ynari a menina - Cielli
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Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />
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DECIFRANDO CÓDIGOS: UMA LEITURA DE “YNARI A MENINA DAS<br />
CINCO TRANÇAS”, DE ONDJAKI E DE ALGUMAS LENDAS E CONTOS<br />
ANGOLANOS<br />
Maria Aparecida Rita Moreira ( PG– UFSC)<br />
Muitos adultos guardam na memória histórias que marcaram sua infância, da<br />
mesma forma que algumas comunidades tem em seu imaginário lendas e contos<br />
eternizados pela tradição oral.<br />
Muitos contos populares atravessaram continentes. Muitas lendas viajaram,<br />
ganharam novas roupagens e continuam sendo contadas.<br />
Nos dicionários, entre as definições de lenda, encontraremos “história fantástica,<br />
imaginosa”. Ao mesmo tempo as definições de lenda situam a mesma entre a realidade e a<br />
fantasia, por circular no imaginário popular. Elas têm uma forte relação com a tradição<br />
oral africana e se fazem presentes na literatura deste continente.<br />
A literatura infantil e infanto-juvenil também é marcada pelo caráter fantasioso e<br />
alguns traços de oralidade. Se o continente africano tem uma forte tradição oral,<br />
acredita-se que a literatura infantil e infanto-juvenil dos países deste continente terá uma<br />
forte presença da oralidade.<br />
Esta aproximação da literatura africana com a oralidade e o caráter oral das lendas<br />
deram origem a este estudo, que tenta resgatar, através da leitura de lendas e contos<br />
angolanos e de Ynari, a <strong>menina</strong> das cinco tranças, de Ondjaki, o fantástico que se<br />
esconde nas palavras, a busca de decifrar simbologias imersas num mundo de fantasias.<br />
Tentará trazer para o palco de debate o registro escrito de lendas e contos africanos, bem<br />
como a presença da oralidade nas histórias infantis e infanto-juvenis.<br />
Este estudo estará dividido em três partes: a primeira tentará resgatar alguns<br />
conceitos que permeiam as lendas; a segunda nos fará pensar na tradição oral africana e<br />
a terceira apresentará uma comparação da lenda angolana Quem perde o corpo é a<br />
língua, e do conto O jovem e a caveira dentro de uma perspectiva da oralidade africana<br />
e a relação dos mesmos com a história de Ondjaki, Ynari, a <strong>menina</strong> das cinco tranças
Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />
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.1. Lendas, contos populares,.. ou apenas... contos marcados pela oralidade.<br />
A memória existe e há memórias que surgem<br />
em contos e relatos, em mitos e crenças,<br />
em toques e silêncios de tambores.<br />
Também no gesto, na dança e na ética do viver ou do morrer.<br />
Luz Maria Martínez Montiel<br />
A leitura do livro de Júlio Emílio Brás, Lendas Negras apresenta as lendas<br />
localizando-as geograficamente, relata algumas lendas de diferentes países africanos.<br />
Este livro de Brás despertou-nos o interesse pelas lendas africanas. Na busca de outras<br />
lendas deste continente, encontramos o livro Contos Populares de Angola – folclore<br />
quimbundo. organizado por José Viale Moutinho. Segundo as notas presentes na orelha<br />
do livro, estes contos foram extraídos “da mais vasta recolha efetuada até agora, a de<br />
Héli Chatelain”. Os contos de Chatelain foram publicados em quimbundo e inglês.<br />
Estes contos populares se assemelham bastante as lendas apresentadas por Brás.<br />
Lendas... contos... mitos … Para melhor entender estas narrativas, procuraremos<br />
conhecer um pouco sobre os conceitos ligados as mesmas.<br />
Falar sobre lendas nos remete a oralidade. As lendas estão presentes no mundo<br />
todo. Lóssio (sem data) cita Arinos que diz que a origem das lendas está relacionada a<br />
palavra Ler. Diz que, na era cristã, era comum nos mosteiros e conventos, a hora das<br />
refeições, fazer a leitura da vida dos santos do dia. “Daí a chamar-se “lenda” o trecho a<br />
ser lido”. A “lenda” estaria assim relacionada a biografia dos santos. Arinos afirma<br />
também que com o passar do tempo dados foram sendo acrescidos a estas biografias,<br />
“ações que a fé ardente dos autores atribuía a seus heróis”. O dicionário Michaelis on-<br />
line, conceitua lenda como “2 Narrativa transmitida pela tradição, de eventos<br />
geralmente considerados históricos, mas cuja autenticidade não se pode provar. 3<br />
História fantástica, imaginosa”, estes dois conceitos colocam a lenda entre eventos<br />
históricos e a fantasia.<br />
Debus (2008) associa o conceito de lendas ao latim legenda, legere – Ler,<br />
lembrando sua característica oral, permitindo que a ela se agregue ou se desvincule<br />
componentes ao longo dos anos.
