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Revista edicao #1. - IGC - Universidade Federal de Minas Gerais

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<strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia e do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia <strong>IGC</strong>-UFMG julho_<strong>de</strong>zembro vol.1 nº1 2005 ISSN 1808-8058


<strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia e do<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia <strong>IGC</strong>-UFMG<br />

Comissão Editorial<br />

Antônio Pereira Magalhães Júnior (editor responsável)<br />

Célio da Cunha Horta<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Márcia Maria Duarte dos Santos<br />

A imagem em relevo seco da capa<br />

foi baseada nesta plaqueta <strong>de</strong> barro<br />

da Baixa Mesopotâmia, gravada no<br />

quarto milênio a.C.. Simboliza aqui<br />

a relação homem/espaço. Já naquela<br />

época, o homem, representado<br />

pelo <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma mão,<br />

<strong>de</strong>marcava o seu território e suas<br />

posses, retratados nesse documento<br />

<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> por árvores, sacos<br />

<strong>de</strong> grãos e instrumentos agrícolas.<br />

Conselho Editorial<br />

Allaoua Saadi (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Antônio Paula <strong>de</strong> Faria (UFRJ)<br />

Beatriz Ribeiro Soares (UFU)<br />

Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF)<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Cristina Helena Ribeiro Rocha Augustin (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Geraldo Magela Costa (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

João Antonio <strong>de</strong> Paula (Ce<strong>de</strong>plar/UFMG)<br />

Josilda Rodrigues da Silva Moura (UFRJ)<br />

Junia Ferreira Furtado (FAFICH/UFMG)<br />

Lúcia Helena <strong>de</strong> Oliveira Gerardi (UNESP)<br />

Luis Alberto F. Brandão Santos (FALE/UFMG)<br />

Marcel Burstyn (UnB)<br />

Maria Adélia A. <strong>de</strong> Souza (TERRITORIAL)<br />

Maria Encarnação Beltrão Spósito (UNESP)<br />

Maurício <strong>de</strong> Almeida Abreu (UFRJ)<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Roberto Célio Valadão (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Roberto Luiz Melo Monte-Mór (Ce<strong>de</strong>plar/UFMG)<br />

Selma Simões <strong>de</strong> Castro (UFG)<br />

Sérgio Manuel Merêncio Martins (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Telma Men<strong>de</strong>s da Silva (UFRJ)<br />

Colaboradores <strong>de</strong>ste número<br />

Ester Limonad (<strong>IGC</strong>/UFF)<br />

Klemens Augustinus Laschefski (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Jupira Gomes <strong>de</strong> Mendonça (Escola <strong>de</strong> Arquitetura/UFMG)<br />

Marly Nogueira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />

Silke Kapp (Escola <strong>de</strong> Arquitetura/UFMG)


Editorial 5 Editorial<br />

Antônio Pereira Magalhães Jr<br />

Sumário<br />

Artigos 7 A nova questão agrária e a<br />

científicos reinvenção do campesinato:<br />

o caso do MST<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

26 As correntes da Geografia<br />

e o movimento <strong>de</strong> idéias<br />

em torno da região<br />

Linovaldo Miranda Lemos<br />

37 A Política Nacional <strong>de</strong><br />

Recursos Hídricos e a<br />

gestão <strong>de</strong> conflitos em<br />

uma nova territorialida<strong>de</strong><br />

Fre<strong>de</strong>rico do Valle Ferreira <strong>de</strong> Castro<br />

Luciano José Alvarenga<br />

Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

51 Obstáculos aos processos<br />

<strong>de</strong> regularização fundiária<br />

<strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso<br />

<strong>de</strong> Piracicaba – SP<br />

Silvia Maria M. Funes<br />

Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro<br />

Ioshiaqui Shimbo<br />

70 Conflitos socioambientais e<br />

resistências no/do projeto<br />

hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto<br />

Doralice Barros Pereira<br />

86 Segregação socioespacial<br />

em Belo Horizonte: uma<br />

aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos<br />

Adriana Miranda-Ribeiro<br />

Ricardo Alexandrino Garcia<br />

98 Por uma ciência do atrito:<br />

ensaio dialético sobre a<br />

violência urbana<br />

Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

Notas <strong>de</strong> 113 Contribuição dos fluxos<br />

pesquisa<br />

migratórios na expansão da<br />

re<strong>de</strong> urbana brasileira;<br />

<strong>de</strong>sconcentração espacial e<br />

diferenciais sócio-espaciais<br />

Migração e urbanização<br />

<strong>de</strong>scentralizada no Brasil<br />

contemporâneo<br />

Ralfo Matos<br />

Eventos 117 A Geografia na<br />

mo<strong>de</strong>rnização do mundo<br />

Maria <strong>de</strong> Fátima Almeida Martins<br />

119 XI Simpósio Brasileiro <strong>de</strong><br />

Geografia Física Aplicada<br />

Antônio Pereira Magalhães Jr<br />

Dissertações 123 Dissertações <strong>de</strong>fendidas no<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />

em Geografia/UFMG em 2005


Geografias: <strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia / Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Geografia, Departamento <strong>de</strong> Geografia do Instituto<br />

<strong>de</strong> Geociências, UFMG. – v. 1, n. 1 (jul./<strong>de</strong>z.) 2005- – Belo<br />

Horizonte: UFMG, Departamento <strong>de</strong> Geografia, 2005- .<br />

v. : il.; 25 x 20 cm.<br />

Semestral<br />

ISSN 1808-8058<br />

1. Geografia – Periódicos. I. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Departamento <strong>de</strong> Geografia. II. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia.<br />

Catalogação na publicação: Biblioteca do Instituto <strong>de</strong> Geociências - UFMG<br />

Reitora da UFMG<br />

Ana Lúcia Almeida Gazzola<br />

Diretor do Instituto <strong>de</strong> Geociências<br />

Antônio Gilberto Costa<br />

Chefe do Departamento <strong>de</strong> Geografia<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

Coor<strong>de</strong>nadora do Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />

Projeto Gráfico e Capa<br />

Glória Campos, Clô Paoliello (Mangá)<br />

Secretaria da Redação<br />

Rose A. Botelho Rodrigues Acácio<br />

Revisão<br />

Darlene Ávila Figueiredo<br />

Diagramação e Formatação dos originais<br />

Mangá Ilustração e Design Gráfico<br />

Fotografia da página 6<br />

Alan Rodrigues<br />

Apoio<br />

Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pós-Graduação/UFMG<br />

<strong>Revista</strong> Geografias<br />

Departamento <strong>de</strong> Geografia - <strong>IGC</strong>/UFMG<br />

Av. Antônio Carlos 6627, Pampulha, CEP 31270-901<br />

Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brasil<br />

Fone: 5531 3499.5421 Fax: 5531 3499.5410<br />

geografias@igc.ufmg.br<br />

www.igc.ufmg.br/geografias<br />

As opiniões contidas nos artigos são <strong>de</strong> inteira<br />

responsabilida<strong>de</strong> dos autores


As geografias são diversas. O viver geográfico, o fazer geográfico, o transformar geográfico na vida<br />

humana exemplificam esta diversida<strong>de</strong>. Igualmente, as geografias surpreen<strong>de</strong>m com sua multiplicida<strong>de</strong><br />

em nível acadêmico e profissional, mas não se <strong>de</strong>sconectam na orientação por um eixo comum<br />

pautado nas questões espaciais. O vasto espectro <strong>de</strong> análise da geografia nos leva à aproximação <strong>de</strong><br />

outras ciências que, por sua vez, nos oferecem conhecimentos necessários à uma formação acadêmica<br />

e profissional mais sólida em um mundo cada vez mais propício à interdisciplinarida<strong>de</strong>.<br />

Em nível acadêmico, temos nos acostumado a estudar a integração <strong>de</strong> questões sociais, econômicas<br />

e políticas, por exemplo, na compreensão da estrutura, evolução e organização <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s. Igualmente,<br />

temos assistido a multiplicação <strong>de</strong> estudos cujas questões centrais passam pela análise do<br />

quadro físico. Os <strong>de</strong>safios apresentados pela investigação dos processos <strong>de</strong> criação, evolução e organização<br />

<strong>de</strong> espaços físicos e socialmente construídos, são bem conhecidos dos profissionais que<br />

trabalham com a geografia. Complementarmente, temos enfrentado os <strong>de</strong>safios da integração <strong>de</strong>sses<br />

conhecimentos para a compreensão <strong>de</strong> espaços, lugares, paisagens, territórios e regiões geográficas,<br />

on<strong>de</strong> natureza e socieda<strong>de</strong> interagem, on<strong>de</strong> o homem condiciona e é condicionado pelo quadro físico<br />

e pela estrutura social e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, on<strong>de</strong> o olhar do pesquisador não po<strong>de</strong> ignorar as conexões que<br />

explicam o “todo”.<br />

É neste contexto <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> abertura e <strong>de</strong> interação que nasce a revista Geografias. Abrindo<br />

espaço para publicações <strong>de</strong> diferentes linhas <strong>de</strong> pensamento e abordagens geográficas praticadas no<br />

meio científico nacional e internacional, em nível <strong>de</strong> graduação e pós-graduação, a <strong>Revista</strong> surge com<br />

uma concepção <strong>de</strong> contemporaneida<strong>de</strong> rumo a uma <strong>de</strong>mocracia científica que contemple os diversos<br />

saberes geográficos <strong>de</strong> profissionais da geografia e também <strong>de</strong> outras ciências.<br />

O lançamento da <strong>Revista</strong> ocorre em uma exitosa etapa <strong>de</strong> consolidação do nível <strong>de</strong> doutorado no<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Geografia da UFMG. Esperamos que a Geografias acompanhe este<br />

processo e reflita os avanços do Programa.<br />

Com a satisfação do lançamento <strong>de</strong>ste primeiro numero, começamos este percurso agraciados com<br />

importantes contribuições relacionadas a questões como conflitos socioambientais, recursos hídricos<br />

e planejamento urbano, regularização fundiária <strong>de</strong> favelas, projetos hidrelétricos, dialética e violência<br />

na perspectiva geográfica. A seção <strong>de</strong> Artigos Científicos é seguida pela seção <strong>de</strong> Notas <strong>de</strong> Pesquisa, na<br />

qual são apresentados relatos <strong>de</strong> pesquisas em <strong>de</strong>senvolvimento no Departamento <strong>de</strong> Geografia da<br />

UFMG, em nível <strong>de</strong> graduação ou pós-graduação. A seção Eventos abre espaço para relatos <strong>de</strong> eventos<br />

científicos realizados no país ou no exterior. A ultima seção apresenta as Dissertações <strong>de</strong>fendidas nos<br />

últimos meses no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Geografia da UFMG.<br />

Nossos agra<strong>de</strong>cimentos aos leitores e colaboradores da Geografias. Estaremos a postos para prosseguir<br />

a tarefa <strong>de</strong> manter aberto este canal <strong>de</strong> divulgação das múltiplas geografias do mundo mo<strong>de</strong>rno.<br />

Editorial<br />

Antônio Pereira Magalhães Jr<br />

Editor responsável


Artigos<br />

científicos


A nova questão agrária e a reinvenção do<br />

campesinato: o caso do MST<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia da<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense - Doutor em Geografia 1<br />

Resumo<br />

O artigo <strong>de</strong>staca a nova configuração da<br />

questão agrária no contexto da nova etapa <strong>de</strong><br />

mundialização do capitalismo com <strong>de</strong>staque<br />

para o significado do Movimento dos Trabalhadores<br />

Rurais Sem-Terra. Analisa o processo<br />

<strong>de</strong> constituição <strong>de</strong>sse movimento e os <strong>de</strong>safios<br />

que se colocam diante da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articular<br />

uma luta unificada <strong>de</strong> múltiplos e distintos<br />

sujeitos sociais que conformam o espaço<br />

geográfico da socieda<strong>de</strong> brasileira. Destaca, ainda,<br />

o caráter cada vez mais urbanizado que adquire<br />

a questão agrária.<br />

Abstract<br />

The article points out the new configuration of the<br />

agrarian question in the context of the present stage<br />

capitalist mundialization with emphasis to the<br />

significance of the Movimento dos Trabalhadores<br />

Rurais Sem-Terra. It analyses the process of formation<br />

of such movement and the challenges that emerge from<br />

the need to articulate an unified struggle of distinct<br />

social subjects that conform the geographical space of<br />

Brazilian society. It also reinforces the progressively<br />

urbanized feature of the agrarian question.<br />

1<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em<br />

Geografia, Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

em Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />

Fluminense, membro do Grupo Hegemonia<br />

e Emancipações <strong>de</strong> Clacso e ex-Presi<strong>de</strong>nte da<br />

Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-<br />

2000). É autor <strong>de</strong> diversos livros e artigos<br />

publicados em revistas científicas nacionais e<br />

internacionais, entre os quais se <strong>de</strong>stacam:<br />

Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas<br />

territorialida<strong>de</strong>s y sustentablidad (México:<br />

Siglo XXI, 2001); Amazônia, Amazônias (São<br />

Paulo: Contexto, 2001); Da geografia às geografias:<br />

um mundo em busca <strong>de</strong> novas<br />

territorialida<strong>de</strong>s [In: CECEÑA, Ana Esther;<br />

SADER, Emir (Org.). La guerra infinita:<br />

hegemonía y terror mundial. Buenos Aires:<br />

Clacso, 2001]; A geograficida<strong>de</strong> do social [In:<br />

SEOANE, José (Org.). Movimientos sociales y<br />

conflicto en América Latina. Buenos Aires:<br />

Clacso, 2003]; Geografando nos varadouros<br />

do mundo: da territorialida<strong>de</strong> seringalista à<br />

territorialida<strong>de</strong> seringueira (Brasília: Ibama,<br />

2004); e O <strong>de</strong>safio ambiental (Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Record, 2004).<br />

Palavras-chave unida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong> das<br />

lutas no campo; novos territórios – novas<br />

territorialida<strong>de</strong>s; nova questão agrária<br />

Keywords unity and diversity of agrarian<br />

struggles; new territories – new territorialities; new<br />

agrarian question<br />

cwpg@nitnet.com.br<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

7


Os anos 90 viram a<strong>de</strong>ntrar à cena política latino-americana dois movimentos sociais<br />

cuja significação política vai muito além das suas reivindicações específicas: o<br />

zapatismo, no México, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, no Brasil.<br />

Depois da <strong>de</strong>rrocada dos regimes políticos do leste europeu, com o triunfalismo<br />

que se seguiu com alguns intelectuais chegando mesmo a <strong>de</strong>cretar o fim da história,<br />

a emergência <strong>de</strong>sses dois movimentos sociais teve o mérito <strong>de</strong> repor aquilo que<br />

parecia estar sendo olvidado, isto é, o caráter contraditório do sistema-mundo<br />

mo<strong>de</strong>rno-colonial. Numa quadra histórica em que o pensamento único <strong>de</strong> corte<br />

neoliberal dominava ‘corações e mentes’, é compreensível que o zapatismo e o MST<br />

também passassem a ser vistos com um triunfalismo <strong>de</strong> sinal trocado on<strong>de</strong>, muitas<br />

vezes, se transferia para esses novos protagonistas a missão histórica que, antes, se<br />

<strong>de</strong>stinava ao proletariado. Todavia, para além <strong>de</strong> triunfalismos <strong>de</strong> parte a parte, esses<br />

movimentos sociais trazem ao <strong>de</strong>bate questões teóricas e políticas profundas que,<br />

acreditamos, exigem a compreensão da nova configuração, inclusive geográfica, das<br />

lutas <strong>de</strong> classes que se <strong>de</strong>senham no mundo como resultado, inclusive, do novo ciclo<br />

<strong>de</strong> protestos que se inicia nos anos 70. É o que <strong>de</strong>senvolveremos neste artigo, tendo<br />

como foco da análise as lutas que se travam no campo brasileiro, com <strong>de</strong>staque para<br />

o seu principal mediador nos últimos anos, o MST.<br />

2<br />

O movimento das Ligas Camponesas tem seu<br />

início em 1955 no Engenho Galiléia, no município<br />

<strong>de</strong> Vitória <strong>de</strong> Santo Antão, em Pernambuco,<br />

no nor<strong>de</strong>ste brasileiro, a partir <strong>de</strong> uma<br />

associação <strong>de</strong> cooperação entre agricultores<br />

para comprar caixões para enterrar seus mortos.<br />

A repressão ao movimento aproxima o<br />

advogado e <strong>de</strong>putado Francisco Julião, do<br />

Partido Socialista Brasileiro, que viria a se<br />

tornar um dos seus maiores lí<strong>de</strong>res.<br />

Contextualizando<br />

O Movimento <strong>de</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) inscreve-se numa longa trajetória<br />

<strong>de</strong> lutas sociais no campo brasileiro. Seu nascimento formal, em janeiro <strong>de</strong> 1984, é parte<br />

do novo ciclo <strong>de</strong> protestos sociais (TARROW, 1994) <strong>de</strong> finais dos anos 70, nos marcos<br />

das lutas <strong>de</strong>mocráticas contra o regime ditatorial sob tutela militar que se impôs à socieda<strong>de</strong><br />

brasileira entre 1964 e 1985. O Movimento <strong>de</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra carrega<br />

em seu próprio nome essa trajetória <strong>de</strong> lutas. Até o nascimento do MST, as lutas no<br />

campo estavam diretamente ligadas aos sindicatos <strong>de</strong> trabalhadores rurais articulados<br />

nacionalmente em torno da Contag – Confe<strong>de</strong>ração Nacional dos Trabalhadores na<br />

Agricultura. Foi em torno <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhadores rurais, <strong>de</strong> trabalhadores na<br />

agricultura, sobretudo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1968, quando os setores ‘mais combativos’ sob influência<br />

do Partido Comunista retomaram a entida<strong>de</strong> que estava sob intervenção do regime<br />

ditatorial <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1964, que as lutas no campo brasileiro mantiveram uma articulação em<br />

escala nacional. Assim, foi por meio dos sindicatos e da Contag que uma construção<br />

simbólico-política i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> trabalhadores rurais se afirma nacionalmente, impondose<br />

sobre a enorme diversida<strong>de</strong> geo-socio-cultural <strong>de</strong> nosso mundo rural.<br />

Ao mesmo tempo que o Movimento <strong>de</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra carrega em<br />

seu nome essa história, sua sigla – MST – acentua um fenômeno que se generaliza no<br />

Brasil pós-anos 60, isto é, a presença <strong>de</strong> trabalhadores sem-terra, que resulta da mo<strong>de</strong>rnização<br />

conservadora e sua revolução ver<strong>de</strong>.<br />

Ainda hoje, são tensas e intensas as lutas entre mediadores — entre o MST e a Contag,<br />

por exemplo — por afirmação i<strong>de</strong>ntitária, pelo po<strong>de</strong>r simbólico, enfim, pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

representação política. O MST, por exemplo, está mais próximo das Ligas Camponesas, 2<br />

8<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


movimento que, como tal, não sobreviveu à repressão da ditadura civil-militar, até por<br />

sua relação mais flexível com a institucionalida<strong>de</strong> do Estado. 3<br />

Num país, como o Brasil, on<strong>de</strong> nem mesmo a legislação trabalhista outorgada por Getúlio<br />

Vargas em 1934 se estendia aos trabalhadores rurais, é compreensível que surjam<br />

tanto movimentos sociais que busquem afirmar-se por meio <strong>de</strong> organizações autônomas<br />

próprias, caso das Ligas Camponesas, como aqueles que lutem por esten<strong>de</strong>r a legislação<br />

trabalhista ao mundo rural, caso do Partido Comunista. 4 Todavia, se os mediadores são<br />

fundamentais para a construção <strong>de</strong> sujeitos coletivos, 5 e o MST parece compreen<strong>de</strong>r isso<br />

melhor que qualquer outro movimento social no Brasil hoje, é impossível compreen<strong>de</strong>r<br />

esses mediadores e seus símbolos <strong>de</strong>scontextualizados da história que fazem e que, ao<br />

mesmo tempo, os conforma. Hoje po<strong>de</strong>mos afirmar com segurança que uma profunda<br />

reorganização societária estava em curso no Brasil já à época da constituição <strong>de</strong>sses movimentos.<br />

O processo <strong>de</strong> industrialização por substituição <strong>de</strong> importações, iniciado nos anos<br />

30, ensejará uma nova divisão inter-regional do trabalho por meio da integração rodoviária<br />

nacional, acentuando a migração e, assim, contribuindo para uma nova conformação<br />

sociogeográfica do po<strong>de</strong>r no campo brasileiro (PORTO-GONÇALVES, 2004a). Sublinhese<br />

que a Igreja Católica era parte <strong>de</strong>ssa estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r tradicional, e o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>s-ruralização e <strong>de</strong> sub-urbanização, que só crescerá <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, impõe à própria Igreja<br />

novas questões à sua própria sobrevivência. 6 O MST será, tal como o Caliban <strong>de</strong> Retamar<br />

(RETAMAR, 2004), uma síntese criativa <strong>de</strong>ssas experiências emancipatórias tecidas no<br />

terreno movediço da história, o que po<strong>de</strong> ser observado tanto por sua teatralida<strong>de</strong> com<br />

forte componente místico, her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> tradições religiosas, como por suas ban<strong>de</strong>iras<br />

vermelhas, i<strong>de</strong>ologia socialista professada por seus principais lí<strong>de</strong>res, esta her<strong>de</strong>ira da<br />

presença histórica dos socialistas e dos comunistas nas lutas do campo brasileiro.<br />

Todavia, essa aproximação <strong>de</strong> vertentes i<strong>de</strong>ológicas historicamente tão distantes, como<br />

os comunistas e os católicos, tem as marcas <strong>de</strong> um dramático processo <strong>de</strong> repressão<br />

com o golpe <strong>de</strong> estado <strong>de</strong> 1964, quando se internalizam no Brasil novas contradições<br />

geopolíticas globais, como o anticomunismo, cujo maniqueísmo se sobrepõe ao maniqueísmo<br />

<strong>de</strong> longas raízes históricas coloniais que nega ao outro, ao diferente, até mesmo a condição<br />

<strong>de</strong> humanos, em que os indígenas, os mestiços, os caboclos, os ladinos, os negros, os<br />

camponeses, enfim, os pobres em geral são selvagens, bárbaros, preguiçosos. 7 No novo<br />

quadro geopolítico da guerra fria, internalizado nas especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nossa formação<br />

política autoritária, o fato <strong>de</strong> alguém não ser a favor do anticomunismo era suficiente<br />

para que fosse consi<strong>de</strong>rado comunista, e, assim, religiosos, liberais, <strong>de</strong>mocratas em geral<br />

foram torturados, mortos, exilados. O golpe civil-militar <strong>de</strong> 1964 não poupou nem as<br />

li<strong>de</strong>ranças das Ligas Camponesas nem as da Contag e dos sindicatos rurais.<br />

É nesses marcos i<strong>de</strong>ológicos e políticos que se <strong>de</strong>senvolverá uma profunda transformação<br />

sociogeográfica do país, conhecida como mo<strong>de</strong>rnização conservadora, cuja compreensão,<br />

tanto do ponto <strong>de</strong> vista político como do tecnológico, ambos profundamente<br />

i<strong>de</strong>ologizados pela guerra fria, é fundamental para enten<strong>de</strong>rmos a importância do MST e<br />

<strong>de</strong> todo o seu potencial emancipatório na nova configuração da questão agrária para o<br />

planeta e a humanida<strong>de</strong>.<br />

3<br />

Essa é uma das principais críticas que se faz<br />

ao MST, qual seja, a <strong>de</strong> não ser um movimento<br />

legalizado formalmente, tal como as Ligas<br />

Camponesas. Diga-se <strong>de</strong> passagem que os<br />

críticos quase sempre invocam esse argumento,<br />

associado a situações em que acreditam<br />

que o MST <strong>de</strong>vesse sofrer algum tipo <strong>de</strong> sanção<br />

punitiva por parte do Estado. Desnecessário<br />

dizer que o fato <strong>de</strong> o MST sobreviver<br />

enquanto movimento organizado e, mais do<br />

que isso, cada vez mais ampliar sua atuação<br />

política, por si mesmo, indica a legitimida<strong>de</strong><br />

real que vem alcançando na socieda<strong>de</strong> brasileira<br />

e mundial. Caso contrário, o monopólio<br />

da violência do Estado já teria se abatido sobre<br />

ele. Esste é o fato real; o outro é o <strong>de</strong>sejo.<br />

4<br />

O 1 º Congresso Nacional <strong>de</strong> Lavradores e<br />

Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo<br />

Horizonte em 1961, que a Contag consi<strong>de</strong>ra<br />

como seu primeiro congresso, teve entre<br />

suas principais <strong>de</strong>liberações a luta pelo direito<br />

à sindicalização dos que trabalham no<br />

meio rural.<br />

5<br />

Daí toda a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras, <strong>de</strong> símbolos,<br />

<strong>de</strong> manifestações, <strong>de</strong> marchas para se<br />

entrar em cena com toda a sua teatralida<strong>de</strong>.<br />

Tanto Pierre Bourdieu (1989) como José <strong>de</strong><br />

Souza Martins (2003) salientam essa dimensão<br />

estética necessária à luta pelo po<strong>de</strong>r político-simbólico,<br />

em que o MST tem tido, sem<br />

dúvida, um enorme sucesso, inclusive, por suas<br />

místicas. Uma retórica agressiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>squalificação<br />

costuma ser parte da violência inerente<br />

às lutas pelo po<strong>de</strong>r simbólico.<br />

6<br />

O Concílio Vaticano II, a Celam – Conferência<br />

do Episcopado Latino-americano (Me<strong>de</strong>llin<br />

e Puebla), a Teologia da Libertação e as Comunida<strong>de</strong>s<br />

Eclesiais <strong>de</strong> Base <strong>de</strong>vem ser vistas<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse contexto sociogeográfico.<br />

7<br />

Edward Said (apud TASSO, 2004) já havia<br />

nos alertado, para além das análises <strong>de</strong> caráter<br />

economicista e sem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o lugar<br />

da economia sob as relações sociais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

capitalistas, que o colonialismo e o imperialismo<br />

“se encontram suportados e às<br />

vezes apoiados por impressionantes formações<br />

i<strong>de</strong>ológicas que incluem a convicção<br />

<strong>de</strong> que certos territórios e povos necessitam<br />

e rogam ser dominados, assim como<br />

noções que são formas <strong>de</strong> conhecimento ligadas<br />

a tal dominação”.<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

9


O novo contexto <strong>de</strong> luta em que emerge o MST<br />

e o novo sentido da reforma agrária<br />

8<br />

Em escala continental, <strong>de</strong> um pânico semelhante<br />

a esse só se tem notícia com a Revolução<br />

Haitiana <strong>de</strong> 1804. A Revolução Cubana<br />

é vista como se fora um novo haitianismo.<br />

9<br />

Para os EUA, a Revolução Cubana conduziu<br />

a um verda<strong>de</strong>iro pânico conspiratório, até<br />

porque se <strong>de</strong>ra nas antilhas caribenhas, uma<br />

região que sempre foi vista como mare<br />

nostrum, além <strong>de</strong> ser às suas portas, se dava<br />

<strong>de</strong>pois do XX Congresso do PCURSS, que,<br />

ainda que <strong>de</strong> modo tímido, expiara os crimes<br />

<strong>de</strong> Stálin, e, ainda, <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>monstração<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rio científico e tecnológico da URSS,<br />

com o lançamento do primeiro foguete tripulado<br />

ao espaço, com Iuri Gagarin.<br />

10<br />

Registre-se que em janeiro <strong>de</strong> 1964, pouco<br />

antes do golpe civil-militar <strong>de</strong> março do mesmo<br />

ano, os sindicatos <strong>de</strong> trabalhadores rurais<br />

e a Contag logram, finalmente, seu reconhecimento<br />

formal por parte do Estado.<br />

11<br />

Se remontarmos aos anos 1920, veremos<br />

que tanto o recém fundado Partido Comunista<br />

(1922), como po<strong>de</strong> ser lido no livro<br />

Agrarismo e industrialismo, <strong>de</strong> Otávio<br />

Brandão (1924), como o próprio tenentismo,<br />

movimento <strong>de</strong> jovens militares, já assinalavam<br />

a centralida<strong>de</strong> da Reforma Agrária enquanto<br />

questão nacional (NOVAES, 1996).<br />

O lado político conservador da mo<strong>de</strong>rnização conservadora<br />

No início dos anos 60, um novo protagonista, para além dos que até já assinalamos, farse-á<br />

presente nas lutas do campo brasileiro, com a internalização da confrontação<br />

geopolítica da guerra fria. A partir da Revolução Cubana, um verda<strong>de</strong>iro pânico 8 tomou<br />

conta dos estrategistas estaduni<strong>de</strong>nses 9 e das oligarquias latifundiárias nacionais. O governo<br />

dos EUA põe em prática a Aliança para o Progresso não só com programas assistencialistas<br />

<strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> leite às populações pobres, como também com o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> uma estratégia política <strong>de</strong> estimular a criação <strong>de</strong> sindicatos <strong>de</strong> trabalhadores rurais,<br />

que visava a combater as Ligas Camponesas e o nascente sindicalismo rural <strong>de</strong> esquerda.<br />

Credita-se ao conservador Bispo Dom Eugênio Sales a criação do primeiro sindicato<br />

oficial <strong>de</strong> trabalhadores rurais no Brasil, no Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, estado on<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>senvolvia uma rica experiência <strong>de</strong> educação rural que contava, inclusive, com a<br />

colaboração ativa do educador Paulo Freire. Acrescente-se que, diante da histórica<br />

i<strong>de</strong>ologia antiamericana na América Latina (Simon Bolívar, Augusto Sandino e José Marti),<br />

à época ainda mais aguçada por nacionalismos <strong>de</strong> diferentes naipes, o governo<br />

estaduni<strong>de</strong>nse lançará mão <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> novo tipo, instrumentalizando uma<br />

entida<strong>de</strong> não-governamental para dar curso à sua política anticomunista. Segundo Eduardo<br />

Karol (2000), a Caritas será a responsável pela política assistencialista, nesse caso chamada<br />

<strong>de</strong> humanitária, com a distribuição <strong>de</strong> leite, por exemplo.<br />

Desse modo, tanto as Ligas Camponesas como o nascente sindicalismo rural constituir-se-ão<br />

como um marco, ao trazerem à cena política nacional novos protagonistas<br />

em luta pela Reforma Agrária. 10 Atentemos, aqui, tanto para o fato <strong>de</strong> se eleger a<br />

questão agrária como parte da questão nacional como, principalmente, para o fato <strong>de</strong><br />

novos protagonistas a<strong>de</strong>ntrarem à cena política nacional na luta pela Reforma Agrária.<br />

Os ‘<strong>de</strong> baixo’ (Florestan Fernan<strong>de</strong>s) do campo a<strong>de</strong>ntram, pela primeira vez em nossa<br />

história, à cena política nacional. 11 Essa mudança <strong>de</strong> escala geográfica da luta política,<br />

no caso específico com os camponeses e <strong>de</strong>mais trabalhadores rurais superando, por<br />

si mesmos, a escala geográfica local e lançando-se nacionalmente, seja com as Ligas<br />

Camponesas, seja com a Contag, marca um dos momentos mais importantes das lutas<br />

<strong>de</strong>mocráticas no Brasil que, por sua vez, tornarão visíveis os limites autoritários que<br />

conformam nossa formação política. Com essa mudança <strong>de</strong> escala, os diferentes protagonistas<br />

das lutas por invenção <strong>de</strong> direitos no campo rompem com o po<strong>de</strong>r<br />

regionalizado das oligarquias latifundiárias, historicamente constituído em torno das<br />

unida<strong>de</strong>s políticas provinciais, hoje estaduais, e, assim, colocam o <strong>de</strong>bate acerca da<br />

Reforma Agrária no plano nacional. Para além da concentração <strong>de</strong> terras, uma das<br />

maiores do mundo e pilar do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssas oligarquias latifundiárias, há toda uma<br />

cultura política em que predominam a ‘lógica do favor’ sobre a do direito, o<br />

patrimonialismo, o clientelismo e o cartorialismo sobre a cidadania (FAORO, 2000).<br />

Registre-se que a emergência <strong>de</strong> movimentos sociais como as Ligas Camponesas se<br />

10<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


<strong>de</strong>veu, em gran<strong>de</strong> parte, à atmosfera <strong>de</strong> abertura política, à ‘primavera <strong>de</strong>mocrática’<br />

(IBARRA, 2004) que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial. 12 Essa ‘primavera<br />

<strong>de</strong>mocrática’ ce<strong>de</strong>rá lugar, com o acirramento da guerra fria e a influência estaduni<strong>de</strong>nse<br />

cada vez maior na América Latina, a ditaduras on<strong>de</strong> o anticomunismo se somará à<br />

formação i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong> origem colonial que, por maniqueísmo próprio, já negava ao<br />

outro qualquer direito.<br />

Des<strong>de</strong> então, a questão agrária tornar-se-á uma questão nacional, e a ditadura civil-militar,<br />

ainda que negando o campesinato e <strong>de</strong>mais trabalhadores rurais, sobretudo com a<br />

enorme repressão às Ligas Camponesas e aos sindicalistas, instituirá políticas públicas explicitamente<br />

para a reforma agrária, como o Estatuto da Terra, que cria o Instituto Brasileiro<br />

<strong>de</strong> Reforma Agrária – IBRA, assim como manterá o reconhecimento legal da Contag<br />

e dos sindicatos <strong>de</strong> trabalhadores rurais, ainda que sob controle político e expurgado das<br />

‘i<strong>de</strong>ologias espúrias’, leia-se, as que não comungavam com o golpe e com o anticomunismo.<br />

O lado mo<strong>de</strong>rno tecnológico da mo<strong>de</strong>rnização conservadora<br />

Não foi só do ponto <strong>de</strong> vista político que a internalização da guerra fria acirrou<br />

i<strong>de</strong>ologicamente as lutas <strong>de</strong> classes, como acabamos <strong>de</strong> ver. Também do ponto <strong>de</strong><br />

vista tecnológico seguir-se-á uma verda<strong>de</strong>ira revolução nas relações-sociais-e-<strong>de</strong>-po<strong>de</strong>rpor-meio-da-tecnologia<br />

que ficará conhecida, simplesmente, como Revolução Ver<strong>de</strong><br />

e, assim, ocultando a dimensão política implicada na própria tecnologia 13 (PORTO-<br />

GONÇALVES, 2004b).<br />

É preciso relembrar que o próprio nome – Ver<strong>de</strong> – que se emprestou a essa revolução-nas-relações-sociais-e-<strong>de</strong>-po<strong>de</strong>r<br />

traz em si o contexto das lutas <strong>de</strong> classes em que<br />

ela foi engendrada. Muito embora já no imediato fim da 2ª Guerra Mundial, em 1946,<br />

o livro Geografia da fome, <strong>de</strong> Josué <strong>de</strong> Castro (1996), já assinalasse as implicações políticas<br />

do fenômeno da fome, em 1949 esse <strong>de</strong>bate ganhará uma expressão política concreta,<br />

com o protagonismo <strong>de</strong> camponeses pobres que, organizados numa Gran<strong>de</strong><br />

Marcha sob ban<strong>de</strong>iras vermelhas do comunismo, politizarão <strong>de</strong> um outro modo a<br />

questão. A partir <strong>de</strong> então toda uma elite política e intelectual se mobilizará para afirmar<br />

que o problema da fome era uma questão técnica, uma questão <strong>de</strong> sementes, uma<br />

questão <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> e, com isso, propõe uma Revolução Ver<strong>de</strong> 14 contra aquela<br />

Revolução Vermelha. O <strong>de</strong>bate político da tecnologia explicitar-se-á <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então e<br />

dar-se-á <strong>de</strong> modo cada vez mais intenso. Reiteramos a afirmação feita acima <strong>de</strong> que<br />

um dos lados da conformação i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> sem-terra se <strong>de</strong>ve, em gran<strong>de</strong> parte, a<br />

esse lado mo<strong>de</strong>rno da mo<strong>de</strong>rnização conservadora, qual seja, a revolução nas relações-sociais-e-<strong>de</strong>-po<strong>de</strong>r-por-meio-da-tecnologia<br />

ver<strong>de</strong>, hoje já em novíssima fase com<br />

a biotecnologia <strong>de</strong> genes laboratorialmente modificados. 15<br />

Na verda<strong>de</strong>, o que vem ocorrendo no mundo rural brasileiro é uma nova fase <strong>de</strong> um<br />

longo processo histórico <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rno-colonização. As implicações <strong>de</strong>ssa revolução nas<br />

relações-sociais-e-<strong>de</strong>-po<strong>de</strong>r-por-meio-da-tecnologia ver<strong>de</strong> são muito diversas, segundo<br />

as diferentes geografias sociais e políticas em que se insere. Em contextos autoritários,<br />

como o da socieda<strong>de</strong> brasileira, essa mo<strong>de</strong>rno-colonização tecnológica reforça o po<strong>de</strong>r<br />

12<br />

Foi nesse período que se <strong>de</strong>ram a Revolução<br />

Boliviana (1952) e a Revolução Democrática<br />

<strong>de</strong> Jacobo Arbenz, na Guatemala (1954), cuja<br />

reação conservadora po<strong>de</strong> ser vista não só no<br />

massacre que se seguiu, com mais <strong>de</strong> 140.000<br />

mortos, mas também na queda <strong>de</strong> Getúlio<br />

Vargas, no Brasil, e na <strong>de</strong> Domingo Perón, na<br />

Argentina.<br />

13<br />

Já indicamos em outro lugar (PORTO-GON-<br />

ÇALVES, 2004b) que as revoluções<br />

tecnológicas não po<strong>de</strong>m ser vistas fora das<br />

relações sociais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que as engendram,<br />

daí falarmos todo o tempo <strong>de</strong> relação (nas<br />

relações sociais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r) ver<strong>de</strong> e não, simplesmente<br />

<strong>de</strong> revolução ver<strong>de</strong>. Por isso não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a formação<br />

social em que essas transformações se dão.<br />

14<br />

Talvez comecemos a enten<strong>de</strong>r por que, até<br />

muito recentemente, nenhum ecologista se<br />

arvorasse a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r essa revolução ver<strong>de</strong>.<br />

15<br />

A questão não é a <strong>de</strong> biotecnologia simplesmente,<br />

na medida que os próprios cultivares<br />

são criações biotecnológicas camponesas e<br />

étnicas, assim como os vinhos, as tequilas, as<br />

vodkas, os saquês, as cachaças e as cervejas,<br />

ou ainda, os iogurtes, as coalhadas, os queijos,<br />

os doces e todo o modo <strong>de</strong> comer que<br />

caracteriza cada cultura e constitui o que<br />

talvez seja o maior patrimônio da humanida<strong>de</strong>.<br />

A diferença epistêmica e política, é<br />

<strong>de</strong>sse duplo que se trata, é que essas biotecnologias<br />

foram tecidas no campo pelos diferentes<br />

povos, enquanto a nova biotecnologia<br />

é laboratorialmente produzida em<br />

laboratórios que, cada vez mais, são menos<br />

públicos. Atentemos que, no caso das<br />

biotecnologias mais tradicionais, até mesmo<br />

a natureza, sem nenhum romantismo, opinava,<br />

na medida que a seleção feita por uma<br />

comunida<strong>de</strong> era experimentada ao longo do<br />

tempo e vingava ou não, para usar uma expressão<br />

vinda <strong>de</strong>sse mundo, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da<br />

resposta da natureza às eleições culturalmente<br />

selecionadas. Se o conhecimento é,<br />

como acreditamos que seja, tão fundamental<br />

como o alimento para a reprodução humana,<br />

ao se aceitar sem mais os laboratórios privados<br />

como locus da produção por excelência do<br />

conhecimento do alimento, duplo da reprodução,<br />

insisto, dá-se-lhes um lugar nas relações<br />

sociais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r jamais alcançado por<br />

quem quer que seja, ainda mais quando visto<br />

na escala mundializada em que vem se dando.<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

11


16<br />

Sustento que todo latifúndio é produtivo<br />

num sentido muito preciso, qual seja, o <strong>de</strong><br />

que produz, sempre, uma estrutura social<br />

injusta. Desse modo, recuso a distinção<br />

economicista entre latifúndio improdutivo e<br />

produtivo que vem marcando o <strong>de</strong>bate agrário<br />

brasileiro.<br />

17<br />

Cada vez mais se fala <strong>de</strong> agro-indústria, e<br />

sustento que não se trata <strong>de</strong> um termo só<br />

técnico, embora também o seja.<br />

18<br />

On<strong>de</strong> até mesmo um pequeno banco agrícola<br />

do interior <strong>de</strong> São Paulo, como o Bra<strong>de</strong>sco,<br />

se tornará um dos maiores bancos nacionais.<br />

19<br />

CGIAR – Consultive Group on International<br />

Agricultural Research.<br />

20<br />

O Sr. Roberto Rodrigues, um dos principais<br />

i<strong>de</strong>ólogos da Abag, foi Presi<strong>de</strong>nte da entida<strong>de</strong><br />

até tomar posse como Ministro da Agricultura<br />

do Governo Lula, em 2003.<br />

daqueles que já têm po<strong>de</strong>r, ao tornar os latifúndios ainda mais produtivos. 16 É ao que se<br />

assiste com o novo ciclo <strong>de</strong> expansão capitalista no campo brasileiro (mas também no<br />

argentino, no paraguaio, no oriente cruceño boliviano), on<strong>de</strong> uma proprieda<strong>de</strong>, para se<br />

viabilizar com as mo<strong>de</strong>rnas tecnologias na produção <strong>de</strong> soja, por exemplo, em Goiás,<br />

Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, no Triângulo Mineiro, no sul do Maranhão e no<br />

sudoeste do Piauí, <strong>de</strong>ve ter tamanho médio <strong>de</strong> 2.000 hectares. A aliança política civilmilitar<br />

que sustentara a ditadura, com a retirada do seu lado militar que ficou conhecida<br />

como o fim da ditadura, mostrará as fortes alianças que se forjaram no mundo civil<br />

entre os capitalistas agrários e os industriais, 17 entre os capitais nacionais e as gran<strong>de</strong>s<br />

empresas multinacionais (Sadia, Maggy, Perdigão, Monsanto, Cargill, Bunge, Novartis,<br />

etc.), com as instituições <strong>de</strong> pesquisa nacionais (Embrapa, faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> agronomia e <strong>de</strong><br />

engenharia florestal <strong>de</strong>vidamente orientadas na perspectiva epistêmico-política da revolução<br />

ver<strong>de</strong>), com a consolidação <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>roso setor financeiro nacional 18 (Bra<strong>de</strong>sco,<br />

Itaú, Unibanco, Real) que, como é sabido, contou com forte apoio institucional internacional<br />

(CGIAR, 19 Fundação Rockfeller, Banco Mundial, FAO, BIRD, BID).<br />

A ditadura forjara todo um conjunto <strong>de</strong> condições gerais <strong>de</strong> produção, sem o que<br />

tornar-se-ia impossível a profunda transformação que se <strong>de</strong>u no país, a começar com a<br />

repressão a todas(os) aquelas(es) que lutavam por Reforma Agrária e, ainda, com a abertura<br />

<strong>de</strong> estradas, com a construção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> energia, com a implantação <strong>de</strong> indústrias<br />

<strong>de</strong> base para o setor, como a agroquímica, além <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> pesquisa, como a<br />

Embrapa. Não se po<strong>de</strong> dissociar a profunda imbricação autoritária <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento por meio do qual a questão agrária brasileira não só se nacionalizou<br />

como se mundializou. O novo <strong>de</strong>bate sobre a questão agrária brasileira tem como seus<br />

principais protagonistas nos anos 90, <strong>de</strong> um lado, não mais a oligarquia tradicional a que<br />

estávamos habituados, mas o agronegócio e a Associação Brasileira <strong>de</strong> Agribusiness –<br />

ABAG 20 e, <strong>de</strong> outro, o Movimento <strong>de</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST. Todavia,<br />

para surpresa geral, as análises feitas a partir dos dados da Comissão Pastoral da Terra<br />

acerca da violência no campo brasileiro vêm <strong>de</strong>monstrando toda a dimensão política e<br />

i<strong>de</strong>ológica que sempre esteve subjacente à revolução nas relações-sociais-e-<strong>de</strong>-po<strong>de</strong>rpor-meio-da-tecnologia<br />

ver<strong>de</strong>: os estados brasileiros on<strong>de</strong> são maiores os índices <strong>de</strong><br />

conflitivida<strong>de</strong>, e <strong>de</strong> violência do po<strong>de</strong>r privado, medidos pelo número <strong>de</strong> famílias expulsas<br />

e <strong>de</strong> assassinatos <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças <strong>de</strong> trabalhadores rurais, e mesmo os índices que<br />

me<strong>de</strong>m a intensida<strong>de</strong> da ação do po<strong>de</strong>r judiciário, sobretudo nos estados da fe<strong>de</strong>ração,<br />

medidos pelo número <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> prisão e <strong>de</strong>spejo <strong>de</strong> famílias, são os estados e as<br />

regiões para on<strong>de</strong> se expan<strong>de</strong> o agronegócio (CPT, 2004; PORTO-GONÇALVES, 2004c).<br />

O estado <strong>de</strong> Mato Grosso, por exemplo, que já é o maior produtor brasileiro <strong>de</strong> grãos,<br />

só em 2003 teve um número <strong>de</strong> famílias <strong>de</strong>spejadas equivalente a 6,2% <strong>de</strong> sua população<br />

rural. Registre-se que esse estado é governado atualmente pelo maior produtor mundial<br />

<strong>de</strong> soja, o Sr. Blairo Maggy. Como se vê, a violência e a instrumentalização privada do<br />

po<strong>de</strong>r público, que sempre marcaram as relações sociais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, sobretudo no campo<br />

brasileiro, mo<strong>de</strong>rnizam-se com o agronegócio, como <strong>de</strong>monstram contun<strong>de</strong>ntemente<br />

os dados, para surpresa <strong>de</strong> todos, inclusive <strong>de</strong> nós. Os sem-terra passam, nesse con-<br />

12<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


texto, a ser a expressão mais dramática da injustiça social <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo, e o Movimento<br />

dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra vem se constituindo, sobretudo a partir dos anos<br />

90, no principal mediador político dos pobres do campo brasileiro. Tanto o agronegócio,<br />

com a Abag, como os pobres do campo, com o MST, são protagonistas da contraditória<br />

questão agrária brasileira que se mundializa, seja pelo protagonismo das corporações do<br />

agrobusiness, que hoje têm no Brasil sua principal frente territorial <strong>de</strong> expansão, apoiadas<br />

no legado histórico do manejo do po<strong>de</strong>r pelas oligarquias latifundiárias nacionais, seja,<br />

por outro lado, com o MST, que também se globaliza por meio da Via Campesina.<br />

Antes <strong>de</strong> passarmos a resenhar, ainda que resumidamente, os principais logros e <strong>de</strong>safios<br />

do MST, consi<strong>de</strong>remos que ele sintetiza, no Brasil, um processo em curso em todo o<br />

mundo, que sinaliza os limites atuais do capitalismo em sua fase <strong>de</strong> globalização neoliberal,<br />

em suas dimensões social, política, tecnológica e, sobretudo, territorial.<br />

Para os fins mais específicos que nos levam a enten<strong>de</strong>r o significado do MST, cabe<br />

assinalar que o novo período que se abre com as políticas <strong>de</strong> caráter neoliberal e,<br />

contraditoriamente, com o ciclo <strong>de</strong> protestos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 70 está marcado por<br />

aquilo que muitos analistas vêm chamando como a passagem <strong>de</strong> uma economia (e,<br />

acrescentaria, também <strong>de</strong> uma política) internacionalizada para uma economia (e, mais<br />

uma vez, também para uma política) mundializada. Vivemos, assim, uma tensão entre<br />

uma economia e uma socieda<strong>de</strong> que se mundializam e que não encontram um sistema<br />

político mundializado ancorado em princípios <strong>de</strong>mocráticos e republicanos, porque<br />

não contêm a fonte <strong>de</strong> soberania que lhes emprestariam os movimentos sociais latu<br />

sensu que lhes são instituintes (MÉSZAROS, 2002). Diante das novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

intercâmbio que hoje se abrem para além das fronteiras nacionais, a chamada política<br />

externa vem <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser monopólio dos Estados Nacionais e dos sujeitos que se<br />

afirmam por meio <strong>de</strong>le. Outros sujeitos emergem à cena política, e agora, mais do que<br />

nunca, os processos emancipatórios colocam-se para além das fronteiras nacionais;<br />

novas e complexas relações entre sujeitos e escalas geográficas colocam-se então não<br />

<strong>de</strong> modo abstrato, mas pela ação interessada (BOURDIEU, 1989) dos próprios sujeitos<br />

sociais que, assim, se reinventam. Por aqui já vislumbramos a significação do MST e do<br />

zapatismo, entre tantos movimentos sociais.<br />

Assim, nem o MST nem qualquer outro protagonista po<strong>de</strong> ser compreendido fora do<br />

processo <strong>de</strong> reorganização societário em curso no mundo, o que nos obriga a pensar o<br />

lugar <strong>de</strong> cada questão específica, assim como a questão do lugar, 21 no contexto das<br />

transformações mundializadas e <strong>de</strong> sua complexa imbricação <strong>de</strong> escalas — entre o local,<br />

o regional, o provincial/estadual, o nacional e o mundial; entre a cida<strong>de</strong> e o campo, entre<br />

o que é rural e o que é urbano. O que se passa em escala mundial não é uma soma do que<br />

se passa nas escalas local, regional e nacional mas, ao contrário, constitui-se nas suas<br />

complexas e multidimensionais relações por meio dos sujeitos que as constituem<br />

(ESCOBAR, 2000; HAESBAERT, 2005; PORTO-GONÇALVES, 2001). Enfim, o lugar <strong>de</strong><br />

cada escala específica não é o resultado mecânico <strong>de</strong> nenhuma das escalas. 22 De um<br />

ponto <strong>de</strong> vista emancipatório, o MST vem se constituindo como uma das principais<br />

expressões <strong>de</strong>ssa nova configuração geográfico-política do mundo, on<strong>de</strong> o campesinato<br />

21<br />

Sublinhemos que as questões que se apresentam<br />

para fins analíticos <strong>de</strong>vem ser vistas<br />

juntamente com os processos e seus sujeitos<br />

que as instituem. Assim, há questão agrária<br />

na medida que há aquelas e aqueles que põem<br />

o agro em questão.<br />

22<br />

Esclareçamos, para evitar novas reificações,<br />

que as escalas não operam a não ser por meio<br />

dos sujeitos/grupos/movimentos/classes sociais<br />

que as protagonizam. A sobrevalorização<br />

da escala supranacional, por exemplo, é reveladora<br />

da hegemonia dos sujeitos/grupos/classes<br />

sociais que se afirmam a partir <strong>de</strong>ssa escala<br />

<strong>de</strong> ação (PORTO-GONÇALVES, 2001).<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

13


se reinventa 23 e ten<strong>de</strong>, cada vez mais, a jogar um papel inovador nas novas configurações<br />

territoriais que estão sendo gestadas no mundo contemporâneo.<br />

23<br />

Talvez não haja formação social em que a<br />

expressão “reinvenção” seja tão redundante<br />

quanto no campesinato. Afinal, foi múltipla<br />

a sua convivência com outras formações<br />

envolventes ao longo da história.<br />

O MST: logros e <strong>de</strong>safios da reinvenção do campesinato<br />

A socieda<strong>de</strong> brasileira passou por profundas transformações com um <strong>de</strong>senvolvimento<br />

capitalista sem prece<strong>de</strong>ntes sob a ditadura, conhecido como milagre brasileiro, que, por<br />

suas contradições, ensejou que um vigoroso e multifacetado movimento social surgisse<br />

no campo como resistência a esse mo<strong>de</strong>lo nacional-globalizado. Relembremos que 1970<br />

foi a primeira vez, em nosso censo <strong>de</strong>mográfico, que a população urbana ultrapassou a<br />

rural. De lá para cá esse processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sruralização e suburbanização acentuou-se,<br />

ensejando diferentes tensões com a expansão viária e com a construção <strong>de</strong> barragens,<br />

que introduziram no léxico político outros protagonistas, como o Movimento pela<br />

Sobrevivência na Rodovia Transamazônica ou na BR-364; os Povos da Floresta, com<br />

seringueiros aliando-se a indígenas; o Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens;<br />

os colonos do sul que, nos anos 1970, experimentavam a condição, nova para eles, <strong>de</strong><br />

sem-terra; além <strong>de</strong> indígenas e <strong>de</strong> quilombolas, enfim, o campesinato e <strong>de</strong>mais<br />

trabalhadores rurais, comunida<strong>de</strong>s indígenas e <strong>de</strong> afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes que se reinventaram<br />

social, cultural e politicamente nesse novo contexto político nacional-globalizado. A partir<br />

<strong>de</strong> então e <strong>de</strong>finitivamente, a experiência da diferença estará presente no movimento social<br />

do campo brasileiro, constituindo-se num dos seus maiores <strong>de</strong>safios epistêmico-políticos.<br />

A própria experiência da Fazenda Anoni, apontada por muitos como marco da criação do<br />

MST, em 1976, é marcada pela experiência da diferença, no caso dramática, posto que<br />

vivenciada por famílias <strong>de</strong> trabalhadores rurais sem-terra expulsos do território indígena<br />

que haviam ocupado. Ali, <strong>de</strong> fato, constitui-se a primeira romaria da terra, com colonos<br />

vivenciando a experiência <strong>de</strong> uma fronteira que se fecha e, no caso, pela afirmação dos<br />

direitos dos povos indígenas que ali já se manifesta. Des<strong>de</strong> então, não só os sem-terra mas<br />

também os povos indígenas passarão a <strong>de</strong>sempenhar um <strong>de</strong>stacado papel na problemática<br />

agrária brasileira ao protagonizarem lutas por <strong>de</strong>marcação dos seus territórios.<br />

Talvez uma das mais ricas contribuições do Movimento dos Trabalhadores Rurais<br />

Sem-Terra seja exatamente essa da experiência da diferença que, todavia, é bom que se<br />

registre, até mesmo pela novida<strong>de</strong> e pela envergadura do <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> que se reveste, não<br />

está livre <strong>de</strong> contradições.<br />

Essa mesma experiência da Fazenda Anoni, numa escala geográfica mais ampla, será<br />

vivenciada na Amazônia por populações vindas <strong>de</strong> todo o Brasil, com a crescente mobilida<strong>de</strong><br />

da população ensejada pelo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, a partir dos anos 60. A<br />

construção <strong>de</strong> rodovias como a Belém-Brasília (1962), a Transamazônica (1970), a BR-<br />

364 (ligando Cuiabá-MT a Porto Velho-RO e a Rio Branco-AC), a BR-173 (<strong>de</strong> Cuiabá<br />

para o Norte e hoje já chegando a Santarém-PA) e a BR-174 (ligando Manaus-AM a Boa<br />

Vista-RR e daí a Caracas, na Venezuela), assim como várias obras <strong>de</strong> integração ao capitalismo<br />

nacional-globalizado, como as hidrelétricas <strong>de</strong> Balbina e <strong>de</strong> Tucuruí, na Amazônia,<br />

e <strong>de</strong> Itaipu, no sul do país, ensejarão a experiência da diferença, quase sempre vivida<br />

<strong>de</strong> maneira dramática, como bem expressaria, já em 1971, o Bispo da Prelazia <strong>de</strong> São<br />

14<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga, em seu documento Uma igreja na Amazônia em<br />

conflito com o latifúndio e com a marginalização social. É <strong>de</strong>sse cenário que, em 1975, sairá a CPT<br />

– Comissão Pastoral da Terra. 24 Assim como a expansão da fronteira se fechava no Sul,<br />

na Fazenda Anoni, o cerco também se fechava no Norte, na Amazônia. Muitos dos<br />

colonos gaúchos que foram para a Amazônia protagonizarão movimentos sociais na<br />

própria região — Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica (José Geraldo e<br />

Ailton Faleiro), Projeto RECA, na BR-364, na fronteira do Acre com Rondônia —, assim<br />

como muitos dos retornados 25 se engajarão na criação do MST, já nos anos 80. Embora<br />

muitos autores afirmem a forte presença dos sulistas na formação do MST, é fundamental<br />

que resgatemos a presença, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, <strong>de</strong> diferentes experiências, sobretudo daquela<br />

que, via CPT, vem do Centro Oeste e da Amazônia, em que se <strong>de</strong>staca a região do<br />

Bico do Papagaio (entre Maranhão, Pará, Tocantins e Mato Grosso), on<strong>de</strong> os conflitos<br />

assumem características dramáticas <strong>de</strong> violência. Dessas múltiplas experiências é que surgirá<br />

o MST, buscando conformar um projeto nacional a partir do campo brasileiro num<br />

contexto cada vez mais mundializado.<br />

Um dos objetivos centrais do MST na luta pela reforma agrária é a luta contra o<br />

latifúndio enquanto fonte que sustenta uma estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r extremamente <strong>de</strong>sigual<br />

que, no Brasil, adquire enorme importância exatamente pela extrema concentração<br />

fundiária. Já vimos como, ao contrário do que muitos vêm assinalando (NAVARRO, 2002a),<br />

o latifúndio vem não só se fortalecendo com a mo<strong>de</strong>rnização agrícola, como mantendo<br />

as mesmas práticas autoritárias e violentas (CPT, 2005) que sempre caracterizaram nossa<br />

formação social. A centralida<strong>de</strong> e a atualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa luta são, portanto, um dos maiores<br />

acertos do MST na sua estratégia política, que vem sendo posta em prática por meio <strong>de</strong><br />

ocupações <strong>de</strong> terra e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2000, por meio também <strong>de</strong> acampamentos. 26 O acerto da<br />

estratégia, todavia, longe está <strong>de</strong> significar êxito, como <strong>de</strong>monstram a lentidão da Reforma<br />

Agrária, mesmo no Governo Lula, e o aumento da concentração fundiária no país,<br />

apesar do sucesso localizado das ações do MST. Muito embora, como reconhecem seus<br />

próprios críticos,<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar a estrutura <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> da terra estivesse inscrita na agenda política<br />

brasileira há longo tempo e alguns governos, na história do país, adotassem posturas favoráveis<br />

à implantação <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> reforma agrária, o fato é que a multiplicação <strong>de</strong> assentamentos, em<br />

número crescente e sem prece<strong>de</strong>nte, nos últimos cinco anos relaciona-se diretamente às pressões<br />

realizadas pelo MST (e, em alguns Estados, pelo movimento sindical <strong>de</strong> trabalhadores rurais) [...]<br />

(NAVARRO, 2002a, p. 213).<br />

E o mesmo autor vai mais longe quando afirma que<br />

as ocupações <strong>de</strong> terra, com efeito, têm sido <strong>de</strong>cisivas para impulsionar o programa <strong>de</strong> reforma<br />

agrária. Girando em torno <strong>de</strong> 100 ocupações, em todo o país, nos primeiros anos da década <strong>de</strong><br />

1990, cresceram exponencialmente a partir <strong>de</strong> 1996, quando atingiram 398 ocupações, chegando a<br />

quase 600 dois anos <strong>de</strong>pois, com pequena queda nos anos mais recentes (Ibi<strong>de</strong>m, p. 213),<br />

24<br />

Observe-se que o primeiro coor<strong>de</strong>nador<br />

nacional da CPT foi o bispo D. Moacir Grechi,<br />

da Prelazia do Acre-Purus, nascido em Santa<br />

Catarina.<br />

25<br />

Foi criado até mesmo o neologismo <strong>de</strong><br />

matucho, para expressar os muitos gaúchos<br />

retornados do Mato Grosso.<br />

26<br />

Com a legislação criada no governo FHC <strong>de</strong><br />

proibir a <strong>de</strong>sapropriação das terras ocupadas,<br />

o MST passou a fazer uso <strong>de</strong> uma nova<br />

tática, com acampamentos à beira da estrada<br />

ou por meio <strong>de</strong> ocupações <strong>de</strong> terras próximas<br />

daquelas a cuja <strong>de</strong>sapropriação visava.<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

15


voltando a crescer nos dois últimos anos do governo FHC e, principalmente, nos dois<br />

primeiros anos do governo Lula (para dados mais atualizados ver CPT, 2004 e 2005 ou<br />

consultar http://www.mst.org.br). Além <strong>de</strong> manter a Reforma Agrária como tema no<br />

cenário político brasileiro, o que já não é pouco em face das múltiplas estratégias <strong>de</strong><br />

esvaziar sua centralida<strong>de</strong> e atualida<strong>de</strong> na conformação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais justa e<br />

<strong>de</strong>mocrática, o MST com seus assentamentos 27 e <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>s, como cooperativas 28<br />

e escolas, 29 vem sendo responsável por dinamizar economicamente regiões antes<br />

27<br />

Segundo Horácio Martins Carvalho (2002,<br />

p. 251), “até o final do ano 2000 havia aproximadamente<br />

250.000 famílias em cerca <strong>de</strong><br />

1.500 assentamentos que se i<strong>de</strong>ntificavam<br />

com o MST. Isso significou uma área<br />

libertada do po<strong>de</strong>r dos capitalistas <strong>de</strong> sete<br />

milhões <strong>de</strong> hectares”.<br />

28<br />

Ainda segundo o mesmo autor, “nesses assentamentos,<br />

até junho <strong>de</strong> 2001, foram constituídas<br />

e estão em operação 49 Cooperativas<br />

<strong>de</strong> Produção Agropecuária – CPA (regime<br />

coletivista) abrangendo 2.299 famílias, 32<br />

Cooperativas <strong>de</strong> Prestação <strong>de</strong> Serviços – CPS<br />

envolvendo 11.174 famílias, e mais sete cooperativas,<br />

sendo duas <strong>de</strong> créditos, duas <strong>de</strong><br />

trabalho e três <strong>de</strong> pequenos produtores,<br />

totalizando esse conjunto <strong>de</strong> cooperativas<br />

13.473 famílias envolvidas. Estão em operação<br />

nesses assentamentos 70 unida<strong>de</strong>s<br />

agroindustriais do SCA – Sistema <strong>de</strong> Cooperativismo<br />

dos Assentamentos, e mais 27 em<br />

projeto. Paralelamente ao SCA, foram constituídas<br />

centenas <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> produtores<br />

induzidas pelas políticas públicas como<br />

indispensáveis para o recebimento <strong>de</strong> créditos<br />

rurais subsidiados” (CARVALHO, 2002, p. 251).<br />

29<br />

“Nos assentamentos, em julho <strong>de</strong> 2000,<br />

havia 1.800 escolas <strong>de</strong> ensino fundamental<br />

(1ª à 4ª série) com 3.800 educadores e 150 mil<br />

estudantes; 1.200 educadores <strong>de</strong> jovens e<br />

adultos e 25.000 educandos jovens e adultos;<br />

250 cirandas infantis (nome dado pelo MST às<br />

creches) e 25 trabalhadores rurais sem-terra<br />

cursando medicina em Cuba, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas<br />

<strong>de</strong> outros cursando escolas <strong>de</strong> nível superior<br />

no Brasil. O MST mantém, por intermédio<br />

do setor <strong>de</strong> educação, seis cursos <strong>de</strong><br />

formação <strong>de</strong> educadores e técnicos, três escolas<br />

<strong>de</strong> ensino médio em áreas <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong><br />

cooperativas e organização da produção, e<br />

um curso supletivo <strong>de</strong> 1° e 2° graus. O MST<br />

estabeleceu convênios em acordos com 25<br />

universida<strong>de</strong>s, entre públicas e privadas, para<br />

a realização <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> cursos”<br />

(CARVALHO, 2002, p. 255) e, em janeiro <strong>de</strong> 2005,<br />

fundou sua própria universida<strong>de</strong>, a Florestan<br />

Fernan<strong>de</strong>s, em Guararema, São Paulo.<br />

adormecidas, com a chegada da organização dos sem-terra e seus lí<strong>de</strong>res, ou seja, por um novo<br />

conjunto <strong>de</strong> “agricultores-tornados-dirigentes-municipais”, que passaram a pressionar mais<br />

intensamente as instituições locais, interferindo mais incisivamente na implantação das políticas<br />

governamentais e, em especial, passando a exercer maior vigilância sobre as práticas políticas.<br />

Essas pequenas regiões subnacionais revitalizadas são inúmeras, espalhadas em quase todo o<br />

Brasil, respon<strong>de</strong>ndo pelo nascimento <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> famílias rurais participativas e, em<br />

conseqüência, contribuindo para a <strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong> seus respectivos municípios. Como resultado,<br />

a multiplicação dos assentamentos em praticamente todos os Estados tem provocado,<br />

especialmente, a renovação política <strong>de</strong>sses rincões rurais, <strong>de</strong>mocratizando-os lentamente e<br />

produzindo novas práticas sociais, antes comandadas especialmente pelos gran<strong>de</strong>s proprietários<br />

rurais (NAVARRO, 2002a, p. 212-213).<br />

Consi<strong>de</strong>remos, ainda, o número <strong>de</strong> pessoas que encontram acesso à terra nesses assentamentos<br />

para que tenhamos uma idéia <strong>de</strong> como o MST vem, também, contribuindo<br />

para não engordar as dramáticas cifras <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego nas cida<strong>de</strong>s, não por falta <strong>de</strong><br />

dinamismo da economia mas, ao contrário, pelo novo dinamismo <strong>de</strong>rivado da revolução<br />

nas relações-sociais-e-<strong>de</strong>-po<strong>de</strong>r-por-meio-da-tecnologia (telemática, robótica,<br />

nanotecnologias e biotecnologias).<br />

O fato <strong>de</strong> diferentes segmentos sociais, como arrendatários, assalariados rurais, posseiros,<br />

sem-terra e camponeses variados (geraizeiros no Norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong>, mulheres<br />

quebra<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> coco babaçu no Maranhão e Tocantins, retireiros no Araguaia, seringueiros<br />

na Amazônia), viverem todos, <strong>de</strong> diferentes modos, conflitos com o capital<br />

nacional-globalizado coloca-os frente ao <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> unificarem suas lutas. Eis o que,<br />

talvez, seja o maior <strong>de</strong>safio a ser enfrentado por esses diferentes grupos/classes/camadas<br />

sociais que, assim, exigem mediadores criativos e com clareza <strong>de</strong>sse duplo movimento<br />

entre a diversida<strong>de</strong> e a unida<strong>de</strong> na luta pela igualda<strong>de</strong> e pela diferença. O MST<br />

vem vivendo essa experiência, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> modo contraditório.<br />

Sublinhe-se, para evitar mal-entendidos, que a caracterização como contraditório não é<br />

juízo <strong>de</strong> valor. Mais ainda, sustentarei que qualquer tentativa <strong>de</strong> unificação <strong>de</strong> formações<br />

sociais tão distintas como as que se dão no campo, e não só no seio do próprio<br />

campesinato, será sempre contraditória, conforme bem <strong>de</strong>monstrou Pierre An<strong>de</strong>rson<br />

(1984) na formação absolutista do Estado Mo<strong>de</strong>rno. Esse é o <strong>de</strong>safio e, diria, também a<br />

qualida<strong>de</strong> que a nova questão agrária e os diferentes movimentos sociais no campo trazem<br />

e que o MST vem contraditória e criativamente buscando construir, qual seja, trazer<br />

a diferença para o centro do <strong>de</strong>bate político <strong>de</strong> modo radical e não simplesmente retórico,<br />

16<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


tão ao gosto dos pós-mo<strong>de</strong>rnos (ANDERSON, 1984; PORTO-GONÇALVES, 2001). Assim,<br />

para além da caracterização do MST como “um tipo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> em re<strong>de</strong> com<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> projeto” (CARVALHO, 2002) ou como a daqueles que tentam<br />

<strong>de</strong>squalificá-lo pela “mobilização sem emancipação” (NAVARRO, 2002b) ou pela i<strong>de</strong>ologia<br />

dos seus dirigentes, que “sonham com a tomada do Palácio <strong>de</strong> Inverno” (ibi<strong>de</strong>m),<br />

estamos, ao contrário, diante <strong>de</strong> uma questão muito mais profunda do que <strong>de</strong> organização<br />

política, que, aliás, ten<strong>de</strong> a ser um tema do campo dos mediadores, com toda sua<br />

violência simbólica característica, 30 porque há uma tensão permanente entre a diversida<strong>de</strong><br />

das temporalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas formações sociais e, ao mesmo tempo, a<br />

necessida<strong>de</strong> da unida<strong>de</strong> posta pelo capital nacional-globalizado. O MST vem mantendo<br />

uma criativa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organização nacional <strong>de</strong>ssas lutas, o que sempre implica unificar<br />

temporalida<strong>de</strong>s distintas, e, com freqüência, tensões e contradições se manifestam.<br />

A própria multiplicação <strong>de</strong> siglas <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s no campo brasileiro é uma das expressões<br />

não só da luta entre mediadores, mas também <strong>de</strong>ssa permanente tensão entre a<br />

diversida<strong>de</strong> e a unida<strong>de</strong>. 31 Muitas <strong>de</strong>las surgem, inclusive, nas divergências com o MST e<br />

não somente por professar i<strong>de</strong>ologias que algum mediador julgue não conveniente. A<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas lutas, o que nos parece óbvio, não po<strong>de</strong> se tornar uma<br />

virtu<strong>de</strong> em si mesma, sob pena <strong>de</strong> matar a diversida<strong>de</strong>, principal riqueza do campesinato<br />

e das diferentes formações sociais do mundo rural que, cada dia mais, se enriquece com<br />

novos protagonistas, como o indigenato (Darci Ribeiro) no Equador, na Bolívia e na<br />

Guatemala ou como os afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e quilombolas no Brasil (pallenque na Colômbia<br />

e no Panamá). Observe-se que o MST se <strong>de</strong>senvolve sobretudo num momento <strong>de</strong> crise<br />

tanto dos partidos <strong>de</strong> esquerda, como das organizações em torno das quais havia<br />

construído sua cultura política, como os sindicatos. Há um legado teórico da esquerda<br />

do qual o MST se apropria, como po<strong>de</strong> ser visto em seus documentos e nos livros <strong>de</strong><br />

suas principais li<strong>de</strong>ranças. Todavia, enquanto movimento social, o MST tem também<br />

mantido uma rica e ambígua, alguns diriam dialética, relação entre a institucionalida<strong>de</strong> e<br />

a autonomia, entre a reforma e a revolução, para nos manter no escopo discursivo do<br />

campo da esquerda. No lugar <strong>de</strong> visar à tomada do po<strong>de</strong>r, como alguns intelectuais,<br />

quase sempre ex-assessores do movimento, afirmam (NAVARRO, 2002b), o MST tem<br />

assumido a mundana e contraditória tarefa <strong>de</strong> criar espaços <strong>de</strong> vida própria, <strong>de</strong> autonomia<br />

nas ocupações, nos acampamentos e nos assentamentos, por meio <strong>de</strong> cooperativas<br />

e escolas, recuperando as melhores tradições anarquistas (<strong>Universida<strong>de</strong></strong>s Livres, por exemplo).<br />

A evidência empírica mostra que ele não está esperando “a tomada do Palácio <strong>de</strong><br />

Inverno” mas sim, criando espaços <strong>de</strong> vida, já aqui e agora, embora suas li<strong>de</strong>ranças não<br />

<strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> acalentar sonhos maiores. Ao mesmo tempo, o MST vem conclamando outros<br />

segmentos da socieda<strong>de</strong> a se mobilizarem, não só porque “a reforma agrária é uma<br />

luta <strong>de</strong> todos”, como seu slogan afirma, como também vêm se colocando explicitamente<br />

temas <strong>de</strong> interesse geral, como na recente Marcha a Brasília, em maio <strong>de</strong> 2005 (Ver Box 1<br />

ou consultar http://www.mst.org.br).<br />

Uma nova configuração da questão agrária está em curso e novas questões têm se<br />

apresentado ao <strong>de</strong>bate, como é o caso dos organismos laboratorialmente modificados<br />

30<br />

É preciso estar atento para um fato presente<br />

nas principais críticas feitas ao MST, entre<br />

as quais se inscrevem as <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Souza<br />

Martins (2003) e Zan<strong>de</strong>r Navarro (2002a, b)<br />

que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da qualida<strong>de</strong> intelectual<br />

que já <strong>de</strong>monstraram em outras situações,<br />

revelam um forte componente emocional<br />

que, em parte, po<strong>de</strong> ser explicado pelo<br />

fato <strong>de</strong> terem sido assessores do movimento,<br />

condição que, por razões diversas, per<strong>de</strong>ram.<br />

Criticar o MST, como fez recentemente José<br />

<strong>de</strong> Souza Martins (2003), por dar o nome <strong>de</strong><br />

Florestan Fernan<strong>de</strong>s à sua recém-criada universida<strong>de</strong>,<br />

chega a ser pueril.<br />

31<br />

As 471 ocupações <strong>de</strong> terra efetuadas em<br />

2004 contaram com nada mais nada menos<br />

que 49 entida<strong>de</strong>s diferentes. O MST<br />

participou em 57% <strong>de</strong>sse total, sendo <strong>de</strong><br />

longe a entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maior protagonismo.<br />

Todas as outras 48 entida<strong>de</strong>s somadas foram<br />

responsáveis por 43% do total, segundo<br />

o DATALUTA.<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

17


32<br />

Aliás, é bom que se diga, que o tema é<br />

controvertido porque há sujeitos que colocam<br />

diferentes versões contrárias, não havendo,<br />

assim, consenso sobre ele. O MST e<br />

a Via Campesina, assim como vários cientistas<br />

e intelectuais em geral, têm sido a<br />

contraparte que, por seu lado, contribui para<br />

a controvérsia.<br />

33<br />

É essa pobreza genética que torna os<br />

agroecossistemas monocultores vulneráveis<br />

a insetos e ao que chamam <strong>de</strong> pragas<br />

daí o consumo <strong>de</strong> todo o pacote <strong>de</strong> inseticida,<br />

fungicida, praguicida, assim <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

do consumo <strong>de</strong> energia importada.<br />

Em regiões tropicais, on<strong>de</strong> é enorme a insolação,<br />

isso significa abandonar a disponibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> energia solar direta, enfim, a<br />

fotossíntese, que bem po<strong>de</strong>ria ser mais bem<br />

aproveitada se houvesse um diálogo <strong>de</strong><br />

saberes e não, a colonialida<strong>de</strong> que, ainda,<br />

se impõe e que nega o valor <strong>de</strong>ssas outras<br />

matrizes <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> que se construíram<br />

com e não contra a natureza.<br />

que, mais uma vez me vejo obrigado a dizer, são mais do que um tema controvertido,<br />

como assinala Navarro (2002a, p. 211). Trata-se <strong>de</strong> um tema estratégico para todos os<br />

envolvidos nas lutas emancipatórias, sobretudo no campo. Afinal, esse tema não po<strong>de</strong><br />

ser resumido ao <strong>de</strong>bate acerca da poluição do ambiente, em si mesmo importante, na<br />

medida que diz respeito à possibilida<strong>de</strong> real, que hoje e pela primeira vez na história da<br />

humanida<strong>de</strong> se coloca, <strong>de</strong> separar a produção do alimento da sua reprodução por meio<br />

das sementes industrializadas (SHIVA, 2001). É, portanto, um tema rigorosamente vital<br />

para todos os que se colocam numa perspectiva emancipatória e, assim, é muito mais do<br />

que um tema controvertido. 32 O envolvimento do MST e da Via Campesina nesse tema<br />

torna-o estratégico, e não só para eles mesmos, mas para toda a humanida<strong>de</strong>. Toda a<br />

questão da qualida<strong>de</strong> do alimento, cada dia mais, se coloca até mesmo em função <strong>de</strong><br />

rupturas nas ca<strong>de</strong>ias alimentares das quais acreditávamos, enquanto seres humanos, po<strong>de</strong>r<br />

escapar. Des<strong>de</strong> o aci<strong>de</strong>nte na Baía <strong>de</strong> Minamata no Japão, em 1951, aos recentes<br />

casos da vaca louca, da tuberculose asiática ou da gripe do frango, a natureza volta a<br />

adquirir centralida<strong>de</strong> no <strong>de</strong>bate do <strong>de</strong>vir histórico e, com isso, traz para o centro da cena<br />

uma série <strong>de</strong> sujeitos sociais que acreditávamos estarem fadados à extinção e que emergem<br />

dos campos, dos cerrados, das florestas, dos mangues e dos povos que teceram<br />

suas matrizes <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> com esses ambientes. Aliás, essas populações são hoje<br />

<strong>de</strong>tentoras <strong>de</strong> um acervo <strong>de</strong> conhecimento diversificado, um dos mais ricos patrimônios<br />

da humanida<strong>de</strong>, e habitam os maiores acervos <strong>de</strong> biodiversida<strong>de</strong>, posto que são áreas<br />

que ficaram a salvo das monoculturas e <strong>de</strong> sua pobre diversida<strong>de</strong> genética, 33 típicas da<br />

agricultura capitalista. A questão agrária então se urbaniza, e uma internacional camponesa<br />

como a Via Campesina, da qual o MST é um dos principais protagonistas, faz sentido.<br />

Há, assim, um linha que aproxima tanto a Monsanto ao McDonald como, contraditoriamente,<br />

os agricultores franceses ao MST, aos camponeses e indígenas hondurenhos,<br />

aos zapatistas, aos cocaleros, aos mapuche, aos indigenatos equatorianos e mexicanos,<br />

aos piqueteros, aos sem-teto...<br />

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2004. p. 17-32.<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

19


Box 1<br />

Para pensar alternativas ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

Para <strong>de</strong>senvolver a Inglaterra foi necessário o planeta inteiro.<br />

O que será necessário para <strong>de</strong>senvolver a Índia? (GHANDI)<br />

Há um senso comum, em boa parte estimulado pelo que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> senso<br />

comum científico, <strong>de</strong> que a humanida<strong>de</strong> caminha em direção à urbanização. É o que<br />

está subjacente à idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, tanto na matriz liberal como em setores<br />

que se preten<strong>de</strong>m seus críticos, como as correntes hegemônicas marxistas. 34 Já é gran<strong>de</strong><br />

a literatura que, sobretudo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 50, vem questionando essa idéia, muito embora<br />

gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>la se faça em torno da busca <strong>de</strong> alternativas <strong>de</strong>, e não ao, <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Todavia, estatísticas recentes da ONU dão-nos conta <strong>de</strong> que, em 2001, mais da meta<strong>de</strong><br />

da população mundial (53%) era rural; é isto mesmo: em 2001, somente 47% da<br />

população mundial era urbana (ONU, 2003). A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> toda a celeuma sobre esses<br />

conceitos que, <strong>de</strong>certo, <strong>de</strong>vem ser sempre historicizados, esses dados surpreen<strong>de</strong>m. É<br />

certo que essa distribuição rural/urbana é extremamente <strong>de</strong>sigual segundo os continentes,<br />

as regiões e os países, dir-nos-ão alguns. Todavia, o que nos instiga é o fato <strong>de</strong> que,<br />

mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 200 anos <strong>de</strong> intenso <strong>de</strong>senvolvimento capitalista no mundo e mesmo<br />

sob a forte i<strong>de</strong>ologia urbano-industrial eurocêntrica, mais da meta<strong>de</strong> da população<br />

mundial viva na área rural. Tanto a mídia como a própria aca<strong>de</strong>mia, entretanto, ainda<br />

pensam o <strong>de</strong>stino da humanida<strong>de</strong> ignorando esses dados, como se a população mundial<br />

fosse, simplesmente, ainda rural, on<strong>de</strong> a atenção recai no ainda. Assim, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

do que se passa no mundo, já se tem <strong>de</strong> antemão um <strong>de</strong>stino que a humanida<strong>de</strong><br />

inelutavelmente haverá <strong>de</strong> seguir, qual seja, o <strong>de</strong>stino das socieda<strong>de</strong>s urbano-industriais<br />

da matriz epistêmico-política européia norte-oci<strong>de</strong>ntal.<br />

A questão torna-se ainda mais intrigante quando se nota que a maior parte da população<br />

urbana do mundo não está ali on<strong>de</strong> se imagina que esteja, ou seja, na Europa, nos<br />

EUA ou no Japão. Ao contrário da i<strong>de</strong>ologia urbano-industrial eurocêntrica, 70% da<br />

população urbana mundial está na Ásia, na África e na América Latina, e, <strong>de</strong>sse modo,<br />

o urbano realmente existente é muito diferente daquele prometido pela i<strong>de</strong>ologia progressista<br />

eurocêntrica. Enfim, mais <strong>de</strong> 2/3 dos urbanos do mundo vivem um cotidiano<br />

dramático nas favelas e vilas-misérias da Cida<strong>de</strong> do México, <strong>de</strong> São Paulo, <strong>de</strong> Bogotá, <strong>de</strong><br />

El Alto-La Paz, <strong>de</strong> Caracas, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> Quito e até mesmo <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />

para ficarmos somente com exemplos <strong>de</strong> Nuestra América.<br />

Samir Amim oferece-nos um quadro das classes sociais urbanas no mundo que nos<br />

sinaliza para a gravida<strong>de</strong> das contradições que ora atravessamos.<br />

34<br />

Aqui, no plural mesmo, para indicar<br />

que há, <strong>de</strong>ntro do marxismo, correntes<br />

que escapam a essa tradição.<br />

20<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


Classes sociais da população urbana mundial<br />

(milhões <strong>de</strong> habitantes)<br />

Centro Periferia Mundo<br />

Classes Médias e Ricas 330 390 720<br />

Classes Populares<br />

Estabilizados 390 330 720<br />

Precários 270 1.290 1.560<br />

Total Classes Populares 660 1.620 2.280<br />

Total Geral 990 2.010 3.000<br />

Fonte: AMIM, 2003.<br />

Os dados <strong>de</strong> Samir Amim confirmam os da ONU quanto à distribuição rural/urbana e<br />

quanto aos 2/3 <strong>de</strong> urbanos morando na periferia do sistema capitalista mundial. E, para<br />

além da miséria e da precarieda<strong>de</strong> das populações dos países da periferia, verda<strong>de</strong> tão<br />

salientada como confirmada pelos dados acima, é preciso <strong>de</strong>stacar que 54% das classes<br />

médias e ricas do mundo estão nos países da periferia e não, nos países centrais, como se<br />

quer fazer crer (390 milhões contra 330 milhões). Assim, as classes médias e ricas da periferia<br />

do sistema capitalista mundial não são simplesmente acessórias para a reprodução das<br />

assimétricas relações sociais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que conformam o mundo contemporâneo, se não<br />

por outras razões, pela <strong>de</strong>manda solvável que constituem, apesar <strong>de</strong> não terem a hegemonia<br />

cultural e i<strong>de</strong>ológica e, talvez exatamente por isso, serem tão propícias a a<strong>de</strong>rir à i<strong>de</strong>ologia<br />

<strong>de</strong> ser “<strong>de</strong> primeiro mundo”, como vulgarmente se diz. Ainda assim, 270 dos 990 milhões<br />

<strong>de</strong> urbanos dos países centrais, ou seja (27%), são trabalhadores precários, a maior parte<br />

<strong>de</strong>les, sabemos, imigrantes dos países da periferia. E nos países da periferia, apesar <strong>de</strong> aí<br />

estarem 54% das classes médias e ricas urbanas do mundo, 64% <strong>de</strong> seus urbanos são<br />

formados por trabalhadores precários, o que talvez nos aju<strong>de</strong> a enten<strong>de</strong>r as dificulda<strong>de</strong>s,<br />

nesses países, <strong>de</strong> regimes políticos fundados em princípios como os <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e cidadania,<br />

característicos das <strong>de</strong>mocracias liberais, ou <strong>de</strong> interesse público, como nos regimes<br />

republicanos. A or<strong>de</strong>m política mundial, vê-se, joga um papel insubstituível, embora não<br />

exclusivo, na sustentação das elites e classes dominantes nos países da periferia, na medida<br />

que estas não conseguem tornar seu po<strong>de</strong>r legítimo, enfim, exercer a hegemonia (Gramsci)<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus próprios países. 35<br />

