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SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS<br />
JOÃO CALVINO<br />
1Coríntios
1Coríntios - Série Comentários Bíblicos<br />
João Calvino<br />
Título do Original: Calvin’s Commentaries:<br />
The First Epistle of Paul the Apostle to the<br />
Corinthians<br />
Edição baseada na tradução inglesa <strong>de</strong> T. A.<br />
Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans Publishing<br />
Company, Grand Rapids, MI, USA, 1964, e<br />
confrontada com a tradução <strong>de</strong> John Pringle,<br />
Baker Book House, Grand Rapids, MI, USA, 1998.<br />
•<br />
Copyright © Editora Fiel 2013<br />
Primeira Edição em Português 2013<br />
•<br />
Todos os direitos em língua portuguesa<br />
reservados por Editora Fiel da Missão<br />
Evangélica Literária<br />
Proibida a reprodução <strong>de</strong>ste livro por quaisquer meios,<br />
sem a permissão escrita dos editores,<br />
salvo em breves citações, com indicação da fonte.<br />
A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e<br />
Atualizada da Socieda<strong>de</strong> Bíblica do Brasil (SBB)<br />
•<br />
Caixa Postal 1601<br />
CEP: 12230-971<br />
São José dos Campos, SP<br />
PABX: (12) 3919-9999<br />
www.editorafiel.com.br<br />
Diretor: James Richard Denham III<br />
Editor: Tiago Santos<br />
Tradução: Rev. Valter Graciano Martins<br />
Revisão: Editora Fiel<br />
Capa: Edvânio Silva<br />
Diagramação: Rubner Durais<br />
ISBN: 978-85-8132-169-1
Sumário<br />
Prefácio à edição em português..............................................9<br />
Dedicatória...............................................................................13<br />
Segunda Dedicatória...............................................................17<br />
Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios .........21<br />
Capítulo 1<br />
Versículos 1 a 3..............................................................33<br />
Versículos 4 a 9..............................................................41<br />
Versículos 10 a 13..........................................................48<br />
Versículos 14 a 20..........................................................58<br />
Versículos 21 a 25..........................................................72<br />
Versículos 26 a 31..........................................................78<br />
Capítulo 2<br />
Versículos 1 a 2..............................................................87<br />
Versículos 3 a 5..............................................................89<br />
Versículos 6 a 9..............................................................93<br />
Versículos 10 a 13........................................................102<br />
Versículos 14 a 16........................................................107<br />
Capítulo 3<br />
Versículos 1 a 4............................................................115<br />
Versículos 5 a 9............................................................120<br />
Versículos 10 a 15........................................................128<br />
Versículos 16 a 23........................................................137
Capítulo 4<br />
Versículos 1 a 5............................................................147<br />
Versículos 6 a 8............................................................156<br />
Versículos 9 a 15..........................................................161<br />
Versículos 16 a 21........................................................172<br />
Capítulo 5<br />
Versículos 1 a 5............................................................181<br />
Versículos 6 a 8............................................................189<br />
Versículos 9 a 13..........................................................192<br />
Capítulo 6<br />
Versículos 1 a 8............................................................201<br />
Versículos 9 a 11..........................................................212<br />
Versículos 12 a 20........................................................218<br />
Capítulo 7<br />
Versículos 1 a 2............................................................229<br />
Versículos 3 a 5............................................................233<br />
Versículos 6 a 9............................................................238<br />
Versículos 10 a 17........................................................247<br />
Versículos 18 a 24........................................................256<br />
Versículos 25 a 28........................................................262<br />
Versículos 29 a 35........................................................267<br />
Versículos 36 a 38........................................................276<br />
Versículos 39 a 40........................................................282<br />
Capítulo 8<br />
Versículos 1 a 7............................................................285<br />
Versículos 8 a 13..........................................................296<br />
Capítulo 9<br />
Versículos 1 a 12..........................................................303
Versículos 13 a 22........................................................314<br />
Versículos 23 a 27........................................................326<br />
Capítulo 10<br />
Versículos 1 a 5............................................................335<br />
Versículos 6 a 12..........................................................343<br />
Versículos 13 a 18........................................................354<br />
Versículos 19 a 24........................................................362<br />
Versículos 25 a 33........................................................368<br />
Capítulo 11<br />
Versículos 1 a 16..........................................................375<br />
Versículos 17 a 22........................................................391<br />
Versículos 23 a 29........................................................401<br />
Versículos 30 a 34........................................................421<br />
Capítulo 12<br />
Versículos 1 a 7............................................................429<br />
Versículos 8 a 13..........................................................435<br />
Versículos 14 a 27........................................................442<br />
Versículos 28 a 31........................................................449<br />
Capítulo 13<br />
Versículos 1 a 3............................................................455<br />
Versículos 4 a 8............................................................459<br />
Versículos 9 a 13..........................................................466<br />
Capítulo 14<br />
Versículos 1 a 6............................................................473<br />
Versículos 7 a 17..........................................................479<br />
Versículos 18 a 25........................................................489<br />
Versículos 26 a 33........................................................499<br />
Versículos 34 a 40........................................................508
Capítulo 15<br />
Versículos 1 a 10..........................................................517<br />
Versículos 11 a 19........................................................529<br />
Versículos 20 a 28........................................................537<br />
Versículos 29 a 34........................................................548<br />
Versículos 35 a 50........................................................559<br />
Versículos 51 a 58........................................................571<br />
Capítulo 16<br />
Versículos 1 a 7............................................................583<br />
Versículos 8 a 12..........................................................588<br />
Versículos 13 a 22........................................................592
Prefácio à Edição em Português<br />
As cartas <strong>de</strong> Paulo à igreja <strong>de</strong> Corinto formam uma importante<br />
parte do cânon no Novo Testamento. Os problemas que surgiram naquela<br />
igreja, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m doutrinária, prática e litúrgica, <strong>de</strong>ram ensejo<br />
ao apóstolo <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r com orientações cujo valor, relevância e<br />
aplicação transcen<strong>de</strong>m, em muito, os limites daquela época e lugar,<br />
chegando aos nossos dias como a inspirada Palavra <strong>de</strong> Deus.<br />
A semelhança entre a situação da igreja <strong>de</strong> Corinto e as igrejas<br />
evangélicas no Brasil na primeira meta<strong>de</strong> do século XXI é surpreen<strong>de</strong>nte.<br />
Junto com a vitalida<strong>de</strong> e o crescimento numérico, ambas<br />
compartilham <strong>de</strong>safios similares: divisões internas, li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong>spreparada,<br />
falta <strong>de</strong> disciplina, questões relacionadas com o papel das<br />
mulheres na igreja e do uso dos dons espirituais nos cultos, além da<br />
infiltração <strong>de</strong> heresias perniciosas, como a negação da ressurreição<br />
dos mortos.<br />
Por estes motivos, entre outros, 1 e 2 Coríntios estão entre as<br />
cartas paulinas mais relevantes para os nossos dias. E, naturalmente,<br />
bons comentários que nos aju<strong>de</strong>m a entendê-las mais e melhor são<br />
muito bem vindos.
10 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
É o caso do comentário que o leitor tem em mãos.<br />
João Calvino publicou este comentário em 1546, quando era pastor<br />
da igreja reformada <strong>de</strong> Genebra. O comentário fazia parte <strong>de</strong> uma<br />
série <strong>de</strong> outros cuja base era suas pregações expositivas nos livros do<br />
Novo Testamento. Quando nos lembramos <strong>de</strong> que este ano em particular<br />
foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s preocupações e aflições para o Reformador – as<br />
ameaças <strong>de</strong> Carlos V contra a Reforma e uma acusação <strong>de</strong> heresia<br />
contra Calvino por dois pastores (alcoólatras) <strong>de</strong> Genebra – ficamos<br />
admirados <strong>de</strong> como, apesar <strong>de</strong> tudo isto, Calvino encontrou tempo e<br />
paz <strong>de</strong> espírito para preparar e publicar um comentário <strong>de</strong>ste porte.<br />
Os comentários <strong>de</strong> Calvino, apesar <strong>de</strong> terem sido escritos a cerca<br />
<strong>de</strong> 450 anos atrás continuam entre os mais vendidos, lidos e consultados<br />
pelos estudiosos da Bíblia. Isto se <strong>de</strong>ve a vários fatores que<br />
fizeram <strong>de</strong> Calvino um dos melhores exegetas das Escrituras na longa<br />
história da Igreja Cristã.<br />
Primeiro, sua confiança inabalável nas Escrituras como a Palavra<br />
autoritativa e infalível <strong>de</strong> Deus, o que o conduzia a sondar <strong>de</strong> maneira<br />
respeitosa os seus mistérios.<br />
Segundo, sua preparação pessoal. Calvino conhecia as línguas<br />
originais da Bíblia, era versado nos Pais da Igreja, estava familiarizado<br />
com os teólogos e intérpretes que vieram antes <strong>de</strong>le, além <strong>de</strong> uma<br />
vasta educação literária e filosófica <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> sua formação humanista.<br />
Terceiro, Calvino amava a brevida<strong>de</strong> e a clareza, duas características<br />
indispensáveis <strong>de</strong> qualquer autor que queira realmente ser lido e<br />
compreendido. É impressionante como ele consegue com poucas palavras<br />
nos transmitir <strong>de</strong> maneira profunda e clara o significado da mente<br />
do apóstolo Paulo ao escrever esta carta aos coríntios.<br />
Quarto, Calvino não se per<strong>de</strong> em discussões fúteis e inúteis. Mesmo<br />
quando ele trata <strong>de</strong> aplicações contemporâneas dos princípios<br />
que <strong>de</strong>scobre nas palavras do apóstolo Paulo, ele o faz <strong>de</strong> tal forma<br />
que o leitor mo<strong>de</strong>rno consegue encontrar aplicações para seus próprios<br />
dias.
Prefácio à Edição em Português • 11<br />
Quinto, o sistema teológico <strong>de</strong> Calvino – que mais tar<strong>de</strong> veio a ser<br />
chamado <strong>de</strong> calvinismo por seus discípulos – funcionava como fator<br />
<strong>de</strong> coerência e integração em seu pensamento, orientando seu pensamento<br />
e organizando suas i<strong>de</strong>ias, <strong>de</strong> maneira que seus comentários<br />
refletem uma unida<strong>de</strong> e coesão interna surpreen<strong>de</strong>ntes. É muito fácil<br />
para quem escreve comentários se contradizer num ponto ou noutro<br />
ao analisar diferentes passagens. A coesão do pensamento <strong>de</strong> Calvino<br />
livrou-o <strong>de</strong>ste perigo a maior parte do tempo.<br />
Por último, Calvino escreveu comentários não com o objetivo<br />
<strong>de</strong> contribuir, <strong>de</strong> maneira acadêmica, para que os estudiosos <strong>de</strong> sua<br />
época satisfizessem sua curiosida<strong>de</strong> sobre passagens difíceis <strong>de</strong> 1Coríntios.<br />
Não, ele escreveu com coração pastoral, com o objetivo <strong>de</strong><br />
aplicar as verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta carta às consciências <strong>de</strong> seus leitores. Por<br />
este motivo, suas explicações com frequência são entremeadas com<br />
conceitos teológicos que <strong>de</strong>saguam em consi<strong>de</strong>rações práticas. O comentário<br />
<strong>de</strong> Calvino em 1Coríntios satisfaz mente e coração.<br />
Por estes motivos, além da minha dívida teológica a João Calvino,<br />
é que me sinto profundamente honrado em escrever este prefácio.<br />
Augustus Nico<strong>de</strong>mus Lopes, Ph.D.<br />
São Paulo, Novembro <strong>de</strong> 2013.
Dedicatória<br />
Ao mui ilustre varão, Tiago, senhor da Borgúndia,<br />
<strong>de</strong> Falais e <strong>de</strong> Breda etc. 1<br />
Neste meu comentário, esforcei-me por fazer uma exposição <strong>de</strong>sta<br />
epístola <strong>de</strong> Paulo, a qual não é menos difícil do que [em extremo] valiosa.<br />
Muitos me têm solicitado este comentário; na verda<strong>de</strong>, há muito<br />
tempo que fazem insistente apelo por sua publicação. Agora que está<br />
publicado, tão-somente <strong>de</strong>sejo que o mesmo venha igualmente satisfazer<br />
suas esperanças e anseios. Não digo isto com o fim <strong>de</strong> granjear<br />
alguma recompensa para meu trabalho na forma <strong>de</strong> louvor, porquanto<br />
tal ambição <strong>de</strong>ve ficar longe dos servos <strong>de</strong> Cristo; mas o que <strong>de</strong>sejo<br />
é gerar benefício para todos, e não posso alcançar tal objetivo se ele<br />
não for aceitável. Tenho <strong>de</strong>veras labutado com a máxima fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e<br />
diligência para que, sem qualquer importunida<strong>de</strong>, a obra seja do mais<br />
elevado valor para a Igreja <strong>de</strong> Deus. Quanto mais êxito tiver, mais meus<br />
leitores julgarão <strong>de</strong> acordo com a real praticida<strong>de</strong> da obra.<br />
De qualquer forma, creio que consegui fazer com que este comentário<br />
seja <strong>de</strong> inusitada ajuda na conquista <strong>de</strong> uma completa<br />
1 Após 1551, esta <strong>de</strong>dicatória foi suprimida das edições do comentário, em <strong>de</strong>corrência da<br />
disputa que suscitou-se entre Calvino e o senhor <strong>de</strong> Falais sobre Balsec. Mantemo-la aqui<br />
porque a segunda <strong>de</strong>dicatória faz alusão ao inci<strong>de</strong>nte.
14 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
compreensão do pensamento <strong>de</strong> Paulo. Certamente, meu honorável<br />
senhor, estou certo <strong>de</strong> que vós achareis plenamente compreensível,<br />
e até mesmo indispensável, que vos aconselhe a não permitir-vos que<br />
fiqueis excessivamente afeiçoado a mim. Mesmo que tal aconteça, não<br />
obstante terei vosso veredito na mais elevada conta, a fim <strong>de</strong> que eu<br />
possa consi<strong>de</strong>rar meu trabalho como tendo atingido seu mais elevado<br />
sucesso, se porventura tiver alcançado vossa inestimável aprovação.<br />
Além do mais, ainda que vo-lo <strong>de</strong>diquei, não foi só na esperança<br />
<strong>de</strong> ele vos agradar, mas por muitas outras razões, das quais a mais<br />
importante é que vossa vida pessoal confirme perfeitamente um dos<br />
temas da carta <strong>de</strong> Paulo. Pois enquanto no presente tempo há tantos<br />
que convertem o evangelho numa filosofia fria e acadêmica, acreditando<br />
que têm feito tudo quanto <strong>de</strong>les é requerido, e feito <strong>de</strong>vidamente,<br />
embora acenem suas cabeças em assentimento ao que têm dito, vós,<br />
por outro lado, para nós sois um conspícuo exemplo <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r vivo<br />
sobre o qual Paulo insiste tanto. O que pretendo dizer é que quando<br />
olhamos para vós, compreen<strong>de</strong>mos o que significa esse vigor espiritual<br />
que, afirma Paulo, jorra do evangelho. Naturalmente, não faço menção<br />
<strong>de</strong>ssas coisas para vossa satisfação pessoal, senão que acredito ser <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> importância do ponto <strong>de</strong> vista do exemplo [cristão].<br />
Vós pertenceis à primeira classe da nobreza, obtivestes e usufruístes<br />
<strong>de</strong> elevada e ilustre posição na vida, e sois prendado com<br />
qualida<strong>de</strong>s e riquezas (posições que se acham atualmente todas enxameadas<br />
<strong>de</strong> corrupções!). Ora, certamente seria algo por si mesmo<br />
importante se vós, em tais circunstâncias, não só levásseis uma vida<br />
disciplinada e temperada, mas também conservásseis vossa família<br />
sob controle mediante uma a<strong>de</strong>quada e saudável disciplina. De fato<br />
ten<strong>de</strong>s levado ambos estes [<strong>de</strong>veres] ao pleno cumprimento. Pois<br />
vosso comportamento tem sido tal, que a todos tem sido uma clara<br />
evidência <strong>de</strong> que não há em vós o menor traço <strong>de</strong> egoísmo.<br />
Sempre que foi necessário que mantivésseis vosso esplendor,<br />
o fizestes <strong>de</strong> tal forma que estabeleceu-se um mo<strong>de</strong>rado padrão <strong>de</strong><br />
vida, e jamais houve qualquer rasgo <strong>de</strong> mesquinhez ou <strong>de</strong> avareza;
Dedicatória • 15<br />
e, todavia, sempre bem a <strong>de</strong>scoberto, evitastes mais do que buscastes<br />
um magnificente estilo <strong>de</strong> vida. Ten<strong>de</strong>-vos mostrado tão cortês e<br />
consi<strong>de</strong>rado, que todos foram forçados a louvar vosso <strong>de</strong>spretencioso<br />
comportamento. De fato não há a mais leve evidência <strong>de</strong> orgulho ou<br />
<strong>de</strong> arrogância que viesse a gerar ofensa em alguém. No que tange a<br />
vossa família, é-nos suficiente dizer, numa palavra, que tem sido ela<br />
conduzida <strong>de</strong> tal maneira como para refletir a mente <strong>de</strong> seu senhor e<br />
<strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> vida, precisamente como um espelho reflete a imagem<br />
<strong>de</strong> alguém. Tal coisa por si só teria dado ao povo um claro e notável<br />
exemplo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> a ser imitada.<br />
Mas há algo que consi<strong>de</strong>ro ainda mais importante. Ten<strong>de</strong>s sido<br />
erroneamente acusado diante do Imperador pelos embustes <strong>de</strong> homens<br />
ímpios, e que, por nenhuma outra razão senão o fato <strong>de</strong> que<br />
imediatamente o reino <strong>de</strong> Cristo começa a fazer progresso em alguns<br />
lugares, os leva à <strong>de</strong>mência e frenesi. Mas (e eis o que é mui importante)<br />
ten<strong>de</strong>s mantido uma coragem que nada tem a ver com <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>,<br />
e agora estais vivendo como num exílio <strong>de</strong> vossa terra natal, com uma<br />
gran<strong>de</strong> porção <strong>de</strong> estima como tivestes anteriormente, quando a honráveis<br />
com vossa presença. Não pretendo mencionar outros fatores,<br />
visto que seria tedioso adicionar algo mais. Na verda<strong>de</strong>, os cristãos<br />
<strong>de</strong>vem sempre consi<strong>de</strong>rar como algo mais que comum e costumeiro,<br />
não só <strong>de</strong>ixar estados, castelos e <strong>de</strong>sprezar, em comparação a ele<br />
[Cristo], tudo quanto é tido como mui precioso na terra. Entretanto,<br />
quase todos nós somos negligentes e indiferentes a pactos, <strong>de</strong> modo<br />
que a virtu<strong>de</strong> particular é especialmente merecedora <strong>de</strong> nossa admiração.<br />
Portanto, no tempo em que po<strong>de</strong>mos vê-lo tão nitidamente em<br />
vós, só <strong>de</strong>sejo que tal fato possa <strong>de</strong>spertar muitas pessoas, <strong>de</strong> modo<br />
que queiram imitar tal atitu<strong>de</strong>, e, em vez <strong>de</strong> continuarem para sempre<br />
escon<strong>de</strong>ndo-se em seu confortável aconchego, possam um dia sair em<br />
público trazendo toda a centelha do espírito cristão que porventura<br />
tenham.<br />
Ora, quando os homens vos atacam trazendo freqüentemente novas<br />
acusações contra vós, fazem notório que são violentos inimigos da
16 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
religião, e nada ganharão disto senão fazer-se mais e mais <strong>de</strong>testáveis,<br />
favorecendo mui contun<strong>de</strong>ntemente a mentira. Com certeza alguns,<br />
em seu são juízo, acreditam que os tais são cães raivosos, visto que<br />
procuram estraçalhar-vos, e então, ao perceberem que não po<strong>de</strong>m<br />
abocanhar-vos, vingam-se ladrando contra vós. É bom que assim façam<br />
a certa distância, pois então não conseguirão causar-vos nenhum<br />
dano. Mas, ainda que os maus feitos dos ímpios resultem na perda <strong>de</strong><br />
muitas <strong>de</strong> vossas possessões, em nada diminuem da glória real com<br />
que os crentes vos consi<strong>de</strong>ram. Mas, como cristão que sois, <strong>de</strong>veis ter<br />
uma visão mais ampla que esta. Pois não estais satisfeito com nada<br />
mais senão com a glória celestial, a qual vos é guardada com Deus, e<br />
que será trazida à luz assim que nossa natureza externa perecer.<br />
Mui ilustre senhor, e nobre família, a<strong>de</strong>us. Que o Senhor Jesus vos<br />
guar<strong>de</strong> a salvo perenemente, para a expansão <strong>de</strong> seu Reino; e que ele<br />
mesmo vos conserve sempre vitorioso sobre Satanás e sobre toda a<br />
hoste <strong>de</strong> seus inimigos.<br />
Genebra, 24 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1546
Segunda Dedicatória<br />
Saudação a um fidalgo, mais excelente por suas virtu<strong>de</strong>s do que por<br />
seu nobre nascimento, senhor Galliazo Carracciolo, filho único e legítimo<br />
her<strong>de</strong>iro do Marquês <strong>de</strong> Vico.<br />
Quando este comentário foi pela primeira vez publicado, eu não<br />
tinha conhecimento ou não estava totalmente familiarizado com o<br />
homem cujo nome anteriormente apareceu nesta página, e agora sou<br />
obrigado a suprimi-lo. Certamente, não me sinto temeroso <strong>de</strong> que venha<br />
ele a acusar-me <strong>de</strong> levianda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> queixar-se <strong>de</strong> mim por ter<br />
subtraído <strong>de</strong>le o que outrora lhe <strong>de</strong>ra; pois, tendo ele <strong>de</strong>liberadamente<br />
procurado não só manter-se tão longe quanto possível <strong>de</strong> mim, pessoalmente,<br />
e também por <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r-se com nossa igreja, ficou<br />
sem qualquer justificativa para protestar. Entretanto, é com relutância<br />
que renuncio minha costumeira prática e elimino <strong>de</strong> meus escritos o<br />
nome <strong>de</strong> alguém; e lamento muito que tal pessoa tenha caído da elevada<br />
posição que eu lhe tenha dado, o que significa que ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> dar<br />
bom exemplo a outrem, precisamente como eu esperava <strong>de</strong>le. Porém,<br />
visto que a cura <strong>de</strong>ste mal não se acha em minhas mãos, então que tal<br />
pessoa, no que me diz respeito, fique em total olvido, pois ainda agora
18 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
sinto-me ansioso por calar-me sobre ela, e portanto sem mais trazer<br />
qualquer prejuízo a sua reputação.<br />
Mas, no que concerne a vós, mui honrado senhor, eu teria que encontrar<br />
algum pretexto para então substituir o outro nome pelo vosso,<br />
embora não me aventurei a tomar tal liberda<strong>de</strong>, confiando em vossa<br />
insuspeitável bonda<strong>de</strong> e amor para comigo, o que é notoriamente<br />
conhecido <strong>de</strong> todos os nossos amigos. Voltando a mencionar meus <strong>de</strong>sejos,<br />
gostaria <strong>de</strong>veras <strong>de</strong> ter-vos conhecido há <strong>de</strong>z anos atrás, porque<br />
não teria tido motivo algum para fazer agora tal mudança. E esta se<br />
presta agora tanto para o bem quanto para servir <strong>de</strong> exemplo à Igreja<br />
como um todo, não só pelo fato <strong>de</strong> que não vamos sentir que sofremos<br />
alguma perda ao esquecermo-nos daquele que se afastou <strong>de</strong> nós, mas<br />
porque seremos compensados, em vós, por um exemplo ainda mais<br />
rico, e <strong>de</strong>veras preferível, em todos os sentidos. Porque, ainda que não<br />
estais correndo após os aplausos do povo, vivendo satisfeito em ter<br />
Deus como vossa única testemunha; e ainda que não tenho nenhuma<br />
intenção <strong>de</strong> cantar-vos louvores, todavia meus leitores não <strong>de</strong>vem ser<br />
<strong>de</strong>ixados completamente em trevas acerca do que lhes é proveitoso<br />
e benéfico saber. Sois um homem nascido numa família nobre; gozais<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prestígio e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s riquezas; fostes abençoado com uma<br />
esposa da mais nobre origem e da mais elevada virtu<strong>de</strong>, com muitos<br />
filhos, com paz e harmonia em vosso lar; na verda<strong>de</strong> ten<strong>de</strong>s sido<br />
abençoado em todas as circunstâncias <strong>de</strong> vossa vida. Mas para que<br />
passásseis para o campo <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong>ixastes espontaneamente vossa<br />
terra natal, abandonastes proprieda<strong>de</strong>s férteis e aprazíveis, esplêndida<br />
herança e uma casa tanto <strong>de</strong>leitosa quanto espaçosa; privastes-vos<br />
<strong>de</strong> um habitual e magnificente estilo <strong>de</strong> vida; separastes-vos <strong>de</strong> pai,<br />
esposa, filhos, parentela e congêneres; e após dizer a<strong>de</strong>us a tantas<br />
atrações mundanas, e sentindo-vos feliz com nossas <strong>de</strong>pauperadas<br />
circunstâncias, adotastes nosso frugal modo <strong>de</strong> vida, o padrão <strong>de</strong> gente<br />
simples, assim vos tornastes um <strong>de</strong> nós.<br />
Enquanto relato todas estas coisas a outros, não posso <strong>de</strong> modo<br />
algum esquecer-me dos benefícios que pessoalmente recebo. Pois em-
Segunda Dedicatória • 19<br />
bora eu exponha vossas virtu<strong>de</strong>s ante os olhos <strong>de</strong> meus leitores, aqui,<br />
como num espelho, para que possam imitá-las, ser-me-ia <strong>de</strong>primente,<br />
tendo-as diante <strong>de</strong> meus próprios olhos, não para ser mais profundamente<br />
influenciado, à luz do fato <strong>de</strong> que as vejo mui claramente todos<br />
os dias. Mas, visto que realmente sei <strong>de</strong> experiência própria o quanto<br />
vosso exemplo significa para o fortalecimento <strong>de</strong> minha própria fé e<br />
<strong>de</strong>voção, e visto que todos os filhos <strong>de</strong> Deus que estão aqui reconhecem,<br />
juntamente comigo,que têm extraído extraordinário benefício<br />
<strong>de</strong>sse vosso exemplo, consi<strong>de</strong>rei, quanto a mim, fazê-lo notório, para<br />
que um círculo cada vez mais amplo <strong>de</strong> pessoas pu<strong>de</strong>sse usufruir da<br />
mesma bênção. Outrossim, seria estultície falar <strong>de</strong>talhadamente em<br />
louvor <strong>de</strong> um homem, cuja natureza e temperamento são tão <strong>de</strong>spidos<br />
<strong>de</strong> ostensivida<strong>de</strong> quanto se po<strong>de</strong> imaginar, e, ainda mais, proce<strong>de</strong>r<br />
assim na presença <strong>de</strong> estranhos e em lugares longínquos. Portanto,<br />
se tantas pessoas, que nada sabem <strong>de</strong> vossa vida pregressa, por viverem<br />
distantes <strong>de</strong> vós, têm este admirável exemplo diante <strong>de</strong> si e se<br />
prepararam para <strong>de</strong>ixar seu comodismo, ao qual são tão inclinadas, e<br />
imitar vosso exemplo, serei amplamente recompensado pelas coisas<br />
que tenho escrito.<br />
Os cristãos, realmente, <strong>de</strong>vem sempre consi<strong>de</strong>rar como algo mais<br />
do que meramente comum e costumeiro, não só <strong>de</strong>ixar estados, castelos<br />
e posições nobres, sem pesares, se porventura é impossível seguir<br />
a Cristo <strong>de</strong> outra forma; mas também estar sempre prontos e dispostos<br />
a <strong>de</strong>sprezar, em comparação a ele [Cristo], tudo quanto é reputado<br />
como por <strong>de</strong>mais precioso sobre a terra. Todos nós, porém, somos por<br />
<strong>de</strong>mais negligentes, ou, antes, tão indiferentes que, enquanto muitos<br />
acenam suas cabeças em formal assentimento ao ensino do evangelho,<br />
raramente um em cem, talvez possuidor <strong>de</strong> um insignificante sítio,<br />
permitirá ser arrancado <strong>de</strong>le por causa do evangelho. A não ser em<br />
meio à mais profunda relutância, dificilmente alguém se persuadiria a<br />
renunciar a menor vantagem que seja, o que revela quão longe estão<br />
os homens <strong>de</strong> sentir-se preparados a renunciar a própria vida, como<br />
<strong>de</strong>vem fazê-lo. Acima <strong>de</strong> tudo, meu <strong>de</strong>sejo é que todos se espelhem em
20 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
vosso espírito <strong>de</strong> renúncia, a primeira <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s. Pois sois a<br />
pessoa mais bem indicada a testificar <strong>de</strong> mim, e eu <strong>de</strong> vós, quão pouco<br />
<strong>de</strong>leite encontramos no companheirismo daqueles que, ao <strong>de</strong>ixarem<br />
sua terra natal, acabam revelando nitidamente que trouxeram consigo<br />
as mesmas perspectivas que alimentavam lá. Porém, visto que é melhor<br />
para meus leitores refletirem sobre estas coisas em sua própria<br />
mente, em vez <strong>de</strong> verbalizá-las, eu agora me ponho em oração ao Deus<br />
que até aqui vos tem encorajado através do portentoso po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu<br />
Espírito, visando a que vos muna ele perenemente <strong>de</strong> invencível disposição.<br />
Pois estou bem cônscio do modo como Deus vos disciplinou<br />
com muitas e duras lutas, porém, com notável percepção, percebestes<br />
que severas e renhidas hostilida<strong>de</strong>s ainda permanecem diante <strong>de</strong><br />
vós. E visto que muitas experiências vos têm ensinado quão realmente<br />
necessário é que do céu se vos estenda uma [benfazeja] mão, <strong>de</strong>veis<br />
prontificar-vos a juntar-vos a mim em fervente oração a Deus pelo dom<br />
da perseverança. Quanto a mim, particularmente, orarei a Cristo, nosso<br />
Rei, a quem o Pai conferiu suprema autorida<strong>de</strong>, e em cujas mãos<br />
foram colocados todos os tesouros das bênçãos espirituais, rogando-<br />
-lhe que vos guar<strong>de</strong> em segurança, a fim <strong>de</strong> que venhais a permanecer<br />
longo tempo conosco para a expansão <strong>de</strong> seu Reino; e para que ele<br />
prossiga a usar-vos na obtenção da vitória sobre Satanás e seus seguidores.<br />
24 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1556<br />
(<strong>de</strong>z anos após a primeira publicação <strong>de</strong>ste comentário)
Análise da Primeira Epístola<br />
<strong>de</strong> Paulo aos Coríntios<br />
Esta carta é <strong>de</strong> diversas formas valiosa; pois ela contém tópicos 1<br />
especiais e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância. Em proporção que forem sendo<br />
<strong>de</strong>senvolvidos, sucessivamente em sua or<strong>de</strong>m, a discussão por si só<br />
os esclarecerá à medida da necessida<strong>de</strong> para sua compreensão. E <strong>de</strong><br />
fato isso se dará <strong>de</strong> forma muito clara nesta mesma avaliação. Tentarei<br />
apresentar este tema <strong>de</strong> forma breve, porém, ao mesmo tempo,<br />
pretendo fornecer um sumário completo do mesmo, sem, contudo,<br />
per<strong>de</strong>r algum <strong>de</strong> seus pontos principais.<br />
É bem notório o fato <strong>de</strong> que Corinto era uma rica e famosa cida<strong>de</strong><br />
da Acaia. Quando L. Mummius a <strong>de</strong>struiu (em 146 a.C.), ele o fez simplesmente<br />
porque sua vantajosa situação o levou a suspeitar do lugar.<br />
Mas um povo <strong>de</strong> tempos posteriores a reconstruiu pela mesma razão<br />
que ele (L. Mummius) a <strong>de</strong>struiu, 2 quando as mesmas vantagens topográficas<br />
a levaram a ser restaurada num curto espaço <strong>de</strong> tempo. Visto<br />
estar ela situada nas proximida<strong>de</strong>s do Mar Egeu, <strong>de</strong> um lado, e do Mar<br />
1 “Bonnes matieres, et points <strong>de</strong> doctrine” – “Bons temas e pontos <strong>de</strong> doutrina.”<br />
2<br />
2<br />
Estrabo <strong>de</strong>screve Mummius como “μεγαλαφρων μαλλον ἠ φιλοτεχνος” – “um<br />
homem mais magnânimo do que amante das artes.”
22 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Jônio, do outro, e visto que ela ficava no istmo que liga a Ática e o Peloponésio,<br />
então i<strong>de</strong>almente se a<strong>de</strong>quava à importação e exportação<br />
<strong>de</strong> mercadorias.<br />
Em Atos, Lucas nos conta que, após ter Paulo ensinado ali durante<br />
um ano e meio, ele foi obrigado, em virtu<strong>de</strong> do comportamento<br />
ultrajante dos ju<strong>de</strong>us, a viajar dali para a Síria. Durante a ausência <strong>de</strong><br />
Paulo, falsos apóstolos se infiltraram na região. Não vieram (em minha<br />
opinião) com o fim <strong>de</strong> perturbar a Igreja obviamente com um ensinamento<br />
heterodoxo, ou intencionalmente, por assim dizer, causar dano<br />
ao ensinamento. Há três razões para seu surgimento. Primeiramente,<br />
se orgulhavam <strong>de</strong> sua oratória brilhante e ostensiva, ou, diria alguém,<br />
convencidos por sua linguagem vazia e bombástica, passaram a tratar<br />
com <strong>de</strong>sprezo a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo e inclusive do próprio evangelho.<br />
Em segundo lugar, movidos por sua ambição, almejavam dividir<br />
a Igreja em várias facções. Finalmente, indiferentes a tudo, exceto em<br />
<strong>de</strong>sfrutar das boas graças que almejavam que o povo tivesse <strong>de</strong>les,<br />
entraram em cena com o fim <strong>de</strong> fazer seu jogo em prol do aumento <strong>de</strong><br />
sua própria reputação, antes que promover o reino <strong>de</strong> Cristo e o bem-<br />
-estar do povo.<br />
Por outro lado, visto que Corinto se achava dominada pelos vícios<br />
com os quais as cida<strong>de</strong>s comerciais geralmente são infestadas, ou, seja,<br />
a luxúria, a arrogância, a vaida<strong>de</strong>, os prazeres, a cobiça insaciável, o<br />
egoísmo <strong>de</strong>senfreado – tais vícios tinham penetrado também a própria<br />
Igreja <strong>de</strong> tal modo que a disciplina se tornou gran<strong>de</strong>mente <strong>de</strong>teriorada.<br />
Mais seriamente ainda, já se achava presente a apostasia da sã doutrina,<br />
<strong>de</strong> modo tal que um dos fundamentos da fé, a ressurreição dos mortos,<br />
estava sendo posta em cheque. E ainda que se achasse em meio a tanta<br />
corrupção <strong>de</strong> toda espécie, estavam contentes consigo mesmos, como<br />
se tudo quanto em relação a eles estivesse em perfeita or<strong>de</strong>m. Tais são<br />
os subterfúgios que Satanás geralmente emprega. Se ele não consegue<br />
impedir a expansão do ensino, ele se chega solerte e secretamente com<br />
o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sferir seu golpe mortal sobre ele [o ensino]. Se ele não consegue<br />
suprimi-lo por meio <strong>de</strong> mentiras que o contradigam, e impedi-lo
Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 23<br />
<strong>de</strong> vir a público, então lhe prepara covas ocultas para sua <strong>de</strong>struição.<br />
Finalmente, se ele não po<strong>de</strong> alienar <strong>de</strong>le as mentes humanas, num golpe<br />
incisivo, ele as leva a abandoná-lo gradativamente.<br />
Ora, tenho boas razões para crer que aqueles indignos correligionários,<br />
que trouxeram sofrimento à igreja corintiana, não eram<br />
inimigos <strong>de</strong>clarados da verda<strong>de</strong>. Sabemos que Paulo não ignora as<br />
falsas doutrinas em outras cartas. As cartas aos Gálatas, aos Colossenses,<br />
aos Filipenses e a Timóteo são todas breves; porém, em todas<br />
elas não só ataca violentamente os falsos apóstolos, mas, ao mesmo<br />
tempo, ele igualmente realça as formas em que prejudicavam a Igreja.<br />
E ele estava perfeitamente certo, pois os crentes não só <strong>de</strong>vem ser<br />
admoestados acerca daqueles <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>vem se precaver, mas <strong>de</strong>vem<br />
também perceber o mal contra o qual precisam sempre estar em<br />
guarda. Portanto, não posso acreditar que numa carta longa como esta<br />
ele preten<strong>de</strong>sse manter em silêncio o que executa tão assiduamente<br />
em outras cartas muito mais breves. Além disso, ele trata com muitas<br />
faltas dos coríntios, algumas das quais, sem dúvida, totalmente<br />
triviais, então parece que ele não pretendia omitir algo sobre aqueles<br />
que ele chamou para reprovar. E se esse não era o caso, então ele estava<br />
<strong>de</strong>sperdiçando um amontoado <strong>de</strong> palavras ao juntar-se em <strong>de</strong>bate<br />
com aqueles prepostos mestres ou chilreantes oradores. Ele con<strong>de</strong>na<br />
sua ambição; ele os responsabiliza em transformar o evangelho numa<br />
filosofia artificial; ele nega que tenham eles o po<strong>de</strong>r do Espírito para<br />
produzir resultados, porque, em sua preocupação com linguagem<br />
vazia e bombástica, só estavam indo no encalço <strong>de</strong> “letra morta”; todavia,<br />
não há uma só palavra sobre ensino corrupto. Portanto, estou<br />
plenamente certo <strong>de</strong> que não faziam nenhuma <strong>de</strong>preciação pública<br />
das substância do evangelho, em qualquer aspecto; porém, visto que<br />
um <strong>de</strong>sorientado e apaixonado <strong>de</strong>sejo por proeminência os abrasava,<br />
acredito que tinham engendrado um novo método <strong>de</strong> ensino, o qual<br />
não se compatibilizava com a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo; e assim esperavam<br />
que isso os fizesse objetos da admiração do povo. Isto é o que<br />
inevitavelmente acontece com todos aqueles que não <strong>de</strong>sistem <strong>de</strong>
24 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
preocupar-se consigo mesmos e se engajem na obra do Senhor sem<br />
absolutamente quaisquer entraves. O primeiro passo, para servirmos<br />
a Cristo, é esquecer-nos <strong>de</strong> nós mesmos e pensar tão-só na glória do<br />
Senhor e na salvação dos homens. Além do mais, ninguém jamais estará<br />
aparelhado para o ensino se antes não for absorvido pelo po<strong>de</strong>r<br />
do evangelho, <strong>de</strong> modo a falar não tanto com seus lábios, mas com seu<br />
próprio coração. Portanto, o que suce<strong>de</strong> no caso daqueles que nunca<br />
nasceram <strong>de</strong> novo, pelo Espírito <strong>de</strong> Deus, nunca experimentaram o<br />
po<strong>de</strong>r do evangelho em seus próprios corações, e não têm qualquer<br />
idéia do que significa ser nova criação! (cf. 2Co 5.17). Sua pregação é<br />
morta, quando <strong>de</strong>veria ser viva e produtora <strong>de</strong> resultados; e para que<br />
se sobressaíssem aos olhos públicos, eles mesmos dissimulavam o<br />
evangelho, vestindo-o <strong>de</strong> diferentes indumentárias, <strong>de</strong> modo que viesse<br />
ele a assemelhar-se às filosofias do mundo.<br />
Fazer isso em Corinto era algo fácil para o tipo <strong>de</strong> pessoas que estamos<br />
consi<strong>de</strong>rando aqui. Pois os mercadores são facilmente levados<br />
pela aparência externa; e não só se permitiam trapacear pelas mesmas<br />
trapaças que aplicavam a outrem, mas, <strong>de</strong> certa forma, também<br />
gostavam disso. Além disso, possuíam ouvidos sensíveis, <strong>de</strong> modo<br />
que não suportavam censura por <strong>de</strong>mais severa, resultando que, se<br />
se <strong>de</strong>parassem com os mestres tão maleáveis e prontos a <strong>de</strong>ixá-los<br />
alegremente impunes, se valiam <strong>de</strong> recompensas e bajulação. Concordo<br />
que isso se dá em toda parte, mas é mais comum em cida<strong>de</strong>s<br />
comerciais e ricas. Ao contrário, Paulo, que em outros aspectos era<br />
um homem sublime e se sobressaía em razão das admiráveis qualida<strong>de</strong>s<br />
que possuía, não obstante fez-se insignificante exteriormente, no<br />
tocante às graças exteriores estava sempre contente, jamais se irrompendo<br />
com ostentação nem procurando tocar sua própria conduta. De<br />
fato, em razão <strong>de</strong> seu coração estar sempre e verda<strong>de</strong>iramente sob a<br />
influência do Espírito, não havia nele a menor sombra <strong>de</strong> ostentação,<br />
sendo incapaz <strong>de</strong> proferir bajulação nem se preocupava em agradar a<br />
homens. Ele só tinha um propósito diante <strong>de</strong> si, a saber, que ele e todos<br />
os <strong>de</strong>mais, estando à disposição, Cristo pu<strong>de</strong>sse reinar. Já que os
Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 25<br />
coríntios se inclinavam mais pelo ensino engenhoso do que benéfico,<br />
então não po<strong>de</strong>riam saborear o evangelho. Já que viviam tão ansiosos<br />
por novida<strong>de</strong>s, então Cristo, para eles, se achava fora <strong>de</strong> moda.<br />
Em todo caso, se não tivessem ainda, realmente, caído em tais erros,<br />
pelo menos já estavam naturalmente inclinados para as coisas sedutoras<br />
<strong>de</strong>sta espécie. Portanto, era fácil para os falsos apóstolos atrair<br />
a atenção entre eles e adulterar o ensino <strong>de</strong> Cristo. Pois certamente é<br />
ele adulterado quando sua natural pureza é corrompida e, por assim<br />
dizer, pintada com diferentes cores, sendo ele posto no mesmo nível<br />
<strong>de</strong> qualquer filosofia mundana. Portanto, a fim <strong>de</strong> agradar o paladar<br />
dos coríntios, adicionavam condimentos a seu ensino, resultando disso<br />
que o genuíno sabor do evangelho era <strong>de</strong>struído. Agora estamos em<br />
posição <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r por que Paulo foi induzido a escrever esta carta.<br />
Agora po<strong>de</strong>mos sumariar o argumento, apresentando breves notas<br />
sobre cada um dos capítulos em or<strong>de</strong>m cronológica.<br />
Paulo inicia o primeiro capítulo congratulando-se com eles (coríntios),<br />
e com isso os encoraja a prosseguirem como começaram. Desta<br />
forma ele os apazigua <strong>de</strong> antemão antes <strong>de</strong> prosseguir, <strong>de</strong> modo a estarem<br />
mais dispostos a receber seu ensino. Mas imediatamente ele fere<br />
uma nota mais severa, fazer a transição para reprovar, quando se refere<br />
aos <strong>de</strong>sacordos que ora afligiam sua igreja. Desejando curar este<br />
mal, ele insta com eles que voltassem do orgulho para a humilda<strong>de</strong>.<br />
Pois ele dispensa toda a sabedoria do mundo, estabelecendo em seu<br />
lugar unicamente a pregação da Cruz. Ao mesmo tempo também os<br />
humilha individualmente, ao dizer-lhes que observassem bem a classe<br />
<strong>de</strong> pessoas a quem o Senhor, geralmente, tem adotado e conduzido a<br />
seu rebanho.<br />
No segundo capítulo, ele cita o exemplo <strong>de</strong> sua própria pregação,<br />
a qual, humanamente falando, era pobre e insignificante, porém era<br />
notável em razão <strong>de</strong> possuir o po<strong>de</strong>r do Espírito. E ele prossegue <strong>de</strong>senvolvendo<br />
a idéia <strong>de</strong> que o evangelho contém sabedoria celestial<br />
e secreta. É algo que nem a habilida<strong>de</strong> natural do homem, ainda que<br />
perspicaz e penetrante, nem seus sentidos físicos po<strong>de</strong>m compreen-
26 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
<strong>de</strong>r; algo sobre o qual o argumento humano não po<strong>de</strong> gerar convicção;<br />
algo que não carece <strong>de</strong> linguagem floreada nem <strong>de</strong> ilustrações. É<br />
tão-somente por meio da revelação do Espírito que ele chega a ser<br />
compreendido pela mente humana, e vem a ser selado em seus corações.<br />
Finalmente, conclui que não é só a pregação do evangelho que<br />
é extremo oposto da sabedoria humana, visto que ela consiste na humilhação<br />
da Cruz, mas também que o mero juízo humano não po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminar qual é seu real valor. Paulo proce<strong>de</strong> assim a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviá-<br />
-los da confiança mal colocada em seu próprio entendimento, o qual<br />
gera errônea valorização <strong>de</strong> tudo.<br />
No início do terceiro capítulo ele faz aplicação do que lhes afirmou<br />
anteriormente. Pois Paulo lamenta que, sendo eles carnais, dificilmente<br />
se sujeitariam a apren<strong>de</strong>r ainda mesmo os princípios rudimentares<br />
do evangelho. Desta forma ele realça que o <strong>de</strong>sprazer pela Palavra, o<br />
que era tão forte neles, não era oriundo <strong>de</strong> algum <strong>de</strong>feito inerente à Palavra<br />
mesma, e, sim, da ignorância <strong>de</strong>les; e, ao mesmo tempo, ele lhes<br />
dirige uma admoestação implícita, ou, seja, que os coríntios necessitam<br />
<strong>de</strong> ter suas mentes renovadas, e assim possam começar a avaliar<br />
as coisas com proprieda<strong>de</strong>.<br />
E então ele mostra o lugar que <strong>de</strong>ve ser dado ao ministro do<br />
evangelho. A honra <strong>de</strong>vida a eles não <strong>de</strong>ve subtrair em nada da glória<br />
que é <strong>de</strong>vida a Deus; pois há um só Senhor, e todos eles são seus servos;<br />
somente Deus tem o po<strong>de</strong>r em suas mãos, e é ele quem confere<br />
os resultados; e todos os coríntios não passam <strong>de</strong> simples instrumentos<br />
<strong>de</strong> Deus.<br />
Ao mesmo tempo mostra que ele <strong>de</strong>ve ter como alvo a edificação<br />
da igreja. Aproveita a oportunida<strong>de</strong> para explicar o correto e a<strong>de</strong>quado<br />
método para realizar um bom trabalho <strong>de</strong> edificação, a saber, tomar<br />
Cristo como o único fundamento, e a<strong>de</strong>quar a estrutura toda a esse<br />
fundamento. E aqui, tendo afirmado <strong>de</strong> passagem que ele era um hábil<br />
mestre-<strong>de</strong>-obra, exorta aos que são <strong>de</strong>ixados para a continuação da<br />
obra a que conservem o edifício <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com o fundamento<br />
em todos os meandros <strong>de</strong> sua conclusão.
Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 27<br />
Ele ainda insiste com os coríntios a não permitirem que sejam<br />
maculados pelos ensinos corruptos, visto que são templos <strong>de</strong> Deus.<br />
E nessa parte conclusiva do capítulo, ele novamente reduz a nada o<br />
orgulho da sabedoria humana, <strong>de</strong> modo que somente o conhecimento<br />
<strong>de</strong> Cristo seja mantido em evidência entre os crentes.<br />
No início do quarto capítulo, ele explica qual é o ofício <strong>de</strong> um genuíno<br />
apóstolo, e, rejeitando seus juízos corruptos que os impe<strong>de</strong>m<br />
<strong>de</strong> reconhecê-lo como genuíno apóstolo, apela para o dia do Senhor.<br />
Então, percebendo que o <strong>de</strong>sprezavam em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua humil<strong>de</strong><br />
aparência, ele mostra que <strong>de</strong> fato tal coisa se constitui mais em<br />
honra para ele do que em <strong>de</strong>sonra. Ele prossegue citando instâncias<br />
<strong>de</strong> sua própria experiência, a qual revela que ele não se preocupava<br />
com sua própria glória, ou com seu próprio sustento material, mas<br />
que fizera fielmente o trabalho <strong>de</strong> Cristo e nada mais. No <strong>de</strong>vido<br />
curso ele enfatiza a maneira como os coríntios <strong>de</strong>vem honrá-lo (isto<br />
é, vv. 14-16). Na parte conclusiva do capítulo, ele lhes recomenda<br />
Timóteo, até que ele mesmo vá. E ao mesmo tempo anuncia que<br />
em sua chegada ele <strong>de</strong>ixará plenamente claro que não dá o menor<br />
valor a toda a bazófia com que os falsos apóstolos cantavam seus<br />
próprios louvores.<br />
No quinto capítulo Paulo os chama à razão pelo fato <strong>de</strong> terem<br />
tolerado em silêncio uma união incestuosa entre um homem e sua madrasta.<br />
E francamente lhes diz que, em vez <strong>de</strong> serem tão vangloriosos,<br />
uma enormida<strong>de</strong> tal como esta <strong>de</strong>veria fazê-los pen<strong>de</strong>r suas frontes,<br />
envergonhados. Ele muda daquela instrução geral para o efeito, ou,<br />
seja, que ofensas como essas seriam punidas com excomunhão, para<br />
que a tolerância em relação ao pecado seja rechaçada, e que as impurezas<br />
sejam limitadas a uma só pessoa e não venham a propagar-se<br />
ainda mais afetando o restante.<br />
O sexto capítulo contém duas partes principais. Na primeira, ele<br />
con<strong>de</strong>na a prática <strong>de</strong>les (coríntios) em provocar aborrecimento uns<br />
aos outros, trazendo com isso gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrédito ao evangelho, ao levarem<br />
suas disputas aos tribunais que eram presididos pelos incrédulos.
28 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Na segunda parte, ele con<strong>de</strong>na a tolerância com a promiscuida<strong>de</strong> sexual,<br />
a qual alcançara um nível tal que era consi<strong>de</strong>rada quase como<br />
uma coisa normal <strong>de</strong> se fazer. De fato, ele começa com uma grave nota<br />
<strong>de</strong> ameaça e então prossegue produzindo argumentos em apoio da<br />
admoestação que ele apresenta.<br />
O sétimo capítulo contém uma discussão sobre a virginda<strong>de</strong>, o matrimônio<br />
e o celibato. Tanto quanto po<strong>de</strong>mos agrupar do que Paulo<br />
diz, os coríntios se tornaram fortemente influenciados pelas noções<br />
supersticiosas <strong>de</strong> que a virginda<strong>de</strong> era uma projeção, quase uma virtu<strong>de</strong><br />
angelical, <strong>de</strong> tal forma que <strong>de</strong>sprezavam o matrimônio como se<br />
este fosse algo impuro. Para corrigir este conceito equivocado, Paulo<br />
ensina que cada pessoa <strong>de</strong>ve saber qual é seu dom particular; e neste<br />
sentido não <strong>de</strong>ve fazer algo que não se sinta capacitada para fazer; pois<br />
nem todos são chamados para o mesmo estado. Conseqüentemente,<br />
ele realça quem po<strong>de</strong> abster-se do matrimônio, e que seu objetivo era<br />
abster-se <strong>de</strong>le. Em contrapartida, ele aconselha aos que vão se casar e<br />
qual é a genuína base do matrimônio.<br />
No oitavo capítulo, ele os proíbe <strong>de</strong> se envolverem com os adoradores<br />
<strong>de</strong> ídolos e seus sacrifícios impuros, ou <strong>de</strong> praticarem alguma<br />
coisa que <strong>de</strong> alguma forma pu<strong>de</strong>sse causar injúria a alguém com<br />
consciência fraca. Eles se escusavam sob o pretexto <strong>de</strong> que quando<br />
se associavam aos adoradores idólatras, jamais o faziam com idéias<br />
errôneas em suas mentes, visto que em seus próprios corações reconheciam<br />
um só Deus, o qual, naturalmente, os fazia olhar para os<br />
ídolos como coisas indignas <strong>de</strong> fabricação humana. Paulo <strong>de</strong>sfaz tal<br />
escusa com base no fato <strong>de</strong> que cada um <strong>de</strong> nós <strong>de</strong>ve preocupar-se<br />
com seus irmãos, e, por outro lado, havia muitas pessoas fracas, cuja<br />
fé seria <strong>de</strong>struída por tal insincerida<strong>de</strong>.<br />
No nono capítulo, ele torna patente que não está exigindo <strong>de</strong>les<br />
nada mais do que exige <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong> modo a não dar a impressão<br />
<strong>de</strong> estar sendo injusto em impor-lhes um princípio que ele mesmo não<br />
pu<strong>de</strong>sse praticar. Então lembra-os <strong>de</strong> como voluntariamente se refreou<br />
<strong>de</strong> usar da liberda<strong>de</strong> que o Senhor lhe conce<strong>de</strong>ra, para não causar
Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 29<br />
ofensa a alguém; e como, no tocante a coisas neutras, adotara ele diferentes<br />
atitu<strong>de</strong>s, por assim dizer, a fim <strong>de</strong> acomodar-se a todos os tipos<br />
<strong>de</strong> pessoas. Lembra-os <strong>de</strong>sses dois fatos para que apren<strong>de</strong>ssem por<br />
intermédio <strong>de</strong> seu exemplo, ou, seja, que ninguém <strong>de</strong>ve concentrar-se<br />
<strong>de</strong>masiadamente em si mesmo, <strong>de</strong> modo tal que não se empenhasse<br />
em adaptar-se a seus irmãos para a promoção <strong>de</strong> sua edificação.<br />
Em razão <strong>de</strong> os coríntios estarem muitíssimos satisfeitos consigo<br />
mesmos, como disse no começo, Paulo inicia o décimo capítulo usando<br />
os ju<strong>de</strong>us como exemplo para adverti-los a não enganar-se a si mesmos<br />
com um falso senso <strong>de</strong> segurança. Pois ele mostra que, se estão<br />
envai<strong>de</strong>cidos em razão <strong>de</strong> coisas externas e dos dons <strong>de</strong> Deus, os ju<strong>de</strong>us,<br />
igualmente, possuíam razões semelhantes para ostentar-se. No<br />
entanto, tais coisas provaram ser <strong>de</strong> nenhum préstimo, notadamente<br />
em seu caso, porquanto fizeram mau uso das bênçãos que receberam.<br />
Após <strong>de</strong>spertá-los com tais advertências, Paulo volta rapidamente ao<br />
tema que vinha tratando inicialmente (ou, seja, o culto idólatra, v. 14),<br />
e mostra quão inconsistente é para aqueles que participam da Ceia do<br />
Senhor tomar parte na mesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios; pois esta é uma infeliz e intolerável<br />
forma <strong>de</strong> corromper-se. Finalmente, ele conclui que <strong>de</strong>vemos<br />
a<strong>de</strong>quar-nos com outros em todas as nossas ações, <strong>de</strong> modo a não<br />
causar ofensa a ninguém.<br />
No capítulo onze, ele procura expurgar as reuniões <strong>de</strong> culto <strong>de</strong>les<br />
<strong>de</strong> certas práticas nocivas, as quais dificilmente era possível observar<br />
com <strong>de</strong>cência e or<strong>de</strong>m, e ele afirma-lhes que nessas reuniões <strong>de</strong>ve-se<br />
observar gran<strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e discrição, pois ali nos achamos diante<br />
<strong>de</strong> Deus e dos anjos. Porém, sua crítica principal é dirigida contra a<br />
administração corrupta da Ceia pelos coríntios. Mas, além disso, ele<br />
apresenta o método para corrigir os abusos que solertemente haviam<br />
entrado; a saber, chamá-los <strong>de</strong> volta para nossa instituição original<br />
feita pelo próprio Senhor, como o único padrão seguro e permanente<br />
para a sua correta administração.<br />
Porém, visto que muitos <strong>de</strong>les estavam fazendo mau uso dos dons<br />
espirituais visando a seus próprios objetivos, no capítulo doze ele trata
30 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
do propósito para o qual Deus no-los conce<strong>de</strong>u, e trata igualmente da<br />
forma correta e a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> seu uso, a saber, que para servirmos uns<br />
aos outros, <strong>de</strong>vemos crescer juntos no único corpo <strong>de</strong> Cristo. Ele ilustra<br />
seu ensino esboçando uma analogia com o corpo humano. Embora<br />
o corpo possua membros distintos, todos eles com funções distintas,<br />
todavia existe neles um arranjo tão bem equilibrado e uma inter<strong>de</strong>pendência<br />
[communio] tal que o que tem sido atribuído aos membros<br />
individuais é empregado em benefício <strong>de</strong> todo o corpo. Portanto, ele<br />
conclui que o amor é nosso melhor guia nesta conexão.<br />
E assim ele persiste neste tema, mais extensamente no capítulo treze,<br />
fazendo uma explanação mais ampla <strong>de</strong> seu significado. Porém, ele<br />
se resume nisto: o amor [caritas] <strong>de</strong>ve ser o fator controlador <strong>de</strong>/em<br />
tudo. Ele aproveita a presente oportunida<strong>de</strong> para fazer uma digressão<br />
e cantar os louvores do amor, <strong>de</strong> modo a torná-lo ainda mais persuasivo<br />
e levar as pessoas a <strong>de</strong>sejar possuí-lo, e também a estimular os<br />
coríntios a pô-lo em prática.<br />
No capítulo quatorze, ele começa apresentando <strong>de</strong>talhes mais<br />
precisos sobre como os coríntios tinham fracassado no uso dos dons<br />
espirituais. E já que estavam pondo uma ênfase tão gran<strong>de</strong> na ostentação,<br />
ele os ensina que sua preocupação <strong>de</strong>via ser que em tudo<br />
houvesse edificação. Esta é a razão por que ele prefere a profecia a<br />
todos os <strong>de</strong>mais dons, visto ser ele mais benéfico; enquanto que, para<br />
os coríntios, as línguas eram mais valiosas, simplesmente com base<br />
em sua pompa vazia. Ele ainda estabelece a or<strong>de</strong>m apropriada para se<br />
fazerem as coisas. Ao mesmo tempo, ele con<strong>de</strong>na o erro na exibição<br />
ruidosa <strong>de</strong> línguas estranhas para o benefício <strong>de</strong> ninguém; pois significava<br />
que, enquanto havia progresso no ensino e nas exortações, aos<br />
quais sempre se <strong>de</strong>ve dar priorida<strong>de</strong>, eles estavam sendo prejudicados.<br />
Em seguida, ele proíbe que as mulheres ensinem publicamente,<br />
como sendo algo inconveniente.<br />
No capítulo quinze, ele ataca um dos mais perniciosos erros. Ainda<br />
que dificilmente seja crível que este assalto fosse sobre todos os<br />
coríntios, todavia tal ação granjeou um ponto-chave nas mentes <strong>de</strong>
Análise da Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios • 31<br />
alguns <strong>de</strong>les, na medida precisa em que o remédio era claramente<br />
necessário. Mas tudo indica que Paulo, propositadamente, retarda a<br />
menção <strong>de</strong>ste assunto para o final da carta; pois se ele tivesse iniciado<br />
com ele, ou se tivesse voltado a ele imediatamente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> começado,<br />
a conclusão <strong>de</strong>les seria que estavam sendo todos con<strong>de</strong>nados. Ele,<br />
pois, mostra que a esperança da ressurreição é tão necessária que,<br />
se ela for extinta, então todo o evangelho cairá em completa ruína.<br />
Tendo estabelecido a esperança pelo uso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos argumentos,<br />
ele prossegue mostrando as bases sobre as quais ela <strong>de</strong>scansa, e como<br />
[a ressurreição] se dará (cf. vv. 35-58). numa palavra, ele realiza uma<br />
plena e cuidadosa discussão <strong>de</strong>ste assunto.<br />
O capítulo <strong>de</strong>zesseis constitui-se <strong>de</strong> duas partes. Na primeira, ele<br />
encoraja os coríntios a prestarem socorro aos irmãos <strong>de</strong> Jerusalém<br />
em suas necessida<strong>de</strong>s. Eles estavam, naquela época, sendo duramente<br />
premidos pela fome e cruelmente tratados nas mãos dos incrédulos.<br />
Os apóstolos haviam dado a Paulo a tarefa <strong>de</strong> animar as igrejas gentílicas<br />
a prover recursos para eles [<strong>de</strong> Jerusalém]. Paulo, pois, os instrui<br />
a pôr <strong>de</strong> lado o que gostariam <strong>de</strong> dar, e assim pu<strong>de</strong>ssem enviar a Jerusalém<br />
imediatamente [porém, veja-se 16.3].<br />
Ele traz a carta à sua conclusão com uma exortação cordial e com<br />
saudações <strong>de</strong> alegria.<br />
Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir daqui, como disse no início, que esta carta está<br />
saturada do mais prestimoso ensino, pois ela contém várias discussões<br />
<strong>de</strong> um bom número <strong>de</strong> temas gloriosos.
Capítulo 1<br />
1. Paulo, chamado para ser apóstolo <strong>de</strong><br />
Jesus Cristo pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, e<br />
Sóstenes, nosso irmão,<br />
2. à igreja <strong>de</strong> Deus que está em Corinto,<br />
aos que são santificados em Cristo<br />
Jesus, chamados para serem santos,<br />
com todos os que em todos os lugares<br />
invocam o nome <strong>de</strong> nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, Senhor <strong>de</strong>les e nosso:<br />
3. graça seja a vós, e paz da parte <strong>de</strong><br />
Deus e do Senhor Jesus Cristo.<br />
1. Paulus, vocatus apostolus Jesu<br />
Christ per voluntatem Dei, et Sosthenes<br />
frater,<br />
2. Ecclesiæ Dei quæ est Corinthi, sanctificatis<br />
in Christo Jesu, vocatis<br />
sanctis, una cum omnibus qui invocant<br />
nomen Domini nostri Jesu<br />
Christi in quovis loco tam sui quam<br />
nostri: 1<br />
3. Gratia vobis et pax a Deo Patre nostro,<br />
et Domino Jesu Christi.<br />
1. Paulo, chamado para ser apóstolo. Dessa forma Paulo proce<strong>de</strong><br />
em quase todas as introduções a suas Epístolas com vistas a garantir<br />
autorida<strong>de</strong> e aceitação para sua doutrina. Em primeiro lugar ele se<br />
assegura da condição que lhe fora <strong>de</strong>signada por Deus, <strong>de</strong> ser apóstolo<br />
<strong>de</strong> Cristo e enviado por Deus; em segundo lugar ele testifica <strong>de</strong><br />
sua afeição para com todos aqueles a quem escreve. Cremos muito<br />
mais prontamente em alguém que consi<strong>de</strong>ramos estar genuinamente<br />
afeiçoado para conosco e que fielmente promove nosso bem-estar.<br />
Portanto, nesta saudação ele reivindica autorida<strong>de</strong> para si ao falar <strong>de</strong><br />
si mesmo como apóstolo <strong>de</strong> Cristo, e <strong>de</strong>veras chamado por Deus, ou,<br />
seja, separado pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />
Ora, duas coisas são requeridas daquele que <strong>de</strong>ve ser ouvido na<br />
Igreja, e que vai ocupar a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mestre; pois o mesmo <strong>de</strong>ve ser<br />
1 “Le leur et le nostre”, ou “le Seigneur (di-ie) et <strong>de</strong> eux et <strong>de</strong> nous.” – “Tanto<br />
<strong>de</strong>les, quanto nosso”, ou, “o Senhor (digo) tanto <strong>de</strong>les, quanto nosso.”