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Percebemos ao ler as lendas e contos africanos que os mesmos não estão<br />
vinculados a um povo, por exemplo, Brás (2001) ao situar a Lenda A Viúva Velha em<br />
Angola, lembra que muitas lendas possuem inúmeras versões, e que esta encontrará em<br />
outros grupos tribais e em países vizinhos outras interpretações. Esta afirmativa de Brás<br />
reforça, como característica da lenda, a idéia de não pertencimento a um único povo.<br />
Montiel(1999), africanista mexicana, lembra que “muitos contos são restos de<br />
mitos”, dentro deste pensamento, encontraremos uma proximidade ainda maior entre os<br />
contos, mitos e lendas e a dificuldade que temos em dissociá-los. Montiel (ibidem)<br />
lembra que a oralidade apresenta, no caso dos contos, uma linguagem codificada. O<br />
conto chega até nós com esta linguagem (codificada), em sua maioria, trazendo uma<br />
mensagem implícita, que cabe ao leitor decifrar.<br />
O conto popular se aproxima do receptor pelas características orais que<br />
apresenta, uma vez que utiliza linguagem ligada ao dia a dia, e ao mesmo tempo se<br />
afasta da realidade deste pelo seu caráter fantasioso.<br />
Na busca de identificar este gênero foi feito um grande percurso. Percebemos<br />
que alguns textos classificados como lendas num livro, aparecem em outro como contos<br />
populares.<br />
Diante destes desencontros nas definições relacionadas às Lendas e Contos<br />
populares, nós não nos prenderemos aqui a nomenclatura, mas ao caráter oral e seus<br />
desdobramentos: caráter fantasioso, imaginário, linguagem codificada, oralidade.<br />
Observaremos também no desenrolar deste estudo, alguns aspectos encontrados<br />
em Nunes (2009) que aponta para características dos contos. Dentre eles ressaltamos:<br />
• Uns contos apresentam “estrutura definida no conto arquetipal:” Situação Inicial<br />
(SI) de equilíbrio, que é perturbada pelo aparecimento de um acontecimento<br />
desestabilizador, e, retorna novamente ao equilíbrio, Situação Final (SF).<br />
• Outros, ao contrário, apresentam uma relação de inversão entre a SI e a SF.<br />
• Existe também os que apresentam uma estrutura complexa, que se caracterizam<br />
pela presença de narrativas encadeadas, em que cada uma tem uma SI e uma<br />
SF.
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• Os contos africanos nem sempre retornam a uma Situação Final de equilíbrio.<br />
• Os contos africanos não tem fórmula para início nem fim (não começam com<br />
“era uma vez” - situando o acontecido num tempo remoto- nem terminam com<br />
“foram felizes”.<br />
• Muitos contos apresentam temáticas universais, “que condenam certos<br />
comportamentos como a ambição, a inveja, a estupidez”.<br />
Nunes diz que “Chatelain seriou os elementos recolhidos, enunciando a<br />
proposta de classificação: histórias tradicionais de ficção, histórias reputadas<br />
verdadeiras, narrativas históricas, histórias com uma certa filosofia moral, provérbios e<br />
anedotas, poesia e música e adivinhas”. (p. 102)<br />
Estas informações sobre a estrutura dos contos populares aguçam nossa<br />
percepção e nos encorajam na aventura de analisá-los. Por outro lado, não podemos<br />
esquecer que estes contos, originalmente orais, passaram a registro escrito. Quando<br />
trabalhamos com narrativas escritas, temos em primeiro plano a palavra, que nos surge<br />
enquanto signo e com uma carga literal e somente a partir da leitura, passará a<br />
abstração, surgindo a possibilidade de fazermos o corte que nos aproximará do mundo<br />
marcado pela tradição oral.<br />
Tradição oral... Literatura oral...<br />
As pessoas pensam contando histórias.<br />
Nós somos pessoas pobres se não soubermos contar uma história;<br />
só se a nossa vida for transformada numa história é que podemos ser livres<br />
Mia Couto<br />
Quando se pensa em África, um dos aspectos que nos vem a cabeça é a<br />
oralidade. Quintino Bagla Pã-Bunhe(sem data) cita um sábio africano de Mali que diz<br />
que a literatura oral tem “dois papéis: um, educativo e o outro recreativo.” No papel<br />
educativo teremos a presença do iniciador e do iniciado. O iniciador um velho ou adulto<br />
que assume a responsabilidade de repassar as experiências e conhecimentos ao iniciado,<br />
um jovem que deseja desvendar os mistérios das coisas que o circundam. No papel<br />
recreativo, entra o contador de histórias, que não precisa necessariamente ser uma<br />
pessoa velha, mas sim “um conhecedor e alguém com o dom de contar histórias.”
