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Anais Eletrônicos - 2011 l 3


Catalogação na fonte. Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662<br />

Sintaxe em foco (2011 : Recife, PE)<br />

Anais eletrônicos [do] Sintaxe em foco, Recife 2 de dezembro de<br />

2011. / Realizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>;<br />

organização de Andréa Silva Moraes...[et al.]. – Recife: <strong>PPGL</strong>-<strong>UFPE</strong>,<br />

2011.<br />

340 p. : il.<br />

ISBN 978-85-98968-23-0<br />

1. Linguística. 2. Funcionalismo (Linguística). I. Moraes, Andréa Silva.<br />

400 CDD (22.ed.) <strong>UFPE</strong><br />

(CAC2011-98)


x<br />

E pediente<br />

Universidade Federal de Pernambuco<br />

Reitor da Universidade Federal de Pernambuco: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado<br />

Pró-Reitor para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Francisco de Sousa Ramos<br />

Diretora do Centro de Artes e Comunicação: Profª. Maria Virgínia Leal<br />

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras: Profª Evandra Grigoletto<br />

Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Profª Judith Hoffnagel<br />

Comissão Organizadora<br />

Maria Medianeira de Souza (<strong>UFPE</strong>)<br />

Andréa Silva Moraes (<strong>UFPE</strong>)<br />

Hérvickton Israel de Oliveira Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />

Rosemberg Gomes Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />

Organização dos Anais<br />

Andréa Silva Moraes (<strong>UFPE</strong>)<br />

Hérvickton Israel de Oliveira Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />

Maria Medianeira de Souza (<strong>UFPE</strong>)<br />

Marília Gomes Teixeira (<strong>UFPE</strong>)<br />

Rosemberg Gomes Nascimento (<strong>UFPE</strong>)<br />

Projeto Gráfio e Diagramação<br />

Augusto Noronha (Pipa Comunicação - http://www.pipacomunicacao.net/)<br />

Karla Vidal (Pipa Comunicação - http://www.pipacomunicacao.net/)<br />

Revisor Técnico<br />

Jurandir Dias Júnior (<strong>UFPE</strong>)<br />

Realização<br />

Programa de Pós-Graduação em Letras – <strong>UFPE</strong><br />

Apoio<br />

Pró-Reitoria para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação – PROPESQ<br />

Núcleo de Investigações sobre Gêneros Textuais – NIG<br />

Departamento de Letras da <strong>UFPE</strong>


u<br />

S mário<br />

11 O verbal e o não verbal no gênero pôster de filme:<br />

um olhar sistêmico-funcional<br />

Andréa Moraes (<strong>UFPE</strong>/ CNPq/NIG)<br />

35 Aplicabilidade da Linguística Sistêmico-Funcional a<br />

In-Doors<br />

Ângela Maria Torres Santos (<strong>UFPE</strong>/ CNPq/NIG)<br />

57 As construções verbo-sujeito e o fenômeno da<br />

concordância em dados de língua escrita<br />

Cléber Ataíde (UFPB/UFRPE)<br />

77 Um estudo dos classificadores nas línguas indígenas<br />

Sabanê, Mamaindê e Lakondê<br />

Edney Alexandre de Oliveira Belo (<strong>UFPE</strong>)<br />

97 Entre descrições e reclamações no gênero carta do<br />

leitor: o sistema de transitividade e a construção de<br />

imagens<br />

Emanuel Cordeiro da Silva (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

119 Os sentidos da imagem em editoriais de revistas<br />

Francisco Roberto da Silva Santos (UERN/GPET/GPSM)<br />

145 Transitividade e efeitos de poder no Breue memorial<br />

dos pecados e cousas que pertence(m) ha cõfissã, de<br />

Garcia de Resende<br />

Hérvickton Israel de Oliveira Nascimento (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)


167 Significados tipográficos no gênero editorial<br />

Jaciara Limeira de Aquino (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

189 A sociossemântica dos anúncios publicitários com<br />

super-heróis<br />

Jordão Joanes Dantas da Silva (UFPB/CNPq)<br />

211 A interpessoalidade no gênero editorial: um estudo<br />

sistêmico-funcional<br />

Lucélio Dantas de Aquino (UFRN/PPGEL)<br />

231 O estudo de processos materiais e mentais em textos<br />

opinativos: análise e ensino<br />

Magna Simone A. de Lima (UFCG)<br />

249 Divergências de transitividade em traduções e<br />

versões: elas realmente existem?<br />

Marília Gomes Teixeira (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

269 A função composicional em enquetes do CQC<br />

Nadiana Lima da Silva (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

293 Gráficos informativos sob a perspectiva da<br />

Gramática Visual<br />

Rosemberg Gomes Nascimento (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

313 O paradigma sistêmico-funcional da transitividade:<br />

por uma sintaxe das circunstâncias<br />

Wellington Vieira Mendes (UERN/GPEF)


A tigos


Resumo<br />

Os pôsteres constituem um gênero bastante comum na indústria<br />

cinematográfica para divulgação de filmes. O pôster de filme caracterizase,<br />

entre outras coisas, pelo fato de integrar elementos verbais e não<br />

verbais para compor sentido. Este trabalho busca investigar como os<br />

elementos verbais e não verbais nos pôsteres de filmes estão dispostos na<br />

superfície textual numa perspectiva funcionalista, com base na Linguística<br />

Sistêmico-Funcional, de Halliday (2004) e na Gramática de Design Visual,<br />

de Kress & van Leeuwen (2006).<br />

Palavras-chave: pôster; gênero; funcionalismo; multimodalidade.<br />

Abstract<br />

The posters are a very common genre in the movie industry for their<br />

marketing. This kind of poster is characterized, among other things,<br />

for integrating verbal and nonverbal elements in order to make sense.<br />

This paper seeks to investigate how verbal and nonverbal elements<br />

in the movie posters are arranged on the textual surface functionalist<br />

perspective, based on Systemic Functional Linguistics, Halliday’s (2004)<br />

Gramática de Design Visual, from Kress & van Leeuwen ( 2006).<br />

Keywords: poster; genre; functionalism; multimodality.


Introdução<br />

O verbal e o não verbal<br />

no gênero pôster de filme:<br />

um olhar sistêmico-funcional<br />

Andréa MORAES 1<br />

(<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

A sociedade moderna, entre outros fatores, caracteriza-se pela<br />

visualidade em que está inserida, na qual os signos verbais passaram<br />

a dividir espaço com os signos imagéticos, estabelecendo relações de<br />

sentido. Estas relações se constituem, de tal forma, que o significado<br />

de muitos textos só é completo com a presença de palavras e imagens<br />

simultaneamente.<br />

A partir dessa nova realidade, os textos, de uma maneira geral,<br />

sofreram modificações, a fim de acompanhar essas transformações<br />

decorrentes, dentre outros fatores, do advento das tecnologias.<br />

Gêneros que antes possuíam uma configuração predominantemente<br />

verbal passaram a utilizar diversos sistemas de representação de<br />

sentido para comunicar, tais como: gráficos, tabelas, fontes em<br />

tamanhos diferenciados, fotografias, ilustrações em geral, entre<br />

outros. De acordo com Dionísio (2006, p.133), todos os gêneros<br />

textuais são multimodais, já que congregam, no mínimo, dois modos<br />

de representação (palavras e imagens, palavras e tipografias etc).<br />

1. Trabalho realizado para avaliação da disciplina Sintaxe, sob orientação da Profª Drª Medianeira Souza.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 11


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Essa nova forma de compor textos trouxe para os estudos<br />

linguísticos mudanças na forma de ler e interpretar as informações.<br />

Ao atrelar o não-verbal ao verbal para compor textos, o olhar<br />

do leitor é direcionado para determinados pontos da superfície<br />

linguística, a partir da posição dos elementos na superfície textual,<br />

influenciando, dessa forma, a interpretação e o modo de interagir<br />

do leitor com o texto.<br />

A Gramática do Design Visual (doravante GDV), elaborada<br />

por Kress & van Leeuwen (2006), oferece um modelo para análise<br />

das estruturas visuais, com base na Linguística Sistêmico-Funcional<br />

(doravante LSF) de Halliday (2004) que, por sua vez, oferece<br />

um modelo de análise das estruturas verbais. Ambos os modelos<br />

fundamentam-se em uma perspectiva funcional de análise de<br />

linguagem.<br />

A partir dessas considerações, é objetivo deste trabalho verificar<br />

como os sistemas de representação de sentido através do código nãoverbal<br />

(utilizando a metafunção composicional da GDV) e do código<br />

verbal (utilizando a metafunção ideacional em Halliday) compõem os<br />

textos. Para isto, o corpus utilizado será composto por 30 pôsteres de<br />

filmes lançados entre os anos de 2005 e 2010, disponibilizados online.<br />

O corpus será analisado qualitativamente devido à grande quantidade<br />

de pôsteres de filmes disponíveis no período informado.<br />

Pôsteres de filmes: aspectos constituintes do gênero e contexto 2<br />

As novas formas de interagir e de divulgar produtos, a partir<br />

da globalização, influenciaram de forma considerável a indústria<br />

2. Seção 1 adaptada de Moraes (2009), disponível em http://www.revistaaopedaletra.net/volumes/Volume%20<br />

11.1/vol11.1-Andrea_Moraes.pdf. Acesso em 01 out 2011.<br />

12 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

cinematográfica. Não demorou muito para que surgissem novas<br />

formas de divulgar filmes, formas que se apropriam não apenas do<br />

texto verbal, mas que utilizam, ao máximo, toda a retórica que os<br />

elementos imagéticos podem oferecer. Os pôsteres de filmes surgiram<br />

neste contexto, no qual as imagens ganharam espaço na sociedade<br />

moderna, e os elementos imagéticos passaram a exercer um papel<br />

importante e até decisivo, na organização dos textos deste gênero.<br />

Os pôsteres de filmes, geralmente exibidos em salas de<br />

cinema, locadoras, revistas e outdoors, possuem aspectos estruturais<br />

relativamente estáveis que relacionam palavras e imagens. Os aspectos<br />

estruturais relativos ao texto verbal dos pôsteres de filmes são os<br />

títulos, o nome dos atores, diretores, ano de lançamento e taglines.<br />

Já o texto imagético nestes pôsteres é composto por imagens em<br />

cores e de todos os tipos, como, por exemplo, fotografias e pinturas.<br />

Estes elementos imagéticos geralmente representam uma cena em<br />

particular, ou uma seleção de cenas do filme em questão. Podem ser<br />

representadas, ainda, interpretações artísticas de uma determinada<br />

cena ou do tema do filme. Ao lado deste texto imagético, o texto<br />

verbal complementa o universo de elementos relativamente estáveis<br />

que compõem os pôsteres de filmes. As taglines, por exemplo, são<br />

frases de efeito que sintetizam a história do filme ou dizem respeito a<br />

uma ideologia presente no mesmo, situando o público com as ideias<br />

do filme. Os pôsteres de filmes a seguir (figuras 01 e 02) exemplificam<br />

de que maneira o texto verbal e o texto imagético se relacionam neste<br />

gênero:<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 13


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Figura 02: Retirado de www.adorocinema.<br />

com, acesso em 10 jul 2009<br />

Figura 03: Retirado de www.adorocinema.<br />

com, acesso em 10 jul 2009<br />

No que diz respeito ao texto verbal, os títulos e as taglines, juntos,<br />

são capazes de sintetizar a história do filme. Isto pode ser notado na<br />

figura 01, onde a tagline “Sempre no altar, mas nunca de branco”<br />

relaciona-se intimamente com o título “Vestida para casar”. Já a tagline<br />

do pôster de filme da figura 02 cumpre uma função diferente daquela<br />

analisada na figura 01: o título “Brilho Eterno de uma Mente sem<br />

Lembranças” estabelece uma relação de caráter mais ideológico com<br />

a tagline “Um filme para todos que têm um passado que gostariam de<br />

esquecer...”, fazendo referência às experiências pessoais do expectador<br />

e aos temas abordados no filme.<br />

14 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

Em relação aos elementos imagéticos nos pôsteres de filmes,<br />

percebe-se que eles se relacionam intimamente com o texto verbal,<br />

seja através das cores, das disposições ou da presença de elementos<br />

específicos. Isto pode ser percebido, por exemplo, na referência à<br />

memória na figura 02, através da luz branca e a expressão na face do<br />

personagem, simbolizando a amnésia e o esquecimento, e situando o<br />

título do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” com<br />

o universo textual do pôster, ou como na figura 01, com o vestido<br />

de noiva formado por palavras completando o universo de signos<br />

imagéticos sobre casamento.<br />

Neste trabalho, o texto visual dos pôsteres de filmes (fotografias,<br />

imagens, tipografias etc) será analisado com base na Gramática de<br />

Design Visual. Já o texto verbal analisado (composto pelas taglines dos<br />

pôsteres de filmes) será analisado com base na Metafunção Ideacional,<br />

especialmente o Sistema de Transitividade.<br />

As metafunções da linguagem na LSF<br />

Michael Halliday propôs uma teoria denominada sistêmicofuncional,<br />

na qual “o termo sistêmica refere-se às redes de sistemas da<br />

linguagem” e o “termo funcional refere-se às funções da linguagem,<br />

que usamos para produzir significados” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />

p. 20). De maneira geral, segundo essa teoria, são operadas escolhas<br />

lingüísticas a partir do sistema da língua. O termo “funcional” também<br />

enfatiza a natureza crítico-social do modelo de análise proposto, já que<br />

“a grande preocupação da LSF é compreender e descrever a linguagem<br />

em funcionamento como um sistema de comunicação humana e não<br />

como um conjunto de regras gerais, desvinculadas do seu contexto<br />

de uso”. (CUNHA & SOUZA, 2007, p. 19-20).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 15


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Segundo a LSF, a depender do contexto de situação, ou seja, os<br />

contextos específicos em que a língua ocorre, os gêneros se moldam<br />

a fim de atender às necessidades dos interlocutores, diferenciandose<br />

uns dos outros. “Essas diferenças entre os gêneros podem ser<br />

atribuídas a três aspectos constitutivos do contexto de situação, que<br />

a LSF denomina de campo, relação e modo” (CUNHA & SOUZA,<br />

2007, p. 21). O campo diz respeito à atividade que está sendo<br />

realizada; a relação diz respeito à interação entre os participantes da<br />

comunicação; e o modo diz respeito ao meio utilizado para estabelecer<br />

essa relação. Esses três parâmetros refletem as três funções que<br />

constituem os propósitos principais da linguagem: as metafunções<br />

ideacional, interpessoal e textual (cf. CUNHA & SOUZA, 2007, p. 21;<br />

cf. GOUVEIA, 2009, p. 16).<br />

A metafunção ideacional realiza-se através do sistema de<br />

transitividade, e materializa nossa experiência com o mundo (interior<br />

ou exterior). A metafunção interpessoal representa as relações entre<br />

os participantes e os papéis assumidos por eles. Por fim, a metafunção<br />

textual está relacionada à organização e fluxo do texto (CUNHA &<br />

SOUZA, 2007, p. 22).<br />

A gramática funcional, de acordo com Cunha & Souza (2007,<br />

p. 23), destina-se a<br />

revelar, pelo estudo das sequências linguísticas, os significados<br />

que estão codificados por essas sequências, já que, para essa<br />

abordagem de estudos da linguagem, cada sentença expressa<br />

três significados simultaneamente: o ideacional, o interpessoal<br />

e o textual.<br />

16 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

O sistema de transitividade e os pôsteres de filmes<br />

A transitividade encontra-se relacionada à metafunção<br />

ideacional da linguagem que, como foi dito, diz respeito à construção<br />

dos “significados de nossa experiência, tanto do mundo exterior (social)<br />

quanto do mundo interior (psicológico)” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />

p. 21-22). Dessa forma, a estruturação das ações humanas em orações<br />

compete ao estudo da transitividade, em que o termo “ação” designa<br />

tanto atividades físicas quanto atividades cognitivas. As ações, segundo<br />

Cunha & Souza (2007), podem ser identificadas nas orações através<br />

dos processos, dos participantes e das circunstâncias.<br />

Os processos subdividem-se em materiais, mentais, relacionais,<br />

verbais, comportamentais e existenciais; são realizados linguisticamente<br />

através de verbos e podem ser principais ou secundários. Os participantes<br />

estão intimamente relacionados aos processos e subdividem-se a partir<br />

deles. Podem assumir diferentes papéis a depender do tipo de ação<br />

executada, materializando-se através de substantivos, e podem ser<br />

obrigatórios ou não. Já as circunstâncias, da mesma maneira que os<br />

participantes, relacionam-se aos processos e referem-se às condições<br />

ou coerções em que os processos se realizam, materializando-se em<br />

advérbios (cf. CUNHA & SOUZA, 2007). Podem ser de Extensão,<br />

Causa, Localização, Assunto, Modo, Papel e Acompanhamento.<br />

De acordo com Cunha & Souza (2007, p. 61), “as circunstâncias são<br />

realizadas gramaticalmente por advérbios ou sintagmas adverbiais e<br />

ocorrem livremente em todos os tipos de processo”.<br />

Nesta seção, serão analisados os processos presentes nas taglines<br />

dos pôsteres de filmes do corpus. A ordem de recorrência dos processos<br />

nos pôsteres analisados foi a seguinte: Relacionais, Materiais, Mentais,<br />

Comportamentais, Existenciais e Verbais. Os processos Relacionais<br />

relacionam entidades, “identificando-as ou classificando-as, na medida<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 17


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

em que associam um fragmento da experiência a outro” (CUNHA<br />

& SOUZA, 2007, p. 58). No exemplo (01) a seguir, o processo do<br />

verbo “ser” classifica o participante “Edward” como um “vampiro”<br />

ao associá-los na sentença.<br />

(01) “Edward é um vampiro. Ele está morto de sede pelo<br />

meu sangue. E eu estou perdidamente apaixonada por<br />

ele” (Filme “Crepúsculo”, 2008).<br />

Já os processos Materiais se caracterizam por externar uma<br />

ação que “envolve, pelo menos, um participante: o Ator, quando a<br />

oração é intransitiva, ou dois participantes, um Ator e uma Meta, por<br />

exemplo, quando a oração é transitiva” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />

p. 62-63). Analise o exemplo (02) a seguir:<br />

(02) “Um cara conhece uma garota. Ele se apaixona. Ela<br />

não.” (Filme “500 dias com ela”, 2009).<br />

Na primeira oração, percebe-se que o processo do verbo<br />

“conhecer” possui dois participantes: “um cara”, funcionando como<br />

Ator, e “uma garota”, funcionando como Meta. Isso acontece porque<br />

os processos materiais caracterizam-se, em linhas gerais, como aqueles<br />

processos que representam o mundo do fazer, configurando ações de<br />

acontecimento, criação, alteração e atitude. Nas taglines dos pôsteres<br />

analisados, os processos materiais tiveram 9 ocorrências. Observe<br />

também os exemplos (03) e (04):<br />

(03) Ele vai fazer de tudo para tirar o noivo da jogada<br />

(Filme “O Melhor Amigo da Noiva”, 2008).<br />

18 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

(04) Um único movimento pode mudar tudo (Filme<br />

“Heróis”, 2009).<br />

Nos exemplos, os Atores estão explícitos nas orações (no caso do<br />

exemplo 03, o ator “ele” e no exemplo 04, o ator “único movimento”).<br />

Entretanto, as pessoas ou objetos às quais essas ações se dirigem são<br />

distintas. No exemplo (03), a ação se configura como material: “tirar”,<br />

cuja Meta é o participante “noivo”. Já no caso do exemplo (04), a<br />

Meta está representada por um participante inanimado: “tudo”.<br />

Já os processos Mentais possibilitam “detectar que crenças,<br />

valores e desejos estão representados em um dado texto. (...) Com<br />

esse tipo de verbo, não tratamos de ações, mas de reações mentais”<br />

(Cunha & Souza, 2007, p. 58). De forma geral, os processos mentais<br />

tratam das questões do mundo interior e da realidade psicológica<br />

dos participantes, que podem ser Experienciadores ou Fenômenos.<br />

O primeiro é o “participante consciente que experimenta um<br />

sentir”, enquanto o segundo é “o fato que é percebido, sentido ou<br />

compreendido” (CUNHA & SOUZA, 2007, p. 58). No exemplo<br />

(05), o processo do verbo “inspirar” e seus dois participantes “ele” e<br />

“pessoas” corroboram com essa definição.<br />

(06) “Quando todo um país passava por dificuldades, ele<br />

inspirou pessoas a nos dar esperanças” (Filme “O Grande<br />

Desafio”, 2007).<br />

Os processos mentais dizem respeito às experiências do mundo<br />

cognitivo, como sentir, desejar, gostar, perceber, entre outros (cf.<br />

CUNHA & SOUZA, 2007, p. 66). Nas taglines analisadas, os processos<br />

mentais apareceram em 8 pôsteres de filmes analisados. Observe os<br />

exemplos:<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 19


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

(07) Do que você precisa para encontrar o amor<br />

verdadeiro? (Filme “Quem quer ser um milionário?”,<br />

2008).<br />

(08) Você não consegue 500 milhões de amigos sem fazer<br />

alguns inimigos (Filme “A rede social”, 2010).<br />

No caso do exemplo (07), o processo do verbo “precisar”<br />

expressa um desejo, e no exemplo (08), o processo do verbo “conseguir”<br />

indica uma experiência cognitiva. Quanto aos participantes, os<br />

Experienciadores são projetados, nos dois casos, no leitor, já que no<br />

exemplo (07) há uma pergunta direcionada ao leitor, e no exemplo<br />

(08), a tagline chama o leitor para um desafio.<br />

Os processos Existenciais possuem apenas um participante,<br />

o Existente, e como o nome indica, “representam algo que existe<br />

ou acontece” e estão no plano das relações abstratas (CUNHA &<br />

SOUZA, 2007, p. 59). Nos pôsteres analisados, os processos existenciais<br />

figuraram 3 vezes, das quais podemos observar o seguinte exemplo:<br />

(09) Porque tem coisas que só um ex-marido faz por você...<br />

(Filme “Novidades no Amor”, 2009).<br />

No exemplo, o processo representado pelo verbo “ter” funciona<br />

como uma constatação, pela existência de uma verdade absoluta.<br />

Apesar de não possuir uma oração anterior, o processo funciona como<br />

uma continuidade a uma sentença subentendida pelo leitor que, ao<br />

final, surpreende-o.<br />

Na sequência, os processos Comportamentais, como o nome<br />

também indica, dizem respeito ao comportamento humano em<br />

atividades voluntárias, como ouvir, ou atividades involuntárias,<br />

20 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

como respirar (cf. CUNHA & SOUZA, 2007, p. 60). Possuem como<br />

participante, obrigatoriamente, um Comportante, e opcionalmente<br />

um Behaviour. Esses processos ocorreram apenas 3 vezes nas análises<br />

das taglines. Observe o exemplo (10) abaixo:<br />

(10) Alguns caras piram em Las Vegas. (Filme “Se beber,<br />

não case”, 2009).<br />

O uso do verbo “pirar” indica não apenas um estado do<br />

participante, denominado Comportante, como também significa<br />

uma ação decorrente desse estado. Isto porque os processos<br />

comportamentais situam-se “nas fronteiras da ação e do sentir”<br />

(CUNHA & SOUZA, 2007, p. 75).<br />

Por fim, os processos Verbais possuem participantes que se<br />

caracterizam como Dizentes (participante que comunica algo),<br />

Receptores (participante opcional, a quem o dizente se refere), e<br />

Verbiagem (responsável por codificar o que vai comunicar). Nesse<br />

processo, há a configuração das “relações simbólicas construídas na<br />

mente e expressas em forma de linguagem” (CUNHA & SOUZA, 2007,<br />

p. 59). Durante as análises dos pôsteres de filmes do corpus coletado,<br />

não foi encontrada nenhuma ocorrência de processo do tipo verbal.<br />

A gramática do design visual<br />

Embasados nas metafunções da Gramática Sistêmico-Funcional<br />

(cf. HALLIDAY, 2004), Kress & van Leeuwen (2006) elaboraram<br />

uma Gramática do Design Visual, que consiste, basicamente, na<br />

análise das funções das imagens através da disposição dos elementos na<br />

superfície textual, bem como suas relações com o leitor e a construção<br />

desses textos.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 21


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

As metafunções idealizadas por Kress & van Leeuwen derivam<br />

das metafunções da LSF. Assim como no modelo de Halliday, a<br />

Gramática do Design Visual propõe a análise a partir das seguintes<br />

metafunções: Representacional, Interativa e Composicional.<br />

A Metafunção Representacional está intimamente relacionada<br />

à metafunção ideacional da LSF, e pode ser definida como a<br />

“responsável pelas estruturas que constroem visualmente a natureza<br />

dos eventos, objetos e participantes envolvidos, e as circunstâncias em<br />

que ocorrem” (ALMEIDA, 2008, p.12). Relacionada à metafunção<br />

interpessoal da LSF, a metafunção interativa é “responsável pela<br />

relação entre os participantes, (...) onde os recursos visuais constroem<br />

‘a natureza das relações de quem vê e o que é visto’” (ALMEIDA,<br />

2008, p. 12). Por fim, a Metafunção Composicional, ligada à<br />

metafunção textual de Halliday, é “responsável pela estrutura e<br />

formato do texto (...) e se refere aos significados obtidos através<br />

da ‘distribuição do valor da informação ou ênfase relativa entre os<br />

elementos da língua’” (ALMEIDA, 2008, p. 12). Naturalmente, as<br />

metafunções da Gramática de Design Visual possuem subdivisões,<br />

sintetizadas na Figura 03 a seguir (cf. ALMEIDA, 2008).<br />

Metafunções da<br />

GDV<br />

Recursos e Subdivisões das<br />

Metafunções da GDV<br />

Representacional<br />

Representações<br />

Narrativas<br />

Representações<br />

conceituais<br />

Interativa<br />

Contato<br />

Distância<br />

Social<br />

Perspectiva<br />

Modalidade<br />

Composicional<br />

Valor da<br />

Informação<br />

Saliência<br />

Estruturação<br />

(Framing)<br />

Figura 03<br />

22 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

A Metafunção Composicional (que será considerada para<br />

análise do corpus neste trabalho) está subdividida em Valor da<br />

Informação, Saliência e Framing, como pode ser visualizado da Figura<br />

03. O Valor da Informação atribui valores às imagens a partir da<br />

zona de posicionamento dos elementos na superfície textual (direita,<br />

esquerda, centro, margem, parte superior e parte inferior). A Saliência<br />

corresponde à disposição dos elementos como forma de atrair o olhar<br />

do leitor, e pode se dar em diferentes níveis a depender da parte<br />

que se pretende destacar. Por fim, o Framing (também denominado<br />

Estruturação) diz respeito à demarcação dos elementos presentes<br />

numa imagem, conectando-os ou desconectando-os (cf. ALMEIDA,<br />

2008, p. 23).<br />

A Gramática de Design Visual nos pôsteres de filmes<br />

A configuração visual do gênero pôster de filme é um elemento<br />

de extrema importância para identificação do público-alvo. As<br />

fotografias dos atores, a representação de cenas, a tipografia utilizada<br />

para compor o título, as cores, todos esses elementos visuais funcionam<br />

como “pistas” para que o público se identifique com um determinado<br />

filme e queira assistir a ele. Além disso, determinados elementos<br />

visuais contribuem para caracterização da identidade de determinado<br />

gênero cinematográfico, como drama, ação, romance, terror, comédia,<br />

entre outros; ou para identificação de um determinado filme, muitas<br />

vezes consagrando-o.<br />

Nesta seção, os pôsteres de filmes coletados para análise neste<br />

trabalho serão analisados de maneira que se torne perceptível como os<br />

elementos visuais atuam na superfície textual de forma a possibilitar<br />

a composição de sentidos juntamente ao texto verbal, bem como de<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 23


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

que maneira a disposição desses elementos modifica nossa estratégia<br />

de interpretar e atribuir significados durante a leitura desses textos.<br />

O valor da informação<br />

Como foi dito, o valor da informação refere-se à localização que<br />

possuem os elementos na superfície textual, que pode se encontrar<br />

nas seguintes “zonas” imagéticas: direita e esquerda; parte superior e<br />

parte inferior; e centro e margem. As funções dessas diversas zonas<br />

imagéticas atuam na composição dos textos de modo a nos fornecer<br />

informações de forma integrada.<br />

O valor informativo da direita e da esquerda: o “dado” e o<br />

“novo”<br />

De acordo com Kress & van Leeuwen (2006, p. 186), as<br />

informações disponibilizadas ao lado esquerdo de uma página<br />

são, basicamente, dadas, ou seja, já conhecidas pelo leitor, ou são<br />

informações-chave sobre as quais o leitor deve prestar atenção ou uma<br />

informação referente ao senso comum dos leitores. Já as informações<br />

localizadas ao lado direito da página são as informações novas, ou<br />

seja, a informação a ser acrescentada, uma informação ainda não<br />

conhecida pelo leitor ou sobre a qual se deseje despertar qualquer tipo<br />

de debate (cf. KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p. 187). Observe<br />

o pôster da figura (04) a seguir:<br />

24 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

Figura 04<br />

Na figura (04), são apresentadas as imagens de dois homens:<br />

um posicionado ao lado esquerdo da imagem e o outro posicionado ao<br />

lado direito da imagem. O título do filme, “O Discurso do Rei”, nos<br />

impulsiona a olhar a imagem de forma a inferir qual dos dois homens<br />

apresentados é o “rei”. De acordo com o princípio de composição de<br />

Kress & van Leeuwen, o personagem do “rei” estaria situado do lado<br />

esquerdo da imagem, ou seja, é a informação dada e já conhecida<br />

pelo leitor através do título. Além disso, a tagline “Dois mundos que<br />

se uniram para dar à nação uma só voz” nos impulsiona a imaginar<br />

que os dois homens na imagem representam dois mundos diferentes,<br />

o que é ratificado pelas roupas que ambos aparecem vestindo. O<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 25


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

homem representado ao lado direito da imagem seria, portanto, a<br />

informação nova, sobre a qual o filme deseja despertar um debate ou<br />

tornar conhecida do público.<br />

O valor informativo da parte superior e da parte inferior: o<br />

“ideal” e o “real”<br />

Muitas vezes, os elementos visuais aparecem distribuídos de<br />

maneira em que haja uma divisória entre a parte superior do texto e<br />

a parte inferior do texto. A parte superior do texto, de acordo com<br />

Kress & van Leeuwen (2006, p. 193-194), corresponde ao “ideal”, ou<br />

seja, uma informação de essência idealizada ou generalizada. Já a parte<br />

inferior do texto seria o “real”, ou seja, apresenta informações menos<br />

idealizadas e/ou mais específicas sobre um determinado assunto.<br />

Observe o pôster de filme apresentado na figura (05) a seguir:<br />

Figura 05<br />

26 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

O pôster da figura (05) está dividido, a partir da linha divisória<br />

marcada pelo título do filme, em duas partes: superior e inferior. A<br />

parte superior apresenta, de forma generalizada, o filme através da<br />

imagem dos personagens e suas expressões faciais, indicando o caráter<br />

de ação do filme. Por outro lado, a parte inferior nos dá informações<br />

mais específicas sobre o filme através da cena representada.<br />

O valor informativo do centro e da margem<br />

Segundo a Gramática de Design Visual, os elementos<br />

posicionados no centro da página representam o núcleo da informação<br />

à qual os elementos posicionados na margem da página estarão<br />

subordinados ou irão se referir (KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p.<br />

206). É importante ressaltar que os elementos composicionais atuam<br />

de forma integrada 3 .<br />

No que diz respeito ao corpus coletado, a composição centromargem<br />

pode ser visualizada no pôster da figura (06) a seguir:<br />

3. A imagem mostra a integração entre os elementos composicionais descritos por Kress & Van Leeuwen (2006):<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 27


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Figura 06<br />

Observe que há um destaque para o homem apresentado<br />

no centro do pôster da figura (06). O homem ao centro da página<br />

representa o núcleo da informação do filme, ou seja, o personagem<br />

sobre o qual as pessoas representadas na margem se relacionam e ao<br />

qual estarão subordinados no decorrer da história.<br />

Saliência<br />

A Saliência diz respeito ao peso que certos elementos da<br />

composição possuem em relação a outros, estabelecendo entre eles<br />

relações hierárquicas. Um elemento imagético pode se mostrar mais<br />

28 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

saliente em relação a outros elementos imagéticos, através de recursos<br />

como foco, nitidez, contraste, bordas, zoom, entre tantos outros (cf.<br />

KRESS & VAN LEEUWEN, 2006, p. 212).<br />

Figura 07<br />

O pôster apresentado na figura (07) nos dá uma ideia melhor<br />

sobre como atua esse recurso atua na composição imagética. Observe a<br />

maneira como os personagens representados no pôster estão dispostos.<br />

O grau de aproximação deles, ou seja, o zoom, nos aproxima mais de<br />

alguns personagens do que de outros. Ou seja, alguns personagens<br />

estão mais salientes do que outros e essa ideia é composta através do<br />

recurso de aproximação/distanciamento. Infere-se, a partir disso, a<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 29


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

importância que alguns personagens possuem no filme em detrimento<br />

de outros. Ou seja, há uma relação hierárquica entre os personagens<br />

representados no pôster.<br />

Framing<br />

De acordo com Kress & van Leeuwen (2006, p. 214), o framing<br />

atua de forma a conectar ou desconectar os elementos imagéticos de<br />

uma composição. Trata-se de agrupar imagens por relevância ou por<br />

similaridade, através de recursos que buscam integrá-los e identificálos<br />

em um determinado “conjunto”. Da mesma forma, o framing<br />

possibilita a desintegração de determinados elementos na página, ou<br />

seja, também propositalmente pode desenquadrar certos elementos<br />

de um determinado “conjunto”.<br />

Figura 08<br />

30 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

O pôster de filme da figura (08) nos dá uma noção sobre como<br />

o framing atua na composição imagética de um texto. Observe que são<br />

apresentadas três cenas, e que, entre as cenas, separando-as, existem<br />

linhas discretas, emoldurando-as. Além se mostrar uma sequência,<br />

essas imagens estão parcialmente agrupadas por representarem<br />

momentos semelhantes. É importante salientar que nem sempre essas<br />

linhas são visíveis, e que o agrupamento, muitas vezes, pode ocorrer<br />

através de outros recursos.<br />

Considerações finais<br />

Neste trabalho, procurou-se investigar de que forma a<br />

transitividade atua no gênero pôster de filme, especificamente nas<br />

taglines, e de que forma os princípios da Gramática de Design Visual<br />

podem ser aplicados a esse gênero, focando-se nos estudos de cunho<br />

funcionalista da Linguística Sistêmico-Funcional.<br />

Verificou-se que, quanto ao texto verbal, os processos mais<br />

frequentes no sistema de transitividade foram os relacionais,<br />

demonstrando a natureza do gênero pôster de filme, que é o de<br />

retratar experiências contidas no conteúdo do filme, convidando o<br />

leitor a assistir a ele. Da mesma forma, o texto visual dos pôsteres,<br />

em suas mais variadas possibilidades de configuração, também atua<br />

diretamente na relação leitor-texto, estabelecendo relações de<br />

proximidade, distância, trazendo informações novas e dialogando<br />

com o texto verbal.<br />

De maneira geral, a partir do que foi analisado, percebe-se<br />

que dentro de um sistema linguístico, as escolhas realizadas pelos<br />

produtores influenciam diretamente a relação do leitor com o texto,<br />

seja este verbal ou visual. O resultado dessas escolhas possui uma<br />

função que deve ser considerada para obtenção dos propósitos do<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 31


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

gênero em questão. Como afirma Halliday (1994, apud GOUVEIA,<br />

2009, p. 17), “a linguagem se desenvolveu para satisfazer necessidades<br />

humanas” e “o modo como está organizada é funcional relativamente<br />

a essas necessidades”.<br />

Referências<br />

ALMEIDA, D. B. L. Revisitando a gramática visual nos cartazes de guerra. In: Perspectivas<br />

em Análise Visual: do fotojornalismo ao blog. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008.<br />

ARAÚJO, A. A tradução de propagandas no Brasil: uma questão de sedução. Disponível em:<br />

http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/rtcom/article/viewPDFInterstitial/129/128<br />

Acesso em: 22 out. 2009. p. 7-16.<br />

CUNHA, M. A. F. da.; SOUZA, M. M. de. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro,<br />

Lucerna, 2007.<br />

DIONÍSIO, A. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In: Gêneros Textuais: reflexões e<br />

ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.<br />

GOUVEIA, C. Texto e Gramática: uma introdução à linguística sistêmico-funcional.<br />

Disponível em http://www.fl.ul.pt/pessoais/cgouveia/ja/6.pdf acesso em 20 jul 2011.<br />

HALLIDAY, M. A. K. Clauses as representation. In: An introduction to functional grammar.<br />

3a ed. Revisada por C. M. I. M. Matthiessen. London: Edward Arnold, 2004.<br />

KRESS, G; VAN LEEUWEN, T. Multimodal Discourse: the modes and media of contemporary<br />

communication. London: Arnold, 2001.<br />

KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. The meaning of the composition. In: Reading Images. London/<br />

New York, Routledge, 1996.<br />

MOTTA-ROTH, D. Transitivity in visual grammar: concepts and applications. Linguagem<br />

& Ensino, Pelotas, v.12, n.2, p. 319-349, jul/dez, 2009.<br />

32 l Anais Eletrônicos - 2011


O VERBAL E O NÃO VERBAL NO GÊNERO PÔSTER DE FILME: UM OLHAR<br />

SISTÊMICO-FUNCIONAL / Andréa MORAES (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

PEZATTI, Erotilde Goreti. O funcionalismo em Linguística. In: MUSSALIN, Fernanda;<br />

BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística 3: fundamentos epistemológicos.<br />

4 ed. São Paulo: Cortez, 2009. P. 165-215.<br />

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. 6 ed. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 33


Resumo<br />

Este artigo parte das premissas teóricas da Linguística Sistêmico-Funcional,<br />

atendo-se ao viés europeu, cujo principal mentor é Halliday, buscando<br />

aplicar a sua visão sobre a linguagem a partir de uma constituição dupla<br />

de sistema linguístico e sistema de dados do contexto social. Tomando a<br />

aplicabilidade de tais conceitos a textos de circulação pública, atentouse<br />

para a construção dos significados a qual se concretiza a partir da<br />

compreensão de que é nas situações extralinguísticas que as realizações<br />

linguísticas se produzem. Neste trabalho, direcionaram-se as observações<br />

analíticas para o texto como unidade de comunicação discursiva, como<br />

forma linguística de interação social. Para isso, fez-se um recorte na<br />

proposta hallidayana, procurando-se analisar o sistema de dados do<br />

contexto social atrelado aos textos em análise bem como observar-se,<br />

no sistema linguístico, aspecto da transitividade, incluída no sub-sistema<br />

léxico-gramatical, de grande importância para a constituição do aspecto<br />

semântico da metafunção ideacional.<br />

Palavras-chave: LSF. Contexto social. Metafunção ideacional.<br />

Transitividade.<br />

Abstract<br />

This article is based on the theoretical premises of Systemic Functional<br />

Linguistics, with the European bias, whose main theorist is Halliday. It<br />

seeks to apply the insight into the language from a dual constitution of<br />

language system and data system of social context. Taking the applicability<br />

of such concepts to texts of public consultation, we looked up to the<br />

construction of meanings which are made through the understanding<br />

that it is in situations that extralinguistic linguistic realizations occur. In<br />

this work, the observations were directed to the analytical observations of<br />

the texts as discursive communication units, as a linguistic form of social<br />

interaction. To this end, we used Halliday’s proposal, aiming to analyze the<br />

data system of the social context along with texts under analysis, as well<br />

as observing, in the linguistic system, aspect of transitivity, including the<br />

lexical-grammatical subsystem of great importance for the constitution<br />

of the semantic aspect of the ideational metafunction.<br />

Keywords: Social Context, ideational metafunction; transitivity.


Aplicabilidade da Linguística<br />

Sistêmico-Funcional a In-Doors<br />

Introdução<br />

Ângela Maria TORRES Santos<br />

(<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG) 1<br />

A utilização de toda extensão das portas externas de elevadores<br />

tem-se mostrado comum em áreas internas de hospitais, faculdades<br />

e outros prédios públicos, como um novo suporte para divulgação de<br />

mensagens, selecionando-se para amostra três (03) in-doors, encontrados<br />

em hospital da rede particular. Essa denominação foi determinada<br />

pela autora deste artigo por analogia com out-doors, já que aqueles<br />

constituem uma estampa única sobreposta às portas externas dos<br />

elevadores, localizados em saguões internos de um hospital particular<br />

de grande porte, à semelhança dos out-doors, os quais apresentam<br />

características de exposição similar, mas atrelados a ambientes externos.<br />

Buscando observar as escolhas linguísticas como reveladoras da<br />

intencionalidade do falante/autor e tentando comprovar que o texto<br />

se constrói a partir do contexto e das escolhas no sistema linguístico,<br />

viu-se que o corpus selecionado marca os papéis sociais do autor e do<br />

interlocutor, despertando a curiosidade em determinar-se como se deu<br />

essa marcação e se o efeito sobre o leitor foi condizente com o objetivo<br />

e intencionalidade do autor.<br />

Embasaram este preito os aportes teóricos da Linguística<br />

Sistêmico-Funcional, seguindo a linha teórica de Halliday, cuja<br />

1. Trabalho realizado para avaliação da disciplina Sintaxe, sob orientação da Profª Drª Medianeira Souza.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 35


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

concepção de linguagem consiste não só considerá-la como uma<br />

estrutura linguística mas também composta de dados extralinguísticos,<br />

extraídos do contexto social, da ambiência de uso da linguagem.<br />

Linguística sistêmico-funcional (LSF)<br />

Reconhecendo as inúmeras aplicabilidades do termo<br />

funcionalismo e as divergentes peculiaridades entre os seus modelos,<br />

neste trabalho importou a teoria funcionalista da linguagem, capaz<br />

de ser reconhecida nas similitudes que se fazem presentes nos<br />

diversos aportes não estruturalistas, apontando para uma visão da<br />

linguagem que centra seu interesse no entendimento de como se dá<br />

uma comunicação eficiente entre os usuários de determinada língua<br />

natural, ou seja, como ela funciona quando em uso.<br />

Vê-se que a Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF)<br />

preocupa-se com uma linguagem que constrói e interpreta significados<br />

em situações sociais, o que implica reconhecer a importância do<br />

contexto, o que dá ao seu enfoque linguístico uma perspectiva sóciosemiótica,<br />

como se depreende da afirmação de Halliday (1970, p.141):<br />

The nature of language is closely related to the demands<br />

that we make on it, the functions it has to serve. In the most<br />

concrete terms, these functions are specific to a culture […]<br />

we all use language as a means of organizing other people, and<br />

directing their behaviour. 2<br />

2. A natureza da linguagem está relacionada intimamente com as demandas que impomos a ela, às funções que a<br />

língua tem de servir. Em termos mais concretos, essas funções são específicas de uma cultura; [...] todos nós usamos<br />

linguagem como uma forma de organizarmos outras pessoas e direcionarmos seus comportamentos (tradução<br />

nossa).<br />

36 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

Essa concepção semiótica da linguagem é comentada por Ghio<br />

e Fernández (2008, p.13), trazendo as palavras de Halliday e Hassan,<br />

para mais esclarecê-la:<br />

No podemos operar com el concepto de signo como una entidad.<br />

Tenemos que pensar más bien en sistemas de significado, sistemas<br />

que operan con ciertos productos formales a los que llamamos<br />

‘signos’, entendidos no como conjuntos de cosas aisladas sino<br />

como ‘redes de relaciones’. Es en este sentido que empleo el<br />

término ‘semiótica’ para definir la perspectiva desde la que quiero<br />

considerar al lenguaje: el lenguaje como uno entre otros sistemas<br />

de significado, que, en su conjunto, constituyen la cultura humana.<br />

Isso implica reconhecer ser a organização da língua um sistema<br />

no qual se criam e se intercambiam significações, sendo, por isso,<br />

um sistema complexo, visto que a construção do significado se dá<br />

socialmente.<br />

Podemos dizer que, estabelecendo relação entre linguagem e<br />

sistema linguístico e considerando as relações entre texto e contexto,<br />

a LSF busca descrever as redes de escolhas do que Halliday denomina<br />

léxico-gramática, com o fito de alcançar o potencial semântico do<br />

sistema. Observando esse potencial de significado que é a língua,<br />

Halliday apud Gouveia (2009, p. 15) defende que<br />

acima dos sistemas linguísticos e dos falantes, uma realidade<br />

há, a linguagem, que cumpre certas funções, uma realidade<br />

que existe para potenciar possibilidades de uso e assim<br />

complementar outras capacidades humanas.<br />

É Halliday (1978, p.52) quem questiona “Como podemos tentar<br />

compreender a língua em uso?”. E acresce imediatamente a resposta:<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 37


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Olhando para o que o falante diz na relação com o que<br />

poderia ter dito, mas não disse, como uma atualização na<br />

envolvência de um potencial. Daí a envolvência ser definida<br />

paradigmaticamente: usar a língua significa fazer escolhas na<br />

envolvência de outras escolhas (HALLIDAY apud GOUVEIA,<br />

2009, p.22)<br />

Dessa forma, a LSF extrapola a mera enumeração dos usos da<br />

linguagem, preocupando-se em analisar a relação dialética que se<br />

estabelece entre os usos sociais da linguagem e o sistema linguístico.<br />

Abrangendo, então, funções mais abstratas de todas as línguas,<br />

Halliday propôs o termo metafunção da linguagem, aí se incluindo<br />

“interactuar con otros, representar e interpretar la experiência del<br />

mundo (externo e interno) y organizar y construir textos significativos<br />

em los contextos en que se emplean.” (GHIO; FERNÁNDEZ, 2008,<br />

p.23-24).<br />

Por seu caráter geral e abstrato e por ser a funcionalidade<br />

considerada um componente intrínseco à linguagem, Halliday (2004,<br />

p.31) utiliza o termo “metafunção”, esclarecendo que<br />

the entire architeture of language is arranged along functional<br />

lines. Language is as it is because of the functions in which is<br />

has evolved in the human species. The term ‘metafunction’ was<br />

adopted to suggest that function was an integral component<br />

with the overall theory.” 3<br />

3. a arquitetura total da linguagem é arranjada ao longo de linhas funcionais. Linguagem é como é por causa das<br />

funções nas quais ela se desenvolveu na espécie humana. O termo ‘metafunção’ foi adotado para sugerir que a<br />

função foi um componente integrante da teoria como um todo (tradução nossa).<br />

38 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

Assim, como metafunções básicas da linguagem, Halliday<br />

distingue a metafunção ideativa ou ideacional (organizada em duas<br />

sub-funções, a experiencial e lógica), a metafunção interpessoal e a<br />

metafunção textual. A metafunção ideativa ou ideacional encarregase<br />

da representação das experiências (sub-função experiencial), sendo<br />

esse conteúdo comunicativo organizado por meio de relações de<br />

conjunção, disjunção, causalidade etc (sub-função lógica).<br />

Já a metafunção interpessoal diz respeito aos papéis sociais que<br />

assumimos e impomos aos outros no momento da ação comunicativa,<br />

reveladoras de nossas atitudes, desejos, sentimentos, crenças e juízos<br />

(cf. GHIO; FERNÁNDEZ, 2008, p. 24).<br />

A partir do conhecimento das estratégias permitidas pelo<br />

sistema linguístico, selecionam-se os recursos que permitem organizar<br />

um texto coeso, e coerente à situação comunicativa, constituindose,<br />

assim, a metafunção textual a forma de organizarmos os nossos<br />

significados ideacionais e interpessoais, da forma mais adequada ao<br />

momento interativo e expondo o que é de relevância para o contexto.<br />

Para Halliday, visto dessa forma, como concretude da<br />

potencialidade sistêmica da língua, o texto engloba dois contextos<br />

extralinguísticos configurados no nível linguístico, correspondentes ao<br />

contexto de situação inserido no contexto de cultura, ficando a léxicogramática<br />

encarregada de realizar o nível semântico da língua (estrato<br />

de conteúdo), concretizada no nível de expressão. Assim, o contexto,<br />

o significado e a expressão verbal são perspectivas inseparáveis no<br />

momento de se descrever a linguagem.<br />

Para entender essa rede do sistema de dados desse contexto<br />

social, importa reconhecer as variáveis apresentadas por ele, as quais<br />

correspondem ao campo, ao modo e às relações. Ao falar-se em campo,<br />

envolve-se a atividade social que está sendo efetivada, a ação social, a<br />

natureza da ação; o modo diz respeito à modalidade de comunicação<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 39


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

usada, se escrita/gráfica ou oral/fônica, com uso de frases declarativas,<br />

interrogativas ou imperativas, constituindo a retórica da linguagem;<br />

e as relações compreendem os papéis sociais do falante/ouvinte e de<br />

como eles se relacionam na situação comunicativa.<br />

Essas variáveis ligam-se à função exercida pela linguagem, razão<br />

pela qual a língua é merecedora, assim, de um tratamento funcional,<br />

quando se defende a tese de serem analisadas “as estruturas das<br />

expressões linguísticas como configurações de funções, sendo cada<br />

uma das funções vista como um diferente modo de significação<br />

na oração” (NEVES, 1997, p.2). Ressalta-se, assim, que a análise<br />

linguística funcional de Halliday se preocupa em usar a compreensão<br />

da língua como sistema, ou seja, uma representação teórica da rede<br />

de paradigmas disponíveis da língua, mas extrapolando a noção<br />

de estrutura sintagmática, entendida como opções concretas de<br />

realizações linguísticas.<br />

A concretude dessa marca social da linguagem se dá por meio<br />

dos textos, como materialidade discursiva, no momento interativo.<br />

Dessa forma, a gramática da língua é moldável às circunstâncias do<br />

uso, voltada para escolhas na rede de sistemas da linguagem, sendo,<br />

assim, essa gramática é, prioritariamente, paradigmática, além de<br />

valorizar a questão sistêmica e visar ao funcional.<br />

A gramática hallidayana, portanto, analisa como a forma<br />

linguística escolhida importa na obtenção de efeitos distintos na<br />

mensagem, voltando sua atenção para a oração e para o texto. A<br />

oração interessa como realização dos significados (metafunções),<br />

construída a partir de escolhas (eixo paradigmático do sistema<br />

linguístico), constitutivas do nível profundo e abstrato da língua, e<br />

da cadeia sintagmática, a qual concretiza as realizações linguísticas.<br />

A dimensão dada ao texto pode ser analisada e interpretada sob<br />

dois pontos de vista distintos: texto como espécime, ou seja, objeto<br />

40 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

em si mesmo, como instrumento de análise do sistema linguístico;<br />

e texto como artefato, isto é, como produto autêntico da interação<br />

social, que deve ser analisado em seu contexto de cultura e em seu<br />

contexto de situação. É o texto como artefato que permite entender<br />

seu funcionamento, vê-lo como instanciação do sistema. Assim,<br />

busca Halliday analisar o texto, numa abordagem top-down, vendo<br />

o texto como<br />

uma progressão contínua de significados, em combinação<br />

simultânea como em sucessão. Os significados são as selecções<br />

feitas pelo falante das opções que constituem o potencial<br />

de significado; o texto é a actualização desse potencial de<br />

significado, o processo de escolha semântica (GOUVEIA,<br />

2009, p.18).<br />

Além de instanciação do sistema linguístico, o texto deve<br />

ser observado em contexto de cultura, isto é, reconhecendo que os<br />

significados construídos atrelam-se a motivações sociais e culturais,<br />

sendo a cultura de importância crucial para a significação, já que a<br />

atividade linguística é, prioritariamente, cooperativa e, nesse contrato<br />

de cooperação entre falante e ouvinte, impõem-se regras sociais,<br />

normas e convenções. Essa característica pragmática da construção<br />

do significado impede que se busque descrever a linguagem como fim<br />

em si mesma, mas revela a necessidade de descrevê-la subordinada<br />

ao uso que dela se faz e, consequentemente, com observância do<br />

contexto social específico de sua realização, o contexto de situação,<br />

resultando daí a concepção de Halliday sobre a função da linguagem<br />

como motivação discursiva.<br />

Considerando, pois, os textos como instâncias reais da língua,<br />

Halliday se preocupa em entender como o sistema da língua se<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 41


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

relaciona com eles, com enfoque nessa questão contextual. Isso<br />

implica focar o uso da língua como forma de interação entre<br />

os falantes, compreendendo e descrevendo sua estrutura em<br />

funcionamento, de forma que a língua seja vista como uma grande<br />

rede de opções inter-relacionadas entre si e ao contexto social, como<br />

rede de sentidos, como semiótica social, isto é, língua como sistema<br />

semântico-discursivo que representa o “potencial de sentido” de<br />

uma cultura.<br />

Dessa forma, a gramática sistêmico-funcional de Halliday leva<br />

em consideração questões relativas ao significado (semântica) e ao<br />

uso (aspecto funcional), sem desmerecer a existência de uma rede<br />

de sistemas que constitui a língua, entendida como um sistema de<br />

construção de significados. De outra forma, podemos dizer que, para<br />

Halliday, estudar a linguagem implica analisar a rede do sistema de<br />

dados do contexto social e a do sistema linguístico, elegendo o texto<br />

como unidade de comunicação discursiva, como forma linguística<br />

de interação social.<br />

Atrelado ao aspecto social, o sistema linguístico, por sua vez, é<br />

formado de subsistemas: semântico, léxico-gramatical e fonológico.<br />

É no subsistema semântico, constituinte de todos os significados<br />

das orações (clauses), que Halliday inclui as metafunções já<br />

apontadas como componentes da língua, constituindo elas um todo<br />

composicional, de caráter multifuncional.<br />

Voltando os aspectos teóricos da LSF para a análise do corpus<br />

selecionado, foi dado enfoque ao subsistema de transitividade,<br />

componente do sistema léxico-gramatical, sendo a transitividade<br />

observada como propriedade da oração, o que implica interferências<br />

de fatores que ultrapassam o âmbito do sintagma verbal (SV).<br />

Considerando, pois, que linguagem, texto e contexto, juntos, são<br />

responsáveis pela organização e desenvolvimento da experiência<br />

42 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

humana, o estudo das formas léxico-gramaticais se desenvolve em<br />

relação às suas funções sociais. A transitividade relaciona-se com a<br />

metafunção ideacional, ou seja, com a representação das ideias, da<br />

experiência humana do mundo real, exterior ou interior, de nossa<br />

consciência.<br />

Essa materialização se dá por meio dos tipos de processos<br />

(representados pelos verbos), permitindo que a gramática da oração<br />

denote um conjunto de tipos oracionais com diferentes transitividades,<br />

as quais permitem reconhecer e identificar as ações e as atividades<br />

humanas expressas no discurso. A análise dos papéis da transitividade<br />

implica observar os processos (o que faz – representado pelo verbo),<br />

quais os participantes (quem faz e a quem faz – representados pelos<br />

substantivos) e em que circunstâncias (representadas pelos advérbios).<br />

Os processos (SV) correspondem a elementos responsáveis por<br />

codificar ações, eventos, estabelecer relações, exprimir ideias e<br />

sentimentos, construir o dizer e o existir, incluindo-se no mundo<br />

físico, no mundo da consciência e no das relações abstratas. Quanto<br />

aos participantes (SN), eles identificam os elementos envolvidos<br />

no processo, de forma obrigatória ou não, recebendo denominações<br />

específicas para cada processo. As circunstâncias (advérbios ou<br />

SAdv.) correspondem a informações adicionais atribuídas aos<br />

diferentes processos, classificadas pelas condições e coerções a eles<br />

condicionadas.<br />

A análise dos tipos de processos de transitividade os distribui em<br />

processos principais, subdivididos em materiais, mentais e relacionais,<br />

e processos secundários, nos quais se distinguem os comportamentais,<br />

verbais e existenciais, estando os processos secundários em posição<br />

limítrofe aos processos principais.<br />

Os participantes são denominados a partir de sua postura no<br />

processo. Sendo assim, nos processos materiais, denominam-se Ator<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 43


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

aquele que faz a ação e Meta o elemento afetado pela ação. Como<br />

componentes opcionais, podem aparecer Extensão (especificação<br />

da ação, complementando-a), Beneficiário (beneficia-se da ação),<br />

Escopo, Recipiente e Cliente. Nos processos mentais ou processos de<br />

sentir, temos o Experienciador, sujeito consciente que experimenta<br />

um sentir, e o Fenômeno, que é o fato percebido. Nos processos<br />

relacionais, temos o Portador, como participante qualificado, e<br />

Atributo, que é a qualificação dada, além da Característica, atribuída<br />

a uma entidade definida, e do Valor, como termo definidor. Nos<br />

processos verbais, temos, como participantes, o Dizente, que<br />

corresponde àquele que diz, o Receptor, participante opcional, que<br />

representa a quem se diz, e a Verbiagem que consiste no que é dito.<br />

No processo existencial, temos apenas um participante, que é o<br />

Existente, e no processo comportamental, temos o Comportante,<br />

participante consciente, e o Behaviour, participante opcional que<br />

estende o processo.<br />

Dessa forma, analisar a transitividade, para a LSF, consiste<br />

em observar a seleção dos processos e dos participantes, além das<br />

circunstâncias que se atrelam aos processos. Essa análise do texto,<br />

numa perspectiva globalizante, é capaz de esclarecer como se deu a<br />

construção dos sentidos.<br />

O subsistema do modo oracional, incluído no subsistema léxicogramatical<br />

do sistema linguístico, consiste na observação da troca<br />

entre falante e interlocutor, num evento interativo, que faz com que<br />

papéis discursivos sejam adotados por um e atribuído a outro. Essa<br />

assunção de papéis se concretiza em escolhas de modalidade, entoação,<br />

determinados itens lexicais etc., que visam a deixar claro qual papel<br />

social se está assumindo e exigindo que o interlocutor assuma.<br />

A análise dos textos nos in-doors levou em consideração o fato<br />

de que todo ato discursivo é dialógico, no qual se pressupõe uma<br />

44 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

negociação entre falante e ouvinte, uma relação biunívoca entre<br />

dar e pedir informações ou bens e serviços. Dessa troca, resultam as<br />

quatro funções primárias das gramáticas das línguas naturais: oferta<br />

(dá) e ordem (pede), em que se trocam bens e serviços; e afirmação<br />

(dá) e pergunta (pede), quando se trocam informações. A função<br />

semântica de uma oração, na troca de informação (afirmação e<br />

pergunta), é uma proposição, que pode ser contestada. Já a troca de<br />

bens e serviços (oferta e ordem) corresponde, semanticamente, a<br />

uma proposta, e esta não pode ser negada nem afirmada.<br />

Nesse movimento interativo, a oração é reestruturada em<br />

função do contexto discursivo, permanecendo elíptica a parte<br />

pressuposta pelo contexto, denominada resíduo. Já a parte que<br />

congrega o argumento da oração e que, portanto, se apresenta<br />

afetada, é chamada de modo verbal e é nele que se manifesta a troca<br />

discursiva.<br />

Aplicando a teoria<br />

Em recentes idas ao Hospital Memorial São José, observou-se<br />

a utilização dos espaços externos dos elevadores do quarto andar, em<br />

número de três, em cada um dos quais se via um adesivo que recobria<br />

toda a porta. Foi despertado o interesse em analisar a parte verbal,<br />

desconsiderando-se a imagem de médicos e médicas, jovens, bonitos e<br />

sorridentes que, indubitavelmente, conduzem o leitor à determinada<br />

construção do significado, principalmente em face de serem comuns,<br />

em áreas hospitalares, apenas cartazes com solicitação de silêncio,<br />

avisos quanto a horários de visitas ou mesmo a proibição delas.<br />

Na busca pelo entendimento analítico da linguagem, é<br />

importante retomar-se o sistema de dados do contexto social,<br />

procurando traçar um perfil do contexto de cultura que se percebe nos<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 45


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

textos observados. Assim sendo, torna-se imprescindível lançar um<br />

olhar sobre a assistência à saúde, em nosso país, dever constitucional<br />

do Estado. No entanto, vemos os sistemas de saúde pública assumirem<br />

um papel de passividade, com raras exceções, o que só contribui para a<br />

sedimentação de uma imagem de descaso com o doente, proveniente<br />

tanto das posturas políticas das autoridades como das dos médicos,<br />

que, por sua vez, se veem obrigados a cumprir plantões subsequentes<br />

para conseguirem um rendimento que supra suas necessidades.<br />

Essas questões sócio-político-econômicas se refletem na qualidade<br />

da prestação da assistência médica, contribuindo para a instalação do<br />

ramo hospitalar como mercado econômico, possibilitando àqueles que<br />

têm melhor poder aquisitivo ter acesso a atendimento de qualidade,<br />

seja por meio de planos de saúde, seja por custeio próprio.<br />

Institui-se, então, a busca pela preferência na escolha dos<br />

“clientes”, acarretando uma mudança na identidade sócio-cultural<br />

dos pacientes, que se veem, muitas das vezes, como mera fonte de<br />

ganhos para os hospitais, importando não sua história de vida, mas a<br />

etiologia das queixas médicas apresentadas, que permitirá a solicitação<br />

de exames, por vezes desnecessários à formulação do diagnóstico, mas<br />

positivos como forma de amealhar recursos.<br />

Os familiares de pacientes se preocupam com o cuidado<br />

dispensado à saúde e o bem estar de seu ente querido. Dessa forma,<br />

buscam certificar-se de que o hospital oferece condições de bom<br />

atendimento profissional e humano. No entanto, comumente se veem<br />

que aspectos éticos e humanísticos são “esquecidos”, contando com a<br />

participação ativa e consciente de muitos dos médicos, que relegam<br />

a segundo plano o exercício da medicina como ato humano ativo e<br />

responsável, capaz de tornar social a clínica individual, pela sua postura.<br />

Esse pensamento encontra respaldo nas palavras de Susser (1987, p.<br />

188), que diz:<br />

46 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

A função da medicina, no nível social, é racionalizar e<br />

legitimar aquele que assume o papel social de doente. Doença,<br />

neste sentido, é um desvio em relação às normas vigentes no<br />

exercício cotidiano de papéis sociais [...] Os profissionais de<br />

saúde não são, como alguns gostam de ver a si próprios, neutros<br />

ou cientificamente imparciais no que tange a valores: eles são<br />

parte do sistema de controle social.<br />

Como o texto sofre impactuação desse contexto de cultura e<br />

também do contexto de situação, a análise efetivada demonstra o<br />

que é importante para os membros culturais inseridos nessa atividade<br />

dialógica (médicos, pacientes, familiares do paciente), percebendose<br />

estruturas linguísticas comuns ao contexto situacional (local e<br />

momento de consulta médica ou tratamento de saúde).<br />

Da leitura dos textos, percebe-se que o que aparenta ser uma<br />

preocupação com o serviço humanitário, na verdade, consiste numa<br />

promoção que a instituição, escamoteadamente, faz de si própria.<br />

Essa afirmação se alicerça no fato de que, nos textos, percebe-se o<br />

papel social atribuído à instituição e ao leitor, não coincidente com<br />

a figura do paciente. Representa-se o paciente como a não pessoa,<br />

ou seja, usando a referência à 3ª pessoa do singular. Torna-se claro,<br />

pelas opções lexicais, a identificação do autor do texto como sendo<br />

representante da instituição hospitalar, já que o autor se refere a si<br />

mesmo como a gente, nossos médicos, nossas instalações e máquinas,<br />

como se comprova nos excertos abaixo:<br />

Texto 1:<br />

Nem sempre a gente trata os pacientes pelo nome. Às vezes é<br />

pelo apelido.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 47


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Por isso nossos médicos tratam pessoas como pessoas, não como<br />

números.<br />

E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />

Texto 2:<br />

Nossos médicos também escutam os pacientes, sem o<br />

estetoscópio.<br />

Porque, pra gente, tão importante quanto ouvir os batimentos<br />

cardíacos deles é saber como eles estão se sentindo.<br />

E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />

Texto 3:<br />

Por mais que sejam modernas as nossas instalações e máquinas,<br />

existem diagnósticos que não podem ser observados apenas<br />

numa tela de computador.<br />

E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />

Por outro lado, vê-se que o autor só faz uma referência direta<br />

ao leitor, em todos os textos observados, na cláusula complexa final<br />

repetida “E é isso que faz a gente ser assim, humano como você”.<br />

O paciente, por sua vez, que deveria ser o tema da mensagem, se<br />

houvesse, realmente, uma intenção de priorizar a informação sobre<br />

ele, aparece como “os pacientes”, “eles”, “um paciente”, “deles” e<br />

“pessoas”. Essa opção concretizada pelo autor do texto é reveladora<br />

do fato de que o endereçamento dessa mensagem não se faz ao leitor/<br />

paciente, mas, muito provavelmente, a um leitor/familiar de paciente,<br />

já que a escolha lexical não deixa clara a posição do leitor como<br />

sendo alguém que assume a postura de doente e precisa da assistência<br />

oferecida pelo hospital, podendo ser, no entanto, os familiares ou<br />

amigos visitantes, sadios o bastante para lerem os textos e, a partir<br />

deles, pressuporem um serviço médico de qualidade e humanitário.<br />

48 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

Por essa retórica da linguagem se percebe o papel social que o<br />

autor se atribui e o papel social que ele atribui ao leitor, procurando<br />

estabelecer um relacionamento, naquela situação comunicativa,<br />

de aparente respeito e consideração da parte do falante/autor em<br />

relação ao paciente, correspondendo à metafunção interpessoal, pela<br />

qual o autor revela uma atitude de pretenso enaltecimento de sua<br />

humanidade e, portanto, da equiparação com a condição humana<br />

dos leitores.<br />

Dessas mesmas condições, emerge o gênero, por meio do qual<br />

se nota o uso da língua com estruturas adequadas ao propósito social<br />

e comunicativo do texto, determinado pelo falante/autor, que é<br />

propagandear os bons serviços do hospital. O campo, no contexto<br />

de situação apresentado, isto é, a atividade social efetivada, é<br />

dimensionado pela oferta de melhores serviços médicos. Para isso,<br />

a modalidade da comunicação escolhida foi escrita/gráfica, com<br />

uso exclusivo de frases declarativas, ora afirmativas ora negativas,<br />

constitutivas de uma oferta de informações, portanto, semanticamente,<br />

o autor apresenta proposições, cabendo, assim, ao leitor negá-las ou<br />

confirmá-las.<br />

Estruturada em cláusulas simples e complexas, pode-se perceber,<br />

de forma imbricada, nos textos analisados, a representação das<br />

experiências do mundo físico e do mundo mental do autor (metafunção<br />

ideacional). Essas experiências específicas do ambiente hospitalar e<br />

médico se revelam nas escolhas das lexias presentes nas orações:<br />

a. Nem sempre a gente trata os pacientes pelo nome. Às vezes<br />

é pelo apelido. (texto 1).<br />

b. Existe uma grande diferença entre auscultar e escutar um<br />

paciente. (texto 2).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 49


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

c. Nenhuma ressonância magnética consegue mostrar tudo que<br />

se passa na cabeça de um paciente. (texto 3)<br />

Utilizando-se de relações lógicas, o autor compôs seus textos<br />

usando conjunção, disjunção e causalidade para organizar o conteúdo<br />

comunicativo. Isso demonstra o conhecimento que tem o autor<br />

das opções que o sistema linguístico oferece, possibilitando que ele<br />

compusesse textos coesos e coerentes com sua intencionalidade<br />

comunicativa (metafunção textual), que é sua valoração como<br />

entidade hospitalar. Nos trechos a seguir, percebem-se, em destaque,<br />

tais relações.<br />

a. Paciente não gosta de ser chamado de paciente. Ele tem<br />

nome, família, hobbies, um trabalho. Pode ser que goste de<br />

futebol, de artes, de Bossa Nova, de novela. (conjunção)<br />

b. Essas coisas não dá pra saber, só preenchendo uma ficha<br />

(disjunção).<br />

c. Por isso (causalidade) nossos médicos tratam pessoas como<br />

(conjunção) pessoas, não como (disjunção) números.<br />

Outras informações, obtidas a partir dos dados do sistema<br />

linguístico, no corpus em análise, ligadas ao subsistema léxicogramático,<br />

foram trazidas pelo aspecto da transitividade das orações,<br />

diretamente relacionada com a função ideacional da linguagem.<br />

Analisando os processos, os participantes e as circunstâncias, foi<br />

possível perceber uma distribuição majoritária pelo uso de processos<br />

mentais, cujo experienciador ora é o paciente ora é a instituição. O<br />

resto da informação corresponde ao fenômeno experienciado.<br />

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APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

a. Paciente (experienciador) não gosta de ser chamado de<br />

paciente.<br />

b. Ele (experienciador) tem nome, família, hobbies, um trabalho.<br />

c. Pode ser que (ele - experienciador) goste de futebol, de artes,<br />

de Bossa Nova, de novela.<br />

d. Por isso nossos médicos (experienciadores) tratam pessoas<br />

como pessoas, não como números.<br />

Ainda no texto 1, percebem-se, também, processos relacionais,<br />

como no item d acima, no qual se percebe, no resíduo (como pessoas<br />

[são tratadas]), o participante “pessoas” funciona como portador e<br />

atributo.<br />

É importante que se destaque o fato de que, na cláusula<br />

complexa que encerra o texto, temos o processo relacional expresso<br />

pelo verbo “ser”, cujos participantes são o portador (a gente) e o<br />

atributo “humano como você (é humano resíduo)”. Esse uso do<br />

processo relacional colabora para a identificação do leitor com o autor,<br />

beneficiando-se o autor do texto da provável imagem positiva que cada<br />

um faz de si mesmo. Veja-se, também, que a presença da circunstância<br />

de modo “assim”, a qual atualiza o processo relacional, retoma as<br />

afirmações anteriores, enquanto a circunstância de comparação (como<br />

você) reforça o caráter interativo.<br />

De forma abreviada, pode-se dizer que, observando a<br />

transitividade presente nas cláusulas do texto 1, encontramos: processo<br />

mental de afeição: gostar (gosta, goste); de cognição: tratar, saber<br />

(trata, não dá pra saber), atrelado ao mundo da consciência; processo<br />

relacional: chamar, ter, ser (ser chamado, tem, é, ser), atrelado ao<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 51


