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Anais Eletrônicos - 2011 l 3
Catalogação na fonte. Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662<br />
Sintaxe em foco (2011 : Recife, PE)<br />
Anais eletrônicos [do] Sintaxe em foco, Recife 2 de dezembro de<br />
2011. / Realizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>;<br />
organização de Andréa Silva Moraes...[et al.]. – Recife: <strong>PPGL</strong>-<strong>UFPE</strong>,<br />
2011.<br />
340 p. : il.<br />
ISBN 978-85-98968-23-0<br />
1. Linguística. 2. Funcionalismo (Linguística). I. Moraes, Andréa Silva.<br />
400 CDD (22.ed.) <strong>UFPE</strong><br />
(CAC2011-98)
x<br />
E pediente<br />
Universidade Federal de Pernambuco<br />
Reitor da Universidade Federal de Pernambuco: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado<br />
Pró-Reitor para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Francisco de Sousa Ramos<br />
Diretora do Centro de Artes e Comunicação: Profª. Maria Virgínia Leal<br />
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras: Profª Evandra Grigoletto<br />
Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Profª Judith Hoffnagel<br />
Comissão Organizadora<br />
Maria Medianeira de Souza (<strong>UFPE</strong>)<br />
Andréa Silva Moraes (<strong>UFPE</strong>)<br />
Hérvickton Israel de Oliveira Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />
Rosemberg Gomes Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />
Organização dos Anais<br />
Andréa Silva Moraes (<strong>UFPE</strong>)<br />
Hérvickton Israel de Oliveira Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />
Maria Medianeira de Souza (<strong>UFPE</strong>)<br />
Marília Gomes Teixeira (<strong>UFPE</strong>)<br />
Rosemberg Gomes Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />
Projeto Gráfio e Diagramação<br />
Augusto Noronha (Pipa Comunicação - http://www.pipacomunicacao.net/)<br />
Karla Vidal (Pipa Comunicação - http://www.pipacomunicacao.net/)<br />
Revisor Técnico<br />
Jurandir Dias Júnior (<strong>UFPE</strong>)<br />
Realização<br />
Programa de Pós-Graduação em Letras – <strong>UFPE</strong><br />
Apoio<br />
Pró-Reitoria para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação – PROPESQ<br />
Núcleo de Investigações sobre Gêneros Textuais – NIG<br />
Departamento de Letras da <strong>UFPE</strong>
u<br />
S mário<br />
11 O verbal e o não verbal no gênero pôster de filme:<br />
um olhar sistêmico-funcional<br />
Andréa Moraes (<strong>UFPE</strong>/ CNPq/NIG)<br />
35 Aplicabilidade da Linguística Sistêmico-Funcional a<br />
In-Doors<br />
Ângela Maria Torres Santos (<strong>UFPE</strong>/ CNPq/NIG)<br />
57 As construções verbo-sujeito e o fenômeno da<br />
concordância em dados de língua escrita<br />
Cléber Ataíde (UFPB/UFRPE)<br />
77 Um estudo dos classificadores nas línguas indígenas<br />
Sabanê, Mamaindê e Lakondê<br />
Edney Alexandre de Oliveira Belo (<strong>UFPE</strong>)<br />
97 Entre descrições e reclamações no gênero carta do<br />
leitor: o sistema de transitividade e a construção de<br />
imagens<br />
Emanuel Cordeiro da Silva (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
119 Os sentidos da imagem em editoriais de revistas<br />
Francisco Roberto da Silva Santos (UERN/GPET/GPSM)<br />
145 Transitividade e efeitos de poder no Breue memorial<br />
dos pecados e cousas que pertence(m) ha cõfissã, de<br />
Garcia de Resende<br />
Hérvickton Israel de Oliveira Nascimento (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)
167 Significados tipográficos no gênero editorial<br />
Jaciara Limeira de Aquino (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
189 A sociossemântica dos anúncios publicitários com<br />
super-heróis<br />
Jordão Joanes Dantas da Silva (UFPB/CNPq)<br />
211 A interpessoalidade no gênero editorial: um estudo<br />
sistêmico-funcional<br />
Lucélio Dantas de Aquino (UFRN/PPGEL)<br />
231 O estudo de processos materiais e mentais em textos<br />
opinativos: análise e ensino<br />
Magna Simone A. de Lima (UFCG)<br />
249 Divergências de transitividade em traduções e<br />
versões: elas realmente existem?<br />
Marília Gomes Teixeira (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
269 A função composicional em enquetes do CQC<br />
Nadiana Lima da Silva (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
293 Gráficos informativos sob a perspectiva da<br />
Gramática Visual<br />
Rosemberg Gomes Nascimento (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
313 O paradigma sistêmico-funcional da transitividade:<br />
por uma sintaxe das circunstâncias<br />
Wellington Vieira Mendes (UERN/GPEF)
A tigos
Resumo<br />
Os pôsteres constituem um gênero bastante comum na indústria<br />
cinematográfica para divulgação de filmes. O pôster de filme caracterizase,<br />
entre outras coisas, pelo fato de integrar elementos verbais e não<br />
verbais para compor sentido. Este trabalho busca investigar como os<br />
elementos verbais e não verbais nos pôsteres de filmes estão dispostos na<br />
superfície textual numa perspectiva funcionalista, com base na Linguística<br />
Sistêmico-Funcional, de Halliday (2004) e na Gramática de Design Visual,<br />
de Kress & van Leeuwen (2006).<br />
Palavras-chave: pôster; gênero; funcionalismo; multimodalidade.<br />
Abstract<br />
The posters are a very common genre in the movie industry for their<br />
marketing. This kind of poster is characterized, among other things,<br />
for integrating verbal and nonverbal elements in order to make sense.<br />
This paper seeks to investigate how verbal and nonverbal elements<br />
in the movie posters are arranged on the textual surface functionalist<br />
perspective, based on Systemic Functional Linguistics, Halliday’s (2004)<br />
Gramática de Design Visual, from Kress & van Leeuwen ( 2006).<br />
Keywords: poster; genre; functionalism; multimodality.
Introdução<br />
O verbal e o não verbal<br />
no gênero pôster de filme:<br />
um olhar sistêmico-funcional<br />
Andréa MORAES 1<br />
(<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
A sociedade moderna, entre outros fatores, caracteriza-se pela<br />
visualidade em que está inserida, na qual os signos verbais passaram<br />
a dividir espaço com os signos imagéticos, estabelecendo relações de<br />
sentido. Estas relações se constituem, de tal forma, que o significado<br />
de muitos textos só é completo com a presença de palavras e imagens<br />
simultaneamente.<br />
A partir dessa nova realidade, os textos, de uma maneira geral,<br />
sofreram modificações, a fim de acompanhar essas transformações<br />
decorrentes, dentre outros fatores, do advento das tecnologias.<br />
Gêneros que antes possuíam uma configuração predominantemente<br />
verbal passaram a utilizar diversos sistemas de representação de<br />
sentido para comunicar, tais como: gráficos, tabelas, fontes em<br />
tamanhos diferenciados, fotografias, ilustrações em geral, entre<br />
outros. De acordo com Dionísio (2006, p.133), todos os gêneros<br />
textuais são multimodais, já que congregam, no mínimo, dois modos<br />
de representação (palavras e imagens, palavras e tipografias etc).<br />
1. Trabalho realizado para avaliação da disciplina Sintaxe, sob orientação da Profª Drª Medianeira Souza.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 11
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Essa nova forma de compor textos trouxe para os estudos<br />
linguísticos mudanças na forma de ler e interpretar as informações.<br />
Ao atrelar o não-verbal ao verbal para compor textos, o olhar<br />
do leitor é direcionado para determinados pontos da superfície<br />
linguística, a partir da posição dos elementos na superfície textual,<br />
influenciando, dessa forma, a interpretação e o modo de interagir<br />
do leitor com o texto.<br />
A Gramática do Design Visual (doravante GDV), elaborada<br />
por Kress & van Leeuwen (2006), oferece um modelo para análise<br />
das estruturas visuais, com base na Linguística Sistêmico-Funcional<br />
(doravante LSF) de Halliday (2004) que, por sua vez, oferece<br />
um modelo de análise das estruturas verbais. Ambos os modelos<br />
fundamentam-se em uma perspectiva funcional de análise de<br />
linguagem.<br />
A partir dessas considerações, é objetivo deste trabalho verificar<br />
como os sistemas de representação de sentido através do código nãoverbal<br />
(utilizando a metafunção composicional da GDV) e do código<br />
verbal (utilizando a metafunção ideacional em Halliday) compõem os<br />
textos. Para isto, o corpus utilizado será composto por 30 pôsteres de<br />
filmes lançados entre os anos de 2005 e 2010, disponibilizados online.<br />
O corpus será analisado qualitativamente devido à grande quantidade<br />
de pôsteres de filmes disponíveis no período informado.<br />
Pôsteres de filmes: aspectos constituintes do gênero e contexto 2<br />
As novas formas de interagir e de divulgar produtos, a partir<br />
da globalização, influenciaram de forma considerável a indústria<br />
2. Seção 1 adaptada de Moraes (2009), disponível em http://www.revistaaopedaletra.net/volumes/Volume%20<br />
11.1/vol11.1-Andrea_Moraes.pdf. Acesso em 01 out 2011.<br />
12 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
cinematográfica. Não demorou muito para que surgissem novas<br />
formas de divulgar filmes, formas que se apropriam não apenas do<br />
texto verbal, mas que utilizam, ao máximo, toda a retórica que os<br />
elementos imagéticos podem oferecer. Os pôsteres de filmes surgiram<br />
neste contexto, no qual as imagens ganharam espaço na sociedade<br />
moderna, e os elementos imagéticos passaram a exercer um papel<br />
importante e até decisivo, na organização dos textos deste gênero.<br />
Os pôsteres de filmes, geralmente exibidos em salas de<br />
cinema, locadoras, revistas e outdoors, possuem aspectos estruturais<br />
relativamente estáveis que relacionam palavras e imagens. Os aspectos<br />
estruturais relativos ao texto verbal dos pôsteres de filmes são os<br />
títulos, o nome dos atores, diretores, ano de lançamento e taglines.<br />
Já o texto imagético nestes pôsteres é composto por imagens em<br />
cores e de todos os tipos, como, por exemplo, fotografias e pinturas.<br />
Estes elementos imagéticos geralmente representam uma cena em<br />
particular, ou uma seleção de cenas do filme em questão. Podem ser<br />
representadas, ainda, interpretações artísticas de uma determinada<br />
cena ou do tema do filme. Ao lado deste texto imagético, o texto<br />
verbal complementa o universo de elementos relativamente estáveis<br />
que compõem os pôsteres de filmes. As taglines, por exemplo, são<br />
frases de efeito que sintetizam a história do filme ou dizem respeito a<br />
uma ideologia presente no mesmo, situando o público com as ideias<br />
do filme. Os pôsteres de filmes a seguir (figuras 01 e 02) exemplificam<br />
de que maneira o texto verbal e o texto imagético se relacionam neste<br />
gênero:<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 13
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Figura 02: Retirado de www.adorocinema.<br />
com, acesso em 10 jul 2009<br />
Figura 03: Retirado de www.adorocinema.<br />
com, acesso em 10 jul 2009<br />
No que diz respeito ao texto verbal, os títulos e as taglines, juntos,<br />
são capazes de sintetizar a história do filme. Isto pode ser notado na<br />
figura 01, onde a tagline “Sempre no altar, mas nunca de branco”<br />
relaciona-se intimamente com o título “Vestida para casar”. Já a tagline<br />
do pôster de filme da figura 02 cumpre uma função diferente daquela<br />
analisada na figura 01: o título “Brilho Eterno de uma Mente sem<br />
Lembranças” estabelece uma relação de caráter mais ideológico com<br />
a tagline “Um filme para todos que têm um passado que gostariam de<br />
esquecer...”, fazendo referência às experiências pessoais do expectador<br />
e aos temas abordados no filme.<br />
14 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
Em relação aos elementos imagéticos nos pôsteres de filmes,<br />
percebe-se que eles se relacionam intimamente com o texto verbal,<br />
seja através das cores, das disposições ou da presença de elementos<br />
específicos. Isto pode ser percebido, por exemplo, na referência à<br />
memória na figura 02, através da luz branca e a expressão na face do<br />
personagem, simbolizando a amnésia e o esquecimento, e situando o<br />
título do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” com<br />
o universo textual do pôster, ou como na figura 01, com o vestido<br />
de noiva formado por palavras completando o universo de signos<br />
imagéticos sobre casamento.<br />
Neste trabalho, o texto visual dos pôsteres de filmes (fotografias,<br />
imagens, tipografias etc) será analisado com base na Gramática de<br />
Design Visual. Já o texto verbal analisado (composto pelas taglines dos<br />
pôsteres de filmes) será analisado com base na Metafunção Ideacional,<br />
especialmente o Sistema de Transitividade.<br />
As metafunções da linguagem na LSF<br />
Michael Halliday propôs uma teoria denominada sistêmicofuncional,<br />
na qual “o termo sistêmica refere-se às redes de sistemas da<br />
linguagem” e o “termo funcional refere-se às funções da linguagem,<br />
que usamos para produzir significados” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />
p. 20). De maneira geral, segundo essa teoria, são operadas escolhas<br />
lingüísticas a partir do sistema da língua. O termo “funcional” também<br />
enfatiza a natureza crítico-social do modelo de análise proposto, já que<br />
“a grande preocupação da LSF é compreender e descrever a linguagem<br />
em funcionamento como um sistema de comunicação humana e não<br />
como um conjunto de regras gerais, desvinculadas do seu contexto<br />
de uso”. (CUNHA & SOUZA, 2007, p. 19-20).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 15
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Segundo a LSF, a depender do contexto de situação, ou seja, os<br />
contextos específicos em que a língua ocorre, os gêneros se moldam<br />
a fim de atender às necessidades dos interlocutores, diferenciandose<br />
uns dos outros. “Essas diferenças entre os gêneros podem ser<br />
atribuídas a três aspectos constitutivos do contexto de situação, que<br />
a LSF denomina de campo, relação e modo” (CUNHA & SOUZA,<br />
2007, p. 21). O campo diz respeito à atividade que está sendo<br />
realizada; a relação diz respeito à interação entre os participantes da<br />
comunicação; e o modo diz respeito ao meio utilizado para estabelecer<br />
essa relação. Esses três parâmetros refletem as três funções que<br />
constituem os propósitos principais da linguagem: as metafunções<br />
ideacional, interpessoal e textual (cf. CUNHA & SOUZA, 2007, p. 21;<br />
cf. GOUVEIA, 2009, p. 16).<br />
A metafunção ideacional realiza-se através do sistema de<br />
transitividade, e materializa nossa experiência com o mundo (interior<br />
ou exterior). A metafunção interpessoal representa as relações entre<br />
os participantes e os papéis assumidos por eles. Por fim, a metafunção<br />
textual está relacionada à organização e fluxo do texto (CUNHA &<br />
SOUZA, 2007, p. 22).<br />
A gramática funcional, de acordo com Cunha & Souza (2007,<br />
p. 23), destina-se a<br />
revelar, pelo estudo das sequências linguísticas, os significados<br />
que estão codificados por essas sequências, já que, para essa<br />
abordagem de estudos da linguagem, cada sentença expressa<br />
três significados simultaneamente: o ideacional, o interpessoal<br />
e o textual.<br />
16 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
O sistema de transitividade e os pôsteres de filmes<br />
A transitividade encontra-se relacionada à metafunção<br />
ideacional da linguagem que, como foi dito, diz respeito à construção<br />
dos “significados de nossa experiência, tanto do mundo exterior (social)<br />
quanto do mundo interior (psicológico)” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />
p. 21-22). Dessa forma, a estruturação das ações humanas em orações<br />
compete ao estudo da transitividade, em que o termo “ação” designa<br />
tanto atividades físicas quanto atividades cognitivas. As ações, segundo<br />
Cunha & Souza (2007), podem ser identificadas nas orações através<br />
dos processos, dos participantes e das circunstâncias.<br />
Os processos subdividem-se em materiais, mentais, relacionais,<br />
verbais, comportamentais e existenciais; são realizados linguisticamente<br />
através de verbos e podem ser principais ou secundários. Os participantes<br />
estão intimamente relacionados aos processos e subdividem-se a partir<br />
deles. Podem assumir diferentes papéis a depender do tipo de ação<br />
executada, materializando-se através de substantivos, e podem ser<br />
obrigatórios ou não. Já as circunstâncias, da mesma maneira que os<br />
participantes, relacionam-se aos processos e referem-se às condições<br />
ou coerções em que os processos se realizam, materializando-se em<br />
advérbios (cf. CUNHA & SOUZA, 2007). Podem ser de Extensão,<br />
Causa, Localização, Assunto, Modo, Papel e Acompanhamento.<br />
De acordo com Cunha & Souza (2007, p. 61), “as circunstâncias são<br />
realizadas gramaticalmente por advérbios ou sintagmas adverbiais e<br />
ocorrem livremente em todos os tipos de processo”.<br />
Nesta seção, serão analisados os processos presentes nas taglines<br />
dos pôsteres de filmes do corpus. A ordem de recorrência dos processos<br />
nos pôsteres analisados foi a seguinte: Relacionais, Materiais, Mentais,<br />
Comportamentais, Existenciais e Verbais. Os processos Relacionais<br />
relacionam entidades, “identificando-as ou classificando-as, na medida<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 17
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
em que associam um fragmento da experiência a outro” (CUNHA<br />
& SOUZA, 2007, p. 58). No exemplo (01) a seguir, o processo do<br />
verbo “ser” classifica o participante “Edward” como um “vampiro”<br />
ao associá-los na sentença.<br />
(01) “Edward é um vampiro. Ele está morto de sede pelo<br />
meu sangue. E eu estou perdidamente apaixonada por<br />
ele” (Filme “Crepúsculo”, 2008).<br />
Já os processos Materiais se caracterizam por externar uma<br />
ação que “envolve, pelo menos, um participante: o Ator, quando a<br />
oração é intransitiva, ou dois participantes, um Ator e uma Meta, por<br />
exemplo, quando a oração é transitiva” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />
p. 62-63). Analise o exemplo (02) a seguir:<br />
(02) “Um cara conhece uma garota. Ele se apaixona. Ela<br />
não.” (Filme “500 dias com ela”, 2009).<br />
Na primeira oração, percebe-se que o processo do verbo<br />
“conhecer” possui dois participantes: “um cara”, funcionando como<br />
Ator, e “uma garota”, funcionando como Meta. Isso acontece porque<br />
os processos materiais caracterizam-se, em linhas gerais, como aqueles<br />
processos que representam o mundo do fazer, configurando ações de<br />
acontecimento, criação, alteração e atitude. Nas taglines dos pôsteres<br />
analisados, os processos materiais tiveram 9 ocorrências. Observe<br />
também os exemplos (03) e (04):<br />
(03) Ele vai fazer de tudo para tirar o noivo da jogada<br />
(Filme “O Melhor Amigo da Noiva”, 2008).<br />
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O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
(04) Um único movimento pode mudar tudo (Filme<br />
“Heróis”, 2009).<br />
Nos exemplos, os Atores estão explícitos nas orações (no caso do<br />
exemplo 03, o ator “ele” e no exemplo 04, o ator “único movimento”).<br />
Entretanto, as pessoas ou objetos às quais essas ações se dirigem são<br />
distintas. No exemplo (03), a ação se configura como material: “tirar”,<br />
cuja Meta é o participante “noivo”. Já no caso do exemplo (04), a<br />
Meta está representada por um participante inanimado: “tudo”.<br />
Já os processos Mentais possibilitam “detectar que crenças,<br />
valores e desejos estão representados em um dado texto. (...) Com<br />
esse tipo de verbo, não tratamos de ações, mas de reações mentais”<br />
(Cunha & Souza, 2007, p. 58). De forma geral, os processos mentais<br />
tratam das questões do mundo interior e da realidade psicológica<br />
dos participantes, que podem ser Experienciadores ou Fenômenos.<br />
O primeiro é o “participante consciente que experimenta um<br />
sentir”, enquanto o segundo é “o fato que é percebido, sentido ou<br />
compreendido” (CUNHA & SOUZA, 2007, p. 58). No exemplo<br />
(05), o processo do verbo “inspirar” e seus dois participantes “ele” e<br />
“pessoas” corroboram com essa definição.<br />
(06) “Quando todo um país passava por dificuldades, ele<br />
inspirou pessoas a nos dar esperanças” (Filme “O Grande<br />
Desafio”, 2007).<br />
Os processos mentais dizem respeito às experiências do mundo<br />
cognitivo, como sentir, desejar, gostar, perceber, entre outros (cf.<br />
CUNHA & SOUZA, 2007, p. 66). Nas taglines analisadas, os processos<br />
mentais apareceram em 8 pôsteres de filmes analisados. Observe os<br />
exemplos:<br />
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f<br />
(07) Do que você precisa para encontrar o amor<br />
verdadeiro? (Filme “Quem quer ser um milionário?”,<br />
2008).<br />
(08) Você não consegue 500 milhões de amigos sem fazer<br />
alguns inimigos (Filme “A rede social”, 2010).<br />
No caso do exemplo (07), o processo do verbo “precisar”<br />
expressa um desejo, e no exemplo (08), o processo do verbo “conseguir”<br />
indica uma experiência cognitiva. Quanto aos participantes, os<br />
Experienciadores são projetados, nos dois casos, no leitor, já que no<br />
exemplo (07) há uma pergunta direcionada ao leitor, e no exemplo<br />
(08), a tagline chama o leitor para um desafio.<br />
Os processos Existenciais possuem apenas um participante,<br />
o Existente, e como o nome indica, “representam algo que existe<br />
ou acontece” e estão no plano das relações abstratas (CUNHA &<br />
SOUZA, 2007, p. 59). Nos pôsteres analisados, os processos existenciais<br />
figuraram 3 vezes, das quais podemos observar o seguinte exemplo:<br />
(09) Porque tem coisas que só um ex-marido faz por você...<br />
(Filme “Novidades no Amor”, 2009).<br />
No exemplo, o processo representado pelo verbo “ter” funciona<br />
como uma constatação, pela existência de uma verdade absoluta.<br />
Apesar de não possuir uma oração anterior, o processo funciona como<br />
uma continuidade a uma sentença subentendida pelo leitor que, ao<br />
final, surpreende-o.<br />
Na sequência, os processos Comportamentais, como o nome<br />
também indica, dizem respeito ao comportamento humano em<br />
atividades voluntárias, como ouvir, ou atividades involuntárias,<br />
20 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
como respirar (cf. CUNHA & SOUZA, 2007, p. 60). Possuem como<br />
participante, obrigatoriamente, um Comportante, e opcionalmente<br />
um Behaviour. Esses processos ocorreram apenas 3 vezes nas análises<br />
das taglines. Observe o exemplo (10) abaixo:<br />
(10) Alguns caras piram em Las Vegas. (Filme “Se beber,<br />
não case”, 2009).<br />
O uso do verbo “pirar” indica não apenas um estado do<br />
participante, denominado Comportante, como também significa<br />
uma ação decorrente desse estado. Isto porque os processos<br />
comportamentais situam-se “nas fronteiras da ação e do sentir”<br />
(CUNHA & SOUZA, 2007, p. 75).<br />
Por fim, os processos Verbais possuem participantes que se<br />
caracterizam como Dizentes (participante que comunica algo),<br />
Receptores (participante opcional, a quem o dizente se refere), e<br />
Verbiagem (responsável por codificar o que vai comunicar). Nesse<br />
processo, há a configuração das “relações simbólicas construídas na<br />
mente e expressas em forma de linguagem” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />
p. 59). Durante as análises dos pôsteres de filmes do corpus coletado,<br />
não foi encontrada nenhuma ocorrência de processo do tipo verbal.<br />
A gramática do design visual<br />
Embasados nas metafunções da Gramática Sistêmico-Funcional<br />
(cf. HALLIDAY, 2004), Kress & van Leeuwen (2006) elaboraram<br />
uma Gramática do Design Visual, que consiste, basicamente, na<br />
análise das funções das imagens através da disposição dos elementos na<br />
superfície textual, bem como suas relações com o leitor e a construção<br />
desses textos.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 21
Sinta e<br />
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f<br />
As metafunções idealizadas por Kress & van Leeuwen derivam<br />
das metafunções da LSF. Assim como no modelo de Halliday, a<br />
Gramática do Design Visual propõe a análise a partir das seguintes<br />
metafunções: Representacional, Interativa e Composicional.<br />
A Metafunção Representacional está intimamente relacionada<br />
à metafunção ideacional da LSF, e pode ser definida como a<br />
“responsável pelas estruturas que constroem visualmente a natureza<br />
dos eventos, objetos e participantes envolvidos, e as circunstâncias em<br />
que ocorrem” (ALMEIDA, 2008, p.12). Relacionada à metafunção<br />
interpessoal da LSF, a metafunção interativa é “responsável pela<br />
relação entre os participantes, (...) onde os recursos visuais constroem<br />
‘a natureza das relações de quem vê e o que é visto’” (ALMEIDA,<br />
2008, p. 12). Por fim, a Metafunção Composicional, ligada à<br />
metafunção textual de Halliday, é “responsável pela estrutura e<br />
formato do texto (...) e se refere aos significados obtidos através<br />
da ‘distribuição do valor da informação ou ênfase relativa entre os<br />
elementos da língua’” (ALMEIDA, 2008, p. 12). Naturalmente, as<br />
metafunções da Gramática de Design Visual possuem subdivisões,<br />
sintetizadas na Figura 03 a seguir (cf. ALMEIDA, 2008).<br />
Metafunções da<br />
GDV<br />
Recursos e Subdivisões das<br />
Metafunções da GDV<br />
Representacional<br />
Representações<br />
Narrativas<br />
Representações<br />
conceituais<br />
Interativa<br />
Contato<br />
Distância<br />
Social<br />
Perspectiva<br />
Modalidade<br />
Composicional<br />
Valor da<br />
Informação<br />
Saliência<br />
Estruturação<br />
(Framing)<br />
Figura 03<br />
22 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
A Metafunção Composicional (que será considerada para<br />
análise do corpus neste trabalho) está subdividida em Valor da<br />
Informação, Saliência e Framing, como pode ser visualizado da Figura<br />
03. O Valor da Informação atribui valores às imagens a partir da<br />
zona de posicionamento dos elementos na superfície textual (direita,<br />
esquerda, centro, margem, parte superior e parte inferior). A Saliência<br />
corresponde à disposição dos elementos como forma de atrair o olhar<br />
do leitor, e pode se dar em diferentes níveis a depender da parte<br />
que se pretende destacar. Por fim, o Framing (também denominado<br />
Estruturação) diz respeito à demarcação dos elementos presentes<br />
numa imagem, conectando-os ou desconectando-os (cf. ALMEIDA,<br />
2008, p. 23).<br />
A Gramática de Design Visual nos pôsteres de filmes<br />
A configuração visual do gênero pôster de filme é um elemento<br />
de extrema importância para identificação do público-alvo. As<br />
fotografias dos atores, a representação de cenas, a tipografia utilizada<br />
para compor o título, as cores, todos esses elementos visuais funcionam<br />
como “pistas” para que o público se identifique com um determinado<br />
filme e queira assistir a ele. Além disso, determinados elementos<br />
visuais contribuem para caracterização da identidade de determinado<br />
gênero cinematográfico, como drama, ação, romance, terror, comédia,<br />
entre outros; ou para identificação de um determinado filme, muitas<br />
vezes consagrando-o.<br />
Nesta seção, os pôsteres de filmes coletados para análise neste<br />
trabalho serão analisados de maneira que se torne perceptível como os<br />
elementos visuais atuam na superfície textual de forma a possibilitar<br />
a composição de sentidos juntamente ao texto verbal, bem como de<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 23
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
que maneira a disposição desses elementos modifica nossa estratégia<br />
de interpretar e atribuir significados durante a leitura desses textos.<br />
O valor da informação<br />
Como foi dito, o valor da informação refere-se à localização que<br />
possuem os elementos na superfície textual, que pode se encontrar<br />
nas seguintes “zonas” imagéticas: direita e esquerda; parte superior e<br />
parte inferior; e centro e margem. As funções dessas diversas zonas<br />
imagéticas atuam na composição dos textos de modo a nos fornecer<br />
informações de forma integrada.<br />
O valor informativo da direita e da esquerda: o “dado” e o<br />
“novo”<br />
De acordo com Kress & van Leeuwen (2006, p. 186), as<br />
informações disponibilizadas ao lado esquerdo de uma página<br />
são, basicamente, dadas, ou seja, já conhecidas pelo leitor, ou são<br />
informações-chave sobre as quais o leitor deve prestar atenção ou uma<br />
informação referente ao senso comum dos leitores. Já as informações<br />
localizadas ao lado direito da página são as informações novas, ou<br />
seja, a informação a ser acrescentada, uma informação ainda não<br />
conhecida pelo leitor ou sobre a qual se deseje despertar qualquer tipo<br />
de debate (cf. KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p. 187). Observe<br />
o pôster da figura (04) a seguir:<br />
24 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
Figura 04<br />
Na figura (04), são apresentadas as imagens de dois homens:<br />
um posicionado ao lado esquerdo da imagem e o outro posicionado ao<br />
lado direito da imagem. O título do filme, “O Discurso do Rei”, nos<br />
impulsiona a olhar a imagem de forma a inferir qual dos dois homens<br />
apresentados é o “rei”. De acordo com o princípio de composição de<br />
Kress & van Leeuwen, o personagem do “rei” estaria situado do lado<br />
esquerdo da imagem, ou seja, é a informação dada e já conhecida<br />
pelo leitor através do título. Além disso, a tagline “Dois mundos que<br />
se uniram para dar à nação uma só voz” nos impulsiona a imaginar<br />
que os dois homens na imagem representam dois mundos diferentes,<br />
o que é ratificado pelas roupas que ambos aparecem vestindo. O<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 25
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
homem representado ao lado direito da imagem seria, portanto, a<br />
informação nova, sobre a qual o filme deseja despertar um debate ou<br />
tornar conhecida do público.<br />
O valor informativo da parte superior e da parte inferior: o<br />
“ideal” e o “real”<br />
Muitas vezes, os elementos visuais aparecem distribuídos de<br />
maneira em que haja uma divisória entre a parte superior do texto e<br />
a parte inferior do texto. A parte superior do texto, de acordo com<br />
Kress & van Leeuwen (2006, p. 193-194), corresponde ao “ideal”, ou<br />
seja, uma informação de essência idealizada ou generalizada. Já a parte<br />
inferior do texto seria o “real”, ou seja, apresenta informações menos<br />
idealizadas e/ou mais específicas sobre um determinado assunto.<br />
Observe o pôster de filme apresentado na figura (05) a seguir:<br />
Figura 05<br />
26 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
O pôster da figura (05) está dividido, a partir da linha divisória<br />
marcada pelo título do filme, em duas partes: superior e inferior. A<br />
parte superior apresenta, de forma generalizada, o filme através da<br />
imagem dos personagens e suas expressões faciais, indicando o caráter<br />
de ação do filme. Por outro lado, a parte inferior nos dá informações<br />
mais específicas sobre o filme através da cena representada.<br />
O valor informativo do centro e da margem<br />
Segundo a Gramática de Design Visual, os elementos<br />
posicionados no centro da página representam o núcleo da informação<br />
à qual os elementos posicionados na margem da página estarão<br />
subordinados ou irão se referir (KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p.<br />
206). É importante ressaltar que os elementos composicionais atuam<br />
de forma integrada 3 .<br />
No que diz respeito ao corpus coletado, a composição centromargem<br />
pode ser visualizada no pôster da figura (06) a seguir:<br />
3. A imagem mostra a integração entre os elementos composicionais descritos por Kress & Van Leeuwen (2006):<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 27
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Figura 06<br />
Observe que há um destaque para o homem apresentado<br />
no centro do pôster da figura (06). O homem ao centro da página<br />
representa o núcleo da informação do filme, ou seja, o personagem<br />
sobre o qual as pessoas representadas na margem se relacionam e ao<br />
qual estarão subordinados no decorrer da história.<br />
Saliência<br />
A Saliência diz respeito ao peso que certos elementos da<br />
composição possuem em relação a outros, estabelecendo entre eles<br />
relações hierárquicas. Um elemento imagético pode se mostrar mais<br />
28 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
saliente em relação a outros elementos imagéticos, através de recursos<br />
como foco, nitidez, contraste, bordas, zoom, entre tantos outros (cf.<br />
KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p. 212).<br />
Figura 07<br />
O pôster apresentado na figura (07) nos dá uma ideia melhor<br />
sobre como atua esse recurso atua na composição imagética. Observe a<br />
maneira como os personagens representados no pôster estão dispostos.<br />
O grau de aproximação deles, ou seja, o zoom, nos aproxima mais de<br />
alguns personagens do que de outros. Ou seja, alguns personagens<br />
estão mais salientes do que outros e essa ideia é composta através do<br />
recurso de aproximação/distanciamento. Infere-se, a partir disso, a<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 29
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
importância que alguns personagens possuem no filme em detrimento<br />
de outros. Ou seja, há uma relação hierárquica entre os personagens<br />
representados no pôster.<br />
Framing<br />
De acordo com Kress & van Leeuwen (2006, p. 214), o framing<br />
atua de forma a conectar ou desconectar os elementos imagéticos de<br />
uma composição. Trata-se de agrupar imagens por relevância ou por<br />
similaridade, através de recursos que buscam integrá-los e identificálos<br />
em um determinado “conjunto”. Da mesma forma, o framing<br />
possibilita a desintegração de determinados elementos na página, ou<br />
seja, também propositalmente pode desenquadrar certos elementos<br />
de um determinado “conjunto”.<br />
Figura 08<br />
30 l Anais Eletrônicos - 2011
O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />
SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
O pôster de filme da figura (08) nos dá uma noção sobre como<br />
o framing atua na composição imagética de um texto. Observe que são<br />
apresentadas três cenas, e que, entre as cenas, separando-as, existem<br />
linhas discretas, emoldurando-as. Além se mostrar uma sequência,<br />
essas imagens estão parcialmente agrupadas por representarem<br />
momentos semelhantes. É importante salientar que nem sempre essas<br />
linhas são visíveis, e que o agrupamento, muitas vezes, pode ocorrer<br />
através de outros recursos.<br />
Considerações finais<br />
Neste trabalho, procurou-se investigar de que forma a<br />
transitividade atua no gênero pôster de filme, especificamente nas<br />
taglines, e de que forma os princípios da Gramática de Design Visual<br />
podem ser aplicados a esse gênero, focando-se nos estudos de cunho<br />
funcionalista da Linguística Sistêmico-Funcional.<br />
Verificou-se que, quanto ao texto verbal, os processos mais<br />
frequentes no sistema de transitividade foram os relacionais,<br />
demonstrando a natureza do gênero pôster de filme, que é o de<br />
retratar experiências contidas no conteúdo do filme, convidando o<br />
leitor a assistir a ele. Da mesma forma, o texto visual dos pôsteres,<br />
em suas mais variadas possibilidades de configuração, também atua<br />
diretamente na relação leitor-texto, estabelecendo relações de<br />
proximidade, distância, trazendo informações novas e dialogando<br />
com o texto verbal.<br />
De maneira geral, a partir do que foi analisado, percebe-se<br />
que dentro de um sistema linguístico, as escolhas realizadas pelos<br />
produtores influenciam diretamente a relação do leitor com o texto,<br />
seja este verbal ou visual. O resultado dessas escolhas possui uma<br />
função que deve ser considerada para obtenção dos propósitos do<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 31
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
gênero em questão. Como afirma Halliday (1994, apud GOUVEIA,<br />
2009, p. 17), “a linguagem se desenvolveu para satisfazer necessidades<br />
humanas” e “o modo como está organizada é funcional relativamente<br />
a essas necessidades”.<br />
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em Análise Visual: do fotojornalismo ao blog. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008.<br />
ARAÚJO, A. A tradução de propagandas no Brasil: uma questão de sedução. Disponível em:<br />
http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/rtcom/article/viewPDFInterstitial/129/128<br />
Acesso em: 22 out. 2009. p. 7-16.<br />
CUNHA, M. A. F. da.; SOUZA, M. M. de. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro,<br />
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DIONÍSIO, A. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In: Gêneros Textuais: reflexões e<br />
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.<br />
GOUVEIA, C. Texto e Gramática: uma introdução à linguística sistêmico-funcional.<br />
Disponível em http://www.fl.ul.pt/pessoais/cgouveia/ja/6.pdf acesso em 20 jul 2011.<br />
HALLIDAY, M. A. K. Clauses as representation. In: An introduction to functional grammar.<br />
3a ed. Revisada por C. M. I. M. Matthiessen. London: Edward Arnold, 2004.<br />
KRESS, G; VAN LEEUWEN, T. Multimodal Discourse: the modes and media of contemporary<br />
communication. London: Arnold, 2001.<br />
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. The meaning of the composition. In: Reading Images. London/<br />
New York, Routledge, 1996.<br />
MOTTA-ROTH, D. Transitivity in visual grammar: concepts and applications. Linguagem<br />
& Ensino, Pelotas, v.12, n.2, p. 319-349, jul/dez, 2009.<br />
32 l Anais Eletrônicos - 2011
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SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
PEZATTI, Erotilde Goreti. O funcionalismo em Linguística. In: MUSSALIN, Fernanda;<br />
BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística 3: fundamentos epistemológicos.<br />
4 ed. São Paulo: Cortez, 2009. P. 165-215.<br />
WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. 6 ed. São Paulo: Parábola, 2008.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 33
Resumo<br />
Este artigo parte das premissas teóricas da Linguística Sistêmico-Funcional,<br />
atendo-se ao viés europeu, cujo principal mentor é Halliday, buscando<br />
aplicar a sua visão sobre a linguagem a partir de uma constituição dupla<br />
de sistema linguístico e sistema de dados do contexto social. Tomando a<br />
aplicabilidade de tais conceitos a textos de circulação pública, atentouse<br />
para a construção dos significados a qual se concretiza a partir da<br />
compreensão de que é nas situações extralinguísticas que as realizações<br />
linguísticas se produzem. Neste trabalho, direcionaram-se as observações<br />
analíticas para o texto como unidade de comunicação discursiva, como<br />
forma linguística de interação social. Para isso, fez-se um recorte na<br />
proposta hallidayana, procurando-se analisar o sistema de dados do<br />
contexto social atrelado aos textos em análise bem como observar-se,<br />
no sistema linguístico, aspecto da transitividade, incluída no sub-sistema<br />
léxico-gramatical, de grande importância para a constituição do aspecto<br />
semântico da metafunção ideacional.<br />
Palavras-chave: LSF. Contexto social. Metafunção ideacional.<br />
Transitividade.<br />
Abstract<br />
This article is based on the theoretical premises of Systemic Functional<br />
Linguistics, with the European bias, whose main theorist is Halliday. It<br />
seeks to apply the insight into the language from a dual constitution of<br />
language system and data system of social context. Taking the applicability<br />
of such concepts to texts of public consultation, we looked up to the<br />
construction of meanings which are made through the understanding<br />
that it is in situations that extralinguistic linguistic realizations occur. In<br />
this work, the observations were directed to the analytical observations of<br />
the texts as discursive communication units, as a linguistic form of social<br />
interaction. To this end, we used Halliday’s proposal, aiming to analyze the<br />
data system of the social context along with texts under analysis, as well<br />
as observing, in the linguistic system, aspect of transitivity, including the<br />
lexical-grammatical subsystem of great importance for the constitution<br />
of the semantic aspect of the ideational metafunction.<br />
Keywords: Social Context, ideational metafunction; transitivity.
Aplicabilidade da Linguística<br />
Sistêmico-Funcional a In-Doors<br />
Introdução<br />
Ângela Maria TORRES Santos<br />
(<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG) 1<br />
A utilização de toda extensão das portas externas de elevadores<br />
tem-se mostrado comum em áreas internas de hospitais, faculdades<br />
e outros prédios públicos, como um novo suporte para divulgação de<br />
mensagens, selecionando-se para amostra três (03) in-doors, encontrados<br />
em hospital da rede particular. Essa denominação foi determinada<br />
pela autora deste artigo por analogia com out-doors, já que aqueles<br />
constituem uma estampa única sobreposta às portas externas dos<br />
elevadores, localizados em saguões internos de um hospital particular<br />
de grande porte, à semelhança dos out-doors, os quais apresentam<br />
características de exposição similar, mas atrelados a ambientes externos.<br />
Buscando observar as escolhas linguísticas como reveladoras da<br />
intencionalidade do falante/autor e tentando comprovar que o texto<br />
se constrói a partir do contexto e das escolhas no sistema linguístico,<br />
viu-se que o corpus selecionado marca os papéis sociais do autor e do<br />
interlocutor, despertando a curiosidade em determinar-se como se deu<br />
essa marcação e se o efeito sobre o leitor foi condizente com o objetivo<br />
e intencionalidade do autor.<br />
Embasaram este preito os aportes teóricos da Linguística<br />
Sistêmico-Funcional, seguindo a linha teórica de Halliday, cuja<br />
1. Trabalho realizado para avaliação da disciplina Sintaxe, sob orientação da Profª Drª Medianeira Souza.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 35
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
concepção de linguagem consiste não só considerá-la como uma<br />
estrutura linguística mas também composta de dados extralinguísticos,<br />
extraídos do contexto social, da ambiência de uso da linguagem.<br />
Linguística sistêmico-funcional (LSF)<br />
Reconhecendo as inúmeras aplicabilidades do termo<br />
funcionalismo e as divergentes peculiaridades entre os seus modelos,<br />
neste trabalho importou a teoria funcionalista da linguagem, capaz<br />
de ser reconhecida nas similitudes que se fazem presentes nos<br />
diversos aportes não estruturalistas, apontando para uma visão da<br />
linguagem que centra seu interesse no entendimento de como se dá<br />
uma comunicação eficiente entre os usuários de determinada língua<br />
natural, ou seja, como ela funciona quando em uso.<br />
Vê-se que a Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF)<br />
preocupa-se com uma linguagem que constrói e interpreta significados<br />
em situações sociais, o que implica reconhecer a importância do<br />
contexto, o que dá ao seu enfoque linguístico uma perspectiva sóciosemiótica,<br />
como se depreende da afirmação de Halliday (1970, p.141):<br />
The nature of language is closely related to the demands<br />
that we make on it, the functions it has to serve. In the most<br />
concrete terms, these functions are specific to a culture […]<br />
we all use language as a means of organizing other people, and<br />
directing their behaviour. 2<br />
2. A natureza da linguagem está relacionada intimamente com as demandas que impomos a ela, às funções que a<br />
língua tem de servir. Em termos mais concretos, essas funções são específicas de uma cultura; [...] todos nós usamos<br />
linguagem como uma forma de organizarmos outras pessoas e direcionarmos seus comportamentos (tradução<br />
nossa).<br />
36 l Anais Eletrônicos - 2011
APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
Essa concepção semiótica da linguagem é comentada por Ghio<br />
e Fernández (2008, p.13), trazendo as palavras de Halliday e Hassan,<br />
para mais esclarecê-la:<br />
No podemos operar com el concepto de signo como una entidad.<br />
Tenemos que pensar más bien en sistemas de significado, sistemas<br />
que operan con ciertos productos formales a los que llamamos<br />
‘signos’, entendidos no como conjuntos de cosas aisladas sino<br />
como ‘redes de relaciones’. Es en este sentido que empleo el<br />
término ‘semiótica’ para definir la perspectiva desde la que quiero<br />
considerar al lenguaje: el lenguaje como uno entre otros sistemas<br />
de significado, que, en su conjunto, constituyen la cultura humana.<br />
Isso implica reconhecer ser a organização da língua um sistema<br />
no qual se criam e se intercambiam significações, sendo, por isso,<br />
um sistema complexo, visto que a construção do significado se dá<br />
socialmente.<br />
Podemos dizer que, estabelecendo relação entre linguagem e<br />
sistema linguístico e considerando as relações entre texto e contexto,<br />
a LSF busca descrever as redes de escolhas do que Halliday denomina<br />
léxico-gramática, com o fito de alcançar o potencial semântico do<br />
sistema. Observando esse potencial de significado que é a língua,<br />
Halliday apud Gouveia (2009, p. 15) defende que<br />
acima dos sistemas linguísticos e dos falantes, uma realidade<br />
há, a linguagem, que cumpre certas funções, uma realidade<br />
que existe para potenciar possibilidades de uso e assim<br />
complementar outras capacidades humanas.<br />
É Halliday (1978, p.52) quem questiona “Como podemos tentar<br />
compreender a língua em uso?”. E acresce imediatamente a resposta:<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 37
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Olhando para o que o falante diz na relação com o que<br />
poderia ter dito, mas não disse, como uma atualização na<br />
envolvência de um potencial. Daí a envolvência ser definida<br />
paradigmaticamente: usar a língua significa fazer escolhas na<br />
envolvência de outras escolhas (HALLIDAY apud GOUVEIA,<br />
2009, p.22)<br />
Dessa forma, a LSF extrapola a mera enumeração dos usos da<br />
linguagem, preocupando-se em analisar a relação dialética que se<br />
estabelece entre os usos sociais da linguagem e o sistema linguístico.<br />
Abrangendo, então, funções mais abstratas de todas as línguas,<br />
Halliday propôs o termo metafunção da linguagem, aí se incluindo<br />
“interactuar con otros, representar e interpretar la experiência del<br />
mundo (externo e interno) y organizar y construir textos significativos<br />
em los contextos en que se emplean.” (GHIO; FERNÁNDEZ, 2008,<br />
p.23-24).<br />
Por seu caráter geral e abstrato e por ser a funcionalidade<br />
considerada um componente intrínseco à linguagem, Halliday (2004,<br />
p.31) utiliza o termo “metafunção”, esclarecendo que<br />
the entire architeture of language is arranged along functional<br />
lines. Language is as it is because of the functions in which is<br />
has evolved in the human species. The term ‘metafunction’ was<br />
adopted to suggest that function was an integral component<br />
with the overall theory.” 3<br />
3. a arquitetura total da linguagem é arranjada ao longo de linhas funcionais. Linguagem é como é por causa das<br />
funções nas quais ela se desenvolveu na espécie humana. O termo ‘metafunção’ foi adotado para sugerir que a<br />
função foi um componente integrante da teoria como um todo (tradução nossa).<br />
38 l Anais Eletrônicos - 2011
APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
Assim, como metafunções básicas da linguagem, Halliday<br />
distingue a metafunção ideativa ou ideacional (organizada em duas<br />
sub-funções, a experiencial e lógica), a metafunção interpessoal e a<br />
metafunção textual. A metafunção ideativa ou ideacional encarregase<br />
da representação das experiências (sub-função experiencial), sendo<br />
esse conteúdo comunicativo organizado por meio de relações de<br />
conjunção, disjunção, causalidade etc (sub-função lógica).<br />
Já a metafunção interpessoal diz respeito aos papéis sociais que<br />
assumimos e impomos aos outros no momento da ação comunicativa,<br />
reveladoras de nossas atitudes, desejos, sentimentos, crenças e juízos<br />
(cf. GHIO; FERNÁNDEZ, 2008, p. 24).<br />
A partir do conhecimento das estratégias permitidas pelo<br />
sistema linguístico, selecionam-se os recursos que permitem organizar<br />
um texto coeso, e coerente à situação comunicativa, constituindose,<br />
assim, a metafunção textual a forma de organizarmos os nossos<br />
significados ideacionais e interpessoais, da forma mais adequada ao<br />
momento interativo e expondo o que é de relevância para o contexto.<br />
Para Halliday, visto dessa forma, como concretude da<br />
potencialidade sistêmica da língua, o texto engloba dois contextos<br />
extralinguísticos configurados no nível linguístico, correspondentes ao<br />
contexto de situação inserido no contexto de cultura, ficando a léxicogramática<br />
encarregada de realizar o nível semântico da língua (estrato<br />
de conteúdo), concretizada no nível de expressão. Assim, o contexto,<br />
o significado e a expressão verbal são perspectivas inseparáveis no<br />
momento de se descrever a linguagem.<br />
Para entender essa rede do sistema de dados desse contexto<br />
social, importa reconhecer as variáveis apresentadas por ele, as quais<br />
correspondem ao campo, ao modo e às relações. Ao falar-se em campo,<br />
envolve-se a atividade social que está sendo efetivada, a ação social, a<br />
natureza da ação; o modo diz respeito à modalidade de comunicação<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 39
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
usada, se escrita/gráfica ou oral/fônica, com uso de frases declarativas,<br />
interrogativas ou imperativas, constituindo a retórica da linguagem;<br />
e as relações compreendem os papéis sociais do falante/ouvinte e de<br />
como eles se relacionam na situação comunicativa.<br />
Essas variáveis ligam-se à função exercida pela linguagem, razão<br />
pela qual a língua é merecedora, assim, de um tratamento funcional,<br />
quando se defende a tese de serem analisadas “as estruturas das<br />
expressões linguísticas como configurações de funções, sendo cada<br />
uma das funções vista como um diferente modo de significação<br />
na oração” (NEVES, 1997, p.2). Ressalta-se, assim, que a análise<br />
linguística funcional de Halliday se preocupa em usar a compreensão<br />
da língua como sistema, ou seja, uma representação teórica da rede<br />
de paradigmas disponíveis da língua, mas extrapolando a noção<br />
de estrutura sintagmática, entendida como opções concretas de<br />
realizações linguísticas.<br />
A concretude dessa marca social da linguagem se dá por meio<br />
dos textos, como materialidade discursiva, no momento interativo.<br />
Dessa forma, a gramática da língua é moldável às circunstâncias do<br />
uso, voltada para escolhas na rede de sistemas da linguagem, sendo,<br />
assim, essa gramática é, prioritariamente, paradigmática, além de<br />
valorizar a questão sistêmica e visar ao funcional.<br />
A gramática hallidayana, portanto, analisa como a forma<br />
linguística escolhida importa na obtenção de efeitos distintos na<br />
mensagem, voltando sua atenção para a oração e para o texto. A<br />
oração interessa como realização dos significados (metafunções),<br />
construída a partir de escolhas (eixo paradigmático do sistema<br />
linguístico), constitutivas do nível profundo e abstrato da língua, e<br />
da cadeia sintagmática, a qual concretiza as realizações linguísticas.<br />
A dimensão dada ao texto pode ser analisada e interpretada sob<br />
dois pontos de vista distintos: texto como espécime, ou seja, objeto<br />
40 l Anais Eletrônicos - 2011
APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
em si mesmo, como instrumento de análise do sistema linguístico;<br />
e texto como artefato, isto é, como produto autêntico da interação<br />
social, que deve ser analisado em seu contexto de cultura e em seu<br />
contexto de situação. É o texto como artefato que permite entender<br />
seu funcionamento, vê-lo como instanciação do sistema. Assim,<br />
busca Halliday analisar o texto, numa abordagem top-down, vendo<br />
o texto como<br />
uma progressão contínua de significados, em combinação<br />
simultânea como em sucessão. Os significados são as selecções<br />
feitas pelo falante das opções que constituem o potencial<br />
de significado; o texto é a actualização desse potencial de<br />
significado, o processo de escolha semântica (GOUVEIA,<br />
2009, p.18).<br />
Além de instanciação do sistema linguístico, o texto deve<br />
ser observado em contexto de cultura, isto é, reconhecendo que os<br />
significados construídos atrelam-se a motivações sociais e culturais,<br />
sendo a cultura de importância crucial para a significação, já que a<br />
atividade linguística é, prioritariamente, cooperativa e, nesse contrato<br />
de cooperação entre falante e ouvinte, impõem-se regras sociais,<br />
normas e convenções. Essa característica pragmática da construção<br />
do significado impede que se busque descrever a linguagem como fim<br />
em si mesma, mas revela a necessidade de descrevê-la subordinada<br />
ao uso que dela se faz e, consequentemente, com observância do<br />
contexto social específico de sua realização, o contexto de situação,<br />
resultando daí a concepção de Halliday sobre a função da linguagem<br />
como motivação discursiva.<br />
Considerando, pois, os textos como instâncias reais da língua,<br />
Halliday se preocupa em entender como o sistema da língua se<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 41
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
relaciona com eles, com enfoque nessa questão contextual. Isso<br />
implica focar o uso da língua como forma de interação entre<br />
os falantes, compreendendo e descrevendo sua estrutura em<br />
funcionamento, de forma que a língua seja vista como uma grande<br />
rede de opções inter-relacionadas entre si e ao contexto social, como<br />
rede de sentidos, como semiótica social, isto é, língua como sistema<br />
semântico-discursivo que representa o “potencial de sentido” de<br />
uma cultura.<br />
Dessa forma, a gramática sistêmico-funcional de Halliday leva<br />
em consideração questões relativas ao significado (semântica) e ao<br />
uso (aspecto funcional), sem desmerecer a existência de uma rede<br />
de sistemas que constitui a língua, entendida como um sistema de<br />
construção de significados. De outra forma, podemos dizer que, para<br />
Halliday, estudar a linguagem implica analisar a rede do sistema de<br />
dados do contexto social e a do sistema linguístico, elegendo o texto<br />
como unidade de comunicação discursiva, como forma linguística<br />
de interação social.<br />
Atrelado ao aspecto social, o sistema linguístico, por sua vez, é<br />
formado de subsistemas: semântico, léxico-gramatical e fonológico.<br />
É no subsistema semântico, constituinte de todos os significados<br />
das orações (clauses), que Halliday inclui as metafunções já<br />
apontadas como componentes da língua, constituindo elas um todo<br />
composicional, de caráter multifuncional.<br />
Voltando os aspectos teóricos da LSF para a análise do corpus<br />
selecionado, foi dado enfoque ao subsistema de transitividade,<br />
componente do sistema léxico-gramatical, sendo a transitividade<br />
observada como propriedade da oração, o que implica interferências<br />
de fatores que ultrapassam o âmbito do sintagma verbal (SV).<br />
Considerando, pois, que linguagem, texto e contexto, juntos, são<br />
responsáveis pela organização e desenvolvimento da experiência<br />
42 l Anais Eletrônicos - 2011
APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
humana, o estudo das formas léxico-gramaticais se desenvolve em<br />
relação às suas funções sociais. A transitividade relaciona-se com a<br />
metafunção ideacional, ou seja, com a representação das ideias, da<br />
experiência humana do mundo real, exterior ou interior, de nossa<br />
consciência.<br />
Essa materialização se dá por meio dos tipos de processos<br />
(representados pelos verbos), permitindo que a gramática da oração<br />
denote um conjunto de tipos oracionais com diferentes transitividades,<br />
as quais permitem reconhecer e identificar as ações e as atividades<br />
humanas expressas no discurso. A análise dos papéis da transitividade<br />
implica observar os processos (o que faz – representado pelo verbo),<br />
quais os participantes (quem faz e a quem faz – representados pelos<br />
substantivos) e em que circunstâncias (representadas pelos advérbios).<br />
Os processos (SV) correspondem a elementos responsáveis por<br />
codificar ações, eventos, estabelecer relações, exprimir ideias e<br />
sentimentos, construir o dizer e o existir, incluindo-se no mundo<br />
físico, no mundo da consciência e no das relações abstratas. Quanto<br />
aos participantes (SN), eles identificam os elementos envolvidos<br />
no processo, de forma obrigatória ou não, recebendo denominações<br />
específicas para cada processo. As circunstâncias (advérbios ou<br />
SAdv.) correspondem a informações adicionais atribuídas aos<br />
diferentes processos, classificadas pelas condições e coerções a eles<br />
condicionadas.<br />
A análise dos tipos de processos de transitividade os distribui em<br />
processos principais, subdivididos em materiais, mentais e relacionais,<br />
e processos secundários, nos quais se distinguem os comportamentais,<br />
verbais e existenciais, estando os processos secundários em posição<br />
limítrofe aos processos principais.<br />
Os participantes são denominados a partir de sua postura no<br />
processo. Sendo assim, nos processos materiais, denominam-se Ator<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 43
Sinta e<br />
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f<br />
aquele que faz a ação e Meta o elemento afetado pela ação. Como<br />
componentes opcionais, podem aparecer Extensão (especificação<br />
da ação, complementando-a), Beneficiário (beneficia-se da ação),<br />
Escopo, Recipiente e Cliente. Nos processos mentais ou processos de<br />
sentir, temos o Experienciador, sujeito consciente que experimenta<br />
um sentir, e o Fenômeno, que é o fato percebido. Nos processos<br />
relacionais, temos o Portador, como participante qualificado, e<br />
Atributo, que é a qualificação dada, além da Característica, atribuída<br />
a uma entidade definida, e do Valor, como termo definidor. Nos<br />
processos verbais, temos, como participantes, o Dizente, que<br />
corresponde àquele que diz, o Receptor, participante opcional, que<br />
representa a quem se diz, e a Verbiagem que consiste no que é dito.<br />
No processo existencial, temos apenas um participante, que é o<br />
Existente, e no processo comportamental, temos o Comportante,<br />
participante consciente, e o Behaviour, participante opcional que<br />
estende o processo.<br />
Dessa forma, analisar a transitividade, para a LSF, consiste<br />
em observar a seleção dos processos e dos participantes, além das<br />
circunstâncias que se atrelam aos processos. Essa análise do texto,<br />
numa perspectiva globalizante, é capaz de esclarecer como se deu a<br />
construção dos sentidos.<br />
O subsistema do modo oracional, incluído no subsistema léxicogramatical<br />
do sistema linguístico, consiste na observação da troca<br />
entre falante e interlocutor, num evento interativo, que faz com que<br />
papéis discursivos sejam adotados por um e atribuído a outro. Essa<br />
assunção de papéis se concretiza em escolhas de modalidade, entoação,<br />
determinados itens lexicais etc., que visam a deixar claro qual papel<br />
social se está assumindo e exigindo que o interlocutor assuma.<br />
A análise dos textos nos in-doors levou em consideração o fato<br />
de que todo ato discursivo é dialógico, no qual se pressupõe uma<br />
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APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
negociação entre falante e ouvinte, uma relação biunívoca entre<br />
dar e pedir informações ou bens e serviços. Dessa troca, resultam as<br />
quatro funções primárias das gramáticas das línguas naturais: oferta<br />
(dá) e ordem (pede), em que se trocam bens e serviços; e afirmação<br />
(dá) e pergunta (pede), quando se trocam informações. A função<br />
semântica de uma oração, na troca de informação (afirmação e<br />
pergunta), é uma proposição, que pode ser contestada. Já a troca de<br />
bens e serviços (oferta e ordem) corresponde, semanticamente, a<br />
uma proposta, e esta não pode ser negada nem afirmada.<br />
Nesse movimento interativo, a oração é reestruturada em<br />
função do contexto discursivo, permanecendo elíptica a parte<br />
pressuposta pelo contexto, denominada resíduo. Já a parte que<br />
congrega o argumento da oração e que, portanto, se apresenta<br />
afetada, é chamada de modo verbal e é nele que se manifesta a troca<br />
discursiva.<br />
Aplicando a teoria<br />
Em recentes idas ao Hospital Memorial São José, observou-se<br />
a utilização dos espaços externos dos elevadores do quarto andar, em<br />
número de três, em cada um dos quais se via um adesivo que recobria<br />
toda a porta. Foi despertado o interesse em analisar a parte verbal,<br />
desconsiderando-se a imagem de médicos e médicas, jovens, bonitos e<br />
sorridentes que, indubitavelmente, conduzem o leitor à determinada<br />
construção do significado, principalmente em face de serem comuns,<br />
em áreas hospitalares, apenas cartazes com solicitação de silêncio,<br />
avisos quanto a horários de visitas ou mesmo a proibição delas.<br />
Na busca pelo entendimento analítico da linguagem, é<br />
importante retomar-se o sistema de dados do contexto social,<br />
procurando traçar um perfil do contexto de cultura que se percebe nos<br />
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f<br />
textos observados. Assim sendo, torna-se imprescindível lançar um<br />
olhar sobre a assistência à saúde, em nosso país, dever constitucional<br />
do Estado. No entanto, vemos os sistemas de saúde pública assumirem<br />
um papel de passividade, com raras exceções, o que só contribui para a<br />
sedimentação de uma imagem de descaso com o doente, proveniente<br />
tanto das posturas políticas das autoridades como das dos médicos,<br />
que, por sua vez, se veem obrigados a cumprir plantões subsequentes<br />
para conseguirem um rendimento que supra suas necessidades.<br />
Essas questões sócio-político-econômicas se refletem na qualidade<br />
da prestação da assistência médica, contribuindo para a instalação do<br />
ramo hospitalar como mercado econômico, possibilitando àqueles que<br />
têm melhor poder aquisitivo ter acesso a atendimento de qualidade,<br />
seja por meio de planos de saúde, seja por custeio próprio.<br />
Institui-se, então, a busca pela preferência na escolha dos<br />
“clientes”, acarretando uma mudança na identidade sócio-cultural<br />
dos pacientes, que se veem, muitas das vezes, como mera fonte de<br />
ganhos para os hospitais, importando não sua história de vida, mas a<br />
etiologia das queixas médicas apresentadas, que permitirá a solicitação<br />
de exames, por vezes desnecessários à formulação do diagnóstico, mas<br />
positivos como forma de amealhar recursos.<br />
Os familiares de pacientes se preocupam com o cuidado<br />
dispensado à saúde e o bem estar de seu ente querido. Dessa forma,<br />
buscam certificar-se de que o hospital oferece condições de bom<br />
atendimento profissional e humano. No entanto, comumente se veem<br />
que aspectos éticos e humanísticos são “esquecidos”, contando com a<br />
participação ativa e consciente de muitos dos médicos, que relegam<br />
a segundo plano o exercício da medicina como ato humano ativo e<br />
responsável, capaz de tornar social a clínica individual, pela sua postura.<br />
Esse pensamento encontra respaldo nas palavras de Susser (1987, p.<br />
188), que diz:<br />
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APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
A função da medicina, no nível social, é racionalizar e<br />
legitimar aquele que assume o papel social de doente. Doença,<br />
neste sentido, é um desvio em relação às normas vigentes no<br />
exercício cotidiano de papéis sociais [...] Os profissionais de<br />
saúde não são, como alguns gostam de ver a si próprios, neutros<br />
ou cientificamente imparciais no que tange a valores: eles são<br />
parte do sistema de controle social.<br />
Como o texto sofre impactuação desse contexto de cultura e<br />
também do contexto de situação, a análise efetivada demonstra o<br />
que é importante para os membros culturais inseridos nessa atividade<br />
dialógica (médicos, pacientes, familiares do paciente), percebendose<br />
estruturas linguísticas comuns ao contexto situacional (local e<br />
momento de consulta médica ou tratamento de saúde).<br />
Da leitura dos textos, percebe-se que o que aparenta ser uma<br />
preocupação com o serviço humanitário, na verdade, consiste numa<br />
promoção que a instituição, escamoteadamente, faz de si própria.<br />
Essa afirmação se alicerça no fato de que, nos textos, percebe-se o<br />
papel social atribuído à instituição e ao leitor, não coincidente com<br />
a figura do paciente. Representa-se o paciente como a não pessoa,<br />
ou seja, usando a referência à 3ª pessoa do singular. Torna-se claro,<br />
pelas opções lexicais, a identificação do autor do texto como sendo<br />
representante da instituição hospitalar, já que o autor se refere a si<br />
mesmo como a gente, nossos médicos, nossas instalações e máquinas,<br />
como se comprova nos excertos abaixo:<br />
Texto 1:<br />
Nem sempre a gente trata os pacientes pelo nome. Às vezes é<br />
pelo apelido.<br />
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f<br />
Por isso nossos médicos tratam pessoas como pessoas, não como<br />
números.<br />
E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />
Texto 2:<br />
Nossos médicos também escutam os pacientes, sem o<br />
estetoscópio.<br />
Porque, pra gente, tão importante quanto ouvir os batimentos<br />
cardíacos deles é saber como eles estão se sentindo.<br />
E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />
Texto 3:<br />
Por mais que sejam modernas as nossas instalações e máquinas,<br />
existem diagnósticos que não podem ser observados apenas<br />
numa tela de computador.<br />
E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />
Por outro lado, vê-se que o autor só faz uma referência direta<br />
ao leitor, em todos os textos observados, na cláusula complexa final<br />
repetida “E é isso que faz a gente ser assim, humano como você”.<br />
O paciente, por sua vez, que deveria ser o tema da mensagem, se<br />
houvesse, realmente, uma intenção de priorizar a informação sobre<br />
ele, aparece como “os pacientes”, “eles”, “um paciente”, “deles” e<br />
“pessoas”. Essa opção concretizada pelo autor do texto é reveladora<br />
do fato de que o endereçamento dessa mensagem não se faz ao leitor/<br />
paciente, mas, muito provavelmente, a um leitor/familiar de paciente,<br />
já que a escolha lexical não deixa clara a posição do leitor como<br />
sendo alguém que assume a postura de doente e precisa da assistência<br />
oferecida pelo hospital, podendo ser, no entanto, os familiares ou<br />
amigos visitantes, sadios o bastante para lerem os textos e, a partir<br />
deles, pressuporem um serviço médico de qualidade e humanitário.<br />
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Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
Por essa retórica da linguagem se percebe o papel social que o<br />
autor se atribui e o papel social que ele atribui ao leitor, procurando<br />
estabelecer um relacionamento, naquela situação comunicativa,<br />
de aparente respeito e consideração da parte do falante/autor em<br />
relação ao paciente, correspondendo à metafunção interpessoal, pela<br />
qual o autor revela uma atitude de pretenso enaltecimento de sua<br />
humanidade e, portanto, da equiparação com a condição humana<br />
dos leitores.<br />
Dessas mesmas condições, emerge o gênero, por meio do qual<br />
se nota o uso da língua com estruturas adequadas ao propósito social<br />
e comunicativo do texto, determinado pelo falante/autor, que é<br />
propagandear os bons serviços do hospital. O campo, no contexto<br />
de situação apresentado, isto é, a atividade social efetivada, é<br />
dimensionado pela oferta de melhores serviços médicos. Para isso,<br />
a modalidade da comunicação escolhida foi escrita/gráfica, com<br />
uso exclusivo de frases declarativas, ora afirmativas ora negativas,<br />
constitutivas de uma oferta de informações, portanto, semanticamente,<br />
o autor apresenta proposições, cabendo, assim, ao leitor negá-las ou<br />
confirmá-las.<br />
Estruturada em cláusulas simples e complexas, pode-se perceber,<br />
de forma imbricada, nos textos analisados, a representação das<br />
experiências do mundo físico e do mundo mental do autor (metafunção<br />
ideacional). Essas experiências específicas do ambiente hospitalar e<br />
médico se revelam nas escolhas das lexias presentes nas orações:<br />
a. Nem sempre a gente trata os pacientes pelo nome. Às vezes<br />
é pelo apelido. (texto 1).<br />
b. Existe uma grande diferença entre auscultar e escutar um<br />
paciente. (texto 2).<br />
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f<br />
c. Nenhuma ressonância magnética consegue mostrar tudo que<br />
se passa na cabeça de um paciente. (texto 3)<br />
Utilizando-se de relações lógicas, o autor compôs seus textos<br />
usando conjunção, disjunção e causalidade para organizar o conteúdo<br />
comunicativo. Isso demonstra o conhecimento que tem o autor<br />
das opções que o sistema linguístico oferece, possibilitando que ele<br />
compusesse textos coesos e coerentes com sua intencionalidade<br />
comunicativa (metafunção textual), que é sua valoração como<br />
entidade hospitalar. Nos trechos a seguir, percebem-se, em destaque,<br />
tais relações.<br />
a. Paciente não gosta de ser chamado de paciente. Ele tem<br />
nome, família, hobbies, um trabalho. Pode ser que goste de<br />
futebol, de artes, de Bossa Nova, de novela. (conjunção)<br />
b. Essas coisas não dá pra saber, só preenchendo uma ficha<br />
(disjunção).<br />
c. Por isso (causalidade) nossos médicos tratam pessoas como<br />
(conjunção) pessoas, não como (disjunção) números.<br />
Outras informações, obtidas a partir dos dados do sistema<br />
linguístico, no corpus em análise, ligadas ao subsistema léxicogramático,<br />
foram trazidas pelo aspecto da transitividade das orações,<br />
diretamente relacionada com a função ideacional da linguagem.<br />
Analisando os processos, os participantes e as circunstâncias, foi<br />
possível perceber uma distribuição majoritária pelo uso de processos<br />
mentais, cujo experienciador ora é o paciente ora é a instituição. O<br />
resto da informação corresponde ao fenômeno experienciado.<br />
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APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
a. Paciente (experienciador) não gosta de ser chamado de<br />
paciente.<br />
b. Ele (experienciador) tem nome, família, hobbies, um trabalho.<br />
c. Pode ser que (ele - experienciador) goste de futebol, de artes,<br />
de Bossa Nova, de novela.<br />
d. Por isso nossos médicos (experienciadores) tratam pessoas<br />
como pessoas, não como números.<br />
Ainda no texto 1, percebem-se, também, processos relacionais,<br />
como no item d acima, no qual se percebe, no resíduo (como pessoas<br />
[são tratadas]), o participante “pessoas” funciona como portador e<br />
atributo.<br />
É importante que se destaque o fato de que, na cláusula<br />
complexa que encerra o texto, temos o processo relacional expresso<br />
pelo verbo “ser”, cujos participantes são o portador (a gente) e o<br />
atributo “humano como você (é humano resíduo)”. Esse uso do<br />
processo relacional colabora para a identificação do leitor com o autor,<br />
beneficiando-se o autor do texto da provável imagem positiva que cada<br />
um faz de si mesmo. Veja-se, também, que a presença da circunstância<br />
de modo “assim”, a qual atualiza o processo relacional, retoma as<br />
afirmações anteriores, enquanto a circunstância de comparação (como<br />
você) reforça o caráter interativo.<br />
De forma abreviada, pode-se dizer que, observando a<br />
transitividade presente nas cláusulas do texto 1, encontramos: processo<br />
mental de afeição: gostar (gosta, goste); de cognição: tratar, saber<br />
(trata, não dá pra saber), atrelado ao mundo da consciência; processo<br />
relacional: chamar, ter, ser (ser chamado, tem, é, ser), atrelado ao<br />
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f<br />
mundo das relações abstratas; e processo material, com verbo criativo:<br />
preencher, fazer (preenchendo, faz), atrelado ao mundo físico.<br />
No texto 2, percebemos: processo existencial: existir (existe<br />
uma grande diferença), atrelado ao mundo das relações abstratas;<br />
processo verbal: conversar (pra conversar), atrelado ao mundo da<br />
consciência; e predomínio de processo mental: auscultar, ouvir (de<br />
percepção) – entre auscultar, ouvir os batimentos – escutar, saber<br />
(de cognição) – escutar um paciente, saber se sentem – precisar (de<br />
afeição) – precisam de alguém.<br />
No texto 3, na análise da transitividade, percebe-se a presença<br />
de processo material, com verbo criativo: mostrar, fazer e aparecer<br />
(consegue mostrar, faz, aparecem), atrelados ao mundo físico; processo<br />
mental: passar (de cognição), observar ( de percepção) e prestar (de<br />
afeição) – passa na cabeça, podem ser observados, prestar atenção –<br />
atrelados ao mundo do sentir, da consciência; e o processo existencial:<br />
existir (existem diagnósticos), atrelado ao mundo das relações<br />
abstratas.<br />
A análise global da transitividade do texto é esclarecedora<br />
da construção dos sentidos, quando se percebe, nos três textos, o<br />
predomínio de processos mentais, possibilitando detectar valores e<br />
desejos do autor dos textos analisados, já que esses processos ativam<br />
sentimentos e avaliações humanas. A diversidade dos processos<br />
mentais (de cognição, de percepção, de afeição) possibilitou retratar<br />
diferentes experiências, ajudando a construir o sentido do texto.<br />
Os experienciadores são representados por sintagmas nominais<br />
(SN) que representam uma classe profissional (médicos) ou a ela<br />
se relaciona (a gente, como sendo a instituição hospitalar), ou<br />
o paciente. É interessante observar que a colocação do paciente<br />
como experienciador desfoca a leitura feita, possibilitando que o<br />
leitor acredite ter sido o texto redigido para ser recebido por quem é<br />
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paciente. A leitura mais atenta, no entanto, mostrou que o receptor<br />
pretendido é mais a coletividade que por ali passa e não apenas o<br />
paciente e que o reforço na afirmação da humanidade do hospital (a<br />
gente) busca conquistar o cliente mais pelo sentimento que pela razão.<br />
À guisa de comentários finais<br />
Aplicar os princípios teóricos da LSF aos textos selecionados<br />
foi um desafio dado a complexidade dos aspectos imbricados nesse<br />
fazer analítico. No entanto, não se pode considerar um trabalho<br />
investigativo completo por haver ainda muito mais a ser dito sobre a<br />
LSF. Esta análise permitiu ampliar novos olhares sobre a linguagem,<br />
considerando-a como o recurso para que o ser humano construa e<br />
interprete significados no seu meio social.<br />
Ficou claro que entender os fundamentos da LSF e deles partilhar<br />
é quebrar paradigmas pedagógicos, deixando de lado a visão do sistema<br />
da língua como imutável e homogêneo. Sem negar, logicamente,<br />
a importância do sistema linguístico, é vital para a interpretação<br />
perceber que o texto, como materialidade discursiva, é resultado de<br />
escolhas feitas pelo falante/autor, não podendo ser desmerecidas as<br />
razões de tais opções. É necessário vê-lo como representação de ideias<br />
que se entrelaçam com outros aspectos linguísticos e extralinguísticos,<br />
resultando, paradoxalmente falando, num emaranhado lógico. Ao<br />
sintaticista brasileiro, guiado pelos princípios teóricos de Halliday,<br />
cabe a difícil tarefa de entender esses meandros e buscar a descrição<br />
sistêmico-funcional da língua portuguesa.<br />
Tal façanha, indubitavelmente, permitirá entender que o uso da<br />
língua sempre está atrelado ao contexto, para construir significados,<br />
ou seja, é entender que é nas situações extralinguísticas que as<br />
realizações linguísticas se produzem, não podendo os significados<br />
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serem construídos à revelia de tal assertiva. Essa postura acarretará<br />
uma leitura não apenas mais proficiente mas também dificultará<br />
um entendimento enganoso, talvez intencionalmente pleiteado<br />
pelo autor/falante do texto. Isso contribuirá sobremaneira para o<br />
desenvolvimento do leitor/ouvinte crítico e tornará significativo o<br />
estudo da gramática sistêmico-funcional da língua, algo que o simples<br />
conhecimento da gramática normativa nem sempre consegue ser.<br />
Referências<br />
CUNHA, Maria Angélica Furtado da. SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />
contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />
GHIO, Elsa. FERNANDEZ, Maria Délia. Linguística Sistêmico Funcional: aplicaciones a la<br />
lengua española.Santa Fé: Universidad Nacional Del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />
HALLIDAY, Michael.A.K. An introduction to funcional grammar. Londres: Hodder Arnold,<br />
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linguistics. Harmondsworth: Peguin Books, 1970, p. 140-164.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />
SOUZA , Maria Medianeira de. A autoria em editoriais jornalísticos: uma abordagem<br />
sistêmico-funcional. Disponível na internet. Acesso em 10 jul 2011.<br />
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www.abep.nepo.unicamp.br. Acesso em 19 jul 2011.<br />
54 l Anais Eletrônicos - 2011
APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />
Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />
Anexos<br />
Texto 01<br />
NEM SEMPRE A GENTE TRATA OS PACIENTES PELO NOME. ÀS VEZES É PELO<br />
APELIDO.<br />
Paciente não gosta de ser chamado de paciente. Ele tem nome, família,<br />
hobbies, um trabalho. Pode ser que goste de futebol, de artes, de Bossa<br />
Nova, de novela. Essas coisas não dá pra saber, só preenchendo uma ficha.<br />
Por isso nossos médicos tratam pessoas como pessoas, não como números.<br />
Texto 02<br />
EXISTE UMA GRANDE DIFERENÇA ENTRE AUSCULTAR E ESCUTAR UM<br />
PACIENTE.<br />
Nossos médicos também escutam os pacientes, sem o estetoscópio. Porque,<br />
pra gente, tão importante quanto ouvir os batimentos cardíacos deles é saber<br />
como eles estão se sentindo. Se sentem saudade de casa, da família. Se estão<br />
se sentindo bem, se precisam de alguém pra conversar.<br />
E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />
Texto 03<br />
NENHUMA RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CONSEGUE MOSTRAR TUDO QUE SE<br />
PASSA NA CABEÇA DE UM PACIENTE.<br />
Por mais que sejam modernas as nossas instalações e máquinas, existem<br />
diagnósticos que não podem ser observados apenas numa tela de<br />
computador. Às vezes eles aparecem durante uma conversa despretensiosa,<br />
uma volta pelo hospital, um gesto espontâneo. Prestar atenção nas pessoas<br />
faz toda a diferença.<br />
E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />
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Resumo<br />
O objetivo deste artigo é fornecer, a partir do princípio da iconicidade e<br />
a teoria de foco, uma interpretação funcionalista sobre o fenômeno da<br />
não-concordância nas construções V SN. Partimos das hipóteses de que<br />
nas cláusulas de estrutura VS o termo que ocupa a posição de sujeito<br />
se reorganiza no nível sintagmático e se ressintaticisa, despindo-se de<br />
características prototípicas e assumindo parte do comportamento de<br />
objeto. Acreditamos também que a ordem V SN pode estar refletindo<br />
uma estrutura heterogênea, representando construções que manifestam<br />
alguma estratégia discursiva. Para as análise tomamos por base um corpus<br />
constituído por textos escritos, que são exemplares do monitoramento da<br />
língua, como textos publicados em jornais e outros documentos escritos.<br />
Serviram de parâmetro para as análises as pesquisas já empreendidas<br />
sobre a ordem sob diversas orientações teórico-metodológicas: Berlinck<br />
(1989 e 1997), Bittencourt (1980) Pedrosa (2004), Pontes (1986), Santos<br />
(1990) e Votre & Naro (1991).<br />
Palavras-chave: LSF. ordem verbo-sujeito, não-concordância,<br />
gramática e iconicidade.<br />
Abstract<br />
The main aim of this paper is to provide, from the principle of iconicity and<br />
the theory of focus, a functionalist interpretation of the phenomenon of<br />
non-concordance of V SN constructions. We started from the hypothesis<br />
that in VS structured clauses, the term which occupies the subject position<br />
is reorganized on the nominal level and “resyntaxes” itself, with no<br />
prototypical features and taking part of an object behavior. We also believe<br />
that the order V SN may reflect a heterogeneous structure, representing<br />
constructions which express a discursive strategy. For the analysis we<br />
took written texts for our corpus, which are copies of the monitoring of<br />
the language, such as texts published in newspapers and some other<br />
written documents. The following authors were the parameter for the<br />
research analysis, which were already taken for various theoretical and<br />
methodological approaches: Berlinck (1989 and 1997), Bittencourt (1980)<br />
Pedrosa (2004), Bridges (1986), Santos (1990) & Naro and Votre ( 1991).<br />
Keywords: vs order, non-concordance; grammar and iconicity.
