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Finitude das possibilidades, finitude do relacionamento amoroso ...

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<strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong>:<br />

investigação fenomenológica de um romance atual a partir de uma<br />

RESUMO<br />

leitura Kierkegaardiana* 1<br />

Laura Cristina Eiras Coelho Soares** 2<br />

Nesse artigo pretende-se refletir acerca <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como as relações amorosas vêm<br />

se constituin<strong>do</strong> na atualidade, ten<strong>do</strong> como diretriz investigativa o problema <strong>das</strong><br />

formalizações ou informalizações <strong>do</strong>s <strong>relacionamento</strong>s instituí<strong>do</strong>s. Trata-se da<br />

investigação fenomenológica <strong>do</strong>s conflitos vivi<strong>do</strong>s pelos personagens Joy e Gabriel,<br />

<strong>do</strong> livro Temporada de Casamento (2005) de autoria de Darcy Cosper, à luz <strong>das</strong><br />

reflexões kierkegaardianas acerca da existência. O fio condutor desse estu<strong>do</strong>, a<br />

partir <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong>s personagens, foi destacar algumas falas e interpretá-las<br />

compreensivamente, ten<strong>do</strong> como suporte destas interpretações as contribuições de<br />

autores contemporâneos e as idéias de Kierkegaard. Esse romance retrata os<br />

conflitos e reflexões da personagem Joy Silverman a respeito da sua decisão de não<br />

oficializar formalmente a união com o namora<strong>do</strong> Gabriel. Buscou-se, com este<br />

trabalho, abrir um espaço de tematização para a questão <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como os<br />

<strong>relacionamento</strong>s <strong>amoroso</strong>s vêm se constituin<strong>do</strong> na atualidade, ao tentar<br />

compreender os dilemas em questão na existência desse casal da ficção. Assim,<br />

espera-se contribuir para uma melhor compreensão <strong>do</strong> espaço terapêutico como<br />

lugar de reflexão, de abertura de <strong>possibilidades</strong>, ten<strong>do</strong> como senti<strong>do</strong> que o cliente<br />

conheça a si mesmo e aproprie-se de suas escolhas, enquanto solteiro, noivo,<br />

separa<strong>do</strong>, casa<strong>do</strong>, pai, filho, mãe, enfim, sujeito de sua própria vida.<br />

Palavras-chave: Kierkegaard. Psicologia fenomenológico-existencial.<br />

Relacionamentos <strong>amoroso</strong>s. <strong>Finitude</strong>.<br />

Artigo Original:<br />

Elabora<strong>do</strong> em: setembro / 2010.<br />

Recebi<strong>do</strong> em: dezembro / 2010.<br />

Publica<strong>do</strong> em: dezembro / 2010.<br />

* 1 Trabalho apresenta<strong>do</strong> no Congresso de Psicologia Fenomelógico-Existencial | Fundação<br />

Guimarães Rosa – 2010.<br />

** 2 Doutoranda em Psicologia Social na Universidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro – UERJ. Mestre<br />

em Psicologia Social na Universidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro – UERJ. Especialista em<br />

Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial <strong>do</strong> Rio de Janeiro – IFEN.<br />

Especialista em Psicologia Jurídica na Universidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro – UERJ.<br />

E-mail: laurauerj@yahoo.com.br<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – Fundação Guimarães Rosa<br />

Página web: www.fgr.org.br l E-mail: bibliotecafgr@fgr.org.br


2 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

ABSTRACT<br />

In this article we intend to reflect on how love relationships are currently being<br />

constituted and directed the issue about the possibility of formalization or not<br />

relationships established. It is the phenomenological investigation of conflicts<br />

experienced by the characters Gabriel and Joy, of the book Temporada de<br />

Casamento (2005) authored by Darcy Cosper, in the light of discussions about the<br />

Kierkegaardian existence. The leitmotif of this study, from the characters' speech was<br />

to highlight some words and interpret them comprehensively, supported by the<br />

contributions of these interpretations of contemporary authors and ideas of<br />

Kierkegaard. This novel focuses on the struggles and reflections of the character Joy<br />

Silverman about her decision of not to officiate a formal union with her boyfriend<br />

Gabriel. Sought, with this work, an open space of theme for the issue of how loving<br />

relationships have been constituted at present, trying to understand the dilemmas in<br />

question the existence of such a couple of fiction. Thus, it is expected to contribute to<br />

a better understanding of the therapeutic space as a place of reflection, openness of<br />

possibilities, with the sense that the client know yourself and take ownership of their<br />

choices, while unmarried, engaged, separated, married, father, son, mother, finally,<br />

subject to his own life.<br />

Keywords: Kierkegaard. Existential-phenomenological psychology. Romantic<br />

relationships. End.<br />

Original Article:<br />

Prepared on: September / 2010.<br />

Received: December / 2010.<br />

Published: December / 2010.<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 2 de 22


Introdução<br />

Laura Cristina Eiras Coelho Soares 3<br />

Podemos achar difícil concordar com sua conclusão final (que<br />

inevitavelmente era o cristianismo, numa aparência assusta<strong>do</strong>ramente<br />

espiritual), mas os passos com que nos leva ao longo <strong>do</strong> caminho são<br />

instigantes. Pois, o mais importante, ele nos leva para fora <strong>do</strong> abismo <strong>do</strong><br />

desespero, para uma vida em que assumimos plena responsabilidade pelo<br />

que fazemos da vida (STRATHERN, 1999, p.35).<br />

O presente artigo 3 aborda a questão <strong>do</strong>s <strong>relacionamento</strong>s <strong>amoroso</strong>s em seus<br />

des<strong>do</strong>bramentos em decorrência da fluidez <strong>das</strong> amarras sociais, que permitiu a<br />

maleabilidade da obrigação de oficializar ou não o <strong>relacionamento</strong> constituí<strong>do</strong>.<br />

Diante da possibilidade de escolher entre estabelecer uma união com ou sem<br />

formalizações, observa-se o fenômeno da dualidade comprometer-se/não<br />

comprometer-se. A partir <strong>do</strong> momento que o comprometimento não caminha<br />

necessariamente para uma formalização, o casal poderá enfrentar problemas na<br />

interpretação <strong>do</strong>s sentimentos, pois podem considerar que o amor se vincula com a<br />

formalidade ou justo com o seu contrário. Esse impasse será nota<strong>do</strong> mais<br />

claramente na investigação fenomenológica <strong>do</strong> romance Temporada de Casamento.<br />

A escolha pelo estu<strong>do</strong> de um texto literário encontra-se ancorada na própria<br />

meto<strong>do</strong>logia empregada por Kierkegaard, que utilizou ao longo de sua obra o<br />

recurso de romances, ten<strong>do</strong> inclusive a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> diversos pseudônimos, buscan<strong>do</strong> se<br />

aproximar <strong>do</strong> leitor a fim de que este se dê conta <strong>do</strong> lugar que está. Estas obras de<br />

ficção foram denomina<strong>das</strong> por ele de obras estéticas e visavam alcançar o homem<br />

de maneira indireta, ―seduzi-los com a narrativa, de forma a que estes homens<br />

possam ver a si mesmos no fato narra<strong>do</strong> e, transparecen<strong>do</strong>-se a si mesmos, ousem<br />

outra possibilidade de existir‖ (PROTASIO, 2007, s/p). Assim, serão apresenta<strong>das</strong> as<br />

falas <strong>do</strong>s personagens, prioritariamente <strong>do</strong> casal em foco Joy e Gabriel, para que o<br />

leitor possa acompanhar de forma fenomenológica 4 a jornada existencial <strong>do</strong>s<br />

mesmos. As escolhas e os conflitos desses, no que tange a decisão pela<br />

3 As questões aqui aborda<strong>das</strong> foram suscita<strong>das</strong> pela investigação ―(In) formalizações nos<br />

<strong>relacionamento</strong>s <strong>amoroso</strong>s atuais: uma reflexão à luz <strong>do</strong> pensamento filosófico de Kierkegaard e<br />

autores contemporâneos‖, desenvolvida como monografia de conclusão <strong>do</strong> curso de Especialização<br />

em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial <strong>do</strong> Rio de Janeiro –<br />