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

mundo das relações abstratas; e processo material, com verbo criativo:<br />

preencher, fazer (preenchendo, faz), atrelado ao mundo físico.<br />

No texto 2, percebemos: processo existencial: existir (existe<br />

uma grande diferença), atrelado ao mundo das relações abstratas;<br />

processo verbal: conversar (pra conversar), atrelado ao mundo da<br />

consciência; e predomínio de processo mental: auscultar, ouvir (de<br />

percepção) – entre auscultar, ouvir os batimentos – escutar, saber<br />

(de cognição) – escutar um paciente, saber se sentem – precisar (de<br />

afeição) – precisam de alguém.<br />

No texto 3, na análise da transitividade, percebe-se a presença<br />

de processo material, com verbo criativo: mostrar, fazer e aparecer<br />

(consegue mostrar, faz, aparecem), atrelados ao mundo físico; processo<br />

mental: passar (de cognição), observar ( de percepção) e prestar (de<br />

afeição) – passa na cabeça, podem ser observados, prestar atenção –<br />

atrelados ao mundo do sentir, da consciência; e o processo existencial:<br />

existir (existem diagnósticos), atrelado ao mundo das relações<br />

abstratas.<br />

A análise global da transitividade do texto é esclarecedora<br />

da construção dos sentidos, quando se percebe, nos três textos, o<br />

predomínio de processos mentais, possibilitando detectar valores e<br />

desejos do autor dos textos analisados, já que esses processos ativam<br />

sentimentos e avaliações humanas. A diversidade dos processos<br />

mentais (de cognição, de percepção, de afeição) possibilitou retratar<br />

diferentes experiências, ajudando a construir o sentido do texto.<br />

Os experienciadores são representados por sintagmas nominais<br />

(SN) que representam uma classe profissional (médicos) ou a ela<br />

se relaciona (a gente, como sendo a instituição hospitalar), ou<br />

o paciente. É interessante observar que a colocação do paciente<br />

como experienciador desfoca a leitura feita, possibilitando que o<br />

leitor acredite ter sido o texto redigido para ser recebido por quem é<br />

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APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

paciente. A leitura mais atenta, no entanto, mostrou que o receptor<br />

pretendido é mais a coletividade que por ali passa e não apenas o<br />

paciente e que o reforço na afirmação da humanidade do hospital (a<br />

gente) busca conquistar o cliente mais pelo sentimento que pela razão.<br />

À guisa de comentários finais<br />

Aplicar os princípios teóricos da LSF aos textos selecionados<br />

foi um desafio dado a complexidade dos aspectos imbricados nesse<br />

fazer analítico. No entanto, não se pode considerar um trabalho<br />

investigativo completo por haver ainda muito mais a ser dito sobre a<br />

LSF. Esta análise permitiu ampliar novos olhares sobre a linguagem,<br />

considerando-a como o recurso para que o ser humano construa e<br />

interprete significados no seu meio social.<br />

Ficou claro que entender os fundamentos da LSF e deles partilhar<br />

é quebrar paradigmas pedagógicos, deixando de lado a visão do sistema<br />

da língua como imutável e homogêneo. Sem negar, logicamente,<br />

a importância do sistema linguístico, é vital para a interpretação<br />

perceber que o texto, como materialidade discursiva, é resultado de<br />

escolhas feitas pelo falante/autor, não podendo ser desmerecidas as<br />

razões de tais opções. É necessário vê-lo como representação de ideias<br />

que se entrelaçam com outros aspectos linguísticos e extralinguísticos,<br />

resultando, paradoxalmente falando, num emaranhado lógico. Ao<br />

sintaticista brasileiro, guiado pelos princípios teóricos de Halliday,<br />

cabe a difícil tarefa de entender esses meandros e buscar a descrição<br />

sistêmico-funcional da língua portuguesa.<br />

Tal façanha, indubitavelmente, permitirá entender que o uso da<br />

língua sempre está atrelado ao contexto, para construir significados,<br />

ou seja, é entender que é nas situações extralinguísticas que as<br />

realizações linguísticas se produzem, não podendo os significados<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 53


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

serem construídos à revelia de tal assertiva. Essa postura acarretará<br />

uma leitura não apenas mais proficiente mas também dificultará<br />

um entendimento enganoso, talvez intencionalmente pleiteado<br />

pelo autor/falante do texto. Isso contribuirá sobremaneira para o<br />

desenvolvimento do leitor/ouvinte crítico e tornará significativo o<br />

estudo da gramática sistêmico-funcional da língua, algo que o simples<br />

conhecimento da gramática normativa nem sempre consegue ser.<br />

Referências<br />

CUNHA, Maria Angélica Furtado da. SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />

contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

GHIO, Elsa. FERNANDEZ, Maria Délia. Linguística Sistêmico Funcional: aplicaciones a la<br />

lengua española.Santa Fé: Universidad Nacional Del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />

HALLIDAY, Michael.A.K. An introduction to funcional grammar. Londres: Hodder Arnold,<br />

2004.<br />

______. Language Structure and language function. In: LYONS, J. New horizons in<br />

linguistics. Harmondsworth: Peguin Books, 1970, p. 140-164.<br />

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />

SOUZA , Maria Medianeira de. A autoria em editoriais jornalísticos: uma abordagem<br />

sistêmico-funcional. Disponível na internet. Acesso em 10 jul 2011.<br />

SUSSER, Mervyn. Ethical components in the definition of health. In: Epidemiology, health &<br />

society – selected paper. New York: Oxfor University Press, 1987. Apud SOBRINHO, Délcio<br />

da Fonseca; PINTO, Itamar Tatuhy Sardinha. O impacto cultural da assistência médica e a<br />

queda da fecundidade no Brasil: um convite à ampliação dessa discussão. Disponível em<br />

www.abep.nepo.unicamp.br. Acesso em 19 jul 2011.<br />

54 l Anais Eletrônicos - 2011


APLICABILIDADE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL A IN-DOORS<br />

Ângela Maria TORRES Santos (<strong>UFPE</strong>/CNPq/NIG)<br />

Anexos<br />

Texto 01<br />

NEM SEMPRE A GENTE TRATA OS PACIENTES PELO NOME. ÀS VEZES É PELO<br />

APELIDO.<br />

Paciente não gosta de ser chamado de paciente. Ele tem nome, família,<br />

hobbies, um trabalho. Pode ser que goste de futebol, de artes, de Bossa<br />

Nova, de novela. Essas coisas não dá pra saber, só preenchendo uma ficha.<br />

Por isso nossos médicos tratam pessoas como pessoas, não como números.<br />

Texto 02<br />

EXISTE UMA GRANDE DIFERENÇA ENTRE AUSCULTAR E ESCUTAR UM<br />

PACIENTE.<br />

Nossos médicos também escutam os pacientes, sem o estetoscópio. Porque,<br />

pra gente, tão importante quanto ouvir os batimentos cardíacos deles é saber<br />

como eles estão se sentindo. Se sentem saudade de casa, da família. Se estão<br />

se sentindo bem, se precisam de alguém pra conversar.<br />

E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />

Texto 03<br />

NENHUMA RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CONSEGUE MOSTRAR TUDO QUE SE<br />

PASSA NA CABEÇA DE UM PACIENTE.<br />

Por mais que sejam modernas as nossas instalações e máquinas, existem<br />

diagnósticos que não podem ser observados apenas numa tela de<br />

computador. Às vezes eles aparecem durante uma conversa despretensiosa,<br />

uma volta pelo hospital, um gesto espontâneo. Prestar atenção nas pessoas<br />

faz toda a diferença.<br />

E é isso que faz a gente ser assim, humano como você.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 55


Resumo<br />

O objetivo deste artigo é fornecer, a partir do princípio da iconicidade e<br />

a teoria de foco, uma interpretação funcionalista sobre o fenômeno da<br />

não-concordância nas construções V SN. Partimos das hipóteses de que<br />

nas cláusulas de estrutura VS o termo que ocupa a posição de sujeito<br />

se reorganiza no nível sintagmático e se ressintaticisa, despindo-se de<br />

características prototípicas e assumindo parte do comportamento de<br />

objeto. Acreditamos também que a ordem V SN pode estar refletindo<br />

uma estrutura heterogênea, representando construções que manifestam<br />

alguma estratégia discursiva. Para as análise tomamos por base um corpus<br />

constituído por textos escritos, que são exemplares do monitoramento da<br />

língua, como textos publicados em jornais e outros documentos escritos.<br />

Serviram de parâmetro para as análises as pesquisas já empreendidas<br />

sobre a ordem sob diversas orientações teórico-metodológicas: Berlinck<br />

(1989 e 1997), Bittencourt (1980) Pedrosa (2004), Pontes (1986), Santos<br />

(1990) e Votre & Naro (1991).<br />

Palavras-chave: LSF. ordem verbo-sujeito, não-concordância,<br />

gramática e iconicidade.<br />

Abstract<br />

The main aim of this paper is to provide, from the principle of iconicity and<br />

the theory of focus, a functionalist interpretation of the phenomenon of<br />

non-concordance of V SN constructions. We started from the hypothesis<br />

that in VS structured clauses, the term which occupies the subject position<br />

is reorganized on the nominal level and “resyntaxes” itself, with no<br />

prototypical features and taking part of an object behavior. We also believe<br />

that the order V SN may reflect a heterogeneous structure, representing<br />

constructions which express a discursive strategy. For the analysis we<br />

took written texts for our corpus, which are copies of the monitoring of<br />

the language, such as texts published in newspapers and some other<br />

written documents. The following authors were the parameter for the<br />

research analysis, which were already taken for various theoretical and<br />

methodological approaches: Berlinck (1989 and 1997), Bittencourt (1980)<br />

Pedrosa (2004), Bridges (1986), Santos (1990) & Naro and Votre ( 1991).<br />

Keywords: vs order, non-concordance; grammar and iconicity.


As construções verbo-sujeito e o<br />

fenômeno da concordância em<br />

dados de língua escrita<br />

Introdução<br />

Cléber ATAÍDE<br />

(UFPB/UFRPE)<br />

O que e como ensinar da gramática nas aulas de Língua<br />

Portuguesa? Certamente, esta é uma pergunta que muitos professores<br />

se fazem perante as novas demandas pedagógicas. Não é de hoje<br />

que se discute o papel da gramática nas aulas de língua. Pesquisas e<br />

as nossas experiências têm mostrado o quanto são insatisfatórios os<br />

resultados de práticas pedagógicas centradas em exercícios apenas<br />

de classificação morfossintática das categorias linguísticas. A crítica<br />

aos estudos gramaticais em nossas escolas só tem razão porque é<br />

fragmentado o modo de conceber a gramática e de praticá-la. Há, de<br />

fato, falta de reflexão sobre o que realmente se está fazendo, quando<br />

estamos “fazendo gramática” do modo que fazemos.<br />

O caso da concordância sujeito/verbo, por exemplo, pode<br />

ser encontrado nos compêndios gramaticais como sendo um caso<br />

de excelência de domínio da norma-padrão do Português. Nesses<br />

manuais, é um consenso encontrar uma lista de convenções que<br />

regulam a concordância do verbo com as expressões em posição<br />

de sujeito. Nestes casos, há apenas nomeação de ocorrências em<br />

que o verbo deve concordar com o sujeito e pouco se explica sobre<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 57


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

a não-concordância em situações em que não acontece a posição<br />

prototípica 1 do sujeito.<br />

Sobre este fenômeno, construções em que sujeito é “posposto”,<br />

em ordem verbo/sujeito, o caso se complica. Primeiro, porque pouco<br />

se tem evidenciado essas ocorrências para estudo sistemático nos<br />

manuais escolares e, segundo, porque não há um tratamento adequado<br />

ou, pelo menos, mais criterioso na abordagem desses casos na sala<br />

de aula.<br />

Este estudo, portanto, procurará evidenciar a ausência/presença<br />

da marca explícita de plural nos verbos sob diferentes estruturas de<br />

organização no português, a saber:<br />

a) construções do tipo V + SN [+plural]<br />

Ex1: falta ao governo decisões corajosas e firmes.<br />

Ex2: Não importa as sucessivas decisões judiciais favoráveis<br />

ao pagamento.<br />

Sobre as construções acima, nota-se a ausência da concordância.<br />

Então, que explicação quanto à regra da concordância poderíamos<br />

atribuir a este enunciado? Como poderíamos justificar o “desvio” da<br />

norma-padrão nos contextos mais monitorados de língua escrita, como<br />

um jornal de publicação nacional? Será que esse tipo de desvio só<br />

poderia acontecer com falantes socialmente estigmatizados ou não<br />

1. Estamos nos referindo à posição mais convencionada do lugar de sujeito. Numa língua SVO como o português,<br />

a tendência é que primeiro enunciamos o item do qual vamos falar para, em seguida, predicarmos algo sobre<br />

este item que evocamos. Assim, nas cláusulas o elemento, em destaque por seu posicionamento à esquerda do<br />

verbo, assume necessariamente o status de referencial.<br />

58 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

conhecedores da gramática normativa? Alguns linguistas lançam a<br />

hipótese de que, numa análise sintática intuitiva, por uma decorrência<br />

da reanálise, o falante brasileiro reanalisa tudo o que vem depois do<br />

verbo como objeto e, assim, não teria razão a concordância verbo –<br />

sujeito. Nessa construção (falta ao governo decisões corajosas e firmes),<br />

um SN posposto ao qual se deveria atribuir função-sujeito é percebido<br />

como objeto e assumindo parte de seu comportamento sintáticosemântico.<br />

Essa pequena amostra e um conjunto de outros dados divulgados<br />

por sociolinguistas e funcionalistas brasileiros como, por exemplo,<br />

Bagno (2007), Scherre (2005), Martellota et. al. (1996), Furtado<br />

da Cunha (2007), Naro & Votre (1999) entre outros, parecem nos<br />

conduzir para a interpretação de que o fenômeno da não-concordância<br />

verbo/sujeito no Português do Brasil passa, em alguns casos, por<br />

estágio de mudança linguística, já que começa a configurar, com<br />

muita frequência, em dados da língua escrita mais monitorada, como<br />

já encontramos em artigos de jornais, dissertações de mestrado e<br />

outros documentos escritos. Temos, então, segundo Bagno (2007),<br />

um contraste evidente entre duas regras, uma prevista pela normapadrão<br />

e outra que é ativada pelo uso da língua falada por todos os<br />

brasileiros, inclusive os chamados “cultos”:<br />

NORMA-PADRÃO<br />

Não importam as sucessivas decisões<br />

judiciais favoráveis ao pagamento.<br />

REGRA INOVADORA<br />

Não importa as sucessivas decisões<br />

judiciais favoráveis ao pagamento.<br />

Na tentativa de explicar o contraste entre essas duas regras,<br />

queremos ajudar a explicitar respostas às seguintes questões: (i) por<br />

que, em alguns contextos mais monitorados da língua escrita no<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 59


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

português brasileiro, na ordem VS, o sujeito tende a não concordar<br />

com o verbo? (ii) que correspondência há entre a natureza sintáticosemântica<br />

do verbo e a ordem dos seus constituintes (sujeito e<br />

objeto)? (iii) o que determina a ordem VS e sua não-concordância no<br />

Português do Brasil. Dessa maneira, estaremos tentando distinguir o<br />

que teríamos como norma-padrão e norma-culta/variedade prestigiada<br />

do português brasileiro.<br />

Pensando nesta colaboração, aqui abordaremos esse fenômeno<br />

numa perspectiva das ideias do funcionalismo, apresentando,<br />

inicialmente, estudos já realizados sobre ordem VS; em seguida,<br />

explicitaremos os princípios básicos da linguística funcional que<br />

orientaram nossas análises: o processo de gramaticalização e o<br />

princípio da iconicidade. E, por fim, após expor as ocorrências desses<br />

casos no corpus de língua escrita, explicitaremos, sumariamente, os<br />

resultados de nossas análises.<br />

Pesquisas sobre as construções verbo-sujeito<br />

Vários fenômenos em variação no português brasileiro (PB) têm<br />

sido analisados pelos estudiosos da Linguística, porém, a questão da<br />

organização oracional SVO/ VS é um dos fenômenos morfossintáticos<br />

da gramática brasileira que tem sido estudado com mais precisão entre<br />

os linguistas de diferentes aportes teórico-metodológicos.<br />

O interesse desse fenômeno por parte dos linguistas brasileiros<br />

é comprovado pela vasta bibliografia produzida e disponível nos<br />

centros de pesquisa nos últimos anos. Dentre os trabalhos sobre o<br />

fenômeno, podemos destacar: Berlinck (1989 e 1997), Bittencourt<br />

(1980), Coelho (2000 e 2008), Costa (1995), Lira (1996), Pontes<br />

(1986), Santos (1990), Tarallo e Kato (1989) e Naro & Votre (1991).<br />

60 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

Em geral, os trabalhos sobre a posposição do sujeito contemplam<br />

e analisam os dados de língua oral, com exceção de Berlinck (1989 e<br />

1995), que traça o percurso diacrônico do uso das ordens SV/VS no<br />

português e aponta para a tendência de fixação da ordem SV como<br />

estrutura funcionalmente motivada nesta língua. Descrevemos agora,<br />

em linhas gerais, alguns desses estudos.<br />

Começamos por Bittencourt (1980), que apresenta uma análise<br />

baseada na teoria gerativista da ordem VS, considerando a importância<br />

da transitividade verbal. A autora acredita que a não-concordância<br />

nessas estruturas é motivada por verbos intransitivos e de ligação.<br />

Corroborando com os resultados de Bittencourt (1980)<br />

sobre os verbos intransitivos e de ligação nas construções VS, Lira<br />

(1996) acrescenta um dado. Ela revela que é mais provável que o<br />

sujeito posposto seja um sintagma nominal (SN) indefinido, novo<br />

e inanimado. Para a pesquisadora, outros contextos relacionados a<br />

características do sintagma nominal são favorecedores da ordem VS.<br />

Pontes (1986) faz um estudo da posposição do sujeito<br />

examinando textos escritos e orais, constatando que o uso desta<br />

construção discursiva se dá tipicamente com verbos apresentativos<br />

e existenciais e com sintagmas inanimados responsáveis pela função<br />

de veicular informação nova. A autora defende a ideia de que o SN<br />

posposto em construções monoargumentais é um objeto.<br />

Mais ou menos, na mesma linha de estudo, Santos (1990)<br />

apresenta uma perspectiva funcional do tratamento da ordem<br />

do sujeito e do verbo na sentença. Para isso, propõe um método<br />

laboviano e controla vários fatores de origem sintática e semânticodiscursiva,<br />

assim como fez Pedrosa (2004) em dados de língua falada<br />

em João Pessoa. Entre os fatores, há destaque para a ordem VS:<br />

os verbos intransitivos e de ligação (também apontados em outros<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 61


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

estudos) sujeitos nominais, oracionais e compostos, SNs sujeito<br />

com traços [–definido], [–animado], [–agente] e que carreguem<br />

informação nova.<br />

Numa perspectiva diacrônica, Berlinck (1989), investigando<br />

corpora correspondentes a três séculos: XVIII, XIV e XX, mostra a<br />

diminuição da ordem VS nos estágios mais recentes do português<br />

brasileiro. Esta autora faz uma análise baseada no fator também da<br />

transitividade, buscando comprovar a força dos fatores formais para<br />

essa variável. Nos resultados, o descréscimo do uso da ordem VS<br />

e a sua restrição a verbos de apenas um argumento nas sentenças<br />

declarativas evidenciam que a ordem V + SN dos constituientes na<br />

frase está atualmente mais fixa.<br />

Em Costa (1995), a categoria sintática sujeito é examinada<br />

sob as condições comunicativas. Neste estudo, a autora se propõe a<br />

fornecer subsídios teóricos para que o professor de português discuta<br />

esse tópico numa dimensão mais ampla, considerando os fatores<br />

discursivo-pragmáticos.<br />

Apresentadas algumas pesquisas das mais diferentes orientações<br />

teóricas, pretendemos agora explicitar, de modo geral, alguns<br />

fundamentos que utilizaremos para analisarmos o estudo do fenômeno<br />

da não-concordância verbo-sujeito. Então, vamos agora aos princípios<br />

do Funcionalismo.<br />

Pressupostos Funcionalistas<br />

As análises funcionalistas baseiam-se em pressupostos opostos<br />

aos princípios formalistas. O modelo da corrente funcional da<br />

linguagem está ancorado na ideia de que a língua é construída<br />

para fins comunicativos, para a interação. Assim, o contexto, o<br />

indivíduo e a sua natureza social são fatores que determinam no uso<br />

62 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

e, sobretudo, na estrutura de uma língua. Seguindo essa dimensão<br />

do olhar sobre a linguagem, torna-se consequente dizer que a língua<br />

reflete as motivações pragmático-cognitivas do falante. Isto é, a<br />

língua se constrói sobre as pressões de uso e está, de fato, sujeita a<br />

uma organização maleável e plástica do sistema, diferentemente dos<br />

pressupostos formalistas, para os quais a língua é percebida apenas<br />

pela forma, em sui Genesis.<br />

Assim, se pensarmos que a língua é um sistema estruturado a<br />

partir das necessidades e dos propósitos comunicativos do falante,<br />

então, podemos entender também que é, no discurso que se constrói<br />

a gramática desta língua. Portanto, a gramática é moldada pelo<br />

discurso, porque é nele que o indivíduo marca suas necessidades<br />

linguísticas e percebe as formas funcionais e as codificam pragmática<br />

e semanticamente.<br />

Considerando o Funcionalismo como corrente de análise, a<br />

concepção de gramática é vista como uma estrutura não estável que se<br />

adapta a pressões internas e externas que, continuamente, interagem<br />

e se confrontam (FURTADO DA CUNHA, 1999). Em linhas gerais,<br />

“a gramática deve ser vista como uma estrutura flexível, adaptativa e<br />

suas regras entendidas como não-arbitrárias, motivadas ou icônicas”<br />

(CHRISTIANO & HORA, 2004, p. 184). Em razão desse aspecto,<br />

o Funcionalismo explica a organização da gramática e a codificação<br />

linguística das estratégias gramaticais com base em princípios de<br />

natureza cognitiva e comunicativa.<br />

A mudança linguística e a gramaticalização<br />

Para os princípios centrais do Funcionalismo, o processo de<br />

mudança na língua são explicados, segundo Silva (2006, p. 66)<br />

por dois tipos de pressões que atuam sobre a gramática, o que,<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 63


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

consequentemente, desencadeia a formação de um conjunto de<br />

regularidades que são: (1) as pressões cognitivas – em decorrência da<br />

interpretação realizada pelo usuário, a mente organiza as informações,<br />

predominando o aspecto regularizador das estruturas; e (2) as pressões<br />

de uso – responsáveis pela geração das irregularidades, consequência<br />

do aspecto criativo do discurso, o que possibilita a variação no sistema.<br />

Esse conjunto de irregularidades alimenta a dinamicidade da<br />

língua e fomenta as mudanças que afetam a gramática e as línguas<br />

naturais em geral. Segundo Martelotta, Votre & Cezário (1996)<br />

esse processo também tende a processar, de maneira gradiente, a<br />

abstraticidade da gramática em níveis:<br />

(i) cognitivo: processo pelo qual há mudança metafórica de<br />

um elemento do mundo do léxico que migra para um mundo<br />

mais abstrato, da gramática;<br />

(ii) pragmático: a mudança manifesta-se a partir do propósito<br />

comunicativo do falante, que, ao tentar facilitar a compreensão<br />

do ouvinte, utiliza-se de formas para expressar ideias novas,<br />

conceitos mais concretos e mais, efetivamente, conhecidos.<br />

(iii) semântico: é acionado quando falante explicita um<br />

sentido novo para o ouvinte, baseando-se em significados<br />

mais fixados.<br />

(iv) sintático: acontece quando o processo de mudança<br />

linguística é estimulado por certos contextos sintagmáticos<br />

que pressionam e explicam o rumo dessa mudança.<br />

Pode-se afirmar que a análise funcionalista examina a<br />

competência comunicativa, considerando as estruturas das expressões<br />

linguísticas como em um quadro de funções, no qual cada função é<br />

vista como um diferente modo de significação na oração; portanto,<br />

paralelamente à noção de que a linguagem é um instrumento de<br />

64 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

comunicação, encontra-se, no Funcionalismo, um tratamento<br />

funcional da própria organização interna da linguagem.<br />

É nesse contexto que se encaixam os estudos sobre gramaticalização.<br />

A gramaticalização é um tipo especial de mudança linguística situada no<br />

continuum que se estabelece entre unidades independentes e unidades<br />

dependentes tais como clíticos, partículas auxiliares, construções<br />

aglutinativas e flexões. Lehmann (1982) denomina gramaticalização<br />

como o processo que consiste na passagem de um item lexical para um<br />

item gramatical.<br />

Heine e Reh (1984) apud Castilho (1997), por sua vez, conceituam<br />

gramaticalização como “uma evolução na qual as unidades linguísticas<br />

perdem em complexidade semântica e em substância fonética”.<br />

Castilho (1997) a define como:<br />

o trajeto empreendido por um item lexical, ao longo do<br />

qual ele muda de categoria sintática (=recategorização),<br />

recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações<br />

morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma<br />

livre, estágio em que pode até mesmo desaparecer, como<br />

consequência de uma cristalização extrema.<br />

Enfim, a gramaticalização é fruto da utilização da língua e da<br />

necessidade comunicativa do falante no momento da interação verbal.<br />

Para efeito de aplicação desses estudos, tomaremos aqui o princípio<br />

de gramaticalização como<br />

o processo pelo qual itens lexicais e construções gramaticais<br />

passam, em determinados contextos linguísticos, a servir a<br />

funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam<br />

a desenvolver novas funções gramaticais (HOPPER &<br />

TRAUGOTT, 1993).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 65


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Dessa forma, a gramaticalização é um processo pelo qual busca<br />

explicar as mudanças que se dão no interior da própria gramática,<br />

compreendendo, sobretudo, os processos sintáticos e/ou discursivos<br />

de fixação da ordem vocabular (FURTADO DA CUNHA, 1999).<br />

O princípio da iconicidade e o aspecto discursivo de<br />

focalização<br />

Os estudos de Naro e Votre (1991) sobre as motivações<br />

discursivas para a regularidade da ordem VS no português do Brasil<br />

destacam os princípios da iconicidade na língua. Em termos sumários,<br />

esse princípio é compreendido como a correlação naturalmente<br />

motivada entre o código linguístico e seu significado, ou seja, entre<br />

forma e função.<br />

Esse princípio se manifesta em três subprincípios: (i) de<br />

quantidade de informação (quanto maior a quantidade de informação,<br />

maior a quantidade de forma); (ii) do grau de integração entre os<br />

elementos constituintes da expressão e do conteúdo (esse aspecto<br />

prevê que quanto mais próximo os conteúdos estiverem, mais<br />

integrados eles estarão do ponto de vista cognitivo em relação ao<br />

nível da codificação); (iii) da ordenação dos itens lexicais na oração.<br />

Este último subprincípio compreende que a informação mais<br />

importante ou mais acessível tende a configurar o lugar de destaque<br />

na organização sintática, de modo que, segundo Furtado da Cunha<br />

e Tavares (2007), a ordem dos elementos no enunciado tem a ver<br />

com a relação entre a importância ou acessibilidade da informação<br />

veiculada pelo elemento linguístico e sua colocação na oração. No<br />

âmbito discursivo, ao selecionar a posição pós-verbal, o locutor dá<br />

destaque ao sujeito por considerar a informação que o termo carrega<br />

relevante. Logo, o falante ordena os elementos sentenciais da língua<br />

66 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

e organiza discursivamente as informações a partir de seus objetivos<br />

sociocomunicativos, adequando as sentenças às necessidades do<br />

receptor.<br />

Não diferente do princípio de iconicidade, em estudo mais<br />

recente, Martelotta & Frederico (2009, p. 4) discutem a ideia de<br />

focalização. Para os autores,<br />

foco é definido como “uma proeminência especial, de<br />

caráter semântico-pragmático, atribuída a um determinado<br />

elemento (palavra, sintagma, cláusula), por entonação ou<br />

outros processos, para representar esse elemento como mais<br />

importante, informação nova ou como um dado de contraste.<br />

Essa estratégia, segundo os autores, tem muito a ver com o grau<br />

de previsibilidade dos elementos componentes da cláusula, em função<br />

dos modos como veiculam o mecanismo de focalização e essa é uma<br />

característica da teoria da gramaticalização.<br />

Os autores afirmam que a estratégia de foco é uma tendência<br />

atual da perspectiva funcionalista e tem sido bastante analisada em<br />

“termos de mecanismos essencialmente informacionais, que envolvem<br />

ordenação vocabular, topicalização, construção clivada e pseudoclivada,<br />

sempre levando em conta a acessibilidade referencial que o<br />

falante julga que o ouvinte tem acerca desses pedaços de informação<br />

(cf. GIVÓN, 1990; LAMBRECHT, 1994; ROOTH, 1996)”.<br />

Destacamos aqui o processo de focalização, porque acreditamos<br />

ser um conceito relevante para tentar entender as estratégias<br />

utilizadas pelo falante para não fazer a concordância com o verbo<br />

quando o sujeito está pós-posicionado. Adotamos aqui essa proposta,<br />

adaptando-a a nossos dados e selecionamos apenas as que nos<br />

pareceram mais relacionadas aos usos da ordem VS.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 67


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Alguns resultados<br />

Quando construímos qualquer texto, em geral, a tendência<br />

é que primeiro enunciemos o item do qual vamos falar para, em<br />

seguida, predicarmos algo sobre este item que evocamos. Assim, nas<br />

cláusulas, o elemento em destaque por seu posicionamento à esquerda<br />

do verbo, assume necessariamente o status de referencial ou de tópico<br />

do discurso. Vejamos o exemplo extraído do corpus de língua falada<br />

do projeto Variação Linguística da Paraíba (VALPB):<br />

(01): [...] Mamãe tava fazenøo uma casa atráys, pra minha outra irmã, aí minha<br />

irmã pegou meu sobrinho e botou, né? pendurou ele (falando rindo) no banco,<br />

pendurou ele no pau da casa e ficou balançanøo, + ela botou e a gente ficou<br />

balançanøo, né? +[...].<br />

Em (01), a predicação acontece em torno de “mamãe e minha<br />

irmã”, sendo estes termos sujeitos e tópicos do enunciado. Os termos<br />

constituintes são codificados inicialmente e ocupam uma posição de<br />

destaque na construção. Neste exemplo, a concordância prevalece<br />

na fala e é estimulada pela ordem direta sujeito/verbo/complemento.<br />

Além de estarem em posição convencionada e destacada, os termos<br />

“mamãe” e “irmã” mantêm relações sintáticas com os verbos “tava<br />

fazendo” e “pegou” e, portanto, são categorizados como sujeito.<br />

Há contextos, no entanto, em que o falante prefere outra<br />

ordenação dos constituintes no texto. O enunciado abaixo, também<br />

extraído do VALPB, exemplifica essa outra forma de organização<br />

linguística do português brasileiro:<br />

68 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

(02): O jovem o jovem o jovem dito, né? Assim dos dezenove, até os vinte<br />

três anos o:: pra ele só existe, [do] duas coisas, né? Pra pra uma boa parte<br />

existe drogas e sexo.<br />

Verifica-se, nessa construção, que o informante não realiza<br />

a correlação entre o verbo e o sujeito. O contexto em que gera a<br />

ausência da concordância é a posição deslocada do sujeito, duas coisas<br />

e drogas e sexo, para depois do verbo e a natureza transitiva desse<br />

verbo, neste caso um existencial. Quando o sujeito está posposto,<br />

a concordância entre esse tipo de verbo e o SN plural não é tão<br />

prevalecente, principalmente na oralidade. Mas esse fato também se<br />

faz presente em contextos de língua mais monitorados, como ocorre<br />

abaixo, em trecho retirado de jornal e já utilizado por Marcos Bagno<br />

(2007) em seu livro Nada na língua é por acaso:<br />

(03): “Falta ao governo FH decisões corajosas e firmes, principalmente contra<br />

os partidos que o apóiam”. (O Estado de São Paulo, 17/09/1995, A-2, c. 2).<br />

Na língua cotidiana, este tipo de concordância é bastante<br />

comum, sendo comprovada por dezenas de pesquisas realizadas<br />

em português. No exemplo (03), a falta de concordância entre<br />

decisões corajosas e firmes e seu verbo “falta” parece ser motivada<br />

pela ordenação não-tópica da estrutura VS. Neste caso, o verbo da<br />

cláusula é a base da predicação, de forma que tudo o que estiver<br />

à sua direita é interpretado como não-tópico. Neste caso, também<br />

está em jogo a transitividade do verbo faltar. No exemplo, o sujeito<br />

tende a ser não-tópico, podendo mesmo ser reanalisado como objeto.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 69


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Votre & Cezário (1996, p.116) afirmam que a ordenação entre o<br />

verbo e o sujeito representa “o resultado de um processo metonímico<br />

de mudança na ordenação vocabular em que o resultado é marcado<br />

em relação à ordem canônica sujeito-verbo”.<br />

Vejamos a ordenação de verbo-sujeito abaixo:<br />

(04): [...] lembramos que pode ser codificada as relações semânticas do<br />

argumento com o predicador... (dissertação de mestrado).<br />

Observa-se que o sujeito posposto “relações semânticas dos<br />

argumentos com o predicador” se distancia do verbo. Votre e Cezário<br />

(1996, p.116) dizem que, nestes casos, o termo o sujeito passa ocupar<br />

a posição não marcada de objeto e assumir parte do comportamento<br />

do objeto. Ainda segundo esses autores, o verbo também se despe de<br />

suas características de predicador central e, assim, pode se tornar um<br />

“mero portador das marcas de tempo e aspecto, sem conteúdo lexical<br />

definido no contexto da comunicação”, como ocorre nos exemplos<br />

(05) e (06), com verbos copulares:<br />

(05): Para tal arte foi necessário batedores. (Correios da Manhã, 3/05/1995, p.<br />

4, c.1. In Scherre, 2005, p. 132).<br />

(06): Está em jogo mais de 60 por cento das exportações portuguesas. (Diário<br />

de Notícias, 22/07/1996, p. 5, c. 1. In Scherre, 2005, p. 132).<br />

Em (07), o fenômeno da não concordância pode ser explicado<br />

pelo subprincípio da iconicidade, da integração das expressões, uma<br />

70 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

vez que o processo é estimulado por certos contextos sintagmáticos<br />

que pressionam e explicam o fenômeno, V[C+]S.<br />

(07): as expressões selecionadas que ocupam a posição de sujeito não têm<br />

nenhuma significação para os enunciados em estudo e não revela nenhuma<br />

manifestação pragmática... (dissertação de mestrado).<br />

Nota-se que a pouca proximidade entre o sujeito e o verbo<br />

evidencia uma não-concordância. Observa-se, na organização espacial<br />

do enunciado, que o sujeito “as expressões selecionadas” e o verbo<br />

“revela” encontram-se distanciados. A interrupção da sequência<br />

discursiva dificulta e enfraquece a integração entre o sujeito e o<br />

predicado, tendendo a não fazer a flexão verbal que normalmente<br />

ocorre em estruturas sintáticas mais adjacentes.<br />

Outra situação idêntica acontece em, mas agora com um verbo<br />

de cópula:<br />

(08): De fato, é bastante presente nas histórias das línguas essas duas camadas<br />

de uma dinâmica [...]” (texto produzido por estudante de Letras da Universidade<br />

de Brasília. In Bagno (2007, p. 110).<br />

Em (09) e (10), o falante parece ordenar os elementos<br />

sentenciais e organiza discursivamente as informações segundo seus<br />

objetivos comunicativos, adequando as sentenças às necessidades do<br />

interlocutor.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 71


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

(09): Ainda não se sabe como será conduzida as negociações sobre o destino<br />

da política salarial na reunião que o presidente Itamar Franco convocou para<br />

amanhã à tarde no Palácio do Planalto (Correio Braziliense, 18/07/1993, p. 3,<br />

c. 2. In Bagno (2007, p. 109).<br />

(10): Há pouco tempo atrás dois bárbaros assassinatos, o da atriz Daniela Perez<br />

e o da menina que foi queimada pelos seqüestradores ressuscitou a polêmica<br />

da Pena de Morte (Corpus D&G, p.321).<br />

Algumas palavras finais<br />

Sendo a língua uma atividade essencialmente social e<br />

condicionada por pressões no uso cotidiano das mais diversas<br />

situações, são aceitáveis as transformações dos itens e das estruturas<br />

linguísticas. Nesta perspectiva, parece que fica fácil admitir e<br />

compreender as várias mutações que ocorreram e vêm ocorrendo<br />

ao longo da história das transformações linguísticas.<br />

Considerando que o processo de gramaticalização é um<br />

fenômeno em que as construções aparecem em certos contextos<br />

linguísticos, adquirem novas funções e continuam se gramaticalizando,<br />

podemos arriscar dizer que a não-concordância do SN plural<br />

posposicionado com alguns tipos de verbos (existencias, copulares,<br />

monoargumentais) tende a se regularizar na gramática do português<br />

brasileiro, se entendermos que, como afirmam Furtado da Cunha,<br />

Costa & Cezário (2003, p. 50):<br />

na trajetória dos processos de regularização do uso da língua,<br />

tudo começa sem regularidade, exatamente por estar no<br />

72 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

seu começo, mas se regulariza com o uso, com a repetição,<br />

que passa a exercer uma pressão tal que faz com que o que<br />

no começo era casuístico se fixe e se converta em norma,<br />

entrando na gramática.<br />

No entanto, é claro que nossas afirmações se baseiam em<br />

hipóteses ainda não totalmente confirmadas. Embora haja, sem<br />

dúvida, a necessidade de aprofundamentos teórico-metodológicos<br />

para relacionar os fatores de natureza gramatical com os de natureza<br />

discursiva para melhor compreender o fenômeno da não-concordância<br />

nas construções V + SN, acreditamos, mesmo que sumariamente, nos<br />

resultados aqui apresentados, em consonância com outras pesquisas<br />

já apresentadas sobre ordem.<br />

Referências<br />

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística.<br />

São Paulo: Parábola Editorial, 2007.<br />

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Anais Eletrônicos - 2011 l 73


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

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de mestrado).<br />

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da gramática em sala de aula: análise de textos orais e escritos. 2007. (mimeo).<br />

GIVÓN, Talmy. Funcionalism ad grammar. Amsterdam: John Benjamins, 1995.<br />

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In: TRAUGOTT, E. C. and HEINE, B. (eds.). Approaches to grammaticalization. Amsterdam/<br />

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v.1. 1982.<br />

LIRA, Solange A. (1996). Subject posposition in Portuguese. Nova York, Peter Lang, 1996.<br />

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Tempo Brasileiro: UFRJ, Departamento de Linguística e Filologia.<br />

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Brasil: estratégias de focalização. In: JACOB, Daniel (ed.) Syntaxe, structure informationnelle<br />

et organisation du discours dans les langues romanes. (mimeo).<br />

74 l Anais Eletrônicos - 2011


AS CONSTRUÇÕES VERBO-SUJEITO E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA<br />

EM DADOS DE LÍNGUA ESCRITA / Cléber ATAÍDE (UFPB/UFRPE)<br />

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2004.<br />

PONTES, Eunice Souza Lima. Sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática, 1986.<br />

SANTOS, Maria Beatriz G. dos. Aspectos da alternância SV/VS no português coloquial. Belo<br />

Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1990. (Dissertação de mestrado).<br />

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia<br />

e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.<br />

NARO, A. & VOTRE, S. A base discursiva da ordem verbo-sujeito em Português. Rio de Janeiro:<br />

Faculdade de Letras da UFRJ, 1991.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 75


Resumo<br />

Este artigo trata de uma análise comparativa dos morfemas classificadores<br />

em Sabanê, Mamaindê e Lakondê, línguas indígenas aparentadas<br />

geneticamente que compõem parte da família linguística Nambikwara.<br />

Trata-se desse assunto sob uma perspectiva funcional da linguagem e suas<br />

implicações teóricas para o estudo de línguas ágrafas. A partir da descrição<br />

do morfema derivacional de classificação, que atua na diferenciação de<br />

seres/objetos semelhantes, destacando algo que lhes é inerente, faz-se<br />

um estudo de algumas de suas funções sintático-semânticas em nível da<br />

sentença. Os morfemas classificadores apresentam-se de modo menos<br />

produtivo em Sabanê e são mais numerosos e produtivos em Mamaindê e<br />

Lakondê, mas desempenham funções morfossintáticas semelhantes. Nas<br />

três línguas, os classificadores funcionam como modificadores de nome,<br />

substitutos anafóricos e nominalizadores verbais.<br />

Palavras-chave: Classificadores, Sabanê, Mamaindê, Lakondê.<br />

Abstract<br />

This article is about a comparative analysis of classifiers morphemes in<br />

Sabanê, Mamaindê and Lakondê, genetically closely related aboriginal<br />

languages ​that constitute part of Nambikwara family language .We<br />

deal with this subject from a functional perspective of language and its<br />

theoretical implications for the study of unwritten languages. From the<br />

description of the derivational morpheme classification, which acts on the<br />

differentiation of similar beings / objects, emphasizing something that is<br />

inherent to them, it is a study of some of its syntactic-semantic functions<br />

from the sentence level. The classifier morphemes are presented in a less<br />

productive in Sabanê and are more numerous and productive in Mamaindê<br />

and Lakondê, but play similar morphosyntactic functions. At these three<br />

languages, the ​classifiers act as modifying the noun, verbal nouns and<br />

anaphoric substitutes.<br />

Keywords: classifiers; morphosyntactic functions; indigenous languages


Um estudo dos classificadores<br />

nas línguas indígenas Sabanê,<br />

Mamaindê e Lakondê<br />

Edney Alexandre de Oliveira BELO<br />

(<strong>UFPE</strong>)<br />

Lista de Abreviações:<br />

NCL – classificador<br />

REF – referencial<br />

HEMI – hemisférico<br />

FNS – sufixo nominal final<br />

TRID. – tridimensional<br />

RED. – redondo<br />

OBL. – oblongo<br />

FLX. – flexível<br />

AN. – animado<br />

DECL. – declarativo<br />

GNT – genitivo<br />

DES – desiderativo<br />

IMP – imperfectivo<br />

Imp – imperativo<br />

Asser. – assertivo<br />

PRS ou Pres – presente<br />

– morfema zero<br />

Poss. – posse<br />

1 – primeira pessoa<br />

2 – segunda pessoa<br />

3 – terceira pessoa<br />

PAC ou PASS – paciente<br />

S – sujeito<br />

Irr. – irrealis<br />

Suf – sufixo<br />

p ou PS – pessoa<br />

Link – morfema de ligação<br />

n – sufixo verbal *<br />

* Alguns itens possuem abreviação diferente por escolhas dos pesquisadores.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 77


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Apresentação<br />

As categorias gramaticais dos classificadores, objeto de estudo<br />

deste artigo, são apresentadas a partir de um estudo dos morfemas<br />

derivacionais constantes nos trabalhos de composição de gramáticas<br />

de línguas indígenas Nambikwara feitos por Gabriel Antunes<br />

de Araújo, em sua tese de doutorado A Grammar of Sabanê: a<br />

Nambikwaran language, de 2004, David M. Eberhard em sua tese<br />

Mamaindê Grammar: A Northern Nambikwaran Language and its<br />

cultural context, de 2007 e Stella Telles, com a tese The Phonology and<br />

Grammar of Latundê/Lakondê, 2002.<br />

Este estudo não pretende, por sua vez, discutir questões teóricas<br />

acerca dos morfemas derivacionais em questão, mas promover uma<br />

primeira investigação no que diz respeito à ocorrência desses morfemas<br />

em fenômenos observados, e, por meio da comparação entre línguas,<br />

constatar semelhanças em nível da morfossintaxe e da semântica.<br />

Os classificadores são uma característica da família Nambikwara,<br />

sendo bastante produtivos e relevantes para a morfologia dessas<br />

línguas. São descritos como morfemas que se ligam a raízes nominais<br />

atribuindo-lhes características próprias de sua forma, substância ou<br />

criando novos itens lexicais. Segundo Gabriel Antunes, num artigo<br />

intitulado Classificadores em Sabanê, a língua Sabanê conta com um<br />

total de sete classificadores, número menor que o da maioria das<br />

línguas Nambikwara estudadas, sendo também menos produtiva:<br />

Apesar do sistema de classificação da língua Sabanê não possuir<br />

a mesma produtividade dos sistemas da língua da mesma família,<br />

os sabanê reconhecem-no como uma parte de sua gramática,<br />

pois são capazes de identificar os morfemas e até mesmo<br />

explicitar sua relevância semântica (ANTUNES, 2004).<br />

78 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

O Mamaindê conta com vinte e quatro morfemas classificadores,<br />

largamente encontrados e produtivos na língua. Em Mamaindê,<br />

os nomes são tipicamente classificados de acordo com atributos<br />

físicos. Isto inclui características de forma de seres/objetos sólidos<br />

(arredondados, lisos, finos, etc.) e estado físico de entidades não-sólidas<br />

(pó, líquido). Outros se definem por sua função (casa, continente), e<br />

outros por critérios mais abstratos (tempo, lugar, gênero, etc). Alguns<br />

nomes carregam classificadores obrigatórios e vários outros, não.<br />

Apenas quando mudam significado de base eles são obrigatórios. Em<br />

outras instâncias, os classificadores são redundantes e opcionais.<br />

Nessa língua, segundo Eberhard (2007), os classificadores<br />

funcionam mais como adjetivos, sendo formas compostas presas a<br />

raízes para explicá-las de maneira mais precisa quando a raiz, por si<br />

só, não especifica o item em questão 1 . Os classificadores, assim, são<br />

necessários em diversas construções.<br />

Em Lakondê, distinguem-se oito tipos de morfemas classificadores<br />

que acontecem por afixação, designando propriedades físicas de<br />

aparência do referente, ao qual se ligam, como consistência ou forma.<br />

Esses morfemas se assemelham aos sufixos derivacionais e não se tratam<br />

de formas livres. Segundo Stella Telles (TELLES, 2002),<br />

Embora os sufixos em questão não resultem em mudança de<br />

categoria lexical, nos moldes tradicionalmente observados nos<br />

processos derivacionais de línguas europeias, eles têm outras<br />

características tipicamente derivacionais, tais como: são formas<br />

presas, são opacos semanticamente – sua origem lexical não<br />

pode ser recuperada –, são mais lexicais do que gramaticais, não<br />

são obrigatórios, seu escopo é unicamente o núcleo nominal,<br />

não operando em nível da morfossintaxe.<br />

1.Tradução própria<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 79


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Também a esse respeito nos esclarece o linguista (EBERHARD,<br />

p. 336, 2007) que:<br />

A forma independente desse pequeno grupo de formas<br />

poderia sugerir que eles pudessem alternativamente ser<br />

vistos como raízes nominais que podem funcionar como<br />

classificadores. Ou, ao invés, ser afixados a outros nomes<br />

num estilo de composição. O que não é verdade, pois a<br />

maioria deles nunca ocorre sem um nome, ou algum nominal<br />

referente 2 .<br />

Os classificadores na língua Sabanê<br />

Em Sabanê, há sete tipos diferentes de classificadores, que<br />

denotam propriedade física de acordo com a forma ou consistência<br />

do conceito ao qual um dado nome se refere. De qualquer forma<br />

eles não são atributivos e não servem para discriminar entre coisas e<br />

objetos e são opcionais, apesar de muito frequentes.<br />

O mais frequente classificador é –akata que se refere a objetos<br />

longos e feitos em madeira, tridimensionais. O classificador –isi se<br />

refere a objetos que têm a forma redonda, oblongos ou ovais. O<br />

classificador –iawa designa objetos em forma de meia lua, enquanto<br />

–amoka diz elementos de forma larval ou em forma de serpente. O<br />

classificador –api se refere a objetos em forma de fio, corda, fibra.<br />

Mas, diferente dos outros ele é compulsório. –inun que se refere a<br />

substâncias em forma de pó ou trituradas, amassadas. O classificador<br />

–anon se refere a formas hemisféricas. Estes morfemas ocupam uma<br />

posição relativamente livre na oração. Logo após a raiz nominal, ou<br />

imediatamente anterior ao sufixo referencial (REF). Exemplo:<br />

2.Tradução livre<br />

80 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

(1)<br />

– –<br />

perna –NCL:Longo –REF<br />

‘perna’<br />

Os classificadores na língua Mamaindê<br />

Os classificadores em Mamaindê assemelham-se aos de<br />

Sabanê, e são obrigatórios quando modificam o significado de base.<br />

São sufixados a uma raiz nominal e seguidos de um sufixo nominal<br />

final 3 com valor referencial. Para Eberhard (2007), esses morfemas<br />

funcionam muito mais como adjetivos.<br />

Dos vinte e quatro classificadores de Mamaindê, identificamse<br />

alguns semelhantes aos morfemas classificadores em Sabanê, que<br />

caracterizam itens quanto à forma ou à substância. São eles: –kalo,<br />

que identifica objetos lisos e espessos, –tHa(n? que identifica objetos<br />

com formato de folha, finos/unidimensionais, –kani(n para objetos<br />

redondos e esféricos, –kHat? relacionados aos finos e compridos, –<br />

tHu( e –nu( para substâncias como pó, pasta ou granulados, –teh e<br />

–leh para os objetos com formato de fio, dobráveis. Segue exemplo:<br />

(2)<br />

ih –kalo –tu<br />

Correr –NCL.LISO –FNS<br />

‘Coisa lisa que corre/Automóvel’<br />

3. Em Sabanê, os morfemas referencias (REF), que ocorrem em posição final, são -mi ou -mali, e que instam de<br />

forma obrigatória, mesmo que o substantivo apareça isoladamente. Ver Antunes (2004, p. 92); em Mamaindê<br />

são as formas - e que ocorrem em todas as categorias nominais. Ver Eberhard (2007, p. 347), aqui são<br />

chamados de sufixo nominal final (FNS). Em Lakondê, esses sufixos são grafados como - identificados como<br />

referenciais (REF).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 81


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Os classificadores em Lakondê<br />

Em Lakondê, os morfemas classificadores são tratados como<br />

sufixos pelo fato de não constituírem raiz lexical independente,<br />

carecendo de raiz nominal para serem aposicionados. São oito os<br />

grupos de classificadores nessa língua, que podem ser de tamanho,<br />

opondo seres de espécie aparentada ou tipo semelhante como –tah e<br />

–katah, classificadores de tamanho grande, e –kiniwi para tamanho<br />

pequeno. Os classificadores para forma são –kah para objetos longos<br />

e tridimensionais, –kini(n que marca objetos redondos/oblongos/<br />

tridimensionais, –kaloh para superfície plana/unidimensional, –kih<br />

para seres ou objetos pontudos, –teh para os longos flexíveis, –sen<br />

e –ni para os hemisféricos. Os classificadores para consistência de<br />

coisas e objetos –saw e –jaw para os líquidos e –su para pó. Exemplo:<br />

(3)<br />

a9wn –kiniwi –te<br />

louro –NCL.PEQUENO –REF<br />

‘louro pequeno’<br />

A criação de novos itens lexicais<br />

Os classificadores participam na criação de novos itens lexicais.<br />

Ao fazer isto interferem na significação do núcleo que os hospeda.<br />

Abaixo, exemplos:<br />

Em Sabanê:<br />

(4)<br />

katatali? –motoka –t– –iawa –mi<br />

homem branco –caneca –Link– –NCL:CAVO –REF<br />

‘marmiteira’<br />

82 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

Em Mamaindê:<br />

(5)<br />

lah –kani(n –tu<br />

novo –NCL.REDONDO –FNS<br />

‘nova coisa redonda’<br />

‘criança’<br />

Em Lakondê:<br />

(6)<br />

toh –su –te<br />

ser preto –NCL.PÓ –REF<br />

‘café (pó)’<br />

Comparando-se os tipos de morfemas derivacionais<br />

Na comparação de alguns dos classificadores de Sabanê,<br />

Mamaindê e Lakondê, no que se refere à morfologia do nome, percebese<br />

grande semelhança no que tange à ordem dos constituintes. O<br />

classificador acontece sufixado a um núcleo nominal, e imediatamente<br />

anterior a um morfema sufixal final com valor referencial. Essa é<br />

considerada sua posição canônica.<br />

Em Sabanê, o classificador que denota forma física de objeto<br />

longo, em madeira e tridimensional é –akata. Em Mamaindê,<br />

o atributo fino e comprido é dado por –kHat?. Em Lakondê 4 , o<br />

classificador –kah identifica os objetos longos/finos/tridimensionais.<br />

4. Telles (2002, p. 173) considera os sufixos presos de grau como morfemas derivacionais, são eles –tah e –ktah,<br />

para tamanho grande e –kiniwi para tamanho pequeno. Os morfemas que imprimem tamanho fazem parte da<br />

classe dos sufixos derivacionais de aumentativo e diminutivo em Antunes (2004, p. 89). Em Mamaindê, Eberhard<br />

(2007, p. 327) trata-se desses morfemas na condição de adjetivo.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 83


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Alguns exemplos:<br />

Em Sabanê:<br />

(7)<br />

waisili –t– –akata –mi<br />

árvore do açaí –Link– –NCL. LONGO –REF<br />

‘pé de açaí’<br />

Em Mamaindê:<br />

(8)<br />

hiuti –kHat? –tu<br />

tronco de árvore –NCL.FINO –FNS<br />

‘tronco de árvore fino/pedaço de madeira’<br />

Em Lakondê:<br />

(9)<br />

halohalo? –kah –te<br />

figueira –NCL.COMP.TRID. –REF<br />

‘figueira’<br />

Para informar características de objetos ou coisas com formato<br />

liso e espesso, há o classificador –kalo em Mamaindê, e –tHa(n?<br />

para finos e unidimensionais 5 que tem por correspondente –kaloh em<br />

Lakondê para objetos/coisas lisas e unidimensionais. Não se apresenta<br />

nenhum classificador com esse fim em Sabanê.<br />

5. Tradução de Leaflike (EBERHARD, 2007, p. 331).<br />

84 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

Em Mamaindê:<br />

(10)<br />

ka?ja(9in? –tHa(? –tu<br />

Escrever –NCL.FOLHA –FNS<br />

‘escrever folha/papel’<br />

Em Lakondê:<br />

(11)<br />

ma(n –kaloh –te<br />

roupa –NCL.LISO/UNI. –REF<br />

‘roupa’<br />

O classificador de objetos com forma redonda, oblongos ou ovais<br />

é –isi em Sabanê, e tem um correlato em Mamaindê no classificador<br />

–kani(n, e em Lakondê –kini(n.<br />

Em Sabanê:<br />

(12)<br />

–– – –<br />

estrela –LINK– –NCL: RED. –REF<br />

‘estrela’<br />

Em Mamaindê:<br />

(13)<br />

kanis –kani(n –tu<br />

brilho –NCL.RED. –FNS<br />

‘coisa redonda brilhando/lâmpada’<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 85


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Em Lakondê:<br />

(14)<br />

e9jn –kini(n –te<br />

lua –NCL.RED/OBL./TRID. –REF<br />

‘lua’<br />

O Sabanê apresenta um classificador para objetos em forma de<br />

meia lua, cavos, ocos, vasados, que é –iawa. Não se identificou em<br />

Mamaindê ou Lakondê morfema classificador com este fim. Exemplo:<br />

(15)<br />

kupuli –iawa –mi<br />

brincos NCL: CAVO –REF<br />

‘brincos’<br />

Para substâncias em forma de pó, granulados ou triturados há em<br />

Sabanê o classificador –inun. Em Mamaindê, há dois classificadores<br />

que designam este tipo de objeto, são eles –tHu( e –nu( e em Lakondê<br />

–su. Veja alguns usos:<br />

Em Sabanê:<br />

(16)<br />

amoya –inun –mi<br />

batata –NCL: PÓ –REF<br />

‘batata triturada’<br />

Em Mamaindê:<br />

(17)<br />

ak –a( –o? –tHu( –tu<br />

pequi –GNT –PÓ –NCL.PÓ –FNS<br />

‘massa de pequi e mandioca’<br />

86 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

Em Lakondê:<br />

(18)<br />

toh –su –te<br />

ser preto –NCL.PÓ –REF<br />

‘café (pó)’<br />

Objetos em forma de fio, longos e flexíveis possuem morfemas<br />

classificadores em Sabanê –api, e em Mamaindê com –teh e –leh.<br />

Essa ideia é expressa pelo classificador –teh, em Lakondê.<br />

Em Sabanê:<br />

(19)<br />

linhada –api –mi<br />

‘linhada 6 ’ –NCL.LONGO –REF<br />

‘linhada’<br />

Em Mamaindê:<br />

(20)<br />

lan –teh –tu<br />

cheio de líquido –NCL.FIO<br />

–FNS<br />

‘fio/estrada cheia de líquido’<br />

‘veias’<br />

Em Lakondê:<br />

(21)<br />

ta –teh –te<br />

embira –NCL.LONG.FLX 7 –REF<br />

‘embira’<br />

6. Empréstimo do Português.<br />

7. As diferenças de abreviação dadas a cada um dos exemplos é escolha dos autores.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 87


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Para a classificação de objetos/coisas hemisféricos, Sabanê 8<br />

dispõe do morfema –anon que tem um correlativo em Lakondê, –ni.<br />

Não se encontrou correlato em Mamaindê.<br />

Em Sabanê:<br />

(22)<br />

itatu –anon –mi<br />

arco-iris –NCL.HEMI. –REF<br />

‘arco-iris’<br />

Em Lakondê:<br />

(23)<br />

sih –ni –te<br />

casa –NCL.HEMI. –REF<br />

‘casa’<br />

Em Mamaindê, há ainda outros classificadores que interferem na<br />

significação da raiz nominal por sua função (casa, continente), e outros<br />

por critérios mais abstratos (tempo, lugar, gênero, animalidade, etc) 9 .<br />

8. Sabanê tem ainda um classificador para objetos longos, flexíveis e animados –amoka. Não se identificou<br />

nenhum classificador com esse fim em Mamaindê, apesar de esta língua contar com um classificador para<br />

coisas animadas, como animais, plantas e vida –ki. Em Lakondê, também não se encontrou nenhum morfema<br />

específico. Mas os classificadores em Lakondê podem se referir a seres animados ou inanimados, com exceção<br />

dos de substância –sa9w e ja9w– e o que marca coisas hemisféricas –su. Exemplo de Sabanê:<br />

yuya.wasili –tamoka –mi<br />

minhoca pequena –CL:LONGO FLX. AN. –REF<br />

‘minhoca pequena’<br />

9. Para ver a lista completa dos classificadores em Mamaindê (EBERHAR, 2007, p. 331).<br />

88 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

Classificadores em construções genitivas<br />

Em construções genitivas, os classificadores acontecem afixados<br />

aos nomes e com a presença opcional do marcador de possuído.<br />

Caso esse sufixo derivacional, seja de ‘forma’ ou ‘consistência’, no<br />

caso da língua Lakondê, ele também pode cumprir função anafórica.<br />

Exemplos:<br />

Em Lakondê:<br />

(31)<br />

ta –ni –tu<br />

1poss. –NCL.HEMI. –REF<br />

‘minha casa’<br />

Em Mamaindê:<br />

(32)<br />

ta –kateik –kani(n –tu<br />

1poss. –mangaba –NCL. RED./OBL./TRID –REF<br />

‘minha bola’ (bola feita de leite de mangaba) 10<br />

Em Mamaindê, numa construção genitiva em que há dois<br />

nomes na composição da raiz, numa relação de possuidor/possuído,<br />

o segundo nome da composição encabeça a sentença, podendo ser<br />

um nome, um classificador nominal ou um verbo nominalizado. O<br />

morfema que marca o genitivo é –a((, que ocupa a posição logo após<br />

o núcleo nominal e imediatamente ao morfema derivacional, no caso.<br />

10. Em Sabanê não se identificou a ocorrência de classificadores em construções de posse.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 89


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Em Mamaindê:<br />

(33)<br />

toh –a(– –ja9 –tu<br />

abelha –GEN.– –NCL.LÌQUIDO –REF<br />

‘mel de abelha’ 11<br />

Os classificadores como substitutos anafóricos<br />

Os classificadores podem ser usados como anafóricos. Nesse caso,<br />

faz menção a um nome referido anteriormente no discurso, marcado<br />

contextualmente, que não precisa ser novamente mencionado. Um<br />

classificador, então, cumpre esse papel. Vemos dois exemplos de<br />

Sabanê, com o classificador -anon que substitui a-motuka ‘sua<br />

cabaça’, e com o classificador –akata substituindo ‘ararutas’:<br />

(34)<br />

anon –mi –san –n –O<br />

CL.HEMI (anaf. de cabaça) –REF –pegar –Suf. verb. Imp.<br />

–t –osa –n –O 12<br />

1pac. dar Suf. verb. Imp.<br />

‘Pegue-a (a cabaça) e dá-ma!’<br />

(O classificador se refere ao elemento referido no contexto, substituindo<br />

por completo)<br />

11. Em Lakondê, apesar do morfema genitivo carregar a marca -a((( em composições NOME + NOME, não se verifica<br />

a ocorrência de sufixo derivacional ocupando uma dessas posições, ver Telles (2002, p. 164). Em Sabanê, esse<br />

tipo de construção é feito com o nome ‘possuidor’ sendo anteposto à coisa possuída, como acontece na língua<br />

inglesa, por exemplo, ver Antunes (2004, p. 110).<br />

12. n = sufixo verbal; Imp. = Imperativo; 1pass. = primeira pessoa paciente;<br />

90 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

(35)<br />

akata -bala -n -al -i 13<br />

CL. LONGO (anaf. de araruta) -dois -Suf. verb -Pres. Irr. -Asser.<br />

‘São duas (ararutas)’<br />

(Contexto: o informante é perguntado sobre a quantidade de ararutas<br />

que estão guardadas no balaio. Como a palavra araruta já havia sido<br />

mencionada antes, ele usa um classificador, como anafórico)<br />

Em Mamaindê:<br />

(36)<br />

nakatos –tu na -halo -kHu un –je? –latHa –O –wa<br />

Negarotê –FNS PS3 –lugar –NCL–LUGAR longe –Emp. –S3 –PRS –DECL.<br />

‘A terra dos Negarotê é muito longe’<br />

nain?toh, nakHu naih ?ai –ten –a? –O –wa<br />

CN.mesmo assim 3p.–NCL.LUGAR continuar ir –DES –1p. –PRS –DECL.<br />

‘Mesmo assim eu continuo querendo ir lá’<br />

(Contexto: como o informante já havia mencionado a palavra -na<br />

apenas o classificador permanece na estrutura da cláusula, como<br />

anafórico)<br />

Em Lakondê:<br />

(37)<br />

kini(n la? –kini(n –ta(n –ta<br />

NCL.RED./OBL./TRID ser grande –NCL.RED./OBL./TRID –IMP. –ANT.<br />

‘A pedra era grande’<br />

13. Pres. Irr = presente irrealis; Asser. = assertivo<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 91


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

(Contexto: a palavra pedra já havia sido pronunciada anteriormente,<br />

por isto, o informante usa o morfema classificador como anáfora)<br />

Observa-se, nos exemplos citados acima, que os classificadores<br />

ocupam o lugar típico da raiz nominal, encabeçando a sentença, e<br />

que este processo é similar nas três línguas em questão.<br />

Os classificadores como nominalizadores<br />

Os morfemas classificadores são ainda um meio bastante<br />

produtivo para a nominalização de verbos nessas três línguas. Em<br />

Mamaindê 14 , por exemplo, este processo pode acontecer diante de<br />

qualquer verbo. O que acontece é que a palavra resultante carrega<br />

parte da semântica verbal. O que acontece em Sabanê é: (NOME<br />

+ VERBO ADJ. + CLASS. + REF), já em Mamaindê e Lakondê:<br />

VERBO ADJ. + CLASS. + REF.).<br />

Em Sabanê:<br />

(38)<br />

tapulisi –minu –tisi –mi<br />

pedra –ser polido –NCL.RED. –REF<br />

‘pedra polida’<br />

Em Mamaindê:<br />

(40)<br />

ma(n –kalo –tu<br />

ser quente –NCL.LISO –FNS<br />

‘tecido’<br />

14. O classificador -tHa( é o morfema nominalizador mais comum identificado em Mamaindê.<br />

92 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

Em Lakondê:<br />

(42)<br />

la9? –ni –te<br />

ser novo –NCL.HEMI. –REF<br />

‘casa nova’<br />

Discussão dos aspectos gerais<br />

Uma comparação dos morfemas derivacionais em Sabanê,<br />

Mamaindê e Lakondê, em primeira instância, no nível da morfologia<br />

do nome, aponta para uma maior semelhança dessa classe entre<br />

as línguas Mamaindê e Lakondê, como se verifica no nível do<br />

léxico, com os morfemas derivacionais que exprimem forma de<br />

coisas/objetos longos e finos –kHa? e –kah respectivamente,<br />

nos que exprimem formas lisas e espessas –kalo e formas finas e<br />

unidimensionais –kaloh, entre os de formas redondas, oblongas e<br />

tridimensionais, –kani(n em Mamaindê, e –kini(n em Lakondê, ou<br />

no homônimo –teh que classifica objetos/coisas com formas finas,<br />

longas e flexíveis para ambas as línguas.<br />

Essas línguas mostram-se bastante ativas para a criação de<br />

novos itens lexicais. Porém, em Mamaindê, o uso de classificadores<br />

na composição de novos nomes mostrou mais exemplos que Lakondê<br />

e Sabanê.<br />

Na comparação da ocorrência de classificadores em construtos<br />

de genitivo, percebe-se novamente uma maior semelhança entre<br />

Mamaindê e Lakondê, quando os classificadores cumprem função de<br />

posse de um termo anafórico. Mas as três línguas operam de forma<br />

diversa no tocante à construção NOME + NOME do genitivo.<br />

Somente em Mamaindê percebeu-se o uso de um classificador em<br />

lugar dum nome NOME + CLASS, em composições de posse.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 93


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Os classificadores são intensamente aproveitados como<br />

substitutos anafóricos em situações comunicativas, quando se evita<br />

a repetição de referentes outrora mencionados nos discursos, nas três<br />

línguas estudadas, encabeçando as sentenças anafóricas, à exceção<br />

de Mamaindê em que uma partícula com função concessiva antecede<br />

o classificador.<br />

Atuando como nominalizadores, vê-se que em Sabanê há<br />

diferenças. A ordem é (NOME + VERBO ADJ. + CLASS. + REF),<br />

em que o morfema classificador não substitui o núcleo nominal, sendo<br />

imediatamente posterior ao verbo adjetival, e seguido do morfema<br />

referencial. Já em Mamaindê e Lakondê a ordem é (VERBO ADJ.<br />

+ CLASS. + REF.). Nesse caso, o morfema classificador substitui o<br />

núcleo nominal.<br />

Considerações finais<br />

Com a presente comparação, observa-se que o Sabanê é uma<br />

língua mais distante geneticamente, enquanto que o Lakondê e o<br />

Mamaindê apresentam maior proximidade estrutural. Ainda assim,<br />

as semelhanças encontradas são suficientes para que se classifique a<br />

língua Sabanê como pertencendo à família Nambikwara. É importante<br />

ressaltar que os resultados obtidos ainda não são satisfatórios e<br />

apontam para a necessidade de mais estudos que aprofundem aspectos<br />

comparativos entre essas e mais línguas da família.<br />

94 l Anais Eletrônicos - 2011


UM ESTUDO DOS CLASSIFICADORES NAS LÍNGUAS INDÍGENAS SABANÊ,<br />

MAMAINDÊ E LAKONDÊ / Edney Alexandre de Oliveira BELO (<strong>UFPE</strong>)<br />

Referências<br />

ANTUNES, Gabriel. The Grammar of Sabanê, a Nambikwaran Language, VU University,<br />

Amsterdam, 2004.<br />

CÂMARA, Mattoso. Introdução às Línguas Indígenas Brasileiras. Rio de Janeiro: Livraria<br />

Acadêmica, 2ªed. Revista, 1965.<br />

CUNHA, Maria A. F.; SOUZA, Maria M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro:<br />

Lucerna, 2007.<br />

EBERHARD, David. M. The Phonology and Grammar of Mamaindé, VU University,<br />

Amsterdam, 2007.<br />

GIVÓN, Talmy. English Grammar: A Function-Based Introdution. Amsterdam/Philadelphia:<br />

John Benjamins’s Publishing. vol. 1, 1993.<br />

GIVÓN, Talmy. Synthax: an introduction. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamin’s<br />

Publishing. Vol. 1, 2001. P. 233 - 256<br />

PAYNE, Thomas E. Describing Morphosyntax: a guide for field linguists. New York, USA:<br />

Cambridge Univesity Press, 1997.<br />

SEKY, Lucy. Línguas Indígenas do Brasil no Limiar do Século XXI. São Paulo: Editora Unimep.<br />

Vol 1, Nº27, 2000. p. 336 – 356.<br />

TELLES, Stella. The Phonology and Grammar of Latundê/Lakondê, VU University,<br />

Amsterdam, 2002.<br />

Outras fontes:<br />

DALL’IGNA. Aryon. Nossas Línguas Além do Português. 24 de Janeiro de 2005. .<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 95


Resumo<br />

O presente trabalho consiste numa análise da transitividade na construção do<br />

texto descritivo em cartas do leitor. Para tanto, foram analisadas 9 cartas, sendo<br />

3 do século XIX, 3 do século XX e 3 do século XXI. Todas as cartas analisadas<br />

são de reclamação. Haja vista a pequena dimensão do corpus, a uniformidade<br />

temática e a distribuição por séculos possibilitaram, do ponto de vista estrutural<br />

e, sobretudo, semântico-pragmático, a realização de algumas generalizações<br />

acerca da composição do gênero. O fenômeno da transitividade foi analisado sob<br />

a perspectiva do paradigma da Linguística Sistêmico-Funcional. Assim sendo, a<br />

língua é, com base na sua léxico-gramática, concebida enquanto potencial de<br />

significação. Entre os sistemas componentes da léxico-gramática, encontra-se o<br />

sistema de transitividade, e é, a ele, que o usuário da língua recorre para codificação<br />

de significados com vistas ao atendimento da metafunção ideacional, função esta<br />

da linguagem presente nas representações do texto descritivo. Foi observado que,<br />

tanto no tocante aos processos quanto aos participantes, as escolhas realizadas<br />

no sistema de transitividade são direcionadas por três domínios semânticos gerais<br />

constitutivos do contexto discursivo das cartas. Daí decorre que a estruturação<br />

das orações se dá num movimento vertical, obedecendo a restrições semânticopragmáticas<br />

e a necessidades argumentativas na construção de imagens no texto<br />

descritivo.<br />

Palavras-chave: carta do leitor, transitividade, reclamação, descrição.<br />

Abstract<br />

The current study is an analysis of transitivity in the construction of descriptive text<br />

at the reader’s letters. To this end, we analyzed 9 letters: three of them from the<br />

nineteenth century, three from the twentieth century and three from the current<br />

century, i.e, the twenty-first. All the analyzed letters are about complaints. Because<br />

the corpus is not so large, the thematic uniformity and the distribution into centuries<br />

made some generalization about the genre possible, mainly from the structural<br />

and, above all, semantic-pragmatic points. The transitivity phenomenon was<br />

analyzed from the perspective of Systemic Functional Linguistics model. Thus, the<br />

language is based on its lexical grammar, taken as potential significance. Among<br />

the components of the lexicon-grammar system, is the transitivity system, and it is<br />

to it the speaker calls upon for encoding meanings in order to meet the ideational<br />

metafunction, which is present in representations descriptive texts. It was observed<br />

that, regarding the process - in relation to the participants - the choices made in<br />

the transitivity system are directed by three general semantic domains, which<br />

constitute the discursive context of the letters. From these letters, the structure of<br />

sentences is given in a vertical motion, obeying semantic-pragmatic restrictions<br />

and argumentative needs in the construction of images in the descriptive text.<br />

Keywords: reader’s letters; transitivity; complaint; description.


