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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a ...

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<strong>Fazendo</strong> <strong>Gênero</strong> 8 - <strong>Corpo</strong>, <strong>Violência</strong> e <strong>Po<strong>de</strong>r</strong><br />

<strong>Florianópolis</strong>, <strong>de</strong> <strong>25</strong> a 28 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008<br />

Sob camadas <strong>de</strong> preconceitos: a travesti na literatura brasileira contemporânea<br />

A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Calhman <strong>de</strong> Miranda (UnB)<br />

Palavras-chave: travesti, representação, literatura<br />

ST 61 - Sexualida<strong>de</strong>s, corporalida<strong>de</strong> e transgêneros: narrativas fora da or<strong>de</strong>m<br />

A representação literária <strong>de</strong> grupos minoritários diz respeito não somente à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inclusão<br />

física e simbólica, mas também à própria construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social. Este trabalho analisa a<br />

imagem <strong>de</strong> travestis na literatura brasileira contemporânea, especialmente em quatro contos: “Dia dos<br />

namorados”, <strong>de</strong> Rubem Fonseca, “Mulheres trabalhando”, <strong>de</strong> Marcelino Freire, “Ruiva”, <strong>de</strong> Júlio César<br />

Monteiro Martins, e “Dama da noite”, <strong>de</strong> Caio Fernando Abreu. Como qualquer obra literária, as<br />

narrativas supracitadas po<strong>de</strong>m atuar tanto no fomento da discriminação por meio <strong>de</strong> imagens<br />

estereotipadas, quanto na diminuição do preconceito, mediante a <strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong>ssas imagens.<br />

A<strong>de</strong>mais, a representação <strong>de</strong> minorias nos meios <strong>de</strong> comunicação atua como uma sinédoque, on<strong>de</strong> uma<br />

personagem representa toda uma comunida<strong>de</strong>, que pa<strong>de</strong>ce, assim, do fardo da representação. 1<br />

Adoto o conceito <strong>de</strong> travesti <strong>de</strong>senvolvido por Marcos Bene<strong>de</strong>tti em Toda feita, por ser o que mais<br />

se assemelha ao contexto <strong>de</strong> vida das personagens aqui estudadas. Segundo o autor, as travestis “são<br />

aquelas que promovem modificações nas formas do seu corpo visando a <strong>de</strong>ixá-lo o mais parecido<br />

possível com o das mulheres; vestem-se e vivem cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero<br />

feminino sem, no entanto, <strong>de</strong>sejar explicitamente recorrer à cirurgia <strong>de</strong> transgenitalização para retirar o<br />

pênis e construir uma vagina”. 2 As personagens dos contos supracitados não se manifestam em relação<br />

à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma cirurgia, mas se i<strong>de</strong>ntificam como mulheres. Todavia, há uma inegável<br />

sobreposição das categorias, como adverte Marcos Bene<strong>de</strong>tti, que será importante na medida em que<br />

permite que as travestis sejam estudadas também por meio das teorias sobre transexualida<strong>de</strong>.<br />

Os estudos <strong>de</strong> gênero fornecem a fundamentação teórica mais a<strong>de</strong>quada para se realizar a análise da<br />

representação das travestis, uma vez que essas subvertem as normas <strong>de</strong> gênero e, com isso, <strong>de</strong>nunciam<br />

sua arbitrarieda<strong>de</strong> e sua construção cultural. Em Problemas <strong>de</strong> gênero, Judith Butler exemplifica sua<br />

teoria da performativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero valendo-se do exemplo da performance do drag:<br />

O travesti também revela a distinção dos aspectos da experiência do gênero que são falsamente<br />

naturalizados como uma unida<strong>de</strong> através da ficção reguladora da coerência heterossexual. Ao<br />

imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim<br />

como sua contingência. 3


Berenice Bento, em A reinvenção do corpo, <strong>de</strong>sconstrói a categoria <strong>de</strong> “transexual verda<strong>de</strong>iro” e o<br />

