EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DILEMAS E PRÁTICAS - TV Brasil
EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DILEMAS E PRÁTICAS - TV Brasil
EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DILEMAS E PRÁTICAS - TV Brasil
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>EDUCAÇÃO</strong> <strong>FÍSICA</strong><br />
<strong>ESCOLAR</strong>: <strong>DILEMAS</strong> E<br />
<strong>PRÁTICAS</strong><br />
Ano XXI Boletim 12 - Setembro 2011<br />
ISSN 1982 - 0283
SUMÁRIO<br />
Educação Física Escolar: dilEmas E práticas<br />
Apresentação da série ................................................................................................. 3<br />
Rosa Helena Mendonça<br />
Introdução<br />
Educação Física e Educação ......................... .............................................................. 4<br />
Antonio Jorge Gonçalves Soares e Edivaldo Góis Junior<br />
Texto 1: Dilemas da Educação Física no cotidiano<br />
Dilemas no cotidiano da Educação Física escolar: entre o desinvestimento e a inovação<br />
pedagógica ......................... ....................................................................................... 14<br />
Valter Bracht<br />
Texto 2: O que se ensina e o que pode ser ensinado<br />
A pedagogização dos conteúdos da Educação Física: tradição e renovação...................... 21<br />
Mauro Betti<br />
Texto 3: Temas e experiências práticas<br />
Megaeventos esportivos, Movimento Olímpico e mídia: o esporte saltando os muros<br />
da Educação Física escolar ................................................................................................ 29<br />
Marta Corrêa Gomes
Educação Física Escolar: dilEmas E práticas<br />
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE<br />
Cada vez mais, espaços e tempos têm sido<br />
pensados como categorias indissociáveis<br />
nas sociedades em geral e nas escolas em<br />
particular. Na dinâmica escolar, essa ques-<br />
tão ganha contornos específicos, uma vez<br />
que faz parte da chamada cultura escolar<br />
uma forma de organização que tende a di-<br />
cotomizar tempo e espaço. As turmas ocu-<br />
pam salas específicas que são agrupadas por<br />
séries. E as aulas têm, em geral, duração de<br />
cinquenta minutos.<br />
Entre as disciplinas, a Educação Física, é<br />
uma das que mais se ressente desse mode-<br />
lo historicamente construído. Na busca de<br />
uma inserção mais efetiva no currículo, a<br />
Educação Física escolar, ao definir sua iden-<br />
tidade enquanto área do conhecimento, tem<br />
também evidenciado suas especificidades.<br />
Afinal, “A Educação Física é representada pela<br />
comunidade escolar como disciplina que incide<br />
sobre a formação cultural do alu no? Ou como<br />
atividade complementar que pode auxiliar a<br />
construção de um ambiente prazeroso no coti-<br />
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/<strong>TV</strong> ESCOLA (MEC).<br />
diano escolar, a formação de hábitos saudáveis<br />
e a socialização de experiências esportivas ou<br />
de expressão corporal?”. Quais são os dilemas<br />
e as perspectivas da disciplina no contexto<br />
de valorização da ampliação da jornada es-<br />
colar na perspectiva da educação integral?<br />
Para discutir essa temática, a <strong>TV</strong> Escola, por<br />
meio do programa Salto para o Futuro, apre-<br />
senta a série Educação Física escolar: dile-<br />
mas e práticas, com a consultoria de Anto-<br />
nio Jorge Gonçalves Soares e Edivaldo Góis<br />
Junior (UFRJ). Nos textos desta publicação<br />
e nos programas televisivos são apresenta-<br />
dos temas relevantes, como o histórico da<br />
Educação Física na educação, os desafios da<br />
disciplina escolar Educação Física e as me-<br />
todologias emergentes para o ensino dessa<br />
disciplina.<br />
Esperamos, dessa forma, contribuir com<br />
práticas inovadoras no âmbito da cultura<br />
corporal do movimento.<br />
Rosa Helena Mendonça 1<br />
3
Educação Física Escolar: dilEmas E práticas<br />
INTRODUÇÃO<br />
Um dos mais importantes teóricos do libe-<br />
ralismo, o inglês John Locke, no século XVII,<br />
preocupava-se com a ênfase dada às carac-<br />
terísticas intelectuais da educação inglesa.<br />
Locke passa, então, a pregar uma educação<br />
integral: intelectual, moral e física. Sobre<br />
a educação física, Locke tinha uma visão<br />
higienista, influenciada por sua formação<br />
médica. Para ele, a prática de atividades fí-<br />
sicas, inspirada nas concepções gregas de<br />
educação, auxiliaria o processo de formação<br />
do homem civilizado. O gentleman inglês<br />
passaria necessariamente pela educação do<br />
corpo 3 .<br />
Percebemos que o pensamento sobre a edu-<br />
cação física nos séculos XVIII, XIX e no início<br />
do século XX se justifica a partir da educação<br />
voltada para a saúde e para as habilidades<br />
corporais. A ideia de educação corporal na<br />
escola, com espaços e tempos definidos no<br />
currículo, ganha destaque a partir do séc.<br />
XX. Assim, a escola passa a ter a missão de<br />
educar o intelecto, o corpo e a moral das<br />
novas gerações no contexto da formação e<br />
da consolidação dos Estados nacionais no<br />
Ocidente. Observe-se que a instituição des-<br />
sa disciplina no contexto escolar não se deu<br />
sem embates no espaço contestado do cur-<br />
rículo.<br />
Antonio Jorge Gonçalves Soares 1<br />
Edivaldo Góis Junior 2<br />
Hoje, podemos dizer que pensar a escola<br />
com tempos e espaços voltados para edu-<br />
cação do corpo e da expressividade dos alu-<br />
nos se tornou quase um consenso. Vejamos<br />
que os programas de ampliação da jornada<br />
escolar no <strong>Brasil</strong> induzem a introdução de<br />
atividades e de experiências que valorizam<br />
a formação da expressividade e do corpo.<br />
A escola não pode mais pensar a formação<br />
dos alunos e das alunas apenas a partir de<br />
saberes utilitários para a futura inserção<br />
num imaginado mercado do trabalho. A so-<br />
ciedade se tornou complexa, de modo que o<br />
1 Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de<br />
Pós-graduação em Educação. Pesquisador do CNPq. Consultor da série.<br />
2 Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Consultor da série.<br />
3 Cf. OLIVEIRA, Vítor Marinho de. Consenso e Conflito da Educação Física <strong>Brasil</strong>eira. Campinas: Papirus, 1994.<br />
4
mercado de trabalho e as ocupações trans-<br />
formam-se rapidamente. Sem prescindir<br />
da socialização de saberes heurísticos e/ou<br />
utilitários, a educação escolar volta-se para<br />
a formação de novas subjetividades num<br />
mundo que questiona a hierarquia, as vio-<br />
lências do passado e de hoje e as diferentes<br />
formas de produção da desigualdade. Nessa<br />
nova configuração cultural, a escola trans-<br />
forma-se em meio às crises que perpassam o<br />
currículo, a sociedade e a tradição. A Educa-<br />
ção Física, enquanto disciplina escolar, tam-<br />
bém procura uma nova identidade diante da<br />
construção de novos acordos sobre o papel<br />
da escola na contemporaneidade.<br />
Nesse sentido, muitos debates sobre os ob-<br />
jetivos dessa disciplina inflamaram o campo<br />
a partir dos anos de 1980. Os profissionais<br />
e intelectuais dessa área passaram a propor<br />
objetivos educacionais para a Educação Físi-<br />
ca escolar que permitam uma maior racio-<br />
nalidade e uma adequação às novas deman-<br />
das sociais e culturais entre seus saberes e<br />
sua metodologia de ensino.<br />
O objetivo desta série é debater os dilemas e<br />
particularidades da Educação Física no espa-<br />
ço escolar. Com isso, pretendemos fomentar<br />
o debate sobre os objetivos específicos, mé-<br />
todos e avaliação deste componente curri-<br />
cular no espaço contestado do currículo.<br />
UM POUCO DE HISTÓRIA<br />
Inicialmente, o papel de educar o físico ca-<br />
bia a instrutores que frequentavam cursos<br />
especializados, a maioria deles em institui-<br />
ções militares.<br />
No século XVIII, a Educação Física foi in-<br />
fluenciada pelos educadores, médicos e mi-<br />
litares. Cada segmento oferece um ideário<br />
que subsidia a sua prática, dando origem às<br />
primeiras sistematizações de Educação Fí-<br />
sica. Neste momento surgem, a pedido de<br />
vários governos ou iniciativas individuais,<br />
planos e métodos de Educação Física. A pro-<br />
fissão começa a ser organizada.<br />
Os exemplos mais conhecidos são os dos<br />
Métodos Ginásticos europeus: o modelo<br />
esportivo da Inglaterra; a ginástica sueca;<br />
o nacionalismo do método alemão e o mé-<br />
todo francês, que constituem as primeiras<br />
teorias sobre a intervenção desta profissão.<br />
Em pouco tempo, no século XIX, o ideal de<br />
educação do corpo chega ao <strong>Brasil</strong>. Em 1810,<br />
é criada a Academia Real Militar, com seu<br />
treinamento baseado em teorias da exerci-<br />
tação. Em 1851, com a Lei n. 630 de 17 de<br />
setembro, o Governo Imperial incluía a gi-<br />
nástica no ensino das escolas primárias 4 .<br />
Contudo, sua prática foi iniciada no Colégio<br />
Pedro II, no Rio de Janeiro, já em 1841 5 .<br />
4 Cf. DA COSTA, Lamartine. Formação Profissional em Educação Física, Esporte e Lazer. Blumenau: FURB, 1999.<br />
5 Cf. CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando. Os exercícios gymnasticos no Collegio Imperial de Pedro Segundo<br />
(1841-1870). Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do Esporte, v. 25, n.1, 2003.<br />
5
Em relação à Ginástica Escolar, Cunha Jú-<br />
nior (2003) descreve que o Colégio Pedro II,<br />
fundado em 1837 com o objetivo de oferecer<br />
uma formação diferenciada à elite carioca<br />
do século XIX, introduz no ensino público<br />
fluminense as práticas da ginástica. Esse co-<br />
légio oficial se diferenciou com uma forma-<br />
ção moderna, que incluía em seu currículo<br />
saberes que não faziam parte do currículo<br />
dos outros colégios, como a música, o dese-<br />
nho e a própria ginástica. O aluno formado<br />
pelo colégio recebia o título de bacharel em<br />
Letras, e poderia ingressar em qualquer cur-<br />
so superior do país. O primeiro professor de<br />
ginástica do Colégio Pedro II, em 1841, foi<br />
Guilherme Luiz de Taube, contratado pelo<br />
reitor Joaquim Caetano da Silva, médico for-<br />
mado em Paris, que foi convencido pelos ar-<br />
gumentos higienistas de Taube a introduzir<br />
a ginástica no colégio. Outro argumento foi<br />
o fato de os melhores colégios europeus já<br />
terem adotado a prática de exercícios ginás-<br />
ticos. Com isso, foi fixado o salário de Gui-<br />
lherme de Taube em quatrocentos mil réis, o<br />
menor salário do colégio, o que denota o pa-<br />
pel complementar da área em relação às ou-<br />
tras disciplinas da escola. Além disso, ele não<br />
possuía o título de professor, era nomeado<br />
como mestre, um título inferior na época 6 .<br />
Em 1860, o método alemão é introduzido<br />
no <strong>Brasil</strong>, trazido pelos imigrantes alemães.<br />
Contudo, a profissão e a disciplina Educa-<br />
ção Física não se generalizam no cenário<br />
das escolas brasileiras; a introdução desta<br />
nos currículos ocorria de forma isolada. Em<br />
1882, Rui Barbosa propõe a obrigatoriedade<br />
da Educação Física nas escolas, preocupado<br />
com as condições de saúde das crianças bra-<br />
sileiras.<br />
Esse cenário só começará a ser transforma-<br />
do na escola a partir do século XX. Em 1907, é<br />
instalada a missão militar francesa, marcan-<br />
do o início embrionário da Escola de Educa-<br />
ção Física da Força Policial de São Paulo, o<br />
mais antigo estabelecimento especializado<br />
em todo país. Em 1922, por portaria do Mi-<br />
nistério da Guerra, é criado o Centro Militar<br />
de Educação Física, cuja proposta funda-<br />
mental é dirigir, coordenar e difundir o novo<br />
método de Educação Física, baseado no Mé-<br />
todo Francês 7 . Ainda, nesta década, a preo-<br />
cupação central das personalidades ligadas<br />
à Educação Física era a criação de uma Es-<br />
cola civil e profissional de Educação Física.<br />
Na década de 1930, com o apoio das políti-<br />
cas higienistas de saúde pública e a constru-<br />
