04.07.2013 Views

Lilian Jacoto (Universidade de São Paulo) - Universidade do Minho

Lilian Jacoto (Universidade de São Paulo) - Universidade do Minho

Lilian Jacoto (Universidade de São Paulo) - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

A ética <strong>do</strong> <strong>de</strong>sapego em Herberto Hel<strong>de</strong>r e João Guimarães Rosa<br />

Profa. Dra. Lílian <strong>Jacoto</strong> (USP)<br />

O que é gran<strong>de</strong> é ter a alma na ponta <strong>do</strong>s lábios e prestes a partir<br />

(Sêneca)<br />

Na brevida<strong>de</strong> que lhe é natural, o conto, como forma literária, expan<strong>de</strong> metafisicamente<br />

seus limites pela <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da reflexão que é capaz <strong>de</strong> alojar. Essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser profun<strong>do</strong>,<br />

ainda que breve, ou, como nos ensina Cortazar, a <strong>de</strong> projetar uma sombra muito maior que seu<br />

próprio corpo narrativo, <strong>de</strong>ve-se, em parte, pela sua escrita <strong>de</strong> caracol, isto é, essa escrita em<br />

elipses ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um centro opaco, intangível. A filosofia e o lirismo encontram, no conto,<br />

um suporte propício.<br />

Essa tripla habilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conto – narrativa, lírica e filosófica – comprova-se nas<br />

histórias que João Guimarães Rosa e Herberto Hel<strong>de</strong>r publicaram em datas muito próximas.<br />

Refiro-me ao volume Primeiras Estórias, <strong>do</strong> primeiro, escrito em 1962; e a Os Passos em<br />

Volta, <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>, cuja primeira edição data <strong>de</strong> 1963. A tópica da vida como preparação para<br />

a morte – tão cara à filosofia – é matéria comum que permite o cotejo <strong>do</strong>s textos em “Nada e a<br />

nossa condição”, <strong>de</strong> Rosa, e “O quarto”, <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r. <strong>São</strong>, ambas, narrativas exemplares <strong>de</strong><br />

matéria ética, pois a ação <strong>de</strong> cada protagonista não preten<strong>de</strong> outra coisa senão ensinar a viver<br />

diante da idéia constante da finitu<strong>de</strong>.<br />

A gesta <strong>do</strong> senex<br />

No conto <strong>de</strong> Rosa, o Tio Man’Antônio era um fazen<strong>de</strong>iro próspero, <strong>do</strong>no <strong>de</strong> uma<br />

extensa faixa <strong>de</strong> terra que se <strong>do</strong>brava na montanha em cujo topo construiu sua casa. Esse tio é<br />

<strong>de</strong>scrito com admiração e simpatia na voz <strong>de</strong> um parente seu, não nomea<strong>do</strong>. A relativa<br />

1


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse parentesco permite que o narra<strong>do</strong>r exponha as façanhas e contradições que<br />

fazem <strong>do</strong> protagonista um ser <strong>de</strong> exceção: embora rico (sua fortuna não é fruto <strong>de</strong> herança, mas<br />

<strong>de</strong> pesa<strong>do</strong> trabalho) tio Man’Antônio conserva um ethos <strong>de</strong> singela humilda<strong>de</strong>. Isso fica<br />

patente na forma <strong>de</strong> habitar a casa imponente que construíra: “Mas ele, <strong>de</strong> cada vez, se<br />

curvava, <strong>de</strong> um jeito, pra entrar, como se a elevada porta fosse acanhada e alheia,<br />

convidadamente, aos bons abrigos. Vivia, feito tenção.” ((ROSA, 1985: 74)<br />

Nas suas li<strong>de</strong>s diárias, Tio Man’Antônio repetia incansavelmente o trajeto difícil das<br />

terras aci<strong>de</strong>ntadas, percorren<strong>do</strong> a proprieda<strong>de</strong> no lombo <strong>do</strong> burro, visitan<strong>do</strong> os “cimos – on<strong>de</strong><br />

as montanhas abrem as asas – e as infernas grotas, abismáticas, profundíssimas.” (Ibi<strong>de</strong>m) A<br />

rusticida<strong>de</strong> das vestes, a economia <strong>de</strong> gestos e palavras, a tenacida<strong>de</strong> com que suportava a<br />

rotina, sobretu<strong>do</strong> a resignação com que recebia os acontecimentos mais adversos compõem,<br />

para a sua figura, a elevação moral <strong>do</strong> homem, pai <strong>de</strong> família e patrão. O gran<strong>de</strong> trauma que lhe<br />

suce<strong>de</strong> – a perda da mulher e companheira Liduína, <strong>do</strong>na <strong>de</strong> “árdua e imemorial cordura, certa<br />

para o nunca e sempre” - não modifica sua rotina, antes reforça o contraditório ethos <strong>de</strong><br />

cuida<strong>do</strong> e <strong>de</strong>sapego para com o mun<strong>do</strong> que ao re<strong>do</strong>r se lhe dispunha: no luto da viuvez, tio<br />