Ao contrário da velha cantilena do fim do campesinato e dos preconceitos à esquerda<br />

e à direita ainda cultivados, vemos hoje a criação <strong>de</strong> uma internacional camponesa, a Via<br />

Campesina, impensável nos marcos teórico-políticos até aqui dominantes. Assim, aqueles<br />

que estariam fadados ao <strong>de</strong>saparecimento — os camponeses, os indígenas, os<br />

afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes — vêm à cena, exigindo o direito à voz e recusando a con<strong>de</strong>nação a<br />

que haviam sido submetidos à sua própria revelia. Numa época em que a água, o solo, a<br />

diversida<strong>de</strong> biológica (as plantas e os animais) passam a ser objeto <strong>de</strong> intenso <strong>de</strong>bate<br />

político, aquelas(es) que <strong>de</strong>senvolveram seus conhecimentos em contato com a vida ganham<br />

uma importância que, até aqui, lhes foi negada por uma colonialida<strong>de</strong> do saber<br />

que sobreviveu ao colonialismo. Tudo isso nos obriga a repensar a geografia imaginária<br />

do po<strong>de</strong>r que nos conforma.<br />

35<br />

E a or<strong>de</strong>m política mundial, sabemos,<br />

não se baseia nos mesmos princípios do<br />

que se convencionou chamar <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong><br />

civil, até porque nessa escala internacional<br />

o Estado é o ente político por excelência.<br />

Lembremos que a or<strong>de</strong>m política<br />

mundial tem como sujeito instituinte,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Vestfallia (1648), o Estado-Nação e<br />

não, as nações e seus povos. À época, na<br />

própria Europa, o soberano era o Rei e<br />

não, o povo. O povo só a<strong>de</strong>ntraria à Política<br />

como ente soberano com as revoluções<br />

americana (1776) e francesa (1789).<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

21


36<br />

Incluo aqui os 29 garimpeiros invasores<br />

das terras indígenas assassinados<br />

pelos índios Pacaás Novos, na fronteira<br />

entre Mato Grosso e Rondônia.<br />

37<br />

Em 2005, segundo o MST, existem<br />

cerca <strong>de</strong> 200.000 famílias acampadas e<br />

350.000 famílias assentadas.<br />

38<br />

Embrapa – Empresa Brasileira <strong>de</strong><br />

Agropecuárias, uma instituição nacional<br />

reconhecida mundialmente pela<br />

excelência <strong>de</strong> suas investigações científicas<br />

e, principalmente, tecnológicas.<br />

Box 2 O MST e o governo Lula<br />

A chegada <strong>de</strong> Lula da Silva ao governo, em 2003, trouxe a expectativa <strong>de</strong> que, afinal, a<br />

reforma agrária seria feita para além das retóricas com que a questão sempre fora tratada.<br />

Des<strong>de</strong> então, a temperatura política no campo subiu, como po<strong>de</strong> ser visto pelo aumento<br />

do número <strong>de</strong> conflitos, <strong>de</strong> pessoas assassinadas (73, em 2003, e 68, 36 em 2004) e <strong>de</strong><br />

famílias <strong>de</strong>spejadas, que, só em Mato Grosso, foi equivalente a 6,2% <strong>de</strong> toda a população<br />

rural no ano <strong>de</strong> 2003. Além disso, assinale-se, as ações <strong>de</strong> violência institucionalizada pelo<br />

po<strong>de</strong>r judiciário, sobretudo nas unida<strong>de</strong>s estaduais (provinciais), por meio <strong>de</strong> prisões e<br />

<strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns judiciais <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo aumentaram em níveis muito maiores que as ocupações<br />

<strong>de</strong> terra. Todos esses números se colocam entre os maiores, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a CPT começou,<br />

em 1985, a fazer registros sobre a violência no campo. Aumentou não só o número <strong>de</strong><br />

acampamentos e <strong>de</strong> ocupações 37 feitas pelos que lutam por reforma agrária como,<br />

sobretudo, a violência dos gran<strong>de</strong>s proprietários, principalmente nas áreas da agricultura<br />

mais mo<strong>de</strong>rna (Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, sul do Maranhão,<br />

oeste da Bahia, norte do Espírito Santo). O governo Lula, por seu lado, vem tomando o<br />

agronegócio como um dos seus pilares <strong>de</strong> sustentação, tendo até mesmo nomeado o<br />

Presi<strong>de</strong>nte da Associação Brasileira <strong>de</strong> Agribusiness, o Sr. Roberto Rodrigues, para Ministro<br />

da Agricultura e o Sr. Luis Fernando Furlan, proprietário <strong>de</strong> uma das maiores empresas<br />

brasileiras do setor agroindustrial, a Sadia, para seu Ministro do Desenvolvimento, Indústria<br />

e Comércio. O governo Lula também assumiu posições contrárias às dos que lutam pela<br />

reforma agrária em questões estratégicas, como a que culminou na liberação do plantio<br />

e comercialização <strong>de</strong> produtos transgênicos e, ainda, com a <strong>de</strong>missão do Sr. Clayton<br />

Campanhola da Presidência da Embrapa, 38 que tinha compromisso com um<br />

<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico com sentido <strong>de</strong>mocrático, já que voltado para a agricultura<br />

familiar, e a nomeação do Sr. Sílvio Crestana, cuja proposta vai na perspectiva da busca<br />

<strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong> internacional, no melhor jargão produtivista e economicista do<br />

agrobusiness. São, ainda, exageradamente <strong>de</strong>sproporcionais os recursos públicos <strong>de</strong>stinados<br />

aos poucos gran<strong>de</strong>s empresários do setor do agrobusiness vis-à-vis os <strong>de</strong>stinados aos milhões<br />

<strong>de</strong> pequenos produtores, conforme dados oficiais do orçamento da União (cerca <strong>de</strong><br />

R$28 bilhões contra aproximadamente US$4,5 bilhões em 2004).<br />

Tudo indica que há uma crença do governo Lula na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convivência entre o<br />

agrobusiness e a reforma agrária. Os dados e fatos acima não corroboram essa hipótese,<br />

bastando observar que a violência tem sido maior exatamente nas áreas mais mo<strong>de</strong>rnas e,<br />

ainda, o fato <strong>de</strong> a intensida<strong>de</strong> da ação do po<strong>de</strong>r judiciário crescer proporcionalmente mais<br />

que as ocupações e o número <strong>de</strong> conflitos. Várias situações, algumas vividas pessoalmente<br />

pelo próprio Presi<strong>de</strong>nte Lula, sinalizam essa contradição, como, por exemplo, aquela em<br />

que o Presi<strong>de</strong>nte, ao visitar, em finais <strong>de</strong> 2004, um acampamento no sul da Bahia, o Lulão,<br />

se comprometeu, em um discurso emocionado, com o pronto assentamento daquelas<br />

famílias. Ao sair do Lulão, o Presi<strong>de</strong>nte visitou, na mesma região, um dos maiores grupos<br />

empresariais do setor <strong>de</strong> papel e celulose, a Veracel do Grupo Aracruz. Ocorre que o<br />

órgão do governo responsável pelo setor da reforma agrária, o Incra, se diz sem recursos<br />

22<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


financeiros 39 para comprar terras para fazer o assentamento <strong>de</strong>finitivo dos que vivem no<br />

Lulão, não só pelos escassos recursos 40 <strong>de</strong>stinados ao órgão como, principalmente, pelo<br />

fato <strong>de</strong> o preço da terra ter subido exponencialmente com a expansão das empresas <strong>de</strong><br />

papel e celulose na região. E assim tem sido em diferentes regiões.<br />

Tudo isso, aliado aos números acanhados <strong>de</strong> assentamentos <strong>de</strong> famílias nos dois primeiros<br />

anos do governo Lula, levou o MST a <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar, em 2005, uma nova fase <strong>de</strong><br />

mobilização, cujo momento <strong>de</strong> maior visibilida<strong>de</strong> foi a Marcha Nacional pela Reforma<br />

Agrária, que chegou a Brasília em 17 <strong>de</strong> maio. O MST abandonou a proposta <strong>de</strong> pressionar<br />

o governo a assentar 1.000.000 <strong>de</strong> famílias, conforme promessa na campanha eleitoral,<br />

e acordou com o governo um novo compromisso <strong>de</strong> assentar 430 mil famílias até<br />

o seu final. Todavia, nem mesmo esse novo compromisso vem sendo cumprido. 41<br />

No documento entregue pelo MST ao governo na recente marcha, <strong>de</strong>staco sete pontos,<br />

não só por nos ajudarem na compreensão da leitura que o movimento vem fazendo<br />

do passado como pelo que apontam para o futuro, a saber:<br />

(1)o fato <strong>de</strong> o movimento, mesmo <strong>de</strong>pois da tão <strong>de</strong>cantada mo<strong>de</strong>rnização do campo<br />

brasileiro, ainda ter <strong>de</strong> reivindicar a punição <strong>de</strong> assassinos <strong>de</strong> trabalhadores rurais e<br />

(2)a nova amplitu<strong>de</strong> que a luta pela reforma agrária vem assumindo, com a exigência<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação das terras indígenas e daquelas das populações afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes em<br />

seus territórios <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> — os quilombos. Esse fato realmente inovador terá,<br />

sem dúvida, enormes conseqüências, até porque as elites brasileiras têm como política<br />

anti-reforma agrária, a colonização, ou seja, a expansão para terras supostamente<br />

vazias nas áreas consi<strong>de</strong>radas como fronteiras, o que não correspon<strong>de</strong> à realida<strong>de</strong><br />

posto que são ocupadas pelos povos originários (indígenas) e pelos quilombolas.<br />

Destaquem-se, ainda, as propostas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizar a <strong>de</strong>mocracia, para usar a bela<br />

expressão <strong>de</strong> Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2002), não só ao reivindicar<br />

(3)a <strong>de</strong>mocratização dos meios <strong>de</strong> comunicação (“a reforma agrária do ar”) mas,<br />

principalmente, ao assumir a luta pela combinação da <strong>de</strong>mocracia representativa<br />

com a <strong>de</strong>mocracia participativa, cuja importância Norberto Bobbio já salientara,<br />

através da<br />

(4)exigência <strong>de</strong> regulamentação dos plebisicitos e <strong>de</strong> outros processos <strong>de</strong> iniciativa<br />

popular. A experiência venezuelana <strong>de</strong> reinvenção <strong>de</strong>mocrática é, nesse sentido,<br />

alvissareira e sem dúvida constitui-se numa das mais importantes iniciativas contra as<br />

tradições clientelísticas, patrimonialistas e populistas. O documento entregue pelo<br />

MST, além <strong>de</strong> pautar questões globais diretamente ligadas ao mundo rural, como<br />

(5)a luta contra os organismos laboratorialmente modificados (mais conhecidos como<br />

transgênicos), torna mais uma vez públicas as buscas que o MST, por meio da Via<br />

Campesina, vem fazendo no sentido <strong>de</strong> se associar às lutas <strong>de</strong> povos oprimidos,<br />

vi<strong>de</strong> sua participação junto aos palestinos, e também alerta para<br />

(6)as contradições da própria política externa do governo Lula, sobretudo para sua<br />

equivocada presença militar no Haiti. Enfim, o MST, talvez como o mais importante<br />

movimento social organizado em torno do campesinato e dos <strong>de</strong>mais grupos sociais<br />

39<br />

No processo <strong>de</strong> negociação iniciado<br />

quando o MST se pôs em marcha em maio<br />

<strong>de</strong> 2005 consta a contratação <strong>de</strong> 4.000<br />

funcionários para o Incra, reivindicação<br />

que vem sendo sistematicamente negada<br />

pela área financeira do governo.<br />

40<br />

Dos R$3,7 bilhões <strong>de</strong>stinados ao Ministério<br />

da Reforma Agrária, R$2 bilhões<br />

estavam bloqueados em maio <strong>de</strong><br />

2005 pela área financeira do governo<br />

para garantir superavit fiscal.<br />

41<br />

Em 2003 o governo havia se comprometido<br />

a assentar 60.000 famílias<br />

e assentou somente 36.000. Em 2004,<br />

havia o compromisso <strong>de</strong> assentar<br />

115.000 famílias, e só foram assentadas<br />

81.200. Folha <strong>de</strong> São Paulo. São<br />

Paulo, 15 maio 2005.<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

23


e étnicos do campo, vem se apresentando junto com outros movimentos, por<br />

meio da Via Campesina, como guardiões do patrimônio <strong>de</strong> condições naturais <strong>de</strong><br />

reprodução material e simbólica que são vitais para a humanida<strong>de</strong>, entre as quais se<br />

inscrevem as suas<br />

(7)lutas pela água e pela preservação da fertilida<strong>de</strong> do solo, da riqueza da diversida<strong>de</strong><br />

biológica e <strong>de</strong> seus cultivares.<br />

Como se vê, estamos diante <strong>de</strong> novos protagonistas na cena política global, protagonistas<br />

estes com inscrições local/regional muito bem <strong>de</strong>finidas e que sinalizam para<br />

uma nova configuração da escala nacional num contexto mundializado.<br />

Box 3 A marcha a Brasília, maio <strong>de</strong> 2005<br />

O QUE PRECISA SER FEITO PARA MUDAR A VIDA DO POVO!<br />

Propostas do MST, da Via Campesina e dos Movimentos<br />

Sociais ao Governo Lula e para a socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong>bater<br />

No meio rural, na agricultura camponesa e na agricultura brasileira<br />

1. Cumprir a meta <strong>de</strong> assentar, até final do mandato, 430 mil famílias sem-terra,<br />

conforme prometido no Plano Nacional <strong>de</strong> Reforma Agrária.<br />

2. Implementar um programa <strong>de</strong> instalação <strong>de</strong> agroindústrias nos assentamentos e <strong>de</strong><br />

crédito especial para a reforma agrária.<br />

3. Defen<strong>de</strong>r a Amazônia e a biodiversida<strong>de</strong> brasileira contra os interesses das<br />

transnacionais e impedir o processo <strong>de</strong> privatização da água.<br />

4. Garantir o princípio da precaução e impedir a liberação do plantio comercial <strong>de</strong><br />

qualquer semente transgênica, antes que se tenha pesquisa <strong>de</strong> suas conseqüências para<br />

o meio ambiente e para a saú<strong>de</strong> das pessoas.<br />

5. Punir exemplarmente todos os fazen<strong>de</strong>iros responsáveis pela violência contra os<br />

trabalhadores, fe<strong>de</strong>ralizar o julgamento dos processos <strong>de</strong> assassinato e aprovar<br />

imediatamente a lei <strong>de</strong> expropriação das fazendas com trabalho escravo.<br />

6. Demarcar imediatamente todas as áreas indígenas, conforme <strong>de</strong>termina a Constituição,<br />

apoiar e valorizar a cultura dos povos indígenas e regulamentar todas as<br />

terras quilombolas.<br />

24<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A nova questão agrária e a reinvenção do campesinato: o caso do MST


Na política econômica<br />

7. Aplicar os 60 bilhões <strong>de</strong> reais do superávit primário anual, que é dinheiro do povo<br />

recolhido através dos impostos, em investimentos que gerem emprego para todos,<br />

em moradia popular, em saú<strong>de</strong> pública e em educação gratuita para todos os jovens;<br />

implementar programa para erradicar o analfabetismo em nossa socieda<strong>de</strong>.<br />

8. Baixar as taxas <strong>de</strong> juros reais (Selic) para o mesmo nível praticado nos Estados<br />

Unidos e em países vizinhos, como Venezuela e Argentina, ou seja, 2,5% ao ano e<br />

não, os 19,50% cobrados agora, que só dão lucro aos bancos.<br />

9. Aumentar o valor real do salário mínimo e o valor da aposentadoria para 454 reais<br />

mensais, em maio <strong>de</strong> 2005, e 566 reais, em maio <strong>de</strong> 2006, visando a distribuir renda<br />

e a melhorar as condições <strong>de</strong> vida dos mais pobres, honrando assim compromisso<br />

assumido pelo governo <strong>de</strong> dobrar o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra do salário durante seu mandato.<br />

10. Recuperar os controles governamental e público sobre o Banco Central e sobre a<br />

política monetária, impedindo a autonomia do banco, como querem e estão fazendo<br />

os banqueiros e o FMI.<br />

11. Não assinar o acordo da ALCA e não aceitar regras da OMC que afetem a economia<br />

brasileira, mantendo apenas acordos comerciais que possam beneficiar o povo.<br />

12. Realizar uma auditoria pública da dívida externa, como <strong>de</strong>termina a Constituição,<br />

e renegociar seu valor, pois já a pagamos diversas vezes, usando esses recursos em<br />

educação, conforme proposta da CNTE (Confe<strong>de</strong>ração Nacional dos Trabalhadores<br />

em Educação); renegociar a dívida publica interna, alongando seu pagamento sem<br />

prejudicar o orçamento da União.<br />

Na política em geral<br />

13. Mobilizar as bancadas no Congresso Nacional para aprovar a regulamentação do<br />

Plebiscito Popular (projeto <strong>de</strong> lei 4718/2004, apresentado pela OAB e pela CNBB),<br />

para que o povo possa <strong>de</strong>cidir sobre as questões fundamentais que lhe dizem respeito.<br />

14. Democratizar o uso dos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa no País, revendo as<br />

concessões políticas e liberando o uso das rádios e tevês comunitárias.<br />

15. Con<strong>de</strong>nar em todos os organismos internacionais a política <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong> violação<br />

<strong>de</strong> direitos humanos do governo Bush, exigindo a retirada das tropas estaduni<strong>de</strong>nses<br />

do Iraque; retirar imediatamente as tropas brasileiras do Haiti.<br />

16. Promover um verda<strong>de</strong>iro mutirão nacional, <strong>de</strong>batendo, junto à socieda<strong>de</strong>, um<br />

projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional que garanta soberania nacional e <strong>de</strong>fina como<br />

priorida<strong>de</strong> a garantia <strong>de</strong> trabalho para todos, o combate da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social e<br />

uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>mocracia política.<br />

artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado julho/2005<br />

Belo Horizonte 01(1) 7-25 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Carlos Walter Porto-Gonçalves<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

25


Linovaldo Miranda Lemos<br />

Professor CEFET - Campos -<br />

Doutorando em Geografia/UFRJ<br />

As correntes da Geografia e o<br />

movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região<br />

Resumo<br />

Região é um conceito-chave para o conhecimento<br />

geográfico, e o estudo das formas como<br />

este é abordado nas diversas correntes da<br />

Geografia é capaz <strong>de</strong> revelar um rico movimento<br />

<strong>de</strong> idéias em torno <strong>de</strong>sse conceito. Contudo, esse<br />

<strong>de</strong>bate faz emergir questões mais profundas<br />

concernentes não só à história do pensamento<br />

geográfico como também ao estatuto científico<br />

<strong>de</strong>sse saber. O presente artigo procura ser uma<br />

contribuição nesse sentido. Como conclusão,<br />

aponta-se para a atualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse conceito<br />

enquanto ferramenta analítica e como instrumento<br />

para a ação política.<br />

Abstract<br />

Region is a key concept to the geographical<br />

knowledge, and the investigation about its approach<br />

by the diverse streams of geographical thought reveals<br />

a fruitful <strong>de</strong>bate. However, this <strong>de</strong>bate brings <strong>de</strong>eper<br />

questions related not only to the history of the<br />

geographical knowledge but also to its statute as a<br />

science. This article tries to be a contribution in this<br />

way. As a conclusion, the paper emphasizes the real<br />

importance of the concept of region as an analytical<br />

tool and an instrument to a political action.<br />

linolemos@hotmail.com<br />

Palavras-chave região, correntes, pensamento<br />

geográfico.<br />

Key-words region, stream, geographical thought.<br />

26<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

As correntes da Geografia e o movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região


Introdução<br />

A tentação imediata <strong>de</strong> um pesquisador ao se <strong>de</strong>parar com o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> discorrer sobre<br />

um conceito-chave é recorrer ao estabelecimento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição que seja capaz <strong>de</strong><br />

traduzir o seu cerne e, a partir daí, proce<strong>de</strong>r às consi<strong>de</strong>rações e análises. Como quem<br />

ancora sua nau num porto seguro, busca-se, <strong>de</strong>ssa forma, um consenso naquilo que é<br />

marcado por um movimento <strong>de</strong> idéias que refletem pontos <strong>de</strong> vista e concepções<br />

diferentes. Tal movimento consubstancia-se nos diferentes usos dos conceitos.<br />

O <strong>de</strong> região, em Geografia, ilustra bem tal situação, haja vista a posição privilegiada que<br />

ocupou nos <strong>de</strong>bates ao longo da história do pensamento geográfico. Nesse sentido<br />

convém não esquecer os ensinamentos <strong>de</strong> Corrêa (2003), Gomes (1995) e Lencione<br />

(1999) <strong>de</strong> que não há um conceito unívoco e incontroverso <strong>de</strong> região, tendo em vista a<br />

multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos <strong>de</strong> que é revestido pelas várias correntes. Sequer seu uso é<br />

uma exclusivida<strong>de</strong> da Geografia, posto que se faz presente em outras ciências e mesmo<br />

no senso comum.<br />

Portanto, se há um consenso, é justamente na multiplicida<strong>de</strong> dos usos e concepções<br />

que se configura, ao fim e ao cabo, a riqueza científica do próprio conceito (GOMES,<br />

1995). Como se verá, o <strong>de</strong>bate em torno do conceito <strong>de</strong> região faz emergir questões<br />

mais profundas concernentes não só à história do pensamento geográfico como também<br />

ao próprio estatuto ontológico <strong>de</strong>sse saber.<br />

Embora não esteja tratando <strong>de</strong> região, Gomes (2003) fornece uma linha <strong>de</strong> raciocínio<br />

que po<strong>de</strong> ser útil ao presente trabalho. Argumenta esse autor que o embate intelectual na<br />

história do pensamento geográfico se dá, em primeiro lugar, pela con<strong>de</strong>nação do antigo<br />

e a conseqüente justificativa do novo, daí a proposta <strong>de</strong> ruptura com os mo<strong>de</strong>los anteriores<br />

e a tentativa do estabelecimento <strong>de</strong> uma nova concepção. Nesse processo há uma<br />

releitura não só dos conceitos (no caso, <strong>de</strong> região) como também da própria história do<br />

pensamento geográfico, privilegiando-se algumas formas <strong>de</strong> pensamento e relegando-se<br />

outros autores a um segundo plano ou mesmo ao ostracismo.<br />

Não se preten<strong>de</strong> com isso adotar uma postura etapista ou mesmo ingênua, concebendo-se<br />

que o ‘surgimento’ <strong>de</strong> uma ‘nova’ corrente se dê a partir do fim da prece<strong>de</strong>nte e<br />

que essa nova Geografia signifique uma evolução do pensamento (no sentido <strong>de</strong> uma<br />

visão mais acurada, mais avançada em relação ao fazer ciência). Holte-Jensen (1984)<br />

assinala a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar numa completa revolução na Geografia, posto que<br />

um olhar aprofundado na sua história revela, por um lado, que diferentes escolas <strong>de</strong><br />

pensamento continuam coexistindo lado a lado e, por outro, que cada nova geração, na<br />

tentativa <strong>de</strong> mudar a tradição científica da disciplina, ten<strong>de</strong> a atribuir um significado<br />

fundamental para suas próprias idéias.<br />

É com esse espírito que se passa à discussão do conceito <strong>de</strong> região no pensamento geográfico.<br />

Região e as correntes do pensamento geográfico<br />

Uma primeira inflexão que po<strong>de</strong>ria ser suscitada refere-se à velha — e inconclusiva —<br />

discussão em torno da natureza do objeto da Geografia: se uma ciência física, se uma<br />

ciência do homem ou se uma ciência capaz <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r à síntese <strong>de</strong> ambas. Sem a<br />

Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Linovaldo Miranda Lemos<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

27


pretensão <strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong>ssa problemática — o que também fugiria ao que está em tela<br />

—, a análise do papel atribuído à região no <strong>de</strong>terminismo e no possibilismo po<strong>de</strong> ser útil<br />

para ilustrar esse aparente dilema.<br />

A institucionalização da Geografia no século XIX é contemporânea da explosão das<br />

filosofias evolucionistas e do prodigioso crescimento das ciências naturais (CLAVAL, 1974).<br />

A força da Origem das espécies, <strong>de</strong> Charles Darwin, influenciou <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>cisiva a Geografia<br />

no seu nascedouro com as visões evolucionistas e <strong>de</strong>terministas que, transpostas<br />

para a análise geográfica, acabaram por colocar o homem como um componente passivo<br />

da natureza, especialmente do clima. A força do quadro físico então se impõe sobre<br />

a socieda<strong>de</strong>, como bem atesta a afirmação <strong>de</strong> Hitter (apud CLAVAL, 1974, p. 50) quando<br />

se propõe a estudar “todas as relações essenciais <strong>de</strong>ntro das quais os povos estão situados<br />

sobre o globo terrestre” para assim “estabelecer todas as direções nas quais caminham<br />

até seu <strong>de</strong>senvolvimento sobre a fatal influência da natureza”.<br />

Se, nessa perspectiva, a Terra constitui-se num todo orgânico, a região, enquanto parte<br />

constitutiva <strong>de</strong>sse todo, resultará da integração dos elementos naturais que lhe dão a<br />

singularida<strong>de</strong>. Em outras palavras, a concepção adotada é a <strong>de</strong> região natural — um<br />

ecossistema, nas palavras <strong>de</strong> Corrêa (2003) — cujo clima em particular é tomado como<br />

o fator <strong>de</strong>terminante na diferenciação da ocupação do homem na Terra.<br />

Convém ressaltar que o privilégio absoluto dado à natureza não se dá pela exclusão do<br />

homem mas sim, pela incorporação <strong>de</strong>ste aos quadros naturais <strong>de</strong> uma forma<br />

<strong>de</strong>terminista. A Antropogeografia, <strong>de</strong> Ratzel, consiste, segundo Claval (1974), na compreensão<br />

da influência do meio na formação e nas idéias da socieda<strong>de</strong>, cabendo ao estudo<br />

regional o entendimento da distribuição da população nas regiões do ecúmeno.<br />

Mantém-se portando um caráter unitário para a Geografia (ou seja, seria tanto uma<br />

ciência do homem quanto uma ciência da natureza), já que o ponto <strong>de</strong> vista ambientalista:<br />

no atentaba contra la unidad ni la utilidad <strong>de</strong> la geografía, sino que estudiaba simplemente la<br />

influencia <strong>de</strong>l medio sobre el hombre, y <strong>de</strong>bía su importancia y eficacia al hecho <strong>de</strong> halharse en<br />

conjunción <strong>de</strong> las ciencias naturales y <strong>de</strong> las ciencias <strong>de</strong>l hombre (CLAVAL, 1974, p. 54).<br />

1<br />

“É preciso partir <strong>de</strong>sta idéia <strong>de</strong> que uma<br />

região é um reservatório on<strong>de</strong> dormem energias<br />

das quais a natureza <strong>de</strong>positou o germe,<br />

mas das quais o emprego <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do homem.<br />

É ele que, ao submetê-las ao seu uso, dá luz à<br />

sua individualida<strong>de</strong>” (VIDAL DE LA BLACHE,<br />

Paul. Principes <strong>de</strong> géographie hamaine., 1921<br />

apud GOMES, 1995.<br />

A corrente possibilista tem na figura <strong>de</strong> Paul Vidal <strong>de</strong> La Blache o seu mestre. Des<strong>de</strong> o<br />

início, as formulações <strong>de</strong>ssa corrente situam-se num <strong>de</strong>bate com o <strong>de</strong>terminismo alemão,<br />

num contexto <strong>de</strong> acirrada disputa territorial no cenário europeu do final do século<br />

XIX. Mais do que projetos intelectuais, o que estava em jogo eram projetos nacionais<br />

mediatizados pela ciência, em especial pela Geografia (MORAES, 1990).<br />

O diálogo crítico que Vidal <strong>de</strong> La Blache travou com Ratzel e com o <strong>de</strong>terminismo po<strong>de</strong><br />

ser sintetizado na afirmação <strong>de</strong> que o homem dispõe sobre aquilo que a natureza permite,<br />

burlando suas limitações e, ao mesmo tempo, aproveitando-se ativamente das possibilida<strong>de</strong>s<br />

oferecidas pelo meio para a satisfação <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s (MORAES, 1990, p. 68-69).<br />

Embora não tenha formulado teorias gerais sobre a região, Vidal <strong>de</strong> La Blache manifestava<br />

uma preferência inicial pelas unida<strong>de</strong>s naturais 1 (CLAVAL, 1974). Gallois, seu aluno<br />

e discípulo, chegava mesmo a dizer que a autêntica região geográfica era, para ele, a<br />

região natural. A diferença em relação ao <strong>de</strong>terminismo resi<strong>de</strong> justamente no peso da<br />

28<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

As correntes da Geografia e o movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região


ação humana e na valorização da história dos lugares. Segundo Lencione (1999), a<br />

monografia regional vidaliana procedia a uma análise <strong>de</strong>talhada do meio físico e das<br />

formas <strong>de</strong> ocupação pela ativida<strong>de</strong> humana. Portanto o olhar geográfico <strong>de</strong>veria conter<br />

uma perspectiva histórica na análise da evolução homem-meio:<br />

A síntese regional [...] é o objetivo último da tarefa do geógrafo, o único terreno sobre o qual ele<br />

se encontra a si mesmo. Ao compreen<strong>de</strong>r e explicar a lógica interna <strong>de</strong> um fragmento da superfície<br />

terrestre, o geógrafo <strong>de</strong>staca sua individualida<strong>de</strong> que não se encontra em nenhuma outra parte<br />

(LENCIONE, 1999, p. 107).<br />

Como se vê, a ambigüida<strong>de</strong> homem-meio na perspectiva possibilista é apenas aparente,<br />

já que as monografias regionais, ao <strong>de</strong>screver, <strong>de</strong>finir e explicar os fragmentos da<br />

superfície, englobavam tanto um quanto outro. A síntese, ao fim, era “capturada” na<br />

idéia <strong>de</strong> região, essa entida<strong>de</strong> auto-evi<strong>de</strong>nte individualizada enquanto síntese natural e<br />

humana na paisagem. 2<br />

Guardadas as diferenças <strong>de</strong> abordagem entre <strong>de</strong>terministas e possibilistas, é na idéia<br />

<strong>de</strong> região que essas duas correntes convergem. Dialeticamente ela opõe — e ao mesmo<br />

tempo aproxima — essas duas vertentes da Geografia Clássica em seus pressupostos <strong>de</strong><br />

região enquanto entida<strong>de</strong> concreta, auto-evi<strong>de</strong>nte. Pouco importava, segundo Claval<br />

(1974), se a análise regional se baseava nas regiões naturais ou humanas, já que a questão<br />

<strong>de</strong> fundo era tomá-la como uma realida<strong>de</strong> palpável. Regiões natural e humana, nesses<br />

termos, confundiam-se. Segundo esse autor:<br />

la geografía clásica emprendió pues el estudio <strong>de</strong> la región sin interrogarse realmente sobre la<br />

naturaleza <strong>de</strong> esta. Lo que importaba era aislar un sector original, y conseguir <strong>de</strong>monstrar <strong>de</strong><br />

dón<strong>de</strong> procedía su personalidad tanto en el aspecto físico como en el humano (CLAVAL, 1974, p. 81).<br />

O final do século XIX e o início do XX assistem a uma crise do possibilismo, com uma<br />

crítica ao mo<strong>de</strong>lo naturalista e a afirmação das espeficida<strong>de</strong>s das ciências humanas, via o<br />

neokantismo. Grosso modo, isso significou a valorização do <strong>de</strong>senvolvimento histórico<br />

das socieda<strong>de</strong>s humanas e, por conseqüência, o <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>ssa dimensão na explicação<br />

da realida<strong>de</strong>. Na Geografia, o <strong>de</strong>bate natureza/espírito ou ciências naturais/ciências humanas<br />

materializou-se na valorização do caráter idiográfico <strong>de</strong>ssa ciência e, por conseguinte,<br />

na busca da localização singular dos fatos na superfície terrestre (CAPEL, 1981). É nesse<br />

contexto que se po<strong>de</strong>m compreen<strong>de</strong>r as propostas da chamada “Escola Regional”.<br />

Da ênfase dada por <strong>de</strong>teministas e possibilistas à relação homem-meio, a Escola Regional<br />

<strong>de</strong>slocou o <strong>de</strong>bate para o estudo das diferenciações <strong>de</strong> área (areal differention) da superfície<br />

da Terra. Vale ressaltar que não houve o abandono do tratamento daquela relação<br />

mas antes, a pressuposição <strong>de</strong> que ela estivesse abarcada pelo areal differention, dada a<br />

combinação particular e sintética à qual proce<strong>de</strong>.<br />

É nessa direção que po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r o esforço empreendido por Hettner 3 (apud<br />

MENDONZA, 1982) em <strong>de</strong>limitar o campo e o método <strong>de</strong> observação da Geografia,<br />

levando-o a enfatizar o caráter corológico <strong>de</strong>ssa ciência:<br />

2<br />

Vidal <strong>de</strong> La Blache não usa a palavra paisagem,<br />

mas permito-me essa aproximação já que<br />

ele se refere à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “olhar ao redor<br />

para recolher exemplos <strong>de</strong> regiões naturais”,<br />

<strong>de</strong> atentar para a “fisionomia <strong>de</strong> uma região”<br />

etc. (VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Las divisiones<br />

fundamentales <strong>de</strong>l território frances., 1909<br />

apud MENDONZA, 1982, p. 243-249).<br />

3<br />

HETTNER.,1905.<br />

Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Linovaldo Miranda Lemos<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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[...] la ciencia corológica es la ciencia <strong>de</strong> la or<strong>de</strong>nación <strong>de</strong>l espacio terrestre [...] si no hubiese<br />

relaciones entre los distintos puntos <strong>de</strong> la tierra, y si los diferentes fenómenos situados en um<br />

mismo lugar <strong>de</strong> la tierra fuesen in<strong>de</strong>pendientes entre si, no se necesitaría ninguma concepción<br />

corológica; pero la existencia <strong>de</strong> tales relaciones [...] hace necesaria una ciencia corológica especial <strong>de</strong><br />

la tierra. Esa ciencia es la geografía.<br />

4<br />

HARTSHORNE, R. 1939.<br />

5<br />

HARTSHORNE, op. cit.<br />

6<br />

A postura da Geografia como ciência <strong>de</strong><br />

síntese, na sua pretensão <strong>de</strong> interpretar<br />

todos os fenômenos que ocorrem na superfície<br />

da Terra com o instrumental das ciências<br />

humanas e naturais, marcou todo o<br />

pensamento geográfico (SANTOS, 1982, p.<br />

125), o que levou Gomes (1987) a qualificar<br />

essa pretensão como sendo uma das gran<strong>de</strong>s<br />

ilusões da Geografia.<br />

Como se vê, essa ciência especial da superfície terrestre encontra sua expressão nas<br />

diferenças locais, e são justamente estas que dão o caráter singular ao saber geográfico.<br />

Note-se que, como assinala Lencione (1999), no pensamento <strong>de</strong> Hettner e <strong>de</strong> Hartshorne<br />

não há um grupo <strong>de</strong> fenômenos particulares à Geografia, já que esta <strong>de</strong>ve se interessar<br />

por todos os fenômenos que tenham uma dimensão espacial com vistas a estabelecer<br />

esse caráter variável.<br />

Hartshorne retoma — e amplia — a linha <strong>de</strong> raciocínio aberta por Hettner, reafirmando<br />

o caráter corológico da Geografia no seu intento <strong>de</strong> analisar e sintetizar associações<br />

<strong>de</strong> fenômenos na forma como se apresentam em sessões da realida<strong>de</strong> da superfície da<br />

Terra. Trata-se, segundo sua concepção, <strong>de</strong> uma ciência que seja capaz <strong>de</strong> interpretar “[...]<br />

las realida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> la diferenciación en areas <strong>de</strong>l mundo [...] en términos <strong>de</strong>l total <strong>de</strong> las<br />

combinaciones <strong>de</strong> los fenómenos en cada lugar, diferentes <strong>de</strong> las <strong>de</strong> cualquier outro<br />

lugar” (HARTSHORNE 4 apud MENDONZA, 1982, p. 357).<br />

A Escola Regional lida com duas tendências ou questões presentes no pensamento<br />

geográfico: a Geografia como ciência <strong>de</strong> síntese e o estatuto <strong>de</strong> ciência idiográfica e/ou<br />

nomotética. Em ambos os casos, a região figura como aquela noção capaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r<br />

a contento, segundo essa corrente, esses aspectos. Senão vejamos:<br />

Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> saltar aos olhos a vastidão do objeto da Geografia proposto por<br />

Hettner e retomado por Hartshorne: da mesma forma que se esten<strong>de</strong> sobre “todos<br />

los círculos o formas <strong>de</strong> comportamiento <strong>de</strong> la realidad que puedam darse sobre la<br />

superfície terrestre”, estuda “[...] las secciones espaciales <strong>de</strong> la superfície <strong>de</strong> la tierra, <strong>de</strong>l<br />

mundo” (HARTSHORNE 5 apud MENDONZA, 1982, p. 319, 356). Como já foi <strong>de</strong>monstrado,<br />

a relação homem-meio não é encarada como uma dicotomia, haja vista ser da<br />

natureza da Geografia a compreensão <strong>de</strong> como os fenômenos naturais e humanos se<br />

combinam numa área da superfície terrestre. Por outro lado, para assim proce<strong>de</strong>r, a<br />

Geografia necessita reunir partes <strong>de</strong> muitas outras ciências <strong>de</strong>ntro do ponto <strong>de</strong> vista<br />

corológico. A síntese consubstancia-se, assim, na região: síntese da relação homemmeio<br />

e <strong>de</strong> saberes dispersos em outras ciências <strong>de</strong>ntro do ponto <strong>de</strong> vista próprio da<br />

Geografia, a corologia. 6<br />

O caráter idiográfico e/ou nomotético da ciência é trabalhado também <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa<br />

perspectiva. Na visão <strong>de</strong> Lencione (1999), a Geografia é ao mesmo tempo, para essa<br />

corrente, ambas as coisas: quando estuda a relação <strong>de</strong> fenômenos particulares numa<br />

<strong>de</strong>terminada área, é idiográfica; quando esses fenômenos po<strong>de</strong>m ser classificados em<br />

categorias, possibilitando a <strong>de</strong>dução <strong>de</strong> leis gerais, é nomotética.<br />

Não há assim dualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa linha <strong>de</strong> pensamento, entre as duas perspectivas,<br />

posto que a região é o <strong>de</strong>nominador capaz <strong>de</strong> uni-las: “[...] a <strong>de</strong>speito do fato <strong>de</strong> que o<br />

30<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

As correntes da Geografia e o movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região


objeto geral da geografia seja produzir uma classificação global das regiões, através <strong>de</strong><br />

sistemas genéricos, estas regiões possuem sempre aspectos únicos que são irredutíveis à<br />

generalização” (GOMES, 2003, p. 242).<br />

Embora predominante nas primeiras décadas do século XX, a corrente regional seria<br />

questionada no seu cerne no pós-Segunda Guerra. O capitalismo entrava em uma fase,<br />

chamada por Eric Hobsbawm (1995, p. 253-281) <strong>de</strong> Anos <strong>de</strong> Ouro, na qual houve um<br />

crescimento expressivo das economias centrais e a melhoria substancial do nível <strong>de</strong> vida<br />

<strong>de</strong> suas populações. A Europa, o Japão e, principalmente, os Estados Unidos conheceram<br />

anos gloriosos no que tange à produção e ao consumo.<br />

Shopping centers, rodovias, ferrovias, represas, novos espaços urbanos, extensos campos<br />

agrícolas, enfim, novos arranjos espaciais foram criados em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ssas transformações<br />

e para a estas dar suporte (CORRÊA, 2003), exigindo da Geografia o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong><br />

um papel <strong>de</strong> apoio às <strong>de</strong>mandas dos setores público e privado em relação à intervenção no<br />

espaço por meio do planejamento, da explicação da lógica locacional e da maximização da<br />

eficiência (LENCIONE, 1999, p. 134-135). No fundo essas transformações:<br />

[...] inviabilizaram os paradigmas tradicionais da geografia — o <strong>de</strong>terminismo ambiental, o<br />

possibilismo e o método regional — suscitando um novo, calcado em uma abordagem locacional:<br />

o espaço alterado resulta <strong>de</strong> um agregado <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões locacionais (CORRÊA, 2003, p. 18).<br />

No ano <strong>de</strong> 1953, F. K. Schaefer, um geógrafo até então pouco conhecido, escreve o<br />

Excepcionalism in geography: a methodological examination, que vem marcar o pensamento geográfico,<br />

sendo inclusive consi<strong>de</strong>rado o artigo que <strong>de</strong>limita o fim da época da Geografia<br />

Clássica. Nele Schaefer contrapõe-se frontalmente ao pensamento <strong>de</strong> Hettner e principalmente<br />

ao <strong>de</strong> seu contemporâneo Hartshorne (GOMES, 2003, p. 243-245).<br />

No cerne da questão estavam as críticas à perspectiva historicista que havia trazido<br />

para a Geografia o excepcionalismo próprio da História. A Geografia <strong>de</strong>veria romper<br />

com esse excepcionalismo, com essa busca do caráter único, e voltar-se para a formulação<br />

<strong>de</strong> leis gerais sobre a distribuição dos fenômenos na superfície da Terra. Portanto, só<br />

a Geografia Geral era consi<strong>de</strong>rada científica, porque fornecia as leis e as teorias para o<br />

estudo regional. Ao criticar a corrente anterior, Schaefer 7 (apud GOMES, 2003, p. 244)<br />

preten<strong>de</strong> alinhar a Geografia aos quadros da ciência mo<strong>de</strong>rna (CAPEL, 1981, p. 385;<br />