ção de uma ideologia nacionalista na políti-<br />
ca do governo Getúlio Vargas, os ideais dos<br />
instrutores de Educação Física ganham eco.<br />
São criados periódicos especializados no as-<br />
sunto por parte de editoras públicas e pri-<br />
6 Cf. CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando. Os exercícios gymnasticos no Collegio Imperial de Pedro Segundo<br />
(1841-1870). Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do Esporte, v. 25, n.1, 2003.<br />
7 Cf. CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no <strong>Brasil</strong>: a história que não se conta. Campinas: Papirus,<br />
1988.<br />
6
vadas e são publicados diversos livros sobre<br />
a temática. Ainda nessa década, o governo<br />
Getúlio Vargas oficializa o Método Francês<br />
como o método oficial a ser seguido pelas<br />
escolas brasileiras a partir do Regulamento<br />
n. 7, que serviu de base para a intervenção<br />
pedagógica da Ginástica no contexto escolar<br />
em 1931. Em 1939, a Universidade do <strong>Brasil</strong><br />
(atual Universidade Federal do Rio de Janei-<br />
ro) cria a Escola Nacional de Educação Físi-<br />
ca e Desportos. O curso da Escola Nacional<br />
tinha a duração de dois anos, e era baseado<br />
nos ensinamentos da Pedagogia, da Medici-<br />
na e da Ginástica Militar.<br />
Até aqui podemos observar que a Educação<br />
Física faz parte de um projeto educacional<br />
de formação do “homem brasileiro” em<br />
moldes semelhantes aos de Locke. Isto era<br />
reforçado pela crescente influência do “mo-<br />
vimento higienista” no <strong>Brasil</strong> 8 .<br />
Na década de 1970, podemos destacar a in-<br />
serção de importantes influências originá-<br />
rias dos Estados Unidos: o novo Movimento<br />
de Saúde. Sobre o novo Movimento de Saú-<br />
de, a intervenção atém-se, principalmente,<br />
aos fenômenos físicos que alteram as con-<br />
dições de saúde e também estéticas do in-<br />
divíduo. O interesse central desta vertente<br />
é intervir sobre os determinantes biológicos<br />
e comportamentais da saúde. Os aspectos<br />
físicos-biológicos e suas metodologias são<br />
os focos centrais dos seus estudos, que bus-<br />
cam melhorar a condição de vida das pes-<br />
soas. Estes “novos higienistas”, na verdade,<br />
preocupam-se mais com a elaboração e a<br />
divulgação de seus programas de saúde que<br />
com a democratização dos mesmos. Esta<br />
tendência tem início nos Estados Unidos, e<br />
é retratada no livro de Michael Goldenstein,<br />
Movement of Health.<br />
Segundo Goldenstein (1992), o “movimento<br />
de saúde” começa a ganhar forma na socie-<br />
dade americana com um processo de medi-<br />
calização. Alguns observadores têm descrito<br />
o período depois da II Guerra Mundial como<br />
o marco inicial da medicalização. A Educa-<br />
ção Física se coloca no centro desta concep-<br />
ção, tornando mais íntima sua relação com<br />
a Saúde. Destaca-se que esse movimento<br />
possui vozes nos debates curriculares da<br />
Educação Física escolar na contemporanei-<br />
dade.<br />
A Educação Física escolar em plena Ditadu-<br />
ra Militar (1964-1985) abandona a prática de<br />
ginástica militar, sobretudo a francesa, e<br />
passa a sofrer forte influência de educação<br />
esportiva. A ideia de saúde é incorporada no<br />
movimento esportivo, pois o lema passa a<br />
ser esporte é saúde. A política governamen-<br />
tal de Educação Física teve como principal<br />
objetivo esportivizar a Educação Física es-<br />
colar, adotando um modelo piramidal que<br />
8 Cf. GÓIS JUNIOR, Edivaldo; LOVISOLO, Hugo. Descontinuidade e Continuidades do Movimento Higienista<br />
no <strong>Brasil</strong> do século XX. Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do Esporte, v. 25, n.1, 2003.<br />
7
via na escola a base de formação de atletas<br />
de alto nível e de uma população saudável,<br />
atlética e ativa. Essa política era condizente<br />
com o ideário de que uma potência espor-<br />
tiva era fruto de uma população saudável e<br />
ativa. Não se pode esquecer que a imagem<br />
do país também era divulgada no cenário in-<br />
ternacional pelas vitórias esportivas. Desse<br />
modo, o principal objetivo da Educação Fí-<br />
sica escolar foi o desenvolvimento de apti-<br />
dões esportivas, transformando a Educação<br />
Física escolar de ginástica militar para um<br />
treinamento esportivo.<br />
Essa tendência de esportivização desenhava-<br />
se antes da Ditadura Militar. Começou com<br />
os diversos cursos ministrados no <strong>Brasil</strong> pelo<br />
professor francês Auguste Listello, intro-<br />
dutor do Método Desportivo Generalizado.<br />
Porém, no <strong>Brasil</strong>, a esportivização da Educa-<br />
ção Física ganhou contornos de treinamen-<br />
to, tese que não era defendida por Listello,<br />
que destacava o prazer na prática esportiva<br />
em relação à ginástica com características<br />
militares. Todavia, ninguém pensaria que a<br />
Educação Física, ao incorporar o modelo pe-<br />
dagógico do treinamento esportivo, estaria<br />
indo ao encontro das demandas de prazer e<br />
satisfação dos alunos.<br />
Logicamente, os interesses da área de Edu-<br />
cação Física tornaram-se comuns aos inte-<br />
resses da política governamental, mas não<br />
foram determinados pelos interesses ideoló-<br />
gicos da ditadura, e sim pelos interesses dos<br />
próprios profissionais que incutiram a ideia<br />
do Esporte Lazer, a exemplo do que já era fei-<br />
to na Europa. Com o PNED – Plano Nacional<br />
de Educação Física e Desporto foi criada a<br />
terceira área de atuação da Educação Físi-<br />
ca, o Desporto de Massa, juntamente com<br />
o Desporto estudantil e o Desporto de alto<br />
nível. Observe-se que as justificativas desse<br />
campo de conhecimento dentro e fora da<br />
escola passavam, obviamente, por concilia-<br />
rem os valores da saúde, do lazer, da discipli-<br />
na e da vida ativa.<br />
Embora a parte da interpretação historio-<br />
gráfica da Educação Física aponte que esse<br />
período foi fortemente manipulado pelos<br />
interesses educacionais da ditadura, as pes-<br />
quisas recentes indicam, através das vozes<br />
dos professores reais que estavam na escola,<br />
que o modelo do treinamento esportivo não<br />
foi incorporado cegamente como modelo<br />
pedagógico nas aulas de Educação Física.<br />
Tais estudos relativizam a importância es-<br />
tratégica da Educação Física escolar para a<br />
consolidação do regime ditatorial, tal como<br />
fez boa parte da historiografia da Educação<br />
Física nas duas últimas décadas do séc. XX 9 .<br />
Os anos de 1980 são apontados como o pe-<br />
ríodo em que o consenso sobre o papel da<br />
Educação Física é quebrado. O esporte não<br />
9 Cf. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira. Educação Física Escolar e ditadura militar no <strong>Brasil</strong> (1968-1984):<br />
entre a adesão e a resistência. Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do Esporte. Campinas, v. 25, n. 2, p. 9-20, jan. 2004.<br />
8
é por si só educativo e sua prática não pode<br />
ser vista como indicador de saúde numa so-<br />
ciedade desigual e injusta, em síntese, essa<br />
é a problematização produzida no campo na<br />
época. Assim, o papel da Educação Física na<br />
escola, seus objetivos específicos e metodo-<br />
logias passam por um processo de revisão<br />
e questionamento de seus efeitos na forma-<br />
ção dos alunos.<br />
As concepções educacionais da área não te-<br />
riam os mesmos objetivos das concepções<br />
ligadas ao Movimento de Saúde. Criam-se<br />
propostas diferenciadas para a escola, por<br />
vezes enfatizando a formação cultural e po-<br />
lítica do educando, por outras, centradas no<br />
aspecto motor do desenvolvimento humano<br />
ou em interpretações da Psicologia da Edu-<br />
cação, propondo uma educação cognitiva<br />
através do movimento humano.<br />
Configura-se um clima de debate, que trou-<br />
xe para a formação do profissional questões<br />
sociais, ampliando o currículo, visando aten-<br />
der a uma formação geral que passava pela<br />
Filosofia, pela Antropologia, pela Sociologia<br />
e pela História. Observando a trajetória his-<br />
tórica da Educação Física Escolar, é possível<br />
defini-la, nas suas características atuais,<br />
como sendo uma área educacional que não<br />
mais se preocupa apenas com a formação<br />
corporal do indivíduo durante sua formação<br />
básica no período escolar.<br />
As releituras da disciplina e sua autocrítica<br />
carregam consigo os problemas da identi-<br />
dade disciplinar no currículo escolar que,<br />
por conseguinte, provocam o debate da sua<br />
especificidade. Das primeiras iniciativas no<br />
campo da Educação Física escolar brasilei-<br />
ra no século XIX, em comparação com os<br />
dias atuais, percebemos que a Educação Fí-<br />
sica, como componente curricular, partici-<br />
pa de forma mais integrada com o projeto<br />
político pedagógico da escola. Esse campo<br />
de conhecimento tem pensado os proces-<br />
sos de escolarização das práticas corporais<br />
em articulação com o movimento cultural<br />
contemporâneo. Todavia, alguns dilemas<br />
permanecem no imaginário dos professores<br />
e alunos. A Educação Física é representada<br />
pela comunidade escolar como disciplina<br />
que incide sobre a formação cultural do alu-<br />
no? Ou como atividade complementar que<br />
pode auxiliar a construção de um ambien-<br />
te prazeroso no cotidiano escolar, a forma-<br />
ção de hábitos saudáveis e a socialização<br />
de experiências esportivas ou de expressão<br />
corporal? Os termos da questão anterior<br />
são realmente antagônicos ou podem ser<br />
conciliados em propostas pedagógicas? Em<br />
relação à hierarquia da importância da área<br />
para a formação do educando, qual é o lugar<br />
da Educação Física no currículo escolar? Em<br />
síntese, qual tem sido o papel da Educação<br />
Física no projeto da escola e quais as possi-<br />
bilidades que estão sendo construídas nesse<br />
tempo e espaço curricular?<br />
Essas indagações nos levam a alguns deba-<br />
tes que serão apresentados nesta série. Os<br />
9
três textos, apresentados a seguir, buscam<br />
práticas inovadoras para as aulas de Edu-<br />
cação Física, na tentativa de superar visões<br />
e compreensões da disciplina como: recre-<br />
ação funcional ao ambiente escolar; base<br />
para produção de atletas de alto rendimen-<br />
to; espaço exclusivo para reprodução de ati-<br />
vidades ou exercícios que formem hábitos<br />
de uma vida ativa. A Educação Física aqui<br />
desenhada propõe que esse tempo e espaço<br />
escolar sejam o lugar de experiências cor-<br />
porais, de socialização de conhecimentos e<br />
referências que auxiliem o aluno a pensar<br />
de forma autônoma e crítica o esporte, as<br />
danças, as lutas, a saúde, a estética, o con-<br />
sumo e outras possibilidades de educação<br />
do corpo presentes na contemporaneidade.<br />
As práticas inovadoras da Educação Física só<br />
podem ser efetivadas nos currículos pratica-<br />
dos quando se tornam parte da gestão do<br />
projeto pedagógico da escola.<br />
TEXTOS DA SÉRIE <strong>EDUCAÇÃO</strong> <strong>FÍSICA</strong> <strong>ESCOLAR</strong>: <strong>DILEMAS</strong> E <strong>PRÁTICAS</strong> 10<br />
A série Educação Física escolar: dilemas e práticas discute a representação da disciplina pela co-<br />
munidade escolar, ora incidindo sobre a formação cultural do aluno, ora como atividade com-<br />
plementar que pode auxiliar a construção de um ambiente prazeroso e promover a formação<br />
de hábitos saudáveis e a socialização de experiências esportivas ou de expressão corporal. Nos<br />
cinco programas da série, pretende-se discutir propostas pedagógicas que busquem contem-<br />
plar os dilemas que envolvem o trabalho com a Educação Física no ambiente escolar e, ainda,<br />
avaliar a importância da área para a formação do educando e refletir sobre o lugar da Educação<br />
Física no currículo.<br />
TEXTO 1: <strong>DILEMAS</strong> DA <strong>EDUCAÇÃO</strong> <strong>FÍSICA</strong> NO COTIDIANO<br />
O primeiro texto da série, de autoria do professor Valter Bracht, faz um diagnóstico deste<br />