Entre descrições e reclamações<br />

no gênero carta do leitor: o<br />

sistema de transitividade e a<br />

construção de imagens<br />

Introdução<br />

Emanuel Cordeiro da SILVA<br />

(<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

Constitui objeto de interesse do presente trabalho de pesquisa<br />

realizar uma análise funcional do comportamento do sistema de<br />

transitividade da língua na construção do texto descritivo em cartas<br />

do leitor. Para tanto, foi construído um pequeno corpus composto<br />

por 9 cartas distribuídas por três séculos. Das 9 cartas, 3 são do<br />

século XIX, 3 do século XX e 3 do século XXI. Prezou-se por uma<br />

uniformidade temática, pois as cartas podem atender “a diversos<br />

propósitos comunicativos: opinar, agradecer, reclamar, solicitar,<br />

elogiar, criticar, entre outros” (BEZERRA, 2002, p.210). Na medida<br />

em que necessidades comunicativas diferenciadas implicam escolhas<br />

linguísticas também diferenciadas, o trabalho com cartas de temáticas<br />

distintas dificultaria a observação de padrões de regularidade. Todas as<br />

9 cartas analisadas são de reclamação. Haja vista a pequena dimensão<br />

do corpus, a uniformidade temática e a distribuição por séculos<br />

possibilitaram, do ponto de vista estrutural e, sobretudo, semânticopragmático,<br />

a realização de algumas generalizações acerca da<br />

composição do gênero com base no sistema de transitividade da língua.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 97


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

As cartas do leitor de reclamação são basicamente constituídas pelos<br />

dois seguintes tipos textuais: a descrição e a injunção. Com o primeiro<br />

tipo, o leitor/escrevente descreve o cenário da situação-problema,<br />

construindo imagens da realidade experienciada, enquanto que,<br />

com o segundo tipo textual, ele cobra, de forma direta, providências<br />

para a solução do problema. Todavia, no gênero em questão, há<br />

um predomínio do texto descritivo. Muitas cartas, inclusive, trazem<br />

apenas uma descrição. Ademais, a parte injuntiva da carta, em muitos<br />

casos, não chega a uma linha de texto. Por isso, as análises foram<br />

centradas nas descrições. Sob a perspectiva da Linguística Sistêmico-<br />

Funcional, a língua, com base na sua léxico-gramática, foi concebida<br />

enquanto potencial de significação, e, no que diz respeito ao fenômeno<br />

da transitividade, ele foi tomado como um dos sistemas componentes<br />

da léxico-gramática, sendo responsável pela codificação de conteúdos<br />

ideacionais através das escolhas de formas linguísticas realizadas<br />

pelos usuários da língua. Partimos, então, do pressuposto de que se<br />

as cartas são de reclamação, a descrição contida nelas deve, de certa<br />

forma, construir representações com teor argumentativo, às quais o<br />

sistema de transitividade está relacionado. Buscamos, assim, observar<br />

padrões de regularidade existentes entre transitividade, descrição e<br />

reclamação/argumentação na composição do gênero carta do leitor.<br />

A transitividade sob a perspectiva da linguística-sistêmico<br />

funcional<br />

No paradigma hallidayano, a língua é concebida enquanto<br />

potencial de significação. Aos usuários da língua, é possível a<br />

codificação de significados através da operação de escolhas de<br />

formas linguísticas. Como bem dizem Ikeda e Vian Júnior (2006, p.<br />

40), “Quando se faz uma escolha real no sistema linguístico, o que<br />

98 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

se escreve ou o que se diz adquire significado contra um fundo em<br />

que se encontram as escolhas que poderiam ter sido feitas”. É no<br />

discurso que a língua se realiza por meio dos usos que os indivíduos<br />

fazem dela dentro dos contextos de cultura e de situação nos quais se<br />

inserem os atos de comunicação. Inseridos em contextos específicos<br />

de comunicação, os indivíduos, com base na léxico-gramática da<br />

língua, precisam realizar escolhas de formas linguísticas com vistas<br />

ao atendimento de necessidades comunicativas. Para Halliday e<br />

Matthiessen (2004, p. 24), “usamos a linguagem para fazer significar a<br />

nossa experiência e realizarmos nossas interações com outras pessoas”.<br />

O fazer significar e o realizar interações levam, portanto, a linguagem<br />

a assumir três metafunções: a ideacional, a interpessoal e a textual. Cabe<br />

à linguagem, respectivamente, representar conteúdos relacionados à<br />

nossa experiência, permitir interações no âmbito social e possibilitar<br />

a organização textual de informações. Cada uma das três funções<br />

relaciona-se com um dos sistemas componentes da léxico-gramática,<br />

que corresponde a um amplo conjunto de possibilidades daquilo que o<br />

usuário da língua pode dizer. Os três sistemas componentes da léxicogramática<br />

são o de transitividade, relacionado à função ideacional, o<br />

de modo e modalidade, ligado à função interpessoal e o temático, que<br />

tem a ver com a função textual.<br />

O sistema de transitividade, que é o que aqui nos interessa,<br />

está direcionado para a estruturação da oração. Assim sendo, a<br />

transitividade liga-se à forma como o verbo relaciona-se com seus<br />

sintagmas nominais. Contudo, tal relação não é vista da mesma<br />

maneira que nas gramáticas tradicionais ou em outras correntes<br />

funcionalistas, como, por exemplo, no funcionalismo norte-americano.<br />

Nas gramáticas tradicionais, a transitividade é normalmente tomada<br />

como uma propriedade do verbo. Cunha e Cintra (2001, p. 135), por<br />

exemplo, dizem que “verbos significativos são aqueles que trazem uma<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 99


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

ideia nova ao sujeito. Podem ser intransitivos ou transitivos”. Embora<br />

não compartilhem exatamente da mesma concepção de transitividade,<br />

tanto a Linguística Sistêmico-Funcional quanto a Linguística<br />

Funcional norte-americana, não concebem a transitividade como<br />

uma propriedade do verbo, mas, sim, da oração como um todo.<br />

Furtado da Cunha e Souza (2007, p.9) chamam atenção para o<br />

fato de que “ambas as vertentes funcionalistas ressaltam que a<br />

transitividade não se manifesta apenas no verbo, mas na totalidade<br />

da oração, emergindo das relações estabelecidas entre os diversos<br />

elementos que a compõem”. No que tange à diferença de visões entre<br />

as duas correntes funcionalistas, o funcionalismo norte-americano,<br />

diferentemente do sistêmico-funcional, vê a transitividade como um<br />

fenômeno escalar que ocorre sob diferenciados graus de envolvimento<br />

sintático-semântico entre os constituintes da oração. Assim, a<br />

transitividade é, em tese, uma questão de grau (GIVÓN, 1984). Sob<br />

a perspectiva da Linguística Sistêmico-Funcional, a estruturação<br />

da oração dá-se por escolhas na léxico-gramática. O usuário da<br />

língua precisa selecionar verbos e sintagmas a serem associados aos<br />

verbos relacionados. Tal seleção não ocorre aleatoriamente, e sim,<br />

correlacionada à metafunção ideacional. Souza (2006, p.54) diz<br />

que “o sistema de transitividade proposto pela escola hallidayana é<br />

composto de processos, participantes e circunstâncias.” Enquanto os<br />

verbos recebem o nome de processos, os sintagmas são tratados como<br />

participantes. Em suma, os verbos codificam significados dos quais os<br />

sintagmas nominais participam, desempenhando determinados papéis<br />

semânticos. De acordo com essa perspectiva, são seis os processos<br />

codificados pelos verbos: material, existencial, relacional, verbal, mental<br />

e comportamental. O quadro (1) abaixo extraído de Furtado da Cunha<br />

e Souza (Op.cit., p. 60), resumidamente, apresenta as relações entre<br />

processos, significados e participantes:<br />

100 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

Processo<br />

Significado<br />

Participantes<br />

Obrigatórios<br />

Participantes<br />

Opcionais<br />

Material<br />

Mental<br />

Relacional<br />

Atributivo<br />

Identificador<br />

Verbal<br />

Existencial<br />

Comportamental<br />

Fazer, acontecer<br />

Sentir<br />

Ser<br />

Classificar<br />

Definir<br />

Dizer<br />

Existir<br />

Comportar-se<br />

Ator<br />

Experienciador e<br />

Fenômeno<br />

Portador e Atributo<br />

Característica e Valor<br />

Dizente e Verbiagem<br />

Existente<br />

Comportante<br />

Meta, Extensão e<br />

Beneficiário<br />

-<br />

-<br />

Receptor<br />

-<br />

Behaviour<br />

Quadro (1): Processos e participantes<br />

A construção da descrição nas cartas: processos e participantes<br />

Conforme já dito, observa-se que a descrição é o tipo textual<br />

predominante no gênero carta do leitor quando o propósito<br />

comunicativo é reclamar. Subjaz à tessitura da malha textual<br />

desse gênero a função representacional da linguagem, uma vez que<br />

tanto a arquitetura quanto a conjugação das estruturas linguísticas<br />

usadas são definidas pela necessidade de codificar imagens do<br />

real. Aquilo do que reclama o leitor/escrevente é a realidade<br />

experienciada e imageticamente assimilada, que, na carta, precisa ser<br />

linguisticamente representada. Acerca das subfunções (experiencial 1<br />

e lógica) componentes da metafunção ideacional, Gouveia (2009,<br />

p.16) diz que<br />

1. É adotada a correlação entre a metafunção ideacional e sua componente a subfunção experiencial.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 101


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Se a primeira subfunção, a experiencial, nos dá a possibilidade<br />

de linguisticamente criarmos instantâneos fotográficos, como<br />

“O João comeu o bolo”, “A Maria está triste”, ou “O Manuel<br />

foi-se embora”, a segunda permite-nos, com tais instantâneos,<br />

criar uma espécie de história, um filme, como se passássemos os<br />

instantâneos fotográficos a vinte e quatro imagens por segundo<br />

como se faz no cinema: “A Maria está triste, porque o João<br />

comeu o bolo” ou “Quando o Manuel se foi embora, a Maria<br />

estava triste”, ou ainda “O Manuel foi-se embora, porque a<br />

Maria estava triste por o João ter comido o bolo”.<br />

Na atividade de descrição, o material linguístico é mobilizado<br />

para a criação de instantâneos fotográficos, bem como para a<br />

articulação lógica entre eles. A função ideacional relaciona-se<br />

com a atividade descritiva. Ao descrevermos as coisas, buscamos<br />

representá-las tal como as experienciamos e, consequentemente,<br />

como as concebemos. Nas descrições contidas nas cartas do leitor,<br />

as orações, seja nos processos ou nos participantes que encerram,<br />

precisam refletir uma realidade a ser representada. Assim sendo,<br />

cabe ao leitor/escrevente tomar decisões sociointerativa, cognitiva<br />

e linguisticamente orientadas. A língua enquanto potencial de<br />

significação requer a realização de escolhas por meio das quais se<br />

torna possível a construção de representações de um conteúdo<br />

ideacional de um indivíduo a outro. Dessa forma, em observação<br />

às exigências dos contextos dentro dos quais se dão as situações de<br />

comunicação, é que manipulamos códigos reservados à interação. Na<br />

carta do leitor, a léxico-gramática é processada através das escolhas<br />

realizadas no sistema de transitividade. As orações instanciam um<br />

conteúdo imagético. A reclamação contida na carta do leitor envolve<br />

uma situação-problema que precisa ser apresentada. Para tal, o<br />

102 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

escrevente/leitor a descreve de modo a representar um cenário 2 em<br />

que a uma problemática é dado relevo.<br />

Entre os processos constitutivos do sistema de transitividade,<br />

nas descrições das cartas analisadas, foram identificados o material, o<br />

existencial e o relacional. Quanto aos participantes de tais processos,<br />

relacionam-se aos seguintes domínios semânticos: o causador, o<br />

problema e o prejudicado. Embora os processos e os participantes<br />

apresentem propriedades sintáticas e semânticas diferenciadas, não<br />

devem ser tomados isoladamente, pois são determinados por escolhas<br />

que ocorrem numa relação de contiguidade sob um contexto<br />

específico de comunicação. A carta é produzida dentro de uma<br />

situação comunicativa que exige resposta a três perguntas básicas:<br />

1) Qual o problema? 2) Quem o causa? 3) A quem ele prejudica? Vale<br />

salientar que nem sempre todas as três perguntas são, direta ou<br />

indiretamente, contempladas pelo texto. Enquanto a resposta a 2) e<br />

3) é facultativa; a 1), é indispensável. Na composição das orações,<br />

as escolhas tanto dos verbos quanto de seus nominais associados são<br />

guiadas pelas relações semânticas que eles são capazes de estabelecer<br />

entre si dentro do contexto comunicativo. A figura (1) seguinte<br />

sintetiza as relações traçadas:<br />

2. Não deve ser entendido apenas como representação de um espaço físico.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 103


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Figura (1): Estruturação oracional<br />

O contexto é caracterizado por uma situação-problema para a<br />

qual convergem causador e prejudicado. Esta situação determina a<br />

escolha dos verbos para a codificação de processos, e tal escolha, por<br />

sua vez, implica restrições semântico-pragmáticas para a seleção dos<br />

nominais que figuram como participantes.<br />

Processos materiais<br />

Nas descrições das cartas do leitor, são comuns os verbos<br />

codificadores de processos materiais. Na maioria dos casos, o problema<br />

apresentado é fruto do fazer, porque decorre de ações realizadas ou<br />

que não foram realizadas. Daí, a necessidade de o leitor/escrevente<br />

estruturar sentenças nucleadas por processos materiais. Em (1), por<br />

exemplo,<br />

104 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

(1) A obra anda a passos de tartaruga e utiliza os piores horários<br />

do dia para interromper trechos da via, causando imensos<br />

transtornos aos já castigados condutores (...)<br />

(Diário de Pernambuco, 26/07/2011)<br />

o problema decorre de ação realizada. Os quatro verbos<br />

presentes são do fazer. Para se queixar do engarrafamento, o leitor/<br />

escrevente constrói um longo período composto por orações nucleadas<br />

por processos materiais, pois o problema decorre de ações realizadas.<br />

Observemos que o nominal A obra ocupa a posição de sujeito de<br />

todos os verbos como participante do tipo ator. Dentro do contexto,<br />

há um problema, que é o engarrafamento, para ele convergem um<br />

causador, a obra, e um prejudicado, os condutores. É a obra que se<br />

prolonga, que utiliza horários inadequados, que interrompe o trânsito,<br />

prejudicando, assim, os condutores. O problema é originário das ações<br />

realizadas. No exemplo (2),<br />

(2) A prefeitura do Recife sempre tratou essa área com descaso,<br />

nada fazendo para melhorar as condições desses bairros e/ou<br />

solucionar as suas mazelas estruturais.<br />

(Diário de Pernambuco, 12/06/2009)<br />

extraído de uma carta na qual o leitor/escrevente reclama da<br />

falta de ações sociais e de infraestrutura em determinados bairros do<br />

Recife, o nominal A prefeitura do Recife, na condição de participante<br />

ator, relaciona-se também a um verbo de processo material. Contudo,<br />

é perceptível que, diferentemente do que ocorre em (1), o problema<br />

não é consequência de uma ação realizada, mas, sim, de ações que<br />

deixaram de ser realizadas, pois, segundo o que se lê na carta, os bairros<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 105


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

encontram-se abandonados pelo poder público municipal. Assim<br />

como vimos em (1), em (2), também há um problema para o qual<br />

convergem causador e prejudicado. Nas cartas do leitor, a presença<br />

de verbos de processos materiais é fundamental para a produção de<br />

sentido, na medida em que conteúdos ligados à ideia de ação, em<br />

muitos dos casos, são o que estão por trás do problema do qual se<br />

queixa o leitor/escrevente.<br />

Várias relações de contiguidade ocorrem entre processo e<br />

participantes. Com base no contexto, o leitor/escrevente operou as<br />

escolhas dos processos, e estes, por sua vez, foram determinantes<br />

para a escolha dos participantes. A estruturação da oração, uma<br />

vez que é regulada por escolhas, dá-se tal como mostrado na figura<br />

acima, num movimento top-down. O ator A obra, por exemplo, é um<br />

participante do domínio semântico do causador. Dentro do contexto<br />

no qual se inserem, aos processos não poderiam ser associados<br />

participantes do domínio semântico do prejudicado. Enquanto<br />

nominais como a construtora, o trabalho, a empresa, a prefeitura<br />

poderiam ser selecionados pelo leitor/escrevente para a posição de<br />

sujeito, nominais como os motoristas, as pessoas, a população, o povo<br />

não estão autorizados a ocuparem a referida posição. A descrição<br />

das cartas evidencia relações de interdependência entre contexto,<br />

processos e participantes, o que leva à existência de restrições<br />

semântico-pragmáticas, e não apenas sintático-semânticas, no<br />

processo de estruturação de orações.<br />

Outro importante aspecto relacionado aos processos materiais<br />

e bastante comum nas descrições em cartas do leitor é a ocorrência<br />

de modelos concretos na base da representação de fenômenos mais<br />

abstratos. Segundo Gouveia (Op.cit., p.31),<br />

106 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

as actividades concretas observadas no mundo material<br />

tornaram-se referentes, modelos, para a construção da<br />

nossa experiência de mudança relativamente a fenómenos<br />

abstractos. Quer isto dizer que algumas representações de<br />

processos materiais são representações de processos de fazer<br />

de teor abstracto [...].<br />

Vejamos os exemplos (3) e (4):<br />

(3) (...) e assim mu- | seu, bibliothecas, etc, simulam a solidão<br />

dos cemi- | terios.<br />

(Corpus PHPB, 24/03/1865)<br />

(4) (...) as de platéa, que aceio de camarotes, tanto externa<br />

como | internamente; donde os vestidos e as casacas sahem sem-<br />

| pre mascarados, e com 20 por cento menos de seu valor (...)<br />

(Corpus PHPB, 12/09/1842)<br />

Assim como acontece em (1), em (3) e (4), é observado<br />

que atividades materiais concretas servem de referentes para a<br />

representação de atividades materiais de caráter mais abstrato. Obra,<br />

museu, bibliotecas, vestidos e casacos figuram como atores de processos<br />

materiais abstratos referenciados em modelos de ações concretas. Nos<br />

exemplos (3) e (4), ao reclamarem, respectivamente, do abandono<br />

de um museu e da qualidade das instalações de um teatro público, os<br />

escreventes/leitores constroem orações de conteúdo metafórico de<br />

modo semelhante ao que faz o escrevente/leitor do exemplo (1). A fim<br />

de que fique mais claro como se dão as relações metafóricas, tomemos<br />

em análise os casos dos verbos andar de (1) e simular de (3). Andar<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 107


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

descreve uma ação de deslocamento, o que implica a existência de<br />

um ponto de partida, de um ponto de chegada e de um trajeto a ser<br />

percorrido entre ambos. A velocidade com que o trajeto é percorrido<br />

resulta num maior ou menor tempo de realização do percurso entre<br />

o ponto de partida e o ponto de chegada. É esse modelo concreto<br />

de deslocamento que está na base do processo material da oração a<br />

obra anda a passos de tartaruga. A obra enquanto ser inanimado não<br />

é capaz de andar, no sentido de se deslocar, todavia todas as obras<br />

têm uma data de início e uma data de término, e, entre essas datas,<br />

há um tempo a ser transcorrido. A velocidade com que os trabalhos<br />

são feitos resulta, do ponto de vista temporal, numa chegada mais<br />

rápida ou mais demorada ao término da obra. Observemos que há um<br />

conjunto de correlações entre os dois esquemas e, é, nas correlações<br />

existentes entre eles, que os planos concreto e abstrato se cruzam.<br />

Algo bastante parecido é o que acontece com o verbo simular de (3).<br />

Quando simulamos alguma coisa, realizamos ações norteadas por<br />

relações de analogia e, para tanto, inevitavelmente, estabelecemos<br />

comparações entre o que estamos fazendo e o que estamos a copiar.<br />

Museus e bibliotecas enquanto seres inanimados não podem exercer a<br />

ação de copiar nada, porém ao dizer que museus e bibliotecas simulam a<br />

solidão dos cemitérios, o escrevente/leitor traz para a base da codificação<br />

da oração a noção de comparação que é intrínseca a todo ato concreto<br />

de simulação.<br />

Os participantes, conforme dito, são dos domínios semânticos:<br />

causador, problema e prejudicado, mas, nem sempre são expressos por<br />

sintagmas nominais. Na construção da descrição da carta do leitor,<br />

a escolha da forma linguística de representação do participante ator<br />

constitui-se como estratégia argumentativa. O leitor/escrevente<br />

reconstrói, por meio da sua descrição, o cenário do problema sem<br />

nenhuma intenção de ser imparcial. O texto é descritivo, porém tem<br />

108 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

propósitos argumentativos bastante claros, uma vez que a descrição<br />

serve à realização de uma reclamação. O leitor/escrevente, a fim<br />

de obter uma solução, precisa chamar atenção para o problema do<br />

qual reclama. Podemos dizer que, na carta do leitor de reclamação,<br />

descreve-se para reclamar, o que implica, então, dizer que o texto<br />

descritivo tem um elevado teor de argumentatividade. Analisemos<br />

os exemplos (5), (6) e (7):<br />

(5) (...) ninguem ainda se lembrou de mandar collo- | car alguns<br />

lampiões (...)<br />

(Corpus PHPB, 27/09/1842)<br />

(6) (...) causando problemas nos carros de quem tenta<br />

estacionar, nas padarias, lojas, etc.<br />

(Diário de Pernambuco, 21/06/2011)<br />

(7) Convivemos com ruas sujas, esburacadas, mal iluminadas,<br />

praças e logradouros depredados e abandonados.<br />

(Diário de Pernambuco, 12/06/2009)<br />

É bastante comum que pronomes indefinidos sejam selecionados<br />

para participantes atores dos processos materiais. Dentro da descrição<br />

das cartas, eles têm um valor semântico extremamente importante à<br />

construção da argumentação. Não são usados para esconder aquele<br />

que é o responsável pela ação. O leitor/escrevente, ao fazer uso dos<br />

indefinidos, busca representar noções de generalização. Nesses casos,<br />

o que é dito não deve ser atribuído a um ser específico, pois é de<br />

responsabilidade ou de afetação de um grupo maior. A indefinição<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 109


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

é importante não porque impede a identificação do ator, mas, sim,<br />

porque leva o leitor a associar o processo a todo um grupo. Em (5),<br />

para reclamar das condições em que se encontra a iluminação pública,<br />

o leitor/escrevente escolhe o pronome ninguém para ator do processo<br />

mandar. Embora o pronome não represente um ser específico, ele<br />

refere-se genericamente a todos aqueles que gerem o poder público. O<br />

uso do pronome confere força argumentativa à descrição, porque, na<br />

medida em que não responsabiliza um ser especificamente, mas, sim,<br />

de modo genérico, o poder público, o leitor põe em relevo o descaso<br />

do qual a população é vítima, isto é, a população não é esquecida<br />

por um, e, sim, por todos os representantes do poder público. No<br />

exemplo (6), ao reclamar dos remendos realizados no asfalto, o<br />

leitor/escrevente constrói o período quem tenta estacionar, no qual o<br />

pronome indefinido quem é o participante ator. Verifiquemos que a<br />

intenção que está por trás da escolha do pronome também não tem a<br />

ver com o desejo de impossibilitar a identificação do agente da ação.<br />

Tal como acontece em (5), o pronome assume um valor semântico<br />

de generalização. Todos os motoristas que tentam estacionar na área<br />

são prejudicados pelos remendos do asfalto. Pelo uso do pronome,<br />

a descrição ganha força argumentativa, pois o problema não afeta<br />

apenas a alguém em particular, e, sim, a toda uma categoria. Sendo<br />

assim, ele não é de um, é de muitos.<br />

Nas análises, ficou claro que, nas descrições, o pronome<br />

indefinido não é usado com o intuito de impossibilitar a identificação<br />

de participantes atores. Como apresentado na figura anterior, o<br />

contexto das cartas de reclamação é constituído por causador,<br />

problema e prejudicado. Através dele, o leitor é capaz de identificar<br />

a quem ou a que o pronome indefinido refere-se. Quando na função<br />

de atores de um processo material, tais pronomes ligam-se a um dos<br />

110 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

três domínios semânticos do contexto. Em (5), o pronome codifica o<br />

causador do problema. São os representantes do poder público que,<br />

por serem omissos, causam o problema da iluminação pública. Em<br />

(6), o pronome codifica o prejudicado. São os motoristas que, na hora<br />

de estacionar, sofrem com o problema dos remendos do asfalto. Não<br />

há, portanto, com o uso dos indefinidos, apagamento de participantes<br />

atores, o que há são generalizações dentro dos domínios semânticos<br />

constituintes do contexto.<br />

Como estratégia argumentativa, os participantes atores podem<br />

também ser codificados por meio da utilização ou da simples omissão<br />

do pronome pessoal nós. No exemplo (7), o leitor/escrevente constrói<br />

a oração Convivemos com ruas sujas, esburacadas, mal iluminadas... para<br />

reclamar do abandono, pela prefeitura do Recife, de determinados<br />

bairros. No caso, o processo material codificado pelo verbo conviver<br />

tem como participante ator o pronome nós, que está elíptico. A<br />

escolha pelo referido pronome não se deu aleatoriamente. Trata-se<br />

de uma estratégia de argumentação. Ao dizer com o que convivem<br />

os moradores, o leitor/escrevente descreve todo um cenário dentro<br />

do qual não se encontra sozinho. O problema afeta a toda uma<br />

comunidade, e não apenas a ele. Pelo uso do nós, quem escreve a carta<br />

não particulariza o problema. Isso, do ponto de vista argumentativo,<br />

é extremamente importante, pois o que atinge a um indivíduo em<br />

particular não tem a mesma repercussão do que aquilo que atinge a<br />

toda uma comunidade.<br />

Processos existenciais<br />

Nas descrições das cartas do leitor, também pode ser verificada<br />

a presença de processos existenciais. Embora não sejam tão frequentes<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 111


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

quanto os processos materiais, eles desempenham importante papel na<br />

construção do texto descritivo. Os processos existenciais selecionados<br />

pelo leitor/escrevente servem à construção da imagem do cenário<br />

descrito. Observemos os exemplos (8) e (9):<br />

(8) (...) tem lampiões huma das principaes ruas (...)<br />

(Corpus PHPB, 27/09/1842)<br />

(9) Sem o augmento de novas aquisições existem | alli peles<br />

sem estar armadas, no duplo do que | existe montado, e que<br />

de dia a dia se deterioram: (...)<br />

(Corpus PHPB, 24/03/1865)<br />

Em (8), para reclamar das condições da iluminação pública,<br />

o leitor/escrevente precisa representar linguisticamente o cenário<br />

em que se dá o problema. Para tanto, ele recorre à estruturação de<br />

uma oração com verbo codificador de processo existencial. O tem<br />

codifica a existência de lampiões nas ruas. A imagem do cenário vai<br />

ganhando forma à medida que são informados os elementos que o<br />

compõe. Assim como em (8), no exemplo (9), ocorre a presença de<br />

um processo existencial, e a escolha por tal processo material também<br />

serve à construção da imagem do cenário do problema. Ao falar da<br />

existência de peles que estão se deteriorando, o leitor/escrevente nos<br />

direciona para a imagem de um museu abandonado, esta imagem é<br />

de interesse dele construir.<br />

Na descrição da carta, o participante existente, normalmente,<br />

relaciona-se com o domínio semântico do problema. Lampiões em (8)<br />

tem a ver com o problema da iluminação pública; e peles em (9), com<br />

112 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

o problema do abandono do museu. Codificar processos existenciais<br />

ao descrever o cenário da situação-problema é bastante importante<br />

para a construção da argumentatividade das descrições, sobretudo,<br />

pelo fato de os processos existenciais trazerem como participante<br />

existente elementos do domínio do problema. Dentro da descrição, a<br />

existência de tais elementos dá maior visibilidade ao problema, uma<br />

vez que possibilita, durante a leitura, o leitor construir determinadas<br />

imagens desejadas pelo leitor/escrevente.<br />

Processos relacionais<br />

Foi identificada uma quantidade bastante significativa<br />

de processos relacionais nas descrições das cartas do leitor. Por<br />

serem textos descritivos, a presença desse tipo de processo já era<br />

esperada. O processos relacionais desempenham um importante<br />

papel no estabelecimento de relações entre diferentes fragmentos da<br />

experiência. Através deles, o leitor/escrevente codifica atributos e<br />

portadores dos atributos, desenhando o cenário da situação-problema.<br />

É importante salientar que processos relacionais identificadores não<br />

foram encontrados no corpus analisado, possivelmente em decorrência<br />

da tipologia textual em questão. Analisemos os exemplos (10), (11)<br />

e (12):<br />

(10) A Compesa é um verdadeiro câncer para as ruas do Recife.<br />

(Diário de Pernambuco, 19/09/2010)<br />

(11) (...) muitas ruas foram recentemente asfaltadas e hoje já<br />

estão totalmente destruídas pela ação da Compesa (...).<br />

(Diário de Pernambuco, 19/09/2010)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 113


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

(12) O tratamento que nos é dispensado pela PCR é digno de<br />

quem mora numa zona de exclusão (...).<br />

(Diário de Pernambuco, 12/06/2009)<br />

Em (10), ao reclamar do excesso de buracos nas ruas do<br />

Recife, o leitor/escrevente necessita relacionar dos fragmentos da<br />

sua experiência e, para tanto, escolhe codificar a oração por meio de<br />

um processo relacional. É da experiência do leitor/escrevente que a<br />

Compesa, enquanto companhia responsável pelo saneamento, produz<br />

buracos para a realização dos seus trabalhos e também é da experiência<br />

dele que o câncer é uma doença que se alastra pelo corpo. Na oração<br />

A Compesa é um verdadeiro câncer para as ruas do Recife, encontramos<br />

uma relação entre os dois conhecimentos mencionados. O nominal<br />

Compesa aparece como participante portador do atributo um verdadeiro<br />

câncer para as ruas do Recife. Por meio dessa relação de experiências,<br />

na descrição, é construída a imagem de uma cidade, em vários pontos,<br />

esburacada pela Compesa, o que, por sua vez, leva a outra construção<br />

de imagem: uma companhia geradora de problemas, em cujo trabalho<br />

não há compromisso social. Em (11), encontramos uma continuação<br />

da mesma carta. Mais processos relacionais são escolhidos para a<br />

composição do texto descritivo. Recentemente asfaltadas e totalmente<br />

destruídas pela ação da Compesa são atributos do participante portador<br />

muitas ruas. Observemos que a imagem do cenário corresponde à<br />

situação-problema vai sendo construída. Há uma companhia que,<br />

assim como o câncer, propaga-se ampliando sua área de destruição. Em<br />

(12), ao queixar-se do descaso da Prefeitura do Recife no tratamento<br />

dado a determinados bairros, o leitor/escrevente relaciona atributos<br />

ao participante portador o tratamento. As atribuições realizadas são o<br />

114 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

que nos permite a criação de uma imagem acerca da relação entre<br />

poder público e comunidade.<br />

A codificação de portadores e atributos é determinada pelo<br />

contexto. O participante portador é sempre de um dos domínios<br />

semânticos constituintes do contexto. Em (10) e (12), os respectivos<br />

participantes a Compesa e o tratamento relacionam-se com o causador;<br />

e, em (11), muitas ruas, com o domínio do problema. As atribuições<br />

dão força à argumentatividade presente na descrição. Foi observado<br />

que, quando os portadores são do domínio do causador ou do problema,<br />

as atribuições são, normalmente, de caráter negativo, enquanto que,<br />

quando ele é do domínio do prejudicado, as atribuições buscam<br />

construir uma imagem de sujeito vitimado tanto pelo tratamento<br />

do causador quando pelos problemas oriundos de tal tratamento.<br />

Conclusão<br />

Na composição do gênero cartas do leitor de reclamação, as<br />

descrições não correspondem a meras representações de imagens. Elas<br />

desempenham importante papel na construção da argumentatividade<br />

do texto. As imagens representadas são fruto de conhecimentos<br />

experienciais mobilizados para a realização de reclamações. Ao<br />

reclamar, o leitor/escrevente não busca apenas reconstruir um<br />

cenário imagético da situação-problema. Ele quer mais que isso:<br />

deseja obter uma solução para o problema do qual se queixa. Para<br />

tanto, precisa argumentar. Assim sendo, as cartas são escritas<br />

dentro de um contexto composto por três domínios semânticos:<br />

causador, problema, prejudicado, e dentro desse contexto, se dão<br />

as escolhas das formas linguísticas para a estruturação das orações,<br />

com vistas à realização de uma descrição com teor argumentativo.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 115


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Daí decorre que tal estruturação acontece num movimento top-down.<br />

O usuário da língua opera com o sistema de transitividade a partir<br />

do contexto dentro do qual produz a carta. O referido movimento<br />

leva a uma sistemática de combinações entre os verbos, que são os<br />

processos, e os sintagmas, que são os participantes, sob restrições<br />

não somente sintático-semânticas, mas, sobretudo, semânticopragmáticas.<br />

Os processos identificados na constituição das cartas<br />

são: o material, o existencial e o relacional. Embora, em muitos casos,<br />

a combinação entre determinados verbos e sintagmas seja sintático<br />

e semanticamente possível, são desautorizadas do ponto de vista<br />

semântico-pragmático.<br />

Referências<br />

BEZERRA, Maria Auxiliadora. Por que cartas do leitor na sala de aula. In: DIONÍSIO, Ângela<br />

Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). Gêneros textuais e<br />

ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.<br />

CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio<br />

de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

CUNHA, Maria Angélica Furtado da; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />

contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

GIVÓN, Talmy. Syntax I: a functional-typological introduction. Amsterdam: John Benjamins,<br />

1984.<br />

GOUVEIA, Carlos A. M. Texto e gramática: uma introdução à linguística sistémico-funcional.<br />

In: Matraga, Rio de Janeiro, RJ, v.16, n.24, p.13-47, 2009.<br />

HALLIDAY, Michael; MATTHIESSEN, Christian. An introduction to functional grammar.<br />

London: Oxford University Press, 2004.<br />

116 l Anais Eletrônicos - 2011


ENTRE DESCRIÇÕES E RECLAMAÇÕES NO GÊNERO CARTA DO LEITOR: O SISTEMA DE<br />

TRANSITIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS / Emanuel Cordeiro da SILVA (<strong>UFPE</strong>/UFRPE/UAST)<br />

IKEDA, Sumiko Nishitani; VIAN JÚNIOR, Orlando. A análise do discurso pela perspectiva<br />

sistêmico-funcional. In: LEFFA, Vilson J. (org.). Pesquisas em linguística aplicada: temas e<br />

métodos. Pelotas: EDUCAT, 2006.<br />

SOUZA, Medianeira. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Tese.<br />

Programa de Pós-graduação em Letras, <strong>UFPE</strong>, Recife, 2006.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 117


Resumo<br />

Baseado em estudos em torno da Multimodalidade Discursiva e da Semiótica Social,<br />

investigam-se os significados atrelados às imagens que compõem dois editorais<br />

das revistas Veja e Istoé. A análise segue os preceitos teórico-metodológicos da<br />

gramática do design visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006), levando em consideração<br />

os três tipos de trabalhos semióticos realizados pela imagem: representacional,<br />

interativo e composicional. Os resultados mostram que os sentidos construídos<br />

pela imagem em cooperação multimodal com a legenda e os demais elementos<br />

linguísticos dos editoriais analisados são decisivos para a elaboração dos<br />

significados totais desses textos e para o alcance de seus propósitos comunicativos.<br />

Palavras-chave: multimodalidade, semiótica social, gramática visual, editoriais<br />

de revistas<br />

Abstract<br />

Based on studies around the Multimodality Discourse and Social Semiotics, we<br />

aim to investigate the meanings related to the images that make up two editorial<br />

boards of Veja and Istoé.The analysis is based on the theoretical and methodological<br />

principles from Grammar of Visual Design (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006),<br />

considering three types of semiotic work performed by the image: representational,<br />

interactive and compositional. The results show that the meanings constructed by<br />

the image in multimodal cooperation, along with the subtitle and other linguistic<br />

elements of the editorials analyzed, are decisive for the overall development of the<br />

meanings of these texts and to the achievement of their communicative purposes.<br />

Keywords: multimodal, social semiotics, visual grammar, editorial boards


Os sentidos da imagem em<br />

editoriais de revistas 1<br />

Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

Introdução<br />

Estudos linguísticos atuais mostram que as práticas comunicativas<br />

contemporâneas vêm utilizando, com cada vez mais proeminência,<br />

signos não-verbais na composição dos textos, a despeito da<br />

supervalorização que a escrita recebeu nos anos anteriores. É cada<br />

vez mais comum o uso de imagens, cores, fontes tipográficas variadas,<br />

dentre outros recursos visuais, nos gêneros que circulam atualmente,<br />

tornando-os mais atraentes e complexos.<br />

Tendo como base nas teorias sobre a multimodalidade discursiva<br />

e nos pressupostos da Semiótica Social, especialmente os conceitos<br />

teórico-metodológicos da gramática do design visual, de Kress & van<br />

Leeuwen (2006), buscamos analisar as imagens utilizadas em editoriais<br />

de revistas de grande circulação nacional, ou seja, a Veja e a Istoé,<br />

tentando perceber de que maneira elas ajudam a compor os sentidos<br />

totais desses textos.<br />

1. Este artigo consiste num recorte da minha dissertação de Mestrado intitulada “Multimodalidade e produção<br />

de sentidos no editorial de revista”, defendida em junho de 2011.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 119


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Multimodalidade discursiva, semiótica social e gramática visual<br />

A multimodalidade discursiva é um fenômeno linguístico<br />

comum a todo e qualquer gênero textual (cf. DIONÍSIO 2005b, p.<br />

178) que consiste na coexistência de dois ou mais modos semióticos<br />

em uma composição enunciativa, sendo esta oral ou escrita. Porém, é<br />

importante esclarecer que os recursos visuais unem-se aos elementos<br />

linguísticos não apenas para ilustrar o que é dito pelo texto verbal, mas<br />

para criar novos sentidos. Dionísio (2005a, p. 195) defende que “todos<br />

os elementos visuais e suas disposições nos textos podem ser analisados,<br />

uma vez que desempenham um trabalho persuasivo”. Também Kress<br />

& van Leeuwen (2006), ao discutirem o papel dos elementos visuais<br />

na composição de um texto escrito, destacam o caráter ideológico que<br />

tais elementos encerram. De acordo com esses autores:<br />

As estruturas visuais não simplesmente reproduzem as<br />

estruturas da realidade. Pelo contrário, elas produzem imagens<br />

da realidade que está vinculada aos interesses das instituições<br />

sociais no interior das quais as imagens são produzidas,<br />

circuladas e lidas. Elas são ideológicas. As estruturas visuais<br />

nunca são meramente formais: elas têm uma dimensão<br />

semântica profundamente importante (KRESS; VAN<br />

LEEUWEN 2006, p. 47).<br />

Dessa forma, as estruturas visuais devem ser analisadas<br />

racionalmente de forma a considerar sua dimensão socioideológica. É<br />

nesse sentido que Kress & van Leeuwen (2006) propõem uma teoria<br />

de análise de elementos visuais: a gramática do design visual (GDV),<br />

que concebe as imagens como estruturas sintáticas que podem ser<br />

examinadas, assim como a linguagem. Essa obra tem como base o<br />

arcabouço teórico da Semiótica Social, a qual considera os vários<br />

120 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

sistemas semióticos, inclusive a linguagem, como conjuntos de<br />

recursos que estão à escolha dos falantes de determinada cultura para<br />

realizarem sentidos em contextos sociais. Portanto, os sentidos são<br />

tidos não como inerentes aos signos, como determinava a semiótica<br />

tradicional estruturalista, mas como pertencentes a uma dada cultura<br />

e influenciados pelas relações conflituosas que determinam a estrutura<br />

social de um grupo.<br />

A Semiótica Social trata os modos semióticos como recursos,<br />

termo emprestado de Halliday, que é definido “como as ações e<br />

os artefatos que nós usamos para nos comunicarmos, sejam eles<br />

produzidos fisiologicamente ou por meios tecnológicos” (VAN<br />

LEEUWEN, 2005, p. 3). Os recursos semióticos são, segundo Jewitt<br />

& Oyama (2001, p. 136), “produtos de histórias culturais” e “foram<br />

inventados em contextos de interesses e propósitos específicos”.<br />

Outro fator importante é que eles não possuem um sentido único e<br />

inalienável, mas um potencial semiótico, ou seja, uma série limitada<br />

de significados que podem ser ativados pelos interlocutores em<br />

contextos sociais específicos (cf. JEWITT; OYAMA 2001, p. 135).<br />

Essa postura dos semioticistas sociais em relação aos modos semióticos<br />

foi influenciada por Halliday (1978) em sua Linguística Sistêmico-<br />

Funcional (LSF), que descreve a linguagem verbal como uma rede<br />

de escolhas disponíveis aos falantes para produzir sentidos realizados<br />

através de três metafunções: a ideacional, a interativa e a textual.<br />

Kress & van Leeuwen (2006) aplicaram o modelo da LSF à<br />

análise de estruturas visuais e criaram a gramática do design visual. Para<br />

os autores, “o modo visual, assim como todos os modos semióticos tem<br />

que servir a diversas exigências comunicacionais (e representacionais),<br />

com o fim de funcionar como um sistema de comunicação completo”<br />

(KRESS; VAN LEEUWEN, 2006, p. 40). Na GDV, foi adotada a noção<br />

teórica de metafunção utilizada por Halliday (1978), para referir-se às<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 121


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

funções principais que todo elemento visual realiza em uma composição:<br />

metafunção representacional, metafunção interativa e metafunção<br />

composicional. O quadro a seguir, adaptado de Fernandes & Almeida<br />

(2008, p.12), apresenta as definições das metafunções de Kress & van<br />

Leeuwen relacionando-as com as metafunções de Halliday.<br />

Halliday<br />

Ideacional<br />

Kress &<br />

v. Leeuwen<br />

Representacional<br />

Responsável pelas estruturas que constroem<br />

visualmente a natureza dos eventos, objetos e<br />

participantes envolvidos, e as circunstâncias em<br />

que ocorrem. Indica em outras palavras, o que<br />

nos está sendo mostrado, o que se supõe esteja<br />

“ali”, o que está acontecendo, ou quais relações<br />

estão sendo construídas entre os elementos<br />

apresentados.<br />

Interpessoal<br />

Interativa<br />

Responsável pela relação entre os participantes,<br />

é analisada dentro da função denominada de<br />

função interativa (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006),<br />

onde recursos visuais constroem “a natureza das<br />

relações de quem vê e o que é visto”.<br />

Textual<br />

Composicional<br />

Responsável pela estrutura e formato do<br />

texto, é realizada na função composicional na<br />

proposição para análise de imagens de Kress &<br />

van Leeuwen, e se refere aos significados obtidos<br />

através da “distribuição do valor da informação<br />

ou ênfase relativa entre os elementos da<br />

imagem”.<br />

Quadro 1. As metafunções de Halliday e de Kress & van Leeuwen.<br />

(cf. FERNANDES; ALMEIDA, 2008, p.12)<br />

Apesar da capacidade que o modo visual apresenta de<br />

concretizar as mesmas funções do modo linguístico, é necessário<br />

esclarecer que, como apontam Kress & van Leeuwen (2006, p. 46),<br />

122 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

há situações em que os elementos visuais não conseguem transmitir<br />

o que é expresso pela linguagem e vice-versa. Imagem e linguagem<br />

compõem significados próprios para propósitos comuns, lançando<br />

mão de instrumentos específicos com o objetivo de desempenharem<br />

as três chamadas metafunções. Enquanto a linguagem realiza a<br />

metafunção ideacional através do sistema de transitividade, a<br />

imagem realiza a metafunção representacional através do sistema<br />

vetorial e do sistema de taxionomias. Enquanto a linguagem realiza a<br />

metafunção interpessoal através do sistema do modo, a imagem realiza<br />

a metafunção interativa através dos recursos do contato, da distância<br />

social, da perspectiva e da modalidade. Enquanto a linguagem realiza<br />

a metafunção textual através do sistema temático, a imagem realiza a<br />

metafunção composicional através dos sistemas do valor informativo,<br />

da estruturação e da saliência.<br />

Metodologia<br />

Nesse artigo, investigamos dois editoriais pertencentes cada<br />

qual a um suporte diferente, quais sejam as revistas Veja e Istoé.<br />

Tais textos foram publicados no mesmo período, ou seja, na última<br />

semana de janeiro de 2011, de modo que pudéssemos observar os<br />

textos e os significados construídos por eles tendo como referência o<br />

mesmo contexto discursivo de produção, o qual gerou, inclusive, uma<br />

coincidência nos temas abordados pelos editorais coletados.<br />

O exame dos sentidos produzidos pelas imagens que compõem<br />

os editoriais segue uma abordagem interpretativista, tendo como norte<br />

as categorias de análise da gramática do design visual, de Kress & van<br />

Leeuwen (2006), que são resumidas no Quadro 2, a seguir:<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 123


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

ALGUNS CONCEITOS-CHAVE DA GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL (cf. KRESS; VAN LEEUWEN, 2006)<br />

Participantes Representados (PR)<br />

Participantes Interativos (PI)<br />

Vetor<br />

Cada elemento que aparece representado na imagem<br />

Participantes da interação mediada pela imagem: produtor e<br />

leitor<br />

Linha oblíqua que une os participantes representados, indicando<br />

que um age sobre o outro<br />

Metafunção Representacional<br />

Processos Narrativos<br />

(Participantes ligados<br />

por vetores)<br />

Processos Conceituais<br />

(Não há vetores entre<br />

participantes)<br />

TIPO DE PROCESSO<br />

Processo de ação<br />

P. de reação<br />

(ação de olhar)<br />

P. analítico<br />

(relação parte-todo)<br />

P. classificacional<br />

(rel. de ordem<br />

estática)<br />

P. simbólico<br />

TIPOS DE PARTICIPANTES<br />

Ator: participante do qual emana o vetor, que pratica<br />

a ação<br />

Meta: participante para o qual se direciona o vetor, que<br />

sofre a ação<br />

Reator: participante que pratica a ação de olhar<br />

Fenômeno: participante (ou processo) para o qual se<br />

direciona o olhar do Reator<br />

Portador: o todo, participante que contém os Atributos<br />

Possessivos<br />

Atributos Possessivos: as partes que constituem o<br />

Portador<br />

Superordinado: categoria mais geral (o tronco)<br />

Subordinados: subcategorias (os ramos)<br />

Portador: participante ao qual se atribuem valores<br />

simbólicos<br />

Atributos Simbólicos: atribuem valores ao Portador<br />

Circunstâncias<br />

(elementos<br />

secundários)<br />

Locativa: servem de Cenário onde se localizam os participantes e suas ações<br />

de Acompanhamento: acompanham os participantes principais<br />

de Meio: servem de ferramenta ou instrumento para a realização da ação dos<br />

participantes principais<br />

124 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

Metafunção Interativa<br />

Modalidade<br />

Contato<br />

Codifica o valor de verdade atribuído à imagem, através do uso de certos<br />

marcadores de modalidade: a contextualização, o grau de detalhe e o tipo de<br />

reprodução das cores etc.<br />

Demanda: quando os participantes representados olham para o observador<br />

Oferta: quando os participantes representados não olham para o observador<br />

Próxima: uso do plano fechado; relação de intimidade entre PR e PI<br />

Distância Social<br />

Média: uso de plano intermediário; PR e PI se conhecem, mas não são íntimos<br />

Longa: uso de plano aberto; participantes representados são totalmente<br />

estranhos<br />

Perspectiva<br />

Ângulo Horizontal<br />

Ângulo Vertical<br />

Frontal: relação de envolvimento entre PR e PI<br />

Oblíquo: relação de estranhamento entre PR e PI<br />

Alto: Participantes interativos têm poder sobre a imagem<br />

Baixo: A imagem tem poder sobre participantes<br />

interativos<br />

Ao nível do olhar do observador: igualdade de poder<br />

Metafunção Composicional<br />

Valor informativo<br />

Saliência<br />

Estruturação<br />

Refere-se ao valor específico assumido pelos elementos visuais de acordo com<br />

sua localização na página: direita/esquerda (Dado/Novo); zona superior/zona<br />

inferior (Ideal/Real); zona central/bordas (Centro/Margens)<br />

Relaciona-se ao modo como os participantes representados estão dispostos<br />

para criar uma hierarquia de importância entre eles<br />

Presença de elementos que conectam ou separam os participantes representados<br />

Quadro 2. Resumo de alguns conceitos-chave da GDV<br />

Decidimos analisar o gênero editorial de revista por ser muito<br />

acessível, especialmente os de revistas tão populares e de circulação<br />

tão abrangente como a Veja e a Istoé; e, principalmente, por apresentar<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 125


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

um caráter bastante informativo visualmente, como demonstram<br />

pesquisas como Souza (2006); Souza et al (2008); Santos (2009);<br />

Aquino (2010); e Aquino (2011).<br />

Análise do editorial de Veja: a solidariedade para com o povo<br />

haitiano<br />

O editorial de Veja (Figura 1), de 27 de janeiro de 2010,<br />

repercute o terremoto ocorrido no Haiti, que deixou milhares de<br />

vítimas fatais e tantas outras vivendo em condições precárias, sem<br />

moradia, alimentos, água, saúde e segurança. O editorial, publicado<br />

em página dupla, destaca que o episódio do desastre, apesar de trazer<br />

tantos prejuízos e provocar o que há de pior na humanidade, solidão,<br />

miséria, brutalidade etc., também revelou o que há de mais nobre<br />

na nossa espécie: a solidariedade, representada pela ajuda imediata<br />

advinda de vários países ao redor do globo, em forma de bombeiros,<br />

equipes médicas, doações em dinheiro, alimentos, remédios etc.<br />

Analisemos, agora, se os sentidos representacionais, interativos e<br />

composicionais produzidos pela imagem reforçam ou contradizem o<br />

que o texto verbal afirma.<br />

126 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

Figura 1. Editorial de Veja<br />

Fonte: Veja, 27 de janeiro de 2010<br />

Figura 1a. Processo narrativo de ação no editorial da Veja<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 127


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Quanto aos sentidos representacionais, a imagem que compõe<br />

o editorial de Veja (ver Figura 1a) representa um grupo de soldados<br />

cuja nacionalidade não é especificada, em um helicóptero de resgate<br />

(informação que só pode ser ativada em diálogo com a legenda),<br />

socorrendo um menino haitiano, provavelmente retirado debaixo dos<br />

escombros causados pelo terremoto. O principal processo observado<br />

nessa imagem é protagonizado pelo soldado em primeiro plano,<br />

parcialmente de costas para a câmera, cujo braço direito, coxa direita,<br />

prolongamento do corpo e da cabeça além do depósito de soro que ele<br />

segura e do cateter que emana desse depósito em direção ao pequeno<br />

haitiano formam vetores oblíquos que ligam o soldado ao menino. Temse,<br />

portanto, um processo narrativo de ação em que o soldado é Ator e a<br />

criança é a Meta da ação do soldado, esta ação pode ser interpretada – a<br />

partir de nosso conhecimento prévio sobre a catástrofe haitiana, pela<br />

situação retratada na imagem e pelo depósito de soro que o soldado<br />

segura (circunstância de meio) – como “prestar socorro”, “salvar”,<br />

“cuidar”, “ajudar” etc. Assim, podemos traduzir linguisticamente esse<br />

processo como “O soldado presta socorro ao menino haitiano”. O<br />

discurso materializado pela imagem é, portanto, o de que os soldados<br />

estrangeiros são heróis que prestam um serviço de ajuda humanitária<br />

ao sofrido povo haitiano, representado na figura da criança.<br />

Os atributos possessivos de ambos os participantes ajudam a<br />

compor o sentido do processo narrativo protagonizado por eles e a<br />

reforçar o discurso do herói estrangeiro que ajuda o flagelado haitiano.<br />

O soldado está totalmente vestido com seu uniforme, portando<br />

equipamentos de segurança, como o capacete, a mochila, diversos<br />

aparatos presos à cintura, além de um revólver preso à perna direita por<br />

um coldre. Esses atributos nos permitem identificar esse participante<br />

como uma pessoa que possui poder e que está preparada tanto para<br />

combater, se necessário, como para prestar ajuda às vítimas do<br />

128 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

terremoto. A criança, no entanto, não parece estar usando qualquer<br />

roupa, é magra e muito jovem, características que a identificam como<br />

alguém frágil e vulnerável. Desse modo, tais atributos reforçam os<br />

papéis de ambos os participantes como Ator (ativo) e Meta (passivo),<br />

e buscam sensibilizar o leitor para sentir pena do menino haitiano e<br />

admiração pelo forte soldado que o socorre.<br />

Na legenda, por sua vez, o destaque maior é dado ao menino<br />

haitiano, tanto verbalmente, uma vez que se omite o soldado e sua<br />

ação de socorrer o menino, como visualmente, já que as palavras<br />

“Criança ferida”, que obviamente referem-se ao menino haitiano<br />

da imagem, recebem muita saliência ao aparecerem em negrito,<br />

constituindo a cabeça da legenda. Sendo assim, a legenda dialoga<br />

com a imagem, mas não repete o sentido desta, uma vez que dá mais<br />

atenção à vítima passiva e à ideia de fragilidade transmitida pelo<br />

vocábulo “ferida”, do que ao socorrista ativo, que é omitido.<br />

Em relação ao texto verbal do editorial, não se tem nenhum<br />

comentário direto sobre o fato representado pelo conjunto imagemlegenda.<br />

O texto trata do modo como muitos países do mundo se<br />

mobilizaram solidariamente para promover ajuda à população haitiana<br />

castigada pelo terremoto, como se vê, por exemplo, no segundo<br />

parágrafo, quando afirma que “horas depois do dimensionamento<br />

da magnitude da tragédia, partiram ofertas de ajuda de todas as<br />

partes do planeta”. A imagem dialoga com essa ideia transmitida<br />

pelo texto na medida em que ela parece constituir uma metonímia<br />

de tal informação, no sentido de que, na imagem, substitui-se o todo<br />

(o mundo presta socorro às vítimas haitianas) por uma parte (um<br />

soldado estrangeiro presta socorro a uma criança haitiana). Repetese,<br />

portanto, a relação estabelecida pelo texto verbal, que coloca o<br />

Haiti como “a doença ou vítima”, que, portanto, possui um papel<br />

mais passivo nessa relação; e as nações estrangeiras como “a cura ou<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 129


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

o auxílio” e que têm papel ativo e mais saliente. A legenda, por sua<br />

vez, institui uma ponte semântica entre a informação mais específica<br />

transmitida pela imagem (Criança ferida em helicóptero no Haiti) e<br />

a informação mais geral transmitida pelo texto (o mundo correu em<br />

socorro às vítimas do terremoto).<br />

Voltando à imagem, no segundo plano são representados<br />

outros soldados, envolvidos em processos secundários que parecem<br />

ter menos importância na constituição dos sentidos representacionais<br />

da fotografia. Três desses participantes são encobertos parcialmente,<br />

portanto, não podemos determinar ao certo o que eles estão fazendo.<br />

O outro soldado, na parte superior esquerda, parece apenas observar<br />

o resgate do menino haitiano e assume, portanto, o papel de Reator<br />

num processo narrativo de reação cujo Fenômeno é todo aquele<br />

processo de ação protagonizado pelo soldado e a criança vitimada pelo<br />

terremoto. Esse processo de reação, no entanto, é apenas secundário,<br />

assim como os processos que não podemos determinar com clareza nos<br />

quais estão envolvidos os outros três soldados representados. Podemos<br />

afirmar, assim, que eles aparecem apenas como a circunstância em que<br />

ocorre o processo principal, conferindo-lhe um contexto dramático.<br />

Partindo para a análise da metafunção interativa, observamos<br />

que, quanto à modalidade utilizada pela imagem (ver Figuras 1 e 1a),<br />

ela possui um alto nível de modalidade naturalística, uma vez que<br />

utiliza o padrão da fotografia colorida em relação a todos os marcadores<br />

de modalidade: cor, brilho, luz, contraste, contextualização, dentre<br />

outros. Assim sendo, tal imagem possui grande valor de verdade e<br />

a informação que ela representa é processada pelos leitores como<br />

factual, algo que realmente aconteceu.<br />

Em relação ao contato, não se observa nenhuma demanda dos<br />

participantes representados aos leitores. Todos eles são representados<br />

em contato de oferta, ou seja, eles se oferecem como itens de informação<br />

130 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

ao leitor, que, por sua vez, aborda a imagem como colocando-se atrás<br />

de uma janela de onde ele pode anônima e objetivamente observar a<br />

realidade e, por conseguinte, tomar conhecimento dela.<br />

Analisando a dimensão do plano da imagem, percebemos que<br />

ela capta os participantes representados mais ou menos do joelho<br />

para cima. Assim sendo, cria-se uma relação virtual de distância<br />

social entre participantes representados e interativos na qual eles se<br />

conhecem, mas não são necessariamente íntimos. O editorial, assim,<br />

permite aos leitores avaliarem os participantes representados, observar<br />

de uma distância mais ou menos próxima seus atributos, suas ações e<br />

reações, mas ainda assim mantendo-os como meros conhecidos, com<br />

grau mínimo de familiaridade.<br />

Focando agora na perspectiva de onde a fotografia foi captada,<br />

nota-se o uso de um ângulo horizontal oblíquo para a maioria dos<br />

participantes representados (excluindo aquele soldado na parte<br />

inferior esquerda da imagem) e de um ângulo vertical à altura do<br />

olhar do leitor. Isso nos diz que, em primeiro lugar, o que está sendo<br />

representado pela imagem, ou seja, os soldados, a vítima haitiana e a<br />

operação de prestar socorro a tal vítima, não pertencem ao mundo do<br />

leitor que, na sua privilegiada posição de observador só tem o papel<br />

de perceber e julgar o que a imagem lhe mostra, sem envolver-se na<br />

ação representada. O soldado na parte inferior esquerda da imagem é<br />

o único participante da fotografia que é mostrado num ângulo frontal,<br />

participando assim de uma relação virtual de envolvimento com o<br />

leitor, uma vez que, na situação ali retratada ele divide com o leitor<br />

o papel de apenas observar o soldado ajudando o menino ferido. Em<br />

segundo lugar, quanto ao uso do ângulo vertical, cria-se uma relação<br />

virtual em que o leitor está em posição de igualdade de poder em<br />

referência aos participantes representados. Portanto, os leitores se<br />

solidarizam com a situação dramática mostrada na imagem.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 131