“dispositivo da transexualida<strong>de</strong>” como tentativas <strong>de</strong> controlar, patologizar e segregar aqueles que<br />

vivenciam o gênero <strong>de</strong> modo diverso do convencional. As experiências <strong>de</strong> transexualida<strong>de</strong>, ao<br />

contrário, são múltiplas e variadas: “Não existe um processo específico para a constituição <strong>de</strong> gênero<br />

para os/as transexuais. O gênero só existe na prática, na experiência e sua realização se dá mediante<br />

reiterações cujos conteúdos são interpretações sobre o masculino e o feminino, em um jogo, muitas<br />

vezes contraditório e escorregadio, estabelecido com as normas <strong>de</strong> gênero.” 4 Essa diversida<strong>de</strong> é <strong>de</strong><br />

fundamental relevância para essa pesquisa, uma vez que os estereótipos encontrados da representação<br />

literária são justamente generalizações <strong>de</strong> imagens predominantemente negativas.<br />

“Dia dos namorados”, <strong>de</strong> Rubem Fonseca, 5 <strong>de</strong>ixa clara a imagem <strong>de</strong> transgênero que <strong>de</strong>screve,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira linha do conto: “Se há uma coisa que eu não engulo é chantagista”, referindo-se a<br />

Viveca, a travesti. Só por isso, explica o narrador apelidado Mandrake, resolve aten<strong>de</strong>r ao pedido <strong>de</strong><br />

um colega advogado, concordando em resolver um problema urgente <strong>de</strong> um cliente. Se fosse outro<br />

assunto que não chantagem, Mandrake não sairia <strong>de</strong> casa naquela noite <strong>de</strong> sábado, <strong>de</strong>ixando a “princesa<br />

loura” que está ao seu lado. Maria Amélia, uma jovem rica e bela, fará contraponto a Viveca ao longo<br />

do conto, personificando a verda<strong>de</strong>ira mulher, enquanto a segunda incorpora a falsificação enganosa.<br />

Vale lembrar que não existe um verda<strong>de</strong>iro gênero como alega a i<strong>de</strong>ologia dominante, pois a cópia<br />

realizada pela transexual não se refere a uma origem; o homem e a mulher “<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>” também são<br />

construídos por meio da reiteração <strong>de</strong> gestos e atos que compõem o gênero.<br />

Voltando ao conto <strong>de</strong> Rubem Fonseca, o narrador, informado pelo seu colega, proce<strong>de</strong> a inteirar o<br />

leitor <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>talhes sórdidos da história. J.J. Santos, um renomado banqueiro, sai à francesa <strong>de</strong><br />

um casamento ao qual compareceu <strong>de</strong>sacompanhado <strong>de</strong> sua esposa. Dirigindo ao longo da praia,<br />

encanta-se com a beleza <strong>de</strong> Viveca, parada na calçada, e a convida para um programa. Chegando no<br />

hotel tem, supostamente, uma surpresa: Viveca é um homem vestido <strong>de</strong> mulher. Quando tenta encerrar<br />

o programa, percebe que sua carteira está sem dinheiro e a confronta. Aos gritos, Viveca golpeia seu<br />

braço com uma gilete e diz que ele sabia que ela uma travesti. Para não cometer suicídio, Viveca exige<br />

<strong>de</strong>z mil cruzeiros do cliente. Quando o narrador chega, os dois estão <strong>de</strong>ntro do carro, parados na praia.<br />

Mandrake tira J.J. do carro, entra e arranca para a <strong>de</strong>legacia mais próxima. Chegando lá, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

bater e apanhar, Viveca nega que tenha roubado ou chantageado J.J., e explica que só queria ser paga<br />

pelos seus serviços. Mas o narrador puxa com força os seus cabelos, arrancando a peruca <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saem<br />

as quatro notas <strong>de</strong> quinhentos cruzeiros que tinham sumido da carteira <strong>de</strong> J.J. Ao pren<strong>de</strong>rem Viveca, os<br />

policiais viram antigas marcas nos braços, sinal <strong>de</strong> que situações semelhantes já haviam ocorrido antes.<br />

2<br />

2


O que o narrador chama <strong>de</strong> “aquele macete”, na verda<strong>de</strong>, quando contraposto à realida<strong>de</strong><br />

enfrentada pelas travestis que se prostituem, é uma tentativa <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>fesa, na explicação <strong>de</strong> Marcos<br />

Bene<strong>de</strong>tti. De acordo com a sua pesquisa, há mais ou menos 20 anos as travestis levadas ao Presídio<br />