componente curricular no universo da escola. Questiona a efetiva relação da Educação Física<br />
com os projetos pedagógicos, observando como se dão os processos de desinvestimento dos<br />
docentes e as práticas inovadoras da Educação Física na escola. As práticas inovadoras são<br />
10 Estes textos são complementares à série Educação Física escolar: dilemas e práticas, com veiculação no<br />
programa Salto para o Futuro/<strong>TV</strong> Escola, de 26/09/2011 a 30/09/2011.<br />
10
caracterizadas por uma concepção de Educação Física em que os conteúdos são tratados e<br />
selecionados a partir do conceito da Cultura Corporal de Movimento. Tal conceito tem duas<br />
dimensões: a primeira identificada pelo saber fazer, e a segunda pelo saber sobre o fazer, obje-<br />
tivando a formação crítica e autônoma do aluno em relação às possibilidades de prática, refle-<br />
xão e consumo do esporte, do lazer, da luta, do exercício físico e das demais possibilidades de<br />
educação corporal em nossa cultura. O texto se propõe a apresentar e discutir alguns dilemas<br />
e desafios que a disciplina escolar Educação Física vem enfrentando nas últimas décadas, para<br />
exatamente afirmar-se como uma disciplina escolar plenamente integrada aos projetos peda-<br />
gógicos das escolas. Neste contexto, caracteriza as práticas inovadoras que podem contribuir<br />
para essa afirmação e discute, também, a existência de práticas de desinvestimento pedagógi-<br />
co que precisam ser superadas.<br />
TEXTO 2: O QUE SE ENSINA E O QUE PODE SER ENSINADO<br />
O segundo texto da série, de autoria do professor Mauro Betti, discute as possibilidades de<br />
estruturação de uma proposta curricular para a Educação Física escolar. O autor propõe a re-<br />
novação dos conteúdos tradicionais embasados nos jogos, esportes, lutas, danças e ginásticas<br />
para um universo ampliado de experiências inovadoras, como na apropriação da Cultura Cor-<br />
poral de Movimento a partir da relação dos conteúdos com temas, quais sejam: as Mídias; La-<br />
zer e Trabalho; Corpo, Saúde e Beleza; Organismo Humano e Movimento; Contemporaneidade.<br />
O texto apresenta questões como essas, entre outras: Qual é o seu corpo de conhecimentos na<br />
contemporaneidade? Quais os conhecimentos que atravessam a educação do corpo em nossa<br />
sociedade que podem ser pedagogizados nas aulas de Educação Física?<br />
TEXTO 3: TEMAS E EXPERIÊNCIAS <strong>PRÁTICAS</strong><br />
O terceiro texto, da professora Marta Corrêa Gomes, descreve as possíveis relações e possibili-<br />
dades pedagógicas para tratar os megaeventos esportivos. Na mesma perspectiva dos autores<br />
anteriores, a professora aponta que a Educação Física escolar deve tratar os conhecimentos e<br />
as formas de organização do ensino de modo que possibilitem a emancipação dos alunos. O<br />
texto apresenta como o tema dos Jogos Olímpicos ou da Copa do Mundo pode ser tratado me-<br />
todologicamente nas aulas de Educação Física, na direção da compreensão crítica e ativa do es-<br />
tudante frente à contemporaneidade desses grandes eventos esportivos no contexto brasileiro.<br />
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4 – Outros olhares<br />
sobre Educação Física escolar e do PGM 5: Educação Física escolar em debate.<br />
11
BIBLIOGRAFIA<br />
Dentre as inúmeras publicações sobre ensi-<br />
no da Educação Física, destacamos algumas:<br />
ALMEIDA, José Júlio Gavião. Ensino das lu-<br />
tas: dos princípios condicionais aos grupos<br />
situacionais. Revista Movimento, v. 16, n. 2,<br />
p. 207-227, 2010.<br />
AYOUB, E. Ginástica Geral e Educação Físi-<br />
ca Escolar. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.<br />
BETTI, M. Educação Física Escolar: uma pro-<br />
posta de diretrizes pedagógicas. Revista Ma-<br />
ckenzie de Educação Física e Esporte, v.1, n.1,<br />
p.73-81, 2002.<br />
BOSSLE, Fabiano. Planejamento de Ensino<br />
na Educação Física: uma contribuição ao co-<br />
letivo docente. Movimento, v. 8, n. 1, p. 31-39,<br />
jan. 2002.<br />
BRATIFISCHE, Sandra. Avaliação em Educa-<br />
ção Física: um desafio. Revista da Educação<br />
Física/UEM, v. 14, n. 2, p. 21-31, 2003.<br />
CAPARROZ, Francisco Eduardo; BRACHT, V.<br />
O tempo e o lugar de uma didática da edu-<br />
cação física. Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do<br />
Esporte, v. 28, n. 2, p. 21-37, 2007.<br />
DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cul-<br />
tura. 2ª ed. Campinas: Autores Associados,<br />
2007.<br />
DARIDO, S. C. Apresentação e análise das<br />
principais abordagens da Educação Física<br />
Escolar. Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do Es-<br />
porte, v. 20, n. 1, p. 58-66, 1998.<br />
DARIDO, S. C.; RANGEL, I. C. Educação Física<br />
na Escola: implicações para a prática peda-<br />
gógica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,<br />
2005.<br />
GOMES, Mariana Simões Pimentel; MORA-<br />
TO, Marcio Pereira; DUARTE, Edison; GRA-<br />
MORELLI, Lilian Cristina; NEIRA, Marcos<br />
Garcia. Dez anos de Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais: a prática da Educação Física na<br />
visão de seus autores. Movimento, v. 15, n. 4,<br />
p.107-126, out. 2009.<br />
IÓRIO, Laércio Schwantes; DARIDO, Suraya<br />
Cristina. Educação física, capoeira e educa-<br />
ção física escolar: possíveis relações. Revista<br />
Mackenzie de Educação Física e Esporte, v. 4,<br />
n. 4, p. 137-143, 2005.<br />
NEIRA, Marcos Garcia; MATTOS, Mauro.<br />
Educação Física: Desenvolvendo competên-<br />
cias. São Paulo: Phorte, 2005.<br />
OLIVEIRA, Amauri Bassoli. Metodologias<br />
emergentes no ensino da Educação Física.<br />
Revista da Educação Física/UEM, v. 8, n.1,<br />
p.21-27, 1997.<br />
PINTO, Fábio Machado; VAZ, Alexandre Fer-<br />
nandes. Sobre a relação entre saberes e prá-<br />
ticas corporais: notas para a investigação<br />
empírica do fracasso em aulas de Educação<br />
Física. Educação e Realidade, v. 34, n. 2, p.<br />
261-275, maio 2009.<br />
RESENDE, Helder; SOARES, Antonio Jorge;<br />
MOURA, Diego. Caracterização de modelos<br />
de estruturação das aulas de educação fí-<br />
12
sica. Revista Motriz, v. 15, n. 1, p.37-49, jan.<br />
2009.<br />
ROSÁRIO, Luiz Fernando Rocha; DARIDO, Su-<br />
raya Cristina. A sistematização dos conteú-<br />
dos da Educação Física na Escola: a perspec-<br />
tiva dos professores experientes. Motriz, v.<br />
11, n. 3, p.167-178, set. 2005.<br />
SOARES, C. L. Educação Física Escolar: Co-<br />
nhecimento e Especificidade. Revista Paulis-<br />
ta de Educação Física Sup., 2, p. 6 -12, 1996.<br />
Coleções editoriais sobre ensino da Educa-<br />
ção Física<br />
Editora Guanabara-Koogan: Série “Educação<br />
Física/Licenciatura”<br />
Editora Phorte: Série “Educação Física Esco-<br />
lar”<br />
Editora Papirus: Série “Educação Física/Mo-<br />
tricidade”<br />
PÁGINAS DE INTERESSE<br />
Colégio <strong>Brasil</strong>eiro de Ciências do Esporte<br />
. www.cbce.org.br<br />
Centro Esportivo Virtual<br />
. www.cev.org.br<br />
Revista Movimento<br />
. www.ufrgs.br/revistamovimento<br />
Revista <strong>Brasil</strong>eira de Ciências do Esporte<br />
. www.rbceonline.org.br<br />
Revista Motriz<br />
. www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.<br />
php/motriz<br />
13
TEXTO 1<br />
<strong>DILEMAS</strong> DA <strong>EDUCAÇÃO</strong> <strong>FÍSICA</strong> NO COTIDIANO<br />
dilEmas no cotidiano da Educação Física Escolar: EntrE o dEsin-<br />
vEstimEnto E a inovação pEdagógica<br />
INTRODUÇÃO<br />
Após a crítica à concepção tradicional de<br />
Educação Física (EF) pelo movimento reno-<br />
vador da década de 1980 2 , a expectativa era<br />
a de que a prática pedagógica na EF escolar<br />
vivesse novos tempos e que a EF se afirmas-<br />
se no currículo escolar como uma disciplina<br />
responsável pela transmissão de uma impor-<br />
tante parcela da cultura humana. E, ainda,<br />
que ela saísse da condição de mera ativida-<br />
de destinada a apenas divertir os alunos ou,<br />
então, desenvolver neles a aptidão física e<br />
as habilidades esportivas (a monocultura do<br />
esporte), e passasse a introduzir os alunos<br />
no mundo da Cultura Corporal de Movimen-<br />
to, de maneira que os mesmos adquirissem<br />
não só o saber fazer corporal (apropriando-<br />
se das diferentes práticas ou técnicas corpo-<br />
rais), mas, também, que fossem capazes de<br />
situar criticamente essas práticas nas suas<br />
vidas e na sociedade em que vivem, tornan-<br />
do-se assim construtores, ao invés de meros<br />
consumidores dessa cultura.<br />
Por várias razões, que não é possível discu-<br />
tir aqui, o que presenciamos de lá para cá<br />
foi, sim, um certo declínio da EF tradicio-<br />
nal, mas, por outro lado, a não construção<br />
concomitante de uma “nova prática”, o que<br />
vem sendo caracterizado por Fensterseifer e<br />
González (2010) como uma situação entre o<br />
“não mais e o ainda não”. Em muitos casos<br />
não temos mais a EF tradicional (com seu<br />
ensino dos esportes visando às competições<br />
escolares) 3 , mas também ainda não temos<br />
uma perspectiva crítica de EF largamente<br />
consolidada nas práticas pedagógicas esco-<br />
1 Coordenador do Laboratório de Estudos em Educação Física - LESEF/CEFD/UFES.<br />
Valter Bracht 1<br />
2 Durante os anos 1980, no contexto de uma ampla movimentação social e política da sociedade brasileira<br />
em prol da sua democratização, constituiu-se também no âmbito da comunidade da Educação Física brasileira um<br />
movimento, posteriormente denominado de movimento renovador, que na sua vertente progressista fez uma forte<br />
crítica à função atribuída até então à Educação Física no currículo escolar. Decorre dessa crítica uma mudança<br />
radical do entendimento do conteúdo da Educação Física.<br />
3 Embora estejamos vivendo um certo renascer dessa perspectiva, muito em função do “momento esportivo”<br />
que o país está vivendo devido à realização no <strong>Brasil</strong> nos próximos anos de alguns megaeventos esportivos (Copa do<br />
Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos).<br />
14
lares. Ou seja, parece que vivemos um hia-<br />
to. Outra leitura possível 4 do atual momento<br />
que vive a EF é a de que, em função da inexis-<br />
tência hoje de uma “EF oficial” 5 , instalou-se<br />
um quadro de maior pluralidade de visões de<br />
EF, o que é visto por alguns como algo negati-<br />
vo, com o argumento de que assim “cada um<br />
faz o que quer!” Entendo, ao contrário, que é<br />
preciso não apenas conviver e respeitar essa<br />
pluralidade como condição de uma socieda-<br />
de democrática 6 , como compreendê-la como<br />
produtiva, como fator de criatividade.<br />
Em termos legais, a EF no <strong>Brasil</strong> tem um lu-<br />
gar reconhecido no currículo das escolas de<br />
Ensino Fundamental e Médio, embora isso<br />
não elimine de imediato seu crônico défi-<br />
cit de legitimidade 7 . Mas, sobre sua contri-<br />
buição, sobre a forma que vai assumir (se,<br />
por exemplo, vai assumir as características<br />
presentes nas demais disciplinas escolares),<br />
persistem muitas dúvidas e controvérsias.<br />
Se na própria EF existem dúvidas a respeito,<br />
no âmbito do campo pedagógico mais geral<br />
(entre diretores de escola e coordenadores<br />
pedagógicos, por exemplo) essas dúvidas<br />
(e mesmo o desconhecimento) são ainda<br />
maiores. Enquanto isso, a EF oscila entre<br />
práticas inovadoras e de desinvestimento<br />
pedagógico.<br />
ENTRE A INOVAÇÃO E O<br />
DESINVESTIMENTO<br />
Nesse contexto, encontramos nos cotidia-<br />
nos escolares práticas pedagógicas em EF<br />
que ainda podem ser caracterizadas como<br />
da EF tradicional, mas também dois outros<br />
“extremos” vêm ganhando algum terreno e<br />
importância. Trata-se, por um lado das prá-<br />
ticas inovadoras (muitas vezes orientadas<br />
na produção do chamado Movimento Reno-<br />
vador), mas, por outro, de práticas de de-<br />
sinvestimento pedagógico, ou seja, a prática<br />
da “não-aula”, do mero ocupar as crianças<br />
com uma bola sem intervenção pedagógica<br />
intencional e efetiva.<br />
O que aqui chamamos de práticas inovado-<br />
ras são aquelas que trabalham com a pers-<br />
pectiva de que a EF, assim como as outras<br />