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Analisando os sentidos composicionais criados a partir do<br />

modo como os elementos no interior da fotografia se combinam para<br />

compor a imagem, notamos que, em relação ao valor informativo, a<br />

imagem parece compor uma estrutura Centro-Margens, em que o<br />

processo de ação que envolve o soldado em primeiro plano e o menino<br />

ferido ocupam o Centro da composição e, portanto, constituem a<br />

informação mais importante. Os outros participantes ao redor desse<br />

processo principal constituem as Margens da imagem e possuem papel<br />

secundário.<br />

Figura 1b. Estrutura Centro-Margens e estratégias de estruturação<br />

na imagem do editorial da Veja<br />

Estratégias de estruturação e de saliência também operam para<br />

destacar o soldado e a criança haitiana. As extremidades direita e<br />

esquerda do helicóptero, que compreendem as aberturas de suas<br />

portas, formam duas espécies de bordas que envolvem o participantes<br />

protagonistas da imagem, ajudando a separar o Centro das Margens<br />

(ver Figura 1b, inserções em amarelo). Além disso, o fato de estarem<br />

em primeiro plano, ocuparem a maior fatia da composição, além de se<br />

132 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

posicionarem no centro, dão maior saliência a esses dois participantes,<br />

reforçando seus papéis como itens de informação principais.<br />

Análise do editorial de Istoé: a truculência norte-americana<br />

Figura 2. Editorial de Istoé<br />

Fonte: Istoé, 27 de janeiro de 2010<br />

O editorial de Istoé (Figura 2), de 27 de janeiro de 2010, coincide<br />

com o de Veja não só pelo tempo de publicação, mas também pelo<br />

tema do editorial: o trágico terremoto haitiano. Essa coincidência<br />

talvez se deva ao fato de ser um assunto constituído de muito apelo<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 133


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

popular e que ecoou mundialmente. Mas, apesar de trazer o mesmo<br />

assunto, o editorial de Istoé o aborda de uma ótica diferente. Enquanto<br />

o editorial de Veja explorou o modo como o mundo, incluindo os<br />

Estados Unidos, lançaram-se em solidariedade para com o país<br />

arrasado pelo terremoto; o editorial de Istoé, assinado por Carlos José<br />

Marques, vai na contramão ao criticar o modo agressivo como os EUA<br />

agiram, dando mais importância ao “esforço para controlar e garantir<br />

a segurança política haitiana” em vez “das necessidades básicas de<br />

vida, resgate e atendimento médico” do povo sofrido daquele país<br />

(trechos transcritos do primeiro parágrafo). Essa postura já é deixada<br />

evidente logo em seu título, “A ocupação do Haiti”, no qual a palavra<br />

“ocupação” é utilizada pejorativamente com o fim de demonstrar<br />

indignação pela forma grosseira como se portaram os americanos<br />

nesse episódio. No fim do texto, aliás, quando escreve “o Haiti não<br />

é um país a ser ocupado, mas ajudado”, Carlos José Marques opõe a<br />

palavra “ocupado”, também presente no título, à palavra “ajudado”,<br />

reforçando assim a opinião de Istoé sobre a postura errônea assumida<br />

pelos EUA.<br />

Através da análise da imagem, levando em conta as três<br />

metafunções descritas por Kress & van Leeuwen (2006) na GDV,<br />

ou seja, a representacional, a interativa e a composicional, podemos<br />

observar de que modo a opinião expressa pelo texto verbal do editorial<br />

de Istoé é reforçada, ou talvez atenuada, pelas escolhas visuais do<br />

editorialista.<br />

Representacionalmente, a imagem nos mostra uma operação<br />

militar envolvendo soldados em primeiro plano, um grande helicóptero<br />

pousado sobre a grama logo atrás, e um segundo helicóptero voando<br />

em último plano. No último plano da imagem, também se observa<br />

um prédio em ruínas. À primeira vista, o leitor que não conhece este<br />

local é incapaz de identificar que prédio é este e tão pouco a que país<br />

134 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

pertencem aqueles soldados e aqueles helicópteros. Não há também<br />

nenhuma legenda que possa oferecer ao leitor essas informações.<br />

No entanto, percebemos que a imagem invade o espaço textual,<br />

como que indicando uma imbricação entre esses dois modos semióticos<br />

que se complementam. O leitor, assim, é levado a ler o texto, ou pelo<br />

menos o início do primeiro parágrafo, que está na porção invadida<br />

pela fotografia, com vistas a preencher as lacunas que aquela imagem<br />

sozinha não pode preencher. Só então, ele identificará aquele prédio<br />

como a sede do governo do Haiti, e os soldados e helicópteros como<br />

pertencentes às forças armadas americanas, uma vez que naquela<br />

porção do texto lê-se: “A cena do desembarque ostensivo das forças<br />

americanas na sede destruída do governo do Haiti diz muito sobre<br />

o tipo de prioridade que rege a mobilização dos EUA naquele país”.<br />

Figura 2a. Processo narrativo de ação na imagem do editorial da Istoé<br />

Identificados os participantes, podemos agora fazer uma leitura<br />

mais satisfatória da sintaxe visual subjacente à fotografia. Como a<br />

Figura 2a ilustra, podemos notar vetores formados pelos helicópteros<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 135


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

e pelos corpos inclinados dos soldados que vão em direção ao palácio<br />

presidencial haitiano. Isso nos faz reconhecer, na imagem, a presença<br />

de um intenso processo narrativo de ação, que envolve, de um<br />

lado, as forças armadas americanas e, do outro, a sede do governo<br />

haitiano. Exercendo o papel de Ator, temos todo um grupo formado<br />

pelos soldados e os helicópteros. Ao prédio, portanto, cabe o papel<br />

de Meta neste processo, cuja tradução linguística poderia ser “As<br />

forças armadas americanas dirigem-se para o palácio presidencial<br />

haitiano” ou “As forças armadas americanas desembarcam no palácio<br />

presidencial haitiano”, ou ainda, como o título do editorial sugere,<br />

“As forças armadas ocupam o palácio presidencial haitiano”.<br />

Se observarmos também os participantes, focalizando não o<br />

que eles fazem, mas o que eles são, ou seja, se ao invés do processo<br />

narrativo de ação nos quais eles estão envolvidos, que é o processo<br />

mais saliente, enfocarmos os processos conceituais analíticos que lhes<br />

são encaixados, será possível captar outros sentidos que reforçam a<br />

ideia de hostilidade transmitida por aquele processo principal.<br />

Do lado das forças armadas, analisando os soldados<br />

individualmente, vemos que cada um deles encontra-se bem equipado<br />

com capacete, mochila e armas de alto calibre. Em comparação com o<br />

soldado do editorial de Veja, discutido anteriormente, não se vê muita<br />

diferença em relação a esses Atributos Possessivos, com exceção da<br />

arma que, naquele era menor e estava guardada no coldre. No entanto,<br />

enquanto no contexto daquele editorial (ver Figura 3.8a) tais atributos<br />

traziam a ideia de segurança, ou seja, a ideia de que quem estava<br />

ajudando o menino ferido era alguém bem preparado e equipado; no<br />

contexto do editorial de Istoé eles recebem uma conotação negativa,<br />

ou seja, de ofensa e agressividade. Considerando, agora, o grupo de<br />

soldados como um todo (Portador) e seus indivíduos como suas partes<br />

(Atributos Possessivos), chama-nos a atenção o número relativamente<br />

136 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

expressivo de componentes deste grupo, o que salienta o sentido de<br />

força de ataque. Por fim, os helicópteros, por seu grande porte, também<br />

transmitem imponência e contribuem para qualificarmos as forças<br />

armadas, o nosso Ator daquele processo principal, como altamente<br />

hostil e intimidante.<br />

Voltando-nos agora para a Meta, ou seja, o palácio presidencial,<br />

percebemos que seus atributos são totalmente contrários aos do Ator.<br />

O prédio encontra-se parcialmente destruído e fragilizado devido,<br />

podemos deduzir, à ação do terremoto. Tais características, colocadas<br />

em contraste com o poderio apresentado pelas forças armadas<br />

americanas, apenas agigantam a vantagem que aquele participante<br />

possui sobre o frágil edifício, que representa simbolicamente o Haiti.<br />

Aqui vemos um fator de semelhança entre esta imagem e a<br />

fotografia de Veja (ver Figura 1a), analisada na última sessão: em<br />

ambas, o Haiti (no editorial de Veja representado pelo menino<br />

ferido; no da Istoé representado pelo palácio presidencial) é retratado<br />

como vulnerável e afligido. Além disso, também em ambos, o Haiti<br />

assume o papel de Meta da ação de um participante estrangeiro, com<br />

a diferença de que na imagem do editorial de Veja tal ação era a de<br />

“prestar socorro” e aqui é a de “ocupar”, “tomar de conta”.<br />

Essa leitura nos faz concluir que a mensagem transmitida pela<br />

imagem do editorial da Istoé vai ao encontro da mensagem do texto do<br />

editorial, ou seja, a de representar os americanos de forma agressiva,<br />

passando a ideia de que eles estão mais preocupados em manter a<br />

ordem política do Haiti, utilizando-se de força militar ostensiva, ao<br />

invés de priorizarem a missão humanitária. Aliás, a imagem não apenas<br />

reforça o que o texto verbal argumenta, mas ela é, digamos, o principal<br />

trunfo utilizado pelo editorialista, Carlos José Marques, para defender<br />

seu ponto de vista. Isso pode ser dito baseado na forma enfática com<br />

que o texto faz referência à fotografia e à cena nela representada, como<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 137


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

mostram os seguintes trechos, retirados do primeiro parágrafo: “A cena<br />

do desembarque ostensivo das forças americanas na sede destruída<br />

do governo do Haiti[...]”; “A marcha dos soldados armados para<br />

sinalizar ordem [...]’; “Com seus helicópteros Black Hawk descendo<br />

sobre o palácio presidencial, quiseram, simbolicamente, mostrar<br />

quem manda”. Desse modo, o editorialista aproveita-se do grande e<br />

imediato impacto que uma imagem pode gerar sobre os leitores de<br />

modo a sensibilizar decisivamente o público a aceitar sua opinião.<br />

Do ponto de vista dos sentidos interativos, notamos que os<br />

parâmetros de cor, contraste, luz e contextualização apresentados<br />

pela imagem seguem o padrão da fotografia colorida, o que nos faz<br />

afirmar que se trata de uma imagem com alto grau de modalidade<br />

naturalística. Sendo assim, tal fotografia é lida como verdadeira, ou<br />

seja, como mostrando um fato que realmente ocorreu, o que ajuda o<br />

editorialista na defesa de sua opinião.<br />

O contato codificado é o de oferta, uma vez que não há por<br />

parte de nenhum dos participantes representados um olhar em<br />

direção à câmera, ou melhor, ao leitor. Assim, os participantes estão<br />

ali para serem observados, à mercê da análise crítica e “impessoal”<br />

do receptor do editorial, que pode, seguindo o autor do texto, julgar<br />

suas ações negativamente, ou até, por outros motivos desconhecidos<br />

e não previstos, aprovar aquela operação militar.<br />

O tamanho da moldura utilizada na captação da imagem codifica<br />

uma distância social máxima entre os participantes representados e o<br />

leitor. Isso quer dizer que, para o leitor, os soldados podem ser vistos<br />

como personagens totalmente desconhecidos com os quais eles não<br />

dividem qualquer tipo de laço social. Eles estão tão distantes que suas<br />

qualidades físicas individuais não podem ser distinguidas, tornandoos<br />

meros tipos.<br />

138 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

Quanto à perspectiva, observa-se o uso de um ângulo<br />

horizontal oblíquo, o que tem o potencial de transmitir um sentido<br />

de alheamento, o que faz com que o leitor encare o que está sendo<br />

mostrado pela imagem como não pertencente ao seu mundo. Além<br />

disso, nota-se que, verticalmente, a fotografia foi captada de um<br />

ângulo alto, o que dá ao observador poder simbólico em relação aos<br />

participantes representados. Portanto, ao leitor é consentido observar<br />

a imagem não só de uma distância que lhe permita virtualmente<br />

manter-se anônimo, mas também de um ângulo que lhe dá todo o<br />

poder de avaliar a cena observada do modo que achar melhor, mas<br />

preferivelmente do modo que o autor o induziu a pensar.<br />

Figura 3b. Estrutura Ideal-Real na imagem do editorial da Istoé<br />

Analisando os sentidos composicionais atrelados à imagem,<br />

percebe-se uma linha de estruturação formada pela linha do gramado<br />

que separa a zona inferior da zona superior da imagem (ver Figura<br />

3.10b). Embaixo, com valor de Real, encontram-se os soldados<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 139


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

americanos e a base do helicóptero mais proeminente; em cima,<br />

com valor de Ideal, predomina a cor cinza do prédio do governo<br />

haitiano. Esses valores de informação justificam-se pelo fato de que o<br />

prédio não representa somente o palácio presidencial, mas simboliza<br />

essencialmente todo o Haiti dizimado pelo terremoto; por outro lado,<br />

as forças armadas americanas possuem valor absoluto e prático, e<br />

representam exatamente as “forças armadas americanas” que vieram<br />

para tentar manter a segurança política daquele país.<br />

Observa-se que a parte inferior da imagem apresenta maior<br />

iluminação e cores mais vivas, além de aparecer em primeiro<br />

plano, aspectos que dão mais saliência a essa zona da imagem em<br />

contraposição aos tons cinza e sombrios da parte superior da fotografia,<br />

que está em último plano. Destacam-se, assim, as forças armadas e<br />

seu poderio como a informação mais relevante da imagem. Por outro<br />

lado, o prédio símbolo do Haiti é atenuado, revelando a tendência<br />

de representar o Haiti como um item de informação secundário, que<br />

aparece em segundo plano.<br />

Considerações finais<br />

O exame das imagens que compõem os editoriais da Veja<br />

e da Istoé nos fez ver que esses elementos produzem significados<br />

representacionais, interativos e composicionais relevantes para o<br />

entendimento total dos textos. O modo como a imagem representa<br />

determinado fato da realidade; o modo como ela cria uma relação<br />

virtual de credibilidade, contato, distância social, envolvimento<br />

e poder para com o leitor; e o modo como ela arranja seus<br />

participantes, dando destaque a uns e ocultando outros, agrupandoos<br />

ou individualizando-os e atribuindo-lhes determinados valores de<br />

informação por sua localização, tudo isso cria sentidos que perpetuam<br />

140 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

discursos sócio-historicamente marcados e cooperam na defesa dos<br />

pontos de vista do editorialista.<br />

A coincidência em relação ao período de publicação e ao<br />

tema dos editoriais nos possibilitou observar que os editorialistas<br />

e, por extensão, as revistas por eles representadas assumem, em<br />

relação ao mesmo fato da realidade, ou seja, o terremoto do Haiti,<br />

posições discursivas totalmente divergentes. O editorial da Istoé,<br />

focalizou a truculência americana e seu modo agressivo e imponente<br />

de “dar apoio” ao governo haitiano. Em contrapartida, no editorial<br />

da Veja, os estrangeiros, nos quais se incluem os americanos, são<br />

representados como heróis solidários que vieram trazer ordem e<br />

esperança à população afligida pelo desastre natural. Uma tendência<br />

comum em ambos os pontos de vista é a de representar o Haiti, seu<br />

povo e a tragédia por ele sofrida em segundo plano, como meros<br />

objetos (metas). Os editorais, por meio de suas seleções verbais e<br />

visuais, focalizaram a ação de participantes estrangeiros frente ao<br />

desastre natural, ao invés de chamarem a atenção para o desastre<br />

em si e seus efeitos para a população local. Através dos significados<br />

representacionais, interativos e composicionais atrelados às imagens,<br />

que são frutos das escolhas comunicativas dos editorais na confecção<br />

de seus textos, tais discursos são reforçados a fim de tornar mais efetivo<br />

o trabalho de convencimento do leitor.<br />

Além disso, foi demonstrado que os sentidos estabelecidos pelos<br />

elementos visuais dos editoriais investigados estabelecem uma relação<br />

dialógica com os sentidos transmitidos pelo texto verbal. Elementos<br />

linguísticos e não-linguísticos trabalham em conjunto para formar uma<br />

significação social global. Isso torna o processamento desses artefatos<br />

textuais uma atividade mais complexa e desafiadora, pois exige do<br />

leitor a perspicácia de integrar imagem e palavra no processamento<br />

do texto multimodal.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 141


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Referências<br />

AQUINO, L. D. Mecanismos de construção de sentidos no gênero editorial: aspectos<br />

verbais e visuais. Dissertação, Universidade do Estado do Rio G. do Norte-UERN, Pau<br />

dos Ferros, 2010.<br />

AQUINO, J. L. Visualidade da escrita e significação no gênero editorial. Dissertação,<br />

Universidade do Estado do Rio G. do Norte-UERN, Pau dos Ferros, 2011.<br />

DIONÍSIO, A. P. Multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. In: MARCUSCHI,<br />

L. A.; DIONÍSIO, A. P, Fala e Escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2005a.<br />

_____ _. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A. M. et. al. (Orgs.),<br />

Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas e União da Vitória/PR: Kaygangue, 2005b.<br />

FERNANDES, J. D. C. & ALMEIDA, D. B. L. Revisitando a gramática visual nos cartazes de<br />

guerra. In. ALMEIDA, D. B. L. (Org.), Perspectiva em análise visual: do fotojornalismo ao<br />

blog. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008.<br />

HALLIDAY, M. A. K. As bases funcionais da linguagem. In. DASCAL, M. (Org.), Fundamentos<br />

metodológicos da linguística. São Paulo: Global, v. 1 (Global universitária: Série linguagem,<br />

comunicação e sociedade), 1978.<br />

HODGE, R. & KRESS, G. Social semiotics – 1.ed., Ithaca – NY: Cornell University Press, 1988.<br />

JEWITT, C. & OYAMA, R. Visual meaning: a social semiotic approach, In: van LEEUWEN, T<br />

& JEWITT, C.. (Orgs.). Handbook of visual analysis. London: SAGE Publications Ltd., 2001.<br />

KRESS, G. R. & van LEEUWEN, T. Reading Images: the Grammar of Visual Design. 2.ed.<br />

London and New York: Routledge, 2006.<br />

van LEEUWEN, T. Introducing social semiotics. London and New York: Routledge, 2005.<br />

SANTOS, F. R. S. Multimodalidade e opinião: uma análise dos elementos visuais de editoriais<br />

das revistas Época e Veja. Monografia. UERN, Pau dos Ferros, 2009.<br />

142 l Anais Eletrônicos - 2011


OS SENTIDOS DA IMAGEM EM EDITORIAIS DE REVISTAS / Francisco Roberto da Silva SANTOS<br />

(UERN/GPET/GPSM)<br />

SOUZA, M. M. de; AQUINO, L. D.; SANTOS, F. R. S & TEIXEIRA, F. C. Q. R.. A multimodalidade<br />

no gênero editorial. Relatório técnico. UERN: Pau dos Ferros, 2008.<br />

SOUZA, M. M. de. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Tese,<br />

Universidade Federal de Pernambuco-<strong>UFPE</strong>, Recife, 2006.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 143


Resumo<br />

Este artigo, situado nos estudos sobe a história da língua portuguesa, tem por objetivo<br />

principal analisar a transitividade no Breue memorial dos pecados e cousas que<br />

pertence ha cõfissão, publicado no ano de 1521, de autoria de Garcia de Resende.<br />

Em um primeiro momento, faz-se uma sucinta contextualização sócio-histórica<br />

do documento no momento de sua produção e circulação e outros aspectos<br />

importantes. Em seguida, faz-se a análise dos processos presentes no documento<br />

analisado, utilizando o aporte teórico da Linguística Sistêmico-Funcional, proposta<br />

por Halliday, que vê a língua como um “sistema semiótico” efetivado pelo uso.<br />

Palavras-chave: História da Língua Portuguesa; transitividade; memorial.<br />

Abstract<br />

This article, which lies on studies about the history of the Portuguese language, aims<br />

to analyze the transitivity in Breue memorial dos pecados e cousas que pertence(m<br />

)ha cõfissão. It was published in 1521 and written by Garcia de Resende. At first,<br />

it is a brief socio-historical context of the document at the time of its production<br />

and circulation and other important aspects. Then, we analyze the processes discussed<br />

in the document, using the theoretical approach of Systemic Functional<br />

Linguistics, proposed by Halliday, who understands language as a “semiotic system”,<br />

effected by the use.<br />

Keywords: History of Portuguese; transitivity; memorial.


Transitividade e efeitos de poder<br />

no Breue memorial dos pecados e<br />

cousas que pertence(m) ha cõfissã,<br />

de Garcia de Resende 1<br />

Introdução<br />

Hérvickton Israel de OLIVEIRA NASCIMENTO<br />

(<strong>UFPE</strong>/PROHPOR 2 /CAPES)<br />

O século XVI português apresenta uma sucessão de<br />

acontecimentos que enchem os olhos das diversas áreas do<br />

conhecimento científico: filosofia, filologia, direito, história,<br />

linguística diacrônica, história da linguagem etc. A riqueza de fatos<br />

dos mais diversificados campos advém também de mudanças no<br />

pensamento do homem ao longo do tempo, que podem ser traduzidas<br />

pelo humanismo erasmista, responsável por fundir em Portugal “o<br />

sentido do profano, em termos de valores e de saberes [...]; o anseio<br />

evangélico e culturalmente avançado do humanismo cristão; e a<br />

1. Este artigo é continuação, e recorte, do trabalho de conclusão de curso (cf. OLIVEIRA NASCIMENTO, 2010),<br />

orientado pela Prof. Drª Rosa Virgínia Mattos e Silva, que teve como objetivo principal a elaboração de uma<br />

edição do Breue memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã de Garcia de Resende. A originalidade<br />

do presente artigo se faz pela análise da transitividade na referida obra. O artigo também é fruto dos estudos<br />

empreendidos na disciplina Sintaxe, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>, ministrada<br />

pela Profª. Drª Medianeira Souza, a quem agradeço a leitura cuidadosa, pontuando questões um tanto obscuras,<br />

que poderiam comprometer o entendimento do leitor. Os erros remanescentes são, obviamente, de minha<br />

inteira responsabilidade.<br />

2. Programa para a História da Língua Portuguesa (cf. www.prohpor.ufba.br).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 145


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

consciência das realidades históricas nacionais” (RODRIGUES,<br />

1981, p. 39 e 40).<br />

A busca pelo conhecimento que vai além da religião mais o<br />

sentimento de necessidade de novos arranjos de ordens ritualística<br />

e dogmática no seio da igreja hegemônica de então, somando-se a<br />

isso a emergência de uma consciência nacional, intensificada ainda<br />

mais pela expansão além mar, formatarão o modus vivendi do homem<br />

português do século XVI.<br />

Falar sobre o século XVI europeu e, aqui, o português, faz<br />

lembrar inevitavelmente a crise religiosa e o papel que o humanismo<br />

teve como veículo de contestação da suprema autoridade clerical.<br />

Segundo Rodrigues (1981, p. 14), essa crise vem desde o século XIV,<br />

“com o cisma do papado, a feudalização do alto clero, a decadência dos<br />

institutos religiosos, principalmente dos monásticos, e a formalização<br />

da prática religiosa dos fiéis”. Mais tarde, mesmo com o início dos<br />

movimentos de contestação dos abusos por parte das autoridades<br />

clericais, a igreja hierárquica não mudará substancialmente a sua<br />

postura autoritária, cuja confirmação e divulgação dar-se-á através da<br />

produção documental religiosa, sobretudo no século XVI. Meirinhos<br />

(2006, p. 29) 3 afirma que, de um universo de 457 obras publicadas, 163<br />

são relativas à religião, nas quais se encontram livros de hagiografia,<br />

liturgia, espiritualidade, teologia moral e confissões. Importante<br />

lembrar que as taxas de alfabetização em Portugal, no século XVI,<br />

apresentam números ínfimos. Segundo Souza apud Mattos e Silva<br />

(2002, p. 30), a “elite intelectual” letrada medieval não ultrapassaria o<br />

número de 2%. Ainda assim, boa parte dessa porcentagem corresponde<br />

aos membros do clero, ou seja, dos segmentos nobres da sociedade.<br />

A produção, leitura e interpretação do conhecimento eram, então,<br />

3. O autor levantou dados referentes ao catálogo da livraria da Biblioteca Municipal do Porto.<br />

146 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />

NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

via de regra, controlados pelos setores eclesiásticos em consonância<br />

com o sistema monárquico.<br />

O Breue memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã,<br />

documento aqui estudado, de Garcia de Resende, publicado em 1521<br />

pela Casa de Germão Galharde, surge dentro desse contexto sóciohistórico,<br />

cultural e religioso de grande efervescência em Portugal. Seu<br />

caráter prescritivo-normativo, no qual dita a postura do pecador no<br />

momento de confessar suas faltas ao sacerdote clerical, marca bem de<br />

qual lado estava o poder da palavra, o poder da linguagem, conferido<br />

ao representante do divino na terra, o sacerdote.<br />

O presente trabalho, inserido no âmbito dos estudos históricos<br />

e sociais da línguagem, objetiva apresentar o sistema de transitividade<br />

presente no Breue memorial e os efeitos de sentido produzidos no leitor,<br />

cuja relação com o autor se dá de maneira totalmente assimétrica. Para<br />

tanto, utilizou-se o aporte teórico da Linguística Sistêmico-Funcional<br />

(LSF) proposta por Halliday (1985), que vê a língua como um “sistema<br />

semiótico” efetivado pelo uso (cf. GOUVEIA, 2009; FURTADO DA<br />

CUNHA; SOUZA, 2007).<br />

Aporte teórico-metodológico de análise<br />

Localizada no polo funcionalista dos estudos da língua, a LSF<br />

constitui-se em um aparelho teórico-metodológico, e descritivo, que<br />

vê a língua em seu contexto de uso. Assim, diferentemente de uma<br />

teoria inserida no polo formalista, em que a análise linguística se dá<br />

exclusivamente pelos fatores internos a ela própria, a LSF procura<br />

analisar e descrever o fato linguístico a partir do uso, levando em<br />

consideração os fatores extra-linguísticos, pois acredita que, para a<br />

obtenção de resultados descritivos válidos de análise, deve-se também<br />

considerar “as necessidades que os falantes impõem às línguas”<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 147


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

(GOUVEIA, 2009, p. 14). Vê-se, portanto, que, para a teoria aqui<br />

em questão, existe uma relação entre sistema e função. Ora, embora<br />

esta relação já estivesse prevista nas ideias do Círculo Linguístico de<br />

Praga, os estudos linguísticos empreendidos na primeira metado do<br />

século XX estavam voltados apenas para a parte estrutural da língua,<br />

alijando-a de sua relação com os usuários e a sociedade.<br />

Concebendo a língua como sistema de escolhas que obedecem<br />

ao cumprimento de funções, Halliday aproxima a ideia que se tem<br />

de sistema à função. Para os estudos que se dedicam à história da<br />

língua isso é de grande valia. Afinal, a língua passada, materializada<br />

nos textos remanescentes, também possuía funções à disposição do<br />

falante/escritor.<br />

As funções da linguagem para a LSF irão bem mais além da<br />

ideia que se tem de comunicação. A linguagem serve para codificar<br />

ou significar as experiências a que os seus usuários são submetidos<br />

no dia a dia, sendo elas relativas ao mundo exterior (social) ou<br />

interior (psicológico) (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007,<br />

p. 21), esta função é denominada de metafunção 4 ideacional. A<br />

linguagem também serve para estabelecer relações entre seus utentes,<br />

ajudando a “codificar significados de atitudes, interacção e relações<br />

sociais, isto é, significados interpessoais”, possuindo, portanto, uma<br />

metafunção interpessoal. Por fim, a linguagem serve para organizar<br />

de forma coerente e linear as informações geradas pelas metafunções<br />

representacional e interpessoal, servindo a uma metafunção textual.<br />

Interessante notar que as metafunções “dão lugar a componentes<br />

de sistemas de escolhas de caracterização semântica” (GOUVEIA,<br />

2009, p. 17). Daí vem a relação entre sistema e função, que,<br />

4. A partir de agora, utilizar-se-á o termo metafunção, por conta de seu caráter abstrato e por se constituir como<br />

núcleo de extrema importância para a LSF (cf. HALLIDAY apud GOUVEIA, 2009).<br />

148 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />

NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

materializados no texto, geram significados no uso. O texto é,<br />

então, a materialização, ou instanciação, do sistema de escolhas,<br />

que, por conseguinte, geram os significados. A língua é para a LSF,<br />

um potencial de significado, sendo este modelo de base semântica<br />

(op. cit.).<br />

A transitividade dentro da linguística sistêmico-funcional<br />

Entre as metafunções elencadas acima, a transitividade se<br />

localiza na função ideacional da linguagem. É na transitividade que o<br />

usuário da língua irá encontrar a sua forma de expressar experiências<br />

e vivências através dos recursos lexicogramaticais disponibilizados.<br />

Assim, é na transitividade que se dará a representação de ações e<br />

experiências, por meio dos processos, participantes e circunstâncias,<br />

“que permitem analisar quem faz o quê, a quem e em que circunstâncias”<br />

(FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007, p. 54).<br />

Os processos (verbos), divididos entre principais e secundários,<br />

dizem respeito aos elementos codificadores de ações, estados,<br />

sentimentos, realizando-se através do sintagma verbal, com ou sem<br />

o envolvimento de participantes. Estes representados por meio do<br />

sintagma nominal. As circuntâncias se configurarão como elementos<br />

que trarão “informações adicionais” (op. cit.) aos processos e serão<br />

materializadas por meio de advérbios e sintagmas adverbiais.<br />

Há no sistema de transitividade dois tipos de processos,<br />

os principais e secundários. Os principais são os Materiais,<br />

Mentais e Relacionais; os secundários, os Verbais, Existenciais e<br />

Comportamentais.<br />

Os processos Materiais são os que designam ações. Tem como<br />

participantes, basicamente: Ator, responsável pela ação; Meta, “para<br />

quem o processo é direcionado”, afetado, assim, pela ação (op. cit.);<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 149


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Extensão, o que não sofre afetamento, e pode ser entendida como<br />

um complemento da ação, especificando-a (op. cit.); Beneficiário,<br />

participante que se beneficia da ação.<br />

Os processos Mentais dizem respeito à apreensão do mundo.<br />

Não compreendem ações como prototipicamente concebemos,<br />

mas atividades que englobam percepção (perceber e notar, p. ex.),<br />

afetividade (amar e gostar, p. ex.) e cognição (saber e compreender,<br />

p. ex.). Os participantes envolvidos nos processos mentais são o<br />

Experienciador, aquele que vivencia o processo, e o Fenômeno,<br />

aquilo que é vivenciado, ou experienciado. Importante dizer que o<br />

fenômeno pode não ser necessariamente realizado no processo, como,<br />

por exemplo, no caso da frase “Maria sabe” (GHIO & FERNÁNDEZ,<br />

2008, p. 104).<br />

Os processos Relacionais estabelecem relações entre partes<br />

da oração, indicando: intensidade, qualificando uma entidade;<br />

circunstância, localizando espacialmente ou temporalmente a<br />

entidade; e possevidade, indicando que a entidade pertence ou é<br />

possuída. Os precessos Relacionais podem ser classificados como<br />

Atributivos ou Identificadores. Nestes, existe uma relação entre<br />

o participante, denominado de portador, e um outro participante,<br />

denominado de atributo, entidade que qualifica o Portador. Já no<br />

caso dos identificadores, “há a definição ou identificação de uma<br />

entidade através de outra” (FURTADO DA CUNHA; SOUZA,<br />

2007, p. 59). Os participantes dos processos ralacionais, nesse caso,<br />

são a Característica, “entidade definida”, e o Valor, que é “o termo<br />

definidor ou identificador” (op. cit.).<br />

Os processos Verbais são aqueles responsáveis pelo dizer, sendo<br />

um “desprendimento dos processos mentais” (GHIO & FERNÁNDEZ,<br />

2008, p. 108). São exemplos de processos Verbais: dizer, contar, falar,<br />

perguntar etc. Os participantes envolvidos são: Dizente, participante<br />

150 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />

NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

obrigatório, responsável pela ação de falar; o Receptor, participante não<br />

necesserariamente obrigatório, que se constitui como uma espécie de<br />

alvo, ou, melhor dizendo, destinatário, ao qual a mensagem é dirigida;<br />

e Verbiagem, que pode ser entendida como a informação obtida por<br />

meio e a partir do processo Verbal.<br />

Os processos Existenciais são relativos ao que “existe e acontece”<br />

(FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007, p. 59), possuindo<br />

apenas um participante, denominado de Existente. Esses processos<br />

se realizam através dos verbos haver e existir. Como este trabalho<br />

busca descrever uma sicronia passada, faz-se necessário esclarecer<br />

que, na história da língua portuguesa, relativamente ao seu período<br />

arcaico, o verbo existir, com valor existencial, conforme Mattos e Silva<br />

(2008, p. 14), não ocorria. O verbo então responsável por codificar o<br />

processo existencial no período arcaico da língua era o verbo haver 5 .<br />

Hoje, conforme observa a autora, “existir e mais recentemente ter vêm<br />

afastando haver das estruturas exitenciais (cf. há muita gente pobre /<br />

existe muita gente pobre / tem muita gente pobre)”.<br />

Por fim, os processos Comportamentais são aqueles responsáveis<br />

por codificar comportamentos, sejam eles psicológicos, fisiológicos<br />

ou mentais. Há uma linha tênue que separam esses processos dos<br />

processos materiais e mentais, pois são, “em parte ação, em parte<br />

sentir” (FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007; GHIO &<br />

FERNÁNDEZ, 2008). Possuem, obrigatoriamente, um participante,<br />

que é Comportante, e o Behaviour, não obrigatório, responsável por<br />

estender o processo.<br />

5. Embora a LSF não tenha surgido a partir do interesse dos estudos históricos da língua, Halliday apud Ghio<br />

e Fernández (2008), reconhece a variação linguística como propriedade da língua. Como se sabe, a variação<br />

linguística pode ou não resultar na mudança. No âmbito dos estudos diacrônicos, tem-se a aplicação de teorias<br />

como o gerativismo, estruturalismo e o funcionalismo norte-americano (gramaticalização). Propõe-se, então,<br />

aqui, um estudo funcionalista sistêmico-funcional na agenda dos estudos sobre história da língua.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 151


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

A fim de que se possa ter uma ideia do corpus em que os<br />

processos acima são realizados, a próxima seção tratará de o descrever,<br />

assim como tratará da metodologia de recolha de dados.<br />

Entre o autor, a confissão e o poder<br />

O Breue memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã,<br />

publicado em 1521 trata basicamente de uma lista de pecados a que<br />

o fiel deveria evitar e, caso encorrendo em algum, da necessidade de<br />

se redimir por meio da confissão, proferida a uma autoridade religiosa<br />

pertencente à igreja hegemônica de então.<br />

Escrevendo um texto cujo gênero se enquadra num<br />

confessionário, Garcia de Resende considera a confissão como<br />

condição primordial para o pecador alcançar a graça pelo perdão de<br />

suas faltas. Uma pergunta, contudo, deve ser feita: com que autoridade<br />

o autor faz isso? É preciso primeiro problematizar o conceito de autor,<br />

como o faz Chartier (1998, p. 32), quando, recorrendo ao francês<br />

antigo, apela para a distinção entre écrivain, “aquele que escreveu<br />

um texto que permanece manuscrito, sem circulação”, e auteur,<br />

“qualificado como aquele que publicou obras impressas”. A palavra<br />

circulação pode ser assim entendida como o sema ou traço diferencial<br />

entre o écrivain (escritor) e o auteur (autor).<br />

Para o escritor tornar-se um autor, ele teria de passar por todos<br />

os perigos que poderiam decorrer de sua obra. Como bem assinala<br />

Chartier (1998, p. 34), “Antes de ser o detentor de sua obra, o autor<br />

encontra-se exposto ao perigo pela sua obra”. E isso poderia resultar<br />

ou em um condenamento na fogueira, ou em recompensas e privilégios<br />

outorgados pela nobreza.<br />

Por ser um autor que tinha livre acesso à corte, pois foi uma<br />

espécie de funcionário do rei Dom João II de Portugal, tendo, mais<br />

152 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />

NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

tarde, igual acesso à corte manuelina, escrevendo durante a sua vida,<br />

entre outras obras, poesias voltadas ao dinamismo palaciano 6 , não é<br />

difícil entender o motivo pelo qual Garcia de Resende não trilhou o<br />

caminho à fogueira. Deduz-se, pelo exposto, que o autor não fala, no<br />

Breue memorial, por ele mesmo. Pelo contrário, o seu discurso vem<br />

carregado de autoridade que ultrapassa os limites de sua subjetividade.<br />

A autoridade de Garcia de Resende é revestida de poder institucional,<br />

sua legitimidade é alcançada não por “seu próprio nome” ou por sua<br />

“própria autoridade”, mas por se constituir em “agente que age na<br />

qualidade de depositário provido de um mandato” (BOURDIEU,<br />

2008, p. 93).<br />

É com essa autoridade que Garcia de Resende, em seu memorial,<br />

confirma o poder da igreja quando instrui repetidas vezes a confissão<br />

de pecados diversos, inclusive os pecados da ordem do sexo ou, usando<br />

suas próprias palavras, “pecados contra a natura”.<br />

Sobre a confissão, diz Michel Foucault em sua História da<br />

sexualidade: a vontade de saber que o homem ocidental tornou-se um<br />

animal confidente:<br />

Confessa-se – ou se é forçado a confessar. Quando a confissão<br />

não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior,<br />

é extorquida; desencavam-na na alma ou arrancam-na ao<br />

corpo. A partir da Idade Média, a tortura a acompanha como<br />

uma sombra, e a sustenta quando ela se esquiva: gêmeos<br />

sinistros. Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais<br />

sangrentos poderes têm necessidade de confissões. O homem,<br />

no Ocidente, tornou-se um animal confidente (FOUCAULT,<br />

1988, p. 59).<br />

6. Informações extraídas de Andréé Crabbé Rocha em Tavani e Lanciani (1993).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 153


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Pode-se ver que o valor dado ao sistema de confissão não é uma<br />

coisa nova. Vem desde a Idade Média, passando pelo Renascimento<br />

Cultural e se acelerando a partir do século XVIII. Os domínios<br />

contemporâneos da confissão, conforme Foucault (1988, p. 35),<br />

não ficou somente na religião, estendeu-se à biologia, medicina,<br />

psiquiatria, psicologia, moral e à crítica política.<br />

Como um bom documento religioso do século XVI, o Breue<br />

memorial, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa, apresenta uma<br />

série de recursos visuais, como letrinas e letras ornadas, responsáveis<br />

por invocar em seu leitor reverência e solenidade, como mostra a<br />

figura 1 adiante. O tipo caligráfico usado, as cores das rubricas, em<br />

vermelho, os sinais de fim de texto, apresentando cores variadas e<br />

ao mesmo tempo fazendo lembrar os velhos códices medievais são<br />

aparatos que entram em cena para produzir, também, efeitos de poder.<br />

154 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

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NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

Fig. 1: Primeira página do Breue memorial<br />

contendo recursos visuais próprios do momento de sua produção<br />

Metodologia empregada para recolha e análise de dados<br />

Para coletar os processos contidos no documento, procedeu-se a<br />

uma edição, o que torna este trabalho também de natureza filológica, em<br />

que foram preservadas, na medida do possível, as características gráficas<br />

e grafemáticas do texto. Aquelas características em que foram inviáveis<br />

a transcrição, foram devidamente descritas em notas de rodapé.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 155


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Feita a edição, para obtenção dos dados, foi utilizado o software,<br />

empregado em estudos lexicológicos e lexicográficos, Wordsmith.<br />

Este programa é capaz de gerar toda a lista de palavras desde que os<br />

textos rodados sejam previamente “limpos”, ou seja, livres de qualquer<br />

caracter complexo (“e”, p. ex. em que o til em cima do “e” pode causar<br />

uma má leitura no momento de gerar as listas). O Wordsmith é capaz<br />

também de quantificar também as ocorrências e suas porcentagens.<br />

Sabendo-se das limitações dessa ferramenta para estudos que não<br />

abrangem a área da lexicologia, pois ela é incapaz de gerar os contextos<br />

dos itens de palavras obtidos, procurou-se “filtrar” e usar aquilo que<br />

serviria para o estudo. Assim, verificou-se os processos existentes na<br />

lista gerada, isoladamente, e, a partir daí, foi-se para o texto para, só<br />

assim, classificá-los. A próxima seção trata dos processos obtidos e<br />

seus contextos dentro do Breue memorial.<br />

Os processos no Breue memorial<br />

De um total de 531 processos quantificados no Breue memorial,<br />

obtiveram-se os seguintes dados: 278 processos materiais (comer,<br />

matar, pecar, quebrar etc); 44 processos mentais (amar, gostar, saber,<br />

ver etc), 139 processos relacionais (ser, estar, ter etc), 45 processos<br />

verbais (confessar, dizer, falar etc) , 11 processos existenciais (haver)<br />

e 14 processos comportamentais (conversar, dormir, ouvir etc). No<br />

gráfico abaixo, uma representação dos dados quantificados:<br />

156 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

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NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

Os processos materiais foram os que mais ocorreram no corpus<br />

analisado. Responsáveis por “planos de ação e acontecimento”<br />

(SOUZA, 2006, p. 11), esses processos se fazem presentes também<br />

nos pecados que devem ser evitados pelo fiel. Importante dizer quão<br />

poder a igreja hierárquica do século XVI possuía para ditar o que era<br />

ou não pecado e o que deveria ser obrigatoriamente confessado. Não<br />

se deve esquecer que no ano de publicação do Breue memorial, a Igreja<br />

estava sendo duramente criticada pelos humanistas em relação aos<br />

seus dogmas e sistema litúrgico, como falado anteriormente. Mesmo<br />

assim, com o quase despontar da Reforma, a Igreja ainda detinha<br />

tamanho poder que continuava a ditar as ações de seus fiéis e mesmo<br />

daqueles que vinham de encontro aos seus preceitos. Se há uma<br />

definição para o processo pecar no documento em questão, pode-se<br />

dizer que pecar é tudo aquilo que afasta o homem da Igreja e de Deus,<br />

como o pecado comer (demais) do exemplo (1). Abaixo alguns tipos<br />

de processos materiais encontrados.<br />

(1) Se por comer e beber me esque //<br />

ço de deos ou do que deuo fa<br />

zer. [...] p. 24<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 157


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

(2) Se forniguey com virge: e de<br />

que sorte ou estado. Se cõ frei<br />

e quãto tenpo e o luguar se era<br />

sagrado [...]. p. 13<br />

(3) Se me toquey desonesta<br />

mete ou pequey cõtra natura. Se<br />

tiue para isso vontade nõ podendo<br />

por obra. [...]. p. 14<br />

(4) [...] Se comprey<br />

em menos preço e vendi em muy<br />

to mays nõ auendo melhora [...]. p. 15 e 16<br />

As confissões provenientes dos pecados do sexo deverão ser<br />

acompanhadas de toda a minúcia possível, como nos exemplos (2)<br />

e (3). Quanto mais detalhes, melhor. Dessa forma, “as insinuações<br />

da carne: pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites,<br />

movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar,<br />

agora, e em detalhes, no jogo da confissão e da direção espiritual”<br />

(FOUCAULT, 1988, p. 23).<br />

Já no exemplo (4), fica claro que quem podia enriquecer se<br />

utilizando de meios como a usura, era apenas a Igreja. Dona de<br />

infinitos lotes de terras doadas por reis e rainhas católicos, a Igreja,<br />

desde a Idade Média, foi uma exímia instituição cobradora dos altos<br />

tributos. Seu fiel, contudo, não podia comprar algo e vender muito<br />

mais além do preço, pois isso se constituía pecado merecedor de<br />

confissão.<br />

Os processos mentais contidos no Breue memorial evidenciam o<br />

que o fiel deve saber, acreditar, apreciar. Em (5), está um dos maiores<br />

158 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

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NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

mandamentos do mundo cristão, que é “amar a Deus sobre todas as<br />

coisas e ao próximo como ti mesmo”. Nota-se aí presente também no<br />

documento de Garcia de Resende um mandamento de humildade que<br />

leva o fiel a um grande crescimento espiritual, chegando, portanto,<br />

perto de Deus. Amar a Deus em qualquer situação, resignadamente,<br />

e ao próximo como assim é dito nas escrituras.<br />

Os homens e as mulheres do século XVI também não poderiam<br />

esquecer um pecado sequer que os rondasse. Não se pode esquecer<br />

que a Igreja cristã hegemônica levou para os séculos pós Idade<br />

Média muitos de seus dogmas e rituais. Encucar o medo e a eterna<br />

vigilância sobre si mesmo é o que se pretende quando o sacerdote<br />

clerical prescreve que não se deve esquecer dos pecados, como no<br />

exemplo (6).<br />

Saber as “coisas que pertencem à salvação” está na lista também<br />

dos processos mentais utilizados no corpus, no exemplo (7). Essas<br />

“coisas” necessárias dizem respeito aos sacramentos, que, segundo Le<br />

Goff (2010), eram, junto com a Teologia, instrumentos de dominação.<br />

Os sacramentos dizem respeito aos sete pecados capitais, os sete dons<br />

do Espírito e os sete sacramentos, devidamente firmados a partir do<br />

século XII e todos registrados no Breue memorial do século XVI.<br />

(5) Se tenho vontade para amar<br />

deos sobre todallas cousas e<br />

ao prouximo como a my mesmo [...] p. 35<br />

(6) [...] E assi se cuidey<br />

be en meus pecados para me lem<br />

brare todos e me nõ esquecer nen<br />

hu [...]. p. 6<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 159


Sinta e<br />

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f<br />

(7) Os sete doões do spiritu sancto sam<br />

estes. Saber. Cõselho. Temor Pie<br />

dade / çieçia / fortaleza / etendimeto [...]<br />

Se sey as cousas que pertençe a<br />

minha saluaçã. Se tenho cõ //<br />

selho no que faço e ey de fazer [...]. p. 38<br />

Os processos relacionais são responsáveis por “definir, caracterizar<br />

e identificar, atribuindo qualidades, posse ou circunstâncias, e assim<br />

construir as experiências do mundo e as experiências de nossa<br />

consciência” (SOUZA, 2006, p. 136). Também ocupam o segundo<br />

lugar em ordem numérica de importância no documento, com 139<br />

ocorrências. Os verbos ter e ser no item (8) dizem respeito a um dos<br />

ensinamentos cristãos, as bem-aventuranças, em que prescrevem ao fiel<br />

possuir um coração limpo e ser, ainda, pacífico para com o próximo.<br />

O item (9) segue no mesmo raciocínio do anterior, só que desta vez<br />

mostrando o que o pecador não deve ter em mente, que é a autoconfiança<br />

de achar que suas faltas serão perdoadas algum dia ou se<br />

acostumar com o pecado.<br />

(8) Se tenho limpo coraçam e lim //<br />

pas obras.<br />

Se sam pacifico e tenho paz cõ os<br />

prouximos. p. 40<br />

(9) [...] Se teho<br />

grãde confiãça na misericordia de<br />

deos que me perdoara sem fazer pe<br />

deça. Se estou tã acostumado a pe //<br />

car que tenho os pecados em pou<br />

co. Se tenho esperãça de lõgua vi //<br />

da para em velho me emedar [...]. p. 8<br />

160 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

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NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

O dizer, obviamente, terá espaço em um documento destinado<br />

a sondar e extorquir as palavras, as ações, os sentimentos de homens<br />

e mulheres no século XVI. O processo ultilizado então para isso é o<br />

verbal. Os exemplos nos itens (10) e (11) mostram os dois verbos mais<br />

recorrentes desse processo: dizer, com 22 ocorrências; e confessar, com<br />

11. O forçar a dizer, a confessar não são, como se sabe, instrumentos<br />

de coerção a que as instituições lançam mão para se firmarem. Isso<br />

vem desde a Idade Média, passando pelo Renascimento Cultural e<br />

vai se acelerando a partir do século XVIII.<br />

(10) Depois da oraçã acabada e<br />

posto em juelhos aos pees do cõfes //<br />

sor cõ muyto acatameto. E o rosto<br />

baixo. E as molheres cuberto por<br />

euitar escandallo. farey ho sinal<br />

da cruz e direi a confissam jeeral<br />

e após ella estas palauras.<br />

[...] DIguo minha culpa a Deos e a<br />

santa maria e a vos padre de<br />

nam vijr a este sancto sacrameto<br />

da cõfissam / com aquella contriçã<br />

e door de meus pecados [...]. p. 3<br />

(11) [...] e desta manei<br />

ra confessarey todos aqueles em<br />

que pequey e suas çircunstançias [...] p. 3<br />

Os processos existencias, que, no português contemporâneo,<br />

são representados pelos verbos haver e existir, só ocorrem no corpus<br />

analisado por meio do primeiro. O verbo existir, pelo menos no<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 161


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

português arcaico, segundo Mattos e Silva (2008), pelo menos no<br />

extenso corpus que investigou, não ocorre até o século XV. O Breue<br />

memorial, de 1521, não tem como verbo que denote existência outro<br />

senão o verbo haver, com 11 ocorrências.<br />

(12) Se quero que em praticas ou per //<br />

fias valha senpre o que diguo. Se<br />

quero que me tenham por virtuo<br />

so sem no ser. Se folguo de me lou<br />

uare do que mim nom ha [...]. p. 21<br />

(13) [...] se estou ou encor //<br />

ri em alguua escomunhão e<br />

por que causa e quanto tenpo ha. p. 5<br />

Finalmente, os processos Comportamentais, relativos às ações<br />

de comportamento – que podem ser psicológicos, fisiológicos ou<br />

verbais – ocorrem 13 vezes no documento.<br />

(14) SE tenho pobreza voltuntaria<br />

para nom prezar as riquezas.<br />

Se sã mãsso em as enjurias e per<br />

secuções que me fezeram.<br />

Se choro meus pecados e os com<br />

fessey como deuia. p. 40<br />

(15) [...] Se como sobre po //<br />

se / ou mais por apetito que por ne<br />

cessidade. Se durmo muyto por<br />

esta causa. p. 25<br />

162 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />

NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

No item (14), tem-se o verbo chorar como decorrente da ação<br />

de pecar e comportamento necessário também à confissão. Já no item<br />

(15), tem-se o processo dormir, enquadrado no pecado da preguiça, dos<br />

sete pecados capitais, associado a outro pecado da mesma natureza,<br />

que é comer. Interessante notar o uso do sistema de transitividade<br />

presente em quase toda a lista de pecados no Breue memorial, o que<br />

nos faz acreditar que materializar o pecado textualmente utilizando a<br />

sua forma em SN não produz tanto efeito de sentido como marcá-lo<br />

como ação, no verbo, por meio dos processos.<br />

Considerações finais<br />

Pretendeu-se neste artigo mostrar, com o aporte teórico da<br />

Linguística Sistêmico-Funcional, os processos Materiais, Mentais,<br />

Relacionais, Verbais, Existenciais e Comportamentais no Breue<br />

memorial dos pecados e cousas que pertence ha cõfissã, do ano de 1521,<br />

de autoria de Garcia de Resende.<br />

Constatou-se, então, que de 531 processos quantificados: 278<br />

são materiais, 44 mentais, 139 relacionais, 45 verbais, 11 existenciais<br />

e 14 comportamentais. Por se tratar de um documento prescritivonormativo,<br />

em que são ditadas as formas (ações) de conduta de uma<br />

sociedade, os processos materiais tiveram um número de ocorrências<br />

mais expressivo. Em seguida, e em aparente contradição, tem-se os<br />

processos relacionais, provavelmente por significarem aquilo que o<br />

fiel devia “ter em mente”, “ter no coração” ou “ser para alcançar a<br />

salvação”.<br />

Foi também objetivo deste trabalho apresentar uma “nova<br />

forma” de se fazer estudo diacrônico na língua. De fato, não é fácil<br />

aliar, em pesquisas desta natureza, aspectos sociais e linguísticos.<br />

Porém, a Linguística Sistêmico-Funcional, embora não preocupada a<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 163


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

priori com a mudança linguística, serviu para suprir esse lado, levando<br />

em consideração não apenas os fatores estruturais da língua, como<br />

também o social e funcional.<br />

Referências<br />

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. 2 ed. Trad. Sérgio Miceli et al. São<br />

Paulo: EDUSP, 2008.<br />

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo C. C. Moraes.<br />

São Paulo: Inprensa Oficial do Estado de São Paulo; Editora UNESP, 1998.<br />

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza<br />

Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. São Paulo: Graal, 1988.<br />

FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />

contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

GHIO, Elsa; FERNÁNDEZ, María Delia. Linguística Sistémico Funcional. Aplicaciones a la<br />

lengua española. 1 ed. Santa Fé: Universidade Nacional de Litoral; Waldhuter Editores, 2008.<br />

HALLIDAY, Michael A. K. An introduction to functional grammar. 2 ed. London: Arnold, 1985.<br />

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.<br />

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português arcaico: uma aproximação. 2 v. Lisboa:<br />

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008.<br />

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Reconfigurações socioculturais e linguísticas no Portugal<br />

de quinhentos em comparação com o período arcaico. In: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia;<br />

MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes (orgs.). O português quinhentista: estudos<br />

linguísticos. Salvador: EDUFBA, 2002.<br />

MEIRINHOS, J. F. Editores, livros e leitores em Portugal no século XVI: a coleção de<br />

impressos portugueses da BPMP. In: Tipografia portuguesa do século XVI nas colecções da<br />

BPMP. Catálogo. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 2006.<br />

164 l Anais Eletrônicos - 2011


TRANSITIVIDADE E EFEITOS DE PODER NO BREUE MEMORIAL DOS PECADOS E COUSAS<br />

QUE PERTENCE(M) HA CÕFISSÃ, DE GARCIA DE RESENDE / Hérvickton Israel de OLIVEIRA<br />

NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/PROHPOR/CAPES)<br />

OLIVEIRA NASCIMENTO, Hérvickton Israel de. Edição semidiplomática do Breue memorial<br />

dos pecados e cousas que pertence(m) ha cõfissã (1521) de Garcia de Resende. Trabalho de<br />

Conclusão de Curso. Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.<br />

RESENDE, Garcia de. Breue memorial dos pecados e cousas que pertence a cõfissã. Disponível<br />

em http://bnd.bn.pt/. Acesso 04/10/2011.<br />

RODRIGUES, Manuel Augusto. Do humanismo à contra-reforma em Portugal. Coimbra:<br />

Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981.<br />

SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e contrução de sentido no gênero editorial.<br />

Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras, 2006. Tese de doutorado.<br />

ROCHA, Andréé Crabbé. Verbete Garcia de Resende. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI,<br />

Giuseppe (orgs.). Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho,<br />

1993.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 165


Resumo<br />

A compreensão dos gêneros textuais como multimodais e multissemióticos permeia as<br />

concepções linguísticas e discursivas da sociedade contemporânea, haja vista que na<br />

atualidade acontece um despertar reflexivo maior com relação às diferentes linguagens<br />

que compõem significativamente os textos. Nesse sentido, propomos neste artigo,<br />

apresentar como a multimodalidade, principalmente os diferentes recursos tipográficos,<br />

gerenciam significações no gênero editorial, levando em consideração suas funções<br />

sociais e comunicativas. Para isso, selecionamos um editorial da revista feminina Todateen<br />

o qual faz parte de um corpus maior que constituiu nossa pesquisa de mestrado. Essa<br />

escolha se justifica por se tratar de um editorial bastante visualmente informativo,<br />

assim como os demais que analisamos em nossa pesquisa, bem como por dispor de<br />

muitos recursos tipográficos, os quais nos interessam de modo particular. No intuito de<br />

desenvolvermos nossas análises, pautamo-nos teoricamente nas propostas da GDV de<br />

Kress e van Leeuwen (2006) que amparam os estudos multimodais no ocidente; e nas<br />

pesquisas de van Leeuwen (2006) com relação à tipografia enquanto medo semiótico.<br />

Além disso, respaldamo-nos nas teorias sócio-discursivas no tocante aos gêneros textuais<br />

a partir das sugestões de Bakhtin (2003) e seus seguidores teóricos; e nas concepções<br />

de Marques de Melo (2004) sobre o gênero editorial, dentre outros que se mostraram<br />

fundamentais às nossas reflexões. Diante das observações constatadas, percebemos que<br />

o editorial em questão se mostra bastante significativo do ponto de vista multimodal<br />

e, principalmente, tipográfico.<br />

Palavras-chave: Gênero editorial; multimodalidade; tipografia.<br />

Abstract<br />

The understanding of text genres as multimodal and multisemiotic permeates the<br />

linguistic and discursive conceptions of contemporary society, considering that currently,<br />

there is a greater reflection in relation to the different languages ​that significantly<br />

constitute texts. Accordingly, we propose in this paper to to present how multimodality,<br />

especially the different typographic features, manage meanings in editorial genres, taking<br />

into account their social and communicative functions. To this end, we selected a<br />

women’s magazine called Todateen, which is part of a larger corpus and which was our<br />

master’s research. This choice is due to the fact that it is a very visually informative editorial<br />

as well as others we reviewed in our research. Also, it has got many typographic<br />

features, which is particularly interesting for us. In order to develop our analysis, we<br />

based our studies on the proposals of Kress and van Leeuwen’s GDV (2006) who support<br />

multimodal studies in the West; and the research of van Leeuwen (2006) with relation to<br />

typography as semiotic fear. In addition, regarding text genre, we supported our research<br />

on the socio-discursive theories from Bakhtin’s suggestions (2003) and his pupils; as<br />

well as in conceptions of Marques de Melo (2004) about editorial genre, among others<br />

that were essential to our reflections. Given these observations, we realized that the<br />

editorial in question proves to be quite significant in terms of multimodal and especially<br />

typographical considerations.<br />

Keywords: Editorial genre; multimodality; typography.


