gênero, idade média e interdisciplinaridade ST ... - Fazendo Gênero
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<strong>Fazendo</strong> <strong>gênero</strong> e rompendo fronteiras: <strong>gênero</strong>, <strong>idade</strong> <strong>média</strong> e interdisciplinar<strong>idade</strong> <strong>ST</strong>. 50Maria<br />
Valdiza Rogério Soares<br />
PEM/PPGHC/UFRJ<br />
Palavras-chave: virgindade, <strong>gênero</strong> e Clara de Assis<br />
A construção da virgindade nos escritos de clara de assis e nas legendas menores: uma<br />
questão de <strong>gênero</strong><br />
Introdução<br />
Nosso trabalho tem como proposta analisar como é construída o significado da categoria<br />
virgindade nas quatro cartas de Clara de Assis a Inês de Praga e nas Legendas Menores, pela<br />
perspectiva dos estudos de <strong>gênero</strong>. Para isso, seguimos as propostas teóricas de Joan Scott e Jane<br />
Flax 1 de que o <strong>gênero</strong> é “a organização social da diferença sexual.” 2 Ele sinaliza que papéis<br />
“adequados” para homens e mulheres são construções sociais e culturais. Vem enfatizar um sistema<br />
amplo de relações entre as pessoas, sem vincular-se diretamente à diferença biológica. Tornando-se<br />
um instrumento para conhecer as simbologias e representações pelas quais as sociedades<br />
elaboraram e definiram o masculino e o feminino e fundamentando as relações de poder que<br />
permeiam ambos os conceitos.<br />
Nosso corpus documental é composto de quatro cartas, escritas por Clara de Assis a Inês<br />
de Praga 3 . Essas missivas datam do século XIII. Nelas a Damianita abordou vários temas, dentre<br />
eles a virgindade. Clara deu conselhos a Inês de Praga, princesa da Boêmia que recusara a proposta<br />
de casamento do imperador alemão Frederico II para aderir à vida religiosa franciscana. Esses<br />
conselhos referiam-se à perseverança em seu novo estilo de vida e à união mística com Cristo. Uma<br />
primeira publicação das cartas foi feita por Seton, em 1924, na revista Archivum Franciscanum<br />
Historicum. 4 A edição latina mais recente é a de I. Boccali, nas “Concordantias.” 5 Em contraponto<br />
a esses documentos analisaremos também as Legendas Menores. 6 Igualmente datadas do século<br />
XIII, elas foram denominadas “menores” por serem mais curtas que a Legenda de Santa Clara,<br />
também redigida naquele século e atribuída a Tomás de Celano. Tais obras são escritos litúrgicos,<br />
que provavelmente foram compostos pouco depois da canonização de Clara de Assis, para serem<br />
utilizadas nas suas celebrações. Foram publicadas em 1914, pelo Pe. Michael Bihl, OFM, na<br />
revista Archivum Franciscanum Historicum. 7
Virgindade: nas cartas de Clara e nas Legendas Menores<br />
No início da Idade Média, a preocupação da Igreja com a mulher era mantê-la afastada das<br />
tentações. Sendo ela considerada mais próxima da carne, era relevante preservá-la do estímulo de<br />
seus sentidos através do sexo. O meio encontrado foi o discurso da superior<strong>idade</strong> da virgindade. Ela<br />
era a garantia da ascese, o retorno à origem e à imortal<strong>idade</strong>. Nos conceitos de Crisóstomo e<br />
Gregório de Nissa, respectivamente temos: “O corpo virgem era o templo da alma para o<br />
movimento ascendente rumo a Deus” e “Ser virgem era dedicar-se à contemplação, exercício<br />
inseparável da incorruptibil<strong>idade</strong> do corpo.” 8 Conservando-se virgem, a mulher não poderia desejar<br />
o que nunca conhecera: os prazeres do corpo.<br />
Ao estabelecer o ideal de virgindade, a Igreja exercitava seu poder sobre a sociedade como<br />
um todo, e sobre as mulheres em especial. Esse discurso, juntamente com o da suposta fragil<strong>idade</strong><br />
feminina, legitimavam o controle e a tutela das mulheres. Dentro dessa tutela, podemos destacar,<br />
ainda, o sistema de parentesco patriarcal, que se constituiu como uma forma primária de controle<br />