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Hampate Bá (sem data) lembra que a oralidade precede a escrita, diz que “os<br />
primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens.” Fala da<br />
sociedade oral, na qual a palavra está ligada ao homem “A própria coesão da sociedade<br />
repousa no valor e no respeito pela palavra.” Para Hampaté Bá não se pode dizer que os<br />
registros apresentados pela escrita são mais “fidedignos” do que os relatos orais<br />
transmitidos através das gerações, neste caso, chama atenção para ao fato de que quem<br />
escreve o faz através de um ponto de vista, ou seja a partir da sua verdade, que nem<br />
sempre retrata a realidade. Chama atenção para o fato que nas sociedades pautadas na<br />
tradição oral, existe uma forte relação entre o homem é a palavra. Sobre a importância<br />
da palavra, apresenta, entre outros, este depoimento que nos chamou atenção<br />
Nas tradições africanas – pelo menos nas que conheço e dizem<br />
respeito a toda região de savana ao sul do Saara – , a palavra falada se<br />
empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter<br />
sagrado vinculado à sua origem divina e as forças ocultas nela<br />
depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças<br />
etéreas” não era utilizada sem prudência. (p. 182)<br />
Hampaté Bá esclarece que a tradição oral não está relacionada apenas a lendas e<br />
contos, mas se faz presente em diferentes áreas do conhecimento.<br />
A leitura do texto “A tradição Viva” de Hampaté Bá nos faz perceber que a<br />
tradição oral africana está envolta de uma aura que pertence ao povo, pois está no<br />
interior de sua cultura. Apresenta, além da fala, a escuta, “os termos “falar” e “escutar”<br />
referem-se a realidades muito mais amplas do que as que normalmente lhes atribuímos.<br />
(…) Trata-se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na<br />
totalidade.” (Hampaté Bá, p. 185)<br />
Vansina diz que “a oralidade é uma atitude diante da realidade e não uma<br />
ausência de habilidade”(p.157) ele nos lembra que a leitura de um “texto oral … deve<br />
ser escutado, decorado, digerido internamente como um poema e cuidadosamente<br />
examinado para que se possam apreender seus muitos significados ...”. A maneira de<br />
pensar a palavra na cultura africana é diferente da maneira ocidental de lidar com a<br />
mesma. Logo, me parece, que os pesquisadores, de um modo geral, terão uma certa<br />
dificuldade de perceber como se estrutura o pensamento dentro da tradição oral, uma<br />
vez que o “corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade que se explica a<br />
si mesma...”(Vansina, ibid) . É dentro desta tradição oral que iremos encontrar as lendas<br />
e contos populares. Envolto numa tradição milenar, os contos e lendas são contados e
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recontados. Estudar estes contos, portanto, não é uma tarefa fácil, faz-se necessário<br />
permitir que os contos sejam “digeridos” por nós para nos aproximarmos deles. Talvez,<br />
a atitude de uma criança, quando ouve uma história possa se aproximar ao ambiente<br />
que se cria diante da contação de história em África.<br />
Portanto, buscar traços da oralidade em contos, lendas e histórias situadas no<br />
continente africano é, para nós, um desafio, e, é nele que entraremos nas próximas<br />
páginas.<br />
2. Quem perde o corpo é língua e o jovem e a caveira: A mesma narrativa por<br />
diferente contadores<br />
Ao apresentarmos as obras literárias aqui analisadas é importante ressaltar que<br />
estas foram transportadas da oralidade para escrita. Nunes (2009) fala que “Entre o<br />