Considerações iniciais<br />

Significados tipográficos<br />

no gênero editorial<br />

Jaciara Limeira de AQUINO<br />

(UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

Para cumprir seus objetivos funcionais, o gênero editorial<br />

utiliza-se de recursos semióticos variados em sua composição, porém<br />

destacamos de modo especial a tipografia enquanto modo semiótico<br />

que gerencia informações e significações específicas. Nesse sentido,<br />

não se trata de observar apenas qual tipo de letra foi utilizada, mas<br />

de ver a letra como significativa, também, do ponto de vista visual.<br />

Assim, nosso objetivo maior é compreender como a tipografia,<br />

enquanto recurso multimodal, desencadeia sentidos no gênero<br />

editorial, levando em consideração sua funcionalidade social. Partindo<br />

de tal objetivo, selecionamos um editorial da revista feminina<br />

Todateen, o qual faz parte de um corpus maior que constituiu nossa<br />

pesquisa de mestrado. Ele foi escolhido mediante observações acerca<br />

da visualidade informativa que dispunha, bem como pelas sugestões<br />

significativas oferecidas pelos recursos tipográficos em vista do próprio<br />

suporte e do público específico.<br />

Diante disso, acreditamos que este trabalho se mostra relevante<br />

uma vez que discute a multimodalidade como essencial à constituição<br />

dos gêneros, e por enfatizar a tipografia como significativa do ponto<br />

de vista visual e informativo.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 167


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Gênero editorial<br />

Partindo inicialmente do conceito de Marques de Melo<br />

(2003, p. 103) o “editorial é o gênero jornalístico que expressa a<br />

opinião oficial da empresa diante dos fatos de maior repercussão no<br />

momento”. Por representar a opinião oficial da instituição jornalística<br />

como um todo, ele é impessoal e coletivo, tendo em vista as várias<br />

camadas organizacionais que fazem parte da empresa jornalística.<br />

Ele se apresenta como um espaço de contradições em decorrência<br />

dos diferentes núcleos que participam da organização da empresa, e,<br />

sendo dirigidos à coletividade, pretendem orientar a opinião pública.<br />

O editorial opinativo ou padrão é primo literário do ensaio,<br />

diferindo dele por sua brevidade e natureza contemporânea.<br />

Tal gênero possui quatro atributos específicos: “impessoalidade,<br />

topicalidade, condensalidade e plasticidade” (MARQUES DE MELO,<br />

2003, p. 108). Ou seja, não é assinado e nem marcado pessoalmente;<br />

o assunto é bastante delimitado; é composto de poucas ideias, as quais<br />

sugerem informação; é plástico, dinâmico e flexível, assim como todos<br />

os gêneros textuais.<br />

Para Souza (2006), o editorial padrão é exclusivo dos jornais<br />

impressos, mas devido ao seu caráter processual e dinâmico, apresenta<br />

variações em decorrência do suporte no qual estão inseridos, bem como,<br />

em decorrência das características do público a quem se destinam. Para<br />

confirmar essa ideia é oportuno citar Souza (2004), quando sugere dois<br />

outros tipos de editorias: os editoriais mistos e os editoriais de apresentação.<br />

Nas palavras do autor, “os editoriais mistos são aqueles que podem<br />

incorporar várias características como ser preventivos, informativos,<br />

intelectuais, dentre outros; e os editoriais de apresentação são aqueles<br />

que apresentam um determinado número de jornal ou revista,<br />

justificando os assuntos abordados” (SOUZA, 2004, p. 100-101).<br />

168 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

Outra questão a ser apontada é a localização dos editoriais nos<br />

veículos de comunicação de massa:<br />

O posicionamento do editorial no jornal costuma refletir<br />

o seu caráter nobre entre todos os gêneros jornalísticos.<br />

Habitualmente, é posicionado logo na primeira página ou<br />

nas páginas editoriais, assim designadas porque são o espaço<br />

dedicado por excelência às principais colunas, crônicas e<br />

artigos de análise e opinião sobre os temas fortes da atualidade<br />

(SOUZA, 2004, p. 100).<br />

Nos suportes impressos essa localização é mais ou menos fixa.<br />

Nos jornais, localiza-se logo na primeira página; e, nas revistas, nas<br />

páginas iniciais; o que facilita a identificação por parte dos leitores<br />

de acordo com os suportes nos quais circulam.<br />

Os editoriais podem variar de acordo com quatro aspectos<br />

específicos: com relação ao assunto que abordam, podendo ser<br />

preventivos, de ação, ou de consequência; quanto ao conteúdo que<br />

veiculam podem ser informativos, normativos ou ilustrativos; de acordo<br />

com o estilo, variam em intelectuais e emocionais; e, de acordo com<br />

a natureza da linguagem podem ser promocionais, circunstanciais e<br />

polêmicos (cf. SOUZA, 2004, p. 100-101).<br />

Diante do exposto, o gênero editorial como gênero opinativo, que<br />

expressa opiniões ou pontos de vista da instituição jornalística, deve<br />

ser compreendido enquanto tal, de acordo com suas características<br />

específicas e particulares em meio ao suporte no qual estão inseridos<br />

e com o público ao qual se dirige.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 169


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Multimodalidade: tipografia como um modo semiótico<br />

Para entender a tipografia como um modo semiótico, partimos<br />

das metafunções sugeridas por Halliday e redefinidas por Kress e van<br />

Leeuwen (2006) na GDV, quando eles propõem estudar a imagem<br />

como um componente semiótico que tem funções específicas em<br />

decorrência dos papéis que assumem no todo textual. Em síntese,<br />

podemos compreender essas metafunções por meio do seguinte<br />

quadro:<br />

METAFUNÇÕES LINGUAGEM IMAGEM<br />

Ideacional: é a função de<br />

construir representações<br />

do que está acontecendo<br />

no mundo (e em nossas<br />

mentes).<br />

É realizada através dos<br />

sistemas linguísticos do<br />

léxico e da transitividade.<br />

É realizada por certos aspectos<br />

da composição<br />

e pelos sistemas de vetorialidade<br />

(Metafunção<br />

representacional).<br />

Interpessoal: é a função<br />

de construir interações sociais<br />

e expressar atitudes<br />

em relação ao que está<br />

sendo representado.<br />

O recurso linguístico que<br />

nos permite constituir<br />

interações sociais é a modalização.<br />

Os recursos que<br />

nos permitem expressar<br />

atitudes foram recentemente<br />

reformulados na<br />

teoria dos “sistemas de<br />

avaliação” (Martin, 2000).<br />

É realizada pelos sistemas<br />

do olhar, do tamanho do<br />

frame, e do ângulo (Metafunção<br />

interativa).<br />

Textual: é a função de<br />

organizar representaçõesinterações<br />

individuais em<br />

textos e eventos comunicativos<br />

coerentes.<br />

É realizada através de<br />

sistemas de coesão, estrutura<br />

temática e estrutura<br />

de dado-novo.<br />

É realizada através de<br />

sistemas de composição,<br />

estruturação e saliência<br />

(Metafunção composicional).<br />

Quadro 1: Metafunções na linguagem e nas imagens (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

170 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

Seguindo esses princípios, a tipografia pode preencher todas<br />

essas metafunções. Ela pode ser usada ideacionalmente para expressar<br />

experiências, ações e qualidades; pode representar interações<br />

com relação ao que está sendo representado, e “interpretar” ou<br />

“representar” textos mostrando suas qualidades características;<br />

e a tipografia pode ainda realizar significados textuais à medida<br />

que tem a capacidade de demarcar unidades ou elementos em um<br />

texto, indicando graus de semelhança ou diferença, e, trazendo ao<br />

primeiro plano os elementos mais importantes deixando para o plano<br />

de fundo os que são considerados como elementos secundários (cf.<br />

VAN LEEUWEN, 2006).<br />

Levando em consideração que a tipografia atua como modo<br />

significativo capaz de gerenciar sentidos nos textos, é oportuno<br />

afirmar que isso não se dá de forma isolada. Como bem menciona<br />

Borges (2005), o surgimento da imprensa e dos meios de comunicação<br />

de massa possibilitou uma multiplicação de signos, os quais atuam<br />

de forma conjunta quando do cruzamento de códigos que se<br />

interelacionam para gerenciar sentidos. Diante disso, a tipografia<br />

deve ser analisada em conjunto com todos os modos semióticos<br />

envolvidos na composição dos textos. Ela não deve ser vista como<br />

um recurso isolado, muito embora ela em si seja multimodal.<br />

Em síntese, de acordo com as palavras de van Leeuwen (2006,<br />

p. 145):<br />

[...] se nós queremos fazer justiça às funções semióticas<br />

comuns a diferentes recursos semióticos, e se nós queremos<br />

ser capazes de apresentar potenciais específicos e explicar que<br />

diferença faz se uma dada função comunicativa é realizada<br />

através de um modo semiótico ou através de uma combinação<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 171


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

de modos semióticos, nós precisamos expandir o escopo da<br />

linguística, e incorporá-la em uma teoria mais ampla da<br />

multimodalidade (Tradução livre).<br />

Assim, a multimodalidade opera como recurso indispensável<br />

à compreensão dos textos que circulam socialmente por meio dos<br />

mais variados gêneros textuais que cumprem funções comunicativas<br />

específicas.<br />

De acordo com van Leeuwen (2006), a tipografia pode ser<br />

considerada como um “meio semiótico” e como um “modo semiótico”.<br />

Sendo organizada como um “modo”, ela tem uma gramática e um<br />

léxico; e como um “meio”, ela tem apenas um léxico.<br />

Há muito tempo, a tipografia tem sido vista como “meio<br />

semiótico”. Nesse sentido, ela apresenta-se como “uma coleção de<br />

tipos de caracteres distintos e individuais, com origens distintas, a<br />

serem listadas alfabeticamente, como no processador de textos, ou,<br />

no melhor caso, agrupados juntos com base em princípios históricos<br />

e ‘influências’ [...]” (VAN LEEUWEN, 2006, p. 145, tradução livre).<br />

Ao ser organizada como “meio semiótico”, seus significados são<br />

construídos com base nos seguintes princípios: através da “conotação”<br />

ou da “metáfora experiencial”. No primeiro caso, a idéia defendida<br />

é a de que os signos podem ser “importados” de um contexto para<br />

outro, com o objetivo de significar valores advindos do contexto<br />

do qual foram importados. A “metáfora experiencial” defende a<br />

ideia de que todo significante material tem um potencial semântico<br />

derivado da nossa experiência física sobre ele e de nossa habilidade de<br />

expandir metaforicamente nossa experiência para transformar ação<br />

em conhecimento. (cf. VAN LEUUWEN, 2006).<br />

A fim de sugerir alguns significados que as letras podem<br />

desempenhar, van Leeuwen (2006) sugere uma lista de características<br />

172 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

distintivas da tipografia que demonstram seu potencial semântico.<br />

Essa lista não representa regras autoritárias fixas e incontestáveis,<br />

trata-se de uma tentativa de “semiotizar” a tipografia.<br />

O peso da letra indica diferenças entre fontes ou versões de<br />

fontes negritadas ou regulares (ex.: Arial Black e Arial). Geralmente<br />

o peso é usado para dar saliência a determinados elementos dos textos,<br />

e pode ser usado metaforicamente para significar sentidos ideacionais e<br />

interpessoais. Os sentidos são diversos e devem ser analisados levando<br />

em consideração outros elementos envolvidos na composição textual,<br />

que possam determinar os valores semânticos em decorrência do peso<br />

da fonte utilizada. No quadro, são mostrados alguns sentidos possíveis:<br />

Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />

Negritada<br />

Audaz, assertiva, sólida,<br />

substancial<br />

Arrogante, altiva<br />

Regular - Tímida, insubstâncial<br />

Quadro 2: Distinções entre peso regular e negritado (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

A expansão indica que as fontes podem ser condensadas ou<br />

estreitadas, expandidas ou amplas (ex.: Arial Narrow e Arial). Esse aspecto<br />

relaciona-se com a nossa experiência e pode também indicar sentidos<br />

metafóricos:<br />

Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />

Condensada Precisa, econômica Apertada, abarrotada, restritiva<br />

de movimento<br />

Ampla Esbanjadora, folgada Cheia de espaço para respirar<br />

e para se movimentar<br />

Quadro 3: Significados da expansão das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 173


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

O slope refere-se à diferença entre fontes cursivas e<br />

inclinadas que se assemelham a letras manuscritas e fontes<br />

verticais eretas (ex.: Lucida Calligraphy e Lucida Bright).<br />

Esse contrate pode ser evidenciado a partir da diferença entre<br />

caligrafia e impressão. Dessa forma, seu potencial semântico é<br />

altamente conotativo e baseado em significados e valores que nós<br />

atribuímos à caligrafia e à impressão. Alguns sentidos contrastivos:<br />

Inclinada<br />

Vertical<br />

Orgânica<br />

Mecânica<br />

Pessoal<br />

Impessoal<br />

Informal<br />

Formal<br />

Manufaturada<br />

Produzida em massa<br />

Antiga<br />

Nova<br />

Quadro 4: Slope inclinado e vertical (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

A curvatura indica que algumas letras pode enfatizar a ideia<br />

de angularidade ou de curvatura (ex.: Copperplate e<br />

Century Gothic). A curvatura pode ser realizada pela diferença<br />

entre as ascendentes e descendentes arredondadas em fontes que<br />

usam laçadas e fontes que usam pinceladas (ex.: Script MT Bold e<br />

Pristina); e, quando as ascendentes e descendentes são retas (ex.:<br />

Agency FB).<br />

174 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

Aspecto da fonte<br />

Sentidos conotativos<br />

(positivos ou negativos)<br />

Angular<br />

Arredondada<br />

Abrasiva, áspera, técnica, masculina<br />

Lisa, macia, natural, orgânica, maternal,<br />

feminina<br />

Quadro 5: Aspectos relacionados à curvatura das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

A conectividade indica que algumas fontes apresentam as<br />

letras de forma conectadas umas às outras como acontece<br />

na escrita corrida; outras têm pés curvos que se estendem em<br />

vários graus às letras próximas, ou que quase não se tocam; e,<br />

outras, onde as letras ficam afastadas e encerradas entre<br />

si mesmas (ex.: Lucida Handwriting, Lucida Calligraphy e<br />

Lucida Console). As conexões ou desconexões podem ser entre as<br />

letras e também podem ser dentro da própria letras, como por exemplo<br />

na fonte Bauhaus 93. A ideia de conectividade está associada à ideia<br />

de caligrafia e compartilha seus significados com a inclinação, mas<br />

apresenta significado metafórico próprio:<br />

Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />

Conexão externa<br />

Desconexão externa<br />

Inteireza, integração<br />

Individualidade distintiva<br />

dos elementos do todo<br />

Falta de individualidade<br />

dos elementos do todo<br />

Autonomização, fragmentação<br />

Conexão interna Completude -<br />

Desconexão interna<br />

Despreocupação, desembaraço,<br />

naturalidade<br />

Incompletude, algo que<br />

foi mal feito<br />

Quadro 6: Distinções entre a conectividade das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 175


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

A orientação pode indicar direcionamento horizontal, já<br />

que são achatadas; e, podem ser orientadas verticalmente em virtude de serem<br />

comparativamente alongadas, ou seja, esticadas na direção vertical (ex.: Bodoni MT<br />

Black e Onix). Dessa forma, o potencial semântico é baseado na nossa<br />

experiência sobre gravidade e sobre o caminhar ereto.<br />

Aspecto da fonte Sentido positivo Sentido negativo<br />

Orientação horizontal Peso, solidez Inércia, presunção<br />

Orientação vertical<br />

Luminosidade, aspiração<br />

ascendente<br />

Instabilidade<br />

Quadro 7: Distinções entre a orientação horizontal e vertical das fontes<br />

(cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

Ainda com relação à orientação, é interessante mencionar os<br />

prolongamentos curtos, nos quais as ascendentes e descendentes dificilmente<br />

estendem-se além da linha-X e da linha-base; e, os prolongamentos longos,<br />

em que as descendentes e ascendentes mas esticadas para cima (ex.:<br />

Bernard MT Condensed e High Tower Text). Outro ponto importante,<br />

é que a orientação pode ser decrescente e crescente. No primeiro<br />

caso, os descendentes são mais longos que os ascendentes,<br />

como se expressassem o sentido de “querer fixar raízes”; e, no<br />

segundo, acontece o contrário, os ascendentes são mais longos que<br />

os descendentes, querendo expressar o sentido de “elevação” (ex.:<br />

Viner Hand ITC e Poor Richard).<br />

A regularidade das fontes expressa ordem. A irregularidade<br />

como seu oposto, pode ser criada de diferentes maneiras, como, por<br />

exemplo, por meio de diferenciação interna ou externa (tamanho ou<br />

forma diferencial), por meio da diferenciação regular ou aleatória, e<br />

176 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

através da não conservação das letras nas linha-X e linha-base, ou<br />

pela variação no slope (ex.: Kristen ITC e Ravie). De<br />

forma resumida, podemos sugerir os seguintes sentidos metafóricos:<br />

Aspecto da fonte<br />

Sentido<br />

Regular<br />

Ordem, disciplina<br />

Irregular<br />

Desordem, rebelião<br />

Quadro 8: Regularidade e irregularidade das fontes (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

As características não-distintivas, como o próprio nome sugere,<br />

não podem ser distintas umas das outras, mas contribuem para o<br />

critério de legibilidade nos textos. São exemplos dessas características,<br />

as serifas que podem ser angulares ou RETAS (ex.: Copperlate<br />

Gothic Bold e Rockwell); e, os floreados que podem ser regulares<br />

ou inconstantes (ex.: Edwardian Script PTC e Curls MT).<br />

Com esses aspectos mostrados, a tipografia passou de um “meio<br />

semiótico” para um “modo semiótico” tendo em vista que com as<br />

possibilidades apresentadas temos uma espécie de “gramática” que<br />

embora não fixe regras permanentes, oferece certos princípios regulares<br />

que moldam os significados da tipografia em determinados contextos.<br />

Assim, a tipografia deve ser investigada e analisada em conjunto<br />

com outros modos semióticos que compõem a significação dos textos,<br />

verificando qual a sua função comunicativa em virtude dos objetivos<br />

que pretende alcançar.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 177


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Significação da escrita e visualidade no editorial da todateen<br />

“é pra se amarrar!!!”<br />

No editorial a seguir destacamos os seguintes aspectos:<br />

formatação da página, imagens, fotografias e as seguintes características<br />

distintivas da tipografia – peso, expansão, slope, curvatura e regularidade<br />

da fonte (cf. VAN LEEUWEN, 2006), dentre outros aspectos que se<br />

mostram significativamente coerentes.<br />

178 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

Chamada para o gênero<br />

com fonte expandida e peso<br />

negritado.<br />

Imagem<br />

Título<br />

com fonte<br />

expandida e<br />

peso negritado.<br />

Formatação em<br />

coluna única<br />

sem marcação<br />

de parágrafo.<br />

Fonte<br />

com Slope<br />

sugerindo<br />

cursividade;<br />

curvatura,<br />

regularidade e<br />

peso negritado.<br />

Letra capitular<br />

com peso<br />

negritado<br />

e expansão<br />

vertical.<br />

Despedida<br />

da redação<br />

com fonte<br />

cursiva – slope<br />

indicando<br />

caligrafia.<br />

Fotografia com legenda, destacada por meio de<br />

molduras, enquadramentos.<br />

Figura 1: É pra se amarrar!!!<br />

(01) Todateen, abril de 2003<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 179


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Trata-se de um editorial misto, que, de forma clara e precisa,<br />

apresenta uma temática bem condizente com as adolescentes, já que<br />

o assunto principal veiculado por ele, diz respeito às delícias, emoções<br />

e sensações causadas pela descoberta dos sentimentos envolvidos no<br />

primeiro beijo, primeiro namoro, isto é, pelas novidades que uma<br />

relação amorosa pode causar, principalmente nessa fase da vida.<br />

Além de apresentar essa temática, atua como texto introdutório para<br />

o suporte – revista Todateen, haja vista descrever alguns assuntos<br />

contidos na edição como forma de chamar a atenção das leitoras<br />

persuadindo-as a interagirem com ele.<br />

Destacando os recursos tipográficos e multimodais envolvidos<br />

em sua composição, é válido mencionar inicialmente a nomenclatura<br />

dada ao gênero. Como forma de inovar e de apresentar o gênero<br />

como veículo institucional que pretende interagir com as leitoras,<br />

essa nomenclatura atua como um recurso multimodal que sugere<br />

significações a partir de sua visualidade. Isso se deve à tipografia<br />

utilizada, pois as características distintivas empregadas, de acordo<br />

com van Leeuwen (2006), sugerem significados específicos a partir de<br />

sua localização na página editorial, tendo em vista que cada zona da<br />

imagem cumpre funções específicas, como também, devido à relação<br />

que estabelece como os demais componentes visuais e linguísticos<br />

presentes em sua estrutura visual e opinativa por se tratar de um<br />

texto complexo ou multimodal (cf. DIONÍSIO, 2006).<br />

180 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

Figura 1.1: Chamada para o editorial<br />

(01) Todateen, abril de 2003<br />

A tipografia utilizada dá um destaque maior à “redação” da<br />

revista, pois a fonte expandida na cor branca em um fundo azul atua<br />

visualmente interagindo com as leitoras no intuito de travar com<br />

elas um diálogo, o que é comprovado até mesmo pelos recursos<br />

linguísticos que seguem: “& você”, os quais mostram claramente a<br />

relação da redação, enquanto equipe jornalística responsável pela<br />

linha editorial da revista, com o público leitor - as adolescentes. O peso<br />

da fonte utilizada nessa composição também promove um destaque e<br />

direciona o olhar das leitoras que identificam o gênero a partir de sua<br />

chamada inicial – a nomenclatura que tal gênero assume no suporte.<br />

Tanto a expansão quanto o peso da fonte sugerem funções interativas,<br />

representativas e composicionais, como diz van Leeuwen (2006),<br />

conforme detalhamos a seguir.<br />

Com a função interativa, tais características indicam a<br />

necessidade de travar uma interação com as leitoras por meio de<br />

recursos linguísticos e visuais que juntos dão ideia de união entre<br />

os participantes envolvidos por esse ato de comunicação. Isso se<br />

dá, ainda, devido à maneira explícita que a equipe da instituição<br />

jornalística se apresenta como próxima da leitora, envolvendo-a em<br />

sua redação como se ela fizesse parte de sua equipe – “redação e você”,<br />

deixando claro, assim, que sua produção toma como ponto de partida<br />

os interesses de seu público.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 181


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Como forma de representar ações e eventos, conforme sugerem<br />

Kress e van Leeuwen (2006), a função representativa, visualizada<br />

neste exemplo, indica que as características tipográficas surtem efeitos<br />

contemplativos para os participantes interativos que estabelecem<br />

contatos visuais significativos com tal estrutura, de forma a fazer<br />

com que as leitoras identifiquem o gênero e possam tomá-lo como<br />

referência opinativa.<br />

Sua localização na parte superior esquerda da página editorial<br />

sugere sentidos composicionais específicos, levando em consideração<br />

os significados funcionais que as zonas da imagem promovem, assim<br />

como propõem os autores citados acima. A parte superior é tida como<br />

o ideal, ou seja, aquilo que significa em sua essência idealizada; e, o lado<br />

esquerdo atua apresentando informações dadas. Dessa forma, dizemos<br />

que, até mesmo pela nomenclatura utilizada, a chamada para o gênero<br />

representa algo como ideal haja vista que não o identificamos pelo seu<br />

nome padrão – editorial; porém, isso é um dado já (re)conhecido pelas<br />

leitoras que o identificam enquanto tal, sem a menor dificuldade, por<br />

se tratar de algo recorrente (cf. MILER, 2009) em todos os editoriais<br />

do suporte em questão.<br />

Logo abaixo, ainda na parte superior, vem o título do editorial.<br />

O peso negritado da fonte e sua expansão também se destacam entre<br />

os demais elementos textuais. Assim, o destaque tipográfico dado<br />

ao título contribui para a compreensão do texto, introduzindo a<br />

temática e indicando sentidos: (i) interativos, já que estabelece uma<br />

relação entre os participantes envolvidos nos contextos de produção<br />

e consumo textual; (ii) representativos, à medida que instiga o olhar<br />

das leitoras de modo enfático, potencializado ainda mais por meio dos<br />

pontos de exclamação; e (iii) sentidos composicionais, em virtude de sua<br />

localização como algo idealizado que será concretamente apresentado<br />

na sequência do texto (cf. KRESS e VAN LEEUWEN, 2006).<br />

182 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

A cor vermelha da fonte utilizada no título é simbolicamente<br />

representativa da paixão, o que fica evidente por meio do destaque<br />

dado à palavra “amarrar” como sinônimo de compromisso<br />

apaixonado, namoro, que, apesar da regularidade da fonte, é destacada<br />

pelo tamanho das letras, como vemos na figura a seguir.<br />

Figura 1.2: Título do editorial<br />

(01) Todateen, abril de 2003<br />

A cor vermelha, sugerindo a cor do “coração”, do sangue,<br />

convencionalmente surte efeitos fortes indicando algo perigoso, os<br />

quais se unem aos tons significativos que a palavra “amarrar” assume<br />

no contexto do editorial, com o intuito de instigar opiniões sobre<br />

os mistérios, emoções e sensações da primeira paixão, do primeiro<br />

namoro.<br />

Juntamente com o título temos uma imagem de dois<br />

adolescentes de mãos dadas, se olhando e em direção ao primeiro<br />

beijo, os quais estão sobre um coração também em cor vermelha,<br />

como símbolo da paixão, do amor. Tal imagem, idealmente, já que<br />

está localizada na parte superior da página (cf. KRESS e VAN<br />

LEEUWEN, 2006), contribui para a construção de sentidos e<br />

significação deste gênero, pois sugere o ideal do encontro entre<br />

os dois e a possibilidade de vivenciarem uma paixão. Além disso,<br />

as figuras da forma como estão expostas, fazem parte do universo<br />

adolescente, já que nesta fase há uma identificação maior com<br />

textos visualmente informativos, os quais os tornam mais atraentes<br />

e chamativos.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 183


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Ainda na parte superior da página do editorial, temos uma<br />

fotografia de uma repórter da Todateen com o ator juvenil Kayky<br />

Brito, identificada a partir de uma legenda funcional e enquadrada<br />

por uma moldura que a coloca em destaque em meio à página<br />

em sua totalidade. Essa foto sugere significados multifuncionais à<br />

medida que desempenha ações entre os participantes da interação,<br />

enquanto objeto de contemplação que atua perante os participantes<br />

observadores (público-leitor) como sendo próximos destes, e, como<br />

dado informativo possivelmente já esclarecido e (re)conhecido pelas<br />

leitoras por se tratar de figuras públicas bem conhecidas socialmente.<br />

Em seguida, temos o texto escrito propriamente dito, o qual<br />

apresenta opiniões acerca das emoções vividas pelos adolescentes<br />

com a descoberta do amor, além de introduzir matérias do suporte,<br />

de forma a apresentá-lo para as leitoras. O texto inicia-se com uma<br />

letra capitular de cor verde combinando com o verde das molduras<br />

que destacam as fotografias visualizadas no todo da página. Tal<br />

letra encontra-se tipograficamente destacada por meio de um peso<br />

negritado e de uma expansão vertical (cf. VAN LEEUWEN, 2006)<br />

que atuam significativamente perante as leitoras de forma a sugerir<br />

direcionamento da leitura marcando o parágrafo inicial.<br />

Percebemos que o texto é bastante curto, disposto por uma<br />

tipografia que indica regularidade, propondo, dessa forma, que se<br />

trata de um texto que pretende transmitir credibilidade, e, garantir,<br />

pelo menos até certo ponto, o critério de se dirigir de modo imparcial<br />

para a coletividade. Porém, por se tratar de uma variação do editorial<br />

padrão, podemos dizer, pela presença dos recursos tipográficos<br />

utilizados, que existe uma tentativa de aproximação maior com o<br />

público-leitor. Tal fato é marcado por meio da curvatura da fonte,<br />

que de acordo com as sugestões de van Leeuwen (2006), sugere<br />

significados femininos, como, leveza, afetividade, proximidade entre<br />

184 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

os participantes envolvidos no ato comunicativo, uma vez que este<br />

texto é direcionado para o público feminino adolescente. Além da<br />

curvatura da fonte e da linearidade do texto observadas por meio de<br />

uma coluna única, a tipografia utilizada nele é levemente inclinada<br />

para a direita, o que também contribui para sugerir uma aproximação<br />

com a escrita manual.<br />

A assinatura do editorial, também chama nossa atenção pela<br />

tipografia utilizada e por se tratar de uma despedida pessoal, que<br />

embora não individualize autoria, se mostra também como uma<br />

variação do gênero, já que nos editoriais padrões não há assinatura<br />

garantindo-se, assim, a impessoalidade, tal como propõe Souza (2004).<br />

Figura 1.3: Despedida da redação<br />

(01) Todateen, abril de 2003<br />

Trata-se de uma fonte que se assemelha à escrita manual,<br />

apresentando um slope que aproxima a escrita impressa à caligrafia.<br />

Por meio disso, é como se a edição quisesse manter uma interação<br />

pessoal, mais informal e íntima com o público, o que é mais<br />

enfatizado ainda pela cor azul da letra, a qual lembra a cor de uma<br />

caneta esferográfica utilizada para escrever à mão. Ela encontra-se<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 185


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

inclinada e está disposta em cima de um beijo marcado por uma<br />

boca como se representasse uma marca de batom no papel. Essa<br />

atitude é típica de adolescentes para marcar carinho e intimidade ao<br />

escreverem cartas, recados ou bilhetes para amigos. Dessa forma, há a<br />

representação, mais uma vez, da necessidade de garantir proximidade<br />

na interação estabelecida por este gênero, o que é marcado ainda,<br />

pela conectividade entre as letras, pois como sugere van Leeuwen<br />

(2006), isso quer dizer integração, a qual é estabelecida pela equipe<br />

editorial com suas possíveis leitoras.<br />

Assim, afirmamos que a multimodalidade de tal gênero e as<br />

significações discursivas que ele elenca o tornam capaz de gerenciar<br />

sentidos semióticos e linguísticos específicos que colaboram para<br />

uma multifuncionalidade social do gênero como representante e<br />

influenciador de determinadas práticas sociais.<br />

Considerações finais<br />

Diante da análise desenvolvida, percebemos que tal editorial se<br />

mostra como uma variação bastante dinâmica dos editoriais padrões em<br />

suas origens impressas. A visualidade da escrita, os recursos multimodais<br />

e linguísticos, que compõem esse gênero, se mostram significativos no<br />

sentido de atuarem na constituição da multifuncionalidade do gênero<br />

levando em consideração seus propósitos comunicativos e sociais.<br />

Os recursos destacados funcionam como características<br />

distintivas (cf. VAN LEEUWEN, 2006), proporcionando significados<br />

visuais aos componentes linguísticos de modo a instigar sentidos<br />

visuais altamente coerentes para a compreensão dos editoriais como<br />

textos multimodais e complexos.<br />

Assim sendo, esse trabalho se mostra relevante, tendo em vista<br />

a necessidade de ampliar os estudos na área dos gêneros, com relação,<br />

186 l Anais Eletrônicos - 2011


SIGNIFICADOS TIPOGRÁFICOS NO GÊNERO EDITORIAL<br />

Jaciara Limeira de AQUINO (UERN/<strong>PPGL</strong>)<br />

especialmente, aos aspectos multimodais – tipografia, por ser uma área<br />

fértil de análises e investigações que merece ser discutida de forma<br />

ampla e sistematizada diante da heterogeneidade que as diferentes<br />

linguagens assumem em meio à sociedade contemporânea.<br />

Referências<br />

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

BORGES, P. M. Tipografia: ideograma ocidental. São Paulo: PUC-SP, 2005. (Dissertação<br />

de Mestrado). Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.<br />

php?codArquivo=1516. Acesso em 05 de junho de 2010.<br />

DIONÍSIO, P. A. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, M.; GAYDECZA,<br />

B.; BRITO, S. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. (p.<br />

131-142)<br />

FARIAS, P. L. Tipografia digital: o impacto das novas tecnologias. 3. ed. Rio de Janeiro:<br />

2AB, 2001.<br />

FERNANDES, D. Alltype: informação, cognição e estética no discurso tipográfico. João<br />

Pessoa: UFPB, Natal: Marca da Fantasia, 2006.<br />

KRESS, G.: LEEUWEN, T. van. Reading images: the grammar of visual design. 2. Ed. London<br />

and New York, Routledge, 2006.<br />

MARCUSCHI. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI,<br />

A. M; GAYDECZA, B.; BRITO, K. S. (org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro:<br />

Lucerna, 2006. (p. 23-36)<br />

MARQUES DE MELO, J. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro.<br />

Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003.<br />

SOUSA, J. P. Introdução à análise do discurso jornalístico impresso: um guia para estudantes<br />

de graduação. Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas, 2004.<br />

VAN LEEUWEN, T. Towards a semiotics of typography. In: John Benjamins Publishing<br />

Company. 2006.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 187


Resumo<br />

Seguindo a Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1978), este artigo<br />

apresenta as opções sociossemânticas disponíveis na base ideacional<br />

de textos publicitários que anunciam seus produtos recorrendo a<br />

super-heróis de histórias em quadrinhos. São distinguidos três sistemas<br />

de ordem sociossemântica: Desejo de Poder, em que o super-herói<br />

e/ou o destinatário do anúncio é(são) representado(s) em ambiente<br />

real ou fictício e em posição própria ou invertida; Apresentação do<br />

Produto/Serviço, em que a oferta presente no anúncio ou é descrita<br />

ou é representada como algo que deve ser procurado para um melhor<br />

detalhamento (indução à compra); e Necessidade, em que a oferta é<br />

apresentada a partir de sua aplicabilidade, podendo ser prática ou social.<br />

Essas opções são apresentadas juntamente com suas realizações no<br />

sistema de transitividade (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) e na estrutura<br />

representacional (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006).<br />

Palavras-chave: rede sociossemântica; anúncio publicitário; transitividade.<br />

Abstract<br />

Following the Systemic Functional Linguistics (Halliday, 1978), this article<br />

presents the sociosemantics options available in an ideational basis of<br />

advertising texts which announce their products using superheroes<br />

from comic books. There are three distinct sociosemantics order systems:<br />

Will of Power, in which the superhero and / or the recipient of the ad is<br />

(are) represented (s) in real or fictitious environment and in their own or<br />

inverted position {2; Presentation of the Product / Service, in which the<br />

offer in the ad is either described or represented as something that<br />

should be searched for a better detail (influence to the purchasing), and<br />

Need, in which the offer is presented from its applicability and can be<br />

either practical or social .These options are presented along with their<br />

achievements in the system of transitivity (HALLIDAY and MATTHIESSEN,<br />

2004) and representational structure (KRESS and VAN LEEUWEN, 2006).<br />

Keywords: sociosemantics network, advertising; transitivity.


A sociossemântica dos anúncios<br />

publicitários com super-heróis 1<br />

Introdução<br />

Jordão Joanes Dantas da SILVA<br />

(UFPB/CNPq) 2<br />

Na perspectiva teórica sistêmico-funcional, dois conceitoschave<br />

são o de estratificação e o de sistema (HALLIDAY e<br />

MATTHIESSEN, 2004). O primeiro explica que a linguagem é<br />

constituída de cinco estratos: contexto, semântica, lexicogramática,<br />

fonologia e fonética, sendo que eles se relacionam por meio de<br />

realização. O segundo corresponde à visão da língua como um<br />

sistema semiótico, um recurso para significar (HALLIDAY, 1978), o<br />

que aponta para a necessidade de seu usuário “acessar” elementos<br />

significativos para se comunicar em dado contexto; nesse caso, o<br />

foco recai sobre o eixo paradigmático e o texto passa a ser visto<br />

como uma instância com um conjunto de escolhas.<br />

Halliday (2003, p. 323) assegura que “em cada um dos níveis<br />

[ou estratos] que compõem o sistema linguístico, podemos identificar<br />

conjuntos de opções representando o que os falantes ‘podem fazer’<br />

1. Este artigo se constitui em uma versão modificada do quarto capítulo da dissertação de mestrado intitulada<br />

“Want to be a real hero?”: uma análise sistêmico-funcional de anúncios em revistas em quadrinhos de superheróis”,<br />

apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING – UFPB). A referida dissertação<br />

foi orientada pela Profa. Dra. Danielle Barbosa Lins de Almeida e co-orientada pelo Prof. Dr. Anderson Alves de<br />

Souza, a quem agradeço enormemente por terem me auxiliado atenciosamente durante todos os estágios que<br />

culminaram com as ideias apresentadas neste artigo.<br />

2. Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING – UFPB) e membro pesqui-<br />

. Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING – UFPB) e membro pesquisador<br />

do Grupo de Pesquisa em Semiótica Visual e Multimodalidade (GPSM – UFPB).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 189


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

naquele nível”. A partir desse pensamento, Halliday se volta para<br />

o estrato semântico e afirma que é possível, a partir da análise de<br />

textos inseridos em um mesmo contexto de situação, apontar,<br />

por meio de redes de sistema, as opções semânticas disponíveis ao<br />

falante. Isso porque esse estrato, responsável pela ligação entre a<br />

lexicogramática e o contexto, é o espaço que apresenta um potencial<br />

de opções referentes ao que o falante pode significar e pode fazer em<br />

termos linguísticos. O autor exemplifica essa ideia com a criação de<br />

uma rede (sócio)semântica que expressa os padrões de significados<br />

na situação em que a mãe regula o comportamento da criança. Butler<br />

(1985, p. 60) esclarece o que vêm a ser as redes sociossemânticas:<br />

No nível sociossemântico, tais redes mostram relações de<br />

contraste e dependência entre escolhas de significados<br />

disponíveis em um contexto social particular [...]. A tarefa é<br />

identificar que combinações na lexicogramática atuam como<br />

realizações sistemáticas de opções particulares nas redes<br />

sociossemânticas.<br />

Partindo dessa noção, este trabalho tem o objetivo de<br />

apresentar uma rede sociossemântica que indica as opções de<br />

significados e suas realizações verbais e visuais em anúncios que<br />

recorrem a super-heróis norte-americanos na oferta de produtos/<br />

serviços. Para tanto, é considerado um total de sete anúncios<br />

recolhidos da revista em quadrinhos The Amazing Spider-Man entre<br />

junho de 2004 e maio de 2006.<br />

A elaboração da rede sociossemântica foi possível a partir da<br />

identificação de padrões de transitividade (THOMPSON, no prelo)<br />

e uma consequente interpretação feita com base no entendimento<br />

sociológico dos super-heróis (ECO, 1998; VIANA, 2005), da<br />

190 l Anais Eletrônicos - 2011


A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />

Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

publicidade (VESTERGAARD e SCHRØDER, 2004) e da sociedade<br />

de consumo (FEATHERSTONE, 2007). Nesse sentido, segue-se<br />

van Leeuwen (2005, p. 129), que, analisando o tempo de práticas<br />

sociais, diz que “a interpretação das categorias [gramaticais] deve<br />

ser fundamentada sociologicamente e historicamente, tomando o<br />

conceito de ‘contexto de cultura’ (Halliday, 1978) seriamente, como<br />

um aspecto-chave de qualquer análise sociossemântica”.<br />

Neste artigo, toma-se como dado o conhecimento, por parte do<br />

leitor, do sistema de transitividade (HALLIDAY e MATTHIESSEN,<br />

2004) – que distingue as ações, experiências e relações associadas<br />

a alguém ou algo em dada circunstância – e da metafunção<br />

representacional (KRESS e van LEEUWEN, 2006) – que analisa a<br />

forma como as imagens representam aspectos que o ser humano<br />

experiencia no mundo. Por isso, a primeira seção do artigo já parte<br />

para a apresentação das opções sociossemânticas dos anúncios que<br />

recorrem a super-heróis de histórias em quadrinhos (HQs). A segunda<br />

seção demonstra, com a análise de um anúncio publicitário, como<br />

a rede sociossemântica pode ser utilizada em investigações que se<br />

colocam entre a gramática e o discurso.<br />

A sociossemântica dos anúncios<br />

Os sete anúncios analisados são vistos como instâncias<br />

representativas de um registro. Um registro, segundo Halliday (1978,<br />

p. 111, ênfase nossa)<br />

pode ser descrito como uma configuração de recursos semânticos<br />

que os membros de uma cultura tipicamente associam com um<br />

tipo de situação. É o potencial de significados que está acessível<br />

em um dado contexto social.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 191


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

As variáveis constituintes do registro são campo (tipo de<br />

atividade social do discurso), relação (que diz respeito ao lugar<br />

ocupado pelos participantes do discurso) e modo (o papel da língua<br />

e a organização simbólica do texto). Como o escopo deste artigo está<br />

voltado para a base ideacional, a variável campo será privilegiada<br />

em relação às demais.<br />

Hasan (1989) esclarece que o campo corresponde à atividade<br />

social e à natureza da atividade. Com relação à atividade social, os<br />

sete anúncios em análise são textos construídos para a publicidade<br />

de produtos (cortador de cabelo Wahl, jogo eletrônico Spider-Man<br />

2, ornamentos, calendários, cartas de super-heróis, jogos de cartas<br />

colecionáveis The Avengers e DVD Ultimate Avengers) e de um serviço<br />

(resort Universal Orlando), todos à venda no mercado capitalista;<br />

têm o objetivo principal de induzir o consumidor à compra; e são<br />

anúncios do tipo “exibição” (VESTERGAARD e SCHRØDER,<br />

2004), ou seja, recebem destaque nas revistas de HQs The Amazing<br />

Spider-Man a fim de chamar a atenção de leitores cujo propósito<br />

primeiro é acompanhar uma narrativa em banda desenhada. Quanto<br />

à natureza da atividade, esta é institucionalizada, pertencente à<br />

instituição econômica.<br />

Os anúncios analisados foram escolhidos por serem<br />

representativos do registro aqui trabalhado. A partir de uma análise<br />

visual e verbal, chegou-se à criação da rede de sistema Estratégia<br />

Publicitária, que aponta o potencial de significados correspondente<br />

à atividade social de anunciar por meio de super-heróis. A rede,<br />

chamada de rede sociossemântica (BUTLER, 1985) ou rede semântica<br />

(HALLIDAY, 2003), é constituída de três sistemas: Desejo de<br />

Poder, Apresentação do Produto/Serviço e Necessidade (ver figura<br />

1, a seguir).<br />

192 l Anais Eletrônicos - 2011


A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />

Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

Figura 1: Rede de sistema Estratégia Publicitária<br />

As subseções seguintes explicam e exemplificam cada um dos<br />

sistemas da rede sociossemântica.<br />

Desejo de Poder<br />

O grupo de opções sociossemânticas que constituem o sistema<br />

Desejo de Poder caracterizam-se por ofertar produtos/serviços<br />

recorrendo a orações e imagens que investem no aspecto heróico,<br />

sendo, por isso, distintas pela forma como articula a realidade do<br />

ser humano ao universo fictício dos super-heróis. Dessa maneira, o<br />

anunciante tem à disposição escolhas significativas que permitem a<br />

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Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

aproximação do possível consumidor a um modo de vida marcado por<br />

valores pertencentes ao campo das HQs de super-heróis.<br />

Esse sistema apresenta os seguintes subsistemas: representação,<br />

ambiente e posição, cada um com opções específicas.<br />

Representação<br />

O subsistema representação diz respeito à escolha dos principais<br />

participantes que aparecem nos anúncios publicitários. É composto<br />

de duas opções: simples e interativa. A opção simples ocorre quando<br />

são representados ou o destinatário (possível consumidor do produto/<br />

serviço ofertado) ou o super-herói, de modo que um não interage com<br />

o outro na estrutura verbal ou visual. A opção interativa, por sua vez,<br />

ocorre quando ambos, destinatário e super-herói, interagem, ou seja,<br />

aparecem juntos.<br />

A figura 2, a seguir, apresenta um anúncio que exemplifica a<br />

representação simples com a escolha do super-herói. Como se pode ver,<br />

o Homem-Aranha é representado de forma isolada, sem interagir com<br />

o destinatário do anúncio. Na figura 3, por outro lado, tem-se uma<br />

representação interativa, em que os super-heróis Capitão América,<br />

Homem-Aranha, Hulk, Demolidor e Homem de Ferro aparecem na<br />

mesma estrutura visual de um adolescente que tipifica o destinatário<br />

do anúncio.<br />

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A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />

Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

Figura 2: Representação simples Figura 3: Representação interativa 3<br />

com foco no super-herói 4<br />

Os exemplos (1) e (2) ilustram a opção simples do subsistema<br />

representação realizada no modo semiótico verbal. Como se pode<br />

ver, enquanto, no primeiro caso, tem-se a escolha do destinatário, no<br />

segundo tem-se a escolha do participante super-herói.<br />

(1)<br />

[you] Get a great cut and a cool DVD comic book. 5<br />

(representação:simples: destinatário)<br />

3. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – sins past (part two). n. 510, p. 11, set. 2004.<br />

4. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – the book of Ezekiel (chapter 1). n. 506, p. 27, jun. 2004.<br />

5. “[você] Adquira um admirável corte de cabelo e um excelente DVD de história em quadrinhos!” (tradução<br />

nossa).<br />

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f<br />

(2)<br />

[The Avengers] to fight foes that no single hero could<br />

withstand. 6 (representação:simples: super-herói)<br />

É importante ressaltar que, apesar de o anunciante possuir, em<br />

teoria, um potencial extenso de participantes para representar em<br />

seus anúncios, tais como o vilão, o amigo do destinatário e outros<br />

personagens secundários, os que mais se destacam no sistema Desejo<br />

de Poder são o destinatário e o super-herói.<br />

Ambiente<br />

O subsistema ambiente refere-se ao tipo de contexto em que<br />

os participantes são representados. São duas as opções: real e fictício.<br />

Quando real, representa-se o destinatário e/ou super-herói no mundo<br />

do ser humano. Exemplos são as situações de decorar um quarto ou<br />

de cortar cabelo. Quando fictício, por sua vez, os participantes são<br />

dispostos no mundo dos super-heróis, marcado pela “super-aventura”<br />

(VIANA, 2005) – por exemplo, ações que só seriam realizadas pelo<br />

uso da tecnologia, ou em lugares e tempos não frequentados pelo<br />

ser humano (outro planeta, um passado/futuro longínquo, e mesmo<br />

o topo de um edifício). Os anúncios apresentados nas figuras 2 e<br />

3 exemplificam essas duas opções. No caso da figura 2, pode-se<br />

ver, por meio de elementos visuais como o sofá e a cadeira, que os<br />

participantes encontram-se em um salão de cabeleireiro, ou seja,<br />

em um ambiente real, associado aos seres humanos. A figura 3, por<br />

outro lado, representa a Nova York fictícia, cenário das narrativas<br />

do super-herói Homem-Aranha.<br />

6. “[Os Vingadores] para combater inimigos que um único herói não poderia resistir” (tradução nossa).<br />

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Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

Os exemplos (3) e (4) indicam como o subsistema ambiente é<br />

realizado pelo modo semiótico verbal:<br />

(3)<br />

[you] save Mom big bucks in haircuts. 7 (ambiente: real)<br />

(4)<br />

[you] Battle villains high above the streets. 8 (ambiente: fictício)<br />

Se comparados (3) e (4), percebe-se claramente que o<br />

destinatário (referenciado pelo pronome you - você), ora está em<br />

um mundo real, em que é recorrente a prática de cortar cabelo e<br />

economizar dinheiro, ora em um mundo fictício, em que é recorrente<br />

a prática de lutar contra vilões.<br />

Posição<br />

Por fim, o subsistema posição indica o posicionamento de um<br />

participante em relação ao outro. Pode ser própria ou invertida. Sendo<br />

própria, o destinatário ou super-herói é posicionado comportando-se<br />

ou realizando ações que lhe são habituais, ou seja, que fazem parte<br />

de seu leque de atividades cotidianas. Em outras palavras, a posição<br />

própria representa o destinatário comportando-se como consumidor<br />

e o super-herói comportando-se como super-herói. Sendo invertida,<br />

por outro lado, o participante é representado em um papel trocado,<br />

de modo que o destinatário comporta-se como super-herói e o superherói<br />

como ser humano. A inspiração para o estabelecimento dessas<br />

7. “[você] economize a grana da mamãe em cortes de cabelo.” (tradução nossa).<br />

8. “[você] Combata vilões bem acima das ruas.” (tradução nossa).<br />

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Sinta e<br />

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f<br />

opções advém dos conceitos de Determinação Simples e Inversão,<br />

de van Leeuwen (2008).<br />

Os anúncios das figuras 4 e 5 exemplificam como as opções do<br />

subsistema posição são realizadas visualmente. No caso da figura 4, o<br />

Capitão América encontra-se cortando o cabelo do adolescente, ação<br />

que foge do seu ofício de super-herói. Por outro lado, na figura 5, ele é<br />

representado com seu escudo realizando uma ação que lhe é própria.<br />

Figura 4: Posição invertida 9 Figura 5: Posição própria 10<br />

9. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – the book of Ezekiel (chapter 1). n. 506, p. 27, jun. 2004.<br />

10. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – Mr. Parker goes to Washington (part one). n. 529, p. 36,<br />

abr. 2006.<br />

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Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

Com relação ao modo semiótico verbal, é possível visualizar o<br />

subsistema posição e suas opções própria e invertida nos exemplos (5) e<br />

(6), nos quais o destinatário é representado agindo, respectivamente,<br />

como ser humano e como super-herói.<br />

(5)<br />

[you] to deck out your room, locker, car and, oh yeah, even<br />

your Christmas tree! 11 (posição: própria)<br />

(6)<br />

[you] battle Doc Ock. 12 (posição: invertida)<br />

Apresentação do Produto/Serviço<br />

Apresentação do Produto/Serviço diz respeito à maneira como<br />

a oferta é apresentada ao leitor do anúncio. Pode ser de duas formas:<br />

Descrição e Indução à Ação.<br />

A Descrição, como o próprio nome sugere, indica a descrição<br />

do produto/serviço. É o momento em que se tem a apresentação<br />

(propriamente dita) da oferta, uma vez que é exposta de modo<br />

proeminente na estrutura visual/verbal. No modo visual, essa opção<br />

ocorre com a exposição do produto em dois tipos de representações:<br />

(i) Classificacionais, em que a descrição se dá pela relação entre<br />

participantes Subordinados e Superordenados; e (ii) Analíticos, em<br />

que há uma relação parte-todo (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006).<br />

As figuras seguintes ilustram essas opções.<br />

11. “[você] decorar seu quarto, armário, carro e, ah sim, até sua árvore de natal!” (tradução nossa).<br />

12. “[você] Lute contra Doc Ock.” (tradução nossa).<br />

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Figura 6: Produtos em Processo<br />

Classificacional 13<br />

Figura 7: Produtos em Processo Analítico<br />

No sistema semiótico verbal, a Descrição é realizada a partir<br />

de orações relacionais com o produto/serviço ou no papel de<br />

Característica (exemplo (7)) ou no papel de Portador (exemplo (8)).<br />

(7)<br />

(…) this is the the extraordinary story of some very independent<br />

super heroes. 14<br />

13. Imagem disponível em: The Amazing Spider-Man – extreme measures. n. 523, p. 33, out. 2005.<br />

14. “(...) esta é a extraordinária história de alguns super-heróis muito independentes.” (tradução nossa).<br />

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Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

(8)<br />

The Avengers is a collection of your favorite Marvel<br />

characters. 15<br />

Já na opção Indução à Ação, o destinatário do anúncio é<br />

chamado a agir de alguma forma, de modo que essa ação não é, como<br />

nas opções do sistema Desejo de Poder, relacionada às suas emoções,<br />

mas à forma como deve proceder para adquirir um conhecimento<br />

maior do produto/serviço. Aqui, embora o produto/serviço não seja<br />

mostrado diretamente ao destinatário, ainda assim se configura<br />

como um modo de apresentação, visto que, caso realizado o contato<br />

(via internet ou telefone) sugerido pelo anunciante, um outro tipo<br />

de apresentação é concretizada, talvez passando a haver um modo<br />

diferenciado de descrição. Nessa opção, o destinatário é representado<br />

frequentemente em orações materiais no papel de Ator. A construção<br />

transitiva ainda recebe como elemento obrigatório o Escopo, que<br />

informa o lugar que deve ser visitado para adquirir mais informações<br />

acerca do produto. O exemplo (9), a seguir, ilustra isso:<br />

(9)<br />

[you] Visit universalorlando.com 16<br />

Sendo realizada por meio de orações que pedem para<br />

o destinatário entrar em contato com a empresa, a Indução<br />

à Ação oferece duas vantagens principais para o anunciante<br />

(VESTERGAARD e SCHRØDER, 2004, p. 103): “1. obtém dados<br />

diretos sobre a eficiência do anúncio; [e] 2. depois que o cliente<br />

15. “Os Vingadores é uma coleção de seus personagens Marvel favoritos.” (tradução nossa).<br />

16. “[você] Visite universalorlando.com.” (tradução nossa).<br />

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f<br />

entrou em contato com o anunciante, pode-se reforçar a resposta<br />

com uma comunicação pessoal”.<br />

Necessidade<br />

Por Necessidade, entende-se o momento em que o anunciante<br />

se volta para a aplicabilidade do produto/serviço ou para algum<br />

elemento que pode ser visto como necessário para o consumidor.<br />

Nesse sistema têm-se as opções prática e social. A necessidade prática<br />

é aquela concebida como indispensável ao bem-estar do consumidor;<br />

é escolhida quando se quer enfocar o valor de uso do produto.<br />

Essa opção é realizada por meio de orações em que o destinatário<br />

é representado no papel de Experienciador em Processo Mental de<br />

cunho desiderativo. A oração seguinte é um exemplo:<br />

(10)<br />

You need a haircut. 17<br />

Já a necessidade social enfoca as formas como o indivíduo pode<br />

se relacionar socialmente a partir do consumo. Essa opção é realizada<br />

por orações Mentais em que o Experienciador é instanciado ou pelo<br />

destinatário ou por uma entidade com quem convive socialmente<br />

(como amigos, por exemplo). A oração a seguir exemplifica essa<br />

opção sociossemântica:<br />

(11)<br />

[you] Impress your friends with Marvel Valentines from<br />

American Greetings. 18<br />

17. “Você precisa de um corte de cabelo.” (tradução nossa).<br />

18. “[você] Impressione seus amigos com cartões Marvel Valentines da American Greetings. (tradução nossa).<br />

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Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

De posse dessa rede sociossemântica, vejamos como suas<br />

opções podem ser identificadas em um anúncio e como isso permite<br />

interpretações sociais de interesse para a análise do discurso.<br />

Um exemplo<br />

Voltemos a atenção para o anúncio da figura 3, referente à<br />

oferta do jogo de ação e aventura Spider-Man 2. Por meio da análise<br />

da imagem principal (no topo) e da sequência de cinco imagens<br />

menores (na parte inferior), percebe-se que o anúncio, dentro do<br />

sistema Desejo de Poder, opta por uma estratégia publicitária (ou<br />

conjunto de opções sociossemânticas) nomeada posição fictícia própria<br />

focada no herói. Esse nome deve-se às seguintes escolhas da nossa<br />

rede sociossemântica: representação:simples + participante:herói +<br />

posição:própria + ambiente:fictício. Isso é evidenciado porque em<br />

todas as imagens o Homem-Aranha é realizado como Ator agindo<br />

de maneira própria (ou seja, como super-herói) e em um ambiente<br />

fictício (a Nova York fictícia).<br />

Se analisadas as cinco imagens na parte inferior do anúncio,<br />

ainda se percebe a estratégia Apresentação do Produto/Serviço por meio<br />

de descrição. Isso porque essas imagens, em estrutura conceitual, estão<br />

subordinadas à categoria “jogo Spider-Man 2”, portanto descrevendo<br />

o produto por meio de Processo Classificacional (KRESS e van<br />

LEEUWEN, 2006). Nesse caso, o anunciante oferece ao leitor do<br />

anúncio uma apresentação visual dos produtos, permitindo uma noção<br />

de como eles realmente são.<br />

No modo semiótico verbal, por outro lado, a estratégia<br />

publicitária mais usada é a posição fictícia invertida focada no<br />

consumidor, em que são feitas as seguintes escolhas no sistema<br />

Desejo de Poder: representação:simples + participante:destinatário<br />

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+ posição:invertida + ambiente:fictício. Nesse caso, há uma<br />

opção por orações com Processos Materiais. O possível consumidor<br />

(Destinatário) é representado no papel de Ator realizando ações<br />

que, por serem no mundo fictício, só seriam tipicamente efetuadas<br />

pelo super-herói. As orações no quadro 1 expõem a ocorrência desse<br />

“padrão de transitividade” (THOMPSON, no prelo), de modo que o<br />

consumidor aparece combatendo o crime e aplicando poderes.<br />

[you] battle Doc Ock<br />

[você] lute contra Doc Ock<br />

[you] bust street crimes<br />

[você] arrebente crimes urbanos<br />

[you] clash with classic villains<br />

[você] enfrente vilões clássicos<br />

[you] Do anything Spider-Man<br />

can<br />

with breathtaking new moves<br />

and amazing combos<br />

[você]<br />

Faça<br />

qualquer coisa que o<br />

Homem-Aranha faz<br />

com novos movimentos de tirar o<br />

fôlego e combinações surpreendentes<br />

[you] go anywhere<br />

[você] vá para qualquer lugar<br />

[you] interact with anything<br />

[você] interaja com qualquer coisa<br />

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Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

[you] Pick your own path<br />

[você] Escolha seu próprio caminho<br />

[you] Swing through a living, highly detailed<br />

Manhattan<br />

[você]<br />

Mova-se<br />

por uma Manhattan viva e cheia<br />

de detalhes<br />

[you] Web swing for the first time from street to<br />

rooftop across the entire city<br />

[você]<br />

Mova-se<br />

pela primeira vez das ruas aos<br />

telhados por toda a cidade<br />

[you] Take New York for a spin<br />

[você] Pegue Nova York para uma volta<br />

Ator Pr:Material Meta Circunstância<br />

Nowhere you can’t go<br />

Nenhum lugar<br />

onde<br />

você<br />

não possa ir<br />

Nothing you can’t do<br />

Nada que você não possa fazer<br />

Circunstância Meta Ator Pr:Material<br />

Quadro 1: Orações Materiais<br />

Das 14 orações presentes no anúncio, 12 seguem essa escolha<br />

semântica. Nas outras duas o anunciante escolhe as seguintes opções:<br />

desejo de poder por meio de posição real própria focada no consumidor<br />

(representação:simples + participante:destinatário + posição:própria<br />

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Sinta e<br />

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+ ambiente:real), com o destinatário representado como Comportante<br />

e o produto como Fenômeno em oração Comportamental (quadro 2);<br />

e Apresentação do Produto/Serviço por meio de descrição, realizada<br />

por oração Relacional Atributiva (quadro 3).<br />

[you] Preview the game<br />

trailer<br />

on Spider-Man Deluxe Edition<br />

DVD<br />

[você]<br />

Assista (em pré-estréia)<br />

o trailer do<br />

jogo<br />

na Edição de Luxo do DVD do<br />

Homem-Aranha<br />

Comportante Pr: Comportamental Fenômeno Circunstância<br />

Quadro 2: Oração Comportamental<br />

[it] [is] Available Now<br />

[ele] [está] Disponível Agora<br />

Portador Pr:Relacional Atributo Circunstância<br />

Quadro 3: Oração Relacional Atributiva<br />

Assim, o anunciante, na escolha das estratégias publicitárias,<br />

tem uma preferência por orações e estruturas visuais que realizam<br />

opções do sistema Desejo de Poder. De modo mais específico, o desejo<br />

de poder é explorado por meio de duas estratégias: posição fictícia<br />

própria focada no herói e posição fictícia invertida focada no consumidor.<br />

Mas um fato a notar é que essas opções são realizadas em modos<br />

semióticos diferentes: enquanto o super-herói é disposto visualmente,<br />

projetando desejos do destinatário, o destinatário é representado<br />

verbalmente, de tal forma que, em posição invertida, combina-se com<br />

o que é idealizado nas imagens.<br />

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A SOCIOSSEMÂNTICA DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS COM SUPER-HERÓIS<br />

Jordão Joanes Dantas da SILVA (UFPB/CNPq)<br />

Com isso, pode-se afirmar que o leitor do anúncio do jogo<br />

Spider-Man 2 é levado a se projetar diante do mundo da superaventura.<br />

Talvez o anunciante queria que o destinatário se veja<br />

como consumidor, mas, ao mesmo tempo, alimente seus sonhos. Isso<br />

corrobora o excerto de Randazzo (1996, p. 20): “[o]s publicitários<br />

aprenderam que podem tornar as suas mensagens de venda mais<br />

eficazes vestindo os seus produtos com nossos sonhos e fantasias”. O<br />

mito dos super-heróis, então, é a matéria dos sonhos utilizada para que<br />

o produto ofertado seja visto de maneira positiva. Destarte, o produto<br />

ofertado passa a ser a “ponte” entre o mundo real e o mundo fictício,<br />

evidenciando que a sociedade de consumo, com toda sua ideologia 19 ,<br />

é ainda mais fortalecida por meio da mitologia dos super-heróis 20 .<br />

Considerações finais<br />

O artigo demonstrou o potencial de significados disponível na<br />

publicidade que constrói anúncios com base em super-heróis de HQs<br />

norte-americanas. Esse potencial foi sistematizado por meio de uma<br />

rede sociossemântica que expõe as opções de significado disponíveis<br />

para o anunciante.<br />

Na última seção do artigo, foi demonstrado como a rede<br />

sociossemântica pode ser utilizada na análise dos tipos de anúncios<br />

em questão. A seção demonstrou que, de posse dessa rede, é possível<br />

(i) ter uma visão da maior parte de significados do anúncio e (ii) fazer<br />

uma análise crítica ao considerar o anúncio em sua prática social.<br />

19. O termo ideologia é aqui considerado em sua concepção latente: “ideologia é um sistema de representações<br />

que servem para sustentar relações existentes de dominação de classes através da orientação das pessoas para<br />

o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem as relações de classe e desviam da<br />

busca coletiva de mudança social” (THOMPSON, 2007, p. 58).<br />

20. Sobre os super-heróis como mitologia moderna, ver Reynolds (1992).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 207


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Acredita-se que essa rede de sistema pode ser usada, talvez com<br />

algumas adaptações, na análise de textos publicitários pertencentes a<br />

outras situações, principalmente quando se tem o uso de personagens<br />

ou indivíduos famosos que costumam ser tratados como heróis ou<br />

modelos de comportamento.<br />

Referências<br />

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and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. 2. ed. Oxford: Oxford<br />

University Press, 1989.<br />

208 l Anais Eletrônicos - 2011


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Rocco, 1996.<br />

REYNOLDS, R. Super Heroes: a modern mythology. Jackson: University Press of Mississippi,<br />

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SILVA, J. J. D. da. “Want to be a real hero?”: uma análise sistêmico-funcional de anúncios<br />

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– Programa de Pós-Graduação em Linguística (PROLING), Universidade Federal da Paraíba,<br />

João Pessoa, 2011.<br />

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meaning: from language to multimodality. Equinox, no prelo.<br />

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Santos. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

VIANA, N. Heróis e super-heróis no mundo dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 2005.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 209


Resumo<br />

O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise sistêmico-funcional<br />

de um texto opinativo, a saber: o editorial. Para tanto, tomamos como<br />

princípio teórico os postulados da Linguística Sistêmico-Funcional – LSF,<br />

especificamente acerca da metafunção interpessoal da linguagem. Essa<br />

teoria tem em Halliday (1985; 2004) o seu maior expoente, com a obra An<br />

Introduction to Functional Grammar. A partir dos pressupostos teóricos<br />

e da análise empreendida no editorial Quem mesmo vai pagar a conta?,<br />

publicado em 3 de abril de 2009 pela revista Época, comprovamos que os<br />

recursos lexicogramaticais de interpessoalidade atuam no gênero editorial<br />

como possibilitadores de trocas de informação e estabelecem diálogos<br />

entre os participantes dessa ação social em seu espaço de circulação.<br />

Palavras-chave: Linguística Sistêmico-Funcional; metafunções da<br />

linguagem; metafunção interpessoal; gênero editorial.<br />

Abstract<br />

The objective of this paper is to present a systemic functional analysis of<br />

an opinionated text, called ‘editorial’. To this end, we take as the theoretical<br />

principle, tenets from Systemic Functional Linguistics - SFL, specifically<br />

about the interpersonal metafunction of the language. This theory has in<br />

Halliday (1985, 2004) its greatest exponent, with the work An Introduction<br />

to Functional Grammar. From the theoretical assumptions of the analysis<br />

and the editorial Quem vai pagar a conta?, published on November<br />

6th, 2009, by Época magazine, we proved that the lexical-grammatical<br />

resources of interpersonal editorial work in the genre as enablers of<br />

information exchange and establish dialogues between participants of<br />

social action in their area of ​circulation.<br />

Keywords: Systemic Functional Linguistics; language metafunction,<br />

interpersonal metafunction, editorial genre.


Considerações iniciais<br />

A interpessoalidade no<br />

gênero editorial: um estudo<br />

sistêmico-funcional<br />

Lucélio Dantas de AQUINO<br />

(UFRN/PPGEL)<br />

O presente artigo se constitui de um recorte de nossa dissertação<br />

de mestrado que versou sobre dois campos teóricos: a Linguística<br />

Sistêmico-Funcional e a Multimodalidade Discursiva. A referida<br />

dissertação teve como título Mecanismos de construção de sentidos no<br />

gênero editorial: aspectos verbais e visuais (AQUINO, 2010).<br />

Para esse momento, o excerto apresentado diz respeito ao<br />

estudo sistêmico-funcional empreendido com editoriais. Desse modo,<br />

nossa análise será efetivada em apenas um editorial, com vistas a uma<br />

exploração do fenômeno da interpessoalidade e, para tanto, faremos,<br />

após estas breves considerações, uma incursão teórica pela Linguística<br />

Sistêmico-Funcional e nos deteremos na metafunção interpessoal da<br />

linguagem e nos mecanismos de manifestação desta metafunção no<br />

editorial Quem vai pagar a conta?, publicado pela revista Época no dia<br />

6 de novembro de 2009.<br />

Linguística sistêmico-funcional<br />

A Linguística Sistêmico-Funcional – LSF – é uma corrente<br />

teórica de base funcionalista que tem em M. A. K. Halliday o seu<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 211


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

maior expoente. Para este estudioso, o texto e o contexto devem ser<br />

levados em consideração em uma abordagem semântico-funcional<br />

da linguagem. Sobre isso, Eggins (2004, p. 20-21) afirma que a LSF<br />

pode ser descrita como uma aproximação semântico-funcional<br />

da linguagem que explora como as pessoas usam a linguagem em<br />

diferentes contextos, e como a linguagem é estruturada para uso como<br />

sistema semiótico. Desse modo, falar em texto é falar da linguagem em<br />

uso, em interação, em escolhas que fazemos diante de um repertório<br />

de possibilidades que a língua oferece.<br />

Por isso, Halliday (2004) assume a corrente sistêmico-funcional<br />

como uma teoria que observa a língua enquanto escolha, ou seja,<br />

sempre que se usa determinada construção linguística estamos<br />

empregando, nessa construção, escolhas que constroem a significação<br />

do discurso na interação entre os usuários.<br />

Sob esta ótica, devemos encarar a LSF não como um conjunto<br />

de regras, mas, sim, como um aparato teórico-metodológico de<br />

descrição, interpretação e análise de textos, sendo, portanto, o texto<br />

o objeto de estudo dessa corrente teórica. Por este viés, não podemos<br />

esquecer de mencionar que parte fundamental na construção social<br />

de textos está no contexto.<br />

Butt et al. (2001) nos afirmam a existência de dois contextos<br />

no âmbito da LSF que são complementares: o contexto de cultura<br />

e o contexto de situação. Dessa maneira, um texto para existir<br />

tem que fazer parte de uma cultura e realizar funções específicas.<br />

Pensando assim, citamos Butt et al. (2001, p. 3) quando afirmam<br />

que “a combinação do contexto de cultura e contexto de situação<br />

resulta em diferenças e semelhanças entre uma parte de linguagem e<br />

outra” 1 , ou seja, dependendo do contexto de cultura e do contexto<br />

1. Original: “The combination of context of culture and context of situation results in the differences and similari-<br />

212 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

de situação nos quais usuários da linguagem se comunicam por meio<br />

de textos, diversas formas textuais se fazem disponíveis na cultura<br />

e, para isto, escolhas entre essas formas devem ser feitas para que a<br />

linguagem cumpra seu propósito comunicativo.<br />

As escolhas textuais nesta cultura, de acordo com a situação<br />

de interação, podem ser iguais ou diferentes, isto é, podemos escrever<br />

um bilhete para informar aos nossos pais que fomos ao mercado, bem<br />

como podemos receber um bilhete de nosso chefe dizendo que temos<br />

uma reunião às dezessete horas da quinta-feira. Podemos também<br />

receber um ofício circular ou um e-mail informando sobre a referida<br />

reunião. Como vemos, os gêneros estão disponíveis para as escolhas<br />

dos interactantes da linguagem que farão uso em contextos de situação<br />

específicos. Sendo assim, relacionados ao contexto de cultura e ao<br />

contexto de situação estão o gênero e o registro, respectivamente.<br />

Gênero é o produto de um contexto de cultura e o registro é o produto<br />

do contexto de situação.<br />

A esse pensamento, subjaz o conceito de função de linguagem<br />

que Halliday proporá tomando por base as relações entre os contextos<br />

e o produto da interação, do texto. Vejamos, assim, as metafunções<br />

da linguagem e suas implicaturas para a linguagem.<br />

Metafunções da linguagem<br />

Nas palavras de Halliday (2004), as funções básicas da<br />

linguagem são duas: uma que produz os sentidos da experiência<br />

humana, representando os processos juntamente com os participantes<br />

e circunstâncias e a outra sendo aquela que representa as relações<br />

sociais. Para ele, a primeira metafunção, aquela que constrói as<br />

ties between one piece of language and another.” (BUTT et al., 2001, p. 3).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 213


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

experiências humanas, é chamada de ideacional. Ela é responsável<br />

por nomear coisas, interpretando-as em categoriais; por conseguinte,<br />

essas categoriais são, mais adiante, interpretadas em taxonomias.<br />

Nesse sentido, a linguagem provê uma teoria da experiência humana<br />

e certos recursos da lexicogramática são dedicados a esta função.<br />

A segunda metafunção a que se refere o autor é a interpessoal.<br />

Segundo ele, esta função desempenha as variadas relações<br />

pessoais e sociais com as pessoas que nos rodeiam. A oração, nessa<br />

metafunção, é vista além da representação de algum processo com<br />

seus participantes e circunstâncias, é vista como proposição ou<br />

proposta a partir das quais informamos, questionamos, damos ordens<br />

ou fazemos ofertas, além de expressarmos nossa avaliação e atitude<br />

em relação a quem estamos nos dirigindo ou sobre o qual estamos<br />

falando. Desse modo, Halliday (2004, p. 29-30) afirma que: “se a<br />

função ideacional da gramática é ‘linguagem como reflexão’ esta é<br />

‘linguagem como ação’” 2 .<br />

Como afirma o autor, essas são as duas funções básicas da<br />

linguagem e cada uma desempenha significados diferentes em uma<br />

oração, configurando duas redes de sistemas distintos. Nesse sentido,<br />

toda mensagem diz de um conteúdo endereçado a alguém. E, pela<br />

necessidade de organização dessas funções no texto, outra função<br />

é emanada da linguagem – a metafunção textual. O papel dessa<br />

metafunção na linguagem está em organizar o fluxo discursivo em<br />

seus movimentos sucessivos de interação e manter a coesão no texto<br />

(HALLIDAY, 2004).<br />

Nessa perspectiva, é na oração que se conjugam essas<br />

metafunções que se projetam verbalmente para produzir os sentidos<br />

2. Original: “the ideational function of the grammar is ‘language as reflection’, this is ‘language as action’”.<br />

(HALLIDAY, 2004, p. 29-30).<br />

214 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

desejados. Dessa forma, semântica e lexicogramática se organizam<br />

em conjunto para realizar as metafunções, fornecendo o repertório<br />

linguístico do qual o produtor de um texto escolherá o que é<br />

pertinente à sua produção. Apresentamos, a seguir, por uma questão<br />

de extensão deste artigo, apenas a metafunção interpessoal, haja<br />

vista termos enunciado anteriormente, de forma sintética, o papel<br />

das demais metafunções na e para a linguagem.<br />

Metafunção interpessoal<br />

Segundo Halliday & Mathiessen (1997, online)<br />

A metafunção interpessoal está preocupada com a interação<br />

entre falante e destinatário(s), os recursos gramaticais para<br />

desempenhar papéis sociais em geral, e papéis da fala em<br />

particular, em interações dialógicas; i.e. por estabelecer, trocar<br />

e manter relações interpessoais (grifos dos autores) 3 .<br />

Nesse sentido, além de graus de formalidade, esta metafunção<br />

realiza papéis sociais como estabelecer, trocar e manter relações<br />

entre os falantes de uma língua. Em uma interação os falantes/<br />

escritores realizam um papel em particular e atribuem a seus ouvintes/<br />

leitores um outro papel complementar que é desejado pelo autor,<br />

pois é característica dessa metafunção estabelecer trocas, havendo,<br />

portanto, uma alternância dos papéis de oferecer e pedir bens e<br />

serviços (propostas) ou informações (proposições).<br />

3. Original: “The interpersonal metafunction is concerned with the interaction between speaker and<br />

addressee(s) the grammatical resources for enacting social roles in general, and speech roles in particular, in<br />

dialogic interaction; i.e. for establishing, changing, and maintaining interpersonal relations.” (HALLIDAY & MA-<br />

THIESSEN, 1997, online, grifos dos autores)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 215


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Ao utilizar a linguagem como bens e serviços, o locutor visa a<br />

influenciar o comportamento de alguém ou a atingir um determinado<br />

objetivo por meio das escolhas que realiza. A este interesse do locutor<br />

pode ser conferido aceitação ou rejeição, obedecer ou desobedecer ao<br />

que lhe foi discursivamente apresentado. Por outro lado, quando o<br />

papel é de informação, o uso da linguagem é de responsabilidade dos<br />

dois agentes da situação. Desse modo, ao utilizar a linguagem como<br />

informação, o locutor dará e pedirá informação. Isso se dá através<br />

de afirmações e/ou interrogações, fornecendo a informação para que<br />

o outro envolvido na situação tome conhecimento, podendo esse<br />

outro optar por não responder ou contestar a informação. Assim, a<br />

interação fica marcada no discurso proferido por meio de elementos<br />

lexicogramaticais escolhidos em meio ao sistema de modo que a<br />

língua oferece aos seus falantes, isto é, a serem usados como troca de<br />

significados entre os interlocutores.<br />

Esses elementos lexicogramaticais são realizados na linguagem<br />

por meio de dois sistemas: o sistema de modo e o sistema de<br />

modalidade. Para Martin et al. (1997), o sistema de modo pertence<br />

à metafunção interpessoal da linguagem e é o recurso gramatical<br />

responsável para se perceber um movimento interativo no diálogo.<br />

Segundo esses autores, a distinção básica dentro do sistema gramatical<br />

de modo está entre os tipos de modo imperativo e indicativo. Com o tipo<br />

indicativo, tem-se uma distinção adicional entre os tipos declarativos<br />

e interrogativos. Sendo assim, esse conjunto compõe o que por eles é<br />

chamado de tipos básicos de modo.<br />

Ao falar em modalidade, Halliday (2004) afirma que este<br />

sistema atua como um avaliador em uma região de incerteza sobre o<br />

que está sendo expresso pelo orador, ou sobre o que é pedido para o<br />

ouvinte expressar; a modalidade realiza uma avaliação da validez do<br />

que é dito. A modalidade, quando empregada na linguagem, opera<br />

216 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

em graus intermediários, uma vez que representam/demonstram<br />

apreciação sobre o que se está dizendo. Diz-se, portanto, que são<br />

graus intermediários por estarem entre os polos do ‘sim’ e do ‘não’,<br />

revelando indeterminação como ‘às vezes’ ou ‘talvez’. Há dois tipos<br />

de modalidade: a modalização e a modulação. A modalização se realiza<br />

por meio da probabilidade e usualidade, e a modulação por meio da<br />

obrigação e disposição (inclinação e habilidade).<br />

Nesse ínterim, vejamos os mecanismos que manifestam os<br />

sistemas de modo e de modalidade na linguagem para, enfim,<br />

realizarmos a análise.<br />

Mecanismos verbais de interação<br />

Os sistemas de modo e de modalidade que materializam a<br />

metafunção interpessoal da linguagem são realizados por recursos<br />

específicos, tais como: sujeito, pronomes, advérbios, adjetivos,<br />

auxiliares modais, interrogações, entre outros. Aqui, daremos destaque<br />

a três desses elementos, a saber: os pronomes, especificamente os<br />

possessivos, os auxiliares modais e as interrogações. Vejamos de<br />

maneira conceitual alguns desses recursos.<br />

a) Pronomes possessivos e de tratamento<br />

Os pronomes possessivos, especificamente os de 1ª pessoa<br />

do plural (P1p), segundo Souza (2007), manifestam a autoria em<br />

um texto. Desse, modo, são responsáveis também por coadunar os<br />

participantes do discurso na cena enunciativa.<br />

Na gramática da língua portuguesa, os pronomes possessivos<br />

são aqueles que indicam posse, mas como esta não é a única função<br />

de um pronome possessivo e, como na LSF toda significação parte de<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 217