Central <strong>de</strong> Porto Alegre eram humilhadas, espancadas e estupradas. 6 Para evitar tamanho sofrimento,<br />

no momento da apreensão elas cortavam os braços para que fossem levadas ao hospital no lugar do<br />

presídio. Mesmo se referindo ao estudo <strong>de</strong> caso realizado em Porto Alegre, a diferença entre o golpe<br />

sujo <strong>de</strong>scrito no conto <strong>de</strong> Rubem Fonseca e uma estratégia <strong>de</strong> sobrevivência relatada pelo antropólogo<br />

já diz muito da visão preconceituosa do conto. Um procedimento extraído possivelmente <strong>de</strong> fatos reais<br />

é manipulado <strong>de</strong> forma enganosa ao imputar um mal-caráter à travesti.<br />

Apesar <strong>de</strong> retratar o narrador como um homem inescrupuloso, grosseiro e ganancioso, o que po<strong>de</strong>ria<br />

levar o leitor a questionar o seu relato, a sua versão dos fatos é consi<strong>de</strong>rada única e verda<strong>de</strong>ira. Não se<br />

tem acesso à história <strong>de</strong> Viveca, mesmo a sua voz quase não é ouvida. Nas raras ocasiões em que fala,<br />

é para mentir, chantagear, ou se fazer <strong>de</strong> vítima. Suas mentiras são <strong>de</strong>smascaradas, sua chantagem<br />

fracassa e ela tem o fim que merece: atrás das gra<strong>de</strong>s. Há, no entanto, um momento em que Viveca<br />

tenta se explicar. Percebe-se, na mistura entre verda<strong>de</strong> e mentira e no tom <strong>de</strong> chantagem emocional<br />

repleto <strong>de</strong> contradições, uma acusação <strong>de</strong>terminista, fazendo recair sobre ela a responsabilida<strong>de</strong> pela<br />

violência sofrida:<br />

Eu peço <strong>de</strong>sculpas a todos os senhores policiais presentes, principalmente ao moço que feri e<br />

me arrependo tanto. Eu sou homem sim, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança minha mãe me vestia <strong>de</strong> menina e<br />

eu sempre gostei <strong>de</strong> brincar com bonecas. Eu sou homem porque me chamo Jorge, só por isso,<br />

minha alma é <strong>de</strong> mulher e eu sofro por não ser mulher e po<strong>de</strong>r ter filhos, como as outras. Sou<br />

uma infeliz. Esse homem do Merce<strong>de</strong>s me apanhou na praia e disse, vem comigo menino; e eu<br />

respondi, eu não sou menino, sou mulher; e ele disse, mulher nada, entra logo, eu hoje estou a<br />

fim <strong>de</strong> outra coisa. Disse que me dava quinhentos cruzeiros e eu tenho a minha mãe e minha<br />

avó para sustentar e fui. 7<br />

O conto <strong>de</strong> Marcelino Freire, “Mulheres trabalhando”, também é narrado do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um<br />

homem; neste caso, o próprio cliente. Toda a narrativa ilustra a sua busca por Beth Blanchet, por quem<br />

se diz apaixonado. Fica claro que sua perseguição importuna a travesti, que continuamente foge <strong>de</strong>le.<br />

Também nesse conto ela é <strong>de</strong>scrita como uma mulher extremamente bonita e sensual, sendo que aqui<br />

ela é explícita e confessadamente o objeto do <strong>de</strong>sejo do narrador. Ele conhece bem o local por on<strong>de</strong><br />

andam as travestis que se prostituem e não tem a ilusão <strong>de</strong> estar com uma mulher. Pelo contrário,<br />

muitas vezes ele a compara com outras mulheres, mas elas nunca estão ao alcance <strong>de</strong> sua amada Beth<br />

Blanchet.<br />

Neste conto, o conflito causado por <strong>de</strong>sejos sexuais diferentes do <strong>de</strong>terminado pela matriz<br />

heterossexual é colocado aberta e honestamente. O narrador, apesar da violência com que a persegue,<br />

3<br />

3


tem a intenção <strong>de</strong> casar com ela e reconhece as dificulda<strong>de</strong>s envolvidas na realização <strong>de</strong> seu sonho.<br />