sobre o corpo da mulher. Ressalte-se que não é o sistema de parentesco em si que gera as<br />
desigualdades. Essas são produzidas no momento em que um sexo busca encontrar mecanismos<br />
para subjugar o seu sistema de parentesco, transformando-o em um sistema de parentesco matriarcal<br />
ou patriarcal. 9 No contexto histórico de Clara de Assis, esse sistema era francamente patriarcal.<br />
O contrato sexual, implantado dentro do patriarcado, seria o domínio dos homens sobre o<br />
corpo da mulher. A virgindade estava ligada a esse contrato, que era a base do sistema de<br />
parentesco patrilinear. Através da virgindade, o pai estabelecia alianças com outras linhagens,<br />
propondo o casamento de sua filha virgem. O matrimônio seria a concretização do poder do homem<br />
sobre a mulher, evidenciando que ela não tinha domínio sobre o seu próprio corpo. 10 Relações de<br />
<strong>gênero</strong>s foram construídas.<br />
Neste contexto, podemos situar Clara de Assis. Ela foi uma mulher que se impôs contra<br />
algumas dessas diretrizes de <strong>gênero</strong>. Descendente da nobreza italiana, Clara de Assis não acatou os<br />
padrões impostos pela sociedade da época. Ela vendeu seu dote e o doou aos pobres, como<br />
podemos perceber no relato de sua irmã Inês de Assis, 12ª testemunha no Processo de Canonização:<br />
“(...) Clara concordou com o que ele (Francisco) dizia, renunciou ao mundo e a todas as coisas<br />
terrenas e foi servir a Deus o mais depressa que pôde. Pois vendeu a sua herança e parte da<br />
testemunha (Inês de Assis) e deu-a aos pobres” (ProcC. 2-3) (grifo nosso). Em vez de casar-se com<br />
um nobre, ela escolheu casar-se com Jesus Cristo, aderindo à vida religiosa baseada nos<br />
ensinamentos de Francisco de Assis: pobreza e humildade.
Ao aderir à vida religiosa Clara de Assis não tinha a pretensão de ser mais uma religiosa<br />
em mais um grupo religioso, ela almejava viver segundo os ideais de Francisco de Assis e em<br />
virgindade. Como a virgindade foi vista, por Clara, nesse contexto?<br />
Nas quatro cartas que ela escreveu para a princesa da Boêmia, Inês de Praga, um dos<br />
pontos de destaque é o tema virgindade. O semantema virg. aparece 15 (quinze) vezes nas quatro<br />
missivas, estando associado ao casamento com Cristo e a Inês de Praga: “O Senhor Jesus Cristo,<br />
que guardará vossa virgindade sempre imaculada e intacta” (1CtIn 7) (grifo meu); “Amando-o, sois<br />
casta; tocando-o tornar-vos-eis mais limpa; acolhendo-o, sois virgem..” (1CtIn 8); refere-se também<br />
a Virgem Maria: “Falo do Filho do Altíssimo, que a Virgem deu à luz permanecendo virgem depois<br />
do parto.”(3CtIn 17); e, também, a outras mulheres que aderiram à vida religiosa.: “Minhas filhas<br />
também, de modo especial a virgem prudentíssima Inês, minha irmã ( Catarina, irmã consangüínea<br />
de Clara, teve seu nome mudado por Francisco quando tornou-se Damianita, passando a chamar-se<br />
Inês) (...)”(4CtIn 38) (grifo meu). Ele também mantém ligação com a pobreza: “Abrace o Cristo<br />
pobre como uma virgem pobre.” (2CtIn 18) (grifo meu).<br />
Nas cartas dedicadas a Inês de Praga, percebemos, em uma primeira análise, que Clara<br />
incorpora o discurso dos Pais da Igreja sobre virgindade, que era respeitado e aceito pela sociedade.<br />
Permanecendo virgem a mulher alcançaria a ascese, casando-se com Cristo ela seria mãe, esposa,<br />
irmã, mantendo-se íntegra. Em uma análise mais contextualizada, detectamos que Clara, ao assumir<br />
o discurso da Igreja no tocante à virgindade, ela o fez com o intuito de se tornar sujeito de um outro<br />
discurso que realmente lhe importava. Ela desejava para si e suas irmãs um viver religioso segundo<br />
os moldes franciscanos e desligar-se da dominação masculina. O viver religioso significava também<br />
vias de acesso ao controle do corpo pela mulher, permitindo que ela se dedica-se aos estudos e aos<br />
trabalhos intelectuais. Cabe ressaltar que a relação com a linguagem não é jamais inocente. Nenhum<br />
