16.06.2013 Views

Sírio Possenti - Revista Novos Estudos

Sírio Possenti - Revista Novos Estudos

Sírio Possenti - Revista Novos Estudos

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

GRAMÁTICA E POLÍTICA<br />

68<br />

lingüística popular é escandaloso nas gra-<br />

máticas deste tipo. Maurizio Gnere, em<br />

texto ainda inédito, afirma que a língua<br />

é o único lugar em que a discriminação<br />

é aceita. Em nenhum documento está<br />

dito que não se tem o direito de discri-<br />

minar alguém por causa de seu sotaque<br />

ou de qualquer outra peculiaridade lin-<br />

güística, embora se condene claramente<br />

a discriminação quando baseada em fato-<br />

res como religião, cor, ideário político<br />

etc. Diria que não só não se trabalha<br />

em favor do fim da discriminação lin-<br />

güística, como, pelo contrário, cada vez<br />

mais se valoriza a língua da escola, que<br />

é na verdade a língua do Estado.<br />

Gramáticas do tipo 2 são políticas em<br />

três sentidos, pelo menos: a) em primei-<br />

ro lugar porque, embora se baseiem na<br />

oralidade, a construção dos modelos e,<br />

na verdade, o corpus utilizado levam<br />

sempre, imperceptivelmente talvez, para<br />

a consagração da variedade padrão como<br />

representante ideal das regras da língua.<br />

A melhor demonstração desta atitude é<br />

que o estudo da variação lingüística cabe<br />

a um ramo interdisciplinar, a socio-lin-<br />

güística, não à lingüística mesma; b) em<br />

segundo lugar, tais gramáticas são polí-<br />

ticas na construção e delimitação do obje-<br />

to: conforme o que excluem ou incluem<br />

no objeto da teoria, efetuam um recorte<br />

dos fenômenos que imediatamente de-<br />

nuncia as ligações ideológicas da teoria<br />

gramatical com certas concepções de ou-<br />

tros fenômenos sociais. Casos evidentes<br />

são o estruturalismo americano, ligado<br />

diretamente ao behaviorismo, e a gramá-<br />

tica gerativa, que apela fortemente para<br />

o inatismo. Compare-se, também, a con-<br />

cepção de signo em Saussure e em Vo-<br />

loshinov; c) pela exclusão que tais gra-<br />

máticas promovem do aspecto histórico<br />

das línguas, das razões sociais das mu-<br />

danças. A doutrina da precedência da<br />

sincronia vem de par com uma concepção<br />

de língua como sistema independente de<br />

fatores extra-lingüísticos, excluindo total-<br />

mente o papel da história e das reais<br />

relações entre os falantes.<br />

As gramáticas do tipo 3 são evidente-<br />

mente políticas. Neste caso, no entanto,<br />

não necessariamente a marca política é<br />

imposta por grupos de poder especiali-<br />

zados. É a própria comunidade que fala<br />

a língua que trabalha politicamente, im-<br />

pingindo normas de linguagem, e excluin-<br />

do os que não se submetem. Neste sen-<br />

tido, os próprios falantes promovem o<br />

máximo possível de normalização ou de<br />

especialização de variedades, atribuindo<br />

valores às formas lingüísticas. Em comu-<br />

nidades de maior escolaridade, é claro<br />

que gramáticas do tipo 1 interferem em<br />

gramáticas do tipo 3. Daí porque normas<br />

e concepções daquelas gramáticas podem<br />

encontrar-se reproduzidas nestas, e a co-<br />

munidade, embora exercite a diversida-<br />

de, considera explicitamente uma forma<br />

de falar melhor que outra. A forma mais<br />

valorizada coincide com a forma padro-<br />

nizada pelas gramáticas.<br />

E, no entanto, não existe nenhuma<br />

variedade e nenhuma língua que sejam<br />

boas ou ruins em si. O que há são línguas<br />

e variedades que mereceram maior aten-<br />

ção que outras, segundo necessidades e<br />

eleições historicamente explicáveis. Ne-<br />

cessidades e eleições claramente políti-<br />

cas. Fishman, em seu Sociology of lan-<br />

guage, menciona quatro atitudes básicas<br />

adotadas em relação a variedades privi-<br />

legiadas, que as valorizaram sobrema-<br />

neira.<br />

P<br />

adronização: consiste na codificação<br />

e aceitação, dentro de uma comunidade<br />

lingüística, de um conjunto de hábitos<br />

ou normas que definem o uso "correto"<br />

(Steward). Este é um assunto típico dos<br />

guardiães da língua: escritores, gramáticos,<br />

professores etc, isto é, de certos<br />

grupos cujo uso da língua é profissional<br />

e consciente. Codifica-se a língua e ela é<br />

apresentada à comunidade como um bem<br />

desejável. Em seguida, promove-se a variedade<br />

codificada, por meio de agentes<br />

e autoridades como o governo, sistemas<br />

de educação, meios de comunicação etc.<br />

O que é importante verificar, nesta tarefa,<br />

é que ela é efetuada sobre uma<br />

variedade que, antes de ser trabalhada,<br />

é (considerada) cheia de "defeitos e lacunas".<br />

A padronização não é, pois, uma<br />

propriedade da língua, mas um tratamento<br />

social. Consiste em fazer passar por<br />

natural o que é criado.<br />

A<br />

utonomia: é uma atitude que se preocupa<br />

com a unidade e a independência<br />

do sistema lingüístico, erigindo-o freqüentemente<br />

em condição sine qua non<br />

da unidade nacional. O principal instrumento<br />

da autonomia é a padronização,<br />

através de gramáticas e dicionários, meio<br />

seguro de representar a autonomia e de<br />

aumentá-la, fixando as regras e aumentando<br />

o léxico. "Os heróis não nascem,<br />

são feitos". O mesmo vale para a autonomia<br />

das línguas.<br />

NOVOS ESTUDOS N.º 3

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!