Arruma-se para agradá-la e diz que se muda <strong>de</strong> país para ficar com ela. Há, portanto, uma crítica à<br />

hipocrisia da socieda<strong>de</strong> brasileira e uma <strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong> papéis <strong>de</strong> gênero, uma vez que o narrador se<br />

diz muito homem justamente quando se propõe a ser passivo. Além disso, o conto, ao censurar<br />

implicitamente a perseguição do narrador, <strong>de</strong>nuncia a opressão a que estão sujeitas as travestis que se<br />

prostituem. As contradições presentes na socieda<strong>de</strong> estão expostas em carne viva, daí a subversão<br />

crítica atingida pelo conto <strong>de</strong> Marcelino Freire.<br />

Beth Blanchet, eu sou homem, muito homem. Mas não sei o que fazer com esse motor no meu<br />

peito, morto. Com a minha dor <strong>de</strong> cabeça. Com a minha tristeza.<br />

Beth Blanchet, meu amor, porra.<br />

Juro que <strong>de</strong>ixo você enfiar no meu cu esse pau gostoso.<br />

Eu <strong>de</strong>ixo. 8<br />

Entretanto, Beth Blanchet aqui nem tem voz alguma, ela só comenta algumas vezes a aparição do<br />

narrador como alguém que está visivelmente <strong>de</strong>sagradada. A travesti também é o objeto da narrativa, o<br />

outro do discurso. É <strong>de</strong> se imaginar o que ela diria se pu<strong>de</strong>sse falar. Que atrocida<strong>de</strong>s cometidas pelo<br />

narrador, a quem o leitor acaba se apegando, ela po<strong>de</strong>ria reportar. Afinal ela foge <strong>de</strong>le e <strong>de</strong>monstra<br />

medo ao vê-lo. Por um lado, ao admitir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> Beth Blanchet como mulher, o conto<br />

reconhece sua legitimida<strong>de</strong> como sujeito. Mas por outro, ele a aprisiona nos discursos patriarcais e<br />

falocêntricos, on<strong>de</strong> a mulher existe somente em função do <strong>de</strong>sejo do homem.<br />

Uma complexida<strong>de</strong> maior é conferida à experiência da transexualida<strong>de</strong> em “Ruiva”, <strong>de</strong> Júlio César<br />

Monteiro Martins. Desta vez, até que enfim, temos a voz <strong>de</strong>la, da travesti. Apesar <strong>de</strong> serem narrados<br />

em terceira pessoa, os fatos são relatados do ponto <strong>de</strong> vista da protagonista. Gina, que até então era<br />

Juarez, relojoeiro <strong>de</strong> Montes Claros, resolve mudar para São Paulo e viver como mulher. A criativida<strong>de</strong><br />

e a realização com que comenta seu processo <strong>de</strong> transformação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o aluguel do quartinho, à<br />

maquiagem e, principalmente à aquisição da sonhada peruca ruiva, contrasta gritantemente com os<br />

relatos dominantes sobre travestis no Brasil, inclusive nos contos analisados acima. Sua excitação,<br />

franqueza e coragem levam o leitor a simpatizar fortemente e até a torcer por ela. A violência sofrida<br />

por Gina e as dificulda<strong>de</strong>s encontradas na tentativa <strong>de</strong> sobreviver como travesti po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas<br />

severas críticas à falta <strong>de</strong> tolerância da socieda<strong>de</strong>.<br />

– Não que eu tenha nascido mulher totalmente, – dizia ela à assustada senhora que viajava ao<br />

seu lado no ônibus, com uma boneca guardada numa caixa <strong>de</strong> cartolina e celofane<br />

transparentes – mas homem eu sei que não nasci. Sou essa coisa assim... esquisita. Uma<br />

criação toda especial da natureza. A senhora enten<strong>de</strong>? Por isso é que eu vou para São Paulo.<br />

Lá eu posso assumir a minha realida<strong>de</strong>. Em Montes Claros nunca <strong>de</strong>ixaram eu ser eu mesma.<br />

Chegavam até a reunir grupinho pra me dar surra na rua. Desculpe eu falar, que eu sei que a<br />

senhora é <strong>de</strong> lá, mas tudo é capiau bronco, que num tem respeito pelo ser humano. 9<br />