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

um contexto, entendemos que os pronomes possessivos são elementos<br />

interativos que unem os participantes em um texto, fazendo-os<br />

agir na mesma direção e, no caso do editorial, serve também como<br />

recurso de persuasão, já que aquilo que é informado no gênero pode<br />

ser colocado, pelo pronome possessivo, como sendo o pensamento<br />

de toda a sociedade.<br />

b) Auxiliares modais<br />

Os auxiliares modais também desempenham na Língua<br />

Portuguesa relações interpessoais com base no uso que deles são<br />

feitos. Esses elementos, segundo Ghio & Fernández (2008, p. 133),<br />

“sempre são verbos finitos e, portanto, sempre formam parte de um<br />

bloco modal (...)” 4 , ou seja, em uma construção linguística, os verbos<br />

principais podem vir acompanhados de um verbo modal, formando,<br />

assim, um bloco na unidade de análise da LSF: a oração.<br />

Como apontam Souza e Heberle (2008), em confirmação ao que<br />

já dissemos, os auxiliares modais são mais uma forma de a metafunção<br />

interpessoal se manifestar na linguagem com a função de modalizar<br />

a ação realizada pelo verbo principal em uma determinada oração.<br />

Na língua portuguesa, são exemplos de auxiliares modais,<br />

conforme Souza e Heberle (2008, p. 103), “parecer, querer, poder, ser,<br />

dever, ter que e outros”. Estes são recursos que, segundo as autoras,<br />

expressam a modalização e modulação que anteriormente foram<br />

apresentadas e que realizam relações interpessoais na linguagem.<br />

Cada um desses verbos modais pode expressar sentidos diversos<br />

de acordo com o contexto em que aparecem, podendo significar<br />

4. Original: “siempre son verbos finitos e por lo tanto siempre forman parte del bloque modal (...)” (GHIO & FER-<br />

NÁNDEZ, 2008, p. 133, grifos das autoras).<br />

218 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

necessidade, obrigação, dever (dever), possibilidade ou capacidade<br />

(poder), e aparência ou dúvida (parecer). Desse modo, como são<br />

recursos da modalidade, os auxiliares modais podem funcionar ora<br />

como modulação ora como modalização. Em um gênero como o<br />

editorial, conforme Souza (2007), eles podem revelar o ponto de<br />

vista do autor, enfatizando, em alguns momentos, este ponto de vista<br />

e em outros atenuando a opinião autoral. Desse modo, a utilização<br />

de auxiliares modais sempre corrobora a construção de sentidos<br />

interacionais de um texto.<br />

c) Interrogações<br />

Outro elemento capaz de expressar interação é a interrogação.<br />

Segundo Souza (2007, p. 1531, online):<br />

Dialogar com o leitor, estabelecendo uma parceria através de<br />

perguntas, consiste em uma expressiva manifestação da função<br />

interpessoal da linguagem porque, ao se fazer uma pergunta,<br />

se espera uma reação do interlocutor, ainda que o leitor não<br />

tenha condição de responder explícita e imediatamente.<br />

Com base nisso, percebemos a interrogação como meio de<br />

estabelecimento de diálogo entre os participantes de uma ação<br />

social. Por este motivo, quando utilizamos uma oração interrogativa,<br />

podemos destinar a ela duas funções discursivas: a primeira referese<br />

a um diálogo direto com o interlocutor (leitor, no caso de um<br />

texto escrito), exigindo, de alguma maneira, uma resposta por parte<br />

dele; e a segunda diz respeito a um diálogo que se trava entre autor<br />

e texto, ou seja, a interrogação é feita pelo autor sem vistas a uma<br />

resposta do público leitor, o que se pretende é contribuir com as ideias<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 219


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

anteriormente expressas no texto, ou instigar o leitor para o que será<br />

enunciado posteriormente.<br />

Além disso, vale salientar que, na gramática da língua<br />

portuguesa, as formas de reconhecimento de um discurso interrogado<br />

se dão pela presença inicial dos pronomes interrogativos (quem,<br />

quanto, qual e (o) que) e pela presença de pontuação específica, no<br />

caso, o ponto de interrogação. Todavia, se entendemos a linguagem<br />

como um ato funcional, temos que perceber as outras formas de<br />

materialização do elemento interrogação, isto porque, algumas vezes,<br />

as orações interrogativas podem aparecer com a ausência ou do<br />

pronome interrogativo, ou da pontuação.<br />

Nessa perspectiva, é com base na entonação (HALLIDAY,<br />

2004) que podemos detectar a forma interrogativa da oração e, a<br />

partir daí, depreender os sentidos interpessoais que ela comporta. Isto<br />

porque a prosódia distingue na língua os conteúdos frásicos, fazendo<br />

com que possamos compreender os sentidos de uma construção, se<br />

interrogativa ou se afirmativa, por exemplo.<br />

A análise de um editorial à luz da metafunção interpessoal da<br />

linguagem<br />

O editorial a seguir é da revista Época, de abril de 2009, e<br />

recebeu o seguinte título: Quem mesmo vai pagar a conta?. Nele,<br />

observaremos os seguintes recursos verbais: pronomes possessivos,<br />

auxiliares modais e interrogações, com o objetivo de compreendermos<br />

a interação verbal no gênero editorial.<br />

220 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

___________________________________________________________<br />

QUEM MESMO VAI PAGAR A CONTA?<br />

Nos desenhos animados, os super-heróis costumavam se reunir numa<br />

espécie de sala de guerra – ou era sala de justiça? – para discutir como<br />

combater os bandidos, erradicar o mal e salvar a humanidade da<br />

destruição. Foi mais ou menos o que aconteceu na semana passada em<br />

Londres. Desta vez, o comitê para salvar o mundo reuniu os 20 líderes mais<br />

importantes do planeta, um grupo conhecido como G20. E lá estavam<br />

eles: Barack Obama, Gordon Brown, Angela Merkel, Nicolas Sarkozy, Silvio<br />

Berlusconi, Wen Jiabao e, entre tantos outros, evidentemente nosso Luiz<br />

Inácio Lula da Silva. Todos sorrindo, trocando abraços, afagos e tapinhas<br />

nas costas, como velhos colegas de faculdade que se encontram anos<br />

depois da formatura. Do lado de fora, é claro, o inevitável quebra-quebra,<br />

os indefectíveis protestos “contra tudo isso que está aí” e também uma<br />

morte fatídica.<br />

Obama vira então para Lula e diz: “Esse é o cara (...). Amo este homem.<br />

É o político mais popular da Terra”. Lula quase enrubesce, orgulhoso do<br />

papel que o Brasil finalmente parece ocupar naquilo que os estudiosos<br />

convencionaram chamar de “concerto das nações” – e soam os violinos.<br />

Na foto, Lula sorri ao lado da rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Todos<br />

assinam um pedaço de papel onde está escrito um texto meio cifrado.<br />

Mas lá vêm os especialistas em economia, sempre solícitos, prontos para<br />

traduzir, explicar, justificar: o Fundo Monetário Internacional vai receber<br />

mais US$ 1,1 trilhão – mais 1 trilhão! –, parece que os paraísos fiscais serão<br />

extintos, o protecionismo será combatido, vai acabar a farra dos bancos<br />

com instrumentos financeiros exóticos e os governos vão finalmente<br />

investir pesado para enfrentar o desemprego. Sim, agora vai. Nossos<br />

super-heróis salvaram o mundo de novo – e as Bolsas sobem eufóricas.<br />

É a glória, a consagração, o nirvana.<br />

Pausa para reflexão.<br />

Está bem, minha gente. Pode até ser que tudo não tenha passado de<br />

um bacanal contábil promovido por “esses banqueiros brancos, de<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 221


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

olhos azuis”. Pode até ser que, agora, tudo esteja resolvido. É tão fácil,<br />

não? Pode até ser que esses caras tenham esses trilhões e trilhões – eles<br />

não são super-heróis, não são “os caras”? Mas vem cá... Quem é mesmo<br />

que tem conta nos paraísos fiscais? Quem foi mesmo que deixou de<br />

pagar Imposto de Renda? Quem, quem foi mesmo que alimentou a farra<br />

bancária, regada a juros irrisórios, com liberdade para enrolar, cheirar e<br />

injetar papéis tóxicos e derivativos sem camisinha na economia? Ah, sim,<br />

e quem mesmo vai pagar a conta?<br />

Fonte: Revista Época, abril de 2009.<br />

___________________________________________________________<br />

O editorial em evidência manifesta uma opinião bastante crítica<br />

com relação à reunião do comitê, para salvar o mundo, que reuniu<br />

os vinte líderes mais importantes do planeta. A crítica residiu na<br />

informação sobre o Fundo Monetário Internacional que iria receber<br />

mais um trilhão de dólares para combater a crise mundial e no fato<br />

de que isso não impediu que as Bolsas subissem euforicamente.<br />

Neste editorial, os recursos verbais são utilizados para promover<br />

interação entre os usuários da linguagem. Um dos recursos usados é<br />

o pronome possessivo que inclui o leitor na situação comunicativa.<br />

Vejamos:<br />

[01]<br />

Nos desenhos animados, os super-heróis costumavam se reunir numa espécie<br />

de sala de guerra – ou era sala de justiça? – para discutir como combater<br />

os bandidos, erradicar o mal e salvar a humanidade da destruição. [...] E lá<br />

estavam eles: Barack Obama, Gordon Brown, Angela Merkel, Nicolas Sarkozy,<br />

Silvio Berlusconi, Wen Jiabao e, entre tantos outros, evidentemente nosso Luiz<br />

Inácio Lula da Silva.<br />

222 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

[02]<br />

Mas lá vêm os especialistas em economia, sempre solícitos, prontos para<br />

traduzir, explicar, justificar: o Fundo Monetário Internacional vai receber<br />

mais US$ 1,1 trilhão – mais 1 trilhão! –, parece que os paraísos fiscais serão<br />

extintos, o protecionismo será combatido, vai acabar a farra dos bancos com<br />

instrumentos financeiros exóticos e os governos vão finalmente investir pesado<br />

para enfrentar o desemprego. Sim, agora vai. Nossos super-heróis salvaram<br />

o mundo de novo – e as Bolsas sobem eufóricas. É a glória, a consagração, o<br />

nirvana.<br />

Os dois pronomes em destaque nos exemplos [01] e [02]<br />

incluem o leitor na opinião emitida pelo editorialista, isto revela que a<br />

informação divulgada interessa ao leitor e que ele também compartilha<br />

do que é dito. Nesse sentido, ocorre uma aproximação entre os<br />

interlocutores da situação comunicativa. É visível nos dois casos o tom<br />

de ironia explicitado pelo uso dos pronomes. No caso [01], essa ironia<br />

se dá pela analogia tecida entre Lula e super-herói como salvadores<br />

da humanidade. No segundo caso, oração [02], também por meio<br />

dessa comparação entre os líderes do planeta terra e os super-heróis,<br />

notamos que o uso do pronome nossos transmite ironia, o que implica<br />

uma concepção geral, ou seja, todos os interlocutores compactuam<br />

com o ato de ironizar no texto sobre o salvamento mundial diante<br />

da crise vivenciada pelo fundo monetário internacional. Além disso,<br />

a construção seguinte dessa oração evidencia melhor a ironia a que<br />

nos referimos – “É a glória, a consagração, o nirvana”.<br />

O texto também apresenta o auxiliar modal parecer e o auxiliar<br />

modal poder, conforme podemos ver nos exemplos a seguir:<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 223


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

[03]<br />

Obama vira então para Lula e diz: “Esse é o cara (...). Amo este homem. É o<br />

político mais popular da Terra”. Lula quase enrubesce orgulhoso do papel que<br />

o Brasil finalmente parece ocupar naquilo que os estudiosos convencionaram<br />

chamar de “concerto das nações” – e soam os violinos. [...]<br />

[04]<br />

Está bem, minha gente. Pode até ser que tudo não tenha passado de um bacanal<br />

contábil promovido por “esses banqueiros brancos, de olhos azuis”. Pode até<br />

ser que, agora, tudo esteja resolvido. É tão fácil, não? Pode até ser que esses<br />

caras tenham esses trilhões e trilhões – eles não são super-heróis, não são “os<br />

caras”? Mas vem cá... Quem é mesmo que tem conta nos paraísos fiscais? [...]<br />

No exemplo [03], a opinião do autor acerca da situação de Lula<br />

após o comentário feito por Barack Obama, revela um efeito de dúvida<br />

pela utilização do auxiliar parecer. Conforme diz o texto, o Brasil está<br />

no grupo dos que buscam concertar as nações, entretanto, como o<br />

uso do parece persiste uma dúvida se ele continuará nessa posição.<br />

Com este emprego, o autor atenua o seu posicionamento no texto,<br />

marcando a autoria do que é dito.<br />

No recorte [04], temos a presença do processo poder em três<br />

momentos. Nos três casos, o auxiliar modal em destaque desvela<br />

a presença do autor que dialoga com as informações apresentadas<br />

sobre a economia, despertando incerteza na proposição. Esse modo<br />

de utilização, bem como do verbo modal parecer, são utilizados pelo<br />

autor para amenizar o compromisso e a responsabilidade dele com<br />

aquilo que é veiculado, apresentando graus diferentes de modalização.<br />

No primeiro caso em que o modal parecer ocorre, temos um grau<br />

baixo de modalização, uma vez que se gera uma dúvida por parte do<br />

224 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

autor acerca da informação transmitida. O segundo caso, no qual o<br />

processo poder é utilizado, temos um grau médio de modalização, haja<br />

vista refletir a incerteza do autor por meio de orações interrogativas.<br />

Até o momento, vemos que os pronomes possessivos e os<br />

auxiliares modais estão intercambiando informações entre os<br />

interlocutores no texto, porém, outro recurso pode ser percebido no<br />

editorial ora analisado: as interrogações. Mecanismo que observamos<br />

a seguir:<br />

[[05]<br />

QUEM MESMO VAI PAGAR A CONTA?<br />

[06]<br />

Nos desenhos animados, os super-heróis costumavam se reunir numa espécie<br />

de sala de guerra – ou era sala de justiça? – para discutir como combater os<br />

bandidos, erradicar o mal e salvar a humanidade da destruição. Foi mais ou<br />

menos o que aconteceu na semana passada em Londres.<br />

[07]<br />

Está bem, minha gente. Pode até ser que tudo não tenha passado de um<br />

bacanal contábil promovido por “esses banqueiros brancos, de olhos azuis”.<br />

Pode até ser que, agora, tudo esteja resolvido. É tão fácil, não? Pode até ser que<br />

esses caras tenham esses trilhões e trilhões – eles não são super-heróis, não são “os<br />

caras”? Mas vem cá... Quem é mesmo que tem conta nos paraísos fiscais? Quem<br />

foi mesmo que deixou de pagar Imposto de Renda? Quem, quem foi mesmo que<br />

alimentou a farra bancária, regada a juros irrisórios, com liberdade para enrolar,<br />

cheirar e injetar papéis tóxicos e derivativos sem camisinha na economia? Ah, sim,<br />

e quem mesmo vai pagar a conta?<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 225


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Sabemos que a interrogação realiza interação entre autor e<br />

texto e, também, entre autor, texto e leitor. A primeira pergunta que<br />

temos neste editorial, exemplo [05], encontra-se no título e ela tem<br />

por função introduzir a temática do texto e inquietar o leitor para o<br />

que será dito no texto. Desse modo, ela articula os três elementos<br />

que compõem o discurso: autor, texto e leitor.<br />

No exemplo [06], a pergunta é totalmente direcionada ao<br />

leitor, uma vez que visa a ativar a memória deste sobre informações<br />

que são de conhecimento geral, pois, subentende-se que todos saibam<br />

que a sala em que os super-heróis se reúnem para traçar estratégias<br />

de combate ao mal é a sala de justiça, porém, o propósito do autor<br />

não era falar de desenho animado, mas do grupo que se reuniu em<br />

Londres para discutir a crise econômica e utilizou-se da pergunta<br />

para introduzir o leitor no assunto e estabelecer um paralelo entre<br />

as duas situações: super-heróis que salvam o mundo do mal e superheróis<br />

que salvam o mundo da crise econômica. Além disso, a forma<br />

irônica como é feita a pergunta remete a um tom menos formal da<br />

situação e, consequentemente, o leitor se aproxima da informação<br />

veiculada no texto, respondendo-a.<br />

Ao fim do editorial, um arsenal de perguntas são elaboradas<br />

com base no que vem sendo informado no texto, ou seja, sobre a<br />

reunião e os benefícios que foram adquiridos com o G20. Então,<br />

as interrogações no exemplo [07] são direcionadas ao leitor como<br />

forma de este leitor avaliar se as decisões sobre a economia foram<br />

para beneficiá-lo, ou se elas beneficiam mais aqueles que estão no<br />

poder. Assim, as perguntas têm o papel de inquietar o leitor e o<br />

fazer participar da discussão sobre economia que é de interesse não<br />

somente dos líderes nacionais que participaram do G20, mas de todo<br />

o planeta.<br />

226 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

A linguagem verbal, como vimos nos exemplos retirados do<br />

editorial Quem mesmo vai pagar a conta?, é constantemente usada para<br />

manter relações entre o autor, o texto e o leitor em um movimento<br />

circundante. Tal envolvimento revela a informalidade, pessoalidade<br />

e obstrução da ideia de neutralidade e impessoalidade características<br />

do gênero editorial, revelando a dinamicidade inerente à linguagem<br />

verbal.<br />

Considerações finais<br />

Com base na metafunção interpessoal, percebemos que, no<br />

gênero editorial, os recursos linguísticos são usados para diminuir<br />

o grau de formalidade na linguagem, atenuando a distância social e<br />

estabelecendo contato entre os participantes da interação. Assim,<br />

a pessoa do discurso é marcada no texto, compartilhando<br />

informações ou discutindo-as, tornando o editorial um espaço da<br />

interpessoalidade. Isto comprova os postulados de Halliday (2004) e<br />

seus seguidores, que afirmam que a interpessoalidade se dá pela troca<br />

de papéis sociais desempenhados pelos falantes de uma língua, trocando<br />

(informações e bens e serviços) e mantendo relações entre eles.<br />

A expressão da opinião marcada na voz do autor e as escolhas<br />

que ele usa do seu repertório lexicogramatical para construir a opinião<br />

revelam a pessoalidade e diminuem o caráter neutro e impessoal que<br />

são marcas registradas desse gênero.<br />

Em síntese, é através do uso de recursos como os que analisamos<br />

no editorial Quem mesmo vai pagar a conta? que estabelecemos as<br />

escolhas adequadas a cada situação e fazemos os textos realizar<br />

sentidos, trocando informações e estabelecendo diálogos entre os<br />

participantes dessa ação social, que é o editorial, em seu espaço de<br />

circulação.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 227


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Referências<br />

AQUINO, L. D. de. Mecanismos de construção de sentidos no gênero editorial: aspectos<br />

verbais e visuais. Pau dos Ferros: UERN, 2010. (Dissertação de Mestrado), inédita.<br />

BUTT, D. et. al. Using Functional Grammar: An Explore’s Guide. Second Edition. Sydney:<br />

Macquarie University, 2001.<br />

EGGINS, S. An Introduction to Systemic Functional Linguistics. London: British Library, 2004.<br />

GHIO, E.; FERNÁNDEZ, M. D. Linguística sistêmico funcional: aplicaciones a la lengua<br />

española. Santa Fe: Universidade Nacional Del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />

HALLIDAY, M.A.K. An Introduction to Functional Grammar. First edition. Londres: Edward<br />

Arnold, 1985 [1994].<br />

______. An Introduction to Functional Grammar. 3 edition. Rev. por MATHIESSEN, M.I.M.<br />

London: Arnold, 2004.<br />

______. & MATTHIESSEN, C. M. I. M. Systemic Functional Grammar: a first step into the<br />

theory. 1997. Disponível em: . Acesso em:<br />

13 de jun. de 2005.<br />

MARTIN, J. R. et al. Working With Functional Grammar. London: Arnold, 1997.<br />

SOUZA, M. M. de. A autoria em editoriais jornalísticos: uma abordagem sistêmico-funcional.<br />

2007, online. Disponível em: . Acesso em: 9 de agosto de 2008.<br />

______. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Recife: <strong>UFPE</strong>, 2006.<br />

(Tese de doutoramento), inédita.<br />

______; HEBERLE, V. M. Parece, deve, pode ser: investigando os auxiliares modais no<br />

editorial. In: FREITAS, A. C. de; RODRIGUES, L. de O.; SAMPAIO, M. L. P. Linguagem, discurso<br />

e cultura: múltiplos objetos e abordagens. Pau dos Ferros: Queima Bucha, 2008, p. 99-111.<br />

228 l Anais Eletrônicos - 2011


A INTERPESSOALIDADE NO GÊNERO EDITORIAL: UM ESTUDO SISTÊMICO-FUNCIONAL<br />

Lucélio Dantas de AQUINO (UFRN/PPGEL)<br />

Referência do editorial utilizado para análise<br />

Quem mesmo vai pagar a conta?<br />

Época. São Paulo: Editora Globo, n. 568, 3 de abril de 2009.<br />

Disponível em: <br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 229


Resumo<br />

Este estudo objetiva (i) investigar o funcionamento da transitividade verbal,<br />

pelos processos materiais e mentais e seus participantes, na construção<br />

de sentido em textos opinativos produzidos por alunos do Ensino<br />

Fundamental (EF) de uma escola pública e (ii) propor abordagens de ensino<br />

dessa categoria léxico-gramatical. As análises assentam-se teoricamente na<br />

Gramática Sistêmico-Funcional, especialmente nos estudos do sistema de<br />

transitividade, e são feitas a partir das orações selecionadas das produções<br />

textuais que continham os processos do fazer (material) e os processos<br />

do sentir (mental). A discussão dos dados demonstra a existência da<br />

padronização semântico-gramatical na apresentação da opinião nos<br />

textos, o que serviu de base para a apresentação das sugestões de ensino<br />

da transitividade no contexto escolar.<br />

Palavras-chave: Gramática Sistêmico-Funcional, transitividade, ensino.<br />

Abstract<br />

This study aims to (i) investigate the functioning of the verbal transitivity,<br />

the material and mental processes and their participants in the construction<br />

of meaning in opinion texts produced by Middle School students in public<br />

schools and (ii) propose teaching approaches to that lexical grammatical<br />

category. The analysis is theoretically based on Systemic Functional<br />

Grammar, especially in studies of transitivity system, and are made from<br />

sentences selected from the productions containing processes of making<br />

(material) and the processes of feeling (mental). The discussion of the data<br />

demonstrates the existence of semantic-grammatical standardization in<br />

the presentation of opinion in the texts, which composed the basis for<br />

presentation of suggestions for the teaching of transitivity in schools.<br />

Keywords: Systemic Functional Grammar, transitivity, teaching.


O estudo de processos materiais<br />

e mentais em textos opinativos:<br />

análise e ensino<br />

Introdução<br />

Magna Simone A. de LIMA<br />

(UFCG)<br />

Este artigo expõe um estudo analítico do fenômeno linguístico<br />

da transitividade pelo viés teórico da Gramática Sistêmico-Funcional<br />

(GSF). Ainda propõe-se a sugerir abordagens de tratamento dessa<br />

categoria léxico-gramatical no contexto escolar.<br />

Os dados de análise 1 do presente estudo foram retirados<br />

de produções textuais escritas por alunos do 8º ano de Ensino<br />

Fundamental (EF) de uma escola pública de Campina Grande-PB<br />

no ano de 2009 e são aqui manipulados a partir de dois objetivos:<br />

(i) analisar a forma como os alunos utilizaram a transitividade, em<br />

especial os processos materiais e mentais, para construir significados<br />

nos textos opinativos e (ii) apresentar propostas de ensino dessa<br />

categoria linguística no EF, por uma perspectiva funcionalista.<br />

Neste estudo, a primeira seção delineia o lugar da transitividade<br />

no contexto de ensino. A segunda detém-se à apresentação da base<br />

teórica que fundamenta as análises, abordando os conceitos de<br />

1. Este trabalho é parte de minha dissertação de mestrado intitulada Transitividade em texto opinativo: descrição<br />

de seu uso e implicações do estudo dessa categoria no Ensino Fundamental, defendida em 2010 pelo Programa de<br />

Pós-Graduação da Universidade Federal de Campina Grande.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 231


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

processos, especialmente os materiais e os mentais, e de participantes<br />

segundo a GSF. Na terceira seção, são feitas a análise do uso dos<br />

processos e participantes na construção de sentido dos textos e as<br />

sugestões de estudo desse recurso no contexto de ensino.<br />

Transitividade e ensino<br />

Considerando que o ensino de gramática nas escolas parece<br />

pautar-se nas normas prescritivas da língua, a prática pedagógica<br />

baseia-se ainda no estudo tradicional dos fenômenos linguísticos,<br />

afastando-se de orientações funcionais da língua e de um ensino mais<br />

produtivo de língua portuguesa.<br />

Nessa perspectiva, o ensino de língua portuguesa tem abordado<br />

“[...] as questões gramaticais de modo artificial, distanciando-se das<br />

situações de uso” (FURTADO DA CUNHA & TAVARES 2007, p.<br />

14-15). Como consequência dessa postura pedagógica tradicional, o<br />

ensino de língua materna passa a ser isolado, por enfatizar o estudo<br />

das estruturas linguísticas desconectadas do suporte contextual a<br />

partir do qual funcionam os seus elementos. Nesse sentido, pode-se<br />

dizer que rebater, no contexto de ensino, a gramática tradicional<br />

significa adotar uma concepção diferente de língua, como sendo uma<br />

rede de sistemas funcionando para construir significados de acordo<br />

com a interação comunicativa, e partir para um estudo dos aspectos<br />

gramaticais por um viés funcional.<br />

Essa formulação fortalece o posicionamento de que ao ensinar<br />

gramática, o foco deve estar no estudo dos fatos linguísticos a partir<br />

do uso efetivo da língua, propiciando ao aluno a oportunidade de<br />

refletir a respeito das regularidades dos padrões léxico-gramaticais<br />

encontradas no próprio funcionamento da linguagem.<br />

232 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

O estudo da transitividade verbal em sala de aula está permeado<br />

de problemas não solucionados, ou parcialmente resolvidos, o<br />

que influencia para tornar o ensino de gramática um desafio para<br />

professores de língua materna.<br />

A gramática tradicional, utilizada como manual para o ensino<br />

de português nas escolas, apresenta as noções de necessidade e de<br />

completude para explicar essa categoria gramatical. Assim, o verbo,<br />

para ter um sentido completo, necessita de um complemento ou o<br />

recusa de toda forma. Os conceitos de verbos transitivos e intransitivos<br />

preveem que qualquer verbo funciona pelo mecanismo de exigência<br />

e de recusa de complementos. Os itens lexicais que opcionalmente<br />

exijam ou recusem um complemento são ignorados pelo modelo<br />

tradicional de gramática, porque esse fato da língua precisaria ser<br />

explicado a partir da idéia de que um verbo de significação incompleta<br />

possa aparecer sem complemento a depender de seu funcionamento<br />

nas situações comunicativas. Para tal esclarecimento, os gramáticos<br />

deveriam recorrer aos aspectos semântico-pragmáticos do uso dos<br />

verbos. Essa parece não ser a postura adotada nesses casos.<br />

A noção de necessidade ou não de um complemento para<br />

sustentar a significação de um verbo ressalta o predomínio da ideia de<br />

que a incompletude é da órbita do sentido/significação do verbo, sendo<br />

então, uma propriedade intrínseca do verbo e não da oração. Nesse<br />

sentido, Cunha & Cintra (1985) afirmam que os verbos transitivos são<br />

aqueles que denotam uma ação que se transmite a outros elementos,<br />

completando-lhes o sentido. Já os verbos intransitivos remetem a uma<br />

ação que não ultrapassa o verbo.<br />

Desse modo, a classificação de um verbo em transitivo ou<br />

intransitivo apoia-se na presença ou ausência de um sintagma nominal,<br />

cuja função é completar o sentido do verbo, sendo a transitividade<br />

uma propriedade inerente do verbo. São as noções de completude<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 233


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

e de necessidade que se destacam nos conceitos tradicionais de<br />

transitividade verbal.<br />

O sistema de transitividade: processos materiais e mentais<br />

A GSF aborda a noção de transitividade não como<br />

uma propriedade categórica e inerente do verbo, mas como<br />

uma propriedade da oração como um todo. É na oração que a<br />

transitividade se manifesta e que se podem estudar as relações entre<br />

os seus elementos (processo, participantes e circunstâncias), sendo<br />

uma categoria sintático-semântica que reflete a gramática da oração<br />

e a sua observação/análise deve ser feita a partir do contexto de uso<br />

da oração.<br />

Sendo assim, a articulação entre os três aspectos da<br />

transitividade (processo, participante e circunstância) deixa<br />

transparecer as experiências, os conteúdos expressos no texto, que<br />

vão construindo o seu sentido global. Dessa forma, a análise da<br />

transitividade permite verificar como os sentidos foram construídos<br />

através da descrição e da observação do que está sendo enunciado e<br />

significado no texto, tomando por base as escolhas entre os diferentes<br />

tipos de processos e sua associação com os participantes e com as<br />

possíveis circunstâncias.<br />

Na GSF, há o processo que representa o que ocorre no mundo<br />

ao nosso redor, experiência exterior e o processo que codifica o nosso<br />

estado de consciência e de imaginação. Nesse trabalho, focamos dois<br />

tipos de processos: o material e o mental.<br />

Cada um desses dois processos expressa uma fatia da realidade,<br />

estrutura um quadro experiencial particular. Os processos materiais<br />

são representados pelos processos do fazer, do agir, do acontecer.<br />

Esse tipo de processo “[...] expressa a noção de que uma entidade<br />

234 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

faz algo, o que pode também afetar outra entidade” (HALLIDAY<br />

1994, p.110). Em “...os estudos contribuem para um cidadão de<br />

futuro” (PT6) 2 , o processo contribuir significa a ação efetuada pelo<br />

participante os estudos, que juntos indicam uma função para o ensino<br />

criar um cidadão de futuro.<br />

A realização de uma ação pressupõe sempre a existência de<br />

alguém ou algo que a execute, denominado de Ator. O participante<br />

Ator é aquele que realiza um fazer, um agir. No exemplo acima, os<br />

estudos representa o participante Ator, aquele que desempenha<br />

a função de agir. Outro tipo de participante é a Meta. É para o<br />

participante Meta que a ação é dirigida. No exemplo, “Porque estão<br />

colocando professores capais, de compri com seu papel...” (PT20), a<br />

ação realizada pelo processo colocar se estende até o participante<br />

Meta, professores capais, afetando-o de alguma forma.<br />

As orações intransitivas apresentam sempre um único<br />

participante, o Ator, e indicam um evento. Em “...para ver ele crescer”<br />

(PT4), a ação passa do Ator ele exclusivamente para o processo<br />

crescer. Nas orações transitivas, a ação pode se estender também a<br />

outro participante, a Meta, representando um fazer, como no exemplo<br />

com o processo colocar, acima descrito.<br />

Os processos materiais têm o Ator e a Meta como seus<br />

participantes principais. Há ainda o participante Extensão, aquele<br />

que define o escopo do processo, como em para um cidadão de futuro,<br />

elemento esse que sinaliza para o significado do próprio processo<br />

contribuir, do primeiro exemplo aqui ilustrado. O outro chamase<br />

Beneficiário, é aquele para quem alguma coisa é feita, como o<br />

2. Os exemplos utilizados neste artigo foram retirados de nossos dados de análise, corresponden-<br />

. Os exemplos utilizados neste artigo foram retirados de nossos dados de análise, correspondentes<br />

às produções textuais (PT) escritas pelos alunos durante a realização de nossa pesquisa de<br />

mestrado.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 235


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

aluno em “...a Escola deve ajuda o aluno a ser cidadão...” (PT11),<br />

participante que se beneficia da ação realizada pelo participante Ator<br />

a Escola.<br />

Outro tipo de processo, os mentais, é aquele que tem a função<br />

de expressar o sentimento, delineando a esfera da consciência do<br />

que é representado. Apresentam-se em três categorias: (1) percepção<br />

(ver, ouvir); (2) afeição (gostar, amar) e (3) cognição (pensar, saber,<br />

entender). No exemplo, “Gostei do artigo de betty Milan” (PT1), o<br />

participante implícito representado pela desinência verbal de primeira<br />

pessoa (eu) ilustra seu posicionamento através do processo mental<br />

Gostar, apresentando sua experiência positiva diante de um objeto,<br />

artigo de betty Milan.<br />

As orações com processos mentais apresentam dois participantes:<br />

“[...] um deles refere-se ao participante dotado de consciência,<br />

chamado de Experienciador. O outro, o Fenômeno, é a entidade<br />

criada pela consciência, representa aquilo que é sentido, pensado<br />

ou percebido” (GHIO & FERNÁNDEZ, 2008, p. 104). Em “...eu<br />

achei muito bom” (PT15), eu, o Experienciador, é o ser consciente<br />

que expressa, pelo Fenômeno muito bom, aquilo que é positivamente<br />

entendido com relação ao artigo lido.<br />

Todavia, há casos em que o participante Fenômeno representa<br />

um conteúdo do sentir. Isso ocorre quando a oração mental projeta<br />

uma segunda oração, com qualquer tipo de processo. Esse tipo de<br />

construção é visto como “[...] um aspecto geral desses tipos de<br />

orações: elas são capazes de construir outra oração ou reunir orações<br />

configurando o conteúdo do sentir – como as ideias criadas pelos<br />

verbos cognitivos” (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 199).<br />

No exemplo, “Eu acho que a cartar dela estar mais ou menos” (PT23),<br />

a oração mental Eu acho projeta outra oração, cuja função é apresentar<br />

o conteúdo que é entendido a cartar dela estar mais ou menos.<br />

236 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

Com essa exposição teórica, partimos para a análise das orações<br />

materiais e mentais encontradas nos textos opinativos e para as<br />

sugestões de tratamento da transitividade no contexto de ensino.<br />

Transitividade: análise e ensino<br />

Nas produções textuais analisadas, os processos materiais<br />

são utilizados para expressar ações e acontecimentos realizados por<br />

participantes envolvidos com a educação como professores, escola,<br />

governo, pais, conforme será visto adiante. Já os processos mentais<br />

espelham a expressão do sentimento do aluno diante do artigo de<br />

opinião lido em sala de aula e que serviu de base para a produção<br />

textual escrita em sala de aula. Selecionamos 15 orações para<br />

configurarem como objeto de análise no presente estudo. Iniciamos<br />

com as orações materiais, representadas pelos processos fazer, cumprir<br />

e ajudar e, em seguida, analisamos as orações mentais com os processos<br />

gostar e pensar.<br />

(I) FAZER<br />

(1) ...porque o professor, é pra ensinar e não pra fazer milagre. (PT9)<br />

(2) ...a escola tem que combater os vandalismos dos alunos para que nas ruas<br />

eles não faça o mesmo...(PT21)<br />

(3) ...mas sempre temos que fazer a nossa parte... (PT16)<br />

(4) ...e todos nos devemos farze nocú papel devemos fazer a nossa<br />

parte... (PT20)<br />

(4) ...os professores também tem que fazer sua parte de ensinar... (PT18)<br />

No exemplo (1), a oração cujo núcleo é o processo fazer indica<br />

uma ação (não fazer milagre) que não é realizada pelo participante Ator<br />

implícito professor e que se contrapõe à função identificada, na oração<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 237


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

anterior, como aquela que deve ser desempenhada pelo professor<br />

(ensinar). A atitude do autor tem um teor restritivo com relação ao<br />

papel do professor. A ideia do não-fazer acoplada ao participante Meta<br />

milagre restringe a atividade que deve ser feita pelo professor em sala<br />

de aula e compõe o plano argumentativo de defesa do professor como<br />

sendo o profissional que não tem o papel social maior de educar o<br />

aluno, função esta atribuída à escola, mas de ensinar, exclusivamente.<br />

Já no exemplo (2), a oração com o verbo fazer aponta também<br />

para a noção do não-fazer, agora atribuída a um participante Ator<br />

específico eles, recuperado anaforicamente por alunos. A ausência de<br />

ação (não fazer o mesmo) parece ser o resultado de um dever imposto<br />

à escola, revelado na oração anterior. O participante Meta o mesmo<br />

é o que não será efetivamente feito, se a escola cumprir seu papel de<br />

combater os vandalismos dos alunos.<br />

A teia argumentativa dos exemplos apresentados baseia-se em<br />

uma negativa de ação, representada pelo não-fazer, que constrói o<br />

quadro discursivo dos textos, através do qual o autor embasa a sua<br />

opinião em relação ao papel do professor (não fazer milagre, mas<br />

ensinar), em (1); e, em relação à consequência do cumprimento da<br />

função da escola (não fazer vandalismo), em (2).<br />

De (3) a (5), o processo fazer aparece ao lado de um ter que e de<br />

um dever. Nessa construção, o fazer ilustra uma obrigação imposta aos<br />

participantes de cada oração. Embora a ação imperativa seja dirigida<br />

sempre a um participante Meta nas orações em destaque, a nossa parte,<br />

em (3) e (4); noçú papel, em (4) e sua parte, em (5); há uma diferença<br />

em relação ao participante a quem é atribuída a obrigação do agir.<br />

Em (3) e (4), o participante Ator é o próprio autor do texto, marcado<br />

linguisticamente pelo emprego da primeira pessoa do plural, o que<br />

mostra o envolvimento do autor com o que afirma ser a obrigação<br />

dos alunos com vistas a melhorar a qualidade de ensino no Brasil.<br />

238 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

Já em (5), a obrigação do agir é imposta ao participante Ator os<br />

professores, que representam uma categoria profissional que, ao lado<br />

da escola, também deve ser responsável pela qualidade do ensino. A<br />

configuração oracional tem que/dever + fazer responde a tentativa do<br />

autor de organizar discursivamente sua opinião, no sentido de mostrar<br />

as responsabilidades atribuídas aos próprios alunos em (3) e (4) e aos<br />

professores em (5) que possam modificar a situação de ensino no país.<br />

(II) CUMPRIR<br />

(6) ...eu acho que a escola deve ajudar o aluno a ser cidadão e educar transmitindo<br />

valores. Por que, o papel do professor é esse com o aluno. Mas eu acho que o<br />

aluno também, tem que cumprir com o seu papel... (PT9)<br />

(7) ...Eu acho que a Escola deve ajuda o aluno a ser cidadão e educar transmitindo<br />

valores para ele a cumprir seu papel que e ter interesse... (PT11)<br />

Em (6), o material cumprir usado juntamente com um ter que,<br />

enfatiza que ação a ser efetivada pelo participante Ator o aluno carrega<br />

um tom imperativo, ou seja, o cumprir parece ser um dever imposto<br />

ao aluno. Podemos observar que a circunstância também insere à<br />

oração uma possível conjugação de obrigações que foram atribuídas a<br />

participantes diferentes (escola e aluno) em orações também diversas.<br />

A força argumentativa decorre exatamente da apresentação de duas<br />

ações ditas obrigatórias (a escola deve ajudar e o aluno também, tem que<br />

cumprir), atribuídas igualmente aos participantes o aluno e a escola,<br />

que, em conjunto, permitem a melhoria do ensino no Brasil, fato esse<br />

que sustenta a opinião do aluno.<br />

No caso de (7), percebemos que a ação de cumprir aliada ao<br />

Meta seu papel é entendida como uma possibilidade de agir decorrente<br />

de outra ação (a escola deve ajuda) desencadeada pelo participante a<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 239


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

escola. Daí depreendermos que as duas ações (a escola deve ajudar o<br />

aluno e o aluno cumpre seu papel) estão interligadas por uma relação<br />

de dependência, através da qual o agir representado pelo cumprir<br />

seu papel vincula-se ao dever de ajudar o aluno a ser cidadão posto à<br />

escola. Por essas análises, fica fácil perceber que a transitividade não<br />

se refere exclusivamente aos verbos, mas a sua significação depende<br />

da relação entre participantes-processos-circunstâncias estabelecida<br />

na unidade oracional, podendo estender-se também a outras orações,<br />

que juntas contribuem para a construção do sentido do texto ancorado<br />

contextualmente em uma situação comunicativa.<br />

(III) EDUCAR<br />

(8) ...a Escola deve ajudar o aluno a ser cidadão E Educar cumprir o seu<br />

papel de ter interesse. (PT2)<br />

(9) ...A escola precisa educar e transmitir valores. (PT19)<br />

Na ocorrências do educar, o infinitivo foi usado ao lado de um<br />

modal, ainda que implícito como em (8), o que permite a acumulação<br />

dos significados agir e dever. Ao participante Ator a escola é posta<br />

uma obrigação de agir, contemplada pela própria função social dessa<br />

instituição (a escola tem o papel de educar).<br />

Em (9), há o reconhecimento da necessidade do agir (precisa<br />

educar) imposta ao participante Ator. Nesses exemplos, o conteúdo<br />

proposto pelo processo, realizado intransitivamente, enfoca a<br />

obrigação orientada para a ação a ser desempenhada pelo Ator (o<br />

dever de agir da escola é para educar), modelando a opinião do aluno<br />

com relação ao papel da escola na qualidade de ensino brasileiro.<br />

Considerando o ambiente de sala de aula, o professor pode levar<br />

o aluno a refletir sobre o uso de elementos que agregados aos verbos,<br />

como é o caso dos processos materiais analisados acima, imprimem a<br />

240 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

noção de obrigatoriedade ou de probabilidade, os chamados modais.<br />

É oportuno destacar que os fatos linguísticos, como os ilustrados nos<br />

exemplos (3), (4), (5), (6) e (9), que apresentam um modal na unidade<br />

oracional exercem o papel de marcar o posicionamento do sujeito<br />

diante daquilo que enuncia e serve para organizar discursivamente<br />

os argumentos apresentados nos textos.<br />

É possível, ainda, estabelecer um comparativo entre orações<br />

com os mesmos processos, mas que contam com a presença de um<br />

modal (tem que), como em (3) e outro exemplo que não contém<br />

o modal, o caso do (2). Nesse sentido, o aluno é levado a perceber<br />

as diferenças entre um significado ideacional construído a partir da<br />

imposição de obrigações aos participantes, reconhecendo, assim, o<br />

propósito comunicativo do uso ou não da modalidade deôntica para<br />

fundamentar a opinião apresentada.<br />

Embora o recurso da modulação pertença à metafunção<br />

interpessoal concretizada na língua pelo sistema de modo e modalidade,<br />

combinar o estudo das metafunções ideacional e interpessoal permite<br />

que aspectos da língua sejam abordados em termos multifuncionais,<br />

uma vez que a unidade oracional é vista como representação da<br />

experiência, quando se trata do sistema de transitividade, e como<br />

interação, ao referir-se à modalidade e à modulação.<br />

(IV) GOSTAR<br />

(10) Gostei muito do artigo (Veja)... (PT4)<br />

(11) Gostei da opinião da autora Betty Milan... (PT19)<br />

(12) Eu gostei porque a educação no Brasil como diz a altora da Revista Veja<br />

em malgumas causas que o ensino nas escolas vão bem... (PT3)<br />

Tratando agora das orações mentais, a primeira observação que<br />

pode ser apontada é com relação ao participante Experienciador<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 241


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

que, nesses dados, manifesta-se também de forma não-marcada, isto<br />

é, o Experienciador é somente recuperado pela desinência verbal<br />

de primeira pessoa do processo mental gostar. A ausência regular<br />

do pronome pessoal eu fornece uma indicação de que o processo<br />

mental gostar, por ser da esfera dos sentimentos, processo da afeição,<br />

parece não exigir a marcação linguística do Experienciador, uma<br />

vez que a experiência sentida (gostar) pelo sujeito parece ser algo<br />

interno, subjetivo. Então, por tratar-se de exposição de sentimento,<br />

o processo mental gostar é suficiente para expressar tanto a afeição<br />

do Experienciador diante do texto lido como a sua individualidade<br />

através da desinência verbal de primeira pessoa do singular.<br />

Em termos funcionais, o uso do mental gostar mostra-se como<br />

uma forma indicadora do posicionamento do participante frente ao<br />

texto abordado em sala (ele gostou ou não do texto) e serve também<br />

para preparar o ambiente textual para a apresentação mais apurada<br />

da opinião.<br />

Em (10) e (11), o processo mental presta-se a duas funções: uma<br />

que indica a presença do sujeito, por meio da desinência de primeira<br />

pessoa do processo mental gostei e a outra que mostra o sentimento do<br />

autor do texto com relação ao artigo de opinião estudado, através da<br />

escolha do processo em questão, que pertence à classe da afeição. O<br />

Experienciador, como visto, não se encontra marcado linguisticamente<br />

pelas razões já expostas e o Fenômeno, outro participante, designa o<br />

que é sentido (muito do artigo (Veja) e da opinião).<br />

De modo diferente, em (12), há explicitamente a presença<br />

linguística do Experienciador pelo pronome pessoal eu, contribuindo<br />

para promover o efeito de envolvimento direto do sujeito com o<br />

que enuncia, no sentido de marcar uma apropriação individual da<br />

experiência. Buscando agora o Fenômeno desta oração, percebe-se que<br />

existe uma lacuna na oração em análise. O sujeito utiliza o processo<br />

242 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

mental eu gostei e, logo em seguida, lança outra oração composta pelos<br />

argumentos que justificam o seu posicionamento diante do artigo de<br />

opinião da revista (porque a educação no Brasil como diz a altora da<br />

Revista Veja em algumas causas que o ensino nas escolas vão bem...). Em<br />

um primeiro momento, essa lacuna poderia prejudicar a construção<br />

de sentido do texto do aluno, o leitor poderia indagar: o sujeito gostou<br />

de quê? E a resposta não está explícita no texto.<br />

Contudo, considerando o contexto precedente de produção<br />

que solicitava a apresentação da opinião do aluno em relação ao<br />

artigo de opinião, pode-se resgatar essa resposta, entendendo que o<br />

sujeito preferiu não fazer referência ao artigo lido, uma vez que já se<br />

encontra exposto no enunciado da questão. A lacuna poderia ser,<br />

então, preenchida dessa forma: Eu gostei do tema do artigo em destaque<br />

porque... . Por essa razão, pode-se dizer que o Fenômeno da oração está<br />

implícito, podendo ser recuperado pelo enunciado da atividade de<br />

produção textual, além disso, a ausência desse participante na oração<br />

abre espaço para entender a possível estratégia linguística escolhida<br />

pelo aluno em apresentar de imediato a sua opinião, atendendo ao<br />

que fora solicitado pela atividade escolar.<br />

(V) PENSAR<br />

(13) ...meu nome e Rafael tenho 15 anos e penso assim. (PT1)<br />

(14) ...Betty Milan falou que “melhores alunos brasileiros ficam nas ultimas<br />

colocações internacional”, eu concordo com Betty Milan e assim que eu penso.<br />

(PT12)<br />

(15) ...os responsaveis dos alunos pensam que a educação estar ótima. (PT17)<br />

Nas orações (13) e (14), o processo mental pensar assume<br />

a posição de processo que encerra o evento comunicativo de<br />

apresentação da opinião do sujeito. A construção da significação<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 243


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

do texto é elaborada a partir de um entendimento sobre o ensino<br />

no Brasil, codificado pelo processo da esfera de cognição e resumido<br />

pelo fenômeno assim.<br />

Com relação ao Experienciador, em (13) percebemos que este<br />

participante não se materializa na oração de ocorrência do verbo. A<br />

escolha pela não-marcação do participante envolvido pelo processo de<br />

cognição pode ser entendida como uma estratégia usada pelo autor do<br />

texto que se auto-identifica nas orações anteriores meu nome e Rafael<br />

tenho 15 anos. Essa identificação anterior parece anular a necessidade<br />

da presença do participante na oração em que ocorre o processo<br />

mental, o que, do contrário, imprimiria uma ideia de repetição do<br />

sujeito envolvido, sendo meu nome e Rafael e tenho 13 e eu penso.<br />

Nas duas outras ocorrências do processo pensar em (14) e<br />

(15), seguimos com manifestações diferenciadas do sentir. Em (14),<br />

temos um caso de ausência do participante Fenômeno, recuperado<br />

anaforicamente pelo advérbio assim, que sumariza a ideia defendida<br />

no texto através, inclusive, das próprias palavras da autora do artigo.<br />

E em (15), há mais um exemplo de projeção em que o conteúdo do<br />

sentir é representado oracionalmente (que a educação estar ótima),<br />

funcionando como dependente da oração núcleo (os responsaveis dos<br />

alunos pensam) composta pelo processo mental.<br />

Em sala de aula, o aluno pode ser instruído a observar a<br />

ocorrência comum de certos processos como o pensar e gostar que<br />

servem tanto para configurar o sentimento positivo do sujeito em<br />

relação ao texto lido (gostar) como para retratar o seu entendimento<br />

(pensar) sobre ao assunto em discussão. Com isso, o professor<br />

pode sublinhar a especificidade semântica de cada um dos verbos<br />

(processos de cognição e processos de afeição) para atender a uma<br />

função comunicativa delimitada consistente na apresentação da<br />

experiência de mundo interior daquele que escreve.<br />

244 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

Outra possibilidade de abordagem dos processos do sentir é<br />

em relação à noção de projeção apresentada por Halliday (1994).<br />

Tratando desse aspecto, o professor pode constatar as duas<br />

formas de organização das orações. No exemplo (10), aquele que<br />

experiencia a realidade (Eu) expressa o conteúdo do entendimento<br />

em oração única; já em (15), esse conteúdo é transportado para um<br />

compartimento oracional que carrega outro significado ideacional e<br />

representa o conteúdo do sentir da oração anterior.<br />

Pelo viés tradicional, estaríamos diante de período simples e<br />

composto por subordinação, respectivamente. Contudo, selecionar o<br />

verbo e quantificá-lo, classificando em período simples ou composto<br />

e rotular as orações como subordinadas não são suficientes para fazer<br />

com que os alunos entendam as escolhas feitas por uma ou outra<br />

forma. É momento oportuno para ressaltar que as duas formas de<br />

organização do conteúdo cognitivo da experiência retratada podem<br />

ser apresentadas como no exemplo (10) que mostra de forma direta<br />

o conteúdo do entendimento do sujeito e por meio de uma oração<br />

que representa linguisticamente, de maneira mais complexa, o seu<br />

entendimento como em (12).<br />

Vale levar os alunos a refletirem sobre a possibilidade de uso<br />

da projeção em textos escritos como sendo um nexo entre orações<br />

que manifestam um conjunto de significados ideacionais como<br />

em (6) nos quais o conteúdo do entender lançado pelo processo<br />

achar codifica outro elemento ideacional indicando uma obrigação<br />

imposta (tem que cumprir) ao participante da oração material (aluno).<br />

Por essa reflexão, é possível fazer com que os alunos entendam a<br />

existência de combinação de orações, como mentais e materiais, que<br />

expressa a experiência do sentir do sujeito em relação ao texto lido,<br />

não sendo essa combinação apenas uma questão de subordinação<br />

oracional e de completude de sentido entre orações dependentes,<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 245


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

mas de representação de conteúdos ideacionais que codificam uma<br />

realidade de mundo.<br />

Ainda com relação aos processos mentais em destaque, o<br />

professor pode comentar a respeito da supressão do participante<br />

Fenômeno em (12), discutindo primeiro sobre a estratégia do<br />

sujeito em omitir esse elemento oracional e apresentar diretamente<br />

os argumentos que justificam a sua tomada de posição e, segundo,<br />

sobre a necessidade de recorrer ao contexto precedente de produção<br />

para resgatar o participante desse plano oracional.<br />

Da mesma forma, os casos ilustrados em (13) e (14) reforçam<br />

a exigência da identificação do contexto situacional para recuperar<br />

o que foi resumidamente dito pelo componente circunstancial<br />

assim, que, por sua vez, em associação direta com o processo pensar,<br />

marca o modo cognitivo de percepção da realidade retratada. Essa<br />

discussão leva o aluno a perceber que os verbos não significam por<br />

si só, de forma isolada, mas dependem dos elementos que, juntos a<br />

eles, constroem a unidade oracional composta pelos componentes<br />

da transitividade (participantes-processos-circunstâncias).<br />

Alguns apontamentos<br />

A proposta maior de nosso estudo, do qual este artigo é parte,<br />

é oferecer aos professores de língua materna um caminho diferente<br />

de ensino da gramática, com o foco na transitividade verbal.<br />

Esse caminho, delineado a partir da análise dos textos opinativos<br />

de alunos, confronta os moldes prescritivos de ensino dos recursos<br />

linguísticos que de longe são capazes de desenvolver a capacidade<br />

comunicativa dos usuários da língua e oferece uma proposta de ensino<br />

reflexivo dos fatos linguísticos, no intento de aprimorar o estudo de<br />

gramática e contribuir para um melhor ensino de língua materna.<br />

246 l Anais Eletrônicos - 2011


O ESTUDO DE PROCESSOS MATERIAIS E MENTAIS EM TEXTOS OPINATIVOS:<br />

ANÁLISE E ENSINO / Magna Simone A. de LIMA (UFCG)<br />

Referências<br />

CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1985.<br />

FURTADO DA CUNHA, A ; TAVARES, M. A. Funcionalismo e ensino de gramática. Natal:<br />

Editora da UFRN, 2007.<br />

GHIO, E.; FERNÁNDEZ, M. D. Lingüística Sistêmico Funcional. Aplicaciones a la lengua<br />

españ ola. Santa Fé: Universidad Nacional del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />

HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold,<br />

second edition, 1994.<br />

______. An Introducion to Functional Grammar. Revised by Christian M.I.M MATTHIESSEN.<br />

London: Arnold, third edition, 2004.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 247


Resumo<br />

O presente trabalho objetiva discutir, tanto sob a perspectiva do<br />

funcionalismo norte americano, sobretudo da teoria de Hopper e<br />

Thompson, quanto sob o ponto de vista da gramática tradicional, as<br />

possíveis divergências de transitividade em orações de mesmo sentido em<br />

línguas distintas - no caso, em inglês e português -, a partir de exemplos<br />

de tradução e versão.<br />

Palavras-chave: Funcionalismo norte americano; gramática tradicional;<br />

transitividade; traduções e versões.<br />

Abstract<br />

This paper aims to discuss, from the perspective of North American<br />

Funcionalism, (particularly from Hopper and Thompson’s theory) and from<br />

the Traditional Grammar point, the possible differences of transitivity in<br />

sentences of different languages​, but which have same meaning - in this<br />

case English and Portuguese - from examples of translations.<br />

Keywords: North American Functionalism, Traditional Grammar,<br />

Transitivity; Translations.


Introdução<br />

Divergências de transitividade<br />

em traduções e versões:<br />

elas realmente existem?<br />

Marília Gomes TEIXEIRA<br />

(<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

O século XX foi de grande relevância para os estudos dos<br />

fenômenos linguísticos, uma vez que novas tendências a respeito<br />

da análise das línguas surgiram e passaram a questionar antigos<br />

paradigmas. Foi a partir de então que linguistas pós-saussureanos<br />

propuseram analisar a língua considerando o seu uso pelos falantes,<br />

outrora ignorado pelo estruturalismo de Saussure. Assim, a ênfase<br />

é dada à função, isto é, passa-se a valorizar o uso da língua quando<br />

voltado para uma finalidade.<br />

Estabelecida a noção funcionalista da linguagem, o<br />

questionamento voltou-se para os princípios estruturalistas. O<br />

funcionalismo tem por base o princípio de que as funções externas à<br />

linguagem influenciam a estrutura gramatical das línguas. Sob esse<br />

ponto de vista, critica modelos formalistas, entre os quais o modelo<br />

de transitividade da gramática tradicional, sistema de classificação<br />

verbal utilizado há um longo período.<br />

Tendo em vista a insuficiência da gramática tradicional em<br />

seus conceitos e classificações, e a orientação funcionalista de que<br />

se observe a transitividade por outro ângulo, nossa proposta, neste<br />

trabalho, é de comparar as possíveis divergências de transitividade<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 249


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

em línguas distintas – no caso, em inglês e português - a partir de<br />

exemplos de tradução e versão – sob a perspectiva do funcionalismo<br />

norte-americano, sobretudo da teoria de Hopper e Thompson, e sob<br />

o ponto de vista da Gramática Tradicional.<br />

Assim sendo, iremos apresentar a transitividade tanto na<br />

abordagem da gramática tradicional como na abordagem funcionalista<br />

norte-americana, fazendo o contraponto entre suas concepções.<br />

A seguir, serão feitas análises de frases em português e em inglês<br />

(traduzidas ou vertidas) sob ambas as óticas, sendo que para a<br />

abordagem funcional utilizaremos a tabela dos dez parâmetros criada<br />

por Hopper e Thompson como critério de análise, enquanto a avaliação<br />

pautada na gramática tradicional se baseará na regência verbal de cada<br />

idioma. Ambos os métodos serão aplicados às orações no intuito de<br />

analisar suas possíveis diferenças em termos de transitividade.<br />

A transitividade sob as perspectivas tradicional e funcionalista<br />

Desde a época dos alexandrinos que se estuda a transitividade<br />

dos verbos, pois foi a partir de suas pesquisas que se deu início aos<br />

estudos gramaticais no Ocidente. Os primeiros estudos do grego<br />

surgiram no intuito de evitar que as línguas bárbaras influenciassem<br />

diretamente a língua grega clássica. Foi a partir de então que surgiu a<br />

chamada Gramática Tradicional.<br />

Os gregos já percebiam que alguns verbos requeriam<br />

complementos e que estes se relacionavam diretamente com a ação<br />

expressa pelo verbo. O interesse pelos estudos sintáticos, porém,<br />

segundo Neves (2000, p. 50), partiu de Apolônio Díscolo, no século II<br />

d.C, que procurou entender como as palavras estabeleciam uma relação<br />

entre si. É ele, pois, quem inaugura a noção de transitividade verbal<br />

no Ocidente, a qual pode ser encontrada em muitas gramáticas atuais.<br />

250 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

Este modelo de gramática, que surgiu num momento específico<br />

da antiguidade, perdura até hoje e não apresentou grandes mudanças<br />

no que tange aos seus conceitos. A permanência e imobilidade da<br />

Gramática Tradicional levou – e ainda tem levado – muitos linguistas a<br />

questionar tais abordagens. Em que pese ser considerada ultrapassada,<br />

esse tipo de gramática ao menos contribui para que entendamos a<br />

maneira pela qual a língua tem sido abordada desde a antiguidade até<br />

então e, sobretudo, como tem sido ensinada.<br />

Devido a tais fatos, o conceito de transitividade sob a perspectiva<br />

da gramática tradicional, há muito vem sendo posto em questão, tendo<br />

em vista sua abordagem prescritiva da língua. Pode-se constatar que a<br />

concepção de transitividade verbal nas gramáticas tradicionais leva em<br />

conta critérios semânticos e formais. Celso Luft (2002, p. 87) afirma<br />

que um verbo transitivo é aquele que “necessita de um objeto que<br />

lhe complemente o sentido” (p. 59) e o verbo intransitivo seria o que<br />

possui uma predicação completa, não necessitando de complemento.<br />

O fato de classificar os verbos em transitivos e intransitivos diz respeito<br />

à completude dos mesmos, seguindo, pois, um fator semântico. E<br />

defini-los em transitivos direito e indireto revela um caráter formal,<br />

pois concerne à presença ou não de uma preposição.<br />

Trask, em seu Dicionário de Linguística e Linguagem, conceitua<br />

o termo como “a maneira pela qual o verbo se relaciona com os<br />

sintagmas nominais numa mesma oração” (p. 299). Entretanto, o autor<br />

chega a assinalar, ainda que brevemente, a noção de transitividade<br />

funcionalista, afirmando que o termo é entendido como denotando o<br />

tipo de atividade ou processo expresso por uma sentença, o número<br />

de participantes envolvidos e a maneira como estão envolvidos.<br />

Em relação aos verbos, existem algumas divergências. Cunha e<br />

Cintra (2001, p. 94) dividem os verbos em transitivo direto, indireto<br />

e direto e indireto, enquanto Ali (1964, p. 62) sugere que não há os<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 251


Sinta e<br />

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f<br />

transitivos indiretos, apenas diretos e intransitivos. Rocha Lima (2002,<br />

p. 55), por sua vez, subdivide os complementos em direto, indireto,<br />

relativo e circunstancial de maneira bastante semelhante a Evanildo<br />

Bechara (2004).<br />

Enfim, se pesquisarmos acerca da transitividade nas diferentes<br />

gramáticas tradicionais disponíveis, podemos perceber que, apesar de<br />

alguns aspectos divergirem, todas elas tomam o verbo como centro<br />

da transitividade. Segundo a concepção de Chafe (1979), citado por<br />

Furtado da Cunha e Souza (2007), “o universo conceptual humano<br />

está dividido em duas grandes áreas: a do verbo e a do nome”, sendo<br />

que o verbo é o centro da oração. A partir desta percepção, podemos<br />

perceber o porquê de a Gramática Tradicional ter seu foco apenas<br />

no verbo.<br />

Numa crítica a este modelo estruturalista e formal, muitos<br />

linguistas passaram a questionar a gramática tradicional e suas<br />

definições de transitividade. A partir de então, o estudo desse<br />

fenômeno linguístico tomou um caráter empírico. Perini (2001, p. 122)<br />

contesta esse tratamento tradicional e entende que os verbos exigem,<br />

aceitam ou recusam os complementos. De acordo com este autor, os<br />

complementos que definem a transitividade são o objeto direto, o<br />

complemento do predicado, o predicativo e o adjunto circunstancial.<br />

Por estes quatro complementos, Perini (2001) apresenta onze matrizes<br />

verbais que representam a transitividade dos verbos, que passam,<br />

então, a ser classificados em mais transitivos ou menos transitivos, e<br />

não mais em transitivos e intransitivos.<br />

Tendo em vista os diversos questionamentos e estudos<br />

relacionados à transitividade, variadas soluções e novas perspectivas,<br />

ainda que incipientes, são apresentadas no intuito de mostrar a<br />

insatisfação com a abordagem tradicional. Conforme Martellota<br />

(2009), “a gramática tradicional [...], por apresentar uma visão<br />

252 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

preconceituosa da linguagem [...], não fornece ao estudo da linguagem<br />

uma teoria adequada para descrever o funcionamento gramatical das<br />

línguas” (p.45).<br />

Assim, propondo-se a repensar estas teorias, o funcionalismo<br />

constituiu-se como um modo de pensamento e uma outra maneira<br />

de analisar a linguagem. Inicialmente, postulou que a língua era um<br />

sistema orientado para fins comunicativos, isto é, a língua tem uma<br />

função. Assim, o funcionalismo representou um grande avanço para<br />

os estudos linguísticos na medida em que foi incorporando aspectos<br />

extralinguísticos em sua análise.<br />

O termo “linguística funcional”, de uma maneira generalizada,<br />

abrange variadas teorias sobre o fato de conceber a língua como meio<br />

de comunicação e que deve ser analisada a partir de seus contextos<br />

de uso. As duas vertentes funcionalistas são a linguística sistêmicofuncional,<br />

que tem como principal teórico M. Halliday; e o modelo<br />

norte americano, cujos teóricos incluem T. Givón, P. Hopper, S.<br />

Thompson e W. Chafe. A primeira defende a teoria da língua como<br />

escolha, do ponto de vista de seu uso pelos falantes; a segunda parte<br />

de uma investigação sob a perspectiva do contexto linguístico e da<br />

situação extralinguística. Ademais, esta última considera que a língua<br />

é utilizada para satisfazer as necessidades de comunicação.<br />

Assim, a linguística funcional norte-americana postula que<br />

a língua é uma estrutura maleável, que se submete ao uso de seus<br />

falantes e que varia continuamente para atender às necessidades de<br />

seus usuários. Conforme Furtado da Cunha e Souza (2007), trata-se<br />

de um modelo que propõe explicar a forma da língua por meio das<br />

funções que desempenha no processo comunicativo. Tal perspectiva<br />

enxerga a transitividade não como uma propriedade intrínseca ao<br />

verbo, mas como um complexo de dez parâmetros que envolvem<br />

sintática e semanticamente os itens lexicais que compõem a oração.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 253