disciplinas curriculares, possui um conheci-<br />
mento relevante socialmente e que é dever<br />
da escola fazer com que as novas gerações<br />
4 Nunca é demais observar que estamos falando da prática pedagógica em EF escolar num país extremamente<br />
heterogêneo, de maneira que essas tentativas de caracterização do que acontece nesse âmbito são sempre parciais e<br />
limitadas e, claro, não traduzem toda a realidade.<br />
5 Chamamos de “EF oficial” a definição de uma determinada visão de EF definida por lei (no regime ditatorial<br />
e tecnocrático da Ditadura Militar pós 1964) como foi o caso do Decreto nº 69.450, de novembro de 1971, que definia<br />
os seus objetivos, conteúdos e formas de avaliação.<br />
6 Como sabemos, o pensamento único não coaduna com democracia.<br />
7 Existe uma hierarquia entre as disciplinas escolares, sendo que a Educação Física (juntamente com Artes, e<br />
mesmo, Inglês) situa-se entre as consideradas menos importantes pela cultura escolar.<br />
15
dele se apropriem. Nesse caso, trata-se do<br />
conhecimento que pode ser identificado<br />
com o conceito de cultura corporal de mo-<br />
vimento. O conhecimento ou o saber de que<br />
trata a EF possui um duplo caráter: por um<br />
lado, trata-se do saber fazer expresso nas<br />
diferentes práticas corporais que compõem<br />
a cultura corporal de movimento e, por ou-<br />
tro, o saber sobre essas mesmas práticas,<br />
portanto, um saber também de ordem con-<br />
ceitual. No tocante ao saber fazer ou ao en-<br />
sino das diferentes práticas corporais que<br />
compõem nossa cul-<br />
tura corporal de mo-<br />
vimento, as práticas<br />
inovadoras procuram<br />
superar o monopólio<br />
do esporte, buscando<br />
propiciar aos alunos o<br />
acesso às danças, aos<br />
diferentes jogos po-<br />
pulares, às diferentes<br />
formas de ginástica,<br />
aos esportes ditos radicais, etc. Elemento<br />
importante também é o método de ensino<br />
que busca uma gestão mais democrática das<br />
aulas, solicitando uma participação mais<br />
efetiva dos alunos nas decisões que confor-<br />
mam o evento social aula, fundamental para<br />
o desenvolvimento da autonomia dos sujei-<br />
tos. No tocante ao saber sobre as práticas<br />
corporais, esses professores buscam propi-<br />
ciar ao aluno o acesso a conhecimentos que<br />
permitam com que ele compreenda aquela<br />
Para a seleção dos<br />
conteúdos, é preciso<br />
prática corporal como elemento de nossa<br />
cultura. Nesse bojo encontram-se conhe-<br />
cimentos sobre a fisiologia dos exercícios,<br />
implicações das práticas corporais na saúde<br />
(por exemplo: conhecimentos sobre o uso<br />
de anabolizantes nas práticas corporais), so-<br />
bre as relações dessas práticas com o lazer,<br />
sobre as implicações políticas e econômicas<br />
de fenômenos como o esporte, etc.<br />
estabelecer critérios, já que<br />
a escola é necessariamente<br />
seletiva em relação aos<br />
conteúdos culturais.<br />
Uma questão que logo se coloca para essa<br />
nova perspectiva é a identificação, seleção,<br />
organização e siste-<br />
matização dos con-<br />
teúdos da Educação<br />
Física ao longo dos<br />
nove anos do Ensino<br />
Fundamental e dos<br />
três anos do Ensino<br />
Médio.<br />
Para a seleção dos<br />
conteúdos, é pre-<br />
ciso estabelecer critérios, já que a escola<br />
é necessariamente seletiva em relação aos<br />
conteúdos culturais. A seguir, apresentamos<br />
o exemplo de seleção de conteúdos de uma<br />
escola de Belo Horizonte, divulgado por Sil-<br />
veira e Pinto (2001). Os autores partiram,<br />
inicialmente, da delimitação dos conteúdos<br />
proposta pelo Coletivo de Autores (1992):<br />
Jogos, Danças, Esportes, Ginásticas e Lutas,<br />
compondo um quadro detalhado dessas prá-<br />
ticas corporais, como mostra o quadro 1:<br />
16
Quadro 1 – Relação das práticas que compõem a cultura corporal de movimento e que foram<br />
selecionadas para conformar o conteúdo das aulas de Educação Física nas diferentes séries<br />
do Ensino Fundamental<br />
JOGOS DANÇA ESPORTE GINÁSTICA LUTAS<br />
• Brincadeiras<br />
de rua<br />
• Brinquedos e<br />
sucata<br />
• Jogos de salão<br />
derivados dos<br />
esportes<br />
• Jogos de raquete<br />
e/ou peteca<br />
• Jogos<br />
internacionais<br />
Esses conteúdos são, então, distribuídos nas<br />
diferentes séries ou anos do ensino (ver SIL-<br />
VEIRA e PINTO, 2001). Outra possibilidade de<br />
identificar e organizar o conhecimento da<br />
EF nas diferentes séries ou anos é a desen-<br />
volvida por González e Fraga (2009) e que<br />
constitui os Referenciais Curriculares da EF<br />
da rede estadual de educação do estado do<br />
Rio Grande do Sul.<br />
• Cantigas de roda • Futebol<br />
• Dança regional,<br />
folclórica e<br />
internacional<br />
• Dança de salão • Handebol<br />
• Expressão<br />
corporal<br />
Além dessas possibilidades e ações e da im-<br />
portância de a EF assumir efetivamente o<br />
estatuto de uma disciplina escolar, ela vive<br />
nesse processo alguns dilemas, como o que<br />
está relacionado ao grande paradoxo da re-<br />
lação da EF com a escola atual. As pesquisas<br />
• Ginástica de<br />
academia<br />
• Judô<br />
• Voleibol • Atletismo • Karatê<br />
• Basquete<br />
• Ginástica<br />
rítmica<br />
• Ginástica<br />
• olímpica<br />
• Ginástica<br />
acrobática<br />
• Ginástica de<br />
condicionamento<br />
• Cabo de guerra<br />
• Braço de ferro<br />
• Capoeira<br />
(também abordada<br />
como jogo e dança)<br />
têm mostrado que quando pedimos aos alu-<br />
nos da Educação Básica para elencar, hierar-<br />
quizando, de quais disciplinas/matérias eles<br />
mais gostam, é muito frequente a EF estar<br />
colocada no topo da preferência dos alu-<br />
nos. Por outro lado, quando pedimos para<br />
que esses mesmos alunos hierarquizem as<br />
disciplinas mais importantes da escola, a EF<br />
tende a figurar (junto com Inglês e Artes)<br />
no final da lista. Ou seja, o que os alunos<br />
mais gostam é aquilo que eles consideram<br />
menos importante (ou o que a cultura es-<br />
colar considera menos importante?). Como<br />
a escola e os gestores educacionais têm li-<br />
dado com esse paradoxo? Suspeito que a EF<br />
é, na verdade, tolerada pela cultura escolar<br />
17
exatamente porque a EF (e o esporte esco-<br />
lar) é fator de uma mobilização dos alunos<br />
para a vida da escola que, sem ela, torna-<br />
se muito mais enfadonha, chata. E como a<br />
própria EF tem lidado com isso? Muitos de<br />
nós, professores de EF, temos nos valido da<br />
informação de que os alunos gostam muito<br />
da EF para justificar sua presença e conferir<br />
importância à EF na escola. Outros tomam a<br />
segunda parte da avaliação dos alunos, a de<br />
que estes não a con-<br />
sideram uma disci-<br />
plina importante,<br />
para tentar mudar a<br />
EF no sentido de ela<br />
assumir as caracte-<br />
rísticas comuns das<br />
disciplinas conside-<br />
radas importantes.<br />
Esses últimos utili-<br />
zam-se de estraté-<br />
gias como: aula teó-<br />
rica em sala de aula,<br />
provas e trabalhos<br />
teóricos/escritos;<br />
solicitação de tarefas de casa, entre outras.<br />
Ou seja, valem-se de instrumentos larga-<br />
mente utilizados pelas disciplinas escolares<br />
consolidadas (Matemática, Português, Ciên-<br />
cias...).<br />
Obviamente que o objetivo não pode ser<br />
simplesmente inverter o paradoxo – que<br />
os alunos passem a considerá-la como a<br />
mais importante, ao custo de torná-la a<br />
A pergunta – ou o desafio<br />
– é como construir uma<br />
prática ao mesmo tempo<br />
prazerosa, que continue<br />
motivando os alunos a<br />
frequentar a escola e que<br />
possua um conteúdo de<br />
aprendizagem considerado<br />
relevante pela cultura<br />
escolar.<br />
menos preferida. A pergunta – ou o desafio<br />
– é como construir uma prática ao mesmo<br />
tempo prazerosa, que continue motivando<br />
os alunos a frequentar a escola e que possua<br />
um conteúdo de aprendizagem considerado<br />
relevante pela cultura escolar. A esse res-<br />
peito entendemos que existem discussão e<br />
conhecimento acumulados na área para re-<br />
alizar essa ideia (na bibliografia comentada<br />
indicamos dois trabalhos que ajudam nesse<br />
sentido).<br />
Entendemos, não<br />
obstante, que fir-<br />
mar-seplenamen- te como disciplina<br />
escolar não pode<br />
significar, no caso<br />
da EF, assumir total-<br />
mente as caracterís-<br />
ticas das disciplinas<br />
escolares, pois isso<br />
pode ferir elemen-<br />
tos que conferem à<br />
EF sua especificida-<br />
de e que, em parte, são responsáveis pelas<br />
demonstrações de apreço dos alunos. Isso<br />
pode ocorrer na medida em que, em bus-<br />
ca de legitimidade, passa-se, por exemplo,<br />
a desenvolver um grande número de “aulas<br />
teóricas” em sala de aula e trabalhos escri-<br />
tos, muitas vezes sem o menor sentido, pois<br />
reduzidos ao exercício de cópia ou descon-<br />
textualizados em relação ao conteúdo prin-<br />
cipal.<br />
18
Além disso, é preciso dizer que a EF, em fun-<br />
ção da especificidade de seus conteúdos,<br />
pode participar da vida da escola para além<br />
do currículo formalizado em disciplinas.<br />
Pode enriquecer a vida cultural dos alunos<br />
e da escola a partir de ações/atividades para<br />
além do previsto na “caixa” dos conheci-<br />
mentos disciplinares. A realização de jogos<br />
escolares ou festivais de cultura e, mais es-<br />
pecificamente, de cultura corporal de movi-<br />
mento (danças, jogos populares, etc.) pode<br />
movimentar e motivar a participação ativa<br />
de estudantes, conferindo um clima positivo<br />
à escola. O cuidado aqui é para que essas ati-<br />
vidades estejam efetivamente vinculadas ao<br />
projeto pedagógico da escola e às atividades<br />
desenvolvidas nas diferentes disciplinas. O<br />
risco, no caso da EF, é o de haver uma con-<br />
tradição entre o que se desenvolve na dis-<br />
ciplina e o que se realiza nessas atividades<br />
complementares.<br />
Mais uma vez um elemento chave para esse<br />
processo está ligado ao Esporte (já que a EF<br />
foi fortemente esportivizada). E a questão é<br />
mais premente, porque estaremos vivendo,<br />
nos próximos anos, uma avalanche de mega-<br />
eventos esportivos no nosso país. O grande<br />
risco é a escola ser mais uma vez instrumen-<br />
talizada pelo sistema esportivo, mais especi-<br />
ficamente, pela indústria esportiva. Joga-se<br />
aqui com algo extremamente sedutor, que é<br />
a possibilidade de (pseudo)valorização da EF,<br />
processo que já conhecemos (estudado na<br />
EF). Qual o problema? É exatamente utilizar<br />
a escola para a identificação de talentos es-<br />
portivos e de construção de um grande con-<br />
tingente de consumidores, sem que isso sig-<br />
nifique formação cultural de qualidade para<br />
os alunos, que é o primeiro papel da escola.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Os professores inovadores, muitas vezes, se<br />
defrontam com uma cultura escolar de EF<br />
que resiste a mudanças. Uma dessas resis-<br />
tências está relacionada ao fato de que as<br />
aulas de EF são vistas pelos alunos não como<br />
um espaço de aprendizagens significativas e,<br />
sim, como um espaço de mero divertimento<br />
(por isso gostam da EF, mas não a valorizam<br />
quando o assunto é “sério”). Por outro lado,<br />
o próprio professor inovador precisa lançar<br />
mão de saberes e conhecimentos que exi-<br />
gem dele uma formação cultural bastante<br />
ampla. O que se pode observar nas pesqui-<br />
sas é que os professores inovadores não se<br />
limitam, em termos de acervo cultural, ao<br />
fenômeno esportivo, o que lhes possibilita<br />
tematizar outros elementos da cultura cor-<br />
poral de movimento.<br />
Mas, como dissemos no início, também ga-<br />
nha volume uma situação na prática pedagó-<br />
gica da EF nas escolas que podemos caracte-<br />
rizar como de desinvestimento pedagógico.<br />
Esses professores tendem a ser caracteri-<br />
zados pejorativamente como professores<br />
“rola bola”. É preciso não cair no simplismo<br />
19
da mera denúncia ou culpabilização desses<br />
professores. O fenômeno é bem complexo e<br />