4<br />

4


Depois <strong>de</strong> muitas dificulda<strong>de</strong>s e humilhações, Gina finalmente consegue encontrar o seu lugar,<br />

fazer um programa e até uma amiga, Denise. Mas põe tudo a per<strong>de</strong>r quando revela à amiga que não<br />

cobrou do cliente, “afinal não achava justo sair com um cara, no carro <strong>de</strong>le, pra fazer um programa, e<br />

ainda exigir que ele lhe <strong>de</strong>sse dinheiro na hora <strong>de</strong> ir embora. Além, disso, ela não conhecia as regras<br />

daquele jogo. Ela não sabia das coisas.” 10 Ao ser violentamente rejeitada pela amiga e retornar à<br />

solidão <strong>de</strong> seu quartinho, Gina relata seu sofrimento: “Ai, como é difícil viver nessa vida invertida! (...)<br />

Só Deus sabe como estou sofrendo com tanta <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>.” 11<br />

A “avenida” é, para Larissa Pelúcio, o território mais importante <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong><br />

das travestis. É o espaço on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>m as técnicas <strong>de</strong> transformação do corpo e se relacionam com<br />

amigas, namorados e maridos. 12 De acordo com a autora, a prostituição é entendida pelas travestis ora<br />

como uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprestigiosa exercida apenas por necessida<strong>de</strong>, ora como trabalho e/ou forma <strong>de</strong><br />

ascensão social. Entre as que se prostituem, a travesti que faz programa com <strong>de</strong>sconhecidos sem<br />

cobrar, como Gina, é vista como “viciosa” e criticada por comprometer os negócios das outras.<br />

Marcos Bene<strong>de</strong>tti explicita as fases <strong>de</strong> transformação da travesti do modo muito semelhante ao que<br />

se verifica na história <strong>de</strong> Gina. 13 Depois da etapa quase que obrigatória do abandono do lar, ela segue<br />

para a rua, on<strong>de</strong> conhece diversos tipos <strong>de</strong> perigo, mas também usufrui uma liberda<strong>de</strong> antes<br />

<strong>de</strong>sconhecida. A convivência com outras pessoas na mesma condição é o que a possibilita apren<strong>de</strong> um<br />

conjunto específico <strong>de</strong> códigos sociais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aspectos da mudança <strong>de</strong> corpo a segredos <strong>de</strong><br />

comportamento. Tudo indica que a inserção no meio, que passa pelo aprendizado e pela aprovação <strong>de</strong><br />

seus pares é condição fundamental <strong>de</strong> sua sobrevivência. E é por esta última etapa que Gina não<br />

consegue passar, pelo menos até o final do conto, com a ressalva <strong>de</strong> se tratar ainda <strong>de</strong> sua primeira<br />

noite como travesti em São Paulo.<br />

O conto <strong>de</strong>nuncia as péssimas condições <strong>de</strong> vida das transexuais, na medida em que revela a<br />

impotência <strong>de</strong> Gina em encontrar um lugar social para si. Denuncia o preconceito e a intolerância da<br />

socieda<strong>de</strong>, inclusive entre as próprias travestis. Apesar <strong>de</strong> seu teor crítico, a narrativa constrói uma<br />

personagem um tanto quanto abobalhada ou ingênua <strong>de</strong>mais: a sua incapacida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>scrita como um<br />

traço individual. Traço esse que fica claro no distanciamento crítico presente na relação entre narrador<br />

e personagem; a narração é em terceira pessoa. Gina é dona <strong>de</strong> sua vida, mas assemelha-se a uma<br />

criança, que não consegue avaliar criticamente todos os dados <strong>de</strong> uma situação. Assim, a simpatia<br />

nutrida por ela por parte do leitor dissolve-se a medida em que a vê como vítima, como coitadinha.<br />