34 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
chamado por Deus para esse ofício e <strong>de</strong>ve ser fiel no cumprimento <strong>de</strong><br />
seus <strong>de</strong>veres. Paulo aqui alega que ambas se aplicam a ele. Pois o título<br />
apóstolo implica que os atos conscientemente individuais por parte<br />
<strong>de</strong> um embaixador <strong>de</strong> Cristo [2Co 5.19], e que proclama a pura doutrina<br />
do evangelho. Mas para que ninguém assuma para si esta honra<br />
sem ser chamado para a mesma, ele acrescenta que não se precipitou<br />
temerariamente para ela, mas que fora <strong>de</strong>signado 2 por Deus para tal<br />
incumbência.<br />
Aprendamos, pois, a levar em conta ambos esses fatores quando<br />
quisermos saber a quem <strong>de</strong>vamos consi<strong>de</strong>rar como ministro <strong>de</strong><br />
Cristo: que o mesmo seja chamado e seja fiel ao cumprimento <strong>de</strong> seus<br />
<strong>de</strong>veres. Visto que ninguém po<strong>de</strong>, por direito, assumir para si a <strong>de</strong>signação<br />
e condição <strong>de</strong> ministro, a não ser que o mesmo seja chamado,<br />
assim não é suficiente que uma pessoa seja chamada, se também não<br />
cumprir os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seu ofício. Pois o Senhor não escolhe ministros<br />
para que sejam ídolos mudos, nem para que exerçam tirania sob o pretexto<br />
<strong>de</strong> sua vocação, nem para que tomem seus próprios caprichos<br />
por sua lei. Ao contrário, Deus ao mesmo tempo estabelece que tipo<br />
<strong>de</strong> homens <strong>de</strong>vam ser eles, e os põe sob suas leis; em suma, ele os escolhe<br />
para o ministério; ou, em outros termos, para que, em primeiro<br />
lugar, não sejam ociosos; e, em segundo lugar, para que se mantenham<br />
<strong>de</strong>ntro dos limites <strong>de</strong> seu ofício. Portanto, visto que o apostolado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
da vocação [divina], se alguém <strong>de</strong>seja ser reconhecido como um<br />
apóstolo, então que prove que o é <strong>de</strong> fato e <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>; não só isso,<br />
mas que tudo faça para que os homens confiem nele e dêem atenção a<br />
sua doutrina. Pois já que Paulo conta com essas base para estabelecer<br />
sua autorida<strong>de</strong>, pior que a insolência seria a conduta do homem que<br />
quisesse assumir tal posição sem comprovação!<br />
Entretanto, é preciso observar que não basta que alguém reivindique<br />
a posse <strong>de</strong> um título <strong>de</strong> alguma vocação para o ofício, mas<br />
que também seja fiel no cumprimento <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>veres, a menos que<br />
2 “Constitué, ordonné, et establi.” – “Designado, or<strong>de</strong>nado e estabelecido.”
Capítulo 1 • 35<br />
realmente comprove ambas [as alegações]. Pois amiú<strong>de</strong> suce<strong>de</strong> que<br />
aqueles que mais se vangloriam <strong>de</strong> seus títulos são precisamente pessoas<br />
que na verda<strong>de</strong> nada possuem; como, por exemplo, os falsos<br />
profetas da antigüida<strong>de</strong> que reivindicavam com gran<strong>de</strong> arrogância que<br />
haviam sido enviados pelo Senhor. E hoje, que outra coisa fazem os<br />
romanistas senão gran<strong>de</strong> bulha sobre a “or<strong>de</strong>nação divina, a sucessão<br />
inviolavelmente sacra provinda dos próprios apóstolos”, 3 enquanto<br />
que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo, parece serem eles completamente <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong><br />
todas as coisas sobre as quais tanto se exaltam? Aqui, pois, o que se<br />
requer não é tanto <strong>de</strong> vanglória, mas <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Ora, visto ser comum,<br />
para o bom e para o mau, assumir o título, <strong>de</strong>vemos fazer um<br />
teste para que se <strong>de</strong>scubra quem <strong>de</strong> fato po<strong>de</strong> e quem não po<strong>de</strong> ter o<br />
direito ao título apóstolo. Quanto a Paulo, Deus atestou sua vocação<br />
por meio <strong>de</strong> muitas revelações e então a confirmou por meio <strong>de</strong> milagres.<br />
A fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> tinha <strong>de</strong> ser avaliada da seguinte forma: se ele estava<br />
ou não proclamando a pura doutrina <strong>de</strong> Cristo. Quanto à dupla vocação,<br />
a <strong>de</strong> Deus e a da Igreja, vejam-se minhas Institutas (4.3.II).<br />
Apóstolo. Ainda que este título, <strong>de</strong> acordo com sua etimologia,<br />
tenha um sentido geral, e às vezes seja empregado para <strong>de</strong>notar todos<br />
os ministros 4 indistintamente, não obstante pertence, como uma<br />
<strong>de</strong>signação particular, aos que eram separados pela <strong>de</strong>signação do<br />
senhor com o fim <strong>de</strong> publicar o evangelho ao mundo inteiro. Mas era<br />
3 “Et aujour d’huy, qu’est ce qu’entonnent à plene bouche les Romanisques,<br />
sinon ces grous mots, Ordination <strong>de</strong> Dieu, La saint et sacrée sucession <strong>de</strong>puis<br />
le temps mesme <strong>de</strong>s Apostres.” – “E, em nossos dias, o que os romanistas<br />
gritam com bocas escancaradas senão aqueles gran<strong>de</strong>s temas: Or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong><br />
Deus – A santa e sacra sucessão dos apóstolos até nossos dias?”<br />
4 Αποστολος (um apóstolo), <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> αποστελλειν (enviar), significa literalmente<br />
mensageiro. O termo é empregado pelos escritores clássicos para<br />
<strong>de</strong>notar o comandante <strong>de</strong> uma expedição, ou um <strong>de</strong>legado ou embaixador.<br />
(Veja-se Heródoto, v.38.) No Novo Testamento, ele é em vários casos empregado<br />
em um sentido geral para <strong>de</strong>notar um mensageiro. [Veja Lc 11.49;<br />
Jo 13.16; Fp 5.38.] Em um caso é aplicado a Cristo mesmo (Hb 3.1). Mais<br />
freqüentemente, contudo, é aplicado aos mensageiros extraordinários que<br />
eram (para usar as palavras <strong>de</strong> Leigh em seu Critica Sacra) “os legados (a<br />
latere)” <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong> sua parte.”
36 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
importante que Paulo fosse incluído naquele número, e isso por duas<br />
razões: primeiro, porque muito mais <strong>de</strong>ferência era atribuída a eles do<br />
que aos <strong>de</strong>mais ministros do evangelho; e, segundo, porque unicamente<br />
eles, estritamente falando, possuíam a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instruir todas<br />
as igrejas.<br />
Pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Enquanto o apóstolo costumava reconhecer<br />
<strong>de</strong> bom grado sua dívida irresgatável a Deus pelas muitas coisas<br />
boas que <strong>de</strong>le recebera, ele agia assim particularmente com referência<br />
a seu apostolado, para que pu<strong>de</strong>sse remover <strong>de</strong> si qualquer aparência<br />
<strong>de</strong> presunção. E não há dúvida <strong>de</strong> que, como a salvação provém<br />
da graça, assim também a vocação para o ofício <strong>de</strong> apóstolo provém<br />
da graça, como preceitua Cristo nestas palavras: “Não fostes vós que<br />
me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros”<br />
[Jo 15.16]. Entretanto, Paulo ao mesmo tempo indiretamente dá a enten<strong>de</strong>r<br />
que todos quantos tentaram subverter seu apostolado, ou <strong>de</strong><br />
alguma forma fizeram-lhe oposição, estavam conten<strong>de</strong>ndo contra uma<br />
or<strong>de</strong>nação divina. Porquanto Paulo, aqui, não se vangloria futilmente<br />
<strong>de</strong> títulos honoríficos, senão que intencionalmente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> seu apostolado<br />
<strong>de</strong> suspeitas maliciosas. Porque, visto que sua autorida<strong>de</strong> tinha<br />
<strong>de</strong> ser suficientemente bem estabelecida em relação aos coríntios, não<br />
havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fazer menção da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus especificamente,<br />
caso os homens injustos não estivessem tentando, por meios<br />
indiretos, minar aquela honrosa posição divinamente outorgada por<br />
Deus.<br />
E Sóstenes, nosso irmão. Este é o mesmo Sóstenes que era lí<strong>de</strong>r<br />
judaico da sinagoga em Corinto, e <strong>de</strong> quem Lucas faz menção em Atos<br />
18.17. A razão <strong>de</strong> seu nome ser incluído aqui é para que os coríntios<br />
tivessem uma merecida consi<strong>de</strong>ração por aquele <strong>de</strong> quem conheciam<br />
o ardor e firmeza no evangelho. Portanto, há uma honra ainda maior<br />
para ele, ou, seja, <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nominado irmão <strong>de</strong> Paulo, do que, como<br />
antes, ser presi<strong>de</strong>nte da sinagoga.<br />
2. À igreja <strong>de</strong> Deus que está em Corinto. Talvez pareça algo estranho<br />
dar Paulo aqui o título Igreja <strong>de</strong> Deus a esse grupo <strong>de</strong> pessoas que
Capítulo 1 • 37<br />
se achava infestado <strong>de</strong> tantas falhas, sobre o qual Satanás exercia uma<br />
influência mais po<strong>de</strong>rosa que a <strong>de</strong> Deus. Certamente seu intuito não<br />
era bajular os coríntios, pois ele fala sob a diretriz do Espírito <strong>de</strong> Deus,<br />
o qual não costuma bajular. Mas, 5 no meio <strong>de</strong> tanta vileza, que aparência<br />
<strong>de</strong> igreja é mais apresentada? Minha resposta é como segue: Visto<br />
que o Senhor dissera: “Não temas, eu tenho muitas pessoas nesta cida<strong>de</strong>”<br />
[At 18.9], mantendo esta promessa em sua mente, ele conferiu<br />
a poucas pessoas piedosas a gran<strong>de</strong> honra <strong>de</strong> reconhecê-las como<br />
igreja no meio <strong>de</strong> uma vasta multidão <strong>de</strong> pessoas ímpias. Demais, a<br />
<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> que muitos vícios tinham solertemente se introduzido,<br />
bem como várias corrupções tanto na doutrina quanto na conduta,<br />
alguns emblemas da genuína Igreja permaneciam em evidência. Entretanto,<br />
<strong>de</strong>vemos prestar muita atenção a esta passagem, para que neste<br />
mundo não esperemos existir uma igreja sem uma mancha ou mácula,<br />
nem precipitadamente neguemos este título a alguma socieda<strong>de</strong> na<br />
qual nem tudo satisfaça nossos padrões ou aspirações. Porquanto é<br />
uma perigosa tentação imaginar alguém que não existe igreja on<strong>de</strong> a<br />
perfeita pureza se acha ausente. Pois a pessoa que se sente dominada<br />
por tal noção, necessariamente <strong>de</strong>ve separar-se <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais e<br />
olhar para si como o único santo no mundo, ou <strong>de</strong>ve fundar sua própria<br />
seita em socieda<strong>de</strong> com uns poucos hipócritas.<br />
Sobre que base, pois, tinha Paulo reconhecido uma igreja em<br />
Corinto? Sem dúvida foi porque viu em seu seio a doutrina do evangelho,<br />
o batismo e a Ceia do Senhor, marcas pelas quais uma igreja<br />
<strong>de</strong>ve ser julgada. Pois, embora alguns começassem a nutrir dúvidas<br />
acerca da ressurreição, contudo tal erro não permeou todo o corpo,<br />
e assim o nome e a realida<strong>de</strong> da Igreja não são por isso afetados. Ainda<br />
que alguns <strong>de</strong>feitos já tivessem surgido na administração da Ceia,<br />
a disciplina e a conduta já tivessem <strong>de</strong>clinado tanto, a simplicida<strong>de</strong><br />
do evangelho já estivesse <strong>de</strong>negrida e já tivessem se entregado à ostentação<br />
e à pompa, e em <strong>de</strong>corrência da ambição <strong>de</strong> seus ministros<br />
5 “Mais (dira quelqu’un).” – “Mas (alguém diria).”
38 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
já estivessem fragmentados em vários partidos, não obstante, em virtu<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> haverem retido a doutrina fundamental – o Deus único era<br />
adorado por eles e invocado no nome <strong>de</strong> Cristo –, <strong>de</strong>positavam em<br />
Cristo sua <strong>de</strong>pendência para a salvação e sustentavam um ministério<br />
que não estava <strong>de</strong> todo corrompido. Por essas razões a Igreja continuava<br />
ainda em existência entre eles. Conseqüentemente, on<strong>de</strong> quer que<br />
o culto divino tenha sido preservado incorrupto, e aquela doutrina<br />
fundamental <strong>de</strong> que já falei ainda persiste ali, po<strong>de</strong>mos sem hesitação<br />
concluir que nesse caso a Igreja existe.<br />
Santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos.<br />
Ele faz menção das bênçãos com as quais Deus os adornara, como à<br />
guisa <strong>de</strong> reprimenda, porque, na prática, nem sempre se mostravam<br />
agra<strong>de</strong>cidos. Pois o que po<strong>de</strong> ser mais <strong>de</strong>primente do que rejeitar um<br />
apóstolo, por cujo ministério haviam sido separados como porção peculiar<br />
<strong>de</strong> Deus?<br />
Entrementes, aqui ele mostra, por estes dois qualificativos, que<br />
estão incluídos entre os verda<strong>de</strong>iros membros da Igreja, e que por<br />
direito pertencem a sua comunhão. Pois se o leitor não se revelar<br />
como cristão pela santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, então certamente não estará<br />
capacitado a escon<strong>de</strong>r-se na Igreja e ainda não po<strong>de</strong> pertencer-lhe. 6<br />
Portanto, todos quantos <strong>de</strong>sejam ser reconhecidos entre o povo <strong>de</strong><br />
Deus <strong>de</strong>vem ser santificados em Cristo. Demais, a palavra santificação<br />
<strong>de</strong>nota separação. Isso se dá conosco quando somos regenerados pelo<br />
Espírito para novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, para servirmos, não ao mundo, mas a<br />
Deus. Porque, enquanto por natureza somos impuros, o Espírito nos<br />
consagra a Deus. Porque isso realmente se concretiza quando somos<br />
enxertados no corpo <strong>de</strong> Cristo, fora do qual nada mais há senão corrupção,<br />
e visto que o Espírito nos diz que só somos santificados em<br />
Cristo, quando, através <strong>de</strong>le, a<strong>de</strong>rimos a Deus, e nele somos feitos “novas<br />
criações” (2Co 5.17).<br />
6 “Tu te pourras bien entretenir en l’Eglise tellement quellement, estant meslé<br />
parmi les autres.” – “Po<strong>de</strong>is muito bem ter uma permanência na Igreja, <strong>de</strong><br />
algum modo, estando entremeados entre outros.”
Capítulo 1 • 39<br />
O que segue – chamados para serem santos – o entendo no seguinte<br />
sentido: “Assim fostes chamados em santida<strong>de</strong>.” Mas isso<br />
po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> duas formas. Primeiro, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r<br />
Paulo como que dizendo que a causa da santificação é a vocação<br />
divina, porque Deus mesmo os escolheu; em outras palavras, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua graça, e não da excelência do homem. O significado<br />
alternativo é o seguinte: é consistente com nossa profissão [<strong>de</strong> fé]<br />
que sejamos santos, porque esse é o <strong>de</strong>sígnio da doutrina do evangelho.<br />
Ainda que o primeiro significado pareça a<strong>de</strong>quar-se melhor<br />
ao contexto, faz pouca diferença <strong>de</strong> que forma o leitor o consi<strong>de</strong>re,<br />
quando os dois significados estão em estreita harmonia entre si, pois<br />
nossa santida<strong>de</strong> emana da fonte da eleição divina, e é também a meta<br />
<strong>de</strong> nossa vocação.<br />
Portanto, <strong>de</strong>vemos sustentar criteriosamente que <strong>de</strong> modo algum<br />
é por nossos próprios esforços que somos santos, mas é pela<br />
vocação divina; porque é tão-somente Deus que santifica aos que por<br />
natureza eram impuros. E certamente creio que, mui provavelmente,<br />
quando Paulo aponta, como se o fizesse com seu <strong>de</strong>do, para a fonte da<br />
santida<strong>de</strong>, amplamente aberta, é para subir ainda mais, ou, seja, para<br />
o gracioso beneplácito <strong>de</strong> Deus mesmo, pelo qual também a missão<br />
<strong>de</strong> Cristo quanto a nós se originou. Além disso, assim como somos<br />
chamados por meio do evangelho para a vida irrepreensível [Fp 2.15],<br />
é necessário que isso se torne uma realida<strong>de</strong> em nós, a fim <strong>de</strong> que<br />
nossa vocação venha a ser eficaz. Mas alguém objetará dizendo que<br />
tal coisa não era comum entre os coríntios. Minha resposta é que os<br />
pusilânimes não se acham inclusos neste número, porque aqui Deus<br />
simplesmente começa sua obra em nós, e paulatinamente a leva à consumação.<br />
Respondo ainda que Paulo <strong>de</strong>liberadamente olha antes para<br />
a graça <strong>de</strong> Deus em ação neles, e não para os próprios <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong>les,<br />
<strong>de</strong> modo a fazê-los sentir-se envergonhados <strong>de</strong> sua negligência em não<br />
fazerem o que lhes foi requerido.<br />
Com todos os que o invocam. Este é outro qualificativo também<br />
comum a todos os crentes. Porque, visto que invocar o nome <strong>de</strong> Deus
40 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
é um dos principais exercícios da fé, portanto é por este <strong>de</strong>ver que os<br />
fiéis <strong>de</strong>vem ser principalmente julgados. Note-se também que ele diz<br />
que Cristo é invocado pelos fiéis; e é assim que sua divinda<strong>de</strong> é reconhecida,<br />
porquanto a invocação é uma das primeiras evidências do<br />
culto divino. Daí, a invocação, neste contexto, à guisa <strong>de</strong> sinédoque 7<br />
(κατὰ συνεκδοχήν), significa uma plena profissão <strong>de</strong> fé em Cristo, assim<br />
como em muitas passagens da Escritura ela é geralmente tomada para<br />
abranger todo o culto divino.<br />
Alguns o explicam como sendo só a profissão [<strong>de</strong> fé], mas isso<br />
parece pobre <strong>de</strong>mais e está em <strong>de</strong>sacordo com sua aceitação usual na<br />
Escritura. Ora, tenho posto estas pequenas palavras nostri (nosso) e<br />
sui (<strong>de</strong>les) no genitivo, enten<strong>de</strong>ndo-as como uma referência a Cristo.<br />
Enquanto outros, tomando-as como uma referência a lugar, traduzem-<br />
-nas no ablativo. Ao agir assim, tenho seguido a Crisóstomo. Esta<br />
tradução, provavelmente, parecerá abrupta, porque as palavras em<br />
todo lugar aparecem no centro, porém não há nada <strong>de</strong> abrupto nesta<br />
construção no grego paulino. Minha razão para preferir esta tradução<br />
à da Vulgata é que se o leitor a explicar com uma referência a lugar,<br />
a frase adicional não só será <strong>de</strong>snecessária, mas também irrelevante.<br />
Pois a que lugar Paulo chamaria seu? Eles o consi<strong>de</strong>ram como a indicar<br />
a Judéia; porém, em que áreas? Então, a que lugar Paulo estaria<br />
se referindo como sendo habitado por outros? Afirmam que significa<br />
todos os outros lugares do mundo; mas isso também não é bem<br />
apropriado. Em contrapartida, o significado que tenho atribuído é bem<br />
mais apropriado; porque, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer menção a “os que em todo<br />
lugar invocam o nome <strong>de</strong> Cristo, nosso Senhor”, ele adiciona: “<strong>de</strong>les<br />
e nosso”, a fim <strong>de</strong> tornar plenamente claro que Cristo é sem a menor<br />
sombra <strong>de</strong> dúvida o Senhor comum <strong>de</strong> todos os que o invocam, sejam<br />
eles ju<strong>de</strong>us ou gentios.<br />
Em todo lugar. Paulo adicionou isso contrariando sua prática<br />
usual, pois em suas outras cartas ele menciona, na saudação, somente<br />
7 Sinédoque, figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual a parte é tomada pelo todo.
Capítulo 1 • 41<br />
aqueles a quem ele en<strong>de</strong>reça as cartas. Entretanto, tudo indica que ele<br />
<strong>de</strong>sejava antecipar as calúnias <strong>de</strong> certos ímpios, como a impedi-los<br />
<strong>de</strong> alegar que ele estava adotando uma atitu<strong>de</strong> extremada e forte em<br />
relação aos coríntios, reivindicando para si uma autorida<strong>de</strong> que não<br />
ousaria assumir em relação a outras igrejas. Logo se fará evi<strong>de</strong>nte que<br />
ele tinha sido também injustamente cumulado com censura <strong>de</strong> que estava<br />
a construir ‘ninhos’ 8 para si mesmo, como se quisesse fugir da luz,<br />
ou clan<strong>de</strong>stinamente se excluísse do restante dos apóstolos. Portanto,<br />
a fim <strong>de</strong> expressamente rebater tal mentira, ele intencionalmente se<br />
põe num posto <strong>de</strong> comando, don<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse tornar sua voz ouvida<br />
forte e difusamente.<br />
3. Graça seja a vós e paz. Os leitores po<strong>de</strong>rão encontrar uma<br />
exposição <strong>de</strong>sta oração no início <strong>de</strong> meu comentário à Epístola aos<br />
Romanos [Rm 1.7]. Porquanto não gostaria <strong>de</strong> sobrecarregá-los com<br />
repetições.<br />
4. Dou sempre graças a meu Deus a respeito<br />
<strong>de</strong> vós, pela graça <strong>de</strong> Deus que<br />
vos foi concedida em Cristo Jesus;<br />
5. que em todas as coisas fostes enriquecidos<br />
por ele, em toda palavra e<br />
em todo conhecimento;<br />
6. assim como o testemunho <strong>de</strong> Cristo<br />
foi confirmado em vós;<br />
7. <strong>de</strong> maneira que não vos venha faltar<br />
nenhum dom; esperando pela vinda<br />
<strong>de</strong> nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
8. que também vos confirmará até o<br />
fim, para ser<strong>de</strong>s irrepreensíveis no<br />
dia <strong>de</strong> nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
9. Deus é fiel, através <strong>de</strong> quem fostes<br />
chamados à comunhão <strong>de</strong> seu Filho<br />
Jesus Cristo, nosso Senhor.<br />
4. Gratias ago Deo meo semper <strong>de</strong> vobis<br />
propter gratiam Dei, quæ data<br />
vobis est in Christo Jesu.<br />
5. Quia in omnibus ditati estis in ipso,<br />
in omni sermone, 9 et in omni cognitione.<br />
6. Quemadmodum testimonium Christi<br />
confirmatum fuit in vobis.<br />
7. Ut nullo in dono <strong>de</strong>stituamini, exspectantes<br />
revelationem Domini<br />
nostri Jesu Christi.<br />
8. Qui etiam confirmabit vos usque in<br />
finem inculpatos, in diem Domini<br />
nostri Jesu Christi.<br />
9. Fi<strong>de</strong>lis Deus, per quem vocati estis<br />
in communionem Filii ipsius Jesu<br />
Christi Domini nostri.<br />
8 “Nids et cachettes.” – “Ninhos e escon<strong>de</strong>rijos.”<br />
9 Parole’, ou ‘éloquence’. – ‘Enunciação’ ou ‘eloqüência’.
42 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
4. Dou sempre graças a meu Deus. Após mostrar, na saudação,<br />
que sua autorida<strong>de</strong> repousa sobre a função que lhe fora <strong>de</strong>signada, Paulo<br />
agora busca granjear a aceitação para sua doutrina, expressando seu<br />
afeto por eles. Agindo assim, <strong>de</strong> antemão abranda suas mentes, para<br />
que pu<strong>de</strong>ssem ouvir pacientemente sua reprovação. 10 Ele <strong>de</strong>veras os<br />
persua<strong>de</strong> a confiar em seu amor: primeiro, regozijando-se com as bênçãos<br />
com que foram contemplados, como se ele mesmo as recebesse;<br />
e, em segundo lugar, ao <strong>de</strong>clarar que seu coração lhes era favorável e<br />
que nutria por eles boa esperança quanto ao futuro. Além disso, ele caracteriza<br />
suas congratulações, <strong>de</strong> modo que os coríntios não tivessem<br />
nenhuma ocasião para vangloriar-se, visto que ele aponta para Deus<br />
como a fonte don<strong>de</strong> emana todas as bênçãos que haviam recebido, todo<br />
o louvor <strong>de</strong>ve ser-lhe dirigido, já que tudo era fruto <strong>de</strong> sua graça. Em<br />
outros termos, Paulo está dizendo: “Congratulo-me convosco com toda<br />
sincerida<strong>de</strong>, porém <strong>de</strong> modo a atribuir louvor somente a Deus.”<br />
Já expliquei, em meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm<br />
1.8], o que Paulo quis dizer quando <strong>de</strong>nomina Deus <strong>de</strong> meu Deus. Além<br />
do mais, como Paulo não pretendia lisonjear os coríntios, por isso<br />
não os enaltece por motivos falsos. Porque, embora nem todos merecessem<br />
tal louvor, e embora tivessem corrompido muitos dos dons<br />
excelentes <strong>de</strong> Deus por meio <strong>de</strong> ambição, contudo não podia ignorar<br />
os próprios dons <strong>de</strong>les, como se fossem <strong>de</strong> pouco valor, os quais, em<br />
si mesmos, mereciam o mais elevado apreço. Finalmente, porque os<br />
dons do Espírito são concedidos para a edificação <strong>de</strong> todos, ele tinha<br />
boas razões para consi<strong>de</strong>rá-los como dons comuns a toda a Igreja. 11<br />
Vejamos, porém, o que Paulo recomenda neles.<br />
Por conta da graça etc. Graça é um termo geral, porque ela abrange<br />
toda espécie <strong>de</strong> bênçãos, as quais eles tinham obtido por meio do<br />
evangelho. Pois a palavra graça significa, aqui, não o favor <strong>de</strong> Deus,<br />
10 O mesmo ponto <strong>de</strong> vista do <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> Paulo aqui é apresentado por Teodoreto: “Visto<br />
que ele está para censurá-los, suaviza <strong>de</strong> antemão o órgão <strong>de</strong> audição para que o remédio<br />
a ser aplicado seja recebido o mais favoravelmente possível.”<br />
11 “Que chacun ha en son endroit.” – “Que cada um tem severamente.”
Capítulo 1 • 43<br />
mas, à guisa <strong>de</strong> metonímia 12 (μετωνυμικω̑ς), os dons que graciosamente<br />
Deus <strong>de</strong>rramou sobre os homens. Portanto, Paulo prossegue<br />
especificando os casos particulares quando diz: “em tudo fostes enriquecidos”,<br />
e explica tudo como sendo a doutrina e Palavra <strong>de</strong> Deus.<br />
Pois os cristãos <strong>de</strong>vem ser plenificados com essas riquezas, as quais<br />
<strong>de</strong>vem também receber <strong>de</strong> nós as mais elevadas honras e o mais elevado<br />
apreço, à medida que forem sendo <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas pelo povo<br />
como um todo.<br />
Preferi conservar o termo in ipso (nele) em vez <strong>de</strong> mudá-lo para<br />
per ipsum (por ele), porque, em minha opinião, é mais expressivo e vigoroso.<br />
Pois somos enriquecidos em Cristo porque somos membros <strong>de</strong><br />
seu corpo e fomos enxertados nele; e ainda mais, visto que fomos feitos<br />
um com ele, ele compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai.<br />
6. Assim como o testemunho <strong>de</strong> Cristo foi confirmado em vós. A<br />
tradução <strong>de</strong> Erasmo é diferente: “por meio <strong>de</strong>ssas coisas, o testemunho<br />
<strong>de</strong> Cristo foi confirmado entre vós”, significando: pelo conhecimento<br />
e pela Palavra. As palavras têm em si uma ressonância distinta, e<br />
se não forem torcidas, o significado é simplesmente este: Deus selou<br />
a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu evangelho entre os coríntios, com o propósito <strong>de</strong><br />
confirmá-la. Ora, isso po<strong>de</strong> ser feito <strong>de</strong> duas maneiras – ou por meio<br />
dos milagres, ou por meio do testemunho interno do Espírito Santo.<br />
Crisóstomo parece tê-lo entendido como uma referência aos milagres,<br />
porém consi<strong>de</strong>ro-o em um sentido mais amplo. Antes <strong>de</strong> tudo, é certo<br />
que o evangelho <strong>de</strong>ve ser propriamente confirmado, em nossa experiência<br />
pessoal, por meio da fé, porque, tão logo é ele recebido por nós,<br />
pela fé, então realmente “por sua vez certifica que Deus é verda<strong>de</strong>iro”<br />
[Jo 3.33]. E embora eu admita que os milagres <strong>de</strong>vam ser <strong>de</strong> valor<br />
para sua confirmação, não obstante uma origem mais elevada <strong>de</strong>ve<br />
ser buscada, a saber: que o Espírito <strong>de</strong> Deus é o penhor [arrha] e selo.<br />
Por isso, explico estas palavras da seguinte maneira: que os coríntios<br />
exceliam em conhecimento, porquanto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio Deus fez seu<br />
12 Figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual um termo é expresso por outro – a causa pelo<br />
efeito, o efeito pela causa etc.
44 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
evangelho produzir frutos neles. Demais, ele não fez isso <strong>de</strong> uma única<br />
forma, mas o fez pela operação interna do Espírito e pela excelência<br />
e varieda<strong>de</strong> dos dons, pelos milagres e por todas as <strong>de</strong>mais coisas<br />
que cooperam. Ele chama o evangelho <strong>de</strong> o testemunho <strong>de</strong> Cristo ou<br />
concernente a Cristo, porque toda a soma <strong>de</strong>le é <strong>de</strong>svendar Cristo a<br />
nós, “em quem estão ocultos todos os tesouros do conhecimento” [Cl<br />
2.3]. Se alguém prefere consi<strong>de</strong>rá-lo num sentido ativo, em razão <strong>de</strong><br />
o autor primário do evangelho ser Cristo, <strong>de</strong> modo que os apóstolos<br />
nada mais são senão testemunhas secundárias, ou menos importantes,<br />
não discordarei <strong>de</strong>le. Contudo, para mim a primeira explicação é<br />
mais satisfatória. Admito que, logo <strong>de</strong>pois [cf. 2.1], “o testemunho <strong>de</strong><br />
Deus” <strong>de</strong>ve, além <strong>de</strong> toda controvérsia, ser consi<strong>de</strong>rado num sentido<br />
ativo, porquanto o sentido passivo seria ina<strong>de</strong>quado. Entretanto, aqui<br />
o caso é diferente; outrossim, esta passagem corrobora minha opinião,<br />
porque imediatamente ele adiciona seu significado: nada saber<br />
senão Cristo [cf. 2.2].<br />
7. De maneira que não vos venha faltar nenhum dom<br />
Ὑστερεισθαι significa estar em falta <strong>de</strong> algo que você realmente necessita.<br />
Portanto, Paulo quer dizer que os coríntios eram ricos em<br />
todos os dons <strong>de</strong> Deus, e <strong>de</strong>veras não careciam <strong>de</strong> nada. É como se<br />
dissesse: “O Senhor não só vos consi<strong>de</strong>rou dignos da luz do evangelho,<br />
mas também vos proveu ricamente <strong>de</strong> todas as graças que<br />
auxiliam os crentes a fazerem progresso no caminho da salvação.”<br />
Pois ele intitula dons [charismata] aquelas graças espirituais que<br />
são, por assim dizer, os meios <strong>de</strong> salvação para os santos. Em contrapartida,<br />
po<strong>de</strong>-se objetar que os crentes nunca são tão ricos que<br />
não se sintam carentes, em certa extensão, <strong>de</strong> graças, <strong>de</strong> modo que<br />
sempre se vêem forçados a ter “fome e se<strong>de</strong>” [Mt 5.6]. Pois, quem<br />
não está longe da perfeição? Minha resposta é a seguinte: visto que<br />
são suficientemente providos dos dons necessários, e sempre que<br />
estão necessitados, o Senhor vem oportunamente satisfazê-los,<br />
Paulo, pois, atribui-lhes tais riquezas. Pela mesma razão, ele acrescenta:<br />
“aguardando a manifestação”, significando que ele não está
Capítulo 1 • 45<br />
pensando neles como quem possui tais riquezas, nada restando<br />
para <strong>de</strong>sejar-se, senão que possuem somente o que lhes bastará<br />
até que tenham alcançado a perfeição. Entendo o gerúndio, aguardando,<br />
neste sentido: “durante o tempo em que estais esperando.”<br />
Assim, temos o seguinte significado: “Portanto, neste ínterim não<br />
ten<strong>de</strong>s carência <strong>de</strong> nenhum dom, enquanto estiver<strong>de</strong>s aguardando<br />
o dia da perfeita revelação, mediante a qual Cristo, nossa sabedoria,<br />
se fará plenamente manifesto.”<br />
8. Que também vos confirmará. O relativo [que], aqui, não se<br />
aplica a Cristo, e, sim, a Deus, mesmo quando o nome <strong>de</strong> Deus seja o<br />
antece<strong>de</strong>nte mais remoto. Porque o apóstolo prossegue expressando<br />
sua alegria, e como lhes disse previamente o que sentia sobre<br />
eles, portanto agora mostra que nutre esperança quanto ao futuro<br />
<strong>de</strong>les; e isso em parte para fazê-los sentir-se ainda mais certos<br />
<strong>de</strong> sua afeição por eles, e em parte também para exortá-los, por<br />
seu próprio exemplo, a nutrirem a mesma esperança. É como se<br />
dissesse: “Ainda que estejais num estado <strong>de</strong> alarma por estar<strong>de</strong>s<br />
esperando a salvação que ainda está por vir, não obstante <strong>de</strong>veis<br />
estar certos <strong>de</strong> que o Senhor jamais vos abandonará, mas que, ao<br />
contrário, completará o que começou em vós, <strong>de</strong> modo que, quando<br />
esse dia chegar, quando todos nós compareceremos diante do<br />
tribunal <strong>de</strong> Cristo [2Co 5.10], possamos, pois, ser encontrados irrepreensíveis.”<br />
Irrepreensíveis. Paulo ensina, em suas Epístolas aos Efésios e aos<br />
Colossenses, que o fim <strong>de</strong> nossa vocação é para vivermos <strong>de</strong> maneira<br />
pura e livres <strong>de</strong> mancha na presença <strong>de</strong> Deus [Ef 1.4; Cl 1.22]. Entretanto,<br />
<strong>de</strong>vemos observar que tal pureza não se completará em nós<br />
imediatamente; ao contrário, para nosso próprio bem, <strong>de</strong>vemos continuar<br />
exercitando a prática diária da penitência, e prosseguir sendo<br />
purificados dos pecados [2Pe 1.9], os quais nos fazem passíveis do<br />
castigo divino, até que, finalmente, sejamos <strong>de</strong>spidos, juntamente com<br />
“o corpo <strong>de</strong> morte” [Rm 7.14], <strong>de</strong> toda a impureza do pecado. Acerca<br />
do dia do Senhor falaremos no capítulo 4.
46 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
9. Deus é fiel. Quando a Escritura fala <strong>de</strong> Deus como sendo fiel,<br />
com freqüência significa sua perseverança e sua constante uniformida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> caráter [perpetuum temorem], <strong>de</strong> modo que tudo o que Deus<br />
começa, ele sempre leva a sua consumação. 13 Paulo mesmo diz que “a<br />
vocação <strong>de</strong> Deus é irrevogável” [Rm 11.29]. Portanto, em minha opinião,<br />
o que esta passagem significa é que Deus é inabalável em seu<br />
propósito. Sendo este o caso, ele não zomba <strong>de</strong> nós quando nos chama,<br />
mas que cuidará <strong>de</strong> nós para sempre. 14 Conseqüentemente, visto<br />
experimentarmos as bênçãos <strong>de</strong> Deus no passado, tenhamos bom ânimo<br />
e esperemos que ele aja sempre assim no futuro. Paulo, porém,<br />
volve sua atenção para um ponto mais elevado, pois seu argumento é<br />
que os coríntios não po<strong>de</strong>m ser lançados fora, porque uma vez foram<br />
chamados pelo Senhor “à comunhão com Cristo”. Entretanto, a fim<br />
<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>rmos que valor tem este argumento, notemos antes <strong>de</strong><br />
tudo que cada um <strong>de</strong>ve ver em sua própria vocação a evidência <strong>de</strong><br />
sua eleição. Portanto, embora nem sempre alguém possa julgar com a<br />
mesma certeza acerca da eleição <strong>de</strong> uma outra pessoa, todavia po<strong>de</strong>mos<br />
sempre <strong>de</strong>cidir, julgando com base no amor, que tantos quantos<br />
são chamados, é para a salvação que são chamados; eu quero dizer<br />
tanto eficaz quanto frutiferamente. Paulo estava dirigindo estas palavras<br />
a pessoas em quem a Palavra <strong>de</strong> Deus havia formado raízes, e em<br />
quem alguns frutos se <strong>de</strong>spontavam como resultado.<br />
Alguém po<strong>de</strong>ria objetar, dizendo que muitos dos que uma vez receberam<br />
a Palavra, mais tar<strong>de</strong> apostatam. Minha resposta é que só<br />
o Espírito é a fiel e infalível testemunha da eleição <strong>de</strong> cada pessoa, e<br />
que sua perseverança <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse fato. Respon<strong>de</strong>ria ainda que, não<br />
obstante, esse fato não impedia Paulo <strong>de</strong> estar persuadido, no tribunal<br />
do amor, <strong>de</strong> que a vocação dos coríntios seria uma firme e inabalável<br />
13 Calvino provavelmente se refere às seguintes passagens (entre outras): 1 Tessalonicenses<br />
5.24; 2 Tessalonicenses 3.3; Hebreus 10.23.<br />
14 “La vocation donc qu’il fait d’un chacun <strong>de</strong>s siens, n’est point un jeu, et en les appellant il<br />
ne se mocque point, ainsi il entretiendra et pour suyura son œuvre perpetuellement.” – “A<br />
vocação, portanto, que ele faz <strong>de</strong> cada um dos seus não é mera diversão; e ao chamá-los<br />
ele não está a brincar, mas incessantemente manterá e dará curso a sua obra.”
Capítulo 1 • 47<br />
prova, já que ele via entre eles os emblemas do beneplácito paternal <strong>de</strong><br />
Deus. Além disso, tais emblemas <strong>de</strong> forma alguma visavam a produzir<br />
um mero senso <strong>de</strong> segurança carnal; pois as Escrituras com freqüência<br />
nos advertem quanto a nossa real fraqueza, mas simplesmente visa a<br />
confirmar nossa confiança no Senhor. Ora, isso era necessário a fim <strong>de</strong><br />
que suas mentes não se vissem <strong>de</strong>snorteadas ao <strong>de</strong>scobrirem tantas<br />
falhas, como mais adiante ele as poria diante <strong>de</strong> seus olhos. Tudo isto<br />
po<strong>de</strong> ser sumariado da seguinte forma: “Os cristãos sinceros <strong>de</strong>vem<br />
nutrir boas esperanças acerca <strong>de</strong> todos quantos têm tido acesso ao<br />
caminho inconfundível da salvação, e perseveram em seu curso, ainda<br />
que ao mesmo tempo sejam assediados por muitas enfermida<strong>de</strong>s.<br />
Des<strong>de</strong> o tempo em que é iluminado [Hb 10.32] pelo Espírito <strong>de</strong> Deus,<br />
no conhecimento <strong>de</strong> Cristo, cada um <strong>de</strong> nós, na verda<strong>de</strong>, é plenamente<br />
convencido <strong>de</strong> que foi adotado pelo Senhor na herança da vida eterna.<br />
Pois a vocação eficaz <strong>de</strong>ve ser para os crentes a evidência da adoção<br />
divina. Não obstante, nesse ínterim <strong>de</strong>vemos todos nós andar “em temor<br />
e tremor” (Fp 2.12). Farei posterior referência a este assunto no<br />
capítulo 10.<br />
À comunhão. Em vez disso, Erasmo traduziu à participação [consortium].<br />
A Vulgata traz socieda<strong>de</strong> [societatem]. Eu, contudo, preferi<br />
comunhão (communionem), porque expressa melhor a força da palavra<br />
grega κοινωνιας. 15 Porque todo o propósito do evangelho consiste<br />
em que Cristo se fez nosso e somos enxertados em seu corpo. Mas<br />
quando o Pai nos dá Cristo como nossa possessão, também se nos<br />
comunica em Cristo, e por causa disso realmente alcançamos a participação<br />
<strong>de</strong> cada bênção. O argumento <strong>de</strong> Paulo, portanto, é como<br />
segue: Visto que fomos trazidos à comunhão com Cristo através do<br />
evangelho, o qual recebemos pela fé, não há razão para temermos o<br />
15 Calvino, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> ser Cristo apresentado por Paulo como “a nós oferecido no<br />
evangelho com toda abundância <strong>de</strong> bênçãos celestiais, com todos seus méritos, toda sua<br />
justiça, sabedoria e graça, sem exceção”, observa: “E o que está implícito pela comunhão<br />
(κοινωνια) <strong>de</strong> Cristo o qual, segundo o mesmo apóstolo [1Co 1.9], nos é oferecido no<br />
evangelho – todos os crentes sabem.”
48 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
risco <strong>de</strong> morte, 16 já que fomos feitos participantes daquele [Hb 3.14]<br />
que ressuscitou dos mortos, o Vitorioso sobre a morte. Em suma,<br />
quando o cristão olha para si mesmo, ele só vê motivo para tremor,<br />
ou, melhor, só vê <strong>de</strong>sespero. Mas pelo fato <strong>de</strong> ter sido chamado à comunhão<br />
com Cristo, ele não <strong>de</strong>ve pensar <strong>de</strong> si mesmo, no tocante à<br />
certeza da salvação, <strong>de</strong> nenhuma outra forma senão como membro <strong>de</strong><br />
Cristo, tornando assim suas todas as bênçãos <strong>de</strong> Cristo. Dessa forma,<br />
ele se assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada)<br />
como algo certo, caso ele se consi<strong>de</strong>re membro <strong>de</strong> Cristo, aquele<br />
que não po<strong>de</strong> jamais fracassar.<br />
10. Ora, rogo-vos, irmãos, pelo nome<br />
<strong>de</strong> nosso Senhor Jesus Cristo, que<br />
falem todos a mesma coisa, e que<br />
não haja divisões entre vós, senão<br />
que sejais perfeitamente unidos na<br />
mesma mente e no mesmo parecer.<br />
11. Meus irmãos, me foi anunciado<br />
acerca <strong>de</strong> vós, pelos que são da<br />
casa <strong>de</strong> Cloe, <strong>de</strong> que há contendas<br />
entre vós.<br />
12. Ora, quero dizer com isso que cada<br />
um <strong>de</strong> vós afirma: Eu sou <strong>de</strong> Paulo;<br />
e eu <strong>de</strong> Apolo; e eu <strong>de</strong> Cefas; e eu<br />
<strong>de</strong> Cristo.<br />
13. Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado<br />
em favor <strong>de</strong> vós? Ou fostes<br />
batizados em nome <strong>de</strong> Paulo?<br />
10. Observo autem vos, fratres, per<br />
nomen Domini nostri Jesu Christi,<br />
ut i<strong>de</strong>m loquamini omnes, et non<br />
sint inter vos dissidia: sed apte<br />
cohæreatis in una mente et in una<br />
sententia. 17<br />
11. Significatum enim mihi <strong>de</strong> vobis<br />
fuit, fratres mei, ab iis qui sunt<br />
Chloes, quod contentiones sint inter<br />
vos.<br />
12. Dico autem illud, 18 quod unusquisque<br />
vestrum dicat, Ego qui<strong>de</strong>m sum<br />
Pauli, ego autem Apollo, ego autem<br />
Cephæ, ego autem Christi.<br />
13. Divisusne est Christus? numquid<br />
pro vobis crucifixus est Paulus? aut<br />
vos in nomen Pauli baptizati estis?<br />
10. Ora, rogo-vos, irmãos. Até aqui Paulo esteve tratando os coríntios<br />
com mansidão, porquanto sabia o quanto eles eram sensíveis.<br />
16 “La mort et perdition.” – “Morte e perdição.”<br />
17 “Et en une mesme volonte”, ou “et mesme avis”. – “E na mesma disposição”, ou “e no<br />
mesmo critério.”<br />
18 “Et ie di ceci”, ou “Or ce que ie di c’est qu’un chacun.” – “E isto eu digo”, ou “Ora, o que<br />
digo é isto: que cada um.”
Capítulo 1 • 49<br />
Contudo agora, após preparar suas mentes para receberem correção,<br />
agindo como um bom e experiente cirurgião que toca a ferida gentilmente<br />
quando um doloroso medicamento precisa ser aplicado, então<br />
Paulo passa a tratá-los com mais severida<strong>de</strong>. Não obstante, mesmo<br />
aqui ele usa uma boa dose <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração, como veremos mais adiante.<br />
Eis a substância do que ele está para dizer: “Minha ar<strong>de</strong>nte esperança<br />
é que o Senhor não vos tenha concedido em vão tantos dons, sem<br />
antes querer conduzir-vos à salvação. Por outro lado, <strong>de</strong>veis também<br />
sofrer aflições para impedir-vos que graças tão excelentes sejam poluídas<br />
por vossos vícios. Portanto, esforçai-vos para que vos concor<strong>de</strong>is<br />
uns com os outros, pois eu tenho boas razões <strong>de</strong> pedir-vos que haja<br />
concordância entre vós, porquanto tenho sido informado <strong>de</strong> que a<br />
<strong>de</strong>sarmonia que há entre vós equivale mesmo a hostilida<strong>de</strong>; que as<br />
facções e o partidarismo são fomentados entre vós <strong>de</strong> tal forma que<br />
estão <strong>de</strong>stroçando a genuína unida<strong>de</strong> da fé. “Visto, porém, que, neste<br />
caso, uma simples exortação po<strong>de</strong> às vezes não ser tão persuasiva,<br />
Paulo volta a rogos enérgicos, pois ele os conjura, em nome <strong>de</strong> Cristo,<br />
a quem amam, a que promovam a harmonia.<br />
Que todos faleis a mesma coisa. Ao estimulá-los à harmonia,<br />
Paulo emprega três formas distintas <strong>de</strong> expressão. Primeiramente,<br />
ele solicita que a concordância entre eles fossem em termos tais, que<br />
tivessem todos uma só voz. Em segundo lugar, ele exige a remoção do<br />
mal pelo qual a unida<strong>de</strong> é espicaçada e <strong>de</strong>struída. Em terceiro lugar,<br />
ele <strong>de</strong>svenda a natureza da genuína harmonia, a saber, que a harmonia<br />
recíproca fosse na mente e na vonta<strong>de</strong>. O que Paulo põe como<br />
segundo é <strong>de</strong> fato o primeiro em or<strong>de</strong>m, a saber, que nos guar<strong>de</strong>mos<br />
das divisões, porque, quando somos [precavidos], então alguma outra<br />
coisa virá, ou, seja, a harmonia. Então, finalmente uma terceira<br />
coisa certamente resultará, a qual é mencionada em primeiro lugar<br />
aqui, a saber: que todos falemos como se tivéssemos uma só voz; e<br />
isso <strong>de</strong>veras é muitíssimo <strong>de</strong>sejável, como fruto da harmonia cristã.<br />
Portanto, observemos bem: nada é mais inconsistente por parte dos<br />
cristãos do que o cultivo do antagonismo entre si. Pois o princípio
50 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
mais importante <strong>de</strong> nossa religião é este: que vivamos em harmonia<br />
uns com os outros. Demais, a segurança da Igreja repousa sobre esta<br />
concordância e <strong>de</strong>la <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>.<br />
Vejamos, porém, o que Paulo requer da unida<strong>de</strong> cristã. Se alguém<br />
almeja distinções mais refinadas, ele <strong>de</strong>seja que, antes <strong>de</strong><br />
tudo, sejam eles unidos numa só mente [pensamento]; em seguida,<br />
num só parecer [juízo]; em terceiro lugar, ele <strong>de</strong>seja que os coríntios<br />
<strong>de</strong>clarem verbalmente sua concordância. Entretanto, visto que<br />
minha tradução difere um pouco da <strong>de</strong> Erasmo, <strong>de</strong>vo, <strong>de</strong> passagem,<br />
chamar a atenção <strong>de</strong> meus leitores para o uso que Paulo faz<br />
<strong>de</strong> um particípio aqui, o qual significa coisas que são a<strong>de</strong>quada e<br />
apropriadamente enfeixadas. 19 Pois o verbo καταρτιζεσθαι, do qual<br />
o particípio κατηρτισμένος se origina, significa, propriamente, ‘estar<br />
amarrado’ e ‘estar unido’, da mesma forma que os membros do<br />
corpo humano se acham jungidos uns aos outros numa simetria<br />
admiravelmente perfeita. 20<br />
Para parecer [sententia], Paulo tem γνώμην. Consi<strong>de</strong>ro-o, porém,<br />
aqui como uma referência à vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que há uma<br />
completa divisão da alma, sendo a primeira sentença (numa só<br />
mente) uma referência à fé, e a segunda (num só parecer), ao amor.<br />
Portanto, a unida<strong>de</strong> cristã será estabelecida em nosso meio, não<br />
só quando estamos em estreita harmonia quanto à doutrina, mas<br />
também quando estamos em harmonia em nossos esforços e dis-<br />
19 “Et assemblés l’une à l’autre.” – “E associadas umas às outras.”<br />
20 O verbo καταρτιζω propriamente significa: reparar, readaptar ou restaurar a sua condição<br />
original o que fora <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado ou quebrado; e nesse sentido se aplica à reparação <strong>de</strong><br />
re<strong>de</strong>s, navios, muros etc. [veja-se Mt 4.21; Mc 1.19]. Po<strong>de</strong>mos com plena proprieda<strong>de</strong><br />
enten<strong>de</strong>r o apóstolo fazendo aqui alusão à reparação <strong>de</strong> um navio que fora quebrado<br />
ou danificado, e como a informar que uma igreja, quando dispersa por divisões, não<br />
é, por assim dizer, um mar confiável, e <strong>de</strong>ve ser cuidadosamente reparada, antes que<br />
possa estar preparada para os propósitos <strong>de</strong> comércio, comunicando às nações da terra<br />
as “genuínas riquezas”. Entretanto, a alusão, mais provavelmente, é como se Calvino<br />
estivesse pensando nos membros do corpo humano, os quais são tão admiravelmente<br />
ajustados uns aos outros. Merece nota o fato <strong>de</strong> que Paulo faz uso <strong>de</strong> um <strong>de</strong>rivativo do<br />
mesmo verbo (κατάρτισις) em 2 Coríntios 13.9, sobre o qual Beza observa “que a intenção<br />
do apóstolo é que, enquanto os membros da Igreja estavam todos, por assim dizer, <strong>de</strong>slocados<br />
e <strong>de</strong>sconjuntados, agora uma vez mais seriam enfeixados em amor, e tudo fariam<br />
para fazer perfeito o que estava <strong>de</strong>feituoso entre eles, quer na fé, quer na conduta.”
Capítulo 1 • 51<br />
posições, e assim nos tornamos <strong>de</strong> uma só mente em todos os<br />
aspectos. Neste mesmo sentido, Lucas testifica da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da<br />
Igreja Primitiva, dizendo que todos tinham “um só coração e uma<br />
só alma” [At 4.32]. Certamente que isso será sempre encontrado<br />
on<strong>de</strong> o Espírito <strong>de</strong> Cristo reina. Ao dizer-lhes que falassem a mesma<br />
coisa, ele notifica ainda mais plenamente o fruto da unida<strong>de</strong>, quão<br />
completa <strong>de</strong>ve ser a concordância, a saber, que não haja qualquer<br />
divergência nem mesmo em palavras. Certamente que isso é algo<br />
muito difícil, porém mesmo assim é indispensável entre os cristãos,<br />
<strong>de</strong> quem se tem requerido que tenham não só uma única fé, mas<br />
também uma única confissão.<br />
11. Me foi anunciado acerca <strong>de</strong> vós. Visto que as observações<br />
gerais às vezes surtem pouco efeito, Paulo então notifica que o que ele<br />
está dizendo <strong>de</strong> fato também se aplica particularmente a eles. Portanto,<br />
ele faz esta aplicação a fim <strong>de</strong> que os coríntios soubessem que não<br />
foi sem motivo que ele fez menção da harmonia. Pois ele mostra que<br />
não só se afastaram da santa unida<strong>de</strong>, 21 mas que também entraram em<br />
controvérsias, as quais se tornaram mais sérias 22 do que diferenças<br />
<strong>de</strong> opinião. Em caso <strong>de</strong> ser ele acusado <strong>de</strong> ser por <strong>de</strong>mais crédulo em<br />
dar ouvidos tão prontamente a informações inverídicas, 23 ele fala bem<br />
dos que lhe passaram tais informações. Provavelmente fossem tidos<br />
na mais elevada consi<strong>de</strong>ração, visto que Paulo não hesitou em citá-los<br />
como testemunhas competentes contra a Igreja toda. Ainda que não<br />
seja <strong>de</strong> todo certo se Cloe é o nome <strong>de</strong> lugar ou <strong>de</strong> mulher, parece-me<br />
21 “La sancte union qui doit estre les Chrestiens.” – “Aquela santa unida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve haver<br />
entre os cristãos.”<br />
22 “Bien plus dangereuses.” – “Muito mais perigosas.”<br />
23 Beza observa que o verbo aqui empregado, δηλοω (<strong>de</strong>clarar) contém uma significação<br />
mais forte do que σημαινω (insinuar), assim como há uma diferença <strong>de</strong> sentido entre as<br />
palavras latinas <strong>de</strong>clarare (<strong>de</strong>clarar) e significare (insinuar), exemplo esse que é fornecido<br />
em uma carta <strong>de</strong> Cícero a Lucrécio: “tibi non significandum solum, sed etiam <strong>de</strong>clarandum<br />
arbitror, nihil mihi esse potuisse tuis literis gratius.” – “Creio que não se <strong>de</strong>ve simplesmente<br />
insinuar-lhe, mas <strong>de</strong>clarar que nada po<strong>de</strong>ria ser-me mais agradável do que suas<br />
cartas.” A palavra enfática, εδηλωθη (foi <strong>de</strong>clarado), parece ter sido usada pelo apóstolo<br />
para comunicar mais plenamente à mente dos coríntios que ele não lhes transmitira uma<br />
mera notícia.
52 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
mais provável, porém, que fosse o nome <strong>de</strong> uma mulher. 24 Portanto,<br />
em minha opinião é que foi uma família bem familiarizada com Paulo<br />
que lhe falou <strong>de</strong>ste distúrbio na Igreja <strong>de</strong> Corinto, com o propósito <strong>de</strong><br />
que <strong>de</strong>le proviesse a cura. Mas concluir, como fazem muitos, seguindo<br />
a opinião <strong>de</strong> Crisóstomo, que Paulo evitou o uso <strong>de</strong> nomes reais com<br />
o intuito <strong>de</strong> evitar que fossem molestados, parece-me absurdo. Pois<br />
ele não diz que alguns membros particulares da família o informaram;<br />
ao contrário, faz menção <strong>de</strong> todos eles, o que não <strong>de</strong>ixa lugar a dúvida<br />
<strong>de</strong> que estavam bem dispostos a ser citados nominalmente. Além<br />
do mais, para que suas mentes não se exasperassem por in<strong>de</strong>vida severida<strong>de</strong>,<br />
ele mitigou a reprovação falando <strong>de</strong> uma maneira como se<br />
quisesse angariar o respeito; e ele proce<strong>de</strong>u assim não para amenizar<br />
seu problema, mas para fazê-los ainda mais dóceis e enten<strong>de</strong>r melhor<br />
a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu mal.<br />
12. Ora, o que eu quero dizer é que cada um <strong>de</strong> vós. Alguns<br />
acreditam que haja aqui um caso <strong>de</strong> imitação (μιμησις), como se Paulo<br />
estivesse aqui repetindo as palavras reais dos coríntios. Ora, ainda que<br />
os manuscritos variem na avaliação da partícula ὅτι, sou <strong>de</strong> opinião que<br />
ela é a conjunção porque, em vez do pronome relativo que, <strong>de</strong> modo que<br />
temos aqui simplesmente uma explicação da sentença anterior, como<br />
segue: “A razão por que digo que há controvérsias entre vós, é porque<br />
cada um <strong>de</strong> vós se põe a gloriar-se no nome <strong>de</strong> um homem. Mas alguém<br />
po<strong>de</strong>rá objetar que essas afirmações não fornecem em si mesmas qualquer<br />
indicação <strong>de</strong> controvérsias. Minha resposta é que on<strong>de</strong> as divisões<br />
predominam na religião, outra coisa não suce<strong>de</strong> senão que o que se<br />
acha na mente dos homens logo se irrompe em franco conflito. Pois<br />
enquanto nada é mais eficaz para manter-nos unidos, e não há nada que<br />
mais une nossas mentes, conservando-as em paz, do que a harmonia na<br />
24 Alguns chegaram à conclusão que por τω̑ν Χλόης (os <strong>de</strong> Cloe) o apóstolo quer dizer pessoas<br />
que estavam em florescente condição na religião; <strong>de</strong> χλόη, erva ver<strong>de</strong> (Heródoto,<br />
iv.34, Eurípe<strong>de</strong>s, Hipp. 1124). Certo escritor supõe Paulo querendo dizer seniores (anciãos),<br />
<strong>de</strong>rivando a palavra χλόη <strong>de</strong> jlb, idoso. Entretanto, tais conjeturas são claramente<br />
mais engenhosas que sólidas. É verda<strong>de</strong> que o nome Χλόη (Cloe) era freqüente entre os<br />
gregos como um nome feminino. É mais natural enten<strong>de</strong>r por τω̑ν Χλόης, os <strong>de</strong> Cloe, como<br />
equivalente a των Χλοης σικειων – os da casa <strong>de</strong> Cloe.
Capítulo 1 • 53<br />
religião, todavia, se por alguma razão suscita-se <strong>de</strong>sarmonia em conexão<br />
com ela, o resultado inevitável é que os homens são imediatamente<br />
instigados a digladiar-se <strong>de</strong> forma ferrenha, e não existe outro campo<br />
on<strong>de</strong> as controvérsias sejam mais ferozes. 25 Portanto, Paulo é justificado<br />
em apresentar como evidência suficiente <strong>de</strong> controvérsias o fato <strong>de</strong><br />
que os coríntios estavam criando seitas e facções.<br />
Eu sou <strong>de</strong> Paulo etc. Ele agora menciona nominalmente os servos<br />
fiéis <strong>de</strong> Cristo – Apolo, que fora seu sucessor em Corinto, e também o<br />
próprio Pedro. Então adiciona seu próprio nome ao <strong>de</strong>les, com receio<br />
<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse, <strong>de</strong> alguma forma, parecer estar fazendo mais por sua<br />
própria causa do que pela causa <strong>de</strong> Cristo. Todavia, é improvável que<br />
houvesse alguns partidos que estivessem atacando um <strong>de</strong>sses três<br />
ministros em particular, em <strong>de</strong>trimento dos outros dois, visto que se<br />
achavam limitados, em seu ministério, por um acordo sagrado. 26 Mas,<br />
como sugere mais tar<strong>de</strong> (1Co 3.4ss), ele transferiu para si e para Apolo<br />
o que era aplicável aos <strong>de</strong>mais. Ele proce<strong>de</strong>u assim a fim <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>ssem<br />
ter mais facilida<strong>de</strong> em avaliar o próprio problema, dissociado da<br />
avaliação dos personagens envolvidos.<br />
Mas alguém po<strong>de</strong>ria apontar para o fato <strong>de</strong> que Paulo também<br />
menciona, aqui, aqueles que publicamente confessavam que “eram <strong>de</strong><br />
Cristo”. Isto também reclamava censura? Respondo que nesta forma a<br />
expressão mais clara é dada para a situação realmente negativa que se<br />
<strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> nosso erro em prestarmos nossa <strong>de</strong>voção aos homens.<br />
Se tal acontece, então Cristo <strong>de</strong>ve necessariamente governar só uma<br />
parte da igreja, e os crentes não têm outra alternativa senão separar-<br />
-se dos <strong>de</strong>mais, isso se não <strong>de</strong>sejam negar a Cristo.<br />
Entretanto, como este versículo é torcido <strong>de</strong> várias maneiras, o<br />
único caminho certo é <strong>de</strong>cidirmos mais exatamente o que Paulo quer<br />
25 “Et n’y a en chose quelconque <strong>de</strong>bats si grans ni tant à craindre que sont ceux-là.” – “E em<br />
nenhum <strong>de</strong>partamento há disputas tão fortes, ou tão terríveis como aquelas.”<br />
26 “Autrement veu que ces trois estoyent d’un sainct accord ensemble en leur ministere, il<br />
n’est point vray-semblable, qu’il y eust aucunes partialitéz entre les Corinthiens pour se<br />
glorifier en l’un plustost qu’en l’autre.” – “De outra forma, visto que aqueles três estavam<br />
unidos em seu ministério por um laço sacro, não é provável que houvesse alguns partidos<br />
entre os coríntios que estivessem preparados a gloriar-se neles mais que em outros.”
