, embeba<br />
de intenção a imaginação para tirar o papel do<br />
conhecedor da arena do cálculo diletante sem dono<br />
e sem endereço? José Murilo de Carvalho sente-se<br />
instigado quando admite que há um certo sinal relativamente<br />
dizível e indizível e que, portanto, transborda<br />
o lado cartesiano que pensa a evidência mais<br />
delimitada, com fronteiras mais distintas, e resiste<br />
em admitir que o imaginário também seja racional.<br />
Aqui ocorre o problema de admitir um status de racionalidade<br />
para o imaginário.<br />
Na história recente da Amazônia, das tentativas<br />
de Henry Ford, de Daniel Ludwig, da Icomi,<br />
dos chamados grandes projetos e mesmo de Serra<br />
Pelada, todos acabam ligados a uma fugacidade<br />
que os faz símbolos de um imaginário meramente<br />
econômico e desgarrado do meio e das populações<br />
nativas. Salvo colaboradores cooptados no meio local,<br />
foi notório o desvio decisório que colocou Daniel<br />
Ludwig mais na órbita de Brasília do que do poder<br />
local; mesmo a Hidrelétrica de Tucuruí (PA), sabidamente,<br />
trabalhou com um conceito de ciências da natureza<br />
do qual se excluíam os seres humanos (Monosokwski,<br />
1991). Como abstração, um tal imaginário<br />
das ciências da natureza que exclui seres humanos<br />
não permanece letra morta, pois teve efeitos perversos:<br />
alterou o nicho de insetos como os mosquitos,<br />
que, conseqüentemente, alteram a saúde de populações<br />
nos arredores da usina hidrelétrica de Tucuruí.<br />
Nesse imaginário recente, a memória bem sabe que<br />
apenas desejos não carreiam benefícios humanos.<br />
Supostamente, mais perto da racionalidade, por falta<br />
de consideração aos saberes ou tradições de populações<br />
locais (Freire, 1997), essas imaginações levam<br />
a insucessos. Mesmo o moderno projeto Radar na<br />
Amazônia (Radam, década de 1970) ficou como uma<br />
página que está por ser mais útil como empreendimento<br />
pago com dinheiro público; as informações de<br />
satélites hoje alertam sobre queimadas e desmatamentos;<br />
mas será que no conjunto esses alertas têm<br />
informado o processo decisório local? Em contraste,<br />
o imaginário trabalhado na primeira metade do século<br />
XX por ficcionistas estudiosos como Mário de<br />
Andrade, em seu Macunaíma, e Monteiro Lobato,<br />
em seu Jeca Tatu, resulta de uma busca menos apressada,<br />
isto é, o contato de Mário de Andrade com a<br />
Amazônia e com boas fontes, bem como o contato<br />
de Monteiro Lobato com os “caboclos” de São Paulo
põem a imaginação cercada de sentinelas que não a<br />
deixam desvairada Temos dois tipos de imaginário,<br />
então, escapando da dicotomia anterior: um que<br />
cavalga um saber alheio à região e que outro, mesmo<br />
feito fora da região, bebe em fontes antropológicas<br />
ou, pelo menos, em fontes mais próximas do saber e<br />
das inquietações das populações humanas.<br />
diálogos<br />
Dialogar com o imaginário pode ser um exercício<br />
unilateral, diletante, sem conseqüências, mas<br />
também pode ser conseqüente. Como outros exemplos<br />
de diálogos, escutamos vozes como a de Peter<br />
Maricourt, que em 1260 anteviu invenções que depois<br />
saíram das mãos de Leonardo Da Vinci; ou como<br />
a de Ilya Prigogine, que conta seu achado na correspondência<br />
de Albert Einstein, que, por sua vez, dizia<br />
ter aprendido mais com Dostoievski do que com os<br />
físicos; ou como a voz de um historiador da economia<br />
da revolução industrial, John U. Neff, que deduz que<br />
nos alicerces da civilização industrial havia a influência<br />
da arte, da busca de perfeição e uma preocupação<br />
com seres humanos. Nem precisamos ampliar o<br />
número desses interlocutores, mas podemos digerir<br />
boa parte do que eles viram como fruto de conhecedores<br />
de mais longe com outros longínquos.<br />
Um corte, inacabado que seja, nos põe à escuta<br />
de outras vozes? Por ocasião da Eco-92, uma<br />
publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso<br />
da Ciência (SBPC) incluiu cenários de prospecção sobre<br />
a Amazônia. Uma publicação do Ministério das<br />
Minas e Energia, a respeito de um plano de eletrificação<br />
que cobre até 2010, inclui a Amazônia como<br />
fornecedora de energia hidrelétrica sem que ela seja<br />
beneficiada reciprocamente. Publicação da Secretaria<br />
de Estudos Estratégicos (1998), da Presidência da<br />
República, propõe um cenário para o Brasil e para<br />
a Amazônia. Mas essas encenações passam por um<br />
processo decisório centralizado, em que o lado social<br />
do imaginário tem a marca da tecnocracia que pouco<br />
aprendeu com Mário de Andrade ou Monteiro Lobato<br />
ou Einstein ou Ilya Prigogine.<br />
O valor da pergunta-escuta de outras vozes<br />
se apóia no benefício da dúvida: o que pode ser<br />
conseqüente em termos de ciência, de política e de<br />
identidade regional ou nacional? Assim, uma história<br />
atual da Amazônia poderá ser escrita, ou reescrita,<br />
levando em conta o imaginário ou os imaginários<br />
na justa medida em que eles refletem, além de saber<br />
exógeno, também saber local de “experiência feito”<br />
local e duradouramente.<br />
Podemos voltar à indagação do começo.<br />
Além dos lados edênico e satânico dos imaginários<br />
sobre a Amazônia, redescobrimos (nas dramatizações<br />
para comemorar cinco séculos de Brasil) o desafio<br />
da polissemia de outros tipos de imaginário que<br />
142<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
nos rondam: aquele imaginário exógeno, outro mais<br />
literário, aquele imaginário apressado, aquele imaginário<br />
de pé no chão, aquele imaginário-tecnocrático.<br />
E talvez haja um imaginário militante ou instituinte,<br />
que pode ter tido um precedente em um tipo de<br />
imaginário trágico do tipo absolutista e napoleônico<br />
de “vencer ou vencer”, ou outro, de tipo escatológico<br />
das utopias de direita ou de esquerda como Orwell<br />
(em seu 1984), ou a liberdade, igualdade e fraternidade<br />
da Revolução Francesa, ou a “mãe” ou Gorki,<br />
ou “o nosso Independência ou Morte”. Hoje podemos<br />
ainda ter outra versão, na medida em que for possível<br />
pensar uma reforma agrária que imagine e também<br />
reconheça a curto, médio e longo prazo o saber de<br />
índios, caboclos, imigrantes e de populações locais?<br />
Assim não ficaremos reféns de imaginários endógenos<br />
ou exógenos que especulem sobre uma Amazônia<br />
de coitadinhos, de vítimas, de cobiçados, que não<br />
redescobriram ainda nem a Amazônia nem a si mesmos<br />
como sangrados ex-colonizados<br />
conclusão<br />
Para Searle (op. cit.), as falas são analisadas<br />
como ações e não apenas como fenômenos sonoros<br />
e, portanto, elas não apenas carregam significados,<br />
mas, de certo modo, também criam ou transbordam<br />
significados ou podem levar da interpretação a ação<br />
e a decisões. A interpretação fantasiosa de Orellana<br />
quanto à Amazônia como país das mulheres amazonas,<br />
valentes, de seio amputado , após sua viagem a<br />
partir do Peru, pode ser tomada como um desdobramento<br />
desse tipo (Valverde, 1997). Então, Orellana<br />
seria um conhecedor fantasioso. E, mais perto de<br />
nós, Gilbert Durand (1997), nos seus estudos sobre o<br />
imaginário, resgata a possibilidade analítica a partir<br />
do imaginário como parte da realidade das culturas.<br />
Durand aviva o status heurístico dos fenômenos que<br />
não são realidade do tipo quantificável, mas têm concretude<br />
suficiente para merecer atenção e destaque<br />
entre os trabalhos de quem for consumidor-interpretador-recriador<br />
ou produtor de conhecimentos,<br />
de reconhecimentos ou reconfigurações.<br />
Um modo admitido de operar o conhecimento<br />
da Amazônia é feito por meio de mapas. A história<br />
do tratado de Tordesilhas traz um primeiro sinal de<br />
como um território pode ser simplificado por meio do<br />
estabelecimento de novas fronteiras, no papel, não<br />
obstante o valor geopolítico gerador de realidade.<br />
As mitologias podem filtrar um outro tipo de antecipação<br />
da realidade uma versão moderna de mito<br />
é dada por imigrantes para o sul do Pará, contando<br />
que parte de sua atração vinha da fabulação interpretando<br />
a via-láctea, como constelação que aponta para<br />
essa região como uma espécie de “terra da promissão<br />
contemporânea”. Mais um tipo contemporâneo de<br />
imaginário pode ser localizado em fabulações como o<br />
Jeca de Monteiro Lobato (1918), que tinha, na composição<br />
de suas personagens-base, suas observações<br />
e inquietações concretas ao ver caipiras transformados<br />
em trabalhadores de mérito nas plantações dos<br />
trapistas franceses de Tremembé. Ou temos também<br />
a imagem de Macunaíma, de Mário de Andrade, envolvendo,<br />
além da imaginação, uma viagem do autor<br />
pela Amazônia. No caso do Macunaíma, há um<br />
certo retrato da Amazônia e uma crítica que aparece<br />
no entendimento do personagem admirado sem abdicar<br />
de sua maneira de entender a vida e, portanto,<br />
sem ser apenas consumidor do modo de vida dos outros<br />
pois também Macunaíma pode ser visto como<br />
um protótipo de conhecedor-viajante: “El hombre<br />
sabe por viejo, pero mas sabe por viajero.” Viajero,<br />
viajante, emigrante, imigrante.<br />
Quando hoje se fala em imaginação científica.<br />
há lugar para um tipo de imaginação que, entre<br />
outras elaborações, poderá sair de simulações de<br />
computador (como de certo modo o cinema dos efeitos<br />
especiais tem aliado significativo na informática,<br />
o mesmo uso ocorre com a construção civil ou com a<br />
engenharia de aviões). Assim, damos um passo além<br />
do imaginário puro e simples e podemos reconhecer<br />
no imaginário um poder de antecipação e deleite<br />
prático e estético (lembrar Julio Verne), mas ele é<br />
também um recurso que valoriza sonhos, desde que<br />
estes também sejam analíticos e críticos em relação<br />
ao que chamamos de realidade factual, por contraste<br />
a uma realidade que podemos chamar de emergente<br />
(ou de realidade instituinte, na terminologia de Cornelius<br />
Castoriadis).<br />
Tomando a saúde como foco do imaginário<br />
em algumas aplicações, é bom recordar, como Affonso<br />
E. Taunay, autor do romance Inocência, encontra<br />
um lugar para o texto de Chernoviz, precursor<br />
de tratamentos de saúde que tomaram por base aplicação<br />
de conhecimentos disponíveis em um circuito<br />
de relações que não era necessariamente o dos médicos.<br />
Podemos lembrar o dr. Noel Nutels, sanitarista<br />
que trabalhou com populações rurais e indígenas e<br />
que envolveu a literatura de cordel e seus cantadores<br />
como um veículo para comunicação entre profissionais<br />
de saúde e pessoas doentes. Ou tomamos o estudo<br />
de Charles Wagley (1988), que esteve nos anos da Segunda<br />
Guerra Mundial nas raízes do Serviço Especial<br />
de Saúde (hoje Fundação Nacional de Saúde), como<br />
parte de um esforço de saúde para populações rurais.<br />
O estudo de Wagley inclui um tópico sobre “passagem<br />
da magia à ciência” (cap. 7): o autor começa notando<br />
a substituição gradual de explicações mágicas<br />
em favor de explicações científicas; no caso, Wagley<br />
advoga a mudança dessas crenças, ou, digamos, desse<br />
imaginário. Mas os processos educativos poderão ter<br />
sucesso ou insucesso, e em todos os outros capítulos<br />
advoga, com maior ênfase, o respeito ao modo de<br />
vida e, portanto, às soluções autóctones até porque<br />
ele reconhece que “crenças e práticas fundem magia<br />
com conhecimento empírico” (op. cit., p. 253).<br />
Desdobremos um pouco mais o tema da<br />
saúde na referida obra. Durante a guerra de 1939 a<br />
1945, Wagley testemunhou a introdução do DDT, por<br />
meio do então Serviço Especial de Saúde Pública em<br />
Breves (PA). Nesse momento, era arma de sucesso<br />
contra a malária. Mas a visão de Wagley, que fazia<br />
antropologia aplicada à saúde, provavelmente mudou,<br />
quando chegou o best-seller de Rachel Carson<br />
(1962) e com ele a crítica das experiências de aplicação<br />
do DDT; porém mudaria muito mais, certamente,<br />
quando ele consultasse o texto do Instituto Evandro<br />
Chagas, de Belém (1983), que relata a situação da malária<br />
na década de 1980 e acentua como a resistência<br />
do mosquito transmissor da malária foi desdobrada<br />
por meio da resistência de dadas populações humanas,<br />
que, entre outros argumentos, enfatizavam que<br />
o DDT enfeiava a pintura das casas, matava insetos,<br />
que, por sua vez, eram comidos por animais de criação<br />
doméstica e que afinal morriam por causa do<br />
veneno. Resta acrescentar a imaginação recente que<br />
visa ao controle de base biológica para os mosquitos,<br />
e, nesse sentido, se insere a Fundação Oswaldo Cruz<br />
(Fiocruz) com um bioinseticida que age sobre larvas<br />
de insetos da malária, dengue e filariose. Nesse caso,<br />
o imaginário alcança outra dimensão: ele acumula<br />
memória e história de experiências. Enquanto especialistas<br />
em comunicação se vêem às voltas com a entropia<br />
nos atos comunicativos o imaginário também<br />
pode reprocessar memórias e tirar conclusões, vestir<br />
novas roupagens ou novas máscaras (no sentido, de<br />
um disfarce que reforça o sentido em lugar de ceder à<br />
chamada “entropia dos símbolos”).<br />
Um ponto adicional relativo ao imaginário<br />
social da Amazônia permite distinguir o imaginário<br />
social de nativos da Amazônia daquele de imigrantes<br />
ou de outras vivências que vêm desaguar em propostas<br />
de solução para problemas amazônicos. Nesse<br />
sentido, podemos referir o desastre de Henry Ford<br />
com o projeto Fordlândia (Belterra, PA).<br />
Mas há também invenções de fracassos nativos<br />
quando estes, como aqueles, abdicam da imaginação<br />
e a limitam copiando instituições que deram<br />
certo em outras localizações: como indústrias de<br />
calçados, de cerveja, produtos farmacêuticos, ou mesmo<br />
palácios oriundos de tempos coloniais. A margem<br />
de adaptação e de enraizamento dessas invenções parece<br />
ter sido mal calculada ou foi imaginada de modo<br />
consumista, sem considerar o papel das mudanças<br />
na sociedade, ao longo do tempo. Mais um tipo desse<br />
consumismo acrítico aparece no campo da saúde,<br />
nas Santas Casas da Misericórdia de Belém, Manaus,<br />
São Luís (PA, AM, MA), abaladas pelas grandes alterações<br />
na demanda e na mediação econômica e tecnológica,<br />
com os planos de saúde privados e o desgaste<br />
das instituições de saúde pública.