envolve uma série de fatores. A própria falta<br />
de reconhecimento da disciplina escolar EF<br />
e, consequentemente, do trabalho dos pro-<br />
fessores de EF é um dos fatores que levam<br />
os mesmos a desinvestir. Assim, é preciso<br />
um grande esforço no âmbito dos proces-<br />
sos de formação inicial e continuada e das<br />
políticas públicas para a EF para que esses<br />
professores tenham elementos para ressig-<br />
nificar a prática pedagógica da EF e, com<br />
isso, alcançar o reconhecimento social que<br />
os leve, então, a novamente investir na sua<br />
prática pedagógica.<br />
BIBLIOGRAFIA COMENTADA<br />
CAPARROZ, F. E. Entre a educação física na es-<br />
cola e a educação física da escola. 3. ed. Cam-<br />
pinas: Autores Associados, 2007. (Este livro<br />
trata do movimento renovador da EF brasi-<br />
leira, analisando o contexto de sua consti-<br />
tuição e, também, os impasses e possibilida-<br />
des pedagógicas que dele derivaram.)<br />
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia de en-<br />
sino da educação física. São Paulo: Cortez,<br />
1992. (Este livro foi a primeira tentativa de<br />
sistematizar uma proposta pedagógica críti-<br />
ca para a EF brasileira derivada do chamado<br />
Movimento Renovador.)<br />
GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FRAGA, Alex<br />
Branco. Referencial Curricular de Educação<br />
Física. In: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria<br />
de Estado da Educação. Departamento Pe-<br />
dagógico (Org.). Referenciais Curriculares<br />
do Estado do Rio Grande do Sul: linguagens,<br />
códigos e suas tecnologias: arte e educação<br />
física. Porto Alegre: SE/DP, 2009. v. 2, p. 112-<br />
181. (O texto completo está disponível em<br />
e representa uma pro-<br />
posta bastante avançada do que pode ser<br />
a Educação Física como disciplina escolar.<br />
Essa proposta é particularmente importante<br />
porque sistematiza também o conhecimen-<br />
to que a Educação Física pode e deve trans-<br />
mitir sobre as práticas corporais.)<br />
SILVEIRA, G. C. F. da; PINTO, J. F. Educação<br />
física na perspectiva da cultura corporal:<br />
uma proposta pedagógica. Revista <strong>Brasil</strong>ei-<br />
ra de Ciências do Esporte. v. 22, n.3, p. 137-<br />
150, maio 2001. (Este texto é uma síntese de<br />
uma proposta de currículo de Educação Fí-<br />
sica de uma escola de Belo Horizonte/MG,<br />
desenvolvida por um conjunto de professo-<br />
res, também na perspectiva de ressignificá-<br />
la como disciplina escolar.)<br />
20
TEXTO 2<br />
O QUE SE ENSINA E O QUE PODE SER ENSINADO<br />
a pEdagogização dos contEúdos da Educação Física:<br />
tradição E rEnovação<br />
Softbol, badminton, críquete, luta greco-<br />
romana, pelota basca, hóquei, taekwondo<br />
- modalidades esportivas que foram ou são<br />
disputadas nos Jogos Olímpicos de Verão, o<br />
evento esportivo de maior repercussão na<br />
história da humanidade, e que em 2016 terá<br />
no Rio de Janeiro/<strong>Brasil</strong> sua sede. Bilhões de<br />
pessoas em todo o mundo tomaram ou to-<br />
marão contato com essas e outras modali-<br />
dades esportivas por meio da televisão.<br />
E se um aluno perguntar ao seu professor<br />
de Educação Física: “O que é water polo?”,<br />
estará ele preparado para responder? A per-<br />
gunta não é apenas hipotética, ela de fato<br />
foi feita por um aluno, conforme me relatou<br />
anos atrás um professor de uma pequena ci-<br />
dade do interior do estado de São Paulo.<br />
A enorme capacidade das mídias atuais de<br />
produzir, armazenar e distribuir informa-<br />
ções – que além dos meios tradicionais (te-<br />
levisão, rádio, jornal etc.) incluem a inter-<br />
Mauro Betti 1<br />
net, o telefone celular, ipod, bluetooth etc.<br />
– coloca uma nova situação para a escola,<br />
incluindo a Educação Física: o que Orozco-<br />
Gomez (1997) denominou “aprendizagem<br />
antecipatória”. Quer dizer, crianças e jovens<br />
tomam contato precocemente com con-<br />
teúdos, assuntos, temas, que serão depois<br />
objeto dos currículos escolares. Do que es-<br />
tamos falando no caso da Educação Física?<br />
De regras, táticas e técnicas de modalidades<br />
esportivas, relações entre exercício físico,<br />
saúde, emagrecimento e nutrição, modelos<br />
e padrões de beleza corporal, aspectos his-<br />
tóricos, políticos e econômicos do esporte,<br />
dentre outros temas, encontrados, inclusi-<br />
ve, em embalagens de produtos alimentí-<br />
cios e em peças publicitárias.<br />
Todavia, é importante observar que o es-<br />
porte não é apresentado prioritariamente<br />
pelas mídias como possibilidade de exerci-<br />
tação sistemática e intencional da motrici-<br />
dade (como “prática”), mas como consumo<br />
1 Professor Adjunto do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual<br />
Paulista (UNESP) - campus de Bauru. Doutor em Filosofia da Educação pela UNICAMP.<br />
21
de imagens e informações. Quer dizer, por<br />
meio do esporte, as mídias (em especial a<br />
<strong>TV</strong>) vendem a si próprias e a uma infinidade<br />
de produtos e serviços.<br />
É também relevante notar que a mesma<br />
facilidade de acesso às informações permi-<br />
te que adentrem a escola novas práticas e<br />
significações, em geral ligadas às culturas<br />
infanto-juvenis: esportes radicais, gêneros<br />
musicais, danças, jogos e brinquedos do mo-<br />
mento etc. Uma das características de al-<br />
gumas dessas manifestações corporais é sua<br />
efemeridade: aparecem e desaparecem com<br />
rapidez. Mas outras permanecem, tornam-<br />
se “clássicas” e , como nos casos do surfe<br />
e do skate (antes símbolos de rebeldia e de<br />
afirmação de valores contra-hegemônicos<br />
de grupos jovens), tornam-se objeto do pro-<br />
cesso de esportivização 2 , assim como algu-<br />
mas manifestações rítmicas (músicas, dan-<br />
ças) são apropriadas pela indústria cultural.<br />
A cultura corporal de movimento 3 , senão no<br />
plano da prática ativa, ao menos no plano<br />
do consumo de informações e imagens, tor-<br />
nou-se publicamente partilhada na socieda-<br />
de contemporânea.<br />
Essa situação gera um problema pedagógico<br />
para a Educação Física, já que o currículo es-<br />
colar necessariamente deve selecionar cer-<br />
tos conteúdos. Nesse cenário, como aten-<br />
der, por exemplo, aos critérios de relevância<br />
social do conteúdo, propostos nos Parâme-<br />
tros Curriculares Nacionais do Governo Fe-<br />
deral (BRASIL, 1997, 1998)? Quem define o<br />
que é relevante? Os especialistas, os alunos,<br />
a comunidade?<br />
Partir da cultura local, como proposto por al-<br />
guns, não parece contemplar a complexida-<br />
de do mundo contemporâneo, caracterizado<br />
pela dialética local-global e pela incorpora-<br />
ção, no repertório cultural local, de desejos,<br />
imagens, objetos, representações, as quais,<br />
além de tenderem a ser globais, nem sempre<br />
se traduzem em práticas “físicas”, e podem<br />
situar-se nos planos da virtualização e do<br />
imaginário. Por exemplo, podemos dizer que<br />
o futebol (de campo) não é parte da cultura<br />
local de algum bairro qualquer, em qualquer<br />
cidade brasileira, porque lá não há campos<br />
de futebol disponíveis para a prática dos<br />
moradores? Ou se grupos aficionados pela<br />
prática de basquetebol, ou do tchoukball, ou<br />
do rugby, acompanham as modalidades pela<br />
internet, e, vindos de vários locais, reúnem-<br />
se aos finais de semana para jogar em um<br />
parque público ou instituição privada, cabe-<br />
ria falar em “cultura local”? Parece-nos mais<br />
adequado falar, então, no repertório cultural<br />
dos alunos, que não guarda necessariamen-<br />
2 Por “esportivização” entendemos a assimilação das características, valores e sentidos do sistema esportivo<br />
formal-federativo, conforme Betti (1991).<br />
3 Por “cultura corporal de movimento” entendemos, conforme Betti (2001, 2009a), as formas culturais que<br />
vêm sendo historicamente construídas mediante o exercício sistemático e intencionado da motricidade humana –<br />
jogo, esporte, ginásticas, atividades rítmicas/danças, e lutas.<br />
22
te relações diretas com o local (no sentido<br />
geográfico).<br />
Por outro lado, existe uma tradição oriunda<br />
da Educação Física como área pedagógico-<br />
profissional. Ensinar “jogos e brincadeiras”,<br />
“esportes”, “lutas”, “danças” e “ginásticas”<br />
é uma tarefa associada pelas pessoas, embo-<br />
ra não com exclusividade, aos profissionais<br />
da área, incluindo os professores de Educa-<br />
ção Física nas escolas. A noção de “exercício<br />
físico” 4 é também associada à tradição da<br />
Educação Física.<br />
Existe hoje certo<br />
consenso na litera-<br />
tura especializada<br />
de que jogo, esporte,<br />
ginástica, luta e dan-<br />
ça são os conteúdos<br />
da Educação Física<br />
na escola. Como<br />
estas são manifes-<br />
tações da cultura corporal de movimento<br />
atravessadas por diversos valores e sentidos<br />
(ligados à saúde, ao lazer, à espetaculariza-<br />
ção, à moralidade etc.), bem como presen-<br />
tes em diversas dimensões sociais (educa-<br />
cionais, econômicas, políticas etc.), o que a<br />
Educação Física como disciplina escolar faz<br />
é selecionar e tratar pedagogicamente algu-<br />
Existe hoje certo consenso<br />
na literatura especializada<br />
de que jogo, esporte,<br />
ginástica, luta e dança são<br />
os conteúdos da Educação<br />
Física na escola.<br />
mas possibilidades daquelas manifestações,<br />
a partir de certas intencionalidades educa-<br />
cionais explícitas ou implícitas, que mudam<br />
conforme os contextos históricos.<br />
Mas também a tradição da Educação Físi-<br />
ca deve renovar-se, sob risco de desatuali-<br />
zar-se diante de novos valores, sentidos e<br />
práticas no âmbito da cultura corporal de<br />
movimento. Como poeticamente ensina a<br />
frase atribuída ao escritor francês Marcel<br />
Proust (1871-1922), “a verdadeira viagem da<br />
descoberta não consiste em procurar no-<br />
vas paisagens, mas<br />
em ver com novos<br />
olhos”, as concep-<br />
ções e práticas tra-<br />
dicionais do jogo,<br />
esporte, ginástica,<br />
luta e dança tam-<br />
bém parecem não<br />
dar mais conta das<br />
transformações da<br />
cultura contemporânea. E o que há de novo<br />
na cultura corporal de movimento dos nos-<br />
sos tempos? Vejamos:<br />
• O corpo é linguagem e mercadoria: vende<br />
a si próprio (belo, “malhado”, magro...) e<br />
outras mercadorias (cosméticos, cirur-<br />
gias, regimes, “métodos” de exercitação<br />
4 Entendemos “exercício físico” como uma subcategoria de Atividade Física, que se caracteriza por ser<br />
planejado, estruturado, repetitivo e proposto para aumentar ou manter um ou mais componentes da Aptidão Física<br />
(MONTEIRO; GONÇALVES, 1994).<br />
23
física); é suporte para a impressão de sig-<br />
nos (tatuagens, piercing, escarificações)<br />
que expressam as singularidades e histó-<br />
rias de pessoas e grupos.<br />
• O esporte, antes que uma exercitação in-<br />
tencional e sistemática da motricidade, é<br />
consumo de imagens e informações tele-<br />
visivas, é “falação” (quer dizer, as pesso-<br />
ais mais falam sobre o esporte do que o<br />
praticam ), conforme a expressão de Eco<br />
(1984) .<br />
• Estilos de dança, associados a gêneros mu-<br />
sicais(street-dan- ce, por exemplo)<br />
são manifesta-<br />
ções privilegiadas<br />
para a expressão<br />
de valores e sen-<br />
tidos próprios às<br />
culturas jovens.<br />
• Novas práticas<br />
corporais (streetball ou basquete de rua;<br />
parkour; esportes de aventuras; as chama-<br />
das “práticas corporais alternativas”, seja<br />
as originadas na tradição oriental, como<br />
tai-chi-chuan e a ioga, ou ainda as “antigi-<br />
násticas”), que questionam os princípios<br />
e valores das manifestações tradicionais.<br />
• A associação do jogo, do esporte e da dan-<br />
ça com as tecnologias do virtual (videoga-<br />
mes de console ou on-line, “tapetinho” de<br />
dança, Wii games).<br />
• A valorização da ginástica em suas várias<br />
formas (musculação, localizada, hidrogi-<br />
nástica) como exercício físico, objetivan-<br />