Man’Antônio percorre os quartos e cômo<strong>do</strong>s vazios da casa, como que redimensionan<strong>do</strong> sua<br />

própria solidão, como que se preparan<strong>do</strong> para o “gran<strong>de</strong> movimento [que] é a volta”. Torna-se,<br />

a partir daí, um proprietário ainda mais zeloso e um patrão ainda mais severo, embora, o<br />

mesmo tanto, mais <strong>de</strong>sapega<strong>do</strong> das coisas. Já no enterro <strong>de</strong> Liduína, sua filha mais jovem, <strong>de</strong><br />

curioso nome Felícia, buscan<strong>do</strong> nele o consolo para a perda da mãe, formula uma pergunta que<br />

pontuará o cariz filosófico <strong>do</strong> conto: “- Pai, a vida é só feita <strong>de</strong> traiçoeiros altos-e-baixos? Não<br />

haverá, para a gente, algum tempo <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira segurança?” E ele, com muito<br />

caso, no <strong>de</strong>vagar da resposta, suave a voz: “Faz <strong>de</strong> conta, minha filha... Faz <strong>de</strong> conta...”<br />

(I<strong>de</strong>m,75)<br />

2


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

A resposta <strong>de</strong> Man’Antônio será, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, uma espécie <strong>de</strong> mantra que o<br />

acompanhará nas ações futuras: ele, o transitório, o fazen<strong>de</strong>iro que fazia <strong>de</strong> conta, (“fazia <strong>de</strong><br />

conta nada ter. Fazia-se, a si mesmo <strong>de</strong> conta”). Dedica-se, no exercício <strong>de</strong> sua solidão, a um<br />

projeto <strong>de</strong> se crer e obrar, põe-se a modificar a paisagem, a <strong>de</strong>smatar a montanha, libertan<strong>do</strong>-<br />

se, então, <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que, no lugar, compunha a sua memória. Afora o “faz <strong>de</strong> conta”, sempre na<br />

ponta <strong>do</strong>s lábios, o fazen<strong>de</strong>iro pouco ou nada falava, reduzin<strong>do</strong>-se a uma presença sem som,<br />

sem pessoa. Quan<strong>do</strong> as filhas se casam e <strong>de</strong>ixam a casa paterna, ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> <strong>do</strong>ar as terras aos<br />

emprega<strong>do</strong>s, fican<strong>do</strong> apenas com a casa on<strong>de</strong> finalmente logra se recolher, preparan<strong>do</strong> o<br />

próprio fim. A morte chega-lhe naturalmente, como que aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao seu <strong>de</strong>sejo e<br />

planejamento: “Morreu; fez <strong>de</strong> conta. Neste ponto acharam-no na re<strong>de</strong>, no quarto menor,<br />

sozinho <strong>de</strong> amigo ou amor - transitoria<strong>do</strong>r - príncipe e só, criatura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.” (I<strong>de</strong>m, 81)<br />

Essa trajetória para<strong>do</strong>xal <strong>de</strong> quem passa boa parte da vida construin<strong>do</strong> um patrimônio e<br />

uma imagem admirável <strong>de</strong> si mesmo para, na outra meta<strong>de</strong> da existência, como diz o narra<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> Rosa, “acertar-se ao vazio, à re<strong>de</strong>simportância” é tema também <strong>do</strong> conto <strong>de</strong> Herberto Hel<strong>de</strong>r<br />

intitula<strong>do</strong> “O Quarto”. Aqui a situação é <strong>de</strong> diálogo trava<strong>do</strong> num café (localiza<strong>do</strong>, este, numa<br />

ilha), entre um narra<strong>do</strong>r que assume a posição <strong>de</strong> mera escuta e observação atentas e um<br />

homem mais velho _ ambos não nomea<strong>do</strong>s. A diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> é o da<strong>do</strong> que hierarquiza, <strong>de</strong><br />

chofre, as vozes, e isso se patenteia inicialmente pela forma com que cada um se refere à<br />

morte. A conversa começa in media res: o eu-narra<strong>do</strong>r (o mais jovem) teria feito uma alusão<br />

(talvez eufêmica, metafórica) ao tema da morte, e arrisca a hipótese <strong>de</strong> não ter si<strong>do</strong><br />

compreendi<strong>do</strong>. No entanto o outro o faz perceber que estavam a pensar no mesmo assunto, mas<br />

antecipa que a forma <strong>de</strong> abordá-lo marcaria entre eles uma diferença, a saber, o grau <strong>de</strong><br />

proximida<strong>de</strong> com que cada um ousava abordá-lo. À forma alusiva <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r - o que sugere<br />

que haja ainda, para ele, distanciamento e temor - o protagonista contraporá a forma direta <strong>de</strong><br />

3


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

se referir à morte, uma intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem ousa encará-la sem ro<strong>de</strong>ios, isto é, sem “a fraqueza<br />

que se reme<strong>de</strong>ia na imaginação.” (I<strong>de</strong>m,139)<br />

Está-se, portanto, como no conto <strong>de</strong> Guimarães Rosa, diante <strong>de</strong> um protagonista que<br />

exerce sobre o narra<strong>do</strong>r uma autorida<strong>de</strong> moral, advinda não só da ida<strong>de</strong> avançada, mas da<br />

sapiência conquistada ao tempo: “Tinha uma viva e nobre cabeça <strong>de</strong> homem antigo. Parecia<br />

saber muito”. E tal sapiência se conjuga, no protagonista <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r, ao ceticismo <strong>do</strong> olhar que<br />

se quer lúci<strong>do</strong> diante da finitu<strong>de</strong>: “Não <strong>de</strong>via acreditar em nada. Notava-se no olhar culto e<br />

virilmente triste”. Vêem-se, neste homem sábio, as marcas afins <strong>do</strong> puro ceticismo: ironia,<br />

tristeza, força e luci<strong>de</strong>z são os atributos <strong>de</strong> quem olha a vida e a finitu<strong>de</strong> sem crer em nada e<br />

sem <strong>de</strong>sejar crer em nada. Esse homem passará então a <strong>de</strong>screver, ao narra<strong>do</strong>r atento, seu<br />

projeto <strong>de</strong> morte, sua obra <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira.<br />