54 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
dizer aqui. Seu objetivo é dizer que na Igreja a autorida<strong>de</strong> pertence unicamente<br />
a Cristo, <strong>de</strong> modo que todos nós somos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>le; que<br />
unicamente ele é chamado Senhor e Mestre entre nós, <strong>de</strong> modo que o<br />
nome <strong>de</strong> quem quer que seja se exibe como rival <strong>de</strong> Cristo. Portanto,<br />
Paulo con<strong>de</strong>na aqueles que atraem seguidores após eles [At 20.30], a<br />
ponto <strong>de</strong> dividir a Igreja em seitas, porque ele os con<strong>de</strong>na como inimigos<br />
que <strong>de</strong>stroem nossa fé. Conseqüentemente, Paulo não permite que<br />
os homens exerçam tal preeminência na Igreja, que usurpem a supremacia<br />
<strong>de</strong> Cristo. Os homens, pois, não <strong>de</strong>vem ser honrados <strong>de</strong> tal maneira<br />
que venham a prejudicar, mesmo que seja um ínfimo grau, a dignida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Cristo. É verda<strong>de</strong> que existe certo grau <strong>de</strong> honra que é <strong>de</strong>vida aos<br />
ministros <strong>de</strong> Cristo, e que eles são igualmente mestres em seu <strong>de</strong>vido<br />
lugar; mas é preciso ter sempre em mente que a qualificação que pertence<br />
a Cristo <strong>de</strong>ve ser mantida intocável, ou, seja, que ele continuará<br />
sendo, não obstante, o único e verda<strong>de</strong>iro Mestre, e <strong>de</strong>ve ser contemplado<br />
como tal. Por essa razão, o alvo dos bons ministros é este: servir a<br />
Cristo, todos eles <strong>de</strong> forma idêntica, reivindicando para ele o domínio, a<br />
autorida<strong>de</strong> e a glória exclusivos; lutar sob sua ban<strong>de</strong>ira; obe<strong>de</strong>cê-lo acima<br />
<strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> todos e submeter os outros a seu domínio. Se alguém se<br />
<strong>de</strong>ixa influenciar pela ambição, ele conquista seguidores, sim, não para<br />
Cristo, mas para si próprio. Portanto, eis aqui a fonte <strong>de</strong> todos os males,<br />
eis aqui a mais danosa <strong>de</strong> todas as enfermida<strong>de</strong>s, eis aqui a peçonha<br />
mais letal em todas as igrejas: quando os ministros se <strong>de</strong>votam mais a<br />
seus próprios interesses do que aos interesses <strong>de</strong> Cristo. Em suma, a<br />
unida<strong>de</strong> da Igreja consiste primordialmente nesta única coisa: que todos<br />
nós <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mos unicamente <strong>de</strong> Cristo, e que, portanto, os homens<br />
sejam tidos e permaneçam em posição inferior, para que nada venha a<br />
prejudicar Cristo, um mínimo sequer, em sua posição <strong>de</strong> preeminência.<br />
13. Cristo está dividido? Este mal intolerável provinha das diversas<br />
divisões prevalecentes entre os coríntios. Porquanto Cristo é o<br />
único que reina na Igreja. E já que o propósito do evangelho é que sejamos<br />
reconciliados com Deus por intermédio <strong>de</strong> Cristo, é necessário,<br />
antes <strong>de</strong> tudo, que estejamos todos seguros e unidos nele. Somente
Capítulo 1 • 55<br />
uma pequena parte dos coríntios, mais sábios que os outros, 27 continuava<br />
a reconhecer Cristo como seu Mestre, enquanto todos os<br />
<strong>de</strong>mais se orgulhavam <strong>de</strong> ser cristãos. E assim Cristo estava sendo feito<br />
em pedaços. Pois é mister que todos sejamos mantidos juntos <strong>de</strong>le<br />
e sob ele como nossa Cabeça. Pois se vivermos divididos em diversos<br />
corpos, também dissolveremos o [corpo] <strong>de</strong>le. Gloriarmo-nos em seu<br />
nome em meio a <strong>de</strong>savenças e partidos é rasgá-lo em pedaços. Na verda<strong>de</strong>,<br />
tal coisa não po<strong>de</strong> ser feita, pois ele jamais per<strong>de</strong>rá a unida<strong>de</strong> e a<br />
harmonia, porque “ele não po<strong>de</strong> negar a si mesmo” [2Tm 2.13]. Paulo,<br />
pois, colocando esta situação absurda diante dos coríntios, se propõe<br />
a levá-los a enten<strong>de</strong>r que estavam alienados <strong>de</strong> Cristo em razão <strong>de</strong><br />
suas divisões. Pois Cristo só reina em nosso meio quando ele constitui<br />
os elos que nos ligam a ele numa unida<strong>de</strong> sacra e inviolável.<br />
Foi Paulo crucificado por vós? Mediante duas po<strong>de</strong>rosas consi<strong>de</strong>rações,<br />
Paulo mostra quão vil 28 é arrebatar a Cristo <strong>de</strong> seu lugar <strong>de</strong> honra<br />
como única Cabeça da Igreja, único Mestre, único Senhor; ou extrair alguma<br />
parte da honra que lhe pertence e transferi-la para os homens. A<br />
primeira razão é que fomos redimidos por Cristo com base no princípio<br />
<strong>de</strong> que não estamos sob nossa própria jurisdição. Paulo usa este mesmo<br />
argumento em sua Epístola aos Romanos [14.9], quando diz: “Pois<br />
para este fim foi que Cristo morreu e ressuscitou, para que pu<strong>de</strong>sse ser<br />
Senhor tanto dos vivos quanto dos mortos.” Portanto, vivamos para ele<br />
e morramos para ele, porque lhe pertencemos para sempre. Novamente<br />
nesta mesma Epístola [7.23], ele escreve: “Fostes comprados por preço;<br />
não vos torneis escravos <strong>de</strong> homens.” Portanto, visto que os coríntios<br />
haviam sido adquiridos pelo sangue <strong>de</strong> Cristo, eles estavam, em certo<br />
sentido, renunciando as bênçãos da re<strong>de</strong>nção, já que estavam transformando<br />
outras pessoas em seus lí<strong>de</strong>res. Eis aqui uma notável doutrina<br />
que merece especial atenção: “que não temos a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pôr-nos<br />
sob a sujeição <strong>de</strong> seres humanos, 29 já que somos herança do Senhor.”<br />
27 “Mieux avisez que les autres.” – “Melhor avisados do que outros.”<br />
28 “Combien c’est vne chose insupportable.” – “Quão insuportável coisa é.”<br />
29 “Addicere nos hominibus in servitutem” – “<strong>de</strong> nous assuiettir aux hommes en seruitu<strong>de</strong>.”<br />
– “Entregar-nos a homens, ao ponto <strong>de</strong> nos tornarmos seus escravos.” Calvino mui pro-
56 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Portanto, Paulo aqui acusa os coríntios da mais grave ingratidão, visto<br />
que estavam alienando-se <strong>de</strong>sta Cabeça por cujo sangue haviam sido<br />
redimidos; contudo, talvez agissem assim inadvertidamente.<br />
Além do mais, esta passagem milita contra a ímpia invenção dos<br />
papistas, a qual usam em apoio <strong>de</strong> seu sistema <strong>de</strong> indulgências. Pois<br />
do sangue <strong>de</strong> Cristo e dos mártires eles engendraram o falso tesouro<br />
da Igreja, o qual, ensinam eles, é distribuído pelas indulgências. Assim<br />
preten<strong>de</strong>m que, por sua morte, os mártires 30 meritoriamente ganharam<br />
algo para nós aos olhos <strong>de</strong> Deus, para que pudéssemos recorrer a<br />
essa fonte e obter a remissão <strong>de</strong> nossos pecados. Certamente negarão<br />
que os mártires nos redimem. Todavia, nada é mais claro do que um<br />
fato proce<strong>de</strong>r do outro. É uma questão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rem os pecadores reconciliar-se<br />
com Deus; é uma questão <strong>de</strong> obterem eles o perdão; é uma<br />
questão <strong>de</strong> fazerem eles expiação pelas ofensas. Gloriam-se <strong>de</strong> que<br />
tudo isso é feito em parte pelo sangue <strong>de</strong> Cristo e em parte pelo sangue<br />
dos mártires. Portanto, fazem dos mártires os participantes <strong>de</strong> Cristo<br />
na conquista <strong>de</strong> nossa salvação. Paulo, porém, aqui está negando energicamente<br />
que alguém mais, além <strong>de</strong> Cristo, tenha sido crucificado em<br />
nosso favor. De fato, os mártires morreram para nosso benefício, mas<br />
(no dizer <strong>de</strong> Leo) 31 foi para dar-nos o exemplo <strong>de</strong> firmeza, e não para<br />
adquirir-nos o dom da justiça.<br />
vavelmente tinha em mente o celebrado sentimento <strong>de</strong> Horácio (Epist. i.1.14): “Nullius<br />
addictus jurare in verba magistri.” – “Obrigado a jurar fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a nenhum senhor”, enquanto<br />
impõe o sentimento por uma po<strong>de</strong>rosa consi<strong>de</strong>ração, à qual o poeta pagão era<br />
totalmente estranho.<br />
30 “Du sang <strong>de</strong> Christ, et <strong>de</strong>s martyrs tous ensemble.’ – “Do sangue <strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong> todos os<br />
mártires juntos.”<br />
31 Leo, ad Palæstinos, Ep. 81. A passagem supramencionada é citada livremente nas Institutas.<br />
“Ainda que a morte <strong>de</strong> muitos santos fosse preciosa aos olhos do Senhor [Sl 116.15],<br />
contudo nenhum inocente assassinado era a propiciação do mundo. Os justos recebiam<br />
coroas, porém não as davam; e a fortaleza dos crentes produzia exemplos <strong>de</strong> paciência,<br />
não dons <strong>de</strong> justiça. Pois suas mortes eram para si mesmos; e nenhum <strong>de</strong>les, ao morrer,<br />
pagava a dívida <strong>de</strong> outro, com a exceção <strong>de</strong> Cristo nosso Senhor, em quem unicamente todos<br />
somos crucificados, todos mortos, sepultados e ressurretos.” Leo, <strong>de</strong> cujos escritos<br />
foi extraída esta admirável passagem, foi um bispo romano que viveu no quinto século,<br />
e foi um dos mais eminentes homens <strong>de</strong> sua época. Ele foi o mais zeloso <strong>de</strong>fensor das<br />
doutrinas da graça, em oposição ao pelagianismo e outras heresias.
Capítulo 1 • 57<br />
Ou fostes batizados em nome Paulo? Seu segundo argumento<br />
é extraído da profissão do batismo. Pois nos alistamos sob sua ban<strong>de</strong>ira,<br />
em cujo nome somos batizados. Desta forma somos unidos 32<br />
a Cristo, em cujo nome nosso batismo é celebrado. Daqui se segue<br />
que os coríntios po<strong>de</strong>m ser acusados <strong>de</strong> perfídia e apostasia, caso se<br />
rendam em sujeição aos homens.<br />
Note-se aqui que a natureza do batismo é como um bônus <strong>de</strong><br />
contrato 33 <strong>de</strong> mútua obrigação, pois como o Senhor, por meio <strong>de</strong>ste<br />
símbolo, nos recebe em sua família, e nos introduz no seio <strong>de</strong> seu<br />
povo, e assim penhoramos nossa fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a ele <strong>de</strong> que jamais teremos<br />
qualquer outro senhor espiritual. Conseqüentemente, como<br />
Deus, <strong>de</strong> sua parte, faz um pacto <strong>de</strong> graça conosco, no qual promete<br />
a remissão <strong>de</strong> pecados e uma nova vida, assim também, <strong>de</strong> nossa<br />
parte, fazemos um voto <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>rmos guerra espiritual, por<br />
meio da qual lhe prometemos ser seus perenes vassalos. Paulo aqui<br />
não trata da primeira parte, visto que o contexto não o requer; ao<br />
tratar do batismo, porém, a segunda parte não po<strong>de</strong>ria ficar omitida.<br />
De fato, Paulo não está propriamente acusando os coríntios <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>serção, por terem abandonado a Cristo e se voltado para os homens;<br />
está, porém, realçando o próprio fato <strong>de</strong> que, não se mantendo<br />
firmes em Cristo, e tão-somente em Cristo, se constituíram em transgressores<br />
do pacto.<br />
Suscita-se uma pergunta: o que significa ser batizado em nome<br />
<strong>de</strong> Cristo? Minha resposta é que essa maneira <strong>de</strong> se expressar significa<br />
não só que o batismo se acha fundamentado na autorida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Cristo, mas também que ele repousa em seu po<strong>de</strong>r, e em certo<br />
sentido consiste nisso; e finalmente que todo o efeito <strong>de</strong>le <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
do fato <strong>de</strong> o nome <strong>de</strong> Cristo ser invocado nele. Po<strong>de</strong>-se suscitar,<br />
porém, outra pergunta: por que Paulo diz que os coríntios haviam<br />
32 “Obligez par serment.” – “Atados por juramento.”<br />
33 “Syngrapha (o termo empregado por Calvino) era um contrato ou vínculo, formalmente<br />
endossado entre duas partes, assinado e selado por ambas, e uma cópia dada a cada<br />
uma.” Cic. Verr. i.36. Dio. xlviii.37. Deriva-se <strong>de</strong> um termo grego, συγγραφὴ (um instrumento<br />
ou obrigação legal). Heródoto, i.48; e Demóstenes, cclxviii.13.
58 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
sido batizados em nome <strong>de</strong> Cristo, quando o próprio Cristo or<strong>de</strong>nara<br />
[Mt 28.19] que os apóstolos batizassem em nome do Pai, do Filho e<br />
do Espírito Santo? Minha resposta é que, ao tratarmos do batismo,<br />
nossa primeira consi<strong>de</strong>ração consiste em que Deus o Pai, tendo-nos<br />
introduzido, por sua imerecida mercê, em sua Igreja, recebe-nos, por<br />
meio da adoção, à comunhão <strong>de</strong> seus filhos. Em segundo lugar, visto<br />
que nenhuma união com ele nos é possível a não ser por meio da<br />
reconciliação, é indispensável que Cristo nos restaure ao favor do<br />
Pai, por meio <strong>de</strong> seu sangue. Em terceiro lugar, visto que somos consagrados<br />
a Deus pelo batismo, precisamos também da intervenção<br />
do Espírito Santo, cuja função é transformar-nos em novas criaturas.<br />
Realmente, sua obra especial é lavar-nos no sangue <strong>de</strong> Cristo; mas,<br />
visto que só obtemos a misericórdia do Pai, ou a graça do Espírito,<br />
tão-somente por meio <strong>de</strong> Cristo, temos boas razões para <strong>de</strong>nominá-lo<br />
o próprio objeto [scopum] do batismo, e associamos o batismo com<br />
seu nome em particular. Todavia, isso <strong>de</strong> forma alguma suprime os<br />
nomes do Pai e do Espírito. Pois quando <strong>de</strong>sejamos falar brevemente<br />
da eficácia do batismo, mencionamos só o nome <strong>de</strong> Cristo. Quando,<br />
porém, <strong>de</strong>sejamos ser mais precisos, então <strong>de</strong>vemos também incluir<br />
os nomes do Pai e do Espírito.<br />
14. Dou graças a Deus porque não batizei<br />
a nenhum <strong>de</strong> vós, salvo Crispo<br />
e Gaio;<br />
15. para que ninguém diga que fostes<br />
batizados em meu próprio nome.<br />
16. E batizei também a casa <strong>de</strong> Estéfanas;<br />
além <strong>de</strong>stes, não me lembro se<br />
batizei algum outro.<br />
17. Porque Cristo não me enviou a batizar,<br />
mas a pregar o evangelho; não<br />
em sabedoria <strong>de</strong> palavras, para que a<br />
cruz <strong>de</strong> Cristo não ficasse sem efeito.<br />
18. Porque a pregação da cruz, para os<br />
que perecem, é loucura; mas para<br />
nós, que somos salvos, é o po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> Deus.<br />
14. Gratias ago Deo meo, quod neminem<br />
baptizaverim vestrûm, nisi<br />
Crispum et Gaium:<br />
15. Ne quis dicat, quod in meum nomen<br />
baptizaverim.<br />
16. Baptizavi autem et Stephanæ familiam;<br />
præterea nescio, num quem<br />
alium baptizaverim.<br />
17. Non enim misit me Christus ut batizarem,<br />
sed ut evangelizarem: non<br />
in sapientia sermonis, ne inanis reddatur<br />
crux Christi.<br />
18. Nam sermo crucis iis, qui pereunt,<br />
stultitia est; at nobis qui<br />
salutem consequimur, potentia<br />
Dei est.
Capítulo 1 • 59<br />
19. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria<br />
dos sábios; E reduzirei a nada<br />
a prudência dos pru<strong>de</strong>ntes.<br />
20. On<strong>de</strong> está o sábio? on<strong>de</strong> está o escriba?<br />
on<strong>de</strong> está o inquiridor <strong>de</strong>ste<br />
mundo? Não tornou Deus em loucura<br />
a sabedoria do mundo?<br />
19. Scriptum est enim; (Ies. xxix.14);<br />
perdam sapientiam sapientum, et<br />
intelligentiam intelligentum auferam<br />
e medio.<br />
20. Ubis sapiens? ubi scriba? ubi<br />
disputator hujus saeculi? nonne<br />
infatuavit Deus sapentiam mundi<br />
hujus?<br />
14. Dou graças a Deus. Nestas palavras, ele censura acremente a<br />
perversida<strong>de</strong> dos coríntios, o que o levou a abster-se, até certo ponto,<br />
<strong>de</strong> algo tão santo e honroso, que é a administração do batismo. Realmente<br />
Paulo teria agido <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus direitos, e em consonância com<br />
a natureza <strong>de</strong> seu ofício, caso tivesse ele batizado um gran<strong>de</strong> número<br />
<strong>de</strong> pessoas. Ele, porém, se alegra <strong>de</strong> haver acontecido o contrário e<br />
<strong>de</strong> estar consciente <strong>de</strong> que assim se <strong>de</strong>u pela providência divina, para<br />
que não houvesse nele ocasião <strong>de</strong> orgulho, ou para que não se assemelhasse<br />
aos homens ambiciosos que estavam à espreita <strong>de</strong> seguidores.<br />
Mas, o que aconteceria se Paulo tivesse batizado muitos? Não teria<br />
havido nenhum erro nisso; mas (como eu já disse) há envolvido nisso<br />
uma severa censura contra os coríntios e seus apóstolos, visto que<br />
um servo do Senhor se alegrava em abster-se <strong>de</strong> uma obra, igualmente<br />
boa e valiosa, com o fim <strong>de</strong> evitar que viesse a converter-se na causa<br />
<strong>de</strong> prejuízo para os coríntios.<br />
17. Porque Cristo não me enviou etc. Paulo levanta uma possível<br />
objeção contra si mesmo, a saber, que ele não cumprira o que<br />
<strong>de</strong>veria ter feito à luz do fato <strong>de</strong> que Cristo or<strong>de</strong>nara a seus apóstolos<br />
que batizassem e ensinassem. Portanto, ele replica que esse não<br />
era o principal <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> seu ofício, pois a tarefa <strong>de</strong> ensinar<br />
lhe fora imposta como sendo primordial, à qual ele <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>votar-<br />
-se. Pois quando Cristo diz aos apóstolos: “I<strong>de</strong>, pregai e batizai” [Mt<br />
28.19; Mc 16.15], ele anexa o batismo ao ensino simplesmente como<br />
adição ou apêndice. De modo que o ensino é mantido sempre em<br />
primeiro lugar.
60 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Entretanto, duas coisas se <strong>de</strong>vem notar aqui. A primeira é que o<br />
apóstolo, aqui, não nega que tivesse uma or<strong>de</strong>m para batizar. Pois as<br />
palavras, I<strong>de</strong>, batizai, aplicam-se a todos os apóstolos, e ele teria sido<br />
presunçoso se batizasse alguém sem ter autorida<strong>de</strong> para fazê-lo. O que<br />
ele faz aqui é simplesmente realçar a tarefa para a qual fora chamado.<br />
A segunda questão é esta: ele aqui <strong>de</strong> forma alguma <strong>de</strong>precia a dignida<strong>de</strong><br />
e o efeito do batismo, como pensam alguns. Porquanto Paulo aqui<br />
não está tratando da eficácia do batismo, e nem faz tal comparação<br />
com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir sua eficácia. Visto, porém, que o dom <strong>de</strong> ensinar<br />
pertencia a uns poucos, enquanto que a muitos se permitia batizar,<br />
e também visto que muitos podiam ser ensinados <strong>de</strong> uma só vez, enquanto<br />
que o batismo podia ser administrado a um só indivíduo <strong>de</strong><br />
cada vez, Paulo, que excedia na habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar, persistiu na<br />
obra que lhe pareceu mais necessária, enquanto que <strong>de</strong>ixara a outros<br />
o que podiam melhor fazer. Além disso, se os leitores consi<strong>de</strong>rarem<br />
todas as circunstâncias, mais atentamente, verão que subjaz aqui uma<br />
ironia 34 implícita, pois tacitamente ferroa os que buscavam um pouco<br />
<strong>de</strong> glória à expensa do labor <strong>de</strong> outros, sob o pretexto <strong>de</strong> administrar<br />
uma cerimônia religiosa. Pois o labor <strong>de</strong> Paulo na edificação daquela<br />
igreja tinha sido incrível. Certamente que mestres <strong>de</strong>spreocupados<br />
vieram <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, os quais atraíram discípulos para seu partido por<br />
meio da aspersão <strong>de</strong> água. 35 Portanto, Paulo lhes confere o título <strong>de</strong><br />
honra (honoris), e assevera que está contente em ficar com o trabalho<br />
oneroso [onere]. 36<br />
Não em sabedoria <strong>de</strong> palavras. Há aqui um exemplo <strong>de</strong> antecipação,<br />
por meio do qual ele refuta uma dupla objeção. Pois esses pretensos<br />
mestres po<strong>de</strong>riam respon<strong>de</strong>r que Paulo, que não possuía o dom da eloqüência,<br />
se ostentava <strong>de</strong> forma ridícula ao alegar que o <strong>de</strong>partamento<br />
docente lhe fora confiado. Por essa razão ele diz, à guisa <strong>de</strong> concessão,<br />
34 Ironie, c’est à dire, mocquerie.” – “Ironia, isto é, zombaria.”<br />
35 “Seulement en les arrousant d’euau: c’est à dire, baptizant.” – “Simplesmente por aspergi-<br />
-los com água, ou, seja, batizando-os.”<br />
36 “Toute la charge et la pesanteur du far<strong>de</strong>au.” – “Toda a carga e peso do fardo.”
Capítulo 1 • 61<br />
que não fora formado para ser orador, 37 que pu<strong>de</strong>sse ostentar elegância<br />
<strong>de</strong> palavras, mas que era ministro do Espírito, um servo que, com<br />
fala ordinária e sem polimento, nada possuía da sabedoria do mundo.<br />
Ora, para que ninguém objetasse, dizendo que ele corria atrás <strong>de</strong> glória<br />
através <strong>de</strong> sua pregação, assim como tantos outros faziam quando batizavam,<br />
ele respon<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma breve dizendo que, visto que o método<br />
<strong>de</strong> ensinar, que ele seguia, era <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> todo brilhantismo, e não revelava<br />
qualquer laivo <strong>de</strong> ambição, então não podia ser suspeito a esse<br />
respeito. Portanto, se não estou equivocado, po<strong>de</strong>mos prontamente <strong>de</strong>duzir<br />
qual era o principal aspecto da controvérsia que Paulo manteve<br />
com os maus e infiéis ministros <strong>de</strong> Corinto, a saber, uma vez que se<br />
achavam dominados pela ambição, procuravam angariar a admiração<br />
do povo para si, insinuando-se ante o povo por meio da exibição <strong>de</strong><br />
palavras e simulação [larva] <strong>de</strong> sabedoria humana.<br />
Deste mal principal surgem outros dois. (1) Que por meio do que<br />
po<strong>de</strong>mos chamar dissimulação (por assim dizer), a simplicida<strong>de</strong> do<br />
evangelho era <strong>de</strong>formada e Cristo era vestido, por assim dizer, <strong>de</strong> uma<br />
nova e estranha vestimenta, <strong>de</strong> modo que o puro e genuíno conhecimento<br />
<strong>de</strong>le estava oculto dos olhos. Além do mais, (2) visto que a<br />
mente dos homens 38 estava voltada para o brilhantismo e excelência<br />
<strong>de</strong> palavras, para as especulações engenhosas, para a fútil exibição<br />
<strong>de</strong> sublimida<strong>de</strong> superior da doutrina, a eficácia do Espírito <strong>de</strong>svanecia<br />
e nada era <strong>de</strong>ixado senão a letra morta. A majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, que<br />
resplan<strong>de</strong>ce no evangelho, era apagada, e no lugar só era visível a púrpura<br />
e a pompa infrutífera.<br />
Conseqüentemente, com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>snudar tais corrupções do evangelho,<br />
Paulo faz aqui uma transição para o método <strong>de</strong> sua pregação. Ele<br />
assevera que sua forma <strong>de</strong> pregar é correta e legítima, ainda que seja, ao<br />
mesmo tempo, diametralmente aposta à ostentação daqueles indivíduos<br />
interesseiros. 39 É como se ele dissesse: “Eu sei como muitos daqueles<br />
37 “Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou <strong>de</strong>clamador.”<br />
38 “Ces vaillans docteurs.” – “Aqueles mestres valentes.”<br />
39 Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou <strong>de</strong>clamador.”
62 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
mestres ‘boa-vida’ gostam <strong>de</strong> vos lisonjear com sua linguagem pomposa.<br />
Quanto a mim, confesso que minha pregação é feita num estilo <strong>de</strong>stituído<br />
<strong>de</strong> polimento, <strong>de</strong>selegante e sem qualquer erudição, mas também me glorio<br />
<strong>de</strong>la. Pois era preciso ser assim, esse foi o método prescrito por Deus.”<br />
Por sabedoria <strong>de</strong> palavras ele não quer dizer prestidigitação<br />
verbal (λογοδαιδαλία), 40 o que não passa <strong>de</strong> mera fala vazia, mas<br />
verda<strong>de</strong>ira eloqüência, que consiste em habilidosa escolha <strong>de</strong> assuntos,<br />
em arranjo pomposo e excelência <strong>de</strong> estilo. Ele <strong>de</strong>clara que não<br />
possuía nada disso; na verda<strong>de</strong>, em sua pregação não havia nada <strong>de</strong><br />
conveniente nem vantajoso.<br />
Para que a cruz <strong>de</strong> Cristo não fique sem efeito. Como Paulo<br />
costumava pôr com freqüência o nome <strong>de</strong> Cristo em contraste com a<br />
orgulhosa sabedoria carnal, assim ele agora planta a cruz <strong>de</strong> Cristo bem<br />
no centro, a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>stronar toda a arrogância e superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa<br />
sabedoria. Pois toda a sabedoria dos crentes está concentrada na<br />
luz <strong>de</strong> Cristo. E existe algo mais <strong>de</strong>sprezível que uma cruz? Portanto,<br />
aquele que é verda<strong>de</strong>iramente sábio nas coisas <strong>de</strong> Deus precisa necessariamente<br />
inclinar-se para a ignomínia da cruz. Isso só se fará, antes<br />
<strong>de</strong> tudo, renunciando seu próprio entendimento das coisas, bem como<br />
toda a sabedoria do mundo. Aliás, Paulo está ensinando aqui não só que<br />
espécie <strong>de</strong> homens <strong>de</strong>vem ser os discípulos <strong>de</strong> Cristo, e qual a vereda do<br />
aprendizado <strong>de</strong>vem trilhar, mas também qual o método <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong>ve<br />
ser usado na escola <strong>de</strong> Cristo. “A cruz <strong>de</strong> Cristo se tornaria sem efeito”,<br />
diz ele, “se minha pregação fosse adornada com eloqüência e brilhantismo.”<br />
Ele usou aqui a cruz <strong>de</strong> Cristo para o benefício da re<strong>de</strong>nção, a qual<br />
<strong>de</strong>ve ser buscada no Cristo crucificado. Ora, a doutrina do evangelho,<br />
que nos chama para o <strong>de</strong>sfruto <strong>de</strong>sse benefício, <strong>de</strong>ve lembrar a natureza<br />
da cruz, <strong>de</strong> modo que, em vez <strong>de</strong> ser gloriosa, seja, ao contrário,<br />
<strong>de</strong>sprezível e indigna aos olhos do mundo. O significado, pois, consiste<br />
em que, se Paulo tivesse lançado mão <strong>de</strong> sutileza e <strong>de</strong> linguagem pom-<br />
40 O termo λογοδαιδαλία propriamente <strong>de</strong>nota linguagem engenhosamente inventada. É<br />
composto <strong>de</strong> λογος (fala) e Δαιδαλος (Dædalus), um artista engenhoso <strong>de</strong> Atenas, celebrado<br />
por sua habilida<strong>de</strong> em estatuário e arquitetura. Daí tudo quanto era habilidosamente<br />
inventado passou a chamar <strong>de</strong>daliano.
Capítulo 1 • 63<br />
posa <strong>de</strong> um filósofo, em seu trato com os coríntios, o po<strong>de</strong>r da cruz <strong>de</strong><br />
Cristo, na qual <strong>de</strong>scansa a salvação dos homens, teria sido sepultado,<br />
porque ele [o po<strong>de</strong>r da cruz] não po<strong>de</strong> nos atingir <strong>de</strong>sta maneira.<br />
Aqui se propõem duas perguntas: Primeiramente, se Paulo aqui<br />
con<strong>de</strong>na, em todos os aspectos, a sabedoria <strong>de</strong> palavras, como algo<br />
que se opõe a Cristo; e, segundo, se ele tem em mente o fato <strong>de</strong> que<br />
a eloqüência e a doutrina do evangelho são invariavelmente opostas,<br />
então ambas não po<strong>de</strong>m conviver em harmonia, e que a pregação do<br />
evangelho é contaminada, caso o mais leve matiz <strong>de</strong> eloqüência 41 for<br />
usado para adorná-la.<br />
À primeira questão respondo que é totalmente irracional presumir<br />
que Paulo con<strong>de</strong>nasse peremptoriamente aquelas artes que,<br />
evi<strong>de</strong>ntemente, são esplêndidos dons <strong>de</strong> Deus, dons esses que servem<br />
como instrumentos, por assim dizer, a auxiliarem os homens na concretização<br />
<strong>de</strong> seus importantes propósitos. Portanto, visto que nessas<br />
artes nada existe <strong>de</strong> superstição, mas que são <strong>de</strong>tentoras <strong>de</strong> sólida<br />
erudição, 42 e se acham fundamentadas em princípios justos; e visto<br />
que são úteis e a<strong>de</strong>quados às transações comuns da vida humana, assim<br />
não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que sua origem se radica no Espírito<br />
Santo. Além disso, a utilida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>riva e se experimenta <strong>de</strong>las<br />
<strong>de</strong>ve ser atribuída exclusivamente a Deus. Portanto, o que Paulo diz<br />
aqui não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como um <strong>de</strong>sdouro <strong>de</strong>ssas artes, como<br />
se fossem <strong>de</strong>sfavorável à pieda<strong>de</strong> [cristã].<br />
A segunda questão é um pouco mais difícil, pois ele diz que a cruz<br />
<strong>de</strong> Cristo será sem efeito se houver nela qualquer mescla da sabedoria<br />
<strong>de</strong> palavras. Minha resposta é que nossa atenção <strong>de</strong>ve estar focalizada<br />
naqueles a quem Paulo se dirige. Pois os ouvidos dos coríntios sofriam<br />
comichões, com tola avi<strong>de</strong>z, ao som <strong>de</strong> discursos rebuscados. 43 Por-<br />
41 “Eloquence et rhetorique.” – “Eloqüência e retórica.”<br />
42 “Vne bonne erudition, et sçauoir soli<strong>de</strong>.” – “Bom aprendizado e sólida sabedoria.”<br />
43 “Les Corinthiens auoyent les oreilles chatouilleuses, et estoyent transportez d’vn fol<br />
appetit d’auoir <strong>de</strong>s gens qui eussent vn beau parler.” – “Os coríntios tinham coceira nos<br />
ouvidos [2Tm 4.3], e se <strong>de</strong>ixavam levar por tola ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver pessoas que tinham<br />
bom gosto em vestir-se.”
64 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
tanto, careciam <strong>de</strong> ser chamados <strong>de</strong> volta à ignomínia da cruz mais do<br />
que outras pessoas, para que apren<strong>de</strong>ssem a abraçar a Cristo como<br />
ele é, sem qualquer adorno, e ao evangelho em sua simplicida<strong>de</strong>, livre<br />
<strong>de</strong> todo e qualquer adorno falso. Ao mesmo tempo reconheço que, em<br />
alguma medida, este conceito tem uma valida<strong>de</strong> permanente, a saber,<br />
que a cruz <strong>de</strong> Cristo per<strong>de</strong> seu efeito não meramente em virtu<strong>de</strong> da<br />
sabedoria do mundo, mas também da elegância lingüística. Pois a proclamação<br />
<strong>de</strong> Cristo crucificado é simples e sem adorno; e por isso não<br />
<strong>de</strong>ve ser obscurecida por falsos ornamentos <strong>de</strong> linguagem. A prerrogativa<br />
do evangelho é humilhar a sabedoria do mundo <strong>de</strong> tal maneira<br />
que, <strong>de</strong>spojados <strong>de</strong> nosso próprio entendimento, nos tornemos plenamente<br />
dóceis, e não pretendamos saber, ou mesmo <strong>de</strong>sejar conhecer<br />
algo que não seja aquilo que o próprio Senhor ensina. No que respeita<br />
à sabedoria humana, teremos ocasião <strong>de</strong> avaliar mais <strong>de</strong>tidamente,<br />
mais adiante, em que aspectos ela é oposta a Cristo. Quanto à eloqüência,<br />
chamarei a atenção para ela <strong>de</strong> forma abreviada, até on<strong>de</strong> a<br />
passagem o permite.<br />
Percebemos que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início Deus or<strong>de</strong>nou questões como<br />
esta: que o evangelho fosse administrado com simplicida<strong>de</strong>, sem qualquer<br />
auxílio da eloqüência. Não po<strong>de</strong>ria aquele que mo<strong>de</strong>lou a língua<br />
dos homens para que fosse eloqüente, ser ele mesmo eloqüente caso<br />
assim o quisesse? Embora ele pu<strong>de</strong>sse agir assim, contudo não quis<br />
que assim fosse. Por que ele não quis agir <strong>de</strong>ssa forma, <strong>de</strong>scubro duas<br />
razões mais específicas. A primeira é esta: para que a majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sua verda<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse resplan<strong>de</strong>cer com a máxima niti<strong>de</strong>z, e a simples<br />
eficácia <strong>de</strong> seu Espírito, sem auxílios externos, pu<strong>de</strong>sse penetrar as<br />
mentes humanas. A segunda razão é esta: para que ele pu<strong>de</strong>sse treinar<br />
mais eficazmente nossa obediência e docilida<strong>de</strong>, e ao mesmo tempo<br />
nos instruir no caminho da genuína humilda<strong>de</strong>. Pois o Senhor a ninguém<br />
mais admite em sua escola senão os pequeninos. 44 Portanto, as<br />
únicas pessoas capacitadas com sabedoria celestial são aquelas que<br />
44 “Les humbles.” – “Os humil<strong>de</strong>s.”
Capítulo 1 • 65<br />
vivem contentes com a pregação da cruz, por mais indignas possam<br />
aparentar, e que não nutrem nenhum <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver Cristo por trás<br />
<strong>de</strong> uma máscara [larratum]. Por isso a doutrina do evangelho tem <strong>de</strong><br />
ser ministrada para servir ao propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>spir os crentes <strong>de</strong> toda<br />
arrogância e orgulho.<br />
O que fazer, porém, se alguém em nossos dias, discursando com<br />
algum grau <strong>de</strong> elegância, adornar a doutrina do evangelho com faiscante<br />
eloqüência? Ele mereceria, por essa conta, ser rejeitado como<br />
se estivesse poluindo ou obscurecendo a glória <strong>de</strong> Cristo? Minha resposta,<br />
antes <strong>de</strong> tudo, é que a eloqüência não se acha <strong>de</strong> forma alguma<br />
em conflito com a simplicida<strong>de</strong> do evangelho quando, isento <strong>de</strong> menosprezo<br />
pelo evangelho, não só lhe dá o lugar <strong>de</strong> honra e se põe em<br />
sujeição a ele, mas também lhe presta um serviço como uma empregada<br />
faz a sua patroa. Pois, como diz Agostinho, “Aquele que <strong>de</strong>u Pedro,<br />
o pescador, também <strong>de</strong>u Cipriano, o orador”. Ele quis dizer com isso<br />
que ambos os homens provêm <strong>de</strong> Deus, ainda que um <strong>de</strong>les, sendo<br />
muito superior ao outro em dignida<strong>de</strong>, seja totalmente <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> atavismo<br />
verbal; enquanto que o outro, se assenta aos pés do primeiro, se<br />
distingue pela fama <strong>de</strong> sua eloqüência. Não <strong>de</strong>vemos con<strong>de</strong>nar nem rejeitar<br />
o gênero <strong>de</strong> eloqüência que não almeja cativar cristãos com um<br />
requinte exterior <strong>de</strong> palavras, nem intoxicar os ouvintes com <strong>de</strong>leites<br />
fúteis, 45 nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia,<br />
nem envolver a cruz <strong>de</strong> Cristo com sua fútil exibição, à semelhança <strong>de</strong><br />
um véu. Senão que, ao contrário, seu alvo é trazer-nos <strong>de</strong> volta à original<br />
simplicida<strong>de</strong> do evangelho e pôr em relevo a pregação da cruz e<br />
nada mais, humilhando-se voluntariamente, e finalmente cumprindo,<br />
por assim dizer, seus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> arauto, 46 para obter a atenção daquelas<br />
pessoas simples, comuns e sem cultura, que não <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong><br />
nenhum atrativo senão do po<strong>de</strong>r do Espírito.<br />
45 “Ni à offusquer <strong>de</strong> sa pompe la croix <strong>de</strong> Christ, comme qui mettroit vne nuée au <strong>de</strong>uant.”<br />
– “Nem turvar a cruz <strong>de</strong> Cristo com sua fútil exibição, como se fosse atrair uma nuvem<br />
sobre ela.”<br />
46 “Brief, à seruir comme <strong>de</strong> trompette.” – “Em suma, para servir <strong>de</strong> trombeta.”
66 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Em segundo lugar, respondo que o Espírito <strong>de</strong> Deus também<br />
possui uma eloqüência peculiarmente sua. Ela brilha com aquele esplendor<br />
que lhe é natural, fazendo uso <strong>de</strong> uma palavra mais excelente,<br />
intrínseca (como dizem), superior aos pretensos ornamentos retóricos.<br />
Os profetas possuíam esta eloqüência, particularmente Isaías,<br />
Davi e Salomão. Moisés também possuía uma pitada <strong>de</strong>la. Ainda mais:<br />
mesmo nos escritos dos apóstolos, ainda que não tão polidos, não<br />
obstante há tênues centelhas <strong>de</strong>la se exibindo ocasionalmente ali. Daí,<br />
a eloqüência que está em conformida<strong>de</strong> com o Espírito <strong>de</strong> Deus é <strong>de</strong><br />
tal forma natural que nem é bombástica nem ostentosa, nem ainda<br />
produz um forte volume <strong>de</strong> ruídos que equivalem a nada. Antes é sólida<br />
e eficaz, e possui mais substância do que elegância.<br />
18. Porque a palavra da Cruz. Nesta primeira sentença, ele faz uma<br />
concessão. Porque, visto ser fácil objetar que o evangelho comumente<br />
é consi<strong>de</strong>rado com <strong>de</strong>sdém, se ele vem a ser conhecido numa forma<br />
<strong>de</strong>spida e insignificante, Paulo espontaneamente o admite. Mas quando<br />
ele acrescenta que esse é o ponto <strong>de</strong> vista daqueles que estão a perecer,<br />
significa que pouquíssimo valor se <strong>de</strong>ve pôr em sua opinião. Pois quem<br />
iria querer con<strong>de</strong>nar o evangelho às custas <strong>de</strong> sua perdição? Portanto,<br />
esta expressão <strong>de</strong>ve ser entendida nestes termos: “A pregação da cruz é<br />
consi<strong>de</strong>rada loucura por aqueles que estão a perecer, justamente porque<br />
ela não possui qualquer atavio <strong>de</strong> sabedoria humana que o recomen<strong>de</strong>.<br />
Seja como for, em nossa opinião, não obstante, a sabedoria <strong>de</strong> Deus está<br />
vividamente irradiando-se <strong>de</strong>la.” Paulo, contudo, indiretamente está<br />
censurando o juízo pervertido dos coríntios, os quais se <strong>de</strong>ixavam facilmente<br />
fascinar-se por palavras sedutoras <strong>de</strong> mestres megalomaníacos,<br />
e ainda olhavam com <strong>de</strong>sdém para o apóstolo que era dotado com o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para a salvação <strong>de</strong>les, e procediam assim simplesmente<br />
porque ele se <strong>de</strong>votava à proclamação <strong>de</strong> Cristo. Em meu comentário<br />
aos Romanos [1.16] expliquei <strong>de</strong> que maneira a proclamação da cruz é<br />
o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para a salvação.<br />
19. Pois está escrito. Ao usar o testemunho <strong>de</strong> Isaías, Paulo prova<br />
ainda mais quão errônea é a idéia <strong>de</strong> que a veracida<strong>de</strong> do evangelho
Capítulo 1 • 67<br />
seria tomada com preconceito com base no fato <strong>de</strong> que os sábios <strong>de</strong>ste<br />
mundo o vêem com <strong>de</strong>scaso, para não dizer com zombaria. Pois é evi<strong>de</strong>nte,<br />
à luz das palavras dos profetas, que a opinião <strong>de</strong>les é reputada<br />
como nada sendo aos olhos <strong>de</strong> Deus. As palavras acima são tomadas<br />
<strong>de</strong> Isaías 29.14, on<strong>de</strong> o Senhor ameaça que se vingará da hipocrisia do<br />
povo com esse gênero peculiar <strong>de</strong> castigo, ou, seja: que “a sabedoria<br />
dos sábios perecerá” etc. Ora, isso se aplica à situação com que Paulo<br />
está lidando, da seguinte forma: “Não é novo nem fora do comum que<br />
homens, que parecem em outros aspectos ser eminentes pela sabedoria,<br />
formem juízos totalmente absurdos. Pois o Senhor tem por hábito<br />
<strong>de</strong> punir <strong>de</strong>sta maneira a arrogância daqueles que confiam em sua própria<br />
habilida<strong>de</strong> natural e preten<strong>de</strong>m ser seus próprios guias e os <strong>de</strong><br />
outras pessoas. Foi assim que ele, certa vez, <strong>de</strong>struiu a sabedoria dos<br />
lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Israel. Se tal suce<strong>de</strong>u àquele povo, cuja sabedoria as <strong>de</strong>mais<br />
nações tiveram ocasião <strong>de</strong> admirar, o que virão a ser as <strong>de</strong>mais?<br />
Entretanto, <strong>de</strong>vemos comparar as palavras do profeta com as <strong>de</strong><br />
Paulo, e examinar toda a questão ainda mais estreitamente. Deveras<br />
o profeta usa verbos neutros quando diz que “a sabedoria perecerá e<br />
a prudência se <strong>de</strong>svanecerá”, quando Paulo os transpõe para a forma<br />
ativa, fazendo Deus o sujeito, contudo concordam perfeitamente em<br />
significado. Pois Deus <strong>de</strong>monstra que ele executará esta gran<strong>de</strong> maravilha,<br />
para que todos sejam postos em espanto. Assim, “a sabedoria<br />
perece”, mas é através do ato <strong>de</strong>struidor do Senhor; “a sabedoria se<br />
<strong>de</strong>svanece”, mas é pelo ato do Senhor em cobri-la e extingui-la. Ora, o<br />
segundo verbo, αθετει̑ν, o qual Erasmo traduz por reiicere [rejeitar], é<br />
ambíguo e às vezes é tomado no sentido <strong>de</strong> extinguir (<strong>de</strong>lere), ou riscar<br />
(expungere), ou obliterar [obliterare]. Este é o sentido em que prefiro<br />
tomá-lo, para fazê-lo correspon<strong>de</strong>r à palavra do profeta: <strong>de</strong>svanecer ou<br />
estar oculto [<strong>de</strong>saparecer]. Ao mesmo tempo, há outra razão que teve<br />
uma influência mais forte em mim, 47 a saber, a idéia <strong>de</strong> rejeição não se<br />
47 “Combien que j’aye vne raixon encore plus valable, qui m’a induit à changer ceste translation.”<br />
– “Ao mesmo tempo, tenho uma razão ainda mais forte que me tem induzido a<br />
alterar esta tradução.”
68 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
harmonizava com o tema, como logo se fará evi<strong>de</strong>nte. Consi<strong>de</strong>remos,<br />
pois, o significado. O profeta quer provar mui claramente que eles [os<br />
ju<strong>de</strong>us] não mais teriam governadores com qualificações legítimas<br />
para governar bem, porque o Senhor os privará <strong>de</strong> perfeito juízo e <strong>de</strong><br />
inteligência. Pois assim como em outras passagens [Is 6.10] ele ameaça<br />
a todas as pessoas com cegueira, também aqui com relação aos<br />
lí<strong>de</strong>res; é precisamente como se ele fosse arrancar os olhos físicos.<br />
Seja como for, uma gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> surge da circunstância <strong>de</strong><br />
que os termos sabedoria e prudência são consi<strong>de</strong>rados por Isaías em<br />
bom sentido, enquanto Paulo os cita com um propósito completamente<br />
diferente, como se a sabedoria dos homens fosse con<strong>de</strong>nada<br />
por Deus como sendo perversa, e sua prudência rejeitada como sendo<br />
mera vaida<strong>de</strong>. Concordo que ela é explicada <strong>de</strong>ssa forma, visto,<br />
porém, ser indubitável que os oráculos do Espírito Santo não são<br />
pervertidos pelos apóstolos para assumirem outros significados estranhos<br />
a seu real <strong>de</strong>sígnio, prefiro afastar-me da opinião comum dos<br />
intérpretes, do que acusar Paulo <strong>de</strong> distorcer a verda<strong>de</strong>. E também<br />
em outros aspectos o significado natural das palavras do profeta não<br />
se a<strong>de</strong>qua mal com a intenção <strong>de</strong> Paulo. Pois se mesmo os sábios<br />
se tornam insensatos quando o Senhor retira um espírito justo, que<br />
confiança <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>positada na sabedoria humana? Além disso,<br />
visto que a maneira usual <strong>de</strong> Deus vingar-se é golpeando com cegueira<br />
aos que se acham presos a seu próprio entendimento e são<br />
excessivamente sábios a seus próprios olhos, e não surpreen<strong>de</strong> que<br />
homens carnais se levantem contra Deus na tentativa <strong>de</strong> fazer sua<br />
eterna verda<strong>de</strong> ser substituída por suas temerida<strong>de</strong>s, tornam-se insensatos<br />
e vêm a ser fúteis em suas imaginações. Agora percebemos<br />
com que pertinência Paulo faz uso <strong>de</strong>ste testemunho. Isaías <strong>de</strong>clara<br />
que a vingança <strong>de</strong> Deus que recai sobre todos quantos serviram a<br />
Deus com suas próprias invenções seria que “a sabedoria <strong>de</strong>sapareceria<br />
<strong>de</strong> seus sábios”. Paulo faz uso <strong>de</strong>ste testemunho <strong>de</strong> Isaías com<br />
vistas a provar que a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo é inútil e sem valor<br />
quando se exalta contra Deus.
Capítulo 1 • 69<br />
20. On<strong>de</strong> está o sábio? On<strong>de</strong> está o escriba? Esta nota <strong>de</strong> sarcasmo<br />
é adicionada com o propósito <strong>de</strong> ilustrar o testemunho do<br />
profeta. Paulo por certo não tomou esta expressão <strong>de</strong> Isaías, como<br />
comumente se imagina, mas é uma expressão <strong>de</strong> seu próprio pensamento.<br />
Pois a passagem <strong>de</strong> Isaías [33.18], a que as pessoas se<br />
referem, não tem absolutamente nenhuma similitu<strong>de</strong> ou relação<br />
com a presente abordagem. Porque, visto que Isaías está ali prometendo<br />
aos ju<strong>de</strong>us o livramento do juízo <strong>de</strong> Senaqueribe a fim <strong>de</strong><br />
mostrar-lhes muito mais claramente quão gran<strong>de</strong> é essa bênção<br />
divina, ele então prossegue lembrando-lhes a condição ignóbil daqueles<br />
que são oprimidos pela tirania <strong>de</strong> estrangeiros. Diz que eles<br />
viviam num constante estado <strong>de</strong> agitada incerteza, quando pensam<br />
em si mesmos como sendo ameaçados por escribas e tesoureiros,<br />
pelos que pesavam os tributo e por contadores <strong>de</strong> torres. Mais que<br />
isso, ele diz que os ju<strong>de</strong>us tinham vivido em situações tão críticas,<br />
que eram movidos à gratidão pela simples lembrança <strong>de</strong>las. Portanto,<br />
é um equívoco imaginar que esta expressão foi tomada do<br />
profeta. 48 O termo mundo não <strong>de</strong>ve ser tomado em conexão meramente<br />
com o último termo, mas também com os outros dois. Ora,<br />
pela expressão, sábios <strong>de</strong>ste mundo, ele quer dizer os que não <strong>de</strong>rivam<br />
sua sabedoria da iluminação do Espírito por meio da Palavra<br />
<strong>de</strong> Deus, mas, revestida com mera e profana sagacida<strong>de</strong>, repousa na<br />
segurança que ela propicia.<br />
Geralmente se concorda que o termo escribas significa mestres.<br />
Porque, visto que rps, saphar, entre os hebreus, significa narrar ou contar,<br />
e o substantivo <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong>la, rps, sepher, significa livro ou volume,<br />
empregam o termo myrp]ws, sopherim, para <strong>de</strong>notar os homens eruditos<br />
e os que são amigos dos livros. Por essa razão também sopher regis às<br />
vezes é usado para <strong>de</strong>notar um chanceler ou secretário. Então os gre-<br />
48 “As palavras <strong>de</strong> Paulo em 1 Coríntios 1.20 não constituem, como alguns imaginavam, uma<br />
citação das palavras <strong>de</strong>ste versículo” [Is 33.18]. “Os únicos pontos <strong>de</strong> concordância entre<br />
elas são meramente a ocorrência <strong>de</strong> γραμματεὺς, e a repetição da interrogativa που̑. Não é<br />
impossível, contudo, que a estrutura <strong>de</strong> uma passagem esteja sugerida na outra.” – Hen<strong>de</strong>rson<br />
sobre Isaías.
70 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
gos, seguindo a etimologia da palavra hebraica, traduziam γραμματεις<br />
para escribas. 49<br />
Paulo, apropriadamente, chama investigadores 50 aos que revelam<br />
perspicácia em lidar com problemas difíceis e questões intrincadas.<br />
Portanto, falando em termos gerais, ele <strong>de</strong>stroça todas as habilida<strong>de</strong>s<br />
naturais dos homens, ao ponto <strong>de</strong> não valerem nada no reino <strong>de</strong> Deus.<br />
E não é sem boas razões que ele fala tão veementemente contra a sabedoria<br />
humana. Pois nenhuma palavra po<strong>de</strong> <strong>de</strong>screver quão difícil é<br />
eliminar das mentes humanas sua mal direcionada confiança na carne,<br />
para que não arroguem para si mais do que lhes é <strong>de</strong>vido. Entretanto,<br />
seria ir além dos limites se, confiando, mesmo em mínimo grau, em sua<br />
própria sabedoria, se aventurarem a formar opiniões a seu próprio<br />
respeito.<br />
Não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Por sabedoria,<br />
Paulo quer dizer, aqui, tudo quanto o homem po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, não<br />
só por sua própria habilida<strong>de</strong> mental e natural, mas também pelo auxílio<br />
da experiência, escolarida<strong>de</strong> e conhecimento das artes. Porquanto,<br />
ele contrasta a sabedoria do mundo com a sabedoria do Espírito. Segue-<br />
-se que qualquer conhecimento que uma pessoa venha a possuir, sem<br />
a iluminação do Espírito Santo, está incluído na sabedoria <strong>de</strong>ste mundo.<br />
Ele afirma que Deus tornou ridículo tudo isso, ou con<strong>de</strong>nou como<br />
loucura. Deve-se enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> duas maneiras como isso é feito. Pois<br />
qualquer conhecimento e entendimento que uma pessoa porventura<br />
possua não tem o menor valor se não repousar na verda<strong>de</strong>ira sabedoria;<br />
e não é <strong>de</strong> mais valor para apreen<strong>de</strong>r o ensino do que os olhos <strong>de</strong><br />
um cego para distinguir as cores. Deve-se prestar cuidadosa atenção<br />
49 A frase hebraica mencionada ocorre em 2 Reis 12.10, ilmh rps, o escriba do rei. É traduzida<br />
pela Septuaginta ὁ γραμματεύς του̑ βασιλέως. O termo grego correspon<strong>de</strong>nte, γραμματεύς,<br />
é empregado pelos escritores clássicos para <strong>de</strong>notar um clérigo ou secretário (Demosth.<br />
269.19). Os notários (γραμματεις) “tinham a custódia da lei e dos registros públicos que<br />
tinham por <strong>de</strong>ver escrever e repetir para o povo e senado quando assim requerido.” –<br />
Potter’s Grecian Antiquities, Vol. I, p. 103.<br />
50 Calvino aqui evi<strong>de</strong>ntemente tem diante dos olhos o significado original <strong>de</strong> συζητητης, que<br />
se <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> συν e ζητεω (inquirir juntos) e chegou naturalmente a significar alguém que<br />
se entrega a argumentos ou disputas. O termo era aplicado aos sofistas sutis, ou os que<br />
disputavam nas aca<strong>de</strong>mias gregas.
Capítulo 1 • 71<br />
a ambas as questões, ou, seja: Primeiramente, que o conhecimento<br />
<strong>de</strong> todas as ciências não passa <strong>de</strong> fumaça à parte da ciência celestial<br />
<strong>de</strong> Cristo; e, segundo, que o homem com toda sua astúcia é <strong>de</strong>mais<br />
estúpido para enten<strong>de</strong>r, por si só, os mistérios <strong>de</strong> Deus. Precisamente<br />
como um asno é incapaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a harmonia musical. Paulo<br />
mostra a disposição para o orgulho <strong>de</strong>vorador existente naqueles que<br />
se vangloriam na sabedoria <strong>de</strong>ste mundo, ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezarem a<br />
Cristo e a toda a doutrina da salvação, imaginando que serão felizes<br />
meramente por a<strong>de</strong>rirem às coisas <strong>de</strong>ste mundo. Também golpeia a<br />
arrogância daqueles que, confiando em sua própria capacida<strong>de</strong>, tentam<br />
escalar o próprio céu.<br />
Há também uma solução fornecida, ao mesmo tempo, para a pergunta:<br />
Como é possível que Paulo lance por terra, <strong>de</strong>sta forma, todo<br />
gênero <strong>de</strong> conhecimento que existe fora <strong>de</strong> Cristo, e calcar aos pés,<br />
por assim dizer, o que bem se sabe ser o principal dom <strong>de</strong> Deus neste<br />
mundo? Pois o que há <strong>de</strong> mais nobre do que a razão humana, por<br />
meio da qual excelemos aos <strong>de</strong>mais animais? Quão sumamente merecedoras<br />
<strong>de</strong> honra são as ciências liberais, as quais refinam o homem<br />
<strong>de</strong> tal forma que o fazem verda<strong>de</strong>iramente humano! Além disso, que<br />
extraordinários e seletos frutos eles produzem! Quem não atribuiria<br />
o mais sublime louvor a fim <strong>de</strong> exaltar a prudência 51 estadista (sem<br />
falar em outras coisas), por meio da qual estados, impérios e reinos<br />
são mantidos?<br />
Creio que uma solução para esta pergunta é a seguinte: é evi<strong>de</strong>nte<br />
que Paulo não con<strong>de</strong>na peremptoriamente, seja o discernimento dos<br />
homens, seja a sabedoria granjeada pela prática e a experiência, seja<br />
o aprimoramento da mente através da cultura; mas o que ele diz é que<br />
todas essas coisas são inúteis para a obtenção da sabedoria espiritual.<br />
E certamente é loucura para todos quantos presumem que po<strong>de</strong>m escalar<br />
o céu, confiando em sua própria perspicácia ou com o auxílio da<br />
cultura; em outros termos, é loucura preten<strong>de</strong>r investigar os mistérios<br />
51 “La pru<strong>de</strong>nce civile, c’est à dire la science <strong>de</strong>s lois.” – “Prudência civil, isto é, a ciência das<br />
leis.”
72 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
secretos do reino <strong>de</strong> Deus 52 [ x 19.21], ou forçar caminho para o conhecimento<br />
<strong>de</strong>les, pois eles se acham ocultos à percepção humana. Portanto,<br />
tomemos nota do fato <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos limitar-nos às circunstâncias do<br />
presente caso, ou, seja, que Paulo aqui ensina acerca da futilida<strong>de</strong> da sabedoria<br />
<strong>de</strong>ste mundo, a saber: que ela permanece no nível <strong>de</strong>ste mundo,<br />
e que <strong>de</strong> forma alguma alcança o céu. É também verda<strong>de</strong>, em outro sentido,<br />
que fora <strong>de</strong> Cristo cada ramo do conhecimento humano é fútil, e o<br />
homem que se acha bem estabelecido em cada aspecto da cultura, mas<br />
que prossegue igualmente ignorante <strong>de</strong> Deus, não possui nada. Além do<br />
mais, <strong>de</strong>ve-se também dizer, com todas as letras, que estes excelentes<br />
dons divinos – perspicácia mental, agu<strong>de</strong>za da razão, ciências liberais,<br />
conhecimento idiomático – tudo isso, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, se corrompe,<br />
sempre que cai nas mãos dos ímpios.<br />
21. Visto que, na sabedoria <strong>de</strong> Deus,<br />
o mundo não o conheceu por sua<br />
sabedoria, foi do agrado <strong>de</strong> Deus<br />
salvar os que crêem pela loucura da<br />
pregação.<br />
22. Visto que os ju<strong>de</strong>us pe<strong>de</strong>m sinais, e<br />
os gregos buscam sabedoria,<br />
23. para os que são chamados, porém,<br />
tanto ju<strong>de</strong>us como grego,<br />
24. [pregamos] Cristo, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
Deus, e a sabedoria <strong>de</strong> Deus.<br />
25. Porque a loucura <strong>de</strong> Deus é mais sábia<br />
que os homens; e a fraqueza <strong>de</strong><br />
Deus é mais forte que os homens.<br />
21. Quoniam enim in sapientia Dei non<br />
cognovit mundus per sapientiam<br />
Deum, placuit Deo per stultitiam<br />
prædicationis salvos facere cre<strong>de</strong>ntes.<br />
22. Siqui<strong>de</strong>m et Judaæ signum petunt<br />
et Græci sapientiam quærunt.<br />
23. Nos autem prædicamus Christtum<br />
crucifixum, Judæis qui<strong>de</strong>m scandalum,<br />
Græcis autem stultitiam:<br />
24. Ipsis autem vocatis, tam Judæis,<br />
quam Græcis, Christum Dei potentiam,<br />
et Dei sapientiam.<br />
25. Nam stultitia Dei sapientior est hominibus,<br />
et infirmitas Dei robustior<br />
est hominibus.<br />
21. Visto que o mundo não conheceu. A or<strong>de</strong>m correta das coisas<br />
era precisamente esta: que o homem, contemplando a sabedoria<br />
<strong>de</strong> Deus em suas obras, pelo auxílio da luz do entendimento que lhe<br />
52 Veja-se Institutas, vol. i, pp. 323, 324.
Capítulo 1 • 73<br />
fora fornecida pela natureza (ingenita sibis injenii luce), pu<strong>de</strong>sse chegar<br />
a uma familiarida<strong>de</strong> com ele. Mas em razão <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m ter-se<br />
invertido pela perversida<strong>de</strong> do homem, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, antes <strong>de</strong><br />
tudo, é tornar-nos loucos a nossos próprios olhos, antes <strong>de</strong> começar<br />
a instruir-nos no conhecimento da salvação [2Tm 3.15]. Daí em diante,<br />
como evidência <strong>de</strong> sua sabedoria, ele põe diante <strong>de</strong> nossos olhos<br />
aquilo que tem certa aparência <strong>de</strong> loucura. A ingratidão dos homens<br />
mereceu esta inversão das coisas. Paulo <strong>de</strong>screve como sabedoria <strong>de</strong><br />
Deus as belezas do mundo todo, as quais são esplêndida evidência <strong>de</strong><br />
sua sabedoria, pois elas se nos afiguram <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>masiadamente<br />
clara. Portanto, nas coisas que ele criou, Deus mantém diante <strong>de</strong> nós<br />
nítido espelho <strong>de</strong> sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer<br />
indivíduo que <strong>de</strong>sfrute <strong>de</strong> pelo menos uma leve fagulha <strong>de</strong> bom senso,<br />
e atenta para o mundo e para outras obras divinas, se vê dominado<br />
por ar<strong>de</strong>nte admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno<br />
conhecimento <strong>de</strong> Deus pela observação <strong>de</strong> suas obras, certamente<br />
viriam a conhecer Deus <strong>de</strong> uma forma sábia, ou daquela forma <strong>de</strong> adquirir<br />
sabedoria que lhes é natural e a<strong>de</strong>quada. Mas porque o mundo<br />
todo não apren<strong>de</strong>u absolutamente nada do que Deus revelou <strong>de</strong> sua<br />
sabedoria nas coisas criadas, ele, pois, passou a instruir os homens<br />
<strong>de</strong> outra maneira. Deve-se atribuir a nossa própria culpa o fato <strong>de</strong> não<br />
alcançarmos um conhecimento salvífico <strong>de</strong> Deus antes <strong>de</strong> sermos esvaziados<br />
<strong>de</strong> nosso próprio entendimento.<br />
Paulo faz uma concessão ao chamar o evangelho <strong>de</strong> loucura da<br />
pregação, pois esta é precisamente a luz na qual ele é consi<strong>de</strong>rado por<br />
aqueles “sábios insensatos” (μωροσόφοις) que, intoxicados por falsa<br />
confiança, 53 não temem subjugar a inviolável verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus a sua<br />
própria e medíocre censura. E, além do mais, não há dúvida <strong>de</strong> que<br />
a razão humana não acha nada mais absurdo do que a notícia <strong>de</strong> que<br />
Deus se tornou um homem mortal; que a vida está sujeita à morte; que<br />
a justiça foi velada sob a aparência <strong>de</strong> pecado; que a fonte <strong>de</strong> bênção<br />
53 “Et outrecuidance.” – “E presunção.”