do emagrecimento, definição ou hiper-<br />
trofia muscular e melhoria da condição<br />
cardiovascular, “con-funde” (quer dizer,<br />
funde e confunde) modelos de beleza de<br />
um lado, e de saúde/fitness de outro (BET-<br />
TI, 2004).<br />
A tradição da Educação<br />
Física precisa ser renovada<br />
pelos sentidos, valores e<br />
práticas que emergem da<br />
dinâmica sociocultural.<br />
Como consideram Betti et al. (2010, p. 118) os<br />
alunos, ao participarem de outros espaços e<br />
tempos socioculturais não-escolares, e ao<br />
interagirem com as<br />
mídias e com seus<br />
pares, “acessam e<br />
compartilham in-<br />
formações, formam<br />
valores e constroem<br />
comportamentos<br />
em sintonia com os<br />
temas e questões do<br />
mundo contempo-<br />
râneo, os quais, muitas vezes, são ignorados<br />
pela tradição escolar, ou a confrontam”. Por<br />
isso, prosseguem aqueles autores, a Educa-<br />
ção Física deve “propiciar aos alunos opor-<br />
tunidades para a identificação, decodifica-<br />
ção e compreensão desses temas, à luz da<br />
pedagogização específica que leva a cabo”<br />
(BETTI et al., 2010, p. 119).<br />
A tradição da Educação Física precisa ser<br />
renovada pelos sentidos, valores e práticas<br />
que emergem da dinâmica sociocultural.<br />
24
Tal fenômeno foi captado pelas Orientações<br />
Curriculares do Ensino Médio do Governo<br />
Federal (BRASIL, 2006), e por inúmeras e re-<br />
centes propostas curriculares de Educação<br />
Física para o Ensino Fundamental e Médio<br />
em todo o <strong>Brasil</strong>, dentre as quais destaca-<br />
mos os casos dos estados de Minas Gerais,<br />
São Paulo e Rio Grande do Sul 5 .<br />
Vamos nos deter aqui no exemplo da Propos-<br />
ta Curricular de Educação Física do Estado<br />
de São Paulo (SÃO PAULO, 2008), implemen-<br />
tada a partir do ano de 2008 na rede pública<br />
do Ensino Fundamental (a partir da 5ª série<br />
ou 6º ano) e Ensino Médio.<br />
A referida proposta curricular (doravante<br />
designada apenas “PPC-EF”) sistematiza os<br />
conteúdos a partir de um eixo de conteúdos,<br />
definido pela tradição da Educação Física: o<br />
jogo, o esporte, a ginástica, a luta e a ati-<br />
vidade rítmica. Este eixo interage com um<br />
eixo temático, que abrange temas considera-<br />
dos “atuais e relevantes na sociedade” (SÃO<br />
PAULO, 2008, p. 46):<br />
Organismo Humano e Movimento: trata das<br />
relações entre organismo humano,<br />
exercício físico e saúde, com atenção<br />
nas capacidades físicas, exigências das<br />
tarefas cotidianas, postura, obesidade<br />
e emagrecimento, doping e anaboli-<br />
zantes .<br />
Corpo, Saúde e Beleza: trata de doenças re-<br />
lacionadas ao sedentarismo e dos<br />
padrões de beleza corporal, que em<br />
associação com produtos e práticas<br />
alimentares e de exercício físico “colo-<br />
cam os jovens na ‘linha de frente’ dos<br />
cuidados com o corpo e a saúde” (SÃO<br />
PAULO, 2008, p. 46).<br />
Contemporaneidade: trata das transforma-<br />
ções socioculturais experimentadas<br />
pelo mundo atual, em especial o in-<br />
cremento do fluxo de informações, na<br />
medida em que “influencia os concei-<br />
tos e as relações que as pessoas man-<br />
têm com seus corpos e com as outras<br />
pessoas, gerando, por vezes, reações<br />
preconceituosas em relação a diferen-<br />
ças de sexo, etnia, características físi-<br />
cas, dentre outras” (SÃO PAULO, 2008,<br />
p. 47).<br />
Mídias: trata da influência das mídias sobre<br />
a percepção, valoração e construção<br />
das manifestações da cultura corporal<br />
de movimento “muitas vezes atenden-<br />
do a modelos que apenas dão supor-<br />
te a interesses mercadológicos e que<br />
5 Estas propostas curriculares podem ser encontradas, respectivamente, nos seguintes endereços eletrônicos:<br />
<br />
<br />
<br />
25
precisam ser submetidos à análise crí-<br />
tica” (SÃO PAULO, 2008, p. 47).<br />
Lazer e Trabalho: trata das possibilidades<br />
de incorporação de manifestações da<br />
cultura corporal de movimento ao<br />
lazer no “tempo escolar e posterior<br />
a ele, de modo autônomo e crítico”;<br />
assim como “a compreensão da im-<br />
portância do controle sobre o próprio<br />
esforço físico e o direito ao repouso<br />
e lazer no mundo do trabalho” (SÃO<br />
PAULO, 2008, p. 47).<br />
A figura a seguir procura representar a interação sugerida entre o eixo dos conteúdos e o eixo<br />
temático:<br />
eiXO dOs temas<br />
OrganismO humanO e mOvimentO<br />
COrpO, saúde e Beleza<br />
COntempOraneidade<br />
mídias<br />
lazer e traBalhO<br />
De acordo com a PPC-EF, tal rede de inter-<br />
relações, gerada pelo cruzamento do eixo de<br />
conteúdos com o eixo temático “possibilita a<br />
pluralidade e a simultaneidade no desenvol-<br />
vimento dos conteúdos” (SÃO PAULO, 2008,<br />
p.47), com o surgimento de novos olhares para<br />
os conteúdos tradicionais da Educação Física.<br />
eiXO dOs COnteúdOs<br />
JOGOS E BRINCADEIRAS<br />
ESPORTES<br />
LUTAS<br />
GINÁSTICAS<br />
DANÇAS<br />
Por exemplo, do cruzamento entre o conteú-<br />
do Esporte e o tema Mídias emerge o sub-<br />
tema ou subconteúdo “telespetacularização<br />
do Esporte 6 ”; entre Dança e Contemporanei-<br />
dade, o subtema “gênero”; entre Ginástica<br />
e Corpo, Saúde e Beleza, os “modelos e pa-<br />
drões de beleza”; entre Jogo e Lazer e Traba-<br />
6 Por esporte telespetáculo entendemos, conforme Betti (1998, 2009b) a realidade textual-imagética<br />
relativamente autônoma, que é construída pela codificação e pela mediação do espetáculo esportivo efetuadas pela<br />
televisão, envolvendo enquadramento das câmaras, edição das imagens e comentários/sons que se acrescentam a elas.<br />
26
lho, a presença do lúdico no tempo livre, e<br />
assim por diante.<br />
Em que pesem as tantas contribuições já<br />
existentes no plano das proposições curri-<br />
culares e didático-metodológicas (dotadas<br />
de potencialidades para produzir melhorias<br />
nas práticas pedagógicas da Educação Fí-<br />
sica), é preciso reconhecer que ainda não<br />
foram implementadas mudanças concretas<br />
em larga escala, apesar dos inúmeros rela-<br />
tos de experiências bem sucedidas em esco-<br />
las por todo o país. Propostas curriculares<br />
constituem apenas um dos pilares da políti-<br />
ca educacional, e os conteúdos da Educação<br />
Física apenas uma das dimensões do currí-<br />
culo escolar. Porque “conteúdos”, em últi-<br />
ma análise, são abstrações, no sentido de<br />
que não existem “o” esporte, ou “a” ginás-<br />
tica etc.; mas pessoas que mantêm certos<br />
tipos de relações concretas com tais ma-<br />
nifestações culturais (praticam, assistem,<br />
falam delas etc.). Portanto, na Educação<br />
Física escolar, tais formas culturais apenas<br />
se concretizam nas relações com os sujeitos<br />
que ensinam e aprendem – alunos, profes-<br />
sores, gestores e demais funcionários das<br />
escolas – e, portanto, exigem ser debatidas<br />
no âmbito de orientações e condutas didá-<br />
ticas. Mas isso é assunto para outra opor-<br />
tunidade...<br />
REFERÊNCIAS<br />
BETTI, Mauro. A janela de vidro: esporte, te-<br />
levisão e educação física. Campinas: Papirus,<br />
1998.<br />
BETTI, Mauro. Corpo, cultura, mídias e<br />
educação física: novas relações no mundo<br />
contemporâneo. Lecturas: Educación Fisica y<br />
Deportes (Revista Digital), v. 10, n. 79, p. 1-9,<br />
2004. Disponível em: . Acesso: 30 jul.<br />
2011.<br />
BETTI, Mauro et al. A proposta curricular de<br />
educação física do estado de São Paulo: fun-<br />
damentos e desafios. In: CARREIRA FILHO,<br />
Daniel; CORREIA, Walter R. Educação física<br />
escolar: docência e cotidiano. Curitiba: CVR.<br />
p. 109-128.<br />
BETTI, Mauro. Educação física escolar: ensino<br />
e pesquisa-ação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009a.<br />
BETTI, Mauro. Educação física escolar: atu-<br />
alização de um projeto. In: _____. Educação<br />
física e sociedade: a educação física na esco-<br />
la brasileira. 2ª ed. rev. São Paulo: Hucitec,<br />
2009b. p. 209-238.<br />
BETTI, Mauro. Educação física e sociologia:<br />
novas e velhas questões no contexto brasi-<br />
leiro. In: CARVALHO, Yara M.; RUBIO, Katia<br />
27
(orgs.). Educação física e ciências humanas.<br />
São Paulo: Hucitec, 2001. p. 155-169.<br />
BRASIL, Ministério da Educação e do Des-<br />
porto, Secretaria de Educação Fundamental.<br />
Parâmetros Curriculares Nacionais: Educação<br />
Física. Brasília: MEC, SEF, 1997.<br />
BRASIL, Ministério da Educação e do Des-<br />
porto, Secretaria de Educação Fundamental.<br />
Parâmetros Curriculares Nacionais - terceiro<br />
e quarto ciclos do ensino fundamental: Educa-<br />
ção Física. Brasília: MEC, SEF, 1998.<br />
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria<br />
de Educação Básica. Conhecimentos de edu-<br />
cação física. In: ______ Orientações curricula-<br />
res para o ensino médio: linguagens, códigos e<br />
suas tecnologias. Brasília: Secretaria da Edu-<br />
cação Básica, 2006, v. 1, p. 213-239.<br />
ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidia-<br />
na. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />
MONTEIRO, Henrique L.; GONÇALVES, Agui-<br />
naldo. Salud colectiva y actividad física:<br />
evolución de las principales concepciones y<br />
prácticas. Revista Ciencias de la Actividad Fí-<br />
sica, v. 2, n. 3, p.33-45, 1994.<br />
OROZCO-GÓMEZ, Guillermo. Professores e<br />
meios de comunicação: desafios, estereóti-<br />
pos. Comunicação e Educação, v. 3, n. 10, p.<br />
57-68, 1997.<br />
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação.<br />
Proposta curricular do Estado de São Paulo:<br />
educação física – ensino fundamental ciclo II<br />
e ensino médio. São Paulo: SEE, 2008a. Dispo-<br />
nível em: . Acesso em: 29 jul. 2011.<br />
28
TEXTO 3<br />
TEMAS E EXPERIÊNCIAS <strong>PRÁTICAS</strong><br />
mEgaEvEntos Esportivos, movimEnto olímpico E mídia: o<br />
EsportE saltando os muros da Educação Física Escolar<br />
INTRODUÇÃO<br />
Frente à participação do <strong>Brasil</strong> como sede<br />
de megaeventos esportivos, especialmen-<br />
te os Jogos Olímpicos, que trazem no seu<br />
imaginário o olimpismo como filosofia hu-<br />
manista que exalta a qualidade do esporte<br />
em promover a amizade, o respeito, a exce-<br />
lência e a paz entre os povos, não podemos<br />
prescindir da efetivação de projetos pedagó-<br />
gicos intra e extraescolares que promovam<br />
a educação crítica para o esporte e a refle-<br />
xão sobre valores universais e particulares,<br />
visando ao protagonismo das juventudes.<br />
A proposta desse texto é trazer à tona, sin-<br />
teticamente e como efeito deflagrador de<br />
discussões e ações no âmbito escolar, a con-<br />
textualização sobre os megaeventos espor-<br />
tivos e o Movimento Olímpico, apresentan-<br />
do a Educação Olímpica numa perspectiva<br />
emancipadora, como forma de tratar o es-<br />
porte pedagogicamente, com possibilidades<br />
de trabalho interdisciplinar e transdiscipli-<br />
Marta Corrêa Gomes 1<br />
nar que envolva toda a comunidade escolar,<br />
ressaltando, inclusive, sua afinidade com<br />
os Parâmetros Curriculares Nacionais. Que<br />
conhecimentos, habilidades e competên-<br />
cias nossos jovens precisam adquirir para<br />
tornarem-se consumidores esportivos numa<br />
perspectiva de agentes sociais (como prati-<br />
cantes de esportes, como espectadores,<br />
produzindo comunicação sobre o esporte<br />
e interagindo com os meios de comunica-<br />
ção)?<br />
APRESENTAÇÃO<br />
A relação inseparável entre o esporte de alto<br />
nível, especialmente o esporte olímpico, e<br />
a mídia nos seus diferentes níveis de atu-<br />
ação, traz a reboque os símbolos, signos e<br />
sítios que resgatam o Movimento Olímpico,<br />
ao mesmo tempo que reforçam o seu patri-<br />
mônio histórico, conferindo o poder a esse<br />
movimento e retroalimentando a intensa<br />
cadeia econômica entre os consumidores,<br />
as empresas patrocinadoras e as detentoras<br />
1 Professora da Universidade Gama Filho e Coordenadora de Educação Física e esportes da rede FAETEC<br />
(Fundação de Apoio à Escola Técnica do RJ).<br />
29
dos meios de comunicação. Neste contexto,<br />