Conta que está a construir uma casa para nela morrer. Às horas tantas da narrativa, mais<br />

alguns da<strong>do</strong>s se somam à imagem <strong>do</strong> homem experiente: ele conta que já percorrera o mun<strong>do</strong><br />

na juventu<strong>de</strong>, aos vinte e cinco anos, o que o teria leva<strong>do</strong> à conclusão <strong>de</strong> que “não há raças nem<br />

países”, e <strong>de</strong> que o homem carece <strong>de</strong> amor, e por isso se torna repugnante. Uma visão<br />

antropológica, portanto, a <strong>de</strong>sse indivíduo, que se exime <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s culturais e extrai disso um<br />

olhar <strong>de</strong>spaisa<strong>do</strong> para o mun<strong>do</strong>, como se já estivesse fora <strong>de</strong>le, numa posição judicativa além-<br />

humana. Esse sujeito, também transitório, transitoriante, a certa altura, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> reduzir<br />

progressivamente os movimentos pelo mun<strong>do</strong>, aten<strong>do</strong>-se à ilha on<strong>de</strong> se situa o café em que<br />

conversam e, numa andança regressiva, <strong>de</strong>senhará círculos cada vez mais aperta<strong>do</strong>s ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />

um centro que só se revelará ao final <strong>do</strong> conto.<br />

O mesmo caminho <strong>de</strong> volta, rumo ao repouso <strong>de</strong>finitivo, portanto, se perfaz. No conto<br />

<strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r, não são os movimentos verticais que cessam, mas uma elipse cujo vórtice atrai o<br />

indivíduo, centripetamente. Esse percurso final planeja<strong>do</strong> pelo protagonista alveja um centro<br />

situa<strong>do</strong> na outra costa da ilha, on<strong>de</strong> já não há vestígios humanos (no momento da enunciação<br />

4


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

ele ainda freqüenta o hotel e o café, nesse la<strong>do</strong> da ilha em que há ainda alguma sociabilida<strong>de</strong>).<br />

O cenário on<strong>de</strong> preten<strong>de</strong> construir sua casa é a natureza indômita: uma montanha sem árvores<br />

habitada somente por cabras, o mar revolto, a terra arenosa da planície, com pedras e urzes.<br />

Um cenário selvagem, sem nenhum conforto, inóspito, eleito como morada <strong>de</strong>finitiva. O<br />

apagamento <strong>de</strong> to<strong>do</strong> resquício cultural e humano, o retorno ao nada. O enfrentamento da<br />

solidão extrema, prova final <strong>de</strong> auto-superação, confirma o traço <strong>de</strong> virilida<strong>de</strong> capta<strong>do</strong> pelo<br />

narra<strong>do</strong>r naquele olhar triste que já não teria mais nada a per<strong>de</strong>r, tampouco a temer: “bom para<br />

nos sentirmos sós, para saber se ainda existe o orgulho <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.” (I<strong>de</strong>m,140)<br />

A casa que o protagonista está a construir, muito lentamente, é mesmo térrea, tumular.<br />

Após um ano vagan<strong>do</strong> pela paisagem <strong>de</strong>scrita, o sujeito fechar-se-á na casa e circulará pelos<br />

cômo<strong>do</strong>s, num progressivo fechamento das passagens, até que cesse <strong>de</strong>finitivamente to<strong>do</strong><br />

movimento no único quarto não assoalha<strong>do</strong> da casa para, enfim, entregar-se à “terra<br />

profundíssima e escutar o seu húmi<strong>do</strong> sussurro”. (I<strong>de</strong>m,143)<br />

Fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong> conta<br />

Hei<strong>de</strong>gger, em Ser e Tempo, enten<strong>de</strong> que o i<strong>de</strong>al ético <strong>do</strong> homem é tornar-se<br />

autenticamente livre para a morte. Nos contos referi<strong>do</strong>s, bem como na maioria <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais<br />

contos <strong>do</strong>s volumes <strong>de</strong> que foram eles extraí<strong>do</strong>s, os protagonistas são seres <strong>de</strong> exceção,<br />

para<strong>do</strong>xais, pois não coinci<strong>de</strong>m com, antes violam o senso comum. Eis porque, no conto <strong>de</strong><br />

Rosa, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> seu eleva<strong>do</strong> altruísmo, o Tio Man’Antônio começa, a certa altura, a ser<br />

odia<strong>do</strong> pelos próprios trabalha<strong>do</strong>res a quem ele tanto favoreceu:<br />

Não o compreendiam. Não o amavam, seguramente, já que teriam <strong>de</strong> temer sua<br />

oculta pessoa e respeitar seu valimento, ele em paço acastela<strong>do</strong>, sempre majesta<strong>de</strong>. Por<br />