As construções verbo-sujeito e o<br />
fenômeno da concordância em<br />
dados de língua escrita<br />
Introdução<br />
Cléber ATAÍDE<br />
(UFPB/UFRPE)<br />
O que e como ensinar da gramática nas aulas de Língua<br />
Portuguesa? Certamente, esta é uma pergunta que muitos professores<br />
se fazem perante as novas demandas pedagógicas. Não é de hoje<br />
que se discute o papel da gramática nas aulas de língua. Pesquisas e<br />
as nossas experiências têm mostrado o quanto são insatisfatórios os<br />
resultados de práticas pedagógicas centradas em exercícios apenas<br />
de classificação morfossintática das categorias linguísticas. A crítica<br />
aos estudos gramaticais em nossas escolas só tem razão porque é<br />
fragmentado o modo de conceber a gramática e de praticá-la. Há, de<br />
fato, falta de reflexão sobre o que realmente se está fazendo, quando<br />
estamos “fazendo gramática” do modo que fazemos.<br />
O caso da concordância sujeito/verbo, por exemplo, pode<br />
ser encontrado nos compêndios gramaticais como sendo um caso<br />
de excelência de domínio da norma-padrão do Português. Nesses<br />
manuais, é um consenso encontrar uma lista de convenções que<br />
regulam a concordância do verbo com as expressões em posição<br />
de sujeito. Nestes casos, há apenas nomeação de ocorrências em<br />
que o verbo deve concordar com o sujeito e pouco se explica sobre<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 57
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
a não-concordância em situações em que não acontece a posição<br />
prototípica 1 do sujeito.<br />
Sobre este fenômeno, construções em que sujeito é “posposto”,<br />
em ordem verbo/sujeito, o caso se complica. Primeiro, porque pouco<br />
se tem evidenciado essas ocorrências para estudo sistemático nos<br />
manuais escolares e, segundo, porque não há um tratamento adequado<br />
ou, pelo menos, mais criterioso na abordagem desses casos na sala<br />
de aula.<br />
Este estudo, portanto, procurará evidenciar a ausência/presença<br />
da marca explícita de plural nos verbos sob diferentes estruturas de<br />
organização no português, a saber:<br />
a) construções do tipo V + SN [+plural]<br />
Ex1: falta ao governo decisões corajosas e firmes.<br />
Ex2: Não importa as sucessivas decisões judiciais favoráveis<br />
ao pagamento.<br />
Sobre as construções acima, nota-se a ausência da concordância.<br />
Então, que explicação quanto à regra da concordância poderíamos<br />
atribuir a este enunciado? Como poderíamos justificar o “desvio” da<br />
norma-padrão nos contextos mais monitorados de língua escrita, como<br />
um jornal de publicação nacional? Será que esse tipo de desvio só<br />
poderia acontecer com falantes socialmente estigmatizados ou não<br />
1. Estamos nos referindo à posição mais convencionada do lugar de sujeito. Numa língua SVO como o português,<br />
a tendência é que primeiro enunciamos o item do qual vamos falar para, em seguida, predicarmos algo sobre<br />
este item que evocamos. Assim, nas cláusulas o elemento, em destaque por seu posicionamento à esquerda do<br />
verbo, assume necessariamente o status de referencial.<br />
58 l Anais Eletrônicos - 2011
AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
conhecedores da gramática normativa? Alguns linguistas lançam a<br />
hipótese de que, numa análise sintática intuitiva, por uma decorrência<br />
da reanálise, o falante brasileiro reanalisa tudo o que vem depois do<br />
verbo como objeto e, assim, não teria razão a concordância verbo –<br />
sujeito. Nessa construção (falta ao governo decisões corajosas e firmes),<br />
um SN posposto ao qual se deveria atribuir função-sujeito é percebido<br />
como objeto e assumindo parte de seu comportamento sintáticosemântico.<br />
Essa pequena amostra e um conjunto de outros dados divulgados<br />
por sociolinguistas e funcionalistas brasileiros como, por exemplo,<br />
Bagno (2007), Scherre (2005), Martellota et. al. (1996), Furtado<br />
da Cunha (2007), Naro & Votre (1999) entre outros, parecem nos<br />
conduzir para a interpretação de que o fenômeno da não-concordância<br />
verbo/sujeito no Português do Brasil passa, em alguns casos, por<br />
estágio de mudança linguística, já que começa a configurar, com<br />
muita frequência, em dados da língua escrita mais monitorada, como<br />
já encontramos em artigos de jornais, dissertações de mestrado e<br />
outros documentos escritos. Temos, então, segundo Bagno (2007),<br />
um contraste evidente entre duas regras, uma prevista pela normapadrão<br />
e outra que é ativada pelo uso da língua falada por todos os<br />
brasileiros, inclusive os chamados “cultos”:<br />
NORMA-PADRÃO<br />
Não importam as sucessivas decisões<br />
judiciais favoráveis ao pagamento.<br />
REGRA INOVADORA<br />
Não importa as sucessivas decisões<br />
judiciais favoráveis ao pagamento.<br />
Na tentativa de explicar o contraste entre essas duas regras,<br />
queremos ajudar a explicitar respostas às seguintes questões: (i) por<br />
que, em alguns contextos mais monitorados da língua escrita no<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 59
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
português brasileiro, na ordem VS, o sujeito tende a não concordar<br />
com o verbo? (ii) que correspondência há entre a natureza sintáticosemântica<br />
do verbo e a ordem dos seus constituintes (sujeito e<br />
objeto)? (iii) o que determina a ordem VS e sua não-concordância no<br />
Português do Brasil. Dessa maneira, estaremos tentando distinguir o<br />
que teríamos como norma-padrão e norma-culta/variedade prestigiada<br />
do português brasileiro.<br />
Pensando nesta colaboração, aqui abordaremos esse fenômeno<br />
numa perspectiva das ideias do funcionalismo, apresentando,<br />
inicialmente, estudos já realizados sobre ordem VS; em seguida,<br />
explicitaremos os princípios básicos da linguística funcional que<br />
orientaram nossas análises: o processo de gramaticalização e o<br />
princípio da iconicidade. E, por fim, após expor as ocorrências desses<br />
casos no corpus de língua escrita, explicitaremos, sumariamente, os<br />
resultados de nossas análises.<br />
Pesquisas sobre as construções verbo-sujeito<br />
Vários fenômenos em variação no português brasileiro (PB) têm<br />
sido analisados pelos estudiosos da Linguística, porém, a questão da<br />
organização oracional SVO/ VS é um dos fenômenos morfossintáticos<br />
da gramática brasileira que tem sido estudado com mais precisão entre<br />
os linguistas de diferentes aportes teórico-metodológicos.<br />
O interesse desse fenômeno por parte dos linguistas brasileiros<br />
é comprovado pela vasta bibliografia produzida e disponível nos<br />
centros de pesquisa nos últimos anos. Dentre os trabalhos sobre o<br />
fenômeno, podemos destacar: Berlinck (1989 e 1997), Bittencourt<br />
(1980), Coelho (2000 e 2008), Costa (1995), Lira (1996), Pontes<br />
(1986), Santos (1990), Tarallo e Kato (1989) e Naro & Votre (1991).<br />
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AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
Em geral, os trabalhos sobre a posposição do sujeito contemplam<br />
e analisam os dados de língua oral, com exceção de Berlinck (1989 e<br />
1995), que traça o percurso diacrônico do uso das ordens SV/VS no<br />
português e aponta para a tendência de fixação da ordem SV como<br />
estrutura funcionalmente motivada nesta língua. Descrevemos agora,<br />
em linhas gerais, alguns desses estudos.<br />
Começamos por Bittencourt (1980), que apresenta uma análise<br />
baseada na teoria gerativista da ordem VS, considerando a importância<br />
da transitividade verbal. A autora acredita que a não-concordância<br />
nessas estruturas é motivada por verbos intransitivos e de ligação.<br />
Corroborando com os resultados de Bittencourt (1980)<br />
sobre os verbos intransitivos e de ligação nas construções VS, Lira<br />
(1996) acrescenta um dado. Ela revela que é mais provável que o<br />
sujeito posposto seja um sintagma nominal (SN) indefinido, novo<br />
e inanimado. Para a pesquisadora, outros contextos relacionados a<br />
características do sintagma nominal são favorecedores da ordem VS.<br />
Pontes (1986) faz um estudo da posposição do sujeito<br />
examinando textos escritos e orais, constatando que o uso desta<br />
construção discursiva se dá tipicamente com verbos apresentativos<br />
e existenciais e com sintagmas inanimados responsáveis pela função<br />
de veicular informação nova. A autora defende a ideia de que o SN<br />
posposto em construções monoargumentais é um objeto.<br />
Mais ou menos, na mesma linha de estudo, Santos (1990)<br />
apresenta uma perspectiva funcional do tratamento da ordem<br />
do sujeito e do verbo na sentença. Para isso, propõe um método<br />
laboviano e controla vários fatores de origem sintática e semânticodiscursiva,<br />
assim como fez Pedrosa (2004) em dados de língua falada<br />
em João Pessoa. Entre os fatores, há destaque para a ordem VS:<br />
os verbos intransitivos e de ligação (também apontados em outros<br />
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Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
estudos) sujeitos nominais, oracionais e compostos, SNs sujeito<br />
com traços [–definido], [–animado], [–agente] e que carreguem<br />
informação nova.<br />
Numa perspectiva diacrônica, Berlinck (1989), investigando<br />
corpora correspondentes a três séculos: XVIII, XIV e XX, mostra a<br />
diminuição da ordem VS nos estágios mais recentes do português<br />
brasileiro. Esta autora faz uma análise baseada no fator também da<br />
transitividade, buscando comprovar a força dos fatores formais para<br />
essa variável. Nos resultados, o descréscimo do uso da ordem VS<br />
e a sua restrição a verbos de apenas um argumento nas sentenças<br />
declarativas evidenciam que a ordem V + SN dos constituientes na<br />
frase está atualmente mais fixa.<br />
Em Costa (1995), a categoria sintática sujeito é examinada<br />
sob as condições comunicativas. Neste estudo, a autora se propõe a<br />
fornecer subsídios teóricos para que o professor de português discuta<br />
esse tópico numa dimensão mais ampla, considerando os fatores<br />
discursivo-pragmáticos.<br />
Apresentadas algumas pesquisas das mais diferentes orientações<br />
teóricas, pretendemos agora explicitar, de modo geral, alguns<br />
fundamentos que utilizaremos para analisarmos o estudo do fenômeno<br />
da não-concordância verbo-sujeito. Então, vamos agora aos princípios<br />
do Funcionalismo.<br />
Pressupostos Funcionalistas<br />
As análises funcionalistas baseiam-se em pressupostos opostos<br />
aos princípios formalistas. O modelo da corrente funcional da<br />
linguagem está ancorado na ideia de que a língua é construída<br />
para fins comunicativos, para a interação. Assim, o contexto, o<br />
indivíduo e a sua natureza social são fatores que determinam no uso<br />
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AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
e, sobretudo, na estrutura de uma língua. Seguindo essa dimensão<br />
do olhar sobre a linguagem, torna-se consequente dizer que a língua<br />
reflete as motivações pragmático-cognitivas do falante. Isto é, a<br />
língua se constrói sobre as pressões de uso e está, de fato, sujeita a<br />
uma organização maleável e plástica do sistema, diferentemente dos<br />
pressupostos formalistas, para os quais a língua é percebida apenas<br />
pela forma, em sui Genesis.<br />
Assim, se pensarmos que a língua é um sistema estruturado a<br />
partir das necessidades e dos propósitos comunicativos do falante,<br />
então, podemos entender também que é, no discurso que se constrói<br />
a gramática desta língua. Portanto, a gramática é moldada pelo<br />
discurso, porque é nele que o indivíduo marca suas necessidades<br />
linguísticas e percebe as formas funcionais e as codificam pragmática<br />
e semanticamente.<br />
Considerando o Funcionalismo como corrente de análise, a<br />
concepção de gramática é vista como uma estrutura não estável que se<br />
adapta a pressões internas e externas que, continuamente, interagem<br />
e se confrontam (FURTADO DA CUNHA, 1999). Em linhas gerais,<br />
“a gramática deve ser vista como uma estrutura flexível, adaptativa e<br />
suas regras entendidas como não-arbitrárias, motivadas ou icônicas”<br />
(CHRISTIANO & HORA, 2004, p. 184). Em razão desse aspecto,<br />
o Funcionalismo explica a organização da gramática e a codificação<br />
linguística das estratégias gramaticais com base em princípios de<br />
natureza cognitiva e comunicativa.<br />
A mudança linguística e a gramaticalização<br />
Para os princípios centrais do Funcionalismo, o processo de<br />
mudança na língua são explicados, segundo Silva (2006, p. 66)<br />
por dois tipos de pressões que atuam sobre a gramática, o que,<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 63
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
consequentemente, desencadeia a formação de um conjunto de<br />
regularidades que são: (1) as pressões cognitivas – em decorrência da<br />
interpretação realizada pelo usuário, a mente organiza as informações,<br />
predominando o aspecto regularizador das estruturas; e (2) as pressões<br />
de uso – responsáveis pela geração das irregularidades, consequência<br />
do aspecto criativo do discurso, o que possibilita a variação no sistema.<br />
Esse conjunto de irregularidades alimenta a dinamicidade da<br />
língua e fomenta as mudanças que afetam a gramática e as línguas<br />
naturais em geral. Segundo Martelotta, Votre & Cezário (1996)<br />
esse processo também tende a processar, de maneira gradiente, a<br />
abstraticidade da gramática em níveis:<br />
(i) cognitivo: processo pelo qual há mudança metafórica de<br />
um elemento do mundo do léxico que migra para um mundo<br />
mais abstrato, da gramática;<br />
(ii) pragmático: a mudança manifesta-se a partir do propósito<br />
comunicativo do falante, que, ao tentar facilitar a compreensão<br />
do ouvinte, utiliza-se de formas para expressar ideias novas,<br />
conceitos mais concretos e mais, efetivamente, conhecidos.<br />
(iii) semântico: é acionado quando falante explicita um<br />
sentido novo para o ouvinte, baseando-se em significados<br />
mais fixados.<br />
(iv) sintático: acontece quando o processo de mudança<br />
linguística é estimulado por certos contextos sintagmáticos<br />
que pressionam e explicam o rumo dessa mudança.<br />
Pode-se afirmar que a análise funcionalista examina a<br />
competência comunicativa, considerando as estruturas das expressões<br />
linguísticas como em um quadro de funções, no qual cada função é<br />
vista como um diferente modo de significação na oração; portanto,<br />
paralelamente à noção de que a linguagem é um instrumento de<br />
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AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
comunicação, encontra-se, no Funcionalismo, um tratamento<br />
funcional da própria organização interna da linguagem.<br />
É nesse contexto que se encaixam os estudos sobre gramaticalização.<br />
A gramaticalização é um tipo especial de mudança linguística situada no<br />
continuum que se estabelece entre unidades independentes e unidades<br />
dependentes tais como clíticos, partículas auxiliares, construções<br />
aglutinativas e flexões. Lehmann (1982) denomina gramaticalização<br />
como o processo que consiste na passagem de um item lexical para um<br />
item gramatical.<br />
Heine e Reh (1984) apud Castilho (1997), por sua vez, conceituam<br />
gramaticalização como “uma evolução na qual as unidades linguísticas<br />
perdem em complexidade semântica e em substância fonética”.<br />
Castilho (1997) a define como:<br />
o trajeto empreendido por um item lexical, ao longo do<br />
qual ele muda de categoria sintática (=recategorização),<br />
recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações<br />
morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma<br />
livre, estágio em que pode até mesmo desaparecer, como<br />
consequência de uma cristalização extrema.<br />
Enfim, a gramaticalização é fruto da utilização da língua e da<br />
necessidade comunicativa do falante no momento da interação verbal.<br />
Para efeito de aplicação desses estudos, tomaremos aqui o princípio<br />
de gramaticalização como<br />
o processo pelo qual itens lexicais e construções gramaticais<br />
passam, em determinados contextos linguísticos, a servir a<br />
funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam<br />
a desenvolver novas funções gramaticais (HOPPER &<br />
TRAUGOTT, 1993).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 65
Sinta e<br />
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f<br />
Dessa forma, a gramaticalização é um processo pelo qual busca<br />
explicar as mudanças que se dão no interior da própria gramática,<br />
compreendendo, sobretudo, os processos sintáticos e/ou discursivos<br />
de fixação da ordem vocabular (FURTADO DA CUNHA, 1999).<br />
O princípio da iconicidade e o aspecto discursivo de<br />
focalização<br />
Os estudos de Naro e Votre (1991) sobre as motivações<br />
discursivas para a regularidade da ordem VS no português do Brasil<br />
destacam os princípios da iconicidade na língua. Em termos sumários,<br />
esse princípio é compreendido como a correlação naturalmente<br />
motivada entre o código linguístico e seu significado, ou seja, entre<br />
forma e função.<br />
Esse princípio se manifesta em três subprincípios: (i) de<br />
quantidade de informação (quanto maior a quantidade de informação,<br />
maior a quantidade de forma); (ii) do grau de integração entre os<br />
elementos constituintes da expressão e do conteúdo (esse aspecto<br />
prevê que quanto mais próximo os conteúdos estiverem, mais<br />
integrados eles estarão do ponto de vista cognitivo em relação ao<br />
nível da codificação); (iii) da ordenação dos itens lexicais na oração.<br />
Este último subprincípio compreende que a informação mais<br />
importante ou mais acessível tende a configurar o lugar de destaque<br />
na organização sintática, de modo que, segundo Furtado da Cunha<br />
e Tavares (2007), a ordem dos elementos no enunciado tem a ver<br />
com a relação entre a importância ou acessibilidade da informação<br />
veiculada pelo elemento linguístico e sua colocação na oração. No<br />
âmbito discursivo, ao selecionar a posição pós-verbal, o locutor dá<br />
destaque ao sujeito por considerar a informação que o termo carrega<br />
relevante. Logo, o falante ordena os elementos sentenciais da língua<br />
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AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
e organiza discursivamente as informações a partir de seus objetivos<br />
sociocomunicativos, adequando as sentenças às necessidades do<br />
receptor.<br />
Não diferente do princípio de iconicidade, em estudo mais<br />
recente, Martelotta & Frederico (2009, p. 4) discutem a ideia de<br />
focalização. Para os autores,<br />
foco é definido como “uma proeminência especial, de<br />
caráter semântico-pragmático, atribuída a um determinado<br />
elemento (palavra, sintagma, cláusula), por entonação ou<br />
outros processos, para representar esse elemento como mais<br />
importante, informação nova ou como um dado de contraste.<br />
Essa estratégia, segundo os autores, tem muito a ver com o grau<br />
de previsibilidade dos elementos componentes da cláusula, em função<br />
dos modos como veiculam o mecanismo de focalização e essa é uma<br />
característica da teoria da gramaticalização.<br />
Os autores afirmam que a estratégia de foco é uma tendência<br />
atual da perspectiva funcionalista e tem sido bastante analisada em<br />
“termos de mecanismos essencialmente informacionais, que envolvem<br />
ordenação vocabular, topicalização, construção clivada e pseudoclivada,<br />
sempre levando em conta a acessibilidade referencial que o<br />
falante julga que o ouvinte tem acerca desses pedaços de informação<br />
(cf. GIVÓN, 1990; LAMBRECHT, 1994; ROOTH, 1996)”.<br />
Destacamos aqui o processo de focalização, porque acreditamos<br />
ser um conceito relevante para tentar entender as estratégias<br />
utilizadas pelo falante para não fazer a concordância com o verbo<br />
quando o sujeito está pós-posicionado. Adotamos aqui essa proposta,<br />
adaptando-a a nossos dados e selecionamos apenas as que nos<br />
pareceram mais relacionadas aos usos da ordem VS.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 67
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Alguns resultados<br />
Quando construímos qualquer texto, em geral, a tendência<br />
é que primeiro enunciemos o item do qual vamos falar para, em<br />
seguida, predicarmos algo sobre este item que evocamos. Assim, nas<br />
cláusulas, o elemento em destaque por seu posicionamento à esquerda<br />
do verbo, assume necessariamente o status de referencial ou de tópico<br />
do discurso. Vejamos o exemplo extraído do corpus de língua falada<br />
do projeto Variação Linguística da Paraíba (VALPB):<br />
(01): [...] Mamãe tava fazenøo uma casa atráys, pra minha outra irmã, aí minha<br />
irmã pegou meu sobrinho e botou, né? pendurou ele (falando rindo) no banco,<br />
pendurou ele no pau da casa e ficou balançanøo, + ela botou e a gente ficou<br />
balançanøo, né? +[...].<br />
Em (01), a predicação acontece em torno de “mamãe e minha<br />
irmã”, sendo estes termos sujeitos e tópicos do enunciado. Os termos<br />
constituintes são codificados inicialmente e ocupam uma posição de<br />
destaque na construção. Neste exemplo, a concordância prevalece<br />
na fala e é estimulada pela ordem direta sujeito/verbo/complemento.<br />
Além de estarem em posição convencionada e destacada, os termos<br />
“mamãe” e “irmã” mantêm relações sintáticas com os verbos “tava<br />
fazendo” e “pegou” e, portanto, são categorizados como sujeito.<br />
Há contextos, no entanto, em que o falante prefere outra<br />
ordenação dos constituintes no texto. O enunciado abaixo, também<br />
extraído do VALPB, exemplifica essa outra forma de organização<br />
linguística do português brasileiro:<br />
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EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
(02): O jovem o jovem o jovem dito, né? Assim dos dezenove, até os vinte<br />
três anos o:: pra ele só existe, [do] duas coisas, né? Pra pra uma boa parte<br />
existe drogas e sexo.<br />
Verifica-se, nessa construção, que o informante não realiza<br />
a correlação entre o verbo e o sujeito. O contexto em que gera a<br />
ausência da concordância é a posição deslocada do sujeito, duas coisas<br />
e drogas e sexo, para depois do verbo e a natureza transitiva desse<br />
verbo, neste caso um existencial. Quando o sujeito está posposto,<br />
a concordância entre esse tipo de verbo e o SN plural não é tão<br />
prevalecente, principalmente na oralidade. Mas esse fato também se<br />
faz presente em contextos de língua mais monitorados, como ocorre<br />
abaixo, em trecho retirado de jornal e já utilizado por Marcos Bagno<br />
(2007) em seu livro Nada na língua é por acaso:<br />
(03): “Falta ao governo FH decisões corajosas e firmes, principalmente contra<br />
os partidos que o apóiam”. (O Estado de São Paulo, 17/09/1995, A-2, c. 2).<br />
Na língua cotidiana, este tipo de concordância é bastante<br />
comum, sendo comprovada por dezenas de pesquisas realizadas<br />
em português. No exemplo (03), a falta de concordância entre<br />
decisões corajosas e firmes e seu verbo “falta” parece ser motivada<br />
pela ordenação não-tópica da estrutura VS. Neste caso, o verbo da<br />
cláusula é a base da predicação, de forma que tudo o que estiver<br />
à sua direita é interpretado como não-tópico. Neste caso, também<br />
está em jogo a transitividade do verbo faltar. No exemplo, o sujeito<br />
tende a ser não-tópico, podendo mesmo ser reanalisado como objeto.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 69
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Votre & Cezário (1996, p.116) afirmam que a ordenação entre o<br />
verbo e o sujeito representa “o resultado de um processo metonímico<br />
de mudança na ordenação vocabular em que o resultado é marcado<br />
em relação à ordem canônica sujeito-verbo”.<br />
Vejamos a ordenação de verbo-sujeito abaixo:<br />
(04): [...] lembramos que pode ser codificada as relações semânticas do<br />
argumento com o predicador... (dissertação de mestrado).<br />
Observa-se que o sujeito posposto “relações semânticas dos<br />
argumentos com o predicador” se distancia do verbo. Votre e Cezário<br />
(1996, p.116) dizem que, nestes casos, o termo o sujeito passa ocupar<br />
a posição não marcada de objeto e assumir parte do comportamento<br />
do objeto. Ainda segundo esses autores, o verbo também se despe de<br />
suas características de predicador central e, assim, pode se tornar um<br />
“mero portador das marcas de tempo e aspecto, sem conteúdo lexical<br />
definido no contexto da comunicação”, como ocorre nos exemplos<br />
(05) e (06), com verbos copulares:<br />
(05): Para tal arte foi necessário batedores. (Correios da Manhã, 3/05/1995, p.<br />
4, c.1. In Scherre, 2005, p. 132).<br />
(06): Está em jogo mais de 60 por cento das exportações portuguesas. (Diário<br />
de Notícias, 22/07/1996, p. 5, c. 1. In Scherre, 2005, p. 132).<br />
Em (07), o fenômeno da não concordância pode ser explicado<br />
pelo subprincípio da iconicidade, da integração das expressões, uma<br />
70 l Anais Eletrônicos - 2011
AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
vez que o processo é estimulado por certos contextos sintagmáticos<br />
que pressionam e explicam o fenômeno, V[C+]S.<br />
(07): as expressões selecionadas que ocupam a posição de sujeito não têm<br />
nenhuma significação para os enunciados em estudo e não revela nenhuma<br />
manifestação pragmática... (dissertação de mestrado).<br />
Nota-se que a pouca proximidade entre o sujeito e o verbo<br />
evidencia uma não-concordância. Observa-se, na organização espacial<br />
do enunciado, que o sujeito “as expressões selecionadas” e o verbo<br />
“revela” encontram-se distanciados. A interrupção da sequência<br />
discursiva dificulta e enfraquece a integração entre o sujeito e o<br />
predicado, tendendo a não fazer a flexão verbal que normalmente<br />
ocorre em estruturas sintáticas mais adjacentes.<br />
Outra situação idêntica acontece em, mas agora com um verbo<br />
de cópula:<br />
(08): De fato, é bastante presente nas histórias das línguas essas duas camadas<br />
de uma dinâmica [...]” (texto produzido por estudante de Letras da Universidade<br />
de Brasília. In Bagno (2007, p. 110).<br />
Em (09) e (10), o falante parece ordenar os elementos<br />
sentenciais e organiza discursivamente as informações segundo seus<br />
objetivos comunicativos, adequando as sentenças às necessidades do<br />
interlocutor.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 71
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
(09): Ainda não se sabe como será conduzida as negociações sobre o destino<br />
da política salarial na reunião que o presidente Itamar Franco convocou para<br />
amanhã à tarde no Palácio do Planalto (Correio Braziliense, 18/07/1993, p. 3,<br />
c. 2. In Bagno (2007, p. 109).<br />
(10): Há pouco tempo atrás dois bárbaros assassinatos, o da atriz Daniela Perez<br />
e o da menina que foi queimada pelos seqüestradores ressuscitou a polêmica<br />
da Pena de Morte (Corpus D&G, p.321).<br />
Algumas palavras finais<br />
Sendo a língua uma atividade essencialmente social e<br />
condicionada por pressões no uso cotidiano das mais diversas<br />
situações, são aceitáveis as transformações dos itens e das estruturas<br />
linguísticas. Nesta perspectiva, parece que fica fácil admitir e<br />
compreender as várias mutações que ocorreram e vêm ocorrendo<br />
ao longo da história das transformações linguísticas.<br />
Considerando que o processo de gramaticalização é um<br />
fenômeno em que as construções aparecem em certos contextos<br />
linguísticos, adquirem novas funções e continuam se gramaticalizando,<br />
podemos arriscar dizer que a não-concordância do SN plural<br />
posposicionado com alguns tipos de verbos (existencias, copulares,<br />
monoargumentais) tende a se regularizar na gramática do português<br />
brasileiro, se entendermos que, como afirmam Furtado da Cunha,<br />
Costa & Cezário (2003, p. 50):<br />
na trajetória dos processos de regularização do uso da língua,<br />
tudo começa sem regularidade, exatamente por estar no<br />
72 l Anais Eletrônicos - 2011
AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />
seu começo, mas se regulariza com o uso, com a repetição,<br />
que passa a exercer uma pressão tal que faz com que o que<br />
no começo era casuístico se fixe e se converta em norma,<br />
entrando na gramática.<br />
No entanto, é claro que nossas afirmações se baseiam em<br />
hipóteses ainda não totalmente confirmadas. Embora haja, sem<br />
dúvida, a necessidade de aprofundamentos teórico-metodológicos<br />
para relacionar os fatores de natureza gramatical com os de natureza<br />
discursiva para melhor compreender o fenômeno da não-concordância<br />
nas construções V + SN, acreditamos, mesmo que sumariamente, nos<br />
resultados aqui apresentados, em consonância com outras pesquisas<br />
já apresentadas sobre ordem.<br />
Referências<br />
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Anais Eletrônicos - 2011 l 73
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
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74 l Anais Eletrônicos - 2011
AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />
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Anais Eletrônicos - 2011 l 75
Resumo<br />
Este artigo trata de uma análise comparativa dos morfemas classificadores<br />
em Sabanê, Mamaindê e Lakondê, línguas indígenas aparentadas<br />
geneticamente que compõem parte da família linguística Nambikwara.<br />
Trata-se desse assunto sob uma perspectiva funcional da linguagem e suas<br />
implicações teóricas para o estudo de línguas ágrafas. A partir da descrição<br />
do morfema derivacional de classificação, que atua na diferenciação de<br />
seres/objetos semelhantes, destacando algo que lhes é inerente, faz-se<br />
um estudo de algumas de suas funções sintático-semânticas em nível da<br />
sentença. Os morfemas classificadores apresentam-se de modo menos<br />
produtivo em Sabanê e são mais numerosos e produtivos em Mamaindê e<br />
Lakondê, mas desempenham funções morfossintáticas semelhantes. Nas<br />
três línguas, os classificadores funcionam como modificadores de nome,<br />
substitutos anafóricos e nominalizadores verbais.<br />
Palavras-chave: Classificadores, Sabanê, Mamaindê, Lakondê.<br />
Abstract<br />
This article is about a comparative analysis of classifiers morphemes in<br />
Sabanê, Mamaindê and Lakondê, genetically closely related aboriginal<br />
languages that constitute part of Nambikwara family language .We<br />
deal with this subject from a functional perspective of language and its<br />
theoretical implications for the study of unwritten languages. From the<br />
description of the derivational morpheme classification, which acts on the<br />
differentiation of similar beings / objects, emphasizing something that is<br />
inherent to them, it is a study of some of its syntactic-semantic functions<br />
from the sentence level. The classifier morphemes are presented in a less<br />
productive in Sabanê and are more numerous and productive in Mamaindê<br />
and Lakondê, but play similar morphosyntactic functions. At these three<br />
languages, the classifiers act as modifying the noun, verbal nouns and<br />
anaphoric substitutes.<br />
Keywords: classifiers; morphosyntactic functions; indigenous languages
Um estudo dos classificadores<br />
nas línguas indígenas Sabanê,<br />
Mamaindê e Lakondê<br />
Edney Alexandre de Oliveira BELO<br />
(<strong>UFPE</strong>)<br />
Lista de Abreviações:<br />
NCL – classificador<br />
REF – referencial<br />
HEMI – hemisférico<br />
FNS – sufixo nominal final<br />
TRID. – tridimensional<br />
RED. – redondo<br />
OBL. – oblongo<br />
FLX. – flexível<br />
AN. – animado<br />
DECL. – declarativo<br />
GNT – genitivo<br />
DES – desiderativo<br />
IMP – imperfectivo<br />
Imp – imperativo<br />
Asser. – assertivo<br />
PRS ou Pres – presente<br />
– morfema zero<br />
Poss. – posse<br />
1 – primeira pessoa<br />
2 – segunda pessoa<br />
3 – terceira pessoa<br />
PAC ou PASS – paciente<br />
S – sujeito<br />
Irr. – irrealis<br />
Suf – sufixo<br />
p ou PS – pessoa<br />
Link – morfema de ligação<br />
n – sufixo verbal *<br />
* Alguns itens possuem abreviação diferente por escolhas dos pesquisadores.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 77
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Apresentação<br />
As categorias gramaticais dos classificadores, objeto de estudo<br />
deste artigo, são apresentadas a partir de um estudo dos morfemas<br />
derivacionais constantes nos trabalhos de composição de gramáticas<br />
de línguas indígenas Nambikwara feitos por Gabriel Antunes<br />
de Araújo, em sua tese de doutorado A Grammar of Sabanê: a<br />
Nambikwaran language, de 2004, David M. Eberhard em sua tese<br />
Mamaindê Grammar: A Northern Nambikwaran Language and its<br />
cultural context, de 2007 e Stella Telles, com a tese The Phonology and<br />
Grammar of Latundê/Lakondê, 2002.<br />
Este estudo não pretende, por sua vez, discutir questões teóricas<br />
acerca dos morfemas derivacionais em questão, mas promover uma<br />
primeira investigação no que diz respeito à ocorrência desses morfemas<br />
em fenômenos observados, e, por meio da comparação entre línguas,<br />
constatar semelhanças em nível da morfossintaxe e da semântica.<br />
Os classificadores são uma característica da família Nambikwara,<br />
sendo bastante produtivos e relevantes para a morfologia dessas<br />
línguas. São descritos como morfemas que se ligam a raízes nominais<br />
atribuindo-lhes características próprias de sua forma, substância ou<br />
criando novos itens lexicais. Segundo Gabriel Antunes, num artigo<br />
intitulado Classificadores em Sabanê, a língua Sabanê conta com um<br />
total de sete classificadores, número menor que o da maioria das<br />
línguas Nambikwara estudadas, sendo também menos produtiva:<br />
Apesar do sistema de classificação da língua Sabanê não possuir<br />
a mesma produtividade dos sistemas da língua da mesma família,<br />
os sabanê reconhecem-no como uma parte de sua gramática,<br />
pois são capazes de identificar os morfemas e até mesmo<br />
explicitar sua relevância semântica (ANTUNES, 2004).<br />
78 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
O Mamaindê conta com vinte e quatro morfemas classificadores,<br />
largamente encontrados e produtivos na língua. Em Mamaindê,<br />
os nomes são tipicamente classificados de acordo com atributos<br />
físicos. Isto inclui características de forma de seres/objetos sólidos<br />
(arredondados, lisos, finos, etc.) e estado físico de entidades não-sólidas<br />
(pó, líquido). Outros se definem por sua função (casa, continente), e<br />
outros por critérios mais abstratos (tempo, lugar, gênero, etc). Alguns<br />
nomes carregam classificadores obrigatórios e vários outros, não.<br />
Apenas quando mudam significado de base eles são obrigatórios. Em<br />
outras instâncias, os classificadores são redundantes e opcionais.<br />
Nessa língua, segundo Eberhard (2007), os classificadores<br />
funcionam mais como adjetivos, sendo formas compostas presas a<br />
raízes para explicá-las de maneira mais precisa quando a raiz, por si<br />
só, não especifica o item em questão 1 . Os classificadores, assim, são<br />
necessários em diversas construções.<br />
Em Lakondê, distinguem-se oito tipos de morfemas classificadores<br />
que acontecem por afixação, designando propriedades físicas de<br />
aparência do referente, ao qual se ligam, como consistência ou forma.<br />
Esses morfemas se assemelham aos sufixos derivacionais e não se tratam<br />
de formas livres. Segundo Stella Telles (TELLES, 2002),<br />
Embora os sufixos em questão não resultem em mudança de<br />
categoria lexical, nos moldes tradicionalmente observados nos<br />
processos derivacionais de línguas europeias, eles têm outras<br />
características tipicamente derivacionais, tais como: são formas<br />
presas, são opacos semanticamente – sua origem lexical não<br />
pode ser recuperada –, são mais lexicais do que gramaticais, não<br />
são obrigatórios, seu escopo é unicamente o núcleo nominal,<br />
não operando em nível da morfossintaxe.<br />
1.Tradução própria<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 79
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Também a esse respeito nos esclarece o linguista (EBERHARD,<br />
p. 336, 2007) que:<br />
A forma independente desse pequeno grupo de formas<br />
poderia sugerir que eles pudessem alternativamente ser<br />
vistos como raízes nominais que podem funcionar como<br />
classificadores. Ou, ao invés, ser afixados a outros nomes<br />
num estilo de composição. O que não é verdade, pois a<br />
maioria deles nunca ocorre sem um nome, ou algum nominal<br />
referente 2 .<br />
Os classificadores na língua Sabanê<br />
Em Sabanê, há sete tipos diferentes de classificadores, que<br />
denotam propriedade física de acordo com a forma ou consistência<br />
do conceito ao qual um dado nome se refere. De qualquer forma<br />
eles não são atributivos e não servem para discriminar entre coisas e<br />
objetos e são opcionais, apesar de muito frequentes.<br />
O mais frequente classificador é –akata que se refere a objetos<br />
longos e feitos em madeira, tridimensionais. O classificador –isi se<br />
refere a objetos que têm a forma redonda, oblongos ou ovais. O<br />
classificador –iawa designa objetos em forma de meia lua, enquanto<br />
–amoka diz elementos de forma larval ou em forma de serpente. O<br />
classificador –api se refere a objetos em forma de fio, corda, fibra.<br />
Mas, diferente dos outros ele é compulsório. –inun que se refere a<br />
substâncias em forma de pó ou trituradas, amassadas. O classificador<br />
–anon se refere a formas hemisféricas. Estes morfemas ocupam uma<br />
posição relativamente livre na oração. Logo após a raiz nominal, ou<br />
imediatamente anterior ao sufixo referencial (REF). Exemplo:<br />
2.Tradução livre<br />
80 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
(1)<br />
– –<br />
perna –NCL:Longo –REF<br />
‘perna’<br />
Os classificadores na língua Mamaindê<br />
Os classificadores em Mamaindê assemelham-se aos de<br />
Sabanê, e são obrigatórios quando modificam o significado de base.<br />
São sufixados a uma raiz nominal e seguidos de um sufixo nominal<br />
final 3 com valor referencial. Para Eberhard (2007), esses morfemas<br />
funcionam muito mais como adjetivos.<br />
Dos vinte e quatro classificadores de Mamaindê, identificamse<br />
alguns semelhantes aos morfemas classificadores em Sabanê, que<br />
caracterizam itens quanto à forma ou à substância. São eles: –kalo,<br />
que identifica objetos lisos e espessos, –tHa(n? que identifica objetos<br />
com formato de folha, finos/unidimensionais, –kani(n para objetos<br />
redondos e esféricos, –kHat? relacionados aos finos e compridos, –<br />
tHu( e –nu( para substâncias como pó, pasta ou granulados, –teh e<br />
–leh para os objetos com formato de fio, dobráveis. Segue exemplo:<br />
(2)<br />
ih –kalo –tu<br />
Correr –NCL.LISO –FNS<br />
‘Coisa lisa que corre/Automóvel’<br />
3. Em Sabanê, os morfemas referencias (REF), que ocorrem em posição final, são -mi ou -mali, e que instam de<br />
forma obrigatória, mesmo que o substantivo apareça isoladamente. Ver Antunes (2004, p. 92); em Mamaindê<br />
são as formas - e que ocorrem em todas as categorias nominais. Ver Eberhard (2007, p. 347), aqui são<br />
chamados de sufixo nominal final (FNS). Em Lakondê, esses sufixos são grafados como - identificados como<br />
referenciais (REF).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 81
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Os classificadores em Lakondê<br />
Em Lakondê, os morfemas classificadores são tratados como<br />
sufixos pelo fato de não constituírem raiz lexical independente,<br />
carecendo de raiz nominal para serem aposicionados. São oito os<br />
grupos de classificadores nessa língua, que podem ser de tamanho,<br />
opondo seres de espécie aparentada ou tipo semelhante como –tah e<br />
–katah, classificadores de tamanho grande, e –kiniwi para tamanho<br />
pequeno. Os classificadores para forma são –kah para objetos longos<br />
e tridimensionais, –kini(n que marca objetos redondos/oblongos/<br />
tridimensionais, –kaloh para superfície plana/unidimensional, –kih<br />
para seres ou objetos pontudos, –teh para os longos flexíveis, –sen<br />
e –ni para os hemisféricos. Os classificadores para consistência de<br />
coisas e objetos –saw e –jaw para os líquidos e –su para pó. Exemplo:<br />
(3)<br />
a9wn –kiniwi –te<br />
louro –NCL.PEQUENO –REF<br />
‘louro pequeno’<br />
A criação de novos itens lexicais<br />
Os classificadores participam na criação de novos itens lexicais.<br />
Ao fazer isto interferem na significação do núcleo que os hospeda.<br />
Abaixo, exemplos:<br />
Em Sabanê:<br />
(4)<br />
katatali? –motoka –t– –iawa –mi<br />
homem branco –caneca –Link– –NCL:CAVO –REF<br />
‘marmiteira’<br />
82 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
Em Mamaindê:<br />
(5)<br />
lah –kani(n –tu<br />
novo –NCL.REDONDO –FNS<br />
‘nova coisa redonda’<br />
‘criança’<br />
Em Lakondê:<br />
(6)<br />
toh –su –te<br />
ser preto –NCL.PÓ –REF<br />
‘café (pó)’<br />
Comparando-se os tipos de morfemas derivacionais<br />
Na comparação de alguns dos classificadores de Sabanê,<br />
Mamaindê e Lakondê, no que se refere à morfologia do nome, percebese<br />
grande semelhança no que tange à ordem dos constituintes. O<br />
classificador acontece sufixado a um núcleo nominal, e imediatamente<br />
anterior a um morfema sufixal final com valor referencial. Essa é<br />
considerada sua posição canônica.<br />
Em Sabanê, o classificador que denota forma física de objeto<br />
longo, em madeira e tridimensional é –akata. Em Mamaindê,<br />
o atributo fino e comprido é dado por –kHat?. Em Lakondê 4 , o<br />
classificador –kah identifica os objetos longos/finos/tridimensionais.<br />
4. Telles (2002, p. 173) considera os sufixos presos de grau como morfemas derivacionais, são eles –tah e –ktah,<br />
para tamanho grande e –kiniwi para tamanho pequeno. Os morfemas que imprimem tamanho fazem parte da<br />
classe dos sufixos derivacionais de aumentativo e diminutivo em Antunes (2004, p. 89). Em Mamaindê, Eberhard<br />
(2007, p. 327) trata-se desses morfemas na condição de adjetivo.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 83
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Alguns exemplos:<br />
Em Sabanê:<br />
(7)<br />
waisili –t– –akata –mi<br />
árvore do açaí –Link– –NCL. LONGO –REF<br />
‘pé de açaí’<br />
Em Mamaindê:<br />
(8)<br />
hiuti –kHat? –tu<br />
tronco de árvore –NCL.FINO –FNS<br />
‘tronco de árvore fino/pedaço de madeira’<br />
Em Lakondê:<br />
(9)<br />
halohalo? –kah –te<br />
figueira –NCL.COMP.TRID. –REF<br />
‘figueira’<br />
Para informar características de objetos ou coisas com formato<br />
liso e espesso, há o classificador –kalo em Mamaindê, e –tHa(n?<br />
para finos e unidimensionais 5 que tem por correspondente –kaloh em<br />
Lakondê para objetos/coisas lisas e unidimensionais. Não se apresenta<br />
nenhum classificador com esse fim em Sabanê.<br />
5. Tradução de Leaflike (EBERHARD, 2007, p. 331).<br />
84 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
Em Mamaindê:<br />
(10)<br />
ka?ja(9in? –tHa(? –tu<br />
Escrever –NCL.FOLHA –FNS<br />
‘escrever folha/papel’<br />
Em Lakondê:<br />
(11)<br />
ma(n –kaloh –te<br />
roupa –NCL.LISO/UNI. –REF<br />
‘roupa’<br />
O classificador de objetos com forma redonda, oblongos ou ovais<br />
é –isi em Sabanê, e tem um correlato em Mamaindê no classificador<br />
–kani(n, e em Lakondê –kini(n.<br />
Em Sabanê:<br />
(12)<br />
–– – –<br />
estrela –LINK– –NCL: RED. –REF<br />
‘estrela’<br />
Em Mamaindê:<br />
(13)<br />
kanis –kani(n –tu<br />
brilho –NCL.RED. –FNS<br />
‘coisa redonda brilhando/lâmpada’<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 85
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Em Lakondê:<br />
(14)<br />
e9jn –kini(n –te<br />
lua –NCL.RED/OBL./TRID. –REF<br />
‘lua’<br />
O Sabanê apresenta um classificador para objetos em forma de<br />
meia lua, cavos, ocos, vasados, que é –iawa. Não se identificou em<br />
Mamaindê ou Lakondê morfema classificador com este fim. Exemplo:<br />
(15)<br />
kupuli –iawa –mi<br />
brincos NCL: CAVO –REF<br />
‘brincos’<br />
Para substâncias em forma de pó, granulados ou triturados há em<br />
Sabanê o classificador –inun. Em Mamaindê, há dois classificadores<br />
que designam este tipo de objeto, são eles –tHu( e –nu( e em Lakondê<br />
–su. Veja alguns usos:<br />
Em Sabanê:<br />
(16)<br />
amoya –inun –mi<br />
batata –NCL: PÓ –REF<br />
‘batata triturada’<br />
Em Mamaindê:<br />
(17)<br />
ak –a( –o? –tHu( –tu<br />
pequi –GNT –PÓ –NCL.PÓ –FNS<br />
‘massa de pequi e mandioca’<br />
86 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
Em Lakondê:<br />
(18)<br />
toh –su –te<br />
ser preto –NCL.PÓ –REF<br />
‘café (pó)’<br />
Objetos em forma de fio, longos e flexíveis possuem morfemas<br />
classificadores em Sabanê –api, e em Mamaindê com –teh e –leh.<br />
Essa ideia é expressa pelo classificador –teh, em Lakondê.<br />
Em Sabanê:<br />
(19)<br />
linhada –api –mi<br />
‘linhada 6 ’ –NCL.LONGO –REF<br />
‘linhada’<br />
Em Mamaindê:<br />
(20)<br />
lan –teh –tu<br />
cheio de líquido –NCL.FIO<br />
–FNS<br />
‘fio/estrada cheia de líquido’<br />
‘veias’<br />
Em Lakondê:<br />
(21)<br />
ta –teh –te<br />
embira –NCL.LONG.FLX 7 –REF<br />
‘embira’<br />
6. Empréstimo do Português.<br />
7. As diferenças de abreviação dadas a cada um dos exemplos é escolha dos autores.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 87
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Para a classificação de objetos/coisas hemisféricos, Sabanê 8<br />
dispõe do morfema –anon que tem um correlativo em Lakondê, –ni.<br />
Não se encontrou correlato em Mamaindê.<br />
Em Sabanê:<br />
(22)<br />
itatu –anon –mi<br />
arco-iris –NCL.HEMI. –REF<br />
‘arco-iris’<br />
Em Lakondê:<br />
(23)<br />
sih –ni –te<br />
casa –NCL.HEMI. –REF<br />
‘casa’<br />
Em Mamaindê, há ainda outros classificadores que interferem na<br />
significação da raiz nominal por sua função (casa, continente), e outros<br />
por critérios mais abstratos (tempo, lugar, gênero, animalidade, etc) 9 .<br />
8. Sabanê tem ainda um classificador para objetos longos, flexíveis e animados –amoka. Não se identificou<br />
nenhum classificador com esse fim em Mamaindê, apesar de esta língua contar com um classificador para<br />
coisas animadas, como animais, plantas e vida –ki. Em Lakondê, também não se encontrou nenhum morfema<br />
específico. Mas os classificadores em Lakondê podem se referir a seres animados ou inanimados, com exceção<br />
dos de substância –sa9w e ja9w– e o que marca coisas hemisféricas –su. Exemplo de Sabanê:<br />
yuya.wasili –tamoka –mi<br />
minhoca pequena –CL:LONGO FLX. AN. –REF<br />
‘minhoca pequena’<br />
9. Para ver a lista completa dos classificadores em Mamaindê (EBERHAR, 2007, p. 331).<br />
88 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
Classificadores em construções genitivas<br />
Em construções genitivas, os classificadores acontecem afixados<br />
aos nomes e com a presença opcional do marcador de possuído.<br />
Caso esse sufixo derivacional, seja de ‘forma’ ou ‘consistência’, no<br />
caso da língua Lakondê, ele também pode cumprir função anafórica.<br />
Exemplos:<br />
Em Lakondê:<br />
(31)<br />
ta –ni –tu<br />
1poss. –NCL.HEMI. –REF<br />
‘minha casa’<br />
Em Mamaindê:<br />
(32)<br />
ta –kateik –kani(n –tu<br />
1poss. –mangaba –NCL. RED./OBL./TRID –REF<br />
‘minha bola’ (bola feita de leite de mangaba) 10<br />
Em Mamaindê, numa construção genitiva em que há dois<br />
nomes na composição da raiz, numa relação de possuidor/possuído,<br />
o segundo nome da composição encabeça a sentença, podendo ser<br />
um nome, um classificador nominal ou um verbo nominalizado. O<br />
morfema que marca o genitivo é –a((, que ocupa a posição logo após<br />
o núcleo nominal e imediatamente ao morfema derivacional, no caso.<br />
10. Em Sabanê não se identificou a ocorrência de classificadores em construções de posse.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 89
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Em Mamaindê:<br />
(33)<br />
toh –a(– –ja9 –tu<br />
abelha –GEN.– –NCL.LÌQUIDO –REF<br />
‘mel de abelha’ 11<br />
Os classificadores como substitutos anafóricos<br />
Os classificadores podem ser usados como anafóricos. Nesse caso,<br />
faz menção a um nome referido anteriormente no discurso, marcado<br />
contextualmente, que não precisa ser novamente mencionado. Um<br />
classificador, então, cumpre esse papel. Vemos dois exemplos de<br />
Sabanê, com o classificador -anon que substitui a-motuka ‘sua<br />
cabaça’, e com o classificador –akata substituindo ‘ararutas’:<br />
(34)<br />
anon –mi –san –n –O<br />
CL.HEMI (anaf. de cabaça) –REF –pegar –Suf. verb. Imp.<br />
–t –osa –n –O 12<br />
1pac. dar Suf. verb. Imp.<br />
‘Pegue-a (a cabaça) e dá-ma!’<br />
(O classificador se refere ao elemento referido no contexto, substituindo<br />
por completo)<br />
11. Em Lakondê, apesar do morfema genitivo carregar a marca -a((( em composições NOME + NOME, não se verifica<br />
a ocorrência de sufixo derivacional ocupando uma dessas posições, ver Telles (2002, p. 164). Em Sabanê, esse<br />
tipo de construção é feito com o nome ‘possuidor’ sendo anteposto à coisa possuída, como acontece na língua<br />
inglesa, por exemplo, ver Antunes (2004, p. 110).<br />
12. n = sufixo verbal; Imp. = Imperativo; 1pass. = primeira pessoa paciente;<br />
90 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
(35)<br />
akata -bala -n -al -i 13<br />
CL. LONGO (anaf. de araruta) -dois -Suf. verb -Pres. Irr. -Asser.<br />
‘São duas (ararutas)’<br />
(Contexto: o informante é perguntado sobre a quantidade de ararutas<br />
que estão guardadas no balaio. Como a palavra araruta já havia sido<br />
mencionada antes, ele usa um classificador, como anafórico)<br />
Em Mamaindê:<br />
(36)<br />
nakatos –tu na -halo -kHu un –je? –latHa –O –wa<br />
Negarotê –FNS PS3 –lugar –NCL–LUGAR longe –Emp. –S3 –PRS –DECL.<br />
‘A terra dos Negarotê é muito longe’<br />
nain?toh, nakHu naih ?ai –ten –a? –O –wa<br />
CN.mesmo assim 3p.–NCL.LUGAR continuar ir –DES –1p. –PRS –DECL.<br />
‘Mesmo assim eu continuo querendo ir lá’<br />
(Contexto: como o informante já havia mencionado a palavra -na<br />
apenas o classificador permanece na estrutura da cláusula, como<br />
anafórico)<br />
Em Lakondê:<br />
(37)<br />
kini(n la? –kini(n –ta(n –ta<br />
NCL.RED./OBL./TRID ser grande –NCL.RED./OBL./TRID –IMP. –ANT.<br />
‘A pedra era grande’<br />
13. Pres. Irr = presente irrealis; Asser. = assertivo<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 91
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
(Contexto: a palavra pedra já havia sido pronunciada anteriormente,<br />
por isto, o informante usa o morfema classificador como anáfora)<br />
Observa-se, nos exemplos citados acima, que os classificadores<br />
ocupam o lugar típico da raiz nominal, encabeçando a sentença, e<br />
que este processo é similar nas três línguas em questão.<br />
Os classificadores como nominalizadores<br />
Os morfemas classificadores são ainda um meio bastante<br />
produtivo para a nominalização de verbos nessas três línguas. Em<br />
Mamaindê 14 , por exemplo, este processo pode acontecer diante de<br />
qualquer verbo. O que acontece é que a palavra resultante carrega<br />
parte da semântica verbal. O que acontece em Sabanê é: (NOME<br />
+ VERBO ADJ. + CLASS. + REF), já em Mamaindê e Lakondê:<br />
VERBO ADJ. + CLASS. + REF.).<br />
Em Sabanê:<br />
(38)<br />
tapulisi –minu –tisi –mi<br />
pedra –ser polido –NCL.RED. –REF<br />
‘pedra polida’<br />
Em Mamaindê:<br />
(40)<br />
ma(n –kalo –tu<br />
ser quente –NCL.LISO –FNS<br />
‘tecido’<br />
14. O classificador -tHa( é o morfema nominalizador mais comum identificado em Mamaindê.<br />
92 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
Em Lakondê:<br />
(42)<br />
la9? –ni –te<br />
ser novo –NCL.HEMI. –REF<br />
‘casa nova’<br />
Discussão dos aspectos gerais<br />
Uma comparação dos morfemas derivacionais em Sabanê,<br />
Mamaindê e Lakondê, em primeira instância, no nível da morfologia<br />
do nome, aponta para uma maior semelhança dessa classe entre<br />
as línguas Mamaindê e Lakondê, como se verifica no nível do<br />
léxico, com os morfemas derivacionais que exprimem forma de<br />
coisas/objetos longos e finos –kHa? e –kah respectivamente,<br />
nos que exprimem formas lisas e espessas –kalo e formas finas e<br />
unidimensionais –kaloh, entre os de formas redondas, oblongas e<br />
tridimensionais, –kani(n em Mamaindê, e –kini(n em Lakondê, ou<br />
no homônimo –teh que classifica objetos/coisas com formas finas,<br />
longas e flexíveis para ambas as línguas.<br />
Essas línguas mostram-se bastante ativas para a criação de<br />
novos itens lexicais. Porém, em Mamaindê, o uso de classificadores<br />
na composição de novos nomes mostrou mais exemplos que Lakondê<br />
e Sabanê.<br />
Na comparação da ocorrência de classificadores em construtos<br />
de genitivo, percebe-se novamente uma maior semelhança entre<br />
Mamaindê e Lakondê, quando os classificadores cumprem função de<br />
posse de um termo anafórico. Mas as três línguas operam de forma<br />
diversa no tocante à construção NOME + NOME do genitivo.<br />
Somente em Mamaindê percebeu-se o uso de um classificador em<br />
lugar dum nome NOME + CLASS, em composições de posse.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 93
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Os classificadores são intensamente aproveitados como<br />
substitutos anafóricos em situações comunicativas, quando se evita<br />
a repetição de referentes outrora mencionados nos discursos, nas três<br />
línguas estudadas, encabeçando as sentenças anafóricas, à exceção<br />
de Mamaindê em que uma partícula com função concessiva antecede<br />
o classificador.<br />
Atuando como nominalizadores, vê-se que em Sabanê há<br />
diferenças. A ordem é (NOME + VERBO ADJ. + CLASS. + REF),<br />
em que o morfema classificador não substitui o núcleo nominal, sendo<br />
imediatamente posterior ao verbo adjetival, e seguido do morfema<br />
referencial. Já em Mamaindê e Lakondê a ordem é (VERBO ADJ.<br />
+ CLASS. + REF.). Nesse caso, o morfema classificador substitui o<br />
núcleo nominal.<br />
Considerações finais<br />
Com a presente comparação, observa-se que o Sabanê é uma<br />
língua mais distante geneticamente, enquanto que o Lakondê e o<br />
Mamaindê apresentam maior proximidade estrutural. Ainda assim,<br />
as semelhanças encontradas são suficientes para que se classifique a<br />
língua Sabanê como pertencendo à família Nambikwara. É importante<br />
ressaltar que os resultados obtidos ainda não são satisfatórios e<br />
apontam para a necessidade de mais estudos que aprofundem aspectos<br />
comparativos entre essas e mais línguas da família.<br />
94 l Anais Eletrônicos - 2011
UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />
MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />
Referências<br />
ANTUNES, Gabriel. The Grammar of Sabanê, a Nambikwaran Language, VU University,<br />
Amsterdam, 2004.<br />
CÂMARA, Mattoso. Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras. Rio de Janeiro: Livraria<br />
Acadêmica, 2ªed. Revista, 1965.<br />
CUNHA, Maria A. F.; SOUZA, Maria M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro:<br />
Lucerna, 2007.<br />
EBERHARD, David. M. The Phonology and Grammar of Mamaindé, VU University,<br />
Amsterdam, 2007.<br />
GIVÓN, Talmy. English Grammar: A Function-Based Introdution. Amsterdam/Philadelphia:<br />
John Benjamins’s Publishing. vol. 1, 1993.<br />
GIVÓN, Talmy. Synthax: an introduction. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamin’s<br />
Publishing. Vol. 1, 2001. P. 233 - 256<br />
PAYNE, Thomas E. Describing Morphosyntax: a guide for field linguists. New York, USA:<br />
Cambridge Univesity Press, 1997.<br />
SEKY, Lucy. Línguas Indígenas do Brasil no Limiar do Século XXI. São Paulo: Editora Unimep.<br />
Vol 1, Nº27, 2000. p. 336 – 356.<br />
TELLES, Stella. The Phonology and Grammar of Latundê/Lakondê, VU University,<br />
Amsterdam, 2002.<br />
Outras fontes:<br />
DALL’IGNA. Aryon. Nossas Línguas Além do Português. 24 de Janeiro de 2005. .<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 95
Resumo<br />
O presente trabalho consiste numa análise da transitividade na construção do<br />
texto descritivo em cartas do leitor. Para tanto, foram analisadas 9 cartas, sendo<br />
3 do século XIX, 3 do século XX e 3 do século XXI. Todas as cartas analisadas<br />
são de reclamação. Haja vista a pequena dimensão do corpus, a uniformidade<br />
temática e a distribuição por séculos possibilitaram, do ponto de vista estrutural<br />
e, sobretudo, semântico-pragmático, a realização de algumas generalizações<br />
acerca da composição do gênero. O fenômeno da transitividade foi analisado sob<br />
a perspectiva do paradigma da Linguística Sistêmico-Funcional. Assim sendo, a<br />
língua é, com base na sua léxico-gramática, concebida enquanto potencial de<br />
significação. Entre os sistemas componentes da léxico-gramática, encontra-se o<br />
sistema de transitividade, e é, a ele, que o usuário da língua recorre para codificação<br />
de significados com vistas ao atendimento da metafunção ideacional, função esta<br />
da linguagem presente nas representações do texto descritivo. Foi observado que,<br />
tanto no tocante aos processos quanto aos participantes, as escolhas realizadas<br />
no sistema de transitividade são direcionadas por três domínios semânticos gerais<br />
constitutivos do contexto discursivo das cartas. Daí decorre que a estruturação<br />
das orações se dá num movimento vertical, obedecendo a restrições semânticopragmáticas<br />
e a necessidades argumentativas na construção de imagens no texto<br />
descritivo.<br />
Palavras-chave: carta do leitor, transitividade, reclamação, descrição.<br />
Abstract<br />
The current study is an analysis of transitivity in the construction of descriptive text<br />
at the reader’s letters. To this end, we analyzed 9 letters: three of them from the<br />
nineteenth century, three from the twentieth century and three from the current<br />
century, i.e, the twenty-first. All the analyzed letters are about complaints. Because<br />
the corpus is not so large, the thematic uniformity and the distribution into centuries<br />
made some generalization about the genre possible, mainly from the structural<br />
and, above all, semantic-pragmatic points. The transitivity phenomenon was<br />
analyzed from the perspective of Systemic Functional Linguistics model. Thus, the<br />
language is based on its lexical grammar, taken as potential significance. Among<br />
the components of the lexicon-grammar system, is the transitivity system, and it is<br />
to it the speaker calls upon for encoding meanings in order to meet the ideational<br />
metafunction, which is present in representations descriptive texts. It was observed<br />
that, regarding the process - in relation to the participants - the choices made in<br />
the transitivity system are directed by three general semantic domains, which<br />
constitute the discursive context of the letters. From these letters, the structure of<br />
sentences is given in a vertical motion, obeying semantic-pragmatic restrictions<br />
and argumentative needs in the construction of images in the descriptive text.<br />
Keywords: reader’s letters; transitivity; complaint; description.