Podemos referir ainda a pauta de exportações<br />
da Amazônia, que, ainda hoje, envolve majoritariamente<br />
matéria-prima incipientemente beneficiada,<br />
como uma moldura colonial em tempos que<br />
se dizem descolonizados. E daí a tensão: melhor que<br />
tudo, poderemos trabalhar para que a relação “espaço<br />
e doença na Amazônia” (Rojas, 1997) provoque a<br />
promessa e concretização de um imaginário de “reconfiguração”<br />
que traga à tona a outra relação, entre<br />
“espaço e saúde” na Amazônia.<br />
No ano 2000, na Amazônia e no Brasil,<br />
ocorre a presença de um moderno tipo de profissional<br />
do imaginário: os que se dedicam a planejamento<br />
estratégico. Vale registrar que, no ano de 1998, a Universidade<br />
Federal do Pará (UFPa), investiu recursos<br />
para que suas autoridades tivessem acesso à teoria<br />
e prática de planejamento estratégico; o mesmo<br />
pode-se dizer em relação ao Governo do Estado do<br />
Pará. Além disso, a Secretaria (Nacional) de Estudos<br />
Estratégicos da Presidência da República prepara<br />
cenários prospectivos. Aqui já ocorre uma espécie de<br />
imaginário que quer tirar o ranço de passado. Fica<br />
o problema de que os especialistas do imaginário em<br />
antropologia e em sociologia sabem como eles não<br />
podem ser infantilizados (ou ignorantes da história<br />
e das experiências), como o imaginário não poderá<br />
ser um cálculo sem tensão e sem contradições. Durand<br />
(1993, p. 107) chega mesmo a fazer referência a<br />
uma tensão dialética que opera em relação ao imaginário.<br />
Essa tensão dialética pode ser um outro conceito<br />
para o dinamismo de um imaginário que não é<br />
diletante, e sim militante, pragmático, e que enfrenta<br />
o desafio da realidade social operando nas continuidades,<br />
descontinuidades, e recontinuidades, filtrado<br />
por meio de sujeitos conhecedores, para os quais o<br />
imaginário faz sentido e transborda o dito, o falado, o<br />
escrito, o instituído.<br />
Nesta análise, são revistas parcelas do imaginário<br />
social sobre a Amazônia. Mais propriamente,<br />
busco uma abordagem antropológica sobre o imag-<br />
144<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
inário social com seus limites (fracassos potenciais<br />
e impossibilidades), mas também como um tipo de<br />
saber que é semente, flor e fruto de inserção ou não<br />
inserção social de atores que o trabalham, pondo à<br />
prova as instigações, antecipações, simulações que<br />
ele pode oferecer. Vindo quer de nativos quer de imigrantes,<br />
o imaginário social pode ser entendido como<br />
uma primeira moldura para prospecção de situações<br />
viáveis e inviáveis para seres humanos e para toda<br />
a natureza na Amazônia. Ele poderá ser visto como<br />
imaginário diletante ou puramente ficcionista, ou<br />
ele poderá ser de outros tipos, entre os quais o imaginário<br />
instituinte, se antecipa situações para além da<br />
estreita factualidade e, portanto, transborda as limitações<br />
de um positivismo exacerbado, sem contexto,<br />
sem horizontes, sem poesia (no sentido estrito do<br />
termo), sem seres humanos como parte da natureza,<br />
isto é, como sujeitos decisores, “eixo e flecha” da<br />
evolução, tomando uma expressão do visionário Teilhard<br />
de Chardin (1881-1955), em sua reflexão sobre o<br />
“conjunto zoológico humano”. Chardin, a seu modo,<br />
foi um conhecedor que enfrentou as tensões entre<br />
imaginários sociais mascarados em ideologia de uma<br />
dada área. Repensar conexões entre perguntas e possibilidades<br />
intersubjetivas do imaginário em relação<br />
à Amazônia em geral e à saúde pública em particular<br />
nos leva a destacar, brevemente, as seguintes situações:<br />
a) a vertente utópica de Charles Wagley, que ao<br />
longo de trinta ou mais anos manteve presença e contatos<br />
com a Amazônia de citadinos, índios, caboclos.<br />
Wagley sonhou, com sua experiência de antropologia<br />
aplicada à saúde pública, um modo de vida em que o<br />
bem-estar físico, social, mental, econômico estivesse<br />
devidamente contextualizado e enraizado em atores,<br />
recursos naturais e saberes autóctones que existem<br />
nos trópicos, assim como nas zonas temperadas; b)<br />
a utopia de Oswaldo Cruz em suas missões amazônicas:<br />
sua lucidez ajudou, mas a Estrada de Ferro Madeira<br />
Mamoré combina as imagens de ferrovia do<br />
diabo, e de tentativa frustrada, com valor atual de<br />
objeto de museu em Porto Velho (capital do estado<br />
de Rondônia). A febre amarela e a malária ainda são<br />
flagelos e no naipe atual de mosquitos ainda somamos<br />
os vetores da dengue que têm cenário nacional;<br />
c) os cenários de planejamento estratégico da Superintendência<br />
de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam)<br />
são exercícios pré-decisórios. Não são uma tentativa<br />
de antecipação de situações. Mas quando serão<br />
uma tradição eficiente continuada e conseqüente?;<br />
d) as utopias mapeáveis de Fordlândia e de Jari (estado<br />
do Pará), nos dias de hoje, podem ensinar por<br />
meio dos obstáculos? São elas multiplicáveis em suas<br />
lacunas, seus efeitos e em suas causas?; e) as outras<br />
utopias recentes, como o enclave do manganês no exterritório<br />
do Amapá, a mineração da serra de Carajás,<br />
e o ouro de Serra Pelada, onde a saúde humana<br />
valia menos que qualquer pequeno ou grande risco<br />
para bamburrar. De certo modo, todas essas situações,<br />
quer como sonhos quer como práticas, têm algo<br />
de espetáculo que aglutina, mas também dissipa energias.<br />
Afinal, se o imaginário social é ato de fala e<br />
não ato falhado as situações referidas não são exaustivas,<br />
mas didáticas. Continuando com uma geração<br />
de hipóteses, dizemos que cabem em um estudo sobre<br />
o imaginário social. Não se trata apenas de rememorar,<br />
mas talvez de ativar a memória conectada<br />
e apoiada (ou analisada) por estruturas sociais; sem<br />
isso a entropia chegará a anular a memória (hipótese<br />
da antropóloga Mary Douglas, 1998). Daí a recorrência<br />
do imaginário que for aprisionado na narrativa,<br />
esta, porém, pode ser desvendada, se for crivada pela<br />
orientação dupla de não reeditarmos o mito de Sísifo<br />
e, na prática, não reeditarmos o espetacular fatalismo<br />
que o perpassa. Então, aqueles pontos serão imaginariamente<br />
tratados como primeiras versões ou<br />
primeiros passos que pedem retomadas; recomeçar,<br />
repensar em ritmo anti-sísifo, anti-maktub.<br />
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Wagley, Charles 1988 Uma comunidade amazônica.<br />
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PArAdoxo AmAzônico<br />
entrevista:<br />
Alfredo Wagner berno de Almeida<br />
A partir da perspectiva das populações tradicionais,<br />
como o senhor avalia o atual projeto<br />
do governo brasileiro para a Amazônia?<br />
Primeiramente, é importante constatar que, até outubro<br />
de 2008, quando da deflagração de uma das mais<br />
graves “crises financeiras” do capitalismo, persistia<br />
uma visão triunfalista dos agronegócios e das expectativas<br />
face ao mercado de commodities agrícolas e<br />
minerais, sobretudo no que concerne, de um lado, às<br />
empresas mineradoras (ferro, ouro, caulim), às industrias<br />
de papel e celulose e às usinas de ferro gusa,<br />
e de outro lado, às agropecuárias e plantações industriais<br />
homogêneas. No entanto, os grandes interesses,<br />
vinculados à sojicultura, à agropecuária, à plantação<br />
de eucalipto e demais grandes plantações, face à<br />
queda abrupta de preços das commodities, passaram<br />
a anunciar falta de crédito, redução das áreas cultivadas,<br />
demissão de trabalhadores e demandaram<br />
do Estado a anistia de dívidas e créditos facilitados.<br />
A flutuação do mercado de commodities e o caráter<br />
volátil dos créditos do mercado futuro evidenciaram<br />
toda a fragilidade de um sistema econômico apoiado<br />
na monocultura, na flexibilização das leis trabalhistas,<br />
na exportação de commodities e na destruição<br />
indiscriminada de recursos naturais. Diferentemente<br />
do velho sistema agrário-exportador, que resistiu por<br />
décadas, senão séculos, às flutuações de preços e à<br />
derrocada, tem-se agora um novo modelo de plantations,<br />
paradoxalmente, com uma aparência de maior<br />
fragilidade às crises.<br />
Tem-se, portanto, uma grande plantação mais atrelada<br />
ao capital financeiro e às flutuações de preços.<br />
A volatilidade de recursos aplicados em bolsas de<br />
produtos agrícolas, contratos de curtíssimo prazo,<br />
oscilação célere dos preços e a precariedade das relações<br />
de trabalho evidenciam que esse tipo de unidade<br />
de produção precisa ser melhor estudado.<br />
Os mecanismos de inspiração neoliberal que se<br />
revelaram absolutamente fragilizados, como o<br />
idealismo neoliberalista de afastar o Estado da<br />
economia, de enxugá-lo ao extremo e de imaginar que<br />
146<br />
Conflitos sociais, territorialização, identidade cultural, povos tradicionais, direitos coletivos.<br />
Todos esses elementos compõem o foco do trabalho do professor Alfredo Wagner Berno de<br />
Almeida. Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele pesquisa<br />
na Amazônia desde 1972. Há quase quatro anos tem se dedicado ao projeto Nova Cartografia<br />
Social dos Povos e Comunidades Tradicionais da Amazônia, que produz interpretações<br />
atentas da problemática social, econômica e ecológica de quebradeiras de coco, comunidades<br />
negras e indígenas, homossexuais, populações extrativistas, ribeirinhos e pescadores, entre<br />
tantos outros. Leia abaixo trechos da entrevista que Alfredo Wagner concedeu à CONTRA<br />
CORRENTE*<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
a racionalidade e a eficácia só se realizam plenamente<br />
nos empreendimentos privados, desaguaram no<br />
“Estado-hospital”. Coube aos aparatos do Estado<br />
atender, mais uma vez, às demandas de quem, até<br />
dias antes, tinha especulado à larga, ilegalmente,<br />
inclusive, e obtido lucros astronômicos.<br />
E aí o discurso do “capitalismo de crise” apareceu<br />
com toda nitidez sob o manto de que é “mesmo assim”<br />
e que, após as “crises”, o Estado tem que socorrer,<br />
como já aconteceu depois de 1929. A ideologia<br />
dos ciclos volta a reinar e não há responsabilidade<br />
social naquilo que é vivido como “natural”. Os empresários<br />
especuladores se eximem de qualquer “culpa”<br />
e fica por isso mesmo. Porém, tanto a ideologia<br />
dos ciclos quanto aquela de que estamos a um passo<br />
da crise final e que a autodestruição do capitalismo é<br />
questão de tempo devem ser relativizadas.<br />
Na Amazônia, o mercado de terras estava superaquecido,<br />
o mercado de crédito de carbono também.<br />
As agências de crédito multilaterais estavam intervindo<br />
na estrutura formal do mercado de terras e<br />
na política de acesso aos recursos naturais. Com a<br />
“crise”, no entanto, passaram a não dispor de recursos<br />
e a não ter como financiar a implementação de<br />
suas próprias “invenções”.<br />
A retração na Amazônia não inicia por falência de<br />
bancos e empresas imobiliárias, mas pelas empresas<br />
mineradoras reduzindo a sua produção, demitindo<br />
em massa; pelas usinas de ferro-gusa paralisando<br />
seus fornos em Marabá e em Açailândia (103 dos<br />
161 fornos de ferro-gusa no Brasil estão parados);<br />
e pelas áreas de plantio de soja sendo reduzidas. A<br />
Vale reduziu a sua produção em 10%, por exemplo.<br />
As entidades patronais rurais - onde se encastelam<br />
os pecuaristas, principais responsáveis diretos pelas<br />
elevadas taxas de desmatamento na Amazônia nos<br />
últimos dez anos, segundo relatórios do próprio<br />