discurso é ingênuo.<br />
A nova forma de vida de Clara de Assis aparece em um trecho de sua primeira carta:<br />
“Porque, embora pudésseis gozar, mais do que outros, das pompas e honras deste mundo,<br />
desposando legitimamente o ilustre imperador (...) rejeitastes tudo isso (...)”(1CtIn 5-7). Depois, é<br />
ratificado na segunda carta: “Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre.” (2CtIn 18).<br />
Ao ligar virgindade à pobreza, Clara e suas irmãs se opuseram a qualquer relação terrena,<br />
pois esta estava ligada à riqueza e era um vínculo para a estabil<strong>idade</strong> das famílias, o casamento da<br />
mulher nobre representava a manutenção desse vínculo em que ela ficaria submetida ao poder do<br />
marido, assumindo o papel secundário de somente procriar. Através da virgindade a mulher poderia<br />
almejar viver em pobreza, uma vez que a pureza interior e a entrega a Deus eram características<br />
associadas à virgindade por Clara
O sema cast, presente em casto e cast<strong>idade</strong>, relaciona-se, nesses escritos, com a virgindade.<br />
Em um trecho da primeira carta temos: “Amando-o, sois casta; tocando-o tornar-vos-eis mais<br />
limpa; acolhendo-o, sois virgem” (1CtIn 8). Nota-se que para Clara a virgindade está associada à<br />
cast<strong>idade</strong>. No momento que ela recebeu o Cristo como esposo, pelo caráter espiritual do laço<br />
constituído entre eles, ela permaneceu virgem e amando-o continuou casta e limpa. Assim, nessa<br />
perspectiva, a virgindade se confunde com a cast<strong>idade</strong>. A cast<strong>idade</strong> seria o contato da<br />
virgem/mulher com o Cristo, não passando pelo aspecto físico. No momento que a mulher, virgem<br />
ou não, tivesse esse contato, este, ao invés de contaminá-la, purificá-la-ia. Clara ressaltou que esse<br />
contato purificador com Deus poderia estar presente em qualquer mulher que quisesse aderir à vida<br />
religiosa, bastando renunciar a tudo de material. Se fosse casada ou solteira deveria fazer votos de<br />
continência ou aderir à cast<strong>idade</strong>. Ou seja, não era exigido que a mulher fosse virgem (fisicamente)<br />
para servir a Cristo, o que importava era a renúncia que fazia por amor a Deus, apresentando,<br />
portanto, um “coração puro”. Assim, a virgindade não era algo físico que podia ser perdido. 11<br />
No século XII, a participação das mulheres no ideal de vita vera apostolica – um estilo de<br />
vida religioso novo, baseado em um retorno ao exemplo de Cristo e dos apóstolos, tendo como<br />
princípios fundamentais: a imitação da Igreja primitiva, seguindo os passos de Cristo e dos seus<br />
apóstolos; o amor por Deus e pelo próximo; a obediência à exortação de Cristo para ser perfeito,<br />
praticando uma vida comum de pobreza evangélica 12 - é destacada pela entrada de um grande<br />
número delas na vida religiosa. Vários mosteiros foram criados por iniciativas de famílias<br />
aristocráticas ou eram ligados a ordens existentes. Entretanto, o IV Concílio de Latrão de 1215,<br />
através do cânone 13, proibiu a aprovação de novas regras, determinando que todo aquele que se<br />
sentisse chamado à vida religiosa, deveria escolher uma das regras vigentes – Beneditina ou a<br />
Agostininana 13 – e aderir a uma das Ordens reconhecidas pela Igreja. 14 Para Clara, adotar uma<br />
dessas regras significaria abrir mão de seu ideal de vida em pobreza, aos moldes franciscanos.<br />
Nas Legendas Menores constatamos que o sema virg- aparece 52 vezes (cinqüenta e duas)<br />
Na Legenda Menor 1, 23 vezes (vinte e três) associadas a Clara, e as outras restantes referido-se<br />
uma vez à nobre Cecília; duas vezes a Virgem Maria; duas vezes a Inês de Praga e seis vezes<br />
relaciona-se a outras mulheres consagradas. Na Legenda Menor 3, ele aparece 5 vezes (cinco),<br />
todas relacionadas a Clara de Assis. Tanto na Legenda 1 como na 2 a palavra virgindade está<br />
associada a vários contextos, dentre eles destacamos cinco: o primeiro denota um comportamento<br />