5


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

que, então não se ia embora então, <strong>de</strong> toda vez, o caduco maluco estafermo,<br />

espantalho? Sábio, se<strong>de</strong>ntaria<strong>do</strong>, queria que progredissem e não se per<strong>de</strong>ssem, vigiava-<br />

os, <strong>de</strong> graça ainda administrava-os, <strong>de</strong>les gestor, capataz, ren<strong>de</strong>iro. Serviam-no, ainda e<br />

mesmo assim. Mas, <strong>de</strong>certo, milenar e animalmente, o odiavam. (I<strong>de</strong>m, 80-81)<br />

A autenticida<strong>de</strong> da personagem, advinda sobretu<strong>do</strong> da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> conta,<br />

isto é, <strong>de</strong> envolver-se <strong>de</strong> forma lúdica com as contingências da vida, sem a<strong>de</strong>rir a elas <strong>de</strong><br />

maneira <strong>de</strong>finitiva, é o que o habilita a tomar para si a responsabilida<strong>de</strong> da li<strong>de</strong>rança: ele <strong>do</strong>a<br />

suas terras, mas zela pelo bom aproveitamento <strong>de</strong>sse <strong>do</strong>m. A ação <strong>de</strong> Tio Man’Antônio<br />

<strong>de</strong>screve um ethos estóico: ele confia na virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse discernimento para fazer a escolha certa,<br />

no momento oportuno: “ele era um que sabia abanar a cabeça, que não, que sim.” (I<strong>de</strong>m,76-77)<br />

Não é outra a razão que explica a “adivinhação” <strong>do</strong> bom investimento - ele profetizara a subida<br />

<strong>de</strong> preço <strong>do</strong> ga<strong>do</strong>, ultrapassou pela antevisão a concorrência, enriqueceu fazen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> conta...<br />

Tio Man’Antônio é, em tu<strong>do</strong>, um gran<strong>de</strong> joga<strong>do</strong>r. A consciência <strong>de</strong> que tu<strong>do</strong> (inclusive o<br />

sujeito) é transitório, é o que lhe fundamenta o discernimento e as <strong>de</strong>cisões. É também o que o<br />

<strong>do</strong>ta da simbólica “circunvisão”, o que o coloca sua casa no ponto mais eleva<strong>do</strong> da montanha,<br />

on<strong>de</strong> se fixa no fim da vida, para <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>saparecerem, casa e sujeito, nas cinzas, e<br />

confundirem-se finalmente com a terra. A virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber buscar o bem e repelir corretamente<br />

as coisas <strong>de</strong> somenos se <strong>de</strong>monstra no gesto seu corriqueiro: “mesmo em seu mais costumeiro<br />

gesto - que era o <strong>de</strong> como se largasse tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas mãos, qualquer objeto. Distraí<strong>do</strong>, porém,<br />

acarinhan<strong>do</strong>-as, redimia-as, <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, as coisas comezinhas.” (I<strong>de</strong>m,78) Há nele,<br />

portanto, uma comoção da matéria, que a redime, mas não a coloca <strong>de</strong>ntre as priorida<strong>de</strong>s da<br />

vida. Fazer <strong>de</strong> conta era enfim a sua artimanha <strong>do</strong> bem-viver: “porque fazia ou sofria as coisas,<br />

sem parar, mas não estava, <strong>de</strong>ntro em sua mente, em tu<strong>do</strong> e nada ocupa<strong>do</strong>” (I<strong>de</strong>m,77)<br />

6


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

O autocontrole é o que permite uma a<strong>de</strong>são provisória à contingência, e evita, pela<br />

consciência da transitorieda<strong>de</strong>, os movimentos bruscos da alma, isto é, os ciclos <strong>de</strong> euforia e<br />

<strong>de</strong>pressão a que estamos, constantemente, assujeita<strong>do</strong>s, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, com isso, to<strong>do</strong><br />

discernimento. Daí que os altos e baixos ele percorra pacientemente no lombo <strong>do</strong> burro, entre<br />

píncaros e grotas, mas só fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong> conta, <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>. Man’Antônio é, enfim, o senex<br />

que conserva em si o olhar <strong>do</strong> puer, um olhar maroto <strong>de</strong> quem sabe que a qualquer momento o<br />

jogo po<strong>de</strong> virar, <strong>de</strong>svirar, acabar.<br />

A relativa distância assumida no jogo <strong>do</strong> faz-<strong>de</strong>-conta propicia, também, a resignação<br />

diante <strong>do</strong>s revezes. Por isso Man’Antônio fica sozinho, mas não triste. Também a sua solidão<br />

não busca uma virtu<strong>de</strong> alijada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: ele cumpre os papéis que lhe cabem, o <strong>de</strong> mari<strong>do</strong>, pai<br />

e patrão <strong>de</strong> muitos emprega<strong>do</strong>s. Tal responsabilida<strong>de</strong> sempre esteve prevista na ética estóica,<br />

uma vez que, em posse <strong>de</strong> si mesmo, e em perfeita concordância com a natureza humana, o<br />

estóico <strong>de</strong>sempenha os papéis sociais que lhe competem. Michel Foucault nos explica essa<br />

concepção toman<strong>do</strong> por exemplo Epicteto, no colóquio 14 <strong>do</strong> livro II: “aqueles que souberam<br />

ocupar-se consigo ‘levam uma vida isenta <strong>de</strong> tristeza, <strong>de</strong> temor, <strong>de</strong> perturbação, e observam a<br />

or<strong>de</strong>m das relações naturais e adquiridas: relações <strong>de</strong> filho, <strong>de</strong> pai, <strong>de</strong> irmão, <strong>de</strong> cidadão, <strong>de</strong><br />

esposo, <strong>de</strong> vizinho, <strong>de</strong> parceiro, <strong>de</strong> subordina<strong>do</strong>, <strong>de</strong> chefe.” (apud Foucault, 2004: 242)<br />

