09_Samara Inácio e Samarkandra.pdf - CCHLA/UFRN
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vivência 36<br />
106<br />
A orfandade de Rosa se complementa com o status de “estrangeira” da<br />
personagem, que não havia perdido somente os pais, mas também sua Pátria, o<br />
que inviabiliza a conquista da “plena pertinência” mencionada por Pellegrino.<br />
Também vale lembrar que, de certa forma, os órfãos irmanam-se na<br />
elaboração diária de uma solidão acompanhada. Deste modo, sem vaidades, a<br />
vida da protagonista passa a girar em torno de pequenos e permitidos prazeres<br />
como o simples gosto pelo clima outonal, haja vista seu cotidiano, antes da saída<br />
do convento, resumir-se ao ora et labora:<br />
“Ela lavava roupa, varria os quartos, costurava. Enquanto isso<br />
as estações se sucediam. Com a cabeça raspada e o longo<br />
vestido de fazenda grosseira, às vezes, com a vassoura na<br />
mão, espiava pêlos vidros da janela. O outono era a estação de<br />
que mais gostava porque não era preciso sair para vê-lo: atrás<br />
dos vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o<br />
outono”. (Lispector, 1999, p. 89)<br />
Como todo convento, não havia a presença de homens, porém, neste, o<br />
sexo masculino representava o impuro, tanto que “quando um homem pisava no<br />
patamar, lavava-se o chão e queimava-se álcool em cima” (Lispector, 1999, p. 88).<br />
Novamente, a similaridade de gênero entre as internas do convento ressalta a<br />
solidão, evidenciando o ausente conhecimento do corpo, enquanto instrumento<br />
sexual. Acerca do tema, Bernell (2002) afirma:<br />
“[...] o período de internação em ambiente especial constitui<br />
parte significativa do período vital total do indivíduo. Esse<br />
lapso de tempo no qual o indivíduo vive confinado pode deixar<br />
marcas profundas na subjetividade e se configura enquanto<br />
tema de estudo apropriado em si mesmo. A condição de<br />
internado, seja num hospital geral, num hospital psiquiátrico,<br />
numa prisão, num colégio interno, num convento ou seminário,<br />
nos parece em si mesma como um assunto que merece ser<br />
estudado e compreendido” (Bernell, 2002, p. 02)<br />
Ora, as marcas aludidas por Bernell podem ser percebidas na narrativa<br />
através, por exemplo, do gosto pelo outono, que, em princípio, Rosa admira<br />
“porque não era necessário sair para vê-lo” (Lispector, 1999, p. 89), sugerindo, de<br />
início, que o hábito de ficar sempre dentro do convento já fazia parte da própria<br />
subjetividade da personagem e demonstra o desconhecimento acerca do mundo e<br />
de outros indivíduos; entretanto, o outono adquire certo valor para a protagonista:<br />
“atrás dos vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o outono”<br />
(Lispector, 1999, p. 89). Chevalier; Gheerbrant (1997), acerca do simbolismo que<br />
há em torno da folha, afirma: “un bouquet ou une liasse de feuille désignent<br />
l'ensemble d'une collectivité, unie dans une même action et une même pensée”<br />
(Chevalier; Gheerbrant,1997, p. 438). Era isso que Rosa conhecia: uma única<br />
ação, um mesmo pensamento, a coletividade do convento.<br />
Apesar de ter sido publicado como crônica, percebemos que Rosa destoa<br />
das personagens de Clarice Lispector, sempre apontada como criadora de<br />
personagens de ampla densidade psicológica e indecifrável complexidade. Não<br />
obstante ser diferente de personagens como G. H. e Joana há certa fidelidade no<br />
tom narrativo também comum à autora:<br />
“Clarice Lispector se manteria fiel às suas primeiras conquistas<br />
formais. O uso intensivo da metáfora insólita, a entrega ao<br />
fluxo de consciência, a ruptura com o enredo factual têm sido<br />
constantes do seu estilo de narrar que, na sua manifesta<br />
heterodoxia, lembra o modelo batizado por Umberto Eco de<br />
“opera aperta”. Modelo que já aparece, material e<br />
n. 36 2011 p. 103-111