Sinta e<br />

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f<br />

Ainda sob a concepção funcionalista, a transitividade diz respeito à<br />

efetividade com que se dá a ação; isto é, quanto mais efetiva a oração,<br />

maior será sua transitividade. Assim, as propriedades que definem a<br />

transitividade são determinadas pelo discurso e esta relação (discurso -<br />

transitividade) mostra-se crucial na língua. Os componentes utilizados<br />

por Hopper e Thompson (1980, p.133) para a análise da transitividade<br />

das orações são apresentados na tabela abaixo.<br />

Componentes Transitividade alta (A) Transitividade baixa (B)<br />

1. Participantes Dois ou mais Um<br />

2. Cinese Ação Não-ação<br />

3. Aspecto do verbo Perfectivo Não-perfectivo<br />

4. Pontualidade do verbo Pontual Não-pontual<br />

5. Intencionalidade<br />

do sujeito<br />

Intencional<br />

Não-intencional<br />

6. Polaridade da oração Afirmativa Negativa<br />

7. Modalidade da oração Realis Irrealis<br />

8. Agentividade do sujeito Agentivo Não-agentivo<br />

9. Afetamento do objeto Afetado Não-afetado<br />

10. Individuação do objeto Individuado Não-individuado<br />

Quadro 1. Componentes considerados em relação à transitividade.<br />

254 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

Cada um dos componentes citados diz respeito à efetividade<br />

com que a ação é transferida de uma elemento para outro. Assim,<br />

para os autores, só pode haver transferência de uma ação se houver<br />

pelo menos dois participantes. Em relação à cinese, as ações podem<br />

ser transferidas de um participante para outro, sendo estados ou não.<br />

Quanto ao aspecto do verbo, uma ação é vista como mais transitiva se<br />

estiver completa, do que se estiver em progresso. A pontualidade diz<br />

respeito às ações que estão em fase de transição ou não: as ações que<br />

não denotam transição mostram-se mais efetivas do que aquelas que<br />

denotam. No tocante à intencionalidade, a ação se mostra mais efetiva<br />

quando parte do agente com o propósito de realizá-la do que quando<br />

a intenção não é definida. A polaridade concerne ao fato de a oração<br />

ser afirmativa ou negativa. As ações que aconteceram (afirmativas)<br />

podem ser transferidas, ao contrário das que não aconteceram<br />

(negativas). A modalidade refere-se às ações que aconteceram, ou<br />

não. As que não ocorreram ou que podem ocorrer são menos efetivas<br />

do que as que já ocorreram ou que são eventos reais. Quanto à<br />

agentividade, um participante ativo pode transferir a ação para outro<br />

participante do que um que não seja ativo (ou não tão ativo). Em<br />

relação ao afetamento do objeto, uma ação é transferida em maior<br />

grau se o objeto for afetado completamente do que parcialmente. Por<br />

fim, quanto à individuação, Hopper e Thompson consideram ainda<br />

outras propriedades, as quais não serão abordadas nesse trabalho<br />

devido a sua especificidade – o que foge a nossa proposta.<br />

Assim, podemos perceber quão divergentes são as abordagens<br />

da gramática tradicional e a teoria funcionalista norte-americana.<br />

Aquela associa a transitividade aos verbos, enquanto esta leva em<br />

consideração os argumentos da oração; ou seja, a transitividade diz<br />

respeito a todos os elementos que a compõem, não centrando-se<br />

apenas no verbo.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 255


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Análise da transitividade das orações: semelhanças e diferenças<br />

O estudo da transitividade em línguas distintas revela-se um<br />

tema pouco explorado, não apenas pela combinação dos idiomas<br />

envolvidos (no nosso caso português e inglês, cujas origens linguísticas<br />

diferem consideravelmente), mas sobretudo pela especificidade<br />

do fenômeno. Em que pese a grande contribuição das teorias<br />

funcionalistas para o estudo da transitividade, vale ressaltar que o<br />

ensino e a abordagem deste tema ainda são relegados, em ambos os<br />

idiomas, ao modelo tradicional.<br />

A comparação entre os estudos de transitividade submetidos<br />

às duas abordagens citadas parece-nos uma alternativa interessante,<br />

tanto no que tange à avaliação de fenômenos linguísticos específicos<br />

(a transitividade em línguas distintas, por exemplo), como também<br />

por apresentar uma nova plataforma sob a qual o debate gramática<br />

tradicional X funcionalismo deve ocorrer.<br />

Deste modo, em nossa proposta, pela análise tradicional, os<br />

verbos serão classificados em transitivos diretos, indiretos, bitransitivos<br />

ou intransitivos. Com base no funcionalismo, por sua vez, teremos<br />

uma avaliação envolvendo toda a oração, que definirá seu grau de<br />

transitividade. Desta maneira, embora estejamos lidando com línguas<br />

distintas, as teorias de transitividade da Gramática Tradicional e<br />

funcionalista são igualmente aplicadas aos idiomas em questão.<br />

Contudo, o resultado das análises das orações sob óticas diferentes<br />

podem coincidir ou divergir como veremos a seguir.<br />

No intuito de verificar este fenômeno, analisaremos orações de<br />

maneira semelhante ao modelo de T. Givón (1980), isto é, os exemplos<br />

aqui utilizados foram criados apenas para fins de comprovação da nossa<br />

proposta. Contudo, não nos ativemos a classificações nem a tipos<br />

específicos de verbos, uma vez que nossa intenção é mostrar as possíveis<br />

256 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

divergências e semelhanças de transitividade da mesma oração em<br />

línguas distintas, quando estudadas sob abordagens diferentes.<br />

Como anteriormente mencionado, pelo fato de as origens das<br />

línguas inglesa e portuguesa serem diferentes, as estruturas sintáticas,<br />

naturalmente, também o serão. Apesar disso, a nomenclatura e a<br />

definição de transitividade para a gramática tradicional inglesa muito se<br />

assemelham à brasileira: o foco é o verbo, que se classifica em transitivo<br />

direto, indireto, direto e indireto (bitransitivo) e intransitivo. O que<br />

muda é a classificação de alguns verbos: o que em português é transitivo<br />

direto, em inglês pode ser indireto e vice-versa. São estes os casos que<br />

tomaremos como nossos exemplos.<br />

Mesmo com o fato de estarmos lidando com duas línguas que<br />

pouco se assemelham, as versões e traduções devem garantir que a<br />

mensagem a ser passada pelas sentenças é a mesma. Isso não significa,<br />

porém, que sempre haverá uma equivalência dos termos traduzidos.<br />

Em que pesem as diferenças quase inevitáveis das traduções e versões,<br />

é obrigação do tradutor manter o sentido original daquilo a que se<br />

propõe transpor.<br />

A seguir, analisaremos a transitividade das orações – traduzidas<br />

para o português e vertidas para o inglês – sob as perspectivas tradicional e<br />

funcionalista. Quanto à primeira, faremos a análise com base na regência<br />

verbal aceita pela norma culta, definindo sua classificação (transitivo<br />

direto, indireto, bitransitivo e intransitivo); enquanto na última<br />

utilizaremos os dez parâmetros de Hopper e Thompson para avaliar<br />

apenas o grau de transitividade das orações, sem discorrer a respeito<br />

dos verbos, suas classificações e os componentes da tabela em minúcias.<br />

Deste modo, faremos uma comparação dos resultados encontrados 1 .<br />

1. A análise da oração pelo Funcionalismo será feita a partir da tabela dos dez parâmetros de Hopper e Thompson,<br />

que se encontra na pág. 254 deste trabalho. Os números em parênteses indicam o parâmetro e as letras "A" e "B"<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 257


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

1) Mary likes Peter.<br />

Maria gosta de Pedro.<br />

De acordo com a gramática tradicional, o verbo “like” é<br />

transitivo direto e “gostar” é transitivo indireto (acompanha<br />

preposição “de”). Pela análise de Hopper e Thompson, chegamos<br />

ao grau 7 de transitividade. Assim, pela Gramática Tradicional, o<br />

verbo “to like” é transitivo direto e “gostar” é transitivo indireto. No<br />

Funcionalismo, temos uma transitividade moderada em ambas as<br />

orações (grau 7).<br />

Oração<br />

Gramática<br />

tradicional<br />

Funcionalismo<br />

Mary likes Peter.<br />

Transitivo Direto.<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A, (9)A,<br />

(10) A (grau 7).<br />

Maria gosta de<br />

Pedro.<br />

Transitivo Indireto.<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A, (9)A,<br />

(10)A (grau 7).<br />

Quadro 2. Análise da transitividade do verbo “to like” (gostar) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

2) Nothing satisfies the couple.<br />

Nada satisfaz ao casal.<br />

A primeira preposição que associamos a este verbo é<br />

“com”, porque pensamos, inicialmente, em sua forma pronominal<br />

que o seguem indicam, respectivamente "alta transitividade" e "baixa transitividade".<br />

258 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

(satisfazer-se); entretanto, o verbo também assume a regência da<br />

preposição “a”. Em ambos os casos, o verbo é transitivo indireto. Em<br />

inglês, porém, o verbo não é regido por preposições, porém, em se<br />

tratando da forma adjetiva “satisfeito” (“satisfied”), faz-se necessária<br />

a preposição “com” (“with”), ficando então “satisfied with”. Assim,<br />

pela Gramática Tradicional, o verbo “satisfazer” é transitivo indireto<br />

e “to satisfy” é transitivo direto. No Funcionalismo, temos baixa<br />

transitividade em ambas as orações (grau 4).<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

Nothing satisfies the<br />

couple.<br />

Transitivo Direto.<br />

(1)B, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)B (grau 4)<br />

Nada satisfaz ao casal.<br />

Transitivo Indireto.<br />

(1)B, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)B (grau 4)<br />

Quadro 3. Análise da transitividade do verbo “to satisfy” (satisfazer) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

3) He called Mary.<br />

Ele ligou para Maria<br />

O verbo “ligar” sendo sinônimo de “telefonar”, na língua<br />

portuguesa, rege complemento formado pela preposição “para”. São<br />

comuns construções do tipo “Ele te ligou”; entretanto, se ‘reorganizarmos’<br />

a oração, teremos “Ele ligou para ti”. Além disso, a regência do verbo,<br />

quando seguimos a orientação da gramática tradicional é “quem<br />

liga (telefona), liga (telefona) para”. Contrariamente, na língua<br />

inglesa é um verbo que não requer preposição a ele posposta. Assim,<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 259


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

pela Gramática Tradicional, o verbo “to call” é transitivo direto e<br />

“ligar (para)” é transitivo indireto. No Funcionalismo, temos alta<br />

transitividade em ambas as orações (grau 9).<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

He called Mary.<br />

Transitivo Direto<br />

(1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)A. (grau 9)<br />

Ele ligou para Maria.<br />

Transitivo Indireto<br />

1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)A. (grau 9)<br />

Quadro 4. Análise da transitividade do verbo “to satisfy” (satisfazer) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

4) She believes John.<br />

Ela acredita em João.<br />

“To believe” é um verbo transitivo direto, pois não há<br />

preposição posposta ao verbo. Em inglês, não é correta a construção<br />

“believe in”, que seria semelhante ao português, pois a regência do<br />

verbo não é mesma. O mesmo verbo em português (“acreditar”) é<br />

transitivo indireto, porque a preposição “em” acompanha o verbo.<br />

Assim, pela Gramática Tradicional, o verbo “to believe” é transitivo<br />

direto e “acreditar” é transitivo indireto. No Funcionalismo, temos<br />

transitividade moderada em ambas as orações (grau 6).<br />

260 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

She believes John<br />

Transitivo Direto.<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)B,<br />

(9)A, (10)A. (grau 6)<br />

Ela acredita em João.<br />

Transitivo Indireto.<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)B,<br />

(9)A, (10)A. (grau 6)<br />

Quadro 5. Análise da transitividade do verbo “to believe” (acreditar) pela GT e pelo<br />

Funcionalismo norte-americano.<br />

5) Eu gosto de ouvir música.<br />

I like listening to music.<br />

O verbo “ouvir”, em português, não rege complemento formado<br />

de preposição, sendo assim, transitivo direto. O mesmo não acontece<br />

em língua inglesa: o verbo requer obrigatoriamente a preposição “to”.<br />

O fato de ser transitivo direto na língua portuguesa acarreta, muitas<br />

vezes, uma transferência de padrão para a língua inglesa. Isto é, um<br />

falante do português, aprendiz do inglês, tende a falar “listen the music”,<br />

omitindo o “to”, porque está transferindo a estrutura de sua língua<br />

materna para a estrangeira. Embora essa correspondência seja válida<br />

algumas vezes, não se aplica a vários verbos, como neste caso. Assim,<br />

pela Gramática Tradicional o verbo “ouvir” é verbo transitivo direto<br />

e “to listen to” é verbo transitivo indireto. No Funcionalismo, temos<br />

baixa transitividade em ambas as orações (grau 4).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 261


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

Eu gosto de ouvir<br />

música.<br />

Transitivo Direto<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)B. (grau 5)<br />

I like listening to music.<br />

Transitivo Indireto<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)B, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)B. (grau 5)<br />

Quadro 6. Análise da transitividade do verbo “to believe” (acreditar) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

6) Ela não respondeu à pergunta.<br />

She didn’t answer the question.<br />

Este verbo será transitivo indireto, regendo complemento<br />

formado pela preposição “a”, quando possuir apenas um complemento,<br />

como na oração acima. Havendo dois complementos, de acordo<br />

com a gramática tradicional, será classificado como “bitransitivo”,<br />

conforme a classificação de Cunha a Cintra (2001), como no exemplo<br />

“Respondeu a pergunta para a professora”. Em língua inglesa, por outro<br />

lado, não há a regência por uma preposição, exigindo um objeto<br />

direto como complemento. Pela Gramática Tradicional, o verbo<br />

“responder” é transitivo indireto e “to answer” é transitivo direto.<br />

No Funcionalismo, temos alta transitividade em ambas as orações<br />

(grau 8).<br />

262 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

Ela não respondeu à<br />

pergunta.<br />

Transitivo Indireto<br />

(1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)B, (7)A, (8)A,<br />

(9)B, (10)A (grau 8)<br />

She didn't answer the<br />

question.<br />

Transitivo Direto<br />

(1)A, (2)A, (3)A, (4)A, (5)A, (6)B, (7)A, (8)A,<br />

(9)B, (10)A (grau 8)<br />

Quadro 7. Análise da transitividade do verbo “responder” (to answer) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

7) Preciso de todos aqui.<br />

I need everybody here.<br />

O verbo “precisar” requer a preposição “de” (precisar de algo),<br />

embora sejam possíveis construções – como as locuções verbais, por<br />

exemplo – que permitam a ausência da mesma, como em “Eu preciso<br />

ir”. Porém, conforme orientação da gramática tradicional, quando<br />

‘perguntarmos’ ao verbo sobre sua regência, imediatamente requererá<br />

o uso da preposição. Assim, pela Gramática Tradicional, temos que o<br />

verbo “precisar” é transitivo indireto e “to need” é transitivo direto. No<br />

Funcionalismo, temos baixa transitividade em ambas as orações (grau 4).<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

Preciso de todos aqui<br />

Transitivo Indireto.<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)B, (8)B,<br />

(9)B, (10)A (grau 4)<br />

I need everybody here.<br />

Transitivo Direto.<br />

(1)A, (2)B, (3)B, (4)B, (5)A, (6)A, (7)B, (8)B,<br />

(9)B, (10)A (grau 4)<br />

Quadro 8. Análise da transitividade do verbo “precisar” (to need) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 263


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

8) Os soldados desistiram da luta.<br />

The soldiers gave up the fight.<br />

São poucos os casos, na língua portuguesa, em que o verbo<br />

desistir não rege complemento composto de preposição “de”, como em:<br />

“não desista nunca”. Porém, quem desiste desiste automaticamente<br />

de algo, estando a preposição, de certa forma, omissa: “não desista<br />

(disso) nunca”. Na língua inglesa, o verbo não necessita da preposição,<br />

requerendo apenas um objeto direto. Devemos atentar também para o<br />

fato de que o verbo “to give up” é formado por uma preposição (up), ou<br />

seja, esta compõe o verbo, não devendo ser confundida como regência.<br />

Assim, pela Gramática Tradicional, o verbo “desistir (de)” é transitivo<br />

indireto e “to give up” é verbo transitivo direto. No Funcionalismo,<br />

temos alta transitividade em ambas as orações (grau 9).<br />

Oração Gramática tradicional Funcionalismo<br />

Os soldados desistiram<br />

da luta.<br />

Transitivo Indireto<br />

(1)A, (2)A, (3)A, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)A. (grau 9)<br />

The soldiers gave up<br />

the fight.<br />

Transitivo Direto<br />

(1)A, (2)A, (3)A, (4)B, (5)A, (6)A, (7)A, (8)A,<br />

(9)A, (10)A. (grau 9)<br />

Quadro 9. Análise da transitividade do verbo “desistir” (to give up) pela GT<br />

e pelo Funcionalismo norte-americano.<br />

Podemos perceber, após esta análise introdutória, que, de acordo<br />

com a gramática tradicional, os verbos, quanto à sua transitividade,<br />

são classificados diferentemente dependendo do idioma pelo qual<br />

a orações são expressas (estas orações possuem absolutamente o<br />

264 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

mesmo significado). Isto ocorre porque tal abordagem leva em<br />

consideração apenas a estrutura da oração, tomando o verbo como<br />

elemento fundamental, o que acarreta uma avaliação que em muito<br />

é influenciada pela raiz e etimologia da língua.<br />

Por outro lado, o funcionalismo norte-americano parte do<br />

princípio do grau de transitividade, não incorrendo em classificações,<br />

mas sim em gradações. Para os casos analisados, podemos perceber que,<br />

apesar de expressas em idiomas diferentes, as orações que possuem o<br />

mesmo significado (que evidenciam a mesma mensagem) apresentam<br />

o mesmo grau de transitividade em ambas as línguas. Ou seja, já que<br />

o Funcionalismo define a transitividade como uma característica de<br />

uma oração por inteiro, e não apenas como uma característica do<br />

verbo, expressões corretamente traduzidas ou vertidas implicarão,<br />

necessariamente, em mesmo grau de transitividade.<br />

Torna-se coerente, desta forma, considerar que somente o fato<br />

de as línguas serem distintas não deveria implicar em diferença entre as<br />

transitividades das orações que denotam o mesmo sentido. Sob nosso<br />

ponto de vista, o funcionalismo aborda a transitividade de maneira<br />

mais completa, pois toma como relevante outros aspectos da oração<br />

(características do sujeito e polaridade da oração, por exemplo),<br />

não priorizados ou mesmo ignorados pela gramática tradicional,<br />

permitindo a universalização do conceito de transitividade.<br />

Deste modo, ponderamos que, em termos estruturais da língua,<br />

as divergências não deveriam interferir na classificação ou gradação da<br />

transitividade das orações, haja vista que, em última análise, está-se<br />

“dizendo a mesma coisa”.<br />

A maneira impositiva pela qual a gramática tradicional discorre<br />

sobre o tema, por vezes dificulta o aprendizado, tornando os conceitos<br />

confusos e mnemônicos; enquanto a abordagem funcionalista<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 265


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

simplifica e estrutura o assunto de forma mais clara, tornando-o<br />

menos intuitivo, o que nos parece consideravelmente mais sensato.<br />

Considerações Finais<br />

Diante do que foi exposto, pudemos perceber as diferenças<br />

conceituais entre a gramática tradicional e o Funcionalismo no<br />

que diz respeito à transitividade, uma vez que a primeira parte de<br />

uma perspectiva na qual o verbo é o elemento central da oração;<br />

e o segundo toma todos os argumentos da oração para analisar<br />

a transitividade de forma gradativa. A transitividade não é uma<br />

propriedade exclusiva do verbo, e sim de toda a oração.<br />

Devido a essa divergência conceitual, as orações traduzidas<br />

ou vertidas, cujo sentido é exatamente o mesmo, podem possuir<br />

transitividades distintas quando analisadas sob a ótica tradicional,<br />

enquanto podem ter o mesmo grau de transitividade se analisadas<br />

sob a perspectiva funcionalista. Assim, é fácil perceber quão confuso<br />

pode ser o conceito de transitividade denotado pela gramática<br />

tradicional, já que esta pode classificar diferentemente uma mesma<br />

oração expressa em idiomas distintos. Tal fato revela que esse modelo<br />

baseia-se num conceito estrutural e, muitas vezes, considerado<br />

ultrapassado, tendo em vista suas particularidades de acordo com<br />

cada idioma.<br />

Fica evidente, assim, que devido à noção de função da<br />

língua e de seus postulados teóricos, o Funcionalismo expressa um<br />

grande avanço no desenvolvimento da Linguística, na medida em<br />

que procura conciliar todo o seu arcabouço científico, em vez de<br />

ater-se a estudos particulares sobre idiomas específicos. No que<br />

tange à transitividade, a abordagem funcionalista mantém suas<br />

características de universalizar conceitos e estruturar seu objeto<br />

266 l Anais Eletrônicos - 2011


DIVERGÊNCIAS DE TRANSITIVIDADE EM TRADUÇÕES E VERSÕES:<br />

ELAS REALMENTE EXISTEM? / Marília Gomes TEIXEIRA (<strong>UFPE</strong>/CNPq)<br />

de estudo de maneira mais prática, rejeitando, por exemplo,<br />

divergências de transitividade entre orações de mesmo significado,<br />

ainda que expressas em idiomas diferentes.<br />

Referências<br />

ALI, S. Gramática secundária da língua portuguesa. São Paulo, Melhoramentos, 1964.<br />

BECHARA. E. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro, Lucerna, 2004.<br />

CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed., Rio de<br />

Janeiro, Nova Fronteira, 2001.<br />

FURTADO DA CUNHA, M.A e SOUZA M. M. Transitividade e seus contextos de uso.<br />

GIVÓN, Talmy. English Grammar: A Function-Based Introduction. Amsterdam/Philadelphia:<br />

John Benjamin’s Publishing.<br />

LUFT. Celso P. Moderna gramática brasileira. 2ª ed., São Paulo, Globo, 2002.<br />

MARTELLOTA, M.E. Funcionalismo. In: WILSON, MARTELLOTA E CEZÁRIO. Linguística:<br />

Fundamentos. Rio de Janeiro, CCAA, 2009.<br />

NEVES, M.H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo, UNESP, 2000.<br />

ROCHA LIMA, C.H. Gramática normativa da língua portuguesa. 42ª ed., Rio de Janeiro,<br />

José Olympio, 2002.<br />

PERINI. M. Gramática descritiva do português. São Paulo, Ática, 2001.<br />

TRASK. R.L. Dicionário de Linguística e Linguagem. São Paulo, Contexto, 2004.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 267


Resumo<br />

Este trabalho é um recorte de nossa dissertação de mestrado * em que<br />

analisamos o gênero enquete do quadro “Controle de Qualidade” (CQ), do<br />

programa televisivo Custe o Que Custar, investigando de que maneira os<br />

recursos semióticos que compõem os diversos modos dessas enquetes<br />

são convencionados, promovendo, assim, a construção de uma identidade<br />

política. Tendo em vista o contexto de publicação em que se insere este<br />

artigo, focamos nossa atenção na multimodalidade – traço constitutivo<br />

de todos os textos –, fundamentando-nos na Gramática de Design<br />

Visual (GDV), de Kress e Van Leeuwen (2006), demonstrando como as três<br />

estruturas da Função Composicional da GDV se articulam nos recursos<br />

semióticos convencionados em grande escala nas enquetes do programa.<br />

Palavras-chave: enquetes; multimodalidade; convenções; identidade.<br />

Abstract<br />

This paper is an outline of our dissertation, in which we analyzed the<br />

poll genre under “Quality Control” (QC), the television show Custe o<br />

que custar, investigating how the semiotic resources from different<br />

ways these surveys are agreed, thereby promoting the construction of a<br />

political identity. Given the publishing context of this article, we focused<br />

our attention on multimodality – constitutive feature of all texts – and<br />

based our studies on Grammar of Visual Desing (GVD) by Kress and Van<br />

Leeuwen (2006), showing how the three structures from the Compositional<br />

Function of GVD are articulated with the large-scale semiotic resources<br />

in this program polls.<br />

Keywords: surveys, multimodality, conventions, identity.<br />

* Intitulada “Enquetes do Controle de Qualidade do CQC: uma análise multimodal” (orientada e coorientada pelas<br />

professoras Dr as Angela Paiva Dionísio e Medianeira Souza, respectivamente), disponível no banco de Teses e<br />

Dissertações do site do Programa de Pós Graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>. Acessível em: .


A função composicional em<br />

enquetes do CQC<br />

Nadiana Lima da SILVA<br />

(<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

Introdução<br />

Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e,<br />

consequentemente, também do design, os textos têm apresentado,<br />

cada vez mais, um forte teor informativo visual, o que exige<br />

das abordagens teóricas a consideração desse aspecto. Kress e<br />

van Leeuwen (2006), atentando para esse fato, apontam para a<br />

necessidade de se observar os textos de forma integrada, quebrando<br />

(ou, no mínimo, atenuando) a dicotomia entre os estudos da<br />

linguagem e de outros modos, uma vez que a multimodalidade é<br />

um traço constitutivo de qualquer texto, como se pode apreender<br />

da afirmação de Dionisio (2008), segundo a qual, sempre, quando<br />

escrevemos ou falamos, estamos utilizando, pelo menos, dois modos<br />

de representação. Ainda segundo a autora,<br />

representação e imagens não são meramente formas de<br />

expressão para divulgação de informações, ou representações<br />

naturais, mas são, acima de tudo, textos especialmente<br />

construídos que revelam as nossas relações com a sociedade e<br />

com o que a sociedade representa (DIONISIO, 2008, p. 119).<br />

Assim, com a variedade de modos combinados em um texto,<br />

há uma orquestração de propósitos comunicativos entrelaçados, o<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 269


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

que reforça a exigência de mudar a maneira como lemos esses textos,<br />

já que “os gêneros se materializam em formas de representação<br />

multimodal (linguagem alfabética, disposição gráfica na página<br />

ou na tela, cores, figuras geométricas, etc.) que se integram na<br />

construção do sentido” (DIONISIO, 2006, p. 14). Por isso, a autora<br />

afirma que, consequentemente, também precisamos rever o conceito<br />

de letramento: “Precisamos falar em multiletramento!”, o que é<br />

fundamental para observarmos como se manifestam os discursos que<br />

permeiam nossas práticas sociais.<br />

Diante disso, neste estudo, demonstraremos de que maneira<br />

as três estruturas da função composicional da Gramática de Design<br />

Visual, de Kress e Van Leeuwen (2006) se articulam nos recursos<br />

semióticos convencionados que compõem os diversos modos das<br />

enquetes do “Controle de Qualidade” (quadro do programa televisivo<br />

Custe o Que Custar), daqui em diante referido como CQ.<br />

A gramática de design visual (GDV)<br />

Atentemos, primeiramente, para a posição assumida por Kress<br />

e van Leeuwen (2006), segundo a qual os recursos de representação<br />

sinalizam, assim como na língua, algumas regularidades que podem ser<br />

descritas de maneira relativamente formal. Kress e van Leeuwen chamam<br />

isso de ‘gramática’ da comunicação visual, através da qual seria<br />

fornecida uma descrição das escolhas semióticas possíveis, bem como<br />

os padrões que governam essas escolhas, em um todo significativo.<br />

Essa abordagem difere da maioria das descrições das semióticas visuais,<br />

uma vez que, como frisa Machin (2007), estas se orientam pelo léxico,<br />

em que são levados em conta os signos individuais, com sentidos<br />

previamente fixados.<br />

270 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

Para a sua abordagem pautada pela ‘gramática’, Kress e van<br />

Leeuwen adotam o modelo funcionalista dos estudos linguísticos,<br />

que foi desenvolvido pelo inglês Michael A. K. Halliday e chamado<br />

de Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF). Conforme<br />

explicam Furtado da Cunha e Souza (2007, p. 19), essa abordagem<br />

concebe “a teoria da língua enquanto escolha” e a língua é olhada<br />

conforme é usada. O que é central, afirmam as autoras, é o fato de a LSF<br />

encarar o funcionamento da linguagem como um processo associado<br />

ao contexto de uso e não isoladamente, regido por um conjunto de<br />

regras. Kress e van Leeuwen (2006, p. 20) justificam a escolha pela<br />

abordagem semiótica social de Halliday, não apenas por ser um trabalho<br />

bem-sucedido no que diz respeito à língua, mas por constatarem que<br />

esse modelo promove uma reflexão acerca dos diversos processos<br />

semióticos e sociais, e de todos os modos de representação (KRESS e<br />

VAN LEEUWEN, 2006, p. 20, grifo nosso).<br />

O ponto de partida da abordagem de Kress e van Leeuwen<br />

baseia-se no pressuposto de Halliday de que os artefatos comunicativos<br />

podem ser caracterizados ao longo das dimensões definidas pelas três<br />

metafunções da LSF: ideacional, interpessoal e textual. A metafunção<br />

ideacional “representa/constrói os significados de nossa experiência”<br />

(FURTADO DA CUNHA e SOUZA, 2007, p. 21); os enunciados<br />

remetem a eventos e ações de nossa atividade, indicam o conteúdo<br />

ideacional presente nos usos da linguagem. A metafunção interpessoal<br />

refere-se aos papéis dos participantes na interação social; trata dos<br />

usos da língua para representar relações interpessoais. A metafunção<br />

textual está ligada à organização dos aspectos semânticos, gramaticais<br />

e formais, funcionando em conjunto no texto.<br />

Kress e van Leeuwen criam um paralelo com cada umas<br />

das metafunções e propõem três correspondentes funções para a<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 271


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Gramática de Design Visual (doravante GDV). Essas três funções,<br />

associadas às de Halliday são as:<br />

• Representacional (ideacional da LSF), em que estruturas<br />

verbais e visuais controem as naturezas dos eventos, dos<br />

objetos e participantes envolvidos e das circunstâncias<br />

em que eles estão. Assim, enquanto na língua os objetos<br />

podem ser conectados como “O professor cumprimentou<br />

o aluno”, na comunicação visual, uma pessoa pode olhar<br />

fixamente para um objeto.<br />

• Interativa (interpessoal da LSF), em que recursos verbais<br />

e visuais produzem a natureza das relações entre falantes/<br />

ouvintes, escritores/leitores e videntes/e o que é visto.<br />

Dessa forma, na língua, podemos indicar se estamos fazendo<br />

um pedido ou dando uma ordem e, na comunicação<br />

visual, o ângulo vertical de uma câmera, na direção de<br />

cima para baixo, de um pai para um filho, pode indicar<br />

uma relação de autoridade e opressão.<br />

• Composicional (textual da LSF), em que é considerada a<br />

relação entre os significados representacional e interativo,<br />

assim como essa relação se configura através do valor da<br />

informação, da estruturação e da ênfase relativa dada<br />

a elementos textuais ou imagéticos. Dessa maneira, na<br />

língua, é possível contar com a referência e outros elementos<br />

coesivos para criar um todo significativo; já na<br />

comunicação visual, uma placa com os dizeres “Proibido<br />

proibir”, sobreposta à imagem de um ditador, confere<br />

ênfase ao elemento em primeiro plano.<br />

272 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

Essa recontextualização das metafunções propostas por<br />

Halliday para as funções da GDV de Kress e van Leeuwen pode ser<br />

esquematizada da seguinte forma:<br />

Gráfico 1 – Reconfiguração das metafunções da Linguística Sistêmico-Funcional<br />

para a Gramática de Design Visual<br />

Uma vez que objetivamos analisar de que forma os recursos<br />

semióticos são convencionados na enquete, construindo a identidade<br />

dos políticos, decidimos focalizar nossa análise no sistema de<br />

significados composicionais, uma vez que a maneira pela qual os<br />

elementos das enquetes são integrados confere coerência ao todo.<br />

Assim, no tópico seguinte, discorreremos mais detalhadamente sobre<br />

essa última função, a composicional, recorte deste estudo.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 273


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Função composicional<br />

Conforme afirmam Kress e van Leeuwen (1996, p. 177),<br />

a metafunção composicional se realiza por meio de três sistemas<br />

associados:<br />

a) valor informativo, em que, dependendo da “zona” da<br />

imagem onde ao elementos se localizam – esquerda/<br />

direita, parte superior/parte inferior e centro/margem –,<br />

são conferidos valores distintos quanto à informação.<br />

Kress e van Leeuwen (1996) afirmam ser o lado esquerdo<br />

o lugar em que as informações já conhecidas pelos<br />

interlocutores são posicionadas, o dado. Já a informação<br />

nova, que pode ser parcial ou totalmente desconhecida<br />

pelo leitor, é apresentada do lado direito do texto 1 , o novo.<br />

De forma semelhante, as informações dispostas na parte<br />

superior da imagem – ideal – opõem-se às apresentadas<br />

na parte inferior – real –, uma vez que nesta são exibidas<br />

as informações concretas, práticas, mais reais, enquanto<br />

naquela são divulgadas informações idealizadas. Além<br />

disso, se localizados no centro da imagem, certamente<br />

este constituirá o foco da informação em detrimento das<br />

informações marginalmente dispostas.<br />

b) saliência, em que os elementos são dispostos de modo<br />

específico com a finalidade de atrair a atenção do<br />

interlocutor, por meio de vários fatores. Conforme<br />

esclarecem os autores, não é possível mensurar essa<br />

1. O termo texto é utilizado indistintamente do termo imagem.<br />

274 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

saliência, uma vez que ela é apreendida pelos leitores, que<br />

conseguem intuitivamente julgar o “peso” dos elementos,<br />

no todo composicional, por meio de uma complexa relação<br />

entre alguns fatores: tamanho, cor, tonalidade (áreas com<br />

forte contraste indicam maior saliência), foco (quanto<br />

mais focados, mais os elementos são salientes), perspectiva<br />

(elementos posicionados em primeiro plano são mais<br />

salientes do que os apresentados em segundo plano),<br />

sobreposição (os elementos sobrepostos são mais salientes<br />

do que os elementos encobertos) e símbolos culturais potentes<br />

(pode ser o conjunto de elementos, como uma mulher,<br />

em um anúncio publicitário, com trajes de executiva,<br />

utilizando laptop e celular conferindo uma ideia de mulher<br />

independente e inserida no mercado de trabalho, ou pode<br />

ser a presença de uma figura humana importante).<br />

c) estruturação, em que é levada em conta a presença de<br />

elementos, ou grupos de elementos, conectados ou<br />

desconetados da imagem, através de linhas divisórias<br />

apreeendidas da imagem ou linhas do próprio frame<br />

dela. Dessa forma, os elementos são apresentados como<br />

participantes de uma unidade separada das demais ou<br />

relacionadas entre si. As cenas podem representar fronteiras<br />

ou a ausência deles pode indicar uma natural conexão.<br />

Além disso, há potenciais de sentidos no tamanho e no<br />

formato das marcas divisórias, ou seja, linhas irregulares<br />

podem representar perigo ou desnível e linhas suaves e<br />

arredondadas, conforto e maciez.<br />

Para os autores, esses três sistemas, por meio dos quais as<br />

composições integram os significados representacionais e interativos,<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 275


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

são aplicáveis a qualquer texto visual complexo ou multimodal.<br />

Além disso, é imprescindível considerar todos os elementos de forma<br />

integrada; não o texto verbal como “primordial” e o visual como<br />

“ilustração”, como se fossem elementos constituídos por unidades<br />

distintas. Veremos, então, como se configura cada um desses três<br />

sistemas que promovem o sentido da composição.<br />

Além da função composicional da GDV, fundamentamos<br />

nossa análise nos estudos de Kostelnick e Hasset (2003), sobre<br />

as convenções retóricas, que exercem um papel relevante nos<br />

mais variados gêneros. Portanto, no tópico a seguir, abordaremos<br />

a natureza social das convenções, o seu papel na construção dos<br />

sentidos das composições visuais e como isso se configura no âmbito<br />

das enquetes do CQ.<br />

Documentos multimodais: um mosaico de convenções<br />

O design integra uma ampla variação de códigos convencionais<br />

que estão constantemente se modificando. No entanto, a linguagem<br />

visual do design é muito mais acessível – se comparada à linguagem<br />

verbal – tanto perceptual quanto hermeneuticamente, já que é<br />

assimilada, grosso modo, intuitivamente. Por isso, não podemos<br />

escapar da presença desses códigos ou de seu poder de nos moldar<br />

culturalmente. Sobre essa questão, Kostelnick e Hasset (2003a, p.<br />

11) afirmam que o design é “inerentemente retórico”, uma vez que<br />

os designers usam seus artefatos para comunicar objetivando alcançar<br />

alguns fins. Ao mesmo tempo, advogam os autores, o design integra<br />

esses artefatos entre audiências complexas, o que ocorre, normalmente,<br />

dentro das expectativas do público, sendo, por isso, “inerentemente<br />

convencional”. Para os autores, essa linguagem convencional não<br />

276 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

é escrita de forma impulsiva, mas é reproduzida ao longo dos anos,<br />

promovendo interpretações de estabilidade, verdade e poder.<br />

As formas de design “operam entre um universo de códigos<br />

convencionais que mediam profundamente nossa interpretação da<br />

linguagem visual” (2003a, p.12). Assim, as convenções fornecem o<br />

“fio que trança” nossas experiências sensoriais, permitindo a criação<br />

de uma linguagem coerente por meio de uma estrutura profunda do<br />

design. Quanto à mutabilidade das convenções, os autores sinalizam<br />

para um fator importante: os artefatos de design “não são inertes,<br />

predestinados ou acidentais”, mas manifestam visualmente ações dos<br />

usuários; são, portanto, o discurso visível da língua viva em constante<br />

transformação. Isso se justifica pelo fato de designers conscientemente<br />

empregarem as convenções e os leitores a interpretarem, o que se<br />

dá pelo compartilhamento de experiências de natureza diversa. Por<br />

essa razão, as convenções são intrínseca e profundamente sociais, já<br />

que são proliferadas e sustentadas por grupos sociais. Dessa maneira,<br />

conforme afirmam os autores, as convenções são vulneráveis porque<br />

“são construtos sociais que dependem dos grupos que os usam, os<br />

aprendem e os põem em prática” (ibidem, 2003, p. 24).<br />

A maneira como nós passamos a fazer parte de uma comunidade<br />

de discurso e como apreendemos culturalmente seus códigos<br />

convencionais também varia consideravelmente. Esse processo ocorre<br />

quando nós nos deparamos com elementos visuais, os compreendemos<br />

e, em seguida, agimos de acordo com nossa interpretação. Em função<br />

do sucesso ou da falha de nossas ações, nós reajustamos nossos<br />

modelos mentais acerca desses elementos visuais, os reinterpretamos<br />

e aplicamos essa interpretação sempre quando em presença de tais<br />

elementos. Essa habilidade é adquirida à medida que nos tornamos<br />

fluentes na linguagem visual, o que é, em parte, desenvolvido em<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 277


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

nossa educação silenciosa, de forma autônoma. No que diz respeito<br />

às enquetes do CQ, verifica-se a formação de convenções quanto<br />

aos recursos semióticos, que representam ações diversas que, por<br />

sua vez, produzem efeitos de sentido particulares, como o efeito de<br />

reprovação (como a marreta que atinge a cabeça do deputado e esta<br />

fica, consequentemente, deformada), o efeito de aprovação (como o<br />

som de tilintar metálico), o efeito de deboche (como o nariz-de-palhaço<br />

sobreposto ao nariz do político), etc.<br />

Tendo em vista que o escárnio 2 permeia a utilização dos recursos<br />

semióticos de nosso corpus, apresentamos um gráfico abaixo que<br />

apresenta a categorização dos efeitos de sentido produzidos a partir<br />

das ações representadas pelos recursos, nas quais operam as três<br />

estruturas composicionais:<br />

Gráfico 2: Categorias de Análise<br />

2. Esse termo, uma espécie de hiperônimo dos demais, foi escolhido tendo em vista que há um tom de zombaria<br />

manifesta mesmo em ações que produzem efeito de aprovação.<br />

278 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

No próximo tópico, demonstraremos como essa dinâmica se<br />

realiza. Para isso, iremos nos deter à análise dos recursos semióticos<br />

convencionados como ações que produzem, sobretudo, efeito de<br />

reprovação, tendo em vista as estruturas valor informativo, saliência<br />

e estruturação. Amplamente utilizadas nas enquetes, essas ações<br />

representadas pelos recursos funcionam como instrumento para julgar<br />

negativamente as atitudes dos políticos.<br />

Como a função composicional opera nas enquetes?<br />

Levemos em conta as seguintes enquetes:<br />

C1<br />

C2<br />

C3<br />

C4<br />

DG: Como vai? Tudo bom, seu deputado? O<br />

que tá rolando aqui?<br />

LCH: a questão da crise da pecuária de corte<br />

dos frigoríficos.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 279


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

C5<br />

C6<br />

DG: Agora, pra quem tá em casa, e não sabe,<br />

quantos ministérios o governo tem ligados à<br />

agricultura?<br />

C7<br />

[som: parecido com o ruído de uma porta<br />

pesada e antiga, em movimentação]<br />

LCH: tem dois ministérios.<br />

C8<br />

DG: Pra quem tá em casa e não sabe o nome<br />

dos ministros ligados à agricultura?<br />

Reinhold Stephanes e o Guilherme de Cassel.<br />

[tilintar metálico]<br />

280 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

C9<br />

C10<br />

DG: o senhor acha que um deputado, pra<br />

executar bem seu trabalho, ele precisa ter<br />

um bom conhecimento do que acontece no<br />

executivo?<br />

[som: semelhante a uma porta rangendo<br />

rapidamente]<br />

C11<br />

JL: Com certeza absoluta, né? Tem que tá<br />

a par da situação que tá acontecendo no<br />

governo porque nós deputados e viemos<br />

pr’aqui pra fiscalizar o executivo e legislar,<br />

fazer lei, né?<br />

C12<br />

DG: o nome do ministro da agricultura<br />

conhecemos?<br />

JL: conhecemos.<br />

[som: galho sendo contorcido ou crescendo]<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 281


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

C13<br />

C14<br />

DG: que é o?<br />

[som: Algo sendo engolido brusca e dificilmente]<br />

C15<br />

JL: Eu agora, me, me falta a memória, aqui, no<br />

momento.<br />

C16<br />

DG: o senhor conhece?<br />

JL: conheço, de perto.<br />

DG: e o do Desenvolvimento Agrário?<br />

JL: conheço todos eles, porque participo<br />

sempre das reuniões do governo<br />

282 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

C17<br />

DG: Amigo deles?<br />

JL: isso, são amigos.<br />

DG: mas não lembra o nome? [som: semelhante a uma mola que se rompe]<br />

JL: não lembro o nome...<br />

DG: Mas é amigo chegado? [som: grasnar de pato ou marreco]<br />

Quadro 1 – “Crise da pecuária” (dia 06/04/09) 3<br />

Nas primeiras cenas, DG pergunta ao deputado federal Luiz<br />

Carlos Heinze se há algo ocorrendo no Congresso e, este responde<br />

àquele que há uma discussão sobre a crise da pecuária de corte dos<br />

frigoríficos. Em seguida, o deputado diz, em função de duas novas<br />

perguntas de DG, que há dois ministérios ligados à agricultura e que<br />

os ministros ligados a esses ministérios são Reinhold Stephanes e<br />

Guilherme de Cassel. Por conceder respostas objetivas e corretas, há<br />

um tilintar metálico que confere um valor semântico de aprovação,<br />

amplamente convencionado nas enquetes. De certa forma, apresentálo,<br />

logo de início, indica um exemplo do que é considerado pelo<br />

programa como um político bem-informado, que tem conhecimento<br />

sobre o que ocorre no Congresso, pelo menos. No entanto, esse ‘tipo<br />

de político’ não é o que se observa nas cenas seguintes.<br />

3. Imagens capturadas a partir do vídeo, disponível em: http://videos.band.com.br/v_17429_danilo_gentili_<br />

testa_o_nivel_de_conhecimento_dos_politicos.htm<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 283


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Especificamente em C9 e C10, verificamos<br />

que o deputado federal Jurandyr Loureiro,<br />

diante de pergunta semelhante (“o senhor<br />

acha que um deputado, pra executar bem seu<br />

trabalho, ele precisa ter um bom conhecimento<br />

do que acontece no executivo?”, em C9),<br />

prontamente responde afirmativamente<br />

à questão, com serenidade e sobriedade:<br />

“Com certeza absoluta, né? (...)” (C10).<br />

Diante da resposta, DG questiona se o<br />

político conhece – ou seja, se sabe – o nome<br />

do ministro da agricultura; o deputado,<br />

por seu turno, responde que conhece.<br />

Entretanto, o recurso semiótico, do modo<br />

imagético, contradiz essa resposta, uma<br />

vez que há um aumento do comprimento<br />

do nariz do deputado. Essa ação ganha<br />

saliência nesse momento, sobretudo porque<br />

ela ocupa a posição Central, quanto ao<br />

valor informativo, uma vez que se encontra<br />

no centro do rosto do político e ‘aponta’<br />

para o centro da cena, o que indica que<br />

sua resposta é uma mentira e devemos<br />

atentar para essa informação. O recurso<br />

pictórico utilizado em C12 dialoga com o<br />

personagem de histórias infantis Pinóquio,<br />

cujo nariz crescia em função das mentiras<br />

que contava, como mostra a figura 1 4 .<br />

4. Fonte das figuras 1 e 2: http://globoesporte.globo.com/platb/files/949/2011/04/Pin%C3%B3quio-350x260.jpg.<br />

284 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

Essa associação é reforçada pelo recurso semiótico, do modo<br />

sonoro, que alude a um galho de árvore crescendo, como descrito<br />

em C12. Esse som se justifica pelo fato de o personagem Pinóquio ser<br />

um boneco de madeira, feito a partir de um tronco de pinheiro. O<br />

próprio nome do personagem, Pinocchio (em italiano, língua original da<br />

história) significa pinhão, que é uma semente de um tipo de pinheiro.<br />

É importante lembrar que esse recurso de um nariz-que-cresce<br />

também faz parte das convenções retóricas construídas ao longo das<br />

enquetes e produz o efeito, como foi possível verificar, de reprovação.<br />

Após ser ‘reprovado’, o deputado passa por um constrangimento<br />

(C13), efeito produzido a partir do recurso que consiste na deformação<br />

do rosto do político associado ao som de algo sendo engolido<br />

dificilmente, que confere um alto grau de saliência a esse momento,<br />

assim como analisamos no tópico anterior. Isso se deve ao fato de,<br />

frente à pergunta de DG (“que é o?”), o deputado afirmar não lembrar<br />

o nome do ministro (da Agricultura), naquele momento. Mas também<br />

não lembra o nome do ministro do Desenvolvimento Agrário, mesmo<br />

afirmando que ambos são seus ‘amigos’. Por ser incoerente o fato de<br />

não lembrar/saber os nomes daqueles que são considerados como<br />

amigos, DG questiona: “mas não lembra o nome?” (C17). Pergunta<br />

que é seguida por um recurso sonoro semelhante a uma mola que se<br />

rompe, como uma espécie de ladainha que cessa, de ‘conversa fiada’<br />

que se encerra.<br />

Se, anteriormente, o deputado Jurandyr Loureiro tinha passado<br />

por momentos de embaraço – ao dizer que conhecia os nomes dos<br />

ministros da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário, mas que<br />

não lembrava nenhum dos dois, mesmo sendo de seus “amigos” –, a<br />

partir da cena 17, o deputado nem mesmo se dá conta da situação<br />

que protagoniza. Atentamos, então, para o quadro 32 a seguir, que<br />

dá continuação ao anterior.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 285


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

C 18 C 19<br />

DG: o que o senhor acha do Ministério da<br />

Apicultura?<br />

[som: corda de instrumento musical<br />

rompendo-se<br />

JL: o trabalho que eles estão fazendo<br />

C 20 C 21<br />

...o trabalho que eles estão fazendo são<br />

trabalhos importante.<br />

DG: mas o senhor acha que o ministro da<br />

apicultura é um bom ministro?<br />

286 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

C 22 C 23<br />

JL: Lógico, lógico,<br />

[som1: música cessando bruscamente; som 2:<br />

vozes gritando ‘Não!”, com o ‘a’ prolongado.]<br />

pela competência que ele tem, porque<br />

geralmente, é, é, se ele foi escolhido pra ocupar<br />

essa (?) é porque tem competência.<br />

C 24 C 25<br />

DG: Obrigado. Oh, eu fico mais tranquilo que o<br />

senhor tá fiscalizando aí.<br />

(o deputado sai do enquadre da cena, julgando<br />

já ter terminado a enquete, mas volta quando<br />

DG diz “oh”)<br />

C 26<br />

[som: de uma espécie de apito]<br />

JLJL: Tá bom, querido. Muito obrigado.<br />

Quadro 2 – “Crise da pecuária” (dia 06/04/09) – continuação<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 287


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Em C18, o deputado é questionado acerca do Ministério<br />

da Apicultura (pela familiaridade sonora com “Agricultura” e<br />

“Aquicultura”) que, segundo informa a legenda – esta sempre ocupa<br />

a posição Real nas cenas e apresenta uma estruturação bem marcada<br />

de separação – ainda não foi criado. Como “apicultura” é a criação<br />

de abelhas, o recurso semiótico utilizado para indicar que o deputado<br />

foi atingido é uma abelha que pica a testa do deputado, deixando-a<br />

ferida, como pode ser visto em C19 e C20. O recurso da picada-daabelha<br />

constitui a informação Ideal, ideologicamente mais saliente,<br />

já que metaforiza o fato de o deputado ter sido ‘ferido’ por uma<br />

abelha (justificado pelo suposto ministério da “apicultura” do qual<br />

falava o deputado). Ao discorrer sobre esse ministério e os trabalhos<br />

desenvolvidos pelo ministro responsável, o deputado Jurandyr<br />

demonstra não ter credibilidade para discutir questões relacionadas<br />

aos ministérios – as partes acabam por criar a ideia do todo – e, por<br />

conseguinte, sobre questões relevantes para a população.<br />

Conforme seu próprio discurso inicial, não está preparado<br />

para desempenhar um bom papel, já que não é bem-informado, de<br />

certa forma internalizado, assumido como verdade, tendo em vista<br />

a formulação da pergunta que, como comentamos anteriormente,<br />

apenas oferece duas possíveis respostas (sim ou não), o que induz<br />

o político a responder afirmativamente, já que se considera um<br />

pressuposto para o exercício de seu cargo. São várias as ações<br />

representadas pelos recursos semióticos que produzem o efeito de<br />

reprovação que, juntos, criam um alto grau de saliência nos momentos<br />

em que atuam e reforçam, por isso, a construção da identidade do<br />

político desinformado/não-preparado para ser político: além do<br />

nariz-de-palhaço em conjunto com o som de um galho crescendo,<br />

há a picada de uma abelha (convenção em pequena escala, já que se<br />

associa a esta situação em particular), som de vozes gritando “Não!”,<br />

288 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

com o ‘a’ prolongado (C22) e a ‘marretada’ na cabeça do político que<br />

fica deformada. Por fim, depois de tantas reprovações, o deputado<br />

agradece ao integrante do programa por este ter dito que fica mais<br />

“tranquilo” por saber que há pessoas como esse político “fiscalizando”,<br />

sem nem mesmo perceber que essa afirmação se trata de uma ironia,<br />

já que – pela leitura orientada pelas estratégias desenvolvidas pelas<br />

enquetes –, com políticos como o deputado Jurandyr Loureiro que<br />

desconhecem questões relacionadas ao próprio ambiente de trabalho,<br />

ficamos ainda mais preocupados com a situação do país.<br />

Considerações finais<br />

Como pudemos demonstrar, em ações com efeito de reprovação,<br />

de constrangimento e outras com tom negativo, há um intenso uso<br />

de recursos semióticos visuais em congruência com os sonoros. Na<br />

maior parte dos casos, o político é “atingido” por objetos variados,<br />

indicando que ele foi reprovado pelo Controle de Qualidade e que, por<br />

consequência, não desempenha um bom papel. Esse recurso visual,<br />

juntamente com o sonoro – considerando que há sempre associação<br />

a um som, que varia quanto ao grau de reprovação, como vimos –,<br />

enfatiza fortemente a figura do político que é “ferido” pelo objeto,<br />

já que sempre há deformação de sua face e representação de sangue<br />

que sai de seu rosto. Em contrapartida, os recursos que produzem<br />

o efeito de aprovação são mais sutis e, normalmente, são recursos<br />

sonoros, conferindo menor grau de saliência em relação aos recursos<br />

com efeito negativo. Uma leitura autorizada que se pode apreender<br />

dessa construção, conduzida pelas escolhas discursivas das enquetes –<br />

quais manchetes são exibidas, quais questionamentos são feitos, quais<br />

depoimentos são exibidos, quais recursos semióticos são utilizados<br />

(essa, em especial, foco de nosso estudo) etc. – é que o político deve ser<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 289


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

bem-informado, deve saber responder àquelas perguntas e, então, não<br />

precisa ser veementemente parabenizado, só cumpre seu papel. Além<br />

disso, como é forte o caráter humorístico do quadro, pode-se afirmar<br />

que não há graça em exibir políticos que respondem corretamente às<br />

perguntas; ao contrário, provoca humor exibir políticos desinformados<br />

e que são, por isso, ridicularizados publicamente.<br />

Ao escolher determinados conteúdos, associados à confluência<br />

de diversos recursos semióticos, dos diferentes modos, as enquetes<br />

promovem a construção de variados efeitos de sentido “para<br />

influenciar o outro, isto é, no fim das contas” é realizada uma “escolha<br />

de estratégias discursivas” (CHARAUDEAU, 2006, p. 39). Como foi<br />

possível verificar, portanto, as enquetes são utilizadas para legitimar o<br />

próprio discurso do CQ acerca da desinformação dos políticos, a partir<br />

da exibição de políticos que não respondem corretamente às perguntas<br />

que são propostas – com status de relevantes para o exercício do papel<br />

de representante do povo – em conjunto com recursos semióticos<br />

convencionados que produzem, principalmente, efeitos de reprovação<br />

e constrangimento. Assim, mostramos que há um posicionamento<br />

ideológico nas enquetes, construído por estratégias que se manifestam<br />

não só no que diz respeito às escolhas linguísticas, mas, sobretudo,<br />

quanto aos recursos semióticos de outros modos, sendo de extrema<br />

importância um olhar atento dos aspectos multimodais envolvidos na<br />

leitura dos gêneros, o que assinala para um melhor desenvolvimento<br />

de trabalhos a esse respeito.<br />

290 l Anais Eletrônicos - 2011


A FUNÇÃO COMPOSICIONAL EM ENQUETES DO CQC / Nadiana Lima da SILVA (<strong>UFPE</strong>/NIG)<br />

Referências<br />

DIONISIO, A. P. (2006) Diversidades de ações sociais e de representações: diversidade de<br />

gêneros e em gêneros. Disponível em: . Acesso em 20 jun. 2009.<br />

______. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In. Karwoski, A.M.; Gaydeczka, B.; BRITO,<br />

K. S.. (orgs.). Gêneros Textuais: reflexões e ensino. 3ª ed.União da Vitória: Kaygangue,<br />

2008. p. 119-132.<br />

FURTADO DA CUNHA, M. A.; SOUZA, M. M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de<br />

Janeiro: Lucerna, 2007. p. 17-25.<br />

KOSTELNICK, C.; HASSET, M. Visual Language, Discourse Communities and The Inherently<br />

Social Nature of Conventions. In: KOSTELNICK, C. Shaping Information: the rethoric of<br />

visual conventions. Carbondale: Southen Illinois University Press, 2003a. p.10-42<br />

______. What’s conventional, what’s not. In: KOSTELNICK, C. Shaping Information: the<br />

rethoric of visual conventions. Carbondale: Southen Illinois University Press, 2003b.<br />

p.43-80.<br />

KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2ª ed. London:<br />

Routledge, 2006.<br />

MACHIN, D. Introduction to Multimodal Analysis. London: Hodder Arnold, 2007.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 291


Resumo<br />

O infográfico, ou gráfico informativo, deve ser compreendido como um<br />

gênero textual composto pelas linguagens verbal e não-verbal a fim de<br />

passar uma informação/conteúdo de forma sucinta e atraente. Antes<br />

encontrado com maior frequência nos domínios discursivos jornalístico<br />

e científico, como nas Revistas Superinteressante, Galileu Galilei e Época,<br />

por exemplo, modernamente, é bastante frequente a presença de gráficos<br />

informativos em manuais didáticos, a citar o Guia do Estudante. Esse<br />

artigo científico é fruto da disciplina de sintaxe, ministrada no Programa<br />

de Pós-Graduação em Letras da <strong>UFPE</strong>, e tem por finalidade verificar como<br />

os infográficos estão multimodalmente construídos à luz da Gramática do<br />

Design Visual proposta por Kress e van Leewen (1996). Nosso corpus foi<br />

coletado do Guia de Atualidades do primeiro semestre de 2011.<br />

Palavras-chave: gráfico informativo; Linguística Sistêmico-Funcional;<br />

multimodalidade.<br />

Abstract<br />

The infographic, or informative graphic, must be understood as a text<br />

genre composed by verbal and nonverbal languages, in order to pass an<br />

information / content or in an attractive or brief way. Infographics were<br />

priorly most found among the areas of journalism and scientific discourse,<br />

as in Superinteressante, Galileu Galilei and Época magazines, for instance;<br />

but actually, it is quite frequently the presence of informative graphics in<br />

textbooks, like Guia do Estudante. This scientific paper is the result of the<br />

discipline of syntax, taught in the Graduate Program in Linguistics at <strong>UFPE</strong>,<br />

and aims to verify how the multimodality infographics are constructed<br />

according to the Grammar of Visual Desing, proposed by Kress and van<br />

Leeuwen (1996). Our corpus was collected from Guia de Atualidades, taken<br />

from the first half of 2011.<br />

Keywords: informative graphic; Systemic Functional Linguistics;<br />

multimodality.