um dos mais discutidos temas gerados pelos<br />
megaeventos esportivos, seja como justifi-<br />
cativa para uma cidade sediá-los, seja como<br />
efetiva e positiva “herança” socioeconômica<br />
e cultural deixada pelos impactos gerados<br />
por ações planejadas, é o legado. Portanto,<br />
a escola, seus gestores e professores devem<br />
promover projetos político-pedagógicos que<br />
gerem discussões acerca do tema, estando<br />
suficientemente preparados para transmitir<br />
conhecimentos, conceitos e conduzir refle-<br />
xões sobre valores consistentes visando à<br />
formação de uma juventude que possa vir a<br />
ser protagonista neste intenso “Movimento<br />
Olímpico”.<br />
Para sustentar essa discussão, considerei<br />
necessário partir da defesa do reconheci-<br />
mento de um corpo de conhecimentos pró-<br />
prio da Educação Física no ambiente escolar,<br />
em particular o esporte, para então am-<br />
pliar conceitos e reflexões sobre o esporte,<br />
os megaeventos e o Movimento Olímpico.<br />
Trabalharei com a noção de protagonismo<br />
das juventudes, apresentando propostas de<br />
Educação Olímpica numa perspectiva de<br />
aprendizagem “ativa” e emancipadora que<br />
envolva toda a comunidade escolar, para se<br />
pensar o Olimpismo por um ponto de vista<br />
não doutrinário, mas de forma crítica e fi-<br />
losófico-antropológica, em que o particular<br />
e o universal se manifestam dialeticamente<br />
no próprio potencial da prática esportiva.<br />
ANTES DE TUDO: “O QUE A<br />
<strong>EDUCAÇÃO</strong> <strong>FÍSICA</strong> ENSINA, QUE<br />
SÓ A <strong>EDUCAÇÃO</strong> <strong>FÍSICA</strong> ENSINA?<br />
Num seminário sobre megaeventos e valo-<br />
res do esporte, ao apresentar uma palestra<br />
sobre Educação Olímpica, solicitei que le-<br />
vantassem os braços os alunos dos cursos<br />
de Licenciatura em Educação Física e, após<br />
identificá-los, fiz a seguinte pergunta: O que<br />
a Educação Física ensina, que só a Educação<br />
Física ensina? A princípio houve um silêncio<br />
que aparentava dificuldade com a própria<br />
pergunta, mas obtive as seguintes respos-<br />
tas: “socialização, cidadania, valores...”. Re-<br />
formulei o caminho da descoberta orientada<br />
e indaguei: “Socialização, cidadania, valo-<br />
res” constituem o corpo de conhecimentos<br />
da Educação Física ou deveriam fazer parte<br />
de um projeto da escola? E voltei à especi-<br />
ficidade: O que a História ensina, que só a<br />
História ensina? Qual é o conhecimento da<br />
História? Prontamente, obtive a resposta:<br />
“os fatos passados”. E a Biologia? O que a<br />
Biologia ensina, que só a Biologia ensina?<br />
Resposta: “os seres vivos, a biodiversidade,<br />
etc.” E a Física? Resposta: “os fenômenos<br />
naturais”. Voltei à pergunta inicial: O que a<br />
educação Física ensina, que só a Educação<br />
Física ensina? Até que as respostas foram se<br />
convertendo aos temas da cultura corporal<br />
de movimento: “esportes, jogos, danças, gi-<br />
násticas, lutas e temas relacionados ao cor-<br />
po em movimento”.<br />
30
Verifico, cotidianamente, que entre os futu-<br />
ros professores de Educação Física e os pro-<br />
fissionais já formados há anos ainda há uma<br />
grande dificuldade em definir o corpo de co-<br />
nhecimentos da disciplina Educação Física,<br />
sua especificidade, seus objetivos, seu papel<br />
no espaço da escola e na inter-relação com<br />
as outras disciplinas.<br />
A despeito de todas as discussões que exis-<br />
tem nos fóruns acadêmicos da Educação Fí-<br />
sica, o professor em exercício ainda é visto<br />
como professor de<br />
valores e ele próprio<br />
não reconhece que<br />
possui um corpo<br />
de conhecimentos<br />
que é próprio de sua<br />
disciplina e que, se<br />
ele não ensinar es-<br />
ses conhecimentos,<br />
ninguém mais vai<br />
ensiná-los. Todos<br />
na escola são professores de valores e cabe<br />
à comunidade escolar eleger que proposta<br />
de cidadania deseja oferecer aos seus alu-<br />
nos. Este deveria ser o escopo institucional,<br />
reconhecido nos discursos de todos e em-<br />
brenhado nas ações cotidianas de gestores,<br />
funcionários e professores. A proposta deste<br />
texto não é discutir o paradigma ideal ou he-<br />
gemônico da Educação Física escolar, mas é<br />
importante destacar que o trato pedagógico<br />
dos megaeventos esportivos na escola pre-<br />
cisa passar, necessariamente, pela identifi-<br />
cação dos seus conteúdos e objetivos, inclu-<br />
sive o esporte, e pelo reconhecimento dos<br />
mesmos por parte da comunidade escolar e,<br />
fundamentalmente, por parte dos professo-<br />
res de Educação Física.<br />
A escola é inegavelmente a<br />
instituição social que tem<br />
como função transmitir,<br />
organizar, sistematizar e<br />
produzir conhecimentos<br />
científicos e culturais.<br />
O esporte é um conhecimento, logo, um<br />
conteúdo que deve estar presente na or-<br />
ganização curricular da Educação Física e<br />
merece ser tratado pedagogicamente com<br />
suas características e princípios (como a<br />
competição, por exemplo) e todos os con-<br />
flitos, contradições<br />
e “reinvenções” que<br />
possam ser gerados<br />
por suas práticas no<br />
campo escolar. Ex-<br />
cluir, simplesmente,<br />
o esporte da escola,<br />
seja como vivência<br />
prática ou fórum de<br />
discussões valora-<br />
tivas, não resolve a<br />
complexa rede de valores que ele pode car-<br />
regar através da sua eficácia simbólica e dos<br />
seus condutores: os meios de comunicação.<br />
Muito pelo contrário, tal decisão político-<br />
pedagógica apenas consolida uma via de<br />
mão única de reprodução de normas sociais<br />
e valores que são homeopaticamente absor-<br />
vidos, sem a oportunidade de contextualizá-<br />
los.<br />
A escola é inegavelmente a instituição social<br />
que tem como função transmitir, organi-<br />
31
zar, sistematizar e produzir conhecimentos<br />
científicos e culturais. E tendo como fim a<br />
possibilidade de formação para uma cidada-<br />
nia emancipada de jovens que desenvolvam<br />
pensamento autônomo numa sociedade<br />
dita democrática, as discussões sobre ética<br />
e valores precisam também compor esse<br />
quadro de conhecimentos, que deixam de<br />
ser compreendidos como currículo oculto<br />
para se tornar o objetivo e a ação perma-<br />
nentes nos quatro cantos do espaço escolar.<br />
OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS<br />
E O PROTAGONISMO DAS<br />
JUVENTUDES<br />
Os megaeventos são eventos preestabeleci-<br />
dos de curta duração, e têm como caracte-<br />
rística central o “gigantismo”, por isso são<br />
chamados de “mega” pela sua grandiosi-<br />
dade em termos de público, mercado alvo,<br />
nível de envolvimento financeiro do setor<br />
público, efeitos políticos, extensão de cober-<br />
tura televisiva, construção de instalações e<br />
impacto sobre o sistema econômico e social<br />
da comunidade anfitriã. Os megaeventos<br />
são basicamente produção da mídia e têm<br />
impactos econômicos, políticos, culturais<br />
e tecnológicos. As Copas do Mundo de Fu-<br />
tebol e os Jogos Olímpicos de verão são os<br />
megaeventos esportivos de maior impacto<br />
em audiência televisiva 2 .<br />
Holger Preuss, um dos maiores especialistas<br />
em Economia e Legados de Megaeventos es-<br />
portivos, diferencia impacto de legado. Se-<br />
gundo o autor, enquanto o primeiro ocorre<br />
apenas durante o período do evento, o se-<br />
gundo pode vir a surgir a partir de impacto<br />
anterior. Entendendo que o legado “não é<br />
apenas uma herança, algo que permanece<br />
como patrimônio”, Preuss demonstra que o<br />
legado é um fator ativo de geração de im-<br />
pactos, especialmente econômicos (2008,<br />
p. 95) 3 . Por exemplo, dados da Fundação Ge-<br />
túlio Vargas (2010) demonstram, a partir de<br />
pesquisa de campo realizada entre peque-<br />
nos e microempresários, uma expectativa<br />
da Copa de 2014 de geração de milhões de<br />
empregos em diferentes setores e atividades<br />
profissionais: Construção civil: 224 ativida-<br />
des; Tecnologia da informação: 164 ativida-<br />
des; Turismo: 156 atividades; Produção as-<br />
sociada ao turismo: 140 4 . Dessas atividades,<br />
algumas são nitidamente circunstanciais,<br />
das fases de pré-evento e evento, podendo<br />
2 Para uma compreensão mais detalhada dos megaeventos esportivos, conferir DACOSTA, L. et al. (ed.).<br />
Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério dos Esportes, 2008.<br />
3 PREUSS, Holger. Tendências atuais de conhecimento sobre gestão e economia de megaeventos e legados<br />
esportivos. In: DACOSTA, L. et al. (ed.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério dos Esportes, 2008.<br />
4 Fundação Getúlio Vargas. Copa do Mundo FIFA 2014: Mapa de Oportunidades para as Micro e Pequenas<br />
Empresas nas Cidades-Sede. Resumo executivo. FGV/SEBRAE: 2010. Disponível em: http://gestaoportal.sebrae.com.br/<br />
customizado/menu-gestao-1-o-que-o-sebrae-pode-fazer-por-mim/sebrae_resumo_executivo_mapeamento.pdf. Acessado<br />
em: 20/07/2011.<br />
32
ser potencializadas no pós-evento, depen-<br />
dendo da competência na “sinalização” da<br />
cidade-sede.<br />
O fato de uma cidade sediar um megaevento<br />
esportivo traz a ideia de “sinalização”, isto<br />
é, “imagens expostas e circulantes na mídia<br />
que conduzem mensagens implícitas so-<br />
bre uma determinada vantagem oferecida”<br />
(PREUSS, 2008, p. 94). Estas mensagens pos-<br />
suem um capital simbólico que é lançado<br />
ao público interno e externo ao país sobre<br />
a imagem daquela cidade-sede e país, o que<br />
pode trazer benefí-<br />
cios de longo pra-<br />
zo e mudanças de<br />
localização de ati-<br />
vidades: indústria,<br />
turismo, moradia,<br />
congressos, estilos<br />
de vida, etc.<br />
O legado de valores dos megaeventos é<br />
considerado intangível, isto é, difícil de ser<br />
avaliado, tocado. Entretanto, considerando<br />
que a educação é sempre processo, a ação<br />
pedagógica precisa ser imbuída de inten-<br />
cionalidade. Logo, o legado de valores dos<br />
Jogos Olímpicos, ao contrário do que mui-<br />
tos acreditam, não se restringe ao sentido<br />
filosófico-educacional do Olimpismo am-<br />
plamente divulgado pelas mensagens do<br />
Comitê Olímpico Internacional e Comitês<br />
O legado de valores dos<br />
megaeventos é considerado<br />
intangível, isto é, difícil de<br />
ser avaliado, tocado.<br />
Olímpicos Nacionais. Ele pode refletir em<br />
macroperspectiva, por exemplo, a forma<br />
como são pensadas e executadas as estraté-<br />
gias e políticas públicas num determinado<br />
país, a partir da administração e do controle<br />
dos investimentos e verbas na estrutura físi-<br />
ca do evento, nas prioridades de melhorias<br />
das cidades e populações beneficiadas, as-<br />
sim como nas políticas de incentivo e demo-<br />
cratização do esporte. Muito podemos falar<br />
de valores tomando como ponto de referên-<br />
cia esses elementos que, sem nenhuma dú-<br />
vida, podem surtir efeitos positivos ou nega-<br />
tivos para a imagem<br />
de uma nação.<br />
A reboque dessa<br />
onda de “legados”,<br />
projetos sociais es-<br />
portivos aparecem<br />
por todos os lados<br />
utilizando o concei-<br />
to de Protagonismo da Juventude. Além de<br />
existirem diversas juventudes, a ideia de pro-<br />
tagonizar não significa reduzir ações apenas<br />
ao oferecimento de projetos de massifica-<br />
ção no atendimento a essa população. Não<br />
se trata de negar a importância de serviços<br />
e necessidades básicas para as pessoas, o<br />
que por si é uma instância de perspectiva<br />
de cidadania – a do direito – especialmente<br />
com tamanha desigualdade social no <strong>Brasil</strong>.<br />
Como afirma Demo (2002) 5 : “Assim como<br />
5 DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.<br />
33
é imbecilizante querer combater pobreza<br />
apenas com assistência, não é menos imbe-<br />
cilizante descartar a assistência devida por<br />
direito de cidadania” (p. 269). Mas cabe-nos<br />
o papel de refletir e agir em prol do investi-<br />
mento em programas de educação que pos-<br />