Entre descrições e reclamações<br />
no gênero carta do leitor: o<br />
sistema de transitividade e a<br />
construção de imagens<br />
Introdução<br />
Emanuel Cordeiro da SILVA<br />
(<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
Constitui objeto de interesse do presente trabalho de pesquisa<br />
realizar uma análise funcional do comportamento do sistema de<br />
transitividade da língua na construção do texto descritivo em cartas<br />
do leitor. Para tanto, foi construído um pequeno corpus composto<br />
por 9 cartas distribuídas por três séculos. Das 9 cartas, 3 são do<br />
século XIX, 3 do século XX e 3 do século XXI. Prezou-se por uma<br />
uniformidade temática, pois as cartas podem atender “a diversos<br />
propósitos comunicativos: opinar, agradecer, reclamar, solicitar,<br />
elogiar, criticar, entre outros” (BEZERRA, 2002, p.210). Na medida<br />
em que necessidades comunicativas diferenciadas implicam escolhas<br />
linguísticas também diferenciadas, o trabalho com cartas de temáticas<br />
distintas dificultaria a observação de padrões de regularidade. Todas as<br />
9 cartas analisadas são de reclamação. Haja vista a pequena dimensão<br />
do corpus, a uniformidade temática e a distribuição por séculos<br />
possibilitaram, do ponto de vista estrutural e, sobretudo, semânticopragmático,<br />
a realização de algumas generalizações acerca da<br />
composição do gênero com base no sistema de transitividade da língua.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 97
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
As cartas do leitor de reclamação são basicamente constituídas pelos<br />
dois seguintes tipos textuais: a descrição e a injunção. Com o primeiro<br />
tipo, o leitor/escrevente descreve o cenário da situação-problema,<br />
construindo imagens da realidade experienciada, enquanto que,<br />
com o segundo tipo textual, ele cobra, de forma direta, providências<br />
para a solução do problema. Todavia, no gênero em questão, há<br />
um predomínio do texto descritivo. Muitas cartas, inclusive, trazem<br />
apenas uma descrição. Ademais, a parte injuntiva da carta, em muitos<br />
casos, não chega a uma linha de texto. Por isso, as análises foram<br />
centradas nas descrições. Sob a perspectiva da Linguística Sistêmico-<br />
Funcional, a língua, com base na sua léxico-gramática, foi concebida<br />
enquanto potencial de significação, e, no que diz respeito ao fenômeno<br />
da transitividade, ele foi tomado como um dos sistemas componentes<br />
da léxico-gramática, sendo responsável pela codificação de conteúdos<br />
ideacionais através das escolhas de formas linguísticas realizadas<br />
pelos usuários da língua. Partimos, então, do pressuposto de que se<br />
as cartas são de reclamação, a descrição contida nelas deve, de certa<br />
forma, construir representações com teor argumentativo, às quais o<br />
sistema de transitividade está relacionado. Buscamos, assim, observar<br />
padrões de regularidade existentes entre transitividade, descrição e<br />
reclamação/argumentação na composição do gênero carta do leitor.<br />
A transitividade sob a perspectiva da linguística-sistêmico<br />
funcional<br />
No paradigma hallidayano, a língua é concebida enquanto<br />
potencial de significação. Aos usuários da língua, é possível a<br />
codificação de significados através da operação de escolhas de<br />
formas linguísticas. Como bem dizem Ikeda e Vian Júnior (2006, p.<br />
40), “Quando se faz uma escolha real no sistema linguístico, o que<br />
98 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
se escreve ou o que se diz adquire significado contra um fundo em<br />
que se encontram as escolhas que poderiam ter sido feitas”. É no<br />
discurso que a língua se realiza por meio dos usos que os indivíduos<br />
fazem dela dentro dos contextos de cultura e de situação nos quais se<br />
inserem os atos de comunicação. Inseridos em contextos específicos<br />
de comunicação, os indivíduos, com base na léxico-gramática da<br />
língua, precisam realizar escolhas de formas linguísticas com vistas<br />
ao atendimento de necessidades comunicativas. Para Halliday e<br />
Matthiessen (2004, p. 24), “usamos a linguagem para fazer significar a<br />
nossa experiência e realizarmos nossas interações com outras pessoas”.<br />
O fazer significar e o realizar interações levam, portanto, a linguagem<br />
a assumir três metafunções: a ideacional, a interpessoal e a textual. Cabe<br />
à linguagem, respectivamente, representar conteúdos relacionados à<br />
nossa experiência, permitir interações no âmbito social e possibilitar<br />
a organização textual de informações. Cada uma das três funções<br />
relaciona-se com um dos sistemas componentes da léxico-gramática,<br />
que corresponde a um amplo conjunto de possibilidades daquilo que o<br />
usuário da língua pode dizer. Os três sistemas componentes da léxicogramática<br />
são o de transitividade, relacionado à função ideacional, o<br />
de modo e modalidade, ligado à função interpessoal e o temático, que<br />
tem a ver com a função textual.<br />
O sistema de transitividade, que é o que aqui nos interessa,<br />
está direcionado para a estruturação da oração. Assim sendo, a<br />
transitividade liga-se à forma como o verbo relaciona-se com seus<br />
sintagmas nominais. Contudo, tal relação não é vista da mesma<br />
maneira que nas gramáticas tradicionais ou em outras correntes<br />
funcionalistas, como, por exemplo, no funcionalismo norte-americano.<br />
Nas gramáticas tradicionais, a transitividade é normalmente tomada<br />
como uma propriedade do verbo. Cunha e Cintra (2001, p. 135), por<br />
exemplo, dizem que “verbos significativos são aqueles que trazem uma<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 99
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
ideia nova ao sujeito. Podem ser intransitivos ou transitivos”. Embora<br />
não compartilhem exatamente da mesma concepção de transitividade,<br />
tanto a Linguística Sistêmico-Funcional quanto a Linguística<br />
Funcional norte-americana, não concebem a transitividade como<br />
uma propriedade do verbo, mas, sim, da oração como um todo.<br />
Furtado da Cunha e Souza (2007, p.9) chamam atenção para o<br />
fato de que “ambas as vertentes funcionalistas ressaltam que a<br />
transitividade não se manifesta apenas no verbo, mas na totalidade<br />
da oração, emergindo das relações estabelecidas entre os diversos<br />
elementos que a compõem”. No que tange à diferença de visões entre<br />
as duas correntes funcionalistas, o funcionalismo norte-americano,<br />
diferentemente do sistêmico-funcional, vê a transitividade como um<br />
fenômeno escalar que ocorre sob diferenciados graus de envolvimento<br />
sintático-semântico entre os constituintes da oração. Assim, a<br />
transitividade é, em tese, uma questão de grau (GIVÓN, 1984). Sob<br />
a perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional, a estruturação<br />
da oração dá-se por escolhas na léxico-gramática. O usuário da<br />
língua precisa selecionar verbos e sintagmas a serem associados aos<br />
verbos relacionados. Tal seleção não ocorre aleatoriamente, e sim,<br />
correlacionada à metafunção ideacional. Souza (2006, p.54) diz<br />
que “o sistema de transitividade proposto pela escola hallidayana é<br />
composto de processos, participantes e circunstâncias.” Enquanto os<br />
verbos recebem o nome de processos, os sintagmas são tratados como<br />
participantes. Em suma, os verbos codificam significados dos quais os<br />
sintagmas nominais participam, desempenhando determinados papéis<br />
semânticos. De acordo com essa perspectiva, são seis os processos<br />
codificados pelos verbos: material, existencial, relacional, verbal, mental<br />
e comportamental. O quadro (1) abaixo extraído de Furtado da Cunha<br />
e Souza (Op.cit., p. 60), resumidamente, apresenta as relações entre<br />
processos, significados e participantes:<br />
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ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
Processo<br />
Significado<br />
Participantes<br />
Obrigatórios<br />
Participantes<br />
Opcionais<br />
Material<br />
Mental<br />
Relacional<br />
Atributivo<br />
Identificador<br />
Verbal<br />
Existencial<br />
Comportamental<br />
Fazer, acontecer<br />
Sentir<br />
Ser<br />
Classificar<br />
Definir<br />
Dizer<br />
Existir<br />
Comportar-se<br />
Ator<br />
Experienciador e<br />
Fenômeno<br />
Portador e Atributo<br />
Característica e Valor<br />
Dizente e Verbiagem<br />
Existente<br />
Comportante<br />
Meta, Extensão e<br />
Beneficiário<br />
-<br />
-<br />
Receptor<br />
-<br />
Behaviour<br />
Quadro (1): Processos e participantes<br />
A construção da descrição nas cartas: processos e participantes<br />
Conforme já dito, observa-se que a descrição é o tipo textual<br />
predominante no gênero carta do leitor quando o propósito<br />
comunicativo é reclamar. Subjaz à tessitura da malha textual<br />
desse gênero a função representacional da linguagem, uma vez que<br />
tanto a arquitetura quanto a conjugação das estruturas linguísticas<br />
usadas são definidas pela necessidade de codificar imagens do<br />
real. Aquilo do que reclama o leitor/escrevente é a realidade<br />
experienciada e imageticamente assimilada, que, na carta, precisa ser<br />
linguisticamente representada. Acerca das subfunções (experiencial 1<br />
e lógica) componentes da metafunção ideacional, Gouveia (2009,<br />
p.16) diz que<br />
1. É adotada a correlação entre a metafunção ideacional e sua componente a subfunção experiencial.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 101
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Se a primeira subfunção, a experiencial, nos dá a possibilidade<br />
de linguisticamente criarmos instantâneos fotográficos, como<br />
“O João comeu o bolo”, “A Maria está triste”, ou “O Manuel<br />
foi-se embora”, a segunda permite-nos, com tais instantâneos,<br />
criar uma espécie de história, um filme, como se passássemos os<br />
instantâneos fotográficos a vinte e quatro imagens por segundo<br />
como se faz no cinema: “A Maria está triste, porque o João<br />
comeu o bolo” ou “Quando o Manuel se foi embora, a Maria<br />
estava triste”, ou ainda “O Manuel foi-se embora, porque a<br />
Maria estava triste por o João ter comido o bolo”.<br />
Na atividade de descrição, o material linguístico é mobilizado<br />
para a criação de instantâneos fotográficos, bem como para a<br />
articulação lógica entre eles. A função ideacional relaciona-se<br />
com a atividade descritiva. Ao descrevermos as coisas, buscamos<br />
representá-las tal como as experienciamos e, consequentemente,<br />
como as concebemos. Nas descrições contidas nas cartas do leitor,<br />
as orações, seja nos processos ou nos participantes que encerram,<br />
precisam refletir uma realidade a ser representada. Assim sendo,<br />
cabe ao leitor/escrevente tomar decisões sociointerativa, cognitiva<br />
e linguisticamente orientadas. A língua enquanto potencial de<br />
significação requer a realização de escolhas por meio das quais se<br />
torna possível a construção de representações de um conteúdo<br />
ideacional de um indivíduo a outro. Dessa forma, em observação<br />
às exigências dos contextos dentro dos quais se dão as situações de<br />
comunicação, é que manipulamos códigos reservados à interação. Na<br />
carta do leitor, a léxico-gramática é processada através das escolhas<br />
realizadas no sistema de transitividade. As orações instanciam um<br />
conteúdo imagético. A reclamação contida na carta do leitor envolve<br />
uma situação-problema que precisa ser apresentada. Para tal, o<br />
102 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
escrevente/leitor a descreve de modo a representar um cenário 2 em<br />
que a uma problemática é dado relevo.<br />
Entre os processos constitutivos do sistema de transitividade,<br />
nas descrições das cartas analisadas, foram identificados o material, o<br />
existencial e o relacional. Quanto aos participantes de tais processos,<br />
relacionam-se aos seguintes domínios semânticos: o causador, o<br />
problema e o prejudicado. Embora os processos e os participantes<br />
apresentem propriedades sintáticas e semânticas diferenciadas, não<br />
devem ser tomados isoladamente, pois são determinados por escolhas<br />
que ocorrem numa relação de contiguidade sob um contexto<br />
específico de comunicação. A carta é produzida dentro de uma<br />
situação comunicativa que exige resposta a três perguntas básicas:<br />
1) Qual o problema? 2) Quem o causa? 3) A quem ele prejudica? Vale<br />
salientar que nem sempre todas as três perguntas são, direta ou<br />
indiretamente, contempladas pelo texto. Enquanto a resposta a 2) e<br />
3) é facultativa; a 1), é indispensável. Na composição das orações,<br />
as escolhas tanto dos verbos quanto de seus nominais associados são<br />
guiadas pelas relações semânticas que eles são capazes de estabelecer<br />
entre si dentro do contexto comunicativo. A figura (1) seguinte<br />
sintetiza as relações traçadas:<br />
2. Não deve ser entendido apenas como representação de um espaço físico.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 103
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Figura (1): Estruturação oracional<br />
O contexto é caracterizado por uma situação-problema para a<br />
qual convergem causador e prejudicado. Esta situação determina a<br />
escolha dos verbos para a codificação de processos, e tal escolha, por<br />
sua vez, implica restrições semântico-pragmáticas para a seleção dos<br />
nominais que figuram como participantes.<br />
Processos materiais<br />
Nas descrições das cartas do leitor, são comuns os verbos<br />
codificadores de processos materiais. Na maioria dos casos, o problema<br />
apresentado é fruto do fazer, porque decorre de ações realizadas ou<br />
que não foram realizadas. Daí, a necessidade de o leitor/escrevente<br />
estruturar sentenças nucleadas por processos materiais. Em (1), por<br />
exemplo,<br />
104 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
(1) A obra anda a passos de tartaruga e utiliza os piores horários<br />
do dia para interromper trechos da via, causando imensos<br />
transtornos aos já castigados condutores (...)<br />
(Diário de Pernambuco, 26/07/2011)<br />
o problema decorre de ação realizada. Os quatro verbos<br />
presentes são do fazer. Para se queixar do engarrafamento, o leitor/<br />
escrevente constrói um longo período composto por orações nucleadas<br />
por processos materiais, pois o problema decorre de ações realizadas.<br />
Observemos que o nominal A obra ocupa a posição de sujeito de<br />
todos os verbos como participante do tipo ator. Dentro do contexto,<br />
há um problema, que é o engarrafamento, para ele convergem um<br />
causador, a obra, e um prejudicado, os condutores. É a obra que se<br />
prolonga, que utiliza horários inadequados, que interrompe o trânsito,<br />
prejudicando, assim, os condutores. O problema é originário das ações<br />
realizadas. No exemplo (2),<br />
(2) A prefeitura do Recife sempre tratou essa área com descaso,<br />
nada fazendo para melhorar as condições desses bairros e/ou<br />
solucionar as suas mazelas estruturais.<br />
(Diário de Pernambuco, 12/06/2009)<br />
extraído de uma carta na qual o leitor/escrevente reclama da<br />
falta de ações sociais e de infraestrutura em determinados bairros do<br />
Recife, o nominal A prefeitura do Recife, na condição de participante<br />
ator, relaciona-se também a um verbo de processo material. Contudo,<br />
é perceptível que, diferentemente do que ocorre em (1), o problema<br />
não é consequência de uma ação realizada, mas, sim, de ações que<br />
deixaram de ser realizadas, pois, segundo o que se lê na carta, os bairros<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 105
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
encontram-se abandonados pelo poder público municipal. Assim<br />
como vimos em (1), em (2), também há um problema para o qual<br />
convergem causador e prejudicado. Nas cartas do leitor, a presença<br />
de verbos de processos materiais é fundamental para a produção de<br />
sentido, na medida em que conteúdos ligados à ideia de ação, em<br />
muitos dos casos, são o que estão por trás do problema do qual se<br />
queixa o leitor/escrevente.<br />
Várias relações de contiguidade ocorrem entre processo e<br />
participantes. Com base no contexto, o leitor/escrevente operou as<br />
escolhas dos processos, e estes, por sua vez, foram determinantes<br />
para a escolha dos participantes. A estruturação da oração, uma<br />
vez que é regulada por escolhas, dá-se tal como mostrado na figura<br />
acima, num movimento top-down. O ator A obra, por exemplo, é um<br />
participante do domínio semântico do causador. Dentro do contexto<br />
no qual se inserem, aos processos não poderiam ser associados<br />
participantes do domínio semântico do prejudicado. Enquanto<br />
nominais como a construtora, o trabalho, a empresa, a prefeitura<br />
poderiam ser selecionados pelo leitor/escrevente para a posição de<br />
sujeito, nominais como os motoristas, as pessoas, a população, o povo<br />
não estão autorizados a ocuparem a referida posição. A descrição<br />
das cartas evidencia relações de interdependência entre contexto,<br />
processos e participantes, o que leva à existência de restrições<br />
semântico-pragmáticas, e não apenas sintático-semânticas, no<br />
processo de estruturação de orações.<br />
Outro importante aspecto relacionado aos processos materiais<br />
e bastante comum nas descrições em cartas do leitor é a ocorrência<br />
de modelos concretos na base da representação de fenômenos mais<br />
abstratos. Segundo Gouveia (Op.cit., p.31),<br />
106 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
as actividades concretas observadas no mundo material<br />
tornaram-se referentes, modelos, para a construção da<br />
nossa experiência de mudança relativamente a fenómenos<br />
abstractos. Quer isto dizer que algumas representações de<br />
processos materiais são representações de processos de fazer<br />
de teor abstracto [...].<br />
Vejamos os exemplos (3) e (4):<br />
(3) (...) e assim mu- | seu, bibliothecas, etc, simulam a solidão<br />
dos cemi- | terios.<br />
(Corpus PHPB, 24/03/1865)<br />
(4) (...) as de platéa, que aceio de camarotes, tanto externa<br />
como | internamente; donde os vestidos e as casacas sahem sem-<br />
| pre mascarados, e com 20 por cento menos de seu valor (...)<br />
(Corpus PHPB, 12/09/1842)<br />
Assim como acontece em (1), em (3) e (4), é observado<br />
que atividades materiais concretas servem de referentes para a<br />
representação de atividades materiais de caráter mais abstrato. Obra,<br />
museu, bibliotecas, vestidos e casacos figuram como atores de processos<br />
materiais abstratos referenciados em modelos de ações concretas. Nos<br />
exemplos (3) e (4), ao reclamarem, respectivamente, do abandono<br />
de um museu e da qualidade das instalações de um teatro público, os<br />
escreventes/leitores constroem orações de conteúdo metafórico de<br />
modo semelhante ao que faz o escrevente/leitor do exemplo (1). A fim<br />
de que fique mais claro como se dão as relações metafóricas, tomemos<br />
em análise os casos dos verbos andar de (1) e simular de (3). Andar<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 107
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
descreve uma ação de deslocamento, o que implica a existência de<br />
um ponto de partida, de um ponto de chegada e de um trajeto a ser<br />
percorrido entre ambos. A velocidade com que o trajeto é percorrido<br />
resulta num maior ou menor tempo de realização do percurso entre<br />
o ponto de partida e o ponto de chegada. É esse modelo concreto<br />
de deslocamento que está na base do processo material da oração a<br />
obra anda a passos de tartaruga. A obra enquanto ser inanimado não<br />
é capaz de andar, no sentido de se deslocar, todavia todas as obras<br />
têm uma data de início e uma data de término, e, entre essas datas,<br />
há um tempo a ser transcorrido. A velocidade com que os trabalhos<br />
são feitos resulta, do ponto de vista temporal, numa chegada mais<br />
rápida ou mais demorada ao término da obra. Observemos que há um<br />
conjunto de correlações entre os dois esquemas e, é, nas correlações<br />
existentes entre eles, que os planos concreto e abstrato se cruzam.<br />
Algo bastante parecido é o que acontece com o verbo simular de (3).<br />
Quando simulamos alguma coisa, realizamos ações norteadas por<br />
relações de analogia e, para tanto, inevitavelmente, estabelecemos<br />
comparações entre o que estamos fazendo e o que estamos a copiar.<br />
Museus e bibliotecas enquanto seres inanimados não podem exercer a<br />
ação de copiar nada, porém ao dizer que museus e bibliotecas simulam a<br />
solidão dos cemitérios, o escrevente/leitor traz para a base da codificação<br />
da oração a noção de comparação que é intrínseca a todo ato concreto<br />
de simulação.<br />
Os participantes, conforme dito, são dos domínios semânticos:<br />
causador, problema e prejudicado, mas, nem sempre são expressos por<br />
sintagmas nominais. Na construção da descrição da carta do leitor,<br />
a escolha da forma linguística de representação do participante ator<br />
constitui-se como estratégia argumentativa. O leitor/escrevente<br />
reconstrói, por meio da sua descrição, o cenário do problema sem<br />
nenhuma intenção de ser imparcial. O texto é descritivo, porém tem<br />
108 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
propósitos argumentativos bastante claros, uma vez que a descrição<br />
serve à realização de uma reclamação. O leitor/escrevente, a fim<br />
de obter uma solução, precisa chamar atenção para o problema do<br />
qual reclama. Podemos dizer que, na carta do leitor de reclamação,<br />
descreve-se para reclamar, o que implica, então, dizer que o texto<br />
descritivo tem um elevado teor de argumentatividade. Analisemos<br />
os exemplos (5), (6) e (7):<br />
(5) (...) ninguem ainda se lembrou de mandar collo- | car alguns<br />
lampiões (...)<br />
(Corpus PHPB, 27/09/1842)<br />
(6) (...) causando problemas nos carros de quem tenta<br />
estacionar, nas padarias, lojas, etc.<br />
(Diário de Pernambuco, 21/06/2011)<br />
(7) Convivemos com ruas sujas, esburacadas, mal iluminadas,<br />
praças e logradouros depredados e abandonados.<br />
(Diário de Pernambuco, 12/06/2009)<br />
É bastante comum que pronomes indefinidos sejam selecionados<br />
para participantes atores dos processos materiais. Dentro da descrição<br />
das cartas, eles têm um valor semântico extremamente importante à<br />
construção da argumentação. Não são usados para esconder aquele<br />
que é o responsável pela ação. O leitor/escrevente, ao fazer uso dos<br />
indefinidos, busca representar noções de generalização. Nesses casos,<br />
o que é dito não deve ser atribuído a um ser específico, pois é de<br />
responsabilidade ou de afetação de um grupo maior. A indefinição<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 109
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
é importante não porque impede a identificação do ator, mas, sim,<br />
porque leva o leitor a associar o processo a todo um grupo. Em (5),<br />
para reclamar das condições em que se encontra a iluminação pública,<br />
o leitor/escrevente escolhe o pronome ninguém para ator do processo<br />
mandar. Embora o pronome não represente um ser específico, ele<br />
refere-se genericamente a todos aqueles que gerem o poder público. O<br />
uso do pronome confere força argumentativa à descrição, porque, na<br />
medida em que não responsabiliza um ser especificamente, mas, sim,<br />
de modo genérico, o poder público, o leitor põe em relevo o descaso<br />
do qual a população é vítima, isto é, a população não é esquecida<br />
por um, e, sim, por todos os representantes do poder público. No<br />
exemplo (6), ao reclamar dos remendos realizados no asfalto, o<br />
leitor/escrevente constrói o período quem tenta estacionar, no qual o<br />
pronome indefinido quem é o participante ator. Verifiquemos que a<br />
intenção que está por trás da escolha do pronome também não tem a<br />
ver com o desejo de impossibilitar a identificação do agente da ação.<br />
Tal como acontece em (5), o pronome assume um valor semântico<br />
de generalização. Todos os motoristas que tentam estacionar na área<br />
são prejudicados pelos remendos do asfalto. Pelo uso do pronome,<br />
a descrição ganha força argumentativa, pois o problema não afeta<br />
apenas a alguém em particular, e, sim, a toda uma categoria. Sendo<br />
assim, ele não é de um, é de muitos.<br />
Nas análises, ficou claro que, nas descrições, o pronome<br />
indefinido não é usado com o intuito de impossibilitar a identificação<br />
de participantes atores. Como apresentado na figura anterior, o<br />
contexto das cartas de reclamação é constituído por causador,<br />
problema e prejudicado. Através dele, o leitor é capaz de identificar<br />
a quem ou a que o pronome indefinido refere-se. Quando na função<br />
de atores de um processo material, tais pronomes ligam-se a um dos<br />
110 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
três domínios semânticos do contexto. Em (5), o pronome codifica o<br />
causador do problema. São os representantes do poder público que,<br />
por serem omissos, causam o problema da iluminação pública. Em<br />
(6), o pronome codifica o prejudicado. São os motoristas que, na hora<br />
de estacionar, sofrem com o problema dos remendos do asfalto. Não<br />
há, portanto, com o uso dos indefinidos, apagamento de participantes<br />
atores, o que há são generalizações dentro dos domínios semânticos<br />
constituintes do contexto.<br />
Como estratégia argumentativa, os participantes atores podem<br />
também ser codificados por meio da utilização ou da simples omissão<br />
do pronome pessoal nós. No exemplo (7), o leitor/escrevente constrói<br />
a oração Convivemos com ruas sujas, esburacadas, mal iluminadas... para<br />
reclamar do abandono, pela prefeitura do Recife, de determinados<br />
bairros. No caso, o processo material codificado pelo verbo conviver<br />
tem como participante ator o pronome nós, que está elíptico. A<br />
escolha pelo referido pronome não se deu aleatoriamente. Trata-se<br />
de uma estratégia de argumentação. Ao dizer com o que convivem<br />
os moradores, o leitor/escrevente descreve todo um cenário dentro<br />
do qual não se encontra sozinho. O problema afeta a toda uma<br />
comunidade, e não apenas a ele. Pelo uso do nós, quem escreve a carta<br />
não particulariza o problema. Isso, do ponto de vista argumentativo,<br />
é extremamente importante, pois o que atinge a um indivíduo em<br />
particular não tem a mesma repercussão do que aquilo que atinge a<br />
toda uma comunidade.<br />
Processos existenciais<br />
Nas descrições das cartas do leitor, também pode ser verificada<br />
a presença de processos existenciais. Embora não sejam tão frequentes<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 111
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
quanto os processos materiais, eles desempenham importante papel na<br />
construção do texto descritivo. Os processos existenciais selecionados<br />
pelo leitor/escrevente servem à construção da imagem do cenário<br />
descrito. Observemos os exemplos (8) e (9):<br />
(8) (...) tem lampiões huma das principaes ruas (...)<br />
(Corpus PHPB, 27/09/1842)<br />
(9) Sem o augmento de novas aquisições existem | alli peles<br />
sem estar armadas, no duplo do que | existe montado, e que<br />
de dia a dia se deterioram: (...)<br />
(Corpus PHPB, 24/03/1865)<br />
Em (8), para reclamar das condições da iluminação pública,<br />
o leitor/escrevente precisa representar linguisticamente o cenário<br />
em que se dá o problema. Para tanto, ele recorre à estruturação de<br />
uma oração com verbo codificador de processo existencial. O tem<br />
codifica a existência de lampiões nas ruas. A imagem do cenário vai<br />
ganhando forma à medida que são informados os elementos que o<br />
compõe. Assim como em (8), no exemplo (9), ocorre a presença de<br />
um processo existencial, e a escolha por tal processo material também<br />
serve à construção da imagem do cenário do problema. Ao falar da<br />
existência de peles que estão se deteriorando, o leitor/escrevente nos<br />
direciona para a imagem de um museu abandonado, esta imagem é<br />
de interesse dele construir.<br />
Na descrição da carta, o participante existente, normalmente,<br />
relaciona-se com o domínio semântico do problema. Lampiões em (8)<br />
tem a ver com o problema da iluminação pública; e peles em (9), com<br />
112 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
o problema do abandono do museu. Codificar processos existenciais<br />
ao descrever o cenário da situação-problema é bastante importante<br />
para a construção da argumentatividade das descrições, sobretudo,<br />
pelo fato de os processos existenciais trazerem como participante<br />
existente elementos do domínio do problema. Dentro da descrição, a<br />
existência de tais elementos dá maior visibilidade ao problema, uma<br />
vez que possibilita, durante a leitura, o leitor construir determinadas<br />
imagens desejadas pelo leitor/escrevente.<br />
Processos relacionais<br />
Foi identificada uma quantidade bastante significativa<br />
de processos relacionais nas descrições das cartas do leitor. Por<br />
serem textos descritivos, a presença desse tipo de processo já era<br />
esperada. O processos relacionais desempenham um importante<br />
papel no estabelecimento de relações entre diferentes fragmentos da<br />
experiência. Através deles, o leitor/escrevente codifica atributos e<br />
portadores dos atributos, desenhando o cenário da situação-problema.<br />
É importante salientar que processos relacionais identificadores não<br />
foram encontrados no corpus analisado, possivelmente em decorrência<br />
da tipologia textual em questão. Analisemos os exemplos (10), (11)<br />
e (12):<br />
(10) A Compesa é um verdadeiro câncer para as ruas do Recife.<br />
(Diário de Pernambuco, 19/09/2010)<br />
(11) (...) muitas ruas foram recentemente asfaltadas e hoje já<br />
estão totalmente destruídas pela ação da Compesa (...).<br />
(Diário de Pernambuco, 19/09/2010)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 113
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
(12) O tratamento que nos é dispensado pela PCR é digno de<br />
quem mora numa zona de exclusão (...).<br />
(Diário de Pernambuco, 12/06/2009)<br />
Em (10), ao reclamar do excesso de buracos nas ruas do<br />
Recife, o leitor/escrevente necessita relacionar dos fragmentos da<br />
sua experiência e, para tanto, escolhe codificar a oração por meio de<br />
um processo relacional. É da experiência do leitor/escrevente que a<br />
Compesa, enquanto companhia responsável pelo saneamento, produz<br />
buracos para a realização dos seus trabalhos e também é da experiência<br />
dele que o câncer é uma doença que se alastra pelo corpo. Na oração<br />
A Compesa é um verdadeiro câncer para as ruas do Recife, encontramos<br />
uma relação entre os dois conhecimentos mencionados. O nominal<br />
Compesa aparece como participante portador do atributo um verdadeiro<br />
câncer para as ruas do Recife. Por meio dessa relação de experiências,<br />
na descrição, é construída a imagem de uma cidade, em vários pontos,<br />
esburacada pela Compesa, o que, por sua vez, leva a outra construção<br />
de imagem: uma companhia geradora de problemas, em cujo trabalho<br />
não há compromisso social. Em (11), encontramos uma continuação<br />
da mesma carta. Mais processos relacionais são escolhidos para a<br />
composição do texto descritivo. Recentemente asfaltadas e totalmente<br />
destruídas pela ação da Compesa são atributos do participante portador<br />
muitas ruas. Observemos que a imagem do cenário corresponde à<br />
situação-problema vai sendo construída. Há uma companhia que,<br />
assim como o câncer, propaga-se ampliando sua área de destruição. Em<br />
(12), ao queixar-se do descaso da Prefeitura do Recife no tratamento<br />
dado a determinados bairros, o leitor/escrevente relaciona atributos<br />
ao participante portador o tratamento. As atribuições realizadas são o<br />
114 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
que nos permite a criação de uma imagem acerca da relação entre<br />
poder público e comunidade.<br />
A codificação de portadores e atributos é determinada pelo<br />
contexto. O participante portador é sempre de um dos domínios<br />
semânticos constituintes do contexto. Em (10) e (12), os respectivos<br />
participantes a Compesa e o tratamento relacionam-se com o causador;<br />
e, em (11), muitas ruas, com o domínio do problema. As atribuições<br />
dão força à argumentatividade presente na descrição. Foi observado<br />
que, quando os portadores são do domínio do causador ou do problema,<br />
as atribuições são, normalmente, de caráter negativo, enquanto que,<br />
quando ele é do domínio do prejudicado, as atribuições buscam<br />
construir uma imagem de sujeito vitimado tanto pelo tratamento<br />
do causador quando pelos problemas oriundos de tal tratamento.<br />
Conclusão<br />
Na composição do gênero cartas do leitor de reclamação, as<br />
descrições não correspondem a meras representações de imagens. Elas<br />
desempenham importante papel na construção da argumentatividade<br />
do texto. As imagens representadas são fruto de conhecimentos<br />
experienciais mobilizados para a realização de reclamações. Ao<br />
reclamar, o leitor/escrevente não busca apenas reconstruir um<br />
cenário imagético da situação-problema. Ele quer mais que isso:<br />
deseja obter uma solução para o problema do qual se queixa. Para<br />
tanto, precisa argumentar. Assim sendo, as cartas são escritas<br />
dentro de um contexto composto por três domínios semânticos:<br />
causador, problema, prejudicado, e dentro desse contexto, se dão<br />
as escolhas das formas linguísticas para a estruturação das orações,<br />
com vistas à realização de uma descrição com teor argumentativo.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 115
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Daí decorre que tal estruturação acontece num movimento top-down.<br />
O usuário da língua opera com o sistema de transitividade a partir<br />
do contexto dentro do qual produz a carta. O referido movimento<br />
leva a uma sistemática de combinações entre os verbos, que são os<br />
processos, e os sintagmas, que são os participantes, sob restrições<br />
não somente sintático-semânticas, mas, sobretudo, semânticopragmáticas.<br />
Os processos identificados na constituição das cartas<br />
são: o material, o existencial e o relacional. Embora, em muitos casos,<br />
a combinação entre determinados verbos e sintagmas seja sintático<br />
e semanticamente possível, são desautorizadas do ponto de vista<br />
semântico-pragmático.<br />
Referências<br />
BEZERRA, Maria Auxiliadora. Por que cartas do leitor na sala de aula. In: DIONÍSIO, Ângela<br />
Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). Gêneros textuais e<br />
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.<br />
CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio<br />
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />
CUNHA, Maria Angélica Furtado da; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />
contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />
GIVÓN, Talmy. Syntax I: a functional-typological introduction. Amsterdam: John Benjamins,<br />
1984.<br />
GOUVEIA, Carlos A. M. Texto e gramática: uma introdução à linguística sistémico-funcional.<br />
In: Matraga, Rio de Janeiro, RJ, v.16, n.24, p.13-47, 2009.<br />
HALLIDAY, Michael; MATTHIESSEN, Christian. An introduction to functional grammar.<br />
London: Oxford University Press, 2004.<br />
116 l Anais Eletrônicos - 2011
ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />
TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />
IKEDA, Sumiko Nishitani; VIAN JÚNIOR, Orlando. A análise do discurso pela perspectiva<br />
sistêmico-funcional. In: LEFFA, Vilson J. (org.). Pesquisas em linguística aplicada: temas e<br />
métodos. Pelotas: EDUCAT, 2006.<br />
SOUZA, Medianeira. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Tese.<br />
Programa de Pós-graduação em Letras, <strong>UFPE</strong>, Recife, 2006.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 117
Resumo<br />
Baseado em estudos em torno da Multimodalidade Discursiva e da Semiótica Social,<br />
investigam-se os significados atrelados às imagens que compõem dois editorais<br />
das revistas Veja e Istoé. A análise segue os preceitos teórico-metodológicos da<br />
gramática do design visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006), levando em consideração<br />
os três tipos de trabalhos semióticos realizados pela imagem: representacional,<br />
interativo e composicional. Os resultados mostram que os sentidos construídos<br />
pela imagem em cooperação multimodal com a legenda e os demais elementos<br />
linguísticos dos editoriais analisados são decisivos para a elaboração dos<br />
significados totais desses textos e para o alcance de seus propósitos comunicativos.<br />
Palavras-chave: multimodalidade, semiótica social, gramática visual, editoriais<br />
de revistas<br />
Abstract<br />
Based on studies around the Multimodality Discourse and Social Semiotics, we<br />
aim to investigate the meanings related to the images that make up two editorial<br />
boards of Veja and Istoé.The analysis is based on the theoretical and methodological<br />
principles from Grammar of Visual Design (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006),<br />
considering three types of semiotic work performed by the image: representational,<br />
interactive and compositional. The results show that the meanings constructed by<br />
the image in multimodal cooperation, along with the subtitle and other linguistic<br />
elements of the editorials analyzed, are decisive for the overall development of the<br />
meanings of these texts and to the achievement of their communicative purposes.<br />
Keywords: multimodal, social semiotics, visual grammar, editorial boards
Os sentidos da imagem em<br />
editoriais de revistas 1<br />
Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
Introdução<br />
Estudos linguísticos atuais mostram que as práticas comunicativas<br />
contemporâneas vêm utilizando, com cada vez mais proeminência,<br />
signos não-verbais na composição dos textos, a despeito da<br />
supervalorização que a escrita recebeu nos anos anteriores. É cada<br />
vez mais comum o uso de imagens, cores, fontes tipográficas variadas,<br />
dentre outros recursos visuais, nos gêneros que circulam atualmente,<br />
tornando-os mais atraentes e complexos.<br />
Tendo como base nas teorias sobre a multimodalidade discursiva<br />
e nos pressupostos da Semiótica Social, especialmente os conceitos<br />
teórico-metodológicos da gramática do design visual, de Kress & van<br />
Leeuwen (2006), buscamos analisar as imagens utilizadas em editoriais<br />
de revistas de grande circulação nacional, ou seja, a Veja e a Istoé,<br />
tentando perceber de que maneira elas ajudam a compor os sentidos<br />
totais desses textos.<br />
1. Este artigo consiste num recorte da minha dissertação de Mestrado intitulada “Multimodalidade e produção<br />
de sentidos no editorial de revista”, defendida em junho de 2011.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 119
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Multimodalidade discursiva, semiótica social e gramática visual<br />
A multimodalidade discursiva é um fenômeno linguístico<br />
comum a todo e qualquer gênero textual (cf. DIONÍSIO 2005b, p.<br />
178) que consiste na coexistência de dois ou mais modos semióticos<br />
em uma composição enunciativa, sendo esta oral ou escrita. Porém, é<br />
importante esclarecer que os recursos visuais unem-se aos elementos<br />
linguísticos não apenas para ilustrar o que é dito pelo texto verbal, mas<br />
para criar novos sentidos. Dionísio (2005a, p. 195) defende que “todos<br />
os elementos visuais e suas disposições nos textos podem ser analisados,<br />
uma vez que desempenham um trabalho persuasivo”. Também Kress<br />
& van Leeuwen (2006), ao discutirem o papel dos elementos visuais<br />
na composição de um texto escrito, destacam o caráter ideológico que<br />
tais elementos encerram. De acordo com esses autores:<br />
As estruturas visuais não simplesmente reproduzem as<br />
estruturas da realidade. Pelo contrário, elas produzem imagens<br />
da realidade que está vinculada aos interesses das instituições<br />
sociais no interior das quais as imagens são produzidas,<br />
circuladas e lidas. Elas são ideológicas. As estruturas visuais<br />
nunca são meramente formais: elas têm uma dimensão<br />
semântica profundamente importante (KRESS; VAN<br />
LEEUWEN 2006, p. 47).<br />
Dessa forma, as estruturas visuais devem ser analisadas<br />
racionalmente de forma a considerar sua dimensão socioideológica. É<br />
nesse sentido que Kress & van Leeuwen (2006) propõem uma teoria<br />
de análise de elementos visuais: a gramática do design visual (GDV),<br />
que concebe as imagens como estruturas sintáticas que podem ser<br />
examinadas, assim como a linguagem. Essa obra tem como base o<br />
arcabouço teórico da Semiótica Social, a qual considera os vários<br />
120 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
sistemas semióticos, inclusive a linguagem, como conjuntos de<br />
recursos que estão à escolha dos falantes de determinada cultura para<br />
realizarem sentidos em contextos sociais. Portanto, os sentidos são<br />
tidos não como inerentes aos signos, como determinava a semiótica<br />
tradicional estruturalista, mas como pertencentes a uma dada cultura<br />
e influenciados pelas relações conflituosas que determinam a estrutura<br />
social de um grupo.<br />
A Semiótica Social trata os modos semióticos como recursos,<br />
termo emprestado de Halliday, que é definido “como as ações e<br />
os artefatos que nós usamos para nos comunicarmos, sejam eles<br />
produzidos fisiologicamente ou por meios tecnológicos” (VAN<br />
LEEUWEN, 2005, p. 3). Os recursos semióticos são, segundo Jewitt<br />
& Oyama (2001, p. 136), “produtos de histórias culturais” e “foram<br />
inventados em contextos de interesses e propósitos específicos”.<br />
Outro fator importante é que eles não possuem um sentido único e<br />
inalienável, mas um potencial semiótico, ou seja, uma série limitada<br />
de significados que podem ser ativados pelos interlocutores em<br />
contextos sociais específicos (cf. JEWITT; OYAMA 2001, p. 135).<br />
Essa postura dos semioticistas sociais em relação aos modos semióticos<br />
foi influenciada por Halliday (1978) em sua Linguística Sistêmico-<br />
Funcional (LSF), que descreve a linguagem verbal como uma rede<br />
de escolhas disponíveis aos falantes para produzir sentidos realizados<br />
através de três metafunções: a ideacional, a interativa e a textual.<br />
Kress & van Leeuwen (2006) aplicaram o modelo da LSF à<br />
análise de estruturas visuais e criaram a gramática do design visual. Para<br />
os autores, “o modo visual, assim como todos os modos semióticos tem<br />
que servir a diversas exigências comunicacionais (e representacionais),<br />
com o fim de funcionar como um sistema de comunicação completo”<br />
(KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 40). Na GDV, foi adotada a noção<br />
teórica de metafunção utilizada por Halliday (1978), para referir-se às<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 121
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
funções principais que todo elemento visual realiza em uma composição:<br />
metafunção representacional, metafunção interativa e metafunção<br />
composicional. O quadro a seguir, adaptado de Fernandes & Almeida<br />
(2008, p.12), apresenta as definições das metafunções de Kress & van<br />
Leeuwen relacionando-as com as metafunções de Halliday.<br />
Halliday<br />
Ideacional<br />
Kress &<br />
v. Leeuwen<br />
Representacional<br />
Responsável pelas estruturas que constroem<br />
visualmente a natureza dos eventos, objetos e<br />
participantes envolvidos, e as circunstâncias em<br />
que ocorrem. Indica em outras palavras, o que<br />
nos está sendo mostrado, o que se supõe esteja<br />
“ali”, o que está acontecendo, ou quais relações<br />
estão sendo construídas entre os elementos<br />
apresentados.<br />
Interpessoal<br />
Interativa<br />
Responsável pela relação entre os participantes,<br />
é analisada dentro da função denominada de<br />
função interativa (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006),<br />
onde recursos visuais constroem “a natureza das<br />
relações de quem vê e o que é visto”.<br />
Textual<br />
Composicional<br />
Responsável pela estrutura e formato do<br />
texto, é realizada na função composicional na<br />
proposição para análise de imagens de Kress &<br />
van Leeuwen, e se refere aos significados obtidos<br />
através da “distribuição do valor da informação<br />
ou ênfase relativa entre os elementos da<br />
imagem”.<br />
Quadro 1. As metafunções de Halliday e de Kress & van Leeuwen.<br />
(cf. FERNANDES; ALMEIDA, 2008, p.12)<br />
Apesar da capacidade que o modo visual apresenta de<br />
concretizar as mesmas funções do modo linguístico, é necessário<br />
esclarecer que, como apontam Kress & van Leeuwen (2006, p. 46),<br />
122 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
há situações em que os elementos visuais não conseguem transmitir<br />
o que é expresso pela linguagem e vice-versa. Imagem e linguagem<br />
compõem significados próprios para propósitos comuns, lançando<br />
mão de instrumentos específicos com o objetivo de desempenharem<br />
as três chamadas metafunções. Enquanto a linguagem realiza a<br />
metafunção ideacional através do sistema de transitividade, a<br />
imagem realiza a metafunção representacional através do sistema<br />
vetorial e do sistema de taxionomias. Enquanto a linguagem realiza a<br />
metafunção interpessoal através do sistema do modo, a imagem realiza<br />
a metafunção interativa através dos recursos do contato, da distância<br />
social, da perspectiva e da modalidade. Enquanto a linguagem realiza<br />
a metafunção textual através do sistema temático, a imagem realiza a<br />
metafunção composicional através dos sistemas do valor informativo,<br />
da estruturação e da saliência.<br />
Metodologia<br />
Nesse artigo, investigamos dois editoriais pertencentes cada<br />
qual a um suporte diferente, quais sejam as revistas Veja e Istoé.<br />
Tais textos foram publicados no mesmo período, ou seja, na última<br />
semana de janeiro de 2011, de modo que pudéssemos observar os<br />
textos e os significados construídos por eles tendo como referência o<br />
mesmo contexto discursivo de produção, o qual gerou, inclusive, uma<br />
coincidência nos temas abordados pelos editorais coletados.<br />
O exame dos sentidos produzidos pelas imagens que compõem<br />
os editoriais segue uma abordagem interpretativista, tendo como norte<br />
as categorias de análise da gramática do design visual, de Kress & van<br />
Leeuwen (2006), que são resumidas no Quadro 2, a seguir:<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 123
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
ALGUNS CONCEITOS-CHAVE DA GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL (cf. KRESS; VAN LEEUWEN, 2006)<br />
Participantes Representados (PR)<br />
Participantes Interativos (PI)<br />
Vetor<br />
Cada elemento que aparece representado na imagem<br />
Participantes da interação mediada pela imagem: produtor e<br />
leitor<br />
Linha oblíqua que une os participantes representados, indicando<br />
que um age sobre o outro<br />
Metafunção Representacional<br />
Processos Narrativos<br />
(Participantes ligados<br />
por vetores)<br />
Processos Conceituais<br />
(Não há vetores entre<br />
participantes)<br />
TIPO DE PROCESSO<br />
Processo de ação<br />
P. de reação<br />
(ação de olhar)<br />
P. analítico<br />
(relação parte-todo)<br />
P. classificacional<br />
(rel. de ordem<br />
estática)<br />
P. simbólico<br />
TIPOS DE PARTICIPANTES<br />
Ator: participante do qual emana o vetor, que pratica<br />
a ação<br />
Meta: participante para o qual se direciona o vetor, que<br />
sofre a ação<br />
Reator: participante que pratica a ação de olhar<br />
Fenômeno: participante (ou processo) para o qual se<br />
direciona o olhar do Reator<br />
Portador: o todo, participante que contém os Atributos<br />
Possessivos<br />
Atributos Possessivos: as partes que constituem o<br />
Portador<br />
Superordinado: categoria mais geral (o tronco)<br />
Subordinados: subcategorias (os ramos)<br />
Portador: participante ao qual se atribuem valores<br />
simbólicos<br />
Atributos Simbólicos: atribuem valores ao Portador<br />
Circunstâncias<br />
(elementos<br />
secundários)<br />
Locativa: servem de Cenário onde se localizam os participantes e suas ações<br />
de Acompanhamento: acompanham os participantes principais<br />
de Meio: servem de ferramenta ou instrumento para a realização da ação dos<br />
participantes principais<br />
124 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
Metafunção Interativa<br />
Modalidade<br />
Contato<br />
Codifica o valor de verdade atribuído à imagem, através do uso de certos<br />
marcadores de modalidade: a contextualização, o grau de detalhe e o tipo de<br />
reprodução das cores etc.<br />
Demanda: quando os participantes representados olham para o observador<br />
Oferta: quando os participantes representados não olham para o observador<br />
Próxima: uso do plano fechado; relação de intimidade entre PR e PI<br />
Distância Social<br />
Média: uso de plano intermediário; PR e PI se conhecem, mas não são íntimos<br />
Longa: uso de plano aberto; participantes representados são totalmente<br />
estranhos<br />
Perspectiva<br />
Ângulo Horizontal<br />
Ângulo Vertical<br />
Frontal: relação de envolvimento entre PR e PI<br />
Oblíquo: relação de estranhamento entre PR e PI<br />
Alto: Participantes interativos têm poder sobre a imagem<br />
Baixo: A imagem tem poder sobre participantes<br />
interativos<br />
Ao nível do olhar do observador: igualdade de poder<br />
Metafunção Composicional<br />
Valor informativo<br />
Saliência<br />
Estruturação<br />
Refere-se ao valor específico assumido pelos elementos visuais de acordo com<br />
sua localização na página: direita/esquerda (Dado/Novo); zona superior/zona<br />
inferior (Ideal/Real); zona central/bordas (Centro/Margens)<br />
Relaciona-se ao modo como os participantes representados estão dispostos<br />
para criar uma hierarquia de importância entre eles<br />
Presença de elementos que conectam ou separam os participantes representados<br />
Quadro 2. Resumo de alguns conceitos-chave da GDV<br />
Decidimos analisar o gênero editorial de revista por ser muito<br />
acessível, especialmente os de revistas tão populares e de circulação<br />
tão abrangente como a Veja e a Istoé; e, principalmente, por apresentar<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 125
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
um caráter bastante informativo visualmente, como demonstram<br />
pesquisas como Souza (2006); Souza et al (2008); Santos (2009);<br />
Aquino (2010); e Aquino (2011).<br />
Análise do editorial de Veja: a solidariedade para com o povo<br />
haitiano<br />
O editorial de Veja (Figura 1), de 27 de janeiro de 2010,<br />
repercute o terremoto ocorrido no Haiti, que deixou milhares de<br />
vítimas fatais e tantas outras vivendo em condições precárias, sem<br />
moradia, alimentos, água, saúde e segurança. O editorial, publicado<br />
em página dupla, destaca que o episódio do desastre, apesar de trazer<br />
tantos prejuízos e provocar o que há de pior na humanidade, solidão,<br />
miséria, brutalidade etc., também revelou o que há de mais nobre<br />
na nossa espécie: a solidariedade, representada pela ajuda imediata<br />
advinda de vários países ao redor do globo, em forma de bombeiros,<br />
equipes médicas, doações em dinheiro, alimentos, remédios etc.<br />
Analisemos, agora, se os sentidos representacionais, interativos e<br />
composicionais produzidos pela imagem reforçam ou contradizem o<br />
que o texto verbal afirma.<br />
126 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
Figura 1. Editorial de Veja<br />
Fonte: Veja, 27 de janeiro de 2010<br />
Figura 1a. Processo narrativo de ação no editorial da Veja<br />
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f<br />
Quanto aos sentidos representacionais, a imagem que compõe<br />
o editorial de Veja (ver Figura 1a) representa um grupo de soldados<br />
cuja nacionalidade não é especificada, em um helicóptero de resgate<br />
(informação que só pode ser ativada em diálogo com a legenda),<br />
socorrendo um menino haitiano, provavelmente retirado debaixo dos<br />
escombros causados pelo terremoto. O principal processo observado<br />
nessa imagem é protagonizado pelo soldado em primeiro plano,<br />
parcialmente de costas para a câmera, cujo braço direito, coxa direita,<br />
prolongamento do corpo e da cabeça além do depósito de soro que ele<br />
segura e do cateter que emana desse depósito em direção ao pequeno<br />
haitiano formam vetores oblíquos que ligam o soldado ao menino. Temse,<br />
portanto, um processo narrativo de ação em que o soldado é Ator e a<br />
criança é a Meta da ação do soldado, esta ação pode ser interpretada – a<br />
partir de nosso conhecimento prévio sobre a catástrofe haitiana, pela<br />
situação retratada na imagem e pelo depósito de soro que o soldado<br />
segura (circunstância de meio) – como “prestar socorro”, “salvar”,<br />
“cuidar”, “ajudar” etc. Assim, podemos traduzir linguisticamente esse<br />
processo como “O soldado presta socorro ao menino haitiano”. O<br />
discurso materializado pela imagem é, portanto, o de que os soldados<br />
estrangeiros são heróis que prestam um serviço de ajuda humanitária<br />
ao sofrido povo haitiano, representado na figura da criança.<br />
Os atributos possessivos de ambos os participantes ajudam a<br />
compor o sentido do processo narrativo protagonizado por eles e a<br />
reforçar o discurso do herói estrangeiro que ajuda o flagelado haitiano.<br />
O soldado está totalmente vestido com seu uniforme, portando<br />
equipamentos de segurança, como o capacete, a mochila, diversos<br />
aparatos presos à cintura, além de um revólver preso à perna direita por<br />
um coldre. Esses atributos nos permitem identificar esse participante<br />
como uma pessoa que possui poder e que está preparada tanto para<br />
combater, se necessário, como para prestar ajuda às vítimas do<br />
128 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
terremoto. A criança, no entanto, não parece estar usando qualquer<br />
roupa, é magra e muito jovem, características que a identificam como<br />
alguém frágil e vulnerável. Desse modo, tais atributos reforçam os<br />
papéis de ambos os participantes como Ator (ativo) e Meta (passivo),<br />
e buscam sensibilizar o leitor para sentir pena do menino haitiano e<br />
admiração pelo forte soldado que o socorre.<br />
Na legenda, por sua vez, o destaque maior é dado ao menino<br />
haitiano, tanto verbalmente, uma vez que se omite o soldado e sua<br />
ação de socorrer o menino, como visualmente, já que as palavras<br />
“Criança ferida”, que obviamente referem-se ao menino haitiano<br />
da imagem, recebem muita saliência ao aparecerem em negrito,<br />
constituindo a cabeça da legenda. Sendo assim, a legenda dialoga<br />
com a imagem, mas não repete o sentido desta, uma vez que dá mais<br />
atenção à vítima passiva e à ideia de fragilidade transmitida pelo<br />
vocábulo “ferida”, do que ao socorrista ativo, que é omitido.<br />
Em relação ao texto verbal do editorial, não se tem nenhum<br />
comentário direto sobre o fato representado pelo conjunto imagemlegenda.<br />
O texto trata do modo como muitos países do mundo se<br />
mobilizaram solidariamente para promover ajuda à população haitiana<br />
castigada pelo terremoto, como se vê, por exemplo, no segundo<br />
parágrafo, quando afirma que “horas depois do dimensionamento<br />
da magnitude da tragédia, partiram ofertas de ajuda de todas as<br />
partes do planeta”. A imagem dialoga com essa ideia transmitida<br />
pelo texto na medida em que ela parece constituir uma metonímia<br />
de tal informação, no sentido de que, na imagem, substitui-se o todo<br />
(o mundo presta socorro às vítimas haitianas) por uma parte (um<br />
soldado estrangeiro presta socorro a uma criança haitiana). Repetese,<br />
portanto, a relação estabelecida pelo texto verbal, que coloca o<br />
Haiti como “a doença ou vítima”, que, portanto, possui um papel<br />
mais passivo nessa relação; e as nações estrangeiras como “a cura ou<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 129
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f<br />
o auxílio” e que têm papel ativo e mais saliente. A legenda, por sua<br />
vez, institui uma ponte semântica entre a informação mais específica<br />
transmitida pela imagem (Criança ferida em helicóptero no Haiti) e<br />
a informação mais geral transmitida pelo texto (o mundo correu em<br />
socorro às vítimas do terremoto).<br />
Voltando à imagem, no segundo plano são representados<br />
outros soldados, envolvidos em processos secundários que parecem<br />
ter menos importância na constituição dos sentidos representacionais<br />
da fotografia. Três desses participantes são encobertos parcialmente,<br />
portanto, não podemos determinar ao certo o que eles estão fazendo.<br />
O outro soldado, na parte superior esquerda, parece apenas observar<br />
o resgate do menino haitiano e assume, portanto, o papel de Reator<br />
num processo narrativo de reação cujo Fenômeno é todo aquele<br />
processo de ação protagonizado pelo soldado e a criança vitimada pelo<br />
terremoto. Esse processo de reação, no entanto, é apenas secundário,<br />
assim como os processos que não podemos determinar com clareza nos<br />
quais estão envolvidos os outros três soldados representados. Podemos<br />
afirmar, assim, que eles aparecem apenas como a circunstância em que<br />
ocorre o processo principal, conferindo-lhe um contexto dramático.<br />
Partindo para a análise da metafunção interativa, observamos<br />
que, quanto à modalidade utilizada pela imagem (ver Figuras 1 e 1a),<br />
ela possui um alto nível de modalidade naturalística, uma vez que<br />
utiliza o padrão da fotografia colorida em relação a todos os marcadores<br />
de modalidade: cor, brilho, luz, contraste, contextualização, dentre<br />
outros. Assim sendo, tal imagem possui grande valor de verdade e<br />
a informação que ela representa é processada pelos leitores como<br />
factual, algo que realmente aconteceu.<br />
Em relação ao contato, não se observa nenhuma demanda dos<br />
participantes representados aos leitores. Todos eles são representados<br />
em contato de oferta, ou seja, eles se oferecem como itens de informação<br />
130 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
ao leitor, que, por sua vez, aborda a imagem como colocando-se atrás<br />
de uma janela de onde ele pode anônima e objetivamente observar a<br />
realidade e, por conseguinte, tomar conhecimento dela.<br />
Analisando a dimensão do plano da imagem, percebemos que<br />
ela capta os participantes representados mais ou menos do joelho<br />
para cima. Assim sendo, cria-se uma relação virtual de distância<br />
social entre participantes representados e interativos na qual eles se<br />
conhecem, mas não são necessariamente íntimos. O editorial, assim,<br />
permite aos leitores avaliarem os participantes representados, observar<br />
de uma distância mais ou menos próxima seus atributos, suas ações e<br />
reações, mas ainda assim mantendo-os como meros conhecidos, com<br />
grau mínimo de familiaridade.<br />
Focando agora na perspectiva de onde a fotografia foi captada,<br />
nota-se o uso de um ângulo horizontal oblíquo para a maioria dos<br />
participantes representados (excluindo aquele soldado na parte<br />
inferior esquerda da imagem) e de um ângulo vertical à altura do<br />
olhar do leitor. Isso nos diz que, em primeiro lugar, o que está sendo<br />
representado pela imagem, ou seja, os soldados, a vítima haitiana e a<br />
operação de prestar socorro a tal vítima, não pertencem ao mundo do<br />
leitor que, na sua privilegiada posição de observador só tem o papel<br />
de perceber e julgar o que a imagem lhe mostra, sem envolver-se na<br />
ação representada. O soldado na parte inferior esquerda da imagem é<br />
o único participante da fotografia que é mostrado num ângulo frontal,<br />
participando assim de uma relação virtual de envolvimento com o<br />
leitor, uma vez que, na situação ali retratada ele divide com o leitor<br />
o papel de apenas observar o soldado ajudando o menino ferido. Em<br />
segundo lugar, quanto ao uso do ângulo vertical, cria-se uma relação<br />
virtual em que o leitor está em posição de igualdade de poder em<br />
referência aos participantes representados. Portanto, os leitores se<br />
solidarizam com a situação dramática mostrada na imagem.<br />
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Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Analisando os sentidos composicionais criados a partir do<br />
modo como os elementos no interior da fotografia se combinam para<br />
compor a imagem, notamos que, em relação ao valor informativo, a<br />
imagem parece compor uma estrutura Centro-Margens, em que o<br />
processo de ação que envolve o soldado em primeiro plano e o menino<br />
ferido ocupam o Centro da composição e, portanto, constituem a<br />
informação mais importante. Os outros participantes ao redor desse<br />
processo principal constituem as Margens da imagem e possuem papel<br />
secundário.<br />
Figura 1b. Estrutura Centro-Margens e estratégias de estruturação<br />
na imagem do editorial da Veja<br />
Estratégias de estruturação e de saliência também operam para<br />
destacar o soldado e a criança haitiana. As extremidades direita e<br />
esquerda do helicóptero, que compreendem as aberturas de suas<br />
portas, formam duas espécies de bordas que envolvem o participantes<br />
protagonistas da imagem, ajudando a separar o Centro das Margens<br />
(ver Figura 1b, inserções em amarelo). Além disso, o fato de estarem<br />
em primeiro plano, ocuparem a maior fatia da composição, além de se<br />
132 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
posicionarem no centro, dão maior saliência a esses dois participantes,<br />
reforçando seus papéis como itens de informação principais.<br />
Análise do editorial de Istoé: a truculência norte-americana<br />
Figura 2. Editorial de Istoé<br />
Fonte: Istoé, 27 de janeiro de 2010<br />
O editorial de Istoé (Figura 2), de 27 de janeiro de 2010, coincide<br />
com o de Veja não só pelo tempo de publicação, mas também pelo<br />
tema do editorial: o trágico terremoto haitiano. Essa coincidência<br />
talvez se deva ao fato de ser um assunto constituído de muito apelo<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 133
Sinta e<br />
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f<br />
popular e que ecoou mundialmente. Mas, apesar de trazer o mesmo<br />
assunto, o editorial de Istoé o aborda de uma ótica diferente. Enquanto<br />
o editorial de Veja explorou o modo como o mundo, incluindo os<br />
Estados Unidos, lançaram-se em solidariedade para com o país<br />
arrasado pelo terremoto; o editorial de Istoé, assinado por Carlos José<br />
Marques, vai na contramão ao criticar o modo agressivo como os EUA<br />
agiram, dando mais importância ao “esforço para controlar e garantir<br />
a segurança política haitiana” em vez “das necessidades básicas de<br />
vida, resgate e atendimento médico” do povo sofrido daquele país<br />
(trechos transcritos do primeiro parágrafo). Essa postura já é deixada<br />
evidente logo em seu título, “A ocupação do Haiti”, no qual a palavra<br />
“ocupação” é utilizada pejorativamente com o fim de demonstrar<br />
indignação pela forma grosseira como se portaram os americanos<br />
nesse episódio. No fim do texto, aliás, quando escreve “o Haiti não<br />
é um país a ser ocupado, mas ajudado”, Carlos José Marques opõe a<br />
palavra “ocupado”, também presente no título, à palavra “ajudado”,<br />
reforçando assim a opinião de Istoé sobre a postura errônea assumida<br />
pelos EUA.<br />
Através da análise da imagem, levando em conta as três<br />
metafunções descritas por Kress & van Leeuwen (2006) na GDV,<br />
ou seja, a representacional, a interativa e a composicional, podemos<br />
observar de que modo a opinião expressa pelo texto verbal do editorial<br />
de Istoé é reforçada, ou talvez atenuada, pelas escolhas visuais do<br />
editorialista.<br />
Representacionalmente, a imagem nos mostra uma operação<br />
militar envolvendo soldados em primeiro plano, um grande helicóptero<br />
pousado sobre a grama logo atrás, e um segundo helicóptero voando<br />
em último plano. No último plano da imagem, também se observa<br />
um prédio em ruínas. À primeira vista, o leitor que não conhece este<br />
local é incapaz de identificar que prédio é este e tão pouco a que país<br />
134 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
pertencem aqueles soldados e aqueles helicópteros. Não há também<br />
nenhuma legenda que possa oferecer ao leitor essas informações.<br />
No entanto, percebemos que a imagem invade o espaço textual,<br />
como que indicando uma imbricação entre esses dois modos semióticos<br />
que se complementam. O leitor, assim, é levado a ler o texto, ou pelo<br />
menos o início do primeiro parágrafo, que está na porção invadida<br />
pela fotografia, com vistas a preencher as lacunas que aquela imagem<br />
sozinha não pode preencher. Só então, ele identificará aquele prédio<br />
como a sede do governo do Haiti, e os soldados e helicópteros como<br />
pertencentes às forças armadas americanas, uma vez que naquela<br />
porção do texto lê-se: “A cena do desembarque ostensivo das forças<br />
americanas na sede destruída do governo do Haiti diz muito sobre<br />
o tipo de prioridade que rege a mobilização dos EUA naquele país”.<br />
Figura 2a. Processo narrativo de ação na imagem do editorial da Istoé<br />
Identificados os participantes, podemos agora fazer uma leitura<br />
mais satisfatória da sintaxe visual subjacente à fotografia. Como a<br />
Figura 2a ilustra, podemos notar vetores formados pelos helicópteros<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 135
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
e pelos corpos inclinados dos soldados que vão em direção ao palácio<br />
presidencial haitiano. Isso nos faz reconhecer, na imagem, a presença<br />
de um intenso processo narrativo de ação, que envolve, de um<br />
lado, as forças armadas americanas e, do outro, a sede do governo<br />
haitiano. Exercendo o papel de Ator, temos todo um grupo formado<br />
pelos soldados e os helicópteros. Ao prédio, portanto, cabe o papel<br />
de Meta neste processo, cuja tradução linguística poderia ser “As<br />
forças armadas americanas dirigem-se para o palácio presidencial<br />
haitiano” ou “As forças armadas americanas desembarcam no palácio<br />
presidencial haitiano”, ou ainda, como o título do editorial sugere,<br />
“As forças armadas ocupam o palácio presidencial haitiano”.<br />
Se observarmos também os participantes, focalizando não o<br />
que eles fazem, mas o que eles são, ou seja, se ao invés do processo<br />
narrativo de ação nos quais eles estão envolvidos, que é o processo<br />
mais saliente, enfocarmos os processos conceituais analíticos que lhes<br />
são encaixados, será possível captar outros sentidos que reforçam a<br />
ideia de hostilidade transmitida por aquele processo principal.<br />
Do lado das forças armadas, analisando os soldados<br />
individualmente, vemos que cada um deles encontra-se bem equipado<br />
com capacete, mochila e armas de alto calibre. Em comparação com o<br />
soldado do editorial de Veja, discutido anteriormente, não se vê muita<br />
diferença em relação a esses Atributos Possessivos, com exceção da<br />
arma que, naquele era menor e estava guardada no coldre. No entanto,<br />
enquanto no contexto daquele editorial (ver Figura 3.8a) tais atributos<br />
traziam a ideia de segurança, ou seja, a ideia de que quem estava<br />
ajudando o menino ferido era alguém bem preparado e equipado; no<br />
contexto do editorial de Istoé eles recebem uma conotação negativa,<br />
ou seja, de ofensa e agressividade. Considerando, agora, o grupo de<br />
soldados como um todo (Portador) e seus indivíduos como suas partes<br />
(Atributos Possessivos), chama-nos a atenção o número relativamente<br />
136 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
expressivo de componentes deste grupo, o que salienta o sentido de<br />
força de ataque. Por fim, os helicópteros, por seu grande porte, também<br />
transmitem imponência e contribuem para qualificarmos as forças<br />
armadas, o nosso Ator daquele processo principal, como altamente<br />
hostil e intimidante.<br />
Voltando-nos agora para a Meta, ou seja, o palácio presidencial,<br />
percebemos que seus atributos são totalmente contrários aos do Ator.<br />
O prédio encontra-se parcialmente destruído e fragilizado devido,<br />
podemos deduzir, à ação do terremoto. Tais características, colocadas<br />
em contraste com o poderio apresentado pelas forças armadas<br />
americanas, apenas agigantam a vantagem que aquele participante<br />
possui sobre o frágil edifício, que representa simbolicamente o Haiti.<br />
Aqui vemos um fator de semelhança entre esta imagem e a<br />
fotografia de Veja (ver Figura 1a), analisada na última sessão: em<br />
ambas, o Haiti (no editorial de Veja representado pelo menino<br />
ferido; no da Istoé representado pelo palácio presidencial) é retratado<br />
como vulnerável e afligido. Além disso, também em ambos, o Haiti<br />
assume o papel de Meta da ação de um participante estrangeiro, com<br />
a diferença de que na imagem do editorial de Veja tal ação era a de<br />
“prestar socorro” e aqui é a de “ocupar”, “tomar de conta”.<br />
Essa leitura nos faz concluir que a mensagem transmitida pela<br />
imagem do editorial da Istoé vai ao encontro da mensagem do texto do<br />
editorial, ou seja, a de representar os americanos de forma agressiva,<br />
passando a ideia de que eles estão mais preocupados em manter a<br />
ordem política do Haiti, utilizando-se de força militar ostensiva, ao<br />
invés de priorizarem a missão humanitária. Aliás, a imagem não apenas<br />
reforça o que o texto verbal argumenta, mas ela é, digamos, o principal<br />
trunfo utilizado pelo editorialista, Carlos José Marques, para defender<br />
seu ponto de vista. Isso pode ser dito baseado na forma enfática com<br />
que o texto faz referência à fotografia e à cena nela representada, como<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 137
Sinta e<br />
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f<br />
mostram os seguintes trechos, retirados do primeiro parágrafo: “A cena<br />
do desembarque ostensivo das forças americanas na sede destruída<br />
do governo do Haiti[...]”; “A marcha dos soldados armados para<br />
sinalizar ordem [...]’; “Com seus helicópteros Black Hawk descendo<br />
sobre o palácio presidencial, quiseram, simbolicamente, mostrar<br />
quem manda”. Desse modo, o editorialista aproveita-se do grande e<br />
imediato impacto que uma imagem pode gerar sobre os leitores de<br />
modo a sensibilizar decisivamente o público a aceitar sua opinião.<br />
Do ponto de vista dos sentidos interativos, notamos que os<br />
parâmetros de cor, contraste, luz e contextualização apresentados<br />
pela imagem seguem o padrão da fotografia colorida, o que nos faz<br />
afirmar que se trata de uma imagem com alto grau de modalidade<br />
naturalística. Sendo assim, tal fotografia é lida como verdadeira, ou<br />
seja, como mostrando um fato que realmente ocorreu, o que ajuda o<br />
editorialista na defesa de sua opinião.<br />
O contato codificado é o de oferta, uma vez que não há por<br />
parte de nenhum dos participantes representados um olhar em<br />
direção à câmera, ou melhor, ao leitor. Assim, os participantes estão<br />
ali para serem observados, à mercê da análise crítica e “impessoal”<br />
do receptor do editorial, que pode, seguindo o autor do texto, julgar<br />
suas ações negativamente, ou até, por outros motivos desconhecidos<br />
e não previstos, aprovar aquela operação militar.<br />
O tamanho da moldura utilizada na captação da imagem codifica<br />
uma distância social máxima entre os participantes representados e o<br />
leitor. Isso quer dizer que, para o leitor, os soldados podem ser vistos<br />
como personagens totalmente desconhecidos com os quais eles não<br />
dividem qualquer tipo de laço social. Eles estão tão distantes que suas<br />
qualidades físicas individuais não podem ser distinguidas, tornandoos<br />
meros tipos.<br />
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(UERN/GPET/GPSM)<br />
Quanto à perspectiva, observa-se o uso de um ângulo<br />
horizontal oblíquo, o que tem o potencial de transmitir um sentido<br />
de alheamento, o que faz com que o leitor encare o que está sendo<br />
mostrado pela imagem como não pertencente ao seu mundo. Além<br />
disso, nota-se que, verticalmente, a fotografia foi captada de um<br />
ângulo alto, o que dá ao observador poder simbólico em relação aos<br />
participantes representados. Portanto, ao leitor é consentido observar<br />
a imagem não só de uma distância que lhe permita virtualmente<br />
manter-se anônimo, mas também de um ângulo que lhe dá todo o<br />
poder de avaliar a cena observada do modo que achar melhor, mas<br />
preferivelmente do modo que o autor o induziu a pensar.<br />
Figura 3b. Estrutura Ideal-Real na imagem do editorial da Istoé<br />
Analisando os sentidos composicionais atrelados à imagem,<br />
percebe-se uma linha de estruturação formada pela linha do gramado<br />
que separa a zona inferior da zona superior da imagem (ver Figura<br />
3.10b). Embaixo, com valor de Real, encontram-se os soldados<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 139
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f<br />
americanos e a base do helicóptero mais proeminente; em cima,<br />
com valor de Ideal, predomina a cor cinza do prédio do governo<br />
haitiano. Esses valores de informação justificam-se pelo fato de que o<br />
prédio não representa somente o palácio presidencial, mas simboliza<br />
essencialmente todo o Haiti dizimado pelo terremoto; por outro lado,<br />
as forças armadas americanas possuem valor absoluto e prático, e<br />
representam exatamente as “forças armadas americanas” que vieram<br />
para tentar manter a segurança política daquele país.<br />
Observa-se que a parte inferior da imagem apresenta maior<br />
iluminação e cores mais vivas, além de aparecer em primeiro<br />
plano, aspectos que dão mais saliência a essa zona da imagem em<br />
contraposição aos tons cinza e sombrios da parte superior da fotografia,<br />
que está em último plano. Destacam-se, assim, as forças armadas e<br />
seu poderio como a informação mais relevante da imagem. Por outro<br />
lado, o prédio símbolo do Haiti é atenuado, revelando a tendência<br />
de representar o Haiti como um item de informação secundário, que<br />
aparece em segundo plano.<br />
Considerações finais<br />
O exame das imagens que compõem os editoriais da Veja<br />
e da Istoé nos fez ver que esses elementos produzem significados<br />
representacionais, interativos e composicionais relevantes para o<br />
entendimento total dos textos. O modo como a imagem representa<br />
determinado fato da realidade; o modo como ela cria uma relação<br />
virtual de credibilidade, contato, distância social, envolvimento<br />
e poder para com o leitor; e o modo como ela arranja seus<br />
participantes, dando destaque a uns e ocultando outros, agrupandoos<br />
ou individualizando-os e atribuindo-lhes determinados valores de<br />
informação por sua localização, tudo isso cria sentidos que perpetuam<br />
140 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
discursos sócio-historicamente marcados e cooperam na defesa dos<br />
pontos de vista do editorialista.<br />
A coincidência em relação ao período de publicação e ao<br />
tema dos editoriais nos possibilitou observar que os editorialistas<br />
e, por extensão, as revistas por eles representadas assumem, em<br />
relação ao mesmo fato da realidade, ou seja, o terremoto do Haiti,<br />
posições discursivas totalmente divergentes. O editorial da Istoé,<br />
focalizou a truculência americana e seu modo agressivo e imponente<br />
de “dar apoio” ao governo haitiano. Em contrapartida, no editorial<br />
da Veja, os estrangeiros, nos quais se incluem os americanos, são<br />
representados como heróis solidários que vieram trazer ordem e<br />
esperança à população afligida pelo desastre natural. Uma tendência<br />
comum em ambos os pontos de vista é a de representar o Haiti, seu<br />
povo e a tragédia por ele sofrida em segundo plano, como meros<br />
objetos (metas). Os editorais, por meio de suas seleções verbais e<br />
visuais, focalizaram a ação de participantes estrangeiros frente ao<br />
desastre natural, ao invés de chamarem a atenção para o desastre<br />
em si e seus efeitos para a população local. Através dos significados<br />
representacionais, interativos e composicionais atrelados às imagens,<br />
que são frutos das escolhas comunicativas dos editorais na confecção<br />
de seus textos, tais discursos são reforçados a fim de tornar mais efetivo<br />
o trabalho de convencimento do leitor.<br />
Além disso, foi demonstrado que os sentidos estabelecidos pelos<br />
elementos visuais dos editoriais investigados estabelecem uma relação<br />
dialógica com os sentidos transmitidos pelo texto verbal. Elementos<br />
linguísticos e não-linguísticos trabalham em conjunto para formar uma<br />
significação social global. Isso torna o processamento desses artefatos<br />
textuais uma atividade mais complexa e desafiadora, pois exige do<br />
leitor a perspicácia de integrar imagem e palavra no processamento<br />
do texto multimodal.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 141
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Referências<br />
AQUINO, L. D. Mecanismos de construção de sentidos no gênero editorial: aspectos<br />
verbais e visuais. Dissertação, Universidade do Estado do Rio G. do Norte-UERN, Pau<br />
dos Ferros, 2010.<br />
AQUINO, J. L. Visualidade da escrita e significação no gênero editorial. Dissertação,<br />
Universidade do Estado do Rio G. do Norte-UERN, Pau dos Ferros, 2011.<br />
DIONÍSIO, A. P. Multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. In: MARCUSCHI,<br />
L. A.; DIONÍSIO, A. P, Fala e Escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2005a.<br />
_____ _. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A. M. et. al. (Orgs.),<br />
Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas e União da Vitória/PR: Kaygangue, 2005b.<br />
FERNANDES, J. D. C. & ALMEIDA, D. B. L. Revisitando a gramática visual nos cartazes de<br />
guerra. In. ALMEIDA, D. B. L. (Org.), Perspectiva em análise visual: do fotojornalismo ao<br />
blog. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008.<br />
HALLIDAY, M. A. K. As bases funcionais da linguagem. In. DASCAL, M. (Org.), Fundamentos<br />
metodológicos da linguística. São Paulo: Global, v. 1 (Global universitária: Série linguagem,<br />
comunicação e sociedade), 1978.<br />
HODGE, R. & KRESS, G. Social semiotics – 1.ed., Ithaca – NY: Cornell University Press, 1988.<br />
JEWITT, C. & OYAMA, R. Visual meaning: a social semiotic approach, In: van LEEUWEN, T<br />
& JEWITT, C.. (Orgs.). Handbook of visual analysis. London: SAGE Publications Ltd., 2001.<br />
KRESS, G. R. & van LEEUWEN, T. Reading Images: the Grammar of Visual Design. 2.ed.<br />
London and New York: Routledge, 2006.<br />
van LEEUWEN, T. Introducing social semiotics. London and New York: Routledge, 2005.<br />
SANTOS, F. R. S. Multimodalidade e opinião: uma análise dos elementos visuais de editoriais<br />
das revistas Época e Veja. Monografia. UERN, Pau dos Ferros, 2009.<br />
142 l Anais Eletrônicos - 2011
OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />
(UERN/GPET/GPSM)<br />
SOUZA, M. M. de; AQUINO, L. D.; SANTOS, F. R. S & TEIXEIRA, F. C. Q. R.. A multimodalidade<br />
no gênero editorial. Relatório técnico. UERN: Pau dos Ferros, 2008.<br />
SOUZA, M. M. de. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Tese,<br />
Universidade Federal de Pernambuco-<strong>UFPE</strong>, Recife, 2006.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 143
Resumo<br />
Este artigo, situado nos estudos sobe a história da língua portuguesa, tem por objetivo<br />
principal analisar a transitividade no Breue memorial dos pecados e cousas que<br />
pertence ha cõfissão, publicado no ano de 1521, de autoria de Garcia de Resende.<br />
Em um primeiro momento, faz-se uma sucinta contextualização sócio-histórica<br />
do documento no momento de sua produção e circulação e outros aspectos<br />
importantes. Em seguida, faz-se a análise dos processos presentes no documento<br />
analisado, utilizando o aporte teórico da Linguística Sistêmico-Funcional, proposta<br />
por Halliday, que vê a língua como um “sistema semiótico” efetivado pelo uso.<br />
Palavras-chave: História da Língua Portuguesa; transitividade; memorial.<br />
Abstract<br />
This article, which lies on studies about the history of the Portuguese language, aims<br />
to analyze the transitivity in Breue memorial dos pecados e cousas que pertence(m<br />
)ha cõfissão. It was published in 1521 and written by Garcia de Resende. At first,<br />
it is a brief socio-historical context of the document at the time of its production<br />
and circulation and other important aspects. Then, we analyze the processes discussed<br />
in the document, using the theoretical approach of Systemic Functional<br />
Linguistics, proposed by Halliday, who understands language as a “semiotic system”,<br />
effected by the use.<br />
Keywords: History of Portuguese; transitivity; memorial.