Novamente a travesti transforma-se em outro dos discursos sociais e o conto per<strong>de</strong> em potencial<br />

crítico.<br />

5<br />

5


Um relato em sentido contrário encontra-se em Dama da noite, <strong>de</strong> Caio Fernando Abreu. Narrado<br />

em primeira pessoa, a “dama” é a dona <strong>de</strong> sua vida, <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r dos discursos e dos fatos. Ao<br />

conversar com um rapaz em um bar, ela lhe conta a sua vida: suas tristezas, suas <strong>de</strong>cepções e suas<br />

parcas alegrias. Apesar <strong>de</strong> tentar seduzi-lo, ao final do conto ela se nega a ir com ele, revelando<br />

auto<strong>de</strong>terminação e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir a sua própria vida. A dama se diz rica sem, no entanto,<br />

divulgar a origem <strong>de</strong> sua renda. Dos quatro contos analisados, este é o primeiro em que a travesti não é<br />

explicitamente prostituída. Sinal, talvez, <strong>de</strong> que a maior fonte <strong>de</strong> opressão que submete as travestis<br />

surge do trabalho <strong>de</strong> prostituição. Até porque, como explica Larissa Pelúcio sobre a prostituição na<br />

Europa, resulta da “opressão material e simbólica que circunscreve as travestis em guetos, dificultando<br />

o acesso à escolarida<strong>de</strong>, ao mercado <strong>de</strong> trabalho e comprometendo seus projetos <strong>de</strong> transformação e<br />

inserção fora da prostituição”. 14 Apesar <strong>de</strong>sse contexto, a autora aponta uma tendência recente e uma<br />

esperança para as mais novas gerações. Devido a maior presença <strong>de</strong> travestis fora dos guetos e ao<br />

barateamento <strong>de</strong> tecnologias estéticas, no futuro talvez a prostituição po<strong>de</strong>rá ser apenas uma opção e<br />

não um <strong>de</strong>stino. 15<br />

Porém a “dama da noite”, protagonista do conto <strong>de</strong> Caio Fernando Abreu, também apresenta muitos<br />

sofrimentos, assim como as outras representações <strong>de</strong> travestis analisadas. Ela é apartada do convívio<br />

social: dorme <strong>de</strong> dia e à noite vai a bares, on<strong>de</strong> é tratada com uma certa con<strong>de</strong>scendência e <strong>de</strong>boche por<br />

parte dos outros freqüentadores. Assim como boa parte da obra tardia <strong>de</strong> Caio Fernando Abreu, o conto<br />

narra a convivência com o HIV, provavelmente em seu próprio corpo. A doença e a velhice agravam a<br />

sua maior fonte <strong>de</strong> tristeza: a solidão. Utiliza-se da metáfora da roda-gigante para falar <strong>de</strong> quem está<br />

<strong>de</strong>ntro do convício social e quem, como ela, está fora. Quanto aos seus amigos, já se foram todos.<br />

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a<br />

flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo <strong>de</strong> seu jardim<br />

pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma pieda<strong>de</strong>, vai te poluir com todos os<br />

líquidos, contaminar o seu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que<br />

mata, boy. 16<br />

A narração a partir da perspectiva <strong>de</strong> uma pessoa contaminada com o vírus do HIV é, para Jaime<br />

Ginzburg, uma condição comunicativa específica. Como tal, o autor indica três modos interpretativos<br />

que se complementam: primeiro, a crítica à <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong> e a hipocrisia <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> brasileira em sua<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> marginalizar a experiência alheia; segundo, a imagem da AIDS como aniquilação das<br />

relações sócias; e terceiro: a sexualida<strong>de</strong> como alvo <strong>de</strong> repressão. Além da separação das outras<br />

pessoas, o tempo é construído como resto ou resíduo. Essa idéia se traduz na narrativa <strong>de</strong> Caio<br />

Fernando Abreu por meio <strong>de</strong> um texto fragmentado e <strong>de</strong>scontínuo, intercalado com discretos<br />

comentários irônicos, e uma “História catastrófica, saturada <strong>de</strong> agoras traumáticos”. 17<br />

6<br />

6


“Dama da noite” ilustra uma realida<strong>de</strong> triste, o que reflete a exclusão social que acomete as<br />

travestis. Constrói uma personagem extremamente complexa, dona <strong>de</strong> uma história pessoal e única,<br />

apesar <strong>de</strong> compartilhar <strong>de</strong> alguns dos mesmos problemas enfrentados por travestis em situações<br />

análogas. Diferentemente dos outros, o conto <strong>de</strong> Caio Fernando Abreu foge <strong>de</strong> qualquer estereótipo ou<br />

simplificação, e é crítico sem ser con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.<br />

Repensar a imagem cultural dos sujeitos transexuais implica revelar os preconceitos por meio dos<br />

quais ela é fabricada. A travesti como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social é elaborada a partir <strong>de</strong> sua montagem, afirma<br />