IFEN, sob a orientação da professora Myriam Moreira Protasio.<br />

4 Acompanhar de forma fenomenológica significa buscar no próprio fenômeno o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ele<br />

fala, ou seja, compreender a partir <strong>do</strong> próprio acontecimento.<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 3 de 22


4 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

oficialização ou não de sua relação conjugal, será contada por meio de fragmentos<br />

<strong>do</strong> romance Temporada de Casamento acompanha<strong>do</strong>s por reflexões, guia<strong>das</strong> pelas<br />

leituras <strong>do</strong>s autores a serem cita<strong>do</strong>s. A ênfase será na leitura existencial destes<br />

fenômenos com base nos seguintes livros de Kierkegaard: Desespero Humano<br />

(2006) e O Conceito de Angústia (1968/2010). Dessa forma, algumas temáticas <strong>do</strong><br />

referi<strong>do</strong> autor serão utiliza<strong>do</strong>s, tais como: liberdade, angústia, estádios da existência,<br />

perder-se de si mesmo, posto que casar/separar/ficar são sempre <strong>possibilidades</strong><br />

sem garantias e, portanto, provocam no indivíduo manifestações próprias <strong>do</strong> existir,<br />

logo, a-históricas.<br />

A investigação fenomenológica <strong>do</strong> romance temporada de casamento<br />

Eu nunca tinha si<strong>do</strong> capaz de entender por que as pessoas choram nos<br />

casamentos, mas agora acho que enten<strong>do</strong>. E não é apenas porque elas<br />

estão muito felizes, que é o que alegam e talvez no que queiram acreditar.<br />

Acho que as pessoas choram de arrependimento, ternura, solidão,<br />

perplexidade diante <strong>do</strong> passar <strong>do</strong> tempo, por um amor desespera<strong>do</strong>,<br />

possessivo, protetor e profun<strong>do</strong> e por um desejo – um desejo perigoso,<br />

ameaça<strong>do</strong>r e impossível, por alguma coisa que não vá se perder depois<br />

(COSPER 5 ,2005, p.299/300)<br />

Este livro tem como frase de abertura <strong>do</strong> primeiro capítulo ―Eu faria com que to<strong>do</strong>s<br />

se casassem, desde que possam fazê-lo em benefício próprio‖ de Jane Austen,<br />

Mansfield Park. O fato de ter inicia<strong>do</strong> com esta sentença, já aponta para o tom (auto)<br />

crítico que estará presente no desenrolar desta narrativa em primeira pessoa,<br />

datada na primeira década <strong>do</strong>s anos 2000 6 .<br />

A voz que conta a história é a da personagem principal, Joy Silverman 7 , escritora, na<br />

faixa <strong>do</strong>s 30 anos, de classe média e nova-iorquina. Ela namora com Gabriel há<br />

cerca de um ano e meio e sua vida conjugal parece estar acontecen<strong>do</strong> da maneira<br />

que ela sempre esperou: sem precisar se casar oficialmente. No entanto, quan<strong>do</strong> ela<br />

5<br />

Esta é uma fala de Joy, personagem principal <strong>do</strong> romance Temporada de Casamento, objeto da<br />

presente investigação fenomenológica.<br />

6<br />

A autora data o enre<strong>do</strong>, porém não define o ano. A história começa no <strong>do</strong>mingo, 1° de abril de 200--.<br />

7<br />

Torna-se importante pontuar que toda a investigação será conduzida a partir da perspectiva da Joy,<br />

não sen<strong>do</strong> possível acessar as inquietações <strong>do</strong> seu companheiro Gabriel. Logo, trata-se de uma<br />

análise parcial.<br />

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Laura Cristina Eiras Coelho Soares 5<br />

percebe que foi convidada para 17 casamentos que irão ocorrer nos próximos seis<br />

meses, em meio a vesti<strong>do</strong>s e bolos, seu <strong>relacionamento</strong> começa a ser repensa<strong>do</strong>.<br />

Diante da cobrança <strong>do</strong>s amigos e familiares, de que eles também se casem e <strong>do</strong><br />

cada vez mais evidente desejo de Gabriel pela oficialização, Joy se inquieta. Apesar<br />

de descrever-se como o ―antônimo ambulante da palavra espontaneidade‖ (p.11),<br />

deixa claro nos primeiros parágrafos que não gosta de participar da maioria <strong>do</strong>s<br />

rituais e casamentos incluem-se nesta categoria. Seu posicionamento contrário ao<br />

casamento foi expresso desde o seu primeiro encontro com Gabriel, que ocorreu<br />

durante um casamento:<br />

Quan<strong>do</strong> a festa já chegava ao fim, Gabriel e eu sentamos sozinhos numa<br />

mesa embaixo <strong>do</strong> grande tol<strong>do</strong>, comen<strong>do</strong> os restinhos <strong>do</strong> que havia si<strong>do</strong><br />

uma enorme fatia de bolo de chocolate e observan<strong>do</strong> as garotas se<br />

reunirem para o tradicional momento em que a noiva joga o buquê.<br />

— Você não vai se habilitar? — diz Gabe, balançan<strong>do</strong> a cabeça em direção<br />

à multidão que formava uma espécie de renda de vesti<strong>do</strong>s brancos e se<br />

amontoava na pista de dança.<br />

— Sou alérgica.<br />

— A flores?<br />

— A casamento.<br />

— Ah — exclama Gabe. — Você não quer se casar? — pergunta. E um<br />

meio sorriso engraça<strong>do</strong> fez covinhas no rosto dele.<br />

— Não. E, para ser ainda mais precisa, não. — Olhei para ele desconfiada,<br />

já me preparan<strong>do</strong> para as costumeiras indagações, o previsível sermão<br />

condescendente, mas isso não aconteceu.<br />

— Eu mesmo nunca dei muita bola para cerimônias de casamento —<br />

diz Gabe, reclinan<strong>do</strong> na cadeira e olhan<strong>do</strong> para mim bem compenetra<strong>do</strong>.<br />

— O casamento nunca fez senti<strong>do</strong> para mim, sério.<br />

Bem, essa conversa pode não ser considerada a quinta-essência <strong>do</strong><br />

romance para as garotas em geral, mas para mim funcionou como um<br />

verdadeiro afrodisíaco (COSPER,2005, p.18/19)<br />

Nesse diálogo Gabe mostra que não havia ainda se pergunta<strong>do</strong> sobre casamentos,<br />

ao passo que Joy não só já o fizera, como já fechara uma posição: ―sou alérgica a<br />

casamento‖. Ao mesmo tempo é interessante perceber que ela interpreta a reação<br />

de Gabe como afrodisíaca, pois para Joy encontrar um homem que compartilhasse<br />

a sua recusa ao casamento seria um sinal de compreensão e evitaria<br />

questionamentos, como ficou evidente no momento supracita<strong>do</strong> em que ela se<br />

prepara para responder à uma série de indagações após revelar não ter vontade de<br />

se casar e as mesmas não acontecem.<br />

Para Gabriel o motivo de tantos casamentos no mesmo perío<strong>do</strong>, 17 em seis meses,<br />

pode ser explica<strong>do</strong> da seguinte maneira: ―provavelmente é apenas um subproduto<br />

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6 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

<strong>do</strong> fato de to<strong>das</strong> as pessoas que você conhece estarem fazen<strong>do</strong> trinta anos‖(p.12).<br />

Neste trecho pode-se perceber que para Gabriel esses amigos podem estar ven<strong>do</strong> o<br />

outro como uma necessidade e não como um possível, tornan<strong>do</strong> o outro e a si<br />

próprio em algo da<strong>do</strong> e não enquanto <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de liberdade de escolha 8 . A procura<br />

pelo mari<strong>do</strong>/esposa é apresentada como mais um objeto de consumo alia<strong>do</strong> ao<br />

carro, à casa própria e as jóias. O apelo ao casamento que se mostra como produto<br />