GOMES, 2003, p. 259) por meio <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> metodológica e <strong>de</strong> uma mesma linguagem<br />

e lógica científica, pois para ele:<br />

[...] o estatuto científico <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> tudo, da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma disciplina em dar respostas<br />

sistemáticas. A ciência aplica a cada caso um conjunto <strong>de</strong> raciocínio e leis que <strong>de</strong>vem ser válidos<br />

para explicar todos os outros casos semelhantes.<br />

Em termos filosóficos isso significou o embate entre o historicismo <strong>de</strong> Hartshorne —<br />

até então dominante — e o neopositivismo embutido nas críticas que lhe foram <strong>de</strong>sferidas<br />

por Schaefer. Nesse sentido, a região é pensada em outras bases: no esforço <strong>de</strong> negar o<br />

historicismo, o método quantitativo inverte a or<strong>de</strong>m das priorida<strong>de</strong>s e passa a situar o<br />

estudo regional não como objetivo último da pesquisa geográfica, mas como um meio<br />

7<br />

SCHAEFER, F. K. .<br />

Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Linovaldo Miranda Lemos<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

31


8<br />

Segundo Corrêa (2003, p. 22), tanto no<br />

linguajar comum quanto na Geografia, o conceito<br />

<strong>de</strong> região “[...] está ligado à noção fundamental<br />

<strong>de</strong> diferenciação <strong>de</strong> área, quer dizer,<br />

à aceitação da idéia <strong>de</strong> que a superfície<br />

da Terra é constituída por áreas diferentes<br />

entre si”. Da mesma forma, James e Martin<br />

(1972) afirmam que a região é uma “área<br />

contínua dotada <strong>de</strong> algum tipo <strong>de</strong> homogeneida<strong>de</strong><br />

no seu interior [...] na linguagem<br />

técnica é aplicada a uma área <strong>de</strong> qualquer<br />

tamanho na qual há algum tipo <strong>de</strong> homogeneida<strong>de</strong><br />

conforme especificado pelos critérios<br />

adotados para <strong>de</strong>fini-la”.<br />

9<br />

Conforme alu<strong>de</strong> Holte-Jensen (1984, p. 59):<br />

“Bunge [...] exten<strong>de</strong>d the arguments of<br />

Schaefer, to the effect that geography is the<br />

science of spatial relations and interrelations,<br />

geometry is the mathematics of space, and so<br />

geometry is the language of geography”.<br />

10<br />

Na verda<strong>de</strong>, uma tradução mal feita <strong>de</strong><br />

theoretical (em português, teórica) mas <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> uso no nosso meio.<br />

(GOMES, 1995, p. 63). O estudo geográfico, diz Capel (1981) em referência a Schaefer,<br />

não <strong>de</strong>ve se opor à análise regional, embora possa fazê-lo para comprovar a vali<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />

uma teoria previamente formulada e, assim proce<strong>de</strong>ndo, explicar a distribuição dos fenômenos<br />

numa dada área.<br />

A região é então concebida como um conjunto <strong>de</strong> lugares on<strong>de</strong> as diferenças internas<br />

são menores do que as existentes entre elas e qualquer elemento <strong>de</strong> outro conjunto <strong>de</strong><br />

lugares (CORRÊA, 2003). Como se po<strong>de</strong> perceber, não há nessa <strong>de</strong>limitação gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong><br />

em relação às correntes anteriores, já que, <strong>de</strong> forma implícita ou aberta, esse princípio<br />

da semelhança interior e da diferença em relação ao exterior se faz notar no princípio<br />

corológico da Geografia. 8 A diferença resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> a região ser concebida pela Geografia<br />

Quantitativa como uma classe (GRIGG, 1973). Logo, a regionalização é a classificação<br />

<strong>de</strong> regiões por meio <strong>de</strong> recursos matemáticos, estatísticos e <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio padrão.<br />

A região, portanto, não é auto-evi<strong>de</strong>nte, concreta, mas fruto do esforço do pesquisador<br />

em <strong>de</strong>finir similarida<strong>de</strong>s internas, proprieda<strong>de</strong>s e relações em comum capazes <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>limitar regiões. E como <strong>de</strong>finir ou medir o grau <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>? Por meio dos tais<br />

instrumentos matemáticos e <strong>de</strong> geometria anteriormente citados. 9 Não há, portanto, uma<br />

única classificação possível “[...] sino numerosas or<strong>de</strong>naciones, según el objetivo <strong>de</strong> la<br />

classificación y la característica diferenciadora que en relación com éste se selecione”<br />

(CAPEL, 1981, p. 391).<br />

Conceitos como regiões homogêneas e regiões funcionais ou polarizadas fizeram-se presentes<br />

nos estudos <strong>de</strong>ssa corrente. No primeiro caso, por meio da seleção <strong>de</strong> variáveis da<br />

superfície, “os intervalos nas freqüências e na magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas variáveis estatisticamente<br />

mensuradas <strong>de</strong>finem espaços mais ou menos homogêneos”, ao passo que nas regiões<br />

polarizadas a ênfase recai sobre “as múltiplas relações que circulam e dão forma a um<br />

espaço que é internamente diferenciado”, como ocorre na hierarquização e na polarização<br />

<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s (GOMES, 1995, p. 63-64).<br />

Os Anos <strong>de</strong> Ouro dão lugar, a partir dos anos 60 e principalmente nos anos 70, a<br />

transformações significativas traduzidas em crises econômicas e sociais que evi<strong>de</strong>nciavam<br />

o esgotamento do mo<strong>de</strong>lo capitalista e colocavam em xeque a capacida<strong>de</strong> do<br />

neopositivismo e da Geografia Quantitativa, pelo menos enquanto paradigmas dominantes,<br />

em prover respostas satisfatórias para as contradições que se impunham: as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

sociais, a <strong>de</strong>gradação da vida nas cida<strong>de</strong>s, a tomada da consciência ambiental,<br />

o movimento dos países sub<strong>de</strong>senvolvidos tomando inclusive proporções <strong>de</strong> revoluções<br />

socialistas, o movimento negro e estudantil etc. (CAPEL, 1981, p. 405-406;<br />

LENCIONE, 1999, p. 147-149). A outra face da moeda foi a crítica ampla ao próprio<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ciência geográfica que se produzia e à sua incapacida<strong>de</strong> em lidar com as<br />

contradições da socieda<strong>de</strong> capitalista que se avolumavam. Foi esse contexto que fez<br />

emergir a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> incorporar novas abordagens teóricas e filosóficas e novos<br />

temas aos estudos geográficos trazidos na esteira da fenomenologia e do marxismo.<br />

Tal situação po<strong>de</strong> ser ilustrada recorrendo-se à trajetória intelectual <strong>de</strong> um ex-expoente<br />

da Geografia Teorética, 10 David Harvey (Explanation in geography), que na passagem dos<br />

anos 60 para os 70 proclamava que os métodos e os procedimentos da vertente quanti-<br />

32<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

As correntes da Geografia e o movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região


tativa diziam cada vez menos sobre questões <strong>de</strong> escassa importância. Traduzindo, tratava-se<br />

<strong>de</strong> uma crítica aos mo<strong>de</strong>los econômicos e matemáticos e à sua incapacida<strong>de</strong> em<br />

incorporar as contradições <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe em sua análise:<br />

O discurso crítico consi<strong>de</strong>ra, portanto, a ciência em sua forma dominante como um instrumento<br />

<strong>de</strong> alienação social e os métodos positivistas como procedimentos eficazes para reproduzir os<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social e espacial (GOMES, 2003, p. 278).<br />

Tal <strong>de</strong>scontentamento — se é que assim se po<strong>de</strong> chamá-lo — traduziu-se em propostas<br />

<strong>de</strong> produção intelectual que proce<strong>de</strong>ssem a uma crítica radical à socieda<strong>de</strong> e ao mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> ciência geográfica ancorados no mo<strong>de</strong>lo teórico do marxismo. É nesse contexto<br />

que se tem o lançamento das revistas Antipo<strong>de</strong> e Herodote bem como a produção intelectual<br />

<strong>de</strong> David Harvey, Milton Santos, Richard Peet e Yves Lacoste, entre outros.<br />

A absorção do marxismo pelo pensamento geográfico não se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma tranqüila.<br />

Em primeiro lugar porque há mesmo ausência <strong>de</strong> uma reflexão marxista sobre o espaço<br />

(CAPEL, 1981, p. 437; LENCIONE, 1999, p. 162), o que significou, na prática, um “<strong>de</strong>scaso<br />

com a espacialida<strong>de</strong>” por parte do marxismo oci<strong>de</strong>ntal (SOJA, 1993, p. 107), sobejamente<br />

por parte da Geografia. Duas explicações fornecidas por Soja para isso interessam-nos<br />

mais <strong>de</strong> perto. Em primeiro lugar, a publicação tardia dos Grundrisse, 11 o que<br />

para a língua inglesa só se <strong>de</strong>u em 1973. Na falta <strong>de</strong>ssa publicação, a ênfase recaiu sobre<br />

os volumes I e II <strong>de</strong> O capital, basicamente a-espaciais e fechados num sistema (segundo<br />

qualificação <strong>de</strong> Soja). Relacionada a esse fator, há a própria rejeição <strong>de</strong> Marx às explicações<br />

geográficas, enfatizando, portanto, as <strong>de</strong>terminações sociais e principalmente históricas<br />

em suas análises.<br />

Essas limitações traduziram-se em tentativas <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r a uma análise espacial e geográfica<br />

nos quadros do materialismo histórico e dialético, adaptando conceitos caros ao<br />

marxismo à análise espacial. Obviamente, ao se dizer isso, está-se proce<strong>de</strong>ndo a uma<br />

generalização que, enquanto tal, po<strong>de</strong> transformar-se numa caricatura grosseira <strong>de</strong> uma<br />

rica produção intelectual. 12 Não é esse o caso. O que se preten<strong>de</strong> é trazer essa discussão<br />

para o conceito que embala o presente texto, o <strong>de</strong> região.<br />

A Geografia Crítica concebe a região como parte <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> histórica e, portanto,<br />

não harmônica, daí a ênfase no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual e combinado e no sub<strong>de</strong>senvolvimento<br />

(LENCIONE, 1999, p. 164-165). Na visão <strong>de</strong> Soja (1993, p. 132), o<br />

capitalismo baseia-se intrinsecamente nas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s regionais ou espaciais para sua<br />

reprodução: note-se, nesse caso, a analogia entre classe e região, haja vista que, seguindose<br />

essa linha <strong>de</strong> raciocínio, o capitalismo se assenta na <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> combinada, seja ela social<br />

ou regional. Do ponto <strong>de</strong> vista espacial:<br />

a lei do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual e combinado traduz-se, assim, no processo <strong>de</strong> regionalização<br />

que diferencia não só países entre si como, em cada um <strong>de</strong>les, suas partes componentes, originando<br />

regiões <strong>de</strong>sigualmente <strong>de</strong>senvolvidas mas articuladas (CORRÊA, 2003, p. 45).<br />

A região é portanto uma entida<strong>de</strong> concreta, já que resultado das heranças culturais e<br />

materiais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada estrutura social e seus conflitos. Para se compreen<strong>de</strong>r a<br />

11<br />

Grundrisse <strong>de</strong>r Kritik <strong>de</strong>r politischen<br />

Ökonomia (Fundamentos da crítica da economia<br />

política).<br />

12<br />

A leitura atenta <strong>de</strong> Soja (1993) po<strong>de</strong> fornecer<br />

uma análise importante das interpretações<br />

e dos autores (geógrafos ou não) comprometidos<br />

com essa visão.<br />

Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Linovaldo Miranda Lemos<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

33


egião, é necessário enten<strong>de</strong>r o funcionamento da economia mundial e seu rebatimento<br />

no território <strong>de</strong> um país e as diversas formas <strong>de</strong> o modo <strong>de</strong> produção capitalista se<br />

reproduzir em distintas regiões do globo (SANTOS, 1991). As regiões são, nessa linha <strong>de</strong><br />

raciocínio, formações socioespaciais, em analogia à formação socioeconômica da economia<br />

marxista (GOMES, 1995), a realização num espaço particular <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> produção.<br />

No final dos anos 70, a Geografia Humanista ou Cultural vem incorporar novos horizontes<br />

ao conhecimento geográfico em geral e aos estudos regionais em particular. Tendo<br />

como base filosófica a fenomenologia, essa corrente coloca em <strong>de</strong>staque a subjetivida<strong>de</strong><br />

na análise geográfica, o comportamento do homem diante do meio, o medo, o<br />

ódio, a percepção (LENCIONE, 1999). O estudo regional, nessa perspectiva, visa a<br />

compreen<strong>de</strong>r o sentimento que os homens têm por pertencer a uma <strong>de</strong>terminada região,<br />

os laços afetivos que produzem uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> regional.<br />

Há, portanto, duas dimensões interconectadas nesse sentimento <strong>de</strong> pertencimento: uma<br />

relativa à construção mental individual e outra inscrita na subjetivida<strong>de</strong> do próprio grupo.<br />

O mais correto seria pois falar numa intersubjetivida<strong>de</strong>, haja vista que a percepção<br />

individual é sempre mediatizada pela cultura. Logo:<br />

[...] Há diferenças individuais [...] mas que estão, em sua maior parte, submetidas a uma<br />

subjetivida<strong>de</strong> que transcen<strong>de</strong> o pessoal e encontram coerência e força no coletivo. Dessa forma, a<br />

cultura é a chave necessária para interpretar esse espaço intersubjetivo (GOMES, 1987, p. 148-149).<br />

A região é, portanto, uma dimensão real da vivência dos indivíduos e dos grupos, e é<br />

a partir <strong>de</strong>la que se cria uma base territorial comum para um dado quadro <strong>de</strong> referência<br />

<strong>de</strong> pertencimento e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Região é, para a corrente humanista, um espaço vivido.<br />

13<br />

Por consi<strong>de</strong>rar que este tomou a região<br />

como “um po<strong>de</strong>roso conceito-obstáculo”, ou<br />

seja, um conceito que acabou impedindo a<br />

análise para além <strong>de</strong>sse recorte espacial.<br />

Conclusão<br />

A <strong>de</strong>speito da crítica <strong>de</strong> Yves Lacoste (2001) ao mo<strong>de</strong>lo vidalino <strong>de</strong> estudo regional, 13<br />

passando pelo globalismo do final do século XX bem como por autores brasileiros que<br />

<strong>de</strong>cretaram seu fim, a questão regional teima em persistir nos <strong>de</strong>bates (HAESBAERT,<br />

2002; VAINER, 2001). Evi<strong>de</strong>ntemente que o princípio da diferenciação entre áreas na<br />

superfície terrestre em diferentes escalas não é eliminado mas antes, criado e recriado, da<br />

mesma forma que o são as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s regionais correlacionadas a essas diferenciações.<br />

Apesar <strong>de</strong> suas muitas mortes e ressurreições ao longo da história do pensamento geográfico<br />

(HAESBAERT, 2002), o <strong>de</strong>bate continua aberto.<br />

A <strong>de</strong>speito da aparente má vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bourdieu (1998) com a Geografia e com os<br />

geógrafos, não parece que estes sejam ingênuos a esse respeito, nem mesmo aqueles<br />

ligados à tradição vidalina no seu trabalho minucioso <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas<br />

auto-evi<strong>de</strong>ntes do território. O conceito <strong>de</strong> região tem uma história social na sua<br />

gênese e utilização, e o presente trabalho procurou evi<strong>de</strong>nciar isso, da mesma forma que<br />

no conhecimento geográfico atual há a consciência da existência <strong>de</strong> um ator privilegiado<br />

— não único — que atua <strong>de</strong>finindo e formulando regiões, relacionando-se com elas,<br />

oprimindo-as, conce<strong>de</strong>ndo-lhes subsídios etc.: o Estado.<br />

34<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

As correntes da Geografia e o movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região


Como recurso analítico, cabe ressaltar que, na Geografia Política, a palavra região guarda<br />

muito <strong>de</strong> sua origem etimológica. Regere vem do latim e significa gerir, governar, exercer<br />

o po<strong>de</strong>r, e regio, controle, direção. Trata-se, na prática, <strong>de</strong> um termo que se refere a uma<br />

construção política ligada ao exercício do po<strong>de</strong>r sobre o território (GOMES, 1995;<br />

LACOSTE, 2001).<br />

No plano político-administrativo na escala nacional, região diz respeito à hierarquia e<br />

controle na administração dos Estados que, enquanto unida<strong>de</strong>s territoriais, são formados<br />

por subconjuntos nos seus diferentes matizes: region, lan<strong>de</strong>r, provinciais, regiões. Por<br />

vezes a unida<strong>de</strong> nacional assenta-se sobre uma diversida<strong>de</strong> regional em disputa com o<br />

po<strong>de</strong>r central: neste apela-se para certa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> regional baseada na cultura, na história<br />

e na língua em comum e diferente daquela do Estado central à qual se subordina. Exemplos<br />

claros a esse respeito po<strong>de</strong>m ser encontrados no atual regionalismo europeu, como<br />

no do País Basco, da Galícia, da Córsega etc. (LACOSTE, 2001). No plano geopolítico na<br />

escala global, região po<strong>de</strong> ser usada como um conjunto <strong>de</strong> Estados unidos por interesses<br />

comuns, como o NAFTA ou a União Européia.<br />

Na análise geográfica a questão da escala é <strong>de</strong> fundamental importância. Essa é uma<br />

construção social cuja política tem <strong>de</strong> prestar contas ao Estado nos seus diferentes níveis.<br />

É <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma moldura institucional — com suas regras, agendas e recursos — que a<br />

correlação <strong>de</strong> forças entre os atores políticos se dará. Isso quer dizer que as próprias<br />

estruturas construídas pelo Estado são capazes <strong>de</strong> influenciar a direção que a luta política<br />

toma, já que é sob sua égi<strong>de</strong> que são <strong>de</strong>finidas as responsabilida<strong>de</strong>s dos atores e o<br />

próprio campo <strong>de</strong> luta (JUDD, 1998). 14<br />

Ao longo do tempo no Brasil, a questão regional esteve relacionada àquele regionalismo<br />

tradicional no qual uma <strong>de</strong>terminada elite visa a garantir a apropriação econômica e<br />

a manutenção <strong>de</strong> seu status quo. A região é, aqui, a “base territorial para o fato político”<br />

(CASTRO, 1992 ), e o regionalismo, uma expressão <strong>de</strong>sse embate, que expressa um caráter<br />

negativo e conservador cujo discurso é apoiado. Segundo Cruz (2003, p. 31-32):<br />

[...] numa aliança <strong>de</strong> forças e grupos sociais que forja uma <strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> referida a um<br />

espaço [...] ele legitima a hegemonia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado bloco <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e o seu monopólio da<br />

representação dos interesses gerais numa <strong>de</strong>terminada região, outorgando autorida<strong>de</strong> aos seus<br />

membros e porta-vozes para exercer essa representação.<br />

Não se quer esten<strong>de</strong>r mais nesse ponto mas apenas indagar, para finalizar, se não seria<br />

possível conceber a idéia <strong>de</strong> região em outras bases, mais progressistas e preocupadas<br />

com o <strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico. Esse regionalismo tradicional acima citado já<br />

<strong>de</strong>monstrou seus efeitos nefastos na política nacional. Não seria possível subverter essa<br />

or<strong>de</strong>m e pensar em movimentos territoriais regionais sob outras bases sociais?<br />

Duas experiências parecem significativas: uma refere-se ao novo regionalismo baseado<br />

na promoção da organização social e nas articulações que tentam revitalizar as<br />

estruturas econômicas e sociais a partir das potencialida<strong>de</strong>s locais, como é <strong>de</strong>monstrado<br />

por Klink (2001) no seu trabalho sobre a região do ABC paulista. Outro exemplo é<br />

aquele, chamado por Vainer (2001) <strong>de</strong> regionalismo popular, constituído por atingidos<br />

14<br />

Além do que, quando essas escalas são ausentes,<br />

os agentes políticos encontrarão dificulda<strong>de</strong><br />

— e algumas vezes a impossibilida<strong>de</strong><br />

— <strong>de</strong> substituir as escalas não<br />

construídas pelo Estado. O exemplo disso<br />

po<strong>de</strong> ser encontrado no <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>ismo americano,<br />

que torna extraordinária uma política<br />

genuinamente nacional, especialmente no<br />

caso <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> bem-estar social. Per<strong>de</strong>se,<br />

portanto, uma escala nacional <strong>de</strong> implantação<br />

(JUDD, 1998, p. 31-32).<br />

Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Linovaldo Miranda Lemos<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

35


artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado outubro/2005<br />

pela construção <strong>de</strong> barragens e por seringueiros que, em nome <strong>de</strong> uma região, lutam<br />

pela <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses.<br />

Como se vê, enquanto construção intelectual e social, a região mantém sua vivacida<strong>de</strong><br />

analítica e sua atuação política tanto para as forças <strong>de</strong> conservação quanto<br />

para as <strong>de</strong> mudança.<br />

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Geografias Belo Horizonte 01(1) 26-36 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

As correntes da Geografia e o movimento <strong>de</strong> idéias em torno da região


A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a<br />

gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong><br />

Fre<strong>de</strong>rico do Valle Ferreira <strong>de</strong> Castro<br />

IGAM – Instituto Mineiro <strong>de</strong> Gestão das Águas<br />

Mestre em Geografia/UFMG<br />

Luciano José Alvarenga<br />

Ministério Público <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> – Bacharel em Direito/UFMG<br />

Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Professor do Departamento <strong>de</strong> Geografia/UFMG - Doutor/UnB<br />

Resumo<br />

Diante da complexida<strong>de</strong> das questões<br />

ambientais, os problemas urbanos <strong>de</strong>vem ser<br />

analisados sob a ótica natural, social e política, pois<br />

assumem perfis espaciais diferenciados em face das<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s urbanas contemporâneas. Com o<br />

agravamento <strong>de</strong> tais problemas nos fins do século<br />

XX, o movimento ambientalista passa a ganhar<br />

espaço e coloca-se como um novo norteador <strong>de</strong><br />

ações públicas. Diante <strong>de</strong> um olhar fragmentado<br />

da realida<strong>de</strong>, influenciado pela atual divisão<br />

político-administrativa municipal, o recorte espacial<br />

da bacia hidrográfica surge como potencial eixo<br />

orientador da gestão socioambiental. Este texto<br />

apresenta reflexões sobre a dicotomia entre o<br />

planejamento urbano strictu sensu e o movimento<br />

ambientalista. Nesse cenário, a bacia hidrográfica,<br />

unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestão indicada pela Lei 9433/97, po<strong>de</strong><br />

ser o cenário para iniciativas rumo a um <strong>de</strong>senvolvimento<br />

que se aproxime do que se compreen<strong>de</strong><br />

por “sustentável”, revelando territorialida<strong>de</strong>s e<br />

conflitos, bem como apresentando novas<br />

perspectivas e <strong>de</strong>safios ao planejamento urbano.<br />

Palavras-chave gestão ambiental, planejamento<br />

urbano, recursos hídricos, conflitos<br />

socioambientais.<br />

Abstract<br />

In the face of complexity in which the environmental<br />

issues have been shown us, the urban quiz have got<br />

been analyzed un<strong>de</strong>r natural, social and political<br />

overview. Such problems got in profile spatial unique<br />

un<strong>de</strong>r contemporaries urban differences. Such grave<br />

context on its problems into 20s century, the<br />

environmental movement as such plurality got its space<br />

and replaced it on a new great north for public actions.<br />

In the face of a broken up overview of the reality<br />

which was affected by the present administrative and<br />

political district section, the systemic overview is<br />

characterized by a new spatial cut — the watershed —<br />

and placed it as lea<strong>de</strong>r mark of social and<br />

environmental management. The text introduces you<br />

into to the consi<strong>de</strong>ration about dichotomy sometimes<br />

strictu sensu urban planning besi<strong>de</strong>s the environmental<br />

movement. On this scene the watershed as a<br />

management unit recognized by Law 9433/97 at the<br />

same time point it to a real sustainable <strong>de</strong>velopment<br />

solution and revels it to another circumscription and<br />

conflicts and introduces it into news prospects to urban<br />

planning as such as the new challenges to be overcome.<br />

Keyword environmental management, urban<br />

planning, hydric resources, social and environmental<br />

conflicts.<br />

dovalle.geo@aguaraterra.ggf.br<br />

alvarengae@yahoo.com.br<br />

magalhaesufmg@yahoo.com.br<br />

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Fre<strong>de</strong>rico do Valle Ferreira <strong>de</strong> Castro Luciano José Alvarenga Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

37


1<br />

De acordo com Coelho (2001, p. 24), “impacto<br />

ambiental é, portanto, o processo <strong>de</strong> mudanças<br />

sociais e ecológicas causado por perturbações<br />

no ambiente”. Murguel Branco (1984, p.<br />

57) conceitua impacto ambiental como “[...]<br />

uma po<strong>de</strong>rosa influência exercida sobre o meio<br />

ambiente, provocando o <strong>de</strong>sequilíbrio do<br />

ecossistema natural”, pois, segundo ele, o que<br />

caracteriza o impacto ambiental não é qualquer<br />

alteração nas proprieda<strong>de</strong>s do ambiente<br />

consi<strong>de</strong>rado mas sim, as alterações que provocam<br />

o <strong>de</strong>sequilíbrio das relações que o constituem,<br />

tais como as que exce<strong>de</strong>m sua capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> absorção.<br />

2<br />

Terminologia usada a partir do Relatório<br />

Brundtland, em 1987, e da criação/efetivação<br />

das Agendas 21 (compromissos orientados<br />

como legado da Eco-92), com longos caminhos<br />

a serem trilhados. Tais pensamentos<br />

induzem um senso <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> comum<br />

aos problemas ambientais, pois, <strong>de</strong> acordo<br />

com a com a WCED (1987) citado por Bellen<br />

(2005, p.23), “o <strong>de</strong>senvolvimento sustentado<br />

é aquele que aten<strong>de</strong> às necessida<strong>de</strong>s das<br />

gerações presentes sem comprometer a possibilida<strong>de</strong><br />

das gerações futuras aten<strong>de</strong>rem<br />

suas próprias necessida<strong>de</strong>s”. A preservação<br />

da qualida<strong>de</strong> dos sistemas ecológicos, a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um crescimento econômico para<br />

satisfazer as necessida<strong>de</strong>s sociais e a eqüida<strong>de</strong><br />

entre geração presente e futura são elementos<br />

que compõem o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável.<br />

Impactos ambientais urbanos no Brasil<br />

Inundações, contaminação <strong>de</strong> mananciais superficiais e subterrâneos, falta <strong>de</strong> saneamento<br />

básico, falta <strong>de</strong> disposição a<strong>de</strong>quada dos resíduos sólidos, bem como movimentos <strong>de</strong><br />

massa são exemplos <strong>de</strong> problemas recorrentes no meio urbano atual. Tais problemas<br />

são essencialmente agravados em função da alta concentração urbana no Brasil, que,<br />

segundo Tucci (2001, p. 17), abrange aproximadamente 80% da população total. Seguindo<br />

esse raciocínio, Neiva (2002, p. 34) constata que gran<strong>de</strong> parte dos <strong>de</strong>safios ambientais no<br />

Brasil é gerada pela intensida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> urbanização e pela incapacida<strong>de</strong> do<br />

po<strong>de</strong>r público <strong>de</strong> administrá-lo, <strong>de</strong>vido principalmente à falta <strong>de</strong> um planejamento<br />

a<strong>de</strong>quado. O resultado concretiza-se na geração <strong>de</strong> graves impactos ambientais urbanos<br />

e no agravamento da exclusão social, pois os problemas ambientais (ecológicos e sociais)<br />

não afetam igualmente todo o espaço urbano, atingindo muito mais os espaços físicos<br />

<strong>de</strong> ocupação das classes sociais menos favorecidas (COELHO, 2001, p. 27). Dessa forma,<br />

Coelho (2001, p. 33) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a elaboração do conceito <strong>de</strong> impacto ambiental 1 <strong>de</strong>va<br />

sustentar a idéia <strong>de</strong> sistemas dinâmicos e <strong>de</strong> rupturas do estado <strong>de</strong> equilíbrio. Segundo a<br />

mesma autora, o <strong>de</strong>safio da problematização e da construção <strong>de</strong> um objeto <strong>de</strong> pesquisa<br />

<strong>de</strong>ve ser enfrentado através da mudança <strong>de</strong> enfoque dos impactos ambientais urbanos,<br />

envolvendo-se as dimensões natural, social e política. Po<strong>de</strong>mos salientar que, “além do<br />

ambiente natural, o meio antrópico é parte fundamental no entendimento do processo,<br />

sendo para isso imprescindível a análise das relações sócio-econômicas entre os homens<br />

e <strong>de</strong>stes com a natureza” (ROSS, 1996, p. 294).<br />

Contudo, os problemas urbanos assumem perfis diferenciados em função das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

urbanas contemporâneas. A provisão dos meios <strong>de</strong> consumo coletivo nos países centrais<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir como preocupação principal. Em relação à urbanização dos países periféricos,<br />

inclusive à do Brasil, Costa (2000, p. 59) ressalta que se presencia “a dolorosa<br />

queima <strong>de</strong> etapas, em que sequer houve acesso à regulação urbana <strong>de</strong> forma universal e<br />

já foram discutidos os efeitos do neoliberalismo <strong>de</strong>sregulador sobre a precária qualida<strong>de</strong><br />

da vida urbana”. Nesses países, a baixa condição <strong>de</strong> renda, aliada à <strong>de</strong>sarticulação social/<br />

comunitária tocante à reivindicação <strong>de</strong> direitos essenciais, bem como a falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong><br />

política por parte do setor público constituem os principais problemas enfrentados pelas<br />

comunida<strong>de</strong>s expostas a riscos ambientais, que “sobrevivem” em locais que apresentam<br />

limitações físicas quanto à expansão urbana.<br />

Em busca <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento sustentável (?)<br />

O <strong>de</strong>bate sobre <strong>de</strong>senvolvimento sustentável 2 remete-nos à reflexão <strong>de</strong> Dias (2001, p. 307),<br />

que revela seu importante caráter epistemológico, apesar da falta <strong>de</strong> concretu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus<br />

limites. Como po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>finir <strong>de</strong>senvolvimento urbano sustentável? Segundo Costa<br />

(2000, p. 55), seria um rótulo <strong>de</strong> marketing urbano na competição global, uma utopia a<br />

ser perseguida ou um novo discurso do planejamento contemporâneo? Apesar do<br />

aparente consenso e da enorme imprecisão que o termo aflora, “o conceito traz à tona<br />

um amplo <strong>de</strong>bate, tanto em torno da idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, como da noção <strong>de</strong><br />

sustentabilida<strong>de</strong> (COSTA, 2000, p. 61). O tema “trouxe a discussão sobre meio ambiente,<br />

38<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


<strong>de</strong>senvolvimento e eqüida<strong>de</strong> social para a agenda do <strong>de</strong>bate internacional em sua tentativa<br />

<strong>de</strong> compatibilizar preocupações ambientais, sociais e econômicas” (DIAS, 2001, p. 307).<br />

Em um sentido diverso, o Fórum das ONGs Brasileiras (1992, p. 10) ressalta que<br />

[...] a posição do relatório é ambígua e contraditória: aposta no mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

que está na raiz dos problemas sociais e ambientais que constata. Alinhado à concepção liberal <strong>de</strong><br />

um mundo organizado com base nas relações <strong>de</strong> ajuda e cooperação, exclui <strong>de</strong> sua análise os<br />

mecanismos <strong>de</strong> dominação que produzem as disparida<strong>de</strong>s constatadas.<br />

Diante <strong>de</strong> correntes pró e contra, é <strong>de</strong> suma importância refletir sobre o tema da<br />

sustentabilida<strong>de</strong> ambiental, dadas as intenções implícitas, por parte dos países <strong>de</strong>senvolvidos,<br />

da realização <strong>de</strong> uma gestão comum dos patrimônios naturais do planeta em função<br />

<strong>de</strong> um senso <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> também comum em relação aos problemas ambientais atuais,<br />

induzindo uma ingerência às noções <strong>de</strong> soberania <strong>de</strong> um Estado. Não é novida<strong>de</strong> a<br />

necessida<strong>de</strong> alegada internacionalmente <strong>de</strong> implementar um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

que seja sustentável espaço-temporalmente, não somente para os países centrais,<br />

mas também para os países periféricos. Mas, diante <strong>de</strong>sse contexto e da análise do<br />

posicionamento do movimento ambientalista, observa-se a construção permanente do<br />

pensamento sobre os rumos do movimento ambiental atual. O próprio movimento<br />

re<strong>de</strong>fine suas ações, em um processo <strong>de</strong> autoavaliação e reflexão, pois o projeto <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong> visado não se encontra finalizado. Apesar <strong>de</strong> apresentar seus marcos e seus<br />

rumos <strong>de</strong>finidos, necessita da contribuição contínua e do amadurecimento dos diversos<br />

segmentos da socieda<strong>de</strong>, pois, a cada etapa, soluções mais sólidas são necessárias diante<br />

dos novos e complexos problemas apresentados.<br />

Diante do exposto, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar que as abordagens sobre o meio ambiente, em<br />

seu sentido mais amplo, <strong>de</strong>vem necessariamente estar ligadas aos sistemas naturais e à<br />

abordagem social e levar em conta os aspectos culturais e cognitivos, pois essa integração<br />

é necessária para o avanço na compreensão e construção <strong>de</strong> uma resposta plural ao<br />

<strong>de</strong>safio colocado sobre o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que almejamos.<br />

Desenvolvimento urbano sustentável<br />

e planejamento urbano: sinergia ou embate?<br />

Costa (2000, p. 58), em suas reflexões sobre as trajetórias das análises urbana e ambiental,<br />

revela que “a tomada <strong>de</strong> consciência das questões tipicamente urbanas e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

intervir sobre elas surgem juntamente com a consolidação do capitalismo oci<strong>de</strong>ntal, em<br />

sua versão <strong>de</strong> concentração urbano-industrial iniciada na Europa e expandida para<br />

diferentes partes do mundo”, ficando claro que há uma associação entre a consolidação<br />

do projeto <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e o processo <strong>de</strong> urbanização. Em contraponto,<br />

a preocupação ambiental surge e ganha corpo no bojo <strong>de</strong> um amplo conjunto <strong>de</strong> reações ao caráter<br />

massificante, predatório e opressor, entre outros atributos igualmente negativos, do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento dos modos <strong>de</strong> produção capitalista e estadista, para usar a distinção feita por<br />

Castells (1996), que passaram a caracterizar a implementação do projeto <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ao<br />

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nascer <strong>de</strong> um questionamento geral ao projeto, a análise ambiental em suas diversas vertentes<br />

questiona também, necessariamente, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização territorial associado àquele projeto,<br />

expresso nas diferentes formas assumidas pela urbanização contemporânea (COSTA, 2000, p. 58).<br />

Curiosamente observa-se que, na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, as “condições <strong>de</strong><br />

precarieda<strong>de</strong> ambiental, em especial as sanitárias, <strong>de</strong>ram origem às primeiras propostas<br />

<strong>de</strong> urbanismo” (COSTA, 1997, p. 1423), representadas, <strong>de</strong> um lado, pelos chamados<br />

socialistas utópicos (que propunham ambientes novos em contraponto às cida<strong>de</strong>s industriais)<br />

e, <strong>de</strong> outro, pelos inquéritos sanitários e pelas leis <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriações que justificaram<br />

a intervenção nas cida<strong>de</strong>s. Segundo Costa (1997, p. 1423), “a partir <strong>de</strong> então nasce o<br />

urbanismo, que na classificação <strong>de</strong> Choay (1979) teria duas vertentes — a culturalista e a<br />

progressista —, esta última tendo repercussão significativa no caso brasileiro”.<br />

Nesse cenário, cabe refletir sobre a atual realida<strong>de</strong> dos estudos urbanos e ambientais.<br />

A questão urbana, segundo Costa (2000, p. 57), “per<strong>de</strong>u importância enquanto tema/<br />

objeto <strong>de</strong> interesse da chamada teoria social crítica contemporânea”, sendo substituída<br />

pelas questões ligadas a raça, gênero e diversida<strong>de</strong> étnica/cultural. Como observa a<br />

autora, a dimensão ambiental da análise urbana permanece direcionada aos aspectos<br />

técnicos das vertentes sanitárias e às análises dos movimentos sociais em torno <strong>de</strong><br />

conflitos ambientais nas áreas urbanas ou a respeito <strong>de</strong> temas ambientais como lixo,<br />

água, poluição, saneamento etc.<br />

Segundo Ferreira (1997, p. 40), o ambientalismo segue a tendência <strong>de</strong> ser um movimento<br />

multissetorial, contando com representantes do governo, da aca<strong>de</strong>mia, do<br />

empresariado, das organizações não-governamentais e <strong>de</strong> outros movimentos sociais,<br />

políticos e civis. Costa (2000, p. 57) comprova o atual alargamento das bases conceituais<br />

dos estudos ambientais, mas ressalta que, muitas vezes, a dimensão espacial/urbana nesses<br />

estudos é vista como não-ambiental, não-natural, reforçando a “hostilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> longa<br />

data do movimento ambientalista para com a própria existência das cida<strong>de</strong>s”. Dessa<br />

forma, ao mesmo tempo que as constatações anteriores revelam uma certa dicotomia<br />

entre as análises urbana e ambiental, “muitas das experiências <strong>de</strong> planejamento contemporâneo,<br />

no Brasil, têm progressivamente incorporado parâmetros tidos como ambientais<br />

em suas propostas e projetos” (COSTA, 2000, p. 68), expressos na elaboração <strong>de</strong> Planos<br />

Diretores e Leis <strong>de</strong> Uso e Ocupação do Solo.<br />

As questões ambientais no Brasil e a<br />

gestão <strong>de</strong> conflitos no âmbito municipal<br />

Segundo Maricato (1997, p. 113), “da influência keynesiana e fordista o planejamento<br />

incorporou o Estado como a figura central para assegurar o equilíbrio econômico e<br />

social e um mercado <strong>de</strong> massa”. A partir da década <strong>de</strong> 1980, com a crise do sistema<br />

fordista, passou-se a uma nova forma <strong>de</strong> regulação da ativida<strong>de</strong> econômica, caracterizada<br />

pela flexibilida<strong>de</strong> das relações trabalhistas e sociais. O Estado Nacional centralizador<br />

passou a ser consi<strong>de</strong>rado ina<strong>de</strong>quado para administrar os conflitos da socieda<strong>de</strong>. Iniciase,<br />

assim, um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização do po<strong>de</strong>r político que, tendo como precursores<br />

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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


os países centrais, passa a ser adotado em várias nações do mundo, inclusive no Brasil.<br />

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que ocorre o processo <strong>de</strong> abertura à gestão espacial<br />

<strong>de</strong>scentralizada, “o gap entre países ricos e pobres se aprofunda, assim como a<br />

heterogeneida<strong>de</strong> entre as regiões, entre cida<strong>de</strong>s ou no espaço intra-urbano” (MARICATO,<br />

1997, p. 116). Dessa forma,<br />

o <strong>de</strong>smonte da hierarquia centralizada taylorista (cujo território correspon<strong>de</strong>nte era marcado pela<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>) <strong>de</strong>u lugar a um sistema horizontal <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s, imersas na interação local/global em<br />

qualquer <strong>de</strong> seus pontos (cujo território é marcado pela exclusão) (Ibi<strong>de</strong>m, p. 117).<br />

A constituição <strong>de</strong> 1988, seguindo essa tendência <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização, regulamentou<br />

práticas <strong>de</strong> gestão participativa, <strong>de</strong>legando aos municípios um papel importante na gestão<br />

pública. Essa nova forma <strong>de</strong> governança apresenta algumas virtu<strong>de</strong>s, uma vez que os<br />

municípios se constituem na esfera privilegiada para o entendimento das <strong>de</strong>mandas cotidianas<br />

dos cidadãos. Castells e Borja (1996, p. 152) ressaltam o “forte protagonismo<br />

das cida<strong>de</strong>s, tanto na vida política, como na vida econômica, social, cultural e nos meios<br />

<strong>de</strong> comunicação”, assegurando às mesmas a posição <strong>de</strong> “atores sociais complexos e <strong>de</strong><br />

múltiplas dimensões”. Segundo Costa e Costa (2000, p. 11):<br />

O resgate da importância do município na gestão do território constitui um dos princípios<br />

centrais <strong>de</strong>ste novo momento que, ao contrário da centralização excessiva do período anterior,<br />

possibilitou o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> intervenções mais voltadas para as necessida<strong>de</strong>s locais e a incorporação<br />

<strong>de</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novos agentes.<br />

Contudo, apesar <strong>de</strong> ser a esfera administrativa mais próxima das realida<strong>de</strong>s sociais, o<br />

município não está preparado para assumir esse papel <strong>de</strong> gestor isoladamente, porque a<br />

partir do recorte espacial <strong>de</strong> um município é possível apenas uma percepção fragmentada<br />

da realida<strong>de</strong>. No caso da gestão dos recursos hídricos esse fato torna-se patente. A<br />

escala municipal permite apenas uma visão e uma percepção fragmentadas das complexas<br />

relações ambientais e sociais que não acompanham os limites político-administrativos.<br />

Esse fato torna-se claro no caso da dinâmica hidrológica superficial e subsuperficial.<br />

Uma mesma bacia hidrográfica po<strong>de</strong> abranger mais <strong>de</strong> um município, assim como também<br />

um único município po<strong>de</strong> fazer parte <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma bacia. O mesmo é válido<br />

para as águas subterrâneas, cujas dinâmica e distribuição são <strong>de</strong>terminadas pelas características<br />

e pela organização espacial dos aqüíferos e não dos municípios ou <strong>de</strong> outras<br />

unida<strong>de</strong>s espaciais <strong>de</strong> cunho político.<br />

A Lei <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> 9433/97 (Lei das Águas) estabeleceu a Política Nacional <strong>de</strong> Recursos<br />

Hídricos (PNRH), cujos instrumentos <strong>de</strong> gestão incluem o indicativo da bacia hidrográfica<br />

como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> referência para o planejamento. A referida Lei também criou o Sistema<br />

Nacional <strong>de</strong> Gerenciamento <strong>de</strong> Recursos Hídricos (SNGRH), do qual fazem parte os<br />