Transitividade e efeitos de poder<br />
no Breue memorial dos pecados e<br />
cousas que pertence(m) ha cõfissã,<br />
de Garcia de Resende 1<br />
Introdução<br />
Hérvickton Israel de OLIVEIRA NASCIMENTO<br />
(<strong>UFPE</strong>/PROHPOR 2 /CAPES)<br />
O século XVI português apresenta uma sucessão de<br />
acontecimentos que enchem os olhos das diversas áreas do<br />
conhecimento científico: filosofia, filologia, direito, história,<br />
linguística diacrônica, história da linguagem etc. A riqueza de fatos<br />
dos mais diversificados campos advém também de mudanças no<br />
pensamento do homem ao longo do tempo, que podem ser traduzidas<br />
pelo humanismo erasmista, responsável por fundir em Portugal “o<br />
sentido do profano, em termos de valores e de saberes [...]; o anseio<br />
evangélico e culturalmente avançado do humanismo cristão; e a<br />
1. Este artigo é continuação, e recorte, do trabalho de conclusão de curso (cf. OLIVEIRA NASCIMENTO, 2010),<br />
orientado pela Prof. Drª Rosa Virgínia Mattos e Silva, que teve como objetivo principal a elaboração de uma<br />
edição do Breue memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã de Garcia de Resende. A originalidade<br />
do presente artigo se faz pela análise da transitividade na referida obra. O artigo também é fruto dos estudos<br />
empreendidos na disciplina Sintaxe, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>, ministrada<br />
pela Profª. Drª Medianeira Souza, a quem agradeço a leitura cuidadosa, pontuando questões um tanto obscuras,<br />
que poderiam comprometer o entendimento do leitor. Os erros remanescentes são, obviamente, de minha<br />
inteira responsabilidade.<br />
2. Programa para a História da Língua Portuguesa (cf. www.prohpor.ufba.br).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 145
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
consciência das realidades históricas nacionais” (RODRIGUES,<br />
1981, p. 39 e 40).<br />
A busca pelo conhecimento que vai além da religião mais o<br />
sentimento de necessidade de novos arranjos de ordens ritualística<br />
e dogmática no seio da igreja hegemônica de então, somando-se a<br />
isso a emergência de uma consciência nacional, intensificada ainda<br />
mais pela expansão além mar, formatarão o modus vivendi do homem<br />
português do século XVI.<br />
Falar sobre o século XVI europeu e, aqui, o português, faz<br />
lembrar inevitavelmente a crise religiosa e o papel que o humanismo<br />
teve como veículo de contestação da suprema autoridade clerical.<br />
Segundo Rodrigues (1981, p. 14), essa crise vem desde o século XIV,<br />
“com o cisma do papado, a feudalização do alto clero, a decadência dos<br />
institutos religiosos, principalmente dos monásticos, e a formalização<br />
da prática religiosa dos fiéis”. Mais tarde, mesmo com o início dos<br />
movimentos de contestação dos abusos por parte das autoridades<br />
clericais, a igreja hierárquica não mudará substancialmente a sua<br />
postura autoritária, cuja confirmação e divulgação dar-se-á através da<br />
produção documental religiosa, sobretudo no século XVI. Meirinhos<br />
(2006, p. 29) 3 afirma que, de um universo de 457 obras publicadas, 163<br />
são relativas à religião, nas quais se encontram livros de hagiografia,<br />
liturgia, espiritualidade, teologia moral e confissões. Importante<br />
lembrar que as taxas de alfabetização em Portugal, no século XVI,<br />
apresentam números ínfimos. Segundo Souza apud Mattos e Silva<br />
(2002, p. 30), a “elite intelectual” letrada medieval não ultrapassaria o<br />
número de 2%. Ainda assim, boa parte dessa porcentagem corresponde<br />
aos membros do clero, ou seja, dos segmentos nobres da sociedade.<br />
A produção, leitura e interpretação do conhecimento eram, então,<br />
3. O autor levantou dados referentes ao catálogo da livraria da Biblioteca Municipal do Porto.<br />
146 l Anais Eletrônicos - 2011
TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
via de regra, controlados pelos setores eclesiásticos em consonância<br />
com o sistema monárquico.<br />
O Breue memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã,<br />
documento aqui estudado, de Garcia de Resende, publicado em 1521<br />
pela Casa de Germão Galharde, surge dentro desse contexto sóciohistórico,<br />
cultural e religioso de grande efervescência em Portugal. Seu<br />
caráter prescritivo-normativo, no qual dita a postura do pecador no<br />
momento de confessar suas faltas ao sacerdote clerical, marca bem de<br />
qual lado estava o poder da palavra, o poder da linguagem, conferido<br />
ao representante do divino na terra, o sacerdote.<br />
O presente trabalho, inserido no âmbito dos estudos históricos<br />
e sociais da línguagem, objetiva apresentar o sistema de transitividade<br />
presente no Breue memorial e os efeitos de sentido produzidos no leitor,<br />
cuja relação com o autor se dá de maneira totalmente assimétrica. Para<br />
tanto, utilizou-se o aporte teórico da Linguística Sistêmico-Funcional<br />
(LSF) proposta por Halliday (1985), que vê a língua como um “sistema<br />
semiótico” efetivado pelo uso (cf. GOUVEIA, 2009; FURTADO DA<br />
CUNHA; SOUZA, 2007).<br />
Aporte teórico-metodológico de análise<br />
Localizada no polo funcionalista dos estudos da língua, a LSF<br />
constitui-se em um aparelho teórico-metodológico, e descritivo, que<br />
vê a língua em seu contexto de uso. Assim, diferentemente de uma<br />
teoria inserida no polo formalista, em que a análise linguística se dá<br />
exclusivamente pelos fatores internos a ela própria, a LSF procura<br />
analisar e descrever o fato linguístico a partir do uso, levando em<br />
consideração os fatores extra-linguísticos, pois acredita que, para a<br />
obtenção de resultados descritivos válidos de análise, deve-se também<br />
considerar “as necessidades que os falantes impõem às línguas”<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 147
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
(GOUVEIA, 2009, p. 14). Vê-se, portanto, que, para a teoria aqui<br />
em questão, existe uma relação entre sistema e função. Ora, embora<br />
esta relação já estivesse prevista nas ideias do Círculo Linguístico de<br />
Praga, os estudos linguísticos empreendidos na primeira metado do<br />
século XX estavam voltados apenas para a parte estrutural da língua,<br />
alijando-a de sua relação com os usuários e a sociedade.<br />
Concebendo a língua como sistema de escolhas que obedecem<br />
ao cumprimento de funções, Halliday aproxima a ideia que se tem<br />
de sistema à função. Para os estudos que se dedicam à história da<br />
língua isso é de grande valia. Afinal, a língua passada, materializada<br />
nos textos remanescentes, também possuía funções à disposição do<br />
falante/escritor.<br />
As funções da linguagem para a LSF irão bem mais além da<br />
ideia que se tem de comunicação. A linguagem serve para codificar<br />
ou significar as experiências a que os seus usuários são submetidos<br />
no dia a dia, sendo elas relativas ao mundo exterior (social) ou<br />
interior (psicológico) (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007,<br />
p. 21), esta função é denominada de metafunção 4 ideacional. A<br />
linguagem também serve para estabelecer relações entre seus utentes,<br />
ajudando a “codificar significados de atitudes, interacção e relações<br />
sociais, isto é, significados interpessoais”, possuindo, portanto, uma<br />
metafunção interpessoal. Por fim, a linguagem serve para organizar<br />
de forma coerente e linear as informações geradas pelas metafunções<br />
representacional e interpessoal, servindo a uma metafunção textual.<br />
Interessante notar que as metafunções “dão lugar a componentes<br />
de sistemas de escolhas de caracterização semântica” (GOUVEIA,<br />
2009, p. 17). Daí vem a relação entre sistema e função, que,<br />
4. A partir de agora, utilizar-se-á o termo metafunção, por conta de seu caráter abstrato e por se constituir como<br />
núcleo de extrema importância para a LSF (cf. HALLIDAY apud GOUVEIA, 2009).<br />
148 l Anais Eletrônicos - 2011
TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
materializados no texto, geram significados no uso. O texto é,<br />
então, a materialização, ou instanciação, do sistema de escolhas,<br />
que, por conseguinte, geram os significados. A língua é para a LSF,<br />
um potencial de significado, sendo este modelo de base semântica<br />
(op. cit.).<br />
A transitividade dentro da linguística sistêmico-funcional<br />
Entre as metafunções elencadas acima, a transitividade se<br />
localiza na função ideacional da linguagem. É na transitividade que o<br />
usuário da língua irá encontrar a sua forma de expressar experiências<br />
e vivências através dos recursos lexicogramaticais disponibilizados.<br />
Assim, é na transitividade que se dará a representação de ações e<br />
experiências, por meio dos processos, participantes e circunstâncias,<br />
“que permitem analisar quem faz o quê, a quem e em que circunstâncias”<br />
(FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007, p. 54).<br />
Os processos (verbos), divididos entre principais e secundários,<br />
dizem respeito aos elementos codificadores de ações, estados,<br />
sentimentos, realizando-se através do sintagma verbal, com ou sem<br />
o envolvimento de participantes. Estes representados por meio do<br />
sintagma nominal. As circuntâncias se configurarão como elementos<br />
que trarão “informações adicionais” (op. cit.) aos processos e serão<br />
materializadas por meio de advérbios e sintagmas adverbiais.<br />
Há no sistema de transitividade dois tipos de processos,<br />
os principais e secundários. Os principais são os Materiais,<br />
Mentais e Relacionais; os secundários, os Verbais, Existenciais e<br />
Comportamentais.<br />
Os processos Materiais são os que designam ações. Tem como<br />
participantes, basicamente: Ator, responsável pela ação; Meta, “para<br />
quem o processo é direcionado”, afetado, assim, pela ação (op. cit.);<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 149
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Extensão, o que não sofre afetamento, e pode ser entendida como<br />
um complemento da ação, especificando-a (op. cit.); Beneficiário,<br />
participante que se beneficia da ação.<br />
Os processos Mentais dizem respeito à apreensão do mundo.<br />
Não compreendem ações como prototipicamente concebemos,<br />
mas atividades que englobam percepção (perceber e notar, p. ex.),<br />
afetividade (amar e gostar, p. ex.) e cognição (saber e compreender,<br />
p. ex.). Os participantes envolvidos nos processos mentais são o<br />
Experienciador, aquele que vivencia o processo, e o Fenômeno,<br />
aquilo que é vivenciado, ou experienciado. Importante dizer que o<br />
fenômeno pode não ser necessariamente realizado no processo, como,<br />
por exemplo, no caso da frase “Maria sabe” (GHIO & FERNÁNDEZ,<br />
2008, p. 104).<br />
Os processos Relacionais estabelecem relações entre partes<br />
da oração, indicando: intensidade, qualificando uma entidade;<br />
circunstância, localizando espacialmente ou temporalmente a<br />
entidade; e possevidade, indicando que a entidade pertence ou é<br />
possuída. Os precessos Relacionais podem ser classificados como<br />
Atributivos ou Identificadores. Nestes, existe uma relação entre<br />
o participante, denominado de portador, e um outro participante,<br />
denominado de atributo, entidade que qualifica o Portador. Já no<br />
caso dos identificadores, “há a definição ou identificação de uma<br />
entidade através de outra” (FURTADO DA CUNHA; SOUZA,<br />
2007, p. 59). Os participantes dos processos ralacionais, nesse caso,<br />
são a Característica, “entidade definida”, e o Valor, que é “o termo<br />
definidor ou identificador” (op. cit.).<br />
Os processos Verbais são aqueles responsáveis pelo dizer, sendo<br />
um “desprendimento dos processos mentais” (GHIO & FERNÁNDEZ,<br />
2008, p. 108). São exemplos de processos Verbais: dizer, contar, falar,<br />
perguntar etc. Os participantes envolvidos são: Dizente, participante<br />
150 l Anais Eletrônicos - 2011
TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
obrigatório, responsável pela ação de falar; o Receptor, participante não<br />
necesserariamente obrigatório, que se constitui como uma espécie de<br />
alvo, ou, melhor dizendo, destinatário, ao qual a mensagem é dirigida;<br />
e Verbiagem, que pode ser entendida como a informação obtida por<br />
meio e a partir do processo Verbal.<br />
Os processos Existenciais são relativos ao que “existe e acontece”<br />
(FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007, p. 59), possuindo<br />
apenas um participante, denominado de Existente. Esses processos<br />
se realizam através dos verbos haver e existir. Como este trabalho<br />
busca descrever uma sicronia passada, faz-se necessário esclarecer<br />
que, na história da língua portuguesa, relativamente ao seu período<br />
arcaico, o verbo existir, com valor existencial, conforme Mattos e Silva<br />
(2008, p. 14), não ocorria. O verbo então responsável por codificar o<br />
processo existencial no período arcaico da língua era o verbo haver 5 .<br />
Hoje, conforme observa a autora, “existir e mais recentemente ter vêm<br />
afastando haver das estruturas exitenciais (cf. há muita gente pobre /<br />
existe muita gente pobre / tem muita gente pobre)”.<br />
Por fim, os processos Comportamentais são aqueles responsáveis<br />
por codificar comportamentos, sejam eles psicológicos, fisiológicos<br />
ou mentais. Há uma linha tênue que separam esses processos dos<br />
processos materiais e mentais, pois são, “em parte ação, em parte<br />
sentir” (FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007; GHIO &<br />
FERNÁNDEZ, 2008). Possuem, obrigatoriamente, um participante,<br />
que é Comportante, e o Behaviour, não obrigatório, responsável por<br />
estender o processo.<br />
5. Embora a LSF não tenha surgido a partir do interesse dos estudos históricos da língua, Halliday apud Ghio<br />
e Fernández (2008), reconhece a variação linguística como propriedade da língua. Como se sabe, a variação<br />
linguística pode ou não resultar na mudança. No âmbito dos estudos diacrônicos, tem-se a aplicação de teorias<br />
como o gerativismo, estruturalismo e o funcionalismo norte-americano (gramaticalização). Propõe-se, então,<br />
aqui, um estudo funcionalista sistêmico-funcional na agenda dos estudos sobre história da língua.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 151
Sinta e<br />
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f<br />
A fim de que se possa ter uma ideia do corpus em que os<br />
processos acima são realizados, a próxima seção tratará de o descrever,<br />
assim como tratará da metodologia de recolha de dados.<br />
Entre o autor, a confissão e o poder<br />
O Breue memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã,<br />
publicado em 1521 trata basicamente de uma lista de pecados a que<br />
o fiel deveria evitar e, caso encorrendo em algum, da necessidade de<br />
se redimir por meio da confissão, proferida a uma autoridade religiosa<br />
pertencente à igreja hegemônica de então.<br />
Escrevendo um texto cujo gênero se enquadra num<br />
confessionário, Garcia de Resende considera a confissão como<br />
condição primordial para o pecador alcançar a graça pelo perdão de<br />
suas faltas. Uma pergunta, contudo, deve ser feita: com que autoridade<br />
o autor faz isso? É preciso primeiro problematizar o conceito de autor,<br />
como o faz Chartier (1998, p. 32), quando, recorrendo ao francês<br />
antigo, apela para a distinção entre écrivain, “aquele que escreveu<br />
um texto que permanece manuscrito, sem circulação”, e auteur,<br />
“qualificado como aquele que publicou obras impressas”. A palavra<br />
circulação pode ser assim entendida como o sema ou traço diferencial<br />
entre o écrivain (escritor) e o auteur (autor).<br />
Para o escritor tornar-se um autor, ele teria de passar por todos<br />
os perigos que poderiam decorrer de sua obra. Como bem assinala<br />
Chartier (1998, p. 34), “Antes de ser o detentor de sua obra, o autor<br />
encontra-se exposto ao perigo pela sua obra”. E isso poderia resultar<br />
ou em um condenamento na fogueira, ou em recompensas e privilégios<br />
outorgados pela nobreza.<br />
Por ser um autor que tinha livre acesso à corte, pois foi uma<br />
espécie de funcionário do rei Dom João II de Portugal, tendo, mais<br />
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TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
tarde, igual acesso à corte manuelina, escrevendo durante a sua vida,<br />
entre outras obras, poesias voltadas ao dinamismo palaciano 6 , não é<br />
difícil entender o motivo pelo qual Garcia de Resende não trilhou o<br />
caminho à fogueira. Deduz-se, pelo exposto, que o autor não fala, no<br />
Breue memorial, por ele mesmo. Pelo contrário, o seu discurso vem<br />
carregado de autoridade que ultrapassa os limites de sua subjetividade.<br />
A autoridade de Garcia de Resende é revestida de poder institucional,<br />
sua legitimidade é alcançada não por “seu próprio nome” ou por sua<br />
“própria autoridade”, mas por se constituir em “agente que age na<br />
qualidade de depositário provido de um mandato” (BOURDIEU,<br />
2008, p. 93).<br />
É com essa autoridade que Garcia de Resende, em seu memorial,<br />
confirma o poder da igreja quando instrui repetidas vezes a confissão<br />
de pecados diversos, inclusive os pecados da ordem do sexo ou, usando<br />
suas próprias palavras, “pecados contra a natura”.<br />
Sobre a confissão, diz Michel Foucault em sua História da<br />
sexualidade: a vontade de saber que o homem ocidental tornou-se um<br />
animal confidente:<br />
Confessa-se – ou se é forçado a confessar. Quando a confissão<br />
não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior,<br />
é extorquida; desencavam-na na alma ou arrancam-na ao<br />
corpo. A partir da Idade Média, a tortura a acompanha como<br />
uma sombra, e a sustenta quando ela se esquiva: gêmeos<br />
sinistros. Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais<br />
sangrentos poderes têm necessidade de confissões. O homem,<br />
no Ocidente, tornou-se um animal confidente (FOUCAULT,<br />
1988, p. 59).<br />
6. Informações extraídas de Andréé Crabbé Rocha em Tavani e Lanciani (1993).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 153
Sinta e<br />
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f<br />
Pode-se ver que o valor dado ao sistema de confissão não é uma<br />
coisa nova. Vem desde a Idade Média, passando pelo Renascimento<br />
Cultural e se acelerando a partir do século XVIII. Os domínios<br />
contemporâneos da confissão, conforme Foucault (1988, p. 35),<br />
não ficou somente na religião, estendeu-se à biologia, medicina,<br />
psiquiatria, psicologia, moral e à crítica política.<br />
Como um bom documento religioso do século XVI, o Breue<br />
memorial, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa, apresenta uma<br />
série de recursos visuais, como letrinas e letras ornadas, responsáveis<br />
por invocar em seu leitor reverência e solenidade, como mostra a<br />
figura 1 adiante. O tipo caligráfico usado, as cores das rubricas, em<br />
vermelho, os sinais de fim de texto, apresentando cores variadas e<br />
ao mesmo tempo fazendo lembrar os velhos códices medievais são<br />
aparatos que entram em cena para produzir, também, efeitos de poder.<br />
154 l Anais Eletrônicos - 2011
TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
Fig. 1: Primeira página do Breue memorial<br />
contendo recursos visuais próprios do momento de sua produção<br />
Metodologia empregada para recolha e análise de dados<br />
Para coletar os processos contidos no documento, procedeu-se a<br />
uma edição, o que torna este trabalho também de natureza filológica, em<br />
que foram preservadas, na medida do possível, as características gráficas<br />
e grafemáticas do texto. Aquelas características em que foram inviáveis<br />
a transcrição, foram devidamente descritas em notas de rodapé.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 155
Sinta e<br />
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f<br />
Feita a edição, para obtenção dos dados, foi utilizado o software,<br />
empregado em estudos lexicológicos e lexicográficos, Wordsmith.<br />
Este programa é capaz de gerar toda a lista de palavras desde que os<br />
textos rodados sejam previamente “limpos”, ou seja, livres de qualquer<br />
caracter complexo (“e”, p. ex. em que o til em cima do “e” pode causar<br />
uma má leitura no momento de gerar as listas). O Wordsmith é capaz<br />
também de quantificar também as ocorrências e suas porcentagens.<br />
Sabendo-se das limitações dessa ferramenta para estudos que não<br />
abrangem a área da lexicologia, pois ela é incapaz de gerar os contextos<br />
dos itens de palavras obtidos, procurou-se “filtrar” e usar aquilo que<br />
serviria para o estudo. Assim, verificou-se os processos existentes na<br />
lista gerada, isoladamente, e, a partir daí, foi-se para o texto para, só<br />
assim, classificá-los. A próxima seção trata dos processos obtidos e<br />
seus contextos dentro do Breue memorial.<br />
Os processos no Breue memorial<br />
De um total de 531 processos quantificados no Breue memorial,<br />
obtiveram-se os seguintes dados: 278 processos materiais (comer,<br />
matar, pecar, quebrar etc); 44 processos mentais (amar, gostar, saber,<br />
ver etc), 139 processos relacionais (ser, estar, ter etc), 45 processos<br />
verbais (confessar, dizer, falar etc) , 11 processos existenciais (haver)<br />
e 14 processos comportamentais (conversar, dormir, ouvir etc). No<br />
gráfico abaixo, uma representação dos dados quantificados:<br />
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TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
Os processos materiais foram os que mais ocorreram no corpus<br />
analisado. Responsáveis por “planos de ação e acontecimento”<br />
(SOUZA, 2006, p. 11), esses processos se fazem presentes também<br />
nos pecados que devem ser evitados pelo fiel. Importante dizer quão<br />
poder a igreja hierárquica do século XVI possuía para ditar o que era<br />
ou não pecado e o que deveria ser obrigatoriamente confessado. Não<br />
se deve esquecer que no ano de publicação do Breue memorial, a Igreja<br />
estava sendo duramente criticada pelos humanistas em relação aos<br />
seus dogmas e sistema litúrgico, como falado anteriormente. Mesmo<br />
assim, com o quase despontar da Reforma, a Igreja ainda detinha<br />
tamanho poder que continuava a ditar as ações de seus fiéis e mesmo<br />
daqueles que vinham de encontro aos seus preceitos. Se há uma<br />
definição para o processo pecar no documento em questão, pode-se<br />
dizer que pecar é tudo aquilo que afasta o homem da Igreja e de Deus,<br />
como o pecado comer (demais) do exemplo (1). Abaixo alguns tipos<br />
de processos materiais encontrados.<br />
(1) Se por comer e beber me esque //<br />
ço de deos ou do que deuo fa<br />
zer. [...] p. 24<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 157
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
(2) Se forniguey com virge: e de<br />
que sorte ou estado. Se cõ frei<br />
e quãto tenpo e o luguar se era<br />
sagrado [...]. p. 13<br />
(3) Se me toquey desonesta<br />
mete ou pequey cõtra natura. Se<br />
tiue para isso vontade nõ podendo<br />
por obra. [...]. p. 14<br />
(4) [...] Se comprey<br />
em menos preço e vendi em muy<br />
to mays nõ auendo melhora [...]. p. 15 e 16<br />
As confissões provenientes dos pecados do sexo deverão ser<br />
acompanhadas de toda a minúcia possível, como nos exemplos (2)<br />
e (3). Quanto mais detalhes, melhor. Dessa forma, “as insinuações<br />
da carne: pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites,<br />
movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar,<br />
agora, e em detalhes, no jogo da confissão e da direção espiritual”<br />
(FOUCAULT, 1988, p. 23).<br />
Já no exemplo (4), fica claro que quem podia enriquecer se<br />
utilizando de meios como a usura, era apenas a Igreja. Dona de<br />
infinitos lotes de terras doadas por reis e rainhas católicos, a Igreja,<br />
desde a Idade Média, foi uma exímia instituição cobradora dos altos<br />
tributos. Seu fiel, contudo, não podia comprar algo e vender muito<br />
mais além do preço, pois isso se constituía pecado merecedor de<br />
confissão.<br />
Os processos mentais contidos no Breue memorial evidenciam o<br />
que o fiel deve saber, acreditar, apreciar. Em (5), está um dos maiores<br />
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TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
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NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
mandamentos do mundo cristão, que é “amar a Deus sobre todas as<br />
coisas e ao próximo como ti mesmo”. Nota-se aí presente também no<br />
documento de Garcia de Resende um mandamento de humildade que<br />
leva o fiel a um grande crescimento espiritual, chegando, portanto,<br />
perto de Deus. Amar a Deus em qualquer situação, resignadamente,<br />
e ao próximo como assim é dito nas escrituras.<br />
Os homens e as mulheres do século XVI também não poderiam<br />
esquecer um pecado sequer que os rondasse. Não se pode esquecer<br />
que a Igreja cristã hegemônica levou para os séculos pós Idade<br />
Média muitos de seus dogmas e rituais. Encucar o medo e a eterna<br />
vigilância sobre si mesmo é o que se pretende quando o sacerdote<br />
clerical prescreve que não se deve esquecer dos pecados, como no<br />
exemplo (6).<br />
Saber as “coisas que pertencem à salvação” está na lista também<br />
dos processos mentais utilizados no corpus, no exemplo (7). Essas<br />
“coisas” necessárias dizem respeito aos sacramentos, que, segundo Le<br />
Goff (2010), eram, junto com a Teologia, instrumentos de dominação.<br />
Os sacramentos dizem respeito aos sete pecados capitais, os sete dons<br />
do Espírito e os sete sacramentos, devidamente firmados a partir do<br />
século XII e todos registrados no Breue memorial do século XVI.<br />
(5) Se tenho vontade para amar<br />
deos sobre todallas cousas e<br />
ao prouximo como a my mesmo [...] p. 35<br />
(6) [...] E assi se cuidey<br />
be en meus pecados para me lem<br />
brare todos e me nõ esquecer nen<br />
hu [...]. p. 6<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 159
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f<br />
(7) Os sete doões do spiritu sancto sam<br />
estes. Saber. Cõselho. Temor Pie<br />
dade / çieçia / fortaleza / etendimeto [...]<br />
Se sey as cousas que pertençe a<br />
minha saluaçã. Se tenho cõ //<br />
selho no que faço e ey de fazer [...]. p. 38<br />
Os processos relacionais são responsáveis por “definir, caracterizar<br />
e identificar, atribuindo qualidades, posse ou circunstâncias, e assim<br />
construir as experiências do mundo e as experiências de nossa<br />
consciência” (SOUZA, 2006, p. 136). Também ocupam o segundo<br />
lugar em ordem numérica de importância no documento, com 139<br />
ocorrências. Os verbos ter e ser no item (8) dizem respeito a um dos<br />
ensinamentos cristãos, as bem-aventuranças, em que prescrevem ao fiel<br />
possuir um coração limpo e ser, ainda, pacífico para com o próximo.<br />
O item (9) segue no mesmo raciocínio do anterior, só que desta vez<br />
mostrando o que o pecador não deve ter em mente, que é a autoconfiança<br />
de achar que suas faltas serão perdoadas algum dia ou se<br />
acostumar com o pecado.<br />
(8) Se tenho limpo coraçam e lim //<br />
pas obras.<br />
Se sam pacifico e tenho paz cõ os<br />
prouximos. p. 40<br />
(9) [...] Se teho<br />
grãde confiãça na misericordia de<br />
deos que me perdoara sem fazer pe<br />
deça. Se estou tã acostumado a pe //<br />
car que tenho os pecados em pou<br />
co. Se tenho esperãça de lõgua vi //<br />
da para em velho me emedar [...]. p. 8<br />
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NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
O dizer, obviamente, terá espaço em um documento destinado<br />
a sondar e extorquir as palavras, as ações, os sentimentos de homens<br />
e mulheres no século XVI. O processo ultilizado então para isso é o<br />
verbal. Os exemplos nos itens (10) e (11) mostram os dois verbos mais<br />
recorrentes desse processo: dizer, com 22 ocorrências; e confessar, com<br />
11. O forçar a dizer, a confessar não são, como se sabe, instrumentos<br />
de coerção a que as instituições lançam mão para se firmarem. Isso<br />
vem desde a Idade Média, passando pelo Renascimento Cultural e<br />
vai se acelerando a partir do século XVIII.<br />
(10) Depois da oraçã acabada e<br />
posto em juelhos aos pees do cõfes //<br />
sor cõ muyto acatameto. E o rosto<br />
baixo. E as molheres cuberto por<br />
euitar escandallo. farey ho sinal<br />
da cruz e direi a confissam jeeral<br />
e após ella estas palauras.<br />
[...] DIguo minha culpa a Deos e a<br />
santa maria e a vos padre de<br />
nam vijr a este sancto sacrameto<br />
da cõfissam / com aquella contriçã<br />
e door de meus pecados [...]. p. 3<br />
(11) [...] e desta manei<br />
ra confessarey todos aqueles em<br />
que pequey e suas çircunstançias [...] p. 3<br />
Os processos existencias, que, no português contemporâneo,<br />
são representados pelos verbos haver e existir, só ocorrem no corpus<br />
analisado por meio do primeiro. O verbo existir, pelo menos no<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 161
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português arcaico, segundo Mattos e Silva (2008), pelo menos no<br />
extenso corpus que investigou, não ocorre até o século XV. O Breue<br />
memorial, de 1521, não tem como verbo que denote existência outro<br />
senão o verbo haver, com 11 ocorrências.<br />
(12) Se quero que em praticas ou per //<br />
fias valha senpre o que diguo. Se<br />
quero que me tenham por virtuo<br />
so sem no ser. Se folguo de me lou<br />
uare do que mim nom ha [...]. p. 21<br />
(13) [...] se estou ou encor //<br />
ri em alguua escomunhão e<br />
por que causa e quanto tenpo ha. p. 5<br />
Finalmente, os processos Comportamentais, relativos às ações<br />
de comportamento – que podem ser psicológicos, fisiológicos ou<br />
verbais – ocorrem 13 vezes no documento.<br />
(14) SE tenho pobreza voltuntaria<br />
para nom prezar as riquezas.<br />
Se sã mãsso em as enjurias e per<br />
secuções que me fezeram.<br />
Se choro meus pecados e os com<br />
fessey como deuia. p. 40<br />
(15) [...] Se como sobre po //<br />
se / ou mais por apetito que por ne<br />
cessidade. Se durmo muyto por<br />
esta causa. p. 25<br />
162 l Anais Eletrônicos - 2011
TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
No item (14), tem-se o verbo chorar como decorrente da ação<br />
de pecar e comportamento necessário também à confissão. Já no item<br />
(15), tem-se o processo dormir, enquadrado no pecado da preguiça, dos<br />
sete pecados capitais, associado a outro pecado da mesma natureza,<br />
que é comer. Interessante notar o uso do sistema de transitividade<br />
presente em quase toda a lista de pecados no Breue memorial, o que<br />
nos faz acreditar que materializar o pecado textualmente utilizando a<br />
sua forma em SN não produz tanto efeito de sentido como marcá-lo<br />
como ação, no verbo, por meio dos processos.<br />
Considerações finais<br />
Pretendeu-se neste artigo mostrar, com o aporte teórico da<br />
Linguística Sistêmico-Funcional, os processos Materiais, Mentais,<br />
Relacionais, Verbais, Existenciais e Comportamentais no Breue<br />
memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã, do ano de 1521,<br />
de autoria de Garcia de Resende.<br />
Constatou-se, então, que de 531 processos quantificados: 278<br />
são materiais, 44 mentais, 139 relacionais, 45 verbais, 11 existenciais<br />
e 14 comportamentais. Por se tratar de um documento prescritivonormativo,<br />
em que são ditadas as formas (ações) de conduta de uma<br />
sociedade, os processos materiais tiveram um número de ocorrências<br />
mais expressivo. Em seguida, e em aparente contradição, tem-se os<br />
processos relacionais, provavelmente por significarem aquilo que o<br />
fiel devia “ter em mente”, “ter no coração” ou “ser para alcançar a<br />
salvação”.<br />
Foi também objetivo deste trabalho apresentar uma “nova<br />
forma” de se fazer estudo diacrônico na língua. De fato, não é fácil<br />
aliar, em pesquisas desta natureza, aspectos sociais e linguísticos.<br />
Porém, a Linguística Sistêmico-Funcional, embora não preocupada a<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 163
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
priori com a mudança linguística, serviu para suprir esse lado, levando<br />
em consideração não apenas os fatores estruturais da língua, como<br />
também o social e funcional.<br />
Referências<br />
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. 2 ed. Trad. Sérgio Miceli et al. São<br />
Paulo: EDUSP, 2008.<br />
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo C. C. Moraes.<br />
São Paulo: Inprensa Oficial do Estado de São Paulo; Editora UNESP, 1998.<br />
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza<br />
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. São Paulo: Graal, 1988.<br />
FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />
contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />
GHIO, Elsa; FERNÁNDEZ, María Delia. Linguística Sistémico Funcional. Aplicaciones a la<br />
lengua española. 1 ed. Santa Fé: Universidade Nacional de Litoral; Waldhuter Editores, 2008.<br />
HALLIDAY, Michael A. K. An introduction to functional grammar. 2 ed. London: Arnold, 1985.<br />
LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.<br />
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português arcaico: uma aproximação. 2 v. Lisboa:<br />
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008.<br />
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Reconfigurações socioculturais e linguísticas no Portugal<br />
de quinhentos em comparação com o período arcaico. In: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia;<br />
MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes (orgs.). O português quinhentista: estudos<br />
linguísticos. Salvador: EDUFBA, 2002.<br />
MEIRINHOS, J. F. Editores, livros e leitores em Portugal no século XVI: a coleção de<br />
impressos portugueses da BPMP. In: Tipografia portuguesa do século XVI nas colecções da<br />
BPMP. Catálogo. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 2006.<br />
164 l Anais Eletrônicos - 2011
TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />
QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />
NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />
OLIVEIRA NASCIMENTO, Hérvickton Israel de. Edição semidiplomática do Breue memorial<br />
dos pecados e cousas que pertence(m) ha cõfissã (1521) de Garcia de Resende. Trabalho de<br />
Conclusão de Curso. Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.<br />
RESENDE, Garcia de. Breue memorial dos pecados e cousas que pertence a cõfissã. Disponível<br />
em http://bnd.bn.pt/. Acesso 04/10/2011.<br />
RODRIGUES, Manuel Augusto. Do humanismo à contra-reforma em Portugal. Coimbra:<br />
Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981.<br />
SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e contrução de sentido no gênero editorial.<br />
Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras, 2006. Tese de doutorado.<br />
ROCHA, Andréé Crabbé. Verbete Garcia de Resende. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI,<br />
Giuseppe (orgs.). Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho,<br />
1993.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 165
Resumo<br />
A compreensão dos gêneros textuais como multimodais e multissemióticos permeia as<br />
concepções linguísticas e discursivas da sociedade contemporânea, haja vista que na<br />
atualidade acontece um despertar reflexivo maior com relação às diferentes linguagens<br />
que compõem significativamente os textos. Nesse sentido, propomos neste artigo,<br />
apresentar como a multimodalidade, principalmente os diferentes recursos tipográficos,<br />
gerenciam significações no gênero editorial, levando em consideração suas funções<br />
sociais e comunicativas. Para isso, selecionamos um editorial da revista feminina Todateen<br />
o qual faz parte de um corpus maior que constituiu nossa pesquisa de mestrado. Essa<br />
escolha se justifica por se tratar de um editorial bastante visualmente informativo,<br />
assim como os demais que analisamos em nossa pesquisa, bem como por dispor de<br />
muitos recursos tipográficos, os quais nos interessam de modo particular. No intuito de<br />
desenvolvermos nossas análises, pautamo-nos teoricamente nas propostas da GDV de<br />
Kress e van Leeuwen (2006) que amparam os estudos multimodais no ocidente; e nas<br />
pesquisas de van Leeuwen (2006) com relação à tipografia enquanto medo semiótico.<br />
Além disso, respaldamo-nos nas teorias sócio-discursivas no tocante aos gêneros textuais<br />
a partir das sugestões de Bakhtin (2003) e seus seguidores teóricos; e nas concepções<br />
de Marques de Melo (2004) sobre o gênero editorial, dentre outros que se mostraram<br />
fundamentais às nossas reflexões. Diante das observações constatadas, percebemos que<br />
o editorial em questão se mostra bastante significativo do ponto de vista multimodal<br />
e, principalmente, tipográfico.<br />
Palavras-chave: Gênero editorial; multimodalidade; tipografia.<br />
Abstract<br />
The understanding of text genres as multimodal and multisemiotic permeates the<br />
linguistic and discursive conceptions of contemporary society, considering that currently,<br />
there is a greater reflection in relation to the different languages that significantly<br />
constitute texts. Accordingly, we propose in this paper to to present how multimodality,<br />
especially the different typographic features, manage meanings in editorial genres, taking<br />
into account their social and communicative functions. To this end, we selected a<br />
women’s magazine called Todateen, which is part of a larger corpus and which was our<br />
master’s research. This choice is due to the fact that it is a very visually informative editorial<br />
as well as others we reviewed in our research. Also, it has got many typographic<br />
features, which is particularly interesting for us. In order to develop our analysis, we<br />
based our studies on the proposals of Kress and van Leeuwen’s GDV (2006) who support<br />
multimodal studies in the West; and the research of van Leeuwen (2006) with relation to<br />
typography as semiotic fear. In addition, regarding text genre, we supported our research<br />
on the socio-discursive theories from Bakhtin’s suggestions (2003) and his pupils; as<br />
well as in conceptions of Marques de Melo (2004) about editorial genre, among others<br />
that were essential to our reflections. Given these observations, we realized that the<br />
editorial in question proves to be quite significant in terms of multimodal and especially<br />
typographical considerations.<br />
Keywords: Editorial genre; multimodality; typography.