contador e os seus ouvintes existe uma interacção, um ambiente de cumplicidade, em<br />
que um vasto manancial do saber autóctone se preserva:”(p. 43). Ao transformarmos o<br />
que se ouve em registro escrito, sabe-se que muito se perde, principalmente se<br />
pensarmos em todo o ritual inerente a tradição oral africana. Nunes diz que “Na<br />
transposição da oralidade para a escrita, as narrativas perdem uma característica<br />
distintiva e riquíssima, que é a sua qualidade cinética, base do processo de produção e<br />
de recepção, que o registo escrito não consegue resgatar.” (p. 110)<br />
Portanto, estes são detalhes que precisam ser levados em conta quando<br />
pensamos em analisar lendas e contos populares. Dentro das limitações que, o registro<br />
escrito nos coloca, uma vez que estamos trabalhando com uma categoria originalmente<br />
oral, apresentaremos, na sequência, as narrativas selecionadas para análise.<br />
2.1. Quem perde o corpo é a língua por Júlio Emílio Brás<br />
Júlio Emílio Braz nasceu em Minas Gerais, na cidade de Manhumirim. Aos<br />
cinco anos mudou-se para o Rio de Janeiro. Seus títulos, em sua maioria, direcionam-se<br />
ao público adolescente e a temática étnico-racial aparece em um número expressivo deles.<br />
Dentre eles destaca-se Pretinha, eu?, que o autor classifica como autobiográfico.<br />
O livro que nos interessa neste estudo intitula-se Lendas Negras, traz oito lendas<br />
africanas, dos seguintes países: Botsuana, Mali, Tanzânia, África do Sul, Nigéria,<br />
Quênia e Angola (duas lendas deste país).
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Das lendas presentes neste livro, duas lendas são angolanas: Quem perde o<br />
corpo é a língua e A Viúva Velha.<br />
Sobre a lenda Quem perde o corpo é a língua, o escritor diz que ela é muito<br />
conhecida entre os vários grupos quimbundo, estudiosos já encontraram versões da<br />
mesma lenda entre os batongas, da Zambézia, os nupês, do Sudão, e até mesmo no<br />
nordeste do Brasil.<br />
Quem perde o corpo é a língua, nesta narrativa conta-se que um caçador ao<br />
voltar para a sua aldeia se depara com uma caveira que conversa com ele. Ao interrogar,<br />
quem a matou, a resposta da caveira é quem perde o corpo é a língua. Dias mais tarde o<br />
caçador reencontra a caveira, refaz as perguntas e recebe as mesmas respostas. Corre e<br />
conta aos colegas, mesmo duvidando, eles resolvem verificar. Porém, na presença dos<br />
colegas, a caveira nada fala. Indignados, consideram o caçador um mentiroso e lhes dão<br />
uma grande surra, deixando-o só com a caveira. Olha para a caveira e reclama e esta,<br />
zombeteiramente lhe diz Quem perde o corpo é a língua.<br />
2.2. O jovem e o crânio por José Viale Moutinho<br />
Nas pesquisas sobre lendas angolanas, outro livro encontrado foi o “Contos<br />
Populares de Angola – folclore quimbundo.” organizado por José Viale Moutinho, que<br />
selecionou os contos “da mais vasta recolha até agora efetuada, a de Héli Chatelain”,<br />
que foram publicados em quimbundo e inglês.<br />
José Viale Moutinho nasceu em Funchal, Portugal, no dia 12 de junho de 1945.<br />
Escritor e jornalista tem realizado investigações sobre a vida e a obra de alguns<br />
escritores portugueses do Séc. XIX. Participou no movimento português da Poesia<br />
Experimental e em exposições de Arte Postal. Escritor de prosa e poesia, com inúmeras<br />
publicações, dentre elas “Contos Populares de Angola – folclore quimbundo.” Este<br />
livro traz dezesseis contos angolanos selecionados do livro de Héli Chatelain intitulado<br />
“Folk-Tales of Angola”. O conto escolhido para ser analisado por nós é O jovem e o<br />