Comitês <strong>de</strong> Bacia Hidrográfica (CBHs) fe<strong>de</strong>rais ou estaduais (para os casos <strong>de</strong> águas<br />

fe<strong>de</strong>rais ou estaduais, respectivamente). Os CBHs são as primeiras instâncias colegiadas<br />

participativas <strong>de</strong> gestão da água no Brasil nas quais a socieda<strong>de</strong> civil e os usuários da água<br />

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têm po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>liberativo garantido, avançando em relação às experiências anteriores <strong>de</strong><br />

comitês participativos, a partir dos anos 70, nos quais a socieda<strong>de</strong> civil possuía apenas<br />

papel consultivo.<br />

Traduzindo a Lei das Águas para o nível estadual, em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> a Lei 13199/99<br />

consolidou a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> consórcios ou associações <strong>de</strong> municípios,<br />

tomando a bacia hidrográfica como unida<strong>de</strong> territorial <strong>de</strong> referência (os consórcios<br />

intermunicipais <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> bacia hidrográfica já existiam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início dos anos 1990<br />

no Estado). Essas instâncias abrem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestão conjunta na solução <strong>de</strong><br />

problemas intermunicipais, mas que não têm, necessariamente, sua origem nos municípios<br />

envolvidos. Po<strong>de</strong>-se fazer um paralelo com as regiões metropolitanas do país, que<br />

têm sido criadas legalmente para resolver problemas urbanos <strong>de</strong> forma conjunta, consi<strong>de</strong>rando<br />

re<strong>de</strong>s e fluxos <strong>de</strong> elementos espaciais interconectados, como <strong>de</strong> pessoas, mercadorias<br />

etc. Nesse caso, a região está circunscrita à área da bacia hidrográfica.<br />

Um aspecto problemático <strong>de</strong>riva do fato <strong>de</strong> as preocupações administrativas dos prefeitos<br />

serem, em gran<strong>de</strong> parte, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m funcional, mais especificamente relacionadas a<br />

questões <strong>de</strong> saneamento e abastecimento público. Uma reflexão sobre as conseqüências<br />

da poluição e da <strong>de</strong>gradação ambiental, a médio e longo prazos, escapa ao imediatismo<br />

com que a administração pública municipal se vê entrelaçada. A organização dos serviços<br />

<strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água e coleta/tratamento <strong>de</strong> esgotos contempla, tradicionalmente,<br />

somente aspectos técnicos, <strong>de</strong> manutenção e operação dos sistemas. Muitos municípios,<br />

os responsáveis diretos pelos serviços <strong>de</strong> saneamento básico no Brasil, <strong>de</strong>legam,<br />

em gran<strong>de</strong> parte, a gestão e/ou a operação dos serviços às companhias mistas <strong>de</strong> saneamento<br />

ou ao setor privado. Embora a própria gestão dos serviços <strong>de</strong> saneamento<br />

ainda se constitua num <strong>de</strong>safio para muitas prefeituras — notadamente para aquelas com<br />

recursos financeiros insuficientes e com população inferior a 30 mil habitantes —, observa-se,<br />

nesse processo, a premência da incorporação <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> preservação ambiental<br />

nas bacias hidrográficas dos mananciais responsáveis pelo abastecimento das cida<strong>de</strong>s<br />

(RODRIGUES, 2003). Esse procedimento possibilitará, no território do município, o exercício<br />

da gestão dos conflitos entre os usuários da água, com vistas a uma gestão integrada<br />

aos aspectos ambientais e a maiores compreensão e envolvimento da população nas<br />

ações a serem implementadas.<br />

Assim, <strong>de</strong>ntre os problemas que se apresentam às administrações municipais, <strong>de</strong>staca-se<br />

a questão do abastecimento <strong>de</strong> água em quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong>, aspectos nem<br />

sempre conformes às exigências legais mínimas. O enfrentamento <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>safio, especialmente<br />

consi<strong>de</strong>rando a noção <strong>de</strong> “sustentabilida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong>ve basear-se na relação permanente<br />

com as comunida<strong>de</strong>s locais, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a população compreenda<br />

a territorialida<strong>de</strong> da bacia hidrográfica on<strong>de</strong> os mananciais se inserem, bem como a<br />

dimensão dos problemas ambientais que levam à produção e à distribuição da água<br />

nos municípios. A informação e a conscientização são aspectos <strong>de</strong>cisivos para a motivação<br />

e a capacitação social no processo <strong>de</strong> gestão participativa voltado à busca <strong>de</strong><br />

soluções (RODRIGUES, 2003).<br />

42<br />

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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


A bacia hidrográfica como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestão ambiental<br />

No contexto da discussão sobre o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, a bacia hidrográfica 3 é<br />

consi<strong>de</strong>rada como espaço preferencial <strong>de</strong> análise e planejamento ambiental, 4 pois se<br />

caracteriza como um sistema on<strong>de</strong> todas as ações adotadas, sejam elas <strong>de</strong> natureza<br />

<strong>de</strong>gradadora ou protecionista e mesmo que localizadas, se refletem em seu conjunto<br />

espacial. Portanto, pensar em gestão <strong>de</strong> recursos hídricos <strong>de</strong> forma restrita a uma porção<br />

do espaço geográfico não isenta o mesmo das interferências das áreas circunvizinhas,<br />

principalmente das áreas à montante, e torna a gestão vulnerável e ineficaz. Sua importância<br />

para o planejamento é <strong>de</strong>stacada por Franco (2001, p. 22): “As ações <strong>de</strong> Planejamento<br />

Ambiental, embora levem em conta as questões nacionais, por serem ecossistêmicas,<br />

transcen<strong>de</strong>m os limites políticos, uma vez que, no mínimo, elas <strong>de</strong>verão levar em conta<br />

os limites das bacias hidrográficas”. É claro que, nessa passagem, a autora se refere a<br />

planejamentos realizados na esfera fe<strong>de</strong>ral e às gran<strong>de</strong>s bacias hidrográficas que integram<br />

o território nacional. Mas o processo <strong>de</strong> análise ambiental, seja para o Município, para o<br />

Estado ou para a Nação, apresenta a mesma natureza, alterando-se nesse caso apenas sua<br />

escala <strong>de</strong> abrangência.<br />

Consi<strong>de</strong>rando-a como um processo <strong>de</strong> análise ambiental, a etapa do planejamento<br />

(predição) é essencial para o atendimento das exigências ambientais atuais no país. O<br />

planejamento ambiental envolve uma reor<strong>de</strong>nação do espaço geográfico tal como ele<br />

se apresenta, contrapondo o uso do solo com as aptidões diagnosticadas, tal qual <strong>de</strong>ve<br />

ser pensado na gestão e na administração pública dos recursos hídricos. Sem o planejamento,<br />

as <strong>de</strong>cisões e as ações <strong>de</strong> âmbito ambiental terminam por se basear em intervenções<br />

espaciais fragmentadas que, apesar <strong>de</strong> sua importância em um processo <strong>de</strong><br />

gestão, não atingem os objetivos <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong> espaço-temporal. É o caso dos<br />

Estudos <strong>de</strong> Impacto Ambiental (EIA) que, embora sejam importantes nos processos<br />

<strong>de</strong> prevenção, proteção e recuperação ambiental em diferentes escalas espaciais, não<br />

são, muitas vezes, inseridos em um processo <strong>de</strong> gestão estruturado em longo prazo<br />

(planejamento plurianual).<br />

O planejamento ambiental não po<strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong> um diagnóstico ambiental a<strong>de</strong>quado.<br />

Várias são as tipologias e objetivos dos inúmeros diagnósticos ambientais realizados<br />

no país, mas a maioria <strong>de</strong>les não contempla <strong>de</strong> forma satisfatória a síntese dos<br />

aspectos diagnosticados, conferindo a estes um caráter in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e contrariando a<br />

inter<strong>de</strong>pendência natural <strong>de</strong> suas relações ecossistêmicas. A água, nesse contexto, po<strong>de</strong><br />

ser visualizada como uma clara representação <strong>de</strong>ssa inter<strong>de</strong>pendência. Não há como<br />

pensá-la <strong>de</strong> forma fragmentada, ignorando a situação dos <strong>de</strong>mais fatores ambientais<br />

ou suas relações. Sob esse raciocínio, Magalhães Jr. (2003) sintetiza as prerrogativas<br />

para a realização <strong>de</strong> uma gestão da água na perspectiva do que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento sustentável (Quadro 1), consi<strong>de</strong>rando as recentes abordagens sobre as águas<br />

no mundo.<br />

3<br />

Área drenada por um rio principal e seus<br />

afluentes, que tem como um <strong>de</strong> seus limites<br />

os divisores <strong>de</strong> água (pontos a partir dos quais<br />

a água da chuva escoa para uma ou outra<br />

vertente <strong>de</strong> uma montanha, por exemplo) e<br />

inclui a existência <strong>de</strong> nascentes, subafluentes<br />

etc. (MOUSINHO, 2003, p. 338).<br />

4<br />

Segundo Almeida et al. (2002, p. 14), o planejamento<br />

ambiental não possui <strong>de</strong>finição<br />

muito precisa, mas <strong>de</strong>stacam-se como <strong>de</strong>finições<br />

mais abrangentes as seguintes: (a)<br />

grupo <strong>de</strong> metodologias e procedimentos para<br />

avaliar as conseqüências ambientais <strong>de</strong> uma<br />

ação proposta e i<strong>de</strong>ntificar possíveis alternativas<br />

a essa ação, e (b) conjunto <strong>de</strong> metodologias<br />

e procedimentos para avaliar as<br />

contraposições entre as aptidões e os usos<br />

dos territórios a serem planejados.<br />

Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Fre<strong>de</strong>rico do Valle Ferreira <strong>de</strong> Castro Luciano José Alvarenga Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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Quadro 1<br />

Prerrogativas para uma gestão da água<br />

na perspectiva do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável<br />

– Adoção <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s territoriais funcionais e adaptadas aos objetivos pretendidos;<br />

– Adoção do princípio <strong>de</strong> subsidiarieda<strong>de</strong>;<br />

– Gestão participativa e negociação;<br />

– Transparência <strong>de</strong> informações e conhecimento;<br />

– Planificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões, ações e intervenções;<br />

– Adoção <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> controle da <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> água;<br />

– Integração da gestão da água à gestão territorial e às políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento;<br />

– Integração interinstitucional e formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> informações.<br />

Fonte: MAGALHÃES JR., 2003.<br />

Tais reflexões encontram respaldo em Dias (2001, p. 307), que salienta que o novo<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>sejado (dito sustentável)<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da atuação <strong>de</strong> novos indivíduos, <strong>de</strong> uma nova ética e <strong>de</strong> uma nova configuração do saber<br />

[...] <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> fundamentalmente, também, <strong>de</strong> novas instituições e <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo diferente <strong>de</strong><br />

gestão pública que pressupõe a incorporação dos elementos <strong>de</strong> participação social e cidadania<br />

aliados à competência técnica.<br />

A gestão da água como base para uma territorialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conflitos<br />

O tema água, por agregar uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos e simbolizações, po<strong>de</strong> ser tratado<br />

sob diferentes focos, sendo abordado por diversos atores com visões e perspectivas <strong>de</strong><br />

mundo distintas. Lima (2001, p. 1135) afirma que, consi<strong>de</strong>rando a apropriação e a<br />

transformação <strong>de</strong> recursos, o meio ambiente engloba processos que envolvem disputas<br />

<strong>de</strong> diversos atores e representações, isto é, construções mentais sobre si mesmos e sobre<br />

seu mundo; sob esse raciocínio, os agentes disputam pela imposição <strong>de</strong> suas representações.<br />

No campo <strong>de</strong> referencial teórico, Borsoi e Torres (1997, p. 2) reafirmam as tendências<br />

internacionais e nacionais <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração da água como um recurso ou bem econômico, com<br />

base em seu caráter finito, vulnerável e essencial para a conservação da vida e do meio<br />

ambiente, já que sua escassez é um fator limitador do <strong>de</strong>senvolvimento; por outro lado,<br />

as águas poluídas po<strong>de</strong>m contribuir para a <strong>de</strong>gradação da qualida<strong>de</strong> do meio ambiente,<br />

justificando seu caráter <strong>de</strong> recurso ambiental.<br />

No Brasil, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar dois marcos legais e institucionais históricos em relação<br />

aos recursos hídricos. De um lado, o Código <strong>de</strong> Águas, <strong>de</strong> 1934, que se manteve como<br />

principal sistema <strong>de</strong> regras formais num período em que o Estado adquiriu, <strong>de</strong> forma<br />

progressiva, o controle dos monopólios naturais dos serviços públicos. Do outro, a já<br />

citada Lei 9433/97, que fundamentou a água como um bem público e um recurso natural<br />

limitado dotado <strong>de</strong> valor econômico. Ao mesmo tempo em que estabelece as regras<br />

formais à nova realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> privatização dos serviços públicos (RIO; MOURA, [s.d.],<br />

p.1), a Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos (PNRH), como um novo arcabouço jurídico-institucional,<br />

elege a bacia hidrográfica como a unida<strong>de</strong> territorial para a implantação<br />

44<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


da referida política e para a atuação do Sistema Nacional <strong>de</strong> Gerenciamento <strong>de</strong> Recursos<br />

Hídricos (SNGRH). Orientada a uma gestão <strong>de</strong>scentralizada, com participação do po<strong>de</strong>r<br />

público, dos usuários e das comunida<strong>de</strong>s, a gestão <strong>de</strong> recursos hídricos <strong>de</strong>verá proporcionar<br />

o uso múltiplo das águas. Os avanços legais e institucionais pelos quais o Brasil<br />

passou a partir do final do século XX refletem o novo status político, econômico e social<br />

da água, consi<strong>de</strong>rada como recurso essencial e escasso. A criação <strong>de</strong> novos instrumentos<br />

legais vem contribuir para disciplinar os diferentes modos <strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong>sse recurso,<br />

apesar <strong>de</strong> o país necessitar <strong>de</strong> tempo para a real operacionalização e fiscalização da<br />

aplicação do quadro legal (LIMA, 2001, p. 1135).<br />

Avaliando, <strong>de</strong> forma geral, a participação do Estado entre o pós-guerra e os dias<br />

atuais, Rio e Moura ([s.d.], p. 4) fazem a seguinte reflexão:<br />

Nesse contexto <strong>de</strong> mudanças ocorre a substituição do caráter tradicional do Estado keynesiano do<br />

pós-guerra — controlador, diretor, produtor direto <strong>de</strong> bens e serviços, planejador, árbitro, em<br />

algumas ocasiões, dos conflitos nos quais era parte — por um Estado schumpeteriano (regulador<br />

das ativida<strong>de</strong>s privatizadas, balizador da concorrência, estimulador da oferta <strong>de</strong> serviços essenciais<br />

num ambiente competitivo, assegurador dos direitos do consumidor e criador <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s<br />

para a iniciativa privada e <strong>de</strong> investimento para o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico).<br />

Esses mesmos autores constroem um pensamento no qual a regulação e seu aparato<br />

têm <strong>de</strong>sdobramentos sobre o posicionamento e as estratégias dos atores no plano político-territorial.<br />

Tal construção remete-nos ao seguinte raciocínio:<br />

Figura 1<br />

A construção <strong>de</strong> novas territorialida<strong>de</strong>s e conflitos<br />

Regulação<br />

influencia<br />

Posicionamento e<br />

estratégias dos atores<br />

(plano político-territorial)<br />

influenciam<br />

Tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão<br />

associa<br />

Dinâmica<br />

espaço-temporal<br />

induz<br />

induz<br />

Reestruturação<br />

espacial da socieda<strong>de</strong><br />

Geração <strong>de</strong> conflitos<br />

Fonte: RIO; MOURA, [s.d.], p. 6.<br />

Definida como a unida<strong>de</strong> territorial para a implantação da PNRH, a bacia hidrográfica,<br />

uma abstração espacial <strong>de</strong> caráter físico-ambiental, institucionaliza-se como superfície <strong>de</strong><br />

regulação (PIRES DO RIO; PEIXOTO 5 citado por RIO; MOURA, [s.d.], p. 7), <strong>de</strong>senhando<br />

uma superposição entre a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestão para os recursos hídricos e os recortes<br />

espaciais da gestão pública. Gera-se, portanto, uma lógica espacial mais complexa, on<strong>de</strong><br />

são colocados os <strong>de</strong>safios à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação territorial, envolvendo diversos<br />

atores em diversas escalas.<br />

5<br />

PIRES DO RIO, G. A.; PEIXOTO, M. N. O. Superfície<br />

<strong>de</strong> regulação e conflitos <strong>de</strong> atribuições<br />

na gestão <strong>de</strong> recursos hídricos. Território, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, n. 10, p. 51-65, 2001.<br />

Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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Os <strong>de</strong>safios colocados são explicitados em conflitos que assumem várias instâncias,<br />

como afirmam Rio e Moura ([s.d.], p. 8):<br />

Esses <strong>de</strong>safios envolvem não somente instâncias integrantes do SINGREH e dos sistemas<br />

estaduais <strong>de</strong> gestão e planejamento dos recursos hídricos (que apresentam choques <strong>de</strong> atribuições<br />

e disputas envolvendo grupos políticos), mas também instituições e organizações ligadas a<br />

outros setores usuários dos recursos hídricos. Esse segundo caso po<strong>de</strong> ser exemplificado pela<br />

certa “subordinação” <strong>de</strong> outros entes reguladores, como no caso das Agências Nacionais <strong>de</strong><br />

Energia Elétrica e Transporte Aquaviário.<br />

Sob esse raciocínio, a bacia hidrográfica, além <strong>de</strong> ser uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestão ambiental,<br />

torna-se também palco <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> conflitos. No que diz respeito à natureza dos conflitos,<br />

po<strong>de</strong>mos distinguir os <strong>de</strong> natureza quantitativa, cuja essência resi<strong>de</strong> na disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

água para consumo, e os <strong>de</strong> natureza qualitativa, que remetem às mudanças nos padrões<br />

<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> da água <strong>de</strong> acordo com os usos a que se <strong>de</strong>stinam (RIO; MOURA, [s.d.], p.<br />

15). Dentro <strong>de</strong>sse contexto, ao lado dos chamados conflitos institucionais, interagem os<br />

conflitos sociais, gerados pelo uso múltiplo da água assegurado pelos fundamentos da PNRH.<br />

Lima (2001, p. 1136) contextualiza o caráter complexo da questão ambiental:<br />

Quando o meio ambiente passa a ser compreendido como uma construção social, ele passa a<br />

representar também as formas <strong>de</strong> organização social no território para apropriá-lo, em função do<br />

qual ocorrem um conjunto <strong>de</strong> lutas. É no âmbito <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>bate que a questão ambiental é construída<br />

como um problema social novo.<br />

Nesse cenário, Valêncio e Martins (2004, p. 61) refletem sobre a postura do Conselho<br />

Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos:<br />

Embora neste se creia corriqueiro o significado da água como suporte <strong>de</strong> vida para os elementos<br />

vivos, da fauna e flora, que a torna base <strong>de</strong> um ecossistema particular (ecossistema aquático), a<br />

mesma é vista prepon<strong>de</strong>rantemente como “recurso hídrico”, isto é, num viés utilitarista e<br />

compartimentado da “natureza para o homem” e não como meio biofísico que suporta várias<br />

relações, inclusive, mas não só, relações sócio-culturais.<br />

Fortemente inspirado na experiência francesa, o quadro legal <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> recursos<br />

hídricos do Brasil é consi<strong>de</strong>rado um dos mais avançados do mundo. Contudo, sua aplicação<br />

encontra obstáculos e <strong>de</strong>safios para o funcionamento da gestão participativa em<br />

novos fóruns <strong>de</strong>cisórios como os Comitês <strong>de</strong> Bacia Hidrográfica (CBH), implicando em riscos<br />

<strong>de</strong> reprodução da velha estrutura na qual operam interesses hegemônicos setoriais<br />

baseados na influência político-econômica. Sem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar sua importância, já que<br />

são necessários ao fortalecimento <strong>de</strong> uma gestão mais <strong>de</strong>scentralizada e plural, até que<br />

ponto os novos fóruns <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate não po<strong>de</strong>m se tornar novos palcos <strong>de</strong> cooptação e <strong>de</strong><br />

legitimação <strong>de</strong> velhos interesses, sob o respaldo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão supostamente <strong>de</strong>mocrática<br />

e legitimada? Magalhães Jr (2001) ressalta alguns dos principais obstáculos à gestão<br />

das águas no Brasil (Quadro 2).<br />

46<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


Quadro 2<br />

Principais obstáculos à gestão <strong>de</strong> águas no Brasil<br />

– Carência <strong>de</strong> informações a<strong>de</strong>quadas para os objetivos dos estudos, projetos e programas<br />

(ausência, complexida<strong>de</strong> ina<strong>de</strong>quada) ou subutilização <strong>de</strong> informações;<br />

– Carência <strong>de</strong> recursos financeiros e humanos;<br />

– Interesses setoriais: setores elétrico, agrícola e <strong>de</strong> saneamento básico, principalmente;<br />

– Ausência <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> da informação (socieda<strong>de</strong> em re<strong>de</strong>) fragmentação institucional,<br />

não implementação <strong>de</strong> um sistema nacional <strong>de</strong> informações ambientais;<br />

– Falta <strong>de</strong> aplicação da PNRH e <strong>de</strong> operacionalização do SNGRH (ex: cobrança);<br />

– Falta <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> objetivos e metas estabelecidos;<br />

– Falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e interesse políticos, econômicos e sociais;<br />

– Falta <strong>de</strong> incorporação da dimensão ecológica à gestão da água;<br />

– Falta <strong>de</strong> incorporação da dimensão territorial à gestão da água.<br />

Fonte: MAGALHÃES JR., 2001, p. 34-47.<br />

Valêncio e Martins (2004, p. 61), em seu estudo sobre os conflitos gerados na Bacia do<br />

Alto-Médio São Francisco em torno da pesca profissional praticada em bases artesanais,<br />

apontam o espaço das audiências públicas como a forma mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> lidar institucionalmente<br />

com a questão ambiental, afirmando, contudo, que tal espaço é problemático<br />

também pelas razões alegadas anteriormente. Segundo os autores, milhares <strong>de</strong> famílias<br />

ribeirinhas vêem na pesca profissional artesanal — uma das ativida<strong>de</strong>s mais tradicionais<br />

<strong>de</strong> trabalho no rio São Francisco — suas possibilida<strong>de</strong>s mais significativas <strong>de</strong> reprodução<br />

material e sociocultural. Essas possibilida<strong>de</strong>s são ameaçadas por interesses<br />

hegemônicos em torno da apropriação e do uso da água, representados e articulados<br />

nos fóruns <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate pela aqüicultura e pela pesca amadora.<br />

Nesse embate <strong>de</strong> interesses, infelizmente ainda há um distanciamento da socieda<strong>de</strong><br />

civil organizada, representada pela tênue participação e/ou articulação nos CBHs. Em<br />

geral, a socieda<strong>de</strong> civil é o setor menos capacitado tecnicamente e menos mobilizado<br />

para incorporar o novo sistema <strong>de</strong> gestão participativa da água, seja no Brasil ou na<br />

própria experiência francesa iniciada em 1964 (MAGALHÃES JR., 2001). Em um contexto<br />

em que não está preparada a<strong>de</strong>quadamente para o processo <strong>de</strong>cisório (“empowerment”),<br />

a socieda<strong>de</strong> civil torna-se o setor mais susceptível a influências e cooptações <strong>de</strong> setores<br />

mais capacitados e informados. Deve-se ressaltar que os interesses hegemônicos não são<br />

necessariamente um problema <strong>de</strong> escala, pois acompanham, na <strong>de</strong>vida proporção do<br />

raio <strong>de</strong> ação <strong>de</strong> seus atores, tanto a problemática local, quanto a regional e nacional.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> recursos hídricos adotado tradicionalmente no Brasil ao longo<br />

do século XX retardou a participação e o posicionamento da socieda<strong>de</strong>, pois, além <strong>de</strong><br />

seu aspecto centralizador, os “problemas ambientais envolvendo as águas não estariam<br />

sendo socialmente percebidos como uma questão ambiental” (LIMA, 2001, p. 1142).<br />

Cabe ressaltar o importante papel exercido pelos Comitês <strong>de</strong> Bacia Hidrográfica em<br />

relação ao processo <strong>de</strong> envolvimento da socieda<strong>de</strong> nas questões socioambientais, no<br />

Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratizá-las. Em muitos casos observa-se, contudo, a presença <strong>de</strong> uma<br />

mentalida<strong>de</strong> retrógrada e conservadora por parte <strong>de</strong> vários atores sociais que participam<br />

e apropriam-se <strong>de</strong> fóruns <strong>de</strong> concepção mais dinâmica e mo<strong>de</strong>rna, como é o caso dos<br />

CBHs. A viabilida<strong>de</strong> da gestão da água no Brasil passa pela integração <strong>de</strong> conhecimentos e<br />

valores que incorporem a visão externa, geral, ligada ao po<strong>de</strong>r público, com a visão interna,<br />

local, ligada à socieda<strong>de</strong> civil (MAGALHÃES JR., 2003). Nesse contexto, há necessida<strong>de</strong><br />

tanto do conhecimento empírico ou saber local (através da vivência e da experiência<br />

mantidas com o meio) quanto do conhecimento científico (como fator <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> e<br />

redução da imprecisão dos fatos), para que as ações assumam um caráter <strong>de</strong> maior<br />

legitimida<strong>de</strong> frente ao po<strong>de</strong>r público.<br />

Os recentes instrumentos legais visam a disciplinar os diferentes modos <strong>de</strong> apropriação<br />

da água, visto que as preocupações têm se centrado na cobrança pelo uso da água e<br />

em como ela irá modificar a utilização <strong>de</strong>sse recurso vital e escasso. Contudo, a<br />

implementação dos instrumentos das políticas <strong>de</strong> recursos hídricos, em função <strong>de</strong> inúmeros<br />

conflitos travados, é <strong>de</strong>masiadamente morosa e passível a toda a problemática<br />

exposta neste trabalho. Estaríamos, <strong>de</strong>ssa forma, aplicando a lógica da água aos mo<strong>de</strong>los<br />

<strong>de</strong> tra<strong>de</strong> offs entre os diversos agentes em conflito? Resta também saber como será o<br />

comportamento sinalizado pelo planejamento urbano frente a essa complexa questão<br />

imposta atualmente. Levando-se em conta que o planejamento urbano tradicional no<br />

Brasil ainda não incorporou a bacia hidrográfica como uma nova dimensão territorial <strong>de</strong><br />

gestão socioambiental, como o planejador urbano se posicionará nesse novo contexto<br />

espacial <strong>de</strong> gestão?<br />

Transversalmente a esse processo, a gestão <strong>de</strong> recursos hídricos <strong>de</strong>ve se consolidar a<br />

partir da participação popular. Diversas questões estão envolvidas nessa estrutura, como<br />

a composição dos colegiados participativos. Como afirma Pádua (2001, p. 33), “quando<br />

o lí<strong>de</strong>r é um facilitador, ajuda a gerar um processo em que todos participam, e as pessoas<br />

começam a ver que são capazes <strong>de</strong> agir e <strong>de</strong> transformar”.<br />

Com a implementação dos CBHs, o país começa a assistir a uma maior participação<br />

da socieda<strong>de</strong> nesse <strong>de</strong>bate, pois a água tem uma ampla capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizar pessoas,<br />

em função <strong>de</strong> arquétipos carregados <strong>de</strong> simbolismos. Assim, diversos fatores, tais como<br />

cultura, <strong>de</strong>finições políticas, questões econômicas, condições sociais e tecnológicas, entre<br />

outros, influenciam e alteram o modo como as pessoas se relacionam com o meio,<br />

tornando a questão ambiental complexa e plural (NAVES, 2000).<br />

A possibilida<strong>de</strong> da aproximação <strong>de</strong> correntes <strong>de</strong> pensamento na clássica dicotomia<br />

física/humana que sempre permeou a Geografia po<strong>de</strong> ser facilitada com os estudos das<br />

águas, pois estas são elementos naturais que se fazem presentes em todas as dimensões<br />

geográficas dos meios físico e humano do Planeta. Além <strong>de</strong> elemento vital, as águas<br />

condicionam e refletem as ações e ativida<strong>de</strong>s humanas e interligam espaços diferenciados<br />

naturais e transformados, possibilitando as trocas e a dinâmica <strong>de</strong> fluxos e processos<br />

<strong>de</strong> múltiplas características.<br />

Com a evidência das questões ambientais, principalmente a partir da década <strong>de</strong> 1980,<br />

a Geografia, como uma ciência <strong>de</strong> síntese <strong>de</strong> questões espaciais, passou a ter condições<br />

48<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


<strong>de</strong> beneficiar-se da nova linha <strong>de</strong> pensamento multidisciplinar com que o ambiente é<br />

atualmente <strong>de</strong>fendido. Essa qualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>senvolvida, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

geração <strong>de</strong> um ambiente que seja sustentável em termos sociais, ecológicos e econômicos.<br />

Mesmo que conceitualmente diversa e para muitos utópica como meta atual, essa realida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong> ambiental po<strong>de</strong> auxiliar a socieda<strong>de</strong> brasileira, ou qualquer socieda<strong>de</strong>,<br />

a buscar contínuos avanços na racionalização do uso e da ocupação dos espaços<br />

urbanos e não urbanos, bem como na apropriação menos <strong>de</strong>gradadora <strong>de</strong> recursos<br />

naturais como as águas.<br />

artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado outubro/2005<br />

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Brasil 2000: qual<br />

planejamento urbano?<br />

Ca<strong>de</strong>rnos IPPUR, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, v. 11,<br />

n. 1-2, p. 113-130,<br />

jan./<strong>de</strong>z. 1997.<br />

MOUSINHO, Patrícia.<br />

Glossário. In:<br />

TRIGUEIRO, André<br />

(Org.). Meio ambiente no<br />

século 21: 21<br />

especialistas falam da<br />

questão ambiental nas<br />

suas áreas <strong>de</strong><br />

conhecimento. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Sextante,<br />

2003. p. 333-367.<br />

NAVES, Flávia<br />

Luciana. Gestão<br />

ambiental. In: NAVES,<br />

Flávia Luciana et al.<br />

Introdução ao estudo <strong>de</strong><br />

gestão e manejo<br />

ambiental. Lavras:<br />

UFLA/FAEPE, 2000.<br />

p. 119-148.<br />

NEIVA, Álvaro.<br />

O <strong>de</strong>safio urbano.<br />

Ecologia e<br />

Desenvolvimento,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, n. 100,<br />

p. 32-35, mar. 2000.<br />

PÁDUA, Susana.<br />

Para atingir o<br />

coração. Ecologia e<br />

Desenvolvimento, Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, n. 92,<br />

p. 31-33, maio 2001.<br />

RIO, Gisela A. Pires<br />

do; MOURA, Vinícios<br />

Pinto. Dimensões<br />

territoriais <strong>de</strong> regulação<br />

dos recursos hídricos no<br />

Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

UFRJ, [s.d.].<br />

RODRIGUES, Ludmila<br />

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serviços <strong>de</strong> água no<br />

município. Belo<br />

Horizonte: Fundação<br />

João Pinheiro,<br />

2003. Ensaio.<br />

ROSS, Jurandyr<br />

Luciano Sanches.<br />

Geomorfologia<br />

aplicada aos EIAs-<br />

RIMAs. In: CUNHA,<br />

Sandra Baptista da;<br />

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Geomorfologia e meio<br />

ambiente. Rio <strong>de</strong><br />

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p. 291-336.<br />

TUCCI, Carlos<br />

Eduardo Morelli.<br />

Prefácio. In: CUNHA,<br />

Sandra Baptista da;<br />

GUERRA, Antônio<br />

José Teixeira (Org.).<br />

Impactos ambientais<br />

urbanos no Brasil. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 2001. p. 17-18.<br />

VALENCIO, Norma<br />

Felicida<strong>de</strong> Lopes da<br />

Silva; MARTINS,<br />

Rodrigo Constante.<br />

Novas<br />

Institucionalida<strong>de</strong>s na<br />

gestão <strong>de</strong> águas e po<strong>de</strong>r<br />

local: os limites<br />

territoriais da<br />

<strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>cisória.<br />

In: Interações: <strong>Revista</strong><br />

Internacional <strong>de</strong><br />

Desenvolvimento Local,<br />

Campo Gran<strong>de</strong> (MS),<br />

Programa<br />

Desenvolvimento<br />

Local da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

Católica Dom Bosco –<br />

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COMMISSION ON<br />

ENVIRONMENT AND<br />

DEVELOPMENT). Our<br />

common future. Oxford<br />

and New York:<br />

Oxford University<br />

Press, 1987.<br />

50<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 37-50 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Recursos Hídricos e a gestão <strong>de</strong> conflitos em uma nova territorialida<strong>de</strong>


Obstáculos aos processos <strong>de</strong><br />

regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil:<br />

o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP 1<br />

Silvia Maria M. Funes<br />

EMDHAP - Empresa Municipal <strong>de</strong><br />

Desenvolvimento Habitacional <strong>de</strong> Piracicaba<br />

Mestre em Engenharia Urbana pela UFSCAR<br />

Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro<br />

Professora do Departamento <strong>de</strong> Engenharia Civil<br />

da UFSCAR - Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP<br />

Ioshiaqui Shimbo<br />

Professor do Departamento <strong>de</strong> Engenharia Civil<br />

da UFSCAR - Doutor em Educação pela UNICAMP<br />

Resumo<br />

O presente artigo tem como parâmetro a<br />

problemática existente para o <strong>de</strong>senvolvimento e<br />

conclusão dos processos <strong>de</strong> regularização fundiária<br />

<strong>de</strong> favelas no Brasil, enfocando principalmente os<br />

aspectos jurídicos das intervenções relacionados à<br />

questão da posse ou proprieda<strong>de</strong> da terra por seus<br />

ocupantes. Para tanto, apresentamos seu marco<br />

jurídico-urbanístico-institucional, <strong>de</strong>stacando as<br />

atuais legislações, os instrumentos <strong>de</strong> intervenções<br />

e o Ministério das Cida<strong>de</strong>s. Como objeto específico<br />

<strong>de</strong> estudo optamos por três núcleos <strong>de</strong> favelas do<br />

município <strong>de</strong> Piracicaba-SP, verificando as<br />

ocorrências que levaram à não-conclusão <strong>de</strong> seus<br />

processos <strong>de</strong> regularização fundiária, tomando<br />

como principais categorias <strong>de</strong> análise as legislações,<br />

as instituições, a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> administrativa,<br />

os recursos financeiros e a participação popular.<br />

Ao final são apresentadas algumas consi<strong>de</strong>rações<br />

e diretrizes que visam a contribuir para a<br />

minimização dos obstáculos existentes para<br />

conclusão dos processos <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária <strong>de</strong> favelas.<br />

Palavras-chave regularização fundiária; favelas;<br />

posse; obstáculos.<br />

Abstract<br />

The present article treats the issue of the<br />

<strong>de</strong>velopment and conclusion of the processes involving<br />

the land regularization of shantytowns in Brazil,<br />

focusing the juridical issues of the interventions, which<br />

are related to the land possession or occupancy by the<br />

resi<strong>de</strong>nts. In or<strong>de</strong>r to reach that objective, we present<br />

the institutional-urbanistic-juridical landmark,<br />

highlighting the present legislation, the instruments<br />

of intervention, and City of Ministry. The town of<br />

Piracicaba – state of São Paulo, Brazil – is brought<br />

as the specific object treated in this study, where we<br />

examine what happened in the legal processes of land<br />

regularization of three shantytown points that were<br />

not able to reach a conclusion. This work is mainly<br />

based on the analyses of the legislation, institutions,<br />

change of government, financial resources and popular<br />

participation. In the end, we present the consi<strong>de</strong>rations<br />

and some systems, which are inten<strong>de</strong>d to <strong>de</strong>crease the<br />

conflicts and the obstacles to the conclusion of the<br />

processes of land regularization of shantytowns.<br />

Keywords land regularization; shantytowns;<br />

occupancy; obstacles.<br />

1<br />

O presente texto tem como referência a dissertação<br />

<strong>de</strong> mestrado <strong>de</strong>fendida por Silvia<br />

Maria Morales Funes, orientada pelo Prof. Dr.<br />

Ioshiaqui Shimbo e co-orientada pela Profª<br />

Drª Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro, <strong>de</strong>senvolvida<br />

no curso <strong>de</strong> Pós-graduação em Engenharia<br />

Urbana do DECIV – Departamento <strong>de</strong><br />

Engenharia Civil da UFSCAR – <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> São Carlos, no campo <strong>de</strong> pesquisas<br />

em Políticas Públicas e Habitação <strong>de</strong> Interesse<br />

Social.<br />

sfunes@bol.com.br<br />

ccastro@power.ufscar.br<br />

shimbo@power.ufscar.br<br />

Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

51


Introdução<br />

Dados divulgados no documento O <strong>de</strong>safio das favelas: relatório global sobre moradia humana,<br />

elaborado pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN-<br />

HABITAT), mostram que aproximadamente um bilhão <strong>de</strong> pessoas no mundo viviam em<br />

favelas e assentamentos subnormais em 2001. A publicação acrescenta que esse número<br />

po<strong>de</strong>rá dobrar até 2030 se os governos não combaterem o problema e que o Brasil é o<br />

mais atingido entre os países latino-americanos. O relatório <strong>de</strong>fine favela como “o conjunto<br />

<strong>de</strong> habitações precariamente construídas, que abriga moradias em excesso, não tem<br />

saneamento básico e não possui títulos <strong>de</strong> posse ou <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> regularizados”(Jornal<br />

Correio Braziliense, 07/10/2003, Capa/Mundo – O dobro <strong>de</strong> favelados até 2030, p. 1).<br />

Legislações exclu<strong>de</strong>ntes, mercado imobiliário restrito e <strong>de</strong>scaso dos governantes em<br />

relação à produção habitacional popular são fatores que contribuíram para a urbanização<br />

periférica, com proliferação <strong>de</strong> ocupações, em vários países da América Latina durante<br />

todo o século XX.<br />

A segregação espacial é um dos principais agentes da exclusão territorial e da <strong>de</strong>gradação<br />

ambiental e traz consigo uma lista interminável <strong>de</strong> problemas, como saneamento<br />

<strong>de</strong>ficiente, drenagem inexistente, difícil acesso aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, educação e<br />

lazer, falta <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reço formal e insegurança tanto em relação à posse como em relação<br />

à estrutura da moradia.<br />

Conforme pesquisa realizada pelo IBGE, em 2001, sobre informações básicas municipais,<br />

23% das cida<strong>de</strong>s brasileiras têm favelas ou moradias precárias. A proporção sobe<br />

para 80% nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 100 mil a 500 mil habitantes e para 100% nas com mais <strong>de</strong> 500<br />

mil. Dados mostram-nos que principalmente nas metrópoles a população favelada chega<br />

a mais <strong>de</strong> 20% da população total.<br />

De acordo com dados divulgados pelo Ministério das Cida<strong>de</strong>s em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004,<br />

o déficit habitacional atual é da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> 7,2 milhões <strong>de</strong> moradias.<br />

Diante <strong>de</strong>sse quadro, os po<strong>de</strong>res públicos fe<strong>de</strong>ral, estadual e municipal vêm reconhecendo<br />

cada vez mais o problema e têm procurado intervir <strong>de</strong> maneira a minimizar os<br />

conflitos existentes em relação a essa ilegalida<strong>de</strong>. Atualmente a regularização fundiária<br />

faz parte da questão central dos governos, principalmente dos municipais.<br />

De acordo com Betânia <strong>de</strong> Moraes Alfonsin (1997, p. 24),<br />

Regularização Fundiária é o processo <strong>de</strong> intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e<br />

social, que objetiva legalizar a permanência <strong>de</strong> populações moradoras <strong>de</strong> áreas urbanas ocupadas<br />

em <strong>de</strong>sconformida<strong>de</strong> com a lei para fins <strong>de</strong> habitação, implicando melhorias no ambiente urbano<br />

do assentamento, no resgate da cidadania e da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da população beneficiária.<br />

Des<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1980, <strong>de</strong>stacam-se como pioneiros nos programas <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária no Brasil os municípios <strong>de</strong> Belo Horizonte e Recife, que serviram <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo<br />

aos programas municipais elaborados na década <strong>de</strong> 1990, como em Dia<strong>de</strong>ma e<br />

Santo André. Porém, os resultados em relação à <strong>de</strong>manda ainda são insatisfatórios.<br />

Como a maioria das cida<strong>de</strong>s médias e gran<strong>de</strong>s do Brasil, Piracicaba não foge à regra:<br />

sua economia cresceu apoiada no consumo <strong>de</strong> uma força <strong>de</strong> trabalho superabundante,<br />

52<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


favorecendo o <strong>de</strong>semprego, os empregos sazonais e os baixos salários. Essa população,<br />

geralmente, foi impedida do acesso a bens e serviços da cida<strong>de</strong>, como saneamento<br />

básico e condições dignas <strong>de</strong> habitação, formando assim as favelas.<br />

Para a análise empírica <strong>de</strong>stacamos os processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> três<br />

núcleos <strong>de</strong> favelas na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Piracicaba, cada qual com suas especificida<strong>de</strong>s, verificando<br />

os obstáculos encontrados no seu <strong>de</strong>senvolvimento e para sua conclusão. Preten<strong>de</strong>-se<br />

com a referida pesquisa contribuir para a elaboração <strong>de</strong> diretrizes que subsidiem o aprimoramento<br />

dos programas <strong>de</strong> regularização tanto em Piracicaba como em outros municípios,<br />

já que existem similarida<strong>de</strong>s entre esses processos. 2<br />

Novo marco jurídico-urbanístico-institucional<br />

Des<strong>de</strong> o final do século passado, vários avanços vêm surgindo, entre os quais se incluem<br />

a participação da população na cobrança <strong>de</strong> seus direitos, a elaboração <strong>de</strong> programas <strong>de</strong><br />

regularização fundiária e a aprovação e a implementação <strong>de</strong> novas legislações e <strong>de</strong><br />

instrumentos que visam a buscar a função social da proprieda<strong>de</strong>.<br />