O para<strong>do</strong>xo que se coloca através da personagem é o <strong>de</strong> que a autenticida<strong>de</strong> só é<br />

conquistada via fingimento. Eis o que, <strong>de</strong>finitivamente, posiciona um ser como Man’Antônio<br />

não na Filosofia, mas no campo mítico da Literatura. Ele aceita as regras <strong>do</strong> jogo, cumpre os<br />

papéis a ele <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s, mas não se i<strong>de</strong>ntifica, <strong>de</strong>finitivamente, com nenhuma persona<br />

assumida. Como se o seu ser fosse, a um só tempo, presença e ocultamento: “Ele por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong><br />

si mesmo, pon<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> parte, em ambíguos âmbitos e momentos, como se a vida fosse<br />

ocultável; não o conheceriam através <strong>de</strong> figuras.” (ROSA, 1985:75)<br />

7


Os passos em volta<br />

VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

Já Herberto Hel<strong>de</strong>r nos coloca noutro jogo, também alojável no conto: a maiêutica<br />

socrática, isto é, a busca <strong>do</strong> conhecimento pela prospecção que o diálogo reflexivo propicia.<br />

Entretanto (e isso também imita os diálogos platônicos), não há propriamente uma dinâmica<br />

dialógica, mas a condução <strong>de</strong> uma idéia pela personagem que assume um ethos <strong>de</strong><br />

autenticida<strong>de</strong> no tratamento da<strong>do</strong> ao tema, no caso, a vida como preparação para a morte.<br />

Esse protagonista é também um ser <strong>de</strong> exceção, na medida em que seu discurso se<br />

constrói sobre para<strong>do</strong>xos: ele é alguém que viajou muito para se tornar indiferente às<br />

varieda<strong>de</strong>s culturais; <strong>de</strong>dica-se a construir uma casa para nela morrer; mas sobretu<strong>do</strong> é<br />

para<strong>do</strong>xal que cultue a morte na ausência <strong>do</strong>s mitos <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção. Com agu<strong>de</strong>za e ironia, esse<br />

homem se diz religioso, embora cético a valer:<br />

- Sou, como direi?, sou um homem religioso.<br />

- No entanto...<br />

- Claro, não acredito em nada disso... nessas coisas... imortalida<strong>de</strong> da alma...Deus, o<br />

barroco Deus teológico... o bem comezinho, o mal comezinho... Detestável, tu<strong>do</strong> isso,<br />

as crenças e virtu<strong>de</strong>s da baixa religiosida<strong>de</strong>. (HELDER, 1994: 141)<br />

O trecho convida a inferir um conceito <strong>de</strong> alta religiosida<strong>de</strong> - o pratica<strong>do</strong> pelo<br />

protagonista - que torna o sujeito arredio não só aos cre<strong>do</strong>s e rituais instituí<strong>do</strong>s, mas cai no<br />

contrasenso <strong>de</strong> eximi-lo da crença na imortalida<strong>de</strong> da alma. Uma religiosida<strong>de</strong>, portanto, que se<br />

afirma em face da finitu<strong>de</strong>, e se sustenta como ritual gratuito da vida, sem negociações com o<br />

transcen<strong>de</strong>nte, sem prêmios ou castigos. Trata-se, pela gesta <strong>de</strong>sse “homem antigo”, <strong>de</strong> um<br />

resgate etimológico da religiosida<strong>de</strong>, da re-ligação <strong>do</strong> homem à terra, puro retorno e<br />

8


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

dissolução. Morte absoluta, como o narra<strong>do</strong>r prevê que seja o futuro <strong>de</strong> seu amigo: “Este<br />

homem morreria da sua morte, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la”. (I<strong>de</strong>m,140)<br />

Curiosa é a localização da casa tumular que constrói, ao pé da montanha, a qual<br />

explicitamente ele adjetiva como “impraticável”. Não há, para esse sujeito, sequer a pretensão<br />

da circunvisão, mas tão-somente ele procura o repouso da centralida<strong>de</strong>, seu maior galardão.<br />

Essa busca <strong>de</strong> centramento é bastante conhecida pelo discurso psicanalítico pratica<strong>do</strong> ao longo<br />

<strong>do</strong> século XX. Se, a partir <strong>de</strong> Freud, “o eu não se comporta mais como senhor em sua própria<br />

casa”, pois se encontra dividi<strong>do</strong> entre a consciência moral e os <strong>de</strong>sejos que se alojam no<br />

inconsciente, é com a Psicologia Analítica <strong>de</strong> Jung que a centralida<strong>de</strong> se torna curativa, na<br />

medida em que opera a integração psíquica <strong>do</strong> sujeito. É o chama<strong>do</strong> self ou centro alquímico da<br />

personalida<strong>de</strong> humana, ponto em que os opostos se harmonizam e também on<strong>de</strong> o sujeito<br />

experiencia o sagra<strong>do</strong> - não o sagra<strong>do</strong> institucionaliza<strong>do</strong>, mas talvez o que se conheça no que,<br />

no discurso <strong>do</strong> protagonista, se adivinha como “alta religiosida<strong>de</strong>”. Há entretanto que se<br />

ressaltar que esse ponto <strong>de</strong> centralida<strong>de</strong> não correspon<strong>de</strong> ao centro da consciência; ele assume<br />

uma posição central com relação ao to<strong>do</strong> da psique, o que inclui e se inscreve no vasto <strong>do</strong>mínio<br />