74 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
ficou sujeita à maldição; que por esses meios os homens po<strong>de</strong>m ser<br />
redimidos da morte e tornar-se participantes da bendita imortalida<strong>de</strong>;<br />
que po<strong>de</strong>m obter a vida; que, sendo o pecado <strong>de</strong>struído, a justiça volta<br />
a reinar; e que a morte e a maldição po<strong>de</strong>m ser tragadas. Não obstante,<br />
sabemos que o evangelho é, nesse ínterim, a sabedoria oculta [1Co 2.7]<br />
que exce<strong>de</strong> os céus e suas alturas, e diante do qual até mesmo os anjos<br />
ficam pasmos. Esta é uma passagem muito excelente, e <strong>de</strong>la po<strong>de</strong>mos<br />
ver nitidamente quão profunda é a obtusida<strong>de</strong> da mente humana que,<br />
em meio à luz, nada percebe. Pois é uma gran<strong>de</strong> verda<strong>de</strong> que este mundo<br />
se assemelha a um teatro no qual o Senhor exibe diante <strong>de</strong> nós um<br />
surpreen<strong>de</strong>nte espetáculo <strong>de</strong> sua glória. Entretanto, quando tais cenas<br />
se <strong>de</strong>scerram diante <strong>de</strong> nossos olhos, nos revelamos cegos como<br />
pedras, não porque a revelação seja obscura, mas porque somos “alienados<br />
no entendimento” (mente alienati, Cl 1.21), significando que<br />
não só a inclinação, mas também a habilida<strong>de</strong> nos são falhas. Porque,<br />
a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> Deus se nos revelar publicamente, todavia é só pelos<br />
olhos da fé que po<strong>de</strong>mos contemplá-lo, tendo em mente que recebemos<br />
só uma leve noção <strong>de</strong> sua natureza divina, mas o bastante para<br />
pôr-nos na posição <strong>de</strong> seres sem justificativa [Rm 1.20].<br />
Conseqüentemente, visto que Paulo aqui diz que Deus não po<strong>de</strong><br />
ser conhecido pelo prisma das coisas que ele criou, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r<br />
com isso que não se po<strong>de</strong> obter o conhecimento absoluto <strong>de</strong> Deus.<br />
Para que ninguém apresente pretexto em prol <strong>de</strong> sua ignorância, os<br />
homens fazem progresso na escola universal da natureza ao ponto<br />
<strong>de</strong> serem afetados com alguma consciência da <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>, porém não<br />
têm idéia do que seja a natureza <strong>de</strong> Deus. Ao contrário, seu pensamento<br />
se dissolve em nada [Rm 1.21]. Dessa forma a luz brilha nas<br />
trevas [Jo 1.5]. Portanto, segue-se que os homens não vivem no erro<br />
por mera ignorância, a fim <strong>de</strong> ficarem isentos da acusação <strong>de</strong> menosprezo,<br />
negligência e ingratidão. Portanto proce<strong>de</strong> que “todos têm<br />
conhecimento <strong>de</strong> Deus” [Deum novisse], porém “não lhe dão glória”<br />
[Rm 1.21]; e que, em contrapartida, ninguém, à luz da mera natureza,<br />
jamais fez tanto progresso que chegasse a conhecer a Deus [Deum
Capítulo 1 • 75<br />
cognosceret]. Alguém po<strong>de</strong>ria apresentar os filósofos como exceção a<br />
essa regra; replico, porém, que é especialmente em seu caso que há<br />
um conspícuo exemplo <strong>de</strong> nossa fraqueza. Pois não se po<strong>de</strong> encontrar<br />
sequer um que constantemente não tenha se afastado daquele princípio<br />
<strong>de</strong> conhecimento que já mencionei, vagueando 54 pelos meandros<br />
<strong>de</strong> especulações ilusórias. São na maioria das vezes mais tolos do que<br />
espertos! Quando Paulo diz que “os que crêem são salvos”, isso correspon<strong>de</strong><br />
ao versículo 18, ou, seja, que “o evangelho é o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus<br />
para a salvação” [Rm 1.16]. Além disso, ao contrastar os crentes, cujo<br />
número é diminuto, com um mundo cego e louco, Paulo está nos lembrando<br />
<strong>de</strong> que nos equivocamos quando nos sentimos perturbados<br />
ante o pequeno número dos salvos, visto que, pela ação <strong>de</strong> Deus, eles<br />
foram divinamente separados “para a salvação”.<br />
22, 23. Visto que os ju<strong>de</strong>us pe<strong>de</strong>m sinais. Isso explica as sentenças<br />
anteriores, ou, seja, Paulo está mostrando <strong>de</strong> que maneira a pregação<br />
do evangelho é consi<strong>de</strong>rada uma loucura. Ao mesmo tempo ele não só<br />
explica, mas também expan<strong>de</strong>, dizendo que os ju<strong>de</strong>us fazem mais que<br />
reputar o evangelho como sendo <strong>de</strong> pouco valor, eles, além disso, o<br />
<strong>de</strong>testam. “Os ju<strong>de</strong>us”, diz Paulo, “querem, através dos milagres, ter a<br />
evidência do po<strong>de</strong>r divino ante seus olhos. Os gregos amam aquilo que<br />
possui o encanto da sutileza e se <strong>de</strong>leitam na engenhosida<strong>de</strong> humana.<br />
Nós, na verda<strong>de</strong>, pregamos o Cristo crucificado, e, à primeira vista, não<br />
há nada <strong>de</strong> extraordinário nisso senão fraqueza e loucura. Portanto,<br />
ele não passa <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong> tropeço para os ju<strong>de</strong>us quando o vêem aparentemente<br />
esquecido por Deus. Quando os gregos ouvem qual foi o<br />
método da re<strong>de</strong>nção, acreditam ouvir uma fábula.” Em minha opinião,<br />
Paulo quer dizer pelo termo gregos não simplesmente os pagãos ou<br />
gentios, mas todos aqueles que eram educados nas ciências liberais,<br />
ou que eram <strong>de</strong> projeção em razão <strong>de</strong> sua inteligência supe rior. Ao<br />
mesmo tempo, à guisa <strong>de</strong> sinédoque, todos os outros estão igualmente<br />
incluídos aqui. Entre ju<strong>de</strong>us e gregos, contudo, ele traça uma distin-<br />
54 “Extreuagantes.” – “Extravagantes.”
76 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
ção, dizendo que os primeiros, furiosos contra Cristo movidos por um<br />
zelo irracional pela lei, trovejavam em tormenta <strong>de</strong> fúria contra o evangelho,<br />
como os hipócritas costumam fazer quando estão lutando por<br />
suas próprias crenças equivocadas [superstitionibus]. Os gregos, em<br />
contrapartida, intumescidos <strong>de</strong> orgulho, <strong>de</strong>sprezavam-no como sendo<br />
algo insípido.<br />
O fato <strong>de</strong> Paulo <strong>de</strong>scobrir culpa nos ju<strong>de</strong>us por serem eles tão ansiosos<br />
em querer sinais, não significa que, em si mesmo, seja errôneo<br />
<strong>de</strong>sejá-los. Mas ele mostra on<strong>de</strong> estavam errados, à luz dos seguintes<br />
pontos: (1) em sua repetida insistência em exigir milagres, estavam,<br />
em certo sentido, prensando Deus sob suas leis; (2) através do embotamento<br />
<strong>de</strong> seu entendimento, queriam manter contato palpável 55 com<br />
Deus por meio <strong>de</strong> milagres públicos; (3) sendo hipnotizados pelos próprios<br />
milagres, olhavam para eles com estupor; (4) em suma, nenhum<br />
milagre po<strong>de</strong>ria satisfazê-los, mas a cada dia aguardavam, ansiosos,<br />
ver um novo. Ezequias não é censurado só porque prontamente consentiu<br />
ser confirmado por meio <strong>de</strong> um sinal [2Rs 19.29; 20.8]. Inclusive<br />
Gi<strong>de</strong>ão não foi reprovado, embora solicitasse um duplo sinal [Jz 6.37,<br />
39]. No entanto, em contrapartida, Acaz é con<strong>de</strong>nado por recusar o<br />
sinal que o profeta lhe ofereceu [Is 7.12]. Em que os ju<strong>de</strong>us, pois, estavam<br />
errados quando pe<strong>de</strong>m milagres? Estava nisto: não os buscavam<br />
para um bom propósito; não punham nenhum limite a suas exigências;<br />
não faziam bom uso <strong>de</strong>les. Pois enquanto a fé <strong>de</strong>ve ser auxiliada<br />
pelos milagres, sua única preocupação era permanecer o máximo<br />
possível em sua <strong>de</strong>scrença. Embora seja ilícito prescrever leis para<br />
Deus, expandiam sua monstruosa e irrefreada libertinagem. Enquanto<br />
os milagres <strong>de</strong>vem nos conduzir a uma maior familiarida<strong>de</strong> com<br />
Cristo e com a graça espiritual <strong>de</strong> Deus, para os ju<strong>de</strong>us não passava<br />
<strong>de</strong> obstáculos. Por essa razão também Cristo os repreen<strong>de</strong>, dizendo:<br />
“Uma geração perversa busca sinais” [Mc 8.12]. Porquanto não havia<br />
55 Não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que Calvino se refere aqui a uma expressão usada por Paulo em<br />
seu discurso aos atenienses [At 17.27]: “se porventura, tateando, o pu<strong>de</strong>ssem achar.” A<br />
alusão é a um cego que anda tateando em seu caminho. A mesma palavra é empregada por<br />
Platão: “Neste aspecto, muitos me parecem estar tateando como se estivessem no escuro.”
Capítulo 1 • 77<br />
limites para sua curiosida<strong>de</strong> e suas persistentes exigências; e tão logo<br />
obtinham milagres, nenhum benefício viam neles.<br />
24. Tanto gregos como ju<strong>de</strong>us. Paulo mostra, através <strong>de</strong>sta antítese,<br />
quão pessimamente é Cristo recebido, e que isso não era <strong>de</strong>vido<br />
a alguma falha <strong>de</strong>le, nem pela natural inclinação do gênero humano,<br />
mas que sua causa consiste na <strong>de</strong>pravação daqueles que não foram<br />
iluminados por Deus. Pois nenhuma pedra <strong>de</strong> tropeço impe<strong>de</strong> os eleitos<br />
<strong>de</strong> Deus <strong>de</strong> irem a Cristo com o fim <strong>de</strong> encontrarem nele a certeza<br />
da salvação. Paulo contrasta po<strong>de</strong>r com pedra <strong>de</strong> tropeço que advém<br />
da humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo, e confronta sabedoria com loucura. A essência<br />
disso, pois, é a seguinte: “Eu sei que nenhuma coisa, a não ser<br />
sinais, po<strong>de</strong> exercer algum efeito na obstinação dos ju<strong>de</strong>us, e que na<br />
realida<strong>de</strong> só um fútil gênero <strong>de</strong> sabedoria po<strong>de</strong> aplacar o <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso<br />
menosprezo dos gregos. Não <strong>de</strong>vemos, contudo, dar <strong>de</strong>masiada importância<br />
a este fato, visto que não importa o quanto nosso Cristo<br />
ofen<strong>de</strong> os ju<strong>de</strong>us com a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua cruz e é tratado com o máximo<br />
<strong>de</strong>sprezo pelos gregos; não obstante, ele é para todos os eleitos, <strong>de</strong><br />
todas as nações, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para a salvação, para remover essas<br />
pedras <strong>de</strong> tropeço, e a sabedoria <strong>de</strong> Deus para afastar toda e qualquer<br />
dissimulação [larvam] no campo da sabedoria.” 56<br />
25. Porque a loucura <strong>de</strong> Deus. Quando Deus trata conosco, <strong>de</strong><br />
certa forma parece agir <strong>de</strong> maneira absurda só pelo fato <strong>de</strong> não exibir<br />
sua sabedoria; não obstante, o que aparenta ser absurdo exce<strong>de</strong><br />
em sabedoria a toda a engenhosida<strong>de</strong> humana. Além do mais, quando<br />
Deus oculta seu po<strong>de</strong>r e parece agir como se fosse frágil, o que<br />
se imagina ser fragilida<strong>de</strong> é, não obstante, mais forte do que todo o<br />
po<strong>de</strong>r humano. Devemos, contudo, observar sempre, ao lermos estas<br />
palavras, que existe aqui uma concessão, como já fiz notar um pouco<br />
antes. 57 Pois alguém po<strong>de</strong> notar mui claramente quão impróprio<br />
é atribuir a Deus, seja loucura, seja fraqueza; mas era indispensável,<br />
56 “Pour oster et faire esvanoir ceste vaine apparence, et masque <strong>de</strong> sagesse.” – “Para remover<br />
e fazer <strong>de</strong>saparecer aquela fútil exibição e máscara <strong>de</strong> sabedoria.”<br />
57 Veja-se página XXX.
78 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
por meio <strong>de</strong>ssas expressões irônicas, rebater a insone arrogância da<br />
carne, a qual não hesita espoliar a Deus <strong>de</strong> toda sua glória.<br />
26. Irmãos, ve<strong>de</strong> que vossa vocação<br />
não inclui muitos sábios segundo a<br />
carne, nem muitos po<strong>de</strong>rosos, nem<br />
muitos nobres são chamados.<br />
27. Deus, porém, escolheu as coisas<br />
loucas do mundo para confundir as<br />
sábias; e Deus escolheu as coisas<br />
fracas do mundo para confundir as<br />
que são po<strong>de</strong>rosas;<br />
28. e as coisas insignificantes do<br />
mundo, e as coisas que são <strong>de</strong>sprezadas,<br />
sim, Deus escolheu as coisas<br />
que não são para reduzir a nada as<br />
coisas que são;<br />
29. para que nenhuma carne se glorie<br />
em sua presença.<br />
30. Vós, porém, sois <strong>de</strong>le em Cristo<br />
Jesus, o qual foi feito para nós sabedoria,<br />
e justiça, e santificação, e<br />
re<strong>de</strong>nção.<br />
31. Para que, como está escrito, aquele<br />
que se gloria, glorie-se no Senhor.<br />
26. Vi<strong>de</strong>te (vel, vi<strong>de</strong>tis) vocationem<br />
vestram, fratres, quod non multi 58<br />
sapientes secundum carnem, non<br />
multi potentes, non multi nobiles:<br />
27. Sed stulta mundi elegit Deus, ut<br />
sapientes pu<strong>de</strong>faciat: et infirma<br />
mundi elegit Deus, ut patefaciat<br />
fortia:<br />
28. Et ignobilia mundi et contempta<br />
elegit Deus, et ea quæ non erant, ut<br />
quæ erant aboleret;<br />
29. Ne glorietur ulla caro coram Deo.<br />
30. Ex ipso vos estis 59 in Christo Jesu,<br />
qui factus est nobis sapientia a<br />
Deo, et justitia, et sanctificatio, et<br />
re<strong>de</strong>mptio. 60<br />
31. Ut (quemadmodum scriptum est)<br />
Qui gloriatur, in Domino glorietur<br />
(Jer. ix.24).<br />
26, 27. Olhai para vossa própria vocação. Em razão <strong>de</strong> haver dúvida<br />
sobre o modo do verbo grego βλέπετε, o indicativo a<strong>de</strong>quar-se ao<br />
contexto tão bem quanto o imperativo, <strong>de</strong>ixo ao leitor a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cidir segundo sua preferência. Entretanto, o significado é obviamente<br />
o mesmo em ambos os modos, pois ao usar o indicativo – “vós ve<strong>de</strong>s”–,<br />
Paulo estaria chamando-os a testemunharem, por assim dizer, algo óbvio,<br />
e estaria confrontando-os, por assim dizer, com algo imediato. Em<br />
58 “Que vous n’estes point beaucoup.” – “Que não sois muitos.”<br />
59 “Or c’est <strong>de</strong> luy que vous estes.” – “Agora é <strong>de</strong>le que sois.”<br />
60 “Re<strong>de</strong>mption, ou rançon.” – “Re<strong>de</strong>nção ou resgate.”
Capítulo 1 • 79<br />
contrapartida, porém, ao usar o imperativo, ele estaria incitando-os,<br />
como se estivessem <strong>de</strong>satentos, a consi<strong>de</strong>rarem este mesmo fato.<br />
Chamados po<strong>de</strong> ser tomado coletivamente como a companhia dos<br />
chamados, mais ou menos assim: “Ve<strong>de</strong> o tipo <strong>de</strong> pessoas, em vossa<br />
assembléia, a quem o Senhor tem chamado.” Sou, porém, mais inclinado<br />
a <strong>de</strong>duzir que a forma <strong>de</strong> sua vocação é por indicação. E este é<br />
um argumento mais forte, porque segue-se daí que, se menosprezam a<br />
humilda<strong>de</strong> da cruz, então, em certo sentido, estão anulando sua própria<br />
vocação; pois em seu chamado Deus tinha mantido seu método <strong>de</strong> excluir<br />
toda honra, po<strong>de</strong>r e glória humanos. Portanto, Paulo tacitamente<br />
acusa-os <strong>de</strong> ingratidão, porque, olvidando tanto a graça <strong>de</strong> Deus, como<br />
a si próprios, tratavam o evangelho <strong>de</strong> Cristo com escárnio.<br />
Entretanto, duas coisas <strong>de</strong>vem ser observadas aqui. Primeiro, ele<br />
<strong>de</strong>sejava usar o exemplo dos coríntios para confirmar a verda<strong>de</strong> do<br />
que dissera. Segundo, ele <strong>de</strong>sejava adverti-los <strong>de</strong> que <strong>de</strong>viam estar<br />
completamente <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong> todo orgulho, caso estivessem prestando<br />
a<strong>de</strong>quada atenção ao gênero <strong>de</strong> procedimento que o Senhor seguira<br />
ao chamá-los. Paulo diz que Deus “expôs a sabedoria e a nobreza <strong>de</strong><br />
nascimento à humilhação”, e “<strong>de</strong>struiu as coisas que são”. Ambas as<br />
expressões são mui a<strong>de</strong>quadas, pois a força e a sabedoria se <strong>de</strong>svanecem<br />
quando expostas ao <strong>de</strong>scrédito, e o que possui existência <strong>de</strong>ve<br />
ser <strong>de</strong>struído. Ele quer dizer que Deus preferiu chamar o pobre e o<br />
tolo, o <strong>de</strong> nascimento obscuro, diante do gran<strong>de</strong>, do sábio e <strong>de</strong> nobre<br />
nascimento. Se Deus não tivesse posto a todos no mesmo nível, nada<br />
teria sido suficiente para abater a arrogância humana. Daí, aqueles que<br />
pareciam eminentes, ele lançou por terra, a fim que o mesmo fosse<br />
realmente reduzi-lo a nulida<strong>de</strong>.<br />
Entretanto, alguém seria insensato se <strong>de</strong>duzisse <strong>de</strong>sse fato que<br />
Deus <strong>de</strong>ssa maneira estava aviltando a glória da carne, a fim <strong>de</strong> que<br />
o gran<strong>de</strong> e o sábio fossem excluídos da esperança da salvação. É por<br />
isso que alguns irresponsáveis não só transformaram isso em pretexto<br />
para triun farem sobre os gran<strong>de</strong>s, como se Deus os houvera abandonado,<br />
mas inclusive os <strong>de</strong>sprezaram como se estivessem muito abaixo
80 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
<strong>de</strong>les. Lembremo-nos, contudo, <strong>de</strong> que isso foi dito aos coríntios, ou,<br />
seja, que eles, embora não <strong>de</strong>sfrutassem <strong>de</strong> nenhuma posição importante<br />
no mundo, no entanto eram soberbos, ainda quando não<br />
tivessem razão <strong>de</strong> o ser. Portanto, ao expor os fortes, os sábios e os<br />
gran<strong>de</strong> ao ridículo, Deus não exalta os fracos, os indoutos e os indignos,<br />
senão que reduz a todos eles a um nível comum. Portanto, que<br />
todos quantos são <strong>de</strong>sprezíveis aos olhos do mundo pensem bem nisto:<br />
“Quão mo<strong>de</strong>stos <strong>de</strong>veríamos ser diante do fato <strong>de</strong> que os que são<br />
tidos em alta estima pelo mundo são reduzidos a nada! 61 Se a radiância<br />
do sol é eclipsada, qual é a sorte das estrelas? Se a luz das estrelas é<br />
extinta, o que se espera dos objetos opacos? O <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong>ssas observações<br />
consiste nisto: que aqueles que foram chamados pelo Senhor,<br />
ainda que <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> qualquer valor aos olhos do mundo, não<br />
podiam abusar <strong>de</strong>ssas palavras <strong>de</strong> Paulo enfunando suas cristas! Ao<br />
contrário, tendo em mente a exortação <strong>de</strong> Paulo em Romanos 11.20 –<br />
“por sua incredulida<strong>de</strong> foram quebrados, e mediante a fé tu estás em<br />
pé” – podiam andar pru<strong>de</strong>ntemente na presença <strong>de</strong> Deus com temor<br />
e humilda<strong>de</strong>.<br />
Em contrapartida, Paulo não diz aqui que nenhum nascido em<br />
“berço <strong>de</strong> ouro” ou po<strong>de</strong>roso seria chamado por Deus, e, sim, que haveria<br />
poucos <strong>de</strong>les. E nos fornece o motivo disso: que o Senhor, ao<br />
preferir os <strong>de</strong>sprezíveis aos gran<strong>de</strong>s, estaria <strong>de</strong>stroçando o orgulho<br />
humano. O mesmo Deus, pelos lábios <strong>de</strong> Davi, exorta os reis a beijarem<br />
a Cristo 62 [Sl 2.12]; e igualmente anuncia pelos lábios <strong>de</strong> Paulo<br />
[1Tm 2.1-4] que ele <strong>de</strong>seja que todos os homens sejam salvos, e que<br />
seu Cristo é exibido a todos os homens, tanto ao insignificante quanto<br />
ao gran<strong>de</strong>, tanto ao rei quanto ao cidadão comum. Ele mesmo nos <strong>de</strong>u<br />
prova real disso: os pastores são os primeiros a ser chamados a Cristo;<br />
em seguida vêm os filósofos; pescadores incultos e menosprezados<br />
<strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> um espaço mais honroso; porém, mais tar<strong>de</strong>, seguem os<br />
61 “Dieu ne permet <strong>de</strong> presumer d’eux mesmes.” – “Deus não lhes permite confiança em si<br />
mesmos.”<br />
62 “A faire hommage à Christ.” – “A fazer homenagem a Cristo.”
Capítulo 1 • 81<br />
reis e seus conselheiros, os senadores e oradores são também recebidos<br />
em sua escola.<br />
28. As coisas que não são. Ele usa termos afins em Romanos 4.17,<br />
porém com um sentido distinto. Pois nessa passagem, <strong>de</strong>screvendo a<br />
vocação universal dos crentes, ele diz que não somos nada antes <strong>de</strong><br />
sermos chamados. E isso <strong>de</strong>ve ser entendido como sendo uma referência<br />
à realida<strong>de</strong> aos olhos <strong>de</strong> Deus, mesmo quando parecemos ser algo<br />
importante aos olhos dos homens. Contudo, o nada (οὐδενεια) <strong>de</strong> que<br />
Paulo fala <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como uma referência à opinião dos<br />
homens. Isso é evi<strong>de</strong>nte à luz da sentença correspon<strong>de</strong>nte, na qual<br />
ele diz que isso é feito a fim <strong>de</strong> que as coisas que são sejam reduzidas<br />
a nada. Pois nada existe senão na aparência, porque na realida<strong>de</strong> todos<br />
nós somos nada. Portanto, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r “as coisas que são”<br />
no sentido <strong>de</strong> “as coisas que aparecem”; <strong>de</strong> modo que esta passagem<br />
correspon<strong>de</strong> a estas afirmações: “Ele ergue do pó o <strong>de</strong>svalido; e do<br />
monturo, o necessitado” [Sl 113.7]; “O Senhor levanta os abatidos” [Sl<br />
146.8]; e outros <strong>de</strong> natureza semelhante. Destas citações fica perfeitamente<br />
em evidência que as pessoas são <strong>de</strong>masiadamente insensatas<br />
quando presumem existir algum mérito ou dignida<strong>de</strong> nos homens anterior<br />
à eleição divina.<br />
29. Para que nenhuma carne se glorie. Mesmo que aqui, e<br />
em muitas passagens da Escritura, o termo carne signifique toda a<br />
humanida<strong>de</strong>, todavia nesta passagem ele contém uma conotação<br />
particular, porque o Espírito, ao falar do gênero humano em termos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém, abate seu orgulho; como em Isaías 31.3: “Pois os egípcios<br />
são carne, não espírito.” Eis um sentimento digno <strong>de</strong> ser lembrado:<br />
que nada nos é <strong>de</strong>ixado em que po<strong>de</strong>mos com razão nos gloriar. Por<br />
esta razão Paulo adiciona a frase: “na presença <strong>de</strong> Deus.” Porque na<br />
presença do mundo muitos se <strong>de</strong>leitam, por breve momento, num falso<br />
esplendor, o qual, contudo, rapidamente se <strong>de</strong>svanece como a<br />
fumaça. Ao mesmo tempo, por meio <strong>de</strong>sta expressão todo gênero humano<br />
guarda silêncio quando tem acesso à presença <strong>de</strong> Deus; como<br />
diz Habacuque: Que toda carne esteja em silêncio diante <strong>de</strong> Deus [Hc
82 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
2.20]. Portanto, que tudo quanto mereça algum louvor, seja consi<strong>de</strong>rado<br />
como proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Deus.<br />
30. Mas vós sois <strong>de</strong>le em Cristo Jesus. No caso <strong>de</strong> concluírem que<br />
alguns <strong>de</strong> seus ditos não se aplicam a eles, Paulo então mostra como<br />
tais ditos têm a ver com eles sim, no sentido em que não têm vida<br />
senão em Deus. Pois a expressão vós sois é enfática, como se quisesse<br />
dizer: “Vossa origem está em Deus, que chama as coisas que não são<br />
[Rm 4.17], passando por alto as coisas que parecem ser. Vossa existência<br />
[substentia] está <strong>de</strong> fato alicerçada em Cristo, <strong>de</strong> modo que não<br />
<strong>de</strong>veis ter motivo algum para ser<strong>de</strong>s soberbos.” E ele está falando não<br />
meramente <strong>de</strong> nossa criação, mas daquela existência [essentia] espiritual<br />
na qual nascemos <strong>de</strong> novo pela graça <strong>de</strong> Deus.<br />
O qual foi feito para nós sabedoria <strong>de</strong> Deus. Visto que há muitos<br />
que, quando não querem afastar-se <strong>de</strong>liberadamente <strong>de</strong> Deus, não<br />
obstante buscam algo fora <strong>de</strong> Cristo, como se ele só não abrangesse<br />
em si todas as coisas, 63 Paulo nos diz, <strong>de</strong> passagem, quão gran<strong>de</strong>s são<br />
os tesouros com que Cristo está munido; e ao agir assim ele procura<br />
<strong>de</strong>screver, ao mesmo tempo, nosso modo <strong>de</strong> existência [modus susbsistendi]<br />
em Cristo. Pois quando Paulo chama Cristo nossa justiça, uma<br />
idéia correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>ve ser entendida, a saber: que em nós nada<br />
mais há do pecado; e o mesmo ocorre com os <strong>de</strong>mais termos nesta<br />
oração. Pois aqui ele atribui a Cristo quatro títulos que somam toda<br />
sua perfeição e todos os benefícios que nos advêm <strong>de</strong>le [Cristo].<br />
Primeiro. Paulo afirma que Cristo foi feito nossa sabedoria. Com<br />
isso quer dizer que alcançamos a plenitu<strong>de</strong> da sabedoria em Cristo,<br />
porque o Pai se revelou plenamente nele para nós, <strong>de</strong> modo que não<br />
po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sejar saber coisa alguma fora <strong>de</strong>le. Existe uma expressão<br />
semelhante em Colossenses 2.3: “em quem todos os tesouros da sabedoria<br />
e do conhecimento estão ocultos.” Diremos algo mais sobre isso<br />
no próximo capítulo.<br />
Segundo. Ele afirma que Cristo foi feito nossa justiça. Com isso<br />
63 “Toute plenitu<strong>de</strong>.” – “Toda plenitu<strong>de</strong>.” [Cl 1.9]
Capítulo 1 • 83<br />
quer dizer que em seu Nome fomos aceitos por Deus, porque ele fez<br />
expiação por nossos pecados por meio <strong>de</strong> sua morte, e sua obediência<br />
nos é imputada para justiça. Porque, visto que a justiça da fé consiste<br />
na remissão <strong>de</strong> pecados e na livre aceitação, nós obtemos ambas através<br />
<strong>de</strong> Cristo.<br />
Terceiro. Ele o chama nossa santificação. Com isso quer dizer que<br />
nós, que por natureza somos imundos, nascemos <strong>de</strong> novo pela ação<br />
do Espírito, para a santida<strong>de</strong>, para que tenhamos condição <strong>de</strong> servir<br />
a Deus. Daqui <strong>de</strong>duzimos também que não po<strong>de</strong>mos ser previamente<br />
justificados pela exclusiva instrumentalida<strong>de</strong> da fé, se concomitantemente<br />
não vivermos em santida<strong>de</strong>. Porquanto esses dons da graça vão<br />
juntos como que atados por uma vínculo in<strong>de</strong>strutível, <strong>de</strong> modo que,<br />
se alguém tentar separá-los, em certo sentido estará fragmentando a<br />
Cristo. Conseqüentemente, que aqueles que almejam ser justificados<br />
pela livre bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, através <strong>de</strong> Cristo, reconheçam que tal coisa<br />
não po<strong>de</strong> absolutamente ser concretizada, a menos que, ao mesmo<br />
tempo, se apegue a ele para a santificação; em outros termos, ele <strong>de</strong>ve<br />
nascer <strong>de</strong> novo pela instrumentalida<strong>de</strong> do Espírito, para a irrepreensibilida<strong>de</strong><br />
e pureza <strong>de</strong> vida. Os homens <strong>de</strong>scobrem falhas em nós,<br />
porque, ao pregarmos a graciosa justiça da fé, evi<strong>de</strong>ntemente estamos<br />
afastando os homens das boas obras. Mas esta passagem os refuta<br />
<strong>de</strong> forma clara, mostrando que a fé está jungida à regeneração assim<br />
como o perdão <strong>de</strong> pecados está em Cristo.<br />
Por outro lado, note-se que, enquanto os dois ofícios <strong>de</strong> Cristo se<br />
acham unidos, todavia são distintos um do outro. Portanto, não temos<br />
a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> confundir o que Paulo expressamente distingue, o que<br />
seria um grave erro.<br />
Quarto. Ele ensina que Cristo nos foi dado para a re<strong>de</strong>nção. Com<br />
isto quer dizer que somos libertados, por sua graciosa bonda<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
toda a escravidão do pecado e <strong>de</strong> toda a miséria que flui <strong>de</strong>ste. Assim,<br />
a re<strong>de</strong>nção é o primeiro dom <strong>de</strong> Cristo que teve início em nós, e o último<br />
a ser consumado ou completado. Pois a salvação começa quando<br />
somos <strong>de</strong>sembaraçados do labirinto do pecado e da morte. Nesse ínte-
84 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
rim, contudo, suspiramos pelo dia da ressurreição final, ansiando pela<br />
re<strong>de</strong>nção, como é expresso em Romanos 8.23. Mas se alguém pergunta<br />
como Cristo nos é dado para a re<strong>de</strong>nção, respondo: “Porque ele se fez<br />
um resgate.”<br />
Finalmente, <strong>de</strong> todas as bênçãos que são aqui enumeradas, <strong>de</strong>vemos<br />
buscar não a meta<strong>de</strong>, ou meramente uma parte, mas a plenitu<strong>de</strong>.<br />
Porquanto Paulo não diz que ele nos foi dado como forma <strong>de</strong> enchimento,<br />
ou para suprir a justiça, a santida<strong>de</strong>, a sabedoria e a re<strong>de</strong>nção;<br />
senão que ele atribui exclusivamente a Cristo a plena realização da totalida<strong>de</strong>.<br />
Ora, visto que o leitor raramente encontrará outra passagem<br />
na Escritura que forneça uma <strong>de</strong>scrição mais clara <strong>de</strong> todos os ofícios<br />
<strong>de</strong> Cristo, ela po<strong>de</strong> também propiciar-nos a melhor compreensão da<br />
força e natureza da fé. Portanto, visto que Cristo é o próprio objeto<br />
da fé, todos quantos sabem quais são os benefícios que Cristo nos<br />
confere, ao mesmo tempo apren<strong>de</strong>ram a enten<strong>de</strong>r o que a fé significa.<br />
31. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Note-se o propósito<br />
<strong>de</strong> Deus em nos dar generosamente tudo em Cristo – para que<br />
não aleguemos qualquer mérito para nós mesmos, mas para que lhe<br />
tributemos todo o louvor. Porque Deus não nos <strong>de</strong>spoja com vistas a<br />
<strong>de</strong>ixar-nos nus, mas <strong>de</strong> antemão nos veste com sua glória, porém com<br />
esta única condição: sempre que <strong>de</strong>sejarmos gloriar-nos, que então<br />
nos <strong>de</strong>sviemos <strong>de</strong> nós mesmos. Em suma, o homem reduzido a nada<br />
em sua própria estima, sabendo que a bonda<strong>de</strong> não provém <strong>de</strong> nenhuma<br />
outra fonte senão só <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>ve ele renunciar todo anseio<br />
por sua própria glória, e com toda sua energia aspirar e almejar exclusivamente<br />
a glória <strong>de</strong> Deus. E isso se faz ainda mais evi<strong>de</strong>nte à luz<br />
do contexto da passagem do profeta <strong>de</strong> quem Paulo emprestou este<br />
texto. Pois ali o Senhor, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>spir a todo gênero humano do<br />
direito <strong>de</strong> gloriar-se em sua força, sabedoria e riquezas, nos or<strong>de</strong>na a<br />
gloriar-nos somente no conhecimento <strong>de</strong>le [Jr 9.23, 24]. Mas ele <strong>de</strong>seja<br />
ser conhecido [cognosci] por nós <strong>de</strong> tal maneira que saibamos [sciamus]<br />
que ele é quem exerce a retidão, a justiça e a misericórdia. Pois<br />
este conhecimento produz em nós imediata confiança nele e temor
Capítulo 1 • 85<br />
a ele. Portanto, se uma pessoa realmente tem sua mente tão bem regulada,<br />
não reivindicando para si nenhum mérito, então seu <strong>de</strong>sejo é<br />
tão-somente exaltá-lo; se tal pessoa <strong>de</strong>scansa satisfeita em sua graça;<br />
e põe toda sua felicida<strong>de</strong> em seu amor paternal; e, por fim, se sente<br />
feliz tão-somente em Deus, então tal pessoa realmente “se gloria no<br />
Senhor.” Sinceramente digo isso, pois mesmo os hipócritas sobre falsas<br />
bases se glóriam nele, como <strong>de</strong>clara Paulo [Rm 2.17], quando, ensoberbecidos<br />
com seus dons, ou presumidos em sua ímpia confiança na carne,<br />
ou merca<strong>de</strong>jam sua Palavra, contudo usam seu Nome como proteção<br />
sobre si.
Capítulo 2<br />
1. E eu, irmãos, quando fui ter convosco,<br />
proclamando-vos o mistério <strong>de</strong><br />
Deus, não fui com excelência <strong>de</strong> linguagem,<br />
ou <strong>de</strong> sabedoria.<br />
2. Porque <strong>de</strong>terminei nada saber entre<br />
vós, a não ser Jesus Cristo, e este<br />
crucificado.<br />
1. Et ego, quum venissem ad vos,<br />
fratres, veni non in excellentia sermonis<br />
vel sapientiæ, annuntians<br />
vobis testimonium Dei.<br />
2. Non enim eximium duxi, (vel, duxi<br />
pro scienti,) scire quicquam inter<br />
vos, 1 nisi Iesum Christum, et hunc<br />
crucifixum.<br />
1. E eu, quando fui ter convosco. Tendo iniciado a falar <strong>de</strong> seu<br />
próprio método <strong>de</strong> ensino, Paulo continuou quase imediatamente a<br />
tratar do caráter geral da pregação evangélica. Agora ele volve outra<br />
vez para sua própria pessoa com o fim <strong>de</strong> mostrar que tudo quanto é<br />
<strong>de</strong>sprezado nele pertence à natureza do próprio evangelho, e em certo<br />
sentido é inseparável <strong>de</strong>le. Portanto, ele admite que não usufruiu do<br />
auxílio da eloqüência ou sabedoria humana, <strong>de</strong> cuja provisão po<strong>de</strong>ria<br />
capacitar-se para realizar algo. Prossegue, porém, acrescentando que,<br />
a partir do próprio fato <strong>de</strong> admitir sua carência <strong>de</strong> tais recursos, o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus, que não carece <strong>de</strong> tais auxílios, se faz plenamente evi<strong>de</strong>nte<br />
em seu ministério. Ele introduz esta verda<strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong>pois.<br />
Mas, nesse ínterim, tendo admitido que era carente <strong>de</strong> sabedoria humana,<br />
não obstante sustenta que proclamava o “testemunho <strong>de</strong> Deus”<br />
1 “Car je n’ay point eu en estime <strong>de</strong> sçauoir aucune chose ou rien <strong>de</strong>liberé <strong>de</strong> sçauoir<br />
entre vous.” – “Eu nada tive em estima como conhecimento; ou, Determinei nada saber<br />
entre vós.”
88 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
[testemonium Dei]. Ainda que alguns intérpretes expliquem o “testemunho<br />
<strong>de</strong> Deus” num sentido passivo, contudo não tenho dúvidas <strong>de</strong><br />
que o oposto é precisamente o que o apóstolo tem em mente: que o<br />
“testemunho <strong>de</strong> Deus” é aquele que tem sua origem em Deus, a saber,<br />
o ensino do evangelho, do qual Deus é o Autor e Testemunha. Paulo,<br />
pois, faz distinção entre linguagem e sabedoria (λύγον ἀπὸ τη̑ς σοφίας).<br />
Isso confirma o que mencionei anteriormente, 2 ou, seja, que até então<br />
ele esteve falando não sobre mera e fútil tagarelice, mas sobre toda a<br />
cultura das ciências humanas.<br />
2. Porque <strong>de</strong>terminei nada saber entre vós etc. Visto que o grego,<br />
κρίνειν, às vezes significa εκλεγειν, ou, seja, selecionar algo como<br />
valioso, 3 penso que ninguém em são juízo negará que minha tradução é<br />
mais plausível, visto ser consistente com a construção [do grego]. Todavia,<br />
se o traduzirmos “não estimei nenhum tipo <strong>de</strong> conhecimento”, não<br />
haveria qualquer discordância nisso. Mas se o leitor completa algo que<br />
está faltando, a oração ficará plenamente bem, como esta: “Nada valorizei<br />
em mim mesmo como importante para eu conhecer, ou como base<br />
<strong>de</strong> conhecimento.” Ao mesmo tempo, <strong>de</strong> forma alguma rejeito uma interpretação<br />
diversa, ou, seja, consi<strong>de</strong>rando Paulo como que afirmando que<br />
nada estimou como conhecimento, ou como merecedor <strong>de</strong> ser chamado<br />
conhecimento, a não ser exclusivamente Cristo. Se este é o caso, a preposição<br />
grega, αντι, teria <strong>de</strong> ser suprimida, como às vezes suce<strong>de</strong>. Mas,<br />
se a primeira interpretação não for reprovada, ou se a segunda for a mais<br />
satisfatória, equivale ao seguinte: “Quanto à ausência <strong>de</strong> ornamentos em<br />
minha linguagem, e também a ausência <strong>de</strong> mais elegância em meus discursos,<br />
a razão se <strong>de</strong>veu ao fato <strong>de</strong> não haver corrido após tais coisas;<br />
aliás, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhei <strong>de</strong>las, porquanto uma só coisa ocupava meu coração –<br />
que eu pu<strong>de</strong>sse proclamar Cristo com simplicida<strong>de</strong>.”<br />
2 Calvino se refere ao que ele dissera ao comentar uma expressão que ocorre em 1.17 – não<br />
em sabedoria <strong>de</strong> palavras. Veja-se página 51.<br />
3 Xenofonte usa κρινω no sentido <strong>de</strong> selecionar ou preferir – Mem. iv.4, sec. 16, ουχ ο̒πως τους<br />
αυτους χορους κρινωσιν οἱ πολιται, “não que os cidadãos prefiram as mesmas danças.” Veja-<br />
-se também Menan<strong>de</strong>r, p. 230, linha 245, edit. Cleric. No Novo Testamento encontramos<br />
κρινω usada no sentido <strong>de</strong> estimar, em Romanos 14.5.
Capítulo 2 • 89<br />
Ao adicionar o termo, crucificado, Paulo não pretendia dizer que<br />
ele nada proclamava com respeito a Cristo senão a cruz, mas que todo<br />
o vilipêndio da cruz não o impedia <strong>de</strong> proclamar a Cristo. É como se<br />
quisesse dizer: “A ignomínia da cruz não me impedirá <strong>de</strong> contemplar<br />
Aquele 4 <strong>de</strong> quem provém a salvação, ou me leve a envergonhar-me<br />
<strong>de</strong> ter toda minha sabedoria compreendida nele – Aquele a quem os<br />
soberbos tratam com <strong>de</strong>sdém e rejeitam em razão da ignomínia <strong>de</strong><br />
cruz.” Portanto, o que ele diz <strong>de</strong>ve ser explicado da seguinte maneira:<br />
“Nenhum tipo <strong>de</strong> conhecimento, a meu ver, foi tão importante para<br />
mim que me fizesse <strong>de</strong>sejar algo mais além <strong>de</strong> Cristo, ainda que continuasse<br />
crucificado.” Esta pequena frase é adicionada à gusa <strong>de</strong> adição<br />
(αὔξησιν), com o fim <strong>de</strong> causar ainda mais irritação àqueles mestres<br />
arrogantes, para quem Cristo era alvo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo, pois seu maior<br />
<strong>de</strong>sejo era ser aplaudidos pela reputação <strong>de</strong> possuírem alguma sorte<br />
<strong>de</strong> sabedoria superior. Este é um versículo muitíssimo belo, e <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>mos<br />
apren<strong>de</strong>r o que um ministro fiel <strong>de</strong>ve ensinar, e o que <strong>de</strong>vemos<br />
cultivar ao longo <strong>de</strong> toda nossa vida; e comparado a isso tudo o mais<br />
<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado a esterco [Fp 3.8].<br />
3. E eu estive convosco em fraqueza, e<br />
em temor, e em muito tremor.<br />
4. E minha linguagem e minha pregação<br />
não consistiram em palavras<br />
persuasivas <strong>de</strong> sabedoria, mas em<br />
<strong>de</strong>monstração do Espírito e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r;<br />
5. para que vossa fé não se apoiasse na<br />
sabedoria dos homens, mas no po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> Deus.<br />
3. Et ego in infirmitate, 5 et in timore, et<br />
in tremore multo fui apud vos:<br />
4. Et sermo meus, et prædicatio<br />
mea, non in persuasoriis humanæ<br />
sapientiæ sermonibus, sed in <strong>de</strong>monstratione<br />
Spiritus et potentiæ:<br />
5. Ut fi<strong>de</strong>s vestra non sit in sapientia<br />
hominum, sed in potentia Dei.<br />
3. E eu estive convosco em fraqueza. Paulo apresenta uma explanação<br />
completa do que simplesmente tocara <strong>de</strong> leve antes, ou, seja,<br />
4 Ne fera point que ie n’aye en reuerence et admiration.” – “Não me impedirá <strong>de</strong> o ter em<br />
reverência e admiração.”<br />
5 “En infirmité ou foiblesse.” – “Em fraqueza ou <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>.”
90 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
que não houve nada <strong>de</strong> esplêndido nem <strong>de</strong> eminente nele aos olhos<br />
humanos, para que fosse visto como uma figura notável. Entretanto,<br />
ele conce<strong>de</strong> a seus adversários o que estavam buscando, e essa era<br />
uma forma <strong>de</strong> fazer as mesmas coisas, as quais, na opinião <strong>de</strong>les, visavam<br />
a diminuir o crédito <strong>de</strong> seu ministério, redundando isso em seu<br />
mais elevado enaltecimento. Se ele aparentava ser alguém digno <strong>de</strong><br />
menos honra, só porque, segundo a carne, ele era por <strong>de</strong>mais insignificante<br />
e humil<strong>de</strong>, não obstante ele mostra que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus era o<br />
que existia <strong>de</strong> mais evi<strong>de</strong>nte em sua habilida<strong>de</strong> para tanta realização,<br />
embora não contasse ele com o apoio <strong>de</strong> quaisquer auxílios humanos.<br />
Mas ele não está pensando somente nos jactanciosos que, a fim <strong>de</strong><br />
adquirir fama para si, se ocupavam meramente <strong>de</strong> sua própria reputação,<br />
mas também dos coríntios que olhavam com espanto para suas<br />
fúteis exibições. Portanto, esse lembrete <strong>de</strong>ve ter causado um forte<br />
efeito neles. Sabiam que Paulo não possuía qualida<strong>de</strong>s humanas que<br />
o ajudassem a fazer progresso, ou que pu<strong>de</strong>sse capacitá-lo a granjear<br />
o favor dos homens. Não obstante, tinham presenciado o maravilhoso<br />
sucesso que o Senhor outorgara à pregação <strong>de</strong> Paulo. Além disso,<br />
realmente tinham visto com seus próprios olhos, diria alguém, o Espírito<br />
<strong>de</strong> Deus presente em sua doutrina. Quando, pois, <strong>de</strong>sprezando a<br />
simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo, ambicionavam febrilmente algum tipo <strong>de</strong> sabedoria<br />
que fosse mais portentosa e mais polida, e visto que se <strong>de</strong>ixaram<br />
cativar por aparências externas, e, ainda mais, movidos por uma presumida<br />
dissimulação, antes que pela viva eficácia do Espírito, não<br />
põem a <strong>de</strong>scoberto, suficientemente, seu espírito ambicioso? Paulo,<br />
pois, está plenamente certo em trazer à lembrança <strong>de</strong>les seu primeiro<br />
ingresso entre eles [1Ts 2.1], a fim <strong>de</strong> não se <strong>de</strong>sviarem daquela eficácia<br />
divina que uma vez experimentaram pessoalmente.<br />
Ele emprega o termo fraqueza aqui e em vários casos subseqüentes<br />
[2Co 11.30; 12.5, 9, 10] para incluir tudo que pu<strong>de</strong>sse prejudicar<br />
o favor e a dignida<strong>de</strong> pessoais na opinião <strong>de</strong> terceiros. Temor e tremor<br />
são <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ssa fraqueza. Contudo, existem duas maneiras<br />
pelas quais estes dois termos po<strong>de</strong>m ser-nos explicados. Uma <strong>de</strong>las
Capítulo 2 • 91<br />
consiste nisto: ou po<strong>de</strong>mos entendê-lo dizendo que, quando pon<strong>de</strong>rava<br />
na magnitu<strong>de</strong> do ofício que sustentava, se perturbava e enfrentava<br />
profunda ansieda<strong>de</strong> ao envolver-se no <strong>de</strong>sencargo <strong>de</strong>le. A outra explicação<br />
é a seguinte: vendo-se cercado por muitos perigos, ele era<br />
dominado por perene expectativa e constante ansieda<strong>de</strong>. Ambas se<br />
ajustam perfeitamente bem ao contexto, porém, em minha opinião, a<br />
segunda é a mais simples. Naturalmente que modéstia como esta é<br />
própria dos servos do Senhor, <strong>de</strong> modo que, cônscios <strong>de</strong> sua própria<br />
fraqueza e, em contrapartida, encarando respectivamente as dificulda<strong>de</strong>s<br />
e a excelência <strong>de</strong> tão árduo ofício, <strong>de</strong>vem aproximar-se <strong>de</strong>le com<br />
reverência e temor. Pois os que se apresentam imbuídos <strong>de</strong> confiança,<br />
e com ares <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, ou que exercem o ministério da Palavra<br />
<strong>de</strong> forma displicente, como se fossem bem talhados para tal tarefa,<br />
não conhecem nem a si mesmos nem a própria tarefa. 6<br />
Entretanto, como Paulo aqui conecta temor a fraqueza, e como o<br />
termo fraqueza significa tudo quanto contribuía para sua <strong>de</strong>preciação,<br />
segue-se que, necessariamente, esse temor <strong>de</strong>ve relacionar-se com<br />
perigos e dificulda<strong>de</strong>s. Todavia, é plenamente comprovado que esse<br />
temor era <strong>de</strong> tal natureza que não impedia Paulo <strong>de</strong> envolver-se na<br />
obra do Senhor, como os fatos o testificam. Nem são os servos do<br />
Senhor tão estúpidos que não percebam estar ameaçados <strong>de</strong> perigos,<br />
nem tão <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> sentimento que não se <strong>de</strong>ixem comover. Ainda<br />
mais: é necessário que vivam gravemente apreensivos por duas importantes<br />
razões: primeiro, que eles, combalidos a seus próprios olhos,<br />
aprendam a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r e a <strong>de</strong>scansar exclusiva e plenamente em Deus;<br />
e, segundo, que sejam exercitados na genuína renúncia. Paulo, pois,<br />
não era isento das influências do temor, mas que o controlava <strong>de</strong> tal<br />
modo que ele, apesar <strong>de</strong> tudo, continuava a ser <strong>de</strong>stemido em meio<br />
aos perigos, <strong>de</strong> modo que, com incansável perseverança e resistência,<br />
ele se furtava <strong>de</strong> todos os assaltos <strong>de</strong> Satanás e do mundo; e, em suma,<br />
<strong>de</strong>ssa forma ele seguia por todos os meandros <strong>de</strong> obstáculos.<br />
6 “Ne cognoissent ni eux ni la chose qu’ils ont entre mains.” – “Não conhecem nem a si<br />
mesmos nem aquilo que têm em mãos.”
92 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
4. E minha pregação não consistiu <strong>de</strong> palavras persuasivas. Ao<br />
dizer “<strong>de</strong> palavras persuasivas <strong>de</strong> sabedoria humana”, sua referência<br />
é à oratória seleta que se empenha e lança mão <strong>de</strong> artifícios, sem se<br />
preocupar com a verda<strong>de</strong>; e ao mesmo tempo ele aponta também para<br />
a aparência <strong>de</strong> refinamento, o que fascina as mentes dos homens. Ele<br />
está certo ao atribuir a persuasão (το πιθανον) 7 à sabedoria humana.<br />
Porque, por sua própria majesta<strong>de</strong>, a Palavra do Senhor nos concita,<br />
<strong>de</strong> forma mui veemente, a prestarmos-lhe obediência. Em contrapartida,<br />
a sabedoria humana tem seu encanto com que se insinua 8 e se<br />
apresenta em seus ornamentos pomposos, por assim dizer, por meio<br />
dos quais atrai para si as mentes <strong>de</strong> seus ouvintes. Contra isso Paulo<br />
estabelece a “<strong>de</strong>monstração do Espírito e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, o que a maioria<br />
dos intérpretes limita aos milagres. Quanto a mim, o entendo num<br />
sentido mais amplo, ou, seja, como sendo a mão <strong>de</strong> Deus esten<strong>de</strong>ndo-se<br />
para agir po<strong>de</strong>rosamente e <strong>de</strong> todas as maneiras através dos<br />
apóstolos. Tudo indica que Paulo pôs “Espírito e po<strong>de</strong>r” à guisa <strong>de</strong><br />
hipálage (καθ̕ υ̒παλλαυὴν), 9 equivalente a po<strong>de</strong>r espiritual; ou, seguramente,<br />
a fim <strong>de</strong> realçar, por meio <strong>de</strong> sinais e efeitos, como a presença<br />
do Espírito era evi<strong>de</strong>nte em seu ministério. É seu o uso apropriado do<br />
termo αποδείξεως (<strong>de</strong>monstração). Pois nosso embotamento, quando<br />
olhamos mais <strong>de</strong> perto as obras <strong>de</strong> Deus, é tal que, ao fazer uso <strong>de</strong><br />
instrumentos inferiores, seu po<strong>de</strong>r se oculta como se fosse por meio<br />
<strong>de</strong> muitos véus [Is 52.10], <strong>de</strong> tal maneira que seu po<strong>de</strong>r já não nos é<br />
claramente perceptível.<br />
5. Para que vossa fé não se apoiasse na sabedoria dos homens.<br />
Apoiar é usado aqui no sentido <strong>de</strong> consistir! Portanto, Paulo, pois, quer<br />
7<br />
72<br />
Esta passagem tem ampliado os horizontes dos críticos, à luz da circunstância <strong>de</strong> que<br />
o adjetivo πειθοι̑ς, não ocorrendo em nenhum outro lugar no Novo Testamento, ou em<br />
qualquer dos escritos dos autores clássicos, supõe-se que houve alguma correção da<br />
redação. Há quem presume ser ela uma contração ou corrupção <strong>de</strong> πείθανοις ou πίθανοις,<br />
e Crisóstomo, em um ou dois casos, ao citar a passagem, usa o adjetivo πίθανοις, quando<br />
em outro caso ele usa πειθοι̑ς. Talvez seja em alusão aos casos em que Crisóstomo faz uso<br />
do adjetivo πίθανοις que Calvino emprega a frase το πίθανον (persuasão).<br />
8 “Secrettement et doucement.” – “Secreta e suavemente.”<br />
9 Uma figura <strong>de</strong> linguagem por meio da qual as palavras invertem seus casos entre si.”
Capítulo 2 • 93<br />
dizer que os coríntios tinham sido beneficiados por haver ele pregado<br />
Cristo entre eles sem apoiar na sabedoria humana, mas unicamente no<br />
po<strong>de</strong>r do Espírito, para que a <strong>de</strong>les não se fundamentasse no ser humano,<br />
e, sim, somente em Deus. Se a pregação do apóstolo tivesse como apoio<br />
somente o vigor da eloqüência, ele po<strong>de</strong>ria ter sido dilapidado por uma<br />
oratória superior. Além disso, ninguém terá por genuína a verda<strong>de</strong> que se<br />
apóia na excelência da oratória. Naturalmente que a oratória po<strong>de</strong> servir<br />
<strong>de</strong> auxílio para corroborar a verda<strong>de</strong>, mas esta não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r daquela.<br />
Em contrapartida, a verda<strong>de</strong> teria sido muito mais po<strong>de</strong>rosa se se<br />
firmasse em si sem qualquer auxílio estranho. Por essa razão, a verda<strong>de</strong><br />
é a mais notável recomendação da pregação <strong>de</strong> Paulo, e o po<strong>de</strong>r celestial<br />
brilhou nela com tal intensida<strong>de</strong>, que logrou remover tantos obstáculos,<br />
sem qualquer assistência do mundo. Segue-se, pois, que os coríntios não<br />
<strong>de</strong>viam permitir-se abandonar o ensino <strong>de</strong> Paulo, quando sabiam muito<br />
bem que ele contava com o apoio da autorida<strong>de</strong> divina. Além disso,<br />
Paulo aqui está falando da fé dos coríntios, <strong>de</strong> uma maneira tal que esta<br />
frase granjeou aplicação universal. Portanto, saibamos que a característica<br />
da fé consiste em repousar ela somente em Deus, e a não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> homem algum. Pois sua segurança <strong>de</strong>ve ser tão sólida a ponto <strong>de</strong> não<br />
<strong>de</strong>smoronar ainda que fosse assaltada por todos os inventos do inferno,<br />
mas que resiste confiadamente a todos os ataques. Isso não po<strong>de</strong> ser feito<br />
a menos que sejamos firmemente convictos <strong>de</strong> que Deus nos tem falado,<br />
e que aquilo em que cremos não é <strong>de</strong> invenção humana. Mas ainda que a<br />
fé <strong>de</strong>va estar a<strong>de</strong>quadamente fundamentada só na Palavra <strong>de</strong> Deus, não<br />
há nenhuma inconveniência em adicionar este segundo apoio, a saber:<br />
que os crentes saibam, pelos efeitos <strong>de</strong> sua influência, que a Palavra [<strong>de</strong><br />
Deus] que eles têm ouvido tem sua origem em Deus.<br />
6. Seja como for, falamos sabedoria<br />
entre os que são perfeitos; não, porém,<br />
a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo, nem<br />
a dos príncipes <strong>de</strong>ste mundo, que<br />
se reduzem a nada;<br />
6. Porro sapientiam loquimur inter<br />
perfectos: sapientiam qui<strong>de</strong>m non<br />
sæculi hujus, neque principum sæculi<br />
hujus, qui abolentur.
94 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
7. mas falamos a sabedoria <strong>de</strong> Deus em<br />
mistério, sabedoria essa que esteve<br />
oculta, a qual Deus or<strong>de</strong>nou antes<br />
dos mundos para nossa glória;<br />
8. a qual nenhum dos príncipes <strong>de</strong>ste<br />
mundo conheceu; porque, se a<br />
tivessem conhecido, não teriam<br />
crucificado o Senhor da glória;<br />
9. mas, como está escrito: Nenhum<br />
olho viu, nem ouvido ouviu, nem<br />
penetrou em coração humano, as<br />
coisas que Deus preparou para<br />
aqueles que o amam.<br />
7. Sed loquimur sapientiam Dei in<br />
mysterio, quæ est recondita: quam<br />
præfinivit Deus ante sæcula in gloriam<br />
nostram,<br />
8. Quam nemo principum sæculi hujus<br />
cognovit: si enim cognovissent,<br />
nequaquam Dominum gloriæ crucifixissent.<br />
9. Sed quemadmodum Scriptum est<br />
(Ies. lxiv. 4.) “Quæ oculus non vidit,<br />
nec auris audivit, nec in cor hominis<br />
ascen<strong>de</strong>runt, quæ præparavit<br />
Deus iis, qui ipsum diligunt.”<br />
6. Falamos sabedoria. Para que ele não fosse visto como alguém<br />
que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha da sabedoria, assemelhando-se a pessoas incultas e ignorantes<br />
que menosprezam o saber com a ferocida<strong>de</strong> dos bárbaros,<br />
ele acrescenta que não era <strong>de</strong>stituído daquela genuína sabedoria que<br />
era digna do nome, mas que só era apreciada por aqueles que são<br />
competentes para julgar. Pela expressão os que são perfeitos ele quer<br />
dizer não aqueles que se apossam <strong>de</strong> uma sabedoria plena e completa,<br />
mas aqueles que possuem um juízo sólido e imparcial. Pois o<br />
termo hebraico t, que é sempre traduzido na Septuaginta por τελειος,<br />
significa completo. 10 Entretanto, <strong>de</strong> passagem ele censura os que não<br />
nutriam qualquer inclinação para sua pregação, e lhes dá a enten<strong>de</strong>r<br />
que a culpa era <strong>de</strong>les. É como se quisesse dizer: “Se minha doutrina<br />
<strong>de</strong>sagrada a alguns <strong>de</strong>ntre vós, tais pessoas provam suficientemente<br />
que seu entendimento é <strong>de</strong>pravado e viciado, visto que ela [a doutrina]<br />
é invariavelmente reconhecida como a mais excelente sabedoria<br />
entre os que possuem intelecto saudável e bom senso.” Em contrapartida,<br />
ainda que o ensino <strong>de</strong> Paulo fosse apresentado a todos, nem<br />
sempre era estimado por seu real valor, e esta é a razão por que ele<br />
10 Assim lemos que Jacó [Gn 25.27] era t ya, “um homem perfeito”, isto é, sem qualquer<br />
falha ostensiva. Veja-se também Jó 1.8. A palavra correspon<strong>de</strong>nte, ymt, é amiú<strong>de</strong> aplicada<br />
às vítimas sacrificiais, para <strong>de</strong>notar que eram sem <strong>de</strong>feito [ x 12.5; Lv 1.3].
Capítulo 2 • 95<br />
apela para juízes idôneos e imparciais, 11 para que pu<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong>clarar<br />
que a doutrina, a qual o mundo reputava como sendo insípida, era<br />
a expressão da genuína sabedoria. Entrementes, pelo termo falamos<br />
ele notifica que punha diante <strong>de</strong>les um elegante exemplo <strong>de</strong> admirável<br />
sabedoria, a fim <strong>de</strong> que ninguém questionasse que ele se vangloriava<br />
<strong>de</strong> algo <strong>de</strong>sconhecido.<br />
Não a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo. Uma vez mais ele reitera, à guisa<br />
<strong>de</strong> antecipação, o que já havia admitido – que o evangelho não era<br />
sabedoria humana, para que ninguém objetasse, dizendo que havia<br />
poucos que apoiavam tal doutrina. Mais ainda, que ela era <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhada<br />
por todos quantos eram intelectualmente eminentes. Daí ele<br />
reconhecer espontaneamente o que po<strong>de</strong>ria ser apresentado à guisa<br />
<strong>de</strong> objeção, mas <strong>de</strong> tal sorte que <strong>de</strong> forma alguma se dava por vencido.<br />
Os príncipes <strong>de</strong>ste mundo. Pela expressão, príncipes <strong>de</strong>ste mundo,<br />
Paulo tinha em mente aqueles que são eminentes no mundo por<br />
causa <strong>de</strong> algum dote. Pois alguns há que nem sempre possuem acuida<strong>de</strong><br />
intelectual, todavia são tidos em admiração em razão da dignida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> sua posição pessoal. Entretanto, para que não nos alarmemos diante<br />
<strong>de</strong> suas aparências externas [larvis], o apóstolo acrescenta que eles<br />
serão reduzidos a nada ou perecerão. Pois não é justo que algo <strong>de</strong><br />
importância eterna <strong>de</strong>penda da autorida<strong>de</strong> daqueles que estão <strong>de</strong> passagem<br />
e perecendo, incapazes <strong>de</strong> oferecer perpetuida<strong>de</strong> até mesmo<br />
a si próprios. É como se quisesse dizer: “Quando o reino <strong>de</strong> Deus se<br />
manifesta, que a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo se retraia, e o que é transitório<br />
ceda lugar ao que é eterno. Pois os príncipes <strong>de</strong>ste mundo têm sua<br />
distinção, porém é <strong>de</strong> uma natureza tal que se extingue num instante.<br />
Que é isso em comparação com o reino <strong>de</strong> Deus, que é celestial e incorruptível?<br />
7. A sabedoria <strong>de</strong> Deus em mistério. Ele assinala a razão por que<br />
a doutrina do evangelho não é tida em alta estima pelos príncipes <strong>de</strong>ste<br />
mundo: é que ela está envolta em mistério e, conseqüentemente,<br />
11 “Il ne s’en rapporte pas a vn chacvn, mais requiert <strong>de</strong>s iuges entiers.” – “Ele não submete<br />
a causa a cada um, mas apela para os juízes competentes.”