exemplar: “Como é bela a geração com clareza, a geração da virgem santa Clara, cujo<br />
comportamento claríssimo resplandece como um exemplo para os mortais” (LM3 1-1) (grifo meu);<br />
o segundo está relacionado a uma vida dedicada às vigílias e orações: “ Dedicada também a vigílias<br />
e orações, a santa virgem gastava principalmente nelas os seus tempos de dia e de noite.” (LM3 8-1)<br />
(grifo meu); temos como terceiro contexto a renúncia às coisas do mundo:
Por sugestão do homem de Deus (...) lhe instilava nos ouvidos virginais o desprezo do<br />
mundo e os doces esponsais de Cristo, a virgem preclara não adiou o consentimento, antes,<br />
acesa nos ardor do fogo celeste, desprezou altaneira a glória da va<strong>idade</strong> terrena, teve horror<br />
direto das ilusões da carne, propôs-se a ignorar o leito nupcial no delito, e se entregou<br />
totalmente aos conselhos do mesmo bem-aventurado pai.(LM3 1-13) (grifo meu)<br />
O quarto contexto é referente ao martírio do corpo: “ também usava sob as vestes preciosas<br />
e macias um pequeno cilício escondido(...) vestindo Cristo interiormente, fazendo que deixava para<br />
depois o casamento mortal, recomendava ao Senhor a sua virgindade.” (LM1 1-9) (grifo meu). O<br />
quinto e último, está associado à vida virginal consagrada a Deus: “ (...) a própria bem-aventurada<br />
Clara estava no século ainda menina, procurava desde a mais tenra <strong>idade</strong> superar este mundo frágil<br />
imundo em um caminho limpo guardando sempre com ilibado pudor o tesouro precioso de sua<br />
virgindade.” (LM3 2-1) (grifo meu).<br />
A morte de Clara de Assis e sua canonização são retratadas na Legenda Menor 2. Nela o<br />
sema virg- aparece 13 vezes (treze), 09 (nove) referentes a Clara; 2 vezes (duas) associados a outras<br />
mulheres consagradas; uma vez referido-se a Virgem Maria e uma ao ofício das virgens.<br />
Na análise das Legendas Menores, observa-se que a Igreja vai apresentando a vida de uma<br />
mulher nobre, que recusou o casamento terreno em prol de uma vida dedicada a Deus, em<br />
virgindade e em oposição aos vícios, à carne, ao desejo, ou seja, ela é retratada como uma virgem<br />
consagrada, aquela que renunciou não somente às paixões, mas a todo desejo permitido pela Igreja<br />
dentro matrimônio, unindo-se a Deus através do voto de virgindade.<br />
Mesmo no seio de um mosteiro, a mulher continuava sendo controlada pelo homem. As<br />
relações de poder e controle se mantinham, cabendo, nesse caso, o papel de sujeito dominante cabe<br />
ao clero. Nesse meio a figura de Clara é colocada como uma mulher que estava pronta a aceitar as<br />
normas que a Igreja lhe impunha, sem questioná-las.<br />
Clara é descrita como uma serva fiel, amiga do Altíssimo e que teve 42 anos de sua vida<br />
dedicados a servir a Deus em pobreza, obediência e em cast<strong>idade</strong>. Ao relatar as escolhas pessoais de<br />
Clara, os exercícios espirituais praticados por ela e a quem a mesma resolveu seguir e se entregar, a<br />
Igreja, por meio das Legendas, construiu um modelo de sant<strong>idade</strong> para ser disseminado entre as<br />
mulheres que desejassem aderir ao chamado religioso. Nesse modelo o ponto central era a<br />
virgindade, pois através dela a mulher criava um laço indissolúvel com Cristo. Ela seria sua esposa.<br />
Porém, no teor das legendas não é mencionado nada que revele confrontos entre Clara e a<br />
Cúria Papal, muito menos com os Irmãos Menores. Não é trazido à luz das discussões o embate<br />
dela com o Papa Gregório IX por querer adotar o estilo franciscano de vida. Tudo isso é relegado<br />
ao esquecimento nos escritos litúrgicos. A Clara que importava divulgar como exemplo era<br />
diferente de aquela encontrada nas cartas. A santa idealizada era diferente da mulher real e histórica
econstruída com base em seus próprios textos. Nesta santa idealizada, a virgindade era, sobretudo,<br />
um traço moral, não uma escolha.