sam pensar o esporte em sua relação com<br />
a juventude pelo ponto de vista pedagógico,<br />
visando a uma formação de competência<br />
popular de fato emancipada. Por exemplo,<br />
saúde e qualidade de vida, associadas ao es-<br />
porte, implicam também redistribuição de<br />
renda e equidade na educação.<br />
Podemos, neste ponto, demonstrar como a<br />
imagem do atleta herói brasileiro, originário<br />
de classe baixa com grande vulnerabilidade<br />
social, é usada pela mídia como modelo de<br />
superação individual. Souza et al. (2008 )6 de-<br />
monstram o mito da mobilidade social atra-<br />
vés do futebol quando apresentam a difícil re-<br />
conversão da maioria dos jovens pobres que<br />
abdica dos estudos para tentar a carreira fu-<br />
tebolística na Europa, como projeto familiar<br />
de ascensão social, mas, em caso de fracas-<br />
so, não consegue se reinserir dignamente no<br />
mercado de trabalho. Esses casos dificilmente<br />
são tratados pela mídia, mas já são fruto de<br />
pesquisas e de preocupação de grupos de de-<br />
fesa da criança e do adolescente 7 .<br />
Se a comunicação dos megaeventos esporti-<br />
vos se dá prioritariamente através da mídia e<br />
as mensagens são transmitidas por imagens,<br />
textos e sons de modo a garantir a sua recep-<br />
ção (consumo) de forma mais individualizada<br />
possível, isto é, tornando o universal significa-<br />
tivo para o particular (país, região, localidade,<br />
cidade, bairro) e, ao mesmo tempo, conduzin-<br />
do o particular à visibilidade do mundo, cabe<br />
à escola interceder com ferramentas que aju-<br />
dem os alunos a realizarem amplas “leituras”<br />
sobre o que está sendo “dito”.<br />
Dentro desta perspectiva, é interessan-<br />
te emergir no universo desse “Movimento<br />
Olímpico” no sentido de conhecer e reco-<br />
nhecer que o papel da Educação Olímpica<br />
precisa ser repensado em uma direção não<br />
doutrinária, mas dinâmica, entendendo a<br />
própria razão axiológica do esporte, conside-<br />
rando a via de mão dupla entre valores na<br />
relação indivíduo e sociedade, com as múl-<br />
tiplas possibilidades de ressignificação da<br />
prática esportiva a partir dos valores que os<br />
próprios sujeitos atribuem às suas práticas<br />
nas inter-relações.<br />
Temas que podem emergir das discussões:<br />
• o uso ideológico do esporte olímpico e da<br />
noção de atleta-herói;<br />
6 DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.<br />
7 Para um trabalho de prevenção sobre o tráfico de adolescentes para o exterior relacionado ao futebol existe<br />
uma cartilha direcionada a professores, técnicos e responsáveis, intitulada “Na rede certa: direitos e prevenção ao<br />
tráfico de crianças e adolescentes no esporte”, realizada pela organização não governamental TRAMA, em parceria<br />
com a Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/<br />
groups/13474813/1694554371/name/Cartilha+Na+Rede+Certa+-+TRAMA+-+ACTERJ.pdf.<br />
34
• a guerra fria; o nazismo e as relações en-<br />
tre os usos do esporte e as tentativas de<br />
eugenia da raça;<br />
• as cidades-sede e as configurações da geo-<br />
grafia política e da geografia urbana;<br />
• os legados dos Jogos Olímpicos e a demo-<br />
cratização dos espaços construídos;<br />
• a dinamização de locais da cidade e a ge-<br />
ração de empregos e oportunidades;<br />
• a filosofia e a transgressão às regras e o<br />
uso de doping;<br />
• a corrupção e o clientelismo;<br />
• a inclusão das minorias sociais e as prá-<br />
ticas de reprodução dos estereótipos so-<br />
ciais de raça, gênero, idade, classe, etc.;<br />
• as linguagens produzidas e os campos<br />
possíveis do “dito” e do “não dito”; a lin-<br />
guagem da imprensa, e dos atletas;<br />
Figura 1 – Educação Olímpica inter e transdisciplinar<br />
• as estatísticas de medalhas, suas relações<br />
com nível de desenvolvimento humano<br />
dos países e PIB;<br />
• os valores que são desenvolvidos pelos<br />
jovens intersubjetivamente em suas rela-<br />
ções com amigos nas práticas esportivas;<br />
• a produção artística e os princípios de be-<br />
leza e estética;<br />
• o discurso do internacionalismo;<br />
• os símbolos (a própria bandeira olímpica<br />
representa essa união de povos e raças,<br />
pois é formada por cinco anéis entrelaça-<br />
dos, representando os cinco continentes<br />
e suas cores);<br />
• a paz, a amizade e o bom relacionamento<br />
entre os povos são os princípios dos jo-<br />
gos olímpicos. Isso se retrata na prática?<br />
O esporte de alto nível consegue alcançar<br />
esses objetivos? Como se reflete o esporte<br />
no âmbito escolar e de lazer? (ver Figura 1).<br />
35
SUGESTÕES DE TRABALHOS QUE POSSAM TEMATIZAR O ESPORTE, OS<br />
MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E SUA RELAÇÃO COM A MÍDIA<br />
A seguir, apresento alguns exemplos práticos de projetos escolares bem sucedidos, usando<br />
os meios de comunicação para o trato pedagógico do esporte na escola numa perspectiva de<br />
protagonismo juvenil:<br />
Exemplo 1<br />
A discussão foi gerada a partir do Método<br />
Divergente e do conceito de Fair Play. A par-<br />
tir da primeira pergunta: P1) “Usar o doping<br />
fere os princípios do Fair Play?” Houve res-<br />
postas do tipo: “Sim, porque o atleta usu-<br />
ário de droga ilícita quebra as regras”(R1).<br />
“Sim, porque o atleta usuário de droga está<br />
competindo em condições de vantagem”(R2).<br />
“Mas se todos usarem o doping para melhorar<br />
o desempenho, não haverá desvantagem entre<br />
um e outro... Todos estão novamente em iguais<br />
condições!”(R3) “Os anabolizantes fazem mal<br />
à saúde” (R4). Há, então, uma sequência de<br />
perguntas e respostas que tira os alunos da<br />
zona de conforto: P2) Mas será que todos os<br />
atletas de diferentes países do mundo têm<br />
as mesmas condições econômicas e o aces-<br />
so para adquirir drogas e suplementos? P3)<br />
As indústrias farmacêuticas deveriam ser<br />
também punidas? Por quê? P4) Quais são os<br />
efeitos colaterais do uso de anabolizantes?<br />
Se os efeitos do anabolizante fossem contro-<br />
36
lados, não haveria tanto dano à saúde, logo,<br />
eles poderiam ser liberados? Tais perguntas<br />
vão desencadeando uma série de respostas<br />
e ponderações finais do tipo: “Cada um deve<br />
Exemplo II<br />
Exemplo III - FAETEC entra em campo<br />
Neste programa, que está sendo implemen-<br />
tado pela Fundação de Apoio à Escola Técni-<br />
ca do Rio de Janeiro 8 , além do eixo de quali-<br />
ficação profissional em que os cursos estão<br />
sendo vocacionados para as demandas dos<br />
megaeventos esportivos, criou-se uma ar-<br />
ticulação institucional entre unidades de<br />
ensino, que envolvem ensino profissionali-<br />
zante e Ensino Básico a partir do tema Fair<br />
fazer o que for melhor pra si”; “Mas isso não<br />
é bom para o esporte!”; “Todos devem pensar<br />
em todos”; “O destaque deve ser dos atletas e<br />
não do que eles usam” etc.<br />
Play. Após pesquisa e discussão, os alunos<br />
das escolas técnicas criarão a mídia de di-<br />
vulgação (DVD) com imagem, som e texto e<br />
os alunos do Instituto Superior de Educação<br />
participarão de um concurso de animação<br />
com o tema FAIR PLAY, produzindo tecnolo-<br />
gia de mídia educacional a ser utilizada nas<br />
aulas de Educação Física curricular pelos<br />
professores de Ensino Fundamental e Médio<br />
da própria rede.<br />
8 GOMES, Marta C. Apresentação do Programa FAETEC entra em Campo. Disponível em: http://www.faetec.<br />
rj.gov.br/daie/images/stories/faetec_entra_em_campo.pdf.<br />
37
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Embora os meios de comunicação de mas-<br />
sa sejam formas muito eficazes de mani-<br />
pulação ideológica, convém assinalar que,<br />
atualmente, a mídia é interativa e essa ca-<br />
racterística é a via principal de participação<br />
popular sobre o que é ou não é transmitido,<br />
na medida em que os veículos de propaga-<br />
ção das mensagens têm um controle rela-<br />
tivo, podendo a mídia global e os cidadãos<br />
divulgarem tanto boas quanto más notícias,<br />
imagens e falas. Hoje, as melhores imagens<br />
de esporte, catástrofes e fatos do cotidiano<br />
são feitas por pessoas comuns, não necessa-<br />
riamente profissionais, no momento em que<br />
ocorrem, e se a grande mídia não tiver inte-<br />
resse em divulgar, as ferramentas de inter-<br />
net dão condições para isso, como é o caso<br />
da publicação no youtube, blogs pessoais e<br />
comunidades virtuais.<br />
Dessa forma, se a escola, seus gestores, fun-<br />
cionários e professores estiverem imbuídos<br />
em desenvolver uma proposta político-peda-<br />
gógica que ponha o esporte e os megaeven-<br />
tos no centro de uma aprendizagem ativa e<br />
de profunda discussão, o caminho metodo-<br />
lógico precisa considerar as três possibili-<br />
dades: 1) A vivência esportiva (adaptada às<br />
características dos escolares) pautada em<br />
valores discutidos, produzidos em ambien-<br />
tes mais e menos competitivos, dos quais<br />
possam de fato emergir conflitos; 2) A relei-<br />
38
tura da mídia com diferentes indicadores e<br />
marcadores pedagógicos intencionais; e 3) A<br />
produção de mídia pelos próprios alunos.<br />
Para que esse ambiente seja de fato propor-<br />
cionado, existem alguns pré-requisitos bási-<br />
cos:<br />
1) Conhecer para criticar: O que é o Movi-<br />
mento Olímpico, que opera nas esferas da<br />
Solidariedade Olímpica, com bolsas de es-<br />
tudo na área de Estudos Olímpicos e bolsas<br />
para atletas no mundo inteiro? O que é a<br />
Educação Olímpica, que procura tematizar<br />
valores associados ao esporte, como Fair<br />
Play e os próprios Jogos Olímpicos? Qual é<br />
o papel do Comitê Olímpico internacional,<br />
dos Comitês Olímpicos Nacionais, da FIFA, e<br />
das Federações nacionais na organização do<br />
esporte e divulgação de mensagens e valo-<br />
res esportivos?<br />
2) Suprir a escola de equipamentos que ga-<br />
rantam o acesso dos alunos às diferentes<br />
mídias: televisão, computador com internet<br />
e máquina de filmar.<br />
3) Espaço físico para a vivência esportiva e<br />
material didático esportivo.<br />
4) Vontade política da gestão para elaborar<br />
o Projeto Político Pedagógico juntamente<br />
com a comunidade escolar, envolvendo e<br />
motivando a todos.<br />
O desenvolvimento de qualquer projeto ins-<br />
titucional de Educação Olímpica é uma ação<br />
político-pedagógica e reflete intenções so-<br />
bre o tipo de nação e de cidadania que se de-<br />
seja alcançar. Logo, uma Educação Olímpica<br />
com finalidades ético-políticas considera o<br />
desenvolvimento humano compreendido<br />
como formação do cidadão do mundo, mas<br />
também do cidadão da cidade, da participa-<br />
ção ativa na comunidade e no país. Parafra-<br />
seando Edgar Morin (2003), a consciência de<br />
pertencer à espécie humana e de desenvol-<br />
ver a cidadania planetária deve ser acompa-<br />
nhada da consciência de uma cidadania e de<br />
autonomias individuais 9 .<br />
9 MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF:<br />
UNESCO: 2003.<br />
39
Presidência da República<br />
Ministério da Educação<br />
Secretaria de Educação Básica<br />
<strong>TV</strong> ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO<br />
Coordenação-geral da <strong>TV</strong> Escola<br />
Érico da Silveira<br />
Coordenação Pedagógica<br />
Maria Carolina Mello de Sousa<br />
Supervisão Pedagógica<br />
Rosa Helena Mendonça<br />
Acompanhamento Pedagógico<br />
Grazielle Avellar Bragança<br />
Coordenação de Utilização e Avaliação<br />
Mônica Mufarrej<br />
Fernanda Braga<br />
Copidesque e Revisão<br />
Magda Frediani Martins<br />
Diagramação e Editoração<br />
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – <strong>TV</strong> <strong>Brasil</strong><br />
Gerência de Criação e Produção de Arte<br />
Consultores especialmente convidados<br />
Antonio Jorge Gonçalves Soares e Edivaldo Góis Junior<br />
E-mail: salto@mec.gov.br<br />
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto<br />
Rua da Relação, 18, 4 o andar – Centro.<br />
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)<br />
Setembro 2011<br />
40