Banco Mundial - agora demandam anistia de suas<br />
dívidas junto ao governo federal.<br />
Há uma inibição das agências multilaterais para investir<br />
na Amazônia. Os grandes projetos, como o<br />
PPG-7 [Programa Piloto para a Proteção das Florestas<br />
Tropicais do Brasil], estão praticamente parados.<br />
O governo, por sua vez, acena com uma nova política<br />
agrária e com a criação de uma agência mais ágil e<br />
eficaz que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma<br />
Agrária (Incra). No entanto, os dispositivos<br />
que acionou só fizeram legalizar aqueles que ocuparam<br />
terras ilegalmente no passado e no presente,<br />
ou seja, os grileiros.<br />
O tipo de regularização agrária que poderá ser<br />
implementado agora não vai alterar a estrutura<br />
agrária. Percebe-se que, a despeito da “crise”,<br />
estão dadas as condições institucionais para uma<br />
“retomada”, senão uma continuidade, daquela visão<br />
triunfalista. A MP 422 [que passa de 500 para 1.500<br />
hectares o limite que dispensa a licitação para a<br />
venda de terras públicas] e a instrução normativa<br />
no. 49, para titulação das terras de quilombos, do<br />
Ministério do Desenvolvimento Agrário, vão no<br />
sentido de flexibilizar os direitos territoriais de povos<br />
e comunidades tradicionais.<br />
No legislativo, continuaram as tentativas de reduzir a<br />
dimensão física da Amazônia, facilitando a expansão<br />
dos agronegócios. O anteprojeto de lei do senador<br />
Jonas Pinheiro e aquele do deputado Osvaldo Reis,<br />
que pretendem tirar o Mato Grosso e Tocantins,<br />
respectivamente, da Amazônia são dois exemplos.<br />
Em 1953, todos os empresários queriam fazer parte da<br />
Amazônia devido aos créditos facilitados e incentivos<br />
fiscais. Agora, todos querem sair, principalmente os<br />
produtores de soja, ferro gusa, papel e celulose.<br />
Outra ação que enfraquece a Amazônia é a diminuição<br />
da faixa de fronteira de 150 km para apenas 50 km,<br />
com o objetivo de abrir as terras para o mercado de<br />
commodities. A “crise” ou as alterações no cenário<br />
econômico não se refletiram no legislativo, já que<br />
novacartografiasocial.com/ - Fascículo 27 - a luta das Quebradeiras de<br />
Coco Babaçu contra o carvão Inteiro - Bico do Papagaio Palmas, Tocantins<br />
estes projetos continuam tramitando a todo vapor.<br />
O objetivo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade<br />
(ADIns) contra os direitos territoriais de indígenas,<br />
quilombolas, quebradeiras de coco babaçu,<br />
ribeirinhos e comunidades de faxinais e fundos de<br />
pasto é claro: enfraquecer a Constituição de 1988,<br />
remover as bases legais que asseguram os direitos<br />
territoriais de povos e comunidades tradicionais. Eles<br />
são vistos como um obstáculo à expansão do mercado<br />
de commodities, aos desmatamentos e à destruição<br />
de rios e fontes d’água. Os direitos territoriais das<br />
populações tradicionais acham-se tão ameaçados<br />
hoje quanto antes da “crise”.<br />
É sob este paradoxo que a Amazônia se insere<br />
hoje: por um lado, verifica-se uma descontinuidade<br />
econômica da ofensiva dos grandes conglomerados<br />
financeiros sobre a terra e demais recursos naturais<br />
e, do outro lado, uma continuidade política da ofensiva<br />
dos dispositivos neoliberais na esfera do legislativo.<br />
A sua atual experiência com o trabalho de<br />
cartografia social conseguiu detectar como se<br />
dão essas ofensivas aos direitos territoriais e<br />
de identidade das populações amazônicas?<br />
O que se constata a todo momento são sucessivas tentativas,<br />
por parte de setores conservadores, de flexibilizar<br />
estes direitos territoriais. Atualmente, todas<br />
as questões sobre as terras indígenas e qui- lombolas<br />
passam a ter no judiciário a sua palavra final. Tudo<br />
vai para o STF [Supremo Tribunal Federal], como o<br />
caso da homologação das Terras Indígenas Raposa<br />
Serra do Sol e dos Pataxós. O sociólogo Boaventura<br />
de Souza Santos analisa processo similar como “judicialização<br />
da justiça”. O propósito conservador é<br />
rediscutir todos os territórios de comunidades tradicionais:<br />
indígenas, quilombolas, faxinais, fundos de<br />
pasto, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos etc.
São tantas as formas de pressão, no judiciário e no<br />
legislativo, e tantos são os meios para divulgá-las que<br />
parece uma campanha de desterritorialização. Tratase<br />
de criar uma instabilidade para as terras indígenas<br />
e quilombolas já reconhecidas e as que estão por<br />
serem reconhecidas, propiciando condições para que<br />
ingressem no mercado de terras.<br />
Por outro lado, está havendo uma reação a estas<br />
tentativas de impedir a vigência dos direitos territoriais.<br />
Os movimentos sociais estão conseguindo, em certa<br />
medida, impor a sua pauta. Em Rio Preto da Eva, no<br />
Amazonas, o prefeito municipal assinou uma Lei de<br />
Desapropriação destinando um imóvel urbano de<br />
mais de 40 hectares para os indígenas da Comunidade<br />
Beija-Flor. Em São Gabriel da Cachoeira, além de<br />
terem eleito um prefeito indígena, foi regulamentada<br />
a lei municipal que cooficializa o tukano, o baniwa<br />
e o nheengatu como línguas oficiais. Há um outro<br />
padrão de relações políticas em curso? O debate<br />
vai começar a esquentar com a discussão sobre as<br />
ambiguidades do desenvolvimento capitalista na<br />
Amazônia. Desmatar no ritmo do agronegócio ou<br />
preservar para se apropriar do patrimônio genético?<br />
Sem ter discernimento, fica difícil refletir sobre as<br />
medidas em curso. A iniciativa de limitar o Incra,<br />
instituindo uma agência agrária, pode fazer com<br />
que 2009 seja o ano 1970-71 da ditadura militar, em<br />
que foi criado o próprio Incra e intensificada uma<br />
ação de colonização cujos efeitos dramáticos até<br />
hoje se fazem sentir. Existem novos instrumentos<br />
operacionais de regularização, de desapropriação e<br />
de reconhecimento fundiário? Não. Se não há, será<br />
que adianta fazer mudanças burocráticas e artificiais?<br />
O que mais se percebe na cartografia social é o esforço<br />
de cada comunidade tradicional na identificação<br />
dos recursos essenciais. O tradicional neste sentido<br />
nada tem a ver com o passado, com a linearidade do<br />
tempo. O tradicional está relacionado com a maneira<br />
de uso dos recursos e com sua persistência. Ele tem a<br />
ver com o futuro. Os grupos sociais estão construindo<br />
situações de autosustentabilidade. É um momento<br />
de construção de sonhos e de possibilidades e não<br />
significa outra coisa que limites para o agronegócio,<br />
que anseia uma expansão desmedida.<br />
Quais são as conseqüências de grandes obras<br />
de infraestrutura na Amazônia, como o<br />
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira?<br />
Até hoje, você tem comunidades coladas com Tucuruí<br />
e Balbina que não têm energia elétrica. Comunidades<br />
localizadas ao lado da Alcoa, no Maranhão, ou da Albrás,<br />
em Barcarena, no Pará, que não têm acesso aos<br />
direitos agrários elementares. Esse modelo de “progresso”<br />
tem que ser repensado. As beneficiadas com a<br />
construção de Tucuruí foram as grandes empresas de<br />
alumínio, como a Alcoa e a Alcan, e as mineradoras.<br />
148<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
Os grandes projetos são apresentados como ícones<br />
de progresso, mas eles, na verdade, cristalizam as<br />
desigualdades. Eles são apresentados como se, fora<br />
daquela realidade, viesse o caos. E ainda, minimizam<br />
toda uma complexidade, colocando de um lado as comunidades<br />
“atrasadas” e do outro lado o “progresso”.<br />
A atual crise financeira revela que a irracionalidade<br />
se encontra justamente onde se afirma que a<br />
“eficácia” reina e prospera. Assim se veem e são<br />
vistas as mineradoras e empresas, como a Aracruz<br />
e a Votorantim, que especulam e, pior, utilizando<br />
recursos públicos. Afinal, o BNDES financia essas<br />
empresas especuladoras? Esta é uma pergunta que<br />
tem que ser feita. Elas foram financiadas com recursos<br />
públicos? A Amazônia foi desmatada sofregadamente,<br />
em um ritmo jamais visto, sob a batuta do mercado<br />
de commodities. Para estes interesses não há limites.<br />
Eles são capazes de transformar a maior floresta<br />
tropical do mundo em savana para gerar dividendos<br />
para o agronegócio. Com a crise, essa concepção leva<br />
um choque e cria condição para que se reconheça que<br />
preservar a Raposa Serra do Sol é mais racional do<br />
que entregá-la para seis arrozeiros. Não dá para dizer<br />
que limita-se a uma opção do “progresso” versus a<br />
economia primitiva. As áreas mais preservadas são<br />
as áreas onde residem os índigenas, os ribeirinhos,<br />
as quebradeiras. Você acha que uma quebradeira irá<br />
destruir babaçuais? Que os seringueiros vão destruir<br />
seringais? Os ribeirinhos, os rios, as florestas de<br />
igapó? O suicídio de um grupo social como um todo,<br />
é possível? Eles não vão se suicidar. Não irão destruir<br />
as fontes de sua própria razão de ser e de existir.<br />
Atualmente, até mesmo as transnacionais da<br />
mineração afirmam que suas atividades são<br />
sustentáveis. Como o senhor avalia a real atuação<br />
delas em contraposição ao discurso que<br />
propagam?<br />
De acordo com o antropólogo José Sérgio Leite<br />
Lopes, a “ambientalização” é uma forma de discurso<br />
consensual. Todo mundo passa a ter esta preocupação<br />
ecológica de preservação, sustentável. Atributos são<br />
criados para designar as empresas, com seus gerentes<br />
e setores especializados. O discurso incorporado<br />
e uma suposta consciência ambiental profunda<br />
ganham destaque. Tudo isso é uma figura de retórica.<br />
Os procedimentos de conservação modelo destas<br />
empresas não passam dos viveirinhos, dos bosques<br />
e das cascatas artificiais. A Serra dos Carajás tem um<br />
pequeno zoológico, um jardim botânico, um pequeno<br />
museu. Apresentam até preocupações de pesquisa e<br />
preservação arqueológicas. Isso tudo faz parte desse<br />
suposto desenvolvimento, que supostamente atende<br />
aos quesitos ambientais. Essas figuras de retórica,<br />
como “o maior lago do mundo”, “muito piscoso”,<br />
“construção gigantesca”, criam uma visão idílica,<br />
formada de pequenos bolsões. Cria-se uma idéia de<br />
arquipélago, de pequenas ilhas de florestas, mini<br />
zoológicos, que são criados junto com cada grande<br />
empreendimento na Amazônia. A Serra do Navio<br />
tem a sua área preservada. Ninguém pergunta de<br />
onde sai o carvão para alimentar os fornos das<br />
empresas de ferro gusa. Trata-se de carvão vegetal,<br />
e ele é retirado da floresta, na grande maioria dos<br />
casos. Com a crise, a oportunidade de evidenciar de<br />
que autosustentabilidade estamos falando, aumenta.<br />
Que desenvolvimento é este? O castelo de cartas<br />
está caindo e a curto prazo vai provocar algumas<br />
percepções diferentes.<br />
De que modo a atual estratégia do agronegócio<br />
impacta na desterritorialização das comunidades?<br />
Há uma visão economicista que prevalece e precisa<br />
ser relativizada. Por que não desenvolver uma ágil<br />
política de reconhecimento para os castanheiros,<br />
seringueiros, quilombolas, peconheiros? Quando<br />
tentam operacionalizar os procedimentos de<br />
reconhecimento imediato, não existem mecanismos<br />
ágeis. Como instituí-los nesta quadra adversa ao<br />
mercado de commodities?<br />
Por outro lado, não se pode parafrasear Guimarães<br />
Rosa, dizendo que “é a hora e a vez dos povos e comunidades<br />
tradicionais”. Afinal, os mecanismos de<br />
grilagem continuam reconhecidos sem maior contestação.<br />
O que não vale para a comunidade tradicional<br />