crânio que apresenta uma narrativa que nos lembra o conto angolano de Júlio Emílio<br />
Bras Quem perde o corpo é a língua.<br />
O jovem e o crânio nesta narrativa o escritor escreve que Um rapaz foi fazer uma<br />
viagem e no caminho encontrou uma cabeça humana. Ele se aproximou, bate na cabeça
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dela e disse – Deves a morte a tua estupidez. O crânio responde: - a estupidez me<br />
matou, a tua esperteza também te matará. O rapaz fica aterrorizado e volta para casa,<br />
contando aos conhecidos o que se passara. Ninguém acredita. Ele desafia dizendo que<br />
podem cortar sua cabeça caso o crânio nada fale. Todos vão para o local, chegando lá o<br />
jovem bate na caveira e ela nada falou e por isto foi degolado. Após o jovem ser<br />
degolado o crânio fala e o povo percebe que cometera uma injustiça.<br />
2.3. Comparando os contos<br />
Júlio Emílio Brás José Viale Moutinho<br />
Personagem:<br />
caçador e a caveira<br />
Enredo:<br />
− O caçador passa perto da caveira<br />
− A caveira fala com o caçador pede<br />
para o caçador se aproximar.<br />
− O caçador fica desconfiado.<br />
− Depois de algum tempo se<br />
aproxima.<br />
− O caçador conversa com a caveira<br />
tentando descobrir o que aconteceu com a<br />
caveira. Ela diz – Quem perde o corpo é a<br />
língua.<br />
− O caçador conta aos companheiros<br />
o que acontecera.<br />
− Ninguém acredita no caçador.<br />
− O caçador volta a passar pelo lugar<br />
e a conversa com a caveira se repete.<br />
− O caçador volta a aldeia e conta a<br />
mesma história aos companheiros.<br />
− Depois de muita os companheiros<br />
resolvem ver a caveira.<br />
− Os companheiros ameaçam o<br />
caçador, dizendo que se a caveira não<br />
falar eles darão uma surra no caçador.<br />
− Todos chegam ao local onde a<br />
Personagem:<br />
jovem e o crânio<br />
Enredo:<br />
• O jovem passa perto do crânio se<br />
aproxima e bate na cabeça com um<br />
pau e diz – Deves a morte a tua<br />
estupidez.<br />
• O crânio fala com o jovem dizendo:<br />
- A estupidez me matou a tua esperteza<br />
também te matará.<br />
• O jovem fica aterrorizado.<br />
• O jovem volta para casa.<br />
• O jovem conta o que aconteceu<br />
(não é mencionado para quem ele<br />
conta)<br />
• Ninguém acredita no jovem.<br />
• O jovem convida todos a ir até o<br />
local, dizendo que, caso o crânio<br />
nada fale, eles podem lhe cortar a<br />
cabeça.<br />
• Todos chegam ao local onde o
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caveira está.<br />
− O caçador fala com a caveira e ela<br />
permanece muda.<br />
− Os companheiros, diante da mudez<br />
da caveira, dão uma grande surra no<br />
caçador.<br />
− Os companheiros vão embora.<br />
− O caçador consegue levantar-se<br />
com dificuldade.<br />
− Fala com a caveira e esta responde:<br />
- Quem perde o corpo é a língua, meu<br />
amigo.<br />
− Os companheiros não ouvem a<br />
caveira.<br />
− Fica a mensagem: por andar à toa,<br />
morre-se à toa; por falar à toa, vai-se à<br />
toa.<br />
Tabela 1<br />
crânio está.<br />
• O jovem bate com o pau no crânio e<br />
fala com ele, mas ele permanece<br />
mudo.<br />
• Diante da mudez do crânio os<br />
companheiros degolam o jovem.<br />
• Os companheiros não vão embora.<br />
• Após terem degolado o jovem o<br />
crânio fala: - A estupidez fez-me<br />
morrer e a esperteza matou-te.<br />
• O povo compreendeu que tinha<br />
cometido uma injustiça.<br />
• Fica a mensagem: estúpidos e<br />
espertos são todos iguais.<br />
Ao observarmos estes dois contos constatamos semelhanças e diferenças, como<br />
pode ser observado na tabela 1. Os personagens diferem jovem e caçador, mas ambos<br />