Considerações iniciais<br />
Significados tipográficos<br />
no gênero editorial<br />
Jaciara Limeira de AQUINO<br />
(UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
Para cumprir seus objetivos funcionais, o gênero editorial<br />
utiliza-se de recursos semióticos variados em sua composição, porém<br />
destacamos de modo especial a tipografia enquanto modo semiótico<br />
que gerencia informações e significações específicas. Nesse sentido,<br />
não se trata de observar apenas qual tipo de letra foi utilizada, mas<br />
de ver a letra como significativa, também, do ponto de vista visual.<br />
Assim, nosso objetivo maior é compreender como a tipografia,<br />
enquanto recurso multimodal, desencadeia sentidos no gênero<br />
editorial, levando em consideração sua funcionalidade social. Partindo<br />
de tal objetivo, selecionamos um editorial da revista feminina<br />
Todateen, o qual faz parte de um corpus maior que constituiu nossa<br />
pesquisa de mestrado. Ele foi escolhido mediante observações acerca<br />
da visualidade informativa que dispunha, bem como pelas sugestões<br />
significativas oferecidas pelos recursos tipográficos em vista do próprio<br />
suporte e do público específico.<br />
Diante disso, acreditamos que este trabalho se mostra relevante<br />
uma vez que discute a multimodalidade como essencial à constituição<br />
dos gêneros, e por enfatizar a tipografia como significativa do ponto<br />
de vista visual e informativo.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 167
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Gênero editorial<br />
Partindo inicialmente do conceito de Marques de Melo<br />
(2003, p. 103) o “editorial é o gênero jornalístico que expressa a<br />
opinião oficial da empresa diante dos fatos de maior repercussão no<br />
momento”. Por representar a opinião oficial da instituição jornalística<br />
como um todo, ele é impessoal e coletivo, tendo em vista as várias<br />
camadas organizacionais que fazem parte da empresa jornalística.<br />
Ele se apresenta como um espaço de contradições em decorrência<br />
dos diferentes núcleos que participam da organização da empresa, e,<br />
sendo dirigidos à coletividade, pretendem orientar a opinião pública.<br />
O editorial opinativo ou padrão é primo literário do ensaio,<br />
diferindo dele por sua brevidade e natureza contemporânea.<br />
Tal gênero possui quatro atributos específicos: “impessoalidade,<br />
topicalidade, condensalidade e plasticidade” (MARQUES DE MELO,<br />
2003, p. 108). Ou seja, não é assinado e nem marcado pessoalmente;<br />
o assunto é bastante delimitado; é composto de poucas ideias, as quais<br />
sugerem informação; é plástico, dinâmico e flexível, assim como todos<br />
os gêneros textuais.<br />
Para Souza (2006), o editorial padrão é exclusivo dos jornais<br />
impressos, mas devido ao seu caráter processual e dinâmico, apresenta<br />
variações em decorrência do suporte no qual estão inseridos, bem como,<br />
em decorrência das características do público a quem se destinam. Para<br />
confirmar essa ideia é oportuno citar Souza (2004), quando sugere dois<br />
outros tipos de editorias: os editoriais mistos e os editoriais de apresentação.<br />
Nas palavras do autor, “os editoriais mistos são aqueles que podem<br />
incorporar várias características como ser preventivos, informativos,<br />
intelectuais, dentre outros; e os editoriais de apresentação são aqueles<br />
que apresentam um determinado número de jornal ou revista,<br />
justificando os assuntos abordados” (SOUZA, 2004, p. 100-101).<br />
168 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
Outra questão a ser apontada é a localização dos editoriais nos<br />
veículos de comunicação de massa:<br />
O posicionamento do editorial no jornal costuma refletir<br />
o seu caráter nobre entre todos os gêneros jornalísticos.<br />
Habitualmente, é posicionado logo na primeira página ou<br />
nas páginas editoriais, assim designadas porque são o espaço<br />
dedicado por excelência às principais colunas, crônicas e<br />
artigos de análise e opinião sobre os temas fortes da atualidade<br />
(SOUZA, 2004, p. 100).<br />
Nos suportes impressos essa localização é mais ou menos fixa.<br />
Nos jornais, localiza-se logo na primeira página; e, nas revistas, nas<br />
páginas iniciais; o que facilita a identificação por parte dos leitores<br />
de acordo com os suportes nos quais circulam.<br />
Os editoriais podem variar de acordo com quatro aspectos<br />
específicos: com relação ao assunto que abordam, podendo ser<br />
preventivos, de ação, ou de consequência; quanto ao conteúdo que<br />
veiculam podem ser informativos, normativos ou ilustrativos; de acordo<br />
com o estilo, variam em intelectuais e emocionais; e, de acordo com<br />
a natureza da linguagem podem ser promocionais, circunstanciais e<br />
polêmicos (cf. SOUZA, 2004, p. 100-101).<br />
Diante do exposto, o gênero editorial como gênero opinativo, que<br />
expressa opiniões ou pontos de vista da instituição jornalística, deve<br />
ser compreendido enquanto tal, de acordo com suas características<br />
específicas e particulares em meio ao suporte no qual estão inseridos<br />
e com o público ao qual se dirige.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 169
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Multimodalidade: tipografia como um modo semiótico<br />
Para entender a tipografia como um modo semiótico, partimos<br />
das metafunções sugeridas por Halliday e redefinidas por Kress e van<br />
Leeuwen (2006) na GDV, quando eles propõem estudar a imagem<br />
como um componente semiótico que tem funções específicas em<br />
decorrência dos papéis que assumem no todo textual. Em síntese,<br />
podemos compreender essas metafunções por meio do seguinte<br />
quadro:<br />
METAFUNÇÕES LINGUAGEM IMAGEM<br />
Ideacional: é a função de<br />
construir representações<br />
do que está acontecendo<br />
no mundo (e em nossas<br />
mentes).<br />
É realizada através dos<br />
sistemas linguísticos do<br />
léxico e da transitividade.<br />
É realizada por certos aspectos<br />
da composição<br />
e pelos sistemas de vetorialidade<br />
(Metafunção<br />
representacional).<br />
Interpessoal: é a função<br />
de construir interações sociais<br />
e expressar atitudes<br />
em relação ao que está<br />
sendo representado.<br />
O recurso linguístico que<br />
nos permite constituir<br />
interações sociais é a modalização.<br />
Os recursos que<br />
nos permitem expressar<br />
atitudes foram recentemente<br />
reformulados na<br />
teoria dos “sistemas de<br />
avaliação” (Martin, 2000).<br />
É realizada pelos sistemas<br />
do olhar, do tamanho do<br />
frame, e do ângulo (Metafunção<br />
interativa).<br />
Textual: é a função de<br />
organizar representaçõesinterações<br />
individuais em<br />
textos e eventos comunicativos<br />
coerentes.<br />
É realizada através de<br />
sistemas de coesão, estrutura<br />
temática e estrutura<br />
de dado-novo.<br />
É realizada através de<br />
sistemas de composição,<br />
estruturação e saliência<br />
(Metafunção composicional).<br />
Quadro 1: Metafunções na linguagem e nas imagens (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
170 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
Seguindo esses princípios, a tipografia pode preencher todas<br />
essas metafunções. Ela pode ser usada ideacionalmente para expressar<br />
experiências, ações e qualidades; pode representar interações<br />
com relação ao que está sendo representado, e “interpretar” ou<br />
“representar” textos mostrando suas qualidades características;<br />
e a tipografia pode ainda realizar significados textuais à medida<br />
que tem a capacidade de demarcar unidades ou elementos em um<br />
texto, indicando graus de semelhança ou diferença, e, trazendo ao<br />
primeiro plano os elementos mais importantes deixando para o plano<br />
de fundo os que são considerados como elementos secundários (cf.<br />
VAN LEEUWEN, 2006).<br />
Levando em consideração que a tipografia atua como modo<br />
significativo capaz de gerenciar sentidos nos textos, é oportuno<br />
afirmar que isso não se dá de forma isolada. Como bem menciona<br />
Borges (2005), o surgimento da imprensa e dos meios de comunicação<br />
de massa possibilitou uma multiplicação de signos, os quais atuam<br />
de forma conjunta quando do cruzamento de códigos que se<br />
interelacionam para gerenciar sentidos. Diante disso, a tipografia<br />
deve ser analisada em conjunto com todos os modos semióticos<br />
envolvidos na composição dos textos. Ela não deve ser vista como<br />
um recurso isolado, muito embora ela em si seja multimodal.<br />
Em síntese, de acordo com as palavras de van Leeuwen (2006,<br />
p. 145):<br />
[...] se nós queremos fazer justiça às funções semióticas<br />
comuns a diferentes recursos semióticos, e se nós queremos<br />
ser capazes de apresentar potenciais específicos e explicar que<br />
diferença faz se uma dada função comunicativa é realizada<br />
através de um modo semiótico ou através de uma combinação<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 171
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
de modos semióticos, nós precisamos expandir o escopo da<br />
linguística, e incorporá-la em uma teoria mais ampla da<br />
multimodalidade (Tradução livre).<br />
Assim, a multimodalidade opera como recurso indispensável<br />
à compreensão dos textos que circulam socialmente por meio dos<br />
mais variados gêneros textuais que cumprem funções comunicativas<br />
específicas.<br />
De acordo com van Leeuwen (2006), a tipografia pode ser<br />
considerada como um “meio semiótico” e como um “modo semiótico”.<br />
Sendo organizada como um “modo”, ela tem uma gramática e um<br />
léxico; e como um “meio”, ela tem apenas um léxico.<br />
Há muito tempo, a tipografia tem sido vista como “meio<br />
semiótico”. Nesse sentido, ela apresenta-se como “uma coleção de<br />
tipos de caracteres distintos e individuais, com origens distintas, a<br />
serem listadas alfabeticamente, como no processador de textos, ou,<br />
no melhor caso, agrupados juntos com base em princípios históricos<br />
e ‘influências’ [...]” (VAN LEEUWEN, 2006, p. 145, tradução livre).<br />
Ao ser organizada como “meio semiótico”, seus significados são<br />
construídos com base nos seguintes princípios: através da “conotação”<br />
ou da “metáfora experiencial”. No primeiro caso, a idéia defendida<br />
é a de que os signos podem ser “importados” de um contexto para<br />
outro, com o objetivo de significar valores advindos do contexto<br />
do qual foram importados. A “metáfora experiencial” defende a<br />
ideia de que todo significante material tem um potencial semântico<br />
derivado da nossa experiência física sobre ele e de nossa habilidade de<br />
expandir metaforicamente nossa experiência para transformar ação<br />
em conhecimento. (cf. VAN LEUUWEN, 2006).<br />
A fim de sugerir alguns significados que as letras podem<br />
desempenhar, van Leeuwen (2006) sugere uma lista de características<br />
172 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
distintivas da tipografia que demonstram seu potencial semântico.<br />
Essa lista não representa regras autoritárias fixas e incontestáveis,<br />
trata-se de uma tentativa de “semiotizar” a tipografia.<br />
O peso da letra indica diferenças entre fontes ou versões de<br />
fontes negritadas ou regulares (ex.: Arial Black e Arial). Geralmente<br />
o peso é usado para dar saliência a determinados elementos dos textos,<br />
e pode ser usado metaforicamente para significar sentidos ideacionais e<br />
interpessoais. Os sentidos são diversos e devem ser analisados levando<br />
em consideração outros elementos envolvidos na composição textual,<br />
que possam determinar os valores semânticos em decorrência do peso<br />
da fonte utilizada. No quadro, são mostrados alguns sentidos possíveis:<br />
Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />
Negritada<br />
Audaz, assertiva, sólida,<br />
substancial<br />
Arrogante, altiva<br />
Regular - Tímida, insubstâncial<br />
Quadro 2: Distinções entre peso regular e negritado (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
A expansão indica que as fontes podem ser condensadas ou<br />
estreitadas, expandidas ou amplas (ex.: Arial Narrow e Arial). Esse aspecto<br />
relaciona-se com a nossa experiência e pode também indicar sentidos<br />
metafóricos:<br />
Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />
Condensada Precisa, econômica Apertada, abarrotada, restritiva<br />
de movimento<br />
Ampla Esbanjadora, folgada Cheia de espaço para respirar<br />
e para se movimentar<br />
Quadro 3: Significados da expansão das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 173
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
O slope refere-se à diferença entre fontes cursivas e<br />
inclinadas que se assemelham a letras manuscritas e fontes<br />
verticais eretas (ex.: Lucida Calligraphy e Lucida Bright).<br />
Esse contrate pode ser evidenciado a partir da diferença entre<br />
caligrafia e impressão. Dessa forma, seu potencial semântico é<br />
altamente conotativo e baseado em significados e valores que nós<br />
atribuímos à caligrafia e à impressão. Alguns sentidos contrastivos:<br />
Inclinada<br />
Vertical<br />
Orgânica<br />
Mecânica<br />
Pessoal<br />
Impessoal<br />
Informal<br />
Formal<br />
Manufaturada<br />
Produzida em massa<br />
Antiga<br />
Nova<br />
Quadro 4: Slope inclinado e vertical (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
A curvatura indica que algumas letras pode enfatizar a ideia<br />
de angularidade ou de curvatura (ex.: Copperplate e<br />
Century Gothic). A curvatura pode ser realizada pela diferença<br />
entre as ascendentes e descendentes arredondadas em fontes que<br />
usam laçadas e fontes que usam pinceladas (ex.: Script MT Bold e<br />
Pristina); e, quando as ascendentes e descendentes são retas (ex.:<br />
Agency FB).<br />
174 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
Aspecto da fonte<br />
Sentidos conotativos<br />
(positivos ou negativos)<br />
Angular<br />
Arredondada<br />
Abrasiva, áspera, técnica, masculina<br />
Lisa, macia, natural, orgânica, maternal,<br />
feminina<br />
Quadro 5: Aspectos relacionados à curvatura das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
A conectividade indica que algumas fontes apresentam as<br />
letras de forma conectadas umas às outras como acontece<br />
na escrita corrida; outras têm pés curvos que se estendem em<br />
vários graus às letras próximas, ou que quase não se tocam; e,<br />
outras, onde as letras ficam afastadas e encerradas entre<br />
si mesmas (ex.: Lucida Handwriting, Lucida Calligraphy e<br />
Lucida Console). As conexões ou desconexões podem ser entre as<br />
letras e também podem ser dentro da própria letras, como por exemplo<br />
na fonte Bauhaus 93. A ideia de conectividade está associada à ideia<br />
de caligrafia e compartilha seus significados com a inclinação, mas<br />
apresenta significado metafórico próprio:<br />
Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />
Conexão externa<br />
Desconexão externa<br />
Inteireza, integração<br />
Individualidade distintiva<br />
dos elementos do todo<br />
Falta de individualidade<br />
dos elementos do todo<br />
Autonomização, fragmentação<br />
Conexão interna Completude -<br />
Desconexão interna<br />
Despreocupação, desembaraço,<br />
naturalidade<br />
Incompletude, algo que<br />
foi mal feito<br />
Quadro 6: Distinções entre a conectividade das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 175
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
A orientação pode indicar direcionamento horizontal, já<br />
que são achatadas; e, podem ser orientadas verticalmente em virtude de serem<br />
comparativamente alongadas, ou seja, esticadas na direção vertical (ex.: Bodoni MT<br />
Black e Onix). Dessa forma, o potencial semântico é baseado na nossa<br />
experiência sobre gravidade e sobre o caminhar ereto.<br />
Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />
Orientação horizontal Peso, solidez Inércia, presunção<br />
Orientação vertical<br />
Luminosidade, aspiração<br />
ascendente<br />
Instabilidade<br />
Quadro 7: Distinções entre a orientação horizontal e vertical das fontes<br />
(cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
Ainda com relação à orientação, é interessante mencionar os<br />
prolongamentos curtos, nos quais as ascendentes e descendentes dificilmente<br />
estendem-se além da linha-X e da linha-base; e, os prolongamentos longos,<br />
em que as descendentes e ascendentes mas esticadas para cima (ex.:<br />
Bernard MT Condensed e High Tower Text). Outro ponto importante,<br />
é que a orientação pode ser decrescente e crescente. No primeiro<br />
caso, os descendentes são mais longos que os ascendentes,<br />
como se expressassem o sentido de “querer fixar raízes”; e, no<br />
segundo, acontece o contrário, os ascendentes são mais longos que<br />
os descendentes, querendo expressar o sentido de “elevação” (ex.:<br />
Viner Hand ITC e Poor Richard).<br />
A regularidade das fontes expressa ordem. A irregularidade<br />
como seu oposto, pode ser criada de diferentes maneiras, como, por<br />
exemplo, por meio de diferenciação interna ou externa (tamanho ou<br />
forma diferencial), por meio da diferenciação regular ou aleatória, e<br />
176 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
através da não conservação das letras nas linha-X e linha-base, ou<br />
pela variação no slope (ex.: Kristen ITC e Ravie). De<br />
forma resumida, podemos sugerir os seguintes sentidos metafóricos:<br />
Aspecto da fonte<br />
Sentido<br />
Regular<br />
Ordem, disciplina<br />
Irregular<br />
Desordem, rebelião<br />
Quadro 8: Regularidade e irregularidade das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
As características não-distintivas, como o próprio nome sugere,<br />
não podem ser distintas umas das outras, mas contribuem para o<br />
critério de legibilidade nos textos. São exemplos dessas características,<br />
as serifas que podem ser angulares ou RETAS (ex.: Copperlate<br />
Gothic Bold e Rockwell); e, os floreados que podem ser regulares<br />
ou inconstantes (ex.: Edwardian Script PTC e Curls MT).<br />
Com esses aspectos mostrados, a tipografia passou de um “meio<br />
semiótico” para um “modo semiótico” tendo em vista que com as<br />
possibilidades apresentadas temos uma espécie de “gramática” que<br />
embora não fixe regras permanentes, oferece certos princípios regulares<br />
que moldam os significados da tipografia em determinados contextos.<br />
Assim, a tipografia deve ser investigada e analisada em conjunto<br />
com outros modos semióticos que compõem a significação dos textos,<br />
verificando qual a sua função comunicativa em virtude dos objetivos<br />
que pretende alcançar.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 177
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Significação da escrita e visualidade no editorial da todateen<br />
“é pra se amarrar!!!”<br />
No editorial a seguir destacamos os seguintes aspectos:<br />
formatação da página, imagens, fotografias e as seguintes características<br />
distintivas da tipografia – peso, expansão, slope, curvatura e regularidade<br />
da fonte (cf. VAN LEEUWEN, 2006), dentre outros aspectos que se<br />
mostram significativamente coerentes.<br />
178 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
Chamada para o gênero<br />
com fonte expandida e peso<br />
negritado.<br />
Imagem<br />
Título<br />
com fonte<br />
expandida e<br />
peso negritado.<br />
Formatação em<br />
coluna única<br />
sem marcação<br />
de parágrafo.<br />
Fonte<br />
com Slope<br />
sugerindo<br />
cursividade;<br />
curvatura,<br />
regularidade e<br />
peso negritado.<br />
Letra capitular<br />
com peso<br />
negritado<br />
e expansão<br />
vertical.<br />
Despedida<br />
da redação<br />
com fonte<br />
cursiva – slope<br />
indicando<br />
caligrafia.<br />
Fotografia com legenda, destacada por meio de<br />
molduras, enquadramentos.<br />
Figura 1: É pra se amarrar!!!<br />
(01) Todateen, abril de 2003<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 179
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Trata-se de um editorial misto, que, de forma clara e precisa,<br />
apresenta uma temática bem condizente com as adolescentes, já que<br />
o assunto principal veiculado por ele, diz respeito às delícias, emoções<br />
e sensações causadas pela descoberta dos sentimentos envolvidos no<br />
primeiro beijo, primeiro namoro, isto é, pelas novidades que uma<br />
relação amorosa pode causar, principalmente nessa fase da vida.<br />
Além de apresentar essa temática, atua como texto introdutório para<br />
o suporte – revista Todateen, haja vista descrever alguns assuntos<br />
contidos na edição como forma de chamar a atenção das leitoras<br />
persuadindo-as a interagirem com ele.<br />
Destacando os recursos tipográficos e multimodais envolvidos<br />
em sua composição, é válido mencionar inicialmente a nomenclatura<br />
dada ao gênero. Como forma de inovar e de apresentar o gênero<br />
como veículo institucional que pretende interagir com as leitoras,<br />
essa nomenclatura atua como um recurso multimodal que sugere<br />
significações a partir de sua visualidade. Isso se deve à tipografia<br />
utilizada, pois as características distintivas empregadas, de acordo<br />
com van Leeuwen (2006), sugerem significados específicos a partir de<br />
sua localização na página editorial, tendo em vista que cada zona da<br />
imagem cumpre funções específicas, como também, devido à relação<br />
que estabelece como os demais componentes visuais e linguísticos<br />
presentes em sua estrutura visual e opinativa por se tratar de um<br />
texto complexo ou multimodal (cf. DIONÍSIO, 2006).<br />
180 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
Figura 1.1: Chamada para o editorial<br />
(01) Todateen, abril de 2003<br />
A tipografia utilizada dá um destaque maior à “redação” da<br />
revista, pois a fonte expandida na cor branca em um fundo azul atua<br />
visualmente interagindo com as leitoras no intuito de travar com<br />
elas um diálogo, o que é comprovado até mesmo pelos recursos<br />
linguísticos que seguem: “& você”, os quais mostram claramente a<br />
relação da redação, enquanto equipe jornalística responsável pela<br />
linha editorial da revista, com o público leitor - as adolescentes. O peso<br />
da fonte utilizada nessa composição também promove um destaque e<br />
direciona o olhar das leitoras que identificam o gênero a partir de sua<br />
chamada inicial – a nomenclatura que tal gênero assume no suporte.<br />
Tanto a expansão quanto o peso da fonte sugerem funções interativas,<br />
representativas e composicionais, como diz van Leeuwen (2006),<br />
conforme detalhamos a seguir.<br />
Com a função interativa, tais características indicam a<br />
necessidade de travar uma interação com as leitoras por meio de<br />
recursos linguísticos e visuais que juntos dão ideia de união entre<br />
os participantes envolvidos por esse ato de comunicação. Isso se<br />
dá, ainda, devido à maneira explícita que a equipe da instituição<br />
jornalística se apresenta como próxima da leitora, envolvendo-a em<br />
sua redação como se ela fizesse parte de sua equipe – “redação e você”,<br />
deixando claro, assim, que sua produção toma como ponto de partida<br />
os interesses de seu público.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 181
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Como forma de representar ações e eventos, conforme sugerem<br />
Kress e van Leeuwen (2006), a função representativa, visualizada<br />
neste exemplo, indica que as características tipográficas surtem efeitos<br />
contemplativos para os participantes interativos que estabelecem<br />
contatos visuais significativos com tal estrutura, de forma a fazer<br />
com que as leitoras identifiquem o gênero e possam tomá-lo como<br />
referência opinativa.<br />
Sua localização na parte superior esquerda da página editorial<br />
sugere sentidos composicionais específicos, levando em consideração<br />
os significados funcionais que as zonas da imagem promovem, assim<br />
como propõem os autores citados acima. A parte superior é tida como<br />
o ideal, ou seja, aquilo que significa em sua essência idealizada; e, o lado<br />
esquerdo atua apresentando informações dadas. Dessa forma, dizemos<br />
que, até mesmo pela nomenclatura utilizada, a chamada para o gênero<br />
representa algo como ideal haja vista que não o identificamos pelo seu<br />
nome padrão – editorial; porém, isso é um dado já (re)conhecido pelas<br />
leitoras que o identificam enquanto tal, sem a menor dificuldade, por<br />
se tratar de algo recorrente (cf. MILER, 2009) em todos os editoriais<br />
do suporte em questão.<br />
Logo abaixo, ainda na parte superior, vem o título do editorial.<br />
O peso negritado da fonte e sua expansão também se destacam entre<br />
os demais elementos textuais. Assim, o destaque tipográfico dado<br />
ao título contribui para a compreensão do texto, introduzindo a<br />
temática e indicando sentidos: (i) interativos, já que estabelece uma<br />
relação entre os participantes envolvidos nos contextos de produção<br />
e consumo textual; (ii) representativos, à medida que instiga o olhar<br />
das leitoras de modo enfático, potencializado ainda mais por meio dos<br />
pontos de exclamação; e (iii) sentidos composicionais, em virtude de sua<br />
localização como algo idealizado que será concretamente apresentado<br />
na sequência do texto (cf. KRESS e VAN LEEUWEN, 2006).<br />
182 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
A cor vermelha da fonte utilizada no título é simbolicamente<br />
representativa da paixão, o que fica evidente por meio do destaque<br />
dado à palavra “amarrar” como sinônimo de compromisso<br />
apaixonado, namoro, que, apesar da regularidade da fonte, é destacada<br />
pelo tamanho das letras, como vemos na figura a seguir.<br />
Figura 1.2: Título do editorial<br />
(01) Todateen, abril de 2003<br />
A cor vermelha, sugerindo a cor do “coração”, do sangue,<br />
convencionalmente surte efeitos fortes indicando algo perigoso, os<br />
quais se unem aos tons significativos que a palavra “amarrar” assume<br />
no contexto do editorial, com o intuito de instigar opiniões sobre<br />
os mistérios, emoções e sensações da primeira paixão, do primeiro<br />
namoro.<br />
Juntamente com o título temos uma imagem de dois<br />
adolescentes de mãos dadas, se olhando e em direção ao primeiro<br />
beijo, os quais estão sobre um coração também em cor vermelha,<br />
como símbolo da paixão, do amor. Tal imagem, idealmente, já que<br />
está localizada na parte superior da página (cf. KRESS e VAN<br />
LEEUWEN, 2006), contribui para a construção de sentidos e<br />
significação deste gênero, pois sugere o ideal do encontro entre<br />
os dois e a possibilidade de vivenciarem uma paixão. Além disso,<br />
as figuras da forma como estão expostas, fazem parte do universo<br />
adolescente, já que nesta fase há uma identificação maior com<br />
textos visualmente informativos, os quais os tornam mais atraentes<br />
e chamativos.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 183
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Ainda na parte superior da página do editorial, temos uma<br />
fotografia de uma repórter da Todateen com o ator juvenil Kayky<br />
Brito, identificada a partir de uma legenda funcional e enquadrada<br />
por uma moldura que a coloca em destaque em meio à página<br />
em sua totalidade. Essa foto sugere significados multifuncionais à<br />
medida que desempenha ações entre os participantes da interação,<br />
enquanto objeto de contemplação que atua perante os participantes<br />
observadores (público-leitor) como sendo próximos destes, e, como<br />
dado informativo possivelmente já esclarecido e (re)conhecido pelas<br />
leitoras por se tratar de figuras públicas bem conhecidas socialmente.<br />
Em seguida, temos o texto escrito propriamente dito, o qual<br />
apresenta opiniões acerca das emoções vividas pelos adolescentes<br />
com a descoberta do amor, além de introduzir matérias do suporte,<br />
de forma a apresentá-lo para as leitoras. O texto inicia-se com uma<br />
letra capitular de cor verde combinando com o verde das molduras<br />
que destacam as fotografias visualizadas no todo da página. Tal<br />
letra encontra-se tipograficamente destacada por meio de um peso<br />
negritado e de uma expansão vertical (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />
que atuam significativamente perante as leitoras de forma a sugerir<br />
direcionamento da leitura marcando o parágrafo inicial.<br />
Percebemos que o texto é bastante curto, disposto por uma<br />
tipografia que indica regularidade, propondo, dessa forma, que se<br />
trata de um texto que pretende transmitir credibilidade, e, garantir,<br />
pelo menos até certo ponto, o critério de se dirigir de modo imparcial<br />
para a coletividade. Porém, por se tratar de uma variação do editorial<br />
padrão, podemos dizer, pela presença dos recursos tipográficos<br />
utilizados, que existe uma tentativa de aproximação maior com o<br />
público-leitor. Tal fato é marcado por meio da curvatura da fonte,<br />
que de acordo com as sugestões de van Leeuwen (2006), sugere<br />
significados femininos, como, leveza, afetividade, proximidade entre<br />
184 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
os participantes envolvidos no ato comunicativo, uma vez que este<br />
texto é direcionado para o público feminino adolescente. Além da<br />
curvatura da fonte e da linearidade do texto observadas por meio de<br />
uma coluna única, a tipografia utilizada nele é levemente inclinada<br />
para a direita, o que também contribui para sugerir uma aproximação<br />
com a escrita manual.<br />
A assinatura do editorial, também chama nossa atenção pela<br />
tipografia utilizada e por se tratar de uma despedida pessoal, que<br />
embora não individualize autoria, se mostra também como uma<br />
variação do gênero, já que nos editoriais padrões não há assinatura<br />
garantindo-se, assim, a impessoalidade, tal como propõe Souza (2004).<br />
Figura 1.3: Despedida da redação<br />
(01) Todateen, abril de 2003<br />
Trata-se de uma fonte que se assemelha à escrita manual,<br />
apresentando um slope que aproxima a escrita impressa à caligrafia.<br />
Por meio disso, é como se a edição quisesse manter uma interação<br />
pessoal, mais informal e íntima com o público, o que é mais<br />
enfatizado ainda pela cor azul da letra, a qual lembra a cor de uma<br />
caneta esferográfica utilizada para escrever à mão. Ela encontra-se<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 185
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
inclinada e está disposta em cima de um beijo marcado por uma<br />
boca como se representasse uma marca de batom no papel. Essa<br />
atitude é típica de adolescentes para marcar carinho e intimidade ao<br />
escreverem cartas, recados ou bilhetes para amigos. Dessa forma, há a<br />
representação, mais uma vez, da necessidade de garantir proximidade<br />
na interação estabelecida por este gênero, o que é marcado ainda,<br />
pela conectividade entre as letras, pois como sugere van Leeuwen<br />
(2006), isso quer dizer integração, a qual é estabelecida pela equipe<br />
editorial com suas possíveis leitoras.<br />
Assim, afirmamos que a multimodalidade de tal gênero e as<br />
significações discursivas que ele elenca o tornam capaz de gerenciar<br />
sentidos semióticos e linguísticos específicos que colaboram para<br />
uma multifuncionalidade social do gênero como representante e<br />
influenciador de determinadas práticas sociais.<br />
Considerações finais<br />
Diante da análise desenvolvida, percebemos que tal editorial se<br />
mostra como uma variação bastante dinâmica dos editoriais padrões em<br />
suas origens impressas. A visualidade da escrita, os recursos multimodais<br />
e linguísticos, que compõem esse gênero, se mostram significativos no<br />
sentido de atuarem na constituição da multifuncionalidade do gênero<br />
levando em consideração seus propósitos comunicativos e sociais.<br />
Os recursos destacados funcionam como características<br />
distintivas (cf. VAN LEEUWEN, 2006), proporcionando significados<br />
visuais aos componentes linguísticos de modo a instigar sentidos<br />
visuais altamente coerentes para a compreensão dos editoriais como<br />
textos multimodais e complexos.<br />
Assim sendo, esse trabalho se mostra relevante, tendo em vista<br />
a necessidade de ampliar os estudos na área dos gêneros, com relação,<br />
186 l Anais Eletrônicos - 2011
SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />
Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />
especialmente, aos aspectos multimodais – tipografia, por ser uma área<br />
fértil de análises e investigações que merece ser discutida de forma<br />
ampla e sistematizada diante da heterogeneidade que as diferentes<br />
linguagens assumem em meio à sociedade contemporânea.<br />
Referências<br />
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BORGES, P. M. Tipografia: ideograma ocidental. São Paulo: PUC-SP, 2005. (Dissertação<br />
de Mestrado). Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.<br />
php?codArquivo=1516. Acesso em 05 de junho de 2010.<br />
DIONÍSIO, P. A. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, M.; GAYDECZA,<br />
B.; BRITO, S. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. (p.<br />
131-142)<br />
FARIAS, P. L. Tipografia digital: o impacto das novas tecnologias. 3. ed. Rio de Janeiro:<br />
2AB, 2001.<br />
FERNANDES, D. Alltype: informação, cognição e estética no discurso tipográfico. João<br />
Pessoa: UFPB, Natal: Marca da Fantasia, 2006.<br />
KRESS, G.: LEEUWEN, T. van. Reading images: the grammar of visual design. 2. Ed. London<br />
and New York, Routledge, 2006.<br />
MARCUSCHI. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI,<br />
A. M; GAYDECZA, B.; BRITO, K. S. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro:<br />
Lucerna, 2006. (p. 23-36)<br />
MARQUES DE MELO, J. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro.<br />
Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003.<br />
SOUSA, J. P. Introdução à análise do discurso jornalístico impresso: um guia para estudantes<br />
de graduação. Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas, 2004.<br />
VAN LEEUWEN, T. Towards a semiotics of typography. In: John Benjamins Publishing<br />
Company. 2006.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 187
Resumo<br />
Seguindo a Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1978), este artigo<br />
apresenta as opções sociossemânticas disponíveis na base ideacional<br />
de textos publicitários que anunciam seus produtos recorrendo a<br />
super-heróis de histórias em quadrinhos. São distinguidos três sistemas<br />
de ordem sociossemântica: Desejo de Poder, em que o super-herói<br />
e/ou o destinatário do anúncio é(são) representado(s) em ambiente<br />
real ou fictício e em posição própria ou invertida; Apresentação do<br />
Produto/Serviço, em que a oferta presente no anúncio ou é descrita<br />
ou é representada como algo que deve ser procurado para um melhor<br />
detalhamento (indução à compra); e Necessidade, em que a oferta é<br />
apresentada a partir de sua aplicabilidade, podendo ser prática ou social.<br />
Essas opções são apresentadas juntamente com suas realizações no<br />
sistema de transitividade (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) e na estrutura<br />
representacional (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006).<br />
Palavras-chave: rede sociossemântica; anúncio publicitário; transitividade.<br />
Abstract<br />
Following the Systemic Functional Linguistics (Halliday, 1978), this article<br />
presents the sociosemantics options available in an ideational basis of<br />
advertising texts which announce their products using superheroes<br />
from comic books. There are three distinct sociosemantics order systems:<br />
Will of Power, in which the superhero and / or the recipient of the ad is<br />
(are) represented (s) in real or fictitious environment and in their own or<br />
inverted position {2; Presentation of the Product / Service, in which the<br />
offer in the ad is either described or represented as something that<br />
should be searched for a better detail (influence to the purchasing), and<br />
Need, in which the offer is presented from its applicability and can be<br />
either practical or social .These options are presented along with their<br />
achievements in the system of transitivity (HALLIDAY and MATTHIESSEN,<br />
2004) and representational structure (KRESS and VAN LEEUWEN, 2006).<br />
Keywords: sociosemantics network, advertising; transitivity.
A sociossemântica dos anúncios<br />
publicitários com super-heróis 1<br />
Introdução<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA<br />
(UFPB/CNPq) 2<br />
Na perspectiva teórica sistêmico-funcional, dois conceitoschave<br />
são o de estratificação e o de sistema (HALLIDAY e<br />
MATTHIESSEN, 2004). O primeiro explica que a linguagem é<br />
constituída de cinco estratos: contexto, semântica, lexicogramática,<br />
fonologia e fonética, sendo que eles se relacionam por meio de<br />
realização. O segundo corresponde à visão da língua como um<br />
sistema semiótico, um recurso para significar (HALLIDAY, 1978), o<br />
que aponta para a necessidade de seu usuário “acessar” elementos<br />
significativos para se comunicar em dado contexto; nesse caso, o<br />
foco recai sobre o eixo paradigmático e o texto passa a ser visto<br />
como uma instância com um conjunto de escolhas.<br />
Halliday (2003, p. 323) assegura que “em cada um dos níveis<br />
[ou estratos] que compõem o sistema linguístico, podemos identificar<br />
conjuntos de opções representando o que os falantes ‘podem fazer’<br />
1. Este artigo se constitui em uma versão modificada do quarto capítulo da dissertação de mestrado intitulada<br />
“Want to be a real hero?”: uma análise sistêmico-funcional de anúncios em revistas em quadrinhos de superheróis”,<br />
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING – UFPB). A referida dissertação<br />
foi orientada pela Profa. Dra. Danielle Barbosa Lins de Almeida e co-orientada pelo Prof. Dr. Anderson Alves de<br />
Souza, a quem agradeço enormemente por terem me auxiliado atenciosamente durante todos os estágios que<br />
culminaram com as ideias apresentadas neste artigo.<br />
2. Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING – UFPB) e membro pesqui-<br />
. Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING – UFPB) e membro pesquisador<br />
do Grupo de Pesquisa em Semiótica Visual e Multimodalidade (GPSM – UFPB).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 189
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
naquele nível”. A partir desse pensamento, Halliday se volta para<br />
o estrato semântico e afirma que é possível, a partir da análise de<br />
textos inseridos em um mesmo contexto de situação, apontar,<br />
por meio de redes de sistema, as opções semânticas disponíveis ao<br />
falante. Isso porque esse estrato, responsável pela ligação entre a<br />
lexicogramática e o contexto, é o espaço que apresenta um potencial<br />
de opções referentes ao que o falante pode significar e pode fazer em<br />
termos linguísticos. O autor exemplifica essa ideia com a criação de<br />
uma rede (sócio)semântica que expressa os padrões de significados<br />
na situação em que a mãe regula o comportamento da criança. Butler<br />
(1985, p. 60) esclarece o que vêm a ser as redes sociossemânticas:<br />
No nível sociossemântico, tais redes mostram relações de<br />
contraste e dependência entre escolhas de significados<br />
disponíveis em um contexto social particular [...]. A tarefa é<br />
identificar que combinações na lexicogramática atuam como<br />
realizações sistemáticas de opções particulares nas redes<br />
sociossemânticas.<br />
Partindo dessa noção, este trabalho tem o objetivo de<br />
apresentar uma rede sociossemântica que indica as opções de<br />
significados e suas realizações verbais e visuais em anúncios que<br />
recorrem a super-heróis norte-americanos na oferta de produtos/<br />
serviços. Para tanto, é considerado um total de sete anúncios<br />
recolhidos da revista em quadrinhos The Amazing Spider-Man entre<br />
junho de 2004 e maio de 2006.<br />
A elaboração da rede sociossemântica foi possível a partir da<br />
identificação de padrões de transitividade (THOMPSON, no prelo)<br />
e uma consequente interpretação feita com base no entendimento<br />
sociológico dos super-heróis (ECO, 1998; VIANA, 2005), da<br />
190 l Anais Eletrônicos - 2011
A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
publicidade (VESTERGAARD e SCHRØDER, 2004) e da sociedade<br />
de consumo (FEATHERSTONE, 2007). Nesse sentido, segue-se<br />
van Leeuwen (2005, p. 129), que, analisando o tempo de práticas<br />
sociais, diz que “a interpretação das categorias [gramaticais] deve<br />
ser fundamentada sociologicamente e historicamente, tomando o<br />
conceito de ‘contexto de cultura’ (Halliday, 1978) seriamente, como<br />
um aspecto-chave de qualquer análise sociossemântica”.<br />
Neste artigo, toma-se como dado o conhecimento, por parte do<br />
leitor, do sistema de transitividade (HALLIDAY e MATTHIESSEN,<br />
2004) – que distingue as ações, experiências e relações associadas<br />
a alguém ou algo em dada circunstância – e da metafunção<br />
representacional (KRESS e van LEEUWEN, 2006) – que analisa a<br />
forma como as imagens representam aspectos que o ser humano<br />
experiencia no mundo. Por isso, a primeira seção do artigo já parte<br />
para a apresentação das opções sociossemânticas dos anúncios que<br />
recorrem a super-heróis de histórias em quadrinhos (HQs). A segunda<br />
seção demonstra, com a análise de um anúncio publicitário, como<br />
a rede sociossemântica pode ser utilizada em investigações que se<br />
colocam entre a gramática e o discurso.<br />
A sociossemântica dos anúncios<br />
Os sete anúncios analisados são vistos como instâncias<br />
representativas de um registro. Um registro, segundo Halliday (1978,<br />
p. 111, ênfase nossa)<br />
pode ser descrito como uma configuração de recursos semânticos<br />
que os membros de uma cultura tipicamente associam com um<br />
tipo de situação. É o potencial de significados que está acessível<br />
em um dado contexto social.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 191
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
As variáveis constituintes do registro são campo (tipo de<br />
atividade social do discurso), relação (que diz respeito ao lugar<br />
ocupado pelos participantes do discurso) e modo (o papel da língua<br />
e a organização simbólica do texto). Como o escopo deste artigo está<br />
voltado para a base ideacional, a variável campo será privilegiada<br />
em relação às demais.<br />
Hasan (1989) esclarece que o campo corresponde à atividade<br />
social e à natureza da atividade. Com relação à atividade social, os<br />
sete anúncios em análise são textos construídos para a publicidade<br />
de produtos (cortador de cabelo Wahl, jogo eletrônico Spider-Man<br />
2, ornamentos, calendários, cartas de super-heróis, jogos de cartas<br />
colecionáveis The Avengers e DVD Ultimate Avengers) e de um serviço<br />
(resort Universal Orlando), todos à venda no mercado capitalista;<br />
têm o objetivo principal de induzir o consumidor à compra; e são<br />
anúncios do tipo “exibição” (VESTERGAARD e SCHRØDER,<br />
2004), ou seja, recebem destaque nas revistas de HQs The Amazing<br />
Spider-Man a fim de chamar a atenção de leitores cujo propósito<br />
primeiro é acompanhar uma narrativa em banda desenhada. Quanto<br />
à natureza da atividade, esta é institucionalizada, pertencente à<br />
instituição econômica.<br />
Os anúncios analisados foram escolhidos por serem<br />
representativos do registro aqui trabalhado. A partir de uma análise<br />
visual e verbal, chegou-se à criação da rede de sistema Estratégia<br />
Publicitária, que aponta o potencial de significados correspondente<br />
à atividade social de anunciar por meio de super-heróis. A rede,<br />
chamada de rede sociossemântica (BUTLER, 1985) ou rede semântica<br />
(HALLIDAY, 2003), é constituída de três sistemas: Desejo de<br />
Poder, Apresentação do Produto/Serviço e Necessidade (ver figura<br />
1, a seguir).<br />
192 l Anais Eletrônicos - 2011
A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
Figura 1: Rede de sistema Estratégia Publicitária<br />
As subseções seguintes explicam e exemplificam cada um dos<br />
sistemas da rede sociossemântica.<br />
Desejo de Poder<br />
O grupo de opções sociossemânticas que constituem o sistema<br />
Desejo de Poder caracterizam-se por ofertar produtos/serviços<br />
recorrendo a orações e imagens que investem no aspecto heróico,<br />
sendo, por isso, distintas pela forma como articula a realidade do<br />
ser humano ao universo fictício dos super-heróis. Dessa maneira, o<br />
anunciante tem à disposição escolhas significativas que permitem a<br />
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Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
aproximação do possível consumidor a um modo de vida marcado por<br />
valores pertencentes ao campo das HQs de super-heróis.<br />
Esse sistema apresenta os seguintes subsistemas: representação,<br />
ambiente e posição, cada um com opções específicas.<br />
Representação<br />
O subsistema representação diz respeito à escolha dos principais<br />
participantes que aparecem nos anúncios publicitários. É composto<br />
de duas opções: simples e interativa. A opção simples ocorre quando<br />
são representados ou o destinatário (possível consumidor do produto/<br />
serviço ofertado) ou o super-herói, de modo que um não interage com<br />
o outro na estrutura verbal ou visual. A opção interativa, por sua vez,<br />
ocorre quando ambos, destinatário e super-herói, interagem, ou seja,<br />
aparecem juntos.<br />
A figura 2, a seguir, apresenta um anúncio que exemplifica a<br />
representação simples com a escolha do super-herói. Como se pode ver,<br />
o Homem-Aranha é representado de forma isolada, sem interagir com<br />
o destinatário do anúncio. Na figura 3, por outro lado, tem-se uma<br />
representação interativa, em que os super-heróis Capitão América,<br />
Homem-Aranha, Hulk, Demolidor e Homem de Ferro aparecem na<br />
mesma estrutura visual de um adolescente que tipifica o destinatário<br />
do anúncio.<br />
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A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
Figura 2: Representação simples Figura 3: Representação interativa 3<br />
com foco no super-herói 4<br />
Os exemplos (1) e (2) ilustram a opção simples do subsistema<br />
representação realizada no modo semiótico verbal. Como se pode<br />
ver, enquanto, no primeiro caso, tem-se a escolha do destinatário, no<br />
segundo tem-se a escolha do participante super-herói.<br />
(1)<br />
[you] Get a great cut and a cool DVD comic book. 5<br />
(representação:simples: destinatário)<br />
3. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – sins past (part two). n. 510, p. 11, set. 2004.<br />
4. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – the book of Ezekiel (chapter 1). n. 506, p. 27, jun. 2004.<br />
5. “[você] Adquira um admirável corte de cabelo e um excelente DVD de história em quadrinhos!” (tradução<br />
nossa).<br />
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f<br />
(2)<br />
[The Avengers] to fight foes that no single hero could<br />
withstand. 6 (representação:simples: super-herói)<br />
É importante ressaltar que, apesar de o anunciante possuir, em<br />
teoria, um potencial extenso de participantes para representar em<br />
seus anúncios, tais como o vilão, o amigo do destinatário e outros<br />
personagens secundários, os que mais se destacam no sistema Desejo<br />
de Poder são o destinatário e o super-herói.<br />
Ambiente<br />
O subsistema ambiente refere-se ao tipo de contexto em que<br />
os participantes são representados. São duas as opções: real e fictício.<br />
Quando real, representa-se o destinatário e/ou super-herói no mundo<br />
do ser humano. Exemplos são as situações de decorar um quarto ou<br />
de cortar cabelo. Quando fictício, por sua vez, os participantes são<br />
dispostos no mundo dos super-heróis, marcado pela “super-aventura”<br />
(VIANA, 2005) – por exemplo, ações que só seriam realizadas pelo<br />
uso da tecnologia, ou em lugares e tempos não frequentados pelo<br />
ser humano (outro planeta, um passado/futuro longínquo, e mesmo<br />
o topo de um edifício). Os anúncios apresentados nas figuras 2 e<br />
3 exemplificam essas duas opções. No caso da figura 2, pode-se<br />
ver, por meio de elementos visuais como o sofá e a cadeira, que os<br />
participantes encontram-se em um salão de cabeleireiro, ou seja,<br />
em um ambiente real, associado aos seres humanos. A figura 3, por<br />
outro lado, representa a Nova York fictícia, cenário das narrativas<br />
do super-herói Homem-Aranha.<br />
6. “[Os Vingadores] para combater inimigos que um único herói não poderia resistir” (tradução nossa).<br />
196 l Anais Eletrônicos - 2011
A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
Os exemplos (3) e (4) indicam como o subsistema ambiente é<br />
realizado pelo modo semiótico verbal:<br />
(3)<br />
[you] save Mom big bucks in haircuts. 7 (ambiente: real)<br />
(4)<br />
[you] Battle villains high above the streets. 8 (ambiente: fictício)<br />
Se comparados (3) e (4), percebe-se claramente que o<br />
destinatário (referenciado pelo pronome you - você), ora está em<br />
um mundo real, em que é recorrente a prática de cortar cabelo e<br />
economizar dinheiro, ora em um mundo fictício, em que é recorrente<br />
a prática de lutar contra vilões.<br />
Posição<br />
Por fim, o subsistema posição indica o posicionamento de um<br />
participante em relação ao outro. Pode ser própria ou invertida. Sendo<br />
própria, o destinatário ou super-herói é posicionado comportando-se<br />
ou realizando ações que lhe são habituais, ou seja, que fazem parte<br />
de seu leque de atividades cotidianas. Em outras palavras, a posição<br />
própria representa o destinatário comportando-se como consumidor<br />
e o super-herói comportando-se como super-herói. Sendo invertida,<br />
por outro lado, o participante é representado em um papel trocado,<br />
de modo que o destinatário comporta-se como super-herói e o superherói<br />
como ser humano. A inspiração para o estabelecimento dessas<br />
7. “[você] economize a grana da mamãe em cortes de cabelo.” (tradução nossa).<br />
8. “[você] Combata vilões bem acima das ruas.” (tradução nossa).<br />
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opções advém dos conceitos de Determinação Simples e Inversão,<br />
de van Leeuwen (2008).<br />
Os anúncios das figuras 4 e 5 exemplificam como as opções do<br />
subsistema posição são realizadas visualmente. No caso da figura 4, o<br />
Capitão América encontra-se cortando o cabelo do adolescente, ação<br />
que foge do seu ofício de super-herói. Por outro lado, na figura 5, ele é<br />
representado com seu escudo realizando uma ação que lhe é própria.<br />
Figura 4: Posição invertida 9 Figura 5: Posição própria 10<br />
9. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – the book of Ezekiel (chapter 1). n. 506, p. 27, jun. 2004.<br />
10. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – Mr. Parker goes to Washington (part one). n. 529, p. 36,<br />
abr. 2006.<br />
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A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
Com relação ao modo semiótico verbal, é possível visualizar o<br />
subsistema posição e suas opções própria e invertida nos exemplos (5) e<br />
(6), nos quais o destinatário é representado agindo, respectivamente,<br />
como ser humano e como super-herói.<br />
(5)<br />
[you] to deck out your room, locker, car and, oh yeah, even<br />
your Christmas tree! 11 (posição: própria)<br />
(6)<br />
[you] battle Doc Ock. 12 (posição: invertida)<br />
Apresentação do Produto/Serviço<br />
Apresentação do Produto/Serviço diz respeito à maneira como<br />
a oferta é apresentada ao leitor do anúncio. Pode ser de duas formas:<br />
Descrição e Indução à Ação.<br />
A Descrição, como o próprio nome sugere, indica a descrição<br />
do produto/serviço. É o momento em que se tem a apresentação<br />
(propriamente dita) da oferta, uma vez que é exposta de modo<br />
proeminente na estrutura visual/verbal. No modo visual, essa opção<br />
ocorre com a exposição do produto em dois tipos de representações:<br />
(i) Classificacionais, em que a descrição se dá pela relação entre<br />
participantes Subordinados e Superordenados; e (ii) Analíticos, em<br />
que há uma relação parte-todo (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006).<br />
As figuras seguintes ilustram essas opções.<br />
11. “[você] decorar seu quarto, armário, carro e, ah sim, até sua árvore de natal!” (tradução nossa).<br />
12. “[você] Lute contra Doc Ock.” (tradução nossa).<br />
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Figura 6: Produtos em Processo<br />
Classificacional 13<br />
Figura 7: Produtos em Processo Analítico<br />
No sistema semiótico verbal, a Descrição é realizada a partir<br />
de orações relacionais com o produto/serviço ou no papel de<br />
Característica (exemplo (7)) ou no papel de Portador (exemplo (8)).<br />
(7)<br />
(…) this is the the extraordinary story of some very independent<br />
super heroes. 14<br />
13. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – extreme measures. n. 523, p. 33, out. 2005.<br />
14. “(...) esta é a extraordinária história de alguns super-heróis muito independentes.” (tradução nossa).<br />
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A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
(8)<br />
The Avengers is a collection of your favorite Marvel<br />
characters. 15<br />
Já na opção Indução à Ação, o destinatário do anúncio é<br />
chamado a agir de alguma forma, de modo que essa ação não é, como<br />
nas opções do sistema Desejo de Poder, relacionada às suas emoções,<br />
mas à forma como deve proceder para adquirir um conhecimento<br />
maior do produto/serviço. Aqui, embora o produto/serviço não seja<br />
mostrado diretamente ao destinatário, ainda assim se configura<br />
como um modo de apresentação, visto que, caso realizado o contato<br />
(via internet ou telefone) sugerido pelo anunciante, um outro tipo<br />
de apresentação é concretizada, talvez passando a haver um modo<br />
diferenciado de descrição. Nessa opção, o destinatário é representado<br />
frequentemente em orações materiais no papel de Ator. A construção<br />
transitiva ainda recebe como elemento obrigatório o Escopo, que<br />
informa o lugar que deve ser visitado para adquirir mais informações<br />
acerca do produto. O exemplo (9), a seguir, ilustra isso:<br />
(9)<br />
[you] Visit universalorlando.com 16<br />
Sendo realizada por meio de orações que pedem para<br />
o destinatário entrar em contato com a empresa, a Indução<br />
à Ação oferece duas vantagens principais para o anunciante<br />
(VESTERGAARD e SCHRØDER, 2004, p. 103): “1. obtém dados<br />
diretos sobre a eficiência do anúncio; [e] 2. depois que o cliente<br />
15. “Os Vingadores é uma coleção de seus personagens Marvel favoritos.” (tradução nossa).<br />
16. “[você] Visite universalorlando.com.” (tradução nossa).<br />
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entrou em contato com o anunciante, pode-se reforçar a resposta<br />
com uma comunicação pessoal”.<br />
Necessidade<br />
Por Necessidade, entende-se o momento em que o anunciante<br />
se volta para a aplicabilidade do produto/serviço ou para algum<br />
elemento que pode ser visto como necessário para o consumidor.<br />
Nesse sistema têm-se as opções prática e social. A necessidade prática<br />
é aquela concebida como indispensável ao bem-estar do consumidor;<br />
é escolhida quando se quer enfocar o valor de uso do produto.<br />
Essa opção é realizada por meio de orações em que o destinatário<br />
é representado no papel de Experienciador em Processo Mental de<br />
cunho desiderativo. A oração seguinte é um exemplo:<br />
(10)<br />
You need a haircut. 17<br />
Já a necessidade social enfoca as formas como o indivíduo pode<br />
se relacionar socialmente a partir do consumo. Essa opção é realizada<br />
por orações Mentais em que o Experienciador é instanciado ou pelo<br />
destinatário ou por uma entidade com quem convive socialmente<br />
(como amigos, por exemplo). A oração a seguir exemplifica essa<br />
opção sociossemântica:<br />
(11)<br />
[you] Impress your friends with Marvel Valentines from<br />
American Greetings. 18<br />
17. “Você precisa de um corte de cabelo.” (tradução nossa).<br />
18. “[você] Impressione seus amigos com cartões Marvel Valentines da American Greetings. (tradução nossa).<br />
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A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
De posse dessa rede sociossemântica, vejamos como suas<br />
opções podem ser identificadas em um anúncio e como isso permite<br />
interpretações sociais de interesse para a análise do discurso.<br />
Um exemplo<br />
Voltemos a atenção para o anúncio da figura 3, referente à<br />
oferta do jogo de ação e aventura Spider-Man 2. Por meio da análise<br />
da imagem principal (no topo) e da sequência de cinco imagens<br />
menores (na parte inferior), percebe-se que o anúncio, dentro do<br />
sistema Desejo de Poder, opta por uma estratégia publicitária (ou<br />
conjunto de opções sociossemânticas) nomeada posição fictícia própria<br />
focada no herói. Esse nome deve-se às seguintes escolhas da nossa<br />
rede sociossemântica: representação:simples + participante:herói +<br />
posição:própria + ambiente:fictício. Isso é evidenciado porque em<br />
todas as imagens o Homem-Aranha é realizado como Ator agindo<br />
de maneira própria (ou seja, como super-herói) e em um ambiente<br />
fictício (a Nova York fictícia).<br />
Se analisadas as cinco imagens na parte inferior do anúncio,<br />
ainda se percebe a estratégia Apresentação do Produto/Serviço por meio<br />
de descrição. Isso porque essas imagens, em estrutura conceitual, estão<br />
subordinadas à categoria “jogo Spider-Man 2”, portanto descrevendo<br />
o produto por meio de Processo Classificacional (KRESS e van<br />
LEEUWEN, 2006). Nesse caso, o anunciante oferece ao leitor do<br />
anúncio uma apresentação visual dos produtos, permitindo uma noção<br />
de como eles realmente são.<br />
No modo semiótico verbal, por outro lado, a estratégia<br />
publicitária mais usada é a posição fictícia invertida focada no<br />
consumidor, em que são feitas as seguintes escolhas no sistema<br />
Desejo de Poder: representação:simples + participante:destinatário<br />
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+ posição:invertida + ambiente:fictício. Nesse caso, há uma<br />
opção por orações com Processos Materiais. O possível consumidor<br />
(Destinatário) é representado no papel de Ator realizando ações<br />
que, por serem no mundo fictício, só seriam tipicamente efetuadas<br />
pelo super-herói. As orações no quadro 1 expõem a ocorrência desse<br />
“padrão de transitividade” (THOMPSON, no prelo), de modo que o<br />
consumidor aparece combatendo o crime e aplicando poderes.<br />
[you] battle Doc Ock<br />
[você] lute contra Doc Ock<br />
[you] bust street crimes<br />
[você] arrebente crimes urbanos<br />
[you] clash with classic villains<br />
[você] enfrente vilões clássicos<br />
[you] Do anything Spider-Man<br />
can<br />
with breathtaking new moves<br />
and amazing combos<br />
[você]<br />
Faça<br />
qualquer coisa que o<br />
Homem-Aranha faz<br />
com novos movimentos de tirar o<br />
fôlego e combinações surpreendentes<br />
[you] go anywhere<br />
[você] vá para qualquer lugar<br />
[you] interact with anything<br />
[você] interaja com qualquer coisa<br />
204 l Anais Eletrônicos - 2011
A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
[you] Pick your own path<br />
[você] Escolha seu próprio caminho<br />
[you] Swing through a living, highly detailed<br />
Manhattan<br />
[você]<br />
Mova-se<br />
por uma Manhattan viva e cheia<br />
de detalhes<br />
[you] Web swing for the first time from street to<br />
rooftop across the entire city<br />
[você]<br />
Mova-se<br />
pela primeira vez das ruas aos<br />
telhados por toda a cidade<br />
[you] Take New York for a spin<br />
[você] Pegue Nova York para uma volta<br />
Ator Pr:Material Meta Circunstância<br />
Nowhere you can’t go<br />
Nenhum lugar<br />
onde<br />
você<br />
não possa ir<br />
Nothing you can’t do<br />
Nada que você não possa fazer<br />
Circunstância Meta Ator Pr:Material<br />
Quadro 1: Orações Materiais<br />
Das 14 orações presentes no anúncio, 12 seguem essa escolha<br />
semântica. Nas outras duas o anunciante escolhe as seguintes opções:<br />
desejo de poder por meio de posição real própria focada no consumidor<br />
(representação:simples + participante:destinatário + posição:própria<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 205
Sinta e<br />
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+ ambiente:real), com o destinatário representado como Comportante<br />
e o produto como Fenômeno em oração Comportamental (quadro 2);<br />
e Apresentação do Produto/Serviço por meio de descrição, realizada<br />
por oração Relacional Atributiva (quadro 3).<br />
[you] Preview the game<br />
trailer<br />
on Spider-Man Deluxe Edition<br />
DVD<br />
[você]<br />
Assista (em pré-estréia)<br />
o trailer do<br />
jogo<br />
na Edição de Luxo do DVD do<br />
Homem-Aranha<br />
Comportante Pr: Comportamental Fenômeno Circunstância<br />
Quadro 2: Oração Comportamental<br />
[it] [is] Available Now<br />
[ele] [está] Disponível Agora<br />
Portador Pr:Relacional Atributo Circunstância<br />
Quadro 3: Oração Relacional Atributiva<br />
Assim, o anunciante, na escolha das estratégias publicitárias,<br />
tem uma preferência por orações e estruturas visuais que realizam<br />
opções do sistema Desejo de Poder. De modo mais específico, o desejo<br />
de poder é explorado por meio de duas estratégias: posição fictícia<br />
própria focada no herói e posição fictícia invertida focada no consumidor.<br />
Mas um fato a notar é que essas opções são realizadas em modos<br />
semióticos diferentes: enquanto o super-herói é disposto visualmente,<br />
projetando desejos do destinatário, o destinatário é representado<br />
verbalmente, de tal forma que, em posição invertida, combina-se com<br />
o que é idealizado nas imagens.<br />
206 l Anais Eletrônicos - 2011
A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
Com isso, pode-se afirmar que o leitor do anúncio do jogo<br />
Spider-Man 2 é levado a se projetar diante do mundo da superaventura.<br />
Talvez o anunciante queria que o destinatário se veja<br />
como consumidor, mas, ao mesmo tempo, alimente seus sonhos. Isso<br />
corrobora o excerto de Randazzo (1996, p. 20): “[o]s publicitários<br />
aprenderam que podem tornar as suas mensagens de venda mais<br />
eficazes vestindo os seus produtos com nossos sonhos e fantasias”. O<br />
mito dos super-heróis, então, é a matéria dos sonhos utilizada para que<br />
o produto ofertado seja visto de maneira positiva. Destarte, o produto<br />
ofertado passa a ser a “ponte” entre o mundo real e o mundo fictício,<br />
evidenciando que a sociedade de consumo, com toda sua ideologia 19 ,<br />
é ainda mais fortalecida por meio da mitologia dos super-heróis 20 .<br />
Considerações finais<br />
O artigo demonstrou o potencial de significados disponível na<br />
publicidade que constrói anúncios com base em super-heróis de HQs<br />
norte-americanas. Esse potencial foi sistematizado por meio de uma<br />
rede sociossemântica que expõe as opções de significado disponíveis<br />
para o anunciante.<br />
Na última seção do artigo, foi demonstrado como a rede<br />
sociossemântica pode ser utilizada na análise dos tipos de anúncios<br />
em questão. A seção demonstrou que, de posse dessa rede, é possível<br />
(i) ter uma visão da maior parte de significados do anúncio e (ii) fazer<br />
uma análise crítica ao considerar o anúncio em sua prática social.<br />
19. O termo ideologia é aqui considerado em sua concepção latente: “ideologia é um sistema de representações<br />
que servem para sustentar relações existentes de dominação de classes através da orientação das pessoas para<br />
o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem as relações de classe e desviam da<br />
busca coletiva de mudança social” (THOMPSON, 2007, p. 58).<br />
20. Sobre os super-heróis como mitologia moderna, ver Reynolds (1992).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 207
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Acredita-se que essa rede de sistema pode ser usada, talvez com<br />
algumas adaptações, na análise de textos publicitários pertencentes a<br />
outras situações, principalmente quando se tem o uso de personagens<br />
ou indivíduos famosos que costumam ser tratados como heróis ou<br />
modelos de comportamento.<br />
Referências<br />
BERGER, J. Ways of Seeing. Harmondsworth: Penguin, 1972.<br />
BUTLER, C. S. Systemic Linguistics: theory and applications. London: Batsford, 1985.<br />
ECO, U. Apocalípticos e integrados. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.<br />
FEATHERSTONE, M. Consumer culture and postmodernism. 2. ed. London: SAGE<br />
Publications, 2007.<br />
HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and<br />
meaning. London: Edward Arnold, 1978.<br />
______. Context of situation. In: HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context, and<br />
text: aspects of language in a social-semiotic perspective. 2. ed. Oxford: Oxford University<br />
Press, 1989.<br />
______. Towards a sociological semantics. In: WEBSTER, J. (Ed.). On language and linguistics:<br />
volume 3 in the collected works of M. A. K. Halliday. London: Continuum, 2003. p. 323-354.<br />
HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional grammar. 3.<br />
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HASAN, R. The structure of a text. In: HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context,<br />
and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. 2. ed. Oxford: Oxford<br />
University Press, 1989.<br />
208 l Anais Eletrônicos - 2011
A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />
Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />
KRESS, G.; van LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of visual design. 2. ed. London:<br />
Routledge, 2006.<br />
RANDAZZO, S. A criação de mitos na publicidade: como publicitários usam o poder do<br />
mito e do simbolismo para criar marcas de sucesso. Trad. Mario Fondelli. Rio de Janeiro:<br />
Rocco, 1996.<br />
REYNOLDS, R. Super Heroes: a modern mythology. Jackson: University Press of Mississippi,<br />
1992.<br />
SILVA, J. J. D. da. “Want to be a real hero?”: uma análise sistêmico-funcional de anúncios<br />
em revistas em quadrinhos de super-heróis. 2011. Dissertação (Mestrado em Linguística)<br />
– Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING), Universidade Federal da Paraíba,<br />
João Pessoa, 2011.<br />
THOMPSON, G. From process to pattern: methodological considerations in analysing<br />
transitivity in text. In: Jones, C.; Ventola, E. (Eds.). New developments in the study of ideational<br />
meaning: from language to multimodality. Equinox, no prelo.<br />
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de<br />
comunicação de massa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.<br />
van LEEUWEN, T. Time in discourse. In: WEBSTER, J. (Ed.). Linguistics and the human sciences.<br />
vol. 1.1. London: Equinox Publishing, 2005. p. 127-145.<br />
______. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford<br />
University Press, 2008.<br />
VESTERGAARD, T.; SCHRØDER, K. A linguagem da propaganda. Tradução João Alves dos<br />
Santos. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />
VIANA, N. Heróis e super-heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 2005.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 209
Resumo<br />
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise sistêmico-funcional<br />
de um texto opinativo, a saber: o editorial. Para tanto, tomamos como<br />
princípio teórico os postulados da Linguística Sistêmico-Funcional – LSF,<br />
especificamente acerca da metafunção interpessoal da linguagem. Essa<br />
teoria tem em Halliday (1985; 2004) o seu maior expoente, com a obra An<br />
Introduction to Functional Grammar. A partir dos pressupostos teóricos<br />
e da análise empreendida no editorial Quem mesmo vai pagar a conta?,<br />
publicado em 3 de abril de 2009 pela revista Época, comprovamos que os<br />
recursos lexicogramaticais de interpessoalidade atuam no gênero editorial<br />
como possibilitadores de trocas de informação e estabelecem diálogos<br />
entre os participantes dessa ação social em seu espaço de circulação.<br />
Palavras-chave: Linguística Sistêmico-Funcional; metafunções da<br />
linguagem; metafunção interpessoal; gênero editorial.<br />
Abstract<br />
The objective of this paper is to present a systemic functional analysis of<br />
an opinionated text, called ‘editorial’. To this end, we take as the theoretical<br />
principle, tenets from Systemic Functional Linguistics - SFL, specifically<br />
about the interpersonal metafunction of the language. This theory has in<br />
Halliday (1985, 2004) its greatest exponent, with the work An Introduction<br />
to Functional Grammar. From the theoretical assumptions of the analysis<br />
and the editorial Quem vai pagar a conta?, published on November<br />
6th, 2009, by Época magazine, we proved that the lexical-grammatical<br />
resources of interpersonal editorial work in the genre as enablers of<br />
information exchange and establish dialogues between participants of<br />
social action in their area of circulation.<br />
Keywords: Systemic Functional Linguistics; language metafunction,<br />
interpersonal metafunction, editorial genre.