que está ocupando e tem a posse permanente de<br />
seu território há séculos, vale para o latifundiário que<br />
veio de fora há alguns anos, desmatou e fez um imenso<br />
pasto, pensando em ven-dê-lo para um sojicultor.<br />
http://www.novacartografiasocial.com<br />
Vale dizer que todos os grupos na Amazônia estão<br />
mudando de estratégias. Os bancos, as agências multilaterais,<br />
as ONGs e os governos. Os efeitos da crise<br />
sobre o mercado de terras estão vivos. Trata-se do<br />
tema da ordem do dia. Aliás, as próprias ONGs ambientalistas<br />
incorporaram a questão da regularização<br />
fundiária. Se apresentam na discussão como os novos<br />
especialistas em regularização fundiária, ao lado<br />
do BIRD [Banco Internacional para a Reconstrução e<br />
o Desenvolvimento]. Já os movimentos sociais, que<br />
há décadas tem nos conflitos agrários uma tragédia<br />
cotidiana, passam a olhar com cautela essas mudanças<br />
burocráticas e administrativas e a recusar os padrões<br />
da nova tutela, inclusive o da delegação de se<br />
falar em nome deles.<br />
Os agrocombustíveis representam uma ameaça<br />
à floresta Amazônica e aos seus povos?<br />
Plantations de palmáceas, como na Malásia, já<br />
constituíram o modelo do dia. Como política não<br />
lograram êxito. Por outro lado, onde há movimentos<br />
sociais não houve discussões mais aprofundadas.<br />
Apenas de babaçu, são 18 milhões de hectares<br />
no Brasil. Adicionando-se as extensões de outras<br />
palmáceas, das quais se pode produzir óleos vegetais,<br />
tem-se uma vasta região com comunidades extrativas<br />
que potencialmente podem ser mobilizadas e dispor<br />
seus produtos diretos. Por que não se abre uma<br />
ampla discussão sobre a viabilidade da produção de<br />
agrocombustíveis?<br />
*CONTRA CORRENTE é uma publicação da Rede<br />
Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, em<br />
edição especial para o Fórum Social Mundial 2009 -<br />
Janeiro2009
viver sem viver viver:<br />
esboço PArA um terceiro mAnifesto curAu<br />
http://andaravozsilencio.blogspot.com.br/2012/06/viver-sem-viver-viver.html?spref=fb<br />
Comunidade Perdida, Comunidade Recuperada.<br />
Poderia, também, ser o título: evoca os paraísos de<br />
Milton: o Paraíso Perdido e o Paraíso Recuperado,<br />
para dizer: – Ando lendo, interpenetrando,<br />
Bauman Agamben, ambos tentando atravessar a<br />
Dispersão atual da espécie humana em demanda de<br />
um Centro de compreensão do que se passa agora no<br />
mundo, que, achado, permitiria um Ponto de Ações<br />
convergentes – aliás, Ponto já achado, no Sempre,<br />
onipresentemente no Ocidente por Eckhart e<br />
oniausentemente no Oriente pelo Tao. Bauman lendo<br />
no Visível, logo no Tempo Histórico, as gotas<br />
dispersas da Comunidade líquida atual, e se<br />
perguntando com contida angústia insegura algo que<br />
em palavras aqui minhas, significa: - Acharemos um<br />
Ímã? Ele lê no Ente, é claro. Agamben, com mais que<br />
confiança: Fé, lendo no, ainda, segundo ele, Invisível,<br />
e antes entrevisto por Benjamin, Tempo Messiânico,<br />
os fundamentos submersos de uma Ilha ontológica<br />
que resiste à dispersão, e recomendando, como<br />
estratégia de sobrevivência individual e auxílio<br />
valioso que cada um pode dar à recuperação da<br />
Comunidade humana extraviada, o que em palavras<br />
minhas há muitos anos já venho chamando nos livros<br />
de Andara: - viver sem viver Viver. Ele lê no Ser, é<br />
claro. Eu vejo a confusão humana na Terra como<br />
coisa Grave - Sim, porque sua força de gravidade<br />
atrai para o mais baixo com poder de autoextermínio<br />
capaz de varrer nós todos da superfície da Esfera<br />
Azul, sem que as levezas perdidas nos sustentem<br />
entre o Denso e o Sutil e que um só Justo, já nascido<br />
e fenecido ou por ainda por florescer, volte a tempo<br />
ou chegue, e Ascenda em suas Asas que nós, em nós,<br />
atrofiamos mutilando a Promessa de Leveza contida<br />
em nossas omoplatas que as aves realizaram. Mas<br />
também vejo que algo quer brotar, e espantosamente,<br />
atravessando a resistência e Espessura da Tecnologia,<br />
na nossa Onipresença Virtual – e nos Olhos do<br />
Hubble que vê sem olhar, as Presenças ocultas no<br />
Cosmos, percebendo e decifrando energias em cores.<br />
E entendo que para isso, nos dois casos, da presença<br />
virtual e da visão sem olhos, foram nos preparando<br />
ao longo dos séculos os Contos de Fadas, nos<br />
ensinando a Vida como coisa mais subterraneamente<br />
Real quando vivida como - Faz de Conta. Ora, é esse<br />
faz de conta quando praticado no Tempo Histórico,<br />
rigoroso Tempo do Ente e suas carências: Tempo do<br />
Corpo, que Bauman denuncia como mortal para nós.<br />
E é a esse faz de conta maligno que Agamben<br />
150<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
contrapõe o Façamos de Conta, Agora, para favorecer,<br />
com nossas práticas de vida, o heraclitiano advir<br />
Tempo Messiânico. Estamos, pois, entre o: - Tudo<br />
está consumado. E o: - Tudo está por se consumar.<br />
Para que Tudo não se consuma. O momento, então, é<br />
Grave, eu sei. Como sei o poder de realidade possível<br />
– chamem Utopia, como passos em um Caminho,<br />
indo para – do Faz de Conta que moveu Guevara,<br />
pelo sangue, na via utópica da Guerrilha, e Gandhi,<br />
pela mente, no via mística indiana do Ato de Vontade,<br />
que a ignorância ocidental só lhe permite entender<br />
como não violência, resistência pacífica. Mas sei que<br />
a palavra final será dada não por nós. Que quem a<br />
dará, em Silêncio universal, é: o Ponto. Querem saber<br />
como eu cheguei, faz tempo, lançado entre o Visível e<br />
Invisível ao nascer e após ter renascido em Andara,<br />
ao: – viver sem viver Viver? Assim. Tendo entendido<br />
– bobagem, devo dizer: Tendo Visto – que o Real nos<br />
aparece como realidades, vi a dispersão. E tendo<br />
visto que as realidades não são o Real em Si, vi o Ímã<br />
= o Ponto. O Centro. O Eixo. Deus? São nomes, dados<br />
pelos homens, para o Inominável, chamem como<br />
cada cultura quiser. Mas sintam em vocês o Chamado<br />
imanente. Oh, também transcendente. Toda Criança<br />
sabe resistir à deformação adulta dos Pais<br />
empregando o Faz de Conta, que lhe permite resistir<br />
na Infância a essas deformações tantas vezes bem<br />
intencionadas mas deformadas pelo Medo da espécie<br />
a não sobrevivência individual que o é sentido secreto<br />
do Filho. Somos filhos de uma Civilização que tende,<br />
claramente no Ocidente, para o túmulo que vem<br />
cavando para si mesma. Como resistirmos a ela? Às<br />
Crianças que ainda somos, se as despertarmos do<br />
nosso Sono de civilizados adult/erados, é isso o que<br />
Agamben nos recomenda, ostensivamente, em um<br />
dos seus livros mais recentes, sobre a Amizade e a<br />
Comunidade. E eu digo assim: - Façamos de Conta<br />
que estamos realmente vivendo todas as irrealidades,<br />
bebendo todos os Venenos, sonhando todas as<br />
ilusões, crendo em todas as falsas promessas que nos<br />
cercam, encarceram e sobretudo desviam da Via: da<br />
Vida Autêntica que nos caberia buscar, e buscando,<br />
achar quem sabe e Realizar plenamente, o que só<br />
saberemos se nos pusermos a caminho, em nós - em<br />
cada um e por todos nós. Segundo ele, é essencial,<br />
indispensável e cada minuto perdido pode ser a<br />
véspera do último, nos Fingirmos de Tolos, ou<br />
de Mortos - fingirmos que estamos ouvindo e vamos<br />
obedecer o que os Pais Perversos nos mandam fazer,<br />
ó crianças mal tratadas que vivem nesta Casa/mundo<br />
agora vagando por corredores escuros, tropeçando<br />
em mentiras, se erguendo para cair em novas<br />
mentiras. E é essencial nos fingirmos de inexistentes,<br />
de já mortos para o que nos deforma, por que? Para<br />
que? Porque quanto menos reais para as irrealidades<br />
contemporâneas formos, mais reais seremos para<br />
nos libertarmos em direção a uma Real Comunidade<br />
Humana. E para que o Tempo Messiânico - tempo<br />
em que, já sem leis que o determinem por fora, venha<br />
a existir uma só Lei interior, que em cada um será<br />
igual em todos - possa Vir a Nós. Isso é quase uma<br />
exigência de merecimento, ou Graça. E para atender<br />
essa exigência, teremos que nos mover para a Graça e<br />
o Sagrado - com graça, graciosamente, lúdicos - não<br />
como entes em Fuga, mas como seres em Festa. É a<br />
mesma Palavra que nos autoriza agir assim e quer:<br />
Graça, graça. Da minha parte, passo a vocês todo o<br />
significado, a necessidade e a urgência do que vi, e<br />
entendi, se quiserem, como: - viver sem viver Viver.<br />
Achando que, porque nele se realiza o Ponto, já<br />
contém a resposta buscada pela Angústia histórica<br />
imanente de Bauman e a Fé utópica transcendente de<br />
Agamben. Eis: confirmado na Táboa de Esmeralda,<br />
de Hermes Trimegisto, três vezes mestre. Hermes<br />
nos confia o que Viu, e entendeu: - Que o Infinito é<br />
Real e que o Finito é irReal. – Mas que, vivendo no<br />
efêmero transeunte das realidades finitas, nós<br />
devemos viver o Finito como uma Realidade. Quando<br />
eu li isso, me disse: - - Uma ação mágica: viver o<br />
IrReal como se Fosse uma Realidade. Entendam: o<br />
que Hermes Trimegisto e o Saber Hermético há não<br />
sei quantos mil anos nos recomendam é: - Façam de<br />
Contas, aqui. Vivam: Lá. Essa é a Vida Real que cabe<br />
ao homem no Universo. Foi assim, na vida prática,<br />
que Guevara fingiu que era um guerrilheiro, não um<br />
médico, e destruiu a Ditadura de Batista em Cuba.<br />
Com muitos ais. E foi assim que Gandhi, sentado,<br />
imóvel, Não estou fazendo nada, meus Lordes, fingiu<br />
frame de matadouro, filme de 1975 de cecim<br />
que não estava Agindo e expulsou o Colonialismo do<br />
Império Britânico da Índia. Sem um ai. Mas, Vicente:<br />
- Faz de contas? E a Fome que devora o faminto, a<br />
Somália. E a Morte, que lateja em seu sono mortal<br />
nas dez mil Bombas Atômicas que continuam<br />
armadas de um lado e do outro da agora dissimulada<br />
Cortina de Ferro? Eu sei. Por isso tudo neste momento<br />
da Comunidade humana é Grave, muito grave. A isso<br />
eu respondo assim: - A Terra, já se sabe, não é o<br />
centro físico do Universo. Embora eu esteja<br />
perdidamente apaixonado por Ela desde que tive esta<br />
Visão faz uns dias: - Me vi, com uma grande Sede,<br />
pairando entre as galáxias, estrelas, matéria escura,<br />
buracos negros, cometas, meteoros, luas mortas:<br />
tudo ardendo em chamas demais, ou pedras frias,<br />
secas – e morrendo aos poucos de sede, como se diz,<br />
eu não achava Água em nenhum lugar do Universo.<br />
Foi quando percebi um pontinho azul, longe, mínimo<br />
– e um frescor arrebatou e me lancei na sua direção<br />
- e a Terra me deu de beber e me salvou e me guardou<br />
em Si – e encantado, me dei conta de que Ela é o<br />
Único lugar do Cosmos que tem Água: Nascente da<br />
Vida. Agora, mesmo perdidamente apaixonado, para<br />
sempre, ainda me disponho a aceitar que a Terra não<br />
seja o centro físico do Universo. No entanto, quem<br />
sabe o humano seja, em potência, seu Centro Mental<br />
no tempoespaço? Pelo menos um homem que<br />
existindo talvez na liberdade do Faz de Conta das<br />
Lendas, e por isso pode ser para nós, que mal damos<br />
conta do que somos, Três Homens em Um, Hermes<br />
Trimegisto, soube o seu Lugar. E, luminoso, quando<br />
perguntaram magoadamente a ele se não era uma<br />
maldade infinita que não haja realidade no Finito,<br />
respondeu: - Não. Se o Finito fosse real, isso é que<br />
seria Maldade, porque estaria condenado ao Efêmero<br />
– fixo, preso, imóvel – não poderia vir a ser Real.<br />
Entendo essas palavras como o anúncio da nossa –<br />
Liberdade para nos Realizarmos.