Conforme Edésio Fernan<strong>de</strong>s (2004), a Lei 6766/79, o capítulo constitucional sobre<br />

política urbana e, atualmente, o Estatuto da Cida<strong>de</strong> compõem o “tripé” das principais<br />

leis urbanísticas do país.<br />

A Lei 6766/79: paradigma e ambigüida<strong>de</strong><br />

A Lei 6766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, trouxe em seu artigo<br />

4º a figura <strong>de</strong> urbanização específica para promoção <strong>de</strong> regularização <strong>de</strong> assentamentos<br />

informais, na qual muitos municípios se apoiaram para elaborar seus programas <strong>de</strong><br />

regularização fundiária.<br />

Para Ermínia Maricato (1996, p. 48), a Lei 6766/79 é ao mesmo tempo paradigmática e<br />

ambígua, pois as exigências legais trazidas por ela oneraram o custo dos lotes, restringindo<br />

sua aquisição pela população pobre: “Há evi<strong>de</strong>nte correlação entre a diminuição da oferta<br />

<strong>de</strong> lotes ilegais no município <strong>de</strong> São Paulo e a explosão do crescimento das favelas”.<br />

Em 1999, a Lei 6766/79 sofreu alterações e alcançou avanços significativos através da<br />

Lei 9785/99, principalmente instrumentalizando a autonomia legislativa dos municípios<br />

para promoção <strong>de</strong> empreendimentos habitacionais <strong>de</strong> interesse social e para regularização<br />

<strong>de</strong> assentamentos informais. Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, o<br />

Projeto <strong>de</strong> Lei 3057/00 que, com o propósito <strong>de</strong> alterar a Lei 6766, traz a regularização<br />

fundiária como um <strong>de</strong> seus principais objetivos.<br />

A Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> 1988 e a função social da proprieda<strong>de</strong><br />

Embora o princípio da função social da proprieda<strong>de</strong> tenha se repetido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras<br />

Constituições, somente a partir <strong>de</strong> 1970, <strong>de</strong>vido ao crescimento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais<br />

e às pressões populares por reforma urbana, é que esse conceito passou a ser tratado<br />

com maior relevância.<br />

Assim, representando uma vitória alcançada pela luta do povo, em 1988 foi inserido<br />

na Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> um capítulo específico sobre política urbana, composto pelos<br />

2<br />

A análise <strong>de</strong> três núcleos refere-se a estudo<br />

<strong>de</strong> caso múltiplo. A coleta <strong>de</strong> dados foi elaborada<br />

através <strong>de</strong> pesquisas documentais (processos<br />

administrativos, legislações, projetos,<br />

registros cartoriais, mapas e outros) e, visando<br />

à complementação <strong>de</strong>stas, entrevistas<br />

com atores estratégicos envolvidos nos processos<br />

(Presi<strong>de</strong>nte e ex-Presi<strong>de</strong>nte da<br />

EMDHAP, diretoria da ASFAP, Oficial <strong>de</strong> Registro<br />

<strong>de</strong> Imóveis e outros). Para as consi<strong>de</strong>rações<br />

finais, os dados e informações obtidos<br />

em cada processo analisado foram organizados<br />

e sistematizados, proce<strong>de</strong>ndo-se então à<br />

sua triangulação e relacionando-se o enca<strong>de</strong>amento<br />

das ocorrências que levaram à nãoconclusão<br />

dos processos <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária das áreas em questão.<br />

Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

53


artigos 182 e 183. Embora não tenha <strong>de</strong>finido parâmetros objetivos para sua aplicação,<br />

esse capítulo introduziu conceitos como função social da proprieda<strong>de</strong>, usucapião especial<br />

urbano, <strong>de</strong>sapropriação por títulos da dívida pública e concessão <strong>de</strong> uso, entre outros.<br />

Em seu artigo 5º, a Constituição trouxe ainda a garantia do direito à proprieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminando,<br />

porém que esta <strong>de</strong>va aten<strong>de</strong>r a sua função social. Outro avanço constitucional<br />

refere-se à autonomia municipal para legislar sobre assuntos <strong>de</strong> interesses locais, conforme<br />

prevê o artigo 30. Liana P. Mattos (2002, p. 89) comenta que:<br />

cabe ao governo municipal promover o controle jurídico do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento urbano<br />

através da formulação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>namento territorial, nas quais os interesses individuais<br />

dos proprietários necessariamente coexistem com outros interesses sociais, culturais e ambientais<br />

<strong>de</strong> outros grupos e da cida<strong>de</strong> como um todo.<br />

Em 2000, através da Emenda Constitucional nº 26, a moradia foi inserida no rol dos<br />

direitos sociais, ao lado da saú<strong>de</strong> e da educação.<br />

Assim, cada vez mais o Estado Brasileiro vem se adaptando à realida<strong>de</strong> social, procurando,<br />

em conseqüência do crescimento <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado e das ocupações urbanas, inserir<br />

restrições ao direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> nas legislações que tratam do assunto e tentando<br />

inverter os valores a respeito da pessoa humana em <strong>de</strong>trimento da proprieda<strong>de</strong> privada.<br />

O Estatuto da Cida<strong>de</strong> e a Medida Provisória 2220/01<br />

Embora a inclusão do capítulo sobre política urbana na Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> 1988<br />

(CF-88) tenha sido uma conquista, Saule Júnior (2001, p. 101) argumenta que a vitória<br />

não foi completa pois, segundo alguns entendimentos jurídicos, havia ainda necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> regulamentá-lo.<br />

Assim, em 1990, o Senador Pompeu <strong>de</strong> Souza apresentou o Projeto <strong>de</strong> Lei 5788/90,<br />

visando à regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição. Foram realizados inúmeros<br />

<strong>de</strong>bates, seminários e congressos, e, após mais <strong>de</strong> 10 anos, a Lei 10257/01 —<br />

Estatuto da Cida<strong>de</strong> — foi aprovada.<br />

Logo em seu parágrafo único do Capítulo I, o Estatuto da Cida<strong>de</strong> estabelece normas <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m pública e interesse social que regulam o uso da proprieda<strong>de</strong> urbana em prol do bem<br />

coletivo, da segurança e do bem-estar <strong>de</strong> seus cidadãos, bem como o equilíbrio ambiental.<br />

O Estatuto da Cida<strong>de</strong> traz como uma das diretrizes da política urbana a regularização<br />

fundiária e a urbanização <strong>de</strong> áreas ocupadas por população <strong>de</strong> baixa renda, ampliando<br />

as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> regularização das posses urbanas.<br />

Principalmente os instrumentos <strong>de</strong> intervenções urbanísticas, como o IPTU progressivo,<br />

a outorga onerosa do direito <strong>de</strong> construir e as ZEIS (Zonas Especiais <strong>de</strong> Interesse<br />

Social), <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> planos diretores ou leis municipais específicas para serem aplicados.<br />

Por ocasião da aprovação do Estatuto da Cida<strong>de</strong>, em julho <strong>de</strong> 2001, os artigos 15 a<br />

20, que tratavam do instrumento da concessão <strong>de</strong> uso especial para fins <strong>de</strong> moradia,<br />

foram vetados. Porém, em razão do compromisso assumido publicamente, o então<br />

Presi<strong>de</strong>nte da República, Fernando Henrique Cardoso, editou a Medida Provisória (MP)<br />

2220/01, que dispõe sobre o referido instrumento, com algumas reformulações no tex-<br />

54<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


to, como a restrição da extensão do direito à concessão até 30 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2001 e a<br />

disciplina, <strong>de</strong> forma diferenciada, <strong>de</strong> aplicação por categorias <strong>de</strong> áreas públicas.<br />

Principais instrumentos <strong>de</strong> regularização fundiária<br />

Instrumento urbanístico: ZEIS – Zonas Especiais <strong>de</strong> Interesse Social<br />

As ZEIS são um importante instrumento <strong>de</strong> regularização fundiária integrante do<br />

zoneamento municipal. É um instituto da política urbana municipal que reconhece a<br />

diversida<strong>de</strong> das ocupações existentes na cida<strong>de</strong> e visa a legalizar, através <strong>de</strong> normas<br />

específicas, as áreas ocupadas por população <strong>de</strong> baixa renda, que, <strong>de</strong>vido à necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> moradia, se instalou num espaço que ela mesma zoneou, gerando um conflito entre a<br />

cida<strong>de</strong> legal e a cida<strong>de</strong> real. As ZEIS protegem a população moradora <strong>de</strong>sses locais da<br />

especulação imobiliária e permitem que a regularização urbana ocorra paralelamente à<br />

regularização jurídica do assentamento, propiciando direitos e <strong>de</strong>veres aos cidadãos.<br />

As ZEIS também po<strong>de</strong>m ser utilizadas para promoção <strong>de</strong> empreendimentos<br />

habitacionais <strong>de</strong> interesses sociais.<br />

Instrumento jurídico: CUEFM – Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins <strong>de</strong> Moradia<br />

Até a promulgação do Estatuto da Cida<strong>de</strong> (EC), o instrumento mais utilizado para<br />

regularização fundiária <strong>de</strong> favelas era a Concessão <strong>de</strong> Direito Real <strong>de</strong> Uso (CDRU),<br />

sendo <strong>de</strong>pois introduzida a Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins <strong>de</strong> Moradia (CUEFM).<br />

Uma das principais diferenças entre esses instrumentos é que no caso da CDRU é facultado<br />

ao po<strong>de</strong>r público conce<strong>de</strong>r o título, enquanto que na CUEFM o po<strong>de</strong>r público tem a<br />

obrigação <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r o título aos ocupantes <strong>de</strong> assentamentos irregulares situados<br />

em áreas públicas ou, em alguns casos, transferi-los <strong>de</strong> local. A concessão é gratuita, e<br />

a área concedida, que não po<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r a 250m², po<strong>de</strong> ser individual ou coletiva. 3 É<br />

um direito subjetivo, ou seja, é um direito real oponível a terceiros, que po<strong>de</strong> ser<br />

adquirido por via administrativa ou judicial.<br />

Assim, é importante que o po<strong>de</strong>r público municipal realize um trabalho sério, elaborando<br />

planos e projetos que visem à melhoria da qualida<strong>de</strong> urbana e habitacional <strong>de</strong>ssas<br />

áreas, juntamente com sua regularização jurídica. Se o po<strong>de</strong>r público não intervier no<br />

prazo legal, a concessão po<strong>de</strong>rá ser outorgada judicialmente, po<strong>de</strong>ndo-se per<strong>de</strong>r a chance<br />

<strong>de</strong> propiciar intervenções significativas que visem à melhoria dos núcleos e, conseqüentemente,<br />

<strong>de</strong> todo o território municipal.<br />

A maioria das ocupações por favelas dá-se em áreas públicas da categoria <strong>de</strong> bem <strong>de</strong><br />

uso comum do povo e áreas <strong>de</strong> preservação permanente, on<strong>de</strong> a referida medida provisória<br />

faculta ao po<strong>de</strong>r público assegurar o exercício do direito à posse em outro local,<br />

reafirmando o direito subjetivo da posse e a autonomia municipal trazidos com a CF-<br />

88. Como resolver esses impasses? Qual a melhor solução? O <strong>de</strong>bate é polêmico.<br />

A permanência ou a remoção da população ocupante <strong>de</strong>sses locais será <strong>de</strong>terminada<br />

pela correlação <strong>de</strong> forças dos vários atores, como Administração Pública, Ministério<br />

Público, Movimentos <strong>de</strong> Moradia e Movimentos Ambientalistas, em cada<br />

3<br />

A administração pública po<strong>de</strong>rá cobrar contribuições<br />

<strong>de</strong> melhorias por obras <strong>de</strong> urbanização<br />

eventualmente executadas na intervenção<br />

<strong>de</strong> regularização.<br />

Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

55


contexto local e pela análise <strong>de</strong> vários aspectos sobre a conveniência ou não da regularização<br />

no próprio local. Será necessário, além da observância <strong>de</strong> aspectos técnicos,<br />

jurídicos, sociais, ambientais e políticos, também o bom senso para resolução<br />

<strong>de</strong>sses conflitos.<br />

Especialmente no Estado <strong>de</strong> São Paulo, cuja Constituição Estadual <strong>de</strong> 1989 <strong>de</strong>termina,<br />

em seu artigo 180, que as áreas reservadas a equipamentos comunitários e sistemas <strong>de</strong><br />

lazer <strong>de</strong> loteamentos não po<strong>de</strong>m ter sua <strong>de</strong>stinação alterada, o conflito acentua-se.<br />

Alguns juristas argumentam que ocupações com mais <strong>de</strong> 20 anos já não têm mais a<br />

sua <strong>de</strong>stinação original e que a idéia do direito subjetivo à posse é superior à faculda<strong>de</strong><br />

do po<strong>de</strong>r público. Colocam também em discussão, principalmente em conjunto<br />

com ambientalistas, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> remoção ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>safetação <strong>de</strong>ssas áreas. A<br />

matéria é, porém, muito recente, e sobre ela há poucas <strong>de</strong>cisões jurídicas e, ainda<br />

assim, em casos isolados.<br />

Com relação aos contratos <strong>de</strong> concessão, o artigo 48 do EC estabelece que estes <strong>de</strong>vem<br />

ser aceitos por instituições bancárias para fins <strong>de</strong> créditos <strong>de</strong> financiamentos habitacionais,<br />

o que reforça, no espírito da lei, a “vonta<strong>de</strong>” <strong>de</strong> melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> habitabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sses núcleos.<br />

O Ministério das Cida<strong>de</strong>s<br />

Com mais <strong>de</strong> 80% da população brasileira vivendo em cida<strong>de</strong>s, tornou-se visível a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma instância administrativa qualificada capaz <strong>de</strong> formular e implementar<br />

a política urbana nacional e setorial, levando em conta as diferentes realida<strong>de</strong>s regionais<br />

do nosso país e articulando os diferentes agentes, instâncias e níveis <strong>de</strong> governo para<br />

implementação <strong>de</strong> uma estratégia nacional que vise ao equacionamento dos problemas<br />

urbanos existentes.<br />

Assim, em janeiro <strong>de</strong> 2003, foi criado o Ministério das Cida<strong>de</strong>s, subdividido em quatro<br />

secretarias nacionais: Secretaria Nacional <strong>de</strong> Habitação, Secretaria Nacional <strong>de</strong> Saneamento<br />

Básico e Ambiental, Secretaria Nacional <strong>de</strong> Trânsito e Transportes Urbanos e<br />

Secretaria Nacional <strong>de</strong> Programas Urbanos, sendo esta última responsável pelo Programa<br />

Nacional <strong>de</strong> Regularização Fundiária.<br />

O Ministério das Cida<strong>de</strong>s tem um papel <strong>de</strong>cisivo na articulação política e técnica para<br />

criação <strong>de</strong> programas e projetos que tratem das questões relacionadas com o urbano.<br />

Em julho <strong>de</strong> 2003, o Ministério das Cida<strong>de</strong>s, através da Secretaria <strong>de</strong> Programas<br />

Urbanos, lançou o Programa Nacional <strong>de</strong> Apoio à Regularização Fundiária Sustentável<br />

em Áreas Urbanas — o “Papel Passado” —, que reconhece a dimensão, a<br />

gravida<strong>de</strong> e as implicações dos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento urbano informal e<br />

cria condições jurídicas, financeiras, urbanísticas e administrativo-institucionais para<br />

que os governos municipais e estaduais possam formular e implementar seus programas<br />

<strong>de</strong> regularização.<br />

Maior gestor <strong>de</strong> obras e ações que afetam diretamente o cotidiano das pessoas em<br />

qualquer cida<strong>de</strong> do país, esse Ministério é atualmente o mais cobiçado pelos partidos<br />

aliados do governo. Até o mês <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2004, havia disponibilizado R$ 467<br />

56<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


milhões para emendas parlamentares, o que representa 85% das emendas liberadas,<br />

per<strong>de</strong>ndo apenas para o Ministério do Turismo. Suas ações já aten<strong>de</strong>m cerca <strong>de</strong> 90%<br />

dos municípios. 4<br />

O caso <strong>de</strong> Piracicaba<br />

Piracicaba é uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> porte médio, situada no interior do Estado <strong>de</strong> São Paulo e<br />

possui uma população <strong>de</strong> 328.312 habitantes. 5<br />

Sua economia sempre foi influenciada pela cana-<strong>de</strong>-acúcar e seus <strong>de</strong>rivados, que têm<br />

como característica a sazonalida<strong>de</strong> da produção e, conseqüentemente, do emprego da<br />

mão-<strong>de</strong>-obra.<br />

Devido à conjuntura econômica da época, aliada à implantação do Distrito Industrial<br />

UNILESTE no município, além do fenômeno do êxodo rural, principalmente nos anos<br />

<strong>de</strong> 1970, milhares <strong>de</strong> pessoas migraram para Piracicaba, o que ocasionou um rápido<br />

crescimento urbano, porém com reflexos negativos na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da população,<br />

em especial no que se refere à questão da habitação.<br />

Nessa época surgiram as primeiras favelas no município como opção <strong>de</strong> moradia,<br />

principalmente em função do empobrecimento da população <strong>de</strong>vido aos baixos salários<br />

e da falta <strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong> habitação para a população <strong>de</strong> baixa renda. Na<br />

década <strong>de</strong> 1980 e, em menor proporção, na <strong>de</strong> 1990, além do a<strong>de</strong>nsamento dos núcleos<br />

existentes, surgiram vários outros.<br />

Segundo Piza (1995, p. 69), “a formação das favelas em Piracicaba está intimamente<br />

ligada ao processo <strong>de</strong> industrialização aliado aos ciclos da cultura da cana-<strong>de</strong>-açúcar”.<br />

Intervenções municipais com relação às favelas<br />

Como em vários municípios, também em Piracicaba iniciou-se, na década <strong>de</strong> 1980, a<br />

remoção <strong>de</strong> alguns núcleos <strong>de</strong> favelas. Houve, porém, um forte movimento <strong>de</strong> resistência<br />

e pressão por parte da Associação dos Favelados <strong>de</strong> Piracicaba (ASFAP) para permanência<br />

e regularização dos núcleos no próprio local ocupado. 6<br />

No final dos anos 1980 e início <strong>de</strong> 1990, praticamente todas as favelas <strong>de</strong> Piracicaba<br />

sofreram algum tipo <strong>de</strong> intervenção física, através <strong>de</strong> execução <strong>de</strong> infra-estruturas pelo<br />

po<strong>de</strong>r público, reconhecendo-se, assim, o ilegal. Porém, a questão jurídica relativa à posse<br />

ou proprieda<strong>de</strong> da área por seus ocupantes, tão reivindicada pelos moradores, não<br />

foi resolvida. Em 1989, o Po<strong>de</strong>r Executivo Municipal elaborou, juntamente com a ASFAP,<br />

um projeto <strong>de</strong> lei dispondo sobre o uso real da terra. Esse projeto foi julgado inconstitucional<br />

pela Comissão <strong>de</strong> Justiça da Câmara <strong>de</strong> Vereadores, com base no artigo 180<br />

da Constituição do Estado <strong>de</strong> São Paulo. 7<br />

Em 1990, através da Lei Municipal 3238, foi criada a Empresa Municipal <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />

Habitacional <strong>de</strong> Piracicaba (EMDHAP), que tem como um <strong>de</strong> seus objetivos<br />

a execução da política habitacional do município contribuindo para o seu <strong>de</strong>sfavelamento.<br />

Durante a década <strong>de</strong> 1990, foram removidas aproximadamente 1.500 famílias para loteamentos<br />

ou conjuntos habitacionais viabilizados principalmente por meio <strong>de</strong> parcerias entre<br />

os governos municipal e fe<strong>de</strong>ral, através dos programas HABITAR-BR e PRO-MORADIA,<br />

4<br />

Disponível em: . Acesso em:<br />

10 <strong>de</strong>z. 2004.<br />

5<br />

Fonte: IBGE – Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia<br />

e Estatística. Censo <strong>de</strong>mográfico 2000.<br />

Piracicaba 2010: Realizando o Futuro:Editora<br />

Philippe Henry – SP, 2001, p. 23.<br />

6<br />

Na década <strong>de</strong> 1980, a ASFAP era uma associação<br />

forte, atuante e reconhecida até internacionalmente<br />

e recebia o apoio <strong>de</strong> várias<br />

instituições. O principal objetivo <strong>de</strong> seus membros<br />

sempre foi a luta pela posse da terra por<br />

eles ocupada. A partir da década <strong>de</strong> 1990 houve<br />

um enfraquecimento da associação, o qual<br />

persiste até os dias atuais.<br />

7<br />

Conforme Siqueira (1993, p. 61), “tal parecer<br />

foi eminentemente político, uma vez que<br />

havia argumentos a nível da [sic] Constituição<br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> que po<strong>de</strong>riam dar uma interpretação<br />

favorável ao projeto, como ocorreu em<br />

vários outros municípios do Estado <strong>de</strong> São<br />

Paulo, na época”.<br />

Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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8<br />

PL 156/02, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Ivete Ma<strong>de</strong>ira,<br />

vereadora (PT) militante pelas causas relacionadas<br />

à habitação.<br />

9<br />

Kiotsi Chicuta (2003, p. 230) coloca que a<br />

regularização fundiária não se encerra em ato<br />

isolado do Executivo que aprove o parcelamento<br />

e verifique sua observância às regras<br />

vigentes. É necessário que o ato se materialize<br />

juridicamente, com a criação jurídica das<br />

frações <strong>de</strong>stacadas, o que necessariamente<br />

passa pelo Registro <strong>de</strong> Imóveis.<br />

além <strong>de</strong> parcerias com ONGs e instituições; no entanto, cerca <strong>de</strong>500 famílias ainda ocupam<br />

áreas <strong>de</strong> preservação permanente e <strong>de</strong> risco.<br />

Em cumprimento ao estabelecido na Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> 1988, em 1990 foi promulgada<br />

a Lei Orgânica Municipal (LOM) e, em 1995, aprovou-se a Lei Complementar<br />

046, que dispõe sobre o Plano Diretor <strong>de</strong> Desenvolvimento <strong>de</strong> Piracicaba (PDDP).<br />

Na mesma época iniciou-se também o processo <strong>de</strong> regularização fundiária em algumas<br />

favelas que não apresentavam riscos, <strong>de</strong> acordo com suas características físicas e<br />

jurídicas. Desapropriaram-se algumas áreas particulares ocupadas por favelas, e áreas<br />

públicas foram <strong>de</strong>safetadas; realizaram-se também intervenções pontuais nos núcleos,<br />

como levantamentos planialtimétricos-cadastrais e execução <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> água, esgoto,<br />

energia elétrica e iluminação pública faltantes.<br />

Em 1997, o governo municipal iniciou um processo <strong>de</strong> regularização, <strong>de</strong>safetando<br />

todas as favelas situadas em áreas públicas da categoria <strong>de</strong> bem <strong>de</strong> uso comum do povo<br />

fora <strong>de</strong> riscos e <strong>de</strong> preservação permanente existentes no município. Entretanto, vários<br />

motivos, entre os quais se incluem a má elaboração do contrato para <strong>de</strong>safetação e as<br />

características físicas da área que seria afetada, fizeram com que novamente a proposta<br />

<strong>de</strong> regularização <strong>de</strong> favelas em áreas públicas não se viabilizasse.<br />

Embora constante <strong>de</strong> seu plano <strong>de</strong> trabalho para a habitação no período 2001-2004, o<br />

governo municipal não evoluiu na elaboração <strong>de</strong> programas e ações concretas com relação<br />

à regularização fundiária <strong>de</strong> favelas. Apenas foram solicitados recursos ao governo<br />

fe<strong>de</strong>ral para urbanização <strong>de</strong> algumas áreas, os quais foram viabilizados só no final <strong>de</strong> 2004<br />

e para atendimento <strong>de</strong> apenas dois núcleos com um total aproximado <strong>de</strong> 1.000 famílias.<br />

Em 2002 foi elaborado um Projeto <strong>de</strong> Lei (PL), baseado na MP 2220/01, que dispõe<br />

sobre o instrumento da Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins <strong>de</strong> Moradia; porém esse<br />

projeto recebeu parecer contrário da Comissão <strong>de</strong> Justiça da Câmara e foi retirado. 8<br />

Em 2004 foram distribuídos 500 Títulos <strong>de</strong> Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins<br />

<strong>de</strong> Moradia, com base na MP 2220/01 e no Decreto Municipal 10178/2003, que<br />

disciplina a Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins <strong>de</strong> Moradia pela via administrativa<br />

e dá outras providências, e suas alterações. Porém esses processos não foram concluídos,<br />

os títulos não foram registrados pelo Serviço <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Imóveis, <strong>de</strong>vido<br />

a irregularida<strong>de</strong>s apontadas, e os lotes não foram individualizados e cadastrados<br />

na Prefeitura Municipal. 9<br />

Ainda em 2004 foi editado o Decreto Municipal 10753, que dispõe sobre a adoção <strong>de</strong><br />

procedimentos para a regularização fundiária no Município <strong>de</strong> Piracicaba e dá outras<br />

providências.<br />

Aten<strong>de</strong>ndo as novas disposições legais trazidas pelo Estatuto da Cida<strong>de</strong> e com a finalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação aos novos instrumentos, o PDDP está sendo revisado e traz como<br />

uma <strong>de</strong> suas principais diretrizes a promoção da regularização urbanística e fundiária dos<br />

assentamentos precários.<br />

A <strong>de</strong>speito da trajetória apresentada, nenhum processo <strong>de</strong> regularização fundiária<br />

em Piracicaba foi totalmente concluído. Por quê? Faltam políticas públicas? Faltam<br />

compromissos políticos? Faltam programas concretos e recursos financeiros e humanos<br />

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Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


capacitados? O <strong>de</strong>senho institucional para implementação e gestão dos programas é<br />

viável? Como foi e tem sido a participação da ASFAP nesses processos? As legislações<br />

vigentes realmente permitem a regularização?<br />

Hoje Piracicaba tem 40 núcleos <strong>de</strong> favelas, nos quais habitam cerca <strong>de</strong> 15.000 pessoas,<br />

o que correspon<strong>de</strong> aproximadamente a 5% da população total do município. Destes,<br />

90% estão situados em áreas públicas, na maioria ver<strong>de</strong>s da categoria <strong>de</strong> bem <strong>de</strong> uso<br />

comum do povo. A mesma porcentagem po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada em termos <strong>de</strong> atendimento<br />

às infra-estruturas básicas como re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água, coletoras <strong>de</strong><br />

esgotos, extensão <strong>de</strong> energia elétrica e <strong>de</strong> iluminação pública. Além disso, a maioria das<br />

residências é em alvenaria, os lotes têm tamanhos razoáveis e quase sempre são <strong>de</strong>marcados<br />

por muros ou cercas <strong>de</strong> divisas, as ruas e vielas são praticamente <strong>de</strong>finidas, e os<br />

moradores são atendidos por serviços públicos como transportes, educação e saú<strong>de</strong>.<br />

Contudo, embora possuam essas características, algumas favelas ainda apresentam baixa<br />

qualida<strong>de</strong> urbana, revelando índices urbanísticos aquém dos viáveis, com vielas <strong>de</strong><br />

dimensões inferiores às normais e <strong>de</strong>clivida<strong>de</strong>s acentuadas, o que compromete a circulação<br />

<strong>de</strong> veículos como, por exemplo, ambulâncias e caminhões <strong>de</strong> lixo e <strong>de</strong> bombeiros,<br />

não possuem áreas <strong>de</strong> lazer e não são atendidas por serviços públicos em sua totalida<strong>de</strong>.<br />

Embora sejam, em sua maioria, em alvenaria, as residências não seguiram critérios construtivos,<br />

como ventilação e iluminação suficientes.<br />

A escolha dos núcleos como objetos <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong>u-se por suas diferentes características,<br />

como localização, estratégias adotadas para a regularização, forma <strong>de</strong> participação<br />

da população e outras.<br />

Jardim Algodoal<br />

Trata-se da maior favela do município, tanto em área como em número <strong>de</strong> moradores,<br />

com aproximadamente 200 mil metros quadrados e 800 famílias.<br />

Situada na região norte do município, a cerca <strong>de</strong> 3 km do Centro, surgiu em meados<br />

da década <strong>de</strong> 1970, numa área <strong>de</strong>clarada <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> pública para posterior <strong>de</strong>sapropriação.<br />

Após seis anos, o po<strong>de</strong>r público municipal <strong>de</strong>sistiu da <strong>de</strong>sapropriação, revogando<br />

o <strong>de</strong>creto anterior. Porém, nesse intervalo <strong>de</strong> tempo, gran<strong>de</strong> parte da ocupação<br />

já havia acontecido.<br />

Assim, um gran<strong>de</strong> problema social estava instalado. Além das invasões, o proprietário<br />

da área ajuizou também uma ação ordinária contra a Prefeitura, solicitando a recomposição<br />

dos prejuízos que a municipalida<strong>de</strong> lhe causara. O processo judicial, <strong>de</strong> nº 1040/86,<br />

seguiu por quase 10 anos, e em 1995 foi expedida a sentença que, amparada no instrumento<br />

da “<strong>de</strong>sapropriação indireta”, <strong>de</strong>terminou ao município proce<strong>de</strong>r à in<strong>de</strong>nização<br />

<strong>de</strong> R$ 6,5 milhões ao proprietário da gleba.<br />

Apoiada pela ASFAP e por outras instituições, entre elas a Igreja Católica, a ocupação<br />

ocorreu <strong>de</strong> maneira organizada urbanisticamente. Procurando-se dar continuida<strong>de</strong> ao<br />

traçado das ruas existentes no entorno, os lotes foram <strong>de</strong>finidos com áreas em torno <strong>de</strong><br />

125m² cada, embora atualmente haja sub-divisões. Foram reservadas áreas que pu<strong>de</strong>ssem<br />

fazer parte <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> lazer e áreas institucionais. Existem no entorno equipamentos<br />

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comunitários como postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, escolas, linhas <strong>de</strong> transportes e outros. A maioria<br />

das residências é em alvenaria, e aproximadamente 30 famílias encontram-se em área <strong>de</strong><br />

preservação permanente do ribeirão Guamiun.<br />

Reconhecendo a ilegalida<strong>de</strong>, a administração municipal executou, principalmente no<br />

final <strong>de</strong> 1989 e início <strong>de</strong> 1990, re<strong>de</strong>s coletoras <strong>de</strong> esgoto e <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água,<br />

energia elétrica e iluminação pública.<br />

Após a conclusão da ação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação e com o propósito <strong>de</strong> solucionar o<br />

problema social ali instalado há mais <strong>de</strong> 20 anos, aten<strong>de</strong>ndo a antiga reivindicação da<br />

população moradora do local, a Prefeitura, através da EMDHAP, iniciou em 1998 o seu<br />

processo <strong>de</strong> regularização.<br />

Um dos primeiros entraves encontrados logo no início do processo foi com relação à<br />

documentação cartorial da área. Constatou-se que a ocupação compreendia duas áreas<br />

contíguas com matrículas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Além disso, verificou-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retificação<br />

das matrículas para a<strong>de</strong>quação à regularização.<br />

A administração da época resolveu, então, dar continuida<strong>de</strong> à regularização pela maior<br />

parte da área (o que correspon<strong>de</strong> a aproximadamente 80% da ocupação), cuja documentação<br />

registrária se encontrava mais completa, enquanto fazia o levantamento da<br />

documentação existente da outra parte.<br />

Embora coubesse à EMDHAP toda a gestão do processo, foi por meio da Procuradoria<br />

Jurídica do Município que se <strong>de</strong>ram a elaboração da retificação da área e o encaminhamento<br />

do processo ao Po<strong>de</strong>r Judiciário, já que a proprieda<strong>de</strong> da área ainda era da Prefeitura<br />

e que a EMDHAP não dispunha <strong>de</strong> advogados em seu quadro funcional.<br />

Para continuida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> regularização era necessário o levantamento<br />

planialtimétrico-cadastral da ocupação, do qual constassem divisas, arruamentos, quadras,<br />

lotes, áreas vazias, áreas <strong>de</strong> preservação permanente e outras informações. Para<br />

realização dos serviços <strong>de</strong> campo, foi elaborado um convênio entre a Prefeitura, através<br />

da antiga Secretaria Municipal <strong>de</strong> Planejamento Urbano (SEMUPLAN), e a Escola <strong>de</strong><br />

Engenharia <strong>de</strong> Piracicaba, através <strong>de</strong> seu Escritório Técnico. Após um longo período <strong>de</strong><br />

tempo, o trabalho, sem os <strong>de</strong>vidos gerenciamento e coor<strong>de</strong>nação e executado por estagiários,<br />

foi sendo entregue por partes e com vários erros e discrepâncias.<br />

A EMDHAP tentou concluir os serviços, porém não obteve êxito <strong>de</strong>vido a vários fatores,<br />

entre os quais se inclui a falta <strong>de</strong> recursos humanos e materiais, <strong>de</strong> pessoal especializado,<br />

<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação dos trabalhos e <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong> administrativa. Mesmo sem a conclusão<br />

dos projetos, em 1998 o Po<strong>de</strong>r Executivo Municipal elaborou um projeto <strong>de</strong> lei<br />

específico, <strong>de</strong> acordo com parâmetros urbanísticos especiais existentes no local, para<br />

continuida<strong>de</strong> e viabilida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> regularização da área, o qual foi aprovado<br />

pela Câmara <strong>de</strong> Vereadores e recebeu o nº 4508/98.<br />

Seguindo os trâmites processuais legais, o projeto foi <strong>de</strong>clarado <strong>de</strong> interesse social pelo<br />

Decreto Municipal 8387, <strong>de</strong> 06 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1999, e em setembro <strong>de</strong> 1999 foi emitido o<br />

alvará <strong>de</strong> viabilida<strong>de</strong> para regularização da ocupação. Na mesma época também vinham<br />

sendo concluídos e executados os levantamentos e os <strong>de</strong>mais projetos necessários para<br />

continuida<strong>de</strong> da regularização.<br />

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Geografias Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


Com as eleições municipais em 2000 e a mudança <strong>de</strong> administração em 2001, iniciouse<br />

uma nova fase do processo <strong>de</strong> regularização <strong>de</strong>sse núcleo.<br />

A nova diretoria da EMDHAP, sem conhecimento específico e profundo do processo<br />

e diante da alegação <strong>de</strong> um funcionário <strong>de</strong> que a área objeto da retificação não coincidia<br />

com a área dada pelo programa Auto-Cad, solicitou a abertura <strong>de</strong> uma sindicância para<br />

apurar possíveis irregularida<strong>de</strong>s no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriação e retificação judicial da<br />

área e resolveu contratar um novo levantamento da área em questão. Ironicamente, optou-se<br />

pelo mesmo Escritório Técnico da Escola <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Piracicaba, que já<br />

havia sido contratado anteriormente e que não havia concluído os serviços.<br />

Os serviços foram contratados em maio <strong>de</strong> 2002 e, embora com prazo contratual <strong>de</strong><br />

120 dias, até o final <strong>de</strong> 2004 não haviam sido concluídos. A área real, objeto da sindicância,<br />

não foi apurada, “esvaziando-se”. A sentença judicial do processo <strong>de</strong> retificação foi<br />

prolatada em março <strong>de</strong> 2001, sendo porém averbada somente em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004.<br />

Em 23 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2003, a Lei 4508, <strong>de</strong> 1998, foi alterada pela Lei 5318, incluindo-se<br />

alguns pontos que não haviam sido contemplados anteriormente, como reservas<br />

<strong>de</strong> áreas públicas, larguras mínimas <strong>de</strong> vias e áreas mínima e máxima dos lotes.<br />

Em junho <strong>de</strong> 2004, a EMDHAP contratou uma empresa <strong>de</strong> outra cida<strong>de</strong> para elaborar<br />

um plano <strong>de</strong> regularização urbanística da área, que foi concluído e entregue em setembro<br />

<strong>de</strong> 2004. Também nessa época, mesmo sem a aprovação dos projetos pelos órgãos<br />

responsáveis, iniciaram-se obras <strong>de</strong> urbanização do núcleo, como drenagem <strong>de</strong> águas<br />

pluviais e pavimentação, com recursos provenientes do Orçamento Geral da União (OGU),<br />

através dos programas PRO-INFRA e MORAR MELHOR do Ministério das Cida<strong>de</strong>s. 10<br />

Embora <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1998 a Lei 4508 já houvesse autorizado a doação da área à EMDHAP,<br />

apenas em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004 foi lavrada a escritura <strong>de</strong> doação, que todavia não foi registrada.<br />

Em 22 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2004, a EMDHAP, através <strong>de</strong> seu diretor-presi<strong>de</strong>nte, protocolou<br />

junto ao Juiz Corregedor um requerimento solicitando a regularização judicial do núcleo,<br />

o qual se encontra em andamento.<br />

Jardim Glória<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma favela existente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1970, on<strong>de</strong> moram aproximadamente<br />

120 famílias. Situa-se na região sudoeste do município, numa área <strong>de</strong><br />

27.000m² que havia sido reservada ao sistema <strong>de</strong> lazer do loteamento Jardim Glória,<br />

implantado na década <strong>de</strong> 1960.<br />

Esse núcleo possui características bastante particulares e próprias. Em 1985 recebeu a<br />

visita <strong>de</strong> um frei cappuccino — o Frei Sigrist —, que resolveu morar no local, ajudando na<br />

criação da Associação dos Moradores e na viabilização <strong>de</strong> projetos e obras <strong>de</strong> urbanização<br />

e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> residências no núcleo. Executaram-se algumas obras pontuais <strong>de</strong><br />

infra-estrutura, arruamentos, muros <strong>de</strong> arrimo, plantio <strong>de</strong> árvores e instalação <strong>de</strong> lixeiras,<br />

e praticamente todas as residências passaram a ser construídas em alvenaria e com o<br />

mesmo projeto-padrão.<br />

No final da década <strong>de</strong> 1980 e início da <strong>de</strong> 1990, o po<strong>de</strong>r público municipal também<br />

interveio com execução <strong>de</strong> infra-estruturas no núcleo. Embora quase todo o núcleo<br />

10<br />

Esses programas têm como objetivo a ampliação<br />

ou melhoria <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> infra-estrutura<br />

urbana e das condições <strong>de</strong> habitabilida<strong>de</strong>.<br />

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possua re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água, coleta <strong>de</strong> esgotos, energia elétrica e iluminação<br />

pública, sua topografia é elevada e suas ruas são estreitas e, na maioria das vezes, sem<br />

saída, prejudicando o acesso <strong>de</strong> alguns veículos, como caminhões <strong>de</strong> lixo. Em seu entorno<br />

existem alguns equipamentos urbanos e comunitários, como escolas, postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

e transportes coletivos.<br />

Só em 1995 foi aberta a matrícula, sob nº 56.298, da referida área no 2º Serviço <strong>de</strong><br />

Registro <strong>de</strong> Imóveis. Sobre sua i<strong>de</strong>ntificação constam entretanto apenas a área total <strong>de</strong><br />

27.000m², sem menção às medidas e aos confrontantes. Essa área fora <strong>de</strong>stinada à praça<br />

do loteamento, passando a integrar os bens <strong>de</strong> uso comum do povo.<br />

Em 06 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1997, o referido imóvel foi retificado, ex-officio, com fundamento<br />

no parágrafo 1º do artigo 213 da Lei <strong>de</strong> Registros Públicos nº 6015/73, incluindo-se,<br />

conforme Averbação-02 da matrícula, suas medidas e confrontações, e em 1998, conforme<br />

Averbação-04, foi <strong>de</strong>safetado, passando da classe <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> uso comum do povo<br />

para a <strong>de</strong> bens patrimoniais do município, <strong>de</strong> acordo com a Lei Municipal 4225/96, <strong>de</strong> 24<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996, alterada pela Lei 4341/97, <strong>de</strong> 04 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1997.<br />

Embora <strong>de</strong>vesse ser da EMDHAP, a coor<strong>de</strong>nação do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>safetação foi feita<br />

pela Procuradoria Jurídica do Município e pela antiga SEMUPLAN, utilizando-se medidas<br />

e áreas constantes do projeto <strong>de</strong> loteamento original, sem se preocupar com a realida<strong>de</strong><br />

fática do local. Em 1998, iniciou-se o levantamento planialtimétrico-cadastral do<br />

núcleo, executado por profissionais da própria EMDHAP. Esse trabalho não chegou a ser<br />

concluído, pois, entre outros entraves, verificou-se que a realida<strong>de</strong> física do local não<br />

condizia com as medidas constantes da matrícula e que, assim, parte do núcleo ficaria<br />

fora da área <strong>de</strong>scrita. Embora pareça ser esse um problema menor, a partir daí houve<br />

um “esfriamento” do processo, pois várias dúvidas e discussões surgiram em torno do<br />

projeto. A EMDHAP, com uma equipe reduzida e não especializada no assunto, ainda<br />

tentou buscar apoio em outros órgãos, mas outras priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> governo foram surgindo,<br />

<strong>de</strong>ixando-se esses casos, consi<strong>de</strong>rados mais complexos, para serem resolvidos<br />

posteriormente.<br />

Após a mudança <strong>de</strong> administração municipal em 2001, esse processo não foi retomado,<br />

e conseqüentemente a regularização fundiária do núcleo não ocorreu. 11 Passados,<br />

então, sete anos da edição da lei municipal <strong>de</strong> <strong>de</strong>safetação, a situação jurídica dos “lotes”<br />

ocupados ainda não foi resolvida.<br />

11<br />

A maior ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> luta da população<br />

moradora do núcleo, após o processo <strong>de</strong> urbanização,<br />

é a questão da titularida<strong>de</strong> dos<br />

lotes, através da proprieda<strong>de</strong> aos seus ocupantes,<br />

já que a área é <strong>de</strong>safetada. Como<br />

existiam divergências políticas entre a administração<br />

municipal da época e a li<strong>de</strong>rança<br />

do núcleo, a área, mesmo já tendo sido<br />

<strong>de</strong>safetada, não fez parte das priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

governo para continuida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong><br />

regularização, o que mostra claramente a<br />

vigência <strong>de</strong> interesses políticos, i<strong>de</strong>ológicos<br />

e clientelistas.<br />

São Dimas<br />

Segundo dados da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Desenvolvimento Social (SEMDES), a ocupação<br />