<strong>do</strong> inconsciente.<br />

Quan<strong>do</strong> o protagonista <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r afirma estar construin<strong>do</strong> uma casa na face <strong>de</strong>sabitada<br />

e selvagem da ilha, há aí uma alusão a esse la<strong>do</strong> inconsciente on<strong>de</strong> <strong>de</strong>verá fixar esse novo<br />

centro, on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m as forças instintivas da psique. Não à-toa, os últimos episódios <strong>de</strong> sua<br />

vida serão uma provação para o orgulho <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, ou seja, um <strong>de</strong>safio ao ego, centro claro da<br />

consciência ou, para a Psicologia Analítica, centro ilusório da vida - aquilo que no homem<br />

conhece e teme a finitu<strong>de</strong>.<br />

Na casa rasa, a arquitetura não se dispõe aos movimentos psíquicos da existência, com<br />

suas instabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> altos e baixos. Não há porões nem sótãos - mas puro nivelamento, o que<br />

sugere o apagamento da memória, das projeções psíquicas, <strong>do</strong>s recalques que porventura se<br />

9


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

ocultariam em caves, alçapões esqueci<strong>do</strong>s. Também no conto <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r não há o fogo<br />

transforma<strong>do</strong>r, mas a terra como retorno, após o convívio com a natureza indômita da ilha<br />

<strong>de</strong>sabitada.<br />

É também Foucault que nos ilumina o lega<strong>do</strong> estóico que o protagonista <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r<br />

parece recuperar. Ao analisar o prefácio às Questões naturalis, <strong>de</strong> Sêneca, o filósofo explica a<br />

importância, para o sênex, <strong>de</strong> ocupar-se <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> si. Para tanto, Foucault <strong>de</strong>staca, no texto<br />

<strong>de</strong> Sêneca, a estratégia <strong>de</strong> percorrer o mun<strong>do</strong>, estudar a natureza, como etapa necessária na<br />

preparação <strong>do</strong> sujeito para a morte. Não a cultura ou a crônica <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res convém mais<br />

ao homem velho, mas a observação da natureza, para que ele tenha a real dimensão da sua<br />

insignificância. Essa é a “visão <strong>do</strong> alto” que está acessível ao homem sábio, segun<strong>do</strong> Sêneca:<br />

Uma vez, diz ele, que tenhamos percorri<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> inteiro (...) uma vez que<br />

tenhamos feito o percurso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em seu círculo geral, olhan<strong>do</strong> <strong>do</strong> alto o círculo das<br />

terras (“terrarum orbem super ne <strong>de</strong>spiciens”), é neste momento que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sprezar<br />

to<strong>do</strong>s os falsos esplen<strong>do</strong>res forja<strong>do</strong>s pelos homens. (Foucault, 2004:337ss)<br />

E seguin<strong>do</strong> o comentário <strong>de</strong> Michel Foucault sobre a idéia acima:<br />

E é isto o que nos permite, uma vez que tenhamos chega<strong>do</strong> a este ponto, não<br />

somente <strong>de</strong>scartar, <strong>de</strong>squalificar to<strong>do</strong>s os falsos valores, to<strong>do</strong> o falso comércio no<br />

interior <strong>do</strong> qual estávamos presos, mas também tomar a medida <strong>do</strong> que somos<br />

efetivamente sobre a terra, a medida <strong>de</strong> nossa existência - <strong>de</strong>ssa existência que é apenas<br />

um ponto, um ponto no espaço e um ponto no tempo -, <strong>de</strong> nossa pequenez. (...) “É num<br />

ponto”, diz ele, e nada além <strong>de</strong> um ponto, “que navegais”. Acreditais ter percorri<strong>do</strong><br />

imensos espaços, ficastes porém num ponto. (Ibi<strong>de</strong>m)<br />

10


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

Cabe ainda ressaltar, sobre Herberto Hel<strong>de</strong>r, a importância dada à corporeida<strong>de</strong> - um<br />

traço fundamental <strong>do</strong> poeta a que os contos <strong>de</strong> Os Passos em Volta não são, absolutamente,<br />

indiferentes. Essa ligação com a terra, sem transcendência, a terra que o acolhe e <strong>de</strong>vora, a<br />

construção da casa como abrigo <strong>do</strong> corpo que há <strong>de</strong> se <strong>de</strong>compor servem, no conto <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r,<br />

não como condução a um outro esta<strong>do</strong>, mas como matéria que inspira toda uma vida<br />

medidativa. A gesta simbólica <strong>de</strong>sse senex compõe uma ascética cuja finalida<strong>de</strong> é a <strong>de</strong> afastar-<br />

se da futilida<strong>de</strong> que, segun<strong>do</strong> o protagonista, “é o único peca<strong>do</strong> <strong>do</strong> espírito” (HELDER, 1994<br />