viver sem viver viver<br />
se fAçA de ente PArA vir A ser<br />
PósEscrito<br />
Vejam claramente isto: não estou dizendo<br />
que devemos nos reduzir, ainda mais, à Passividade<br />
como submissão – estou dizendo que, já cercados<br />
por todos os lados por uma Civilização Brutalmente<br />
Indiferente tanto a Dor quanto a Alegria – usemos<br />
contra ela a mesma possibilidade de Mutações na<br />
existência humana manifesta que está sendo usada<br />
contra nós. Mas ao contrário: a nosso favor. Então,<br />
fique claro: viver sem viver Viver não é se omitir,<br />
consentido. Ao contrário. É uma Ação Inativa – uma<br />
Recusa, um – Eu me recuso a continuar vivendo<br />
no mundo que vocês me impõem, senhores do bem<br />
e do mal. Do ponto de vista de Pirro de Eléia e dos<br />
Céticos, filósofos da recusa das Farsas, Aparência e<br />
Ilusões – é praticar a Indiferença como libertação.<br />
E a trans-figuração da Amazônia – corrompida pelo<br />
Colonialismo das Caravelas e agora corroída pelo<br />
Imperialismo do Capital – em Andara, a convertendo<br />
em uma região verbal metáfora da vida, é a minha<br />
prática desse Dom de Mutações libertárias através da<br />
Literatura. O: viver sem viver Viver, como reinvenção<br />
da existência, se manifesta em Andara desde seu<br />
primeiro livro visível, A asa e a serpente, então, desde<br />
1979, tempo em que as vozes de Bauman, Agamben<br />
ainda não eram ouvidas por aqui. E ouvir suas vozes<br />
recentemente, só me confirmou: viver sem viver,<br />
Viver. E foi o fundamento oculto que permitiria a<br />
Ação proposta por mim, em 1983, no Manifesto<br />
Curau/Flagrados em delito contra a noite, com esta<br />
formulação, aplicado a Amazônia : Nossa História só<br />
terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer<br />
a nosso favor. Formulação que após o Segundo<br />
Manifesto Curau, ou não: No Coração da Luz, de<br />
2003, agora se amplia para o mundo, assim:<br />
152<br />
#epílogo: entre ruas e rios...<br />
“Nossa irRealidade só se tornará<br />
Real quando o nosso Imaginário a<br />
recriar, a nosso favor.”<br />
comentário do Autor:<br />
sobre dentes e sonHos<br />
viver sem viver, Viver: Ninguém está entendendo,<br />
nada, que pena. Vou falar então como falo<br />
com meu neto Rafael de 3 anos: - O Imperialismo<br />
Luterano Ocidental - leiam Max Weber, sobre a origem<br />
luterana do Capitalismo - transformou este lado<br />
da Terra em uma prisão de onde foi expulsa a Vida<br />
Autêntica. Dentro da prisão, já não se Vive. Por isso,<br />
proponho: - Para escapar à Alienação desse viver sem<br />
viver que nos é imposto é preciso passar a viver sem<br />
viver Conscientemente disso - se recusando a esse<br />
Cárcere onde estamos adormecidos - e isso é uma<br />
Estratégia de reDespertar, de guerrilha psicourbana,<br />
entendam, a ser praticada no nosso dia a dia, em cada<br />
pensamento nosso, palavra, gesto, opção. Até que o<br />
Carcereiro, olhando de fora das grades, veja só uma<br />
cela vazia, e não havendo mais ninguém para vigiar,<br />
pois nos tornamos novamente homens, em nós mesmos,<br />
Livres e perdeu o sentido a sua existência - se<br />
retire - para o Inferno - deixando a porta agora inútil<br />
da sua jaula agora inútil aberta. Porta que então<br />
atravessaremos, reconvertendo o nosso viver sem<br />
viver voluntário, estatégico, em um retorno à Vida<br />
Autêntica, do lado de fora. Esse é o: viver sem viver -<br />
para reViver. Confesso que seria mais veloz, e Digno,<br />
se os livros de História pudessem contar aos filhos<br />
dos filhos dos nossos filhos que tivemos a Coragem<br />
de arrancar a dentadas as grades. Mas onde um dia<br />
esperei dentes, que pena, só vejo agora sorrisos submissos.<br />
Amarelos. Humilhados. Mas contentes. Ler<br />
Morte a Crédito, de Céline, pode favorecer o nascimento<br />
de dentes. Mas eles só crescerão naqueles que<br />
verdadeiramente entenderem, e praticarem, o elogio<br />
do Poder do Imaginário contido nesta frase de<br />
Breton: - Do fundo de um cárcere, basta um homem<br />
fechar os olhos para destruir o mundo.<br />
aVe, Vicente Franz Cecim<br />
segunda-feira, 4 de junho de 2012
minibio(s)<br />
Antena Mutante | http://www.antenamutante.net<br />
É um projeto de comunicação, ação direta e experimentação social<br />
e tecnológica que trabalha desde do primeiro de maio de 2007. Antena<br />
busca produzir um movimento autônomo descentralizado do<br />
mercado, das instituições, do Estado e academia, é um movimento<br />
que busca transportar informação e pessoas a lugares que se encontram<br />
em tensão com as lógicas de exclusão e exploração implantadas<br />
por agentes tecnoeconomicos em escala global.<br />
Arthur Leandro | http://aparelho.comumlab.org ,<br />
http://institutonangetu.blogspot.com.br<br />
Nasceu em Belém do Pará em 1967. É artista ou coisa parecida. Foi<br />
professor do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do<br />
Amapá e hoje atua na mesma função na Faculdade de Artes Visuais<br />
da Universidade Federal do Pará. Ainda vive, mas não sabe dizer as<br />
referencias geográficas precisas, encontra-se em alguma fenda de<br />
espaço-tempo, um güera qualquer. Trabalha em vários ajuntamentos<br />
coletivos que promovem poéticas vivenciais e intervencionistas<br />
à margem do circuito oficial das artes visuais, mas nem por isso fora<br />
dele – vive em fronteiras. Como no Grupo Urucum e/ou Grupo Urucum<br />
do B, oficialmente sediado em Macapá; e na Rede [aparelho]-:,<br />
aparelhada em todo lugar.<br />
Armando Queiroz<br />
Nasceu em Belém do Pará, 1968. Sua formação artística foi constituindo-se<br />
através de leituras, experimentações, participações em<br />
oficinas e seminários. Expõe desde 1993 e participou de diversas<br />
mostras coletivas e individuais no Brasil e no exterior. Sua produção<br />
artística abrange desde objetos diminutos até obras em grande escala<br />
e intervenções urbanas. Detém-se conceitualmente às questões<br />
sociais, políticas, patrimoniais e as questões relacionadas à arte e a<br />
vida. Cria a partir de observações do cotidiano das ruas, apropria-se<br />
de objetos populares de várias procedências, tem como referência a<br />
cidade. Foi contemplado com a bolsa de pesquisa em arte do Prêmio<br />
CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009-2010.<br />
Em 2009, seu site specific Tempo Cabano recebeu o 2º Grande prêmio<br />
do 28º Arte Pará. Em 2010, recebeu Sala Especial no 29º Arte<br />
Pará como artista homenageado do salão. Vive e trabalha em Belém.<br />
Bruna Suelen<br />
Sou Filósofa por formação e mestranda em Artes pela UFPA. Pesquiso<br />
Arte/Política//Educação/Vida. Tento ser coerente, por vezes<br />
me excedo. Atuo na rua. E sou professora da rede estadual de ensino<br />
na ilha de Colares, nas horas vagas. Acredito em Processos Colaborativos<br />
e no Façam Vocês Mesmos! como paradigmas fundamentais.<br />
Bruno Tarin | http://imotiro.org/<br />
Tem experiência nas áreas de Produção Cultural, Gestão Pública de<br />
projetos de Cultura Digital e Artes com ênfase em Artes Eletrônicas<br />
e em Softwares Livres aplicados a produção Multimídia é Bacharel<br />
em Relações Internacionais e atualmente é mestrando da Escola de<br />
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha<br />
de pesquisa Tecnologias da Comunicação e Estéticas. Idealizador<br />
e Fundador da ONG e Instituto de Pesquisa. Colabora com diversas<br />
redes ciber/midiativistas e participa ativamente do debate entorno<br />
da revisão da Propriedade Intelectual, da manutenção e extensão<br />
dos Bens Comuns e de Políticas Públicas de Inclusão Digital especialmente<br />
aplicadas a Cultura.<br />
Bruno Vianna | http://nuvem.tk<br />
É cineasta formado pela UFF. Realizou 4 curtas-metragens entre<br />
os anos de 1994 e 2003: Geraldo Voador, Rosa, Tudo Dominado e<br />
Nevasca Tropical. Seus filmes foram exibidos e premiados em diversos<br />
festivais no Brasil e no mundo, como Gramado, Festival do<br />
Rio, Rotterdam, Tampere, Havana, e Nova York. De 1997 a 1999,<br />
viveu em Nova York, realizando um mestrado em artes digitais na<br />
New York University. Em 2000, obteve uma bolsa da Universidade<br />
Pompeu Fabra, em Barcelona, juntamente com a poetisa Orit Kruglanski,<br />
para desenvolvimento de projeto de literatura interativa para<br />
PDAs - PalmPoetry. O projeto foi selecionado para diversos festivais<br />
de arte eletrônica como Art Futura. Nesse período trabalhou<br />
como consultor de desenvolvimento de conteúdos para celulares na<br />
Cluster Consulting, em Barcelona. Em 2005, realizou seu primeiro<br />
longa-metragem, Cafuné, com financiamento do Ministério da Cultura<br />
a partir da seleção de roteiro de longas de baixo orçamento de<br />
estreantes de 2003. Em 2007 apresentou o projeto Invisíveis, um<br />
espaço virtual narrativo em realidade aumentada para celulares, no<br />
festival Arte.mov, em Belo Horizonte. No momento está realizando<br />
um doutorado em comunicação audiovisual pela Universidade<br />
Autônoma de Barcelona.<br />
Carlinhos Vas<br />
Nascido em Belém do Pará, é músico, produtor cultural e musical.<br />
Durante muitos anos, produziu o Coletivo Rádio Cipó concebendo<br />
projetos, tocando, gravando e mixando os álbuns do grupo, além de<br />
promover mestres populares como Mestre Laurentino e D. Onete<br />
entre shows pelo Brasil e Europa.<br />
Carpinteiro de poesia/© Francisco Weyl<br />
Defino de forma poétyka o conceito através do qual a esta coluna<br />
deu-se o nome: Karpynteyro: do lati(m)do, ex-kapar: KAPAR a voz;<br />
Pynteyro: de palavra; Ynteyro: de silêncio (cio-em-cio).” + Autodenominado<br />
carpinteiro de poesia e de cinema, o poeta, realizador e<br />
professor de Cinema, Francisco Weyl é mestrando em artes (UFPa/<br />
Brasil - 2012), pós-graduado (especialista) em Semiótica e Artes<br />
Visuais (UFPa/Brasil - 2003) e graduado (bacharel) em Cinema e<br />
Vídeo (ESAP Portugal - 2001); atualmente, como jornalista, é assessor<br />
de comunicação do Programa Nacional de Inclusão Digital para<br />
as comunidades Telecentros.BR / Polo Regional Norte e colabora<br />
com o jornal Liberal (Cabo Verde) e com a revista Vanguarda Cultural<br />
(Amapá - Brasil); coordena projetos educativos de intervenção<br />
artística e social e gere a WEYL Editora, o Cineclube Amazonas<br />
Douro e diversas redes sociais: resistenciamarajoara.blogspot.com<br />
/ cinemaderua.blogspot.com / socialcine.blogspot.com / mazagao.<br />
com.sapo.pt / alba.com.sapo.pt / cinemapobre.blogspot.com<br />
Celi Abdoral<br />
Possui Graduação em Direito e Mestrado em Direitos Humanos<br />