Considerações iniciais<br />
A interpessoalidade no<br />
gênero editorial: um estudo<br />
sistêmico-funcional<br />
Lucélio Dantas de AQUINO<br />
(UFRN/PPGEL)<br />
O presente artigo se constitui de um recorte de nossa dissertação<br />
de mestrado que versou sobre dois campos teóricos: a Linguística<br />
Sistêmico-Funcional e a Multimodalidade Discursiva. A referida<br />
dissertação teve como título Mecanismos de construção de sentidos no<br />
gênero editorial: aspectos verbais e visuais (AQUINO, 2010).<br />
Para esse momento, o excerto apresentado diz respeito ao<br />
estudo sistêmico-funcional empreendido com editoriais. Desse modo,<br />
nossa análise será efetivada em apenas um editorial, com vistas a uma<br />
exploração do fenômeno da interpessoalidade e, para tanto, faremos,<br />
após estas breves considerações, uma incursão teórica pela Linguística<br />
Sistêmico-Funcional e nos deteremos na metafunção interpessoal da<br />
linguagem e nos mecanismos de manifestação desta metafunção no<br />
editorial Quem vai pagar a conta?, publicado pela revista Época no dia<br />
6 de novembro de 2009.<br />
Linguística sistêmico-funcional<br />
A Linguística Sistêmico-Funcional – LSF – é uma corrente<br />
teórica de base funcionalista que tem em M. A. K. Halliday o seu<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 211
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
maior expoente. Para este estudioso, o texto e o contexto devem ser<br />
levados em consideração em uma abordagem semântico-funcional<br />
da linguagem. Sobre isso, Eggins (2004, p. 20-21) afirma que a LSF<br />
pode ser descrita como uma aproximação semântico-funcional<br />
da linguagem que explora como as pessoas usam a linguagem em<br />
diferentes contextos, e como a linguagem é estruturada para uso como<br />
sistema semiótico. Desse modo, falar em texto é falar da linguagem em<br />
uso, em interação, em escolhas que fazemos diante de um repertório<br />
de possibilidades que a língua oferece.<br />
Por isso, Halliday (2004) assume a corrente sistêmico-funcional<br />
como uma teoria que observa a língua enquanto escolha, ou seja,<br />
sempre que se usa determinada construção linguística estamos<br />
empregando, nessa construção, escolhas que constroem a significação<br />
do discurso na interação entre os usuários.<br />
Sob esta ótica, devemos encarar a LSF não como um conjunto<br />
de regras, mas, sim, como um aparato teórico-metodológico de<br />
descrição, interpretação e análise de textos, sendo, portanto, o texto<br />
o objeto de estudo dessa corrente teórica. Por este viés, não podemos<br />
esquecer de mencionar que parte fundamental na construção social<br />
de textos está no contexto.<br />
Butt et al. (2001) nos afirmam a existência de dois contextos<br />
no âmbito da LSF que são complementares: o contexto de cultura<br />
e o contexto de situação. Dessa maneira, um texto para existir<br />
tem que fazer parte de uma cultura e realizar funções específicas.<br />
Pensando assim, citamos Butt et al. (2001, p. 3) quando afirmam<br />
que “a combinação do contexto de cultura e contexto de situação<br />
resulta em diferenças e semelhanças entre uma parte de linguagem e<br />
outra” 1 , ou seja, dependendo do contexto de cultura e do contexto<br />
1. Original: “The combination of context of culture and context of situation results in the differences and similari-<br />
212 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
de situação nos quais usuários da linguagem se comunicam por meio<br />
de textos, diversas formas textuais se fazem disponíveis na cultura<br />
e, para isto, escolhas entre essas formas devem ser feitas para que a<br />
linguagem cumpra seu propósito comunicativo.<br />
As escolhas textuais nesta cultura, de acordo com a situação<br />
de interação, podem ser iguais ou diferentes, isto é, podemos escrever<br />
um bilhete para informar aos nossos pais que fomos ao mercado, bem<br />
como podemos receber um bilhete de nosso chefe dizendo que temos<br />
uma reunião às dezessete horas da quinta-feira. Podemos também<br />
receber um ofício circular ou um e-mail informando sobre a referida<br />
reunião. Como vemos, os gêneros estão disponíveis para as escolhas<br />
dos interactantes da linguagem que farão uso em contextos de situação<br />
específicos. Sendo assim, relacionados ao contexto de cultura e ao<br />
contexto de situação estão o gênero e o registro, respectivamente.<br />
Gênero é o produto de um contexto de cultura e o registro é o produto<br />
do contexto de situação.<br />
A esse pensamento, subjaz o conceito de função de linguagem<br />
que Halliday proporá tomando por base as relações entre os contextos<br />
e o produto da interação, do texto. Vejamos, assim, as metafunções<br />
da linguagem e suas implicaturas para a linguagem.<br />
Metafunções da linguagem<br />
Nas palavras de Halliday (2004), as funções básicas da<br />
linguagem são duas: uma que produz os sentidos da experiência<br />
humana, representando os processos juntamente com os participantes<br />
e circunstâncias e a outra sendo aquela que representa as relações<br />
sociais. Para ele, a primeira metafunção, aquela que constrói as<br />
ties between one piece of language and another.” (BUTT et al., 2001, p. 3).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 213
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
experiências humanas, é chamada de ideacional. Ela é responsável<br />
por nomear coisas, interpretando-as em categoriais; por conseguinte,<br />
essas categoriais são, mais adiante, interpretadas em taxonomias.<br />
Nesse sentido, a linguagem provê uma teoria da experiência humana<br />
e certos recursos da lexicogramática são dedicados a esta função.<br />
A segunda metafunção a que se refere o autor é a interpessoal.<br />
Segundo ele, esta função desempenha as variadas relações<br />
pessoais e sociais com as pessoas que nos rodeiam. A oração, nessa<br />
metafunção, é vista além da representação de algum processo com<br />
seus participantes e circunstâncias, é vista como proposição ou<br />
proposta a partir das quais informamos, questionamos, damos ordens<br />
ou fazemos ofertas, além de expressarmos nossa avaliação e atitude<br />
em relação a quem estamos nos dirigindo ou sobre o qual estamos<br />
falando. Desse modo, Halliday (2004, p. 29-30) afirma que: “se a<br />
função ideacional da gramática é ‘linguagem como reflexão’ esta é<br />
‘linguagem como ação’” 2 .<br />
Como afirma o autor, essas são as duas funções básicas da<br />
linguagem e cada uma desempenha significados diferentes em uma<br />
oração, configurando duas redes de sistemas distintos. Nesse sentido,<br />
toda mensagem diz de um conteúdo endereçado a alguém. E, pela<br />
necessidade de organização dessas funções no texto, outra função<br />
é emanada da linguagem – a metafunção textual. O papel dessa<br />
metafunção na linguagem está em organizar o fluxo discursivo em<br />
seus movimentos sucessivos de interação e manter a coesão no texto<br />
(HALLIDAY, 2004).<br />
Nessa perspectiva, é na oração que se conjugam essas<br />
metafunções que se projetam verbalmente para produzir os sentidos<br />
2. Original: “the ideational function of the grammar is ‘language as reflection’, this is ‘language as action’”.<br />
(HALLIDAY, 2004, p. 29-30).<br />
214 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
desejados. Dessa forma, semântica e lexicogramática se organizam<br />
em conjunto para realizar as metafunções, fornecendo o repertório<br />
linguístico do qual o produtor de um texto escolherá o que é<br />
pertinente à sua produção. Apresentamos, a seguir, por uma questão<br />
de extensão deste artigo, apenas a metafunção interpessoal, haja<br />
vista termos enunciado anteriormente, de forma sintética, o papel<br />
das demais metafunções na e para a linguagem.<br />
Metafunção interpessoal<br />
Segundo Halliday & Mathiessen (1997, online)<br />
A metafunção interpessoal está preocupada com a interação<br />
entre falante e destinatário(s), os recursos gramaticais para<br />
desempenhar papéis sociais em geral, e papéis da fala em<br />
particular, em interações dialógicas; i.e. por estabelecer, trocar<br />
e manter relações interpessoais (grifos dos autores) 3 .<br />
Nesse sentido, além de graus de formalidade, esta metafunção<br />
realiza papéis sociais como estabelecer, trocar e manter relações<br />
entre os falantes de uma língua. Em uma interação os falantes/<br />
escritores realizam um papel em particular e atribuem a seus ouvintes/<br />
leitores um outro papel complementar que é desejado pelo autor,<br />
pois é característica dessa metafunção estabelecer trocas, havendo,<br />
portanto, uma alternância dos papéis de oferecer e pedir bens e<br />
serviços (propostas) ou informações (proposições).<br />
3. Original: “The interpersonal metafunction is concerned with the interaction between speaker and<br />
addressee(s) the grammatical resources for enacting social roles in general, and speech roles in particular, in<br />
dialogic interaction; i.e. for establishing, changing, and maintaining interpersonal relations.” (HALLIDAY & MA-<br />
THIESSEN, 1997, online, grifos dos autores)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 215
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Ao utilizar a linguagem como bens e serviços, o locutor visa a<br />
influenciar o comportamento de alguém ou a atingir um determinado<br />
objetivo por meio das escolhas que realiza. A este interesse do locutor<br />
pode ser conferido aceitação ou rejeição, obedecer ou desobedecer ao<br />
que lhe foi discursivamente apresentado. Por outro lado, quando o<br />
papel é de informação, o uso da linguagem é de responsabilidade dos<br />
dois agentes da situação. Desse modo, ao utilizar a linguagem como<br />
informação, o locutor dará e pedirá informação. Isso se dá através<br />
de afirmações e/ou interrogações, fornecendo a informação para que<br />
o outro envolvido na situação tome conhecimento, podendo esse<br />
outro optar por não responder ou contestar a informação. Assim, a<br />
interação fica marcada no discurso proferido por meio de elementos<br />
lexicogramaticais escolhidos em meio ao sistema de modo que a<br />
língua oferece aos seus falantes, isto é, a serem usados como troca de<br />
significados entre os interlocutores.<br />
Esses elementos lexicogramaticais são realizados na linguagem<br />
por meio de dois sistemas: o sistema de modo e o sistema de<br />
modalidade. Para Martin et al. (1997), o sistema de modo pertence<br />
à metafunção interpessoal da linguagem e é o recurso gramatical<br />
responsável para se perceber um movimento interativo no diálogo.<br />
Segundo esses autores, a distinção básica dentro do sistema gramatical<br />
de modo está entre os tipos de modo imperativo e indicativo. Com o tipo<br />
indicativo, tem-se uma distinção adicional entre os tipos declarativos<br />
e interrogativos. Sendo assim, esse conjunto compõe o que por eles é<br />
chamado de tipos básicos de modo.<br />
Ao falar em modalidade, Halliday (2004) afirma que este<br />
sistema atua como um avaliador em uma região de incerteza sobre o<br />
que está sendo expresso pelo orador, ou sobre o que é pedido para o<br />
ouvinte expressar; a modalidade realiza uma avaliação da validez do<br />
que é dito. A modalidade, quando empregada na linguagem, opera<br />
216 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
em graus intermediários, uma vez que representam/demonstram<br />
apreciação sobre o que se está dizendo. Diz-se, portanto, que são<br />
graus intermediários por estarem entre os polos do ‘sim’ e do ‘não’,<br />
revelando indeterminação como ‘às vezes’ ou ‘talvez’. Há dois tipos<br />
de modalidade: a modalização e a modulação. A modalização se realiza<br />
por meio da probabilidade e usualidade, e a modulação por meio da<br />
obrigação e disposição (inclinação e habilidade).<br />
Nesse ínterim, vejamos os mecanismos que manifestam os<br />
sistemas de modo e de modalidade na linguagem para, enfim,<br />
realizarmos a análise.<br />
Mecanismos verbais de interação<br />
Os sistemas de modo e de modalidade que materializam a<br />
metafunção interpessoal da linguagem são realizados por recursos<br />
específicos, tais como: sujeito, pronomes, advérbios, adjetivos,<br />
auxiliares modais, interrogações, entre outros. Aqui, daremos destaque<br />
a três desses elementos, a saber: os pronomes, especificamente os<br />
possessivos, os auxiliares modais e as interrogações. Vejamos de<br />
maneira conceitual alguns desses recursos.<br />
a) Pronomes possessivos e de tratamento<br />
Os pronomes possessivos, especificamente os de 1ª pessoa<br />
do plural (P1p), segundo Souza (2007), manifestam a autoria em<br />
um texto. Desse, modo, são responsáveis também por coadunar os<br />
participantes do discurso na cena enunciativa.<br />
Na gramática da língua portuguesa, os pronomes possessivos<br />
são aqueles que indicam posse, mas como esta não é a única função<br />
de um pronome possessivo e, como na LSF toda significação parte de<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 217
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
um contexto, entendemos que os pronomes possessivos são elementos<br />
interativos que unem os participantes em um texto, fazendo-os<br />
agir na mesma direção e, no caso do editorial, serve também como<br />
recurso de persuasão, já que aquilo que é informado no gênero pode<br />
ser colocado, pelo pronome possessivo, como sendo o pensamento<br />
de toda a sociedade.<br />
b) Auxiliares modais<br />
Os auxiliares modais também desempenham na Língua<br />
Portuguesa relações interpessoais com base no uso que deles são<br />
feitos. Esses elementos, segundo Ghio & Fernández (2008, p. 133),<br />
“sempre são verbos finitos e, portanto, sempre formam parte de um<br />
bloco modal (...)” 4 , ou seja, em uma construção linguística, os verbos<br />
principais podem vir acompanhados de um verbo modal, formando,<br />
assim, um bloco na unidade de análise da LSF: a oração.<br />
Como apontam Souza e Heberle (2008), em confirmação ao que<br />
já dissemos, os auxiliares modais são mais uma forma de a metafunção<br />
interpessoal se manifestar na linguagem com a função de modalizar<br />
a ação realizada pelo verbo principal em uma determinada oração.<br />
Na língua portuguesa, são exemplos de auxiliares modais,<br />
conforme Souza e Heberle (2008, p. 103), “parecer, querer, poder, ser,<br />
dever, ter que e outros”. Estes são recursos que, segundo as autoras,<br />
expressam a modalização e modulação que anteriormente foram<br />
apresentadas e que realizam relações interpessoais na linguagem.<br />
Cada um desses verbos modais pode expressar sentidos diversos<br />
de acordo com o contexto em que aparecem, podendo significar<br />
4. Original: “siempre son verbos finitos e por lo tanto siempre forman parte del bloque modal (...)” (GHIO & FER-<br />
NÁNDEZ, 2008, p. 133, grifos das autoras).<br />
218 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
necessidade, obrigação, dever (dever), possibilidade ou capacidade<br />
(poder), e aparência ou dúvida (parecer). Desse modo, como são<br />
recursos da modalidade, os auxiliares modais podem funcionar ora<br />
como modulação ora como modalização. Em um gênero como o<br />
editorial, conforme Souza (2007), eles podem revelar o ponto de<br />
vista do autor, enfatizando, em alguns momentos, este ponto de vista<br />
e em outros atenuando a opinião autoral. Desse modo, a utilização<br />
de auxiliares modais sempre corrobora a construção de sentidos<br />
interacionais de um texto.<br />
c) Interrogações<br />
Outro elemento capaz de expressar interação é a interrogação.<br />
Segundo Souza (2007, p. 1531, online):<br />
Dialogar com o leitor, estabelecendo uma parceria através de<br />
perguntas, consiste em uma expressiva manifestação da função<br />
interpessoal da linguagem porque, ao se fazer uma pergunta,<br />
se espera uma reação do interlocutor, ainda que o leitor não<br />
tenha condição de responder explícita e imediatamente.<br />
Com base nisso, percebemos a interrogação como meio de<br />
estabelecimento de diálogo entre os participantes de uma ação<br />
social. Por este motivo, quando utilizamos uma oração interrogativa,<br />
podemos destinar a ela duas funções discursivas: a primeira referese<br />
a um diálogo direto com o interlocutor (leitor, no caso de um<br />
texto escrito), exigindo, de alguma maneira, uma resposta por parte<br />
dele; e a segunda diz respeito a um diálogo que se trava entre autor<br />
e texto, ou seja, a interrogação é feita pelo autor sem vistas a uma<br />
resposta do público leitor, o que se pretende é contribuir com as ideias<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 219
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
anteriormente expressas no texto, ou instigar o leitor para o que será<br />
enunciado posteriormente.<br />
Além disso, vale salientar que, na gramática da língua<br />
portuguesa, as formas de reconhecimento de um discurso interrogado<br />
se dão pela presença inicial dos pronomes interrogativos (quem,<br />
quanto, qual e (o) que) e pela presença de pontuação específica, no<br />
caso, o ponto de interrogação. Todavia, se entendemos a linguagem<br />
como um ato funcional, temos que perceber as outras formas de<br />
materialização do elemento interrogação, isto porque, algumas vezes,<br />
as orações interrogativas podem aparecer com a ausência ou do<br />
pronome interrogativo, ou da pontuação.<br />
Nessa perspectiva, é com base na entonação (HALLIDAY,<br />
2004) que podemos detectar a forma interrogativa da oração e, a<br />
partir daí, depreender os sentidos interpessoais que ela comporta. Isto<br />
porque a prosódia distingue na língua os conteúdos frásicos, fazendo<br />
com que possamos compreender os sentidos de uma construção, se<br />
interrogativa ou se afirmativa, por exemplo.<br />
A análise de um editorial à luz da metafunção interpessoal da<br />
linguagem<br />
O editorial a seguir é da revista Época, de abril de 2009, e<br />
recebeu o seguinte título: Quem mesmo vai pagar a conta?. Nele,<br />
observaremos os seguintes recursos verbais: pronomes possessivos,<br />
auxiliares modais e interrogações, com o objetivo de compreendermos<br />
a interação verbal no gênero editorial.<br />
220 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
___________________________________________________________<br />
QUEM MESMO VAI PAGAR A CONTA?<br />
Nos desenhos animados, os super-heróis costumavam se reunir numa<br />
espécie de sala de guerra – ou era sala de justiça? – para discutir como<br />
combater os bandidos, erradicar o mal e salvar a humanidade da<br />
destruição. Foi mais ou menos o que aconteceu na semana passada em<br />
Londres. Desta vez, o comitê para salvar o mundo reuniu os 20 líderes mais<br />
importantes do planeta, um grupo conhecido como G20. E lá estavam<br />
eles: Barack Obama, Gordon Brown, Angela Merkel, Nicolas Sarkozy, Silvio<br />
Berlusconi, Wen Jiabao e, entre tantos outros, evidentemente nosso Luiz<br />
Inácio Lula da Silva. Todos sorrindo, trocando abraços, afagos e tapinhas<br />
nas costas, como velhos colegas de faculdade que se encontram anos<br />
depois da formatura. Do lado de fora, é claro, o inevitável quebra-quebra,<br />
os indefectíveis protestos “contra tudo isso que está aí” e também uma<br />
morte fatídica.<br />
Obama vira então para Lula e diz: “Esse é o cara (...). Amo este homem.<br />
É o político mais popular da Terra”. Lula quase enrubesce, orgulhoso do<br />
papel que o Brasil finalmente parece ocupar naquilo que os estudiosos<br />
convencionaram chamar de “concerto das nações” – e soam os violinos.<br />
Na foto, Lula sorri ao lado da rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Todos<br />
assinam um pedaço de papel onde está escrito um texto meio cifrado.<br />
Mas lá vêm os especialistas em economia, sempre solícitos, prontos para<br />
traduzir, explicar, justificar: o Fundo Monetário Internacional vai receber<br />
mais US$ 1,1 trilhão – mais 1 trilhão! –, parece que os paraísos fiscais serão<br />
extintos, o protecionismo será combatido, vai acabar a farra dos bancos<br />
com instrumentos financeiros exóticos e os governos vão finalmente<br />
investir pesado para enfrentar o desemprego. Sim, agora vai. Nossos<br />
super-heróis salvaram o mundo de novo – e as Bolsas sobem eufóricas.<br />
É a glória, a consagração, o nirvana.<br />
Pausa para reflexão.<br />
Está bem, minha gente. Pode até ser que tudo não tenha passado de<br />
um bacanal contábil promovido por “esses banqueiros brancos, de<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 221
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
olhos azuis”. Pode até ser que, agora, tudo esteja resolvido. É tão fácil,<br />
não? Pode até ser que esses caras tenham esses trilhões e trilhões – eles<br />
não são super-heróis, não são “os caras”? Mas vem cá... Quem é mesmo<br />
que tem conta nos paraísos fiscais? Quem foi mesmo que deixou de<br />
pagar Imposto de Renda? Quem, quem foi mesmo que alimentou a farra<br />
bancária, regada a juros irrisórios, com liberdade para enrolar, cheirar e<br />
injetar papéis tóxicos e derivativos sem camisinha na economia? Ah, sim,<br />
e quem mesmo vai pagar a conta?<br />
Fonte: Revista Época, abril de 2009.<br />
___________________________________________________________<br />
O editorial em evidência manifesta uma opinião bastante crítica<br />
com relação à reunião do comitê, para salvar o mundo, que reuniu<br />
os vinte líderes mais importantes do planeta. A crítica residiu na<br />
informação sobre o Fundo Monetário Internacional que iria receber<br />
mais um trilhão de dólares para combater a crise mundial e no fato<br />
de que isso não impediu que as Bolsas subissem euforicamente.<br />
Neste editorial, os recursos verbais são utilizados para promover<br />
interação entre os usuários da linguagem. Um dos recursos usados é<br />
o pronome possessivo que inclui o leitor na situação comunicativa.<br />
Vejamos:<br />
[01]<br />
Nos desenhos animados, os super-heróis costumavam se reunir numa espécie<br />
de sala de guerra – ou era sala de justiça? – para discutir como combater<br />
os bandidos, erradicar o mal e salvar a humanidade da destruição. [...] E lá<br />
estavam eles: Barack Obama, Gordon Brown, Angela Merkel, Nicolas Sarkozy,<br />
Silvio Berlusconi, Wen Jiabao e, entre tantos outros, evidentemente nosso Luiz<br />
Inácio Lula da Silva.<br />
222 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
[02]<br />
Mas lá vêm os especialistas em economia, sempre solícitos, prontos para<br />
traduzir, explicar, justificar: o Fundo Monetário Internacional vai receber<br />
mais US$ 1,1 trilhão – mais 1 trilhão! –, parece que os paraísos fiscais serão<br />
extintos, o protecionismo será combatido, vai acabar a farra dos bancos com<br />
instrumentos financeiros exóticos e os governos vão finalmente investir pesado<br />
para enfrentar o desemprego. Sim, agora vai. Nossos super-heróis salvaram<br />
o mundo de novo – e as Bolsas sobem eufóricas. É a glória, a consagração, o<br />
nirvana.<br />
Os dois pronomes em destaque nos exemplos [01] e [02]<br />
incluem o leitor na opinião emitida pelo editorialista, isto revela que a<br />
informação divulgada interessa ao leitor e que ele também compartilha<br />
do que é dito. Nesse sentido, ocorre uma aproximação entre os<br />
interlocutores da situação comunicativa. É visível nos dois casos o tom<br />
de ironia explicitado pelo uso dos pronomes. No caso [01], essa ironia<br />
se dá pela analogia tecida entre Lula e super-herói como salvadores<br />
da humanidade. No segundo caso, oração [02], também por meio<br />
dessa comparação entre os líderes do planeta terra e os super-heróis,<br />
notamos que o uso do pronome nossos transmite ironia, o que implica<br />
uma concepção geral, ou seja, todos os interlocutores compactuam<br />
com o ato de ironizar no texto sobre o salvamento mundial diante<br />
da crise vivenciada pelo fundo monetário internacional. Além disso,<br />
a construção seguinte dessa oração evidencia melhor a ironia a que<br />
nos referimos – “É a glória, a consagração, o nirvana”.<br />
O texto também apresenta o auxiliar modal parecer e o auxiliar<br />
modal poder, conforme podemos ver nos exemplos a seguir:<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 223
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
[03]<br />
Obama vira então para Lula e diz: “Esse é o cara (...). Amo este homem. É o<br />
político mais popular da Terra”. Lula quase enrubesce orgulhoso do papel que<br />
o Brasil finalmente parece ocupar naquilo que os estudiosos convencionaram<br />
chamar de “concerto das nações” – e soam os violinos. [...]<br />
[04]<br />
Está bem, minha gente. Pode até ser que tudo não tenha passado de um bacanal<br />
contábil promovido por “esses banqueiros brancos, de olhos azuis”. Pode até<br />
ser que, agora, tudo esteja resolvido. É tão fácil, não? Pode até ser que esses<br />
caras tenham esses trilhões e trilhões – eles não são super-heróis, não são “os<br />
caras”? Mas vem cá... Quem é mesmo que tem conta nos paraísos fiscais? [...]<br />
No exemplo [03], a opinião do autor acerca da situação de Lula<br />
após o comentário feito por Barack Obama, revela um efeito de dúvida<br />
pela utilização do auxiliar parecer. Conforme diz o texto, o Brasil está<br />
no grupo dos que buscam concertar as nações, entretanto, como o<br />
uso do parece persiste uma dúvida se ele continuará nessa posição.<br />
Com este emprego, o autor atenua o seu posicionamento no texto,<br />
marcando a autoria do que é dito.<br />
No recorte [04], temos a presença do processo poder em três<br />
momentos. Nos três casos, o auxiliar modal em destaque desvela<br />
a presença do autor que dialoga com as informações apresentadas<br />
sobre a economia, despertando incerteza na proposição. Esse modo<br />
de utilização, bem como do verbo modal parecer, são utilizados pelo<br />
autor para amenizar o compromisso e a responsabilidade dele com<br />
aquilo que é veiculado, apresentando graus diferentes de modalização.<br />
No primeiro caso em que o modal parecer ocorre, temos um grau<br />
baixo de modalização, uma vez que se gera uma dúvida por parte do<br />
224 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
autor acerca da informação transmitida. O segundo caso, no qual o<br />
processo poder é utilizado, temos um grau médio de modalização, haja<br />
vista refletir a incerteza do autor por meio de orações interrogativas.<br />
Até o momento, vemos que os pronomes possessivos e os<br />
auxiliares modais estão intercambiando informações entre os<br />
interlocutores no texto, porém, outro recurso pode ser percebido no<br />
editorial ora analisado: as interrogações. Mecanismo que observamos<br />
a seguir:<br />
[[05]<br />
QUEM MESMO VAI PAGAR A CONTA?<br />
[06]<br />
Nos desenhos animados, os super-heróis costumavam se reunir numa espécie<br />
de sala de guerra – ou era sala de justiça? – para discutir como combater os<br />
bandidos, erradicar o mal e salvar a humanidade da destruição. Foi mais ou<br />
menos o que aconteceu na semana passada em Londres.<br />
[07]<br />
Está bem, minha gente. Pode até ser que tudo não tenha passado de um<br />
bacanal contábil promovido por “esses banqueiros brancos, de olhos azuis”.<br />
Pode até ser que, agora, tudo esteja resolvido. É tão fácil, não? Pode até ser que<br />
esses caras tenham esses trilhões e trilhões – eles não são super-heróis, não são “os<br />
caras”? Mas vem cá... Quem é mesmo que tem conta nos paraísos fiscais? Quem<br />
foi mesmo que deixou de pagar Imposto de Renda? Quem, quem foi mesmo que<br />
alimentou a farra bancária, regada a juros irrisórios, com liberdade para enrolar,<br />
cheirar e injetar papéis tóxicos e derivativos sem camisinha na economia? Ah, sim,<br />
e quem mesmo vai pagar a conta?<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 225
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Sabemos que a interrogação realiza interação entre autor e<br />
texto e, também, entre autor, texto e leitor. A primeira pergunta que<br />
temos neste editorial, exemplo [05], encontra-se no título e ela tem<br />
por função introduzir a temática do texto e inquietar o leitor para o<br />
que será dito no texto. Desse modo, ela articula os três elementos<br />
que compõem o discurso: autor, texto e leitor.<br />
No exemplo [06], a pergunta é totalmente direcionada ao<br />
leitor, uma vez que visa a ativar a memória deste sobre informações<br />
que são de conhecimento geral, pois, subentende-se que todos saibam<br />
que a sala em que os super-heróis se reúnem para traçar estratégias<br />
de combate ao mal é a sala de justiça, porém, o propósito do autor<br />
não era falar de desenho animado, mas do grupo que se reuniu em<br />
Londres para discutir a crise econômica e utilizou-se da pergunta<br />
para introduzir o leitor no assunto e estabelecer um paralelo entre<br />
as duas situações: super-heróis que salvam o mundo do mal e superheróis<br />
que salvam o mundo da crise econômica. Além disso, a forma<br />
irônica como é feita a pergunta remete a um tom menos formal da<br />
situação e, consequentemente, o leitor se aproxima da informação<br />
veiculada no texto, respondendo-a.<br />
Ao fim do editorial, um arsenal de perguntas são elaboradas<br />
com base no que vem sendo informado no texto, ou seja, sobre a<br />
reunião e os benefícios que foram adquiridos com o G20. Então,<br />
as interrogações no exemplo [07] são direcionadas ao leitor como<br />
forma de este leitor avaliar se as decisões sobre a economia foram<br />
para beneficiá-lo, ou se elas beneficiam mais aqueles que estão no<br />
poder. Assim, as perguntas têm o papel de inquietar o leitor e o<br />
fazer participar da discussão sobre economia que é de interesse não<br />
somente dos líderes nacionais que participaram do G20, mas de todo<br />
o planeta.<br />
226 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
A linguagem verbal, como vimos nos exemplos retirados do<br />
editorial Quem mesmo vai pagar a conta?, é constantemente usada para<br />
manter relações entre o autor, o texto e o leitor em um movimento<br />
circundante. Tal envolvimento revela a informalidade, pessoalidade<br />
e obstrução da ideia de neutralidade e impessoalidade características<br />
do gênero editorial, revelando a dinamicidade inerente à linguagem<br />
verbal.<br />
Considerações finais<br />
Com base na metafunção interpessoal, percebemos que, no<br />
gênero editorial, os recursos linguísticos são usados para diminuir<br />
o grau de formalidade na linguagem, atenuando a distância social e<br />
estabelecendo contato entre os participantes da interação. Assim,<br />
a pessoa do discurso é marcada no texto, compartilhando<br />
informações ou discutindo-as, tornando o editorial um espaço da<br />
interpessoalidade. Isto comprova os postulados de Halliday (2004) e<br />
seus seguidores, que afirmam que a interpessoalidade se dá pela troca<br />
de papéis sociais desempenhados pelos falantes de uma língua, trocando<br />
(informações e bens e serviços) e mantendo relações entre eles.<br />
A expressão da opinião marcada na voz do autor e as escolhas<br />
que ele usa do seu repertório lexicogramatical para construir a opinião<br />
revelam a pessoalidade e diminuem o caráter neutro e impessoal que<br />
são marcas registradas desse gênero.<br />
Em síntese, é através do uso de recursos como os que analisamos<br />
no editorial Quem mesmo vai pagar a conta? que estabelecemos as<br />
escolhas adequadas a cada situação e fazemos os textos realizar<br />
sentidos, trocando informações e estabelecendo diálogos entre os<br />
participantes dessa ação social, que é o editorial, em seu espaço de<br />
circulação.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 227
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Referências<br />
AQUINO, L. D. de. Mecanismos de construção de sentidos no gênero editorial: aspectos<br />
verbais e visuais. Pau dos Ferros: UERN, 2010. (Dissertação de Mestrado), inédita.<br />
BUTT, D. et. al. Using Functional Grammar: An Explore’s Guide. Second Edition. Sydney:<br />
Macquarie University, 2001.<br />
EGGINS, S. An Introduction to Systemic Functional Linguistics. London: British Library, 2004.<br />
GHIO, E.; FERNÁNDEZ, M. D. Linguística sistêmico funcional: aplicaciones a la lengua<br />
española. Santa Fe: Universidade Nacional Del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />
HALLIDAY, M.A.K. An Introduction to Functional Grammar. First edition. Londres: Edward<br />
Arnold, 1985 [1994].<br />
______. An Introduction to Functional Grammar. 3 edition. Rev. por MATHIESSEN, M.I.M.<br />
London: Arnold, 2004.<br />
______. & MATTHIESSEN, C. M. I. M. Systemic Functional Grammar: a first step into the<br />
theory. 1997. Disponível em: . Acesso em:<br />
13 de jun. de 2005.<br />
MARTIN, J. R. et al. Working With Functional Grammar. London: Arnold, 1997.<br />
SOUZA, M. M. de. A autoria em editoriais jornalísticos: uma abordagem sistêmico-funcional.<br />
2007, online. Disponível em: . Acesso em: 9 de agosto de 2008.<br />
______. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Recife: <strong>UFPE</strong>, 2006.<br />
(Tese de doutoramento), inédita.<br />
______; HEBERLE, V. M. Parece, deve, pode ser: investigando os auxiliares modais no<br />
editorial. In: FREITAS, A. C. de; RODRIGUES, L. de O.; SAMPAIO, M. L. P. Linguagem, discurso<br />
e cultura: múltiplos objetos e abordagens. Pau dos Ferros: Queima Bucha, 2008, p. 99-111.<br />
228 l Anais Eletrônicos - 2011
A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />
Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />
Referência do editorial utilizado para análise<br />
Quem mesmo vai pagar a conta?<br />
Época. São Paulo: Editora Globo, n. 568, 3 de abril de 2009.<br />
Disponível em: <br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 229
Resumo<br />
Este estudo objetiva (i) investigar o funcionamento da transitividade verbal,<br />
pelos processos materiais e mentais e seus participantes, na construção<br />
de sentido em textos opinativos produzidos por alunos do Ensino<br />
Fundamental (EF) de uma escola pública e (ii) propor abordagens de ensino<br />
dessa categoria léxico-gramatical. As análises assentam-se teoricamente na<br />
Gramática Sistêmico-Funcional, especialmente nos estudos do sistema de<br />
transitividade, e são feitas a partir das orações selecionadas das produções<br />
textuais que continham os processos do fazer (material) e os processos<br />
do sentir (mental). A discussão dos dados demonstra a existência da<br />
padronização semântico-gramatical na apresentação da opinião nos<br />
textos, o que serviu de base para a apresentação das sugestões de ensino<br />
da transitividade no contexto escolar.<br />
Palavras-chave: Gramática Sistêmico-Funcional, transitividade, ensino.<br />
Abstract<br />
This study aims to (i) investigate the functioning of the verbal transitivity,<br />
the material and mental processes and their participants in the construction<br />
of meaning in opinion texts produced by Middle School students in public<br />
schools and (ii) propose teaching approaches to that lexical grammatical<br />
category. The analysis is theoretically based on Systemic Functional<br />
Grammar, especially in studies of transitivity system, and are made from<br />
sentences selected from the productions containing processes of making<br />
(material) and the processes of feeling (mental). The discussion of the data<br />
demonstrates the existence of semantic-grammatical standardization in<br />
the presentation of opinion in the texts, which composed the basis for<br />
presentation of suggestions for the teaching of transitivity in schools.<br />
Keywords: Systemic Functional Grammar, transitivity, teaching.
O estudo de processos materiais<br />
e mentais em textos opinativos:<br />
análise e ensino<br />
Introdução<br />
Magna Simone A. de LIMA<br />
(UFCG)<br />
Este artigo expõe um estudo analítico do fenômeno linguístico<br />
da transitividade pelo viés teórico da Gramática Sistêmico-Funcional<br />
(GSF). Ainda propõe-se a sugerir abordagens de tratamento dessa<br />
categoria léxico-gramatical no contexto escolar.<br />
Os dados de análise 1 do presente estudo foram retirados<br />
de produções textuais escritas por alunos do 8º ano de Ensino<br />
Fundamental (EF) de uma escola pública de Campina Grande-PB<br />
no ano de 2009 e são aqui manipulados a partir de dois objetivos:<br />
(i) analisar a forma como os alunos utilizaram a transitividade, em<br />
especial os processos materiais e mentais, para construir significados<br />
nos textos opinativos e (ii) apresentar propostas de ensino dessa<br />
categoria linguística no EF, por uma perspectiva funcionalista.<br />
Neste estudo, a primeira seção delineia o lugar da transitividade<br />
no contexto de ensino. A segunda detém-se à apresentação da base<br />
teórica que fundamenta as análises, abordando os conceitos de<br />
1. Este trabalho é parte de minha dissertação de mestrado intitulada Transitividade em texto opinativo: descrição<br />
de seu uso e implicações do estudo dessa categoria no Ensino Fundamental, defendida em 2010 pelo Programa de<br />
Pós-Graduação da Universidade Federal de Campina Grande.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 231
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
processos, especialmente os materiais e os mentais, e de participantes<br />
segundo a GSF. Na terceira seção, são feitas a análise do uso dos<br />
processos e participantes na construção de sentido dos textos e as<br />
sugestões de estudo desse recurso no contexto de ensino.<br />
Transitividade e ensino<br />
Considerando que o ensino de gramática nas escolas parece<br />
pautar-se nas normas prescritivas da língua, a prática pedagógica<br />
baseia-se ainda no estudo tradicional dos fenômenos linguísticos,<br />
afastando-se de orientações funcionais da língua e de um ensino mais<br />
produtivo de língua portuguesa.<br />
Nessa perspectiva, o ensino de língua portuguesa tem abordado<br />
“[...] as questões gramaticais de modo artificial, distanciando-se das<br />
situações de uso” (FURTADO DA CUNHA & TAVARES 2007, p.<br />
14-15). Como consequência dessa postura pedagógica tradicional, o<br />
ensino de língua materna passa a ser isolado, por enfatizar o estudo<br />
das estruturas linguísticas desconectadas do suporte contextual a<br />
partir do qual funcionam os seus elementos. Nesse sentido, pode-se<br />
dizer que rebater, no contexto de ensino, a gramática tradicional<br />
significa adotar uma concepção diferente de língua, como sendo uma<br />
rede de sistemas funcionando para construir significados de acordo<br />
com a interação comunicativa, e partir para um estudo dos aspectos<br />
gramaticais por um viés funcional.<br />
Essa formulação fortalece o posicionamento de que ao ensinar<br />
gramática, o foco deve estar no estudo dos fatos linguísticos a partir<br />
do uso efetivo da língua, propiciando ao aluno a oportunidade de<br />
refletir a respeito das regularidades dos padrões léxico-gramaticais<br />
encontradas no próprio funcionamento da linguagem.<br />
232 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
O estudo da transitividade verbal em sala de aula está permeado<br />
de problemas não solucionados, ou parcialmente resolvidos, o<br />
que influencia para tornar o ensino de gramática um desafio para<br />
professores de língua materna.<br />
A gramática tradicional, utilizada como manual para o ensino<br />
de português nas escolas, apresenta as noções de necessidade e de<br />
completude para explicar essa categoria gramatical. Assim, o verbo,<br />
para ter um sentido completo, necessita de um complemento ou o<br />
recusa de toda forma. Os conceitos de verbos transitivos e intransitivos<br />
preveem que qualquer verbo funciona pelo mecanismo de exigência<br />
e de recusa de complementos. Os itens lexicais que opcionalmente<br />
exijam ou recusem um complemento são ignorados pelo modelo<br />
tradicional de gramática, porque esse fato da língua precisaria ser<br />
explicado a partir da idéia de que um verbo de significação incompleta<br />
possa aparecer sem complemento a depender de seu funcionamento<br />
nas situações comunicativas. Para tal esclarecimento, os gramáticos<br />
deveriam recorrer aos aspectos semântico-pragmáticos do uso dos<br />
verbos. Essa parece não ser a postura adotada nesses casos.<br />
A noção de necessidade ou não de um complemento para<br />
sustentar a significação de um verbo ressalta o predomínio da ideia de<br />
que a incompletude é da órbita do sentido/significação do verbo, sendo<br />
então, uma propriedade intrínseca do verbo e não da oração. Nesse<br />
sentido, Cunha & Cintra (1985) afirmam que os verbos transitivos são<br />
aqueles que denotam uma ação que se transmite a outros elementos,<br />
completando-lhes o sentido. Já os verbos intransitivos remetem a uma<br />
ação que não ultrapassa o verbo.<br />
Desse modo, a classificação de um verbo em transitivo ou<br />
intransitivo apoia-se na presença ou ausência de um sintagma nominal,<br />
cuja função é completar o sentido do verbo, sendo a transitividade<br />
uma propriedade inerente do verbo. São as noções de completude<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 233
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
e de necessidade que se destacam nos conceitos tradicionais de<br />
transitividade verbal.<br />
O sistema de transitividade: processos materiais e mentais<br />
A GSF aborda a noção de transitividade não como<br />
uma propriedade categórica e inerente do verbo, mas como<br />
uma propriedade da oração como um todo. É na oração que a<br />
transitividade se manifesta e que se podem estudar as relações entre<br />
os seus elementos (processo, participantes e circunstâncias), sendo<br />
uma categoria sintático-semântica que reflete a gramática da oração<br />
e a sua observação/análise deve ser feita a partir do contexto de uso<br />
da oração.<br />
Sendo assim, a articulação entre os três aspectos da<br />
transitividade (processo, participante e circunstância) deixa<br />
transparecer as experiências, os conteúdos expressos no texto, que<br />
vão construindo o seu sentido global. Dessa forma, a análise da<br />
transitividade permite verificar como os sentidos foram construídos<br />
através da descrição e da observação do que está sendo enunciado e<br />
significado no texto, tomando por base as escolhas entre os diferentes<br />
tipos de processos e sua associação com os participantes e com as<br />
possíveis circunstâncias.<br />
Na GSF, há o processo que representa o que ocorre no mundo<br />
ao nosso redor, experiência exterior e o processo que codifica o nosso<br />
estado de consciência e de imaginação. Nesse trabalho, focamos dois<br />
tipos de processos: o material e o mental.<br />
Cada um desses dois processos expressa uma fatia da realidade,<br />
estrutura um quadro experiencial particular. Os processos materiais<br />
são representados pelos processos do fazer, do agir, do acontecer.<br />
Esse tipo de processo “[...] expressa a noção de que uma entidade<br />
234 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
faz algo, o que pode também afetar outra entidade” (HALLIDAY<br />
1994, p.110). Em “...os estudos contribuem para um cidadão de<br />
futuro” (PT6) 2 , o processo contribuir significa a ação efetuada pelo<br />
participante os estudos, que juntos indicam uma função para o ensino<br />
criar um cidadão de futuro.<br />
A realização de uma ação pressupõe sempre a existência de<br />
alguém ou algo que a execute, denominado de Ator. O participante<br />
Ator é aquele que realiza um fazer, um agir. No exemplo acima, os<br />
estudos representa o participante Ator, aquele que desempenha<br />
a função de agir. Outro tipo de participante é a Meta. É para o<br />
participante Meta que a ação é dirigida. No exemplo, “Porque estão<br />
colocando professores capais, de compri com seu papel...” (PT20), a<br />
ação realizada pelo processo colocar se estende até o participante<br />
Meta, professores capais, afetando-o de alguma forma.<br />
As orações intransitivas apresentam sempre um único<br />
participante, o Ator, e indicam um evento. Em “...para ver ele crescer”<br />
(PT4), a ação passa do Ator ele exclusivamente para o processo<br />
crescer. Nas orações transitivas, a ação pode se estender também a<br />
outro participante, a Meta, representando um fazer, como no exemplo<br />
com o processo colocar, acima descrito.<br />
Os processos materiais têm o Ator e a Meta como seus<br />
participantes principais. Há ainda o participante Extensão, aquele<br />
que define o escopo do processo, como em para um cidadão de futuro,<br />
elemento esse que sinaliza para o significado do próprio processo<br />
contribuir, do primeiro exemplo aqui ilustrado. O outro chamase<br />
Beneficiário, é aquele para quem alguma coisa é feita, como o<br />
2. Os exemplos utilizados neste artigo foram retirados de nossos dados de análise, corresponden-<br />
. Os exemplos utilizados neste artigo foram retirados de nossos dados de análise, correspondentes<br />
às produções textuais (PT) escritas pelos alunos durante a realização de nossa pesquisa de<br />
mestrado.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 235
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
aluno em “...a Escola deve ajuda o aluno a ser cidadão...” (PT11),<br />
participante que se beneficia da ação realizada pelo participante Ator<br />
a Escola.<br />
Outro tipo de processo, os mentais, é aquele que tem a função<br />
de expressar o sentimento, delineando a esfera da consciência do<br />
que é representado. Apresentam-se em três categorias: (1) percepção<br />
(ver, ouvir); (2) afeição (gostar, amar) e (3) cognição (pensar, saber,<br />
entender). No exemplo, “Gostei do artigo de betty Milan” (PT1), o<br />
participante implícito representado pela desinência verbal de primeira<br />
pessoa (eu) ilustra seu posicionamento através do processo mental<br />
Gostar, apresentando sua experiência positiva diante de um objeto,<br />
artigo de betty Milan.<br />
As orações com processos mentais apresentam dois participantes:<br />
“[...] um deles refere-se ao participante dotado de consciência,<br />
chamado de Experienciador. O outro, o Fenômeno, é a entidade<br />
criada pela consciência, representa aquilo que é sentido, pensado<br />
ou percebido” (GHIO & FERNÁNDEZ, 2008, p. 104). Em “...eu<br />
achei muito bom” (PT15), eu, o Experienciador, é o ser consciente<br />
que expressa, pelo Fenômeno muito bom, aquilo que é positivamente<br />
entendido com relação ao artigo lido.<br />
Todavia, há casos em que o participante Fenômeno representa<br />
um conteúdo do sentir. Isso ocorre quando a oração mental projeta<br />
uma segunda oração, com qualquer tipo de processo. Esse tipo de<br />
construção é visto como “[...] um aspecto geral desses tipos de<br />
orações: elas são capazes de construir outra oração ou reunir orações<br />
configurando o conteúdo do sentir – como as ideias criadas pelos<br />
verbos cognitivos” (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 199).<br />
No exemplo, “Eu acho que a cartar dela estar mais ou menos” (PT23),<br />
a oração mental Eu acho projeta outra oração, cuja função é apresentar<br />
o conteúdo que é entendido a cartar dela estar mais ou menos.<br />
236 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
Com essa exposição teórica, partimos para a análise das orações<br />
materiais e mentais encontradas nos textos opinativos e para as<br />
sugestões de tratamento da transitividade no contexto de ensino.<br />
Transitividade: análise e ensino<br />
Nas produções textuais analisadas, os processos materiais<br />
são utilizados para expressar ações e acontecimentos realizados por<br />
participantes envolvidos com a educação como professores, escola,<br />
governo, pais, conforme será visto adiante. Já os processos mentais<br />
espelham a expressão do sentimento do aluno diante do artigo de<br />
opinião lido em sala de aula e que serviu de base para a produção<br />
textual escrita em sala de aula. Selecionamos 15 orações para<br />
configurarem como objeto de análise no presente estudo. Iniciamos<br />
com as orações materiais, representadas pelos processos fazer, cumprir<br />
e ajudar e, em seguida, analisamos as orações mentais com os processos<br />
gostar e pensar.<br />
(I) FAZER<br />
(1) ...porque o professor, é pra ensinar e não pra fazer milagre. (PT9)<br />
(2) ...a escola tem que combater os vandalismos dos alunos para que nas ruas<br />
eles não faça o mesmo...(PT21)<br />
(3) ...mas sempre temos que fazer a nossa parte... (PT16)<br />
(4) ...e todos nos devemos farze nocú papel devemos fazer a nossa<br />
parte... (PT20)<br />
(4) ...os professores também tem que fazer sua parte de ensinar... (PT18)<br />
No exemplo (1), a oração cujo núcleo é o processo fazer indica<br />
uma ação (não fazer milagre) que não é realizada pelo participante Ator<br />
implícito professor e que se contrapõe à função identificada, na oração<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 237
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
anterior, como aquela que deve ser desempenhada pelo professor<br />
(ensinar). A atitude do autor tem um teor restritivo com relação ao<br />
papel do professor. A ideia do não-fazer acoplada ao participante Meta<br />
milagre restringe a atividade que deve ser feita pelo professor em sala<br />
de aula e compõe o plano argumentativo de defesa do professor como<br />
sendo o profissional que não tem o papel social maior de educar o<br />
aluno, função esta atribuída à escola, mas de ensinar, exclusivamente.<br />
Já no exemplo (2), a oração com o verbo fazer aponta também<br />
para a noção do não-fazer, agora atribuída a um participante Ator<br />
específico eles, recuperado anaforicamente por alunos. A ausência de<br />
ação (não fazer o mesmo) parece ser o resultado de um dever imposto<br />
à escola, revelado na oração anterior. O participante Meta o mesmo<br />
é o que não será efetivamente feito, se a escola cumprir seu papel de<br />
combater os vandalismos dos alunos.<br />
A teia argumentativa dos exemplos apresentados baseia-se em<br />
uma negativa de ação, representada pelo não-fazer, que constrói o<br />
quadro discursivo dos textos, através do qual o autor embasa a sua<br />
opinião em relação ao papel do professor (não fazer milagre, mas<br />
ensinar), em (1); e, em relação à consequência do cumprimento da<br />
função da escola (não fazer vandalismo), em (2).<br />
De (3) a (5), o processo fazer aparece ao lado de um ter que e de<br />
um dever. Nessa construção, o fazer ilustra uma obrigação imposta aos<br />
participantes de cada oração. Embora a ação imperativa seja dirigida<br />
sempre a um participante Meta nas orações em destaque, a nossa parte,<br />
em (3) e (4); noçú papel, em (4) e sua parte, em (5); há uma diferença<br />
em relação ao participante a quem é atribuída a obrigação do agir.<br />
Em (3) e (4), o participante Ator é o próprio autor do texto, marcado<br />
linguisticamente pelo emprego da primeira pessoa do plural, o que<br />
mostra o envolvimento do autor com o que afirma ser a obrigação<br />
dos alunos com vistas a melhorar a qualidade de ensino no Brasil.<br />
238 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
Já em (5), a obrigação do agir é imposta ao participante Ator os<br />
professores, que representam uma categoria profissional que, ao lado<br />
da escola, também deve ser responsável pela qualidade do ensino. A<br />
configuração oracional tem que/dever + fazer responde a tentativa do<br />
autor de organizar discursivamente sua opinião, no sentido de mostrar<br />
as responsabilidades atribuídas aos próprios alunos em (3) e (4) e aos<br />
professores em (5) que possam modificar a situação de ensino no país.<br />
(II) CUMPRIR<br />
(6) ...eu acho que a escola deve ajudar o aluno a ser cidadão e educar transmitindo<br />
valores. Por que, o papel do professor é esse com o aluno. Mas eu acho que o<br />
aluno também, tem que cumprir com o seu papel... (PT9)<br />
(7) ...Eu acho que a Escola deve ajuda o aluno a ser cidadão e educar transmitindo<br />
valores para ele a cumprir seu papel que e ter interesse... (PT11)<br />
Em (6), o material cumprir usado juntamente com um ter que,<br />
enfatiza que ação a ser efetivada pelo participante Ator o aluno carrega<br />
um tom imperativo, ou seja, o cumprir parece ser um dever imposto<br />
ao aluno. Podemos observar que a circunstância também insere à<br />
oração uma possível conjugação de obrigações que foram atribuídas a<br />
participantes diferentes (escola e aluno) em orações também diversas.<br />
A força argumentativa decorre exatamente da apresentação de duas<br />
ações ditas obrigatórias (a escola deve ajudar e o aluno também, tem que<br />
cumprir), atribuídas igualmente aos participantes o aluno e a escola,<br />
que, em conjunto, permitem a melhoria do ensino no Brasil, fato esse<br />
que sustenta a opinião do aluno.<br />
No caso de (7), percebemos que a ação de cumprir aliada ao<br />
Meta seu papel é entendida como uma possibilidade de agir decorrente<br />
de outra ação (a escola deve ajuda) desencadeada pelo participante a<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 239
Sinta e<br />
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f<br />
escola. Daí depreendermos que as duas ações (a escola deve ajudar o<br />
aluno e o aluno cumpre seu papel) estão interligadas por uma relação<br />
de dependência, através da qual o agir representado pelo cumprir<br />
seu papel vincula-se ao dever de ajudar o aluno a ser cidadão posto à<br />
escola. Por essas análises, fica fácil perceber que a transitividade não<br />
se refere exclusivamente aos verbos, mas a sua significação depende<br />
da relação entre participantes-processos-circunstâncias estabelecida<br />
na unidade oracional, podendo estender-se também a outras orações,<br />
que juntas contribuem para a construção do sentido do texto ancorado<br />
contextualmente em uma situação comunicativa.<br />
(III) EDUCAR<br />
(8) ...a Escola deve ajudar o aluno a ser cidadão E Educar cumprir o seu<br />
papel de ter interesse. (PT2)<br />
(9) ...A escola precisa educar e transmitir valores. (PT19)<br />
Na ocorrências do educar, o infinitivo foi usado ao lado de um<br />
modal, ainda que implícito como em (8), o que permite a acumulação<br />
dos significados agir e dever. Ao participante Ator a escola é posta<br />
uma obrigação de agir, contemplada pela própria função social dessa<br />
instituição (a escola tem o papel de educar).<br />
Em (9), há o reconhecimento da necessidade do agir (precisa<br />
educar) imposta ao participante Ator. Nesses exemplos, o conteúdo<br />
proposto pelo processo, realizado intransitivamente, enfoca a<br />
obrigação orientada para a ação a ser desempenhada pelo Ator (o<br />
dever de agir da escola é para educar), modelando a opinião do aluno<br />
com relação ao papel da escola na qualidade de ensino brasileiro.<br />
Considerando o ambiente de sala de aula, o professor pode levar<br />
o aluno a refletir sobre o uso de elementos que agregados aos verbos,<br />
como é o caso dos processos materiais analisados acima, imprimem a<br />
240 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
noção de obrigatoriedade ou de probabilidade, os chamados modais.<br />
É oportuno destacar que os fatos linguísticos, como os ilustrados nos<br />
exemplos (3), (4), (5), (6) e (9), que apresentam um modal na unidade<br />
oracional exercem o papel de marcar o posicionamento do sujeito<br />
diante daquilo que enuncia e serve para organizar discursivamente<br />
os argumentos apresentados nos textos.<br />
É possível, ainda, estabelecer um comparativo entre orações<br />
com os mesmos processos, mas que contam com a presença de um<br />
modal (tem que), como em (3) e outro exemplo que não contém<br />
o modal, o caso do (2). Nesse sentido, o aluno é levado a perceber<br />
as diferenças entre um significado ideacional construído a partir da<br />
imposição de obrigações aos participantes, reconhecendo, assim, o<br />
propósito comunicativo do uso ou não da modalidade deôntica para<br />
fundamentar a opinião apresentada.<br />
Embora o recurso da modulação pertença à metafunção<br />
interpessoal concretizada na língua pelo sistema de modo e modalidade,<br />
combinar o estudo das metafunções ideacional e interpessoal permite<br />
que aspectos da língua sejam abordados em termos multifuncionais,<br />
uma vez que a unidade oracional é vista como representação da<br />
experiência, quando se trata do sistema de transitividade, e como<br />
interação, ao referir-se à modalidade e à modulação.<br />
(IV) GOSTAR<br />
(10) Gostei muito do artigo (Veja)... (PT4)<br />
(11) Gostei da opinião da autora Betty Milan... (PT19)<br />
(12) Eu gostei porque a educação no Brasil como diz a altora da Revista Veja<br />
em malgumas causas que o ensino nas escolas vão bem... (PT3)<br />
Tratando agora das orações mentais, a primeira observação que<br />
pode ser apontada é com relação ao participante Experienciador<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 241
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
que, nesses dados, manifesta-se também de forma não-marcada, isto<br />
é, o Experienciador é somente recuperado pela desinência verbal<br />
de primeira pessoa do processo mental gostar. A ausência regular<br />
do pronome pessoal eu fornece uma indicação de que o processo<br />
mental gostar, por ser da esfera dos sentimentos, processo da afeição,<br />
parece não exigir a marcação linguística do Experienciador, uma<br />
vez que a experiência sentida (gostar) pelo sujeito parece ser algo<br />
interno, subjetivo. Então, por tratar-se de exposição de sentimento,<br />
o processo mental gostar é suficiente para expressar tanto a afeição<br />
do Experienciador diante do texto lido como a sua individualidade<br />
através da desinência verbal de primeira pessoa do singular.<br />
Em termos funcionais, o uso do mental gostar mostra-se como<br />
uma forma indicadora do posicionamento do participante frente ao<br />
texto abordado em sala (ele gostou ou não do texto) e serve também<br />
para preparar o ambiente textual para a apresentação mais apurada<br />
da opinião.<br />
Em (10) e (11), o processo mental presta-se a duas funções: uma<br />
que indica a presença do sujeito, por meio da desinência de primeira<br />
pessoa do processo mental gostei e a outra que mostra o sentimento do<br />
autor do texto com relação ao artigo de opinião estudado, através da<br />
escolha do processo em questão, que pertence à classe da afeição. O<br />
Experienciador, como visto, não se encontra marcado linguisticamente<br />
pelas razões já expostas e o Fenômeno, outro participante, designa o<br />
que é sentido (muito do artigo (Veja) e da opinião).<br />
De modo diferente, em (12), há explicitamente a presença<br />
linguística do Experienciador pelo pronome pessoal eu, contribuindo<br />
para promover o efeito de envolvimento direto do sujeito com o<br />
que enuncia, no sentido de marcar uma apropriação individual da<br />
experiência. Buscando agora o Fenômeno desta oração, percebe-se que<br />
existe uma lacuna na oração em análise. O sujeito utiliza o processo<br />
242 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
mental eu gostei e, logo em seguida, lança outra oração composta pelos<br />
argumentos que justificam o seu posicionamento diante do artigo de<br />
opinião da revista (porque a educação no Brasil como diz a altora da<br />
Revista Veja em algumas causas que o ensino nas escolas vão bem...). Em<br />
um primeiro momento, essa lacuna poderia prejudicar a construção<br />
de sentido do texto do aluno, o leitor poderia indagar: o sujeito gostou<br />
de quê? E a resposta não está explícita no texto.<br />
Contudo, considerando o contexto precedente de produção<br />
que solicitava a apresentação da opinião do aluno em relação ao<br />
artigo de opinião, pode-se resgatar essa resposta, entendendo que o<br />
sujeito preferiu não fazer referência ao artigo lido, uma vez que já se<br />
encontra exposto no enunciado da questão. A lacuna poderia ser,<br />
então, preenchida dessa forma: Eu gostei do tema do artigo em destaque<br />
porque... . Por essa razão, pode-se dizer que o Fenômeno da oração está<br />
implícito, podendo ser recuperado pelo enunciado da atividade de<br />
produção textual, além disso, a ausência desse participante na oração<br />
abre espaço para entender a possível estratégia linguística escolhida<br />
pelo aluno em apresentar de imediato a sua opinião, atendendo ao<br />
que fora solicitado pela atividade escolar.<br />
(V) PENSAR<br />
(13) ...meu nome e Rafael tenho 15 anos e penso assim. (PT1)<br />
(14) ...Betty Milan falou que “melhores alunos brasileiros ficam nas ultimas<br />
colocações internacional”, eu concordo com Betty Milan e assim que eu penso.<br />
(PT12)<br />
(15) ...os responsaveis dos alunos pensam que a educação estar ótima. (PT17)<br />
Nas orações (13) e (14), o processo mental pensar assume<br />
a posição de processo que encerra o evento comunicativo de<br />
apresentação da opinião do sujeito. A construção da significação<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 243
Sinta e<br />
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f<br />
do texto é elaborada a partir de um entendimento sobre o ensino<br />
no Brasil, codificado pelo processo da esfera de cognição e resumido<br />
pelo fenômeno assim.<br />
Com relação ao Experienciador, em (13) percebemos que este<br />
participante não se materializa na oração de ocorrência do verbo. A<br />
escolha pela não-marcação do participante envolvido pelo processo de<br />
cognição pode ser entendida como uma estratégia usada pelo autor do<br />
texto que se auto-identifica nas orações anteriores meu nome e Rafael<br />
tenho 15 anos. Essa identificação anterior parece anular a necessidade<br />
da presença do participante na oração em que ocorre o processo<br />
mental, o que, do contrário, imprimiria uma ideia de repetição do<br />
sujeito envolvido, sendo meu nome e Rafael e tenho 13 e eu penso.<br />
Nas duas outras ocorrências do processo pensar em (14) e<br />
(15), seguimos com manifestações diferenciadas do sentir. Em (14),<br />
temos um caso de ausência do participante Fenômeno, recuperado<br />
anaforicamente pelo advérbio assim, que sumariza a ideia defendida<br />
no texto através, inclusive, das próprias palavras da autora do artigo.<br />
E em (15), há mais um exemplo de projeção em que o conteúdo do<br />
sentir é representado oracionalmente (que a educação estar ótima),<br />
funcionando como dependente da oração núcleo (os responsaveis dos<br />
alunos pensam) composta pelo processo mental.<br />
Em sala de aula, o aluno pode ser instruído a observar a<br />
ocorrência comum de certos processos como o pensar e gostar que<br />
servem tanto para configurar o sentimento positivo do sujeito em<br />
relação ao texto lido (gostar) como para retratar o seu entendimento<br />
(pensar) sobre ao assunto em discussão. Com isso, o professor<br />
pode sublinhar a especificidade semântica de cada um dos verbos<br />
(processos de cognição e processos de afeição) para atender a uma<br />
função comunicativa delimitada consistente na apresentação da<br />
experiência de mundo interior daquele que escreve.<br />
244 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
Outra possibilidade de abordagem dos processos do sentir é<br />
em relação à noção de projeção apresentada por Halliday (1994).<br />
Tratando desse aspecto, o professor pode constatar as duas<br />
formas de organização das orações. No exemplo (10), aquele que<br />
experiencia a realidade (Eu) expressa o conteúdo do entendimento<br />
em oração única; já em (15), esse conteúdo é transportado para um<br />
compartimento oracional que carrega outro significado ideacional e<br />
representa o conteúdo do sentir da oração anterior.<br />
Pelo viés tradicional, estaríamos diante de período simples e<br />
composto por subordinação, respectivamente. Contudo, selecionar o<br />
verbo e quantificá-lo, classificando em período simples ou composto<br />
e rotular as orações como subordinadas não são suficientes para fazer<br />
com que os alunos entendam as escolhas feitas por uma ou outra<br />
forma. É momento oportuno para ressaltar que as duas formas de<br />
organização do conteúdo cognitivo da experiência retratada podem<br />
ser apresentadas como no exemplo (10) que mostra de forma direta<br />
o conteúdo do entendimento do sujeito e por meio de uma oração<br />
que representa linguisticamente, de maneira mais complexa, o seu<br />
entendimento como em (12).<br />
Vale levar os alunos a refletirem sobre a possibilidade de uso<br />
da projeção em textos escritos como sendo um nexo entre orações<br />
que manifestam um conjunto de significados ideacionais como<br />
em (6) nos quais o conteúdo do entender lançado pelo processo<br />
achar codifica outro elemento ideacional indicando uma obrigação<br />
imposta (tem que cumprir) ao participante da oração material (aluno).<br />
Por essa reflexão, é possível fazer com que os alunos entendam a<br />
existência de combinação de orações, como mentais e materiais, que<br />
expressa a experiência do sentir do sujeito em relação ao texto lido,<br />
não sendo essa combinação apenas uma questão de subordinação<br />
oracional e de completude de sentido entre orações dependentes,<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 245
Sinta e<br />
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f<br />
mas de representação de conteúdos ideacionais que codificam uma<br />
realidade de mundo.<br />
Ainda com relação aos processos mentais em destaque, o<br />
professor pode comentar a respeito da supressão do participante<br />
Fenômeno em (12), discutindo primeiro sobre a estratégia do<br />
sujeito em omitir esse elemento oracional e apresentar diretamente<br />
os argumentos que justificam a sua tomada de posição e, segundo,<br />
sobre a necessidade de recorrer ao contexto precedente de produção<br />
para resgatar o participante desse plano oracional.<br />
Da mesma forma, os casos ilustrados em (13) e (14) reforçam<br />
a exigência da identificação do contexto situacional para recuperar<br />
o que foi resumidamente dito pelo componente circunstancial<br />
assim, que, por sua vez, em associação direta com o processo pensar,<br />
marca o modo cognitivo de percepção da realidade retratada. Essa<br />
discussão leva o aluno a perceber que os verbos não significam por<br />
si só, de forma isolada, mas dependem dos elementos que, juntos a<br />
eles, constroem a unidade oracional composta pelos componentes<br />
da transitividade (participantes-processos-circunstâncias).<br />
Alguns apontamentos<br />
A proposta maior de nosso estudo, do qual este artigo é parte,<br />
é oferecer aos professores de língua materna um caminho diferente<br />
de ensino da gramática, com o foco na transitividade verbal.<br />
Esse caminho, delineado a partir da análise dos textos opinativos<br />
de alunos, confronta os moldes prescritivos de ensino dos recursos<br />
linguísticos que de longe são capazes de desenvolver a capacidade<br />
comunicativa dos usuários da língua e oferece uma proposta de ensino<br />
reflexivo dos fatos linguísticos, no intento de aprimorar o estudo de<br />
gramática e contribuir para um melhor ensino de língua materna.<br />
246 l Anais Eletrônicos - 2011
O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />
ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />
Referências<br />
CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1985.<br />
FURTADO DA CUNHA, A ; TAVARES, M. A. Funcionalismo e ensino de gramática. Natal:<br />
Editora da UFRN, 2007.<br />
GHIO, E.; FERNÁNDEZ, M. D. Lingüística Sistêmico Funcional. Aplicaciones a la lengua<br />
españ ola. Santa Fé: Universidad Nacional del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />
HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold,<br />
second edition, 1994.<br />
______. An Introducion to Functional Grammar. Revised by Christian M.I.M MATTHIESSEN.<br />
London: Arnold, third edition, 2004.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 247
Resumo<br />
O presente trabalho objetiva discutir, tanto sob a perspectiva do<br />
funcionalismo norte americano, sobretudo da teoria de Hopper e<br />
Thompson, quanto sob o ponto de vista da gramática tradicional, as<br />
possíveis divergências de transitividade em orações de mesmo sentido em<br />
línguas distintas - no caso, em inglês e português -, a partir de exemplos<br />
de tradução e versão.<br />
Palavras-chave: Funcionalismo norte americano; gramática tradicional;<br />
transitividade; traduções e versões.<br />
Abstract<br />
This paper aims to discuss, from the perspective of North American<br />
Funcionalism, (particularly from Hopper and Thompson’s theory) and from<br />
the Traditional Grammar point, the possible differences of transitivity in<br />
sentences of different languages, but which have same meaning - in this<br />
case English and Portuguese - from examples of translations.<br />
Keywords: North American Functionalism, Traditional Grammar,<br />
Transitivity; Translations.