<strong>de</strong>sse núcleo ocorreu em 1976. Com 40 famílias morando no local, trata-se da única<br />

favela situada na região sul do município, já que outros três núcleos que ali se situavam<br />

foram removidos na década <strong>de</strong> 1990.<br />

A área ocupada, que fora reservada ao sistema <strong>de</strong> lazer do loteamento Jardim Ban<strong>de</strong>irante,<br />

implantado na década <strong>de</strong> 1960, tem aproximadamente 120 metros <strong>de</strong> frente para<br />

a rua São Dimas; daí a <strong>de</strong>nominação da favela. Essa e as <strong>de</strong>mais áreas reservadas no<br />

loteamento foram doadas em 1960 ao município, passando a compor áreas da categoria<br />

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Geografias Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


<strong>de</strong> bens <strong>de</strong> uso comum do povo, mas não foram <strong>de</strong>scritas nem tiveram suas matrículas<br />

abertas junto ao Serviço <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Imóveis.<br />

Se não fosse pela falta <strong>de</strong> pavimentação asfáltica e pelas características <strong>de</strong> algumas<br />

construções, o núcleo confundir-se-ia com o restante do loteamento, pois praticamente<br />

100% das moradias são em alvenaria, e os lotes, ou a dimensão que cada imóvel ocupa,<br />

não são menores, em sua maioria, do que 5 metros <strong>de</strong> frente e 20 metros <strong>de</strong> fundos,<br />

além <strong>de</strong> possuírem re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água, coletoras <strong>de</strong> esgoto, <strong>de</strong> energia<br />

elétrica e <strong>de</strong> iluminação pública.<br />

Num raio <strong>de</strong> aproximadamente 2 km, existem vários equipamentos comunitários, como<br />

pronto-socorro, escolas e terminal <strong>de</strong> ônibus, além <strong>de</strong> muitos comércios e serviços.<br />

A diretoria da EMDHAP, em 2004, elencou como uma <strong>de</strong> suas priorida<strong>de</strong>s a regularização<br />

<strong>de</strong>sse núcleo, e, no mês <strong>de</strong> março, 31 famílias lá resi<strong>de</strong>ntes receberam o Título<br />

<strong>de</strong> Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins <strong>de</strong> Moradia, com base no Decreto Municipal<br />

10178/03 e em suas alterações. O referido título estabelece basicamente que o concessionário<br />

exerce a posse sobre o imóvel <strong>de</strong>scrito no objeto do referido título há mais<br />

<strong>de</strong> 5 anos e <strong>de</strong>clara que a área <strong>de</strong>sse imóvel não é superior a 250m². O título é gratuito<br />

e por prazo in<strong>de</strong>terminado e enfatiza a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar ao imóvel diferente<br />

<strong>de</strong>stinação da resi<strong>de</strong>ncial.<br />

O termo não foi acompanhado por planta <strong>de</strong> situação ou <strong>de</strong> parcelamento do solo.<br />

Assim adiam-se o projeto e a aprovação do parcelamento, ou seja, transfere-se o problema<br />

para futuras administrações e tenta-se auferir os lucros políticos, já que essa maneira<br />

<strong>de</strong> concessão é mais ágil do que através da individualização dos lotes.<br />

Além disso, esses títulos não foram encaminhados ao Serviço <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Imóveis<br />

pelo po<strong>de</strong>r público nem pelos concessionários, sendo que esses últimos muitas vezes<br />

<strong>de</strong>sconhecem a importância do registro.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Além da análise dos estudos específicos sobre os processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong><br />

três núcleos <strong>de</strong> favelas em Piracicaba, a pesquisa a que se refere este artigo relatou também<br />

outras experiências municipais, que subsidiaram estas consi<strong>de</strong>rações.<br />

Pu<strong>de</strong>mos verificar que, embora tenha havido avanços no sentido <strong>de</strong> reconhecimento<br />

da ilegalida<strong>de</strong>, com elaboração <strong>de</strong> programas, aprovação <strong>de</strong> legislações, viabilização <strong>de</strong><br />

recursos e intensificação da participação da população, os resultados alcançados na regularização<br />

<strong>de</strong>sses assentamentos são insignificantes em relação à <strong>de</strong>manda.<br />

Legislações<br />

Referindo-se à relação entre legislações e irregularida<strong>de</strong> urbana, Betânia <strong>de</strong> Moraes Alfonsin<br />

e Edésio Fernan<strong>de</strong>s (2004, p. 1) colocam que:<br />

são leis que não partem do reconhecimento da cida<strong>de</strong> real e estabelecem critérios dissociados das<br />

realida<strong>de</strong>s sócio-econômicas <strong>de</strong> acesso ao solo urbano e produção <strong>de</strong> moradia, leis cada vez mais<br />

complexas e que, <strong>de</strong>vido à incapacida<strong>de</strong> das administrações em fiscalizá-las, são facilmente burladas,<br />

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Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

Geografias<br />

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tanto por pobres como por ricos, leis que não se pautam pelas necessida<strong>de</strong>s e possibilida<strong>de</strong>s da<br />

maioria da população e, após, abrem exceção ao ‘interesse social’ e sistematicamente levam a<br />

processos <strong>de</strong> anistias.<br />

A maioria das ocupações por favelas dá-se em áreas públicas da categoria <strong>de</strong> bem <strong>de</strong><br />

uso comum do povo, on<strong>de</strong> o instrumento <strong>de</strong> usucapião é vedado, e a <strong>de</strong>fasagem em<br />

relação às suas regularizações ocorre principalmente <strong>de</strong>vido às controvérsias existentes sobre<br />

a utilização do instrumento <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> uso nessas áreas. Geralmente as iniciativas<br />

mais ousadas acabam quase sempre tendo <strong>de</strong> enfrentar a resistência do Po<strong>de</strong>r Judiciário.<br />

Com relação aos processos judiciais <strong>de</strong> usucapião, a maioria dos julgamentos refere<br />

que a matéria é <strong>de</strong> direito privado, portanto com previsão <strong>de</strong> soluções individuais, baseando-se<br />

no Código Civil, contradizendo a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato e ocasionando um abismo<br />

entre esta e a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> direito, nesse caso analisada como <strong>de</strong> interesse individual.<br />

Outro gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio em relação à regularização fundiária <strong>de</strong> favelas são as várias<br />

legislações ambientais existentes. Temos, então, conflitos entre dois ramos do direito<br />

público, o direito ambiental e o direito urbanístico, ambos protegidos constitucionalmente.<br />

Sabemos que é praticamente impossível e inviável a eliminação da <strong>de</strong>manda expressa<br />

pela população que ocupa as áreas protegidas; além disso, mesmo que não ocorra<br />

a sua regularização, essas áreas provavelmente não voltarão mais a ser áreas ver<strong>de</strong>s. Assim,<br />

é melhor que a regularização se dê através <strong>de</strong> projetos com compromissos <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong><br />

ambiental e acompanhada <strong>de</strong> urbanização, com intervenções nas condições<br />

sanitárias e <strong>de</strong> moradia, associando-se, <strong>de</strong>sse modo, moradia e preservação. As intervenções<br />

<strong>de</strong>vem ter critérios <strong>de</strong>finidos, por meio <strong>de</strong> compensações <strong>de</strong> áreas e utilização <strong>de</strong><br />

instrumentos como as ZEIS, a fim <strong>de</strong> não incentivarem novas ocupações pela população<br />

e especulação pelo mercado imobiliário.<br />

Especificamente em relação à legislação referente à regularização fundiária no município<br />

<strong>de</strong> Piracicaba, verificamos que, embora a LOM e o PDDP propiciem diretrizes que<br />

permitem a proposição <strong>de</strong> instrumentos para regularização fundiária, como a instituição<br />

<strong>de</strong> ZEIS e <strong>de</strong> Concessão <strong>de</strong> Direito Real <strong>de</strong> Uso (CDRU), praticamente nenhuma<br />

aplicabilida<strong>de</strong> foi verificada nos três casos estudados.<br />

Após a edição <strong>de</strong>ssas legislações, pouco foi feito com relação à regularização fundiária,<br />

objeto <strong>de</strong> nosso estudo. Embora tenha sido criada a EMDHAP, apenas algumas favelas<br />

consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> risco foram removidas, e algumas áreas ocupadas foram <strong>de</strong>sapropriadas<br />

e <strong>de</strong>safetadas, mas os processos não foram concluídos.<br />

O PL 156/02, que dispõe sobre a CUEFM, foi arquivado, e, embora tenham sido editados<br />

<strong>de</strong>cretos para regularização fundiária, as áreas especiais não foram <strong>de</strong>finidas nem<br />

regulamentadas, as comissões <strong>de</strong> regularização não foram nomeadas, assim como não<br />

foram formulados programas específicos <strong>de</strong> urbanização <strong>de</strong> favelas, <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong><br />

áreas <strong>de</strong>gradadas e <strong>de</strong> regularização fundiária, sendo cada processo <strong>de</strong> regularização <strong>de</strong><br />

favelas tratado <strong>de</strong> maneira pontual e isolada.<br />

As legislações específicas para os três casos estudados, além <strong>de</strong> consumirem gran<strong>de</strong><br />

tempo em sua elaboração, foram, em gran<strong>de</strong> medida, mal elaboradas, fragmentadas e<br />

contraditórias em relação a outras legislações; a<strong>de</strong>mais, não contaram com a participação<br />

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Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


da população envolvida, com objetivos precisos e claros ou com vinculação a planos <strong>de</strong><br />

regularização urbanísticas. Por tudo isso, acabaram não sendo funcionais e práticas, contribuindo<br />

para a não-conclusão dos processos.<br />

Aspectos institucionais<br />

Embora com autonomia para tratar <strong>de</strong> assuntos <strong>de</strong> interesses locais, a maioria dos<br />

municípios, principalmente os <strong>de</strong> pequeno e médio portes, não tem uma estrutura<br />

institucional que trate especificamente das questões relacionadas à regularização fundiária.<br />

Mesmo nos municípios em que existem órgãos responsáveis pela habitação, o que se<br />

vê é que a maioria dos programas <strong>de</strong> regularização não tem um reconhecimento como<br />

política pública, funcionando como programas e projetos pontuais, com ações fragmentadas<br />

e sem uma visão global do problema. Na maioria dos casos, tais programas<br />

não possuem coor<strong>de</strong>nação efetiva, respaldo político, equipe multidisciplinar especializada<br />

e recursos financeiros, o que inviabiliza o sucesso e a eficiência da intervenção.<br />

É importante que existam critérios para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sses processos, como<br />

tempo <strong>de</strong> ocupação, situações <strong>de</strong> risco, condições <strong>de</strong> habitabilida<strong>de</strong> e outros. Também é<br />

necessário que, juntamente com a regularização fundiária, sejam produzidas habitações<br />

sociais a fim <strong>de</strong> suprir a <strong>de</strong>manda habitacional da população pobre.<br />

Além da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> equipe capacitada e <strong>de</strong> integração entre os órgãos municipais,<br />

é muito importante a relação da Prefeitura Municipal com outros órgãos e estruturas<br />

envolvidos no processo. Dentre eles, <strong>de</strong>stacamos a Câmara <strong>de</strong> Vereadores, que participa<br />

da aprovação das leis; os Serviços <strong>de</strong> Registro <strong>de</strong> Imóveis, pois a regularização só se<br />

completa com o registro dos títulos, seja <strong>de</strong> concessão ou <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>; a população<br />

envolvida na cobrança <strong>de</strong> seus direitos; e o Ministério Público, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>m<br />

jurídica e cobra do po<strong>de</strong>r público a resolução da ilegalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses núcleos. Nesse sentido,<br />

alguns municípios vêm fazendo parcerias, formando comissões, convênios e outros,<br />

entre diversos órgãos, a fim <strong>de</strong> garantir a viabilida<strong>de</strong> e a sustentabilida<strong>de</strong> das regularizações.<br />

Diretamente ligada aos problemas aqui relatados, constata-se, na maioria dos casos,<br />

uma excessiva burocracia nos procedimentos administrativos dos processos <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária, que muitas vezes tramitam sem priorida<strong>de</strong>, objetivida<strong>de</strong>, prazos <strong>de</strong>finidos<br />

e atenção necessária nos órgãos <strong>de</strong> aprovação.<br />

Ainda em relação à questão processual e à falta <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação e integração, vê-se que<br />

a maioria dos municípios não tem cadastros das áreas ocupadas e que, quando tal<br />

cadastramento existe, seus dados não se encontram sistematizados e atualizados. Normalmente<br />

também não há documentos jurídicos que comprovem a existência da gleba,<br />

cadastro social das famílias, levantamento topográfico das áreas, cadastramento das infraestruturas<br />

existentes e leis específicas para a regularização <strong>de</strong>ssas ocupações.<br />

Em Piracicaba, pu<strong>de</strong>mos verificar que um dos maiores obstáculos encontrados para a<br />

regularização fundiária <strong>de</strong> favelas foi com relação à fragilida<strong>de</strong> institucional. Embora os<br />

serviços <strong>de</strong> regularização estejam sob a responsabilida<strong>de</strong> da EMDHAP, não se criou um<br />

<strong>de</strong>partamento, coor<strong>de</strong>nadoria ou equipe especializada na empresa para <strong>de</strong>sempenhar<br />

funções prioritárias e específicas quanto ao tratamento da questão <strong>de</strong> regularização;<br />

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conseqüentemente, não houve uma coor<strong>de</strong>nação efetiva. Além disso, a integração necessária<br />

com outros órgãos essenciais ao <strong>de</strong>senvolvimento dos processos não se <strong>de</strong>u, nem<br />

mesmo entre os órgãos municipais.<br />

Continuida<strong>de</strong> administrativa<br />

A cada quatro anos, com as eleições municipais, muda-se a administração. Ainda que<br />

continue o mesmo partido e até haja reeleição do prefeito, na maioria das vezes alteramse<br />

os cargos <strong>de</strong> confiança do governo. Geralmente as ações têm priorida<strong>de</strong> diferente da<br />

do governo anterior e são interrompidas por diversos motivos, como afinida<strong>de</strong>s políticas<br />

com os núcleos e promessas <strong>de</strong> campanha.<br />

Em geral, como esses processos são complexos, abrangentes e <strong>de</strong>morados e <strong>de</strong>mandam,<br />

entre outras medidas, aprovação <strong>de</strong> legislações especiais, execução <strong>de</strong> levantamentos<br />

planialtimétrico-cadastrais e socioeconômicos, projetos e obras <strong>de</strong> urbanização, quatro<br />

anos acabam se tornando insuficientes para sua conclusão.<br />

Observa-se <strong>de</strong> fato que nos municípios em que houve continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> governos e,<br />

portanto, <strong>de</strong> projetos políticos, como foi o caso <strong>de</strong> Dia<strong>de</strong>ma nos anos 1990, se obteve<br />

um resultado mais efetivo nesses programas.<br />

A inexistência <strong>de</strong> um Conselho Municipal <strong>de</strong> Habitação que fiscalize as ações, os atos e<br />

os programas do governo em relação à política e aos programas e projetos habitacionais<br />

também é um obstáculo à realização dos processos <strong>de</strong> forma contínua.<br />

Na análise da pesquisa referente aos estudos <strong>de</strong> casos, pu<strong>de</strong>mos verificar que, quando<br />

o município <strong>de</strong> Piracicaba foi administrado pelo mesmo partido durante duas<br />

gestões consecutivas, portanto durante oito anos (1993 a 2000), os processos <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária, embora não tenham sido concluídos, alcançaram alguns avanços,<br />

como a <strong>de</strong>sapropriação da área do Jardim Algodoal, a aprovação da lei <strong>de</strong> <strong>de</strong>safetação<br />

no caso do Jardim Glória, a aprovação <strong>de</strong> legislações específicas para regularização<br />

dos núcleos, o início <strong>de</strong> levantamentos topográficos e projetos, a <strong>de</strong>stinação <strong>de</strong> recursos<br />

para remoção <strong>de</strong> favelas situadas em áreas <strong>de</strong> risco e <strong>de</strong> preservação permanente,<br />

a elaboração <strong>de</strong> alguns convênios com ONGs e instituições e a implantação <strong>de</strong> empreendimentos<br />

habitacionais, com a finalida<strong>de</strong> tanto <strong>de</strong> remoção como <strong>de</strong> atendimento<br />

da <strong>de</strong>manda por habitação social no município. Já na administração 2001 a 2004, praticamente<br />

não houve continuida<strong>de</strong> nem avanços nos processos <strong>de</strong> regularização fundiária,<br />

principalmente nos iniciados anteriormente. Apenas em 2004 é que se tomaram algumas<br />

iniciativas, como distribuição <strong>de</strong> Títulos <strong>de</strong> Concessão <strong>de</strong> Uso Especial para Fins<br />

<strong>de</strong> Moradia em alguns núcleos <strong>de</strong> favelas e início da construção <strong>de</strong> um conjunto<br />

habitacional para remoção <strong>de</strong> moradias em áreas <strong>de</strong> risco; e foi também somente na<br />

segunda meta<strong>de</strong> daquele mesmo ano que se disponibilizaram recursos para urbanização<br />

<strong>de</strong> duas favelas.<br />

Recursos financeiros<br />

Os processos <strong>de</strong> regularização fundiária em geral são caros. Praticamente em todos eles<br />

são necessários levantamentos topográficos, socioeconômicos e cadastrais, além <strong>de</strong> planos<br />

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Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


e projetos urbanísticos, obras <strong>de</strong> urbanização que visem a melhorar o <strong>de</strong>senho urbano<br />

dos núcleos, a<strong>de</strong>quando-os aos requisitos mínimos exigidos por lei.<br />

Mesmo que com características especiais, o plano <strong>de</strong> urbanização <strong>de</strong>sses núcleos <strong>de</strong>ve<br />

prever o mínimo <strong>de</strong> habitabilida<strong>de</strong>. Pelo menos algumas ruas <strong>de</strong>vem ter larguras que<br />

viabilizem a passagem <strong>de</strong> veículos utilitários como, por exemplo, caminhões <strong>de</strong> lixo;<br />

quando possível e justificável, <strong>de</strong>vem ser reservadas áreas para lazer e executadas obras<br />

<strong>de</strong> melhoria nas residências; os lotes com tamanhos insuficientes ou maiores do que o<br />

necessário <strong>de</strong>vem ser re<strong>de</strong>senhados através <strong>de</strong> unificações e <strong>de</strong>smembramentos; <strong>de</strong>ve-se<br />

também proce<strong>de</strong>r a obras <strong>de</strong> saneamento básico e <strong>de</strong> contenção e à remoção <strong>de</strong> pontos<br />

<strong>de</strong> riscos ou <strong>de</strong> residências, quando necessária à implantação do projeto urbanístico.<br />

Mesmo que a intervenção seja pequena, os recursos financeiros são sempre significativos.<br />

Juntamente com a regularização urbana, <strong>de</strong>ve ocorrer a jurídica. Essa etapa também<br />

<strong>de</strong>manda recursos financeiros para serviços advocatícios especializados, custas <strong>de</strong> processos,<br />

taxas e emolumentos em orgãos públicos <strong>de</strong> aprovação e registro. 12<br />

Geralmente o orçamento municipal para habitação é insuficiente. Assim, fazem-se necessárias<br />

alternativas para redução <strong>de</strong> custos e viabilização <strong>de</strong>sses programas <strong>de</strong> regularização,<br />

o que po<strong>de</strong> ser alcançado através <strong>de</strong> parcerias com ONGs e instituições ou <strong>de</strong><br />

mutirões envolvendo a própria comunida<strong>de</strong>, cabendo ao po<strong>de</strong>r público municipal prestar-lhes<br />

assistência técnica.<br />

Além disso, a maioria dos municípios também se apóia nos programas para regularização<br />

fundiária <strong>de</strong>senvolvidos pelos governos fe<strong>de</strong>ral e estadual. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos<br />

po<strong>de</strong> ser verificada no artigo publicado em no jornal o Globo, <strong>de</strong> Brasília,<br />

intitulado Falta <strong>de</strong> recursos é entrave para o Ministério das Cida<strong>de</strong>s regularizar lotes país afora:<br />

Entre março e maio <strong>de</strong>ste ano, o Ministério das Cida<strong>de</strong>s abriu consulta prévia para que prefeituras,<br />

governos estaduais e organizações não-governamentais apresentassem projetos e se candidatassem<br />

a recursos fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong>stinados a diminuir o número dos sem-escritura. A <strong>de</strong>manda foi por R$ 40<br />

milhões, oito vezes mais do que a verba disponível para este ano (RANGEL, 2004, p. C-1).<br />

Muitos municípios, principalmente os pequenos e médios, encontram dificulda<strong>de</strong>s em<br />

conseguir viabilizar esses recursos, seja por falta <strong>de</strong> estrutura administrativa, seja por<br />

excessiva burocracia e exigências formuladas principalmente pelo governo fe<strong>de</strong>ral e pela<br />

Caixa Econômica <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> (CEF). 13 Como o déficit habitacional se concentra na população<br />

que percebe <strong>de</strong> 0 a 3 salários mínimos, é necessário que a distribuição <strong>de</strong> recursos<br />

ocorra na <strong>de</strong>vida proporção, <strong>de</strong>stinando-se a maior parte <strong>de</strong>les para essa população<br />

mais carente, inclusive com subsídios.<br />

Para solicitação e viabilização <strong>de</strong>sses recursos, geralmente se faz necessária, além <strong>de</strong><br />

elaboração <strong>de</strong> projetos específicos, também “afinida<strong>de</strong> política” entre os governos. Em<br />

Piracicaba, por exemplo, durante a administração municipal <strong>de</strong> 1997 a 2000, foram<br />

disponibilizados recursos para projetos habitacionais por meio dos governos fe<strong>de</strong>ral e<br />

estadual, na época, do mesmo partido do municipal. Também foram utilizados recursos<br />

municipais do Fundo Municipal <strong>de</strong> Habitação (FUNDHAP) e estabelecidas parcerias com<br />

ONGs e instituições, como a Mutirão da Casa Popular <strong>de</strong> Piracicaba (MUCAPP) e a<br />

12<br />

Muitos estados e municípios têm isentado<br />

<strong>de</strong> taxas os processos <strong>de</strong> interesse social. Com<br />

relação às custas cartorárias, a recém aprovada<br />

Lei <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> 10931/04 isenta do pagamento<br />

<strong>de</strong> taxas os processos <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária <strong>de</strong> interesse social promovidos pela<br />

administração pública.<br />

13<br />

Dentre os programas fe<strong>de</strong>rais atualmente<br />

voltados ao atendimento da regularização<br />

fundiária <strong>de</strong> favelas <strong>de</strong>stacam-se: Programa<br />

Habitar Brasil (BID/HBB); Programa Morar<br />

Melhor; Programa Pró-Infra; Programa <strong>de</strong><br />

Subsídio à Habitação (PSH), com recursos do<br />

OGU; e Programa Pró-Moradia, com recursos<br />

do FGTS.<br />

Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

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<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Metodista <strong>de</strong> Piracicaba (UNIMEP), para viabilização <strong>de</strong> projetos habitacionais.<br />

Já na administração seguinte (2001-2004), apenas em 2004 é que foram liberados,<br />

pelos governos fe<strong>de</strong>ral e estadual respectivamente, recursos para regularização<br />

fundiária <strong>de</strong> favelas e para construção <strong>de</strong> residências.<br />

artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado outubro/2005<br />

Participação popular<br />

A prática administrativa <strong>de</strong> regularização fundiária em nosso país <strong>de</strong>ve-se, em gran<strong>de</strong><br />

parte, à cobrança dos movimentos populares pelo direito ao acesso à terra e à moradia.<br />

Mas, mesmo que as legislações atualmente apresentem caráter mais social, são necessárias<br />

a participação e a cobrança da população para sua materialização.<br />

Embora a maioria dos governos municipais esteja investindo em uma nova maneira <strong>de</strong><br />

governar, envolvendo nas discussões dos programas <strong>de</strong> regularização fundiária não só a<br />

população beneficiada como toda a cida<strong>de</strong>, essa participação apresenta maneiras diferentes<br />

<strong>de</strong> organização e <strong>de</strong> compromisso tanto <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> para cida<strong>de</strong> como nos projetos. 14<br />

Os canais <strong>de</strong> participação po<strong>de</strong>m se dar por meio <strong>de</strong> Conselhos <strong>de</strong> Habitação, Comissões<br />

<strong>de</strong> Regularização, Orçamentos Participativos e outros. Além disso, a participação<br />

varia <strong>de</strong> projeto para projeto e também em relação às atribuições, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

elaboração <strong>de</strong> projetos até a execução <strong>de</strong> obras, a exemplo do mutirão.<br />

Estudos mostram que obtiveram melhores resultados os projetos nos quais a população<br />

participou <strong>de</strong> forma atuante e efetiva, principalmente através <strong>de</strong> movimentos organizados,<br />

e opiniou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, procurando conhecer e cobrar do po<strong>de</strong>r público os<br />

seus direitos. 15<br />

A participação popular, principalmente se representada por Conselhos Municipais, é<br />

muito importante, pois tem a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fiscalizar e cobrar do po<strong>de</strong>r público as ações<br />

e a continuida<strong>de</strong> em relação aos projetos, não <strong>de</strong>ixando que as <strong>de</strong>cisões fiquem apenas<br />

na esfera política.<br />

Em Piracicaba, durante o período estudado, não houve efetiva participação popular nem<br />

foi criado o Conselho Municipal <strong>de</strong> Habitação. Pela própria conjuntura nacional da época,<br />

em que os movimentos populares se encontravam enfraquecidos, a ASFAP não teve participação<br />

concreta nos processos, o que lhes dificultou o <strong>de</strong>senvolvimento e a conclusão.<br />

14<br />

Segundo Frey (2000), nas novas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

governança, as comunida<strong>de</strong>s, as associações<br />

da socieda<strong>de</strong> e as empresas privadas <strong>de</strong>sempenham<br />

um papel cada vez mais <strong>de</strong>cisivo. Isso<br />

se dá <strong>de</strong>vido ao enfraquecimento das instituições<br />

estatais e às transformações nos<br />

processos político-administrativos das <strong>de</strong>mocracias<br />

mo<strong>de</strong>rnas.<br />

15<br />

Belo Horizonte e Recife são exemplos <strong>de</strong><br />

cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> se verifica a participação popular<br />

nos processos <strong>de</strong> regularização fundiária.<br />

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68<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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Obstáculos aos processos <strong>de</strong> regularização fundiária <strong>de</strong> favelas no Brasil: o caso <strong>de</strong> Piracicaba – SP


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Paulo, 1993.<br />

Belo Horizonte 01(1) 51-69 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Silvia Maria M. Funes Carolina Maria Pozzi <strong>de</strong> Castro Ioshiaqui Shimbo<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

69


Vero Franklin Sardinha Pinto<br />

Mestre em Geografia/UFMG<br />

Secretário <strong>de</strong> Desenvolvimento e Assistência Social<br />

da Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Montes Claros/MG<br />

Conflitos socioambientais e resistências<br />

no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga 1<br />

Doralice Barros Pereira<br />

Professora do Departamento <strong>de</strong> Geografia/UFMG<br />

Ph.D/<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Montréal<br />

1<br />

Uma versão <strong>de</strong>ste artigo, intitulada Resistência<br />

contra a soberba: conflitos socioambientais<br />

na hidrelétrica <strong>de</strong> Candonga, foi<br />

apresentada no I Encontro <strong>de</strong> Ciências Sociais<br />

e Barragens, em sua Sessão Temática<br />

2-Conflitos sociais e organização das populações<br />

atingidas, realizado no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro <strong>de</strong> 6 a 8 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2005, sob organização<br />

do IPPUR.<br />

Resumo<br />

As resistências socioambientais e a relativamente<br />

recente crise energética <strong>de</strong>snudaram, <strong>de</strong><br />

forma aparentemente contraditória, na agenda<br />

política brasileira, a questão da energia e suas<br />

especificida<strong>de</strong>s: como, em que quantida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong>,<br />

para quem e para que produzi-la? O presente<br />

estudo busca contextualizar e enten<strong>de</strong>r, com<br />

ênfase nos atores sociais, os conflitos socioespaciais<br />

ocorridos durante o processo <strong>de</strong><br />

licenciamento da hidrelétrica <strong>de</strong> Candonga<br />

(inaugurada em 22/08/2005 como Usina<br />

Hidrelétrica Risoleta Neves), no rio Doce, em<br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Visa a uma crítica social sobre a<br />

irracionalida<strong>de</strong> consumista e produtivista inerente<br />

à socieda<strong>de</strong> capitalista. A resistência<br />

(re)constitui, além <strong>de</strong> sujeitos, valores e referências<br />

culturais e legais, novos espaços <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>liberação e novas territorialida<strong>de</strong>s, colocando<br />

em xeque a (<strong>de</strong>s)or<strong>de</strong>m do sistema <strong>de</strong> licenciamento<br />

e condicionando os processos <strong>de</strong><br />

produção e consumo <strong>de</strong> energia.<br />

Abstract<br />

Socio-environmental restrictions and the recent<br />

energy crisis have left an apparent contradiction in the<br />

Brazilian political agenda, energy in all its specificity:<br />

how, how much, where, for whom and why produce it?<br />

This study aims at un<strong>de</strong>rstanding the socio-spatial<br />

conflicts that resulted from licensing the hydroelectric<br />

plant of Candonga (Rio Doce/<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>,<br />

inaugurating in 22/08/2005 <strong>de</strong>nominated Usina<br />

Hidrelétrica Risoleta Neves), putting them in their<br />

context and focusing on the different actors involved.<br />

Aiming at a social critic of the irrationality of<br />

production and consumption inherent to the capitalist<br />

society. Resistance makes people, values, cultural and<br />

legal references, <strong>de</strong>liberation spaces and territoriality<br />

change drastically, making the licensing process fail.<br />

vero@uai.com.br<br />

pereiradb@yahoo.com.br<br />

Palavras-chave Conflitos socioambientais,<br />

resistência popular, projeto hidrelétrico.<br />

Keywords Socio-environmental conflicts, popular<br />

restrictions, hydroelectric plant.<br />

70<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


Introdução<br />

No Brasil, o antagonismo entre a expansão capitalista e seu caráter produtivista 2 e a<br />

manutenção <strong>de</strong> um ambiente saudável, <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> vida e territorialida<strong>de</strong>s distintos e<br />

não-capitalistas, vem tendo expressão, <strong>de</strong> um lado, na luta dos atingidos e, <strong>de</strong> outro, em<br />

ataques oriundos <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>dores e/ou governos provavelmente orquestrados durante<br />

os processos <strong>de</strong> licenciamento ambiental. Suas referências i<strong>de</strong>ológicas (nacionalismo,<br />

esquerda/direita) mais complicam que ajudam o entendimento <strong>de</strong> tais processos. Em<br />

2004 por sinal, com insistência incomum a imprensa divulgou opiniões a respeito <strong>de</strong><br />

supostos entraves à retomada do <strong>de</strong>senvolvimento, com ênfase na atuação dos ambientalistas<br />

e na luta <strong>de</strong> resistência dos atingidos por barragens. Dentre <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> reportagens e<br />

editoriais, a matéria especial publicada na revista Exame, em maio daquele ano, inicia sua<br />

argumentação afirmando que “[...] por pressão <strong>de</strong> grupos ver<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> alguns setores do<br />

governo, obras importantes para o crescimento do país estão paralisadas. É difícil mensurar<br />

a postura xiita” e conclui, no final do parágrafo:<br />

Num país que experimentou a estagnação econômica no ano passado, que vive com taxas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>semprego recor<strong>de</strong>s e possui uma produção industrial tímida, abdicar <strong>de</strong>sses investimentos é<br />

um luxo. Um luxo inexplicável (O IMPOSTO… 2004, p. 104).<br />

A hegemonia do setor <strong>de</strong>senvolvimentista consolidou-se no Ministério das <strong>Minas</strong> e<br />

Energia e no âmbito <strong>de</strong> todo o governo, simbolizada pelo posicionamento exposto em<br />

Bonn. 3 Lá, a ministra Dilma Roussef <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u o caráter renovável das fontes hidráulicas<br />

<strong>de</strong> energia, em sentido contrário ao advogado pelas organizações ambientalistas. Nessa<br />

mesma perspectiva, o diretor da Petrobrás, Ildo Sauer, já havia alertado: “Precisamos<br />

<strong>de</strong>finir o que é melhor para o país. Ou voltamos para a ida<strong>de</strong> da pedra ou buscamos o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento. Não dá para querer as duas coisas simultaneamente” (ibi<strong>de</strong>m 2002,<br />

p.33). No Congresso Nacional, naquele mesmo mês, o <strong>de</strong>putado ruralista (PPS–PR) César<br />

Silvestri <strong>de</strong>nunciou o que acreditou ser uma orquestração internacional contra os interesses<br />

brasileiros, a qual fazia tramitar projetos ambientais que, se aprovados, viriam a inviabilizar<br />

a agricultura brasileira (PARTIDO POPULAR SOCIALISTA, 2004).<br />

Para ilustrar a influência das referências i<strong>de</strong>ológicas acima mencionadas, é preciso <strong>de</strong>stacar<br />

a visão, ainda hegemônica na esquerda brasileira, <strong>de</strong> que o mo<strong>de</strong>lo energético brasileiro<br />

anterior à privatização efetuada pelo governo Fernando Henrique Cardoso era muito positivo:<br />

“O sistema elétrico brasileiro é, sabidamente, extraordinário, por aproveitar <strong>de</strong> forma<br />

integrada a energia limpa e barata que se forma a partir das águas das chuvas em<br />

gran<strong>de</strong>s reservatórios construídos nas diversas regiões do Brasil” (PEREIRA, 2003, p. 12).<br />

Quase um ano <strong>de</strong>pois e na mesma revista, o autor da reportagem, ressaltava, como vantagem<br />

comparativa, que seria “uma espécie <strong>de</strong> combustível gratuito a energia acumulada<br />

pelas chuvas em enormes reservatórios” (PEREIRA, 2004, p. 16). Em artigo publicado no<br />

portal da Agência Carta Maior, o articulista César Benjamin (2004) reiterou:<br />

Somos um país tropical <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> extensão, com rios caudalosos, com bacias hidrográficas distantes<br />

entre si, localizadas em regiões que têm diferentes regimes <strong>de</strong> chuvas. Por serem rios <strong>de</strong> planalto,<br />

2<br />

Bihr (1999, p. 127) <strong>de</strong>nuncia a lógica do<br />

capital prisioneiro do produtivismo: “[...] a<br />

produção capitalista é antes <strong>de</strong> mais nada uma<br />

produção visando à produção. Enquanto em<br />

todos os modos <strong>de</strong> produção anteriores, o ato<br />

social <strong>de</strong> trabalho não tinha outra finalida<strong>de</strong><br />

senão o consumo, ou seja, a satisfação das<br />

necessida<strong>de</strong>s sociais, o capitalismo perverte<br />

fundamentalmente o sentido <strong>de</strong>sse ato, fazendo<br />

da produção social seu próprio objetivo”.<br />

3<br />

Em junho <strong>de</strong> 2004, foi realizada, na Alemanha,<br />

a Conferência sobre Energias Renováveis.<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto Doralice Barros Pereira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

71


<strong>de</strong> modo geral sua <strong>de</strong>clivida<strong>de</strong> é suave. Quando barrados, formam gran<strong>de</strong>s lagos. São energia<br />

potencial. É só fazer a água cair, passando por uma turbina, que geramos a eletricida<strong>de</strong> mais barata<br />

do mundo, <strong>de</strong> fonte renovável e não poluente, com recursos e técnicas totalmente brasileiros. Se<br />

as barragens forem construídas em seqüência, ao longo do curso <strong>de</strong> um rio, a mesma gota <strong>de</strong> água<br />

é usada inúmeras vezes antes <strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r no oceano. Os místicos diriam que tudo isso é uma<br />

bênção; os técnicos, que é uma enorme vantagem comparativa. Ambos têm razão. A vida útil <strong>de</strong><br />

uma usina hidrelétrica é ilimitada. A obra <strong>de</strong> construção civil, em princípio, é eterna como as<br />

pirâmi<strong>de</strong>s do Egito, e os equipamentos precisam ser substituídos a cada período <strong>de</strong> mais ou<br />

menos setenta anos <strong>de</strong> uso. O ‘combustível’, como vimos, é gratuito. O custo operacional,<br />

portanto, é baixíssimo.<br />

4<br />

O artigo <strong>de</strong> Roni Wun<strong>de</strong>r (2003) é emblemático.<br />

Ele trata <strong>de</strong> explicar, logo no início,<br />

que “...tem como objetivo i<strong>de</strong>ntificar e<br />

avaliar as possibilida<strong>de</strong>s institucionais <strong>de</strong><br />

interação social existentes na legislação ambiental<br />

no Brasil, focalizando os projetos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento do Setor elétrico Brasileiro,<br />

e oferecer subsídios para a potencialização<br />

<strong>de</strong>sses processos <strong>de</strong> interação. Portanto, mais<br />

que a crítica, o que se preten<strong>de</strong> é apontar os<br />

caminhos legais possíveis para estabelecer o<br />

diálogo entre os agentes sociais antagônicos<br />

ou não, amenizar os conflitos e trilhar o caminho<br />

do entendimento e do reconhecimento<br />

mútuo dos interesses manifestados e do po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> discussão e <strong>de</strong>cisão social sobre projetos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”.<br />

Nessas posições, prevalece uma concepção <strong>de</strong>senvolvimentista ainda insensível ou<br />

mesmo contrária à questão socioambiental (PINTO e PEREIRA, 2003). Assim, com mais<br />

razão talvez do que em outros momentos, há <strong>de</strong> se ter maiores cuidados contra a tentação<br />

da prescrição e da ilusão tecnocrática, tão caras a consultores e a círculos universitários,<br />

que, embora parta <strong>de</strong> uma visão crítica, resulta <strong>de</strong>spolitizadora dos processos <strong>de</strong><br />

produção do espaço e re<strong>de</strong>finição socioterritorial. 4<br />

Certamente as pressões das empresas e do governo criam um clima favorável mesmo<br />

a frau<strong>de</strong>s técnicas, como a que teria ocorrido recentemente no processo <strong>de</strong> licenciamento<br />

da hidrelétrica <strong>de</strong> Barra Gran<strong>de</strong>, no rio Pelotas, divisa do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul com Santa<br />

Catarina. Em outubro <strong>de</strong> 2004, quase ao mesmo tempo em que o IBAMA concedia a<br />

Licença <strong>de</strong> Operação para a Usina <strong>de</strong> Barra Gran<strong>de</strong>, “após cinco anos <strong>de</strong> impasse”, a<br />

ministra Dilma Rousseff sinalizou aos investidores e comemorou a “nova postura diante<br />

da questão”. Todavia, logo <strong>de</strong>pois, a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ONGs da Mata Atlântica e a Fe<strong>de</strong>ração das<br />

Entida<strong>de</strong>s Ecologistas <strong>de</strong> Santa Catarina ingressaram com uma ação civil pública solicitando<br />

a anulação da licença por frau<strong>de</strong> no estudo <strong>de</strong> impacto ambiental. O resultado foi<br />

a interrupção, por <strong>de</strong>cisão liminar da Justiça <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong>, da retirada da cobertura vegetal na<br />

área do empreendimento (ECOAGÊNCIA, 2004).<br />

São questões como essas que este artigo, inspirado em dados e reflexões colhidos na<br />

pesquisa <strong>de</strong>senvolvida no Mestrado em Geografia da UFMG, intitulada Conflitos socioambientais<br />

em licenciamento <strong>de</strong> hidrelétricas: o caso <strong>de</strong> Candonga, se propõe a analisar (PINTO, 2005). Tal<br />

estudo objetiva i<strong>de</strong>ntificar que condições finais do espaço produzido pela construção e<br />

operação do empreendimento resultaram primordialmente da luta empreendida pela<br />

população local, ou seja, da capacida<strong>de</strong> política dos atingidos para impor os próprios<br />

interesses. Se verda<strong>de</strong>ira, a hipótese implica em uma perspectiva <strong>de</strong>mocrática, <strong>de</strong>monstrando<br />

que o foco <strong>de</strong> atuação da universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser menos intenso no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> “métodos a<strong>de</strong>quados” como o da “universida<strong>de</strong> operacional” (CHAUI, 2001,<br />

p. 220), porque reprodutivista, para se aprimorar na crítica e reflexão que contribuam<br />

para a ampliação do espaço público <strong>de</strong>mocrático, o que inclui o reconhecimento da<br />

centralida<strong>de</strong> dos conflitos socioterritoriais.<br />

Outro pressuposto, àquele vinculado é o <strong>de</strong> que esses conflitos não resultam <strong>de</strong> erros<br />

metodológicos, mas constituem-se em manifestações necessárias do esgotamento do<br />

72<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


sistema energético 5 capitalista em geral, e, em particular, em manifestações da formação<br />

socioterritorial brasileira, subordinadas à inserção do país no processo <strong>de</strong> globalização.<br />

Essa inserção caracteriza-se por uma semi-especialização na produção para a exportação<br />

<strong>de</strong> energo-intensivos (SCOTTO, 2003/4) <strong>de</strong>voradores <strong>de</strong> espaços e territórios sociais.<br />

Finalmente, cabe ressaltar que toda esta discussão encerra uma dimensão ética a ser<br />

explicitada. Não se preten<strong>de</strong>, aqui, ocultar vínculos, a propósito <strong>de</strong> um suposto rigor<br />

metodológico ou do distanciamento sujeito/objeto. E tal postura não <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> uma<br />

atitu<strong>de</strong> moralista ou militante mas sim, da própria experiência do primeiro autor como<br />

prestador <strong>de</strong> serviço perante o respectivo Consórcio na implementação <strong>de</strong> programas,<br />

ditos sociais, durante a fase do licenciamento ambiental 6 da UHE Candonga, o que acabou<br />

por conferir uma certa especificida<strong>de</strong> à investigação.<br />

Características do empreendimento <strong>de</strong> Candonga<br />

A Usina Hidrelétrica <strong>de</strong> Candonga foi construída pelo <strong>de</strong>nominado Consórcio Candonga,<br />

composto pela Companhia Vale do Rio Doce e pela Alcan Alumínio do Brasil (que<br />

investiu US$ 95milhões na sua implantação). Apesar <strong>de</strong> estar em operação parcial <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

agosto <strong>de</strong> 2004, a usina foi inaugurada pelo governador do Estado, Aécio Neves em 22<br />