pela Universidade Federal do Pará (2009). Atualmente é educadora<br />
popular e advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos<br />
Humanos - SDDH. Tem experiência na área do Direito, com ênfase<br />
em Direitos Humanos, Gênero e Políticas Públicas. Atua principalmente<br />
nos seguintes temas: educação popular, enfrentamento<br />
à violência de gênero, direitos sexuais, tráfico de pessoas para fins<br />
de trabalho escravo feminino, amazônia, fronteira, controle social<br />
e polícia.<br />
Coletivo Puraqué | http://puraque.org.br/<br />
O Coletivo Puraqué é um espaço de fomento da cultura digital e<br />
livre, iniciado em 2001 com uma iniciativa de oficinas de informática<br />
para jovens em condições de risco da periferia de Santarém (PA).<br />
Ao longo do tempo, com a entrada de novos membros, aumentou<br />
sua abrangência de atividades para a região, oferecendo diversas<br />
oficinas como: produção gráfica, estúdio de gravação, rede de blogs<br />
locais, rádio comunitária e formação em ferramentas educativas.<br />
Coisas de Negro | http://coisasdenegro.blogspot.com<br />
Realiza todo domingo a roda de carimbó com Mestre de cultura,<br />
bem como com novos grupos, muitos deles autorais estimulados<br />
pelo Espaço para manter viva e atual a criação e produção do ritmo.<br />
Também são realizadas gratuitamente oficinas relacionadas ao<br />
carimbó - percussão, banjo, flauta, confecção de instrumentos -, e<br />
oficinas relacionadas ao mercado cultural – elaboração de projetos<br />
culturais, captação e edição de áudio, rádio web. O Espaço também<br />
é o local de execução do Projeto de Extensão Carimbó.Net (ICA/<br />
UFPA).<br />
Daniel Hora<br />
Aluno do curso de doutorado em Arte Contemporânea pela Universidade<br />
de Brasília. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade<br />
de São Paulo e especialista em Crítica de Arte pela Universidad<br />
Complutense de Madrid. Tem experiência como jornalista, crítico e<br />
professor nas áreas de artes, audiovisual, comunicação e políticas<br />
culturais. Vencedor do prêmio Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética,<br />
edição 2009-2011.<br />
Felipe Fonseca<br />
efeefe tem algum envolvimento com a história da MetaReciclagem.<br />
Gosta de pensar em sistemas de conversas entre pessoas e acha que<br />
o site da MetaReciclagem um dia vai funcionar direito. Manja um<br />
pouco do CMS drupal, sabe encontrar coisas na web, toca guitarra<br />
mal mas insiste, bebe fermentados. Costuma escrever em http://<br />
efeefe.no-ip.org.<br />
Fernando D’Padua | http://ciclovidapirata.blogspot.<br />
com.br/, http://olharesemderiva.blogspot.com.br/<br />
Nasci em Belém do Pará, fui pixador de passarela na década de 90.<br />
Frequentei o curso de Artes na UFPA de onde quase não sai. Em<br />
2012 defendi dissertação no mestrado em Artes pelo ICA e ainda<br />
estou enrolado com a academia por ter feito uma grande bagunça<br />
nos meus textos. Sou praticante de atividades de intervenção<br />
urbana e semi-urbana utilizando estruturas interativas e itinerantes<br />
elaboradas como pressuposto poe[li]tico. Hoje, moro na Ilha de<br />
Colares cerca de 100 k da capital paraense onde trabalho na roça,<br />
cultivando ervas Sítio Brilho Verde na zona rural da cidade. Atuo<br />
como professor da rede estadual de educação nas horas que me<br />
restam.<br />
Geo Abreu | http://uninomade.net/<br />
É paraense, pesquisadora de Rede Universidade Nômade.<br />
Gil Vieira Costa<br />
1988 (Belém-PA), é professor e aluno, mestre e aprendiz, bêbado e<br />
equilibrista, verdadeiro e falso, preto e branco, puta e padre, e foi<br />
visto pela última vez a 80 km por hora, compactado num navio negreiro<br />
em meio aos seus iguais.<br />
<strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong> | http://commlab.org<br />
Paraense, graduada em Artes pela Unesp-IA, concebeu e produziu<br />
festivais como Mídia Tática Brasil e Digitofagia, e ainda laboratórios<br />
experimentais como Autolabs – desenvolvendo novas metodologias<br />
em mídias e oficinas vinculadas as redes de ativismo e mídias táticas.<br />
Foi responsável pelo planejamento de websites, capas e concepção<br />
gráfica para a coleção Baderna, assim como para outros produtos<br />
da Conrad Editora. Organizou e produziu com o teórico Ricardo<br />
Rosas a publicação Net_Cultura 1.0: DIGITOFAGIA, financiado<br />
pelo programa internacional Waag Sarai Exchange Platform. Nos<br />
últimos anos, em Belém do Pará, estuda a vida nômade e coletiva<br />
entre convivências poéticas e politica através da Rede [aparelho]-: e<br />
Coletivo Puraquê. Planejou ações e orientou projetos para infocentros<br />
do programa de inclusão digital NavegaPará. Concebeu o edital<br />
– Ações colaborativas para cidadania digital, através da Secretaria<br />
de Estado de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia do Governo<br />
do Pará. Dirigiu e produziu a a edição norte do arte.mov - Festival<br />
internacional de Mídias Móveis, realizado na cidade de Belém em<br />
setembro de 2010. Reside entre Belém e Massachusetts/USA, de<br />
onde dirige e produz publicações e a iniciativa Networked Hacklab<br />
vs Amazônida.<br />
Guerrilhas Estéticas [PPG Artes | UFPa]<br />
Coletivo de pesquisintervenção urbanurural operando no dentrofora<br />
da aCADE/mia, nas zonas de CRIAção de outeração no corpo<br />
da cidademundo.<br />
Hugo Gomes<br />
Dos 23 anos de Belém que tenho, fotografei 5 em película, 2 em<br />
pixels e 1 em linhas. Das 10 exposições que tentei entrar passei em<br />
4. Ganhei dinheiro em uma. Dos vídeos que fiz (parte) só o prazer<br />
da feitura. Pesquiso e produzo arte porque não se cala aquele que<br />
tem algo a dizer. Das cartografias que fiz parte essa é a segunda,<br />
talvez a terceira. Dos coletivos que integrei ou integro cito 2. Dos<br />
trabalhos que fiz parte cito 3. Coletivo câmera aberta // laboratório<br />
de cartografia WarZone-Terra do Meio // Quem matou quem<br />
morreu quem..? // fotoEscambo-SobreVivência. Dos links: http://<br />
cameraaberta.wordpress.com/, http://www.speakingimage.org/<br />
images/terra-do-meio-zona-de-guerra, http://coletivohomemso.<br />
blogspot.com.br/ . Das academias que fiz ou faço nada, não aqui.<br />
nada delas, nada de RG, nada de CPF.<br />
Ícaro Gaya |<br />
http://www.youtube.com/user/3luavermelha<br />
23 anos, graduando do curso de Licenciatura Plena em Artes Cênicas<br />
- Teatro, na Universidade Federal do Pará. Começou a fazer<br />
teatro aos 10 anos de idade nas oficinas de teatro infanto-juvenil da<br />
Escola de Teatro e Dança da UFPA – ETDUFPA. Em 2010 escreve<br />
o projeto de performance urbana “Estimação” aprovado pelo Min<br />
C, trabalhando com o grupo de artistas qUALQUER qUOLETIVO.<br />
A partir daí também começa a desenvolver um trabalho voltando<br />
o olhar para o cinema através de trabalhos em video atrelados à<br />
sua vivência com o teatro de rua e com a dança. Em 2011, através<br />
da aprovação do projeto Conexão Dança Residência Internacional,<br />
foi convidado pelo diretor da Companhia de Investigação Cênica,<br />
Danilo Bracchi, para viajar à Europa. Lá fica durante 3 meses participando<br />
de aulas de dança em diversos estúdios de Berlim (Tanz-<br />
Fabrik, Laborgras, Marameo e Studio 152) e em Paris (Menagerie<br />
de Verre). Participa do processo e encenação do espetáculo de rua<br />
“Perifeérico: A Começar pelo pôr-do-sol” com o grupo de teatro de<br />
rua Perifeéricos. Atualmente, atua na Companhia de Investigação<br />
Cênica como produtor cultural, núcleo de comunicação e bailarino,<br />
no Grupo de Teatro Perifeéricos como ator, preparador corporal e<br />
assistente de direção e no qUALQUER qUOLETIVO como qualquer<br />
elemento, pau pra toda obra.<br />
Isabela do lago | http://beladolago.blogspot.com.br/<br />
Soy artista de desenhar, de pintar, de fotografar e escrivinhar. Vivo<br />
em Belém desde que nasci, aqui enterrou-se a minha infância, aqui<br />
desde que nasci (na Comunidade de Cocal-Piauí 1977). Aqui é Belém<br />
do Pará da Amazônia do Brasil de ninguém, aqui fui e sou educada<br />
e cultivo meu descontentamento e minha euforia-alegria-vontade e<br />
percepção do off-mundo. Acredito no movimento cineclubista.<br />
Keyla Sobral | www.naolugar.com.br<br />
Paraense, artista visual, editora e fundadora da revista eletrônica<br />
Não-Lugar e colaboradora do blog Novas-Medias?!. Seu percurso<br />
começa no início dos anos 2000 e de lá para cá vem participando<br />
ativamente da vida cultural da cidade, em mostras coletivas e individuais,<br />
assim como em eventos fora de Belém. Participou e foi premiada<br />
no Salão Arte Pará nos anos 2003, 2005 (2º Grande Prêmio),<br />
2007, 2008 e 2011 (Prêmio Aquisição).<br />
Luah Sampaio | www.blogdasesquinas.blogspot<br />
Há um tempo entre Esquinas! Estuda as Letras portuguesas e da<br />
mesma maneira que se comunica, acredita quase que com uma força<br />
mistica há nessa comunicação. Dentro do Grupo de prostitutas<br />
do Pará, participa de da construção do Cine Gempac, que se propõe<br />
um cineclube no bairro com histórico da Campina, antiga zona do<br />
meretrício e reduto da boêmia intelectualesca da cidade. Faz parte<br />
da construção do movimento ‘Ocupa’ aqui em Belém- Ações-distorções-outrasmetodologias-lambe-lambe-cineguerrilha-rodasdeconversa-aulaspublika-vivência<br />
que descontrói- as explicações com<br />
devidas pontuações. Textos-manifestos-etc- :www.ocupabelem.<br />
wordpress.com. É bolsita do projeto Diálogos em Cabana de Caboco<br />
coordenado pelo Professor João Simões da Faculdade de Ciências<br />
Socias da UFPA. O projeto se pretende a criar uma ponte com academia<br />
e uma troca de produção e conteúdo com o projeto Azuelar e<br />
o Instituto Nangetu que acontecem dentro do terreiro de Camdomblé<br />
Mansu Nangetu.<br />
Lucas Gouvea<br />
Lucas não acredita em biografias, o que pinta, ele assina, trabalha<br />
com o qUALQUER. Signo de Peixes, Cavalo no horóscopo chinês,<br />
Cristal do Mago Branco é o seu kin maia. uma grande mulher queacima<br />
de tudo é uma pessoa extrovertida, eclética, e poelítica. Lucas<br />
é a terceira pessoa, uma pessoa singular. Seu projeto de mandato<br />
para essa eleição é o cancelamento das leis da gravidade. Corpo Esguio,<br />
2,05m de altura, 22 anos, olhos e cabelos castanhos, traços<br />
longilíneos, corpo sexy. Lucas Gouvêa Mariano de Sousa nascido no<br />
dia 21 de fevereiro de 1990, em campinas sp , Lucas é sua mãe, é seu<br />
pai, e seu próprio filho. Lucas é satã e é deus, e pouco lhe importa a<br />
Virgem Maria.