é da ordem da impessoalidade, <strong>do</strong> apelo ao to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Uni<strong>do</strong> à publicidade que<br />

nutre o merca<strong>do</strong> de novidade e ao imperativo ao consumo, surge um desejo de<br />

casar-se pelo ritual, pelo momento de destaque, pela atenção dispensada, e não em<br />

decorrência <strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong> mais próprio.<br />

Lipovetsky (2004) coloca que os conceitos, forja<strong>do</strong>s socialmente, vêm sen<strong>do</strong><br />

introjeta<strong>do</strong>s pelos indivíduos, e que estes passam a regular suas condutas pelo<br />

imperativo social. Kierkegaard reivindica a autonomia <strong>do</strong> indivíduo diante <strong>do</strong> apelo<br />

<strong>do</strong> geral, no que tange a suas escolhas. Assim, mesmo diante de um projeto de<br />

massificação, o indivíduo decide individualmente, de forma que há sempre outras<br />

<strong>possibilidades</strong>, e como tal, pode e deve exercer sua singularidade, para não se<br />

perder no geral, não se tornar ―mais uma ovelha no rebanho‖, ou ainda um ―eterno<br />

zero‖ (Feijoo, 2004, p.109). No entanto, ressalta-se que Kierkegaard não fala de um<br />

isto ou aquilo, mas de um aprofundamento, <strong>do</strong> eu constituin<strong>do</strong>-se como abertura<br />

(PROTASIO, 2007). Em outro momento, Joy questiona-se sobre a necessidade <strong>do</strong><br />

casamento:<br />

As razões pelas quais as pessoas se casam nesta era - digamos, nos<br />

últimos 50,75 anos - são fundamentalmente diferentes <strong>das</strong> razões pelas<br />

quais o casamento foi concebi<strong>do</strong> e teve utilidade pelos últimos vinte e<br />

poucos séculos. Então, por que se darão trabalho? Casar hoje em dia é<br />

como, sei lá, usar sanguessugas ou sangrias para corrigir um desequilíbrio<br />

<strong>do</strong>s humores em vez de racionalmente tomar um antibiótico <strong>do</strong> século XXI.<br />

(COSPER, 2005, p.24)<br />

Kierkegaard (1994) no texto O matrimônio apresenta alguns porquês <strong>do</strong> matrimônio,<br />

ou seja, razões que levam as pessoas a casarem, tais como: necessidade ética de<br />

que a paixão seja eterna, os que se casam para afirmar seu caráter, os que se<br />

8 Sobre a síntese entre possível/necessário, Protasio (2005) elucida que: ―Fecha<strong>do</strong> em seus<br />

necessários, ou perdi<strong>do</strong> em possíveis, ao eu falta, para uma existência sadia, o reconhecimento de<br />

seus limites, mas também a coragem de arriscar-se, amplian<strong>do</strong> seus limites nos possíveis.‖ (s/p)<br />

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Laura Cristina Eiras Coelho Soares 7<br />

casam para ter filhos, e os que se casam para escapar à solidão. Cabe ressaltar que<br />

Kierkegaard escreveu sobre o século XIX e pode-se questionar se, na atualidade,<br />

guardada as devi<strong>das</strong> proporções históricas, os motivos que levam as pessoas ao<br />

altar são de fato tão distintos daqueles levanta<strong>do</strong>s por Kierkegaard.<br />

A busca pelo casar-se, mesmo desconsideran<strong>do</strong> com quem se casa, também foi<br />

tema <strong>do</strong> filme Ele não está tão afim de você, no qual o casal Beth e Neil,<br />

interpreta<strong>do</strong> pelos atores Jennifer Aniston e Ben Affleck, juntos há sete anos, se<br />

separam em decorrência <strong>do</strong> ultimato da<strong>do</strong> pela mulher que queria casar-se<br />

oficialmente ou então se separar. O personagem de Ben Affleck, declaradamente<br />

contra a cerimônia <strong>do</strong> casamento, opta por manter suas convicções e separar-se. No<br />

filme fica evidente que Beth valoriza tanto a cerimônia que não percebe já estar<br />

viven<strong>do</strong> um casamento. No decorrer da trama, diante <strong>do</strong> a<strong>do</strong>ecimento <strong>do</strong> pai dela,<br />

Neil oferece apoio e, neste momento, Beth se dá conta de que não é a cerimônia<br />

que vai tornar Neil seu mari<strong>do</strong>, mas a relação que ambos estabeleceram. Portanto, o<br />

que representa a cerimônia <strong>do</strong> casamento? A grande ilusão é que se continua a se<br />

comprometer, mesmo quan<strong>do</strong> se teme dar nome ao compromisso.<br />

Parece que no decorrer da trama, Joy a<strong>do</strong>ta um posicionamento flutuante entre o<br />

que Kierkegaard denomina mo<strong>do</strong> estético e mo<strong>do</strong> ético, e por vezes fixa-se em um<br />

mo<strong>do</strong> de existência. No início <strong>do</strong> livro ela coloca as questões que envolvem a idéia<br />

de casamento de maneira evidentemente estética:<br />

não acredito em casamento. Não quero me casar. É verdade, Gabe parece<br />

ser o meu par ideal. Há dias em que eu ainda me surpreen<strong>do</strong> com o quanto<br />

gosto dele. E, é verdade, espero continuar com ele, ad infinitum, até que<br />

estejamos trêmulos, baban<strong>do</strong>, inváli<strong>do</strong>s e incontinentes, e acredito que essa<br />

expectativa seja mútua. Só não quero me casar com ele [...]. Convenções<br />

sociais, o peso dessas expectativas e suposições me dão uma espécie<br />

claustrofobia metafísica. [...] Além disso, in<strong>do</strong> direto ao ponto, não tenho<br />

evidências empíricas de que o casamento seja realmente de to<strong>do</strong> útil ou<br />

eficaz hoje em dia, que faça qualquer bem aos <strong>relacionamento</strong>s ou às<br />

pessoas que participam dele. Pelo contrário, a partir <strong>do</strong> momento em que o<br />

divórcio se tornou legalmente simples, há algumas déca<strong>das</strong>, em to<strong>do</strong> o país<br />

só sayonara, sayonara e sayonara. (COSPER, 2005, p.23)<br />

Assim, a personagem Joy parece temer a vestimenta ética ao recusar-se a usar o<br />

anel e a passar pela cerimônia. O que representa o temor da formalização para ela:<br />

não quer se perder na regra <strong>do</strong> geral, não se perder na multidão, mas acaba<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 7 de 22


8 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

perden<strong>do</strong> o companheiro. Perder-se está sempre em jogo, quer assuma as regras<br />

ou oponha-se a elas. A questão para Kierkegaard é singular, é da ordem de como<br />

eu fundamento o lugar em que estou, quais são os alicerces deste meu ficar onde<br />

estou. Ficar aqui ou lá não é o problema para ele. Alguns podem se casar antes <strong>do</strong>s<br />

trinta anos por que de fato escolheram esta opção, mas Joy a<strong>do</strong>ta uma postura tão<br />

radical que se mostra aprisionada no geral pela oposição, pela busca de não seguir<br />

em absoluto o rebanho.<br />

Em certo momento a atitude estética, onde ―evitan<strong>do</strong> ter de escolher, o esteta não<br />

escolhe ser ele mesmo e, não escolhen<strong>do</strong> ser, a vida escolhe por ele [...]‖ (DANTAS,<br />

2007), encontra lugar no percurso de Joy quan<strong>do</strong> ela aceita o pedi<strong>do</strong> de casamento<br />

de Gabriel e deixa-se ficar noiva. Segun<strong>do</strong> Protasio (2006): ―O homem tende a<br />

esconder <strong>do</strong> outro e de si mesmo seu desespero. Assim agin<strong>do</strong>, perde-se de si<br />

mesmo‖(s/p). Esta colocação se aplica ao fato da personagem Joy ter leva<strong>do</strong><br />

adiante a idéia <strong>do</strong> casamento sem reflexão. Joy abre mão de, em sua liberdade,<br />

optar conhecen<strong>do</strong> e assumin<strong>do</strong> os fundamentos de sua opção, pois deixa desenrolar<br />

os fatos sem interioridade, trata-se da negação da liberdade, como apresenta<strong>do</strong> por<br />