141). O espírito religioso que a si mesmo se atribui não é outra coisa senão a luci<strong>de</strong>z com que<br />

vive seus instantes, liberto <strong>de</strong> toda e qualquer ilusão. Esse homem antigo <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r, por vezes<br />

nos lembra o Zaratustra <strong>de</strong> Nietzsche, outro ancião que comunga <strong>de</strong>ssa, por assim dizer,<br />

religiosida<strong>de</strong> terrena: O meu Eu ensinou-me um novo orgulho que eu ensino aos homens: não<br />

ocultar a cabeça nas nuvens celestes, mas levá-la <strong>de</strong>scoberta; sustentar erguida uma cabeça<br />

terrestre que creia no senti<strong>do</strong> da terra. (NIETZSCHE, sd: 24)<br />

Os <strong>de</strong>vaneios <strong>do</strong> repouso<br />

Faz-se necessário, agora, posicionar esses seres <strong>de</strong> exceção no universo <strong>de</strong> valores que<br />

cada obra sustenta, nessa busca <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong> que tanto inspirou a arte e a filosofia <strong>do</strong>s anos<br />

sessenta.<br />

Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> <strong>do</strong>is volumes <strong>de</strong> contos que, apesar <strong>de</strong> manterem sua<br />

autonomia, inserem-se num to<strong>do</strong> orgânico que harmoniza personagens, linguagens e tons. Em<br />

ambos, os contos são <strong>de</strong>stacáveis, mas a soma das unida<strong>de</strong>s compõe um universo <strong>de</strong> exceção,<br />

11


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

um mun<strong>do</strong> formal e semanticamente diferencia<strong>do</strong> daquele em que vivemos em nosso dia-a-dia.<br />

As Primeiras Estórias, <strong>de</strong> que “Nada e a nossa condição” faz parte, narram as reminiscências<br />

da Criança, como um ser recém-chega<strong>do</strong> <strong>de</strong> outro mun<strong>do</strong>. Essa Criança, o Menino <strong>de</strong><br />

Guimarães Rosa, tem <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a viver, isto é, conhecer a angústia da finitu<strong>de</strong>. Daí que o<br />

primeiro conto, intitula<strong>do</strong> “As margens da alegria”, narre a iminência da morte da mãe, que<br />

angustia e arranca esse menino, aos poucos, <strong>de</strong> sua infância. As primeiras estórias conterão um<br />

caráter <strong>de</strong> exemplarida<strong>de</strong> na formação <strong>de</strong> valores e comportamentos, e nelas é comum<br />

encontrarmos seres que se posicionam nas margens da vida, como o velho (ou senex) e o<br />

menino (ou puer), assim como anjos e seres da escuridão. <strong>São</strong> contos em que Rosa se vale <strong>de</strong><br />

um olhar infantil, que lhe é muito caro, para o mun<strong>do</strong>, e cuja marca fundamental é a<br />

credulida<strong>de</strong> e a esperança <strong>de</strong> regeneração, sobretu<strong>do</strong> pela contemplação da Beleza que habita<br />

os cimos da existência. Para chegar a essa elevação, não faltam histórias exemplares,<br />

verda<strong>de</strong>iras parábolas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sapego, como é o caso <strong>de</strong> contos antológicos como “O Espelho” e<br />

“A terceira margem <strong>do</strong> rio”.<br />

Mas fica, <strong>do</strong>s contos <strong>de</strong> Rosa, entre as margens da alegria - isto é, o ingresso na vida<br />

adulta - e os altos e baixos em que transitamos nessa existência, uma luz perene, pura<br />

substância, que resiste ao fim <strong>do</strong> jogo, <strong>do</strong> faz-<strong>de</strong>-conta que resume as contingência <strong>do</strong> viver.<br />

Afinal, Tio Man’Antônio sobrevive à morte porque se ficcionaliza (não à-toa é compara<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da narrativa, aos reis e príncipes <strong>do</strong>s contos <strong>de</strong> fadas).<br />

Já em Os Passos em Volta, <strong>de</strong> Herberto Hel<strong>de</strong>r, temos uma reunião <strong>de</strong> contos que<br />

<strong>de</strong>screvem, também com relativa autonomia, uma viagem a paisagens inóspitas, on<strong>de</strong> um eu -<br />

comumente um poeta - transita clan<strong>de</strong>stino, sem dinheiro e sem abrigo por cida<strong>de</strong>s estrangeiras<br />

cujos idiomas e valores lhe são estranhos e indiferentes. Ali também encontramos histórias e<br />

seres <strong>de</strong> exceção, sempre <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> uma experiência <strong>de</strong> <strong>de</strong>spaisamento que lança, aos<br />

lugares e convenções, um olhar inaugural, o olhar <strong>do</strong> outsi<strong>de</strong>r, também bastante comum à<br />

12


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

rebeldia <strong>do</strong>s anos sessenta. Esse sujeito, ainda jovem, <strong>de</strong>ambula no mun<strong>do</strong>, mas com o olhar<br />

sempre atento à sua interiorida<strong>de</strong> enquanto atravessa povos e países. Tal andança encerra-se no<br />

último conto, sugestivamente intitula<strong>do</strong> “Trezentos e sessenta graus”, quan<strong>do</strong> regressa à casa<br />

paterna, após as experiências que vivera nos limites da loucura.<br />

No conto “O quarto”, Hel<strong>de</strong>r lança mão, <strong>de</strong> forma muito sutil, <strong>de</strong> um procedimento<br />

comum a outros contos que violam a lógica temporal. O mais notório caso <strong>de</strong>ssa violação<br />

ocorre em Teorema, talvez o mais visita<strong>do</strong> pela crítica. Ali personagens <strong>do</strong> século XIV<br />

contracenam num cenário que reúne índices espaciais anacrônicos, justapon<strong>do</strong> a Ida<strong>de</strong> Média à<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> pós-industrial.<br />