96 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
oculta. Pois o evangelho transcen<strong>de</strong> muitíssimo à perspicácia do intelecto<br />
humano, <strong>de</strong> tal forma que aqueles que são reputados como<br />
sendo <strong>de</strong> intelecto superior po<strong>de</strong>m erguer sua vista ao máximo que<br />
jamais po<strong>de</strong>rão chegar a tal altitu<strong>de</strong>. Entretanto, menosprezam sua insignificância<br />
como se ele estivesse lançado a seus pés. Em <strong>de</strong>corrência<br />
disso, quanto mais arrogantemente o <strong>de</strong>sprezam, mais terão eles <strong>de</strong><br />
conhecê-lo; além do mais, eles se acham numa posição tão eqüidistante<br />
<strong>de</strong>le, que são impedidos inclusive <strong>de</strong> vê-lo.<br />
A qual Deus or<strong>de</strong>nou antes dos mundos para nossa glória. Havendo<br />
Paulo afirmado que o evangelho era algo oculto, havia o risco<br />
<strong>de</strong> os crentes, ouvindo isso e sentindo-se enfraquecidos em meio às<br />
dificulda<strong>de</strong>s, fugirem <strong>de</strong>le e viessem a sucumbir pelo <strong>de</strong>sespero. Por<br />
isso, ele encara este perigo e <strong>de</strong>clara que, não obstante, o evangelho<br />
foi <strong>de</strong>signado para nós, para nosso <strong>de</strong>leite nele. Para que ninguém,<br />
digo, concluísse que não tinha nada a ver com uma sabedoria oculta,<br />
ou imaginasse ser ilícito dirigir seus olhos para ele, visto que o mesmo<br />
não se achava <strong>de</strong>ntro dos parâmetros da compreensão humana, Paulo<br />
ensina que ele nos foi comunicado pelo eterno conselho <strong>de</strong> Deus. Ao<br />
mesmo tempo, ele tinha algo maior em mente, pois, por meio <strong>de</strong> uma<br />
comparação tácita, ele expõe à luz ainda mais meridiana a graça que<br />
foi posta diante <strong>de</strong> nós por intermédio da vinda <strong>de</strong> Cristo, a qual nos<br />
pôs numa posição mais excelente do que a <strong>de</strong> nossos pais que viveram<br />
sob o regime da lei. Eu disse mais sobre isso no final do último capítulo<br />
<strong>de</strong> Romanos. Antes <strong>de</strong> tudo, pois, ele parte do fato <strong>de</strong> que Deus<br />
or<strong>de</strong>nou. Pois se Deus nada <strong>de</strong>signou sem um propósito, segue-se que<br />
nada per<strong>de</strong>remos em ouvir o evangelho, o qual ele <strong>de</strong>stinou a nós, pois<br />
quando nos fala, ele se acomoda a nossa capacida<strong>de</strong>. O que Isaías diz<br />
se relaciona a este fato [45.19]: “Não falei em segredo, em algum canto<br />
escuro 12 da terra; não disse à <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> Jacó: Buscai-me em<br />
vão!” Em segundo lugar, a fim <strong>de</strong> tornar o evangelho atrativo, e a fim <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spertar em nós o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecê-lo, ele extrai ainda outro argu-<br />
12 Essa alusão geralmente leva o leitor a pensar nas cavernas profundas e escuras, <strong>de</strong> cujo<br />
antro os oráculos pagãos apresentavam suas respostas.
Capítulo 2 • 97<br />
mento do <strong>de</strong>sígnio que Deus tinha em vista conce<strong>de</strong>r-nos: para nossa<br />
glória. Nesta expressão ele também parece extrair uma comparação<br />
entre nós e os pais, a quem nosso Pai celestial não consi<strong>de</strong>rou dignos<br />
<strong>de</strong> tal honra, a qual ele reservou para a vinda <strong>de</strong> seu Filho. 13<br />
8. A qual nenhum dos soberanos <strong>de</strong>ste mundo conheceu. Se o<br />
leitor acrescentar: “por seu próprio discernimento”, a afirmação não<br />
seria mais aplicada a eles do que aos homens em geral, e às próprias<br />
pessoas mais humil<strong>de</strong>s; pois qual <strong>de</strong> todos nós, do mais ao menos importante,<br />
alcança tais obtenções? Naturalmente po<strong>de</strong>mos, talvez, dizer<br />
que os soberanos <strong>de</strong>vem ser censurados por cegueira e ignorância,<br />
mais do que outros, pela seguinte razão: que quando falam parecem<br />
ser perspicazes e sábios. Contudo prefiro enten<strong>de</strong>r a expressão <strong>de</strong> forma<br />
mais simples, seguindo o uso freqüente da Escritura que costuma<br />
falar em termos da universalida<strong>de</strong> daquelas coisas que acontecem επι<br />
το πολυ, isto é, [acontecem] comumente, e também para usar uma afirmação<br />
negativa em termos <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong> quanto àquelas coisas<br />
que só acontecem ἐπι ἔλαττον, isto é, [acontecem] mui raramente. Neste<br />
sentido, nada houve <strong>de</strong> inconsistente nessa afirmação, ainda que<br />
houvesse achado poucos homens <strong>de</strong> distinção e elevados acima dos<br />
<strong>de</strong>mais em dignida<strong>de</strong>, os quais era, ao mesmo tempo, dotados com o<br />
puro conhecimento <strong>de</strong> Deus.<br />
Porque, se tivessem conhecido. A sabedoria <strong>de</strong> Deus resplan<strong>de</strong>ceu<br />
visivelmente em Cristo, e no entanto os príncipes não a perceberam<br />
ali. Na crucificação <strong>de</strong> Cristo, a direção foi assumida, por um lado,<br />
pelos lí<strong>de</strong>res dos ju<strong>de</strong>us, cuja reputação em justiça e sabedoria era<br />
excelente; e, por outro, por Pilatos e pelo império romano. Este é um<br />
claro exemplo da extrema cegueira <strong>de</strong> todos os que só são sábios segundo<br />
os padrões humanos. Entretanto, este argumento do apóstolo<br />
13 Locke, em concordância com o conceito <strong>de</strong> Calvino, enten<strong>de</strong> Paulo como se ele dissesse:<br />
“Por que provocais divisões, vos vangloriando em vossos eminentes mestres? A glória<br />
que Deus or<strong>de</strong>nou a nós mestres e professores cristãos é para que sejamos expositores,<br />
pregadores e crentes daquelas verda<strong>de</strong>s e propósitos divinos revelados, os quais, ainda<br />
que estejam contidos nas Escrituras Sagradas do Velho Testamento, não eram entendidos<br />
nas eras anteriores.”
98 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
po<strong>de</strong> parecer frágil. “Ora, não vemos todos os dias pessoas que não<br />
estão familiarizadas com a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, contudo se lhe opõem<br />
com <strong>de</strong>liberada malícia? Mesmo quando essa rebelião franca não fosse<br />
percebida por nossos olhos, que outro é o pecado contra o Espírito<br />
Santo senão a espontânea obstinação contra Deus, quando uma pessoa,<br />
consciente e voluntariamente, não só age contra sua Palavra, mas<br />
também levanta os braços contra ele? Eis a razão por que Cristo testifica<br />
que os fariseus e seus associados o conheciam [cf. Jo 7.28], quando<br />
ele os <strong>de</strong>spoja do pretexto <strong>de</strong> ignorância, e os acusa <strong>de</strong> cruel impieda<strong>de</strong><br />
em persegui-lo, o fiel Servo do Pai, sobre nenhuma outra base a não<br />
ser seu ódio contra a verda<strong>de</strong>.”<br />
Minha resposta é que existe dois gêneros <strong>de</strong> ignorância. Um <strong>de</strong>les<br />
tem por origem o zelo irrefletido, não rejeitando expressamente o bem,<br />
mas, ao contrário, pensa que ele é mau. Embora ninguém peque por<br />
ignorância ao ponto <strong>de</strong> não ser acusado <strong>de</strong> má consciência aos olhos<br />
<strong>de</strong> Deus, há sempre uma mistura, ou <strong>de</strong> hipocrisia, ou <strong>de</strong> orgulho, ou<br />
<strong>de</strong> escárnio; contudo, às vezes o juízo e todo o entendimento são tão<br />
reprimidos na mente <strong>de</strong> uma pessoa que nada é evi<strong>de</strong>nte a não ser a<br />
clara ignorância, não só aos olhos dos outros, mas também a seus próprios<br />
olhos. Paulo era assim antes <strong>de</strong> ser iluminado. O motivo <strong>de</strong> seu<br />
ódio a Cristo, e sua hostilida<strong>de</strong> a sua doutrina, era que, por ignorância,<br />
ele se viu <strong>de</strong>vorado por um perverso zelo pela lei. 14 Naturalmente que<br />
ele não era isento <strong>de</strong> hipocrisia, nem inocente <strong>de</strong> orgulho, <strong>de</strong> modo<br />
que fosse justificado aos olhos <strong>de</strong> Deus, mas aqueles vícios estavam<br />
tão completamente sepultados pela ignorância e cegueira, que ele nem<br />
mesmo os notava nem os sentia.<br />
O outro gênero <strong>de</strong> ignorância é mais danoso e perigoso do que<br />
uma mera ignorância. Pois aqueles que voluntariamente se levantam<br />
contra Deus são, por assim dizer, frenéticos, porquanto vêem e<br />
ao mesmo tempo não vêem [Mt 13.13]. Na verda<strong>de</strong>, a conclusão geral<br />
<strong>de</strong>ve ser que a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> é sempre cega. Mas o que importa é o<br />
14 “Vne zele <strong>de</strong> la loy <strong>de</strong>sordonné et mal reglé.” – “Um <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado e <strong>de</strong>sequilibrado zelo<br />
pela lei.”
Capítulo 2 • 99<br />
seguinte: às vezes a cegueira subscreve a malícia, <strong>de</strong> modo que uma<br />
pessoa não tenha qualquer consciência <strong>de</strong> seu próprio mal, como se<br />
ela fosse completamente insensível. Esta é a posição daqueles que se<br />
enganam com uma boa intenção, como a chamam, o que é <strong>de</strong> fato fútil<br />
fantasia. Em alguns casos a malícia tem uma tal ascendência que,<br />
a <strong>de</strong>speito das restrições da consciência, uma pessoa se arroja em<br />
direção à impieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse tipo assemelhando-se a <strong>de</strong>mência. 15 Portanto,<br />
não surpreen<strong>de</strong> que Paulo <strong>de</strong>clare que os príncipes <strong>de</strong>ste mundo<br />
não teriam crucificado a Cristo, se porventura tivessem conhecido a<br />
sabedoria <strong>de</strong> Deus. Porque os fariseus e escribas não sabiam que a<br />
doutrina <strong>de</strong> Cristo era verda<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> modo que vagueavam, como homens<br />
entorpecidos, em meio a suas próprias trevas.<br />
9. Mas como está escrito: O que olhos não viram etc. Todos concordam<br />
que esta passagem é tomada <strong>de</strong> Isaías 64.3 (na LXX é 4); e visto<br />
que à primeira vista o significado é óbvio e fácil, os intérpretes não se<br />
dão muito ao trabalho <strong>de</strong> explicá-la. No entanto, ao atentar para ela<br />
mais <strong>de</strong> perto, duas diferenças bem sérias aí surgem. A primeira consiste<br />
em que as palavras, como usadas por Paulo, não concordam com<br />
as palavras do profeta. A segunda consiste em que Paulo parece estar<br />
operando em linhas diferentes das do profeta, e assim a <strong>de</strong>claração do<br />
profeta parece ter um propósito totalmente estranho a seu <strong>de</strong>sígnio.<br />
Então trataremos primeiramente das palavras. Uma vez que são<br />
ambíguas, os intérpretes explicam-nas <strong>de</strong> diferentes formas. Alguns as<br />
traduzem nesta forma: “Des<strong>de</strong> os primórdios do mundo os homens não<br />
têm ouvido nem percebido com os ouvidos, e nenhum olho tem visto<br />
Deus além <strong>de</strong> ti, que age [faciat] <strong>de</strong> tal maneira em favor daquele que<br />
espera nele.” Outros interpretam as palavras como direcionadas para<br />
Deus, como segue: “Olhos não viram, nem ouvidos ouviram além <strong>de</strong> ti, ó<br />
Deus, as coisas que fizeste por aqueles que esperam em ti.” Literalmente,<br />
contudo, a intenção do profeta é esta: “Des<strong>de</strong> o princípio do mundo<br />
15 A distinção traçada por Calvino é ilustrada por uma afirmação <strong>de</strong> Salomão em Provérbios<br />
21.27: “O sacrifício do perverso é abominação; quanto mais quando ele a associa com<br />
uma mente perversa.” hmzb – “com um <strong>de</strong>sígnio perverso.”
100 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
os homens não têm houvido, nem têm percebido com os ouvidos, não<br />
têm visto <strong>de</strong>us [ou ó Deus] além <strong>de</strong> ti, que fará [ou preparará] para<br />
aquele que espera nele.” Se lermos yhla [Deus] no acusativo [Deum], o<br />
relativo que [qui] terá <strong>de</strong> ser aplicado. Em primeira instância, esta exposição<br />
parece a<strong>de</strong>quar-se melhor ao contexto do profeta, porque o verbo<br />
que segue está na terceira pessoa, 16 porém ele vai além da intenção <strong>de</strong><br />
Paulo, e que <strong>de</strong>ve levar mais peso em relação a nós do que outras razões.<br />
Pois quem melhor que o Espírito <strong>de</strong> Deus será um infalível e fiel<br />
intérprete <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>claração profética, a qual ele mesmo ditou a Isaías,<br />
visto que era ele quem o explicava pelos lábios <strong>de</strong> Paulo? Não obstante,<br />
a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos resistir as acusações dos ímpios, <strong>de</strong>claro que a natureza<br />
da construção hebraica permite este como o genuíno significado<br />
do profeta: “Ó Deus, nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, mas tu<br />
somente sabes as coisas que tens costume <strong>de</strong> fazer por aqueles que<br />
esperam em ti.” A mudança súbita <strong>de</strong> pessoa não traz dificulda<strong>de</strong>s. Sabemos<br />
ser tão comum nos escritos dos profetas, que nem precisamos<br />
ser <strong>de</strong>tidos aqui. Se a primeira interpretação agrada mais a alguns, eles<br />
não estarão em posição <strong>de</strong> nos culpar ou culpar o apóstolo <strong>de</strong> partir do<br />
simples significado das palavras, pois completamos menos do que eles<br />
fazem, porque serão forçados a adicionar um termo <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong> ao<br />
verbo agir (formando a frase: “que ages <strong>de</strong> tal maneira”).<br />
Ainda que o profeta não inclua o que segue sobre “a entrada daquelas<br />
coisas no coração humano”, a frase não imprime uma nota distinta<br />
da outra frase “além <strong>de</strong> ti”. Pois ao atribuir este conhecimento só a Deus,<br />
ele exclui <strong>de</strong>le [conhecimento] não só os sentidos físicos do homem,<br />
mas também a habilida<strong>de</strong> da mente. Portanto, embora o profeta faça<br />
diferença só à visão e à audição, ao mesmo tempo ele implicitamente<br />
inclui todas as faculda<strong>de</strong>s da mente. Por certo que aquelas são as duas<br />
membranas por meio das quais obtemos conhecimento daquelas coisas<br />
que alcançam o entendimento. Ao usar a frase “aqueles que o amam”,<br />
Paulo está seguindo os intérpretes gregos, que a traduziram assim,<br />
16 “Assauoir, Fera, ou Preparera.” – “Isto é – Ele fará, ou Ele preparará.”
Capítulo 2 • 101<br />
porém se equivocaram por causa da similarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma carta para a<br />
outra; 17 mas como isso não faz nenhuma diferença para o ponto <strong>de</strong>ste<br />
versículo, ele não quis partir da tradução comum, porque paulatinamente<br />
vemos o quanto ele dá forma ao texto aceito. Portanto, ainda que<br />
as palavras não sejam as mesmas, não há real diferença <strong>de</strong> significado.<br />
Passo agora à abordagem do tema. Nesta passagem, o profeta<br />
recorda quão maravilhosamente Deus veio ao encontro <strong>de</strong> seu povo<br />
para assisti-lo nos momentos <strong>de</strong> profundas necessida<strong>de</strong>s, e exclama<br />
que o favor divino em prol dos piedosos exce<strong>de</strong> à compreensão da<br />
mente humana. Mas alguém po<strong>de</strong>ria dizer: “O que isso tem a ver com<br />
o ensino espiritual e com as promessas <strong>de</strong> vida eterna, os quais Paulo<br />
está discutindo aqui?” Há três maneiras como essa pergunta po<strong>de</strong> ser<br />
respondida. Não estará fora <strong>de</strong> propósito dizer que o profeta, tendo<br />
mencionado os benefícios terrenos, foi arrebatado pela reflexão <strong>de</strong>stes<br />
para uma afirmação geral, e naturalmente para gloriar-se na bem-<br />
-aventurança espiritual, a qual está reservada no céu para os crentes.<br />
Prefiro, não obstante, entendê-lo simplesmente como fazendo referência<br />
aos dons da graça <strong>de</strong> Deus, os quais são diariamente conferidos<br />
aos crentes. Ao tratarmos <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>vemos sempre observar sua fonte,<br />
não limitando nossa visão a seus aspectos presentes. Ora, sua fonte é<br />
o gracioso beneplácito <strong>de</strong> Deus, por meio do qual ele nos adotou no<br />
número <strong>de</strong> seus filhos. A pessoa, pois, que <strong>de</strong>seja avaliar essas coisa<br />
corretamente, não as contemplará em seu aspecto <strong>de</strong>spido, porém as<br />
vestirá com o amor paternal <strong>de</strong> Deus como se fosse um vestuário, e<br />
assim tal pessoa será conduzida dos dons temporais para a vida eterna.<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer também que este é um argumento do menor para o<br />
maior. Pois se o intelecto humano não po<strong>de</strong> chegar à medida dos dons<br />
terrenais <strong>de</strong> Deus, muito menos atingirá ele as altitu<strong>de</strong>s celestiais [Jo<br />
3.12]. Entretanto, já <strong>de</strong>i a enten<strong>de</strong>r que interpretação prefiro.<br />
17 A palavra usada por Isaías é hkjm, que é uma parte do verbo hkj, aguardar, e a intenção <strong>de</strong><br />
Calvino mais provavelmente é que os “intérpretes gregos” foram (<strong>de</strong>vido à semelhança<br />
entre b e k) levados ao equívoco <strong>de</strong> concluir que ela era parte do verbo bbj, amar, enquanto<br />
a parte correspon<strong>de</strong>nte do último verbo, bbwjm, claramente difere muito da palavra<br />
usada pelo profeta.
102 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
10. Deus, porém, no-las revelou pelo<br />
Espírito; pois o Espírito perscruta<br />
todas as coisas, sim, as coisas profundas<br />
<strong>de</strong> Deus.<br />
11. Pois qual dos homens sabe as coisas<br />
do homem, senão o espírito<br />
do homem que nele está? Assim<br />
também ninguém sabe as coisas <strong>de</strong><br />
Deus, senão o Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />
12. Ora, nós recebemos, não o espírito<br />
do mundo, e, sim, o Espírito que<br />
vem <strong>de</strong> Deus; para que pudéssemos<br />
conhecer as coisas que nos são dadas<br />
gratuitamente por Deus.<br />
13. Coisas essas das quais também<br />
falamos, não em palavras que a sabedoria<br />
humana ensina, mas que o<br />
Espírito Santo ensina, comparando<br />
coisas espirituais com espirituais.<br />
10. Nobis autem Deus revelavit per<br />
Spiritum suum: Spiritus enim omnia<br />
scrutatur, etiam profundditates<br />
Dei.<br />
11. Quis enim hominum novit, quæ<br />
ad eum pertinent, nisi spiritus hominis,<br />
qui est in ipso? Ita et quæ<br />
Dei sunt, nemo novit, nisi Spiritus<br />
Dei.<br />
12. Nos autem non spiritum mundi<br />
accepimus, sed Spiritum qui est ex<br />
Deo: ut sciamus quæ a Christo donata<br />
sunt nobis:<br />
13. Quæ et loquimur, non in eruditis<br />
humanæ sapientiæ sermonibus,<br />
sed Spiritus sancti, spiritualibus<br />
spiritualia coaptantes.<br />
10. Deus, porém, no-las revelou. Tendo concluído que todos os<br />
homens são cegos, e tendo <strong>de</strong>spojado o intelecto humano do po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> obter o conhecimento <strong>de</strong> Deus, Paulo agora mostra como os fiéis<br />
são isentados <strong>de</strong>sta cegueira, a saber, honrando-os o Senhor com a<br />
iluminação especial do Espírito. Portanto, quanto mais obtuso é o intelecto<br />
humano para compreen<strong>de</strong>r os mistérios <strong>de</strong> Deus, e quanto mais<br />
profunda é a incerteza sob a qual labora, tanto mais segura é nossa fé,<br />
a qual tem seu apoio na revelação do Espírito <strong>de</strong> Deus. Nisso reconhecemos<br />
a infinita bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus que faz com que nossa imperfeição<br />
contribua para nosso benefício.<br />
Pois o Espírito perscruta todas as coisas. Isso é acrescido para<br />
a consolação dos piedosos, para que <strong>de</strong>scansem com mais tranqüilida<strong>de</strong><br />
na revelação que eles possuem da parte do Espírito <strong>de</strong> Deus. É<br />
como se dissesse: “Que nos seja suficiente ter o Espírito <strong>de</strong> Deus como<br />
testemunha, pois nada existe em Deus tão profundo que ele não possa<br />
atingir.” Pois esse é o sentido que perscrutar tem aqui. Pela expressão,
Capítulo 2 • 103<br />
“as coisas profundas”, <strong>de</strong>ve-se enten<strong>de</strong>r não pensamentos secretos, os<br />
quais não nos é permitido investigar, mas toda a doutrina da salvação,<br />
a qual as Escrituras teriam posto diante <strong>de</strong> nós sem qualquer objetivida<strong>de</strong>,<br />
se Deus, por intermédio <strong>de</strong> seu Espírito, não conduzisse nossas<br />
mentes a ela.<br />
11. Pois qual dos homens sabe? Paulo preten<strong>de</strong> ensinar duas<br />
coisas aqui: Primeiramente, que a doutrina do evangelho só po<strong>de</strong> ser<br />
assimilada pelo testemunho do Espírito Santo; e, segundo, que aqueles<br />
que possuem um testemunho <strong>de</strong> tal natureza, provindo do Espírito<br />
Santo, também possuem uma certeza tão sólida e firme, como se pu<strong>de</strong>ssem<br />
realmente tocar com suas próprias mãos o que crêem, pois o<br />
Espírito é uma testemunha fiel e confiável. Isso ele prova pela similitu<strong>de</strong><br />
[similitudine] extraída <strong>de</strong> nosso próprio espírito. Pois cada um <strong>de</strong><br />
nós é cônscio <strong>de</strong> seus próprios pensamentos; e, em contrapartida, o<br />
que vai escondido no coração humano é <strong>de</strong>sconhecido a outros. Semelhantemente,<br />
o conselho e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus são <strong>de</strong> tal natureza que<br />
se acham ocultos <strong>de</strong> todos os homens; pois “quem foi seu conselheiro?”<br />
[Rm 11.34]. Portanto, ele [coração <strong>de</strong> Deus] é um recesso secreto<br />
e inacessível a todo o gênero humano. Mas, se o próprio Espírito <strong>de</strong><br />
Deus nos introduzir a ele, ou, em outros termos, nos fizer mais familiarizados<br />
com aquelas coisas que são, por outro lado, ocultas <strong>de</strong> nossa<br />
percepção, então não <strong>de</strong>ve haver motivo para hesitação, porquanto<br />
não existe nada em Deus que escape à observação <strong>de</strong> seu Espírito.<br />
Entretanto, esta similitu<strong>de</strong> não aparenta ser totalmente apropriada.<br />
Porque, visto que falar é uma ativida<strong>de</strong> caracteristicamente<br />
mental, o ser humano comunica suas disposições uns aos outros para<br />
que se tornem familiarizados, cada um com o pensamento do outro.<br />
Por que, pois, não po<strong>de</strong>ríamos assimilar na Palavra <strong>de</strong> Deus qual é sua<br />
vonta<strong>de</strong>? Pois embora o gênero humano, por pretensão e falsida<strong>de</strong>,<br />
às vezes obscureçam, em vez <strong>de</strong> revelarem, seu real estado mental,<br />
o mesmo não se dá com Deus, cuja Palavra é a verda<strong>de</strong> absoluta e<br />
sua genuína e viva imagem. Não obstante, <strong>de</strong>vemos observar cuidadosamente<br />
até que ponto Paulo pretendia esten<strong>de</strong>r esta similitu<strong>de</strong>. O
104 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
pensamento mais íntimo <strong>de</strong> uma pessoa, acerca do qual ninguém nada<br />
sabe, só é percebido por ela mesma. Se <strong>de</strong>pois ela o revela a outrem,<br />
tal coisa não altera o fato <strong>de</strong> que seu espírito só conhece o que está<br />
em seu íntimo. Pois é possível que tal pessoa não use uma linguagem<br />
persuasiva; é possível ainda que ela não expresse convenientemente<br />
a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua intenção. Se ela, contudo, alcança ambos os objetivos,<br />
esta afirmação não entra em conflito com a outra, a saber: que<br />
exclusivamente seu próprio espírito é que mantém o verda<strong>de</strong>iro conhecimento<br />
<strong>de</strong>la. Existe, entretanto, esta importante diferença entre<br />
os pensamentos <strong>de</strong> Deus e os dos homens: <strong>de</strong> um lado, os homens se<br />
enten<strong>de</strong>m reciprocamente; do outro, a Palavra <strong>de</strong> Deus é uma espécie<br />
<strong>de</strong> sabedoria oculta, a cuja altitu<strong>de</strong> o frágil intelecto humano não po<strong>de</strong><br />
alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas [Jo 1.5], até que o Espírito abra<br />
os olhos do cego.<br />
O espírito do homem. Note-se que aqui o espírito <strong>de</strong> uma pessoa<br />
significa a alma [anima] na qual resi<strong>de</strong> a faculda<strong>de</strong> intelectual, como<br />
é chamada. Porquanto Paulo se teria expresso <strong>de</strong> forma imprecisa se<br />
tivesse atribuído esse conhecimento ao intelecto humano, ou, em outros<br />
termos, á própria faculda<strong>de</strong>, e não à alma, a qual é dotada o po<strong>de</strong>r<br />
do discernimento.<br />
12. Ora, nós temos recebido, não o espírito do mundo. Ele intensifica,<br />
à guisa <strong>de</strong> contraste, aquela certeza <strong>de</strong> que fizera menção.<br />
Diz ele: “O Espírito <strong>de</strong> revelação que recebemos não é proveniente do<br />
mundo, ao ponto <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir ao pó e converter-se em tema <strong>de</strong> futilida<strong>de</strong>;<br />
ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar-nos em suspenso; ou a enfrentar variação ou<br />
flutuação; ou a <strong>de</strong>ixar-nos em incerteza e perplexida<strong>de</strong>. Ao contrário,<br />
ele tem sua origem em Deus; e daí, paira acima <strong>de</strong> todas as nuvens; ele<br />
é a verda<strong>de</strong> sólida e invariável, e está posto acima <strong>de</strong> toda e qualquer<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dúvida.”<br />
Esta é uma passagem muitíssimo clara para refutar o princípio<br />
diabólico dos sofistas <strong>de</strong> que os crentes vivem num contínuo estado<br />
<strong>de</strong> hesitação. Porque seu intuito é suscitar dúvidas na mente dos crentes,<br />
se <strong>de</strong> fato vivem ou não na graça <strong>de</strong> Deus; e não admitem nenhuma
Capítulo 2 • 105<br />
certeza da salvação, porém <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da aprovação moral ou <strong>de</strong> conjetura<br />
provável. Não obstante, ao agirem assim eles <strong>de</strong>stroem a fé <strong>de</strong><br />
duas maneiras: Em primeiro lugar, seu intuito é que nutramos dúvida<br />
se <strong>de</strong> fato estamos em estado <strong>de</strong> graça; em seguida, sugerem uma segunda<br />
ocasião a dúvidas – a incerteza quanto à perseverança final. 18<br />
Aqui, porém, o apóstolo <strong>de</strong>clara, em termos gerais, que o Espírito foi<br />
dado aos eleitos, por cujo testemunho lhes é assegurado que foram<br />
adotados para a esperança da salvação eterna. Indubitavelmente, se<br />
os sofistas mantivessem sua doutrina, necessariamente privariam os<br />
eleitos do Espírito Santo e fariam o próprio Espírito também sujeito à<br />
incerteza. Ambos estes pontos estão em franco conflito com a doutrina<br />
<strong>de</strong> Paulo. Daí po<strong>de</strong>rmos saber ser esta a natureza da fé, a saber: que<br />
a consciência tem, pela operação do Espírito Santo, uma testemunha<br />
infalível do beneplácito <strong>de</strong> Deus para com ela, e, apoiando-se neste<br />
fato, confiadamente invoca a Deus na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pai. É assim que<br />
Paulo eleva nossa fé acima <strong>de</strong>ste mundo, para que ela contemple com<br />
majestoso <strong>de</strong>sdém toda a soberba carnal. Porque, do contrário, ela<br />
será sempre tímida e vacilante, porque vemos quão audaciosamente<br />
a engenhosida<strong>de</strong> humana se exalta; e os filhos <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>vem pisar<br />
com a planta <strong>de</strong> seus pés este orgulho, através <strong>de</strong> um gênero oposto<br />
<strong>de</strong> altivez: a heróica magnanimida<strong>de</strong>. 19<br />
Para que pudéssemos conhecer as coisas que foram dadas por<br />
Cristo. A palavra conhecer é usada a fim <strong>de</strong> externar mais plenamente<br />
a convicção da confiança. Não obstante, notemos bem que a mesma<br />
não é obtida por vias naturais, nem é assimilada por nossa capacida<strong>de</strong><br />
mental <strong>de</strong> compreensão, senão que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> completamente da revelação<br />
do Espírito. As coisas <strong>de</strong> que ele faz menção como dadas por<br />
Cristo são as bênçãos que granjeamos através <strong>de</strong> sua morte e ressurreição<br />
– que sendo conciliados com Deus, e tendo obtido a remissão<br />
<strong>de</strong> pecados, sabemos que já fomos adotados para a esperança da vida<br />
18 O leitor encontrará este tema tratado numa forma mais extensa nas Institutas, vol. ii., p. 143.<br />
19 “Fondée en vne magnanimité heroique.” – “Fundamentada em uma heróica magnanimida<strong>de</strong>.”
106 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
eterna, e que, sendo santificados pelo Espírito <strong>de</strong> regeneração, fomos<br />
feitos novas criaturas a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos viver para Deus. Paulo diz em<br />
Efésios 1.18 o equivalente à mesma coisa: “Para que saibais qual seja a<br />
esperança <strong>de</strong> sua vocação.”<br />
13. Coisas essas das quais falamos, não em palavras ensinadas<br />
pela sabedoria humana, mas pelo Espírito Santo. Paulo está fazendo<br />
referência a si próprio, pois está ainda empenhado em enaltecer<br />
seu ministério. Ora, é um notável tributo que ele presta a sua própria<br />
pregação quando diz que ela contém a revelação do segredo<br />
<strong>de</strong> questões muitíssimo importantes: a doutrina do Espírito Santo;<br />
a plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa salvação; e os inestimáveis tesouros <strong>de</strong> Cristo.<br />
Ele age assim para que os coríntios soubessem quão sublimemente<br />
ela <strong>de</strong>ve ser valorizada. Nesse ínterim, ele volta à concessão que<br />
previamente fizera, ou, seja, que sua pregação não havia sido adornada<br />
com qualquer esplendor <strong>de</strong> palavras; que ela não possuía um<br />
estilo elegante; senão que ela simplesmente continha a doutrina do<br />
Espírito Santo.<br />
Pela expressão, ensinadas pela sabedoria humana, ele quer dizer<br />
aquelas palavras que contêm sabor <strong>de</strong> erudição humana e são polidas<br />
segundo as regras dos retóricos; ou bafejadas com imponência<br />
filosófica, com vistas a excitar a admiração dos ouvintes. Mas as palavras<br />
“ensinadas pelo Espírito” se amoldam a um estilo repassado <strong>de</strong><br />
sincerida<strong>de</strong> e simplicida<strong>de</strong>, ao contrário <strong>de</strong> fútil e ostentoso, e que<br />
correspon<strong>de</strong>m à dignida<strong>de</strong> do Espírito. Porque, para que a eloqüência<br />
esteja presente, <strong>de</strong>vemos cuidar sempre a fim <strong>de</strong> impedir que a<br />
sabedoria <strong>de</strong> Deus venha sofrer <strong>de</strong>gradação por uma excelência emprestada<br />
e profana. Mas o método <strong>de</strong> ensino adotado por Paulo era <strong>de</strong><br />
um gênero tal que o po<strong>de</strong>r do Espírito resplan<strong>de</strong>cia nele <strong>de</strong> uma forma<br />
singular e <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> atavios humanos, sem qualquer assistência<br />
estranha.<br />
Coisas espirituais com espirituais. Συγκρινεσθαι é usada aqui, não<br />
tenho a menor dúvida, no sentido <strong>de</strong> adaptar [aptare]. Este é às vezes<br />
o significado da palavra (segundo uma citação <strong>de</strong> Aristóteles feita por
Capítulo 2 • 107<br />
Budæus), e daí συγκριμα é também usada para o que é entrelaçado<br />
ou colado junto, e certamente se a<strong>de</strong>qua bem melhor ao contexto <strong>de</strong><br />
Paulo do que comparar ou equiparar, como alguns a têm traduzido.<br />
Ele, pois, diz que adapta coisas espirituais com espirituais, ao acomodar<br />
as palavras ao tema. Em outros termos, ele tempera aquela<br />
sabedoria celestial do Espírito com um estilo <strong>de</strong> linguagem simples, e<br />
<strong>de</strong> uma natureza tal ao ponto <strong>de</strong> levar em sua dianteira a energia natural<br />
do próprio Espírito. Nesse ínterim, ele reprova outros que, com<br />
afetada elegância <strong>de</strong> expressão, e <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> refinamento, se<br />
empenhavam pela obtenção dos aplausos dos homens, como pessoas<br />
completamente carentes que são ou <strong>de</strong>stituídas da sólida verda<strong>de</strong> ou,<br />
por meio <strong>de</strong> ornamentos inconvenientes, corrompem a doutrina espiritual<br />
<strong>de</strong> Deus.<br />
14. O homem natural, porém, não recebe<br />
as coisas do Espírito <strong>de</strong> Deus;<br />
porque lhe são loucura; nem po<strong>de</strong><br />
entendê-las, porque elas são discernidas<br />
espiritualmente.<br />
15. Aquele, porém, que é espiritual<br />
julga todas as coisas, contudo ele<br />
mesmo não é julgado por ninguém.<br />
16. Porque, quem conheceu a mente<br />
do Senhor, para que possa instruí-<br />
-lo? Nós, porém, temos a mente <strong>de</strong><br />
Cristo.<br />
14. Animalis autem homo non comprehendit<br />
quæ sunt Spiritus Dei.<br />
Sunt enim illi stultitia; nec potest<br />
intelligere, quia spiritualiter diiudicantur.<br />
15. Spiritualis autem diiudicat omnia,<br />
ipse vero a nemine [vel, nullo] diiudicatur.<br />
16. Quis enim cognovit mentem Domini,<br />
qui adjuvet ipsum? nos autem<br />
mentem Christi habemus.<br />
14. Ora, o homem natural. 20 Pela expressão, homem animal [animalis<br />
homo], Paulo não quer dizer, como comumente se preten<strong>de</strong>,<br />
uma pessoa escravizada a <strong>de</strong>sejos grosseiros, ou, como se diz, a sua<br />
própria sensualida<strong>de</strong>, mas alguém dotado meramente das faculda<strong>de</strong>s 21<br />
20 “Or l’homme naturel. A le traduire du Grec mot a mot, il y auroit l’homme animl.” – “Mas<br />
o homem natural. Traduzindo o grego literalmente, significa o homem animal.”<br />
21 “Les facultés et graces.” – “As faculda<strong>de</strong>s e dons.”
108 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
da natureza. 22 Isso é evi<strong>de</strong>nte à luz do termo correspon<strong>de</strong>nte, pois ele<br />
extrai uma comparação entre o homem animal e o espiritual. Uma vez<br />
que o espiritual <strong>de</strong>nota o homem cujo entendimento é regulado pela<br />
iluminação do Espírito <strong>de</strong> Deus, não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que o animal<br />
significa o homem que é <strong>de</strong>ixado, por assim dizer, simplesmente<br />
numa condição natural [in puris naturalibus]. Pois a alma 23 [anima]<br />
pertence à natureza, mas o Espírito vem <strong>de</strong> uma comunicação supernatural<br />
[ex dono supernaturali].<br />
Paulo traz a lume novamente o que mencionara levemente antes.<br />
Pois ele quer remover uma pedra <strong>de</strong> tropeço que po<strong>de</strong>ria frustrar o<br />
fraco, a saber, o fato <strong>de</strong> tantos estarem rejeitando o evangelho com<br />
<strong>de</strong>sdém. Ele mostra que não <strong>de</strong>vemos levar em conta o <strong>de</strong>sdém proveniente<br />
da ignorância, e por essa razão isso não <strong>de</strong>ve impedir-nos <strong>de</strong><br />
nos apressarmos no curso da fé; a menos que, eventualmente, <strong>de</strong>cidamos<br />
fechar nossos olhos ao esplendor do sol, sob a alegação <strong>de</strong> que os<br />
cegos não po<strong>de</strong>m vê-lo! Entretanto, <strong>de</strong>ve-se atribuir gran<strong>de</strong> ingratidão<br />
aos que rejeitam um favor especial <strong>de</strong> Deus, do qual são indignos, sob<br />
a alegação <strong>de</strong> que cada um <strong>de</strong>les não o tem, quando, ao contrário, sua<br />
própria rarida<strong>de</strong> põe em relevo seu valor. 24<br />
Porque lhe são loucura; e ele não po<strong>de</strong> entendê-las. Ele está<br />
dizendo o seguinte: “Todos aqueles cuja sabedoria se encontra num<br />
nível meramente humano, nunca experimentaram o sabor 25 do evangelho.<br />
Mas, como isso é assim? É proveniente da cegueira <strong>de</strong>les. Em<br />
que sentido, pois, isso po<strong>de</strong> prejudicar a majesta<strong>de</strong> do evangelho?<br />
Em suma, embora as pessoas ignorantes <strong>de</strong>preciem o evangelho só<br />
22 A <strong>de</strong>finição que Beza faz do termo é muito semelhante: “Homo non aliâ quam naturali<br />
animi luce præditus.” – “Um homem que não é dotado com nada mais do que a luz natural<br />
da mente.”<br />
23 A alma (anima) correspon<strong>de</strong> ao termo grego ψυχη e o termo hebraico pn, enquanto que<br />
spiritus (espírito) correspon<strong>de</strong> a πνευμα e jwr. Calvino, porém, emprega a <strong>de</strong>signação animalis<br />
(animal) como um <strong>de</strong>rivativo <strong>de</strong> anima (a alma), e como que <strong>de</strong>signando o homem<br />
cuja alma existe em um estado puramente natural – <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> iluminação supernatural.<br />
Em outros termos, o homem <strong>de</strong> mera mente.<br />
24 “D’autant qu’il est fait à peu <strong>de</strong> gens, dá autant doit-il estre trouué plus excellent.” –<br />
“Quanto menos é conferido, tanto mais se <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar valioso.”<br />
25 “Et n’auoir point <strong>de</strong> goust.” – “E é sem sabor.”
Capítulo 2 • 109<br />
porque, medindo seu valor pelo critério humano, Paulo extrai <strong>de</strong>ste<br />
fato um argumento em prol da mais sublime eminência <strong>de</strong> sua dignida<strong>de</strong>.<br />
Pois ele ensina que a razão por que ele [o evangelho] se <strong>de</strong>ve<br />
ao fato <strong>de</strong> o mesmo ser <strong>de</strong>sconhecido do homem, e que também<br />
é <strong>de</strong>sconhecido em razão <strong>de</strong> ser, ao mesmo tempo, tão profundo<br />
e elevado <strong>de</strong>mais para ser assimilado pela mente humana. Quão<br />
superior é esta sabedoria, 26 que transcen<strong>de</strong> infinitamente a todo o<br />
conhecimento humano, que o homem não po<strong>de</strong> ter sequer o mais<br />
leve sabor <strong>de</strong>la! 27 Mas ainda que aqui ele esteja tacitamente responsabilizando<br />
o orgulho humano pelo fato <strong>de</strong> os homens preten<strong>de</strong>rem<br />
con<strong>de</strong>nar como loucura o que eles não enten<strong>de</strong>m, ao mesmo tempo,<br />
contudo, ele mostra quão profunda é a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>, ou, melhor, a<br />
obtusida<strong>de</strong> da mente humana, ao afirmar ser ela incapaz <strong>de</strong> [inerentemente]<br />
possuir discernimento espiritual. Porquanto ele ensina<br />
que o homem, por si só, não po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r as coisas do Espírito,<br />
não só <strong>de</strong>vido ao orgulho obstinado da vonta<strong>de</strong> humana, mas também<br />
em <strong>de</strong>corrência da impotência <strong>de</strong> sua mente. Ele não teria dito<br />
nada além da verda<strong>de</strong>, caso afirmasse que os homens não <strong>de</strong>sejam<br />
ser sábios, porém avança um pouco mais dizendo que os homens<br />
nem mesmo têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> o ser. Daí concluirmos que a fé não provém<br />
das próprias faculda<strong>de</strong>s humanas, senão que ela é divinamente<br />
conferida.<br />
Porque elas se discernem espiritualmente. Ou, seja, o Espírito<br />
<strong>de</strong> Deus, 28 <strong>de</strong> quem emana a doutrina do evangelho, é o único<br />
e genuíno intérprete para no-la tornar acessível. Segue-se que, no<br />
transcorrer <strong>de</strong> [o processo <strong>de</strong>] julgá-la, as mentes humanas necessariamente<br />
permanecem cegas até que sejam iluminadas pelo<br />
Espírito <strong>de</strong> Deus. Do contrário o argumento seria inconclusivo. É<br />
verda<strong>de</strong> que provém do Espírito <strong>de</strong> Deus que possuímos aquela<br />
26 “O quelle sagesse!” – “Oh, que sabedoria!”<br />
27 “Vn petit goust.” – “Um leve sabor.”<br />
28 O leitor encontrará a afirmação do apóstolo a respeito do “homem natural” comentada<br />
em certa extensão nas Institutas.”
110 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
débil fagulha <strong>de</strong> razão <strong>de</strong> que todos <strong>de</strong>sfrutamos; mas aqui estamos<br />
falando daquela <strong>de</strong>scoberta especial da sabedoria celestial<br />
que só Deus outorga a seus filhos. Por essa causa não existe a<br />
menor base para se tolerar a ignorância daqueles que pensam ser<br />
o evangelho universalmente oferecido à humanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal sorte<br />
que todos indiscriminadamente estão livres 29 para apropriar-se da<br />
salvação pela fé.<br />
15. Mas o homem espiritual julga todas as coisas. Havendo <strong>de</strong>spido<br />
o juízo carnal do homem <strong>de</strong> toda autorida<strong>de</strong>, ele agora ensina<br />
que só os espirituais são juízes qualificados nesta matéria; visto que<br />
somente o Espírito conhece a Deus, e é sua função pessoal fazer distinção<br />
entre suas próprias coisas e as das <strong>de</strong>mais criaturas, para aprovar<br />
o que é propriamente seu e anular todas as <strong>de</strong>mais coisas. Portanto,<br />
o significado é o seguinte: “Nesta conexão, não existe lugar para o discernimento<br />
da carne! É tão-somente o homem espiritual que possui o<br />
conhecimento, firme e sólido, dos mistérios <strong>de</strong> Deus; é ele que <strong>de</strong> fato<br />
distingue entre verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong>; a doutrina <strong>de</strong> Deus das invenções<br />
humanas; <strong>de</strong> modo a não cair em equívocos.” 30 Em contrapartida,<br />
“ninguém o julga”, porque a certeza <strong>de</strong> fé não se acha sob o controle<br />
humano, como se a seu bel-prazer 31 pu<strong>de</strong>sse ser reduzida a ruínas,<br />
quando <strong>de</strong> fato é ela superior aos próprios anjos. Note-se que esta<br />
prerrogativa é atribuída não ao homem como um indivíduo, mas à Palavra<br />
<strong>de</strong> Deus, a qual usa o espiritual como guia para julgar, e a qual,<br />
naturalmente, lhes é imposta por Deus, com verda<strong>de</strong>iro discernimento.<br />
On<strong>de</strong> isso é propiciado, a persuasão humana fica situada além da<br />
categoria do juízo humano.<br />
29 Calvino obviamente não quer com isso negar que “todos indiscriminadamente” sejam convidados<br />
e autorizados a “abraçar a salvação pela fé”. Ele diz na Harmonia, vol. iii, p. 109:<br />
“Porque, visto que por meio <strong>de</strong> sua palavra ele [Deus] chama a todos os homens indiscriminadamente<br />
à salvação, e visto que o propósito da pregação é para que todos recorram a sua<br />
guarda e proteção, po<strong>de</strong>-se com razão dizer que ele quer congregar a todos em torno <strong>de</strong> si.”<br />
Sua intenção é dizer que a vonta<strong>de</strong> tem que ser libertada pelo Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />
30 “En cest endroit.” – “Nesta matéria.”<br />
31 “Pour estre ou n’estre point selon qu’il leur plaira.” – “De modo a ser ou não <strong>de</strong> acordo<br />
com seu prazer.”
Capítulo 2 • 111<br />
Observe-se, além do mais, a palavra traduzida julgada, pela qual<br />
o apóstolo notifica que somos não meramente iluminados pelo Senhor<br />
para recebermos a verda<strong>de</strong>, mas que somos igualmente dotados com<br />
o espírito <strong>de</strong> discriminação a fim <strong>de</strong> não vivermos suspensos pela<br />
dúvida entre verda<strong>de</strong> e falsida<strong>de</strong>, mas para sermos capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar<br />
o que <strong>de</strong>vemos evitar e o que <strong>de</strong>vemos seguir.<br />
Neste ponto, porém, po<strong>de</strong>mos formular a seguinte pergunta:<br />
Quem é esse homem espiritual, e on<strong>de</strong> havemos <strong>de</strong> encontrá-lo munido<br />
<strong>de</strong> tanta luz que se torna capaz <strong>de</strong> a tudo julgar, quando estamos<br />
bem cientes do fato <strong>de</strong> estarmos envoltos por um gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong><br />
ignorância e sujeitos ao risco <strong>de</strong> cair em erros, e, o que é ainda mais<br />
sério, quando ainda o mais excelente <strong>de</strong>ntre os homens reiteradamente<br />
fracassa? A resposta é fácil: Paulo não esten<strong>de</strong> esta faculda<strong>de</strong><br />
a todos, <strong>de</strong> modo a representar a todos os que são renovados pelo<br />
Espírito <strong>de</strong> Deus como isentos <strong>de</strong> todo gênero <strong>de</strong> erro; mas simplesmente<br />
se propõe a ensinar que a sabedoria da carne é <strong>de</strong> nenhuma<br />
valia para julgar a doutrina da pieda<strong>de</strong>, e que a prerrogativa <strong>de</strong> juízo<br />
e autorida<strong>de</strong> pertence exclusivamente ao Espírito <strong>de</strong> Deus. Portanto,<br />
um homem só julga corretamente e com segurança <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser<br />
regenerado e segundo a medida da graça que lhe for conferida – e<br />
não mais que isso!<br />
Ele mesmo não é julgado por ninguém. Já expliquei sobre<br />
que base Paulo afirma que o homem espiritual não está sujeito<br />
ao julgamento <strong>de</strong> qualquer ser humano, a saber, porque a veracida<strong>de</strong><br />
da fé, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> exclusivamente <strong>de</strong> Deus, e se acha<br />
fundamentada em sua Palavra, não prevalece nem cai segundo o<br />
bel-prazer humano. 32 O que ele afirma <strong>de</strong>pois, que o espírito <strong>de</strong> um<br />
profeta está sujeito a outros profetas [1Co 14.32], <strong>de</strong> modo algum é<br />
inconsistente com essa <strong>de</strong>claração. Pois qual é o propósito <strong>de</strong>ssa<br />
sujeição senão para que cada um dos profetas ouça os <strong>de</strong>mais e<br />
32 “N’est point suiete au plaisir <strong>de</strong>s hommes, pour estre ou n’estre point, selon qu’ils voudront.”<br />
– “Não está sujeito à vonta<strong>de</strong> humana, <strong>de</strong> modo a obe<strong>de</strong>cer ou não segundo sua<br />
<strong>de</strong>cisão.”
112 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
não menospreze nem rejeite suas revelações, a fim <strong>de</strong> que, o que<br />
for <strong>de</strong>scoberto como sendo a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, 33 por fim permaneça<br />
firme e seja recebido por todos? Nesta passagem, contudo, ele<br />
põe a ciência da fé, que foi recebida da parte <strong>de</strong> Deus, 34 acima das<br />
excilsitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> céu e terra, para que ela não venha a ser avaliada<br />
pelo juízo humano.<br />
Ao mesmo tempo, ὕπ ̓ οὐδενός po<strong>de</strong> ser lido como do gênero neutro,<br />
a saber, “por nada”, <strong>de</strong> modo a ser entendido como uma referência<br />
a uma coisa e não a uma pessoa. Por esse prisma o contraste será mais<br />
completo, 35 sugerindo que o homem espiritual, até on<strong>de</strong> é ele dotado<br />
com o Espírito <strong>de</strong> Deus, julga todas as coisas, porém não é julgado por<br />
nada, porquanto não se acha sujeito a nenhuma sabedoria ou razão<br />
humana. E assim Paulo também isentaria a consciência dos piedosos<br />
<strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>cretos, leis e censuras dos homens.<br />
16. Pois quem conheceu...? É provável que Paulo estivesse olhando<br />
para o que lemos no capítulo 40 <strong>de</strong> Isaías. O profeta ali pergunta:<br />
“Quem foi o conselheiro <strong>de</strong> Deus? Quem pesou seu Espírito 36 [Is 40.13];<br />
ou o ajudou tanto na criação do mundo quanto em suas <strong>de</strong>mais obras?<br />
E, finalmente, quem tem compreendido a razão <strong>de</strong> suas obras?” Por<br />
esta mesma razão, Paulo <strong>de</strong>seja ensinar, pelo uso <strong>de</strong>sta pergunta,<br />
quão afastado da mente humana está seu conselho secreto que se<br />
acha contido no evangelho. Essa, pois, é a confirmação da afirmação<br />
prece<strong>de</strong>nte.<br />
Nós, porém, temos a mente <strong>de</strong> Cristo. Não está claro se ele fala<br />
dos crentes universalmente ou exclusivamente dos ministros. Ambos<br />
esses significados se a<strong>de</strong>quam suficientemente bem ao contexto, ainda<br />
que eu prefira vê-lo como uma referência mais particularmente a<br />
33 “La pure ferité du Seigneur.” “A verda<strong>de</strong> pura do Senhor.”<br />
34 “Mais yci il establit et conferme la science <strong>de</strong> foy, laquelle les eleus recoyuent <strong>de</strong> Dieu.” –<br />
“Aqui, porém, ele estabelece e confirma a ciência da fé, a qual os eleitos têm recebido <strong>de</strong><br />
Deus.”<br />
35 “Et expresse.” – “E exato.”<br />
36 A expressão usada por Isaías é: Quem dirigiu o Espírito do Senhor? Nosso autor, citando<br />
<strong>de</strong> memória, parece ter diante <strong>de</strong> seus olhos uma expressão que ocorre numa parte anterior<br />
da mesma passagem: “e pesados os montes em balanças.”
Capítulo 2 • 113<br />
ele próprio e a outros ministros fiéis. 37 Ele diz, pois, que os servos do<br />
Senhor são instruídos pela particular autorida<strong>de</strong> do Espírito, o que se<br />
acha <strong>de</strong>masiadamente distanciado da compreensão humana, a fim <strong>de</strong><br />
que falem <strong>de</strong>stemidamente, por assim dizer, [o que flui] da boca do<br />
Senhor. Posteriormente, esse dom se disseminará gradativamente por<br />
toda a Igreja.<br />
37 Calvino, ao aludir a esta passagem, como evi<strong>de</strong>ntemente faz em seu comentário aos<br />
Romanos [11.34], consi<strong>de</strong>ra a expressão, Temos a mente <strong>de</strong> Cristo, como aplicável aos<br />
crentes universalmente – “Nam et Paulus ipse alibi, postquam testatus ert omnia Dei mysteria<br />
ingenii nostri captum longe exce<strong>de</strong>re, mox tamen subjiicit, fi<strong>de</strong>les tenere mentem<br />
Domini: quia non spiritum hujus mundi acceperint, sed a Deo sibi datum, per quem <strong>de</strong> incomprehensibili<br />
alioqui ejus bonitate edocentur.” – “Pois ainda o próprio Paulo, em outro<br />
passo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> testificar que todos os mistérios <strong>de</strong> Deus muito exce<strong>de</strong>m a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> nossa compreensão, não obstante imediatamente acrescenta que os crentes estão <strong>de</strong><br />
posse da mente do Senhor, porque já receberam não o espírito <strong>de</strong>ste mundo, mas aquele<br />
que lhes foi dado por Deus, por meio do qual são instruídos quanto a sua incompreensível<br />
bonda<strong>de</strong>.”
Capítulo 3<br />
1. E eu, irmãos, não vos pu<strong>de</strong> falar<br />
como a espirituais, mas como a<br />
carnais, como a crianças em Cristo.<br />
2. Tenho vos alimentado com leite, e<br />
não com carne, porque até aqui não<br />
éreis capazes <strong>de</strong> suportar, nem ainda<br />
agora o sois.<br />
3. Porque ainda sois carnais; pois havendo<br />
entre vós inveja, contenda e<br />
divisões, porventura não sois carnais<br />
e não andais como os homens?<br />
4. Pois quando um diz: Eu sou <strong>de</strong> Paulo;<br />
e outro: Eu sou <strong>de</strong> Apolo; porventura,<br />
não sois carnais?<br />
1. Et ego, fratres, non potui vobis<br />
loqui tanquam spiritualibus, sed<br />
tanquam carnalibus, tanquam pueris<br />
in Christo. 1<br />
2. Lactis potu vos alui, non solido<br />
cibo. Nondum enim eratis capaces,<br />
ac ne nunc qui<strong>de</strong>m estis:<br />
3. Siqui<strong>de</strong>m estis adhuc carnales.<br />
Postquam enim sunt inter vos<br />
æmulatio et contentio, et factiones;<br />
nonne carnales estis, et secundum<br />
hominem ambulatis?<br />
4. Quum enim dicat unus, Ego sum<br />
Pauli: alter vero, Ego Apollo: nonne<br />
carnales estis?<br />
1. E eu, irmãos. Ele inicia aplicando aos próprios coríntios<br />
o que dissera sobre as pessoas carnais, <strong>de</strong> modo que pu<strong>de</strong>ssem<br />
compreen<strong>de</strong>r que a culpa era <strong>de</strong>les mesmos se a doutrina da<br />
cruz não mais exercia atração sobre eles. É provável também que<br />
muita autoconfiança e orgulho ainda restassem em suas mentes,<br />
<strong>de</strong> modo que não era sem consi<strong>de</strong>rável relutância e mui gran<strong>de</strong><br />
dificulda<strong>de</strong> que os impedia ainda <strong>de</strong> abraçar a simplicida<strong>de</strong> do<br />
evangelho. O resultado foi que negligenciaram o apóstolo e a divina<br />
eficácia <strong>de</strong> sua pregação, e passaram a prestar mais atenção<br />
aos mestres que provocavam ruído, porém eram <strong>de</strong>stituídos do<br />
1 “C’est à dire comme à enfans en Christ.” – “Isto é, como a bebês em Cristo.”
116 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Espírito. 2 Daí, a fim <strong>de</strong> restringir ao máximo sua insolência, ele<br />
lhes assevera que <strong>de</strong>viam ser contados entre aqueles que, havendo<br />
sido subjugados pelo senso da carne, não tinham a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> receber a sabedoria espiritual <strong>de</strong> Deus. Sem dúvida, ele amorteceu<br />
a aspereza <strong>de</strong> sua reprovação chamando-os <strong>de</strong> ‘irmãos’;<br />
porém, por mais que suavizasse a maneira franca <strong>de</strong> reprová-los,<br />
suas mentes estavam tão sufocadas pelas trevas da carne, que tal<br />
fato tornou-se um obstáculo à pura pregação entre eles. Como,<br />
pois, podia-se atribuir-lhes um juízo saudável, quando ainda não<br />
estavam dispostos e nem ainda preparados para ouvir? Paulo, porém,<br />
não preten<strong>de</strong> dizer que fossem completamente carnais, sem<br />
nem mesmo uma pequena fagulha do Espírito <strong>de</strong> Deus, mas que<br />
ainda se achavam tão saturados da mente carnal, que esta prevalecia<br />
contra o Espírito e, por assim dizer, extinguia sua luz. Ainda<br />
que não estivessem inteiramente sem a graça, todavia suas vidas<br />
possuíam muito mais da carne do que do Espírito, e esta é a razão<br />
por que os <strong>de</strong>nomina carnais. E isso é bastante claro à luz do<br />
que em seguida ele acrescenta, ou, seja, que os coríntios eram<br />
“criancinhas em Cristo” [pueros in Christo], pois não teriam sido<br />
criancinhas não tivessem eles sido gerados, e essa geração é proveniente<br />
do Espírito <strong>de</strong> Deus.<br />
Crianças em Cristo. Esta <strong>de</strong>scrição é às vezes usada num bom<br />
sentido, como, por exemplo, por Pedro, que nos roga para que sejamos<br />
como “crianças recém-nascidas” [1Pe 2.2]; e naquela afirmação<br />
<strong>de</strong> Cristo – “Quem não receber o reino <strong>de</strong> Deus como uma criança,<br />
<strong>de</strong> maneira alguma entrará nele” [Lc 18.17]. Entretanto, no presente<br />
caso, ele lhe atribui um sentido negativo, porque tem referência ao<br />
entendimento. Porquanto <strong>de</strong>vemos ser “crianças na malícia, mas não<br />
na mente” [Lc14.20]. Esta distinção aclara qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
haver aqui ambigüida<strong>de</strong>. Efésios 4.14 correspon<strong>de</strong> a isto: “Não sejamos<br />
meninos, levados por todo vento <strong>de</strong> doutrina, transformados<br />
2 “Combien qu’il n’y eust en eux aucune efficace <strong>de</strong> l’Esprit.” – “Ainda que não houvesse<br />
neles nenhuma eficácia do Espírito.”
Capítulo 3 • 117<br />
em joguete 3 das artimanhas dos homens; mas que cresçamos diariamente<br />
etc.”<br />
2. Tenho vos alimentado com leite. Neste ponto, alguém po<strong>de</strong>ria<br />
perguntar se Paulo transformou a Cristo para acomodar-se a pessoas<br />
diferentes. Minha resposta é que isso tem a ver mais com sua maneira<br />
ou método <strong>de</strong> ensinar do que com a substância do que ele ensinava.<br />
Porque o mesmo Cristo é leite para os nenês e alimento sólido para<br />
os adultos [Hb 5.13, 14]. A mesma verda<strong>de</strong> do evangelho é dirigida a<br />
ambos, mas <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um. Portanto,<br />
um mestre sábio tem a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acomodar-se à capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> compreensão daqueles a quem ele administra o ensino, <strong>de</strong> modo a<br />
iniciar com os primeiros princípios ou rudimentos quando instrui os<br />
fracos e ignorantes, não lhes dando algo que seja mais forte do que po<strong>de</strong>m<br />
ingerir [Mc 4.33]. Em suma, ele <strong>de</strong>ve instilar seu ensino pouco a<br />
pouco, pois comunicar uma porção <strong>de</strong>masiadamente forte resultaria<br />
apenas em perda. Pois, estes rudimentos <strong>de</strong>vem conter tudo quanto é<br />
necessário para o conhecimento, não menos do que a instrução mais<br />
completa administrada aos mais fortes. É bom ler, nesta conexão, a 98ª<br />
Homília sobre João, <strong>de</strong> Agostinho. Assim, fica provado ser falsa a forjada<br />
escusa <strong>de</strong> alguns que, por temerem o perigo, não fazem mais do que<br />
algumas referências gaguejantes e indistintas ao evangelho, e alegam<br />
que neste respeito Paulo é seu exemplo. Entrementes, eles apresentam<br />
um Cristo tão distante da realida<strong>de</strong>, e inclusive oculto por muitos véus,<br />
resultando que mantêm sempre seus seguidores num estado <strong>de</strong> fatal ignorância.<br />
Nada direi <strong>de</strong> seu envolvimento em muitas corrupções; <strong>de</strong> sua<br />
apresentação não apenas <strong>de</strong> um Cristo pelas meta<strong>de</strong>s, mas <strong>de</strong> um Cristo<br />
fragmentado 4 em partículas; não apenas sua dissimulação <strong>de</strong> grosseira<br />
idolatria, mas também em conformá-lo a seu próprio exemplo; e, se dis-<br />
3 Nosso autor apresenta aqui, como em muitos outros exemplos, a substância da passagem<br />
citada, e não palavras expressas. Na expressão, “como joguete das falácias humanas”, é<br />
como se ele tivesse diante <strong>de</strong> seus olhos o termo κυβεια – traduzido por nossos tradutores<br />
estratagema (dos homens), o qual, como o próprio Calvino observa quando comenta<br />
a passagem, é “translatum ab aleatoribus, quod inter eos multæ sint fallendi artes” – emprestado<br />
dos jogadores <strong>de</strong> dados, com suas muitas artes <strong>de</strong> engano praticadas entre si.<br />
4 “Par pieces et morceaux.” – “Em pedaços e petiscos.”