Lorena Marín<br />
Antropóloga sociocultural com interesse em ferramentas de comunicação<br />
(gráficos de computador, mapas, sites, etc.), utiliza software<br />
livre para o desenvolvimento de narrativas alternativas em pesquisa<br />
e participação social. Em sua tese de “Paraíso Público, acesso<br />
limitado: a territorialidade de tensão em torno da renovação do<br />
projeto urbano de Cidade Paraíso” http://territorialista.latenia.net/<br />
investiga as contradições subjacentes a projetos de uso da terra na<br />
cidade de Cali (Colômbia). Sua carreira em comunicação alternativa<br />
começa no Direkta (2010), acompanhando vários processos como<br />
Nación Misak em movimento e cobertura do Congresso dos Povos<br />
em 2010.<br />
Lucia Gomes |<br />
http://luciagomeszinggeler.blogspot.com.br/<br />
Papa-chibé, é de Belém-PA- Amazônia. É mulher, É artista, também.<br />
É cidadã. Atualmente mora na Suíça. Desenvolve intermediações<br />
entre a arte política e a vida. As fronteiras são móveis,<br />
rarefeitas. O ser humano se contamina, se compõe. Um ao outro.<br />
Lucia Gomes desenvolve trabalhos que aproximam corpos para a<br />
diversão. Mas sabe que há misturado o “perigoso e o divertido” .<br />
Traz o lúdico para debater o nocivo. Não é uma artista da arte da<br />
performance, ou da escultura ou do desenho ou... de um segmento<br />
consolidado. ELA EXPERIMENTA FLUXOS. Desde 80 quando se<br />
engajou no movimento estudantil do Brasil desenvolve atravessamentos<br />
artísticos entre >> linguagens-espaços -relações humanas...<br />
seus trabalhos estão ou estiveram tanto nos espaços oficiais da arte<br />
como também em praias, florestas, lixão no céu, nos esgotos, na<br />
neve, nas redes sociais...Acredita que Os Espaços são para comunic-<br />
Ação. A vida é o ponto de fuga. O aqui é o labirinto. Seus Trabalhos<br />
são políticos pois são criações de uma cidadã que vive >>respira<br />
expira e inspira>>nesse mundo, cheio de conturbações e abusos de<br />
poderes>> As interferências artísticas que causa com seus in-fluxos<br />
de pensamento, não sofrem coerção de instituições ou/e qualquer<br />
outro meio de controle. Seus trabalhos são desenvolvidos sem necessariamente<br />
precisar de incentivos financeiros. Posso gritar /chorar/rir.<br />
Gritam no vácuo o qual nos jogam os meios hegemônicos<br />
capitalistas.<br />
Luiz Augusto Pinheiro Leal<br />
Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal<br />
da Bahia (2011), mestre em História Social pela UFBA (2002), especialista<br />
em Teoria Antropológica pela Universidade Federal do Pará<br />
(1998) e graduado em História pela UFPA (1997). Tem experiência<br />
no ensino de História e Antropologia, com ênfase em História da<br />
Amazônia, História Social da República e Antropologia Histórica. É<br />
autor e co-autor, respectivamente, dos livros A política da capoeiragem<br />
(EDUFBA, 2008) e Capoeira, Identidade e Gênero (EDUFBA,<br />
2009). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal<br />
do Pará, campus de Cametá, onde leciona disciplinas relacionadas<br />
à História da África, História do Brasil e História e Cultura Afrobrasileira.<br />
Marie Ellen Sluis | http://barraco55.org, http://mapmob.org/<br />
Ellen tem uma paixão pelo Brasil, onde atualmente reside. Ela escreveu<br />
sua primeira tese para o mestrado em New Media University<br />
of Amsterdã, sobre uso alternativo dos meios de comunicação na<br />
cidade de Santarém, Amazônia – convivendo alguns meses com o<br />
Coletivo Puraqué. Para seu segundo mestrado em Conflit Studies,<br />
durante vários meses ficou no Complexo do Alemão e em favelas do<br />
Rio de Janeiro. Como especialista em Brasil, Ellen agora trabalha<br />
como manager da plataforma digital Intercâmbio Cultural BR-NL<br />
no SICA, uma organização sediada na Holanda, com foco em atividades<br />
culturais internacionais.<br />
Marisa Flórido Cesar<br />
É pesquisadora, crítica de arte e curadora independente. Doutora<br />
pelo programa de pós graduação em Artes visuais da Escola de Belas<br />
artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de concentração<br />
de história e crítica de arte. Possui textos sobre artes visuais<br />
publicados em livros, revistas de arte, catálogos e periódicos, no<br />
Brasil e no exterior. Vive e trabalha no rio de janeiro.<br />
Mateus Moura | http://www.youtube.com/matouocinema,<br />
http://www.youtube.com/qualquerjamcine,<br />
https://vimeo.com/garfoefaca<br />
Mente que finge sonhar cinema em Belém na Amazônia, e outras<br />
coisas. Acaba devaneando: filma, escreve, fala, canta, atua, silencia.<br />
É indivíduo. Também participa de ações em coletivo: literatura<br />
(incêndio) música (Les Rita Pavones), teatro de rua (Perifeéricos),<br />
cineclubismo (APJCC), produção cultural e comunicação (garfo e<br />
faca), qualquer quoisa (qUALQUER qUOLETIVO). Mantém um<br />
blog onde cultiva o seu pensamento e canais que guardam sua<br />
produção audiovisual.<br />
Michele Campos de Miranda<br />
Atriz-performer paraense, com Mestrado em Artes Cênicas pela<br />
UNIRIO (2010), na Linha de Estudos da Performance. Técnica em<br />
Ator pela Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará<br />
- ETDUFPA (2002). Graduada em Comunicação Social pela Universidade<br />
da Amazônia (2001). Pesquisadora vinculada ao Núcleo de<br />
Estudos das Performances Afro-Ameríndias - NEPAA. Fundadora<br />
e atriz da Companhia de Teatro Madalenas desde 2002. Atuando<br />
principalmente nos seguintes temas: teatro experimental, performance,<br />
cultura popular, ritual, processos de criação.<br />
MetaReciclagem |<br />
http://rede.metareciclagem.org<br />
O bando MetaReciclagem é uma rede com centenas de integrantes<br />
no Brasil inteiro. Desde 2002, propõe ações de desconstrução<br />
e apropriação crítica de tecnologias de informação. Influenciou<br />
projetos por aí, ganhou prêmios e se espalhou. Continua buscando<br />
pessoas interessadas em usar tecnologias para mudar o mundo.<br />
Novas Médias!? |<br />
http://novas-medias.blogspot.com.br/<br />
Nasceu inicialmente para dar suporte ao trabalho de mesmo nome<br />
que foi exposto na Galeria Theodoro Braga em Belém, em 2008. A<br />
idéia era utilizar o blog para tratar de assuntos diversos ligados a<br />
divulgação de informações construídas, simulacros e apropriações.<br />
Depois com o fim da exposição, resolvemos dar prosseguimento ao<br />
blog deflagrando nele informações sobre mídias novas, low tecnologia<br />
e arte contemporânea, sendo ele hoje nosso médium para divulgação<br />
de informação tendo em vista um caráter multidisciplinar.<br />
Um espaço que não defende nenhuma bandeira (até então), talvez<br />
um espaço que represente uma bandeira deitada, horizontalizada e<br />
esticada por várias mãos. Podemos até tomar partido...por quanto<br />
tempo!? Quem sabe!? Somos um grupo a espera de novos integrantes.<br />
E por enquanto sem fins lucrativos.<br />
Pablo de Soto |<br />
http://www.scoop.it/t/los-mapas-del-15m<br />
É arquiteto e membro fundador do coletivo hackitectura.net. Atualmente<br />
investiga a tekné do novo movimento global e trabalha no<br />
Laboratório de Cartografias Insurgentes de Rio de Janeiro.<br />
Paulo Tavares<br />
Arquiteto e urbanista graduado no Brasil, desde 2008 é professor<br />
no programa de mestrado no Centro de Pesquisa em Arquitetura -<br />
Goldsmiths. Seus artigos apareceram em diversas publicações em<br />
todo mundo, incluindo Nada (PT), Alfabeta2 e Abitare (IT), Gabinete<br />
(EUA), Piseagrama (BR) e Third Text (UK). Seu trabalho tem sido<br />
exibido em vários locais, incluindo HKW, Berlin , CCA, Glasgow e<br />
Portkus, Frankfurt. Pesquisador filiado a CAPES, vive entre Londres,<br />
Quito e São Paulo.<br />
Qualquer Quoletivo |<br />
https://n-1.cc/pg/profile/qualquerquoletivo<br />
Não existe liberdade individual sem liberdade quoletiva, sem liberdade<br />
não há existência. Eu’s acreditamos no acaso. Não apenas individualizar<br />
o quoletivo mas quoletivizar o individual é O qualquer<br />
quoletivoTeoricamente?! o pode ser entendido pelo que Félix Guatarri<br />
chama de agenciamentos coletivos de enunciação>> nesse<br />
sentido, transamos com as in formações e com as des-formações<br />
circundantes no contexto vívido.<br />
RedeCom | http://redecom.wordpress.com/<br />
Rede Amazônia de Comunicadores Comunitários é um desdobramento<br />
da Rede Amazônica de Protagonismo Juvenil, projeto de<br />
pontão de cultura que foi realizado pelos Argonautas Ambientalistas<br />
da Amazônia em convênio com o Ministério da Cultura e também do<br />
projeto “Caravana Digital: Juventude Conectada pela Cidadania”,<br />
sendo articulada através de um convênio com a FAPESPA – Fundação<br />
de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. A Rede não é um espaço<br />
virtual, mas sim uma teia real de conexão entre pessoas que se<br />
conhecem e já praticam algum nível de interação entre si, buscam<br />
objetivos comuns e que se relacionam de forma não hierárquica,<br />
trabalhando nos princípios colaborativos, solidários e participativo,<br />
com metas, objetivos e princípios definidos pelos seus integrantes.<br />
Ricardo Folhes<br />
Graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Lavras-MG,<br />
é especialista em Geoprocessamento pela Universidade Federal de<br />
São Carlos e Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal<br />
do Pará. Tem experiência em planejamento, desenvolvimento<br />
metodológico, aplicação/ produção de cartilhas e relatórios técnicos<br />
de projetos de mapeamento participativo de conflitos socioambientais<br />
e usos da terra, em assentamentos de reforma agrária, unidades<br />
de conservação, comunidades remanescentes de quilombos e comunidades<br />
tradicionais em processo de etnogênese na região oeste do<br />
estado do Pará. Realizou consultoria para diagnóstico da situação<br />
fundiária e para elaboração de planos de manejo participativos em<br />
Reservas Extrativistas nos Estados do Maranhão e do Amazonas.<br />
Foi consultor responsável pelos trabalhos de análise, integração de<br />
dados e produção cartográfica do Zoneamento Econômico Ecológico<br />