Marcos Bene<strong>de</strong>tti, referindo-se ao processo <strong>de</strong> mudanças no corpo. 18 Berenice Bento alu<strong>de</strong> às<br />

performances <strong>de</strong> gênero como “camadas sobrepostas <strong>de</strong> ressignificação”. 19 Sugiro aqui que a sua<br />

representação resulta também <strong>de</strong> uma montagem <strong>de</strong> camadas <strong>de</strong> imagens, quase todas negativas. De<br />

ladra e chantagista, irresistível objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, a vítima incompetente <strong>de</strong> suas próprias taras, a travesti<br />

configura-se como o outro <strong>de</strong> todos os discursos. Para enxergá-la, seria preciso ir além da montagem,<br />

<strong>de</strong>sconstruindo as camadas <strong>de</strong> estereótipos por meio das quais a enxergamos. Mas a sua própria<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é construída pelos discursos hegemônicos <strong>de</strong> gênero e sexualida<strong>de</strong> que a inscrevem como<br />

<strong>de</strong>sviante. Resta, portanto, mudar as representações para que as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s possam ser positivamente<br />

elaboradas; um processo, possivelmente, <strong>de</strong> remontagem, ou <strong>de</strong> rematerialização, como sugere Judith<br />

Butler em Bodies that matter. 20 A literatura e a crítica literária são apenas alguns dos muitos caminhos<br />

possíveis.<br />

1<br />

STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 269.<br />

2<br />

BENEDETTI, Marcos. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garamond, 2005, p. 18.<br />

3<br />

BUTLER, Judith. Problemas <strong>de</strong> gênero: feminismo e subversão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

2003, p. 196.<br />

4<br />

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualida<strong>de</strong> e gênero na experiência transexual. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garamond,<br />

2006, p. 228.<br />

5<br />

FONSECA, Rubem. Dia dos namorados. In RUFFATO, Luiz (org.) Entre nós: contos sobre homossexualida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Língua Geral, 2007. (Publicado pela primeira vez em Feliz ano novo, <strong>de</strong> 1975).<br />

6<br />

BENEDETTI, Marcos. Op. cit., p. 64.<br />

7 FONSECA, Rubem. Op. cit., p. 133-134.<br />

8 FREIRE, Marcelino. Mulheres trabalhando. In FREIRE, Marcelino. Balé Ralé. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 24.<br />

9 MARTINS, Júlio César Monteiro. Ruiva. In RUFFATO, Luiz (org.) Entre nós: contos sobre homossexualida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Língua Geral, 2007, p. 241. (Publicado pela primeira vez em Sabe quem dançou?, <strong>de</strong> 1978).<br />

10 I<strong>de</strong>m, p. <strong>25</strong>4.<br />

11 I<strong>de</strong>m, p. <strong>25</strong>4-<strong>25</strong>5.<br />

12 PELÚCIO, Larissa. Na noite nem todos os gatos são pardos: notas sobre a prostituição travesti. Ca<strong>de</strong>rnos Pagu.<br />

Campinas, n. <strong>25</strong>, jul/<strong>de</strong>z. 2005. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-<br />

83332005000200009&lng=en&nrm=iso&tlng=en. Acesso em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008.<br />

13 BENEDETTI, Marcos. Op. cit., p. 115<br />

14 PELÚCIO, Larissa. Op. cit., p. 11.<br />

15 I<strong>de</strong>m, p. 13.<br />

16 ABREU, Caio Fernando. Dama da noite. In ABREU, Caio Fernando (seleção <strong>de</strong> Marcelo Secron Bessa) Melhores<br />

Contos. São Paulo: Global, 2006. (Publicado pela primeira vez em Os dragões não conhecem o paraíso, <strong>de</strong> 1988).<br />

7<br />

7


17<br />

GINZBURG, Jaime. Tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição em Caio Fernando Abreu. In SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.) Palavra e<br />

imagem, memória e escrita. Chapecó: Argos, 2006, p. 371.<br />

18<br />

BENEDETTI, Op. cit., p. 67.<br />

19<br />

BENTO, Op. cit., p. 95.<br />

20<br />

BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge, 1998.<br />

8<br />

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