Gráficos informativos<br />

sob a perspectiva da<br />

Gramática Visual<br />

Rosemberg Gomes NASCIMENTO<br />

(<strong>UFPE</strong>/CAPES) 1<br />

Introdução<br />

Um dos gêneros textuais que vem tornando-se cada vez mais<br />

frequente no domínio jornalístico e, mais recentemente, em manuais<br />

didáticos destinados a vestibulandos, como o Guia do Estudante, é o<br />

infográfico. Vale salientar que ultimamente o infográfico, ou gráfico<br />

informativo, vem sendo objeto de estudo de alguns estudiosos do<br />

âmbito da Linguística e do Jornalismo, a citar: Cairo (1998), Colle<br />

(1998), Dionisio (2004; 2006), Rojo (2008), entre outros. O gênero em<br />

questão tem como característica a presença de vários modos semióticos<br />

em sua construção. Na verdade, o infográfico está alterando a forma<br />

de apresentação da escrita de nossa sociedade e a leitura do referido<br />

gênero não pode ser realizada conforme os moldes tradicionais, já que<br />

se trata de um gênero essencialmente multimodal.<br />

Dessa forma, nesse artigo científico, que faz parte do projeto<br />

de pesquisa do projeto de Mestrado, pretendemos verificar como o<br />

infográfico está multimodalmente construído. Para isso, analisaremos<br />

um gráfico informativo publicado no Guia de Estudante de Atualidades<br />

1. Trabalho de conclusão da disciplina Sintaxe ministrada pela professora Maria Medianeira de Souza no primeiro<br />

semestre de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 293


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

no primeiro semestre de 2011. Como fundamentação teórica, baseamonos<br />

na Gramática do Design Visual que, através das metafunções<br />

representacionais, interativas e composicionais, fornecem os elementos<br />

teóricos necessários a fim de que possamos analisar o texto visual do<br />

infográfico e verificar como o gênero está semioticamente construído<br />

através da imbricação de diferentes modos de representação.<br />

A linguística sistêmico-funcional: breve panorama<br />

Influenciada pela obra de Michel Halliday (1925- ), a Linguística<br />

Sistêmico- Funcional (doravante LSF) rejeita o estruturalismo puro que<br />

era dominante no início do século XX como, por exemplo, o europeu,<br />

representado por Saussure, e o norte-americano que tem como um dos<br />

principais expoentes Leonard Bloomfield. De acordo com as abordagens<br />

sistêmico-funcionais, o uso é a marca fundamental para a descrição de<br />

uma língua. É importante salientar que a noção de sistema é diferente da<br />

adotada por Saussure no Curso de Linguística Geral a fim de descrever<br />

e revelar a estrutura linguística (cf. BENVENISTE, 1988).<br />

Na LSF, o vocábulo “funcional” refere-se ao papel que a língua<br />

desempenha em contextos determinados e o termo “sistêmico”<br />

concerne “à estrutura ou organização da língua de modo que possa<br />

ser usada para fazer determinadas coisas dentro daquele contexto”<br />

(BAWARSHI; REIFF, 2010, p. 01). Assim, podemos afirmar que o<br />

“sistêmico” está relacionado ao sistema de escolhas disponíveis aos<br />

falantes de uma língua para a realização do sentido (cf. BAWARSHI;<br />

REIFF, op. cit.). A ideia de escolha é muito importante para a teoria<br />

em estudo já que, conforme atesta Gouveia (2009), a língua, enquanto<br />

potencial de significado, organiza-se em torno de redes relativamente<br />

independente de escolhas.<br />

294 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

A LSF toma como ponto de partida a análise de textos os quais<br />

são considerados como produtos autênticos da interação social (cf.<br />

FURTADO DA CUNHA & SOUZA, 2007). Assim, tomando-se com<br />

ponto de partida o texto como um potencial de significados culturais, o<br />

qual é atualizado por meios linguísticos, podemos afirmar que ele pode<br />

ocorrer em dois contextos imediatos que são denominados por Halliday<br />

de contexto de cultura e contexto de situação.<br />

O contexto de cultura é tido como mais amplo e refere-se aos<br />

significados que são possíveis em uma cultura particular. Por sua vez,<br />

o contexto de situação deve ser compreendido como o contexto de<br />

produção imediato, é uma representação abstrata do entorno em termos<br />

de certas categorias gerais que têm importância para o texto. Sobre os<br />

aspectos mencionados, Guio e Fernández (2008, p. 37) resumem:<br />

O texto é, então, um processo contínuo: entre um texto e seu<br />

entorno há uma relação que muda constantemente, tanto<br />

paradigmática (a cultura e o sistema social que engrenam o<br />

texto) como a sintagmática (a interação social na qual se realiza:<br />

o contexto de situação).<br />

Relacionadas às noções de contexto de cultura e contexto<br />

de situação, estão os termos gênero e registro. Aquele está ligado<br />

ao contexto de cultura. Na realidade, Bawarshi e Reiff (2010)<br />

atestam que a obra de Halliday não se concentra especificamente na<br />

concepção de gêneros que são concebidos como um modo ou conduto<br />

de comunicação, um dos meios textuais disponíveis no registro que<br />

auxilia os participantes da comunicação a perceber o tipo de situação.<br />

O registro, em contrapartida, vinculado ao contexto de situação,<br />

está relacionado com a variação de acordo com o uso. Existem três<br />

dimensões do registro: campo, relação e modo.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 295


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

O campo é o primeiro parâmetro que se observa quando se quer<br />

ter um retrato exato do que está acontecendo, corresponde à natureza<br />

da prática social. A relação centra-se na interação entre os participantes,<br />

que pode se basear na formalidade e informalidade ou na natureza mais<br />

afetiva ou menos afetiva (cf. FURTADO DA CUNHA & SOUZA,<br />

2007). Por fim, o modo refere-se à maneira como a linguagem se<br />

organiza na interação social particular. Tem a ver, por exemplo, com o<br />

meio de comunicação (oral ou escrito) e com os canais de comunicação.<br />

As variáveis do campo, relação e modo correspondem, no nível<br />

linguístico, ao que Halliday denomina de metafunções da linguagem:<br />

ideacional, interpessoal e textual. A primeira, ligada ao campo, que se<br />

manifesta no processo de transitividade, corresponde à representação<br />

de nossa experiência de mundo, tanto exterior quanto no interior<br />

de nossa consciência. A segunda, relacionada à relação, possibilita<br />

a descrição da interação entre os participantes mediante o sistema<br />

de modo e modalidade. É com base nessa metafunção que o falante<br />

expressa seu ponto de vista, julgamento e atitudes. Preocupada com<br />

o uso da linguagem na organização do texto e vinculada ao modo, a<br />

última metafunção<br />

descreve o fluxo da informação dentro e entre textos, incluindo<br />

a forma como os textos se organizam, o que fica explícito e o<br />

que em suposto como conhecimento prévio, de que modo se<br />

relacionam o dado e o novo e como a coerência e a coesão são<br />

produzidos (BAWARSHI; REIFF, 2010, p. 03).<br />

A LSF trouxe importantes contribuições para muitas áreas de<br />

investigação como a Análise Crítica do Discurso (ACD) e os estudos<br />

da Multimodalidade, que é tema de nossa seção seguinte.<br />

296 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

A gramática visual: um olhar além do texto verbal<br />

Em gêneros textuais mistos, a imagem, assim como a linguagem<br />

verbal, representa um forte papel semântico. Nesses gêneros, os quais<br />

podemos citar como exemplo os infográficos, a imagem não funciona<br />

como complemento do modo verbal, mas integra-se a este formando<br />

um bloco único e significativo. (cf. DIONISIO, 2006).<br />

Dada a importância da linguagem visual como potencial<br />

de significado, Kress e van Leewen (2000) propõem uma “análise<br />

gramatical” das imagens conhecida como Gramática do Design Visual.<br />

Tendo a LSF como âncora teórica, a referida Gramática também tem<br />

uma organização metafuncional e constrói seu sentido pautando-se<br />

nas metafunções propostas por Halliday: ideacional/representacional,<br />

interpessoal/interativa e textual/composicional.<br />

A metafunção Representacional<br />

Na Gramática Visual, os participantes são conhecidos como<br />

interativos (aqueles que falam, escrevem, produzem, ou visualizam<br />

imagens) ou representados (pessoas, coisas ou lugares representados<br />

nas imagens). A função representacional é obtida nas imagens a<br />

partir desses últimos participantes. Essa função pode ser subdividida<br />

em estruturas narrativas, quando há a presença de vetores (guias que<br />

indicam a interação entre os participantes) indicando a ação ou evento<br />

realizado, e estruturas conceituais as quais apresentam uma taxonomia<br />

em que “os participantes representados são expostos como se estivessem<br />

subordinados a uma categoria superior. (...) Definem, analisam ou<br />

classificam pessoas, objetos ou lugares” (FERNANDES e ALMEIDA,<br />

2008, p. 13).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 297


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

As imagens também possuem uma estrutura sintática que<br />

depende da relação espacial entre os elementos representados. Nas<br />

representações narrativas, por exemplo, os participantes funcionam<br />

como os executores de eventos e as ações são desempenhadas por<br />

vetores. De acordo com o tipo de vetor e número de participantes, é<br />

possível identificar alguns processos narrativos, a saber: ação, reação,<br />

processo verbal e processo mental.<br />

No processo de ação, o participante ator é o participante no<br />

qual parte o vetor, geralmente é o mais saliente na imagem. Quando<br />

há apenas um participante, temos uma estrutura não transacional.<br />

Se houver dois ou mais participantes, há uma estrutura transacional<br />

cuja meta representa o participante a quem o vetor se dirige como, por<br />

exemplo, o leitor, no caso em que a imagem apresente um participante<br />

representando olhando para nós. Há também a estrutura bidirecional<br />

na qual os participantes intercambiam os papéis de ator e meta.<br />

A ação desempenhada no processo reacional tem como ponto<br />

de partida um olhar rumo a alguém ou algo. Os participantes são<br />

classificados como reator (aquele que olha) e fenômeno (objeto do olhar).<br />

As reações também podem ser transacionais (identifica-se o alvo do<br />

olhar) e não transacionais (não há identificação do alvo).<br />

Por último, temos os processos verbais e os mentais que podem<br />

ser encontrados em balões que denotam fatos e pensamentos. Os<br />

participantes são animados (dizente e experenciador – no caso dos<br />

processos mentais), o enunciado define-se pelo o que é falado e fenômeno<br />

o que é pensado.<br />

Nas representações conceituais, em contrapartida, a presença de<br />

vetores não é motivada e os participantes não executam ações. Ocorrem<br />

em processos classificacionais, analíticos ou simbólicos, como podemos<br />

observar na figura a seguir, que resume os principais tipos de estruturas<br />

representacionais visuais:<br />

298 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

Narrativa<br />

Estruturas<br />

representacionais<br />

Conceituais<br />

Classificatória<br />

Analítica<br />

Simbólica<br />

Figura 01 – Principais tipos de estruturas representacionais visuais<br />

Fonte: KRESS; VAN LEEUWEN, 1996.<br />

Os processos classificacionais relatam participantes que se<br />

apresentam em grupo, “definidos por características comuns a todos<br />

os sujeitos classificados, onde estão arranjados ou foram julgados<br />

como pertencentes ao mesmo grupo, à mesma classe” (FERNANDES<br />

e ALMEIDA, 2008, p. 16).<br />

No processo analítico, os participantes se relacionam pela<br />

estrutura de parte (atributos possessivos) e todo (portador) e no<br />

simbólico os participantes “são representados em termos do que<br />

significam ou são” (op. cit., p. 17). São divididos em atributivos,<br />

nesse caso o participante é destacado de alguma forma no interior da<br />

imagem, e sugestivo em que o participante portador é representado<br />

através de contornos.<br />

A metafunção interativa<br />

A relação postulada pelos participantes da função interativa<br />

caracteriza-se por aproximação ou distanciamento. Esse recurso é<br />

obtido através de quatro processos, a citar: contato, distância social,<br />

perspectiva e modalidade.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 299


Sinta e<br />

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f<br />

O contato “é determinado pelo vetor que se forma, ou não,<br />

entre as linhas do olho do participante representado e o leitor<br />

(participante interativo)” (FERNANDES e ALMEIDA, 2008, p. 19).<br />

Ao fixar os olhos no leitor, temos uma relação entre participantes<br />

substantivada por demanda que pode desvendar, entre outras<br />

possibilidades, afinidade social ou desejo. Quando o participante<br />

não olha diretamente para o observador temos uma oferta na qual<br />

se estabelece certo afastamento entre ambos.<br />

A distância social é designada pela proximidade ou distância<br />

do participante representado em relação ao leitor. Tomando<br />

emprestados vocábulos do cinema, a distância social pode ocorrer<br />

em plano fechado (inclui a cabeça e o ombro do participante),<br />

plano médio (participante representado até o joelho) e plano aberto<br />

(representação mais ampla e, por conseguinte, mais distante dos<br />

participantes).<br />

O processo de perspectiva demonstra o ângulo no qual os<br />

participantes são mostrados através de angulações frontais (relação<br />

simétrica entre participante e observador, demonstrando, dessa<br />

forma, certo envolvimento), oblíquas (participante de perfil) e<br />

vertical (captação da imagem de baixo para cima ou vice-versa).<br />

A última categoria refere-se à modalidade que visa à<br />

compreensão dos mecanismos que aproximam a imagem do real e<br />

natural (modo realis) ou do mundo imaginário (modo irrealis). Assim,<br />

podemos afirmar que a modalidade na imagem possui relação com o<br />

valor de verdade das coisas do mundo.<br />

A metafunção composicional<br />

A composição relaciona os significados representacionais<br />

e estruturais para que a imagem tenha sentido. Para Kress e van<br />

300 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

Leewen (1996), essa integração se dá através de três sistemas interrelacionados:<br />

valor de informação, saliência e estruturação.<br />

O valor de informação estabelece o posicionamento dos<br />

elementos no interior da composição visual. Aplicada a textos mistos<br />

e a imagens, a primeira noção importante do valor informativo é a<br />

ideia de dado/novo. A informação dada, situada no lado esquerdo da<br />

imagem, representa o consenso da informação que dispensa maiores<br />

esclarecimentos. Já a informação nova, localizada à direita, traz o<br />

“problemático”, “contestável”, “a informação em debate (cf. KRESS<br />

e VAN LEEWEN, 1996).<br />

Caso, em uma imagem, os modos de representação estejam<br />

situados na parte superior considera-se que o que se está sendo<br />

representado está na zona do ideal e os que estão presentes na seção<br />

inferior na zona do real que é, geralmente, a parte mais saliente.<br />

Uma última conceituação importante sobre esse primeiro<br />

sistema reside na estruturação da informação visual mediante o<br />

centro e as margens da imagem. O centro é tido como o núcleo da<br />

informação e nos elementos à sua volta, ligados ideologicamente a<br />

este, estão as margens. Vale frisar que dado-novo/real-irreal podem<br />

se combinar com o centro e margens conforme podemos perceber<br />

no diagrama abaixo extraído de Kress e van Leewen (1996, p. 208):<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 301


Sinta e<br />

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Figura 02 – Dimensões do espaço visual<br />

Fonte: KRESS; VAN LEEUWEN, 1996.<br />

O segundo sistema composicional é a saliência que corresponde<br />

à ênfase, em maior ou menor grau, que determinados elementos<br />

recebem em relação a outros. A escolha pela ênfase de determinado<br />

modo de representação não é desmotivado e representa grande<br />

peso na maneira como a imagem é compreendida pelo observador.<br />

A identificação da saliência dos elementos ocorre mediante a<br />

intensificação ou suavização de cores, contraste, brilho, superposição,<br />

entre outros recursos.<br />

A estruturação é o último sistema da função composicional<br />

e está relacionada à presença ou não de objetos interligados. Kress<br />

e van Leewenn (1996, p. 214) elucidam que “quanto mais os<br />

elementos da composição espacial estão conectados, mais eles são<br />

apresentados como uma única unidade de informação, como se fossem<br />

parte um dos outros”. Já a desconexão é marcada pela saliência de<br />

cores, imprimindo, dessa forma, um sentido de individualidade (cf.<br />

FERNANDES e ALMEIDA, 2008).<br />

Em suma, através da teoria aqui explicitada é possível realizar<br />

uma análise completa e complexa de diversos gêneros textuais.<br />

302 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

Em infográficos, por exemplo, a Gramática do Design Visual nos<br />

possibilita observar como os diferentes modos de representação estão<br />

semioticamente organizados e conectados com a linguagem verbal<br />

para a construção do sentido.<br />

Análise do corpus<br />

O infográfico, ou gráfico informativo, que faz parte do domínio<br />

discursivo jornalístico, será concebido neste artigo como um gênero<br />

textual que através da criação gráfica, utiliza recursos visuais<br />

(desenhos, fotografias, tabelas, etc.) conjugados a textos curtos a fim<br />

de apresentar informações jornalísticas de forma sucinta e atraente.<br />

Os infográficos são muito usuais em revistas de divulgação científica<br />

como Superinteressante, Galileu, Ciências Hoje, entre outras. Nesses<br />

periódicos, os infográficos sintetizam, complementam uma matéria<br />

ou também podem funcionar como a própria reportagem.<br />

Atualmente o infográfico aparece como uma das mais<br />

sofisticadas formas de explicar complexas histórias ou procedimentos,<br />

já que combina palavras com imagens, quando palavras apenas<br />

poderiam ser cansativas para os leitores e a imagem apenas não seria<br />

suficiente. (cf. DIONISIO, 2006.). Um dos motivos pelo qual o gráfico<br />

informativo consegue prender a atenção do leitor é pelo fato de que<br />

se trata de um gênero visualmente atrativo/informativo, mediante o<br />

equilíbrio dos elementos verbais e não verbais.<br />

Vale salientar que o infográfico modernamente também é<br />

usado em outros domínios como, por exemplo, o escolar em que o<br />

gênero vem encontrando um solo fértil. A título de ilustração, temos<br />

o Guia do Estudante no qual infográficos auxiliam o vestibulando na<br />

elucidação de temas relativos aos assuntos da atualidade.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 303


Sinta e<br />

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f<br />

Por questão de espaço, este artigo analisará apenas um<br />

infográfico de nosso corpus, com título de “Energia limpa, mas nem<br />

tanto” (figura 03), publicado no Guia do Estudante de Atualidades,<br />

da Editora Abril, no primeiro semestre de 2011.<br />

Figura 03 – Infográfico “Energia limpa, mas nem tanto”<br />

Fonte: Guia do Estudante de Atualidades, 2011.<br />

Publicado em página dupla no Guia de Estudante, na seção<br />

Economia e Infraestrutura, o gráfico informativo em estudo tem<br />

por finalidade apresentar como funciona uma usina hidrelétrica<br />

destacando-se os problemas socioambientais, frutos de sua construção.<br />

Para isso, o infografista utiliza como recursos multimodais a<br />

304 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

orquestração de diversas semioses, a saber: texto verbal, imagens e<br />

setas. É importante analisar a relação das imagens e palavras, como<br />

afirmam Kress e Van Leewen (apud FERNANDES e ALMEIDA,<br />

2008), porque<br />

01. os modos de representação verbal e visual não são e<br />

não desempenham os mesmos papéis, visto que uma<br />

mensagem sendo expressa na linguagem visual não<br />

comunica exatamente as mesmas coisas quando expressa<br />

pela linguagem verbal.<br />

02. verbal e visual não apenas coexistem, pois no meio<br />

impresso a função da linguagem visual mudou, passando<br />

de mero apoio comunicativo a veículo da informação<br />

mais importante.<br />

03. a forte interação entre o verbal e visual pode causar efeitos<br />

de sentido no sentido do modo escrito, ou seja, a relação<br />

entre ambas as linguagens. A maneira como coexistem<br />

pode causar afetar a forma e a leitura da mensagem<br />

veiculada.<br />

Sobre o terceiro ponto, podemos perceber que a linguagem<br />

verbal da figura 03, ainda que sua leitura deva ser realizada na forma<br />

prototípica da esquerda para direita, possibilita que o leitor elenque<br />

qual bloco textual deve ler primeiro. Dessa maneira, se o leitor<br />

optar ler primeiro o bloco textual “alterações no rio” e, em seguida,<br />

“árvores submersas”, não haverá problemas na compreensão global<br />

do infográfico. No entanto, essa “emancipação do leitor” não deve<br />

ser compreendida como regras na leitura do gênero já que existem<br />

gráficos informativos cuja leitura é sinalizada mediante números ou<br />

conectores visuais, setas e linhas.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 305


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

No texto visual, há a reprodução de uma usina hidrelétrica na<br />

qual se objetiva chegar ao mais próximo do real ou natural (modo<br />

realis). Já que não há a presença de participantes executando ações,<br />

como o ator, meta e beneficiário, e os participantes são concebidos<br />

através da relação parte e todo, podemos categorizar a imagem na<br />

representação conceitual analítica, tomando como base a metafunção<br />

representacional. Na linguagem visual, há uma relação entre todo<br />

definido (em nosso caso a própria usina hidrelétrica), como portador e<br />

as partes (lago artificial, reservatórios, animais marinhos, patrimônios<br />

perdidos etc.) que, inseridas dentro das figuras geométricas de<br />

círculos, pertencem ao domínio dos atributos possessivos. Cada atributo<br />

possessivo apresenta na sequência uma descrição linguística da<br />

representação imagética a fim de evidenciar o que está ocorrendo<br />

(cf. figura 04.). Por essa razão, de acordo com a Gramática Visual,<br />

o modo de representação não verbal do infográfico possui uma<br />

estrutura conceitual analítica estruturada. A fim de complementação,<br />

assinalamos que a maioria das cláusulas presentes no infográfico<br />

“Energia limpa, mas nem tanto” possui processos materiais em maior<br />

abundância. Tais processos objetivam representar as ações concretas<br />

resultantes da construção das usinas.<br />

306 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

Figura 04 – Relação entre portador, atributo possessivo e descrição linguística<br />

Fonte: Guia do Estudante de Atualidades, 2011.<br />

Com base na metafunção composicional, o valor informativo<br />

do infográfico está estruturado nas dimensões centro e margens<br />

e dado e novo. A representação da hidrelétrica está disposta no<br />

centro da imagem como o elemento mais saliente, que tem maior<br />

peso visual. Os demais elementos que se relacionam ao centro<br />

estão dispostos nas margens preenchendo todo o espaço da seção<br />

“Economia e Infraestrutura”. As imagens que estão mais nas margens<br />

estabelecem conexão com o centro através de linhas contínuas que<br />

têm a função semiótica de conduzir o olhar do observador rumo ao<br />

centro, todavia a compreensão da imagem só está completa com<br />

o texto verbal que precede a linguagem visual, conforme podemos<br />

verificar na figura 04.<br />

Outra observação importante acerca do gráfico informativo<br />

reside no fato de que o gênero está construído mais no lado dado<br />

que no novo. Vale lembrar que as informações dadas estão situadas<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 307


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

no lado esquerdo à imagem que, em nosso exemplo, contém os<br />

modos de representação que são consensuais ao observador, pois,<br />

geralmente, todos sabem que há, na construção de hidrelétricas,<br />

alterações no rio, mudanças climáticas e caminho sem volta. As<br />

informações novas estão situadas no lado direito, precisamente<br />

no fundo do rio, e parecem trazer as informações menos comuns,<br />

ou que os infografistas (criadores de infográficos) julgam ser mais<br />

necessárias para o conhecimento do leitor, a saber: afogamentos<br />

dos peixes, destruição de sítios arqueológicos, locais históricos e<br />

cachoeiras, desmatamento de árvores de lei e a liberação de gás<br />

metano que é um dos causadores do efeito estufa. Essa última, talvez,<br />

seja a informação nova mais importante. Para Kress e van Leewen<br />

(1996, p. 187), “em termos gerais, o sentido do Novo é, portanto,<br />

‘problemático’, ‘contestável’, ‘a informação em debate’; enquanto<br />

o Dado é apresentado como consenso, que dispensa explicações”.<br />

Em suma, após a análise do gráfico informativo, mediante a<br />

aplicação dos princípios da Gramática Visual, podemos verificar a<br />

importância de aplicar essa teoria a diversos gêneros visuais com<br />

a finalidade de compreender como as diversas semioses se interrelacionam.<br />

Também as imbricações dos vários modos tornam os<br />

gêneros visualmente atrativos facilitando, dessa maneira, por vezes,<br />

sua leitura.<br />

Considerações finais<br />

Cada vez mais presente no cotidiano, o gênero infográfico<br />

é um exemplo de texto especialmente construído que tem por<br />

uma de suas características resumir uma notícia, teoria, ou<br />

conteúdo programático, no caso dos manuais didáticos, mediante a<br />

orquestração de várias semioses. Para Minervini (2005), o infográfico<br />

308 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

é utilizado para representar uma informação complexa mediante<br />

uma representação gráfica que pode sintetizar, esclarecer ou tornar<br />

mais atrativa a leitura.<br />

Nosso trabalho pretendeu demonstrar que a multimodalidade<br />

mostra-se como uma importante ferramenta para análise de gêneros<br />

textuais, principalmente aqueles que em sua construção estão<br />

presentes diversos modos de representação, a citar: infográficos,<br />

charges, cartuns, entre outros. Como aparato teórico, baseamo-nos<br />

da Gramática do Design Visual, elaborada por Kress e Van Leewen<br />

(1996), que tem por finalidade promover uma análise sintática das<br />

imagens através das metafunções representacionais, interativas e<br />

composicional.<br />

Embora não fosse nosso foco, neste artigo científico, a análise<br />

dos elementos verbais é também bastante relevante a fim de que se<br />

possa ter uma ideia geral dos modos de representação que compõem<br />

o gênero analisado. Para isso, uma boa alternativa é analisar as<br />

cláusulas presentes no texto à luz do sistema de transitividade<br />

postulado pela Linguística Sistêmico-Funcional. Dessa forma, será<br />

possível verificar o fluxo de experiência em termos de um processo<br />

realizado gramaticalmente em uma cláusula e relacioná-la com as<br />

imagens (cf. GOUVEIA, 2009).<br />

Por fim, acreditamos que o estudo científico acerca de como<br />

se configura a visualidade em infográficos é bastante significativa,<br />

já que as imagens recriam o espaço onde acontece determinado<br />

fato e auxiliam o leitor no entendimento dos acontecimentos do<br />

mundo. Esperamos que este trabalho, ainda que introdutório, possa<br />

contribuir para o despertar na análise de gêneros visualmente<br />

informativos com base nos estudos da multimodalidade.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 309


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Referências<br />

BAWARSHI, Anis S.; REIFF, Mary Jo. Genre: an introduction to history, theory, research,<br />

and pedagogy. West Lafayette, Indiana: Parlor Press/ The Wac Clearinghouse, 2010.<br />

Tradução de Benedito Gomes Bezerra.<br />

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CULLER, Jonathan. As ideias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979<br />

CUNHA, Maria Angélica Furtado da; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus<br />

contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

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GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karim Siebeneicher (orgs). Gêneros textuais: reflexões e<br />

ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006 a. p. 131-144<br />

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gramática visual nos cartazes de guerra. In: ALMEIDA, Danielle Barbosa Lins de (Org.).<br />

Perspectivas em Análise Visual. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008. P. 11-31.<br />

GHIO, Elza; FERNÁNDEZ, María Delia. Lingüística Sistémico Funcional: aplicaciones a la<br />

Lengua Española. 1 ed. Santa Fe: Universidad Nacional del litoral, Waldhuter Editores,<br />

2008.<br />

GOUVEIA, Carlos. A.M. Texto e Gramática: uma introdução à Linguística Sistêmico-<br />

Funcional. In: Matraga. Rio de Janeiro, v. 16, n.24, jan./jun. 2009.<br />

KRESS, G.; VAN, LEEUWEN. The meaning of composition. In: ______. Reading images.<br />

London/ New York: Routledge, 1996. P. 181-229. Tradução: Leonardo Mozdzenski.<br />

MINERVINI, Mariana Andrea. La infografía como recurso didáctico. In: Revista Latina de<br />

Comunicación Social (8), junho, 2005.<br />

310 l Anais Eletrônicos - 2011


GRÁFICOS INFORMATIVOS SOB A PERSPECTIVA DA<br />

GRAMÁTICA VISUAL / Rosemberg Gomes NASCIMENTO (<strong>UFPE</strong>/CAPES)<br />

PEZATTI, Erotilde Goreti. O funcionalismo em Linguística. In: MUSSALIN, Fernanda;<br />

BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística 3: fundamentos epistemológicos.<br />

4 ed. São Paulo: Cortez, 2009. P. 165-215.<br />

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística. 6 ed. São Paulo: Parábola, 2008.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 311


Resumo<br />

Este trabalho objetiva analisar as circunstâncias nas postagens de blogs,<br />

a fim de verificar como contribuem para a construção da opinião nesse<br />

gênero. Fundamentam esta empreitada os pressupostos básicos da<br />

Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994), especificamente do<br />

Sistema de Transitividade, com concentração no papel das circunstâncias,<br />

além dos estudos sobre gêneros (MARCUSCHI, 2005; MILLER, 2009). O<br />

corpus foi composto por postagens coletadas entre o dia 1º de março e<br />

31 de maio de 2009, de blogs da Revista Época on-line. Os dados indicam<br />

que as circunstâncias desempenham papel importante na composição<br />

de significados argumentativos e na construção da opinião nos blogs.<br />

Palavras-chave: Transitividade. Blog. Circunstâncias.<br />

Abstract<br />

This work aims to analyze the circumstances in blog posts, in order to<br />

verify how they contribute to the construction of opinions of this genre.<br />

To support this research, we based our theory on the basic assumptions<br />

of Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY, 1994), specifically the<br />

transitivity system, with focus on the role of circumstances, besides the<br />

studies about genres (MARCUSCHI, 2005; MILLER, 2009).The corpus was<br />

composed of posts collected between March, 1st and May, 31st, 2009, of<br />

online blogs from Época magazine.The data indicate that circumstances<br />

play an important role in the composition of meanings and the<br />

construction of argumentative opinion in blogs.<br />

Keywords: transitivity; blog; circumstances.


Introdução<br />

O paradigma sistêmico-funcional<br />

da transitividade: por uma<br />

sintaxe das circunstâncias<br />

Wellington Vieira MENDES<br />

(UERN/GPEF)<br />

Este estudo tem por interesse compreender como a materialização<br />

da opinião ocorre no gênero blog, numa perspectiva teórica de estudo<br />

que ficou conhecida como Linguística Sistêmico-Funcional (LSF),<br />

a qual tem como referência principal o linguista Michael Halliday.<br />

Essa motivação pelo gênero em questão se associa ao desejo<br />

de entender as relações comunicativas estabelecidas na ambiência<br />

digital, notadamente no que diz respeito à construção do sentido, já<br />

que o modelo Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994) compreende<br />

a linguagem como um processo semiótico, no qual o significado é<br />

produzido através das escolhas linguísticas realizadas pelos sujeitos,<br />

num determinado contexto social e cultural de que fazem parte (cf.<br />

EGGINS, 2004).<br />

Como a maioria das pesquisas dirigidas ao blog se dedica a<br />

estudá-lo em seu conjunto estrutural, em suas diferentes funções<br />

sociais e comunicativas, em sua composição multimodal etc., e como<br />

o modelo Sistêmico-Funcional de Halliday tem servido aos mais<br />

diversos estudos que visam a compreender a língua em sua instância<br />

de funcionamento real, a presente pesquisa deve lançar mais um olhar<br />

sobre a construção de significados na internet.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 313


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Como já foi sugerido, o trabalho se apoia na ideia central de<br />

que as circunstâncias, do sistema de transitividade concebido pela<br />

Linguística Sistêmico-Funcional, podem contribuir significativamente<br />

para a construção da opinião no blog, não exercendo, portanto, papel<br />

assessório como preconiza o senso comum e as práticas tradicionais<br />

de ensino de língua.<br />

Neste estudo, portanto, o questionamento que se aponta<br />

como central é: Qual o papel das circunstâncias segundo o Sistema<br />

de Transitividade (ST) definido pela LSF na construção da opinião<br />

presente nos blogs?<br />

Assim, para atender a esta proposição, o objetivo principal deste<br />

estudo é verificar o funcionamento das circunstâncias do ST da LSF,<br />

em blogs, e sua contribuição para a construção da opinião nesse gênero.<br />

Logo, os dados que foram selecionados para este trabalho derivam<br />

do corpus coletado para a dissertação de mestrado “As circunstâncias<br />

e a construção de sentido no blog” (MENDES, 2010), constituído<br />

basicamente de quatro blogs da revista Época online, a saber: 1) Diário<br />

do Centro do Mundo; 2) Paulo Moreira Leite; 3) Blog do Nelito; e,<br />

4) Guilherme Fiuza.<br />

As circunstâncias nas postagens dos blogs foram analisadas a<br />

partir dos modelos propostos por Halliday e Matthiessen (2004),<br />

Eggins (2004) e Ghio e Fernández (2008). Para fins de categorização,<br />

concebeu-se como circunstâncias as formas expressas por sintagmas<br />

adverbiais, por sintagmas compostos por preposição + sintagma<br />

nominal (determinado ou não) e sintagma nominal + sufixo -mente,<br />

desde que modifiquem os processos a que se associam.<br />

Tendo em conta que este trabalho é constituído do trabalho<br />

de dissertação mencionado há pouco, foram eleitos os seguintes<br />

tipos de ocorrências para a análise: 1) circunstâncias de extensão; 2)<br />

circunstâncias de localização; e 3) circunstâncias de modo.<br />

314 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

Portanto, o leitor vai encontrar aqui o tratamento do tema o<br />

paradigma sistêmico-funcional da transitividade tratado em duas<br />

partes principais: na primeira estão apresentados os pressupostos<br />

teóricos que fundamentam o estudo; e, na segunda, uma análise dos<br />

três tipos de circunstâncias indicados.<br />

O paradigma sistêmico-funcional da transitividade<br />

A gramática tradicional compreende a transitividade como<br />

sendo uma propriedade exclusiva do verbo, estando associada a esse<br />

processo a noção de regência, e de valência. Em outras palavras,<br />

os verbos que regem sintagmas nominais são classificados como<br />

transitivos e, nos casos em contrário, são considerados intransitivos<br />

(quando a enunciação não vai além do verbo).<br />

Na concepção hallidayana, a linguagem é proposta como um<br />

sistema social ou cultural, o que implica, necessariamente, interpretála<br />

dentro de um contexto sociocultural em que tal processo se realiza.<br />

Dito de outro modo, a linguagem pode ser entendida como uma<br />

manifestação semiótica, já que no dizer de Halliday e Martin (1993)<br />

ela se constitui como uma forma de representação da experiência<br />

humana, quer seja na “realidade” presente/percebida no meio físico<br />

ou concreto, quer seja a “realidade” idealizada/fabricada em nosso<br />

interior, num plano mais abstrato.<br />

Os estudos funcionalistas, portanto, compreendem a<br />

transitividade como sendo um processo que engloba toda a oração,<br />

não se limitando apenas à ação perpetrada pelo sintagma verbal.<br />

Compreende ainda que tal processo possa ser escalar, de forma<br />

que uma oração venha a ser considerada mais ou menos transitiva,<br />

como se pode depreender da proposta da Linguística Funcional<br />

Norteamericana (HOPPER e THOMPSON, 1980).<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 315


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Na perspectiva da LSF, a transitividade é concebida como uma<br />

base de organização semântica, em que a classificação não se limita à<br />

oposição já apresentada e conhecida da gramática tradicional entre<br />

verbos transitivos e intransitivos.<br />

Nessa concepção, as orações são classificadas em tipos que<br />

denotam diferentes transitividades, a partir da identificação de<br />

três papéis de transitividade, a saber: i) processos; ii) participantes;<br />

iii) circunstâncias (BUTT et al., 2001). Se se desejasse fazer uma<br />

analogia mais próxima da Gramática Tradicional, poder-se-ia dizer<br />

que esses papéis correspondem aos verbos, substantivos e advérbios,<br />

respectivamente. A partir de então, segue-se uma breve explanação<br />

acerca de cada um deles.<br />

Os processos são classificados, nessa noção de transitividade, em<br />

seis tipos (materiais, mentais, relacionais, verbais, comportamentais e<br />

existenciais) e, de modo geral, configuram ações, estabelecem relações,<br />

expressam sentimentos, denotam o dizer e o ser, tendo em vista sua<br />

materialização através dos verbos. No entender de Furtado da Cunha<br />

& Souza (2007, p. 56):<br />

O mundo das experiências é altamente indeterminado e essa<br />

indeterminação reflete-se no modo como a gramática constrói<br />

seu sistema de tipos de processos. Assim, em um mesmo texto<br />

podemos ver experiências construídas no domínio da emoção<br />

com um processo mental (...); ou no domínio da classificação<br />

(...).<br />

A análise do entendimento das autoras citadas permite<br />

vislumbrar a concepção defendida por Halliday e Matthiessen<br />

(2004) de que há um continuum entre os processos, que, por sua vez,<br />

fundamenta-se no princípio da indeterminação semântica, no qual os<br />

316 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

processos são tidos como indistintos. Essa observação se faz importante<br />

porque, deste ponto em diante, será apresentada a classificação dos<br />

processos, a partir das concepções dos autores mencionados há pouco:<br />

• materiais – processos responsáveis pela expressão de<br />

ações de mudanças perceptíveis (processos do fazer).<br />

• mentais – processos ligados às crenças, aos valores<br />

humanos, ao modo de perceber o mundo (processos<br />

do sentir).<br />

• relacionais – processos que estabelecem relações entre<br />

entidades, seja identificando, seja classificando.<br />

• verbais – processos que expressam o dizer e situam-se<br />

entre os relacionais e mentais.<br />

• existenciais – processos que representam a existência<br />

de algo e se exprimem frequentemente através dos<br />

verbos haver e existir.<br />

• comportamentais – processos responsáveis pela expressão<br />

dos comportamentos humanos (caracteres<br />

físicos e psíquicos).<br />

É importante ainda registrar que os três primeiros processos são<br />

tidos como principais, e os últimos como secundários, no entender<br />

de Halliday e Matthiessen (2004). E, embora tais processos tenham<br />

sido apresentados sem os participantes, não se pretende de modo<br />

algum oferecer ao leitor uma visão cartesiana da transitividade na<br />

perspectiva funcionalista. Assim, por uma questão de apresentação,<br />

os participantes passam a ser conceituados a partir de agora.<br />

Em breves linhas, pode se dizer que participantes são os elementos<br />

que se realizam através dos sintagmas nominais, podendo associar-se<br />

aos processos de forma obrigatória ou não. Os processos materiais são o<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 317


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

que comportam um maior número de participantes: ator (obrigatório);<br />

meta, extensão e beneficiário (opcionais).<br />

Para sintetizar, a Tabela 1 apresenta os participantes associados<br />

a cada tipo de processo, como também o fazem Furtado da Cunha e<br />

Souza (2007):<br />

Material<br />

Processo<br />

Ator<br />

Obrigatórios<br />

Participantes<br />

Opcionais<br />

Meta. Extensão e<br />

Beneficiário<br />

Mental Experienciador e Fenônemos -<br />

Relacional<br />

Portador e Atributivo /<br />

Característica e Valor<br />

-<br />

Verbal Dizente e Verbiagem Receptor<br />

Existencial Existente -<br />

Comportamental Comportante Behaviour<br />

Quadro 1 – Processos e participantes<br />

Fonte: adaptado de Furtado da Cunha e Souza (2007, p. 60)<br />

O último componente do sistema de transitividade são as<br />

circunstâncias. Esse componente remete às condições de realização<br />

dos processos, podendo ocorrer livremente em todos eles. Geralmente<br />

expressam extensão temporal, localização espacial ou temporal, modo,<br />

entre outros. Na Gramática Tradicional, correspondem aos advérbios<br />

ou locuções adverbiais.<br />

Esse papel do ST que está mais bem tratado na sequência, tendo<br />

em vista que se constitui objeto principal de análise deste trabalho.<br />

Considerando o recorte metodológico feito aqui, são apresentadas as<br />

circunstâncias de extensão, localização e modo.<br />

318 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

A circunstâncias do ST: extensão, localização e modo<br />

As circunstâncias, de acordo com Ghio e Fernández (2008,<br />

p. 101), é o papel menos obrigatório nas construções de processos<br />

materiais. Na verdade, quando tratam desse elemento, as autoras o<br />

fazem como se este fosse um apenas um participante restrito a esse<br />

tipo de processo.<br />

Butt et al. (2001, p. 64), por outro lado, compreende as<br />

circunstâncias como sendo responsáveis por “iluminar” os processos<br />

de alguma forma, podendo, entre outras coisas, localizar o processo<br />

no tempo ou no espaço, sugerir o modo como o processo se realiza,<br />

ou oferecer informações sobre a causa do processo. De acordo com<br />

os autores, esse papel do Sistema de Transitividade se realiza através<br />

de grupos adverbiais, grupos nominais e frases preposicionais.<br />

O primeiro grupo, a exemplo dos demais, pode se realizar<br />

por uma ou mais palavras. O grupo adverbial é mais facilmente<br />

identificado pelo fato de configurar, de circunstanciar de modo mais<br />

explícito a realização da ação:<br />

[01] Ele entende as coisas rapidamente.<br />

[02] Chegaram tarde.<br />

As frases preposicionais, por sua vez, estruturam-se da seguinte<br />

forma: preposição + grupo nominal, como em [29], ou podem ainda<br />

modificar não apenas a circunstância da ação, mas toda a sentença,<br />

como em [30]:<br />

[03] Ele reside na cidade de Nova York.<br />

[04] Em breves palavras, o presidente resumiu seu sentimento.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 319


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

No grupo nominal podem ocorrer advérbios, mas também<br />

com outras expressões que compõem a estrutura da circunstância. A<br />

exemplo dos dois tipos anteriores, também modifica a circunstância<br />

da ação, geralmente exprimindo tempo:<br />

[05] Viaja toda semana.<br />

Para exemplificar os tipos de circunstâncias que serão tratados<br />

neste trabalho, são transcritas, de Eggins (2004, p. 223), algumas<br />

ocorrências de circunstâncias, com suas respectivas classificações:<br />

a) Extensão: quanto tempo? (duração); até que ponto?<br />

(distância)<br />

[06]<br />

Eu doei sangue por 36 vezes.<br />

Ator<br />

[07]<br />

Processo<br />

material<br />

Meta<br />

Circunstância<br />

Eu andei a noite toda.<br />

Ator Processo material Circunstância<br />

As circunstâncias de extensão são responsáveis por delimitar,<br />

de certo modo, duração (quando se trata do constructo tempo) e<br />

distância (quando exprime espaço físico). Note-se que no primeiro<br />

320 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

exemplo de Eggins (2004), a circunstância “por 36 vezes”, materializada<br />

por preposição + grupo nominal, não deixa explícita a delimitação<br />

temporal, mas sugere, por esforço de conhecimento partilhado com<br />

o interlocutor, que se trata de uma ação continuamente repetida<br />

e com certa duração temporal. O mesmo acontece com o segundo<br />

exemplo: embora o processo material “andar” possa sugerir a priori<br />

um deslocamento físico e, consequentemente, uma circunstância de<br />

extensão espacial, o ator se mostra envolvido pela duração temporal,<br />

tendo em vista que “a noite toda” deve com frequência indicar tempo.<br />

Por estes exemplos e, sem ter a pretensa intenção de antecipar<br />

resultados ou análises, é possível acreditar que as circunstâncias podem,<br />

além dos valores semânticos que lhes são próprios, desempenhar<br />

também papel argumentativo na cadeia discursiva.<br />

b) Localização: quando? (temporal); onde? (espacial)<br />

[08]<br />

Eles me convidaram sábado à noite.<br />

Ator<br />

[09]<br />

Beneficiário<br />

Processo<br />

verbal<br />

Circunstância<br />

Eu entreguei -a na clínica.<br />

Ator<br />

Processo<br />

material<br />

Meta<br />

Circunstância<br />

As circunstâncias de localização, como o próprio termo já<br />

indica, expressam ou situam, no tempo e no espaço, a realização<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 321


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

dos processos. O exemplo anterior indica “o quando” o processo<br />

“convidar” se desenvolveu. Em lugar de “sábado à noite”, que indica<br />

localização temporal, poder-se-ia ter “ainda na festa”, que indicaria<br />

localização espacial, como se pode ver no segundo exemplo, em que<br />

circunstância “na clínica” situa o interlocutor a respeito “de onde”<br />

se processa a ação de “entregar”. Mais do que simplesmente situar o<br />

interlocutor no tempo e no espaço, as circunstâncias de localização<br />

atualizam o processo à medida que criam o referente/significado<br />

espacial ou temporal.<br />

Do ponto de vista da forma, é frequente que se apresentem em<br />

grupos nominais preposicionados e/ou determinados, como em “na<br />

clínica” (em + determinante + nome).<br />

c) Modo: como? Com o quê? (recursos); como? De que<br />

forma (qualidade)<br />

[10]<br />

Então, eles fizeram a transfusão<br />

Ator<br />

Processo<br />

material<br />

Meta<br />

através da artéria<br />

umbilical.<br />

Circunstância<br />

322 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

[11]<br />

Na<br />

Suíça,<br />

diferentemente<br />

da Grécia,<br />

as<br />

pessoas<br />

lhe servem conhaque.<br />

Circunstância<br />

Circunstância<br />

Ator<br />

Beneficiário<br />

Processo<br />

Material<br />

Meta<br />

As circunstâncias de modo, com frequência, apresentam-se<br />

formadas pelo acréscimo do sufixo –mente em determinados nomes.<br />

Como já foi proposto anteriormente, tanto no item que tratou do<br />

Sistema de Modo, quanto no início deste, os sintagmas adverbiais com<br />

essa configuração podem não circunstanciar o conteúdo semântico<br />

do processo, mas, simplesmente exprimir valor ou avaliação por parte<br />

do agente envolvido na enunciação.<br />

Os exemplos propostos por Eggins (2004) são mais elucidativos:<br />

no primeiro caso, a circunstância “através da artéria umbilical” indica<br />

de que forma o processo material “fazer” se realizou; no segundo,<br />

“diferentemente da Grécia” não implica avaliação, e sim certo tipo<br />

de comparação qualitativa, que se estabelece entre Suíça e Grécia,<br />

através do processo “servir”.<br />

Apenas para reforçar, os sintagmas adverbiais que modificam<br />

toda a oração estão para modais, assim como os que ampliam os<br />

processos estão para circunstâncias.<br />

Na próxima seção, o leitor vai encontrar a análise, desses três<br />

tipos de circunstâncias apresentados até aqui, nos dados coletados<br />

nos blogs da revista Época online.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 323


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Por uma sintaxe das circunstâncias<br />

Para atender ao propósito de verificar o funcionamento das<br />

circunstâncias do ST da LSF, em blogs, e sua contribuição para a<br />

construção da opinião nesse gênero, esta seção apresenta uma análise<br />

das circunstâncias de extensão, localização e modo, respectivamente.<br />

É importante acrescentar que a análise sendo funcionalistas procurou<br />

verificar não apenas a realização lexicogramatical do item em estudo,<br />

mas também os demais componentes do ST que a ele se associam<br />

(participantes e processos).<br />

As circunstâncias de extensão<br />

As circunstâncias de extensão delimitam a duração temporal<br />

e a distância espacial. Esse tipo de acompanhamento dos processos é<br />

frequentemente materializado por preposição + grupo nominal. Neste<br />

trabalho, foram selecionadas as circunstâncias de extensão formadas<br />

por verbo haver + numeral, preposição desde + advérbio/numeral,<br />

preposição + numeral.<br />

Logo, pode-se dizer que as circunstâncias de distância espacial ou<br />

duração temporal estão mais frequentemente associadas nos dados do<br />

corpus a processos de deslocamento físico, como: chegar, chefiar, viver,<br />

estudar etc., sendo possíveis as seguintes circunstâncias: “durante cinco<br />

meses”, “toda a América Latina”; ou mesmo um deslocamento abstrato,<br />

virtual: “Percorri toda a blogosfera” (MENDES, 2008). Neste último<br />

caso, o emprego do processo material indica que o interlocutor visitou,<br />

ou fez leitura de diversos blogs, não necessariamente tendo empreendido<br />

um movimento de extensão espacial. O uso da circunstância “toda a<br />

blogosfera” tenta apenas indicar ou atribuir um caráter hiperbólico ao<br />

processo, ao mesmo tempo em que expressa a dimensão do esforço de ler<br />

324 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

toda a “blogosfera” (entenda-se o conjunto formado por todos os blogs<br />

disponíveis na internet), uma missão humanamente impossível hoje.<br />

Por estes exemplos, é possível acreditar que as circunstâncias<br />

podem, além dos valores semânticos que lhes são próprios,<br />

desempenhar também papel argumentativo na cadeia discursiva.<br />

Os dados sugerem que o maior número de ocorrências de<br />

circunstâncias estão associadas aos processos materiais. Os processos<br />

materiais são aqueles tidos como sendo os “processos do fazer”, cuja<br />

principal expressão está relacionada às ações de mudanças que podem<br />

ser percebidas no plano concreto, ou podem expressar também<br />

fenômenos abstratos.<br />

Assim, a ocorrência superior dos processos materiais reforça essa<br />

expressão de ações e mudanças concretas, visto que as circunstâncias<br />

que a eles se associam como forma, inclusive, de situar no espaço e<br />

tempo o desenvolvimento de tais processos. No entendimento de Ghio<br />

e Fernández (2008), as circunstâncias são classificadas como sendo<br />

um dos participantes menos obrigatório nos processos materiais,<br />

apenas neles.<br />

Nos exemplos que se apresentam a seguir, é possível analisar<br />

melhor o comportamento das circunstâncias nesse tipo de processo.<br />

Para favorecer a identificação dos papéis do Sistema de Transitividade,<br />

as circunstâncias de extensão destacam-se em negrito, e os processos,<br />

sublinhados:<br />

[12] Mergulhei no caso, e senti uma imediata antipatia<br />

pelo policial português Gonçalo Amaral, que chefiou as<br />

investigações durante cinco meses e depois foi afastado.<br />

(B1L224-225)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 325


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

[13] Jornalista formada pela Universidade de Brasília, Juliana<br />

Poletti sempre dividiu sua atenção entre reportagens sérias,<br />

de temas políticos e questões internacionais, e a música de<br />

qualidade. Estudou piano por três anos. (B2L670-672)<br />

[14] Como vocês se lembram, espalhou-se na semana passada<br />

pelo mundo um sentimento de perplexidade raivosa depois que<br />

foi publicado um documento de 2.600 páginas que descrevia<br />

violências “endêmicas” em crianças submetidas à guarda da<br />

Igreja Católica na Irlanda entre 1930 e 1990. (B1L331-335)<br />

Todas as ocorrências de circunstâncias de [12] a [14],<br />

estabelecem temporalmente o desenrolar das ações expressas,<br />

respectivamente, pelos processos materiais “chefiar”, “estudar” e<br />

“espalhar”, corroborando igualmente para a construção do sentido<br />

nas sentenças. Nos dois primeiros casos, os processos indicam<br />

mudanças físicas perceptíveis, ações no mundo concreto. Em [14],<br />

porém, o processo estabelece um fenômeno abstrato: espalhar<br />

sentimento de perplexidade raivosa, por exemplo, é algo que<br />

somente pode ser compreendido num plano de representação menos<br />

concreto.<br />

A esses processos se associam as circunstâncias de extensão<br />

temporal. No exemplo de [12], o participante ator “Gonçalo<br />

Amaral”, retomado pelo relativo “que”, conduz investigações numa<br />

determinada extensão temporal que é claramente expressa “durante<br />

cinco meses”. O autor da postagem, ao demonstrar explicitamente<br />

seu descontentamento com o policial (que tratou no início das<br />

investigações, do desaparecimento da criança Madeleine, na noite<br />

de 3 de maio de 2007), tenta, ao logo do texto, desqualificar o<br />

trabalho empreendido pelo investigador e se vale da circunstância de<br />

extensão temporal possivelmente para sugerir morosidade e lentidão<br />

326 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

nas investigações. O emprego desse tipo de circunstância em [12],<br />

mais do que explicitar uma relação de duração temporal, sugere a<br />

necessidade de endossar a opinião (Amaral é um tipo truculento, tem<br />

ares de dono da verdade, fala muito, um fanfarrão - mas não resolveu<br />

nada no caso de Madeleine. – B1L226-228) num dado que tem relevo:<br />

a atuação nas investigações durante cinco meses.<br />

Fenômeno semelhante ocorre em [13]. Para atribuir ao<br />

enunciado o fato de que a jornalista Juliana Poletti tem conhecimento<br />

musical um caráter persuasivo, o autor da postagem se vale do período<br />

de tempo a que a profissional se dedicou ao estudo do piano (três<br />

anos). Note-se, assim, que o uso da circunstância reforça a ideia por ele<br />

defendida no enunciado anterior, contribuindo para o entendimento<br />

de que esse papel do Sistema de Transitividade tem função importante<br />

na construção da opinião.<br />

Já as circunstâncias presentes em [14] estão associadas a um<br />

processo material que denota não uma experiência perceptível no<br />

mundo, mas que pode ser entendida em um plano mais abstrato. O<br />

blogueiro faz uso de uma circunstância de localização temporal (o<br />

próximo item desta seção versa sobre circunstância de localização),<br />

seguida de duas de extensão: uma espacial e outra temporal. “Pelo<br />

mundo” engrandece, num movimento hiperbólico, o “sentimento de<br />

perplexidade raivosa” que o autor demonstra pelo comportamento<br />

da Igreja Católica na Irlanda. Quando se empregou a circunstância<br />

“pelo mundo”, o autor possivelmente pretendia sugerir/estabelecer o<br />

repúdio que todo o mundo deve sentir pelo comportamento violento<br />

da Igreja, no período de 60 anos (expresso pela circunstância entre<br />

1930 e 1960), visto não haver garantia de que o documento de<br />

2.600 páginas (ou mesmo a notícia sobre ele) tenha chegado ao<br />

conhecimento das pessoas em todos os lugares do mundo. Logo, ao<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 327


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

apresentar as circunstâncias antepostas ao participante meta “um<br />

sentimento de perplexidade raivosa”, o blogueiro pretendia chamar a<br />

atenção do leitor (alcance do problema) para o assunto apresentado.<br />

As circunstâncias de localização<br />

As circunstâncias de localização expressam ou situam, no tempo<br />

e no espaço, a realização dos processos. Do ponto de vista da forma,<br />

é frequente que se apresentem em grupos nominais preposicionados<br />

e/ou determinados, como em “na Inglaterra” (em + determinante<br />

+ nome), mas também com expressões adverbiais de tempo como<br />

“semana passada”, “hoje”, ou de lugar como “aqui”.<br />

Assim, é possível afirmar dizer que as circunstâncias de<br />

localização espacial e temporal estão mais frequentemente associadas<br />

nos dados do corpus aos processos de fazer, do dizer e do ser, ou seja,<br />

processos materiais, verbais e relacionais.<br />

Tendo em vista que as circunstâncias de localização representam<br />

a maior parte das ocorrências do corpus, para efeitos de análise,<br />

apresentam-se organizadas nesta seção pela função a que se prestam<br />

na composição textual dos blogs. Assim, compreendendo que este tipo<br />

de circunstância tem valores variados no texto analisado, a seguir são<br />

dispostas aquelas que localizam elementos dentro do próprio blog:<br />

a) Localização: situando a configuração do texto<br />

O blog é um gênero que, a exemplo de boa parte daqueles<br />

dispostos na mídia eletrônica, dispõe de recursos que permitem a<br />

linkagem com outros textos ou objetos eletrônicos (vídeos, imagens,<br />

músicas, animações etc.). Em todos os blogs selecionados para esta<br />

328 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

pesquisa há a presença, mais frequentemente em uns do que em<br />

outros, de elementos como esses, especialmente imagens.<br />

Essa configuração funcional foi exposta no capítulo segundo<br />

deste trabalho, como forma de o leitor melhor compreender como se<br />

procedeu a coleta, mas, principalmente para que pudesse visualizar<br />

também como a produção textual se processa neste espaço virtual.<br />

Logo, é comum que os blogueiros sintam a necessidade de fazer<br />

apontamentos capazes de situar em que “posição” se encontra<br />

determinado elemento que é também parte da composição textual.<br />

As circunstâncias de localização que seguem representam bem<br />

essa referência que os autores das postagens se veem compelidos a<br />

efetuar, durante a escritura/apresentação do texto:<br />

[15] Depois do espetáculo, ainda no teatro, ela teria dito:<br />

“Odeio o programa”. Susan, apelidada de Subo pelos<br />

admiradores, teria atirado um copo de água numa pessoa<br />

que tentava acalmá-la. Na foto acima, Susan está deixando<br />

o teatro depois da derrota e carrega, claramente abalada, o<br />

que alguém definiu como um “buquê de sonhos perdidos”.<br />

(B1L11-15)<br />

[16] Ficou em segundo lugar. Quem levou foi um bom grupo<br />

de dança chamado Diversity. O vídeo está abaixo.<br />

O que me agradou extremamente foi a atitude de Susan ao<br />

perder. Ela reagiu com elegância, como se pode ver na foto<br />

acima. (B1L126-129)<br />

[17] Laura, no filme clássico de Otto Preminger que citei no<br />

início, tinha sido dada como morta, mas estava viva. (B1L263-<br />

264)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 329


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

[18] Veja aqui um vídeo em que uma mulher relata a (má)<br />

expêriencia que viveu, durante a infância e a adolescência,<br />

num abrigo da Igreja. (B1L374-375)<br />

[19] Agora há também um rapaz: Gino Flaminio, 22 anos, exnamorado<br />

de Noemi. Os dois aparecem juntos na foto acima.<br />

(B1L401-402)<br />

Em [15] (a circunstância “no teatro” será analisada no correr<br />

desta seção), “na foto acima” se associa ao processo relacional “estar”,<br />

como também ocorre no primeiro caso em [16] e [19]. Nesses dois<br />

exemplos, as circunstâncias não têm a função precípua de relacionar<br />

(valor ou característica) ao participante, mas sim de localizar em<br />

que parte do texto se encontra determinado elemento, determinada<br />

parte que ilustra o que está sendo dito pelo autor do blog. “Acima”,<br />

“abaixo” fazem referência as imagens de que se vale o blogueiro para<br />

atribuir ao que está sendo apresentado o caráter de exatidão, tendo<br />

como prova plena as fotos que o blogueiro incita o leitor para ver.<br />

O processo do dizer “citar”, em [17], complementa-se pela<br />

circunstância que faz remissão ao início do texto, num caso típico de<br />

retomada do referente para manutenção da coesão textual. Nesse caso,<br />

a localização é feita como nos exemplos anteriores, diferenciandose<br />

pelo fato de, nas ocorrências anteriores, haver referência a um<br />

elemento visual do texto.<br />

As circunstâncias de localização espacial “aqui”, em [18], têm<br />

uma configuração muito peculiar: na verdade, este sintagma adverbial<br />

propõe a linkagem para o vídeo que em que figura o relato da mulher<br />

que teve experiência (má), em abrigo da Igreja (razão também de estar<br />

sublinhado, configuração própria dos links na internet). Diferentemente<br />

do que se pode ver das ocorrências analisadas até então, o “aqui”<br />

330 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

associado ao processo material “ver” propõe ao leitor não a imediata<br />

localização de um elemento próprio do texto, mas a “navegação”, um<br />

direcionamento para além do texto que estava ali disposto.<br />

b) Localização: situando no tempo<br />

As circunstâncias de localização temporal no corpus são<br />

frequentemente realizadas por sintagmas adverbais que denotam a<br />

realização do tempo, ou por preposição + sintagma adverbial/nominal.<br />

Como já foi dito, esse tipo de circunstância fixa o momento em que<br />

os processos se realizam.<br />

As ocorrências a seguir expressam bem esse comportamento<br />

das circunstâncias:<br />

[20] Susan Boyle parece não ter agüentado a enorme pressão<br />

a que foi submetida nos últimos dias. Segundo o site do jornal<br />

Sun, ela foi internada na noite de sábado na prestigiosa<br />

clínica privada Priory, no norte de Londres, especializada em<br />

problemas mentais. (B1L4-7)<br />

[21] Susan Boyle - que se especula que possa ganhar 8 milhões<br />

de libras graças à celebridade mundial que conquistou depois<br />

de ter cantado no programa “I Dreamed a Dream”, em 11 de<br />

abril - tem uma história médica de dificuldade de aprendizado<br />

em decorrência de falta de oxigênio no momento em que<br />

nasceu. A deficiência, divulgada logo que Susan apareceu<br />

no BGT, foi vital na construção da imagem de heroína<br />

improvável. (B1L17-22)<br />

[22] Não tinha lido praticamente nada sobre o desaparecimento<br />

de Madeleine na noite de 3 de maio de 2007. Ela estava prestes<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 331


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

a fazer quatro anos, e seus pais Kate e Gerry, britânicos, tinham<br />

alugado um apartamento na Praia da Luz, no litoral português,<br />

para passar férias. O casal, Madeleine e seus dois irmãos<br />

gêmeos. Naquela noite, Gerry e Kate deixaram os filhos no<br />

apartamento e foram jantar com uns amigos num restaurante<br />

bem perto. Por volta das dez da noite, Kate foi ver se as<br />

crianças estavam bem. Madeleine não estava lá. (B1L212-219)<br />

Tanto em [20] quanto em [21] as ocorrências se prestam ao<br />

papel prototípico de situar, no tempo, a ocorrência dos processos<br />

“internar” e “cantar”. O mesmo pode ser verificado na primeira<br />

ocorrência de [22], em que “Naquela noite”, ao mesmo tempo em<br />

que situa o processo material “deixar”, retoma a data apresentada<br />

na primeira ocasião. E, a última ocorrência em [22], “por volta das<br />

dez da noite” sequencia a última parte da narrativa que dá conta do<br />

desaparecimento da menina Madeleine. O exemplo das ocorrências<br />

de [22] representam em boa parte a função/o valor das circunstâncias<br />

de localização temporal: não apenas situar o leitor acerca do tempo<br />

em que ocorreu determinado fato, mas sequenciar fatos que possam<br />

conduzir a uma conclusão presumida pelo escrevente narrador/<br />

comentador. Talvez por esta razão, os processos materiais são, em<br />

grande maioria, associados às circunstâncias de localização.<br />

c) Localização: situando no espaço<br />

A exemplo das circunstâncias de localização temporal, as de<br />

localização espacial são também realizadas por sintagmas adverbais<br />

que expressam a determinação do espaço, ou por preposição +<br />

sintagma adverbial/nominal. Em determinados casos, essa estrutura<br />

conta também com outros determinantes, ou qualificadores, como,<br />

332 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

por exemplo, “[...] ela foi internada na noite de sábado na prestigiosa<br />

clínica privada Priory, no norte de Londres, especializada em problemas<br />

mentais.” (B1L4-7). Nesse caso, pode-se dizer que “prestigiosa”,<br />

que implica apreciação/opinião do blogueiro também constitui a<br />

circunstância que determina o lugar em que Susan (retomado pelo<br />

pronome “ela”) teria ficado internada, tendo que o blog é um gênero<br />

de opinião.<br />

Esse exemplo representa bem a configuração morfológica<br />

com que se apresentam algumas das ocorrências de circunstância<br />

de localização espacial, diga-se mais frequentes na pesquisa que as<br />

de localização temporal. Essa mesma razão leva a crer que o fato de<br />

Ghio e Fernández (2008) considerarem as circunstâncias como um<br />

dos componentes apenas dos processos materiais, em espanhol, devase<br />

talvez a ocorrência mais representativa com que as circunstâncias<br />

possam se associar a esse tipo de processo.<br />

As ocorrências que seguem ilustram bem a forma como o<br />

espaço é determinado pelos blogueiros e sugerem, por consequência,<br />

as motivações de suas escolhas:<br />

[23] Passear pelas ruas de Londres no segundo andar dos ônibus<br />

vermelhos é tão gostoso quanto encontrar inesperadamente<br />

um amigo querido. (B1L42-44)<br />

[24] Um punhado de pessoas se instala na grama perto do<br />

grupo. Por segundos tenho a tentação de me juntar à banda.<br />

(B1L69-70)<br />

[25] No ônibus, leio a New Statesman ao mesmo tempo<br />

em que admiro a beleza arquitetônica de Londres. George<br />

Orwell na capa. (B1L75-76)<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 333


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

[26] Pela manhã, antes de sair, eu tinha já escrito algumas<br />

coisas sobre Orwell no meu twitter. (B1L79-80)<br />

[27] Depois do espetáculo, ainda no teatro, ela teria dito:<br />

“Odeio o programa”. Susan, apelidada de Subo pelos<br />

admiradores, teria atirado um copo de água numa pessoa que<br />

tentava acalmá-la. Na foto acima, Susan está deixando o teatro<br />

depois da derrota e carrega, claramente abalada, o que alguém<br />

definiu como um “buquê de sonhos perdidos”. (B1L11-15)<br />

Nas ocorrências de [23] a [27] é possível verificar a<br />

materialização das circunstâncias de localização espacial da forma<br />

mais típica: preposição + determinante + nome. Com exceção de<br />

[27], as demais circunstâncias ocorrem em processos materiais e<br />

podem confirmar a ideia anterior, de que tais tipos circunstanciais<br />

são mais presentes nas ações que podem ser percebidas no plano<br />

concreto, apoiando a premissa da necessidade de situar o processo<br />

ou de determinar a posição física onde se efetiva. O leitor já deve ter<br />

notado, tanto pela referência quanto pelo conteúdo temático, que as<br />

ocorrências apresentadas anteriormente são de uma mesma postagem<br />

do blog 1, sugerindo, dessa forma, a frequência com que ocorrem as<br />

localizações espaciais nos textos do blog, sobretudo naqueles que se<br />

propõem a sequenciar fatos, exprimir apreciação.<br />

Na segunda postagem do corpus, Paulo Nogueira (autor do<br />

blog Diário do Centro do Mundo) apresenta “Os seis conselhos de<br />

Orwell sobre a arte de escrever” (cf. MENDES, 2010, corpus, p.<br />

1-3). Neste texto, antes de apresentar propriamente os “conselhos<br />

de Orwell”, o autor narra seu “passeio” pelas ruas de Londres, onde<br />

reside, descrevendo os lugares que admira e contempla, a bordo de<br />

um ônibus de dois andares, tipicamente inglês. Para cumprir seu<br />

propósito de “encantar” o leitor com aquilo que visualiza, o blogueiro<br />

334 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

situa os lugares por onde passa e deixa expressa a avaliação pessoal<br />

que faz de Londres (para exemplificar, leia-se [25]). As circunstâncias,<br />

desse modo, contribuem para descrever/situar o espaço e, ao mesmo<br />

tempo, para conquistar a adesão do leitor para a ilustração feita pelo<br />

autor da postagem.<br />

Em [26], “no meu twitter”, além de localizar o espaço (nesse<br />

caso, virtual) onde havia realizado a atividade de escritura, a<br />

circunstância é também link que eletronicamente conduzirá o leitor,<br />

num clique de mouse, ao perfil do blogueiro no site de relacionamento<br />

Twitter – processo de metonímia (página de perfil tomada pelo nome<br />

site/provedor). Note-se que, a exemplo do que já foi apontado nesta<br />

seção, as circunstâncias também se prestam à conexão com outros<br />

conteúdos disponíveis no ciberespaço.<br />

Na ocorrência de [27], “no teatro” situa o lugar de fala<br />

do participante dizente “Susan Boyle” (retomado por “ela”). A<br />

circunstância associada ao processo verbal, todavia, está caracterizada<br />

pelo caráter de incerteza que o blogueiro atribui à declaração<br />

(verbiagem) do participante: “teria dito”. É importante registrar que a<br />

circunstância de localização espacial não apenas situa o lugar de fala<br />

de “Susan”, mas também demonstra que “o dizer” pode ter ocorrido,<br />

na visão do autor, em local pouco usual para quem se pretendia<br />

estrela do programa britânico: “[...] ainda no teatro, ela teria dito: ‘odeio<br />

o programa’.”<br />

As circunstâncias de modo<br />

As circunstâncias de modo sugerem o “como” as ações se<br />

realizam, ou seja, de que forma (recursos/qualidade) se projeta a<br />

realização dos processos. Esse tipo de circunstância se apresenta mais<br />

regularmente através do acréscimo do sufixo –mente em determinados<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 335


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

nomes. Como já proposto no capítulo teórico, os sintagmas adverbiais<br />

com essa configuração têm a possibilidade de não circunstanciar<br />

apenas o conteúdo do processo, como também expressar valor ou<br />

avaliação por parte do agente envolvido na enunciação, modificando<br />

toda a oração. Ou seja, os sintagmas adverbiais que apresentam essa<br />

condição seriam mais modalizadores (Sistema de Modo) e menos<br />

circunstância (Sistema de Transitividade).<br />

Neste trabalho, foram selecionadas as circunstâncias de modo<br />

formadas por nome + sufixo –mente. As ocorrências se configuram,<br />

por vezes, não tão facilmente identificáveis quanto a esta distinção<br />

entre avaliação de modificação do processo. Isso se deve possivelmente<br />

ao fato de que as circunstâncias de modo, assim como os adjuntos<br />

com função comentário, de certa forma, estabelecem algum tipo de<br />

apreciação da condição em que se constituem os significados dos<br />

processos. Daí que circunstâncias de modo e Sistema de Modo em<br />

muito se assemelham, tanto em relação à função quanto à descrição.<br />

Nos casos que seguem, os adjuntos modais estão mais para<br />

modificadores de um constituinte específico (o processo), sendo,<br />

portanto, circunstâncias de modo:<br />

[28] Passear pelas ruas de Londres no segundo andar dos ônibus<br />

vermelhos é tão gostoso quanto encontrar inesperadamente<br />

um amigo querido. Levo comigo sempre um livro ou uma<br />

revista, ou ambos. (B1L42-45)<br />

[29] Recentemente, Gino, ex-namorado de Noemi, disse ao<br />

jornal La Repubblica que Berlusconi passou a telefonar para<br />

Noemi depois que lhe chegaram às mãos fotos com que a garota<br />

tentava construir uma carreira de modelo. A versão de Gino foi<br />

confirmada por uma tia de Noemi, Francesca. (B1L188-192)<br />

336 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

Essas duas ocorrências, associadas a processo material e<br />

verbal, respectivamente, expressam o significado de tipicidade [28]<br />

e temporalidade [29]. Quando estabelece comparação entre “passear<br />

de ônibus pelas ruas de Londres” e “encontrar um amigo querido”, o<br />

autor da postagem circunstancia o processo ‘encontrar’, atribuindolhe<br />

uma condição característica do encontro: a possibilidade de ser<br />

inesperado, não programado. Embora, aparentemente, não haja<br />

uma conexão muito clara entre as variáveis que compara, ao atribuir<br />

a condição de “inesperada” ao encontro, o blogueiro talvez tenha<br />

pretendido não apenas apresentar o modo como a ação aconteceu,<br />

mas também dispô-la em patamar semelhante àquele “do passear no<br />

segundo andar do ônibus”.<br />

O significado de temporalidade expresso pela circunstância<br />

“recentemente”, em [29], complementa o processo “dizer”. É preciso<br />

que se acrescente que a ideia, quando da seleção dessa circunstância<br />

de modo, pelo blogueiro, possivelmente não era a de situar ou de<br />

estabelecer temporalmente a duração do processo. O fato de demarcar<br />

como “recente” a declaração do participante “Gino” configura o<br />

tempo da ocorrência desse fato em relação a outras publicações<br />

menos recentes que enuncia o blogueiro na postagem: as fotos da<br />

participação de Silvio Berlusconi em uma festa de aniversário de<br />

Noemi, por quem poderia estar apaixonado. Logo, a temporalidade<br />

prevista por esta circunstância pode até situar no tempo o processo<br />

do dizer. Porém, essa ocorrência circunstancial de modo pretende<br />

que atribuir à verbiagem do participante dizente a condição de ter<br />

sido publicada “recentemente” em relação a um ponto temporal já<br />

demarcado na postagem.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 337


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

Conclusão<br />

O propósito maior deste trabalho foi verificar o funcionamento<br />

das circunstâncias do ST da LSF, em blogs, e sua contribuição para a<br />

construção da opinião nesse gênero.<br />

Os dados analisados indicam que as circunstâncias,<br />

independentemente da recorrência, contribuem efetivamente para<br />

o caráter opinativo no blog, constituindo papel relevante na realização<br />

dos significadores e, ao mesmo, desmistificando o aspecto acessório<br />

ou expletivo comumente atribuindo aos complementos verbais<br />

circunstanciais.<br />

O papel das circunstâncias de extensão, por exemplo, é<br />

essencialmente favorecer a persuasão do leitor às ideias defendidas<br />

nos textos do blog. A representação da duração temporal/espacial,<br />

associada ao processo, colabora para assentamento do valor de<br />

verdade pretendido pelos autores. As ocorrências de localização,<br />

além de situarem espacialmente os processos podem também fazer<br />

remissão a referentes não físicos, a partir de metonímias e metáforas,<br />

estabelecidas em certas ocorrências. Exemplo disso são as referências<br />

feitas a elementos dentro das próprias postagens na ambiência virtual,<br />

situando em que “posição” se verifica este ou aquele elemento, de<br />

modo que o leitor possa trazer para o texto que está sendo lido outro<br />

material necessário à composição dos sentidos.<br />

Das circunstâncias de modo, é possível afirmar que contribuem<br />

para que se estabeleçam as condições de realização dos processos.<br />

Isso pode ocorrer em ocasiões nas quais se estabelece uma relação<br />

comparativa temporal, nas comparações situacionais [...], na ênfase<br />

que se dá a determinado processo. Mais do que isso, as circunstâncias<br />

analisadas aqui sugerem um procedimento gradiente, em que uma<br />

338 l Anais Eletrônicos - 2011


O PARADIGMA SISTÊMICO-FUNCIONAL DA TRANSITIVIDADE: POR UMA SINTAXE DAS<br />

CIRCUNSTÂNCIAS / Wellington Vieira MENDES (UERN/GPEF)<br />

circunstância pode exercer mais ou menos a função de comentário,<br />

ou vice-versa.<br />

A análise das circunstâncias do Sistema de Transitividade<br />

desenvolvida até aqui sugere que os dados apresentados têm relevo<br />

para a compreensão das escolhas operadas na léxicogramática, nos<br />

níveis semântico e pragmático, externando, desse modo, diferentes<br />

empregos dos tipos de circunstância, que são pouco explorados pela<br />

literatura disponível.<br />

Referências<br />

EGGINS, S. An Introduction to Systemic Functional Linguistics. 2 ed. London: Continuum,<br />

2004.<br />

FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita<br />

na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998.<br />

FURTADO DA CUNHA, M. A.; SOUZA, M. M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio<br />

de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

GHIO, E.; FERNÁNDEZ, M. D. Linguística sistêmico funcional: aplicaciones a la lengua<br />

española. Santa Fé: Universidade Nacional Del Litoral, Waldhuter Editores, 2008.<br />

HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. 2 ed. London: Edward Arnold,<br />

1994.<br />

HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. London: Edward Arnold, 1985.<br />

HALLIDAY, M. A. K. Language as Social Semiotic. The Social Interpretation of Language<br />

and Meaning. London: Edward Arnold, 1978.<br />

HALLIDAY, M. A. K; HASAN, R. Language, Context, and Text: Aspects of Language in a<br />

Social-Semiotic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1985.<br />

Anais Eletrônicos - 2011 l 339


Sinta e<br />

xEM OCO<br />

f<br />

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In.<br />

KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino.<br />

União da Vitória: Kaygangue, 2005. pp. 17-33.<br />

MARTIN, J. R.; MATTHIESSEN, C. M. I. M.; PAINTER, C. Working with functional grammar.<br />

London: Arnold, 1997.<br />

MENDES, W. V. A construção de sentido no blog: um estudo sobre multimodalidade. In:<br />

Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação, 2., 2008, Recife. Anais Eletrônicos. Recife:<br />

<strong>UFPE</strong>, 2008.<br />

MILLER, C. R. Estudos sobre gênero textual, agência e tecnologia. Recife: Ed. Universitária<br />

da <strong>UFPE</strong>, 2009. Trad. e organização de Ângela P. Dionísio & Judith C. Hoffnagel.<br />

SOUZA, M. M. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial. Recife: <strong>UFPE</strong>,<br />

2006. (Tese de doutoramento).<br />

Web site: http://colunas.epoca.globo.com/guilhermefiuza/, acesso em 01/03/2009.<br />

Web site: http://colunas.epoca.globo.com/nelito/, acesso em 01/03/2009.<br />

Web site: http://colunas.epoca.globo.com/paulomoreiraleite/, acesso em 01/03/2009.<br />

Web site: http://colunas.epoca.globo.com/pelomundo/, acesso em 01/03/2009.<br />

340 l Anais Eletrônicos - 2011

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