118 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
sessem algumas coisas, imediatamente diriam uma porção <strong>de</strong> mentiras.<br />
É muitíssimo evi<strong>de</strong>nte como Paulo e eles são diametralmente diferentes;<br />
pois leite é nutriente, não veneno; e é alimento a<strong>de</strong>quado e benéfico<br />
para crianças até que atinjam seu a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Porque não podíeis nem ainda po<strong>de</strong>is suportar. Para que não<br />
se gloriasse em <strong>de</strong>masia em seu próprio discernimento, Paulo revela,<br />
antes <strong>de</strong> tudo, o que <strong>de</strong>scobrira neles <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, e acrescenta<br />
algo que é ainda mais <strong>de</strong>sagradável, ou, seja, que as mesmas falhas<br />
ainda persistem entre eles. Pois ao menos <strong>de</strong>viam ter-se livrado da<br />
carne quando receberam a Cristo; e assim nos <strong>de</strong>paramos com Paulo<br />
a queixar-se <strong>de</strong> achar-se interrompido o progresso a que seu ensino se<br />
<strong>de</strong>stinara. Porque, se o ouvinte não ocasiona atraso em razão <strong>de</strong> sua<br />
indolência, o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> um bom mestre é estar sempre incitando-o mais<br />
energicamente 5 até que a perfeição tenha sido alcançada.<br />
3. Porque sois ainda carnais. Enquanto a carne, isto é, a corrupção<br />
natural, governa uma pessoa, ela toma posse <strong>de</strong> sua mente para<br />
que a sabedoria divina não logre acesso. Em razão <strong>de</strong>sse fato, se <strong>de</strong>sejarmos<br />
lograr algum progresso na escola do Senhor, <strong>de</strong>vemos antes<br />
renunciar nosso próprio entendimento e nossa própria vonta<strong>de</strong>. Ainda<br />
que houvesse algum vislumbre <strong>de</strong> religião nos coríntios, pelo menos<br />
boa parte, não obstante, se achava extinta. 6<br />
Pois havendo entre vós. A prova se <strong>de</strong>riva dos efeitos. Porque,<br />
uma vez que a inveja, as disputas e as facções eram frutos da carne,<br />
po<strong>de</strong>mos estar certos <strong>de</strong> que sempre serão vistos; haverão sempre <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>itar raízes. Esses males predominavam entre os coríntios; portanto,<br />
é à luz <strong>de</strong>sse fato que Paulo mostra que eles eram carnais. Ele usa igualmente<br />
o mesmo argumento em Gálatas 5.25: “Se vivemos pelo Espírito,<br />
an<strong>de</strong>mos também pelo Espírito.” Pois enquanto estavam ansiosos em<br />
ser consi<strong>de</strong>rados espirituais, ele os lembra <strong>de</strong> olhar para suas pró-<br />
5 “D’avancer tousiours ses escholiers, et monter plus haut.” – “Estar sempre levando avante<br />
seus alunos e subindo sempre mais alto.”<br />
6 “L’estouffement touteffois venant <strong>de</strong> leurs affections perverses, surmontoit.” – “A sufocação,<br />
não obstante, proce<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> seus próprios afetos, prevalecia.”
Capítulo 3 • 119<br />
prias obras, por meio das quais estavam negando o testemunho <strong>de</strong><br />
seus próprios lábios [Tt 1.16]. Observe-se, porém, a or<strong>de</strong>m apropriada<br />
que Paulo adota aqui. Pois é da inveja que nascem as contendas, as<br />
quais, uma vez inflamadas, resultam em seitas danosas. Além disso, a<br />
ambição é a mãe <strong>de</strong> todos estes males.<br />
Andais como os homens. Daqui se manifesta que o termo carne<br />
não se limita meramente aos <strong>de</strong>sejos inferiores, como os sofistas fazem<br />
crer, chamando-os a fonte <strong>de</strong> toda a sensualida<strong>de</strong>; ela é predicado<br />
do homem natural como um todo. Pois aqueles que seguem as diretrizes<br />
da natureza não são governados pelo Espírito <strong>de</strong> Deus. Esses,<br />
segundo a <strong>de</strong>finição do apóstolo, são carnais, <strong>de</strong> modo que a carne e a<br />
disposição natural do homem são absolutamente sinônimas. Portanto,<br />
Paulo tem boas razões para pedir, em outra passagem, que sejamos<br />
“novas criaturas em Cristo” [2Co 5.17].<br />
4. Pois enquanto um diz. Paulo agora especifica a forma precisa<br />
que as contendas 7 assumem, e age assim personificando os coríntios,<br />
para que sua <strong>de</strong>scrição tivesse mais força – que cada um <strong>de</strong>les se vangloriava<br />
em seu próprio mestre em particular, como se Cristo não fosse<br />
o único Mestre <strong>de</strong> todos [Mt 23.8]. Aliás, on<strong>de</strong> tal ambição ainda prevalece,<br />
o evangelho faz pouco ou nenhum progresso. Entretanto, não<br />
<strong>de</strong>vemos esperar que fizessem uma pública profissão <strong>de</strong> fé com muitas<br />
palavras, porém o apóstolo reprova aquelas disposições <strong>de</strong>pravadas<br />
pelas quais se <strong>de</strong>ixaram controlar. Ao mesmo tempo é provável que,<br />
visto que a tagarelice vazia que geralmente alguém exibe visa à conquista<br />
do favor do povo em benefícios <strong>de</strong> seus fins pessoais, 8 e é provável<br />
que tenham <strong>de</strong>scoberto seu ponto <strong>de</strong> vista distorcido por causa do qual<br />
cantaram os louvores extravagantes a seus próprios mestres em termos<br />
que tocavam o próprio céu, ao mesmo tempo que <strong>de</strong>rramaram seu <strong>de</strong>sprezo<br />
sobre Paulo e sobre aqueles que estavam com ele.<br />
7 “Qui estoyent entr’eux.” – “Que havia entre eles.”<br />
8 “Cette façon <strong>de</strong> jetter son cœur sur un homme par ambition, est accompagnée d’un sot<br />
babil.” – “Este modo <strong>de</strong> estabelecer alguém o coração sobre um indivíduo através da<br />
ambição é acompanhado <strong>de</strong> uma fútil tagarelice.”
120 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
5. Quem, pois, é Paulo? E quem é<br />
Apolo? Ministros através <strong>de</strong> quem<br />
crestes, conforme o Senhor <strong>de</strong>u a<br />
cada um.<br />
6. Eu plantei, Apolo regou; Deus, porém,<br />
<strong>de</strong>u o crescimento.<br />
7. Assim, pois, não é quem planta alguma<br />
coisa, nem aquele que rega; mas<br />
Deus que dá o crescimento.<br />
8. Ora, aquele que planta e aquele que<br />
rega são um; e cada um receberá<br />
seu próprio galardão segundo seu<br />
próprio trabalho.<br />
9. Porque somos cooperadores <strong>de</strong><br />
Deus; vós sois lavoura <strong>de</strong> Deus, edifício<br />
<strong>de</strong> Deus sois vós.<br />
5. Quis ergo est Paulus, aut quis<br />
Appolos, nisi ministri, per quos<br />
credidistis, et sicut unicuique Dominus<br />
<strong>de</strong>dit?<br />
6. Ego plantavi, Appolos rigavit; at<br />
Deus incrementum <strong>de</strong>dit.<br />
7. Ergo neque qui plantat aliquid est,<br />
neque qui rigat; sed Deus qui dat<br />
incrementum.<br />
8. Qui autem plantat, et qui rigat, unum 9<br />
sunt. Porro quisque propriam merce<strong>de</strong>m<br />
secundum laborem suum<br />
recipiet.<br />
9. Dei enim cooperarii sumus, 10 Dei<br />
agricultura, Dei ædificatio estis.<br />
5. Quem, pois, é Paulo? Ele agora começa a tratar da estima em<br />
que os ministros <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados e o propósito para o qual<br />
foram separados pelo Senhor. Ele, porém, nomeia a si e a Apolo antes<br />
dos outros para que evitassem a aparência <strong>de</strong> inveja. 11 “Que outro<br />
trabalho é o dos ministros”, pergunta ele, “senão o <strong>de</strong> conduzir-vos à<br />
fé por meio <strong>de</strong> sua pregação?” De tal fato Paulo infere que não <strong>de</strong>ve<br />
haver ostentação em homem algum, porquanto a fé não permite que<br />
alguém se glorie senão exclusivamente em Cristo. Segue-se que aqueles<br />
que exaltam excessivamente os homens, os privam <strong>de</strong> sua genuína<br />
dignida<strong>de</strong>. Pois a mais importante <strong>de</strong> todas as coisas é que eles sejam<br />
ministros da fé, em outros termos, que conquistam seguidores,<br />
sim, mas não para si próprios, mas para Cristo. Não obstante, embora<br />
pareça que ele, portando-se assim, está subtraindo a autorida<strong>de</strong><br />
dos ministros, na verda<strong>de</strong> não lhes está conferindo menos do <strong>de</strong>vido.<br />
Pois ele lhes confere uma gran<strong>de</strong> honra ao dizer que obtemos nossa fé<br />
9 “Sont vn, ou vne chose.” – “São um, ou uma só coisa.”<br />
10 “Car nous sommes ouuriers avec Dieu, ou, nous ensemble sommes ouuriers <strong>de</strong> Dieu.” –<br />
“Porque somos trabalhadores com Deus, ou somos cooperadores <strong>de</strong> Deus.”<br />
11 “Afin que le propos soit moins odieux, et qu’on ne dise qu’il porte enuie aux autres.” –<br />
“Para que o discurso fosse menos ofensivo, e para que ninguém dissesse que ele tinha<br />
inveja dos outros.”
Capítulo 3 • 121<br />
por intermédio do ministério <strong>de</strong>les. Não só isso, a eficácia da doutrina<br />
externa [externæ doctrinæ] recebe aqui a extraordinária aprovação<br />
quando é expressa como o instrumento do Espírito Santo; e os pastores<br />
são honrados não com um título <strong>de</strong> distinção comum quando<br />
lemos que Deus os usa como ministros para ministrar os incomparáveis<br />
tesouros da fé.<br />
E conforme o Senhor <strong>de</strong>u a cada um. No grego <strong>de</strong> Paulo, a partícula<br />
<strong>de</strong> comparação, ὡς, como, é colocada <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ἑκαστῳ, a cada um; mas<br />
a or<strong>de</strong>m foi invertida. 12 Portanto, para que o significado fique mais claro,<br />
prefiro traduzir “como a cada um” [sicut unicuique], em vez <strong>de</strong> “a cada<br />
um como” [unicuique sicut]. Além disso, em algumas cópias, a partícula<br />
και, e, se per<strong>de</strong>u, <strong>de</strong> modo a ficar a frase assim: “ministros através <strong>de</strong><br />
quem crestes, como o Senhor <strong>de</strong>u a cada um.” Se ficarmos com esta redação,<br />
a segunda frase será acrescida para explicar a primeira, <strong>de</strong> modo<br />
que Paulo pô<strong>de</strong> realçar o que quis significar com o termo ‘ministro’. É<br />
como se dissesse: “Ministros são aqueles cujo trabalho Deus utiliza; não<br />
aqueles que estão confiantes em seus próprios esforços, mas aqueles<br />
que são guiados por sua mão, como instrumentos.”<br />
Todavia, a redação que tenho adotado está, em minha opinião,<br />
mais próxima da verda<strong>de</strong>. Se a seguirmos, a oração será mais rica, porque<br />
consistirá <strong>de</strong> duas sentenças, como seguem: Em primeiro lugar,<br />
ministros são aqueles que põem seus serviços à disposição <strong>de</strong> Cristo,<br />
<strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>rem crer nele. Além do mais, eles não possuem nada<br />
propriamente seu, em que possam se orgulhar, visto que nada realizam<br />
movidos por sua própria iniciativa, mas unicamente pelo dom <strong>de</strong><br />
Deus, e cada um segundo sua própria medida – o que revela que tudo<br />
o que uma pessoa possui é <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> outra fonte. Finalmente, ele os<br />
mantém todos juntos como por um vínculo comum, visto que tinham<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assistência mútua.<br />
12 Um exemplo do mesmo gênero ocorre em Romanos 12.3. ἑκάστῳ ὡς ο Θεὸς εμερισε μέτρον<br />
πίστεως – “como Deus distribuiu a cada um segundo a medida da fé.” Calvino, ao comentar<br />
a passagem, observa que ela é um exemplo <strong>de</strong> “anastrophe, seu vocum inversio, pro<br />
Quemadmodum unicuique.” – “anástrofe, ou inversão <strong>de</strong> palavras para como a cada um.”
122 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
6. Eu plantei, Apolo regou. Ele <strong>de</strong>snuda ainda mais claramente a<br />
natureza <strong>de</strong>sse ministério através <strong>de</strong> uma similitu<strong>de</strong>, na qual a natureza<br />
da palavra e o uso da pregação são mui apropriadamente ilustrados. A<br />
fim <strong>de</strong> que a terra produza fruto, são necessários todos os processo da<br />
agricultura, como a aradura, a semeadura etc. Mas quando tudo isso<br />
tiver se processado, o trabalho do agricultor seria vão se o Senhor não<br />
<strong>de</strong>r “o crescimento” vindo do céu mediante a influência do sol e, ainda<br />
mais, por seu próprio, maravilhoso e secreto po<strong>de</strong>r. Portanto, mesmo<br />
que o cuidado do agricultor não fosse eficiente, e a semente que ele semeia<br />
não fosse produtiva, contudo é tão-só pela bênção <strong>de</strong> Deus que ela<br />
se torna produtiva. Porque, o que é mais espantoso do que a semente<br />
apodrecendo para então germinar? Semelhantemente, a Palavra do Senhor<br />
é semente frutífera por sua própria natureza. Os ministros são, por<br />
assim dizer, agricultores que preparam a terra e semeiam. Então outros<br />
auxílios se agregam, como, por exemplo, a irrigação. Os ministros são<br />
igualmente responsáveis por esses <strong>de</strong>veres quando, havendo semeado<br />
a semente no solo, prestam tanto auxílio quanto possível à própria terra,<br />
até que ela dê à luz o que concebeu. Todavia, a influência real para<br />
a fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu trabalho emana, naturalmente, do milagre da graça<br />
divina – não um produto do esforço humano.<br />
Observe-se, entretanto, nesta passagem, quão necessária é a<br />
pregação da Palavra, e quão indispensável é que a mesma seja feita<br />
continua mente. 13 Certamente que não seria mais difícil para Deus<br />
abençoar a terra sem qualquer diligência por parte dos homens, <strong>de</strong><br />
modo a produzir fruto por sua própria vonta<strong>de</strong> do que extrair ou,<br />
melhor, forçar 14 sua produção através <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> medida <strong>de</strong><br />
aplicação por parte dos homens, com muito suor e frustração. Visto,<br />
porém, que o Senhor assim <strong>de</strong>terminou [1Co 9.14] que o homem<br />
labutasse e a terra por sua vez correspon<strong>de</strong>sse a seu cultivo, então<br />
procuremos agir concor<strong>de</strong>mente. De igual modo, não existe nada que<br />
13 “Combien aussi il est necessaire qu’elle continue et soit tousiours entretenue.” – “Quão<br />
necessário é também que ela continue e seja sempre mantida.”<br />
14 “Tous les ans.” – “A cada ano.”
Capítulo 3 • 123<br />
impeça a Deus <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ele implantar fé nas pessoas dormentes, caso<br />
ele o queira, sem qualquer auxílio humano. Ele, porém, o <strong>de</strong>terminou<br />
<strong>de</strong> outra maneira, a saber, que a fé nasce do ouvir. Portanto, a pessoa<br />
que se sente segura <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> receber fé, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando esses<br />
meios, age precisamente como se os agricultores, <strong>de</strong>sistindo do arado,<br />
negligenciando a semeadura e abandonando todo o cultivo, abrissem<br />
sua boca e esperassem a comida cair do céu nela.<br />
Descobrimos agora o que Paulo tem em mente com referência à<br />
incessante 15 pregação da Palavra. Certamente que a semeadura não<br />
bastará se a semente não for assessorada pelo freqüente uso <strong>de</strong> outros<br />
agentes corroborantes. Portanto, aquele que já recebeu a semente ainda<br />
precisa regar, e não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sistir até que tenha atingido a plenitu<strong>de</strong><br />
do <strong>de</strong>senvolvimento; em outros termos, até o fim <strong>de</strong> sua vida [terrena].<br />
De Apolo, pois, que suce<strong>de</strong>u Paulo no ministério da Palavra em<br />
Corinto, diz-se ter regado o que Paulo semeara.<br />
7. Nem o que planta é alguma coisa. É evi<strong>de</strong>nte, à luz do que ficou<br />
expresso, que a obra <strong>de</strong>les [os ministros] não é <strong>de</strong> modo algum insignificante.<br />
Por isso é preciso que entendamos a razão por que a <strong>de</strong>precia<br />
como fez. Aliás, antes <strong>de</strong> tudo é preciso observar que ele costumava<br />
discorrer <strong>de</strong> duas maneiras sobre os ministros, 16 como também sobre os<br />
sacramentos. Porque às vezes ele fala <strong>de</strong> um ministro como alguém or<strong>de</strong>nado<br />
pelo Senhor, no primeiro caso regenerando as almas, e no segundo<br />
para alimentá-las visando à vida eterna, à remissão <strong>de</strong> pecados, à renovação<br />
das mentes humanas, ao estabelecimento do reino <strong>de</strong> Cristo e à<br />
<strong>de</strong>struição <strong>de</strong> Satanás. Conseqüentemente, Paulo <strong>de</strong>signa o ministro não<br />
só com o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> plantar e regar, mas também o mune com o po<strong>de</strong>r do<br />
Espírito Santo para que seu labor não venha a ser improdutivo. Assim, 17<br />
em outra passagem [2Co 3.6], ele o chama ministro do Espírito, e não da<br />
letra, já que ele imprime a Palavra do Senhor nos corações dos homens.<br />
15 Nosso autor se refere àquilo para o qual ele, um pouco antes, chamara a atenção (p. 104)<br />
quanto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a palavra <strong>de</strong> Deus continuar sendo administrada.<br />
16 Po<strong>de</strong>remos encontrar Calvino chamando a atenção para o mesmo tema em extensão consi<strong>de</strong>rável,<br />
ao comentar 1 Coríntios 9.1.<br />
17 “Suyuant ceste consi<strong>de</strong>ration.” – “De acordo com este ponto <strong>de</strong> vista.”
124 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
Em contrapartida, ele às vezes fala do ministro como sendo um<br />
servo, não um mestre; como um instrumento, não uma autorida<strong>de</strong>; e,<br />
em suma, como homem, e não Deus. Visto por esse prisma, ele nada<br />
lhe <strong>de</strong>ixa senão seu trabalho; aliás, morto e impotente, a menos que o<br />
Senhor lhe confira po<strong>de</strong>r eficaz pela operação <strong>de</strong> seu Espírito. A razão<br />
consiste em nisto: quando é simplesmente uma questão <strong>de</strong> ministério,<br />
não <strong>de</strong>vemos atentar <strong>de</strong>masiadamente para o ser humano, mas para<br />
Deus que está operando no homem pela graça do Espírito. Não significa<br />
que a graça do Espírito está sempre atada à palavra do homem,<br />
mas que Cristo esten<strong>de</strong> seu próprio po<strong>de</strong>r ao ministério que ele instituiu,<br />
<strong>de</strong> tal forma que fica evi<strong>de</strong>nciado que o mesmo não foi instituído<br />
em vão. Por este prisma, Cristo não subtrai nem reduz nada que lhe<br />
pertença com o fim <strong>de</strong> transferi-lo ao homem. Porquanto ele não está<br />
separado do ministro, 18 e, sim, que, ao contrário, <strong>de</strong>clara-se que seu<br />
po<strong>de</strong>r é eficaz no ministro. Visto, porém, que, através da <strong>de</strong>pravação<br />
<strong>de</strong> nosso juízo, às vezes tiramos vantagem <strong>de</strong>ste fato para valorizar <strong>de</strong>mais<br />
o homem, precisamos fazer uma distinção a fim <strong>de</strong> corrigir esta<br />
falha: o Senhor <strong>de</strong>ve ser colocado <strong>de</strong> um lado e o ministro, do outro.<br />
É assim que se torna evi<strong>de</strong>nte que a necessida<strong>de</strong> do homem está nele<br />
mesmo, e quão plenamente carente é ele <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
Portanto, aprendamos <strong>de</strong>sta passagem que os ministros sãos postos<br />
lado a lado com o Senhor à guisa <strong>de</strong> comparação. A razão para<br />
tal comparação é que os homens, atribuindo pouco valor à graça <strong>de</strong><br />
Deus, são excessivamente liberais em enaltecer os ministros; e assim<br />
furtam a Deus daquilo que por direito lhe pertence e o transferem para<br />
si próprios. Entretanto, Paulo sempre mantém o mais pleno senso <strong>de</strong><br />
proporção, pois quando afirma que “Deus é quem dá o crescimento”,<br />
ele quer dizer que os esforços dos próprios homens não ficam sem<br />
sucesso. Veremos em outra passagem 19 que o mesmo raciocínio se<br />
18 “Car en ces façons <strong>de</strong> parler Christ n’est point separé du ministre.” – “Nessas formas <strong>de</strong><br />
expressão Cristo não é separado (ou consi<strong>de</strong>rado à parte) do ministro.”<br />
19 Calvino mui provavelmente se refere aqui às afirmações feitas por ele ao comentar Gálatas<br />
3.27 nestes termos: “Respon<strong>de</strong>o, Paulum <strong>de</strong> Sacramentis bifariam solere loqui. Dum<br />
negotium est cum hypocritis, qui nudis signis superbiunt, tum concionatur, quam inanis
Capítulo 3 • 125<br />
aplica também aos sacramentos. Portanto, ainda que nosso Pai celestial<br />
não rejeite nosso labor no cultivo <strong>de</strong> seu campo, não permitindo<br />
que o mesmo seja improdutivo, não obstante ele <strong>de</strong>seja que seu êxito<br />
<strong>de</strong>penda exclusivamente <strong>de</strong> sua bênção, <strong>de</strong> modo que todo louvor permaneça<br />
sendo seu. Portanto, se queremos granjear algum benefício<br />
<strong>de</strong> nosso labor, <strong>de</strong> nosso esforço, <strong>de</strong> nossa diligência, então <strong>de</strong>vemos<br />
conscientizar-nos <strong>de</strong> que não lograremos progresso a menos que o<br />
Senhor faça prosperar nossa obra, nossos esforços e nossa perseverança,<br />
a fim <strong>de</strong> que encomen<strong>de</strong>mos a sua graça nós mesmos e tudo<br />
quanto fazemos.<br />
8. Ora, aquele que planta e aquele que rega são um. Ao<br />
consi<strong>de</strong>rar outro fator, Paulo <strong>de</strong>monstra que os coríntios estão erroneamente<br />
tirando vantagem dos nomes <strong>de</strong> seus mestres, no interesse<br />
<strong>de</strong> seus partidos e facções. Estão equivocados porque tais mestres<br />
unificam seus esforços em prol <strong>de</strong> uma e a mesma coisa, e <strong>de</strong> modo<br />
algum po<strong>de</strong>m estar separados ou divididos sem ao mesmo tempo<br />
abandonarem os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> seu ofício. “Eles são um”, diz Paulo. Em<br />
outros termos, se acham tão conectados, que sua união não permite<br />
separação, porque todos <strong>de</strong>vem ter um objetivo em vista, e todos<br />
servem ao único Senhor e estão engajados na mesma obra. Daí, se<br />
porventura se <strong>de</strong>dicam seu labor ao fiel cultivo do campo do Senhor,<br />
ac nihili res sit externum signum: et in præposteram fiduciam fortiter invehitur. Quare?<br />
non respicit Dei institutionem, sed impiorum corruptelam. Quum autem fi<strong>de</strong>les alloquitur,<br />
qui rite utuntur signis, illa tunc conjungit cum sua veritate, quam figurant. Quare?<br />
neque enim fallacem pompam ostentat in Sacramentis, sed quæ externa ceremonia figurat,<br />
exhibet simul re ipsa. Hinc fit, ut veritas, secundum Dei institutum, conjuncta sit cum<br />
signis.” – “Respondo que é costumeiro em Paulo falar dos sacramentos <strong>de</strong> duas maneiras<br />
distintas. Quando ele enfrenta os hipócritas que se gloriam nos meros símbolos, nesse<br />
caso ele proclama em alto e bom som a futilida<strong>de</strong> e ausência <strong>de</strong> valor do símbolo externo, e<br />
<strong>de</strong>nuncia em termos fortes sua absurda confiança. Por quê? Porque ele tem em vista, não a<br />
or<strong>de</strong>nança divina, mas a corrupção <strong>de</strong>la feita pelos ímpios. Quando, em contrapartida, ele<br />
se dirige aos crentes que fazem um uso a<strong>de</strong>quado dos símbolos, nesse caso ele os vê em<br />
conexão com a realida<strong>de</strong> que representam. Por quê? Porque ele não faz mera exibição <strong>de</strong><br />
algum falso esplendor porventura pertencente aos sacramentos, mas põe diante <strong>de</strong> nossos<br />
olhos a realida<strong>de</strong> que a cerimônia externa representa. Daí suce<strong>de</strong>r que, concor<strong>de</strong>mente<br />
com a <strong>de</strong>signação divina, a realida<strong>de</strong> é associada com os símbolos.” O mesmo tema é abordado<br />
nas Institutas, Livro III, p. 305.
126 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
então manterão a unida<strong>de</strong>; e, através <strong>de</strong> mútua comunicação, ajudarão<br />
uns aos outros – eis uma questão bem diferente <strong>de</strong> seus nomes<br />
servirem <strong>de</strong> motivo ou tema <strong>de</strong> acirradas controvérsias. Aqui temos<br />
uma excelente passagem para estimular os ministros à unida<strong>de</strong>.<br />
Entrementes, contudo, indiretamente, ele reprova os mestres ambiciosos<br />
que viviam a provocar divisões, e assim tornavam evi<strong>de</strong>nte<br />
que não eram servos <strong>de</strong> Cristo, mas escravos da vanglória, ou, seja,<br />
não se davam ao trabalho <strong>de</strong> plantar ou regar; ao contrário, se ocupavam<br />
em arrancar e queimar.<br />
Cada um receberá seu próprio galardão. Aqui Paulo ensina<br />
que o alvo <strong>de</strong> todos os ministros <strong>de</strong>ve ser, antes <strong>de</strong> tudo, não ficar<br />
<strong>de</strong> espreita com o intuito <strong>de</strong> arrancar os aplausos da multidão, e,<br />
sim, agradar o Senhor. Ele proce<strong>de</strong> assim com vistas a convocar<br />
os mestres ambiciosos a comparecerem diante do trono do juízo<br />
divino, os quais haviam se intoxicado com as glorificações do<br />
mundo e em nada mais pensavam; e ao mesmo tempo admoestar<br />
os coríntios quanto à futilida<strong>de</strong> daquele vão aplauso arrancado<br />
pela elegância <strong>de</strong> expressão e vã ostentação. Ao mesmo tempo,<br />
ele <strong>de</strong>scerra nestas palavras a imperturbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua própria<br />
consciência, porquanto se aventura a antecipar, <strong>de</strong>stemidamente,<br />
o juízo <strong>de</strong> Deus. Pois a razão por que os ambiciosos tentavam encomendar-se<br />
aos olhos do mundo consiste em que nunca tinham<br />
aprendido a <strong>de</strong>votar-se a Deus, e nunca tinham posto diante <strong>de</strong><br />
seus olhos o reino celestial <strong>de</strong> Cristo. Por conseguinte, assim que<br />
Deus se <strong>de</strong>ixa ver, esse tresloucado <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conquistar a aprovação<br />
humana se <strong>de</strong>svanece.<br />
9. Porque somos cooperadores <strong>de</strong> Deus. Aqui temos o melhor<br />
argumento. Estamos engajados nas li<strong>de</strong>s do Senhor, e é a ele que consagramos<br />
nossos labores. Portanto, visto ser fiel e justo, ele não nos<br />
<strong>de</strong>cepcionará no tocante a nossa remuneração. Por essa razão, a pessoa<br />
que olha para o ser humano e espera <strong>de</strong>le sua remuneração está<br />
cometendo um grave erro. Aqui temos um admirável enaltecimento<br />
do ministério, ou, seja, que quando Deus realiza a obra inteiramente
Capítulo 3 • 127<br />
movido por si mesmo, ele nos chama, insignificantes mortais 20 que<br />
somos, para sermos seus coadjuvantes e nos usa como instrumentos.<br />
Certamente que a perversão que os papistas fazem <strong>de</strong>ste texto<br />
com o fim <strong>de</strong> estabelecer o livre-arbítrio vai além <strong>de</strong> toda medida da<br />
estupi<strong>de</strong>z, porquanto Paulo está aqui ensinando, não que os homens<br />
sejam capazes <strong>de</strong> efetuar algo por suas próprias faculda<strong>de</strong>s naturais,<br />
mas que o Senhor age através <strong>de</strong>les por sua mera graça. Quanto à<br />
explicação que alguns dão <strong>de</strong> que Paulo, sendo um operário <strong>de</strong> Deus,<br />
era um cooperador junto a seus colegas, isto é, os <strong>de</strong>mais mestres,<br />
em minha opinião este ponto <strong>de</strong> vista parece dissonante e forçado;<br />
aliás, nenhuma razão nos compele a dar guarida a uma distinção tão<br />
engenhosa. Pois o seguinte concorda com a intenção do apóstolo, a<br />
saber: quando é função própria <strong>de</strong> Deus construir seu templo ou cultivar<br />
sua vinha, ele convoca ministros para que sejam cooperadores<br />
com ele, pois dos quais somente ele trabalha; mas, ao mesmo tempo,<br />
<strong>de</strong> tal maneira que, por sua vez, eles trabalham com ele visando a um<br />
fim comum. No tocante à remuneração das obras, vejam-se minhas<br />
Institutas, 3.18. 21<br />
Lavoura <strong>de</strong> Deus, edifício <strong>de</strong> Deus. Estas expressões po<strong>de</strong>m ser<br />
explicadas <strong>de</strong> duas maneiras. Po<strong>de</strong>m ser tomadas ativamente, neste<br />
sentido: “Vós fostes plantados no campo do Senhor mediante o esforço<br />
<strong>de</strong> outras pessoas, <strong>de</strong> maneira que o Pai celestial mesmo é o<br />
legítimo Agricultor e o Autor <strong>de</strong>sta plantação. Além disso, fostes edificados<br />
por pessoas, <strong>de</strong> maneira que o Senhor mesmo é o legítimo<br />
Mestre <strong>de</strong> obra. 22 Ou po<strong>de</strong>riam ser tomadas passivamente, assim: “Nós<br />
trabalhamos em cultivá-lo, em semear a Palavra <strong>de</strong> Deus em vós e em<br />
regar. Todavia, não fizemos tal coisa por nossa própria causa, ou para<br />
que o fruto venha a ser nosso; senão que <strong>de</strong>votamos nosso serviço ao<br />
Senhor. Em nosso anseio <strong>de</strong> ver-vos edificados, não fomos impelidos a<br />
20 “Poures vers <strong>de</strong> terre.” – “Meros vermes do pó.”<br />
21 O tema Galardões é amplamente discutido nas Institutas. O leitor achará a expressão “trabalhadores<br />
juntamente com Deus” comentada ali.<br />
22 “Et conducteur <strong>de</strong> l’œuvre.” – “E condutor da obra.”
128 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
levar em conta nossas vantagens pessoais, mas pela preocupação <strong>de</strong><br />
ver em vós uma lavoura e um edifício <strong>de</strong> Deus.<br />
A segunda interpretação parece-me ser a melhor. Porque entendo<br />
Paulo como que <strong>de</strong>sejando expressar aqui que os genuínos ministros<br />
não trabalham para si próprios, mas para o Senhor. Daqui se segue<br />
que os coríntios estavam equivocados ao se sujeitarem aos homens, 23<br />
quando <strong>de</strong> direito pertenciam exclusivamente a Deus. E em primeiro<br />
plano ele <strong>de</strong> fato os <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “lavoura <strong>de</strong> Deus”, mantendo a metáfora<br />
já iniciada; e daí, a fim <strong>de</strong> operar a transição e ampliar a discussão,<br />
ele emprega outra metáfora, a saber, a arquitetura. 24<br />
10. Segundo a graça <strong>de</strong> Deus que me foi<br />
dada, como sábio mestre <strong>de</strong> obra<br />
lancei o fundamento, e outro edifica<br />
sobre ele. Mas cada um <strong>de</strong>ve prestar<br />
atenção como edifica sobre ele.<br />
11. Porque ninguém po<strong>de</strong> lançar outro<br />
fundamento além do que já está<br />
posto, o qual é Jesus Cristo.<br />
12. Ora, se o que alguém edificar sobre<br />
o fundamento for ouro, prata,<br />
pedras preciosas, ma<strong>de</strong>ira, feno,<br />
restolho,<br />
13. a obra <strong>de</strong> cada um se manifestará,<br />
porque o dia a <strong>de</strong>clarará, pois será<br />
revelada pelo fogo; e o fogo provará<br />
<strong>de</strong> que gênero é a obra <strong>de</strong> cada um.<br />
14. Se a obra que alguém edificou [sobre<br />
o fundamento] permanecer,<br />
esse receberá galardão.<br />
15. Se a obra <strong>de</strong> alguém for queimada,<br />
esse sofrerá perda; mas ele mesmo<br />
será salvo, todavia como que através<br />
do fogo.<br />
10. Ut sapiens architectus, secundum<br />
gratiam Dei mihi datam,<br />
fundamentum posui, alius autem<br />
superædificat: porro unusquisque<br />
vi<strong>de</strong>at, quomodo superædificet.<br />
11. Fundamentum enim aliud nemo<br />
potest ponere, præter id quod positum<br />
est, quod est Iesus Christus.<br />
12. Si quis autem superstruat super<br />
fundamentum hoc aurum,<br />
argentum, lapi<strong>de</strong>s pretiosos, ligna,<br />
fœnum, stipulam,<br />
13. Cuiuscunque opus manifestum fiet:<br />
dies enim manifetabit, quia in igne<br />
revelabitur, et cuiuscunque opus<br />
quale sit, ignis probabit.<br />
14. Si cuius opus maneat quod<br />
superædificaverit, merce<strong>de</strong>m accipiet.<br />
15. Si cuius opus arserit, jacturam<br />
faciet: ipse autem salvus fiet, sic tamen<br />
tanquam per ignem. 25<br />
23 “De se rendre suiets aux hommes, et attacher là leurs affections.” – “Ao se tornarem sujeitos<br />
aos homens e pondo neles suas afeições.”<br />
24 “De la massonerie, ou charpenterie.” – “Da alvenaria ou carpintaria.”<br />
25 “Par feu, ou parmi le feu.” – “Pelo fogo ou no meio do fogo.”
Capítulo 3 • 129<br />
10. Como sábio arquiteto. Esta é uma metáfora muitíssimo apropriada,<br />
e por isso ocorre com freqüência nas Escrituras, como veremos<br />
mais adiante. Entretanto, aqui o apóstolo <strong>de</strong>clara sua própria fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
pessoal com muita confiança e segurança. Tal afirmação tinha<br />
<strong>de</strong> ser feita, não só por causa das calúnias dos ímpios, mas também<br />
em razão do orgulho dos coríntios, que já tinham começado a tratar<br />
sua doutrina com <strong>de</strong>sdém. Por isso, quanto mais o empurravam para<br />
baixo, mais alto ele subia; e falando como se estivesse num púlpito<br />
altaneiro, então proclama 26 que fora posto entre eles como o primeiro<br />
mestre <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> Deus; e, ao lançar os fundamentos, ele cumpria este<br />
papel com sabedoria, e <strong>de</strong>ixa para outros a continuação nos mesmos<br />
mol<strong>de</strong>s e a completação da superestrutura, consi<strong>de</strong>rando como padrão<br />
a obra lançada sobre os fundamentos. Observemos que Paulo<br />
diz essas coisas, primeiramente tendo em vista o enaltecimento <strong>de</strong><br />
sua doutrina, a qual ele via sendo menosprezada pelos coríntios; e,<br />
em segundo lugar, com o propósito <strong>de</strong> refrear a insolência <strong>de</strong> outros<br />
que, saindo em busca <strong>de</strong> distinção, afetavam um novo método <strong>de</strong> ensino.<br />
Portanto, ele os admoesta a nada intentarem temerariamente no<br />
edifício <strong>de</strong> Deus. Ele os proíbe <strong>de</strong> fazerem duas coisas: que não se<br />
aventurem a pôr outro fundamento; e que não ergam uma superestrutura<br />
que esteja fora <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com o fundamento.<br />
Segundo a graça. Ele sempre se porta com muita diligência no<br />
sentido <strong>de</strong> não usurpar para si a menor parcela daquela glória que<br />
pertence a Deus. Pois ele restitui tudo a Deus, e não <strong>de</strong>ixa para si nada<br />
senão o fato <strong>de</strong> ser ele um mero instrumento. Mas enquanto humil<strong>de</strong>mente<br />
se submete assim a Deus, indiretamente reprova a arrogância<br />
daqueles que não se preocupavam se estavam ou não obscurecendo a<br />
graça <strong>de</strong> Deus, 27 contanto que eles mesmos gozassem <strong>de</strong> bom conceito.<br />
E ainda insinua que nessa fútil ostentação, pela qual vieram a ser<br />
26 “Il leur fait assavoir, et <strong>de</strong>clare fort et ferme.” – “Ele lhes dá a conhecer e <strong>de</strong>clara forte e<br />
firmemente.”<br />
27 “Ne faisoyent point <strong>de</strong> conscience d’amoindrir ou offusquer la grace <strong>de</strong> Dieu.” – “Sem<br />
qualquer escrúpulo <strong>de</strong> <strong>de</strong>preciar e obscurecer a graça <strong>de</strong> Deus.”
130 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
muito admirados, não havia a menor parcela da graça do Espírito. No<br />
tocante a ele mesmo, com lisura <strong>de</strong>svencilha-se do <strong>de</strong>sdém humano<br />
sobre a base <strong>de</strong> que estivera sob a influência divina. 28<br />
11. Porque ninguém po<strong>de</strong> lançar outro fundamento. Esta afirmação<br />
contém duas partes: em primeiro lugar, que Cristo é o único<br />
fundamento da Igreja; e, em segundo lugar, que os coríntios tinham<br />
sido solidamente fundados sobre Cristo mediante a pregação <strong>de</strong> Paulo.<br />
Por isso, era necessário que fossem reconduzidos exclusivamente<br />
a Cristo, pois seus ouvidos sentiam agudos comichões por novida<strong>de</strong>s.<br />
Não era uma questão <strong>de</strong> somenos importância que Paulo fosse conhecido<br />
como o principal e (se assim posso afirmar) fundamental mestre<br />
<strong>de</strong> obra, <strong>de</strong> cuja doutrina os coríntios não podiam afastar-se sob pena<br />
<strong>de</strong> abandonar o próprio Cristo. Em suma, a Igreja <strong>de</strong>ve por todos os<br />
meios estar plena e <strong>de</strong>finitivamente fundamentada exclusivamente em<br />
Cristo, e que Paulo <strong>de</strong>sempenhava seu papel nesta esfera tão fielmente,<br />
que nada se podia encontrar em seu ministério que estivesse em<br />
carência. Segue-se que, quem quer que viesse após ele, não po<strong>de</strong>ria<br />
servir ao Senhor em sã consciência, ou ser ouvido como ministro <strong>de</strong><br />
Cristo, <strong>de</strong> algum outro modo que não fosse se esforçando em conformar<br />
sua doutrina à <strong>de</strong>le, e manter o fundamento que ele estabelecera.<br />
Daqui inferimos que, aqueles que não são obreiros fiéis na edificação<br />
da Igreja, ao contrário tudo fazem para dispersá-la [Mt 12.30],<br />
em vez <strong>de</strong> serem ministros fiéis, não se preocupando em almejar a<br />
conformação a sua doutrina e seguir <strong>de</strong> perto um bom princípio a fim<br />
<strong>de</strong> tornar perfeitamente evi<strong>de</strong>nte 29 que não se ocupam com novida<strong>de</strong>s.<br />
Po<strong>de</strong>mos concluir que esses não estão trabalhando fielmente para a<br />
edificação da igreja, mas que são seus <strong>de</strong>molidores. Pois o que é mais<br />
<strong>de</strong>strutivo do que confundir os crentes bem fundamentados na sã doutrina<br />
com um novo gênero <strong>de</strong> ensino, <strong>de</strong> modo que não sabem com<br />
28 “Monstrant, quant à luy qu’il a esté poussé et conduit <strong>de</strong> Dieu, il se <strong>de</strong>fend et maintient<br />
contre tout mepris.” – “Mostrando, quanto a ele próprio, que se <strong>de</strong>ixa guiar e conduzir<br />
por Deus, se guarda e se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> contra todo <strong>de</strong>sdém.”<br />
29 “En sorte qu’on puisse voir a l’œil.” – “De modo a que alguém veja com seus próprios<br />
olhos.”
Capítulo 3 • 131<br />
certeza on<strong>de</strong> estão ou para on<strong>de</strong> vão? Por outro lado, a doutrina fundamental,<br />
que não po<strong>de</strong> ser subvertida, é aquela que apren<strong>de</strong>mos <strong>de</strong><br />
Cristo. Porquanto Cristo é o único fundamento da Igreja. Não obstante,<br />
muitos são os que usam o nome <strong>de</strong> Cristo como pretexto e arrancam<br />
toda a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus pelas raízes. 30<br />
Observemos, pois, <strong>de</strong> que maneira a Igreja é corretamente edificada<br />
sobre Cristo, ou, seja, só quando ele é estabelecido para justiça,<br />
re<strong>de</strong>nção, santificação, sabedoria, satisfação, purificação, em suma,<br />
como vida e glória; ou, se alguém o preferir <strong>de</strong> forma mais breve,<br />
quando ele é proclamado <strong>de</strong> tal forma que seu ofício e influência são<br />
entendidos em conformida<strong>de</strong> com o que se encontra expresso no final<br />
do primeiro capítulo [1Co 1.30]. Em contrapartida, se Cristo for conhecido<br />
só em algum grau, e for chamado Re<strong>de</strong>ntor apenas nominalmente,<br />
enquanto que, ao mesmo tempo, a justiça, a santificação e a salvação<br />
forem buscadas em outras fontes, ele é lançado fora do fundamento e<br />
pedras espúrias 31 são postas em seu lugar. Temos um exemplo disso<br />
no procedimento dos papistas, quando roubam a Cristo <strong>de</strong> quase todos<br />
seus ornamentos, e não lhe <strong>de</strong>ixam quase nada senão um mero<br />
nome. Tais pessoas, pois, não estão <strong>de</strong> forma alguma sendo estabelecidas<br />
em Cristo. Ora, visto que Cristo é o fundamento da Igreja em razão<br />
<strong>de</strong> ser ele a única fonte <strong>de</strong> salvação e vida eterna, em razão <strong>de</strong> que é<br />
nele que conhecemos Deus o Pai e em razão <strong>de</strong> se achar nele a fonte<br />
<strong>de</strong> todas nossas bênçãos, então, se ele não for reconhecido como tal,<br />
imediatamente cessa <strong>de</strong> ser o fundamento.<br />
Po<strong>de</strong>-se, porém, perguntar se Cristo é uma mera parte, ou se ele<br />
é o próprio originador da doutrina sobre a salvação, porquanto o<br />
fundamento é apenas uma parte do edifício. Porque, se tal é o caso,<br />
os crentes fariam <strong>de</strong> Cristo meramente o ponto <strong>de</strong> partida, e seriam<br />
perfeitos sem ele. Ora, <strong>de</strong> fato é isso que Paulo parece sugerir. Minha<br />
resposta é que este não é o significado do que ele diz, <strong>de</strong> outra sorte<br />
estaria se contradizendo ao dizer em Colossenses 2.3 que “todos<br />
30 “Arrachent et renversent entierement.’ – “Arrancam e subvertem inteiramente.”<br />
31 “Et non convenantes.” – “E não adaptáveis.”
132 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão escondidos nele”.<br />
Portanto, a pessoa que tem “aprendido Cristo” [Ef 4.20] já se acha plenificada<br />
<strong>de</strong> toda a doutrina celestial. Visto, porém, que o ministério<br />
<strong>de</strong> Paulo visava mais a estabelecer os coríntios do que a erguer em<br />
seu meio a parte mais alta do edifício, ele apenas mostra aqui o que já<br />
fizera, a saber, que proclamara Cristo em sua pureza. Por essa razão,<br />
pensando no que fizera, Paulo o <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> o fundamento, enquanto,<br />
ao mesmo tempo, ele com isso não o exclui do resto do edifício. Em<br />
outros termos, Paulo não põe algum outro tipo <strong>de</strong> doutrina em contraste<br />
com o conhecimento <strong>de</strong> Cristo; ele está, em vez disso, realçando<br />
a relação existente entre ele mesmo [Cristo] e os ministros.<br />
12. Mas se alguém edifica sobre este fundamento. Ele continua<br />
persistindo na metáfora. Não era suficiente que o fundamento fosse estabelecido,<br />
se toda a superestrutura não lhe correspon<strong>de</strong>sse. Porque,<br />
já que seria absurdo usar material inferior numa fundação <strong>de</strong> ouro, é<br />
igualmente um crime hediondo sepultar Cristo sob a massa <strong>de</strong> doutrinas<br />
estranhas. 32 Portanto, Paulo quer dizer por “ouro, prata e pedras<br />
preciosas a doutrina digna <strong>de</strong> Cristo e se a natureza <strong>de</strong> uma tal superestrutura<br />
não correspon<strong>de</strong> a esse fundamento. Além do mais, não<br />
imaginemos que essa doutrina seja extraída <strong>de</strong> outras fontes além <strong>de</strong><br />
Cristo, mas, ao contrário, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r que temos <strong>de</strong> continuar<br />
proclamando Cristo, até que o próprio edifício se complete. Contudo,<br />
temos <strong>de</strong> prestar atenção na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> fazer as coisas, começando com<br />
a doutrina geral e os artigos mais essenciais, como os fundamentos, e<br />
em seguida continuar com reprovações, exortações e tudo quanto se<br />
faz necessário para a perseverança, a confirmação e o progresso.<br />
Visto que há pleno acordo sobre o que Paulo quis dizer até aqui,<br />
sem qualquer controvérsia, segue-se, por outro lado, que a idéia que<br />
é expressa aqui como “ma<strong>de</strong>ira, restolho e feno” não correspon<strong>de</strong> ao<br />
fundamento, isto é, como é engendrado pela mente humana e nos é<br />
32 “Ce seroit vne chose mal seante que Christ fust suffoqué en mettant et meslant euec luy<br />
quelques doctrines estranges.” – “Era algo mui inconveniente ser Cristo asfixiado, colocando<br />
sobre ele um misto <strong>de</strong> doutrinas estranhas.”
Capítulo 3 • 133<br />
empurrado como se fosse oráculo <strong>de</strong> Deus. 33 Porquanto Deus quer que<br />
sua Igreja seja edificada com base na genuína pregação <strong>de</strong> sua Palavra,<br />
não com base em ficções humanas; <strong>de</strong> cuja sorte é também aquilo que<br />
não tem qualquer tendência para a edificação, como, por exemplo, as<br />
questões especulativas [1Tm 1.4], que comumente contribuem mais<br />
para a ostentação, ou algum louco <strong>de</strong>sejo, do que para a salvação dos<br />
homens.<br />
Ele os previne <strong>de</strong> que toda a obra humana um dia manifestará sua<br />
qualida<strong>de</strong>; mesmo que por algum tempo ela se oculte. É como se ele<br />
quisesse dizer: “Po<strong>de</strong> ser que os obreiros sem princípios por algum<br />
tempo enganem, <strong>de</strong> modo que o mundo não perceba o quanto cada<br />
um trabalhou fiel ou fraudulentamente. Mas o que agora se acha, por<br />
assim dizer, submerso em trevas, <strong>de</strong>verá necessariamente vir à luz;<br />
e o que agora é glorioso aos olhos dos homens, <strong>de</strong>verá ser <strong>de</strong>struído<br />
diante da face <strong>de</strong> Deus, e será consi<strong>de</strong>rado como algo sem valor.”<br />
13. Porque o dia a <strong>de</strong>clarará. A Vulgata traz “o dia do Senhor”. 34<br />
Mas é provável que o genitivo tenha sido adicionado por alguém à<br />
guisa <strong>de</strong> explicação. Pois o significado está inquestionavelmente completo<br />
sem tal adição. Porque a <strong>de</strong>signação “o dia” é com proprieda<strong>de</strong><br />
aplicada ao tempo em que as trevas e a obscurida<strong>de</strong> forem dissipadas<br />
e a verda<strong>de</strong> for trazida à luz. Portanto, o apóstolo <strong>de</strong>clara que não<br />
po<strong>de</strong> viver sempre escondido quem realiza a obra do Senhor fraudulentamente,<br />
nem quem cumpre fielmente seus <strong>de</strong>veres. É como se<br />
quisesse dizer: “As trevas nem sempre prevalecerão; no fim a luz brilhará<br />
e <strong>de</strong>ixará tudo a <strong>de</strong>scoberto.” Reconheço que esse é “o dia do<br />
Senhor”, não o do homem. Mas a metáfora é mais agradável se lermos<br />
simplesmente “o dia”, porque Paulo insinua, <strong>de</strong>ssa maneira, que os<br />
genuínos servos <strong>de</strong> Deus nem sempre se distinguem <strong>de</strong>vidamente dos<br />
falsos obreiros, porque os pontos bons e maus são encobertos pelo<br />
33 “On veut à force faire receuoir pour oracles et reuelations procedées <strong>de</strong> Dieu.” – “Eles nos<br />
forçariam a recebê-la como se fossem oráculos e revelações que emanaram <strong>de</strong> Deus.”<br />
34 É assim em duas versões inglesas antigas. Na versão <strong>de</strong> Wiclif (1380), a tradução é como<br />
segue: Pois o dia do Senhor <strong>de</strong>clarará. A versão Rheims (1582) lê assim: Pois o dia <strong>de</strong> nosso<br />
Senhor <strong>de</strong>clarará.
134 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
manto da noite; todavia, essa noite não durará para sempre. Porque<br />
a ambição é cega, a generosida<strong>de</strong> humana é cega, o aplauso do mundo<br />
é cego, porém Deus um dia dissipará essas trevas, a seu próprio<br />
tempo. Atentemos bem para o fato <strong>de</strong> que Paulo sempre <strong>de</strong>monstra<br />
possuir aquela confiança que uma boa consciência produz; e com uma<br />
incontestável gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> mente, ele <strong>de</strong>spreza os juízos perversos.<br />
Ele assim proce<strong>de</strong>, primeiramente, chamando <strong>de</strong> volta os coríntios, da<br />
ambiciosa busca da aprovação humana para um saudável padrão <strong>de</strong><br />
julgamento; e, em segundo lugar, para estabelecer a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />
próprio ministério.<br />
Porque será revelada pelo fogo. Tendo falado da doutrina em<br />
linguagem metafórica, agora aplica novamente a linguagem metafórica<br />
aos meios reais pelos quais a doutrina é examinada chamando-os <strong>de</strong><br />
fogo, para que as partes correspon<strong>de</strong>ntes da comparação se harmonizassem<br />
entre si. O fogo, pois, subenten<strong>de</strong> aqui o Espírito do Senhor<br />
que, por meio <strong>de</strong> seu exame, testifica que a doutrina se assemelha ao<br />
ouro e igualmente se assemelha ao restolho. Quanto mais próxima a<br />
doutrina legada por Deus é levada para perto <strong>de</strong>sse fogo, mais evi<strong>de</strong>nte<br />
se fará. Em contrapartida, o que é produzido nas mentes humanas<br />
se <strong>de</strong>svanecerá imediatamente, 35 como o restolho ou a palha é consumida<br />
pelo fogo. Tudo indica que aqui há também uma alusão a “o<br />
dia”, conforme já mencionei. É como se ele dissesse: “Naquele dia, as<br />
coisas que a fútil ambição ocultou entre os coríntios, como uma negra<br />
noite, serão trazidas para a luz pelo esplendor do sol. Ainda mais,<br />
haverá concomitantemente um po<strong>de</strong>roso calor, não só para dissipar<br />
e purificar as impurezas, mas também para queimar todos os erros.”<br />
Porque, embora os homens acreditem que possuem vívidos po<strong>de</strong>res<br />
<strong>de</strong> discernimento, sua inteligência, não obstante, não penetra além<br />
da superfície, a qual, geralmente, não possui bastante profundida<strong>de</strong>.<br />
O apelo do apóstolo visa tão-somente àquele dia que prova tudo, no<br />
35 “Celle, qui aura esté forgée au cerveau <strong>de</strong>s hommes s’esuanouira tout incontinent, et s’en<br />
ira em fumée.” – “Aquilo que foi forjado no cérebro do homem rapidamente se <strong>de</strong>svanecerá<br />
e se dissipará como fumaça.”
Capítulo 3 • 135<br />
mais profundo <strong>de</strong> sua existência, não meramente por seu resplendor,<br />
mas também por sua chama abrasadora.<br />
14. Se a obra <strong>de</strong> alguém permanecer, esse receberá galardão.<br />
Sua intenção aqui é dizer que não passa <strong>de</strong> tolo aquele que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />
da avaliação humana, ao ponto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar suficiente ser aprovado<br />
pelos homens, porque então a obra receberá louvor e recompensa<br />
somente <strong>de</strong>pois que tiver sido provada no dia do Senhor. Portanto,<br />
Paulo conclama os ministros genuínos a ter seus olhos postos naquele<br />
dia. (Acerca dos galardões, vejam-se minhas Institutas 3.18.) Pois ele<br />
<strong>de</strong>clara, ao usar o verbo permanecer, que as doutrinas voam com os<br />
ventos como se não tivessem estabilida<strong>de</strong> alguma, ou, melhor ainda,<br />
elas cintilam por um curto tempo como bolhas [<strong>de</strong> sabão contra o sol],<br />
até serem trazidas ao tribunal <strong>de</strong> um teste severo. Disso se segue que<br />
todos os aplausos do mundo têm <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rados como algo <strong>de</strong>sprezível,<br />
porque o juízo divino logo exporá sua vacuida<strong>de</strong>.<br />
15. Se a obra <strong>de</strong> alguém se queimar. É como se ele dissesse: “Que<br />
ninguém se gabe <strong>de</strong>mais, porque, segundo a opinião do homem, ele<br />
está classificado entre os arquitetos mais eminentes. Pois tão logo chegue<br />
a aurora, todo seu trabalho se reduzirá completamente a nada,<br />
isso se não for aprovado pelo Senhor.” Esta, pois, é a regra pela qual o<br />
ministério <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong>ve ser conformado.<br />
Alguns explicam isso como uma referência à doutrina, <strong>de</strong> modo<br />
que ζημιουσθαι 36 significa meramente perecer, e então o que imediatamente<br />
segue eles o vêem como uma referência ao fundamento,<br />
porque o grego θεμελιος (fundamento) é do gênero masculino. Entretanto,<br />
esses intérpretes não prestam bastante atenção ao contexto<br />
como um todo. Pois nesta passagem Paulo não está sujeitando sua<br />
própria doutrina a um teste, mas a <strong>de</strong> outrem. 37 Portanto, a menção<br />
do fundamento neste ponto está fora <strong>de</strong> propósito. Ele já disse que<br />
36 “Le mot Grec suyuant, qui signifie souffrir perte ou dommage.” – “A palavra grega seguinte,<br />
a qual significa sofrer perda ou prejuízo.”<br />
37 “Car ce n’est pas sa doctrine, mais celle <strong>de</strong>s autres que Sainct Paul dit, qui viendra a<br />
l’examen.” – “Pois não é <strong>de</strong> sua própria doutrina, e, sim, a <strong>de</strong> outrem, que São Paulo diz<br />
que será provada.”
136 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
“a obra <strong>de</strong> cada um será provada pelo fogo.” Então passa a uma alternativa,<br />
a qual não <strong>de</strong>ve retroce<strong>de</strong>r além daquela afirmação geral.<br />
Mas é verda<strong>de</strong> que Paulo ali estava falando apenas do edifício que<br />
fora erigido sobre o fundamento. Já na primeira alternativa ele prometeu<br />
galardão aos bons arquitetos, cuja obra terá sido aprovada.<br />
Portanto, a antítese na segunda alternativa se a<strong>de</strong>qua muito bem, ou,<br />
seja, os que tiverem misturado restolho, ou ma<strong>de</strong>ira, ou palha serão<br />
privados do louvor pelo qual tanto esperaram.<br />
Mas esse mesmo será salvo. Não há dúvida <strong>de</strong> que Paulo está<br />
falando dos que, embora retenham sempre o fundamento, misturam<br />
feno com ouro, restolho com prata, ma<strong>de</strong>ira com pedras preciosas. Em<br />
outros termos, aqueles que edificaram sobre Cristo, porém, em razão<br />
da enfermida<strong>de</strong> da carne, <strong>de</strong>ram espaço a algum conceito humano, ou,<br />
motivados pela ignorância, se <strong>de</strong>sviaram, até certo ponto, da estrita<br />
pureza da Palavra <strong>de</strong> Deus. Muitos dos santos fizeram isso – Cipriano,<br />
Ambrósio, Agostinho e outros. O leitor po<strong>de</strong> adicionar também, caso<br />
o queira, os que se acham mais próximos <strong>de</strong> nossos próprios dias –<br />
Gregório e Bernardo, bem como outros como eles –, cujo propósito<br />
era edificar sobre Cristo, mas que, infelizmente, às vezes retrocediam<br />
do correto sistema <strong>de</strong> construir.<br />
Paulo afirma que pessoas como essas po<strong>de</strong>m ser salvas, porém<br />
sobre esta condição: se o Senhor apagar sua ignorância e purificá-la <strong>de</strong><br />
toda impureza; e isso é o que significa a frase “como por meio do fogo”.<br />
Portanto, sua intenção é sugerir que ele mesmo não os priva da esperança<br />
da salvação, contanto que espontaneamente aceitem a perda da<br />
obra que empreen<strong>de</strong>ram e sejam purificados pela mercê divina, tal<br />
como o ouro é refinado na fornalha. Além do mais, ainda que Deus às<br />
vezes purifique seu povo por meio <strong>de</strong> sofrimentos, tomo o termo fogo<br />
aqui no sentido <strong>de</strong> o teste feito pelo Espírito. É assim que Deus corrige<br />
e <strong>de</strong>strói a ignorância <strong>de</strong> seu povo, pela qual po<strong>de</strong> ser controlado por<br />
algum tempo. Sei muito bem que muitos aplicam isso à cruz, porém<br />
estou certo <strong>de</strong> que minha interpretação satisfará a todos quantos <strong>de</strong>sfrutam<br />
<strong>de</strong> são juízo.
Capítulo 3 • 137<br />
Po<strong>de</strong>mos concluir forjando uma réplica, breve, a ser direcionada<br />
para os papistas que usam esta passagem em apoio do purgatório. Seu<br />
ponto <strong>de</strong> vista é que os pecadores, a quem Deus perdoa, passam pelo<br />
fogo a fim <strong>de</strong> que sejam salvos. Então, por esse caminho eles sofrem o<br />
castigo <strong>de</strong> Deus a fim <strong>de</strong> que sua justiça seja aperfeiçoada. Prefiro omitir<br />
aqui seus inumeráveis comentários sobre o montante <strong>de</strong> castigo e sobre<br />
o livramento <strong>de</strong>le. Pergunto, porém: quem <strong>de</strong> fato são aqueles que<br />
passam pelo fogo? Paulo está peremptoriamente falando somente <strong>de</strong><br />
ministros. “Mas”, dizem eles, “a mesma consi<strong>de</strong>ração se aplica a todos.”<br />
Como a dizer: Deus é certamente o melhor juiz, não nós! 38 Mas, mesmo<br />
que lhes fizesse tal concessão, quão infantilmente se aferram à palavra<br />
fogo. No entanto, qual é o propósito do fogo 39 senão o <strong>de</strong> consumir o<br />
feno e a palha e, em contrapartida, o <strong>de</strong> provar o ouro e a prata? Querem<br />
dizer, porventura, que as doutrinas são discernidas pelo fogo <strong>de</strong> seu<br />
purgatório? Quem ainda não <strong>de</strong>scobriu o quanto a verda<strong>de</strong> se distingue<br />
da falsida<strong>de</strong>? Além disso, quando esse dia chegará, em cuja luz a obra<br />
<strong>de</strong> cada um será exibida? Começou com o princípio do mundo e prosseguirá<br />
até seu término? Se restolho, feno, ouro e prata são empregados<br />
metaforicamente, que limites a conce<strong>de</strong>r, que sorte <strong>de</strong> correspondência<br />
haverá entre as diferentes sentenças, se fogo não é usado metaforicamente?<br />
Nem mais um passo com tais futilida<strong>de</strong>s, porque seus absurdos<br />
prontamente saltam aos olhos! Quanto a mim, acredito que a real intenção<br />
do apóstolo já ficou sobejamente estabelecida.<br />
16. Não sabeis vós que sois templo <strong>de</strong><br />
Deus, e que o Espírito <strong>de</strong> Deus habita<br />
em vós?<br />
17. Se alguém macular o templo <strong>de</strong><br />
Deus, Deus o <strong>de</strong>struirá; porque o<br />
templo <strong>de</strong> Deus é santo, templo<br />
esse que sois vós.<br />
16. An nescitis, quod templum Dei estis<br />
et Spiritus Dei habitat in vobis?<br />
17. Si quis templum Dei corrumpit, 40<br />
hunc per<strong>de</strong>t Deus. Templum enim<br />
Dei sanctum est, quod estis vos.<br />
38 “Je respon, que ce n’est pas à nous.” – “Respondo que não nos compete.”<br />
39 “Car à quel propos est-il yci parlé du feu?” – “Com que propósito ele fala aqui <strong>de</strong> fogo?”<br />
40 “Viole, ou <strong>de</strong>struit.” – “Viola ou <strong>de</strong>strói.”