Conclusão:<br />
Este trabalho é o primeiro que apresentamos comparando a temática virgindade nos<br />
escritos de Clara de Assis – as cartas enviadas a Inês de Praga - com as Legendas Menores, por isso<br />
apresentaremos nossas conclusões parciais, enfatizando que os dados apresentados podem ainda<br />
sofrer alterações, bem como há ainda outros pontos a serem abordados.<br />
Para entendermos o discurso produzido acerca da virgindade por Clara, utilizamos os<br />
estudos de <strong>Gênero</strong>. Segundo Joan Scott <strong>gênero</strong> é o saber a respeito das diferenças sexuais, tocando<br />
nas relações entre os sexos e entre indivíduos do mesmo sexo, estando presente em todos os<br />
aspectos da experiência humana, sendo constituinte dela. 15<br />
A Clara das Legendas parece passiva e não acrescenta nada de novo. É apenas mais uma<br />
mulher religiosa que acatou os discursos da Igreja, mantendo-se enclausurada e em perfeito estado<br />
de devoção a Cristo. O modelo de sant<strong>idade</strong> construído a partir dela tinha como objetivo edificar a<br />
mulher. Por isso, o ideal de virgindade era divulgado como algo a ser mantido pela mulher, para<br />
preservar-se pura e, com isso ser digna de conquistar o paraíso eterno. Todo o teor das três legendas<br />
exalta as virtudes de Clara, seja em vida ou na morte, porém, os confrontos com a Igreja pelo seu<br />
ideal de pobreza, são minimizados, até porque não seria condizente para uma mulher considerada<br />
santa, retrucar as decisões e imposições colocadas pelo Papado.<br />
Em contraponto a esse discurso imposto à mulher, Clara soube se utilizar dele para<br />
conseguir se fazer ouvir e lutar por seu objetivo religioso que era viver segundo os ensinamentos de<br />
Francisco de Assis, em pobreza e humildade. A virgindade representou para ela o meio para<br />
conseguir isso. Ao adotar um discurso de reconhecido prestígio, Clara se imbuiu da legitim<strong>idade</strong> e<br />
autor<strong>idade</strong> que esse discurso lhe concedia. Com essa autor<strong>idade</strong> ela pôde exercer o papel de sujeito<br />
no discurso de pobreza. Além disso, o viver religioso de Clara e suas irmãs representou uma quebra<br />
com o discurso dominante, significou uma via de acesso ao controle do próprio corpo.<br />
Desta forma, podemos concluir que apesar de as Legendas terem sido escritas com o<br />
objetivo de fazer de Clara um modelo a ser seguido e, quiçá, calar a sua fala, ela se fez ouvir através<br />
de seus próprios escritos, em que ressaltou toda a sua vontade de se tornar seguidora de Francisco e<br />
de Jesus Cristo, afrouxando os laços das diretrizes de <strong>gênero</strong> que cingiam as mulheres de sua<br />
sociedade, e que punha em posição de inferior<strong>idade</strong> ao homem.
1<br />
SCOTT, J. Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu, n. 3, p. 11-27, 1994; Flax, J. Pós-modernismo e<br />
relações de <strong>gênero</strong> na teoria feminista. In: HOLLANDA, H. B. (Org.) Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco,<br />
1991, p. 217-50.<br />
2<br />
SCOTT, Joan Wallace. Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu, n.3, p.11-27, 1994.<br />
3<br />
PEDROSO, José Carlos Corrêa (org.). Fontes Clarianas. 4ª ed. Piracicaba: Centro Francicano de Espiritual<strong>idade</strong>,<br />
2004.<br />
4<br />
Idem, p. 44-45.<br />
5<br />
Opuscula S. Francisci et scripta S. Claral Assisensium. Assis: Ed. Porziuncola, 1978.<br />
6<br />
PEDROSO, José Carlos Corrêa. op.cit. p.196.<br />
7<br />
BIHL, Michel. Legenda Minori. Archivum Franciscanum Historicum, n. 7, p. 32-54, 1914.<br />
8 VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1986.<br />
9 RIVERA, Maria Milagros. Parentesco y espiritualidad femenina em Europa: Uma aportación a la Historia de la<br />
subjetividad. Revista d’ História medieval, nº 2, p.29-50, 1991.<br />
10 Idem.<br />
11 PEDROSO, José Carlos Corrêa (Org.). op.cit., p. 17.<br />
12 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média - século XII. Lisboa: Edições 70, 1986.<br />
13<br />
BRUNELLI, Delir. Ele se fez caminho e espelho. O seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis. Petrópolis: Vozes,<br />
1998.<br />
14<br />
FOREVILLE, R. Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973.<br />
15 SCOTT, J. op.cit., p. 11-27.