Introdução<br />
Divergências de transitividade<br />
em traduções e versões:<br />
elas realmente existem?<br />
Marília Gomes TEIXEIRA<br />
(<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
O século XX foi de grande relevância para os estudos dos<br />
fenômenos linguísticos, uma vez que novas tendências a respeito<br />
da análise das línguas surgiram e passaram a questionar antigos<br />
paradigmas. Foi a partir de então que linguistas pós-saussureanos<br />
propuseram analisar a língua considerando o seu uso pelos falantes,<br />
outrora ignorado pelo estruturalismo de Saussure. Assim, a ênfase<br />
é dada à função, isto é, passa-se a valorizar o uso da língua quando<br />
voltado para uma finalidade.<br />
Estabelecida a noção funcionalista da linguagem, o<br />
questionamento voltou-se para os princípios estruturalistas. O<br />
funcionalismo tem por base o princípio de que as funções externas à<br />
linguagem influenciam a estrutura gramatical das línguas. Sob esse<br />
ponto de vista, critica modelos formalistas, entre os quais o modelo<br />
de transitividade da gramática tradicional, sistema de classificação<br />
verbal utilizado há um longo período.<br />
Tendo em vista a insuficiência da gramática tradicional em<br />
seus conceitos e classificações, e a orientação funcionalista de que<br />
se observe a transitividade por outro ângulo, nossa proposta, neste<br />
trabalho, é de comparar as possíveis divergências de transitividade<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 249
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
em línguas distintas – no caso, em inglês e português - a partir de<br />
exemplos de tradução e versão – sob a perspectiva do funcionalismo<br />
norte-americano, sobretudo da teoria de Hopper e Thompson, e sob<br />
o ponto de vista da Gramática Tradicional.<br />
Assim sendo, iremos apresentar a transitividade tanto na<br />
abordagem da gramática tradicional como na abordagem funcionalista<br />
norte-americana, fazendo o contraponto entre suas concepções.<br />
A seguir, serão feitas análises de frases em português e em inglês<br />
(traduzidas ou vertidas) sob ambas as óticas, sendo que para a<br />
abordagem funcional utilizaremos a tabela dos dez parâmetros criada<br />
por Hopper e Thompson como critério de análise, enquanto a avaliação<br />
pautada na gramática tradicional se baseará na regência verbal de cada<br />
idioma. Ambos os métodos serão aplicados às orações no intuito de<br />
analisar suas possíveis diferenças em termos de transitividade.<br />
A transitividade sob as perspectivas tradicional e funcionalista<br />
Desde a época dos alexandrinos que se estuda a transitividade<br />
dos verbos, pois foi a partir de suas pesquisas que se deu início aos<br />
estudos gramaticais no Ocidente. Os primeiros estudos do grego<br />
surgiram no intuito de evitar que as línguas bárbaras influenciassem<br />
diretamente a língua grega clássica. Foi a partir de então que surgiu a<br />
chamada Gramática Tradicional.<br />
Os gregos já percebiam que alguns verbos requeriam<br />
complementos e que estes se relacionavam diretamente com a ação<br />
expressa pelo verbo. O interesse pelos estudos sintáticos, porém,<br />
segundo Neves (2000, p. 50), partiu de Apolônio Díscolo, no século II<br />
d.C, que procurou entender como as palavras estabeleciam uma relação<br />
entre si. É ele, pois, quem inaugura a noção de transitividade verbal<br />
no Ocidente, a qual pode ser encontrada em muitas gramáticas atuais.<br />
250 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
Este modelo de gramática, que surgiu num momento específico<br />
da antiguidade, perdura até hoje e não apresentou grandes mudanças<br />
no que tange aos seus conceitos. A permanência e imobilidade da<br />
Gramática Tradicional levou – e ainda tem levado – muitos linguistas a<br />
questionar tais abordagens. Em que pese ser considerada ultrapassada,<br />
esse tipo de gramática ao menos contribui para que entendamos a<br />
maneira pela qual a língua tem sido abordada desde a antiguidade até<br />
então e, sobretudo, como tem sido ensinada.<br />
Devido a tais fatos, o conceito de transitividade sob a perspectiva<br />
da gramática tradicional, há muito vem sendo posto em questão, tendo<br />
em vista sua abordagem prescritiva da língua. Pode-se constatar que a<br />
concepção de transitividade verbal nas gramáticas tradicionais leva em<br />
conta critérios semânticos e formais. Celso Luft (2002, p. 87) afirma<br />
que um verbo transitivo é aquele que “necessita de um objeto que<br />
lhe complemente o sentido” (p. 59) e o verbo intransitivo seria o que<br />
possui uma predicação completa, não necessitando de complemento.<br />
O fato de classificar os verbos em transitivos e intransitivos diz respeito<br />
à completude dos mesmos, seguindo, pois, um fator semântico. E<br />
defini-los em transitivos direito e indireto revela um caráter formal,<br />
pois concerne à presença ou não de uma preposição.<br />
Trask, em seu Dicionário de Linguística e Linguagem, conceitua<br />
o termo como “a maneira pela qual o verbo se relaciona com os<br />
sintagmas nominais numa mesma oração” (p. 299). Entretanto, o autor<br />
chega a assinalar, ainda que brevemente, a noção de transitividade<br />
funcionalista, afirmando que o termo é entendido como denotando o<br />
tipo de atividade ou processo expresso por uma sentença, o número<br />
de participantes envolvidos e a maneira como estão envolvidos.<br />
Em relação aos verbos, existem algumas divergências. Cunha e<br />
Cintra (2001, p. 94) dividem os verbos em transitivo direto, indireto<br />
e direto e indireto, enquanto Ali (1964, p. 62) sugere que não há os<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 251
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f<br />
transitivos indiretos, apenas diretos e intransitivos. Rocha Lima (2002,<br />
p. 55), por sua vez, subdivide os complementos em direto, indireto,<br />
relativo e circunstancial de maneira bastante semelhante a Evanildo<br />
Bechara (2004).<br />
Enfim, se pesquisarmos acerca da transitividade nas diferentes<br />
gramáticas tradicionais disponíveis, podemos perceber que, apesar de<br />
alguns aspectos divergirem, todas elas tomam o verbo como centro<br />
da transitividade. Segundo a concepção de Chafe (1979), citado por<br />
Furtado da Cunha e Souza (2007), “o universo conceptual humano<br />
está dividido em duas grandes áreas: a do verbo e a do nome”, sendo<br />
que o verbo é o centro da oração. A partir desta percepção, podemos<br />
perceber o porquê de a Gramática Tradicional ter seu foco apenas<br />
no verbo.<br />
Numa crítica a este modelo estruturalista e formal, muitos<br />
linguistas passaram a questionar a gramática tradicional e suas<br />
definições de transitividade. A partir de então, o estudo desse<br />
fenômeno linguístico tomou um caráter empírico. Perini (2001, p. 122)<br />
contesta esse tratamento tradicional e entende que os verbos exigem,<br />
aceitam ou recusam os complementos. De acordo com este autor, os<br />
complementos que definem a transitividade são o objeto direto, o<br />
complemento do predicado, o predicativo e o adjunto circunstancial.<br />
Por estes quatro complementos, Perini (2001) apresenta onze matrizes<br />
verbais que representam a transitividade dos verbos, que passam,<br />
então, a ser classificados em mais transitivos ou menos transitivos, e<br />
não mais em transitivos e intransitivos.<br />
Tendo em vista os diversos questionamentos e estudos<br />
relacionados à transitividade, variadas soluções e novas perspectivas,<br />
ainda que incipientes, são apresentadas no intuito de mostrar a<br />
insatisfação com a abordagem tradicional. Conforme Martellota<br />
(2009), “a gramática tradicional [...], por apresentar uma visão<br />
252 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
preconceituosa da linguagem [...], não fornece ao estudo da linguagem<br />
uma teoria adequada para descrever o funcionamento gramatical das<br />
línguas” (p.45).<br />
Assim, propondo-se a repensar estas teorias, o funcionalismo<br />
constituiu-se como um modo de pensamento e uma outra maneira<br />
de analisar a linguagem. Inicialmente, postulou que a língua era um<br />
sistema orientado para fins comunicativos, isto é, a língua tem uma<br />
função. Assim, o funcionalismo representou um grande avanço para<br />
os estudos linguísticos na medida em que foi incorporando aspectos<br />
extralinguísticos em sua análise.<br />
O termo “linguística funcional”, de uma maneira generalizada,<br />
abrange variadas teorias sobre o fato de conceber a língua como meio<br />
de comunicação e que deve ser analisada a partir de seus contextos<br />
de uso. As duas vertentes funcionalistas são a linguística sistêmicofuncional,<br />
que tem como principal teórico M. Halliday; e o modelo<br />
norte americano, cujos teóricos incluem T. Givón, P. Hopper, S.<br />
Thompson e W. Chafe. A primeira defende a teoria da língua como<br />
escolha, do ponto de vista de seu uso pelos falantes; a segunda parte<br />
de uma investigação sob a perspectiva do contexto linguístico e da<br />
situação extralinguística. Ademais, esta última considera que a língua<br />
é utilizada para satisfazer as necessidades de comunicação.<br />
Assim, a linguística funcional norte-americana postula que<br />
a língua é uma estrutura maleável, que se submete ao uso de seus<br />
falantes e que varia continuamente para atender às necessidades de<br />
seus usuários. Conforme Furtado da Cunha e Souza (2007), trata-se<br />
de um modelo que propõe explicar a forma da língua por meio das<br />
funções que desempenha no processo comunicativo. Tal perspectiva<br />
enxerga a transitividade não como uma propriedade intrínseca ao<br />
verbo, mas como um complexo de dez parâmetros que envolvem<br />
sintática e semanticamente os itens lexicais que compõem a oração.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 253
Sinta e<br />
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f<br />
Ainda sob a concepção funcionalista, a transitividade diz respeito à<br />
efetividade com que se dá a ação; isto é, quanto mais efetiva a oração,<br />
maior será sua transitividade. Assim, as propriedades que definem a<br />
transitividade são determinadas pelo discurso e esta relação (discurso -<br />
transitividade) mostra-se crucial na língua. Os componentes utilizados<br />
por Hopper e Thompson (1980, p.133) para a análise da transitividade<br />
das orações são apresentados na tabela abaixo.<br />
Componentes Transitividade alta (A) Transitividade baixa (B)<br />
1. Participantes Dois ou mais Um<br />
2. Cinese Ação Não-ação<br />
3. Aspecto do verbo Perfectivo Não-perfectivo<br />
4. Pontualidade do verbo Pontual Não-pontual<br />
5. Intencionalidade<br />
do sujeito<br />
Intencional<br />
Não-intencional<br />
6. Polaridade da oração Afirmativa Negativa<br />
7. Modalidade da oração Realis Irrealis<br />
8. Agentividade do sujeito Agentivo Não-agentivo<br />
9. Afetamento do objeto Afetado Não-afetado<br />
10. Individuação do objeto Individuado Não-individuado<br />
Quadro 1. Componentes considerados em relação à transitividade.<br />
254 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
Cada um dos componentes citados diz respeito à efetividade<br />
com que a ação é transferida de uma elemento para outro. Assim,<br />
para os autores, só pode haver transferência de uma ação se houver<br />
pelo menos dois participantes. Em relação à cinese, as ações podem<br />
ser transferidas de um participante para outro, sendo estados ou não.<br />
Quanto ao aspecto do verbo, uma ação é vista como mais transitiva se<br />
estiver completa, do que se estiver em progresso. A pontualidade diz<br />
respeito às ações que estão em fase de transição ou não: as ações que<br />
não denotam transição mostram-se mais efetivas do que aquelas que<br />
denotam. No tocante à intencionalidade, a ação se mostra mais efetiva<br />
quando parte do agente com o propósito de realizá-la do que quando<br />
a intenção não é definida. A polaridade concerne ao fato de a oração<br />
ser afirmativa ou negativa. As ações que aconteceram (afirmativas)<br />
podem ser transferidas, ao contrário das que não aconteceram<br />
(negativas). A modalidade refere-se às ações que aconteceram, ou<br />
não. As que não ocorreram ou que podem ocorrer são menos efetivas<br />
do que as que já ocorreram ou que são eventos reais. Quanto à<br />
agentividade, um participante ativo pode transferir a ação para outro<br />
participante do que um que não seja ativo (ou não tão ativo). Em<br />
relação ao afetamento do objeto, uma ação é transferida em maior<br />
grau se o objeto for afetado completamente do que parcialmente. Por<br />
fim, quanto à individuação, Hopper e Thompson consideram ainda<br />
outras propriedades, as quais não serão abordadas nesse trabalho<br />
devido a sua especificidade – o que foge a nossa proposta.<br />
Assim, podemos perceber quão divergentes são as abordagens<br />
da gramática tradicional e a teoria funcionalista norte-americana.<br />
Aquela associa a transitividade aos verbos, enquanto esta leva em<br />
consideração os argumentos da oração; ou seja, a transitividade diz<br />
respeito a todos os elementos que a compõem, não centrando-se<br />
apenas no verbo.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 255
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Análise da transitividade das orações: semelhanças e diferenças<br />
O estudo da transitividade em línguas distintas revela-se um<br />
tema pouco explorado, não apenas pela combinação dos idiomas<br />
envolvidos (no nosso caso português e inglês, cujas origens linguísticas<br />
diferem consideravelmente), mas sobretudo pela especificidade<br />
do fenômeno. Em que pese a grande contribuição das teorias<br />
funcionalistas para o estudo da transitividade, vale ressaltar que o<br />
ensino e a abordagem deste tema ainda são relegados, em ambos os<br />
idiomas, ao modelo tradicional.<br />
A comparação entre os estudos de transitividade submetidos<br />
às duas abordagens citadas parece-nos uma alternativa interessante,<br />
tanto no que tange à avaliação de fenômenos linguísticos específicos<br />
(a transitividade em línguas distintas, por exemplo), como também<br />
por apresentar uma nova plataforma sob a qual o debate gramática<br />
tradicional X funcionalismo deve ocorrer.<br />
Deste modo, em nossa proposta, pela análise tradicional, os<br />
verbos serão classificados em transitivos diretos, indiretos, bitransitivos<br />
ou intransitivos. Com base no funcionalismo, por sua vez, teremos<br />
uma avaliação envolvendo toda a oração, que definirá seu grau de<br />
transitividade. Desta maneira, embora estejamos lidando com línguas<br />
distintas, as teorias de transitividade da Gramática Tradicional e<br />
funcionalista são igualmente aplicadas aos idiomas em questão.<br />
Contudo, o resultado das análises das orações sob óticas diferentes<br />
podem coincidir ou divergir como veremos a seguir.<br />
No intuito de verificar este fenômeno, analisaremos orações de<br />
maneira semelhante ao modelo de T. Givón (1980), isto é, os exemplos<br />
aqui utilizados foram criados apenas para fins de comprovação da nossa<br />
proposta. Contudo, não nos ativemos a classificações nem a tipos<br />
específicos de verbos, uma vez que nossa intenção é mostrar as possíveis<br />
256 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
divergências e semelhanças de transitividade da mesma oração em<br />
línguas distintas, quando estudadas sob abordagens diferentes.<br />
Como anteriormente mencionado, pelo fato de as origens das<br />
línguas inglesa e portuguesa serem diferentes, as estruturas sintáticas,<br />
naturalmente, também o serão. Apesar disso, a nomenclatura e a<br />
definição de transitividade para a gramática tradicional inglesa muito se<br />
assemelham à brasileira: o foco é o verbo, que se classifica em transitivo<br />
direto, indireto, direto e indireto (bitransitivo) e intransitivo. O que<br />
muda é a classificação de alguns verbos: o que em português é transitivo<br />
direto, em inglês pode ser indireto e vice-versa. São estes os casos que<br />
tomaremos como nossos exemplos.<br />
Mesmo com o fato de estarmos lidando com duas línguas que<br />
pouco se assemelham, as versões e traduções devem garantir que a<br />
mensagem a ser passada pelas sentenças é a mesma. Isso não significa,<br />
porém, que sempre haverá uma equivalência dos termos traduzidos.<br />
Em que pesem as diferenças quase inevitáveis das traduções e versões,<br />
é obrigação do tradutor manter o sentido original daquilo a que se<br />
propõe transpor.<br />
A seguir, analisaremos a transitividade das orações – traduzidas<br />
para o português e vertidas para o inglês – sob as perspectivas tradicional e<br />
funcionalista. Quanto à primeira, faremos a análise com base na regência<br />
verbal aceita pela norma culta, definindo sua classificação (transitivo<br />
direto, indireto, bitransitivo e intransitivo); enquanto na última<br />
utilizaremos os dez parâmetros de Hopper e Thompson para avaliar<br />
apenas o grau de transitividade das orações, sem discorrer a respeito<br />
dos verbos, suas classificações e os componentes da tabela em minúcias.<br />
Deste modo, faremos uma comparação dos resultados encontrados 1 .<br />
1. A análise da oração pelo Funcionalismo será feita a partir da tabela dos dez parâmetros de Hopper e Thompson,<br />
que se encontra na pág. 254 deste trabalho. Os números em parênteses indicam o parâmetro e as letras "A" e "B"<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 257
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
1) Mary likes Peter.<br />
Maria gosta de Pedro.<br />
De acordo com a gramática tradicional, o verbo “like” é<br />
transitivo direto e “gostar” é transitivo indireto (acompanha<br />
preposição “de”). Pela análise de Hopper e Thompson, chegamos<br />
ao grau 7 de transitividade. Assim, pela Gramática Tradicional, o<br />
verbo “to like” é transitivo direto e “gostar” é transitivo indireto. No<br />
Funcionalismo, temos uma transitividade moderada em ambas as<br />
orações (grau 7).<br />
Oração<br />
Gramática<br />
tradicional<br />
Funcionalismo<br />
Mary likes Peter.<br />
Transitivo Direto.<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A, (9)A,<br />
(10) A (grau 7).<br />
Maria gosta de<br />
Pedro.<br />
Transitivo Indireto.<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A, (9)A,<br />
(10)A (grau 7).<br />
Quadro 2. Análise da transitividade do verbo “to like” (gostar) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
2) Nothing satisfies the couple.<br />
Nada satisfaz ao casal.<br />
A primeira preposição que associamos a este verbo é<br />
“com”, porque pensamos, inicialmente, em sua forma pronominal<br />
que o seguem indicam, respectivamente "alta transitividade" e "baixa transitividade".<br />
258 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
(satisfazer-se); entretanto, o verbo também assume a regência da<br />
preposição “a”. Em ambos os casos, o verbo é transitivo indireto. Em<br />
inglês, porém, o verbo não é regido por preposições, porém, em se<br />
tratando da forma adjetiva “satisfeito” (“satisfied”), faz-se necessária<br />
a preposição “com” (“with”), ficando então “satisfied with”. Assim,<br />
pela Gramática Tradicional, o verbo “satisfazer” é transitivo indireto<br />
e “to satisfy” é transitivo direto. No Funcionalismo, temos baixa<br />
transitividade em ambas as orações (grau 4).<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
Nothing satisfies the<br />
couple.<br />
Transitivo Direto.<br />
(1)B, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)B (grau 4)<br />
Nada satisfaz ao casal.<br />
Transitivo Indireto.<br />
(1)B, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)B (grau 4)<br />
Quadro 3. Análise da transitividade do verbo “to satisfy” (satisfazer) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
3) He called Mary.<br />
Ele ligou para Maria<br />
O verbo “ligar” sendo sinônimo de “telefonar”, na língua<br />
portuguesa, rege complemento formado pela preposição “para”. São<br />
comuns construções do tipo “Ele te ligou”; entretanto, se ‘reorganizarmos’<br />
a oração, teremos “Ele ligou para ti”. Além disso, a regência do verbo,<br />
quando seguimos a orientação da gramática tradicional é “quem<br />
liga (telefona), liga (telefona) para”. Contrariamente, na língua<br />
inglesa é um verbo que não requer preposição a ele posposta. Assim,<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 259
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
pela Gramática Tradicional, o verbo “to call” é transitivo direto e<br />
“ligar (para)” é transitivo indireto. No Funcionalismo, temos alta<br />
transitividade em ambas as orações (grau 9).<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
He called Mary.<br />
Transitivo Direto<br />
(1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)A. (grau 9)<br />
Ele ligou para Maria.<br />
Transitivo Indireto<br />
1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)A. (grau 9)<br />
Quadro 4. Análise da transitividade do verbo “to satisfy” (satisfazer) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
4) She believes John.<br />
Ela acredita em João.<br />
“To believe” é um verbo transitivo direto, pois não há<br />
preposição posposta ao verbo. Em inglês, não é correta a construção<br />
“believe in”, que seria semelhante ao português, pois a regência do<br />
verbo não é mesma. O mesmo verbo em português (“acreditar”) é<br />
transitivo indireto, porque a preposição “em” acompanha o verbo.<br />
Assim, pela Gramática Tradicional, o verbo “to believe” é transitivo<br />
direto e “acreditar” é transitivo indireto. No Funcionalismo, temos<br />
transitividade moderada em ambas as orações (grau 6).<br />
260 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
She believes John<br />
Transitivo Direto.<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)B,<br />
(9)A, (10)A. (grau 6)<br />
Ela acredita em João.<br />
Transitivo Indireto.<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)B,<br />
(9)A, (10)A. (grau 6)<br />
Quadro 5. Análise da transitividade do verbo “to believe” (acreditar) pela GT e pelo<br />
Funcionalismo norte-americano.<br />
5) Eu gosto de ouvir música.<br />
I like listening to music.<br />
O verbo “ouvir”, em português, não rege complemento formado<br />
de preposição, sendo assim, transitivo direto. O mesmo não acontece<br />
em língua inglesa: o verbo requer obrigatoriamente a preposição “to”.<br />
O fato de ser transitivo direto na língua portuguesa acarreta, muitas<br />
vezes, uma transferência de padrão para a língua inglesa. Isto é, um<br />
falante do português, aprendiz do inglês, tende a falar “listen the music”,<br />
omitindo o “to”, porque está transferindo a estrutura de sua língua<br />
materna para a estrangeira. Embora essa correspondência seja válida<br />
algumas vezes, não se aplica a vários verbos, como neste caso. Assim,<br />
pela Gramática Tradicional o verbo “ouvir” é verbo transitivo direto<br />
e “to listen to” é verbo transitivo indireto. No Funcionalismo, temos<br />
baixa transitividade em ambas as orações (grau 4).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 261
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
Eu gosto de ouvir<br />
música.<br />
Transitivo Direto<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)B. (grau 5)<br />
I like listening to music.<br />
Transitivo Indireto<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)B. (grau 5)<br />
Quadro 6. Análise da transitividade do verbo “to believe” (acreditar) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
6) Ela não respondeu à pergunta.<br />
She didn’t answer the question.<br />
Este verbo será transitivo indireto, regendo complemento<br />
formado pela preposição “a”, quando possuir apenas um complemento,<br />
como na oração acima. Havendo dois complementos, de acordo<br />
com a gramática tradicional, será classificado como “bitransitivo”,<br />
conforme a classificação de Cunha a Cintra (2001), como no exemplo<br />
“Respondeu a pergunta para a professora”. Em língua inglesa, por outro<br />
lado, não há a regência por uma preposição, exigindo um objeto<br />
direto como complemento. Pela Gramática Tradicional, o verbo<br />
“responder” é transitivo indireto e “to answer” é transitivo direto.<br />
No Funcionalismo, temos alta transitividade em ambas as orações<br />
(grau 8).<br />
262 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
Ela não respondeu à<br />
pergunta.<br />
Transitivo Indireto<br />
(1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)B, (7)A, (8)A,<br />
(9)B, (10)A (grau 8)<br />
She didn't answer the<br />
question.<br />
Transitivo Direto<br />
(1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)B, (7)A, (8)A,<br />
(9)B, (10)A (grau 8)<br />
Quadro 7. Análise da transitividade do verbo “responder” (to answer) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
7) Preciso de todos aqui.<br />
I need everybody here.<br />
O verbo “precisar” requer a preposição “de” (precisar de algo),<br />
embora sejam possíveis construções – como as locuções verbais, por<br />
exemplo – que permitam a ausência da mesma, como em “Eu preciso<br />
ir”. Porém, conforme orientação da gramática tradicional, quando<br />
‘perguntarmos’ ao verbo sobre sua regência, imediatamente requererá<br />
o uso da preposição. Assim, pela Gramática Tradicional, temos que o<br />
verbo “precisar” é transitivo indireto e “to need” é transitivo direto. No<br />
Funcionalismo, temos baixa transitividade em ambas as orações (grau 4).<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
Preciso de todos aqui<br />
Transitivo Indireto.<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)B, (8)B,<br />
(9)B, (10)A (grau 4)<br />
I need everybody here.<br />
Transitivo Direto.<br />
(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)B, (8)B,<br />
(9)B, (10)A (grau 4)<br />
Quadro 8. Análise da transitividade do verbo “precisar” (to need) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 263
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
8) Os soldados desistiram da luta.<br />
The soldiers gave up the fight.<br />
São poucos os casos, na língua portuguesa, em que o verbo<br />
desistir não rege complemento composto de preposição “de”, como em:<br />
“não desista nunca”. Porém, quem desiste desiste automaticamente<br />
de algo, estando a preposição, de certa forma, omissa: “não desista<br />
(disso) nunca”. Na língua inglesa, o verbo não necessita da preposição,<br />
requerendo apenas um objeto direto. Devemos atentar também para o<br />
fato de que o verbo “to give up” é formado por uma preposição (up), ou<br />
seja, esta compõe o verbo, não devendo ser confundida como regência.<br />
Assim, pela Gramática Tradicional, o verbo “desistir (de)” é transitivo<br />
indireto e “to give up” é verbo transitivo direto. No Funcionalismo,<br />
temos alta transitividade em ambas as orações (grau 9).<br />
Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />
Os soldados desistiram<br />
da luta.<br />
Transitivo Indireto<br />
(1)A, (2)A, (3)A, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)A. (grau 9)<br />
The soldiers gave up<br />
the fight.<br />
Transitivo Direto<br />
(1)A, (2)A, (3)A, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />
(9)A, (10)A. (grau 9)<br />
Quadro 9. Análise da transitividade do verbo “desistir” (to give up) pela GT<br />
e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />
Podemos perceber, após esta análise introdutória, que, de acordo<br />
com a gramática tradicional, os verbos, quanto à sua transitividade,<br />
são classificados diferentemente dependendo do idioma pelo qual<br />
a orações são expressas (estas orações possuem absolutamente o<br />
264 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
mesmo significado). Isto ocorre porque tal abordagem leva em<br />
consideração apenas a estrutura da oração, tomando o verbo como<br />
elemento fundamental, o que acarreta uma avaliação que em muito<br />
é influenciada pela raiz e etimologia da língua.<br />
Por outro lado, o funcionalismo norte-americano parte do<br />
princípio do grau de transitividade, não incorrendo em classificações,<br />
mas sim em gradações. Para os casos analisados, podemos perceber que,<br />
apesar de expressas em idiomas diferentes, as orações que possuem o<br />
mesmo significado (que evidenciam a mesma mensagem) apresentam<br />
o mesmo grau de transitividade em ambas as línguas. Ou seja, já que<br />
o Funcionalismo define a transitividade como uma característica de<br />
uma oração por inteiro, e não apenas como uma característica do<br />
verbo, expressões corretamente traduzidas ou vertidas implicarão,<br />
necessariamente, em mesmo grau de transitividade.<br />
Torna-se coerente, desta forma, considerar que somente o fato<br />
de as línguas serem distintas não deveria implicar em diferença entre as<br />
transitividades das orações que denotam o mesmo sentido. Sob nosso<br />
ponto de vista, o funcionalismo aborda a transitividade de maneira<br />
mais completa, pois toma como relevante outros aspectos da oração<br />
(características do sujeito e polaridade da oração, por exemplo),<br />
não priorizados ou mesmo ignorados pela gramática tradicional,<br />
permitindo a universalização do conceito de transitividade.<br />
Deste modo, ponderamos que, em termos estruturais da língua,<br />
as divergências não deveriam interferir na classificação ou gradação da<br />
transitividade das orações, haja vista que, em última análise, está-se<br />
“dizendo a mesma coisa”.<br />
A maneira impositiva pela qual a gramática tradicional discorre<br />
sobre o tema, por vezes dificulta o aprendizado, tornando os conceitos<br />
confusos e mnemônicos; enquanto a abordagem funcionalista<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 265
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
simplifica e estrutura o assunto de forma mais clara, tornando-o<br />
menos intuitivo, o que nos parece consideravelmente mais sensato.<br />
Considerações Finais<br />
Diante do que foi exposto, pudemos perceber as diferenças<br />
conceituais entre a gramática tradicional e o Funcionalismo no<br />
que diz respeito à transitividade, uma vez que a primeira parte de<br />
uma perspectiva na qual o verbo é o elemento central da oração;<br />
e o segundo toma todos os argumentos da oração para analisar<br />
a transitividade de forma gradativa. A transitividade não é uma<br />
propriedade exclusiva do verbo, e sim de toda a oração.<br />
Devido a essa divergência conceitual, as orações traduzidas<br />
ou vertidas, cujo sentido é exatamente o mesmo, podem possuir<br />
transitividades distintas quando analisadas sob a ótica tradicional,<br />
enquanto podem ter o mesmo grau de transitividade se analisadas<br />
sob a perspectiva funcionalista. Assim, é fácil perceber quão confuso<br />
pode ser o conceito de transitividade denotado pela gramática<br />
tradicional, já que esta pode classificar diferentemente uma mesma<br />
oração expressa em idiomas distintos. Tal fato revela que esse modelo<br />
baseia-se num conceito estrutural e, muitas vezes, considerado<br />
ultrapassado, tendo em vista suas particularidades de acordo com<br />
cada idioma.<br />
Fica evidente, assim, que devido à noção de função da<br />
língua e de seus postulados teóricos, o Funcionalismo expressa um<br />
grande avanço no desenvolvimento da Linguística, na medida em<br />
que procura conciliar todo o seu arcabouço científico, em vez de<br />
ater-se a estudos particulares sobre idiomas específicos. No que<br />
tange à transitividade, a abordagem funcionalista mantém suas<br />
características de universalizar conceitos e estruturar seu objeto<br />
266 l Anais Eletrônicos - 2011
DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />
ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />
de estudo de maneira mais prática, rejeitando, por exemplo,<br />
divergências de transitividade entre orações de mesmo significado,<br />
ainda que expressas em idiomas diferentes.<br />
Referências<br />
ALI, S. Gramática secundária da língua portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 1964.<br />
BECHARA. E. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro, Lucerna, 2004.<br />
CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed., Rio de<br />
Janeiro, Nova Fronteira, 2001.<br />
FURTADO DA CUNHA, M.A e SOUZA M. M. Transitividade e seus contextos de uso.<br />
GIVÓN, Talmy. English Grammar: A Function-Based Introduction. Amsterdam/Philadelphia:<br />
John Benjamin’s Publishing.<br />
LUFT. Celso P. Moderna gramática brasileira. 2ª ed., São Paulo, Globo, 2002.<br />
MARTELLOTA, M.E. Funcionalismo. In: WILSON, MARTELLOTA E CEZÁRIO. Linguística:<br />
Fundamentos. Rio de Janeiro, CCAA, 2009.<br />
NEVES, M.H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo, UNESP, 2000.<br />
ROCHA LIMA, C.H. Gramática normativa da língua portuguesa. 42ª ed., Rio de Janeiro,<br />
José Olympio, 2002.<br />
PERINI. M. Gramática descritiva do português. São Paulo, Ática, 2001.<br />
TRASK. R.L. Dicionário de Linguística e Linguagem. São Paulo, Contexto, 2004.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 267
Resumo<br />
Este trabalho é um recorte de nossa dissertação de mestrado * em que<br />
analisamos o gênero enquete do quadro “Controle de Qualidade” (CQ), do<br />
programa televisivo Custe o Que Custar, investigando de que maneira os<br />
recursos semióticos que compõem os diversos modos dessas enquetes<br />
são convencionados, promovendo, assim, a construção de uma identidade<br />
política. Tendo em vista o contexto de publicação em que se insere este<br />
artigo, focamos nossa atenção na multimodalidade – traço constitutivo<br />
de todos os textos –, fundamentando-nos na Gramática de Design<br />
Visual (GDV), de Kress e Van Leeuwen (2006), demonstrando como as três<br />
estruturas da Função Composicional da GDV se articulam nos recursos<br />
semióticos convencionados em grande escala nas enquetes do programa.<br />
Palavras-chave: enquetes; multimodalidade; convenções; identidade.<br />
Abstract<br />
This paper is an outline of our dissertation, in which we analyzed the<br />
poll genre under “Quality Control” (QC), the television show Custe o<br />
que custar, investigating how the semiotic resources from different<br />
ways these surveys are agreed, thereby promoting the construction of a<br />
political identity. Given the publishing context of this article, we focused<br />
our attention on multimodality – constitutive feature of all texts – and<br />
based our studies on Grammar of Visual Desing (GVD) by Kress and Van<br />
Leeuwen (2006), showing how the three structures from the Compositional<br />
Function of GVD are articulated with the large-scale semiotic resources<br />
in this program polls.<br />
Keywords: surveys, multimodality, conventions, identity.<br />
* Intitulada “Enquetes do Controle de Qualidade do CQC: uma análise multimodal” (orientada e coorientada pelas<br />
professoras Dr as Angela Paiva Dionísio e Medianeira Souza, respectivamente), disponível no banco de Teses e<br />
Dissertações do site do Programa de Pós Graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>. Acessível em: .
A função composicional em<br />
enquetes do CQC<br />
Nadiana Lima da SILVA<br />
(<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
Introdução<br />
Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e,<br />
consequentemente, também do design, os textos têm apresentado,<br />
cada vez mais, um forte teor informativo visual, o que exige<br />
das abordagens teóricas a consideração desse aspecto. Kress e<br />
van Leeuwen (2006), atentando para esse fato, apontam para a<br />
necessidade de se observar os textos de forma integrada, quebrando<br />
(ou, no mínimo, atenuando) a dicotomia entre os estudos da<br />
linguagem e de outros modos, uma vez que a multimodalidade é<br />
um traço constitutivo de qualquer texto, como se pode apreender<br />
da afirmação de Dionisio (2008), segundo a qual, sempre, quando<br />
escrevemos ou falamos, estamos utilizando, pelo menos, dois modos<br />
de representação. Ainda segundo a autora,<br />
representação e imagens não são meramente formas de<br />
expressão para divulgação de informações, ou representações<br />
naturais, mas são, acima de tudo, textos especialmente<br />
construídos que revelam as nossas relações com a sociedade e<br />
com o que a sociedade representa (DIONISIO, 2008, p. 119).<br />
Assim, com a variedade de modos combinados em um texto,<br />
há uma orquestração de propósitos comunicativos entrelaçados, o<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 269
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
que reforça a exigência de mudar a maneira como lemos esses textos,<br />
já que “os gêneros se materializam em formas de representação<br />
multimodal (linguagem alfabética, disposição gráfica na página<br />
ou na tela, cores, figuras geométricas, etc.) que se integram na<br />
construção do sentido” (DIONISIO, 2006, p. 14). Por isso, a autora<br />
afirma que, consequentemente, também precisamos rever o conceito<br />
de letramento: “Precisamos falar em multiletramento!”, o que é<br />
fundamental para observarmos como se manifestam os discursos que<br />
permeiam nossas práticas sociais.<br />
Diante disso, neste estudo, demonstraremos de que maneira<br />
as três estruturas da função composicional da Gramática de Design<br />
Visual, de Kress e Van Leeuwen (2006) se articulam nos recursos<br />
semióticos convencionados que compõem os diversos modos das<br />
enquetes do “Controle de Qualidade” (quadro do programa televisivo<br />
Custe o Que Custar), daqui em diante referido como CQ.<br />
A gramática de design visual (GDV)<br />
Atentemos, primeiramente, para a posição assumida por Kress<br />
e van Leeuwen (2006), segundo a qual os recursos de representação<br />
sinalizam, assim como na língua, algumas regularidades que podem ser<br />
descritas de maneira relativamente formal. Kress e van Leeuwen chamam<br />
isso de ‘gramática’ da comunicação visual, através da qual seria<br />
fornecida uma descrição das escolhas semióticas possíveis, bem como<br />
os padrões que governam essas escolhas, em um todo significativo.<br />
Essa abordagem difere da maioria das descrições das semióticas visuais,<br />
uma vez que, como frisa Machin (2007), estas se orientam pelo léxico,<br />
em que são levados em conta os signos individuais, com sentidos<br />
previamente fixados.<br />
270 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
Para a sua abordagem pautada pela ‘gramática’, Kress e van<br />
Leeuwen adotam o modelo funcionalista dos estudos linguísticos,<br />
que foi desenvolvido pelo inglês Michael A. K. Halliday e chamado<br />
de Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF). Conforme<br />
explicam Furtado da Cunha e Souza (2007, p. 19), essa abordagem<br />
concebe “a teoria da língua enquanto escolha” e a língua é olhada<br />
conforme é usada. O que é central, afirmam as autoras, é o fato de a LSF<br />
encarar o funcionamento da linguagem como um processo associado<br />
ao contexto de uso e não isoladamente, regido por um conjunto de<br />
regras. Kress e van Leeuwen (2006, p. 20) justificam a escolha pela<br />
abordagem semiótica social de Halliday, não apenas por ser um trabalho<br />
bem-sucedido no que diz respeito à língua, mas por constatarem que<br />
esse modelo promove uma reflexão acerca dos diversos processos<br />
semióticos e sociais, e de todos os modos de representação (KRESS e<br />
VAN LEEUWEN, 2006, p. 20, grifo nosso).<br />
O ponto de partida da abordagem de Kress e van Leeuwen<br />
baseia-se no pressuposto de Halliday de que os artefatos comunicativos<br />
podem ser caracterizados ao longo das dimensões definidas pelas três<br />
metafunções da LSF: ideacional, interpessoal e textual. A metafunção<br />
ideacional “representa/constrói os significados de nossa experiência”<br />
(FURTADO DA CUNHA e SOUZA, 2007, p. 21); os enunciados<br />
remetem a eventos e ações de nossa atividade, indicam o conteúdo<br />
ideacional presente nos usos da linguagem. A metafunção interpessoal<br />
refere-se aos papéis dos participantes na interação social; trata dos<br />
usos da língua para representar relações interpessoais. A metafunção<br />
textual está ligada à organização dos aspectos semânticos, gramaticais<br />
e formais, funcionando em conjunto no texto.<br />
Kress e van Leeuwen criam um paralelo com cada umas<br />
das metafunções e propõem três correspondentes funções para a<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 271
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Gramática de Design Visual (doravante GDV). Essas três funções,<br />
associadas às de Halliday são as:<br />
• Representacional (ideacional da LSF), em que estruturas<br />
verbais e visuais controem as naturezas dos eventos, dos<br />
objetos e participantes envolvidos e das circunstâncias<br />
em que eles estão. Assim, enquanto na língua os objetos<br />
podem ser conectados como “O professor cumprimentou<br />
o aluno”, na comunicação visual, uma pessoa pode olhar<br />
fixamente para um objeto.<br />
• Interativa (interpessoal da LSF), em que recursos verbais<br />
e visuais produzem a natureza das relações entre falantes/<br />
ouvintes, escritores/leitores e videntes/e o que é visto.<br />
Dessa forma, na língua, podemos indicar se estamos fazendo<br />
um pedido ou dando uma ordem e, na comunicação<br />
visual, o ângulo vertical de uma câmera, na direção de<br />
cima para baixo, de um pai para um filho, pode indicar<br />
uma relação de autoridade e opressão.<br />
• Composicional (textual da LSF), em que é considerada a<br />
relação entre os significados representacional e interativo,<br />
assim como essa relação se configura através do valor da<br />
informação, da estruturação e da ênfase relativa dada<br />
a elementos textuais ou imagéticos. Dessa maneira, na<br />
língua, é possível contar com a referência e outros elementos<br />
coesivos para criar um todo significativo; já na<br />
comunicação visual, uma placa com os dizeres “Proibido<br />
proibir”, sobreposta à imagem de um ditador, confere<br />
ênfase ao elemento em primeiro plano.<br />
272 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
Essa recontextualização das metafunções propostas por<br />
Halliday para as funções da GDV de Kress e van Leeuwen pode ser<br />
esquematizada da seguinte forma:<br />
Gráfico 1 – Reconfiguração das metafunções da Linguística Sistêmico-Funcional<br />
para a Gramática de Design Visual<br />
Uma vez que objetivamos analisar de que forma os recursos<br />
semióticos são convencionados na enquete, construindo a identidade<br />
dos políticos, decidimos focalizar nossa análise no sistema de<br />
significados composicionais, uma vez que a maneira pela qual os<br />
elementos das enquetes são integrados confere coerência ao todo.<br />
Assim, no tópico seguinte, discorreremos mais detalhadamente sobre<br />
essa última função, a composicional, recorte deste estudo.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 273
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Função composicional<br />
Conforme afirmam Kress e van Leeuwen (1996, p. 177),<br />
a metafunção composicional se realiza por meio de três sistemas<br />
associados:<br />
a) valor informativo, em que, dependendo da “zona” da<br />
imagem onde ao elementos se localizam – esquerda/<br />
direita, parte superior/parte inferior e centro/margem –,<br />
são conferidos valores distintos quanto à informação.<br />
Kress e van Leeuwen (1996) afirmam ser o lado esquerdo<br />
o lugar em que as informações já conhecidas pelos<br />
interlocutores são posicionadas, o dado. Já a informação<br />
nova, que pode ser parcial ou totalmente desconhecida<br />
pelo leitor, é apresentada do lado direito do texto 1 , o novo.<br />
De forma semelhante, as informações dispostas na parte<br />
superior da imagem – ideal – opõem-se às apresentadas<br />
na parte inferior – real –, uma vez que nesta são exibidas<br />
as informações concretas, práticas, mais reais, enquanto<br />
naquela são divulgadas informações idealizadas. Além<br />
disso, se localizados no centro da imagem, certamente<br />
este constituirá o foco da informação em detrimento das<br />
informações marginalmente dispostas.<br />
b) saliência, em que os elementos são dispostos de modo<br />
específico com a finalidade de atrair a atenção do<br />
interlocutor, por meio de vários fatores. Conforme<br />
esclarecem os autores, não é possível mensurar essa<br />
1. O termo texto é utilizado indistintamente do termo imagem.<br />
274 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
saliência, uma vez que ela é apreendida pelos leitores, que<br />
conseguem intuitivamente julgar o “peso” dos elementos,<br />
no todo composicional, por meio de uma complexa relação<br />
entre alguns fatores: tamanho, cor, tonalidade (áreas com<br />
forte contraste indicam maior saliência), foco (quanto<br />
mais focados, mais os elementos são salientes), perspectiva<br />
(elementos posicionados em primeiro plano são mais<br />
salientes do que os apresentados em segundo plano),<br />
sobreposição (os elementos sobrepostos são mais salientes<br />
do que os elementos encobertos) e símbolos culturais potentes<br />
(pode ser o conjunto de elementos, como uma mulher,<br />
em um anúncio publicitário, com trajes de executiva,<br />
utilizando laptop e celular conferindo uma ideia de mulher<br />
independente e inserida no mercado de trabalho, ou pode<br />
ser a presença de uma figura humana importante).<br />
c) estruturação, em que é levada em conta a presença de<br />
elementos, ou grupos de elementos, conectados ou<br />
desconetados da imagem, através de linhas divisórias<br />
apreeendidas da imagem ou linhas do próprio frame<br />
dela. Dessa forma, os elementos são apresentados como<br />
participantes de uma unidade separada das demais ou<br />
relacionadas entre si. As cenas podem representar fronteiras<br />
ou a ausência deles pode indicar uma natural conexão.<br />
Além disso, há potenciais de sentidos no tamanho e no<br />
formato das marcas divisórias, ou seja, linhas irregulares<br />
podem representar perigo ou desnível e linhas suaves e<br />
arredondadas, conforto e maciez.<br />
Para os autores, esses três sistemas, por meio dos quais as<br />
composições integram os significados representacionais e interativos,<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 275
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
são aplicáveis a qualquer texto visual complexo ou multimodal.<br />
Além disso, é imprescindível considerar todos os elementos de forma<br />
integrada; não o texto verbal como “primordial” e o visual como<br />
“ilustração”, como se fossem elementos constituídos por unidades<br />
distintas. Veremos, então, como se configura cada um desses três<br />
sistemas que promovem o sentido da composição.<br />
Além da função composicional da GDV, fundamentamos<br />
nossa análise nos estudos de Kostelnick e Hasset (2003), sobre<br />
as convenções retóricas, que exercem um papel relevante nos<br />
mais variados gêneros. Portanto, no tópico a seguir, abordaremos<br />
a natureza social das convenções, o seu papel na construção dos<br />
sentidos das composições visuais e como isso se configura no âmbito<br />
das enquetes do CQ.<br />
Documentos multimodais: um mosaico de convenções<br />
O design integra uma ampla variação de códigos convencionais<br />
que estão constantemente se modificando. No entanto, a linguagem<br />
visual do design é muito mais acessível – se comparada à linguagem<br />
verbal – tanto perceptual quanto hermeneuticamente, já que é<br />
assimilada, grosso modo, intuitivamente. Por isso, não podemos<br />
escapar da presença desses códigos ou de seu poder de nos moldar<br />
culturalmente. Sobre essa questão, Kostelnick e Hasset (2003a, p.<br />
11) afirmam que o design é “inerentemente retórico”, uma vez que<br />
os designers usam seus artefatos para comunicar objetivando alcançar<br />
alguns fins. Ao mesmo tempo, advogam os autores, o design integra<br />
esses artefatos entre audiências complexas, o que ocorre, normalmente,<br />
dentro das expectativas do público, sendo, por isso, “inerentemente<br />
convencional”. Para os autores, essa linguagem convencional não<br />
276 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
é escrita de forma impulsiva, mas é reproduzida ao longo dos anos,<br />
promovendo interpretações de estabilidade, verdade e poder.<br />
As formas de design “operam entre um universo de códigos<br />
convencionais que mediam profundamente nossa interpretação da<br />
linguagem visual” (2003a, p.12). Assim, as convenções fornecem o<br />
“fio que trança” nossas experiências sensoriais, permitindo a criação<br />
de uma linguagem coerente por meio de uma estrutura profunda do<br />
design. Quanto à mutabilidade das convenções, os autores sinalizam<br />
para um fator importante: os artefatos de design “não são inertes,<br />
predestinados ou acidentais”, mas manifestam visualmente ações dos<br />
usuários; são, portanto, o discurso visível da língua viva em constante<br />
transformação. Isso se justifica pelo fato de designers conscientemente<br />
empregarem as convenções e os leitores a interpretarem, o que se<br />
dá pelo compartilhamento de experiências de natureza diversa. Por<br />
essa razão, as convenções são intrínseca e profundamente sociais, já<br />
que são proliferadas e sustentadas por grupos sociais. Dessa maneira,<br />
conforme afirmam os autores, as convenções são vulneráveis porque<br />
“são construtos sociais que dependem dos grupos que os usam, os<br />
aprendem e os põem em prática” (ibidem, 2003, p. 24).<br />
A maneira como nós passamos a fazer parte de uma comunidade<br />
de discurso e como apreendemos culturalmente seus códigos<br />
convencionais também varia consideravelmente. Esse processo ocorre<br />
quando nós nos deparamos com elementos visuais, os compreendemos<br />
e, em seguida, agimos de acordo com nossa interpretação. Em função<br />
do sucesso ou da falha de nossas ações, nós reajustamos nossos<br />
modelos mentais acerca desses elementos visuais, os reinterpretamos<br />
e aplicamos essa interpretação sempre quando em presença de tais<br />
elementos. Essa habilidade é adquirida à medida que nos tornamos<br />
fluentes na linguagem visual, o que é, em parte, desenvolvido em<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 277
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
nossa educação silenciosa, de forma autônoma. No que diz respeito<br />
às enquetes do CQ, verifica-se a formação de convenções quanto<br />
aos recursos semióticos, que representam ações diversas que, por<br />
sua vez, produzem efeitos de sentido particulares, como o efeito de<br />
reprovação (como a marreta que atinge a cabeça do deputado e esta<br />
fica, consequentemente, deformada), o efeito de aprovação (como o<br />
som de tilintar metálico), o efeito de deboche (como o nariz-de-palhaço<br />
sobreposto ao nariz do político), etc.<br />
Tendo em vista que o escárnio 2 permeia a utilização dos recursos<br />
semióticos de nosso corpus, apresentamos um gráfico abaixo que<br />
apresenta a categorização dos efeitos de sentido produzidos a partir<br />
das ações representadas pelos recursos, nas quais operam as três<br />
estruturas composicionais:<br />
Gráfico 2: Categorias de Análise<br />
2. Esse termo, uma espécie de hiperônimo dos demais, foi escolhido tendo em vista que há um tom de zombaria<br />
manifesta mesmo em ações que produzem efeito de aprovação.<br />
278 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
No próximo tópico, demonstraremos como essa dinâmica se<br />
realiza. Para isso, iremos nos deter à análise dos recursos semióticos<br />
convencionados como ações que produzem, sobretudo, efeito de<br />
reprovação, tendo em vista as estruturas valor informativo, saliência<br />
e estruturação. Amplamente utilizadas nas enquetes, essas ações<br />
representadas pelos recursos funcionam como instrumento para julgar<br />
negativamente as atitudes dos políticos.<br />
Como a função composicional opera nas enquetes?<br />
Levemos em conta as seguintes enquetes:<br />
C1<br />
C2<br />
C3<br />
C4<br />
DG: Como vai? Tudo bom, seu deputado? O<br />
que tá rolando aqui?<br />
LCH: a questão da crise da pecuária de corte<br />
dos frigoríficos.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 279
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
C5<br />
C6<br />
DG: Agora, pra quem tá em casa, e não sabe,<br />
quantos ministérios o governo tem ligados à<br />
agricultura?<br />
C7<br />
[som: parecido com o ruído de uma porta<br />
pesada e antiga, em movimentação]<br />
LCH: tem dois ministérios.<br />
C8<br />
DG: Pra quem tá em casa e não sabe o nome<br />
dos ministros ligados à agricultura?<br />
Reinhold Stephanes e o Guilherme de Cassel.<br />
[tilintar metálico]<br />
280 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
C9<br />
C10<br />
DG: o senhor acha que um deputado, pra<br />
executar bem seu trabalho, ele precisa ter<br />
um bom conhecimento do que acontece no<br />
executivo?<br />
[som: semelhante a uma porta rangendo<br />
rapidamente]<br />
C11<br />
JL: Com certeza absoluta, né? Tem que tá<br />
a par da situação que tá acontecendo no<br />
governo porque nós deputados e viemos<br />
pr’aqui pra fiscalizar o executivo e legislar,<br />
fazer lei, né?<br />
C12<br />
DG: o nome do ministro da agricultura<br />
conhecemos?<br />
JL: conhecemos.<br />
[som: galho sendo contorcido ou crescendo]<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 281
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
C13<br />
C14<br />
DG: que é o?<br />
[som: Algo sendo engolido brusca e dificilmente]<br />
C15<br />
JL: Eu agora, me, me falta a memória, aqui, no<br />
momento.<br />
C16<br />
DG: o senhor conhece?<br />
JL: conheço, de perto.<br />
DG: e o do Desenvolvimento Agrário?<br />
JL: conheço todos eles, porque participo<br />
sempre das reuniões do governo<br />
282 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
C17<br />
DG: Amigo deles?<br />
JL: isso, são amigos.<br />
DG: mas não lembra o nome? [som: semelhante a uma mola que se rompe]<br />
JL: não lembro o nome...<br />
DG: Mas é amigo chegado? [som: grasnar de pato ou marreco]<br />
Quadro 1 – “Crise da pecuária” (dia 06/04/09) 3<br />
Nas primeiras cenas, DG pergunta ao deputado federal Luiz<br />
Carlos Heinze se há algo ocorrendo no Congresso e, este responde<br />
àquele que há uma discussão sobre a crise da pecuária de corte dos<br />
frigoríficos. Em seguida, o deputado diz, em função de duas novas<br />
perguntas de DG, que há dois ministérios ligados à agricultura e que<br />
os ministros ligados a esses ministérios são Reinhold Stephanes e<br />
Guilherme de Cassel. Por conceder respostas objetivas e corretas, há<br />
um tilintar metálico que confere um valor semântico de aprovação,<br />
amplamente convencionado nas enquetes. De certa forma, apresentálo,<br />
logo de início, indica um exemplo do que é considerado pelo<br />
programa como um político bem-informado, que tem conhecimento<br />
sobre o que ocorre no Congresso, pelo menos. No entanto, esse ‘tipo<br />
de político’ não é o que se observa nas cenas seguintes.<br />
3. Imagens capturadas a partir do vídeo, disponível em: http://videos.band.com.br/v_17429_danilo_gentili_<br />
testa_o_nivel_de_conhecimento_dos_politicos.htm<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 283
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Especificamente em C9 e C10, verificamos<br />
que o deputado federal Jurandyr Loureiro,<br />
diante de pergunta semelhante (“o senhor<br />
acha que um deputado, pra executar bem seu<br />
trabalho, ele precisa ter um bom conhecimento<br />
do que acontece no executivo?”, em C9),<br />
prontamente responde afirmativamente<br />
à questão, com serenidade e sobriedade:<br />
“Com certeza absoluta, né? (...)” (C10).<br />
Diante da resposta, DG questiona se o<br />
político conhece – ou seja, se sabe – o nome<br />
do ministro da agricultura; o deputado,<br />
por seu turno, responde que conhece.<br />
Entretanto, o recurso semiótico, do modo<br />
imagético, contradiz essa resposta, uma<br />
vez que há um aumento do comprimento<br />
do nariz do deputado. Essa ação ganha<br />
saliência nesse momento, sobretudo porque<br />
ela ocupa a posição Central, quanto ao<br />
valor informativo, uma vez que se encontra<br />
no centro do rosto do político e ‘aponta’<br />
para o centro da cena, o que indica que<br />
sua resposta é uma mentira e devemos<br />
atentar para essa informação. O recurso<br />
pictórico utilizado em C12 dialoga com o<br />
personagem de histórias infantis Pinóquio,<br />
cujo nariz crescia em função das mentiras<br />
que contava, como mostra a figura 1 4 .<br />
4. Fonte das figuras 1 e 2: http://globoesporte.globo.com/platb/files/949/2011/04/Pin%C3%B3quio-350x260.jpg.<br />
284 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
Essa associação é reforçada pelo recurso semiótico, do modo<br />
sonoro, que alude a um galho de árvore crescendo, como descrito<br />
em C12. Esse som se justifica pelo fato de o personagem Pinóquio ser<br />
um boneco de madeira, feito a partir de um tronco de pinheiro. O<br />
próprio nome do personagem, Pinocchio (em italiano, língua original da<br />
história) significa pinhão, que é uma semente de um tipo de pinheiro.<br />
É importante lembrar que esse recurso de um nariz-que-cresce<br />
também faz parte das convenções retóricas construídas ao longo das<br />
enquetes e produz o efeito, como foi possível verificar, de reprovação.<br />
Após ser ‘reprovado’, o deputado passa por um constrangimento<br />
(C13), efeito produzido a partir do recurso que consiste na deformação<br />
do rosto do político associado ao som de algo sendo engolido<br />
dificilmente, que confere um alto grau de saliência a esse momento,<br />
assim como analisamos no tópico anterior. Isso se deve ao fato de,<br />
frente à pergunta de DG (“que é o?”), o deputado afirmar não lembrar<br />
o nome do ministro (da Agricultura), naquele momento. Mas também<br />
não lembra o nome do ministro do Desenvolvimento Agrário, mesmo<br />
afirmando que ambos são seus ‘amigos’. Por ser incoerente o fato de<br />
não lembrar/saber os nomes daqueles que são considerados como<br />
amigos, DG questiona: “mas não lembra o nome?” (C17). Pergunta<br />
que é seguida por um recurso sonoro semelhante a uma mola que se<br />
rompe, como uma espécie de ladainha que cessa, de ‘conversa fiada’<br />
que se encerra.<br />
Se, anteriormente, o deputado Jurandyr Loureiro tinha passado<br />
por momentos de embaraço – ao dizer que conhecia os nomes dos<br />
ministros da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário, mas que<br />
não lembrava nenhum dos dois, mesmo sendo de seus “amigos” –, a<br />
partir da cena 17, o deputado nem mesmo se dá conta da situação<br />
que protagoniza. Atentamos, então, para o quadro 32 a seguir, que<br />
dá continuação ao anterior.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 285
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
C 18 C 19<br />
DG: o que o senhor acha do Ministério da<br />
Apicultura?<br />
[som: corda de instrumento musical<br />
rompendo-se<br />
JL: o trabalho que eles estão fazendo<br />
C 20 C 21<br />
...o trabalho que eles estão fazendo são<br />
trabalhos importante.<br />
DG: mas o senhor acha que o ministro da<br />
apicultura é um bom ministro?<br />
286 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
C 22 C 23<br />
JL: Lógico, lógico,<br />
[som1: música cessando bruscamente; som 2:<br />
vozes gritando ‘Não!”, com o ‘a’ prolongado.]<br />
pela competência que ele tem, porque<br />
geralmente, é, é, se ele foi escolhido pra ocupar<br />
essa (?) é porque tem competência.<br />
C 24 C 25<br />
DG: Obrigado. Oh, eu fico mais tranquilo que o<br />
senhor tá fiscalizando aí.<br />
(o deputado sai do enquadre da cena, julgando<br />
já ter terminado a enquete, mas volta quando<br />
DG diz “oh”)<br />
C 26<br />
[som: de uma espécie de apito]<br />
JLJL: Tá bom, querido. Muito obrigado.<br />
Quadro 2 – “Crise da pecuária” (dia 06/04/09) – continuação<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 287
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Em C18, o deputado é questionado acerca do Ministério<br />
da Apicultura (pela familiaridade sonora com “Agricultura” e<br />
“Aquicultura”) que, segundo informa a legenda – esta sempre ocupa<br />
a posição Real nas cenas e apresenta uma estruturação bem marcada<br />
de separação – ainda não foi criado. Como “apicultura” é a criação<br />
de abelhas, o recurso semiótico utilizado para indicar que o deputado<br />
foi atingido é uma abelha que pica a testa do deputado, deixando-a<br />
ferida, como pode ser visto em C19 e C20. O recurso da picada-daabelha<br />
constitui a informação Ideal, ideologicamente mais saliente,<br />
já que metaforiza o fato de o deputado ter sido ‘ferido’ por uma<br />
abelha (justificado pelo suposto ministério da “apicultura” do qual<br />
falava o deputado). Ao discorrer sobre esse ministério e os trabalhos<br />
desenvolvidos pelo ministro responsável, o deputado Jurandyr<br />
demonstra não ter credibilidade para discutir questões relacionadas<br />
aos ministérios – as partes acabam por criar a ideia do todo – e, por<br />
conseguinte, sobre questões relevantes para a população.<br />
Conforme seu próprio discurso inicial, não está preparado<br />
para desempenhar um bom papel, já que não é bem-informado, de<br />
certa forma internalizado, assumido como verdade, tendo em vista<br />
a formulação da pergunta que, como comentamos anteriormente,<br />
apenas oferece duas possíveis respostas (sim ou não), o que induz<br />
o político a responder afirmativamente, já que se considera um<br />
pressuposto para o exercício de seu cargo. São várias as ações<br />
representadas pelos recursos semióticos que produzem o efeito de<br />
reprovação que, juntos, criam um alto grau de saliência nos momentos<br />
em que atuam e reforçam, por isso, a construção da identidade do<br />
político desinformado/não-preparado para ser político: além do<br />
nariz-de-palhaço em conjunto com o som de um galho crescendo,<br />
há a picada de uma abelha (convenção em pequena escala, já que se<br />
associa a esta situação em particular), som de vozes gritando “Não!”,<br />
288 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
com o ‘a’ prolongado (C22) e a ‘marretada’ na cabeça do político que<br />
fica deformada. Por fim, depois de tantas reprovações, o deputado<br />
agradece ao integrante do programa por este ter dito que fica mais<br />
“tranquilo” por saber que há pessoas como esse político “fiscalizando”,<br />
sem nem mesmo perceber que essa afirmação se trata de uma ironia,<br />
já que – pela leitura orientada pelas estratégias desenvolvidas pelas<br />
enquetes –, com políticos como o deputado Jurandyr Loureiro que<br />
desconhecem questões relacionadas ao próprio ambiente de trabalho,<br />
ficamos ainda mais preocupados com a situação do país.<br />
Considerações finais<br />
Como pudemos demonstrar, em ações com efeito de reprovação,<br />
de constrangimento e outras com tom negativo, há um intenso uso<br />
de recursos semióticos visuais em congruência com os sonoros. Na<br />
maior parte dos casos, o político é “atingido” por objetos variados,<br />
indicando que ele foi reprovado pelo Controle de Qualidade e que, por<br />
consequência, não desempenha um bom papel. Esse recurso visual,<br />
juntamente com o sonoro – considerando que há sempre associação<br />
a um som, que varia quanto ao grau de reprovação, como vimos –,<br />
enfatiza fortemente a figura do político que é “ferido” pelo objeto,<br />
já que sempre há deformação de sua face e representação de sangue<br />
que sai de seu rosto. Em contrapartida, os recursos que produzem<br />
o efeito de aprovação são mais sutis e, normalmente, são recursos<br />
sonoros, conferindo menor grau de saliência em relação aos recursos<br />
com efeito negativo. Uma leitura autorizada que se pode apreender<br />
dessa construção, conduzida pelas escolhas discursivas das enquetes –<br />
quais manchetes são exibidas, quais questionamentos são feitos, quais<br />
depoimentos são exibidos, quais recursos semióticos são utilizados<br />
(essa, em especial, foco de nosso estudo) etc. – é que o político deve ser<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 289
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
bem-informado, deve saber responder àquelas perguntas e, então, não<br />
precisa ser veementemente parabenizado, só cumpre seu papel. Além<br />
disso, como é forte o caráter humorístico do quadro, pode-se afirmar<br />
que não há graça em exibir políticos que respondem corretamente às<br />
perguntas; ao contrário, provoca humor exibir políticos desinformados<br />
e que são, por isso, ridicularizados publicamente.<br />
Ao escolher determinados conteúdos, associados à confluência<br />
de diversos recursos semióticos, dos diferentes modos, as enquetes<br />
promovem a construção de variados efeitos de sentido “para<br />
influenciar o outro, isto é, no fim das contas” é realizada uma “escolha<br />
de estratégias discursivas” (CHARAUDEAU, 2006, p. 39). Como foi<br />
possível verificar, portanto, as enquetes são utilizadas para legitimar o<br />
próprio discurso do CQ acerca da desinformação dos políticos, a partir<br />
da exibição de políticos que não respondem corretamente às perguntas<br />
que são propostas – com status de relevantes para o exercício do papel<br />
de representante do povo – em conjunto com recursos semióticos<br />
convencionados que produzem, principalmente, efeitos de reprovação<br />
e constrangimento. Assim, mostramos que há um posicionamento<br />
ideológico nas enquetes, construído por estratégias que se manifestam<br />
não só no que diz respeito às escolhas linguísticas, mas, sobretudo,<br />
quanto aos recursos semióticos de outros modos, sendo de extrema<br />
importância um olhar atento dos aspectos multimodais envolvidos na<br />
leitura dos gêneros, o que assinala para um melhor desenvolvimento<br />
de trabalhos a esse respeito.<br />
290 l Anais Eletrônicos - 2011
A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />
Referências<br />
DIONISIO, A. P. (2006) Diversidades de ações sociais e de representações: diversidade de<br />
gêneros e em gêneros. Disponível em: . Acesso em 20 jun. 2009.<br />
______. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In. Karwoski, A.M.; Gaydeczka, B.; BRITO,<br />
K. S.. (orgs.). Gêneros Textuais: reflexões e ensino. 3ª ed.União da Vitória: Kaygangue,<br />
2008. p. 119-132.<br />
FURTADO DA CUNHA, M. A.; SOUZA, M. M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de<br />
Janeiro: Lucerna, 2007. p. 17-25.<br />
KOSTELNICK, C.; HASSET, M. Visual Language, Discourse Communities and The Inherently<br />
Social Nature of Conventions. In: KOSTELNICK, C. Shaping Information: the rethoric of<br />
visual conventions. Carbondale: Southen Illinois University Press, 2003a. p.10-42<br />
______. What’s conventional, what’s not. In: KOSTELNICK, C. Shaping Information: the<br />
rethoric of visual conventions. Carbondale: Southen Illinois University Press, 2003b.<br />
p.43-80.<br />
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2ª ed. London:<br />
Routledge, 2006.<br />
MACHIN, D. Introduction to Multimodal Analysis. London: Hodder Arnold, 2007.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 291
Resumo<br />
O infográfico, ou gráfico informativo, deve ser compreendido como um<br />
gênero textual composto pelas linguagens verbal e não-verbal a fim de<br />
passar uma informação/conteúdo de forma sucinta e atraente. Antes<br />
encontrado com maior frequência nos domínios discursivos jornalístico<br />
e científico, como nas Revistas Superinteressante, Galileu Galilei e Época,<br />
por exemplo, modernamente, é bastante frequente a presença de gráficos<br />
informativos em manuais didáticos, a citar o Guia do Estudante. Esse<br />
artigo científico é fruto da disciplina de sintaxe, ministrada no Programa<br />
de Pós-Graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>, e tem por finalidade verificar como<br />
os infográficos estão multimodalmente construídos à luz da Gramática do<br />
Design Visual proposta por Kress e van Leewen (1996). Nosso corpus foi<br />
coletado do Guia de Atualidades do primeiro semestre de 2011.<br />
Palavras-chave: gráfico informativo; Linguística Sistêmico-Funcional;<br />
multimodalidade.<br />
Abstract<br />
The infographic, or informative graphic, must be understood as a text<br />
genre composed by verbal and nonverbal languages, in order to pass an<br />
information / content or in an attractive or brief way. Infographics were<br />
priorly most found among the areas of journalism and scientific discourse,<br />
as in Superinteressante, Galileu Galilei and Época magazines, for instance;<br />
but actually, it is quite frequently the presence of informative graphics in<br />
textbooks, like Guia do Estudante. This scientific paper is the result of the<br />
discipline of syntax, taught in the Graduate Program in Linguistics at <strong>UFPE</strong>,<br />
and aims to verify how the multimodality infographics are constructed<br />
according to the Grammar of Visual Desing, proposed by Kress and van<br />
Leeuwen (1996). Our corpus was collected from Guia de Atualidades, taken<br />
from the first half of 2011.<br />
Keywords: informative graphic; Systemic Functional Linguistics;<br />
multimodality.