138 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
18. Que ninguém a si mesmo se engane.<br />
Se alguém <strong>de</strong>ntre vós se tem por<br />
sábio neste mundo, que se faça <strong>de</strong><br />
tolo para ser sábio.<br />
19. Porque a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo<br />
é loucura diante <strong>de</strong> Deus. Pois está<br />
escrito: Ele apanha os sábios em<br />
sua própria astúcia.<br />
20. E outra vez: o Senhor conhece os<br />
pensamentos dos sábios, que são<br />
fúteis.<br />
21. Por isso, que ninguém se glorie nos<br />
homens. Porque todas as coisas são<br />
vossas;<br />
22. seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas,<br />
seja o mundo, seja a vida, seja a<br />
morte, sejam coisas presentes, sejam<br />
coisas por vir; tudo é vosso;<br />
23. e vós sois <strong>de</strong> Cristo; e Cristo é <strong>de</strong><br />
Deus.<br />
18. Nemo se <strong>de</strong>cipiat, si quis vi<strong>de</strong>tur<br />
sapiens esse inter vos: in sæculo<br />
hoc stultus fiat, 41 ut fiat sapiens.<br />
19. Sapientia enim mundi huius stultitia<br />
est apud Deum. Scriptum est<br />
enim (Job v.13) Deprehen<strong>de</strong>ns sapientes<br />
in astutia sua.<br />
20. Et rursum (Ps.xciv.11) Dominus<br />
novit cogitationes sapientum vanas<br />
esse.<br />
21. Proin<strong>de</strong> nemo glorietur in hominibus,<br />
omnia enim vestra sunt;<br />
22. Sive Paulus, sive Apollos, sive Cephas,<br />
sive mundus, sive vita, sive<br />
mors, sive præsentia, sive futura:<br />
omnia vestra sunt,<br />
23. Vos autem Christi; Christus autem<br />
Dei.<br />
16. Não sabeis vós? Após apresentar diretrizes aos mestres sobre<br />
seu trabalho, Paulo então se volta para os discípulos, para que eles também<br />
prestassem muita atenção. Ele dissera aos mestres: “Vós sois os<br />
mestres <strong>de</strong> obra da casa <strong>de</strong> Deus.” E agora ele diz ao povo: “Vós sois o<br />
templo <strong>de</strong> Deus. É vossa a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidar para <strong>de</strong> alguma<br />
forma não ser<strong>de</strong>s contaminados.” Ora, o que ele tencionava 42 é que os<br />
coríntios não se entregassem indignamente nas mãos dos homens. Na<br />
verda<strong>de</strong>, ao falar-lhes <strong>de</strong>ssa forma, ele está lhes conferindo uma rara<br />
honra, porém seu intuito é mostrar-lhes mais claramente sua culpa. Porque,<br />
já que Deus os consagrara como templos <strong>de</strong>le, concomitantemente<br />
os <strong>de</strong>signara como guardiães <strong>de</strong> seu templo. Portanto, ao se entregarem<br />
aos homens, estavam violando um <strong>de</strong>pósito sagrado. Ele <strong>de</strong>nomina a<br />
todos eles, juntos, <strong>de</strong> um templo <strong>de</strong> Deus. Porque cada crente em par-<br />
41 “Si aucvn entre vous cui<strong>de</strong> estre sage, qu’il soit fait fol en ce mon<strong>de</strong>, afin qu’il soit sage –<br />
ou, sage en ce mon<strong>de</strong>, qu’il soit fait fol, afin, &.” – “Se alguém entre vós parece ser sábio,<br />
que se torne louco neste mundo, para que seja sábio – ou, sábio neste mundo, que se<br />
torne louco para que” etc.<br />
42 “De cest aduertissement.” – “Dessa cautela.”
Capítulo 3 • 139<br />
ticular é uma pedra viva para a ereção do edifício <strong>de</strong> Deus. Entretanto,<br />
indivíduos também são às vezes chamados templos. Um pouco <strong>de</strong>pois,<br />
Paulo usa novamente a mesma idéia, mas com outro propósito. Naquela<br />
passagem, ele está tratando da castida<strong>de</strong>; aqui, porém, ele está apelando-lhes<br />
para que mantivessem até o fim sua fé na riqueza <strong>de</strong> Cristo,<br />
tão-somente <strong>de</strong> Cristo. O uso da pergunta lhe empresta maior realce,<br />
porque, ao recorrer a eles como testemunhas, está sugerindo que lhes<br />
está falando acerca <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> que estavam bem cientes.<br />
E o Espírito <strong>de</strong> Deus. Aqui temos a razão por que são o templo <strong>de</strong><br />
Deus. Por isso é preciso ler o e como se fosse porque. Isso é bastante<br />
comum; por exemplo, on<strong>de</strong> o poeta diz: “Ten<strong>de</strong>s ouvido e foi anunciado”,<br />
Paulo diz: “Sois o templo <strong>de</strong> Deus porque ele habita em vós por<br />
intermédio <strong>de</strong> seu Espírito; porquanto nenhum lugar impuro po<strong>de</strong> ser<br />
habitação <strong>de</strong> Deus.” Nesta passagem temos clara evidência para afirmar<br />
a divinda<strong>de</strong> do Espírito Santo. Porque, se ele fosse um ser criado,<br />
ou simplesmente algo a nós outorgado, então não po<strong>de</strong>ria, ao habitar-<br />
-nos, fazer <strong>de</strong> nós templos <strong>de</strong> Deus. Ao mesmo tempo, enten<strong>de</strong>mos<br />
como Deus se comunica conosco e o elo pelo qual somos ligados a ele,<br />
a saber, <strong>de</strong>rramando sobre nós o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu Santo Espírito.<br />
17. Se alguém <strong>de</strong>struir o templo <strong>de</strong> Deus, Deus o <strong>de</strong>struirá. Ele<br />
agrega uma grave advertência: uma vez que o templo <strong>de</strong>ve ser sacratíssimo,<br />
então quem quer que o saqueie, não escapará impunemente.<br />
No entanto, o gênero <strong>de</strong> violação do qual ele agora fala consiste em<br />
que os homens se põem no lugar <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> modo a se tornarem<br />
senhores na Igreja. Porque, assim como a fé, que se <strong>de</strong>vota à doutrina<br />
pura <strong>de</strong> Cristo, é <strong>de</strong>nominada em outro lugar <strong>de</strong> “castida<strong>de</strong> espiritual”<br />
[2Co 11.2], ela também nos consagra para aquela adoração a Deus que<br />
é correta e pura. Pois assim que somos atingidos pelas tramas humanas,<br />
o templo <strong>de</strong> Deus é poluído como que por alguma imundícia, e a<br />
razão disso é que o sacrifício da fé, o qual Deus <strong>de</strong>clara ser exclusivamente<br />
seu, passa a ser oferecido às criaturas.<br />
18. Que ninguém se engane. Aqui ele põe seu <strong>de</strong>do na raiz do problema,<br />
visto que todos os danos eram oriundos do elevado conceito
140 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
que nutriam por si mesmos. Portanto, ele os adverte energicamente<br />
a não se <strong>de</strong>ixarem levar por uma idéia errônea, ou, seja, reivindicando<br />
alguma sabedoria como se a mesma fosse oriunda <strong>de</strong>les mesmos.<br />
O que ele quer transmitir é que todos quantos confiam em seu próprio<br />
entendimento estão enganando-se. Em minha opinião, porém, ele<br />
aqui se dirige tanto aos ouvintes quanto aos mestres. Pois os ouvintes<br />
tinham melhor disposição para emprestar um ouvido 43 aos homens<br />
ambiciosos. E visto que tinham um paladar tão fastidioso, <strong>de</strong> modo<br />
que a simplicida<strong>de</strong> do evangelho se tornou insípida a seu paladar,<br />
enquanto que os mestres, querendo causar boa impressão, <strong>de</strong> outra<br />
coisa não cuidavam senão aparecer. Portanto, Paulo adverte a ambos<br />
[mestres e alunos]: “Que nenhum <strong>de</strong> vós se exalte diante <strong>de</strong> sua<br />
própria sabedoria; ao contrário, aquele que acredita ser sábio, que se<br />
faça <strong>de</strong> tolo neste mundo.” Colocando <strong>de</strong> outra forma: “Aquele que<br />
<strong>de</strong>sfruta <strong>de</strong> posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no mundo em razão da reputação <strong>de</strong><br />
possuir sabedoria, livre-se disso, esvazie-se 44 <strong>de</strong> si mesmo e se faça <strong>de</strong><br />
tolo a seus próprios olhos.”<br />
Além do mais, nestas palavras o apóstolo não está pedindo-nos<br />
que renunciemos totalmente aquela sabedoria que é implantada em<br />
nós pela natureza, ou adquirida por longa prática, mas simplesmente<br />
nos pe<strong>de</strong> que a sujeitemos ao serviço <strong>de</strong> Deus, para que não possuamos<br />
nenhuma outra sabedoria senão aquela que é <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> sua<br />
Palavra. Pois este é o significado <strong>de</strong> “tornar-se tolo neste mundo” ou a<br />
nossos próprios olhos, significa: quando estamos preparados a entregar-nos<br />
a Deus e a abraçar com temor e reverência tudo quanto ele nos<br />
ensina, em vez <strong>de</strong> seguirmos o que nos parece plausível. 45<br />
O significado da frase “neste mundo” é como se ele dissesse: “segundo<br />
o critério ou a opinião do mundo.” Pois esta é a sabedoria do<br />
mundo: se nos consi<strong>de</strong>rarmos auto-suficientes, capazes <strong>de</strong> aconse-<br />
43 “Trop facilement.” – “Tão prontamente.”<br />
44 “Soit fait fol en soy <strong>de</strong> son bom gré s’abbaissant, et s’aneantissant soy-mesme.” – “Que se<br />
torne, espontaneamente, um tolo em sua própria estima, aviltando-se e esvaziando-se.”<br />
45 “Bom et raisonnable..” – “Bom e razoável.”
Capítulo 3 • 141<br />
lhar em todas as questões [Sl 13.2], <strong>de</strong> governar-nos a nós mesmos,<br />
<strong>de</strong> administrar tudo o que temos <strong>de</strong> fazer – se não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong><br />
ninguém 46 e se não precisarmos que alguém nos guie, mas que somos<br />
capazes <strong>de</strong> controlar nossos próprios atos. 47<br />
Portanto, por outro lado, “tolo neste mundo” se refere a alguém<br />
que renuncia a seu próprio entendimento e, como se fosse cego, se<br />
permite guiar pelo Senhor; que, <strong>de</strong>sconfiando <strong>de</strong> si mesmo, se inclina<br />
inteiramente sobre o Senhor; que <strong>de</strong>posita nele toda sua sabedoria;<br />
que se ren<strong>de</strong> a Deus em docilida<strong>de</strong> e submissão. É necessário que nossa<br />
sabedoria <strong>de</strong>ssa forma se <strong>de</strong>svaneça a fim <strong>de</strong> que a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus<br />
possa exercer autorida<strong>de</strong> sobre nós; e que nos esvaziemos <strong>de</strong> nosso<br />
próprio entendimento, para que venhamos a encher-nos da plenitu<strong>de</strong><br />
da sabedoria <strong>de</strong> Deus. Ao mesmo tempo, “neste mundo” po<strong>de</strong> ou ter<br />
conexão com a primeira parte do versículo, ou com a segunda. Entretanto,<br />
visto que o significado não tem gran<strong>de</strong> diferença, <strong>de</strong>ixo ao leitor<br />
o exercício <strong>de</strong> sua própria escolha.<br />
19. Porque a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo. Este é um argumento extraído<br />
<strong>de</strong> coisas opostas. A confirmação <strong>de</strong> uma significa a <strong>de</strong>struição da<br />
outra. Portanto, uma vez que a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo é loucura aos<br />
olhos <strong>de</strong> Deus, segue-se que a única maneira <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos ser sábios aos<br />
olhos <strong>de</strong> Deus é tornando-nos loucos aos olhos do mundo. Já explicamos<br />
[1.20] o que Paulo quis dizer com a expressão “sabedoria <strong>de</strong>ste mundo”:<br />
porquanto a perspicácia natural é um dom <strong>de</strong> Deus, e as artes liberais, e<br />
todas as ciências por meio das quais a sabedoria é adquirida, são também<br />
dons <strong>de</strong> Deus. Tudo isso, porém, tem seus limites <strong>de</strong>finidos, porquanto<br />
não po<strong>de</strong>m penetrar no reino celestial <strong>de</strong> Deus. Conseqüentemente, todas<br />
essas ciências <strong>de</strong>vem ocupar a posição <strong>de</strong> servas, não <strong>de</strong> senhoras.<br />
Além disso, elas <strong>de</strong>vem ser vistas como inúteis e indignas até que estejam<br />
completamente subordinadas à Palavra e ao Espírito <strong>de</strong> Deus. Mas se,<br />
46 “Que <strong>de</strong> nous-mesmes.” – “Além <strong>de</strong> nós mesmos.”<br />
47 “Nous semble que nous sommes assez suffisans <strong>de</strong> nous conduire, et gouuerner nous-<br />
-mesmes.” – “Parece-nos que somos plenamente competentes para conduzir-nos e<br />
governar-nos.”
142 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
em contrapartida, elas se puserem contra Cristo, que então sejam consi<strong>de</strong>radas<br />
como pestes perigosas. E se seus possuidores continuarem<br />
acreditando que são capazes <strong>de</strong> por si mesmos realizar algo, então que<br />
sejam consi<strong>de</strong>radas como o pior <strong>de</strong> todos os obstáculos. 48<br />
Portanto, a sabedoria <strong>de</strong>ste mundo é, na conceituação <strong>de</strong> Paulo,<br />
aquilo que energicamente assume para si a autorida<strong>de</strong> e não permite<br />
ser regulado pela Palavra <strong>de</strong> Deus, e nem se <strong>de</strong>ixa humilhar para que<br />
esteja completamente sujeito a Deus. Portanto, até que suceda <strong>de</strong> uma<br />
pessoa reconhecer que nada sabe exceto o que apren<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Deus e,<br />
tendo renunciado seu próprio entendimento, se resigna sem reserva<br />
à direção <strong>de</strong> Cristo, tal pessoa é sábia segundo os padrões do mundo,<br />
no entanto é tola na avaliação <strong>de</strong> Deus.<br />
Pois está escrito: Ele apanha os sábios em sua própria astúcia.<br />
Paulo confirma o que acaba <strong>de</strong> afirmar à luz <strong>de</strong> dois textos da Escritura.<br />
O primeiro é extraído <strong>de</strong> Jó 5.13, on<strong>de</strong> a sabedoria <strong>de</strong> Deus é exaltada<br />
com base no seguinte: nenhuma sabedoria terrena po<strong>de</strong> permanecer<br />
na presença da sabedoria <strong>de</strong> Deus. Não há dúvida <strong>de</strong> que nesse contexto<br />
o profeta está falando daqueles que são astutos e insidiosos. Visto,<br />
porém, que a sabedoria do homem, quando divorciada <strong>de</strong> Deus, 49 é<br />
invariavelmente a mesma, Paulo a aplica neste sentido: embora os homens<br />
adquiram muita sabedoria por seus próprios esforços, isso não<br />
tem o menor valor aos olhos <strong>de</strong> Deus. O segundo é o Salmo 94.11, on<strong>de</strong>,<br />
após atribuir a Deus a função e a autorida<strong>de</strong> para ensinar a todos, Davi<br />
acrescenta que “O Senhor conhece os pensamentos do homem, que<br />
são pensamentos vãos.” Portanto, não importa quão valorizados tais<br />
pensamentos sejam por nós, segundo o critério divino são fúteis. Esta<br />
é uma excelente passagem para humilhar a confiança da carne, pois<br />
aqui Deus do alto <strong>de</strong>clara que tudo o que a mente humana concebe e<br />
propõe é simples nulida<strong>de</strong>. 50<br />
48 “Ce sont <strong>de</strong> grans empeschements, et bien à craindre.” – “Constituem gran<strong>de</strong>s obstáculos<br />
e <strong>de</strong>vem ser temidas.”<br />
49 “Quand la sagesse <strong>de</strong> Dieu n’y est point.” – “Quando a sabedoria <strong>de</strong> Deus não está nela.”<br />
50 A humilhante tendência da afirmação referida é bem realçada por Kettering. (Fuller’s<br />
Works, vol. iv. p. 389.)
Capítulo 3 • 143<br />
21. Por isso, ninguém se glorie nos homens. Visto que nada é mais<br />
vão do que o homem, quão pouca segurança há em <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong><br />
uma sombra evanescente! Daí, ele faz uma válida inferência da oração<br />
prece<strong>de</strong>nte ao dizer que não se <strong>de</strong>ve gloriar nos homens visto que ali<br />
vemos como o Senhor <strong>de</strong>spe a todos os homens das bases para ostentação.<br />
Entretanto, esta conclusão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo o que ensinou no<br />
argumento prece<strong>de</strong>nte, como logo veremos. Pois já que pertencemos<br />
exclusivamente a Cristo, Paulo está plenamente certo ao ensinar-nos<br />
que qualquer preeminência que porventura seja atribuída ao homem,<br />
pela qual a glória <strong>de</strong> Cristo é prejudicada, envolve sacrilégio.<br />
22. Todas as coisas são vossas. Ele continua mostrando qual o<br />
lugar e a condição que os mestres <strong>de</strong>vem ocupar, 51 a saber, que não<br />
<strong>de</strong>nigram um mínimo grau sequer a singular autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo em<br />
seu ofício <strong>de</strong> Mestre único. Portanto, visto que Cristo é <strong>de</strong> fato o único<br />
Mestre da Igreja; e visto que ele só, e em todas as circunstâncias, <strong>de</strong>ve<br />
ser ouvido, é necessário fazer distinção entre ele e os <strong>de</strong>mais. Cristo<br />
mesmo também <strong>de</strong>u testemunho a seu próprio respeito em termos<br />
similares [Mt 23.8], e nenhum outro nos é recomendado pelo Pai com<br />
esta honrosa <strong>de</strong>claração: 52 A ele ouvi [Mt 17.5]. Portanto, visto que<br />
unicamente ele é investido <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> para governar-nos por meio<br />
<strong>de</strong> sua Palavra, Paulo diz que os outros homens são nossos; em outros<br />
termos, que nos são <strong>de</strong>stinados por Deus a fim <strong>de</strong> que possamos fazer<br />
uso <strong>de</strong>les; mas não para que exerçam domínio sobre nossas consciências.<br />
E assim ele mostra, por um lado, que não são inúteis; e, por outro,<br />
que ele os mantém em seu próprio lugar para que não se exaltem e se<br />
ponham em oposição a Cristo.<br />
Pelo que toca à presente passagem, ele faz uso <strong>de</strong> hipérbole, no<br />
que tange à morte e à vida, e assim por diante. Entretanto, ele tinha em<br />
vista argumentos do maior para o menor, por assim dizer, como segue:<br />
51 “C’est à dire, quelle estime on en doit auoir.” – “Equivale dizer, em que estima <strong>de</strong>vem ser<br />
tidos.”<br />
52 “Nul autre ne nous a esté donné du Pere authorizé <strong>de</strong> ce titre et comman<strong>de</strong>ment.” – “Nenhum<br />
outro nos foi dado pelo Pai, autorizado por esta distinção e injunção.”
144 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
“Visto que Cristo pôs em sujeição a nós a vida, a morte e tudo mais,<br />
po<strong>de</strong> que duvi<strong>de</strong>mos se ele tornou os homens também sujeitos a nós,<br />
a fim <strong>de</strong> auxiliar-nos por meio <strong>de</strong> suas administrações; certamente não<br />
para nos oprimir com tirania.”<br />
Ora, se à luz <strong>de</strong>sse fato alguém objetar, dizendo que os escritos<br />
<strong>de</strong> Paulo e Pedro também estão sujeitos a nosso julgamento, visto que<br />
ambos eram homens, e que não estão isentos da sorte comum dos<br />
<strong>de</strong>mais, minha resposta é que, enquanto Paulo <strong>de</strong> modo algum poupa<br />
a si e a Pedro, ele aconselha os coríntios a distinguirem entre a pessoa<br />
como indivíduo e a dignida<strong>de</strong> e caráter do ofício. É como se ele quisesse<br />
dizer: “Quanto a mim, pessoalmente, uma vez que sou homem,<br />
<strong>de</strong>sejo ser julgado somente como homem, a fim <strong>de</strong> que só Cristo venha<br />
a ser o único a ter a preeminência em meu ministério.” Entretanto, <strong>de</strong><br />
um modo geral <strong>de</strong>vemos afirmar 53 que todos quantos exercem o ofício<br />
do ministério, do maior ao menor, são nossos, <strong>de</strong> modo que somos<br />
livres, não para aceitar o que ensinam enquanto não provarem ser o<br />
mesmo <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> Cristo. Pois todos eles <strong>de</strong>vem ser provados, e obediência<br />
só lhes <strong>de</strong>ve ser prestada quando tiverem <strong>de</strong>monstrado que<br />
são genuínos servos <strong>de</strong> Cristo. No que diz respeito a Pedro e Paulo, porém,<br />
o Senhor <strong>de</strong>u sobejas evidências, <strong>de</strong> modo que não fica qualquer<br />
sombra <strong>de</strong> dúvida <strong>de</strong> que sua doutrina tem nele sua fonte. Em conseqüência,<br />
quando apreciamos e respeitamos, como <strong>de</strong>claração do céu,<br />
tudo o que fizeram conhecido, damos ouvido não propriamente a eles,<br />
mas ao próprio Cristo falando neles.<br />
23. Cristo é <strong>de</strong> Deus. Esta sujeição [<strong>de</strong> Cristo a Deus] tem referência<br />
à humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo; porque, ao vestir-se com nossa carne,<br />
ele assumiu para si a forma e condição <strong>de</strong> escravo, <strong>de</strong> modo que se fez<br />
obediente ao Pai em todos os aspectos [Fp 2.7, 8]. E para que pudéssemos<br />
a<strong>de</strong>rir a Deus através <strong>de</strong>le, é certo que ele <strong>de</strong>ve ter o Pai por<br />
cabeça [1Co 11.2]. Todavia, é preciso que prestemos atenção no propósito<br />
que Paulo tinha em mente quando adicionou isso. Pois ele nos<br />
53 “Pour vne maxime.” – “Como uma máxima.”
Capítulo 3 • 145<br />
cientifica que nossa mais plena felicida<strong>de</strong> consiste 54 em nossa união<br />
com Deus, que é o principal bem. Isso é efetuado <strong>de</strong> forma concreta<br />
quando somos reunidos sob a Cabeça a quem o Pai celestial estabeleceu<br />
sobre nós. Em termos semelhantes, Cristo disse a seus discípulos<br />
[Jo 14.28]: “Regozijai-vos, porque eu vou para o Pai, porque o Pai é<br />
maior do que eu.” Pois ele o levantou como o Mediador através <strong>de</strong><br />
quem os crentes po<strong>de</strong>m ir à fonte original <strong>de</strong> todas as bênçãos. É verda<strong>de</strong><br />
que aqueles que se apartam da unida<strong>de</strong> da Cabeça 55 se privam<br />
<strong>de</strong>sse gran<strong>de</strong> benefício. Daí, esta or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> coisas se ajusta à conexão<br />
da passagem – que esses se sujeitem somente a Cristo os quais <strong>de</strong>sejam<br />
permanecer sob a jurisdição <strong>de</strong> Deus.<br />
54 “Car il nous donne à entendre, et remonstre, que le comble et la perfection <strong>de</strong> nostre<br />
felicité consiste là.” – “Pois ele nos dá a enten<strong>de</strong>r e nos mostra que o auge e perfeição <strong>de</strong><br />
nossa felicida<strong>de</strong> consiste nisto.”<br />
55 “Qui ne retienent ce seul Chef.” – “Que não retêm aquela única Cabeça.”
Capítulo 4<br />
1. Que os homens nos consi<strong>de</strong>rem<br />
como ministros <strong>de</strong> Cristo e <strong>de</strong>spenseiros<br />
dos mistérios <strong>de</strong> Deus.<br />
2. Além disso, o que se requer dos<br />
<strong>de</strong>spenseiros é que cada um seja<br />
encontrado fiel.<br />
3. Mas, quanto a mim, pouco me importa<br />
que eu seja julgado por vós, ou<br />
por juízo humano; sim, eu mesmo<br />
não me julgo.<br />
4. Porque, nada sei contra mim mesmo;<br />
mas nem por isso sou justificado,<br />
pois quem me julga é o Senhor.<br />
5. Portanto, nada julgueis antes do<br />
tempo, até que o Senhor venha, o<br />
qual trará à luz as coisas ocultas<br />
das trevas e manifestará os <strong>de</strong>sígnios<br />
ocultos do coração; e então<br />
cada um receberá o louvor <strong>de</strong> Deus.<br />
1. Sic nos æstimet homo ut ministros<br />
Christi, et dispensatores arcanorum<br />
Dei.<br />
2. Cæterum in ministris hoc quæritur,<br />
ut fi<strong>de</strong>lis aliquis reperiatur.<br />
3. Mihi viro pro minimo est, a vobis<br />
diiudicari, aut ab humano die: 1 imo<br />
nec me ipsum diiudico.<br />
4. Nullius enim rei mihi sum conscius:<br />
sed non in hoc sum justificatus.<br />
Porro qui me diiudicat, Dominus<br />
est.<br />
5. Itaque ne ante tempus quicquam<br />
iudicetis, donec venerit Dominus,<br />
qui et illustrabit abscondita tenebrarum,<br />
et manifestabit consilia<br />
cordium; et tunc laus erit cuique<br />
a Deo.<br />
1. Que os homens nos consi<strong>de</strong>rem. Visto que era um assunto<br />
<strong>de</strong> séria preocupação ver a igreja entregue a divisões e facções nocivas,<br />
em razão dos gostos e <strong>de</strong>sgostos do povo, Paulo parte para uma<br />
discussão mais extensa sobre o ministério da Palavra. Três coisas<br />
precisam ser consi<strong>de</strong>radas aqui em sua or<strong>de</strong>m. Primeira, Paulo <strong>de</strong>fine<br />
o ofício <strong>de</strong> um pastor da Igreja. Segunda, ele mostra que não basta<br />
1 “De iour humain – c’est à dire, <strong>de</strong> iugement d’homme.” – “O dia do homem – isto é, do<br />
critério humano.”
148 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
que alguém exiba um título, nem mesmo que enfrente o <strong>de</strong>ver – o<br />
requisito é uma fiel administração do ofício. Terceira, visto que os<br />
coríntios tinham um conceito completamente distorcido 2 a seu respeito,<br />
ele convoca, a eles e a si próprio, a comparecerem diante do<br />
tribunal <strong>de</strong> Cristo.<br />
Portanto, em primeiro lugar ele ensina em que estima se <strong>de</strong>ve ter<br />
por cada mestre da Igreja. Ao tratar disso, ele modifica seu discurso <strong>de</strong><br />
modo que, por um lado, não se dê pouco crédito à dignida<strong>de</strong> do ministério,<br />
ou, por outro lado, não se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>signar ao homem além do que<br />
é conveniente. Pois ambas essas posições são extremamente perigosas<br />
porque, quando os ministros são menosprezados, surge também<br />
o menosprezo pela Palavra; 3 enquanto que, em contrapartida, se lhes<br />
é dado mais importância do que merecem, os ministros abusam <strong>de</strong><br />
sua liberda<strong>de</strong> e passam a fazer precisamente o que apreciam, “agindo<br />
displicentemente contra o Senhor” [1Tm 5.11]. Ora, a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong><br />
Paulo repousa no fato <strong>de</strong> os chamar ministros <strong>de</strong> Cristo. Ao agir assim,<br />
ele preten<strong>de</strong> dizer-lhes que não <strong>de</strong>vem ocupar-se <strong>de</strong> seu próprio trabalho,<br />
mas do trabalho do Senhor, o qual os convocou como seus servos,<br />
e igualmente sugere que não foram <strong>de</strong>signados para governarem a<br />
Igreja com autorida<strong>de</strong> imperiosa, mas para viverem sob a suprema autorida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Cristo. 4 Em suma, eles são servos, não senhores.<br />
O acréscimo, <strong>de</strong>spenseiros dos mistérios <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>screve<br />
o caráter [genus] do ministério. Com isso ele insinua que a função<br />
<strong>de</strong>les é confinada à administração dos mistérios <strong>de</strong> Deus. Em outros<br />
termos, eles se <strong>de</strong>dicam aos homens, corpo-a-corpo, como dizemos, 5<br />
não segundo seus próprios gostos, mas segundo o Senhor confiou a<br />
sua responsabilida<strong>de</strong>. Ele po<strong>de</strong>ria colocar <strong>de</strong>sta forma: “Deus os es-<br />
2 “Pource que les Corinthiens iugeoyent <strong>de</strong> luy d’vne mauuaise sorte, et bien inconsi<strong>de</strong>reement.”<br />
– “Como os coríntios o julgavam <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong>sfavorável e mui abruptamente.”<br />
3 “Facilement on viendra à mespriser la parole <strong>de</strong> Dieu.” – “Prontamente virão a <strong>de</strong>sprezar<br />
a palavra <strong>de</strong> Deus.”<br />
4 “Ils sont eux-mesmes comme les autres sous la domination <strong>de</strong> Christ.” – “Eles mesmos<br />
estão, em comum com os <strong>de</strong>mais, sob o domínio <strong>de</strong> Cristo.”<br />
5 Nosso autor usa da mesma expressão quando comenta 1 Coríntios 11.23 e 15.3.
Capítulo 4 • 149<br />
colheu para serem ministros <strong>de</strong> seu Filho, para, através <strong>de</strong>les, tornar<br />
conhecida dos homens sua sabedoria celestial. Por essa razão, <strong>de</strong>vem<br />
restringir-se estritamente a esta tarefa.” Mas tudo indica que ele está<br />
repreen<strong>de</strong>ndo indiretamente os coríntios, porque, tendo negligenciado<br />
os mistérios celestiais, passaram a seguir, com extrema avi<strong>de</strong>z,<br />
após coisas estranhas, engendradas pelos homens, e isso em virtu<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> avaliarem seus mestres meramente pelos padrões da erudição<br />
mundana.<br />
Paulo enaltece o evangelho <strong>de</strong>nominando-o os mistérios <strong>de</strong><br />
Deus. Além do mais, visto que os sacramentos se acham conectados<br />
a esses mistérios, como suplementos, segue-se que, aqueles<br />
que são responsáveis pela proclamação da Palavra, também estão<br />
autorizados a ministrá-los.<br />
2. Além disso, o que se requer dos ministros. 6 É como se quisesse<br />
dizer: “É <strong>de</strong> pouca serventia ser administrador [dispensator], se a administração<br />
[dispensatio] não for correta.” Ora, a regra para se efetuar<br />
uma administração correta é o administrador portando-se com toda fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>.<br />
Temos <strong>de</strong> prestar cuidadosa atenção a esta passagem a fim<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrirmos como, <strong>de</strong> uma forma arrogante, 7 os papistas exigem<br />
que tudo o que fizerem, e tudo o que ensinarem, tem <strong>de</strong> assumir uma<br />
autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei, simplesmente sob o pretexto <strong>de</strong> serem eles chamados<br />
‘pastores’. Longe <strong>de</strong> Paulo, porém, sentir-se satisfeito com um simples<br />
título. Para ele, nem mesmo basta a vocação legítima, a menos que a<br />
pessoa chamada execute os <strong>de</strong>veres do ofício com toda fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Portanto,<br />
sempre que os papistas põem diante <strong>de</strong> nó a camuflagem <strong>de</strong> um<br />
título com o fim <strong>de</strong> manter a tirania <strong>de</strong> seus ídolos, nossa resposta <strong>de</strong>ve<br />
ser que Paulo requer dos ministros <strong>de</strong> Cristo muito mais que isso. Todavia,<br />
se tudo for <strong>de</strong>vidamente consi<strong>de</strong>rado, o leitor <strong>de</strong>scobrirá que o<br />
papa e seu séquito carecem não só <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> no <strong>de</strong>sempenho dos<br />
<strong>de</strong>veres do ofício, mas também do próprio ministério.<br />
Não obstante, esta passagem discute o problema não só dos falsos<br />
6 “Entre les dispensateurs.” – “Entre os <strong>de</strong>spenseiros.”<br />
7 “Et d’une façon magistrate.” – “E com um ar <strong>de</strong> magistrado.”
150 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
mestres, mas também <strong>de</strong> todos aqueles que têm algum outro propósito<br />
em vista além da glória <strong>de</strong> Cristo e a edificação da Igreja. Pois<br />
o caso não consiste em que todos os que ensinam a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>vam<br />
ser consistentemente fiéis, mas somente a pessoa que <strong>de</strong>seja sinceramente<br />
servir ao Senhor e buscar o avanço do reino <strong>de</strong> Cristo. Não é<br />
sem razão que Agostinho proveitosamente <strong>de</strong>signa aos mercenários<br />
[Jo 10.12] uma posição intermediária entre os lobos e os bons mestres.<br />
Além do mais, Agostinho, nesta passagem, <strong>de</strong> fato fala claramente do<br />
que Paulo afirma sobre o fato <strong>de</strong> Cristo também exigir sabedoria <strong>de</strong><br />
um bom <strong>de</strong>spenseiro [Lc 12.42]. O significado, porém, é o mesmo. Pois<br />
o que Cristo quer dizer por fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> é a integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência,<br />
a qual <strong>de</strong>ve ser acompanhada <strong>de</strong> conselho sadio e pru<strong>de</strong>nte. E pela<br />
expressão “ministro fiel” ele tem em mente alguém que, com conhecimento<br />
tanto quanto com retidão <strong>de</strong> coração, 8 <strong>de</strong>sempenha o ofício <strong>de</strong><br />
um bom e fiel ministro.<br />
3. Quanto a mim, pouco me importa. Restava a Paulo manter<br />
sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> justamente no centro do quadro para que os coríntios<br />
pu<strong>de</strong>ssem manter suas mentes direcionadas para ela. Mas, em virtu<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> seu juízo ser corrupto, ele vira as costas e apela para o tribunal<br />
<strong>de</strong> Cristo. Os coríntios continuavam equivocados, já que viviam fascinados<br />
pelas aparências externas e não atentavam para as marcas<br />
genuínas e a<strong>de</strong>quadas <strong>de</strong> distinção. 9 Conseqüentemente, com gran<strong>de</strong><br />
confiança, ele testifica que <strong>de</strong>spreza um juízo pervertido e cego <strong>de</strong>sse<br />
gênero. E assim ele, <strong>de</strong> um lado, admiravelmente <strong>de</strong>ixa exposta a<br />
vaida<strong>de</strong> dos falsos apóstolos que viviam na expectativa <strong>de</strong> receber a<br />
aprovação humana e nada mais, e se consi<strong>de</strong>ravam felizes quando se<br />
viam como alvos do aplauso dos homens. E, do outro, austeramente<br />
8 “Auec science et bonne discretion, et d’vn cœur droit.” – “Com conhecimento e boa discrição,<br />
bem como com um coração reto.”<br />
9 “Ils estoyent rauis en admiration <strong>de</strong> ces masques externes, comme gens tout transportez,<br />
et ne regardouent point a discerner vrayement ne proprement.” – “Estavam arrebatados<br />
com admiração ante as marcas estranhas, como pessoas em completo transporte, e não<br />
se cuidavam em distinguir o verda<strong>de</strong>iro e o legítimo.”
Capítulo 4 • 151<br />
açoita a arrogância 10 dos coríntios, sendo esta a razão por que estavam<br />
tão cegos em seu discernimento.<br />
Todavia, po<strong>de</strong>-se perguntar com proprieda<strong>de</strong>, que direito tinha<br />
Paulo, não só <strong>de</strong> rejeitar a censura <strong>de</strong> uma Igreja, mas ainda <strong>de</strong> pôr-se<br />
acima do julgamento humano, já que essa é a condição comum <strong>de</strong> todos<br />
os pastores, a saber, ser julgados pela Igreja? Minha resposta é que<br />
a característica <strong>de</strong> um bom pastor é permitir que sua doutrina e sua<br />
vida sejam examinados pelo juízo da Igreja, e o sinal <strong>de</strong> uma boa consciência<br />
é que ele não evite a luz <strong>de</strong> cuidadosa inspeção. Por exemplo,<br />
Paulo mesmo estava sempre pronto a submeter-se ao juízo da Igreja<br />
<strong>de</strong> Corinto e a ser chamado a prestar contas tanto <strong>de</strong> sua vida quanto<br />
<strong>de</strong> sua doutrina, caso houvesse entre eles meios apropriados <strong>de</strong><br />
averiguação; 11 pois com freqüência lhes outorga esse po<strong>de</strong>r, e <strong>de</strong> sua<br />
própria iniciativa sinceramente solicita que se prontifiquem a julgar<br />
corretamente. Mas quando um fiel pastor se vê assenhoreado por sentimentos<br />
hostis e ilógicos, e não se <strong>de</strong>ixa nenhum lugar para a justiça e<br />
a verda<strong>de</strong>, então não importa o que os homens pensem: ele apela para<br />
Deus e busca recursos em seu tribunal, especialmente quando não se<br />
po<strong>de</strong> assegurar <strong>de</strong> se chegar a um conhecimento verda<strong>de</strong>iro e acurado<br />
das questões em pauta.<br />
Portanto, se os servos do senhor se lembrarem <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vem agir<br />
<strong>de</strong>ssa maneira, então que consintam que sua doutrina e sua vida sejam<br />
expostas à prova e, ainda mais, que eles mesmos se prontifiquem voluntariamente;<br />
e se porventura houver alguma queixa contra eles, que<br />
não se furtem <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r. Mas se perceberem que são con<strong>de</strong>nados<br />
sem uma audiência formal, e o julgamento é transmitido sem que suas<br />
razões sejam ouvidas, então que assumam sua posição <strong>de</strong> honra, on<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhando do que os homens pensem, intrépidos 12 aguar<strong>de</strong>m que<br />
Deus seja seu Juiz. Des<strong>de</strong> a antigüida<strong>de</strong>, quando os profetas tinham<br />
10 “Et orgueil” – “E orgulho.”<br />
11 “Si entr’eux il y eust eu vne legitime et droite façon <strong>de</strong> iuger.” – “Se houvesse entre eles<br />
um método lícito e correto <strong>de</strong> julgar.”<br />
12 “Ils auoyent affaire à <strong>de</strong>s gens opiniastes et pleins <strong>de</strong> rebellion.” – “Têm a ver com pessoas<br />
que eram obstinadas e dominadas pela rebelião.”
152 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
que tratar com pessoas irredutíveis, que ousavam <strong>de</strong>sprezar a Palavra<br />
<strong>de</strong> Deus afrontando-a na pessoa dos profetas, estes se punham numa<br />
posição imponente a fim <strong>de</strong> esmagar a diabólica obstinação que, tão<br />
notória, subverte o soberano domínio <strong>de</strong> Deus e a luz da verda<strong>de</strong>. Mas<br />
quando se oferece a alguém a chance <strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, ou, ao menos,<br />
quando precisa inocentar-se, e apela para Deus à guisa <strong>de</strong> subterfúgio,<br />
por certo que garantirá sua inocência por esse método, porém sua<br />
repugnante impudência ficará a <strong>de</strong>scoberto. 13<br />
Ou por algum juízo humano. [O latim: aut ab humanodie. O grego:<br />
ἤ υ̒πὸ ἀνθρωπίνης η̒μέρας] Ainda que outros expliquem isso <strong>de</strong> outra<br />
forma, meu ponto <strong>de</strong> vista consiste em que é mais fácil tomar a palavra<br />
dia metaforicamente, no sentido <strong>de</strong> juízo, porque há dias <strong>de</strong>signados<br />
para a administração da justiça, e as partes são citadas para um certo<br />
dia. Paulo o chama “dia do homem” 14 quando se pronuncia juízo, não<br />
em concordância com a verda<strong>de</strong> ou com a Palavra <strong>de</strong> Deus, mas em<br />
concordância com as concepções e temerida<strong>de</strong> dos homens, 15 quando,<br />
na verda<strong>de</strong>, Deus não presi<strong>de</strong> o tribunal. Paulo está dizendo: “Que<br />
os homens tomem assento no tribunal como lhes apraz; quanto a mim,<br />
basta-me que Deus rescinda qualquer <strong>de</strong>cisão que porventura tenham<br />
pronunciado.”<br />
Sim, nem eu mesmo me julgo. O significado é o seguinte: “Não<br />
ouso julgar a mim mesmo, ainda que eu seja quem melhor me conhece;<br />
como, pois, me julgaríeis, quando <strong>de</strong> vós eu sou menos intimamente<br />
conhecido?” E ele prova que não se aventura a julgar-se a si mesmo,<br />
ao dizer que, embora pessoalmente talvez não tivesse consciência <strong>de</strong><br />
algum erro, contudo não significava que fosse inocente aos olhos <strong>de</strong><br />
Deus. Ele, pois, conclui que o que os coríntios reivindicavam para si<br />
era algo que pertencia exclusivamente a Deus. Diz ele: “Quanto a mim,<br />
13 170 “Se <strong>de</strong>monstrera estre merueilleusement impu<strong>de</strong>nt.” – “Ele <strong>de</strong>monstrará ser admiravelmente<br />
impu<strong>de</strong>nte.”<br />
14 A palavra dia, que é uma tradução literal da palavra original η̒μέρας, é usada em algumas<br />
<strong>de</strong> nossas versões.<br />
15 “Selon les sottes affections, ou les mouuemens temeraires <strong>de</strong>s hommes.” – “Segundo os<br />
tolos afetos ou impulsos temerários dos homens.”
Capítulo 4 • 153<br />
ao fazer um criterioso exame <strong>de</strong> meu íntimo, percebo que minha visão<br />
não é suficientemente penetrante para visualizar as condições dos<br />
recessos mais íntimos <strong>de</strong> meu ser. Eis aqui a razão por que <strong>de</strong>ixo tal<br />
empreendimento para Deus, porquanto só ele é capaz <strong>de</strong> julgar, e só<br />
ele tem o direito <strong>de</strong> fazê-lo. Quanto a vós, sobre que bases cre<strong>de</strong>s ser<br />
capazes <strong>de</strong> fazer melhor?”<br />
Entretanto, visto que seria absurdo proibir todo gênero <strong>de</strong> julgamento,<br />
por exemplo, o próprio indivíduo aplicando a si mesmo e cada<br />
pessoa aplicando a seu irmão, ou todos a uma só voz aplicando ao pastor,<br />
<strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r que Paulo não está se referindo aqui às ações<br />
humanas, que po<strong>de</strong>m ser julgadas boas ou más segundo a Palavra do<br />
Senhor, mas ao valor <strong>de</strong> cada pessoa, o qual não <strong>de</strong>ve ser aquilatado<br />
pela <strong>de</strong>cisão dos homens. É prerrogativa <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>terminar o valor<br />
<strong>de</strong> cada pessoa e que gênero <strong>de</strong> honra ela merece. Os coríntios, contudo,<br />
<strong>de</strong>sprezavam Paulo e sem qualquer base sólida exaltavam os<br />
<strong>de</strong>mais até o céu, como se o exame que pertencia exclusivamente a<br />
Deus fosse matéria <strong>de</strong> sua jurisdição. Este é o “dia do homem” que já<br />
mencionei, a saber, quando os homens se assentam no trono do juízo<br />
e, como se fossem <strong>de</strong>uses, antecipam o dia <strong>de</strong> Cristo, o qual foi <strong>de</strong>signado<br />
pelo Pai como o único Juiz; quando aquinhoam a cada um com<br />
uma posição <strong>de</strong> honra, pondo alguns em posição eminente, enquanto<br />
que a outros relegam a posições inferiores. Mas, qual é o critério que<br />
governa suas distinções? Ficam atentos no que está na superfície e<br />
nada mais; e assim, o que é nobre e honroso para eles é, com freqüência,<br />
uma abominação aos olhos <strong>de</strong> Deus [Lc 16.15].<br />
Se alguém objetar, dizendo que os ministros da Palavra po<strong>de</strong>m,<br />
neste mundo, ser distinguidos por suas obras, como a árvore e seus<br />
frutos [Mt 7.16], reconheço que isso <strong>de</strong>veras tem fundamento, todavia<br />
<strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar aqueles <strong>de</strong> quem Paulo tratava. Eram pessoas<br />
que meramente amavam a ostentação e estavam sempre prontas a julgar,<br />
e que arrogavam para si o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>signar a cada um seu lugar<br />
no reino <strong>de</strong> Deus [Mt 20.23], quando Cristo mesmo, durante sua estada<br />
neste mundo, se absteve <strong>de</strong> fazê-lo. Portanto, ele não nos proíbe <strong>de</strong>
154 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
ter em profunda estima aqueles <strong>de</strong> quem tomamos conhecimento <strong>de</strong><br />
serem fiéis, e a quem não tememos recomendar; nem nos proíbe <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cidir quem é mau obreiro à luz da Palavra <strong>de</strong> Deus. Mas con<strong>de</strong>na a<br />
insolência que vem a lume quando alguns, governados pela ambição,<br />
se põem acima <strong>de</strong> outros, não porque o mereçam, mas porque não<br />
atentam para um <strong>de</strong>tido exame do caso. 16<br />
4. Porque, nada sei contra mim mesmo. Notemos que aqui Paulo<br />
não está falando acerca <strong>de</strong> toda sua vida, mas simplesmente do ofício<br />
<strong>de</strong> seu apostolado. Porque, se <strong>de</strong> fato ele não tivesse consciência <strong>de</strong><br />
algum erro pessoal, 17 a queixa que ele faz em Romanos 7.19 não seria<br />
totalmente <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> base, a saber: o mal que eu não quero fazer,<br />
esse eu faço; e que se via impedido pelo pecado <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se inteiramente<br />
a Deus. Portanto, Paulo tinha consciência <strong>de</strong> que o pecado<br />
habitava nele e o confessava. Mas ao <strong>de</strong>frontar-se com seu apostolado<br />
– e é disso que ele está tratando aqui –, ele se comportava com<br />
tanta integrida<strong>de</strong> e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, que sua consciência <strong>de</strong> forma alguma<br />
o acusava. Este não é um testemunho ordinário, e o mesmo revela<br />
claramente o quanto ele tinha um coração reto e santo. 18 Ele, porém,<br />
nega que pu<strong>de</strong>sse ser justificado por isto: que fosse inocente e isento<br />
<strong>de</strong> toda culpa aos olhos <strong>de</strong> Deus. Por quê? Porque Deus possui uma<br />
percepção infinitamente mais penetrante do que a nossa, e por isso o<br />
que em nossa percepção parece ser <strong>de</strong>slumbrantemente belo, a seus<br />
olhos não passa <strong>de</strong> imundícia. Aqui surge uma advertência excelente<br />
e mui benéfica, a saber: que não meçamos a exatidão da justiça divina<br />
pelo critério <strong>de</strong> nossas próprias idéias. Porquanto nossa percepção é<br />
paupérrima; a <strong>de</strong> Deus, porém, é infinitamente penetrante. Somos <strong>de</strong>masiadamente<br />
complacentes no que respeito a nossa própria pessoa,<br />
porém Deus é um juiz extremamente severo. Portanto, o que Salomão<br />
16 “Comme on dit.” – “Como dizem.”<br />
17 “Si nihil prorsus sibi consciret.” – nosso autor mais provavelmente tinha em vista uma<br />
passagem bem conhecida <strong>de</strong> Horácio (Ep. I.i.61): “Nil conscire sibi” – “Ter consciência <strong>de</strong><br />
que em si não existe nenhum erro.”<br />
18 “Combien sas conscience estoit pure et nette.” – “Quão pura e límpida era sua consciência.”
Capítulo 4 • 155<br />
afirma é mui verda<strong>de</strong>iro (Pv 21.2): “Todo caminho <strong>de</strong> um homem é reto<br />
a seus próprios olhos, porém o Senhor pesa os corações.”<br />
Os papistas tiram vantagem <strong>de</strong>sta passagem com o fim <strong>de</strong> abalar<br />
a certeza da fé em seus fundamentos; e <strong>de</strong>veras confesso que, se<br />
sua doutrina fosse aceita, não faríamos outra coisa senão viver em um<br />
ignóbil estado <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> todos os dias <strong>de</strong> nossa vida. Pois que sorte<br />
<strong>de</strong> paz <strong>de</strong> espírito possuiríamos caso nossas obras <strong>de</strong>cidissem se<br />
somos ou não aceitos por Deus? Portanto, confesso que do principal<br />
fundamento dos papistas nada promana senão incessante distúrbio <strong>de</strong><br />
consciência. Por causa disso, ensinamos que é preciso buscar refúgio<br />
na graciosa promessa da misericórdia que nos é oferecida em Cristo,<br />
para que saibamos com certeza que somos reputados por justos aos<br />
olhos <strong>de</strong> Deus.<br />
5. Portanto, nada julgueis antes do tempo. Desta conclusão<br />
se manifesta que Paulo não estava con<strong>de</strong>nando todo e qualquer gênero<br />
<strong>de</strong> julgamento, mas somente aquele julgamento precipitado e<br />
audacioso sem que haja um exame criterioso. Pois os coríntios não<br />
estavam atentos para o caráter <strong>de</strong> cada pessoa com olhos <strong>de</strong>stituídos<br />
<strong>de</strong> preconceito, mas, vivendo sob o domínio da ambição, cometiam o<br />
<strong>de</strong>svario <strong>de</strong> exaltar a uma pessoa e <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir a outra, e assumiam<br />
mais do que os homens têm o direito <strong>de</strong> fazer, ou, seja, <strong>de</strong>terminar o<br />
que cada um realmente merece. Saibamos, pois, o quanto nos é permitido,<br />
o que agora nos cabe examinar e o que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>ferido até o<br />
dia <strong>de</strong> Cristo, e não nos aventuremos ir além <strong>de</strong>sses limites. Porquanto<br />
existem algumas coisas que agora são claras a nossos olhos, porém<br />
existem outras que permanecerão sepultadas em obscurida<strong>de</strong> até o<br />
dia <strong>de</strong> Cristo.<br />
O qual trará à luz. Se esta é uma afirmação genuína e apropriada<br />
sobre o dia <strong>de</strong> Cristo, segue-se que os negócios <strong>de</strong>ste mundo nunca<br />
são bem or<strong>de</strong>nados, mas que muitas coisas estão envoltas em trevas;<br />
que nunca há luz suficiente para que muitas coisas evitem permanecer<br />
em obscurida<strong>de</strong>. Estou me referindo à vida e às ações dos homens.<br />
Na segunda parte da sentença ele explica qual é a causa das trevas e
156 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> modo que nem tudo é explícito agora. Naturalmente que<br />
isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> haver no coração humano extraordinárias regiões<br />
secretas e recessos por <strong>de</strong>mais profundos. Portanto, até que os<br />
pensamentos dos corações sejam trazidos à plena luz, haverá sempre<br />
trevas.<br />
E então cada um receberá <strong>de</strong> Deus seu louvor. É como se ele dissesse:<br />
“Ora, vós, coríntios, proce<strong>de</strong>is como se fôsseis árbitros <strong>de</strong> jogos<br />
públicos, 19 porque a alguns conferis a coroa, enquanto que a outros<br />
<strong>de</strong>spedis humilhados. No entanto, esse direito e essa função pertencem<br />
exclusivamente a Cristo. Estais fazendo isso antes do tempo, antes <strong>de</strong><br />
evi<strong>de</strong>nciar-se quem <strong>de</strong> fato merece a coroa. O Senhor <strong>de</strong>veras <strong>de</strong>signou<br />
um dia em que o fará conhecido.” Esta afirmação proce<strong>de</strong> da confiança<br />
<strong>de</strong> uma sã consciência, a qual também traz este benefício, a saber:<br />
quando <strong>de</strong>ixamos a questão <strong>de</strong> nosso louvor nas mãos <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ramos<br />
a fútil aclamação dos homens e os aplausos humanos.<br />
6. E essas coisas, irmãos, aplico em<br />
figura transferida a mim e a Apolo<br />
por amor <strong>de</strong> vós; para que, em nós,<br />
aprendais a não julgar os homens<br />
acima do que está escrito; para que<br />
nenhum <strong>de</strong> vós se ensoberbeça a favor<br />
<strong>de</strong> um, em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outro.<br />
7. Porque, quem te faz diferente <strong>de</strong><br />
outro? e o que possuis que não recebeste?<br />
ora, se o recebeste, por que<br />
te glórias, como se não o tivesses<br />
recebido?<br />
8. Já estais saciados; já estais ricos; já<br />
estais reinando como reis sem nós;<br />
bem que eu quisera que reinásseis,<br />
para que nós também pudéssemos<br />
reinar convosco.<br />
6. Hæc autem, fratres, transfiguravi in<br />
me ipsum et Apollo propter vos, ut<br />
in nobis disceretis, ne quis supra id<br />
quod scriptum est, <strong>de</strong> se sentiat: ut<br />
ne quis pro hoc vel illo infletur adversus<br />
alterum.<br />
7. Quis enim te discernit? quid autem<br />
habes, quod non acceperis? si vero<br />
etiam acceperis, quid gloriaris, tanquam<br />
non acceperis?<br />
8. Jam saturati estis, jam ditati estis,<br />
absque nobis regnum a<strong>de</strong>pti estis;<br />
atque utinam sitis a<strong>de</strong>pti ut et nos<br />
vobiscum regnemus.<br />
19 Tanquam agnothetæ. A alusão é aos oficiais ou árbitros (αγωνοθέται) que julgavam os<br />
prêmios nos jogos gregos. (Ver Heródoto vi.127.)
Capítulo 4 • 157<br />
6. Aplico em figura transferida a mim e a Apolo. Daqui inferimos<br />
que os fundadores dos partidos não se contavam entre os que eram<br />
<strong>de</strong>votados a Paulo, porque é plenamente certo que eles não tinham<br />
recebido nenhuma instrução para proce<strong>de</strong>rem assim; em vez disso,<br />
eram os que, movidos por ambição, se puseram nas mãos dos mestres<br />
ostentosos. 20 Visto, porém, que ele podia mais livremente, e com<br />
menos indignação, fazer referência particular a sua própria pessoa e a<br />
<strong>de</strong> seus irmãos, ele preferiu apresentar uma ilustração <strong>de</strong> sua própria<br />
pessoa ao erro que estava em outros. Ao mesmo tempo, o que teria<br />
sido um aborrecimento para eles, Paulo <strong>de</strong>tecta culpa nos fundadores<br />
dos partidos e aponta com seu <strong>de</strong>do as fontes das quais esta fatal<br />
separação teve sua origem. Pois ele sugere que, se permanecessem<br />
contentes com os bons mestres, este mal não lhes teria acontecido. 21<br />
Para que, em nós. Outros manuscritos trazem “para que, em vós”.<br />
Ambas as redações são plenamente possíveis, e não envolve nenhuma<br />
diferença <strong>de</strong> significado. Porquanto Paulo preten<strong>de</strong> dizer: “Para servir<br />
<strong>de</strong> exemplo, eu transferi essas coisas para mim e para Apolo, a fim <strong>de</strong><br />
que possais aplicar a vós mesmos este mo<strong>de</strong>lo. Portanto, apren<strong>de</strong>i,<br />
pois, em nós, isto é, no exemplo <strong>de</strong> nossas vidas, o que tenho posto<br />
diante <strong>de</strong> vós como um espelho.” Ou: “Apren<strong>de</strong>i em nós, isto é, aplicai<br />
este exemplo a vós mesmos.”<br />
Não obstante, o que ele quer que apren<strong>de</strong>ssem? Que ninguém se<br />
ensoberbeça contra outrem por seu próprio mestre, isto é, que não<br />
se encham <strong>de</strong> orgulho por causa <strong>de</strong> seus mestres, e não façam uso <strong>de</strong><br />
seus nomes para manter as facções vivas nem para dividir a Igreja por<br />
meio <strong>de</strong> controvérsias. Deve-se observar que o orgulho ou arrogância<br />
é a causa e ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> todas as controvérsias, quando cada<br />
um, reivindicando para si mais do que permite seu direito, procura<br />
com avi<strong>de</strong>z assenhorear-se dos <strong>de</strong>mais.<br />
20 “A ces docteurs pleins d’ostentation.” – “Àqueles mestres saturados <strong>de</strong> ostentação.”<br />
21 “S’ils se contentent <strong>de</strong> bons et fi<strong>de</strong>les docteurs, ils seront hors <strong>de</strong> danger d’vn tel mal.” –<br />
“Se tivessem se contentado com os bons e fiéis mestres, se teriam postos além do risco<br />
<strong>de</strong>sse gênero <strong>de</strong> mal.”
158 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
A frase, “acima do que está escrito”, po<strong>de</strong> ser explicada <strong>de</strong> duas<br />
maneiras, ou, seja: como uma referência ao que Paulo escreveu, ou às<br />
provas bíblicas a que fez referência. Visto, porém, que isso não é muito<br />
importante, os leitores estão livres para escolherem o que preferirem.<br />
7. Porque, quem te faz diferente? O significado é o seguinte: “Qualquer<br />
homem que nutre avi<strong>de</strong>z por preeminência e perturba a Igreja com sua<br />
ambição, que venha para campo aberto. Eu lhe pedirei que se ponha diante<br />
<strong>de</strong> outra pessoa, ou, seja, que lhe dê o direito <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada da mesma<br />
categoria que outros e <strong>de</strong> ser superior a outrem.” Ora, este argumento todo<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da organização que o Senhor estabeleceu em sua Igreja, a saber,<br />
que os membros do corpo <strong>de</strong> Cristo vivam juntos, e que cada um <strong>de</strong>les viva<br />
contente com seu próprio espaço, sua própria posição, sua própria função<br />
e com a honra que lhe é conferida. Se um membro quiser <strong>de</strong>ixar seu espaço<br />
e ocupar o espaço <strong>de</strong> outrem, e tomar posse <strong>de</strong> seu ofício, que <strong>de</strong>stino<br />
terá todo o corpo? Portanto, lembremos bem que o Senhor nos colocou<br />
juntos na Igreja, e <strong>de</strong>stinou a cada um seu posto, <strong>de</strong> maneira tal que, sob<br />
a Cabeça, nos empenhemos por auxiliar uns aos outros. Lembremos ainda<br />
que dons tão diferentes nos têm sido conferidos para po<strong>de</strong>rmos servir<br />
ao Senhor humil<strong>de</strong> e <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> pretensão, e aplicar-nos ao avanço da<br />
glória daquele que nos tem concedido tudo quanto possuímos. Portanto, o<br />
melhor método <strong>de</strong> corrigir a ambição daqueles que querem ser superiores<br />
é chamando-os <strong>de</strong> volta a Deus, <strong>de</strong> modo que aprendam que nenhum <strong>de</strong>les<br />
diga que por mérito seu é que foi posto em posição eminente, ou que por<br />
<strong>de</strong>mérito é que foi posto em posição humil<strong>de</strong>, porque somente Deus faz<br />
isso. Devem igualmente saber que Deus não admite tanto a alguém que se<br />
promove ao lugar da Cabeça; mas ele distribui seus dons <strong>de</strong> tal maneira<br />
que só ele recebe a glória em todas as coisas.<br />
Distinguir, aqui, significa tornar eminente. 22 Entretanto, Agostinho<br />
amiú<strong>de</strong> e com habilida<strong>de</strong> faz uso <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>claração com o intuito <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a seguinte tese, em oposição aos pelagianos, 23 que seja o que<br />
22 “Rendre excellent, ou mettre en reputation.” – “Tornar eminente ou exaltar à fama.”<br />
23 O leitor encontrará uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> passagens <strong>de</strong>ste teor citadas <strong>de</strong> Agostinho nas<br />
Institutas.
Capítulo 4 • 159<br />
houver <strong>de</strong> excelência no gênero humano, não é implantado nele pela<br />
natureza, <strong>de</strong> modo que a mesma não po<strong>de</strong> ser atribuída à natureza<br />
nem à hereditarieda<strong>de</strong>, nem é obtida por nosso livre-arbítrio, ao ponto<br />
<strong>de</strong> pôr Deus sob obrigação [para conosco], mas emana unicamente <strong>de</strong><br />
sua misericórdia, a qual é absoluta e imerecida. Pois não po<strong>de</strong> haver<br />
dúvida <strong>de</strong> que Paulo aqui contrasta a graça <strong>de</strong> Deus com o mérito ou a<br />
dignida<strong>de</strong> dos homens. 24<br />
E o que tens tu? Esta é uma confirmação da afirmação prece<strong>de</strong>nte,<br />
porquanto o homem nada possui que lhe forneça base para<br />
exaltar-se, o qual não possui superiorida<strong>de</strong> acima <strong>de</strong> outros. Pois que<br />
maior vaida<strong>de</strong> existe do que a ostentação sem qualquer base para<br />
sua existência? Ora, não existe um sequer que possua inerentemente<br />
alguma excelência, que o faça superior; portanto, quem quer que se<br />
ponha num nível superior aos <strong>de</strong>mais é um mero idiota e impertinente.<br />
A genuína base da modéstia cristã é esta: <strong>de</strong> um lado, não ser<br />
presumido, porquanto sabemos que somos vazios e <strong>de</strong>stituídos do<br />
que é bom, isto é, que ele tenha implantado em nós algo que seja<br />
inerentemente bom; e, do outro, por esta razão, somos tanto mais<br />
<strong>de</strong>vedores à divina graça. Em outros termos, não existe em nós nada<br />
que seja propriamente nosso.<br />
Por que te glorias, como se não o tivesses recebido? Observe-se<br />
que não é <strong>de</strong>ixada nenhuma base para a vanglória radicar-se em nós,<br />
visto que é pela graça <strong>de</strong> Deus que somos o que somos [1Co 15.10]. E<br />
isso é o que tivemos no primeiro capítulo, ou, seja, que Cristo é a fonte<br />
<strong>de</strong> todas nossas bênçãos, para que aprendamos a gloriar-nos no Senhor<br />
[1Co 1.30], e isso só fazemos quando renunciamos nossa própria vanglória.<br />
Porquanto Deus só nos dá o que é seu quando nos esvaziamos,<br />
para que seja plenamente evi<strong>de</strong>nte que tudo o que em nós é digno <strong>de</strong><br />
louvor é <strong>de</strong>rivado.<br />
8. Já estais fartos. Tendo diretamente, e sem o uso <strong>de</strong> qualquer<br />
figura, refreado a infundada confiança dos coríntios, ele agora também<br />
24 “Comme estans choses contraires.” – “Como sendo coisas opostas.”