se encontram com um crânio. O crânio fala com o jovem e com o caçador, e apenas a<br />
eles é dado o poder de ouvir. Aqui também encontramos o caráter fantasioso e<br />
distanciado da realidade próprio das lendas e contos (um crânio que fala).<br />
Na narrativa de Júlio Emílio Brás, é o crânio que inicia o diálogo, na de Viale<br />
Moutinho, o jovem fala com o crânio sem esperar resposta. E, vamos percebendo<br />
semelhanças e distanciamentos entre os dois contos.<br />
A narrativa apresentada por Moutinho, está baseada nos escritos de Chatelain,<br />
datado de 1894, o livro de Brás, em sua apresentação, não traz a data em que suas<br />
lendas foram recolhidas, nem como ele chegou até elas. Quando fizemos a leitura do<br />
conto de Motinho (a leitura foi posterior a das lendas de Brás), automaticamente, nos<br />
veio a memória a lenda angolana escrita por Brás. Parece-nos que uma mesma lenda foi<br />
aproveitada para levantar uma “certa filosofia moral”.<br />
Ao pensarmos estes contos a partir das características apresentadas por Nunes<br />
pode-se dizer que: (1)Os contos apresentam uma Situação Inicial(SI) que é abalada, e<br />
que, como o anunciado em relação aos contos angolanos, não terá uma Situação Final
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na qual a harmonia e restabelecida; (2) Não começa com era uma vez, nem termina<br />
com foram felizes para sempre; (3) Apresentam uma temática universal condenando a<br />
estupidez e as pessoas que se perdem por falar demais.<br />
Em relação a tradição oral, o conto de Brás, apresenta um linguagem bastante<br />
coloquial, tentando trazer para o registro escrito traços da oralidade. A narrativa se<br />
desencadeia como uma conversa com o leitor, tentando trazê-lo para o contexto.<br />
Percebe-se a tentativa de contagiar o leitor, de trazê-lo para dentro da narrativa. O conto<br />
inicia com Conta-se em Angola que há muito tempo... A expressão há muito tempo além<br />
de nos lembrar as lendas que são contadas ao longo dos tempos, também recorda as<br />
narrativas que perduram através da oralidade.<br />
A presença de diálogos nos aproximam da oralidade. O escritor também se<br />
utiliza de expressões como conversa vai, conversa vem, a verdade é que tanto ele<br />
contou, vamos ver essa tal caveira, nem um “ai”, ficou estirado no chão, cá entre nós.<br />
No conto apresentado por Moutinho também encontraremos uma SI, que é<br />
abalada, sendo que a harmonia não será restabelecida. O conto já inicia situando o leitor<br />
no espaço do conto Um rapaz foi fazer uma viagem, utiliza uma linguagem bastante<br />
coloquial e os diálogos reforçam o caráter oral. Neste conto encontraremos muito mais<br />
diálogo do que narrativa, ao contrário do de Brás no qual a narrativa conduz o leitor.<br />
Ao compararmos os dois contos, é possível perceber que o registro escrito de<br />
Brás, apresenta mais traços de oralidade, buscando resgatar, por intermédio da<br />
narrativa, a contação de histórias.<br />
A leitura destes dois contos, tão semelhantes entre si, mostram que narrativas<br />
orais podem apresentar situações diferentes versões, reforçando o exemplo citado por<br />
Vansina (sem data), que cita um caso no qual “informantes de Ruanda relataram duas<br />
versões de uma tradição sobre os Tutsi e os Hutu: (...)” (p. 158)<br />
Acreditamos que a literatura africana apresente marcas de oralidade. Lemos e<br />
apresentaremos em seguida algumas impressões sobre uma obra literária de um escritor<br />
angolano, direcionada a crianças.<br />
3. A história de “Ynari, a <strong>menina</strong> das cinco tranças”, de Ondjaki uma história<br />
com traços de narrativa oral.