Gráficos informativos<br />
sob a perspectiva da<br />
Gramática Visual<br />
Rosemberg Gomes NASCIMENTO<br />
(<strong>UFPE</strong>/CAPES) 1<br />
Introdução<br />
Um dos gêneros textuais que vem tornando-se cada vez mais<br />
frequente no domínio jornalístico e, mais recentemente, em manuais<br />
didáticos destinados a vestibulandos, como o Guia do Estudante, é o<br />
infográfico. Vale salientar que ultimamente o infográfico, ou gráfico<br />
informativo, vem sendo objeto de estudo de alguns estudiosos do<br />
âmbito da Linguística e do Jornalismo, a citar: Cairo (1998), Colle<br />
(1998), Dionisio (2004; 2006), Rojo (2008), entre outros. O gênero em<br />
questão tem como característica a presença de vários modos semióticos<br />
em sua construção. Na verdade, o infográfico está alterando a forma<br />
de apresentação da escrita de nossa sociedade e a leitura do referido<br />
gênero não pode ser realizada conforme os moldes tradicionais, já que<br />
se trata de um gênero essencialmente multimodal.<br />
Dessa forma, nesse artigo científico, que faz parte do projeto<br />
de pesquisa do projeto de Mestrado, pretendemos verificar como o<br />
infográfico está multimodalmente construído. Para isso, analisaremos<br />
um gráfico informativo publicado no Guia de Estudante de Atualidades<br />
1. Trabalho de conclusão da disciplina Sintaxe ministrada pela professora Maria Medianeira de Souza no primeiro<br />
semestre de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 293
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
no primeiro semestre de 2011. Como fundamentação teórica, baseamonos<br />
na Gramática do Design Visual que, através das metafunções<br />
representacionais, interativas e composicionais, fornecem os elementos<br />
teóricos necessários a fim de que possamos analisar o texto visual do<br />
infográfico e verificar como o gênero está semioticamente construído<br />
através da imbricação de diferentes modos de representação.<br />
A linguística sistêmico-funcional: breve panorama<br />
Influenciada pela obra de Michel Halliday (1925- ), a Linguística<br />
Sistêmico- Funcional (doravante LSF) rejeita o estruturalismo puro que<br />
era dominante no início do século XX como, por exemplo, o europeu,<br />
representado por Saussure, e o norte-americano que tem como um dos<br />
principais expoentes Leonard Bloomfield. De acordo com as abordagens<br />
sistêmico-funcionais, o uso é a marca fundamental para a descrição de<br />
uma língua. É importante salientar que a noção de sistema é diferente da<br />
adotada por Saussure no Curso de Linguística Geral a fim de descrever<br />
e revelar a estrutura linguística (cf. BENVENISTE, 1988).<br />
Na LSF, o vocábulo “funcional” refere-se ao papel que a língua<br />
desempenha em contextos determinados e o termo “sistêmico”<br />
concerne “à estrutura ou organização da língua de modo que possa<br />
ser usada para fazer determinadas coisas dentro daquele contexto”<br />
(BAWARSHI; REIFF, 2010, p. 01). Assim, podemos afirmar que o<br />
“sistêmico” está relacionado ao sistema de escolhas disponíveis aos<br />
falantes de uma língua para a realização do sentido (cf. BAWARSHI;<br />
REIFF, op. cit.). A ideia de escolha é muito importante para a teoria<br />
em estudo já que, conforme atesta Gouveia (2009), a língua, enquanto<br />
potencial de significado, organiza-se em torno de redes relativamente<br />
independente de escolhas.<br />
294 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
A LSF toma como ponto de partida a análise de textos os quais<br />
são considerados como produtos autênticos da interação social (cf.<br />
FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007). Assim, tomando-se com<br />
ponto de partida o texto como um potencial de significados culturais, o<br />
qual é atualizado por meios linguísticos, podemos afirmar que ele pode<br />
ocorrer em dois contextos imediatos que são denominados por Halliday<br />
de contexto de cultura e contexto de situação.<br />
O contexto de cultura é tido como mais amplo e refere-se aos<br />
significados que são possíveis em uma cultura particular. Por sua vez,<br />
o contexto de situação deve ser compreendido como o contexto de<br />
produção imediato, é uma representação abstrata do entorno em termos<br />
de certas categorias gerais que têm importância para o texto. Sobre os<br />
aspectos mencionados, Guio e Fernández (2008, p. 37) resumem:<br />
O texto é, então, um processo contínuo: entre um texto e seu<br />
entorno há uma relação que muda constantemente, tanto<br />
paradigmática (a cultura e o sistema social que engrenam o<br />
texto) como a sintagmática (a interação social na qual se realiza:<br />
o contexto de situação).<br />
Relacionadas às noções de contexto de cultura e contexto<br />
de situação, estão os termos gênero e registro. Aquele está ligado<br />
ao contexto de cultura. Na realidade, Bawarshi e Reiff (2010)<br />
atestam que a obra de Halliday não se concentra especificamente na<br />
concepção de gêneros que são concebidos como um modo ou conduto<br />
de comunicação, um dos meios textuais disponíveis no registro que<br />
auxilia os participantes da comunicação a perceber o tipo de situação.<br />
O registro, em contrapartida, vinculado ao contexto de situação,<br />
está relacionado com a variação de acordo com o uso. Existem três<br />
dimensões do registro: campo, relação e modo.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 295
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
O campo é o primeiro parâmetro que se observa quando se quer<br />
ter um retrato exato do que está acontecendo, corresponde à natureza<br />
da prática social. A relação centra-se na interação entre os participantes,<br />
que pode se basear na formalidade e informalidade ou na natureza mais<br />
afetiva ou menos afetiva (cf. FURTADO DA CUNHA & SOUZA,<br />
2007). Por fim, o modo refere-se à maneira como a linguagem se<br />
organiza na interação social particular. Tem a ver, por exemplo, com o<br />
meio de comunicação (oral ou escrito) e com os canais de comunicação.<br />
As variáveis do campo, relação e modo correspondem, no nível<br />
linguístico, ao que Halliday denomina de metafunções da linguagem:<br />
ideacional, interpessoal e textual. A primeira, ligada ao campo, que se<br />
manifesta no processo de transitividade, corresponde à representação<br />
de nossa experiência de mundo, tanto exterior quanto no interior<br />
de nossa consciência. A segunda, relacionada à relação, possibilita<br />
a descrição da interação entre os participantes mediante o sistema<br />
de modo e modalidade. É com base nessa metafunção que o falante<br />
expressa seu ponto de vista, julgamento e atitudes. Preocupada com<br />
o uso da linguagem na organização do texto e vinculada ao modo, a<br />
última metafunção<br />
descreve o fluxo da informação dentro e entre textos, incluindo<br />
a forma como os textos se organizam, o que fica explícito e o<br />
que em suposto como conhecimento prévio, de que modo se<br />
relacionam o dado e o novo e como a coerência e a coesão são<br />
produzidos (BAWARSHI; REIFF, 2010, p. 03).<br />
A LSF trouxe importantes contribuições para muitas áreas de<br />
investigação como a Análise Crítica do Discurso (ACD) e os estudos<br />
da Multimodalidade, que é tema de nossa seção seguinte.<br />
296 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
A gramática visual: um olhar além do texto verbal<br />
Em gêneros textuais mistos, a imagem, assim como a linguagem<br />
verbal, representa um forte papel semântico. Nesses gêneros, os quais<br />
podemos citar como exemplo os infográficos, a imagem não funciona<br />
como complemento do modo verbal, mas integra-se a este formando<br />
um bloco único e significativo. (cf. DIONISIO, 2006).<br />
Dada a importância da linguagem visual como potencial<br />
de significado, Kress e van Leewen (2000) propõem uma “análise<br />
gramatical” das imagens conhecida como Gramática do Design Visual.<br />
Tendo a LSF como âncora teórica, a referida Gramática também tem<br />
uma organização metafuncional e constrói seu sentido pautando-se<br />
nas metafunções propostas por Halliday: ideacional/representacional,<br />
interpessoal/interativa e textual/composicional.<br />
A metafunção Representacional<br />
Na Gramática Visual, os participantes são conhecidos como<br />
interativos (aqueles que falam, escrevem, produzem, ou visualizam<br />
imagens) ou representados (pessoas, coisas ou lugares representados<br />
nas imagens). A função representacional é obtida nas imagens a<br />
partir desses últimos participantes. Essa função pode ser subdividida<br />
em estruturas narrativas, quando há a presença de vetores (guias que<br />
indicam a interação entre os participantes) indicando a ação ou evento<br />
realizado, e estruturas conceituais as quais apresentam uma taxonomia<br />
em que “os participantes representados são expostos como se estivessem<br />
subordinados a uma categoria superior. (...) Definem, analisam ou<br />
classificam pessoas, objetos ou lugares” (FERNANDES e ALMEIDA,<br />
2008, p. 13).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 297
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
As imagens também possuem uma estrutura sintática que<br />
depende da relação espacial entre os elementos representados. Nas<br />
representações narrativas, por exemplo, os participantes funcionam<br />
como os executores de eventos e as ações são desempenhadas por<br />
vetores. De acordo com o tipo de vetor e número de participantes, é<br />
possível identificar alguns processos narrativos, a saber: ação, reação,<br />
processo verbal e processo mental.<br />
No processo de ação, o participante ator é o participante no<br />
qual parte o vetor, geralmente é o mais saliente na imagem. Quando<br />
há apenas um participante, temos uma estrutura não transacional.<br />
Se houver dois ou mais participantes, há uma estrutura transacional<br />
cuja meta representa o participante a quem o vetor se dirige como, por<br />
exemplo, o leitor, no caso em que a imagem apresente um participante<br />
representando olhando para nós. Há também a estrutura bidirecional<br />
na qual os participantes intercambiam os papéis de ator e meta.<br />
A ação desempenhada no processo reacional tem como ponto<br />
de partida um olhar rumo a alguém ou algo. Os participantes são<br />
classificados como reator (aquele que olha) e fenômeno (objeto do olhar).<br />
As reações também podem ser transacionais (identifica-se o alvo do<br />
olhar) e não transacionais (não há identificação do alvo).<br />
Por último, temos os processos verbais e os mentais que podem<br />
ser encontrados em balões que denotam fatos e pensamentos. Os<br />
participantes são animados (dizente e experenciador – no caso dos<br />
processos mentais), o enunciado define-se pelo o que é falado e fenômeno<br />
o que é pensado.<br />
Nas representações conceituais, em contrapartida, a presença de<br />
vetores não é motivada e os participantes não executam ações. Ocorrem<br />
em processos classificacionais, analíticos ou simbólicos, como podemos<br />
observar na figura a seguir, que resume os principais tipos de estruturas<br />
representacionais visuais:<br />
298 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
Narrativa<br />
Estruturas<br />
representacionais<br />
Conceituais<br />
Classificatória<br />
Analítica<br />
Simbólica<br />
Figura 01 – Principais tipos de estruturas representacionais visuais<br />
Fonte: KRESS; VAN LEEUWEN, 1996.<br />
Os processos classificacionais relatam participantes que se<br />
apresentam em grupo, “definidos por características comuns a todos<br />
os sujeitos classificados, onde estão arranjados ou foram julgados<br />
como pertencentes ao mesmo grupo, à mesma classe” (FERNANDES<br />
e ALMEIDA, 2008, p. 16).<br />
No processo analítico, os participantes se relacionam pela<br />
estrutura de parte (atributos possessivos) e todo (portador) e no<br />
simbólico os participantes “são representados em termos do que<br />
significam ou são” (op. cit., p. 17). São divididos em atributivos,<br />
nesse caso o participante é destacado de alguma forma no interior da<br />
imagem, e sugestivo em que o participante portador é representado<br />
através de contornos.<br />
A metafunção interativa<br />
A relação postulada pelos participantes da função interativa<br />
caracteriza-se por aproximação ou distanciamento. Esse recurso é<br />
obtido através de quatro processos, a citar: contato, distância social,<br />
perspectiva e modalidade.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 299
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
O contato “é determinado pelo vetor que se forma, ou não,<br />
entre as linhas do olho do participante representado e o leitor<br />
(participante interativo)” (FERNANDES e ALMEIDA, 2008, p. 19).<br />
Ao fixar os olhos no leitor, temos uma relação entre participantes<br />
substantivada por demanda que pode desvendar, entre outras<br />
possibilidades, afinidade social ou desejo. Quando o participante<br />
não olha diretamente para o observador temos uma oferta na qual<br />
se estabelece certo afastamento entre ambos.<br />
A distância social é designada pela proximidade ou distância<br />
do participante representado em relação ao leitor. Tomando<br />
emprestados vocábulos do cinema, a distância social pode ocorrer<br />
em plano fechado (inclui a cabeça e o ombro do participante),<br />
plano médio (participante representado até o joelho) e plano aberto<br />
(representação mais ampla e, por conseguinte, mais distante dos<br />
participantes).<br />
O processo de perspectiva demonstra o ângulo no qual os<br />
participantes são mostrados através de angulações frontais (relação<br />
simétrica entre participante e observador, demonstrando, dessa<br />
forma, certo envolvimento), oblíquas (participante de perfil) e<br />
vertical (captação da imagem de baixo para cima ou vice-versa).<br />
A última categoria refere-se à modalidade que visa à<br />
compreensão dos mecanismos que aproximam a imagem do real e<br />
natural (modo realis) ou do mundo imaginário (modo irrealis). Assim,<br />
podemos afirmar que a modalidade na imagem possui relação com o<br />
valor de verdade das coisas do mundo.<br />
A metafunção composicional<br />
A composição relaciona os significados representacionais<br />
e estruturais para que a imagem tenha sentido. Para Kress e van<br />
300 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
Leewen (1996), essa integração se dá através de três sistemas interrelacionados:<br />
valor de informação, saliência e estruturação.<br />
O valor de informação estabelece o posicionamento dos<br />
elementos no interior da composição visual. Aplicada a textos mistos<br />
e a imagens, a primeira noção importante do valor informativo é a<br />
ideia de dado/novo. A informação dada, situada no lado esquerdo da<br />
imagem, representa o consenso da informação que dispensa maiores<br />
esclarecimentos. Já a informação nova, localizada à direita, traz o<br />
“problemático”, “contestável”, “a informação em debate (cf. KRESS<br />
e VAN LEEWEN, 1996).<br />
Caso, em uma imagem, os modos de representação estejam<br />
situados na parte superior considera-se que o que se está sendo<br />
representado está na zona do ideal e os que estão presentes na seção<br />
inferior na zona do real que é, geralmente, a parte mais saliente.<br />
Uma última conceituação importante sobre esse primeiro<br />
sistema reside na estruturação da informação visual mediante o<br />
centro e as margens da imagem. O centro é tido como o núcleo da<br />
informação e nos elementos à sua volta, ligados ideologicamente a<br />
este, estão as margens. Vale frisar que dado-novo/real-irreal podem<br />
se combinar com o centro e margens conforme podemos perceber<br />
no diagrama abaixo extraído de Kress e van Leewen (1996, p. 208):<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 301
Sinta e<br />
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f<br />
Figura 02 – Dimensões do espaço visual<br />
Fonte: KRESS; VAN LEEUWEN, 1996.<br />
O segundo sistema composicional é a saliência que corresponde<br />
à ênfase, em maior ou menor grau, que determinados elementos<br />
recebem em relação a outros. A escolha pela ênfase de determinado<br />
modo de representação não é desmotivado e representa grande<br />
peso na maneira como a imagem é compreendida pelo observador.<br />
A identificação da saliência dos elementos ocorre mediante a<br />
intensificação ou suavização de cores, contraste, brilho, superposição,<br />
entre outros recursos.<br />
A estruturação é o último sistema da função composicional<br />
e está relacionada à presença ou não de objetos interligados. Kress<br />
e van Leewenn (1996, p. 214) elucidam que “quanto mais os<br />
elementos da composição espacial estão conectados, mais eles são<br />
apresentados como uma única unidade de informação, como se fossem<br />
parte um dos outros”. Já a desconexão é marcada pela saliência de<br />
cores, imprimindo, dessa forma, um sentido de individualidade (cf.<br />
FERNANDES e ALMEIDA, 2008).<br />
Em suma, através da teoria aqui explicitada é possível realizar<br />
uma análise completa e complexa de diversos gêneros textuais.<br />
302 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
Em infográficos, por exemplo, a Gramática do Design Visual nos<br />
possibilita observar como os diferentes modos de representação estão<br />
semioticamente organizados e conectados com a linguagem verbal<br />
para a construção do sentido.<br />
Análise do corpus<br />
O infográfico, ou gráfico informativo, que faz parte do domínio<br />
discursivo jornalístico, será concebido neste artigo como um gênero<br />
textual que através da criação gráfica, utiliza recursos visuais<br />
(desenhos, fotografias, tabelas, etc.) conjugados a textos curtos a fim<br />
de apresentar informações jornalísticas de forma sucinta e atraente.<br />
Os infográficos são muito usuais em revistas de divulgação científica<br />
como Superinteressante, Galileu, Ciências Hoje, entre outras. Nesses<br />
periódicos, os infográficos sintetizam, complementam uma matéria<br />
ou também podem funcionar como a própria reportagem.<br />
Atualmente o infográfico aparece como uma das mais<br />
sofisticadas formas de explicar complexas histórias ou procedimentos,<br />
já que combina palavras com imagens, quando palavras apenas<br />
poderiam ser cansativas para os leitores e a imagem apenas não seria<br />
suficiente. (cf. DIONISIO, 2006.). Um dos motivos pelo qual o gráfico<br />
informativo consegue prender a atenção do leitor é pelo fato de que<br />
se trata de um gênero visualmente atrativo/informativo, mediante o<br />
equilíbrio dos elementos verbais e não verbais.<br />
Vale salientar que o infográfico modernamente também é<br />
usado em outros domínios como, por exemplo, o escolar em que o<br />
gênero vem encontrando um solo fértil. A título de ilustração, temos<br />
o Guia do Estudante no qual infográficos auxiliam o vestibulando na<br />
elucidação de temas relativos aos assuntos da atualidade.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 303
Sinta e<br />
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f<br />
Por questão de espaço, este artigo analisará apenas um<br />
infográfico de nosso corpus, com título de “Energia limpa, mas nem<br />
tanto” (figura 03), publicado no Guia do Estudante de Atualidades,<br />
da Editora Abril, no primeiro semestre de 2011.<br />
Figura 03 – Infográfico “Energia limpa, mas nem tanto”<br />
Fonte: Guia do Estudante de Atualidades, 2011.<br />
Publicado em página dupla no Guia de Estudante, na seção<br />
Economia e Infraestrutura, o gráfico informativo em estudo tem<br />
por finalidade apresentar como funciona uma usina hidrelétrica<br />
destacando-se os problemas socioambientais, frutos de sua construção.<br />
Para isso, o infografista utiliza como recursos multimodais a<br />
304 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
orquestração de diversas semioses, a saber: texto verbal, imagens e<br />
setas. É importante analisar a relação das imagens e palavras, como<br />
afirmam Kress e Van Leewen (apud FERNANDES e ALMEIDA,<br />
2008), porque<br />
01. os modos de representação verbal e visual não são e<br />
não desempenham os mesmos papéis, visto que uma<br />
mensagem sendo expressa na linguagem visual não<br />
comunica exatamente as mesmas coisas quando expressa<br />
pela linguagem verbal.<br />
02. verbal e visual não apenas coexistem, pois no meio<br />
impresso a função da linguagem visual mudou, passando<br />
de mero apoio comunicativo a veículo da informação<br />
mais importante.<br />
03. a forte interação entre o verbal e visual pode causar efeitos<br />
de sentido no sentido do modo escrito, ou seja, a relação<br />
entre ambas as linguagens. A maneira como coexistem<br />
pode causar afetar a forma e a leitura da mensagem<br />
veiculada.<br />
Sobre o terceiro ponto, podemos perceber que a linguagem<br />
verbal da figura 03, ainda que sua leitura deva ser realizada na forma<br />
prototípica da esquerda para direita, possibilita que o leitor elenque<br />
qual bloco textual deve ler primeiro. Dessa maneira, se o leitor<br />
optar ler primeiro o bloco textual “alterações no rio” e, em seguida,<br />
“árvores submersas”, não haverá problemas na compreensão global<br />
do infográfico. No entanto, essa “emancipação do leitor” não deve<br />
ser compreendida como regras na leitura do gênero já que existem<br />
gráficos informativos cuja leitura é sinalizada mediante números ou<br />
conectores visuais, setas e linhas.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 305
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
No texto visual, há a reprodução de uma usina hidrelétrica na<br />
qual se objetiva chegar ao mais próximo do real ou natural (modo<br />
realis). Já que não há a presença de participantes executando ações,<br />
como o ator, meta e beneficiário, e os participantes são concebidos<br />
através da relação parte e todo, podemos categorizar a imagem na<br />
representação conceitual analítica, tomando como base a metafunção<br />
representacional. Na linguagem visual, há uma relação entre todo<br />
definido (em nosso caso a própria usina hidrelétrica), como portador e<br />
as partes (lago artificial, reservatórios, animais marinhos, patrimônios<br />
perdidos etc.) que, inseridas dentro das figuras geométricas de<br />
círculos, pertencem ao domínio dos atributos possessivos. Cada atributo<br />
possessivo apresenta na sequência uma descrição linguística da<br />
representação imagética a fim de evidenciar o que está ocorrendo<br />
(cf. figura 04.). Por essa razão, de acordo com a Gramática Visual,<br />
o modo de representação não verbal do infográfico possui uma<br />
estrutura conceitual analítica estruturada. A fim de complementação,<br />
assinalamos que a maioria das cláusulas presentes no infográfico<br />
“Energia limpa, mas nem tanto” possui processos materiais em maior<br />
abundância. Tais processos objetivam representar as ações concretas<br />
resultantes da construção das usinas.<br />
306 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
Figura 04 – Relação entre portador, atributo possessivo e descrição linguística<br />
Fonte: Guia do Estudante de Atualidades, 2011.<br />
Com base na metafunção composicional, o valor informativo<br />
do infográfico está estruturado nas dimensões centro e margens<br />
e dado e novo. A representação da hidrelétrica está disposta no<br />
centro da imagem como o elemento mais saliente, que tem maior<br />
peso visual. Os demais elementos que se relacionam ao centro<br />
estão dispostos nas margens preenchendo todo o espaço da seção<br />
“Economia e Infraestrutura”. As imagens que estão mais nas margens<br />
estabelecem conexão com o centro através de linhas contínuas que<br />
têm a função semiótica de conduzir o olhar do observador rumo ao<br />
centro, todavia a compreensão da imagem só está completa com<br />
o texto verbal que precede a linguagem visual, conforme podemos<br />
verificar na figura 04.<br />
Outra observação importante acerca do gráfico informativo<br />
reside no fato de que o gênero está construído mais no lado dado<br />
que no novo. Vale lembrar que as informações dadas estão situadas<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 307
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
no lado esquerdo à imagem que, em nosso exemplo, contém os<br />
modos de representação que são consensuais ao observador, pois,<br />
geralmente, todos sabem que há, na construção de hidrelétricas,<br />
alterações no rio, mudanças climáticas e caminho sem volta. As<br />
informações novas estão situadas no lado direito, precisamente<br />
no fundo do rio, e parecem trazer as informações menos comuns,<br />
ou que os infografistas (criadores de infográficos) julgam ser mais<br />
necessárias para o conhecimento do leitor, a saber: afogamentos<br />
dos peixes, destruição de sítios arqueológicos, locais históricos e<br />
cachoeiras, desmatamento de árvores de lei e a liberação de gás<br />
metano que é um dos causadores do efeito estufa. Essa última, talvez,<br />
seja a informação nova mais importante. Para Kress e van Leewen<br />
(1996, p. 187), “em termos gerais, o sentido do Novo é, portanto,<br />
‘problemático’, ‘contestável’, ‘a informação em debate’; enquanto<br />
o Dado é apresentado como consenso, que dispensa explicações”.<br />
Em suma, após a análise do gráfico informativo, mediante a<br />
aplicação dos princípios da Gramática Visual, podemos verificar a<br />
importância de aplicar essa teoria a diversos gêneros visuais com<br />
a finalidade de compreender como as diversas semioses se interrelacionam.<br />
Também as imbricações dos vários modos tornam os<br />
gêneros visualmente atrativos facilitando, dessa maneira, por vezes,<br />
sua leitura.<br />
Considerações finais<br />
Cada vez mais presente no cotidiano, o gênero infográfico<br />
é um exemplo de texto especialmente construído que tem por<br />
uma de suas características resumir uma notícia, teoria, ou<br />
conteúdo programático, no caso dos manuais didáticos, mediante a<br />
orquestração de várias semioses. Para Minervini (2005), o infográfico<br />
308 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
é utilizado para representar uma informação complexa mediante<br />
uma representação gráfica que pode sintetizar, esclarecer ou tornar<br />
mais atrativa a leitura.<br />
Nosso trabalho pretendeu demonstrar que a multimodalidade<br />
mostra-se como uma importante ferramenta para análise de gêneros<br />
textuais, principalmente aqueles que em sua construção estão<br />
presentes diversos modos de representação, a citar: infográficos,<br />
charges, cartuns, entre outros. Como aparato teórico, baseamo-nos<br />
da Gramática do Design Visual, elaborada por Kress e Van Leewen<br />
(1996), que tem por finalidade promover uma análise sintática das<br />
imagens através das metafunções representacionais, interativas e<br />
composicional.<br />
Embora não fosse nosso foco, neste artigo científico, a análise<br />
dos elementos verbais é também bastante relevante a fim de que se<br />
possa ter uma ideia geral dos modos de representação que compõem<br />
o gênero analisado. Para isso, uma boa alternativa é analisar as<br />
cláusulas presentes no texto à luz do sistema de transitividade<br />
postulado pela Linguística Sistêmico-Funcional. Dessa forma, será<br />
possível verificar o fluxo de experiência em termos de um processo<br />
realizado gramaticalmente em uma cláusula e relacioná-la com as<br />
imagens (cf. GOUVEIA, 2009).<br />
Por fim, acreditamos que o estudo científico acerca de como<br />
se configura a visualidade em infográficos é bastante significativa,<br />
já que as imagens recriam o espaço onde acontece determinado<br />
fato e auxiliam o leitor no entendimento dos acontecimentos do<br />
mundo. Esperamos que este trabalho, ainda que introdutório, possa<br />
contribuir para o despertar na análise de gêneros visualmente<br />
informativos com base nos estudos da multimodalidade.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 309
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Referências<br />
BAWARSHI, Anis S.; REIFF, Mary Jo. Genre: an introduction to history, theory, research,<br />
and pedagogy. West Lafayette, Indiana: Parlor Press/ The Wac Clearinghouse, 2010.<br />
Tradução de Benedito Gomes Bezerra.<br />
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CULLER, Jonathan. As ideias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979<br />
CUNHA, Maria Angélica Furtado da; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />
contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />
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ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006 a. p. 131-144<br />
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gramática visual nos cartazes de guerra. In: ALMEIDA, Danielle Barbosa Lins de (Org.).<br />
Perspectivas em Análise Visual. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008. P. 11-31.<br />
GHIO, Elza; FERNÁNDEZ, María Delia. Lingüística Sistémico Funcional: aplicaciones a la<br />
Lengua Española. 1 ed. Santa Fe: Universidad Nacional del litoral, Waldhuter Editores,<br />
2008.<br />
GOUVEIA, Carlos. A.M. Texto e Gramática: uma introdução à Linguística Sistêmico-<br />
Funcional. In: Matraga. Rio de Janeiro, v. 16, n.24, jan./jun. 2009.<br />
KRESS, G.; VAN, LEEUWEN. The meaning of composition. In: ______. Reading images.<br />
London/ New York: Routledge, 1996. P. 181-229. Tradução: Leonardo Mozdzenski.<br />
MINERVINI, Mariana Andrea. La infografía como recurso didáctico. In: Revista Latina de<br />
Comunicación Social (8), junho, 2005.<br />
310 l Anais Eletrônicos - 2011
GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />
GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />
PEZATTI, Erotilde Goreti. O funcionalismo em Linguística. In: MUSSALIN, Fernanda;<br />
BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística 3: fundamentos epistemológicos.<br />
4 ed. São Paulo: Cortez, 2009. P. 165-215.<br />
WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. 6 ed. São Paulo: Parábola, 2008.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 311
Resumo<br />
Este trabalho objetiva analisar as circunstâncias nas postagens de blogs,<br />
a fim de verificar como contribuem para a construção da opinião nesse<br />
gênero. Fundamentam esta empreitada os pressupostos básicos da<br />
Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994), especificamente do<br />
Sistema de Transitividade, com concentração no papel das circunstâncias,<br />
além dos estudos sobre gêneros (MARCUSCHI, 2005; MILLER, 2009). O<br />
corpus foi composto por postagens coletadas entre o dia 1º de março e<br />
31 de maio de 2009, de blogs da Revista Época on-line. Os dados indicam<br />
que as circunstâncias desempenham papel importante na composição<br />
de significados argumentativos e na construção da opinião nos blogs.<br />
Palavras-chave: Transitividade. Blog. Circunstâncias.<br />
Abstract<br />
This work aims to analyze the circumstances in blog posts, in order to<br />
verify how they contribute to the construction of opinions of this genre.<br />
To support this research, we based our theory on the basic assumptions<br />
of Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY, 1994), specifically the<br />
transitivity system, with focus on the role of circumstances, besides the<br />
studies about genres (MARCUSCHI, 2005; MILLER, 2009).The corpus was<br />
composed of posts collected between March, 1st and May, 31st, 2009, of<br />
online blogs from Época magazine.The data indicate that circumstances<br />
play an important role in the composition of meanings and the<br />
construction of argumentative opinion in blogs.<br />
Keywords: transitivity; blog; circumstances.
Introdução<br />
O paradigma sistêmico-funcional<br />
da transitividade: por uma<br />
sintaxe das circunstâncias<br />
Wellington Vieira MENDES<br />
(UERN/GPEF)<br />
Este estudo tem por interesse compreender como a materialização<br />
da opinião ocorre no gênero blog, numa perspectiva teórica de estudo<br />
que ficou conhecida como Linguística Sistêmico-Funcional (LSF),<br />
a qual tem como referência principal o linguista Michael Halliday.<br />
Essa motivação pelo gênero em questão se associa ao desejo<br />
de entender as relações comunicativas estabelecidas na ambiência<br />
digital, notadamente no que diz respeito à construção do sentido, já<br />
que o modelo Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994) compreende<br />
a linguagem como um processo semiótico, no qual o significado é<br />
produzido através das escolhas linguísticas realizadas pelos sujeitos,<br />
num determinado contexto social e cultural de que fazem parte (cf.<br />
EGGINS, 2004).<br />
Como a maioria das pesquisas dirigidas ao blog se dedica a<br />
estudá-lo em seu conjunto estrutural, em suas diferentes funções<br />
sociais e comunicativas, em sua composição multimodal etc., e como<br />
o modelo Sistêmico-Funcional de Halliday tem servido aos mais<br />
diversos estudos que visam a compreender a língua em sua instância<br />
de funcionamento real, a presente pesquisa deve lançar mais um olhar<br />
sobre a construção de significados na internet.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 313
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Como já foi sugerido, o trabalho se apoia na ideia central de<br />
que as circunstâncias, do sistema de transitividade concebido pela<br />
Linguística Sistêmico-Funcional, podem contribuir significativamente<br />
para a construção da opinião no blog, não exercendo, portanto, papel<br />
assessório como preconiza o senso comum e as práticas tradicionais<br />
de ensino de língua.<br />
Neste estudo, portanto, o questionamento que se aponta<br />
como central é: Qual o papel das circunstâncias segundo o Sistema<br />
de Transitividade (ST) definido pela LSF na construção da opinião<br />
presente nos blogs?<br />
Assim, para atender a esta proposição, o objetivo principal deste<br />
estudo é verificar o funcionamento das circunstâncias do ST da LSF,<br />
em blogs, e sua contribuição para a construção da opinião nesse gênero.<br />
Logo, os dados que foram selecionados para este trabalho derivam<br />
do corpus coletado para a dissertação de mestrado “As circunstâncias<br />
e a construção de sentido no blog” (MENDES, 2010), constituído<br />
basicamente de quatro blogs da revista Época online, a saber: 1) Diário<br />
do Centro do Mundo; 2) Paulo Moreira Leite; 3) Blog do Nelito; e,<br />
4) Guilherme Fiuza.<br />
As circunstâncias nas postagens dos blogs foram analisadas a<br />
partir dos modelos propostos por Halliday e Matthiessen (2004),<br />
Eggins (2004) e Ghio e Fernández (2008). Para fins de categorização,<br />
concebeu-se como circunstâncias as formas expressas por sintagmas<br />
adverbiais, por sintagmas compostos por preposição + sintagma<br />
nominal (determinado ou não) e sintagma nominal + sufixo -mente,<br />
desde que modifiquem os processos a que se associam.<br />
Tendo em conta que este trabalho é constituído do trabalho<br />
de dissertação mencionado há pouco, foram eleitos os seguintes<br />
tipos de ocorrências para a análise: 1) circunstâncias de extensão; 2)<br />
circunstâncias de localização; e 3) circunstâncias de modo.<br />
314 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
Portanto, o leitor vai encontrar aqui o tratamento do tema o<br />
paradigma sistêmico-funcional da transitividade tratado em duas<br />
partes principais: na primeira estão apresentados os pressupostos<br />
teóricos que fundamentam o estudo; e, na segunda, uma análise dos<br />
três tipos de circunstâncias indicados.<br />
O paradigma sistêmico-funcional da transitividade<br />
A gramática tradicional compreende a transitividade como<br />
sendo uma propriedade exclusiva do verbo, estando associada a esse<br />
processo a noção de regência, e de valência. Em outras palavras,<br />
os verbos que regem sintagmas nominais são classificados como<br />
transitivos e, nos casos em contrário, são considerados intransitivos<br />
(quando a enunciação não vai além do verbo).<br />
Na concepção hallidayana, a linguagem é proposta como um<br />
sistema social ou cultural, o que implica, necessariamente, interpretála<br />
dentro de um contexto sociocultural em que tal processo se realiza.<br />
Dito de outro modo, a linguagem pode ser entendida como uma<br />
manifestação semiótica, já que no dizer de Halliday e Martin (1993)<br />
ela se constitui como uma forma de representação da experiência<br />
humana, quer seja na “realidade” presente/percebida no meio físico<br />
ou concreto, quer seja a “realidade” idealizada/fabricada em nosso<br />
interior, num plano mais abstrato.<br />
Os estudos funcionalistas, portanto, compreendem a<br />
transitividade como sendo um processo que engloba toda a oração,<br />
não se limitando apenas à ação perpetrada pelo sintagma verbal.<br />
Compreende ainda que tal processo possa ser escalar, de forma<br />
que uma oração venha a ser considerada mais ou menos transitiva,<br />
como se pode depreender da proposta da Linguística Funcional<br />
Norteamericana (HOPPER e THOMPSON, 1980).<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 315
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Na perspectiva da LSF, a transitividade é concebida como uma<br />
base de organização semântica, em que a classificação não se limita à<br />
oposição já apresentada e conhecida da gramática tradicional entre<br />
verbos transitivos e intransitivos.<br />
Nessa concepção, as orações são classificadas em tipos que<br />
denotam diferentes transitividades, a partir da identificação de<br />
três papéis de transitividade, a saber: i) processos; ii) participantes;<br />
iii) circunstâncias (BUTT et al., 2001). Se se desejasse fazer uma<br />
analogia mais próxima da Gramática Tradicional, poder-se-ia dizer<br />
que esses papéis correspondem aos verbos, substantivos e advérbios,<br />
respectivamente. A partir de então, segue-se uma breve explanação<br />
acerca de cada um deles.<br />
Os processos são classificados, nessa noção de transitividade, em<br />
seis tipos (materiais, mentais, relacionais, verbais, comportamentais e<br />
existenciais) e, de modo geral, configuram ações, estabelecem relações,<br />
expressam sentimentos, denotam o dizer e o ser, tendo em vista sua<br />
materialização através dos verbos. No entender de Furtado da Cunha<br />
& Souza (2007, p. 56):<br />
O mundo das experiências é altamente indeterminado e essa<br />
indeterminação reflete-se no modo como a gramática constrói<br />
seu sistema de tipos de processos. Assim, em um mesmo texto<br />
podemos ver experiências construídas no domínio da emoção<br />
com um processo mental (...); ou no domínio da classificação<br />
(...).<br />
A análise do entendimento das autoras citadas permite<br />
vislumbrar a concepção defendida por Halliday e Matthiessen<br />
(2004) de que há um continuum entre os processos, que, por sua vez,<br />
fundamenta-se no princípio da indeterminação semântica, no qual os<br />
316 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
processos são tidos como indistintos. Essa observação se faz importante<br />
porque, deste ponto em diante, será apresentada a classificação dos<br />
processos, a partir das concepções dos autores mencionados há pouco:<br />
• materiais – processos responsáveis pela expressão de<br />
ações de mudanças perceptíveis (processos do fazer).<br />
• mentais – processos ligados às crenças, aos valores<br />
humanos, ao modo de perceber o mundo (processos<br />
do sentir).<br />
• relacionais – processos que estabelecem relações entre<br />
entidades, seja identificando, seja classificando.<br />
• verbais – processos que expressam o dizer e situam-se<br />
entre os relacionais e mentais.<br />
• existenciais – processos que representam a existência<br />
de algo e se exprimem frequentemente através dos<br />
verbos haver e existir.<br />
• comportamentais – processos responsáveis pela expressão<br />
dos comportamentos humanos (caracteres<br />
físicos e psíquicos).<br />
É importante ainda registrar que os três primeiros processos são<br />
tidos como principais, e os últimos como secundários, no entender<br />
de Halliday e Matthiessen (2004). E, embora tais processos tenham<br />
sido apresentados sem os participantes, não se pretende de modo<br />
algum oferecer ao leitor uma visão cartesiana da transitividade na<br />
perspectiva funcionalista. Assim, por uma questão de apresentação,<br />
os participantes passam a ser conceituados a partir de agora.<br />
Em breves linhas, pode se dizer que participantes são os elementos<br />
que se realizam através dos sintagmas nominais, podendo associar-se<br />
aos processos de forma obrigatória ou não. Os processos materiais são o<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 317
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
que comportam um maior número de participantes: ator (obrigatório);<br />
meta, extensão e beneficiário (opcionais).<br />
Para sintetizar, a Tabela 1 apresenta os participantes associados<br />
a cada tipo de processo, como também o fazem Furtado da Cunha e<br />
Souza (2007):<br />
Material<br />
Processo<br />
Ator<br />
Obrigatórios<br />
Participantes<br />
Opcionais<br />
Meta. Extensão e<br />
Beneficiário<br />
Mental Experienciador e Fenônemos -<br />
Relacional<br />
Portador e Atributivo /<br />
Característica e Valor<br />
-<br />
Verbal Dizente e Verbiagem Receptor<br />
Existencial Existente -<br />
Comportamental Comportante Behaviour<br />
Quadro 1 – Processos e participantes<br />
Fonte: adaptado de Furtado da Cunha e Souza (2007, p. 60)<br />
O último componente do sistema de transitividade são as<br />
circunstâncias. Esse componente remete às condições de realização<br />
dos processos, podendo ocorrer livremente em todos eles. Geralmente<br />
expressam extensão temporal, localização espacial ou temporal, modo,<br />
entre outros. Na Gramática Tradicional, correspondem aos advérbios<br />
ou locuções adverbiais.<br />
Esse papel do ST que está mais bem tratado na sequência, tendo<br />
em vista que se constitui objeto principal de análise deste trabalho.<br />
Considerando o recorte metodológico feito aqui, são apresentadas as<br />
circunstâncias de extensão, localização e modo.<br />
318 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
A circunstâncias do ST: extensão, localização e modo<br />
As circunstâncias, de acordo com Ghio e Fernández (2008,<br />
p. 101), é o papel menos obrigatório nas construções de processos<br />
materiais. Na verdade, quando tratam desse elemento, as autoras o<br />
fazem como se este fosse um apenas um participante restrito a esse<br />
tipo de processo.<br />
Butt et al. (2001, p. 64), por outro lado, compreende as<br />
circunstâncias como sendo responsáveis por “iluminar” os processos<br />
de alguma forma, podendo, entre outras coisas, localizar o processo<br />
no tempo ou no espaço, sugerir o modo como o processo se realiza,<br />
ou oferecer informações sobre a causa do processo. De acordo com<br />
os autores, esse papel do Sistema de Transitividade se realiza através<br />
de grupos adverbiais, grupos nominais e frases preposicionais.<br />
O primeiro grupo, a exemplo dos demais, pode se realizar<br />
por uma ou mais palavras. O grupo adverbial é mais facilmente<br />
identificado pelo fato de configurar, de circunstanciar de modo mais<br />
explícito a realização da ação:<br />
[01] Ele entende as coisas rapidamente.<br />
[02] Chegaram tarde.<br />
As frases preposicionais, por sua vez, estruturam-se da seguinte<br />
forma: preposição + grupo nominal, como em [29], ou podem ainda<br />
modificar não apenas a circunstância da ação, mas toda a sentença,<br />
como em [30]:<br />
[03] Ele reside na cidade de Nova York.<br />
[04] Em breves palavras, o presidente resumiu seu sentimento.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 319
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
No grupo nominal podem ocorrer advérbios, mas também<br />
com outras expressões que compõem a estrutura da circunstância. A<br />
exemplo dos dois tipos anteriores, também modifica a circunstância<br />
da ação, geralmente exprimindo tempo:<br />
[05] Viaja toda semana.<br />
Para exemplificar os tipos de circunstâncias que serão tratados<br />
neste trabalho, são transcritas, de Eggins (2004, p. 223), algumas<br />
ocorrências de circunstâncias, com suas respectivas classificações:<br />
a) Extensão: quanto tempo? (duração); até que ponto?<br />
(distância)<br />
[06]<br />
Eu doei sangue por 36 vezes.<br />
Ator<br />
[07]<br />
Processo<br />
material<br />
Meta<br />
Circunstância<br />
Eu andei a noite toda.<br />
Ator Processo material Circunstância<br />
As circunstâncias de extensão são responsáveis por delimitar,<br />
de certo modo, duração (quando se trata do constructo tempo) e<br />
distância (quando exprime espaço físico). Note-se que no primeiro<br />
320 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
exemplo de Eggins (2004), a circunstância “por 36 vezes”, materializada<br />
por preposição + grupo nominal, não deixa explícita a delimitação<br />
temporal, mas sugere, por esforço de conhecimento partilhado com<br />
o interlocutor, que se trata de uma ação continuamente repetida<br />
e com certa duração temporal. O mesmo acontece com o segundo<br />
exemplo: embora o processo material “andar” possa sugerir a priori<br />
um deslocamento físico e, consequentemente, uma circunstância de<br />
extensão espacial, o ator se mostra envolvido pela duração temporal,<br />
tendo em vista que “a noite toda” deve com frequência indicar tempo.<br />
Por estes exemplos e, sem ter a pretensa intenção de antecipar<br />
resultados ou análises, é possível acreditar que as circunstâncias podem,<br />
além dos valores semânticos que lhes são próprios, desempenhar<br />
também papel argumentativo na cadeia discursiva.<br />
b) Localização: quando? (temporal); onde? (espacial)<br />
[08]<br />
Eles me convidaram sábado à noite.<br />
Ator<br />
[09]<br />
Beneficiário<br />
Processo<br />
verbal<br />
Circunstância<br />
Eu entreguei -a na clínica.<br />
Ator<br />
Processo<br />
material<br />
Meta<br />
Circunstância<br />
As circunstâncias de localização, como o próprio termo já<br />
indica, expressam ou situam, no tempo e no espaço, a realização<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 321
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
dos processos. O exemplo anterior indica “o quando” o processo<br />
“convidar” se desenvolveu. Em lugar de “sábado à noite”, que indica<br />
localização temporal, poder-se-ia ter “ainda na festa”, que indicaria<br />
localização espacial, como se pode ver no segundo exemplo, em que<br />
circunstância “na clínica” situa o interlocutor a respeito “de onde”<br />
se processa a ação de “entregar”. Mais do que simplesmente situar o<br />
interlocutor no tempo e no espaço, as circunstâncias de localização<br />
atualizam o processo à medida que criam o referente/significado<br />
espacial ou temporal.<br />
Do ponto de vista da forma, é frequente que se apresentem em<br />
grupos nominais preposicionados e/ou determinados, como em “na<br />
clínica” (em + determinante + nome).<br />
c) Modo: como? Com o quê? (recursos); como? De que<br />
forma (qualidade)<br />
[10]<br />
Então, eles fizeram a transfusão<br />
Ator<br />
Processo<br />
material<br />
Meta<br />
através da artéria<br />
umbilical.<br />
Circunstância<br />
322 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
[11]<br />
Na<br />
Suíça,<br />
diferentemente<br />
da Grécia,<br />
as<br />
pessoas<br />
lhe servem conhaque.<br />
Circunstância<br />
Circunstância<br />
Ator<br />
Beneficiário<br />
Processo<br />
Material<br />
Meta<br />
As circunstâncias de modo, com frequência, apresentam-se<br />
formadas pelo acréscimo do sufixo –mente em determinados nomes.<br />
Como já foi proposto anteriormente, tanto no item que tratou do<br />
Sistema de Modo, quanto no início deste, os sintagmas adverbiais com<br />
essa configuração podem não circunstanciar o conteúdo semântico<br />
do processo, mas, simplesmente exprimir valor ou avaliação por parte<br />
do agente envolvido na enunciação.<br />
Os exemplos propostos por Eggins (2004) são mais elucidativos:<br />
no primeiro caso, a circunstância “através da artéria umbilical” indica<br />
de que forma o processo material “fazer” se realizou; no segundo,<br />
“diferentemente da Grécia” não implica avaliação, e sim certo tipo<br />
de comparação qualitativa, que se estabelece entre Suíça e Grécia,<br />
através do processo “servir”.<br />
Apenas para reforçar, os sintagmas adverbiais que modificam<br />
toda a oração estão para modais, assim como os que ampliam os<br />
processos estão para circunstâncias.<br />
Na próxima seção, o leitor vai encontrar a análise, desses três<br />
tipos de circunstâncias apresentados até aqui, nos dados coletados<br />
nos blogs da revista Época online.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 323
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Por uma sintaxe das circunstâncias<br />
Para atender ao propósito de verificar o funcionamento das<br />
circunstâncias do ST da LSF, em blogs, e sua contribuição para a<br />
construção da opinião nesse gênero, esta seção apresenta uma análise<br />
das circunstâncias de extensão, localização e modo, respectivamente.<br />
É importante acrescentar que a análise sendo funcionalistas procurou<br />
verificar não apenas a realização lexicogramatical do item em estudo,<br />
mas também os demais componentes do ST que a ele se associam<br />
(participantes e processos).<br />
As circunstâncias de extensão<br />
As circunstâncias de extensão delimitam a duração temporal<br />
e a distância espacial. Esse tipo de acompanhamento dos processos é<br />
frequentemente materializado por preposição + grupo nominal. Neste<br />
trabalho, foram selecionadas as circunstâncias de extensão formadas<br />
por verbo haver + numeral, preposição desde + advérbio/numeral,<br />
preposição + numeral.<br />
Logo, pode-se dizer que as circunstâncias de distância espacial ou<br />
duração temporal estão mais frequentemente associadas nos dados do<br />
corpus a processos de deslocamento físico, como: chegar, chefiar, viver,<br />
estudar etc., sendo possíveis as seguintes circunstâncias: “durante cinco<br />
meses”, “toda a América Latina”; ou mesmo um deslocamento abstrato,<br />
virtual: “Percorri toda a blogosfera” (MENDES, 2008). Neste último<br />
caso, o emprego do processo material indica que o interlocutor visitou,<br />
ou fez leitura de diversos blogs, não necessariamente tendo empreendido<br />
um movimento de extensão espacial. O uso da circunstância “toda a<br />
blogosfera” tenta apenas indicar ou atribuir um caráter hiperbólico ao<br />
processo, ao mesmo tempo em que expressa a dimensão do esforço de ler<br />
324 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
toda a “blogosfera” (entenda-se o conjunto formado por todos os blogs<br />
disponíveis na internet), uma missão humanamente impossível hoje.<br />
Por estes exemplos, é possível acreditar que as circunstâncias<br />
podem, além dos valores semânticos que lhes são próprios,<br />
desempenhar também papel argumentativo na cadeia discursiva.<br />
Os dados sugerem que o maior número de ocorrências de<br />
circunstâncias estão associadas aos processos materiais. Os processos<br />
materiais são aqueles tidos como sendo os “processos do fazer”, cuja<br />
principal expressão está relacionada às ações de mudanças que podem<br />
ser percebidas no plano concreto, ou podem expressar também<br />
fenômenos abstratos.<br />
Assim, a ocorrência superior dos processos materiais reforça essa<br />
expressão de ações e mudanças concretas, visto que as circunstâncias<br />
que a eles se associam como forma, inclusive, de situar no espaço e<br />
tempo o desenvolvimento de tais processos. No entendimento de Ghio<br />
e Fernández (2008), as circunstâncias são classificadas como sendo<br />
um dos participantes menos obrigatório nos processos materiais,<br />
apenas neles.<br />
Nos exemplos que se apresentam a seguir, é possível analisar<br />
melhor o comportamento das circunstâncias nesse tipo de processo.<br />
Para favorecer a identificação dos papéis do Sistema de Transitividade,<br />
as circunstâncias de extensão destacam-se em negrito, e os processos,<br />
sublinhados:<br />
[12] Mergulhei no caso, e senti uma imediata antipatia<br />
pelo policial português Gonçalo Amaral, que chefiou as<br />
investigações durante cinco meses e depois foi afastado.<br />
(B1L224-225)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 325
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
[13] Jornalista formada pela Universidade de Brasília, Juliana<br />
Poletti sempre dividiu sua atenção entre reportagens sérias,<br />
de temas políticos e questões internacionais, e a música de<br />
qualidade. Estudou piano por três anos. (B2L670-672)<br />
[14] Como vocês se lembram, espalhou-se na semana passada<br />
pelo mundo um sentimento de perplexidade raivosa depois que<br />
foi publicado um documento de 2.600 páginas que descrevia<br />
violências “endêmicas” em crianças submetidas à guarda da<br />
Igreja Católica na Irlanda entre 1930 e 1990. (B1L331-335)<br />
Todas as ocorrências de circunstâncias de [12] a [14],<br />
estabelecem temporalmente o desenrolar das ações expressas,<br />
respectivamente, pelos processos materiais “chefiar”, “estudar” e<br />
“espalhar”, corroborando igualmente para a construção do sentido<br />
nas sentenças. Nos dois primeiros casos, os processos indicam<br />
mudanças físicas perceptíveis, ações no mundo concreto. Em [14],<br />
porém, o processo estabelece um fenômeno abstrato: espalhar<br />
sentimento de perplexidade raivosa, por exemplo, é algo que<br />
somente pode ser compreendido num plano de representação menos<br />
concreto.<br />
A esses processos se associam as circunstâncias de extensão<br />
temporal. No exemplo de [12], o participante ator “Gonçalo<br />
Amaral”, retomado pelo relativo “que”, conduz investigações numa<br />
determinada extensão temporal que é claramente expressa “durante<br />
cinco meses”. O autor da postagem, ao demonstrar explicitamente<br />
seu descontentamento com o policial (que tratou no início das<br />
investigações, do desaparecimento da criança Madeleine, na noite<br />
de 3 de maio de 2007), tenta, ao logo do texto, desqualificar o<br />
trabalho empreendido pelo investigador e se vale da circunstância de<br />
extensão temporal possivelmente para sugerir morosidade e lentidão<br />
326 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
nas investigações. O emprego desse tipo de circunstância em [12],<br />
mais do que explicitar uma relação de duração temporal, sugere a<br />
necessidade de endossar a opinião (Amaral é um tipo truculento, tem<br />
ares de dono da verdade, fala muito, um fanfarrão - mas não resolveu<br />
nada no caso de Madeleine. – B1L226-228) num dado que tem relevo:<br />
a atuação nas investigações durante cinco meses.<br />
Fenômeno semelhante ocorre em [13]. Para atribuir ao<br />
enunciado o fato de que a jornalista Juliana Poletti tem conhecimento<br />
musical um caráter persuasivo, o autor da postagem se vale do período<br />
de tempo a que a profissional se dedicou ao estudo do piano (três<br />
anos). Note-se, assim, que o uso da circunstância reforça a ideia por ele<br />
defendida no enunciado anterior, contribuindo para o entendimento<br />
de que esse papel do Sistema de Transitividade tem função importante<br />
na construção da opinião.<br />
Já as circunstâncias presentes em [14] estão associadas a um<br />
processo material que denota não uma experiência perceptível no<br />
mundo, mas que pode ser entendida em um plano mais abstrato. O<br />
blogueiro faz uso de uma circunstância de localização temporal (o<br />
próximo item desta seção versa sobre circunstância de localização),<br />
seguida de duas de extensão: uma espacial e outra temporal. “Pelo<br />
mundo” engrandece, num movimento hiperbólico, o “sentimento de<br />
perplexidade raivosa” que o autor demonstra pelo comportamento<br />
da Igreja Católica na Irlanda. Quando se empregou a circunstância<br />
“pelo mundo”, o autor possivelmente pretendia sugerir/estabelecer o<br />
repúdio que todo o mundo deve sentir pelo comportamento violento<br />
da Igreja, no período de 60 anos (expresso pela circunstância entre<br />
1930 e 1960), visto não haver garantia de que o documento de<br />
2.600 páginas (ou mesmo a notícia sobre ele) tenha chegado ao<br />
conhecimento das pessoas em todos os lugares do mundo. Logo, ao<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 327
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
apresentar as circunstâncias antepostas ao participante meta “um<br />
sentimento de perplexidade raivosa”, o blogueiro pretendia chamar a<br />
atenção do leitor (alcance do problema) para o assunto apresentado.<br />
As circunstâncias de localização<br />
As circunstâncias de localização expressam ou situam, no tempo<br />
e no espaço, a realização dos processos. Do ponto de vista da forma,<br />
é frequente que se apresentem em grupos nominais preposicionados<br />
e/ou determinados, como em “na Inglaterra” (em + determinante<br />
+ nome), mas também com expressões adverbiais de tempo como<br />
“semana passada”, “hoje”, ou de lugar como “aqui”.<br />
Assim, é possível afirmar dizer que as circunstâncias de<br />
localização espacial e temporal estão mais frequentemente associadas<br />
nos dados do corpus aos processos de fazer, do dizer e do ser, ou seja,<br />
processos materiais, verbais e relacionais.<br />
Tendo em vista que as circunstâncias de localização representam<br />
a maior parte das ocorrências do corpus, para efeitos de análise,<br />
apresentam-se organizadas nesta seção pela função a que se prestam<br />
na composição textual dos blogs. Assim, compreendendo que este tipo<br />
de circunstância tem valores variados no texto analisado, a seguir são<br />
dispostas aquelas que localizam elementos dentro do próprio blog:<br />
a) Localização: situando a configuração do texto<br />
O blog é um gênero que, a exemplo de boa parte daqueles<br />
dispostos na mídia eletrônica, dispõe de recursos que permitem a<br />
linkagem com outros textos ou objetos eletrônicos (vídeos, imagens,<br />
músicas, animações etc.). Em todos os blogs selecionados para esta<br />
328 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
pesquisa há a presença, mais frequentemente em uns do que em<br />
outros, de elementos como esses, especialmente imagens.<br />
Essa configuração funcional foi exposta no capítulo segundo<br />
deste trabalho, como forma de o leitor melhor compreender como se<br />
procedeu a coleta, mas, principalmente para que pudesse visualizar<br />
também como a produção textual se processa neste espaço virtual.<br />
Logo, é comum que os blogueiros sintam a necessidade de fazer<br />
apontamentos capazes de situar em que “posição” se encontra<br />
determinado elemento que é também parte da composição textual.<br />
As circunstâncias de localização que seguem representam bem<br />
essa referência que os autores das postagens se veem compelidos a<br />
efetuar, durante a escritura/apresentação do texto:<br />
[15] Depois do espetáculo, ainda no teatro, ela teria dito:<br />
“Odeio o programa”. Susan, apelidada de Subo pelos<br />
admiradores, teria atirado um copo de água numa pessoa<br />
que tentava acalmá-la. Na foto acima, Susan está deixando<br />
o teatro depois da derrota e carrega, claramente abalada, o<br />
que alguém definiu como um “buquê de sonhos perdidos”.<br />
(B1L11-15)<br />
[16] Ficou em segundo lugar. Quem levou foi um bom grupo<br />
de dança chamado Diversity. O vídeo está abaixo.<br />
O que me agradou extremamente foi a atitude de Susan ao<br />
perder. Ela reagiu com elegância, como se pode ver na foto<br />
acima. (B1L126-129)<br />
[17] Laura, no filme clássico de Otto Preminger que citei no<br />
início, tinha sido dada como morta, mas estava viva. (B1L263-<br />
264)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 329
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
[18] Veja aqui um vídeo em que uma mulher relata a (má)<br />
expêriencia que viveu, durante a infância e a adolescência,<br />
num abrigo da Igreja. (B1L374-375)<br />
[19] Agora há também um rapaz: Gino Flaminio, 22 anos, exnamorado<br />
de Noemi. Os dois aparecem juntos na foto acima.<br />
(B1L401-402)<br />
Em [15] (a circunstância “no teatro” será analisada no correr<br />
desta seção), “na foto acima” se associa ao processo relacional “estar”,<br />
como também ocorre no primeiro caso em [16] e [19]. Nesses dois<br />
exemplos, as circunstâncias não têm a função precípua de relacionar<br />
(valor ou característica) ao participante, mas sim de localizar em<br />
que parte do texto se encontra determinado elemento, determinada<br />
parte que ilustra o que está sendo dito pelo autor do blog. “Acima”,<br />
“abaixo” fazem referência as imagens de que se vale o blogueiro para<br />
atribuir ao que está sendo apresentado o caráter de exatidão, tendo<br />
como prova plena as fotos que o blogueiro incita o leitor para ver.<br />
O processo do dizer “citar”, em [17], complementa-se pela<br />
circunstância que faz remissão ao início do texto, num caso típico de<br />
retomada do referente para manutenção da coesão textual. Nesse caso,<br />
a localização é feita como nos exemplos anteriores, diferenciandose<br />
pelo fato de, nas ocorrências anteriores, haver referência a um<br />
elemento visual do texto.<br />
As circunstâncias de localização espacial “aqui”, em [18], têm<br />
uma configuração muito peculiar: na verdade, este sintagma adverbial<br />
propõe a linkagem para o vídeo que em que figura o relato da mulher<br />
que teve experiência (má), em abrigo da Igreja (razão também de estar<br />
sublinhado, configuração própria dos links na internet). Diferentemente<br />
do que se pode ver das ocorrências analisadas até então, o “aqui”<br />
330 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
associado ao processo material “ver” propõe ao leitor não a imediata<br />
localização de um elemento próprio do texto, mas a “navegação”, um<br />
direcionamento para além do texto que estava ali disposto.<br />
b) Localização: situando no tempo<br />
As circunstâncias de localização temporal no corpus são<br />
frequentemente realizadas por sintagmas adverbais que denotam a<br />
realização do tempo, ou por preposição + sintagma adverbial/nominal.<br />
Como já foi dito, esse tipo de circunstância fixa o momento em que<br />
os processos se realizam.<br />
As ocorrências a seguir expressam bem esse comportamento<br />
das circunstâncias:<br />
[20] Susan Boyle parece não ter agüentado a enorme pressão<br />
a que foi submetida nos últimos dias. Segundo o site do jornal<br />
Sun, ela foi internada na noite de sábado na prestigiosa<br />
clínica privada Priory, no norte de Londres, especializada em<br />
problemas mentais. (B1L4-7)<br />
[21] Susan Boyle - que se especula que possa ganhar 8 milhões<br />
de libras graças à celebridade mundial que conquistou depois<br />
de ter cantado no programa “I Dreamed a Dream”, em 11 de<br />
abril - tem uma história médica de dificuldade de aprendizado<br />
em decorrência de falta de oxigênio no momento em que<br />
nasceu. A deficiência, divulgada logo que Susan apareceu<br />
no BGT, foi vital na construção da imagem de heroína<br />
improvável. (B1L17-22)<br />
[22] Não tinha lido praticamente nada sobre o desaparecimento<br />
de Madeleine na noite de 3 de maio de 2007. Ela estava prestes<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 331
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
a fazer quatro anos, e seus pais Kate e Gerry, britânicos, tinham<br />
alugado um apartamento na Praia da Luz, no litoral português,<br />
para passar férias. O casal, Madeleine e seus dois irmãos<br />
gêmeos. Naquela noite, Gerry e Kate deixaram os filhos no<br />
apartamento e foram jantar com uns amigos num restaurante<br />
bem perto. Por volta das dez da noite, Kate foi ver se as<br />
crianças estavam bem. Madeleine não estava lá. (B1L212-219)<br />
Tanto em [20] quanto em [21] as ocorrências se prestam ao<br />
papel prototípico de situar, no tempo, a ocorrência dos processos<br />
“internar” e “cantar”. O mesmo pode ser verificado na primeira<br />
ocorrência de [22], em que “Naquela noite”, ao mesmo tempo em<br />
que situa o processo material “deixar”, retoma a data apresentada<br />
na primeira ocasião. E, a última ocorrência em [22], “por volta das<br />
dez da noite” sequencia a última parte da narrativa que dá conta do<br />
desaparecimento da menina Madeleine. O exemplo das ocorrências<br />
de [22] representam em boa parte a função/o valor das circunstâncias<br />
de localização temporal: não apenas situar o leitor acerca do tempo<br />
em que ocorreu determinado fato, mas sequenciar fatos que possam<br />
conduzir a uma conclusão presumida pelo escrevente narrador/<br />
comentador. Talvez por esta razão, os processos materiais são, em<br />
grande maioria, associados às circunstâncias de localização.<br />
c) Localização: situando no espaço<br />
A exemplo das circunstâncias de localização temporal, as de<br />
localização espacial são também realizadas por sintagmas adverbais<br />
que expressam a determinação do espaço, ou por preposição +<br />
sintagma adverbial/nominal. Em determinados casos, essa estrutura<br />
conta também com outros determinantes, ou qualificadores, como,<br />
332 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
por exemplo, “[...] ela foi internada na noite de sábado na prestigiosa<br />
clínica privada Priory, no norte de Londres, especializada em problemas<br />
mentais.” (B1L4-7). Nesse caso, pode-se dizer que “prestigiosa”,<br />
que implica apreciação/opinião do blogueiro também constitui a<br />
circunstância que determina o lugar em que Susan (retomado pelo<br />
pronome “ela”) teria ficado internada, tendo que o blog é um gênero<br />
de opinião.<br />
Esse exemplo representa bem a configuração morfológica<br />
com que se apresentam algumas das ocorrências de circunstância<br />
de localização espacial, diga-se mais frequentes na pesquisa que as<br />
de localização temporal. Essa mesma razão leva a crer que o fato de<br />
Ghio e Fernández (2008) considerarem as circunstâncias como um<br />
dos componentes apenas dos processos materiais, em espanhol, devase<br />
talvez a ocorrência mais representativa com que as circunstâncias<br />
possam se associar a esse tipo de processo.<br />
As ocorrências que seguem ilustram bem a forma como o<br />
espaço é determinado pelos blogueiros e sugerem, por consequência,<br />
as motivações de suas escolhas:<br />
[23] Passear pelas ruas de Londres no segundo andar dos ônibus<br />
vermelhos é tão gostoso quanto encontrar inesperadamente<br />
um amigo querido. (B1L42-44)<br />
[24] Um punhado de pessoas se instala na grama perto do<br />
grupo. Por segundos tenho a tentação de me juntar à banda.<br />
(B1L69-70)<br />
[25] No ônibus, leio a New Statesman ao mesmo tempo<br />
em que admiro a beleza arquitetônica de Londres. George<br />
Orwell na capa. (B1L75-76)<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 333
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
[26] Pela manhã, antes de sair, eu tinha já escrito algumas<br />
coisas sobre Orwell no meu twitter. (B1L79-80)<br />
[27] Depois do espetáculo, ainda no teatro, ela teria dito:<br />
“Odeio o programa”. Susan, apelidada de Subo pelos<br />
admiradores, teria atirado um copo de água numa pessoa que<br />
tentava acalmá-la. Na foto acima, Susan está deixando o teatro<br />
depois da derrota e carrega, claramente abalada, o que alguém<br />
definiu como um “buquê de sonhos perdidos”. (B1L11-15)<br />
Nas ocorrências de [23] a [27] é possível verificar a<br />
materialização das circunstâncias de localização espacial da forma<br />
mais típica: preposição + determinante + nome. Com exceção de<br />
[27], as demais circunstâncias ocorrem em processos materiais e<br />
podem confirmar a ideia anterior, de que tais tipos circunstanciais<br />
são mais presentes nas ações que podem ser percebidas no plano<br />
concreto, apoiando a premissa da necessidade de situar o processo<br />
ou de determinar a posição física onde se efetiva. O leitor já deve ter<br />
notado, tanto pela referência quanto pelo conteúdo temático, que as<br />
ocorrências apresentadas anteriormente são de uma mesma postagem<br />
do blog 1, sugerindo, dessa forma, a frequência com que ocorrem as<br />
localizações espaciais nos textos do blog, sobretudo naqueles que se<br />
propõem a sequenciar fatos, exprimir apreciação.<br />
Na segunda postagem do corpus, Paulo Nogueira (autor do<br />
blog Diário do Centro do Mundo) apresenta “Os seis conselhos de<br />
Orwell sobre a arte de escrever” (cf. MENDES, 2010, corpus, p.<br />
1-3). Neste texto, antes de apresentar propriamente os “conselhos<br />
de Orwell”, o autor narra seu “passeio” pelas ruas de Londres, onde<br />
reside, descrevendo os lugares que admira e contempla, a bordo de<br />
um ônibus de dois andares, tipicamente inglês. Para cumprir seu<br />
propósito de “encantar” o leitor com aquilo que visualiza, o blogueiro<br />
334 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
situa os lugares por onde passa e deixa expressa a avaliação pessoal<br />
que faz de Londres (para exemplificar, leia-se [25]). As circunstâncias,<br />
desse modo, contribuem para descrever/situar o espaço e, ao mesmo<br />
tempo, para conquistar a adesão do leitor para a ilustração feita pelo<br />
autor da postagem.<br />
Em [26], “no meu twitter”, além de localizar o espaço (nesse<br />
caso, virtual) onde havia realizado a atividade de escritura, a<br />
circunstância é também link que eletronicamente conduzirá o leitor,<br />
num clique de mouse, ao perfil do blogueiro no site de relacionamento<br />
Twitter – processo de metonímia (página de perfil tomada pelo nome<br />
site/provedor). Note-se que, a exemplo do que já foi apontado nesta<br />
seção, as circunstâncias também se prestam à conexão com outros<br />
conteúdos disponíveis no ciberespaço.<br />
Na ocorrência de [27], “no teatro” situa o lugar de fala<br />
do participante dizente “Susan Boyle” (retomado por “ela”). A<br />
circunstância associada ao processo verbal, todavia, está caracterizada<br />
pelo caráter de incerteza que o blogueiro atribui à declaração<br />
(verbiagem) do participante: “teria dito”. É importante registrar que a<br />
circunstância de localização espacial não apenas situa o lugar de fala<br />
de “Susan”, mas também demonstra que “o dizer” pode ter ocorrido,<br />
na visão do autor, em local pouco usual para quem se pretendia<br />
estrela do programa britânico: “[...] ainda no teatro, ela teria dito: ‘odeio<br />
o programa’.”<br />
As circunstâncias de modo<br />
As circunstâncias de modo sugerem o “como” as ações se<br />
realizam, ou seja, de que forma (recursos/qualidade) se projeta a<br />
realização dos processos. Esse tipo de circunstância se apresenta mais<br />
regularmente através do acréscimo do sufixo –mente em determinados<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 335
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
nomes. Como já proposto no capítulo teórico, os sintagmas adverbiais<br />
com essa configuração têm a possibilidade de não circunstanciar<br />
apenas o conteúdo do processo, como também expressar valor ou<br />
avaliação por parte do agente envolvido na enunciação, modificando<br />
toda a oração. Ou seja, os sintagmas adverbiais que apresentam essa<br />
condição seriam mais modalizadores (Sistema de Modo) e menos<br />
circunstância (Sistema de Transitividade).<br />
Neste trabalho, foram selecionadas as circunstâncias de modo<br />
formadas por nome + sufixo –mente. As ocorrências se configuram,<br />
por vezes, não tão facilmente identificáveis quanto a esta distinção<br />
entre avaliação de modificação do processo. Isso se deve possivelmente<br />
ao fato de que as circunstâncias de modo, assim como os adjuntos<br />
com função comentário, de certa forma, estabelecem algum tipo de<br />
apreciação da condição em que se constituem os significados dos<br />
processos. Daí que circunstâncias de modo e Sistema de Modo em<br />
muito se assemelham, tanto em relação à função quanto à descrição.<br />
Nos casos que seguem, os adjuntos modais estão mais para<br />
modificadores de um constituinte específico (o processo), sendo,<br />
portanto, circunstâncias de modo:<br />
[28] Passear pelas ruas de Londres no segundo andar dos ônibus<br />
vermelhos é tão gostoso quanto encontrar inesperadamente<br />
um amigo querido. Levo comigo sempre um livro ou uma<br />
revista, ou ambos. (B1L42-45)<br />
[29] Recentemente, Gino, ex-namorado de Noemi, disse ao<br />
jornal La Repubblica que Berlusconi passou a telefonar para<br />
Noemi depois que lhe chegaram às mãos fotos com que a garota<br />
tentava construir uma carreira de modelo. A versão de Gino foi<br />
confirmada por uma tia de Noemi, Francesca. (B1L188-192)<br />
336 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
Essas duas ocorrências, associadas a processo material e<br />
verbal, respectivamente, expressam o significado de tipicidade [28]<br />
e temporalidade [29]. Quando estabelece comparação entre “passear<br />
de ônibus pelas ruas de Londres” e “encontrar um amigo querido”, o<br />
autor da postagem circunstancia o processo ‘encontrar’, atribuindolhe<br />
uma condição característica do encontro: a possibilidade de ser<br />
inesperado, não programado. Embora, aparentemente, não haja<br />
uma conexão muito clara entre as variáveis que compara, ao atribuir<br />
a condição de “inesperada” ao encontro, o blogueiro talvez tenha<br />
pretendido não apenas apresentar o modo como a ação aconteceu,<br />
mas também dispô-la em patamar semelhante àquele “do passear no<br />
segundo andar do ônibus”.<br />
O significado de temporalidade expresso pela circunstância<br />
“recentemente”, em [29], complementa o processo “dizer”. É preciso<br />
que se acrescente que a ideia, quando da seleção dessa circunstância<br />
de modo, pelo blogueiro, possivelmente não era a de situar ou de<br />
estabelecer temporalmente a duração do processo. O fato de demarcar<br />
como “recente” a declaração do participante “Gino” configura o<br />
tempo da ocorrência desse fato em relação a outras publicações<br />
menos recentes que enuncia o blogueiro na postagem: as fotos da<br />
participação de Silvio Berlusconi em uma festa de aniversário de<br />
Noemi, por quem poderia estar apaixonado. Logo, a temporalidade<br />
prevista por esta circunstância pode até situar no tempo o processo<br />
do dizer. Porém, essa ocorrência circunstancial de modo pretende<br />
que atribuir à verbiagem do participante dizente a condição de ter<br />
sido publicada “recentemente” em relação a um ponto temporal já<br />
demarcado na postagem.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 337
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
Conclusão<br />
O propósito maior deste trabalho foi verificar o funcionamento<br />
das circunstâncias do ST da LSF, em blogs, e sua contribuição para a<br />
construção da opinião nesse gênero.<br />
Os dados analisados indicam que as circunstâncias,<br />
independentemente da recorrência, contribuem efetivamente para<br />
o caráter opinativo no blog, constituindo papel relevante na realização<br />
dos significadores e, ao mesmo, desmistificando o aspecto acessório<br />
ou expletivo comumente atribuindo aos complementos verbais<br />
circunstanciais.<br />
O papel das circunstâncias de extensão, por exemplo, é<br />
essencialmente favorecer a persuasão do leitor às ideias defendidas<br />
nos textos do blog. A representação da duração temporal/espacial,<br />
associada ao processo, colabora para assentamento do valor de<br />
verdade pretendido pelos autores. As ocorrências de localização,<br />
além de situarem espacialmente os processos podem também fazer<br />
remissão a referentes não físicos, a partir de metonímias e metáforas,<br />
estabelecidas em certas ocorrências. Exemplo disso são as referências<br />
feitas a elementos dentro das próprias postagens na ambiência virtual,<br />
situando em que “posição” se verifica este ou aquele elemento, de<br />
modo que o leitor possa trazer para o texto que está sendo lido outro<br />
material necessário à composição dos sentidos.<br />
Das circunstâncias de modo, é possível afirmar que contribuem<br />
para que se estabeleçam as condições de realização dos processos.<br />
Isso pode ocorrer em ocasiões nas quais se estabelece uma relação<br />
comparativa temporal, nas comparações situacionais [...], na ênfase<br />
que se dá a determinado processo. Mais do que isso, as circunstâncias<br />
analisadas aqui sugerem um procedimento gradiente, em que uma<br />
338 l Anais Eletrônicos - 2011
O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />
CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />
circunstância pode exercer mais ou menos a função de comentário,<br />
ou vice-versa.<br />
A análise das circunstâncias do Sistema de Transitividade<br />
desenvolvida até aqui sugere que os dados apresentados têm relevo<br />
para a compreensão das escolhas operadas na léxicogramática, nos<br />
níveis semântico e pragmático, externando, desse modo, diferentes<br />
empregos dos tipos de circunstância, que são pouco explorados pela<br />
literatura disponível.<br />
Referências<br />
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2004.<br />
FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita<br />
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de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />
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española. Santa Fé: Universidade Nacional Del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />
HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. 2 ed. London: Edward Arnold,<br />
1994.<br />
HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold, 1985.<br />
HALLIDAY, M. A. K. Language as Social Semiotic. The Social Interpretation of Language<br />
and Meaning. London: Edward Arnold, 1978.<br />
HALLIDAY, M. A. K; HASAN, R. Language, Context, and Text: Aspects of Language in a<br />
Social-Semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1985.<br />
Anais Eletrônicos - 2011 l 339
Sinta e<br />
xEM OCO<br />
f<br />
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KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino.<br />
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MARTIN, J. R.; MATTHIESSEN, C. M. I. M.; PAINTER, C. Working with functional grammar.<br />
London: Arnold, 1997.<br />
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Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação, 2., 2008, Recife. Anais Eletrônicos. Recife:<br />
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MILLER, C. R. Estudos sobre gênero textual, agência e tecnologia. Recife: Ed. Universitária<br />
da <strong>UFPE</strong>, 2009. Trad. e organização de Ângela P. Dionísio & Judith C. Hoffnagel.<br />
SOUZA, M. M. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Recife: <strong>UFPE</strong>,<br />
2006. (Tese de doutoramento).<br />
Web site: http://colunas.epoca.globo.com/guilhermefiuza/, acesso em 01/03/2009.<br />
Web site: http://colunas.epoca.globo.com/nelito/, acesso em 01/03/2009.<br />
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Web site: http://colunas.epoca.globo.com/pelomundo/, acesso em 01/03/2009.<br />
340 l Anais Eletrônicos - 2011