160 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
a ridiculariza, à guisa <strong>de</strong> ironia, 25 porquanto se sentem tão satisfeitos<br />
consigo mesmos como se fossem as pessoas mais felizes do mundo.<br />
Paulatinamente ele também avança realçando a insolência <strong>de</strong>les. Primeiro,<br />
ele diz que se sentem satisfeitos, uma referência que aponta<br />
para o passado. Então, acrescenta que são ricos, o que aponta para<br />
o futuro. Finalmente, ele diz que passaram a reinar como reis – e isso<br />
contém muito mais do que os outros dois elementos. É como se dissesse:<br />
“O que será <strong>de</strong> vós quando não for suficiente que no presente<br />
estejais satisfeitos, mas que também no futuro for<strong>de</strong>s ricos e, ainda<br />
mais, quando passar<strong>de</strong>s a governar como reis?” Ao mesmo tempo, tacitamente<br />
os culpa <strong>de</strong> ingratidão, porque tiveram a audácia <strong>de</strong> olhar<br />
para ele com ares <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, ou talvez também para aqueles <strong>de</strong><br />
cujas mãos tinham obtido tudo.<br />
Sem nós, diz ele. “Porque neste momento Apolo e eu nada significamos<br />
para vós, ainda que seja através <strong>de</strong> nosso trabalho que o<br />
Senhor vos muniu <strong>de</strong> tudo. Que modo <strong>de</strong>sumano <strong>de</strong> fazer<strong>de</strong>s dos dons<br />
<strong>de</strong> Deus algo para satisfazer vosso próprio envai<strong>de</strong>cimento, e para, ao<br />
mesmo tempo, olhar<strong>de</strong>s com <strong>de</strong>sdém às próprias pessoas <strong>de</strong> quem<br />
ten<strong>de</strong>s recebido tudo!”<br />
E eu quisera que reinásseis. 26 Aqui ele <strong>de</strong>ixa bem claro que não<br />
lhes inveja a felicida<strong>de</strong>, se é que possuíam alguma; e que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<br />
não nutriu nenhum <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter domínio sob eles, a não ser o <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> introduzi-los no reino <strong>de</strong> Deus. Entretanto, em contrapartida ele<br />
está querendo dizer que o reino do qual se vangloriavam é meramente<br />
imaginário, e que, portanto, sua exultação é espúria e nociva. 27 Pois a<br />
25 “Vsant d’ironie, c’est à dire, d’vne façon <strong>de</strong> parler qui sonne en mocquerie.” – “Fazendo<br />
uso <strong>de</strong> ironia, isto é, uma forma <strong>de</strong> linguagem que possui um tom <strong>de</strong> zombaria.”<br />
26 “Uma amarga zombaria”, diz Lightfoot, “castigando a vanglória dos coríntios, os quais<br />
tinham se esquecido <strong>de</strong> quem primeiro receberam esses privilégios evangélicos, concernente<br />
aos quais agora se envai<strong>de</strong>ciam. Tinham se enriquecido com dons espirituais;<br />
reinavam, sendo eles mesmos juízes, estando no próprio topo da dignida<strong>de</strong> e felicida<strong>de</strong><br />
do evangelho; e isso ‘sem nós’, diz o apóstolo, ‘como se nada nos <strong>de</strong>vêsseis por tais<br />
privilégios’, e: ‘Oh, queira Deus que reinásseis, e isso seria tão bom que gostaríamos <strong>de</strong><br />
também reinar convosco para partilhar<strong>de</strong>s conosco um pouco <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> nessa vossa<br />
promoção, e para que tivéssemos alguma boa reputação em vosso meio’!”<br />
27 “Fausse et dangereuse.” – “Infundada e perigosa.”
Capítulo 4 • 161<br />
única ostentação genuína é aquela em que todos os filhos <strong>de</strong> Deus se<br />
regozijam <strong>de</strong> se acharem sob Cristo, sua Cabeça, aquela que cada um,<br />
segundo a medida da graça, lhe ren<strong>de</strong>.<br />
Pelas palavras, para que nós também pudéssemos reinar convosco,<br />
Paulo tem em mente isto: “Aos próprios olhos, sois tão ilustres que não<br />
hesitastes em <strong>de</strong>sprezar-me, a mim e aos que são como eu, porém não<br />
atentastes para o fato <strong>de</strong> quão fútil é vossa ostentação. Porquanto não<br />
po<strong>de</strong>is ter nenhuma glória diante <strong>de</strong> Deus da qual não tenhamos nenhuma<br />
participação; porque, se porventura vos redunda alguma honra<br />
possuir o evangelho <strong>de</strong> Deus, quanto mais em se tratando <strong>de</strong> nós, por<br />
cujo ministério ele nos foi comunicado! Aliás, atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>mente 28 como<br />
esta é comum a todas as pessoas orgulhosas, com o seguinte resultado:<br />
quando açambarcam tudo para si, elas se privam <strong>de</strong> todas as bênçãos;<br />
mais ainda, se privam da própria esperança <strong>de</strong> salvação eterna.”<br />
9. Porque penso que Deus nos pôs a<br />
nós, apóstolos, por último, como<br />
homens <strong>de</strong>signados à morte; pois<br />
somos feitos um espetáculo aos<br />
olhos do mundo, dos anjos e dos<br />
homens.<br />
10. Nós somos loucos por amor a<br />
Cristo, vós, porém, sois sábios em<br />
Cristo; nós somos fracos, vós, porém,<br />
sois fortes; vós sois honrados,<br />
nós, porém, somos <strong>de</strong>sprezados.<br />
11. Até a presente hora sofremos fome<br />
e se<strong>de</strong>, estamos nus e somos esbofeteados,<br />
e não temos nenhum lugar<br />
<strong>de</strong> repouso;<br />
12. e labutamos, trabalhando com<br />
nossas próprias mãos; ao sermos<br />
injuriados, abençoamos; ao sermos<br />
perseguidos, suportamos;<br />
9. Existimo enim, quod Deus nos postremos<br />
Apostolos <strong>de</strong>monstraverit<br />
tanquam morti <strong>de</strong>stinatos: nam<br />
theatrum facti sumus mundo, et angelis,<br />
et hominibus.<br />
10. Nos stulti propter Christum, vos<br />
autem pru<strong>de</strong>ntes in Christo: nos<br />
infirmi, vos autem robusti: vos gloriosi,<br />
nos autem ignobiles.<br />
11. Ad hanc enim horam usque et sitimus,<br />
et esurimus, et nudi sumus, et<br />
colaphis cædimur.<br />
12. Et circumagimur, et laboramus operantes<br />
manibus propriis: maledictis<br />
lacessiti benedicimus: persequutionem<br />
patientes sustinemus:<br />
28 “C’est vne folie, et bestise.” – “Isso constitui uma loucura e estupi<strong>de</strong>z.”
162 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
13. ao sermos difamados, imploramos.<br />
Somos consi<strong>de</strong>rados lixo do mundo,<br />
e somos a escória <strong>de</strong> todas as<br />
coisas, e isso até hoje.<br />
14. Não escrevo estas coisas com o<br />
fim <strong>de</strong> envergonhar-vos, mas para<br />
admoestar-vos como meus filhos<br />
amados.<br />
15. Porque, ainda que tivésseis <strong>de</strong>z mil<br />
tutores em Cristo, não teríeis muitos<br />
pais. Porque, por intermédio do<br />
evangelho, eu vos gerei em Cristo<br />
Jesus.<br />
13. Conviciis affecti obsecramus: quasi<br />
exsecrationes mundi facti sumus,<br />
omnium reiectamentum usque ad<br />
hunc diem.<br />
14. Non quo pudorem vobis incutiam<br />
hæc scribo: sed ut filios meos dilectos<br />
admoneo.<br />
15. Nam etsi <strong>de</strong>cem millia pædagogorum<br />
habueritis in Christo, non<br />
tamen multos patres; in Christo<br />
enim Iesu par Evangelium ego vos<br />
genui.<br />
9. Porque penso. É incerto se ele está se reportando exclusivamente<br />
a si próprio, ou se ao mesmo tempo inclui também Apolo e Silvano,<br />
pois às vezes ele <strong>de</strong>nomina essas pessoas <strong>de</strong> apóstolos. Não obstante,<br />
prefiro entendê-lo como que se referindo a si com exclusivida<strong>de</strong>. Se<br />
alguém <strong>de</strong>sejar uma aplicação mais ampla, não faço muita objeção, contanto<br />
que, como o entendia Crisóstomo, não o entendamos afirmando<br />
que todos os apóstolos, por causa da ignomínia, mereciam uma posição<br />
menos importante. 29 Pois não po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que Paulo quer dizer<br />
pelo termo “em último lugar” aqueles que haviam sido admitidos<br />
à or<strong>de</strong>m apostólica após a ressurreição <strong>de</strong> Cristo. Mas ele admite que<br />
se assemelhava àqueles que são exibidos ao povo antes <strong>de</strong> serem entregues<br />
à morte. Pois o significado <strong>de</strong> exibido encontra sua ilustração<br />
naqueles que eram levados pelas ruas em triunfo com o fim <strong>de</strong> serem<br />
exibidos, e então eram arrastados à prisão, e ali estrangulados.<br />
Ele realça isso ainda mais nitidamente quando acrescenta que<br />
se tornara um espetáculo. Diz ele: “Minha sina é exibir, na forma <strong>de</strong><br />
espetáculo, minhas aflições ao mundo, como os que são con<strong>de</strong>nados<br />
ou a lutar com bestas selvagens, 30 ou a enfrentar os jogos dos<br />
29 “Et bien peu estimez.” – “E em tão pouca estima.”<br />
30 “Condamnez à seruir <strong>de</strong> passe-temps en combattant contre <strong>de</strong>s bestes.” – “Con<strong>de</strong>nados a<br />
servirem como passa-tempo na luta contra animais selvagens.”
Capítulo 4 • 163<br />
gladiadores, ou a sofrer algum outro tipo <strong>de</strong> tortura, e então são<br />
conduzidos perante a multidão extasiada; e, com referência a mim,<br />
não se trata <strong>de</strong> apenas uns poucos espectadores, mas do mundo<br />
todo.” Observe-se a admirável imperturbabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo, pois<br />
quando percebeu que esse era o tratamento que Deus lhe aplicava,<br />
não sucumbiu nem per<strong>de</strong>u o ânimo. Porque ele não atribuía à arbitrarieda<strong>de</strong><br />
do mundo o fato <strong>de</strong> ele ser arrastado, por assim dizer,<br />
a um <strong>de</strong>gradante espetáculo dos jogos nas arenas, mas o atribui<br />
totalmente à providência <strong>de</strong> Deus.<br />
A última parte da frase – dos anjos e dos homens –, evi<strong>de</strong>ntemente<br />
eu a tomo neste sentido: “Apresento-me como provedor <strong>de</strong> esportes, e<br />
inclusive como o próprio espetáculo, não só para a terra, mas também<br />
para o céu.” Esta passagem geralmente é explicada como significando<br />
<strong>de</strong>mônios, visto que parecia absurdo que se referisse a anjos bons.<br />
Paulo, porém, não quis fazer-se enten<strong>de</strong>r que todos quantos são testemunhas<br />
<strong>de</strong> seu infortúnio se <strong>de</strong>leitavam com o que eles viam. Ele<br />
simplesmente quer dizer que Deus guia sua vida <strong>de</strong> tal maneira que parece<br />
ter sido <strong>de</strong>signado a provi<strong>de</strong>nciar esporte para o mundo inteiro.<br />
10. Somos loucos por amor a Cristo. Este contraste vem repassado<br />
<strong>de</strong> ironia e observações penetrantes, pois era manifestamente intolerável<br />
e <strong>de</strong>veras um gran<strong>de</strong> absurdo que os coríntios fossem felizes em<br />
tudo e usufruíssem <strong>de</strong> honra segundo os padrões humanos, e ao mesmo<br />
tempo assistissem seu mestre e pai sofrer a vil ignomínia e misérias<br />
<strong>de</strong> todo gênero. Pois os que são <strong>de</strong> opinião que Paulo se humilha <strong>de</strong>ssa<br />
maneira para que pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong> alguma forma confiar na solicitu<strong>de</strong> dos coríntios<br />
para lhe darem as coisas que ele mesmo reconhece lhe faltavam,<br />
dificilmente po<strong>de</strong>m impedir que seu ponto <strong>de</strong> vista seja refutado diante<br />
da pequena sentença que vem imediatamente em seguida.<br />
Portanto, ele está usando <strong>de</strong> ironia ao admitir que os coríntios<br />
são sábios em Cristo, fortes e honrados. É como se dissesse: 31 “Vós<br />
31 “C’est une concession ironique, c’est à dire, qu’il accor<strong>de</strong> ce dont ils se vntoyent, mais<br />
c’est par mocquerie, comme s’il disoit.” – “É uma irônica concessão; isto é, ele admite<br />
aquilo <strong>de</strong> que se gloriam, mas zombeteiramente, como se ele quisesse dizer.”
164 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
<strong>de</strong>sejais, juntamente com o evangelho, manter a fama <strong>de</strong> sabedoria, 32<br />
ao passo que eu só fui capaz <strong>de</strong> vos pregar Cristo tornando-me louco<br />
no conceito do mundo. Ora, quando me disponho a ser um louco ou<br />
a <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> tal reputação, pergunto se é justo que <strong>de</strong>sejeis ser consi<strong>de</strong>rados<br />
como sábios. Dificilmente teríeis condição <strong>de</strong> afirmar que<br />
estas duas coisas se harmonizam bem: que eu, que tenho sido vosso<br />
mestre, não passo <strong>de</strong> um louco por amor a Cristo, enquanto que vós<br />
permaneceis sábios.” Segue-se que, ser sábio em Cristo não logra aqui<br />
um bom sentido, porque ele ridiculariza os coríntios por <strong>de</strong>sejarem<br />
misturar Cristo com a sabedoria da carne, já que isso equivalia ao esforço<br />
<strong>de</strong> unir elementos diretamente antagônicos.<br />
O raciocínio nas frases que seguem é similar: “Vós sois fortes”,<br />
diz ele, “e honrados”; em outros termos, vos gloriais nas riquezas e<br />
recursos do mundo, e não po<strong>de</strong>is suportar a ignomínia da cruz. Entrementes,<br />
é razoável que eu seja obscuro e <strong>de</strong>sprezível, e sujeito a<br />
muitas enfermida<strong>de</strong>s enquanto busco 33 vossos interesses? Ora, esta<br />
queixa não conta com o respaldo da dignida<strong>de</strong>, 34 porquanto, na verda<strong>de</strong>,<br />
ele não é um indivíduo fraco e <strong>de</strong>sprezível entre eles [2Co 10.10].<br />
Em suma, ele moteja da vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, porquanto as coisas viram <strong>de</strong><br />
ponta-cabeça quando se esperava que os filhos e alunos se tornassem<br />
famosos e renomados, enquanto os pais permaneciam na obscurida<strong>de</strong>,<br />
e igualmente expostos a todos os insultos do mundo.<br />
11. Até a presente hora. Aqui o apóstolo pinta um vívido quadro<br />
<strong>de</strong> suas circunstâncias pessoais, para que os coríntios apren<strong>de</strong>ssem<br />
<strong>de</strong> seu exemplo a <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> seu orgulho e a submeter-se sinceramente<br />
e a abraçar a cruz <strong>de</strong> Cristo juntamente com ele. Ele <strong>de</strong>monstra a<br />
máxima habilida<strong>de</strong> nesse aspecto, porque, ao lembrá-los das coisas<br />
que o transformaram num ser abjeto, ele propicia clara prova <strong>de</strong> sua<br />
singular fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> seu infatigável zelo em buscar o avanço do<br />
32 “En faisant profession <strong>de</strong> l’Euangile, vous voulez auec cela estre estimez pru<strong>de</strong>ns.” – “Ao<br />
fazer<strong>de</strong>s uma confissão do evangelho, <strong>de</strong>sejais, juntamente com isso, ser tidos como sábios.”<br />
33 “Pour l’amour <strong>de</strong> vous.” – “De amor por vós.”<br />
34 “Est d’autant plus picquante, et aigre.” – “É tanto mais cortante e severo.”
Capítulo 4 • 165<br />
evangelho; e, por outro lado, tacitamente censura seus rivais que, sem<br />
apresentar qualquer evidência, esperavam, não obstante, ser tidos na<br />
mais elevada estima.<br />
Nas palavras propriamente ditas não há obscurida<strong>de</strong>, exceto o<br />
fato <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vemos observar a distinção existente entre estes dois<br />
particípios: λοιδορουμενοι και βλασφημουμενοι (injuriado e difamado).<br />
λοιδορια (injuriar) significa que a mais cruel sorte <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong> que<br />
alguém emite, produz não apenas um leve arranhão, mas uma ferida<br />
profunda, e expõe seu caráter aos insultos públicos. Portanto, não<br />
po<strong>de</strong> haver dúvida <strong>de</strong> que λοιδορειν significa ferir alguém com palavras<br />
ferinas como se fossem feitas com algum instrumento cortante; 35 por<br />
isso a traduzi “molestado com ultrajes”. Βλασφημια significa reprovação<br />
em termos mais francos, quando alguém é severa e cruelmente<br />
caluniado. 36<br />
12. Ao dizer que enfrenta perseguição, suportando-a e orando por<br />
seus caluniadores, sua intenção não é apenas expressar que é afligido<br />
e humilhado por Deus, através da cruz, mas também que se acha munido<br />
<strong>de</strong> disposição para humilhar-se voluntariamente. Talvez com isso<br />
esteja ele golpeando os falsos apóstolos, que eram tão efeminados e<br />
<strong>de</strong>licados que nem mesmo podiam suportar ser tocados por alguém<br />
com seu <strong>de</strong>do mínimo. Ao falar <strong>de</strong> seu trabalho, ele acrescenta “com<br />
nossas próprias mãos”, a fim <strong>de</strong> tornar ainda mais evi<strong>de</strong>nte quão ignóbil<br />
era sua ocupação. 37 Diria ele: “Não só produzo meu sustento<br />
pessoal através <strong>de</strong> meu próprio labor, mas através <strong>de</strong> um labor humil<strong>de</strong>,<br />
usando minhas próprias mãos.”<br />
35 192 Eustátio presume que λοιδορια se <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> λογος, uma palavra, e δορυ, uma lança. Uma<br />
figura afim é empregada pelo salmista, quando fala <strong>de</strong> palavras que são espadas <strong>de</strong>sembainhadas.<br />
[Sl 55.21.]<br />
36 “Or le premier signifie non seulement se gaudir d’vn homme, mais aussi toucher son<br />
honneur comme en le blasonnant, et le naurer en termes picqunas: ce que nous disons<br />
communement, Mordre en riant. Le second signifie quando on <strong>de</strong>tracte apertement <strong>de</strong><br />
quelqu’vn sans vser <strong>de</strong> couuerture <strong>de</strong> paroles.” – “Ora, o primeiro significa não simplesmente<br />
divertir-se alguém em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outrem, mas também ferir sua reputação<br />
como se fosse com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>negri-la e feri-la com expressões cortantes, como comumente<br />
dizemos: dar-lhe um bom golpe em seu humor. O segundo significa quando<br />
pessoas caluniam alguém publicamente sem usar qualquer disfarce <strong>de</strong> palavras.”<br />
37 “Que c’estoit vn mestier ville, et mechanique.” – “Que era um meio e ocupação mecânica.”
166 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
13. Como lixo do mundo. Ele faz uso <strong>de</strong> dois termos: o primeiro<br />
<strong>de</strong>les significa alguém que foi <strong>de</strong>dicado aos <strong>de</strong>uses por meio <strong>de</strong><br />
execrações públicas, com vistas a fazer expiação pela cida<strong>de</strong>. 38 Às<br />
vezes os gregos chamam tais pessoas καθαρμοι, mais freqüentemente,<br />
καθάρματα, 39 porque levam sobre si todos os crimes e culpas da<br />
cida<strong>de</strong>, e assim purificam o resto <strong>de</strong> seus habitantes. Além disso, ao<br />
usar a preposição περι, (ao redor), parece que Paulo tinha um olho no<br />
próprio rito expiatório, visto que aqueles homens <strong>de</strong>sventurados que<br />
eram <strong>de</strong>votados a execrações eram levados ao redor pelas ruas, para<br />
que pu<strong>de</strong>ssem levar com eles a qualquer esquina [da cida<strong>de</strong>] tudo<br />
quanto fosse ruim 40 e assim a purificação viesse a ser mais completa.<br />
Po<strong>de</strong> parecer que o plural indique que ele fala não exclusivamente <strong>de</strong><br />
si mesmo, mas também dos outros que eram seus associados, e que<br />
não menos eram tidos em <strong>de</strong>sprezo pelos coríntios. Não há, contudo,<br />
razão urgente para consi<strong>de</strong>rar o que ele diz como se esten<strong>de</strong>ndo além<br />
<strong>de</strong> sua própria pessoa. O outro termo, περίψημα (raspagem), é usado<br />
para serragem, raspaduras <strong>de</strong> alguma sorte, e também para a sujeira<br />
<strong>de</strong> assoalho. 41 Sugiro que se consultem as anotações <strong>de</strong> Budæus 42 concernentes<br />
a ambos os termos.<br />
38 “Comme c’estoit vne chose qui se faisoit anciennement entre les payens.” – “Como esta<br />
era uma coisa praticada antigamente entre os pagãos.”<br />
39 Os escolásticos sobre Aristófanes, Plut. 454, apresentam a seguinte explicação do termo<br />
κάθαρμα: Καθάρματα ἐλέγοντο ο̒ι επὶ τη̑, καθάρσει λοιμου̑ τινος ἤ τινος ἕτὲρας νάσου θυόμενοι τοις<br />
θεοι̑ς. Του̑το δὲ τὸ ἔθος καὶ παρὰ Ῥωμαίοις ἐπεκράτησε. Aquelas eram chamadas purificações,<br />
as quais eram sacrificadas aos <strong>de</strong>uses para propiciar a fome ou alguma outra calamida<strong>de</strong>.<br />
Esse costume prevalecia também entre os romanos.<br />
40 “De malediction.” – “De maldição.”<br />
41 “Les ballieures d’vne maison.” – “A varredura <strong>de</strong> uma casa.”<br />
42 O ponto <strong>de</strong> vista apresentado por Budæus do primeiro termo (περικαθάρματα) é expresso<br />
por Leigh em seu Critica Sacra como sendo este: “O apóstolo faz alusão às expiações em<br />
uso entre os pagãos, no tempo <strong>de</strong> quaisquer pestes ou infecções contagiosas; para a remoção<br />
<strong>de</strong> tais doenças, sacrificavam então certos homens a seus <strong>de</strong>uses, homens esses<br />
que eram <strong>de</strong>nominados καθάρματα. Como se o apóstolo dissesse: Somos tão <strong>de</strong>sprezíveis<br />
e tão odiosos aos olhos do povo, como se carregássemos as ignomínias e maldições<br />
da multidão, como as pessoas con<strong>de</strong>nadas que eram oferecidas para expiação pública.”<br />
Budæus traduz o último termo (περίψημα) assim: “Scobem aut ramentum et quicquid<br />
limando <strong>de</strong>teritur.” – “Limagem ou raspagem, ou qualquer coisa que é limpada por limatão.”
Capítulo 4 • 167<br />
Precisamos ver como isso se aplica ao significado da passagem<br />
que se acha diante <strong>de</strong> nossos olhos. Com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver sua própria<br />
e extrema <strong>de</strong>gradação, Paulo diz que é merecedor das maldições<br />
do mundo todo como se fosse alguém <strong>de</strong>signado a ser um sacrifício<br />
expiatório, 43 e que, como se fosse escória, ele era nauseabundo a todos.<br />
Não obstante, ele não sugere, pelo primeiro símile, que ele mesmo<br />
fosse um sacrifício expiatório pelos pecados, mas simplesmente que,<br />
no tocante aos infortúnios e insultos, não existe diferença entre ele e<br />
aquele sobre quem as execrações do mundo inteiro são cumuladas.<br />
14. Não escrevi estas coisas para vos envergonhar. Depois <strong>de</strong><br />
Paulo haver usado termos ferinos e irônicos, <strong>de</strong> modo a sensibilizar<br />
os brios dos coríntios, ele agora manifesta seu aborrecimento, <strong>de</strong>clarando<br />
que não dizia essas coisas com o intuito <strong>de</strong> envergonhá-los,<br />
mas, antes, para admoestá-los com amor paterno. É natural que o<br />
efeito e natureza <strong>de</strong> uma correção paterna levem um filho a sentir-se<br />
envergonhado. Pois o princípio do arrependimento é o senso <strong>de</strong> vergonha<br />
<strong>de</strong>spertado pela consciência do filho ao ser reprovado por seu<br />
pecado. Portanto, ao reprovar seu filho, o objetivo do pai é fazê-lo<br />
sentir-se insatisfeito consigo mesmo. Percebemos que tudo quanto<br />
Paulo disse até aqui visava a levar os coríntios a ter vergonha <strong>de</strong><br />
si mesmos. Sim, e tanto é verda<strong>de</strong> que um pouco <strong>de</strong>pois [1Co 6.5]<br />
ele esclarece que faz menção <strong>de</strong> seus erros a fim <strong>de</strong> que comecem<br />
a sentir-se envergonhados. Mas aqui ele só <strong>de</strong>seja afirmar que sua<br />
intenção não era causar-lhes frustração, nem tirar seus pecados do<br />
anonimato e lançá-los à vista <strong>de</strong> todos, <strong>de</strong> tal modo que caíssem em<br />
<strong>de</strong>scrédito. Porquanto aquele que admoesta como amigo se esforça<br />
especialmente por ver que toda a vergonha permaneça sepultada<br />
entre ele e a pessoa a quem adverte. 44 Mas a pessoa que chama a<br />
atenção <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong> forma maliciosa, expõe o pecado <strong>de</strong>sse alguém<br />
43 “Destiné à porter toutes les execratiions et maudissons du mon<strong>de</strong>.” – “Separado para<br />
suportar todas as execrações do mundo.”<br />
44 “Tasche sur toutes choses que toute la honte <strong>de</strong>merure entre lui et celui lequel il admoneste.”<br />
– “Tudo faz para que a vergonha permaneça entre ele e a pessoa a quem<br />
admoesta.”
168 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
e o faz sentir-se envergonhado, e assim o transforma em objeto do<br />
repúdio público. Por isso Paulo diz simplesmente que o que dissera<br />
não foi com a intenção <strong>de</strong> humilhar ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir o bom nome dos<br />
coríntios; antes, foi para <strong>de</strong>monstrar afeição paternal e lembrá-los do<br />
que estava faltando neles.<br />
Entretanto, qual era o propósito <strong>de</strong>ssa admoestação? Era precisamente<br />
para que os coríntios, que se achavam ensoberbecidos<br />
com idéias bombásticas, não obstante serem vazios, apren<strong>de</strong>ssem a<br />
gloriar-se na humilhação da cruz juntamente com Paulo; e para que<br />
não mais o <strong>de</strong>sprezassem sob a alegação <strong>de</strong> que ele era mui digno <strong>de</strong><br />
gloriar-se aos olhos <strong>de</strong> Deus e dos anjos. Em suma, o propósito <strong>de</strong> tudo<br />
isso era que os coríntios abrissem mão <strong>de</strong> sua antiga arrogância e <strong>de</strong>ssem<br />
mais valor ao estigma 45 <strong>de</strong> Cristo [Gl 6.17] lançado sobre Paulo,<br />
em vez da ostentação fútil e <strong>de</strong>sprezível dos falsos apóstolos. Ora, os<br />
mestres 46 precisam apren<strong>de</strong>r que esse gênero <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>ve ser<br />
sempre usado nos atos <strong>de</strong> reprovação, para que não se firam os brios<br />
dos homens no uso <strong>de</strong> excessiva austerida<strong>de</strong>; segundo um provérbio<br />
bem conhecido, o vinagre precisa ser dosado com mel e óleo. Mas, acima<br />
<strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>vem tomar cuidado para não parecer que escarnecem<br />
daqueles a quem estão reprovando, nem que se sentem prazerosos<br />
em seu infortúnio. Não! Ao contrário, <strong>de</strong>vem esforçar-se por <strong>de</strong>ixar em<br />
evidência que sua intenção não é outra senão a promoção <strong>de</strong> seu bem-<br />
-estar. Pois, que ganharia um mestre 47 com mera gritaria, se porventura<br />
não condimentar a aspereza <strong>de</strong> sua repreensão com a mo<strong>de</strong>ração a<br />
que me refiro? Portanto, se <strong>de</strong>sejarmos fazer algo <strong>de</strong> positivo enquanto<br />
corrigimos as falhas dos homens, é saudável convencê-los <strong>de</strong> que<br />
nossas críticas são proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> um coração amigo.<br />
45 “Les marques et fletrisseurs <strong>de</strong> Christ en luy.” – “As marcas e estigmas <strong>de</strong> Cristo nele.” A<br />
alusão, como o próprio autor observa ao comentar Gálatas 6.17, é às “marcas com que os<br />
escravos bárbaros, ou fugitivos, ou malfeitores, eram marcados.” Daí a expressão <strong>de</strong> Juvenal:<br />
stigmate dignum cre<strong>de</strong>re – “consi<strong>de</strong>rar alguém digno <strong>de</strong> ser marcado como escravo.”<br />
(Juv. x. 183.)<br />
46 “Les docteurs et ministres.” – “Mestes e ministros.”<br />
47 “Le ministre.” – “O ministro.”
Capítulo 4 • 169<br />
15. Porque, ainda que tivésseis <strong>de</strong>z mil tutores. Ele já se havia<br />
<strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> pai. E agora mostra que tal atribuição é peculiarmente<br />
sua em relação a eles, porque foi ele, exclusivamente, quem os gerou<br />
em Cristo. Não obstante, ao usar esta comparação, ele tem em mira<br />
os falsos apóstolos, a quem os coríntios atribuíam toda autorida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong> modo que Paulo agora era consi<strong>de</strong>rado pouco mais que nada entre<br />
eles. Por isso, ele os aconselha que <strong>de</strong>cidam qual honra <strong>de</strong>vem prestar<br />
a um pai e qual honra <strong>de</strong>vem prestar a um tutor. 48 É como se quisesse<br />
dizer: “Vós revelais gran<strong>de</strong> respeito para com os novos mestres. Não<br />
faço objeção, contanto que lembreis bem <strong>de</strong> que eu sou vosso pai, e<br />
que eles não passam <strong>de</strong> tutores.” Mas, ao reivindicar para si tal autorida<strong>de</strong>,<br />
ele implicitamente diz que sua atitu<strong>de</strong> é diametralmente distinta<br />
da dos homens a quem os coríntios consi<strong>de</strong>ravam tão eminentes. Provavelmente<br />
Paulo po<strong>de</strong>ria dizer: “Eles se esforçam por vos ensinar.<br />
Muito bem! Mas o amor <strong>de</strong> um pai, o zelo <strong>de</strong> um pai, a boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
um pai são atitu<strong>de</strong>s completamente diferentes das <strong>de</strong> um tutor.” Mas<br />
como, se ele está também fazendo alusão àquela imaturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fé, 49<br />
à qual já fez referência? Porque, ainda que os coríntios eram titãs no<br />
orgulho, todavia, na fé, não passavam <strong>de</strong> crianças, e esta é a razão por<br />
que era justo encomendá-los a tutores. 50 Ele também <strong>de</strong>tecta falhas no<br />
48 “A palavra grega, pedagogue”, diz Calmet, “agora contém a idéia que se aproxima do <strong>de</strong>sdém.<br />
Com nenhuma outra palavra para qualificá-la, ela excita a idéia <strong>de</strong> um pedante que<br />
assume ares <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> sobre outrem, a qual não lhe pertence. Mas entre os antigos,<br />
pedagogo era uma pessoa a quem se confiava o cuidado dos filhos <strong>de</strong> outro, para conduzi-los,<br />
para fazê-los observar seus <strong>de</strong>veres, instruí-los nos primeiros rudimentos. Assim o<br />
ofício <strong>de</strong> pedagogo quase que correspondia ao <strong>de</strong> um governador ou tutor, que constantemente<br />
assistia seu aluno, o ensinava e formava seus hábitos. Paulo [1Co 4.13] afirma:<br />
‘Pois ainda que tivésseis <strong>de</strong>z mil instrutores (pedagogos) em Cristo, contudo não teríeis<br />
muitos pais’ – se representando como seus pais na fé, visto que os gerara no evangelho.<br />
O pedagogo, <strong>de</strong> fato, podia ter algum po<strong>de</strong>r e interesse em seu aluno, mas podia também<br />
nunca nutrir por ele a afeição natural <strong>de</strong> um pai.”<br />
49 “Quel mal y auroit-il, quand nous dirions, qu’il fait aussi vne allusion à ceste petitesse et<br />
enfance en la foy?” – “Que mal havia nisso, ainda que digamos que ele também faz uma<br />
alusão àqueles pequeninos e infantes na fé?”<br />
50 Nosso autor evi<strong>de</strong>ntemente faz alusão à etimologia do termo original, παιδαγωγοὺς, como<br />
se <strong>de</strong>rivando <strong>de</strong> παὶς, um menino, e ἄγω, guiar. Tais instrutores geralmente eram escravos,<br />
cuja ocupação era dar assistência às crianças em sua responsabilida<strong>de</strong>, guiá-las <strong>de</strong> casa<br />
para a escola e <strong>de</strong>sta para aquela.
170 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
método absurdo e <strong>de</strong>veras malicioso daqueles mestres em manterem<br />
seus alunos ocupados apenas com os primeiros rudimentos, com o fim<br />
<strong>de</strong> mantê-los sempre presos a sua autorida<strong>de</strong>. 51<br />
Porque em Cristo. Esta é a razão por que ele <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />
com exclusivida<strong>de</strong> o pai da Igreja <strong>de</strong> Corinto, ou, seja: porque ele a<br />
havia gerado. E aqui ele <strong>de</strong>screve a geração espiritual <strong>de</strong> maneira mais<br />
apropriada afirmando que os gerara em Cristo, o qual é a única fonte<br />
<strong>de</strong> vida, e assim ele faz do evangelho a causa formal. 52 Portanto, notemos<br />
bem que aos olhos <strong>de</strong> Deus só somos verda<strong>de</strong>iramente gerados<br />
quando somos enxertados em Cristo, fora <strong>de</strong> quem nada existe senão<br />
morte, e que isso só po<strong>de</strong> ser feito por intermédio do evangelho, porque,<br />
visto que somos, por natureza, carne e erva, a Palavra <strong>de</strong> Deus é<br />
a semente incorruptível por meio da qual somos renovados para a vida<br />
eterna, como Pedro ensina [1Pe 1.23-25], extraindo <strong>de</strong> Isaías [Is 40.6-8].<br />
Elimine-se o evangelho, e todos permaneceremos malditos e mortos<br />
aos olhos <strong>de</strong> Deus. Esta mesma Palavra, por meio da qual somos gerados,<br />
passa a ser leite que nos nutre, e alimento sólido para nosso<br />
sustento perene. 53<br />
Alguém po<strong>de</strong>ria apresentar esta objeção: “Visto que na Igreja novos<br />
filhos são gerados para Deus todos os dias, por que Paulo nega<br />
que aqueles que o haviam sucedido eram pais? A resposta é fácil: ele<br />
aqui está falando do início da Igreja. Pois ainda que muitos haviam sido<br />
gerados pelo ministério <strong>de</strong> outros, esta honra permaneceu inalterada<br />
somente no caso <strong>de</strong> Paulo, porquanto foi ele quem fundara a Igreja <strong>de</strong><br />
Corinto. Além disso, se porventura alguém perguntar: “Todos os pastores<br />
não <strong>de</strong>vem ser contemplados como pais? Por que, pois, Paulo priva<br />
a todos os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>sse título a fim <strong>de</strong> reivindicá-lo só para si?” Eis<br />
minha resposta: Aqui ele fala numa forma comparativa. Conseqüente-<br />
51 “La mauuaise procedure et façon d’enseigner <strong>de</strong>s docteurs, d’autant qu’ils amusoyent leurs<br />
disciples aux premiers rudimens et petis commencemens, et les tenoyent tousiours là.” –<br />
“O vil procedimento e método <strong>de</strong> instrução dos mestres, ainda que entretivessem seus<br />
seguidores com os primeiros e leves princípios, e os mantivessem constantemente aí.”<br />
52 “Qu’on appelle.” – “Como a chamam.”<br />
53 210 Nosso autor provavelmente se refere ao que dissera ao comentar 1 Coríntios 3.2.
Capítulo 4 • 171<br />
mente, embora o título <strong>de</strong> pai seja pertinente também a eles em outros<br />
aspectos, todavia, em comparação com Paulo, eles não passavam <strong>de</strong><br />
tutores. Devemos igualmente ter em mente o que referi um pouco antes,<br />
ou, seja, que ele não está falando <strong>de</strong> todos eles (porque, no que respeita<br />
a homens como ele, a saber, Apolo, Silvano e Timóteo, homens que buscavam<br />
ansiosamente o avanço do reino <strong>de</strong> Cristo, não haveria qualquer<br />
dificulda<strong>de</strong> em <strong>de</strong>nominá-los <strong>de</strong> pais e atribuir-lhes as mais elevadas<br />
honras), mas ele aponta erros naqueles que, com <strong>de</strong>senfreada ambição,<br />
estavam transferindo para si a glória que pertencia a outrem. Tais eram<br />
os homens que se apropriavam da honra <strong>de</strong>vida a Paulo, para que pu<strong>de</strong>ssem<br />
tomar posse <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>spojos.<br />
Certamente, hoje a condição da Igreja Universal é semelhante à da<br />
Igreja <strong>de</strong> Corinto <strong>de</strong> então. Pois quão poucos há que cuidam das igrejas<br />
com afeição paternal; em outros termos, que não buscam recompensas<br />
pessoais e não se <strong>de</strong>dicam a seu próprio bem-estar! Entrementes,<br />
gran<strong>de</strong> é o número <strong>de</strong> tutores, os quais alugam seus serviços para<br />
que tenham um retorno lucrativo; e isso fazem como se estivessem<br />
empenhados numa tarefa por tempo limitado e a fim <strong>de</strong> manterem as<br />
pessoas sob seu próprio controle e para tê-los em admiração. 54 Não<br />
obstante, mesmo assim é sempre bom que haja muitos tutores, que<br />
façam o bem, pelo menos em alguma medida ensinando e não <strong>de</strong>struindo<br />
a Igreja pelo efeito corruptor do falsa doutrina. Quanto a mim,<br />
ao me queixar do gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> tutores, não estou me reportando<br />
dos sacerdotes papistas (porquanto não os consi<strong>de</strong>ro dignos <strong>de</strong> figurarem<br />
neste número), mas refiro-me aos que concordam conosco em<br />
doutrina, e todavia se ocupam em aten<strong>de</strong>r a seus próprios afazeres<br />
no lugar dos <strong>de</strong> Cristo. Todos nós, naturalmente, <strong>de</strong>sejamos ser tidos<br />
como pais, e exigimos <strong>de</strong> outros a obediência <strong>de</strong> filhos; entretanto,<br />
54 “Qui se loent, comme ouuriers à la iourneé, pour exercer l’office à leur profit, ainsi qu’on<br />
feroit vne chose qu’on aura prise pour vn temps certain, et cependant tenir le peuple en<br />
obeissance, et acquerir bruit, ou estre en admiration enuers iceluy.” – “Que se alugam<br />
como obreiros por um dia a fim <strong>de</strong> exercerem o ofício em seu próprio benefício, como<br />
se fossem fazer algo por apenas certo tempo, e no momento azado po<strong>de</strong>rem manter as<br />
pessoas em sujeição, e adquirirem fama ou <strong>de</strong>sfrutarem <strong>de</strong> admiração entre eles.”
172 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
<strong>de</strong> quantos o leitor po<strong>de</strong> dizer são dignos só porque realmente agem<br />
como pais? 55<br />
Existe ainda outra questão muito difícil. Visto que Cristo nos proíbe<br />
<strong>de</strong> chamar alguém <strong>de</strong> pai sobre a terra em razão <strong>de</strong> termos um Pai no<br />
céu [Mt 23.9], como, pois, Paulo ousa aplicar a si o título pai? Eis minha<br />
resposta: propriamente falando, Deus é o único Pai, não só <strong>de</strong> nossas<br />
almas, mas também <strong>de</strong> nosso corpo. Entretanto, diante do fato <strong>de</strong> que,<br />
no que se refere ao corpo, ele outorga o título pai àqueles a quem ele<br />
conce<strong>de</strong> filhos, todavia retém para si só o direito e título especial <strong>de</strong> “o<br />
Pai dos espíritos”, com o fim <strong>de</strong> ser distinguido dos pais terrenos, como<br />
o apóstolo afirma em Hebreus 12.9. Não obstante, visto que somente ele<br />
gera as almas por seu próprio po<strong>de</strong>r, então as regenera e as vivifica, e<br />
ainda faz uso do ministério <strong>de</strong> seus servos para esse propósito, não há<br />
mal algum em chamá-los pais com referência a este ministério, porque,<br />
ao agirem assim, a honra divina é <strong>de</strong>ixada intata. A Palavra (como temos<br />
dito) é a semente espiritual. Por meio <strong>de</strong>la, e por meio <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r, unicamente<br />
Deus é quem conduz nossas almas ao novo nascimento, porém<br />
ele não exclui o labor dos ministros. Se o leitor consi<strong>de</strong>rar atentamente<br />
o que Deus faz por si só, e o que <strong>de</strong>seja que se faça por intermédio dos<br />
ministros, então enten<strong>de</strong>rá facilmente em que sentido só ele merece a<br />
honra <strong>de</strong> Pai, e como em alto grau este título é apropriado aos ministros,<br />
sem qualquer violação dos direitos divinos.<br />
16. Por isso vos rogo que sejais meus<br />
seguidores.<br />
17. Por essa causa vos enviei Timóteo,<br />
que é meu amado e fiel filho no Senhor,<br />
o qual vos trará à memória<br />
meus caminhos que estão em Cristo,<br />
como em toda parte ensino em<br />
cada igreja.<br />
16. Adhortor ergo vos, imitatores mei<br />
estote.<br />
17. Hac <strong>de</strong> causa misi ad vos Timotheum,<br />
qui est filius meus dilectus<br />
et fi<strong>de</strong>lis in Domino: qui vobis in<br />
memoriam reducat vias meas, quæ<br />
sunt in Christo, quemadmodum ubique<br />
in omnibus Ecclesiis doceam.<br />
55 “Combien y en a-t-il qui facent office <strong>de</strong> père, et qui <strong>de</strong>monstrent par effet ce qu’ils veulent<br />
estre appelez?” – “Quantos há entre eles que cumprem o ofício <strong>de</strong> pai e mostram nos atos<br />
do que <strong>de</strong>sejam ser chamados?”
Capítulo 4 • 173<br />
18. Ora, alguns se acham ensoberbecidos,<br />
como se eu não houvesse <strong>de</strong> ir<br />
ter convosco.<br />
19. Mas em breve irei, se o Senhor<br />
quiser; e então conhecerei, não a<br />
palavra dos que andam ensoberbecidos,<br />
mas o po<strong>de</strong>r.<br />
20. Porque o reino <strong>de</strong> Deus não consiste<br />
<strong>de</strong> palavras, mas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />
21. Que preferis? Irei ter convosco com<br />
vara, ou com amor e no espírito <strong>de</strong><br />
mansidão?<br />
18. Perin<strong>de</strong> quasi non sum ad vos venturus,<br />
inflati sunt quidam:<br />
19. Veniam autem brevi ad vos, si Dominus<br />
voluerit, et cognoscam non<br />
sermonem eorum qui sunt inflati,<br />
sed virtutem.<br />
20. Neque enim in sermone regnum Dei<br />
est, sed in virtute.<br />
21. Quid vultis? in virga veniam ad vos,<br />
an dilectione spirituque mansuetudinis?<br />
16. Por isso vos rogo. Ele agora também expressa, em suas próprias<br />
palavras, o que está preten<strong>de</strong>ndo obter <strong>de</strong>les por meio <strong>de</strong> sua<br />
correção paternal, ou, seja, que justamente porque são seus filhos, não<br />
interrompam as relações com seu pai. Há algo mais razoável do que<br />
o esforço dos filhos para se assemelharem a seus pais tanto quanto<br />
possível? Ele ainda está dispensando algo <strong>de</strong> seus próprios direitos<br />
ao instar com eles à guisa <strong>de</strong> pedido em vez <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m. Mas ao propor-lhes<br />
que fossem seus imitadores, ele traz a lume outra passagem,<br />
quando, pois, adiciona outra idéia, ou, seja, “como sou <strong>de</strong> Cristo” [1Co<br />
11.1]. Esta qualificação <strong>de</strong>ve ser sempre mantida, para que não venhamos<br />
seguir algum ser humano, exceto até on<strong>de</strong> nos conduza a Cristo.<br />
Sabemos, porém, com que Paulo está tratando aqui. Os coríntios não<br />
estavam evitando a ignomínia da cruz, mas também faziam <strong>de</strong> seu pai<br />
um objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo, só porque ele olvidava a glória que este mundo<br />
tem a oferecer e se gloriava mais nas reprovações que sofria por<br />
causa <strong>de</strong> Cristo; e os coríntios tinham sua atenção posta em si mesmos<br />
e noutros afortunados, em nada terem a ver, pelos padrões do mundo,<br />
com o que é <strong>de</strong>sprezível. Portanto, ele os aconselha a seguirem seu<br />
exemplo e a prestarem obediência a Cristo para que tivessem condição<br />
<strong>de</strong> suportar tudo.<br />
17. Por essa causa. O significado é como segue: “Para que saibais que<br />
tipo <strong>de</strong> vida é realmente o que eu vivo, e se sou um a<strong>de</strong>quado exemplo a
174 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
ser seguido, ouvi o que Timóteo tem a dizer, pois ele estará na condição<br />
<strong>de</strong> fornecer confiável evidência neste sentido.” Ora, duas coisas produzem<br />
confiança mediante a evidência que uma pessoa tem a apresentar, a<br />
saber: seu conhecimento das coisas sobre as quais ela tem a dizer, e sua<br />
lealda<strong>de</strong>. Paulo lhes informa que Timóteo possui ambas. Pois quando afetuosamente<br />
o chama <strong>de</strong> amado filho, revela que Timóteo conhece Paulo<br />
com intimida<strong>de</strong> e que está bem familiarizado com todas suas circunstâncias.<br />
Ele então o trata como fiel no Senhor. Ele também confia duas coisas<br />
à responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Timóteo. Primeiro, ele <strong>de</strong>sperta a mente dos coríntios<br />
para que se lembrassem <strong>de</strong> seu próprio assentimento, e nisso ele<br />
tacitamente lhes atribui falta. Segundo, Timóteo lhes fizera saber quão<br />
invariável e consistente era o método <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> Paulo em todo lugar.<br />
É bem provável, porém, que Paulo estivesse sendo alvo das <strong>de</strong>turpações<br />
dos falsos apóstolos, como se ele estivesse reivindicando para<br />
si mais po<strong>de</strong>r sobre os coríntios do que sobre os outros, ou se conduzindo<br />
<strong>de</strong> maneira completamente distinta em outros lugares; porque<br />
ele tinha boas razões para querer que isso fosse do conhecimento <strong>de</strong>les.<br />
Portanto, um ministro sábio <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>terminar qual <strong>de</strong>va ser seu<br />
método <strong>de</strong> ensino, e persistir nesse plano, para que não se levante<br />
qualquer objeção contra ele sem que esteja preparado a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se,<br />
baseado numa situação concreta, como Paulo possuía.<br />
18. Como se eu não tivesse <strong>de</strong> ir ter convosco. Era costume<br />
dos falsos apóstolos tirar vantagem da ausência <strong>de</strong> homens bons<br />
e fazer florescer sua insolente e incontida vanglória. Paulo realça o<br />
fato <strong>de</strong> que eles não suportavam a presença <strong>de</strong>le, e assim o expõe<br />
para que ficasse a <strong>de</strong>scoberto a má consciência <strong>de</strong>les e assim refreasse<br />
sua agressivida<strong>de</strong>. Naturalmente, suce<strong>de</strong> <strong>de</strong> vez em quando que,<br />
quando a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> insultar se lhes divisa, pessoas atrevidas e<br />
<strong>de</strong>scaradas se prorrompem abertamente contra os servos <strong>de</strong> Cristo;<br />
entretanto, nunca apresentam uma controvérsia 56 justa com o fim <strong>de</strong><br />
56 “Si est-ce que jamais ils ne vienent à combatre franchement, et s’ils ne voyent leur auantage:<br />
mais plustot en vsant <strong>de</strong> ruses et circuits obliques, ils monstrent leur <strong>de</strong>ffiance,<br />
et comment ils sont mal asseurez.” – “Assim suce<strong>de</strong> que nunca saem francamente em
Capítulo 4 • 175<br />
provar que não têm o que escon<strong>de</strong>r; ao contrário, por meio <strong>de</strong> suas<br />
matreirices, <strong>de</strong>nunciam sua própria carência <strong>de</strong> confiança.<br />
19. Mas em breve irei. “Eles estão cometendo um grave erro”, diz<br />
ele, “ao emplumar suas penas durante minha ausência, como se isso<br />
fosse durar por muito tempo; logo, porém, perceberão quão fútil tem<br />
sido seu orgulho.” Mas ele não preten<strong>de</strong> propriamente assustá-los,<br />
como se sua chegada fosse trovejar contra eles, mas para gerar tensão<br />
e atingir suas consciências, porque, por outro lado, não importa o<br />
que pretendiam, sabiam muito bem que Paulo estava equipado com a<br />
influência divina.<br />
A frase, se o Senhor quiser, nos ensina que não <strong>de</strong>vemos fazer<br />
nenhuma promessa a alguém visando ao futuro; nem fazer planos pessoais<br />
sem incluir esta restrição: até on<strong>de</strong> o Senhor o permitir. Por isso,<br />
Tiago está plenamente certo ao ridicularizar a temerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas<br />
que planejam o que farão até o final <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos, quando, na verda<strong>de</strong>,<br />
não têm certeza alguma se viverão por toda uma hora [Tg 4.15]. Ora,<br />
ainda que não sejamos obrigados a usar constantemente tais expressões,<br />
mesmo assim é melhor que cui<strong>de</strong>mos em torná-las habituais,<br />
para que mais e mais formulemos todos nossos planos em plena conformida<strong>de</strong><br />
com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />
E então conhecerei, não a palavra. Pelo termo palavra <strong>de</strong>vemos<br />
enten<strong>de</strong>r aquela loquacida<strong>de</strong> fútil em que os falsos apóstolos se <strong>de</strong>leitavam;<br />
pois seu arrimo tinha por base certa facilida<strong>de</strong> e charme<br />
<strong>de</strong> linguagem, no entanto eram completamente carentes <strong>de</strong> zelo e<br />
da eficácia do Espírito. Pelo termo po<strong>de</strong>r Paulo quer dizer a eficácia<br />
espiritual com que são revestidos aqueles que administram solicitamente<br />
57 a Palavra <strong>de</strong> Deus. Portanto, o significado é como segue:<br />
“Verei se eles <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> tão fortes razões para se sentirem tão<br />
arrogantes, e certamente não os julgarei por seu rico fluxo <strong>de</strong> palacombate,<br />
a não ser que tenham uma visão <strong>de</strong> sua própria vantagem; mas, ao contrário,<br />
ao fazerem uso <strong>de</strong> artimanhas e ro<strong>de</strong>ios, <strong>de</strong>monstram sua falta <strong>de</strong> confiança e <strong>de</strong> quão<br />
<strong>de</strong>sconfiados são.”<br />
57 “D’vn bon zele, et pure affection.” – “Com um zelo correto e uma afeição pura.”
176 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
vras, no qual <strong>de</strong>positam toda sua glória, e no qual tanto confiam para<br />
reivindicarem tudo 58 para si. Se quiserem <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> algum crédito<br />
em minha presença, que então revelem aquele po<strong>de</strong>r que distingue<br />
os genuínos servos <strong>de</strong> Cristo dos impostores [arratis]; do contrário,<br />
não per<strong>de</strong>rei tempo com eles e suas exibições. Portanto, eles estão<br />
pondo sua confiança em sua vã eloqüência, enquanto que, para mim,<br />
ela não passa <strong>de</strong> fumaça.”<br />
20. Porque o reino <strong>de</strong> Deus não consiste em palavras. Visto<br />
que o Senhor governa sua Igreja com sua Palavra, como se ela fosse<br />
um cetro, a administração do evangelho [evangelii administratio] é<br />
às vezes chamada o reino <strong>de</strong> Deus. Aqui, pois, <strong>de</strong>vemos enten<strong>de</strong>r por<br />
reino <strong>de</strong> Deus tudo quanto aponta nesta direção e é <strong>de</strong>terminado com<br />
este propósito: que Deus possa reinar em nosso meio. Paulo diz que<br />
este reino não consiste em palavras [sermone]; pois quão pequeno<br />
é o esforço para alguém que tem a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar fluentemente,<br />
quando o mesmo não produz nada senão sons vazios! 59 Portanto,<br />
aprendamos que a graça e a habilida<strong>de</strong> meramente externas, em ensinar,<br />
é como um corpo bem elegante e saudável em sua aparência,<br />
enquanto que o po<strong>de</strong>r [virtutem] <strong>de</strong> que Paulo aqui fala é como a<br />
alma. Já vimos que a natureza da pregação evangélica é tal que se<br />
acha saturada <strong>de</strong> um sólido gênero <strong>de</strong> majesta<strong>de</strong>. Essa majesta<strong>de</strong> se<br />
revela quando um ministro entra em ação mais com po<strong>de</strong>r [virtute] do<br />
que com palavras [sermone]. Em outros termos, ele se <strong>de</strong>vota ativamente<br />
à obra do Senhor, não <strong>de</strong>positando confiança em seu próprio<br />
intelecto ou eloqüência, mas é equipado com armas espirituais, que<br />
são o zelo em proteger a glória do Senhor, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> estabelecer o<br />
reino <strong>de</strong> Cristo, o anseio por edificação, o temor do Senhor, a perseverança<br />
invicta e outros dons indispensáveis. Sem eles a pregação é<br />
morta e não possui nenhuma energia, não importa quão excelente e<br />
58 “Proram et puppim.” – “A proa e a popa.”<br />
59 “Sçaura bien babiller et parler eloquemment, et cependant il n’aura rien qu’vn son retentissant<br />
en l’air.” – “Tem habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tagarelar com facilida<strong>de</strong> e falar eloqüentemente, e<br />
no ínterim nada tem senão sons lançados ao ar.”
Capítulo 4 • 177<br />
bem adornada venha a ser. Por esta razão é que ele diz em sua segunda<br />
Epístola que não equivale a nada senão ser uma nova criação<br />
[2Co 5.17] em Cristo. E este arrazoado tem o mesmo propósito em<br />
vista. Pois ele não quer que permaneçamos satisfeitos com qualquer<br />
atrativo externo [externis larris], senão que perseveremos no po<strong>de</strong>r<br />
interior [interna e virtute] do Espírito Santo.<br />
Ainda que, com estas palavras, ele refira à ambição dos falsos<br />
apóstolos, todavia, ao mesmo tempo, ele acusa os coríntios <strong>de</strong> perverterem<br />
o juízo, visto que estavam formando a opinião preconcebida<br />
dos servos <strong>de</strong> Cristo, vendo-os pelo prisma <strong>de</strong> suas excelências menos<br />
importantes. Esta é uma conclusão notável, a qual se aplica tanto<br />
a nós quanto a eles. No que respeita ao evangelho, do qual tantos<br />
nos orgulhamos, on<strong>de</strong> está a novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida em muitas pessoas,<br />
on<strong>de</strong> sua eficácia espiritual, a não ser em sua língua? E esta não é a<br />
situação <strong>de</strong> uma só pessoa. 60 Porque, quantos há que fazem uso do<br />
evangelho com o fim <strong>de</strong> conquistar simpatia e renome, como se ele<br />
fosse algum ramo secular <strong>de</strong> conhecimento, e cuja preocupação seja<br />
falar com apuro e refinamento! Não acalento a crença <strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r<br />
se restrinja aos milagres, visto que, em contraste, é fácil <strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir<br />
que ele tem uma aplicação muito mais ampla.<br />
21. Que quereis? Quem fez a divisão das epístolas em capítulos<br />
<strong>de</strong>veria ter começado o quinto capítulo neste ponto. Porque,<br />
até aqui, Paulo esteve reprovando o fútil orgulho dos coríntios, sua<br />
estulta confiança, seu juízo distorcido e afetado pela ambição; mas<br />
agora menciona os vícios que os afligiam, os quais <strong>de</strong>veriam fazê-los<br />
envergonhar-se <strong>de</strong> si mesmos. É como se dissesse: “Vós vos sentis envai<strong>de</strong>cidos,<br />
justamente como se vossos negócios transcorressem em<br />
uma situação excelente, porém seria melhor se reconhecêsseis vossa<br />
infeliz situação com pudor e tristeza, pois se prosseguir<strong>de</strong>s assim serei<br />
abrigado a pôr <strong>de</strong> lado minha mansidão e a ser um pai severo para convosco.”<br />
Mas este tom <strong>de</strong> ameaça leva mais peso do que a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
60 “Et ce n’est point au peuple seulement qu’est ce <strong>de</strong>faut.” – “E não é meramente entre as<br />
pessoas que tal <strong>de</strong>feito existe.”
178 • Comentário <strong>de</strong> 1 Coríntios<br />
escolha que porventura ele lhes houvesse dado, pois <strong>de</strong>clara que não<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> si mesmo ser manso e gentil com eles, senão que está<br />
se vendo forçado a usar <strong>de</strong> severida<strong>de</strong> por culpa <strong>de</strong>les. Diz ele: “É para<br />
que <strong>de</strong>cidis com que temperamento eu vou encontrar-vos. Quanto a<br />
mim, estou preparado para ser manso. Mas se continuar<strong>de</strong>s a proce<strong>de</strong>r<br />
como vin<strong>de</strong>s fazendo, o jeito é usar a vara.” Assim, ele se coloca<br />
numa posição mais consistente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> evocar sobre si a autorida<strong>de</strong><br />
paterna; pois teria sido ridículo iniciar com uma advertência como<br />
esta, caso não tivesse antes aberto o caminho para si, com o que disse,<br />
e os preparado para nutrirem temor.<br />
Pelo termo vara ele indica aquela autorida<strong>de</strong> disciplinar com<br />
que um pastor <strong>de</strong>ve corrigir os erros <strong>de</strong> seu povo. Em confronto com<br />
isso ele põe amor (caritatem) e espírito <strong>de</strong> mansidão, não porque o<br />
pai tenha aversão pelos filhos a quem reprova (pois, do contrário, a<br />
correção não seria oriunda do amor), mas porque, através <strong>de</strong> uma expressão<br />
facial sombria e palavras ásperas, ele assume ares como se<br />
estivesse irado com seu filho. Para o expressar com mais clareza, não<br />
importa que expressão use, um pai sempre ama seu filho, porém revela<br />
esse amor ensinando-o <strong>de</strong> maneira serena e amável; mas quando se vê<br />
aborrecido com os pecados do filho e o corrige com palavras ásperas,<br />
ou mesmo com a vara, então assume o papel <strong>de</strong> uma pessoa irada.<br />
Portanto, visto que o amor fica oculto quando a disciplina severa é<br />
aplicada, Paulo está plenamente certo ao relacionar amor com espírito<br />
<strong>de</strong> mansidão. Alguns intérpretes tomam vara aqui como significando<br />
excomunhão. No que me diz respeito, ainda que concor<strong>de</strong> com eles<br />
que a excomunhão seja parte daquela severida<strong>de</strong> com que Paulo ameaça<br />
os coríntios, ao mesmo tempo a estendo mais amplamente a todas<br />
as reprovações <strong>de</strong> natureza mais severa.<br />
Observa-se aqui qual o padrão <strong>de</strong> comportamento que um bom<br />
pastor <strong>de</strong>ve seguir, pois ele <strong>de</strong>ve estar mais disposto a ser <strong>de</strong>licado<br />
a fim <strong>de</strong> atrair pessoas para Cristo do que a sucumbi-las com <strong>de</strong>masiada<br />
energia. Ele <strong>de</strong>ve manter essa docilida<strong>de</strong> até on<strong>de</strong> for possível,<br />
e não lançar mão da severida<strong>de</strong> a menos que a isso seja forçado. Mas
Capítulo 4 • 179<br />
quando há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal expediente, ele não <strong>de</strong>ve poupar a vara<br />
[Pv 13.24], porque, embora se <strong>de</strong>va usar <strong>de</strong> mansidão com os que são<br />
dóceis e maleáveis, faz-se necessário a autorida<strong>de</strong> no trato com os<br />
obstinados e insolentes. E assim vemos que a Palavra <strong>de</strong> Deus não<br />
só contém doutrina e nada mais, mas também é composta <strong>de</strong> reprovações,<br />
que se acham esparsas por toda ela, para que os pastores se<br />
vejam também supridos com a vara. Pois às vezes suce<strong>de</strong> que, por<br />
causa da obstinação <strong>de</strong> certas pessoas, os pastores, que são naturalmente<br />
mansos, 61 se vêem constrangidos a assumir outra atitu<strong>de</strong>, por<br />
assim dizer, ao agir com rigor e inclusive <strong>de</strong> maneira implacável.<br />
61 “Qu’on pourra trouuer.” – “Que se possa achar um.”
Capítulo 5<br />
1. Geralmente se ouve que há fornicação<br />
entre vós, e fornicação tal que<br />
nem mesmo entre os gentios se<br />
ouve, ou, seja, que um <strong>de</strong>ntre vós<br />
possua a esposa <strong>de</strong> seu pai.<br />
2. E vós estais ensoberbecidos, e nem<br />
mesmo chorastes, para que quem<br />
cometeu tal ação fosse eliminado<br />
<strong>de</strong> entre vós.<br />
3. Pois eu, na verda<strong>de</strong>, estando ausente<br />
no corpo, porém presente no espírito,<br />
já julguei, como se estivesse presente,<br />
que aquele que praticou tal coisa,<br />
4. em nome <strong>de</strong> nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, reunidos vós e meu espírito,<br />
com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nosso Senhor Jesus<br />
Cristo,<br />
5. seja entregue a Satanás para a <strong>de</strong>struição<br />
da carne, a fim <strong>de</strong> que o espírito<br />
seja salvo no dia do Senhor Jesus.<br />
1. Omnino auditur in vobus scortatio,<br />
et talis scortatio, quæ ne inter<br />
Gentes qui<strong>de</strong>m nominatur, ut quis<br />
uxorem patris habeat.<br />
2. Et vos inflati estis, ac non magis<br />
luxistis, ut e medio vestri removeretur,<br />
qui facinus hoc admisit.<br />
3. Ego qui<strong>de</strong>m certe tanquam absens<br />
corpore, præsens autem spiritu,<br />
jam iudicavi tanquam præsens, qui<br />
hoc ita <strong>de</strong>signavit,<br />
4. In nomine Domini nostri Iesu Christi,<br />
congregatis vobis et spiritu meo,<br />
cum potentia Domini nostri Iesu<br />
Christi, eiusmodi inquam hominem.<br />
5. Tra<strong>de</strong>re Satanæ in exitium carnis,<br />
ut spiritus salvus fiat in die Domini<br />
Iesu.<br />
1. Geralmente se ouve que há fornicação. Visto que suas disputas<br />
eram oriundas do orgulho e excessiva autoconfiança, como já<br />
observamos, 1 Paulo se apressa <strong>de</strong> maneira bastante apropriada ao fazer<br />
menção <strong>de</strong> suas doenças [morbos], reconhecendo que os esteve,<br />
provavelmente, humilhando. Primeiramente, ele lhes traz à lembrança<br />
que é algo muitíssimo <