Feijoo (2000), ―quan<strong>do</strong> se deixa que a vida, o acaso ou o tempo deixem as coisas<br />

acontecerem [...] na tentativa de escapar da angústia‖ (FEIJOO, 2000, p.68).<br />

A personagem <strong>do</strong> livro aceita não ser si própria: não assumin<strong>do</strong> a escolha pelo<br />

noiva<strong>do</strong>, deixa-se ser levada ao vento, vive ao mo<strong>do</strong> <strong>do</strong> impessoal, ―sem se dar<br />

conta de que não está escolhen<strong>do</strong>, mas apenas se deixan<strong>do</strong> levar, ou seja,<br />

elegen<strong>do</strong> esteticamente‖ (PROTASIO, 2007, s/p). De acor<strong>do</strong> com Cobra (2001):<br />

Perguntan<strong>do</strong> que estilo e estratégia uma pessoa usa para evitar a<br />

ansiedade, Kierkegaard pergunta como essa pessoa está escravizada por<br />

suas mentiras sobre ela mesma e para ela mesma. Uma forma de fuga é<br />

ignorar o próprio eu, tornar-se um autômato, apegar-se a um papel<br />

(COBRA, 2001, s/p).<br />

Joy definiu que o seu papel seria anti-cerimônia de casamento e se agarrou a este<br />

constructo independentemente <strong>do</strong> que se apresentava diante dela ao longo de sua<br />

trajetória. Manter o papel tornou-se mais importante <strong>do</strong> que o seu <strong>relacionamento</strong> a<br />

ponto de perdê-lo em nome de um posicionamento. Ao final <strong>do</strong> livro o companheiro<br />

de Joy decide pela separação, diferentemente <strong>do</strong> caso supracita<strong>do</strong> presente no<br />

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Laura Cristina Eiras Coelho Soares 9<br />

filme, no qual Neil após retomar o <strong>relacionamento</strong> com Beth a pede em casamento,<br />

passan<strong>do</strong> <strong>do</strong> estético para o ético, fora <strong>do</strong> querer e <strong>do</strong> dever, mas dentro da<br />

existência concreta, da vida mesma deles <strong>do</strong>is.<br />

Outro filme que aborda a questão da formalização da união conjugal é O Filho da<br />

Noiva, película argentina lançada em 2001. A trama foca na trajetória de vida de<br />

Rafael, porém vários enre<strong>do</strong>s paralelos atravessam o percurso <strong>do</strong> personagem, e é<br />

propriamente a história de seus pais que dá nome ao filme e que interessa a este<br />

trabalho. Rafael acompanha a realização da cerimônia de casamento de seus pais,<br />

após muitos anos de união sem formalização, devi<strong>do</strong> às convicções <strong>do</strong> pai que o<br />

levaram a sempre rejeitar atender a um pedi<strong>do</strong> da esposa e casar-se formalmente.<br />

O pai diante da percepção de <strong>finitude</strong>, em decorrência da esposa estar com Mal de<br />

Alzheimer já apresentan<strong>do</strong> dificuldade em reconhecer os familiares, arrepende-se de<br />

não ter realiza<strong>do</strong> o sonho da esposa de casar-se na igreja. O pai decide que irá<br />

casar-se e pede a mão de sua companheira, que de fato já havia testemunha<strong>do</strong> ao<br />

la<strong>do</strong> dele to<strong>do</strong> o seu percurso de vida, sen<strong>do</strong> sua esposa mesmo diante da recusa<br />

dele de ter se casa<strong>do</strong> com ela no início <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong>. Enquanto Joy, a<br />

personagem <strong>do</strong> livro aqui estuda<strong>do</strong>, está no antes, isto é, no me<strong>do</strong>, no filme o<br />

pai/mari<strong>do</strong> permanece inquieto, a inquietação não o aban<strong>do</strong>na e pelo<br />

arrependimento decide casar-se.<br />

Em um momento da trama Joy, contrariada, se deixa envolver pelo clima de emoção<br />

<strong>das</strong> madrinhas ao verem uma amiga vestida de noiva:<br />

Há um involuntário momento de silêncio na presença <strong>do</strong> Vesti<strong>do</strong> da Noiva.<br />

Nem mesmo eu fico imune, apesar de não saber dizer se meu silêncio pode<br />

ser atribuí<strong>do</strong> a uma resposta à imagem icônica, ou à sugestão coletiva, ou<br />

simplesmente à Érica, que está linda e, clichês à parte, radiante<br />

(COSPER,2005, p.57).<br />

Quan<strong>do</strong> se vislumbra ao ver a amiga, Joy reluta em se deixar envolver com a cena,<br />

ao mesmo tempo em que se percebe envolvida. O casamento diz da união de<br />

pessoas que se amam, e Joy enfatiza seu amor por Gabriel, então porque não<br />

casar-se? Ela prefere ficar na reflexão ao invés de partir para a ação, ela não se<br />

permite ceder, por isso tem pena <strong>das</strong> amigas noivas, como relata:<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 9 de 22


10 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

As tradições, digo para mim mesma, nos mantêm em segurança no <strong>do</strong>ce<br />

aconchego <strong>do</strong> que é familiar; são baliza<strong>do</strong>res narrativos que ancoram as<br />

histórias que aprendemos a contar sobre nós mesmos. ―Talvez eu devesse<br />

ficar feliz pelas minhas amigas que encontram nesses momentos o que elas<br />

precisam para viver‖, penso, enquanto Brian se atrapalha para colocar a<br />

aliança no de<strong>do</strong> de Érica. Talvez eu devesse ficar, mas não fico. Quer dizer,<br />

estou feliz pela felicidade delas, mas quero algo mais para elas, algo<br />

melhor, mais novo, mais idealista, amplo, corajoso e puro. O que seria isso,<br />

entretanto, não tenho a menor idéia. (COSPER, 2005, p.62)<br />

Joy quer fugir de uma amarra, mas não percebe que já está amarrada, estar<br />

amarrada é condição da existência, amarrada ao para<strong>do</strong>xo, ao eterno/temporal, ao<br />

necessário/possível, ao finito/infinito. A limitação existe, por isso tem conseqüências<br />

e, portanto, não há como não se arrepender. Joy vive a ilusão de que poderá viver<br />

sem limites e sem amarras.<br />

Uma análise apressada da postura a<strong>do</strong>tada por Joy pode afirmar que se tratava de<br />

uma dificuldade em vincular-se própria <strong>do</strong> estágio estético, como defini<strong>do</strong> por Secco<br />

(2004): ―É um estágio caracteriza<strong>do</strong> pela busca e pela mudança contínua, razão pela<br />

qual o ‗esteta‘ evita quaisquer vínculos, pessoais ou sociais, que prejudiquem a sua<br />

existência‖ (p.929). No entanto, no decorrer <strong>do</strong> embate interno <strong>do</strong>s pensamentos da<br />

personagem torna-se evidente que já existe uma forte relação com seu namora<strong>do</strong><br />

Gabriel, ou seja, há compromisso. Portanto, Joy mostra-se arraigada às suas<br />

convicções, ao dever de mantê-las à qualquer custo que ultrapasse a objetividade<br />

de sua decisão, posto que ―a grandeza não está em haver escolhi<strong>do</strong> isto ou aquilo,<br />

mas em haver escolhi<strong>do</strong> a si mesmo, e to<strong>do</strong> homem pode se escolher‖ (PROTASIO,<br />

2007, s/p). Pode-se questionar se Joy não se escolheu ao optar por manter seu<br />

princípio de nunca quebrar uma promessa, nunca voltar atrás em sua palavra e,<br />

portanto, não casar-se? Restam as perguntas: Joy está se escolhen<strong>do</strong> ou<br />

escolhen<strong>do</strong> suas convicções? E o que seria propriamente se escolher?<br />