Em “O quarto”, as duas vozes narrativas, se bem observadas, não passam <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>de</strong> uma única personagem que se divi<strong>de</strong> entre o jovem viajante da jornada em<br />

volta e o ancião que ele será, quan<strong>do</strong> já tiver regressa<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua andança, para constatar que não<br />

há raças nem países, e que já não precisa que o amem pelas conquistas ilusórias da vida. Nesse<br />

conto também se abole a linha <strong>do</strong> tempo: passa<strong>do</strong> e futuro se anulam pelo encontro marca<strong>do</strong><br />

naquele café da simbólica ilha, os solitários início e fim da jornada humana.<br />

Pois na conversa que o jovem e o ancião entabulam, e que o conto transcreve, in media<br />

res, não há propriamente um jogo <strong>de</strong> perguntas e respostas <strong>de</strong> vozes autônomas, mas o<br />

encontro <strong>de</strong> <strong>do</strong>is esta<strong>do</strong>s diferentes <strong>de</strong> consciência com relação à morte: enquanto o jovem<br />

alu<strong>de</strong> a ela, o ancião narra a intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem já trabalha para o seu advento, num plano<br />

cuida<strong>do</strong>samente arquiteta<strong>do</strong> para recebê-la, na imagem precisa da casa que se constrói como<br />

morada <strong>de</strong>finitiva. Esse ancião, no conto <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r, é a ficcionalização <strong>do</strong> eu-narra<strong>do</strong>r em vida;<br />

uma hipótese imaginativa, um outro teorema. Pois enquanto ele trabalha no nível da ação -<br />

uma ação exemplar - o jovem é capaz, apenas ou ainda, <strong>de</strong> conceber a obra no nível <strong>do</strong><br />

discurso: “- Talvez creia - disse eu - que vida e morte se abram uma para a outra, se alimentem<br />

13


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

mutuamente. Que seja cada uma <strong>de</strong>las uma espécie <strong>de</strong> duplo da outra. Se animem e, por assim<br />

dizer, se justifiquem e signifiquem entre si.” (I<strong>de</strong>m, 141)<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma antecipação discursiva <strong>do</strong> que para o ancião já se teria transubstancia<strong>do</strong><br />

eticamente, isto é, no nível prático da ação. Daí a indulgência e a irônica concessão <strong>do</strong> gesto<br />

com que recebe o esforço explicativo <strong>de</strong> seu interlocutor. Entretanto, não se po<strong>de</strong> ignorar a<br />

valida<strong>de</strong> e coerência <strong>de</strong>ssa formulação, em absoluto repudiada pelo senex na frase reticente -<br />

Talvez seja isso...( I<strong>de</strong>m,141)<br />

A diferença temporal que os separa, como <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>de</strong> um mesmo indivíduo, é<br />

afinal o que valida, no texto, a coerência <strong>de</strong>ssa formulação. Noutras palavras, vida e morte se<br />

complementam, se dinamizam e significam no diálogo que se estabelece, constantemente, entre<br />

o jovem e o velho que há em cada um. Nesse senti<strong>do</strong>, o conto <strong>de</strong> Hel<strong>de</strong>r é também, à sua<br />

maneira, um conto metafísico. Na anulação da temporalida<strong>de</strong> que separaria as fases da<br />

existência, o conto perfaz a sua escrita <strong>de</strong> caracol - no processo elíptico <strong>de</strong> perguntas e<br />

respostas entre os interlocutores, e <strong>de</strong>sses para a reflexão <strong>do</strong> leitor - em cujo centro se instaura<br />

uma imagem eloqüente da vida como casa em construção, projeto que se <strong>de</strong>ve aperfeiçoar aos<br />

limites da finitu<strong>de</strong>.<br />

Bibliografia:<br />

CORRÊA, José <strong>de</strong> Anchieta (2008), Morte, <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, Ed. Globo, 1ª ed.<br />

CORTÁZAR, Julio (2006), Valise <strong>de</strong> Cronópio, trad. Davi Arriguci Jr. e Alexandre Barbosa.<br />

<strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, Ed. Perspectiva [col. Debates].<br />

FOUCAULT, Michel (2204), A Hermenêutica <strong>do</strong> Sujeito, trad. Márcio Alves da Fonseca e<br />

Salma Tannus Muchail, <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, Martins Fontes, 1ª ed.<br />

HELDER, Herberto (1994), Os Passos em Volta, Lisboa, Assírio e Alvim, 6ª ed. [1963].<br />

14


VI Congresso Nacional Associação Portuguesa <strong>de</strong> Literatura Comparada /<br />

X Colóquio <strong>de</strong> Outono Comemorativo das Vanguardas – <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong> <strong>Minho</strong> 2009/2010<br />

JACOTO, Lílian (1996), Os Passos em Volta: o eu em metamorfose no espaço literário.<br />

Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> apresentada à Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas<br />

da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>.<br />

NIETZSCHE, Friedrich W. (sd), Assim falava Zaratustra, <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, Hemus Editora.<br />

ROSA, João Guimarães (1985), Primeiras Estórias, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 13ª ed.<br />

[1962].<br />

15

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!