Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional
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VI, à maneira <strong>de</strong> algumas que ainda hoje (creio eu) se po<strong>de</strong>m ver no bairro <strong>de</strong> São Cristóvão, com as suas grossas colunas na<br />
frente. Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser substituído, e já tinha encomendado o risco a um pedreiro <strong>de</strong> fama.<br />
Ah! então sim, então é que Virgília chegaria a ver o que era um velho <strong>de</strong> gosto.<br />
Falava, como se po<strong>de</strong> supor, lentamente e a custo, intervalado <strong>de</strong> uma arfagem incômoda para ele e para os outros. De<br />
quando em quando, vinha um acesso <strong>de</strong> tosse; curvo, gemendo, levava o lenço à boca, e investigava-o; passado o acesso,<br />
tornava ao plano da casa, que <strong>de</strong>via ter tais e tais quartos, um terraço, cocheira, um primor.<br />
CAPÍTULO 89<br />
"In Extremis"<br />
- A.manhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse-me ela uma vez. Coitado! não tem ninguém...<br />
Viegas cafra na cama, <strong>de</strong>finitivamente; a filha, casada, adoecera justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia.<br />
Virgília ia lá <strong>de</strong> quando em quando. Eu aproveitei a circunstância para passar todo aquele dia ao pé <strong>de</strong>la. Eram duas horas da<br />
tar<strong>de</strong> quando cheguei. O Viegas tossia com tal força que me fazia ar<strong>de</strong>r o peito; no intervalo dos acessos <strong>de</strong>batia o preço <strong>de</strong><br />
uma casa, com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem<br />
receia per<strong>de</strong>r o trem da estrada <strong>de</strong> ferro, mas Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, <strong>de</strong>pois mais dois,<br />
<strong>de</strong>pois mais três; enfim teve um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito,<br />
arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos.<br />
- Nunca! gemeu o enfermo.<br />
Mandou buscar um maço <strong>de</strong> papéis à escrivaninha; não tendo forças para tirar a fita <strong>de</strong> borracha que prendia os papéis,<br />
pediu-me que os <strong>de</strong>slaçasse: fi-lo. Eram as contas das <strong>de</strong>spesas com a construção da casa: contas <strong>de</strong> pedreiro, <strong>de</strong> carpinteiro,<br />
<strong>de</strong> pintor; contas do papel da sala <strong>de</strong> visitas, da sala <strong>de</strong> jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens; custo do<br />
terreno. Ele abria-as, uma por uma, com a mão trêmula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as.<br />
- Veja; mil e duzentos, papel <strong>de</strong> mil e duzentos a peça. Dobradiças francesas... Veja, é <strong>de</strong> graça, concluiu ele <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
lida a última conta.<br />
- Pois bem... mas...<br />
- Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos juros...<br />
Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas <strong>de</strong> um pulmão <strong>de</strong>sfeito. Nas órbitas<br />
fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol <strong>de</strong>senhava-se a<br />
estrutura óssea do corpo, pontudo em dois lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia apenas<br />
a caveira <strong>de</strong> um rosto sem expressão; uma carapuça <strong>de</strong> algodão branco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo.<br />
- Então? disse o sujeito magro.<br />
Fiz-lhe sinal para que não insistisse, e ele calou-se por alguns instantes. O doente ficou a olhar para o teto, calado, a arfar<br />
muito: Virgília empali<strong>de</strong>ceu, levantou-se, foi até à janela. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar <strong>de</strong> outras coisas. O<br />
sujeito magro contou uma anedota, e tomou a tratar da casa, alteando a proposta.<br />
- Trinta e oito contos, disse ele.<br />
- Am?... gemeu o enfermo.<br />
O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se<br />
sentia alguma coisa, se queria tomar um cálice <strong>de</strong> vinho.<br />
- Não... não... quar... quaren... quar... quar...<br />
Teve um acesso <strong>de</strong> tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele, com gran<strong>de</strong> consternação do sujeito magro, que me<br />
confessou <strong>de</strong>pois a disposição em que estava <strong>de</strong> oferecer os quarenta contos; mas era tar<strong>de</strong>.<br />
CAPÍTULO 90<br />
O Velho Colóquio <strong>de</strong> Adão e Caim<br />
E nada. Nenhuma lembrança testamentária, uma pastilha que fosse, com que do todo em todo não parecesse ingrato ou<br />
esquecido. Nada. Virgília tragou raivosa esse malogro, e disse-mo com certa cautela, não pela coisa em si, senão porque<br />
entendia com o filho, <strong>de</strong> quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não <strong>de</strong>via pensar mais em<br />
semelhante negócio. O melhor <strong>de</strong> tudo era esquecer o <strong>de</strong>funto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar <strong>de</strong> coisas alegres; o<br />
nosso filho por exemplo...<br />
Lá me escapou a <strong>de</strong>cifração do mistério, esse doce mistério <strong>de</strong> algumas semanas antes, quando Virgília me pareceu um<br />
pouco diferente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preocupação exclusiva daquele tempo. Olhos<br />
do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflitos políticos, nem revoluções, nem<br />
terromotos, nem nada. Eu só pensava naquele embrião anônimo, <strong>de</strong> obscura paternida<strong>de</strong>, e uma voz secreta me dizia: é teu<br />
filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finível, e não sei que assomos <strong>de</strong> orgulho.<br />
Sentia-me homem.<br />
O melhor é que conversávamos os dois, o embrião e eu, falávamos <strong>de</strong> coisas presentes e futuras. O maroto amava-me,<br />
era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãozinhas gordas, ou então traçava a beca <strong>de</strong> bacharel,<br />
porque ele havia <strong>de</strong> ser bacharel, e fazia um discurso na Câmara dos Deputados. E o pai a ouvi-lo <strong>de</strong> uma tribuna, com os<br />
olhos rasos <strong>de</strong> lágrimas. De bacharel passava outra vez à escola, pequenino, lousa e livros <strong>de</strong>baixo do braço, ou então caia no<br />
berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no espírito uma ida<strong>de</strong>, uma atitu<strong>de</strong>: esse embrião tinha a meus<br />
olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava, ele escrevia, ele valsava, ele era o interminável nos limites <strong>de</strong> um quarto <strong>de</strong><br />
hora, -baby e <strong>de</strong>putado, colegial e pintalegrete. As vezes, ao pé <strong>de</strong> Virgília, esquecia-me <strong>de</strong>la e <strong>de</strong> tudo; Virgília sacudia-me,<br />
reprochava-me o silêncio; dizia que eu já lhe não queria nada. A verda<strong>de</strong> é que estava em diálogo com o embrião; era o velho<br />
colóquio <strong>de</strong> Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério.<br />
CAPÍTULO 91<br />
Uma Carta Extraordinária