Ela constrói este princípio, de não romper suas promessas, a partir de sua<br />

experiência na família de origem pós-divórcio <strong>do</strong>s seus pais, quan<strong>do</strong> seu pai não<br />

apareceu para buscá-la. Seu irmão relembra-a o episódio:<br />

Ele não veio. Prometeu e simplesmente não apareceu. Mamãe ficou furiosa.<br />

Ela disse para a gente que ele tinha feito de propósito para nos ensinar uma<br />

lição. Para nos ensinar que não poderíamos contar com ninguém e que<br />

promessas não significavam nada. Você estava sentada no chão da sala,<br />

muito quieta. Daí você se levantou e anunciou para to<strong>do</strong>s nós que nunca<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 10 de 22


Laura Cristina Eiras Coelho Soares 11<br />

quebraria uma promessa e nunca prometeria algo que não pudesse<br />

cumprir. Mamãe riu de você, mas aí começou a chorar [...] (COSPER,2005,<br />

p.69).<br />

Joy debate-se com este princípio, que repete para si diversas vezes, a fim de se<br />

convencer da decisão de não casar-se. Restrita à única possibilidade de não casar-<br />

se formalmente, uma restrição de <strong>possibilidades</strong> estabelecida por ela mesma, Joy<br />

vive o desespero fechada em suas necessidades. Protasio (2005) identifica este tipo<br />

de desespero como aquele no qual o indivíduo conduz sua existência ―[...]<br />

desconhecen<strong>do</strong> possíveis para si, desenhan<strong>do</strong> uma existência presa a determina<strong>das</strong><br />

condições que ele mesmo impõe, na ilusão de que assim agin<strong>do</strong> as coisas sairão ao<br />

seu contento‖ (PROTASIO, 2005, s/p).<br />

Portanto, este princípio a acompanha de forma cristalizada e rígida, não<br />

encontran<strong>do</strong> flexibilidade, paran<strong>do</strong> o movimento <strong>do</strong> existir. Como seu próprio irmão<br />

sinaliza para ela: ―- A melhor <strong>das</strong> posturas se torna inútil quan<strong>do</strong> deixa de fazer a<br />

pessoa feliz. Neste momento, a sua preciosa integridade está fazen<strong>do</strong> você sofrer‖<br />

(COSPER, 2005, p.68). Ao que ela responde: ―- Pelo contrário, princípios não<br />

significam nada se você os aban<strong>do</strong>na quan<strong>do</strong> se tornam inconvenientes ou<br />

desconfortáveis‖ (COSPER, 2005, p.68).<br />

Retoman<strong>do</strong> a indagação anterior, a respeito da escolha de Joy por si ao escolher o<br />

princípio, escolher a si mesmo é estar aberto às <strong>possibilidades</strong> e assim, não seria<br />

um problema casar-se ou não. Caso ela se remontasse ao primordial, o fato de que<br />

ela já estava com o Gabriel, talvez o encaminhamento da trama fosse outro. A<br />

relação estava estabilizada até que o elemento formal (17 casamentos) fez com que<br />

ela se colocasse em uma situação reduzida a duas <strong>possibilidades</strong>: casar ou não. Ela<br />

está aprisionada à uma promessa e não reconhece que já está comprometida, tanto<br />

que não consegue abrir mão <strong>do</strong> compromisso com ela mesma. Ela não quer se<br />

comprometer no casamento, mas quer manter o compromisso com a promessa.<br />

Concretamente, eles estavam casa<strong>do</strong>s, porém não encontraram uma saída para a<br />

forma. Joy perde de vista a sua união de quase <strong>do</strong>is anos, optan<strong>do</strong> por se manter<br />

presa em conceitos. O afeto <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is não está no papel assina<strong>do</strong> de casamento<br />

formal, está na cotidianidade. No livro o Matrimônio escrito por Kierkegaard (1994), o<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 11 de 22


12 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

Juiz/Assessor Wilhelm defende a forma, o casamento formaliza<strong>do</strong>, promete a<br />

permanência, pois quan<strong>do</strong> se admite a tradição, insere-se a duração na existência.<br />

Esta idéia a respeito <strong>do</strong> casamento, apresentada por Kierkegaard através <strong>do</strong> Juiz,<br />

parece estar representada no discurso da rabina Mina que dialoga com Joy. Apesar<br />

da autora <strong>do</strong> romance não expressar proximidade com a leitura de Kierkegaard as<br />

semelhanças podem ser nota<strong>das</strong> neste fragmento da conversa:<br />

- Rabina, como é que você consegue? Deve ficar tão entediada de ter de<br />

fazer sempre a mesma coisa, mês após mês, noiva após noivo.<br />

- Oh, não, não mesmo – explica Mirna.- Longe disso, mas lembre-se: muito<br />

da religião tem a ver com isso: repetição. [...] Na verdade, o que gosto nos<br />

casamento é essa falta de novidade.<br />

- Não sei se esses casais que uniu iriam gostar de saber que são to<strong>do</strong>s<br />

iguais para você – comenta James, esvazian<strong>do</strong> o copo.<br />

- Pior para eles – diz Mirna, rin<strong>do</strong>. – O que poderia ser menos original <strong>do</strong><br />

que se apaixonar ou se casar? Não há nenhum motivo para que os<br />

casamentos devam ser ou parecer originais, porque o casamento não tem a<br />

ver com novidade. Pelo contrário. Como qualquer tradição, religiosa ou não,<br />

o casamento tem a ver com continuidade. E com os prazeres da repetição.<br />

A mesma pessoa ao seu la<strong>do</strong>, dia após dia, quan<strong>do</strong> você acorda, quan<strong>do</strong><br />

você <strong>do</strong>rme – Mirna cutuca o mari<strong>do</strong>.- Ainda não estou entediada. E você,<br />

Jacob?<br />

- Nem eu – responde ele - , mas são apenas... o quê? Vinte e três anos?<br />

Ainda há muito tempo para eu deixar você entediada, rabina.( COSPER,<br />

2005, p.144/145)<br />

O intuito <strong>do</strong> Juiz é apontar para uma esfera estética que caberia no projeto ético,<br />

defenden<strong>do</strong> que há a possibilidade de manutenção <strong>do</strong> caráter sensível no<br />

casamento, como explica<strong>do</strong> no capítulo anterior, o que difere da idéia de sensível <strong>do</strong><br />

conquista<strong>do</strong>r Johannes <strong>do</strong> texto O Diário <strong>do</strong> Sedutor também de autoria <strong>do</strong><br />

Kierkegaard (2004). Na perspectiva da sedução e <strong>do</strong> descarte, como Johannes que<br />

só faz um intervalo em suas investi<strong>das</strong> para concentrar-se na conquista de Cordélia,<br />

trata-se um posicionamento existencial de conquistar sem prometer, próprio <strong>do</strong><br />

esteta. O estágio estético, vivi<strong>do</strong> por Johannes, pode ser compreendi<strong>do</strong> como<br />

aquele em que:<br />

o indivíduo a<strong>do</strong>ta como critério da existência a busca de um prazer<br />

idealiza<strong>do</strong>, que nunca poderá ser realiza<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong>. Na sucessão pela<br />

qual aceita e recusa tu<strong>do</strong> que lhe é oferta<strong>do</strong> pelo mun<strong>do</strong>, o indivíduo vê a<br />

realização <strong>do</strong> ideal se afastar cada vez mais. Essa negação romântica <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> significa a experiência vivida na imediatidade (SILVA, 2010, s/p).<br />

Enquanto o Juiz Wilhelm propõe o viver ético, caracteriza<strong>do</strong> por um momento em<br />

que:<br />

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Laura Cristina Eiras Coelho Soares 13<br />

a vivência <strong>do</strong> imediato é substituída por uma forma de vida que pretenderia<br />

conferir algo de universal à descontinuidade da experiência. Não mais a<br />

indiferença, mas o compromisso, isto é, a escolha de valores que conferem<br />

estabilidade à existência, a opção por algo que seja mais que o relativo a si<br />

mesmo e inclua uma dimensão geral da vida, isto é, a vida com os outros.<br />

Para o homem ético, a realidade vivida é dura<strong>do</strong>ura e não apenas transitória<br />