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Ondjaki (Ndalu de Almeida) nasceu em Luanda em 1977. Licenciado em<br />
sociologia, é ficcionista, poeta e artista plástico. Recebeu vários prêmios em Portugal e<br />
Angola. Dentre suas narrativas, destacamos, neste estudo, Ynari, a <strong>menina</strong> das cinco<br />
tranças.<br />
Trazer esta história, no final deste estudo, é condensá-la, é extrair dele apenas<br />
algumas gotas do oceano que ela pode nos oferecer quando pensamos em Angola e<br />
tradição oral. Esta é uma história envolvente que consegue encantar, a exemplo dos<br />
contos populares.<br />
Talvez, esse encantamento que a narrativa causou possa dificultar, do ponto de<br />
vista intelectual, a análise da obra, uma vez que toda análise requer um certo<br />
distanciamento. Por outro lado, pensamos que esta proximidade deponha a favor de<br />
Ynari e, consequentemente do poder de seu escritor de transformar um registro escrito<br />
em narrativa oral.<br />
Resumidamente, Ynari, a <strong>menina</strong> das cinco tranças é a história de uma <strong>menina</strong><br />
que já nasceu com cinco tranças, predestinada, para através das tranças trabalhar pela<br />
paz em nas aldeias em guerra. Ynari encontra, perto de um rio, um homenzinho<br />
pequenino que a ajudará a percorrer cinco aldeias. Cortando suas tranças e utilizando<br />
palavras corretas, vai solucionando os problemas das aldeias. Porém, antes de visitar as<br />
aldeias, Ynari conhece, na aldeia do homem pequenino, o velho que inventava palavras<br />
e a velha que as destruía.<br />
Segundo Vansina, “Quase em toda parte, as palavras tem poder misterioso,<br />
pois criam coisas.” (p. 158) este poder de criar das palavras estará presente na história<br />
de Ondjaki. Esta narrativa traz toda a força da palavra evidenciada nos escritos de<br />
Vansina e de Hampaté Bá.<br />
Na história de Ondjaki encontraremos o fantasioso, a exemplo dos contos e<br />
lendas, uma SI, a <strong>menina</strong> que já nasceu com cinco tranças, o encontro de Ynari com o<br />
homem pequenino, que se coloca como o fato que vai desencadear a jornada que Ynari<br />
deverá enfrentar e a SF com o restabelecimento da harmonia. Se nesta história, a SF é<br />
de restabelecimento de harmonia, por outro lado, a percepção da oralidade e da tradição<br />
africana fica eminente pela importância que é dada a palavra. A palavra que, nos contos,
Universidade Estadual de Maringá – UEM<br />
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />
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estudados, pelo seu mau uso, faz com que o caçador apanhe e o jovem morra; palavra<br />
que, pelo seu bom uso, leva a paz as aldeias que se encontravam em guerra.<br />
Últimas Palavras<br />
Ao encerrar este estudo, gostaríamos de dizer que apenas apresentamos<br />
pequenas reflexões sobre a literatura africana, aqui representada pelos contos e história<br />
angolana.<br />
Ao escolhermos três narrativas percebemos que Brás parece trazer uma narrativa<br />
mais próxima da oralidade do que Moutinho. Em Ondjaki notamos que este escritor<br />
trouxe para sua história traços da oralidade próprias dos contos e lendas, tão presentes<br />
no seu país.<br />
Concluímos este estudo, com a pretensão de que o debate sobre o registro escrito<br />
de lendas e contos africanos, bem como o da presença da oralidade nas histórias infantis<br />
e infanto-juvenis, principalmente as escritas por escritores africanos continue.<br />
Referências<br />
Brás, Júlio Emilio. Lendas negras. São Paulo. FTD. 2001<br />
Moutinho, José Viale. O jovem e o crânio. In: __________ Contos Populares de<br />
Angola. São Paulo. Landy Editora. 2002.<br />
Ondjaki. Ynari, a <strong>menina</strong> das cinco tranças. Lisboa. Caminho. 2004<br />
Debus, Eliane. A cultura africana e afro-brasileira na literatura de Joel Rufino dos<br />
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Montiel, Luz Maria Martínez. Uma contribuição para o resgate da herança cultural<br />
contida na oralidade. Disponível em
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Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350<br />
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NUNES, Susana Dolores Machado. A Milenar Arte da Oratura Angolana e<br />
Moçambicana. Aspectos Estruturais e Receptividade dos Alunos Portugueses ao Conto<br />
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http://www.africanos.eu/ceaup/index.php?p=k&type=EB&pub=69&s= Acesso em 25<br />
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Vansina, Jan. A Tradição Oral e sua Metodologia. Disponível em<br />
http://www.casadasafricas.org/site/img/upload/492979.pdf Acesso em 10 mar de 2010.