da Zona Leste e Calha Norte no Estado do Pará. Experiência<br />
em planejamento e preleção de palestras, oficinas e cursos de mapeamento<br />
participativo e geoprocessamento nos Estados do Pará e<br />
Rio de Janeiro. Atualmente, participa de projetos de pesquisas relacionadas<br />
às mudanças no uso da terra na Amazônia.<br />
Revista Não Lugar | http://www.naolugar.com.br<br />
Nasceu há dois anos com a proposta de discutir arte e cultura contemporânea,<br />
tendo como ponto de partida a Amazônia. Cada número<br />
com um tema definido, desmistificando a protagonização artística<br />
do sul/sudeste do país. A internet foi o suporte mais eficiente, e<br />
mais barato para esse tipo de difusão de conteúdo cultural. E veio<br />
como esse meio desmistificador de fronteiras.<br />
Roberta Carvalho<br />
É artista visual, designer e produtora cultural. Estudou artes visuais<br />
na Universidade Federal do Pará. Vive em Belém, cidade onde<br />
nasceu. Desenvolve trabalhos na área de imagem, intervenção urbana<br />
e videoarte. Foi vencedora de diversos prêmios, entre eles o<br />
Prêmio Diário Contemporâneo (2011), 2º Grande Prêmio do Salão<br />
Arte Pará (2005), Menção Honrosa no Salão de Pequenos Formatos<br />
(2006), além do Prêmio Microprojetos (2010) da Funarte (MINC).<br />
Foi bolsista de pesquisa e criação artística do Instituto de Artes<br />
do Pará (2006). Seus trabalhos integram acervos como o do Museu<br />
de Arte Contemporânea Casa das 11 Janelas e Museu da Universidade<br />
Federal do Pará. Participou de diversas exposições, entre<br />
elas Cartografias Contemporâneas, SESC-SP, Vivo Arte.Mov 2011,<br />
Virada Cultural de SP - Projeta Pompéia, Sesc Pompéia - SP, Circuito<br />
Sesc de Artes 2011 (SP), Manaus Bem na Foto (2011), 100menos10<br />
- Belém-PA (2011), Symbiosis - Ateliê da Imagem, RJ, 2011.<br />
Projeto Symbiosis foi o projeto-destaque do Paraty em Foco 2011,<br />
Festival Internacional de Fotografia de Paraty. Em 2012 integrou<br />
a exposição Tierra Prometida, sob curadoria de Iatã Cannabrava,<br />
no Museu Casa America Cataluña em Barcelona - Espanha. Atualmente<br />
está circulando dezenas e cidades brasileiras e municípios da<br />
Amazônia com o Projeto #Symbiosis.<br />
Romario Alves<br />
Ñ, ñ é o jogador de futebol, mas Um outro qualquer.wellington<br />
Romário da silva alves assim batizado nessa vida. Nascido em Belém<br />
do PA em 89 é residente até hoje nesta parte urbana da Amazônia ?<br />
imagine o que é residir... blá blá blá.Por uma busk de objetividade<br />
aki neste ex-passo,e suposta-mente para encurtar dis---t---âncias<br />
digo, diz-se que sou>> Trans ~_~formista, Costureiro, Artista ,<br />
Periférico, Pesquisador, artesão, Diretor de arte, Amazônida, Con-<br />
strutor de ambientes, Poeta, graduando em artes visuais na UFPA<br />
, um Cidadão em aberto rodeados de palav (r) ios. Nomeio/conceituo/blá<br />
blu/tix/flu... minhas Pro-Posições q integram e diluem<br />
linguagens da arte com o cotidiano Vivenciando um outro atuar<br />
pensando arte cidade existÇencia , mais que social, vem pelos sentimentos.<br />
Dae, chego a me har-tre--ver> deslizamento, assim digo q<br />
ocorre um DESLIZAMENTO quando não finca-se algo/alguém na<br />
arte-vida-politik-oralidade-ciÊncia-imaginàrio-e.... Mas, desliza-se<br />
por entre todas essas expressões, vividas -criadas no cotidiano, sendo,<br />
é o que interessa<br />
Roberto Traplev | http://issuu.com/recibo<br />
Traplev é o nome que Roberto Moreira Junior utiliza para publicar<br />
alguns de seus trabalhos como artista, e também em projetos<br />
colaborativos como curadoria, seminários e a publicação RECIBO<br />
de artes visuais. No seu trabalho Traplev investiga ações e conceitos<br />
através da fotografia, projetos para espaços específicos, instalações,<br />
apropriação de imagens, objetos, publicação, edição de múltiplos,<br />
espaços para reflexão e intercâmbio, entre outras linguagens.<br />
Tem interesse no texto como parte e corpo da obra, refletindo sobre<br />
aparências e sentidos da realidade crítica através de dispositivos<br />
que remetem a questões administrativas e cotidianas, testando o<br />
fato múltiplo da permissividade do circuito. Roberto MJ coordena<br />
as ações de Traplev Agenciamentos desde 2005, na qual organiza<br />
seminários, projetos de expedições temporárias, workshops,<br />
curadorias, exposições, assessorias e projetos colaborativos com<br />
outras instituições.<br />
Samuel Maria de Amorim e Sá<br />
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal<br />
do Pará (1967), mestrado em Antropologia - University Of Florida<br />
Gainesville (1976) e doutorado em Antropologia - University Of<br />
Florida Gainesville (1980). Atualmente é colaborador, Professor da<br />
Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará. Tem<br />
experiência na área de Antropologia relacionada à Saúde Coletiva e<br />
ênfase em Antropologia.<br />
Tatiana Wells |<br />
midiatatica.info, baobavoador.noblogs.org<br />
É pesquisadora e praticante de projetos relacionados à produção<br />
digital colaborativa e tecnologias livres. Trabalha pelos férteis cruzamentos<br />
entre apropriações tecnológicas críticas e movimentos<br />
sociais. Nascida no Rio de Janeiro, com um mestrado em Estudos<br />
de Hipermídia pela Universidade de Westminster de Londres, Inglaterra<br />
(2001), trabalha com produção de eventos de arte, mídia<br />
e tecnologia; pedagogia e produção multimídia em software livre<br />
desde 2003, produzindo seminários, publicações, tutoriais, sítios<br />
web, ações e apresentações afins.<br />
Vicente Franz Cecim<br />
Nasceu e vive na Amazônia, Brasil. Autor de Viagem a Andara<br />
oO livro invisível. Seus livros visíveis emergem dessa obra transfigurando<br />
a Amazônia em Andara, região-metáfora da vida. 1988:<br />
Grande Prêmio da Crítica da Apca por Viagem a Andara que elimina<br />
a fronteira entre prosa e poesia. 1994: Silencioso como o Paraíso se<br />
profunda em pura escritura, para Leo Gilson Ribeiro “um dos mais<br />
perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos.” 2001: Ó<br />
Serdespanto, onde a Escritura agora dialoga com o Silêncio, é um os<br />
melhores ano para a crítica portuguesa e Cecim, para Eduardo Prado<br />
Coelho, “uma revelação extraordinária!.” 2005: com K O escuro da<br />
semente inaugura na obra a Iconescritura. 2008: com oÓ: Desnutrir<br />
a pedra aprofunda a demanda de uma escrita que exclui a palavra<br />
na página em branco e substituída pela Imagem. Também cineasta<br />
desde 1975, agora cria o ciclo Gaia de cinema virtual, com imagens<br />
e palavras: Canal KinemAndara: http://www.youtube.com/user/<br />
vfcecim?feature=mhee. Escreve o Diário d oO livro invisível: http://<br />
diariodoolivroinvisível.blogspot.com e Andara: VozSilêncio: http://<br />
cecimvozesdeandara.blogspot.com<br />
Yuri Barros,<br />
graduando em Artes Visuais pela Ufpa. Cineclubista na horas vagas,<br />
desenhista vez ou outra, gostaria de fazer mais gravuras... E quando<br />
resta tempo faz intervenções pelas ruas ou simplesmente vagueia<br />
entre elas.
ficHA técnicA:<br />
PublicAção<br />
Organização/Produção Executiva<br />
<strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong><br />
Editores<br />
Arthur Leandro, Bruna Suelen, <strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong>, Ícaro<br />
Gaya, Lucas Gouvêa, Mateus Moura, Romario Alves,<br />
Clever dos Santos.<br />
Produção/Logística<br />
Romario Alves<br />
Vídeos RMXTXTURA<br />
Mateus Moura e Lucas Gouvea<br />
Projeto Gráfico<br />
Lucas Gouvêa<br />
Produção Gráfica<br />
Roberto Traplev<br />
Colaboradores<br />
//Armando Queiroz // Ateliê do Porto// A Casa –<br />
Laboratório de Permacultura Urbana // Celi Abdoral //<br />
CONTRA CORRENTE // Espaço Cultural Coisa de Negro<br />
// Felipe Fonseca //Fernando D’Pádua // Gil Vieira //<br />
Hugo Nascimento // Instituto Nangetu // Integra Belém<br />
// João Simões // Lorena Marín // Luah Sampaio //<br />
Lucia Gomes // Luiz Augusto Pinheiro Leal // Marie Ellen<br />
Sluis //Michele Campos // Pablo de Soto // PARACINE//<br />
Paulo Tavares //Radio Cipó Arte & Entretenimento//<br />
Ricardo Folhes // Roberto Traplev // Tatiana Wells //<br />
Vicente Franz Cecim // Yuri Barros //<br />
Fotografias<br />
Arthur Leandro, <strong>Giseli</strong> <strong>Vasconcelos</strong>, Bruna Suelen, Espaço<br />
Coisa de Negro, Fernando D’ Pádua, Fundação Lúcia<br />
Gomes, Isabela do Lago, Keila Sobral, Qualquer Quoletivo,<br />
Roberta Carvalho, Samir Raoni<br />
Decupagem/Transcrição<br />
Bruna Suelen e Ícaro Gaia<br />
Tradução<br />
Tatiana Wells<br />
Revisão<br />
Bruna Suelen, Erika Morhy, Ícaro Gaya<br />
comumlab@gmail.com<br />
estA é umA obrA de ficção<br />
quAlquer coincidênciA é merA semelHAnçA<br />
belém - PArá - AmAzôniA - brAsil - 2012<br />
ficHA técnicA:<br />
imersivAs<br />
Direção/Produção Executiva<br />
<strong>Giseli</strong><strong>Vasconcelos</strong><br />
Mediação<br />
ArthurLeandro<br />
Produção/Rede:<br />
TatianaWells<br />
FelipeFonseca<br />
JaderGama<br />
Colaboradores<br />
Parque dos Igarapés<br />
IAP - Instituto de Arte do Pará<br />
Casarão Cultural Floresta Sonora<br />
Casa Poraqué<br />
Produção/Logística<br />
BrunaSuelen<br />
Produção/Áudio<br />
Carlinhos Vas<br />
Produção/Experimentação/Videos<br />
qUALQUER qUOLETIVO: Lucas Gouvea, Mateus<br />
Moura, Maecio Monteiro, Luah Sampaio, Romario<br />
Alves, Icaro Gaya, Hugo Nascimento e Luiza Cabral<br />
Agradecimento Especial<br />
Edna <strong>Vasconcelos</strong> e Edineia Sindona, João Simões<br />
Tiragem<br />
1000 exemplares<br />
Copyleft: Esta obra é livre, você pode copiar, compartilhar<br />
e modificar sob os termos da Licença da ArteLivre 1.3<br />
estA é umA obrA colAborAtivA<br />
Artigos e imAgens destA PublicAcão são<br />
de resPonsAbilidAde de seus resPectivos<br />
Autores — coPie remix e referencie A fonte<br />
distribuição grAtuitA
nossa<br />
irrealidade<br />
só se tornará<br />
real quando<br />
o nosso<br />
imaginário<br />
a recriar,<br />
a nosso favor.<br />
vicente franz cecim
162<br />
#Prólogo: Perigoso e divertido