(SILVA, 2010, s/p).<br />

A partir <strong>das</strong> reflexões sobre a atualidade apresenta<strong>das</strong> por Bauman (2004) pode-se<br />

considerar que se vive em uma época estética 9 , traduzida no movimento da liquidez<br />

<strong>das</strong> relações sociais e de valorização <strong>do</strong> descarte. A vivência estética é pautada no<br />

sensível, mas no caso de Johannes é enfaticamente marcada pela descartabilidade<br />

característica que é pilar da atualidade. Como descrito por Lipovetski (2004), a<br />

hipermodernidade é: ―caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade‖<br />

(p.26) e, portanto, tem que se estar em constante mudança, descartan<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong><br />

para se viver o momento, o imediato.<br />

A personagem <strong>do</strong> romance aqui estuda<strong>do</strong>, Joy, oscila entre os estágios estético e<br />

ético. Esta tensão de mo<strong>do</strong>s de existência pode ocorrer ao longo <strong>do</strong> percurso <strong>do</strong><br />

existente, como pontua<strong>do</strong> por diversos autores (Oliveira e Cremonezi, s/d; Farago,<br />

2006 e Secco, 2004), e com esta personagem não é diferente. Na existência, os três<br />

estágios descritos por Kierkegaard, o estético, o ético e o religioso, estão presentes<br />

como tensão constante e não evolutivamente. No final <strong>do</strong> livro, no diálogo decisivo<br />

com o seu noivo Gabriel, Joy a<strong>do</strong>ta um posicionamento fortemente estético, que se<br />

contrapõe de maneira contundente com a postura ética de Gabriel. Ele faz a escolha<br />

pelo casamento, se lança, desde o início era o seu projeto, não se preocupa com o<br />

risco que isto pode representar, pois está decidi<strong>do</strong> acerca <strong>do</strong> que deve fazer, que é<br />

se casar: ―- Então que tal marcar uma data para o nosso casamento?‖ (p.291), ao<br />

passo que Joy responde ―- Gabe, não posso me casar com você.‖ (p.291). Gabriel<br />

fica surpreso e questiona se ela está queren<strong>do</strong> romper com o noiva<strong>do</strong>. Joy rebate:<br />

- Não! Não, não, não. Quero ficar com você. Eu quero. Só não quero me<br />

casar. Nem é que não queira. Simplesmente não posso. [...]<br />

- Pode sim – diz Gabe, afinal. – É claro que pode. Por que não poderia?<br />

9 Esta aproximação <strong>das</strong> idéias de autores contemporâneos com o personagem kierkegaardiano <strong>do</strong><br />

sedutor Johannes foi amplamente discutida no trabalho de Mattar (2005).<br />

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14 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

- Porque... – Interessante. Por que é que não posso? Ah,é. Agora sei.<br />

Porque a Henry estava certa. E o meu irmão estava certo. Como é irritante.<br />

- Porque acredito demais no casamento. (COSPER, 2005, p.291)<br />

Joy fica paralisada, não quer viver a escolha, pois toda escolha implica em angústia.<br />

No entanto, não escolher também é escolher. Ela quer resolver o para<strong>do</strong>xo, deseja<br />

que o casamento forneça uma certeza sobre o futuro da relação, uma garantia, mas<br />

isso não é possível. Joy parece transparecer que acredita que com o casamento a<br />

relação irá se esvair, pois o matrimônio concretiza a possibilidade de rompimento e<br />

ela não poderia romper com suas promessas, já que este é o seu princípio a que se<br />

mantém agarrada. Esses elementos podem ser nota<strong>do</strong>s nesse receio de que com o<br />

casamento se perca a relação propriamente, observável no próximo trecho, bem<br />

como em momento, descrito anteriormente, em que ela relata que esperava mais<br />

para as amigas <strong>do</strong> que o casamento.<br />

O diálogo segue:<br />

- Joy, pensei que tínhamos resolvi<strong>do</strong> isso tu<strong>do</strong>. Quero me casar com você.<br />

Quero que seja a minha mulher. Quero ser o seu mari<strong>do</strong>. É isso o que<br />

quero.<br />

- Nem mesmo sei como explicar isso. – Cubro o rosto com as mãos. – Eu<br />

acho... se nos casarmos, não vai ser só eu e você e o que nós <strong>do</strong>is somos<br />

juntos. Vai ser o Casamento. A idéia disso. E tu<strong>do</strong> que quero que o<br />

casamento faça e que o casamento não tem como fazer. Existe esse me<strong>do</strong><br />

e foi por isso que eu disse sim na primeira vez. Mas o que tenho de fazer é<br />

conviver com esse me<strong>do</strong> em vez de acreditar que haja algo que possa me<br />

manter segura, coisa que vai acontecer se me casar com você. (COSPER,<br />

2005, p.292)<br />

Na relação se quer o eterno, mas sabe-se que é abertura e que não se pode ter o<br />

controle <strong>do</strong> depois, a pessoa confia, se entrega, sem garantias. Toda escolha e<br />

decisão é posição psicológica. Nossa posição é sempre decidida, pois somos livres<br />

e na nossa liberdade decide-se, mesmo que não se tenha consciência de si como<br />

escolhe<strong>do</strong>r.<br />

Joy quer que o casamento promova esta segurança, eliminan<strong>do</strong> o fato de que ela e<br />

Gabriel são abertura. Como já havia dito, ela acredita ―demais no casamento‖<br />

(p.291) No entanto, sabe que o matrimônio não cessará sua insegurança, e,<br />

portanto, acha que deve manter esse receio de perder a relação com Gabriel ao<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 14 de 22


Laura Cristina Eiras Coelho Soares 15<br />

invés de se iludir com a promessa de estabilidade <strong>do</strong> casamento. Joy expressa o<br />

que ela julgava fundamental no conceito de casamento:<br />

Eu não conhecia quase ninguém cujos pais ainda fossem casa<strong>do</strong>s, e os que<br />

ainda eram não pareciam viver nada que se assemelhasse à felicidade<br />

conjugal. Foi desde essa época que comecei a considerar o casamento<br />

uma atitude absurda, uma grande ilusão, uma coisa completamente imbecil.<br />

Ainda assim, era aquilo em que as pessoas acreditavam e o que elas<br />

faziam. (COSPER, 2005, p.96)<br />

O que Joy não se pergunta, é se as pessoas que se casam esperam as mesmas<br />

coisas <strong>do</strong> casamento. Esta segurança e realização conjugal eram expectativas da<br />

Joy para o matrimônio e quan<strong>do</strong> concluiu que o matrimônio não iria fornecer esta<br />

certeza, da manutenção e da felicidade, o julgou inútil. Contu<strong>do</strong>, seu desespero é<br />

que se perde nos possíveis esquecen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> necessário, perde-se no infinito<br />

(imaginário), perde-se no eterno fican<strong>do</strong> a pensar como vai ser o futuro, enfim, perde<br />

o movimento. Gabriel insiste: ―- Case comigo, Joy‖. Ela também inflexível: ―Não. Viva<br />

comigo‖ (COSPER, 2005, p.292).<br />

Ao final <strong>do</strong> romance, ela e ele vivem uma restrição ao não abrirem mão de suas<br />

idéias de, respectivamente, não casar-se e casar-se. E, assim, se separam. As<br />

decisões <strong>do</strong> casal ficaram na reflexão, na discussão conceitual <strong>do</strong> casar ou não, o<br />

que ficou de fora foi a vida mesma, o fato de já estarem juntos comprometi<strong>do</strong>s.<br />

Perde-se a existência no seu cotidiano, na tentativa de encontrar uma terminologia<br />

que a esclareça. Se o sensível é indetermina<strong>do</strong>, as determinações - que são da<br />

ordem <strong>do</strong> ético, são também da ordem <strong>do</strong> geral- e a existência são marca<strong>das</strong> pelo<br />

contingencial. A existência começa indeterminada, contu<strong>do</strong> vai ganhan<strong>do</strong><br />

determinação pela cultura, pelo geral, mas não se torna ou isso ou aquilo. Joy quis<br />

resolver o para<strong>do</strong>xo da existência ao tomar a decisão de não casar, mas<br />

permaneceu no impessoal. Ela acha que só pode ser singular caso se mantenha na<br />

oposição, ficou presa só de um la<strong>do</strong> da forma:<br />

O esteta teme ser transforma<strong>do</strong> pelo geral. Tem em suas habilidades e<br />

condições um fator de diferenciação e não quer abafá-lo ou colocá-lo a<br />

serviço <strong>do</strong> outro, porque perderia o que concebe como sen<strong>do</strong> sua<br />

diferenciação [...] Assim o esteta teme o desespero, porque o enxerga<br />

como um chama<strong>do</strong> para romper com estes fatores de diferenciação, e não<br />

quer, jamais, perdê-los (PROTASIO, 2007, s/p).<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 15 de 22


16 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

A escolha de Joy sobre o não-casar, que a fazia se sentir tão diferente <strong>do</strong>s demais,<br />

além de ser compartilhada por outras pessoas é, na verdade, apenas mais uma<br />

escolha possível produzida pelo exterior, pelo geral. Sua opção não está afastada <strong>do</strong><br />

seu tempo e da sociedade, insere-se mesmo que em oposição, sua escolha é<br />

limitada. Ela mostra-se escrava desta oposição, deste orgulho de ser a diferente, no<br />

entanto, o indivíduo só pode ser singular no meio da multidão, se destacar da<br />

multidão ainda é um aprisionamento. Como fica evidente no último diálogo entre os<br />

personagens Joy e Gabriel:<br />

- [...] Quero estar com você. Amo você. Por que é que a gente não pode<br />

simplesmente continuar como está?<br />

- Não sei – diz ele balançan<strong>do</strong> a cabeça –Acho que para você é mais<br />

importante estar certa <strong>do</strong> que ser feliz.<br />

Foi como se ele tivesse me da<strong>do</strong> um tapa na cara.<br />

- Você sabe que não é verdade, Gabe. Não tem nada a ver com estar certa.<br />

Tem a ver com ser verdadeira comigo mesma.<br />

- Ah, sei. Os seus princípios. Como é que pude esquecer?<br />

- Você realmente iria querer que eu simplesmente jogasse fora tu<strong>do</strong> em que<br />

acredito?- pergunto, tremen<strong>do</strong> de me<strong>do</strong> e de raiva.<br />

- Não, Joy, não iria querer isso. Não quero isso. Quero que você se case<br />

comigo.<br />

- Olhe só, quan<strong>do</strong> você me pediu em casamento, disse que eu não devia<br />

impor minhas crenças ao resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E o que acontece quan<strong>do</strong> o resto<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tenta impor suas crenças a mim?<br />

- Você é minoria, Red 10 . Talvez a maioria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> discorde por uma boa<br />

razão [...]<br />

- Talvez - digo a ele. - E talvez não.<br />

Gabe não olha para mim outra vez. Sai <strong>do</strong> barco e vai em direção aos<br />

degraus. Fico olhan<strong>do</strong>, ator<strong>do</strong>ada, sem conseguir acreditar, enquanto ele se<br />

vira, vai embora e desaparece na multidão. Ainda por um bom tempo<br />

permaneço parada olhan<strong>do</strong> na direção <strong>do</strong> lugar onde ele sumiu de vista.<br />

(COSPER, 2005, p.293)<br />

A personagem parece buscar romper com o mun<strong>do</strong>, trata-se <strong>do</strong> desespero de querer<br />

ser si próprio, critican<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> para ser autêntica, ―toman<strong>do</strong>-se como único<br />

agente de seu destino‖ (PROTASIO, 2005). O trabalho clínico consistiria em<br />

acompanhar Joy em suas ilusões. A questão de Joy é ter se escolhi<strong>do</strong> como uma<br />

pessoa aprisionada à forma, no caso, em assumir uma postura de oposição a partir<br />

da qual se acha autêntica, não quer aprender com a angústia. No entanto, o trabalho<br />

terapêutico não é um aconselhamento e precisa fundar-se no acontecimento,<br />

precisa acompanhar esse evento. O primordial é que ela é livre para os possíveis da<br />

vida, a liberdade não se liga com o casar-se ou não, mas com o escolher-se a si<br />

própria. A protagonista pensa em termos de ou isto ou aquilo, e de que há múltiplas<br />

10 Apeli<strong>do</strong> carinhoso que Gabriel utilizava para chamar a Joy, assim como ela o chamava de Gabe.<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 16 de 22


Laura Cristina Eiras Coelho Soares 17<br />

<strong>possibilidades</strong>, contu<strong>do</strong> as opções falam da mesma coisa, qual seja, a abertura que<br />

cada um de nós é, não a abertura para fazer isto ou aquilo, mas abertura para ser.<br />

Esta visão pode ser localizada na seguinte explicação:<br />

As duas <strong>possibilidades</strong> em uma encruzilhada de escolha são o mesmo, são<br />

igualmente pertencentes uma à outra, e não uma oposição excludente.<br />

Assumir que cada uma <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong> é possibilidade, e que aquele que<br />

escolhe está implica<strong>do</strong> em cada um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, é amadurecer a<br />

personalidade. Pensar o ou-ou como duas <strong>possibilidades</strong> excludentes, e<br />

aquele que escolhe estan<strong>do</strong> fora <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, é alimentar a dúvida. A<br />

dúvida, ao postergar a escolha, ilude-se pensan<strong>do</strong> que tem as duas<br />

<strong>possibilidades</strong> bem separa<strong>das</strong> e opostas uma à outra, e não se apercebe<br />

que a vida vai prosseguin<strong>do</strong> [...] (PROTASIO, 2007, s/p).<br />

Toda posição radical é tentativa de resolução, de sair <strong>do</strong> desespero que se é, o que<br />

é impossível de se efetivar, exceto quan<strong>do</strong> se morre. O término <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong><br />

não implica que eles não ficarão juntos posteriormente, é possível que Joy possa<br />

atentar para o sensível, aquilo que a une a Gabriel. E assim, possam retomar o<br />

sensível e, portanto, a união ou que seja Gabe a reconsiderar a situação de um novo<br />

mo<strong>do</strong>. O livro não aposta na promessa <strong>do</strong> ideal romântico, mas investe na vida.<br />

Ninguém se constitui fora de um mun<strong>do</strong>, a questão é que Joy radicaliza porque vê<br />

no casamento uma demanda <strong>do</strong> impessoal e não percebe que ela já está casada,<br />

que o casamento nada mais é que uma contingência da existência. Assim como<br />

Gabriel não abre mão da forma sem notar que já tem o amor de Joy. Ela vê na<br />

adequação ao geral tal temor, e perde o que já ocorreu: o casamento. Preocupada<br />

em manter seu posicionamento contrário ao matrimônio diante <strong>do</strong> apelo <strong>do</strong> geral,<br />

não percebe que está vivencian<strong>do</strong> o casamento, ao rejeitar a forma acaba por<br />

ignorar a relação.<br />

O casamento <strong>do</strong>s personagens já existia, mas não sobreviveu à forma, à<br />

determinação. Formalidade é abstração e não realidade. Muito mais presos à forma<br />

<strong>do</strong> que à realidade, perdem-se na ilusão, no ideal, e perdem o concreto. A ilusão, de<br />

ambos os personagens, Joy e Gabriel, de que somente o casamento formaliza a<br />

união os cegou para o senti<strong>do</strong> de suas existências mesmas, para o caráter de<br />

repetição da mesma e para o fato de que já estavam casa<strong>do</strong>s. A discussão se<br />

mantém na superficialidade, sem que os personagens encontrem a si mesmos e<br />

fundamentem suas justificativas na angústia e no arrependimento. A separação<br />

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18 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

parece servir para abafar a angústia, solucionan<strong>do</strong> rapidamente o problema sob a<br />

fórmula casar ou não casar. O que está perdi<strong>do</strong> é o si mesmo.<br />

O que está em questão em relação ao si mesmo é a tarefa singular que cabe a cada<br />

um de nós, qual seja, ser si-mesmo. Kierkegaard aponta para um deslocamento <strong>das</strong><br />

questões existenciais <strong>do</strong>s problemas da vida para o problema que cada um de nós<br />

é. Joy e Gabriel, sustentam suas existências no superficial, pois entendem a<br />

angústia como se esta apontasse para situações objetivas, esquecen<strong>do</strong>-se que o<br />

que está implica<strong>do</strong> é o senti<strong>do</strong> mesmo da existência.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A interpretação da trama, a partir <strong>das</strong> considerações kierkegaardianas sobre<br />

angústia, desespero e estádios da existência, sustenta-se nas evidências que<br />

surgem ao longo <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> é possível perceber os mo<strong>do</strong>s como,<br />

principalmente, os protagonistas Joy e Gabriel, lidam com a existência. Diante de<br />

uma relação estabelecida e da decisão pela formalização ou não da mesma, Joy<br />

vive a restrição pela negação da oficialização, enquanto Gabriel assume um<br />

posicionamento, também radical, porém no senti<strong>do</strong> contrário.<br />

Quan<strong>do</strong> os personagens, Joy e Gabriel, limitam-se em uma posição, fundamentam<br />

sua existência por princípio, o que denota a negação da sua condição de liberdade e<br />

de indeterminação. Tomar-se como determina<strong>do</strong>, não assumin<strong>do</strong> a angústia como<br />

condição fundamental, aponta para a vivência <strong>do</strong> desespero sob a forma de querer<br />

ser si próprio, imaginan<strong>do</strong> poder resolver por si mesmo a síntese que cada um é.<br />

Desta forma, a história finaliza com o rompimento conjugal, pois atrela<strong>do</strong>s a forma,<br />

Joy e Gabriel perdem o conteú<strong>do</strong> que é a própria relação conjugal e suas<br />

existências mesmas.<br />

As mudanças sociais vivi<strong>das</strong> nas últimas déca<strong>das</strong> são as condições de possibilidade<br />

para o surgimento de um dilema tal qual o de Joy e Gabriel. Neste dilema eles<br />

poderiam, seguin<strong>do</strong> seus amigos, tornarem-se o 18º casamento da temporada,<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 18 de 22


Laura Cristina Eiras Coelho Soares 19<br />

deixan<strong>do</strong>-se levar como uma ovelha no rebanho. Neste lugar, as conseqüências e<br />

des<strong>do</strong>bramentos são também da ordem dessa impessoalidade, logo, quan<strong>do</strong> a<br />

união afetiva encontra obstáculos, esses são entendi<strong>do</strong>s como problemas da forma,<br />

da abstração ―casamento‖ e não como questões próprias a existência.<br />

As idéias Kierkegaardianas reforçam a necessidade <strong>do</strong> indivíduo apropriar-se de si,<br />

de uma reflexão consciente de suas decisões e <strong>das</strong> conseqüências que a<br />

acompanham. Em cada momento histórico, surgem distintos imperativos, porém<br />

sob um olhar kierkegaardiano pode-se afirmar que é na singularidade que se<br />

encontra a possibilidade de se existir para além <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de submissão aos<br />

imperativos. Posto que, a existência é marcada pela implicação de cada um consigo<br />

mesmo e com a tarefa singular de constituir-se na existência, sempre para<strong>do</strong>xal,<br />

onde se implicam os vários pólos desse para<strong>do</strong>xo sem que se possam predefinir os<br />

caminhos.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líqui<strong>do</strong>: sobre a fragilidade <strong>do</strong>s laços humanos. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.<br />

COBRA, Rubem Q. Kierkegaard. Filosofia Contemporânea. 2001. Disponível em:<br />

www.cobra.pages.nom.br. Acesso em: 27/09/2009.<br />

COSPER, Darcy. Temporada de Casamento. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,<br />

2005.<br />

DANTAS, Marília Antunes. Subjetividade moderna: tragicidade e angústia segun<strong>do</strong><br />

Kierkegaard e Freud. Disponível em: www.psicologia.com.pt. Produzi<strong>do</strong> em<br />

18/07/2007. Acesso em 10/04/2009.<br />

FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2006.<br />

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. O estético, o ético e o religioso na<br />

contemporaneidade, in Vanguarda em Psicoterapia fenomenológico-existencial. São<br />

Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004, p.81-111.<br />

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20 <strong>Finitude</strong> <strong>das</strong> <strong>possibilidades</strong>, <strong>finitude</strong> <strong>do</strong> <strong>relacionamento</strong> <strong>amoroso</strong><br />

______. A escuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenológicaexistencial.<br />

São Paulo: Vetor, 2000.<br />

KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. São Paulo, SP: Editora Martin<br />

Claret, 2006.<br />

______. O Diário de um sedutor. São Paulo, SP: Editora Martin Claret, 2004.<br />

______. O Conceito de Angústia. Rio de Janeiro: Petrópolis. Editora Vozes; São<br />

Paulo, SP: Editora Universitária São Francisco, 2010.<br />

______. O Matrimônio. São Paulo: Campinas. Editorial Psy II, 1994.<br />

______. O Conceito de Angústia. São Paulo: Editora Hemus, 1968.<br />

LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Editora Barcarolla, São Paulo,<br />

2004.<br />

MATTAR, Cristine M. A noção de cuida<strong>do</strong> em Heidegger e o estádio estético em<br />

Kierkegaard: uma reflexão sobre os mo<strong>do</strong>s de <strong>relacionamento</strong>s contemporâneos à<br />

luz da psicologia fenomenológico-existencial. Monografia de especialização<br />

apresentada ao Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial <strong>do</strong> Rio de<br />

Janeiro. 2005, s/p.<br />

OLIVEIRA, Ilson e CREMONEZI, André Roberto. A existência humana em seus<br />

estágios estético, ético e religioso, segun<strong>do</strong> Sören Kierkegaard. Revista Eletrônica<br />

Frontistés. Faculdade Palotina- FAPAS. Sem data. Disponível em:<br />

http://www.fapas.edu.br/frontistes/index.php?page=Artigo&artigo_id=57. Acesso em:<br />

27/10/2009.<br />

PROTASIO, Myriam Moreira. O equilíbrio entre o estético e o ético na formação da<br />

personalidade. In: Um dia com Kierkegaard. Evento organiza<strong>do</strong> pelo Instituto de<br />

Psicologia Fenomenológico-Existencial <strong>do</strong> Rio de Janeiro - IFEN no dia 14/04/2007.<br />

No prelo, s/p.<br />

_____. Desespero humano. In: Notas de aula, 2006.<br />

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Laura Cristina Eiras Coelho Soares 21<br />

_____. A compreensão da subjetividade em Kierkegaard. In: V Jornada IFEN,<br />

14/05/2005.<br />

SECCO, Frederico Schwerin. O conhecimento essencial segun<strong>do</strong> Kierkegaard. v, 14<br />

n. 5. Goiânia: Fragmentos de Cultura. maio 2004. pp. 925-941.<br />

SILVA, Franklin Leopol<strong>do</strong> e. Kierkegaard: o indivíduo diante <strong>do</strong> absoluto. In: Revista<br />

Cult, n°116. Publica<strong>do</strong> em 14 de março de 2010. Disponível em:<br />

http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/kierkegaard-o-individuo-diante-<strong>do</strong>absoluto/<br />

Acesso em: 21/04/2010.<br />

STRATHERN, Paul. Kierkegaard em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor,1999.<br />

Filmes cita<strong>do</strong>s:<br />

O Filho da Noiva. Direção: Juan José Campanella. Produção: Mariela Besuievsky<br />

Roteiro: Juan Jose Campanella, Fernan<strong>do</strong> Castets. Argentina, 2001. (124min). Título<br />

original: El Hijo de la Novia.<br />

Ele não está tão afim de você. Direção: Ken Kwapis. Produção: Nancy Juvonen.<br />

Roteiro: Abby Kohn, Marc Silverstein, basea<strong>do</strong> em livro de Greg Behrendt e Liz<br />

Tuccillo. EUA, 2008. (122 min). Título original: He Is Not Just That Into You.<br />

Biblioteca Virtual Fantásticas Vere<strong>das</strong> – FGR, Belo Horizonte dez. 2010 p. 21 de 22


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