<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2005 com o nome <strong>de</strong> Usina Hidrelétrica Risoleta Neves. Ela está instalada<br />

no rio Doce, entre os municípios mineiros <strong>de</strong> Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, na<br />

microrregião <strong>de</strong> Ponte Nova (Figura 1). O barramento formou um reservatório com<br />

286 ha <strong>de</strong> área alagada (191,59 ha <strong>de</strong> terras e 94,41 ha correspon<strong>de</strong>ntes à calha do rio<br />

Doce e seus afluentes). Sua profundida<strong>de</strong> média atinge cerca <strong>de</strong> 20 metros. A capacida<strong>de</strong><br />

instalada para geração <strong>de</strong> energia é <strong>de</strong> 140,0 MW (PINTO, 2005).<br />

O caso <strong>de</strong> Candonga, que a rigor não é o caso só <strong>de</strong> Candonga, agrega a manifestação<br />

em e <strong>de</strong> um lugar 7 contra a expropriação <strong>de</strong> seu território e em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado<br />

uso do espaço (PINTO, 2005; ZHOURI e OLIVEIRA, 2005; PINTO e PEREIRA, 2003).<br />

O reservatório, cujo barramento, iniciado em 2001, foi concluído em março <strong>de</strong> 2004,<br />

afetou, direta e compulsoriamente, famílias nas duas margens do rio Doce. No lado direito,<br />

no distrito <strong>de</strong> São Sebastião <strong>de</strong> Soberbo, foram afetadas aproximadamente 270 pessoas<br />

resi<strong>de</strong>ntes em quase 120 domicílios, além <strong>de</strong> outras cinco famílias resi<strong>de</strong>ntes na área do<br />

canteiro da obra, em Pedra do Escalvado, incluindo o eixo da barragem. Essas pessoas<br />

foram as primeiras a sair. Na margem esquerda, no município <strong>de</strong> Rio Doce, cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

famílias <strong>de</strong> trabalhadores rurais agregados, resi<strong>de</strong>ntes na Fazenda Marimbondo, foram<br />

<strong>de</strong>slocadas. Inúmeras outras famílias, ainda que não afogadas, tiveram comprometida sua<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho, especialmente os meeiros e os garimpeiros (PINTO, 2005).<br />

A maior parte das famílias vivia em casas <strong>de</strong> alvenaria, caracterizadas pela centralida<strong>de</strong><br />

da cozinha gran<strong>de</strong> e pelo uso constante do quintal - nas palavras <strong>de</strong> uma moradora, “a<br />

<strong>de</strong>spensa do pobre”. Ali, elas obtinham ovos e carne com a criação <strong>de</strong> galinhas, colhiam<br />

frutas, plantavam hortas e plantas medicinais, pescavam e catavam lenha para cocção <strong>de</strong><br />

alimentos e aquecimento da água para o banho. No rio, na época <strong>de</strong> seca, exploravam,<br />

por meio da faiscação, o ouro, que era uma importante fonte complementar <strong>de</strong> renda, se<br />

não a única.<br />

5<br />

“Um sistema energético é a combinação<br />

original <strong>de</strong> diversas linhas <strong>de</strong> conversores, que<br />

se caracterizam pela utilização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas<br />

fontes <strong>de</strong> energia e por sua inter<strong>de</strong>pendência,<br />

pela iniciativa e sob o controle<br />

<strong>de</strong> classes ou grupos sociais, os quais se <strong>de</strong>senvolvem<br />

e se reforçam com base neste<br />

controle.” (HÉMERY, DEBIER e DELÉAGE,<br />

1993, p. 21) A configuração da crise mostra<br />

que “estamos diante <strong>de</strong> um <strong>de</strong>smoronamento<br />

da base energética que ancorou o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do capitalismo nos últimos séculos.<br />

O que está em pauta hoje no mundo é a<br />

incontestável ruína <strong>de</strong> um paradigma civilizatório,<br />

<strong>de</strong>ntro do qual irrompe o espectro do<br />

apocalipse ecológico, com o efeito estufa e a<br />

chuva ácida. Diante <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong> objetiva<br />

da biosfera, emerge no cenário contemporâneo<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um novo sistema<br />

energético assentado nas energias renováveis,<br />

vegetais e limpas do ponto <strong>de</strong> vista<br />

ambiental” (VASCONCELLOS, 2002, p. 17).<br />

6<br />

O licenciamento ambiental <strong>de</strong> hidrelétricas<br />

prevê a proposição <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> controle<br />

ambiental mitigadores <strong>de</strong> eventuais danos<br />

<strong>de</strong>correntes do empreendimento.<br />

7<br />

“Há um conflito que se agrava entre um<br />

espaço local, espaço vivido por todos os<br />

vizinhos, e um espaço global, habitado por<br />

um processo racionalizador e um conteúdo<br />

i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> origem distante e que chegam<br />

a cada lugar com os objetos e as normas<br />

estabelecidos para servi-los” (SANTOS,<br />

1994, p. 18).<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto Doralice Barros Pereira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

73


Figura 1<br />

A região <strong>de</strong> São Sebastião do Soberbo<br />

antes do reservatório que a inundou em 2003<br />

Fonte: EMBRAPA, [2005]; IBGE, 1980.<br />

74<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


Uma boa parte das famílias, na estação chuvosa, <strong>de</strong> outubro a março, trabalhava como<br />

meeira ou explorava sua própria terra diretamente, em regime <strong>de</strong> economia familiar,<br />

criando porcos ou gado leiteiro. Havia ainda, entre os moradores que foram <strong>de</strong>slocados,<br />

comerciantes <strong>de</strong> pequeno porte e funcionários das prefeituras <strong>de</strong> Rio Doce e <strong>de</strong> Santa<br />

Cruz do Escalvado.<br />

Na margem esquerda do rio Doce, parte da Fazenda Marimbondo foi inundada.<br />

Naquele terreno moravam <strong>de</strong>z famílias <strong>de</strong> trabalhadores rurais agregados que atuavam<br />

como meeiros e garimpeiros; eles também usavam porções da fazenda para fins próprios,<br />

especialmente para o plantio <strong>de</strong> frutas e verduras e para a criação <strong>de</strong> frangos. Em<br />

Marimbondo, mais da meta<strong>de</strong> das famílias possuía parentesco entre si. O mais antigo<br />

morador estava lá há mais <strong>de</strong> 80 anos; chegou com o pai, ainda criança.<br />

Licenciamento: processo<br />

Observando o processo <strong>de</strong> licenciamento <strong>de</strong> Candonga, é possível verificar que ele teve<br />

um caráter sobretudo administrativo, em face especialmente dos esforços técnicos<br />

dispensados para legitimar <strong>de</strong>cisões cuja parcialida<strong>de</strong> restou evi<strong>de</strong>nciada na ausência <strong>de</strong><br />

uma construção política <strong>de</strong> inclusão dos interesses dos atingidos não-capitalistas. Entre<br />

os documentos arquivados do processo <strong>de</strong> licenciamento, há uma carta do então<br />

presi<strong>de</strong>nte da recém-criada Associação dos Moradores e Proprietários Atingidos 8 pela<br />

Barragem <strong>de</strong> Candonga, datada <strong>de</strong> 09 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2001 e en<strong>de</strong>reçada à Fundação<br />

Estadual do Meio Ambiente (FEAM), em que ele reclama da recusa do empreen<strong>de</strong>dor<br />

em fornecer cópia do Programa <strong>de</strong> Controle Ambiental (PCA) aos atingidos. Tal recusa<br />

era baseada, segundo o presi<strong>de</strong>nte da Associação, no “[...] argumento <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong><br />

um documento particular do consórcio empreen<strong>de</strong>dor” (FEAM, Processo <strong>de</strong><br />

licenciamento Ambiental da UHE Candonga, 2003). A FEAM, em ofício <strong>de</strong> 19/03/2001,<br />

respon<strong>de</strong>u que<br />

[...] o processo <strong>de</strong>ssa hidrelétrica, em obediência a procedimentos consolidados pela FEAM para<br />

fins <strong>de</strong> verificação <strong>de</strong> viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong>ssa natureza, se <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong> forma absolutamente<br />

transparente e, sobretudo, participativa, com envolvimento <strong>de</strong> todas as partes interessadas (Ibi<strong>de</strong>m).<br />

A Prefeitura <strong>de</strong> Santa Cruz do Escalvado, em setembro daquele ano, ou seja, seis<br />

meses após as consi<strong>de</strong>rações do órgão ambiental, também não pô<strong>de</strong> obter ou consultar<br />

o Programa <strong>de</strong> Controle Ambiental, ante a igual alegação <strong>de</strong> que “não era um documento<br />

público”. Esses fatos ilustram a situação em Candonga que, com o título <strong>de</strong> “a menina<br />

dos olhos do sistema <strong>de</strong> licenciamento”, como afirmou, orgulhoso, um consultor<br />

graduado do empreendimento, implantava suas ativida<strong>de</strong>s sob rigoroso controle político<br />

e econômico do Consórcio (PINTO, 2005). Como isso era possível?<br />

O domínio<br />

A investigação partiu, <strong>de</strong>ntre outros procedimentos <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> informações, das<br />

observações registradas durante a experiência profissional do primeiro autor <strong>de</strong>ste texto.<br />

Num segundo momento foram efetuadas entrevistas com participantes diretos do<br />

8<br />

Atingido é um termo freqüentemente<br />

apropriado pela população ribeirinha que<br />

é obrigada a se <strong>de</strong>slocar <strong>de</strong> forma compulsória<br />

e, parece, constituinte <strong>de</strong> um importante<br />

elemento <strong>de</strong> pertencimento, catalisador<br />

(BRAGA, 2000) <strong>de</strong> novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

e expressões políticas, como o MAB –<br />

Movimento dos Atingidos por Barragens<br />

(REBOUÇAS, 2000).<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto Doralice Barros Pereira<br />

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processo. Durante esses momentos foi <strong>de</strong>monstrado que o controle exercido pelo<br />

empreendimento sustentava-se no esvaziamento político, na quase <strong>de</strong>sinstitucionalização, na<br />

<strong>de</strong>struição mesma do espaço público.<br />

Dentre as práticas adotadas, a cooptação, minuciosamente planejada, fez emergir um<br />

neocoronelismo no qual as personagens locais garantiram a sua posição em troca <strong>de</strong><br />

benefícios. Os alvos <strong>de</strong> cooptação foram os políticos, os lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> igrejas, os lí<strong>de</strong>res<br />

comunitários – verda<strong>de</strong>iros ou impostores, sinceros ou arrivistas. O método, “nome<br />

sociológico da anulação” (OLIVEIRA, 1999), contou com a distribuição <strong>de</strong> benesses<br />

reais e/ou imaginárias, empregos, compra <strong>de</strong> bens e/ou serviços para a obra, superestimação<br />

dos valores <strong>de</strong> bens a serem pagos, favorecimento nas negociações (agilida<strong>de</strong><br />

e disponibilida<strong>de</strong> para conversar com certos atingidos).<br />

A negociação individual foi outra tática fundamental <strong>de</strong> viabilização da estratégia. Em<br />

nome da privacida<strong>de</strong>, as propostas individuais eram confi<strong>de</strong>nciais, e, diante do segredo do<br />

que era ofertado, instalou-se, <strong>de</strong>liberadamente, a <strong>de</strong>sconfiança entre as famílias. Outra<br />

manobra que <strong>de</strong>ixou aturdidos os moradores consistia na troca incessante dos representantes<br />

do Consórcio, o que neutralizava qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reivindicação por parte<br />

daqueles, já que recebiam promessas realizáveis, mas em um futuro sempre adiado.<br />

Somavam-se a esse contexto, <strong>de</strong> um lado, a <strong>de</strong>squalificação, a <strong>de</strong>svalorização e a <strong>de</strong>preciação<br />

da realida<strong>de</strong> vivida, reduzindo-se a auto-estima das pessoas, e, <strong>de</strong> outro, a tentativa<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>smoralização das li<strong>de</strong>ranças e <strong>de</strong> quaisquer enfoques alternativos. Assim nas<br />

primeiras reuniões, no início mesmo do processo <strong>de</strong> licenciamento, um dos mais importantes<br />

futuros agentes do processo <strong>de</strong> resistência, o padre Claret, foi, nas palavras <strong>de</strong> um<br />

atingido, “escorraçado” <strong>de</strong> Soberbo, porque seria um “arruaceiro contra o progresso”.<br />

O domínio, a anti-política e a “polícia” 9 eram utilizados para evitar o risco do dissenso<br />

e da oposição substantiva, embora houvesse uma aparência <strong>de</strong> participação e <strong>de</strong> transparência,<br />

expressa por meio do cumprimento a procedimentos formais, como o <strong>de</strong> convocar<br />

reuniões com certa antecedência e efetuá-las com todos os ritos. 10<br />

9<br />

“Conjunto <strong>de</strong> processos pelos quais se operaram<br />

a agregação e o consentimento das coletivida<strong>de</strong>s,<br />

a organização dos po<strong>de</strong>res e a gestão<br />

das populações, a distribuição dos lugares<br />

e das funções e os sistemas <strong>de</strong> legitimação<br />

<strong>de</strong>ssa distribuição” (RANCIÈRE, 1996, p. 372).<br />

10<br />

Durante uma entrevista, uma consultora<br />

manifestou sua perplexida<strong>de</strong> com a erupção<br />

do conflito: “Eu não consigo enten<strong>de</strong>r o que<br />

<strong>de</strong>u errado. Tudo lá era tão bem feito.”<br />

11<br />

“A condição para o prestígio e para a eficácia<br />

do discurso da competência como discurso<br />

do conhecimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da afirmação<br />

tácita e da aceitação tácita da incompetência<br />

dos homens enquanto sujeitos sociais e<br />

políticos.[...] Para que esse discurso possa<br />

ser proferido e mantido é imprescindível que<br />

não haja sujeitos, mas apenas homens reduzidos<br />

à condição <strong>de</strong> objetos sociais” (CHAUÍ,<br />

1997, p. 7).<br />

Os doutores<br />

No processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spolitização, tornou-se crucial a participação <strong>de</strong> alguns segmentos<br />

sociais, os doutores - advogados, engenheiros, psicólogos, sociólogos, biólogos –, que, ao<br />

invadirem a vida daquelas pessoas, tomaram conta <strong>de</strong> seu mundo com uma fala empolada,<br />

“competente” 11 e com a ostentação <strong>de</strong> um saber técnico e jurídico inacessível (ZHOURI<br />

e OLIVEIRA, 2005; LACORTE e BARBOSA 1995; LEMOS 1999), uma forma <strong>de</strong> intimidação<br />

e impedimento do diálogo (“a lei não me permite fazer isso”; “esta ativida<strong>de</strong> é ilegal”;<br />

“as casas estão muito bem construídas”; “o sistema <strong>de</strong> drenagem não permite levantar a<br />

casa”; “o contrato é na forma <strong>de</strong> turn-key”; “o engenheiro aqui sou eu: estu<strong>de</strong>i muitos<br />

anos”). Essas frases pareciam incontestáveis, resultando, por isso, em eficiente estratégia<br />

<strong>de</strong> dominação.<br />

Na percepção <strong>de</strong> um dos atingidos, os advogados auto-intitulavam-se doutores para<br />

“manter aquela distância segura <strong>de</strong> dominação”. Todavia, em face <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas conjunturas,<br />

a suposta superiorida<strong>de</strong> técnica dos doutores limitava-os. Para assegurar o cum-<br />

76<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


primento do cronograma ou da cota financeira atribuída a uma certa etapa da obra, eles<br />

eram então obrigados a se valer <strong>de</strong> ameaças, como recordaram alguns resi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>slocados:<br />

“se não aceitarem, vão ficar é <strong>de</strong>baixo d’água”; “a terra que vocês vão ganhar são<br />

sete palmos <strong>de</strong> terra” ou “tem que negociar, senão a gente vai <strong>de</strong>sapropriar”.<br />

Outra estratégia, complementar àquela, consistiu na implementação <strong>de</strong> ações<br />

assistencialistas e no estabelecimento <strong>de</strong> vínculos afeto-clientelistas (e, aqui, não importam<br />

a intenção do agente, sua sincerida<strong>de</strong> ou não nem sua previsibilida<strong>de</strong> nos programas<br />

sociais 12 ), como almoços, presentes, visitas sociais, entrega <strong>de</strong> medicamentos, transportes<br />

para acesso e uso <strong>de</strong> serviços públicos e auxílio na tramitação <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> aposentadoria,<br />

entre outros.<br />

A venalização, a negociação <strong>de</strong> tudo<br />

As modificações promovidas pela introdução <strong>de</strong> um projeto em <strong>de</strong>terminado território<br />

culminam, em geral, na redução a um equivalente monetário <strong>de</strong> toda e qualquer<br />

manifestação local <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> produção. A ocultação <strong>de</strong> muitos aspectos<br />

relevantes da vida – e mesmo <strong>de</strong> vidas – nesse processo <strong>de</strong> negociação certamente se dá<br />

menos por dificulda<strong>de</strong> técnica, do ponto <strong>de</strong> vista do empreen<strong>de</strong>dor, do que por pura<br />

malandragem mercantil. Assim é que os levantamentos e inventários, realizados sobretudo<br />

para subsidiar e dimensionar os programas <strong>de</strong> negociação e <strong>de</strong> aquisição das terras e<br />

benfeitorias, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> registrar as formas <strong>de</strong> reprodução, os recursos naturais <strong>de</strong><br />

subsistência e <strong>de</strong> trabalho, as fontes e os conversores energéticos (a lenha e o fogão a<br />

lenha, a serpentina, as quedas d’água), a horta, a pesca, as plantas medicinais, a criação <strong>de</strong><br />

pequenos animais, o pomar. Muito menos são consi<strong>de</strong>rados o uso da terra úmida, fértil,<br />

presente no quintal próximo ao rio e sua função piscosa, em sua dimensão material e<br />

simbólica (REBOUÇAS, 2000).<br />

No caso do povoado <strong>de</strong> Soberbo, <strong>de</strong>ntre as múltiplas ocultações, incluíram-se vidas,<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e processos <strong>de</strong> produção (por exemplo, não constou do inventário a<br />

importância da ativida<strong>de</strong> mineradora na complementação da renda <strong>de</strong> quase todas as<br />

famílias). Essa mágica foi feita pela combinação da pressão psicológica – “não fala que<br />

você é garimpeiro, senão você não vai ganhar nada...” – com o levantamento efetuado<br />

no chamado cadastro socioeconômico. 13 Aqui, cabe relembrar o papel dos doutores,<br />

comumente advogados, que, com postura <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>, entraram na vida dos atingidos<br />

<strong>de</strong> forma a assegurar o domínio do Consórcio sobre eles.<br />

Aliás, a expansão capitalista sobre e sob os homens ten<strong>de</strong>u, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, a reduzir tudo<br />

a meras relações monetárias. Na construção <strong>de</strong> uma usina hidrelétrica, a negociação, ponta<strong>de</strong>-lança<br />

do empreendimento na comunida<strong>de</strong>, é feita para remover obstáculos. Sob a perspectiva<br />

empresarial, tudo e todos são reduzidos a mercadores: inicialmente, <strong>de</strong> bens, <strong>de</strong><br />

lugares; <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> trabalho. Os habitantes locais passam a negociadores – bobos ou espertos<br />

– e por isso <strong>de</strong>vem ser, na lógica empresarial, sempre que possível, superados.<br />

Dona Nair e Dona Chica, soberanas, do alto respectivamente dos seus 100 e 70 anos<br />

<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, sentadas <strong>de</strong> um lado da mesa, e o doutor, do outro, iniciam a negociação da<br />

horta e do quintal. Quanto valem? Para o doutor, todo atingido é um “esperto” que<br />

12<br />

Existiram diversos programas sociais <strong>de</strong>senvolvidos<br />

no PCA, cujas análises não fazem<br />

parte <strong>de</strong>ste artigo.<br />

13<br />

Em 13/11/1998, a Fundação Estadual do Meio<br />

Ambiente (FEAM) enviou correspondência ao<br />

empreen<strong>de</strong>dor solicitando informações complementares,<br />

na qual dizia que,“[...]com relação<br />

ao garimpo não há dados sobre a importância<br />

da ativida<strong>de</strong> em termos sociais e<br />

econômicos[...] Além disso não foram avaliados<br />

os impactos sobre tais ativida<strong>de</strong>s, em função<br />

do alagamento da área, nem planejadas<br />

medidas compensatórias na hipótese <strong>de</strong> supressão<br />

da mesma” e também que “[...]<strong>de</strong>ve<br />

ser ressaltado que em áreas on<strong>de</strong> predominam<br />

a pequena agricultura familiar é comum<br />

a recorrência <strong>de</strong> produtores em ativida<strong>de</strong>s<br />

informais, sobretudo as <strong>de</strong> natureza extrativa,<br />

como forma <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> complemento <strong>de</strong><br />

renda familiar... ”, acrescentando que “[...]a<br />

ativida<strong>de</strong> pesqueira embora referida nos estudos<br />

ictiofaunísticos, ressente-se <strong>de</strong> abordagem<br />

socio-econômica[...]” (Ofício FEAM/<br />

DIEN/externo/102/98). Não houve, claro, dificulda<strong>de</strong><br />

conceitual ou metodológica.<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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ambiciona explorar ao máximo a empresa; portanto, compete a ele a tarefa <strong>de</strong> minimizar<br />

os custos. Essa é a lógica. Para as senhoras, quanto mais antigo o lugar, mais valioso; para<br />

ele, menos vale e mais <strong>de</strong>preciado <strong>de</strong>ve ser. Nessa empreitada, o doutor teve um “caminhão”<br />

<strong>de</strong> apoiadores que, <strong>de</strong>senvolvendo um serviço <strong>de</strong> base, <strong>de</strong>squalificavam o mundo<br />

do atingido: “veja bem, você mora em um buraco, sua casa não tem laje, o reboco e as<br />

janelas são velhos, o banheiro é feio, não tem azulejo”. Ao que uma moradora respon<strong>de</strong>u,<br />

quase em <strong>de</strong>sespero: “E eu como azulejo?”.<br />

Os atingidos chamavam, àquela altura, os técnicos da área social <strong>de</strong> “meninos <strong>de</strong> recado”.<br />

Em um <strong>de</strong>terminado momento, os móveis das casas foram medidos para comprovar<br />

se caberiam nas novas casas, em Nova Soberbo. E os móveis, verificou-se, não<br />

caberiam. Os atingidos imploravam: “queremos falar com Deus, com o dono da Alcan,<br />

com quem manda”.<br />

A abordagem venalizante abstrai do conjunto, daquele sistema complexo e <strong>de</strong>licado<br />

que combina tempo, espaço, memória, presente e futuro, alguns poucos aspectos da<br />

vida, agora <strong>de</strong>sagregados, <strong>de</strong>sarranjados, como coisas <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> significados e reduzidas<br />

a um frio valor abstrato, a valor <strong>de</strong> troca.<br />

Desrespeitosa, ditatorial, <strong>de</strong>sumana, arrogante: é assim que os atingidos e mesmo outros<br />

interlocutores locais – os mais ou os menos críticos – adjetivam a relação que as<br />

empresas estabeleceram com eles. Por outro lado, a crença dos empreen<strong>de</strong>dores em um<br />

controle total, e quiçá <strong>de</strong>finitivo, sobre as famílias baseou-se na hegemonia exercida pelos<br />

proprietários e políticos tradicionais do lugar, bem como na supervisão direta dos<br />

doutores. As resistências foram sendo aparentemente aniquiladas.<br />

14<br />

A diretoria da associação era constituída<br />

exclusivamente por proprietários <strong>de</strong> terra<br />

e comerciantes, todos eles homens e brancos.<br />

Ainda assim, nas reuniões comunitárias,<br />

a mesa era composta e os trabalhos dirigidos,<br />

sempre, pelos representantes do Consórcio<br />

Candonga.<br />

A associação dos atingidos<br />

Após anularem a energia política do lugar em sua expressão autônoma, as empresas<br />

trataram <strong>de</strong> criar uma interlocução controlada: uma associação <strong>de</strong> atingidos (proprietários<br />

e moradores) que atuasse sob a influência dos segmentos locais dominantes. 14 Durante o<br />

processo, pelo menos dois dos dirigentes <strong>de</strong>ssa associação tornaram-se fornecedores do<br />

empreendimento: vendiam areia, pães e porcos. Um <strong>de</strong>sses fornecedores <strong>de</strong>tinha inclusive<br />

a concessão dos serviços da única lanchonete presente no canteiro <strong>de</strong> obras. Desse modo,<br />

mesmo que quisessem — e não seria esse o caso —, dificilmente os associados dirigentes<br />

po<strong>de</strong>riam se opor frontalmente ao empreen<strong>de</strong>dor, seu cliente principal ou exclusivo.<br />

Em pouco tempo a associação <strong>de</strong>smobilizou-se. Ao final, contava apenas com seu<br />

presi<strong>de</strong>nte; é possível que os <strong>de</strong>mais membros tenham resolvido precocemente suas<br />

pendências. Hoje, à distância, é fácil perceber que ela acabou se tornando a principal<br />

fiadora e legitimadora do processo <strong>de</strong> negociação, no aconselhamento tanto aos representantes<br />

do empreendimento quanto aos atingidos, porquanto <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> informações<br />

privilegiadas.<br />

Certo é que a formação <strong>de</strong>ssa associação, em conluio com os setores político e econômico<br />

dominantes, está a sugerir que o tratamento aparentemente homogêneo conferido<br />

aos moradores intenciona, na verda<strong>de</strong>, ignorar a existência entre eles <strong>de</strong> relações prece<strong>de</strong>ntes<br />

hierarquizadas, para facilitar sua manipulação pelo estranho que chega. Além dis-<br />

78<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


so, formas já existentes <strong>de</strong> domínio pré-capitalistas, como a parceria e o colonato, ao<br />

lado <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> base clientelista, dificultam o reconhecimento dos direitos dos<br />

trabalhadores rurais frente à necessida<strong>de</strong> dos proprietários <strong>de</strong> terras, patrões, políticos e<br />

seus cabos eleitorais tradicionais <strong>de</strong> perpetuarem o status quo. Como aceitar que um empregado<br />

seu, sem terra própria, passe <strong>de</strong> repente a ser proprietário, a ficar igual a ele? Esse<br />

vetor atua como base <strong>de</strong> apoio fundamental para o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spolitização, com o<br />

fim <strong>de</strong> legitimar o processo <strong>de</strong> licenciamento.<br />

A fundação da resistência<br />

Houve uma data em Candonga, mais especialmente em São Sebastião do Soberbo, <strong>de</strong><br />

fundação da resistência: 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2003. Nesse dia começou, <strong>de</strong> fato, o movimento <strong>de</strong><br />

resistência <strong>de</strong> Candonga. Foi ali, durante uma reunião da qual participavam representantes<br />

da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), um diretor do Consórcio e o presi<strong>de</strong>nte<br />

da então moribunda associação dos atingidos, mas sem a presença dos doutores, até então<br />

os mediadores <strong>de</strong> qualquer negociação, que os atingidos restabeleceram os vínculos<br />

horizontais rompidos pela verticalida<strong>de</strong> 15 do processo. O que ocorreu, então, foi uma<br />

catarse coletiva. A própria representante da FEAM, ao ser indagada se os requisitos exigidos<br />

no projeto original <strong>de</strong> construção da Nova Soberbo vinham sendo cumpridos, respon<strong>de</strong>u<br />

com um sonoro “não”.<br />

Essa situação <strong>de</strong>correu do fato <strong>de</strong> que a politização do conflito, <strong>de</strong> latente, se manifestou,<br />

gradual ou simultaneamente, em magnitu<strong>de</strong>s e escalas distintas, subvertendo hierarquias<br />

à medida em que foram sendo estabelecidas alianças.<br />

Importa observar que não se tratou, ali, da exigência imediata <strong>de</strong> novos direitos, mas<br />

<strong>de</strong> serem os atingidos, todos eles, reconhecidos como <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> direitos.<br />

A análise <strong>de</strong> conflitos permite estabelecer tipologias para que se possa agrupá-los<br />

por similarida<strong>de</strong>, segundo critérios tais como intensida<strong>de</strong>, visibilida<strong>de</strong>, amplitu<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>senvolvimento e formas <strong>de</strong> institucionalização. Eles po<strong>de</strong>m ser concebidos como<br />

positivos ou problemáticos, ou ser arranjados no esquema classe em si e classe para si e,<br />

até, em mo<strong>de</strong>los mais pragmáticos. Tais possibilida<strong>de</strong>s encontram-se atreladas a escolhas<br />

que nos permitem respon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que lado estamos. Becker (1976, p.125), por<br />

exemplo, apresenta dois tipos ou estados <strong>de</strong> conflito: o “apolítico”, quando não se<br />

procura inverter posições na hierarquia, e o “político”, quando os atores subalternos,<br />

organizados, tentam inverter a relação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e autorida<strong>de</strong>. Nessa mesma<br />

perspectiva, Lemos (1999, p.168) verifica que a luta dos povos atingidos geralmente<br />

passa <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> “<strong>de</strong>fensiva” para uma “ativa” e “propositiva”. Já Ferreira e<br />

Ferreira (1995, p.17), ao analisarem a emergência <strong>de</strong> problemas ambientais, abordam<br />

os conflitos, apoiando-se em uma hierarquia <strong>de</strong> manifestações <strong>de</strong> contradições:<br />

carências, necessida<strong>de</strong> diluída, representações, reivindicações, <strong>de</strong>mandas e institucionalização.<br />

Pereira (2002), em estudo sobre a participação pública na gestão<br />

ambiental das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação da Serra do Cipó, combina vários mo<strong>de</strong>los<br />

para a apreensão <strong>de</strong> “tensões <strong>de</strong> naturezas diversas <strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong> múltiplas escalas:<br />

locais, regionais, metropolitanas, nacionais e até internacionais” produzidas por atores,<br />

15<br />

“A horizontalida<strong>de</strong> tema ver com o território,<br />

enquanto a verticalida<strong>de</strong> já não tem; tem<br />

a ver com alguns pontos do território que são<br />

os pontos <strong>de</strong> amarração <strong>de</strong>ssa racionalida<strong>de</strong><br />

alheia e que se instala sem respeito pelo que<br />

já existe” (SANTOS, 2002, p. 41).<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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“agentes <strong>de</strong> promoção do espaço”, portadores <strong>de</strong> interesses variados. Honneth (2003,<br />

p. 257) <strong>de</strong>fine a luta social como<br />

[...] processo prático no qual experiências individuais <strong>de</strong> <strong>de</strong>srespeito são interpretadas como<br />

experiências cruciais típicas <strong>de</strong> um grupo inteiro, <strong>de</strong> forma que eles po<strong>de</strong>m influir [...] na exigência<br />

coletiva para relações ampliadas <strong>de</strong> reconhecimento.<br />

Uma articulação entre as categorias interesse, <strong>de</strong> base material e utilitária, vinculada à<br />

reprodução material, e reconhecimento, <strong>de</strong> base moral, vinculada à integrida<strong>de</strong> psíquica e <strong>de</strong><br />

caráter normativo, é proposta. Martinez (1997), ao discutir manejos alternativos <strong>de</strong> conflitos<br />

ambientais, foca-os como manifestações <strong>de</strong> interesses distintos dos atores sociais<br />

em um mesmo problema <strong>de</strong>rivado da <strong>de</strong>terioração ambiental ou <strong>de</strong> disputas territoriais,<br />

<strong>de</strong> forma a causar impactos no acesso aos recursos naturais e aos serviços <strong>de</strong> infraestrutura.<br />

Os conflitos seriam constituídos, basicamente, por quatro elementos: a) posições<br />

em <strong>de</strong>sacordo ou formas culturais <strong>de</strong> argumentar diferentes, colocadas em oposição;<br />

b) distribuição dos recursos; c) percepção da situação (por exemplo: terra como<br />

fator <strong>de</strong> produção e terra como lugar sagrado); e, finalmente, d) interesses objetivos<br />

contraditórios. Uma situação torna-se conflituosa quando os meios convencionais e o<br />

diálogo doméstico não são suficientes para resolver situações problemáticas.<br />

Little (2001) e Frota (2001) também apresentam conceitos, tipologias e tratamentos<br />

para a apreensão e resolução <strong>de</strong> conflitos socioambientais. Little alinha “povos <strong>de</strong><br />

ecossistema”, <strong>de</strong> um lado, e “povos da biosfera”, <strong>de</strong> outro. Entre os primeiros, estão as<br />

populações tradicionais; entre os segundos, os povos urbanos. Assim, ele orienta o olhar<br />

para fissuras espacialmente verticalizadas, como o “choque entre distintos sistemas <strong>de</strong><br />

produção”. A mesma rigi<strong>de</strong>z marca o recorte espacial, subordinando o tratamento dos<br />

conflitos à escala <strong>de</strong> seus efeitos. Outros autores, ao contrário, também analisando especificamente<br />

conflitos socioambientais, enfatizam seu potencial para “politizar” (BECKER,<br />

1976, p. 125) a contradição. Como exemplo, citam a consolidação e a crescente capacida<strong>de</strong><br />

catalisadora (BRAGA, 2000, p. 333) e <strong>de</strong> articulação do Movimento <strong>de</strong> Atingidos<br />

por Barragens/MAB (OLIVEIRA e ROTHMAN, 2005), capaz, num primeiro momento, <strong>de</strong><br />

influenciar, <strong>de</strong>cisiva e imediatamente, políticas energéticas do setor elétrico, mas também,<br />

em outro nível, <strong>de</strong> criar condições para a emergência <strong>de</strong> novas visões. Vainer (1996,<br />

p. 200) <strong>de</strong>svincula escala e âmbito <strong>de</strong> manifestação do tratamento <strong>de</strong> conflitos, pois<br />

[...] as populações que se mobilizam contra os projetos hidrelétricos em construção ou projetados<br />

encontram uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que transcen<strong>de</strong> o conflito em torno <strong>de</strong> cada obra em particular, e se<br />

percebem como categorias sociais mais amplas que incluem outros tantos atingidos, seja por<br />

barragens, seja por outros feitos (e efeitos) das políticas governamentais.<br />

Em Candonga, esse momento, emblemático, se pensado como inversão <strong>de</strong> hierarquias<br />

<strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong>s ou como relações ampliadas <strong>de</strong> reconhecimento, foi precedido <strong>de</strong> um intenso<br />

trabalho <strong>de</strong> articulação interna e externa. Os eventos e movimentos que se <strong>de</strong>senrolaram<br />

foram, principalmente, a mobilização dos atingidos <strong>de</strong> Soberbo, o esforço das<br />

li<strong>de</strong>ranças para aglutinar novos atores à luta — os atingidos indiretos — e o reconheci-<br />

80<br />

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Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


mento <strong>de</strong> novos direitos, inclusive das promessas, bem como a articulação com o Movimento<br />

<strong>de</strong> Atingidos por Barragens - MAB nos âmbitos nacional e internacional 16 e, no<br />

âmbito regional, com os atingidos pela Hidrelétrica <strong>de</strong> Fumaça, no município vizinho <strong>de</strong><br />

Diogo Vasconcelos, que travavam uma luta bem sucedida contra a ALCAN. 17<br />

Nas visitas realizadas casa a casa, a primeira articulação organizada autônoma dos<br />

atingidos verificou a gran<strong>de</strong> insatisfação incubada das famílias com o não-reconhecimento<br />

<strong>de</strong> seus direitos ou com a atuação da antiga associação. O <strong>de</strong>sagrado silencioso e individual<br />

transformou-se em revolta, em conflito aberto e coletivo, no momento em que se<br />

transformou em certeza a <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> que havia uma relação direta entre os problemas<br />

vividos pela maioria e o sucesso obtido pelos lí<strong>de</strong>res antigos. Os privilégios por esses<br />

auferidos ocorriam às custas do controle que exerciam sobre os atingidos, silenciandoos,<br />

no <strong>de</strong>sconhecimento ou na inaplicação <strong>de</strong> seus direitos, como ocorreu com os meeiros<br />

e garimpeiros, negligenciados no cadastramento inicial e em outras etapas do projeto.<br />

Esse processo, contudo, sustentou-se apenas enquanto as famílias ainda acreditavam<br />

estar fazendo uma boa negociação individual. As contradições estavam abafadas, no<br />

subterrâneo, impedidas <strong>de</strong> aflorar em razão do trabalho <strong>de</strong> cooptação, do controle psicológico<br />

e mesmo <strong>de</strong>vido à mencionada crença na execução <strong>de</strong> um “bom negócio”,<br />

“melhor do que o do vizinho”. Até porque, naquele instante, estavam inconclusas todas<br />

as negociações, e as comparações entre as in<strong>de</strong>nizações não passavam <strong>de</strong> pura especulação,<br />

pois um não sabia o que o outro realmente acordara com o empreen<strong>de</strong>dor.<br />

Pelo menos dois fatos principais vieram <strong>de</strong>spertar os conflitos: a construção das casas<br />

em Nova Soberbo – pequenas, sem colunas <strong>de</strong> sustentação e localizadas “no buraco”<br />

(muitas <strong>de</strong>las estavam bem abaixo ou bem acima do nível da rua) – e a percepção <strong>de</strong><br />

que, com o esgotamento do prazo para saída da área <strong>de</strong> alagamento, as promessas, a não<br />

ser as feitas aos lí<strong>de</strong>res, não haviam sido cumpridas.<br />

Nesse ponto ressalta-se a visível prosperida<strong>de</strong> dos lí<strong>de</strong>res tradicionais (“ficaram podres<br />

<strong>de</strong> ricos”), que os <strong>de</strong>sautorizou e eliminou sua credibilida<strong>de</strong>. Os doutores já haviam<br />

feito o trabalho duro <strong>de</strong> conseguir a maioria das assinaturas dos contratos <strong>de</strong> compra<br />

dos imóveis. 18 Entretanto, uma crise promovida pela cassação do mandato do prefeito<br />

do município <strong>de</strong> Santa Cruz do Escalvado instalou-se e criou um vácuo político. O vazio<br />

foi, então, imediatamente ocupado por uma força emergente ligada aos garimpeiros, aos<br />

meeiros, aos colonos e aos moradores comuns, até então ignorados, invisíveis, sem expressão<br />

política evi<strong>de</strong>nte. Antes, era comum a falta <strong>de</strong> espaço para a manifestação ou<br />

resolução efetiva <strong>de</strong> seus interesses, ainda que individuais, como mandava a regra do<br />

jogo impingida pelo consórcio. Esses atingidos mandavam então recados angustiados e<br />

ameaçadores, porém nunca levados a sério: “manda falar com o doutor que se ele não<br />

resolver meu problema eu vou juntar uns cem”; “eu vou parar <strong>de</strong> ajudar, se o doutor<br />

não resolver o meu negócio, e olha que o pessoal tá nervoso”.<br />

Nessa época, a única forma <strong>de</strong> comunicação efetiva com as empresas acontecia após<br />

humilhante e constrangedora espera, em uma fila semanal ou quinzenal, na porta do escritório<br />

do Consórcio em Soberbo. Por cerca <strong>de</strong> três horas, o negociador recebia, individual<br />

e privadamente, os moradores. Como, nesse período, toda a energia do atingido era<br />

16<br />

O caso Candonga foi relatado em Genebra,<br />

Suíça, durante reunião da Comissão <strong>de</strong> Direitos<br />

Humanos da Organização das Nações Unidas,<br />

realizada <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> março a 22 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong><br />

2005. Pe Claret e Joaquim Bernardo, representantes<br />

do MAB e dos Atingidos pela UHE<br />

Candonga participaram da reunião no dia 11<br />

<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2005 (ROTHMAN, 2005).<br />

17<br />

A região do Alto Rio Doce apresenta um<br />

importante histórico <strong>de</strong> lutas <strong>de</strong> resistência<br />

contra barragens, inclusive com a conquista<br />

da negação da licença para a Hidrelétrica <strong>de</strong><br />

Pilar (ROTHMAN, 2003). No município <strong>de</strong> Ponte<br />

Nova, pólo microrregional, há uma representação<br />

local do Movimento <strong>de</strong> Atingidos por<br />

Barragem – MAB.<br />

18<br />

Comenta-se, entre os consultores, que a<br />

obtenção <strong>de</strong> 80% <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são ou <strong>de</strong> assinatura<br />

<strong>de</strong> contratos é um índice satisfatório. Os 20%<br />

restantes dificilmente resistirão às ofertas ou,<br />

então, serão <strong>de</strong>sapropriados.<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto Doralice Barros Pereira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

81


19<br />

Uso, aqui, no sentido discutido por O<strong>de</strong>tte<br />

Seabra (1996, p. 71) ao analisar a obra <strong>de</strong><br />

Henri Lefebvre, confrontando uso e troca,<br />

apropriação e proprieda<strong>de</strong>: “A crítica radical<br />

implicada no conceito <strong>de</strong> apropriação esclarece<br />

a proprieda<strong>de</strong>, no limite, como não-apropriação,<br />

como paródia, como caricatura, como<br />

restrição à apropriação concreta. Isso se dá<br />

porque a apropriação está referenciada a<br />

qualida<strong>de</strong>s, atributos, ao passo que a proprieda<strong>de</strong><br />

está referenciada a quantida<strong>de</strong>s, a<br />

comparações quantitativas, igualações formais,<br />

ao dinheiro[...]”.<br />

queimada na negociação do seu próprio caso, questões coletivas gerais não eram pleiteadas.<br />

Após as confabulações, os atingidos saíam dizendo: “o doutor vai ver com o Consórcio<br />

em Belo Horizonte”; “o doutor disse que não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>le”; “ele vai resolver para<br />

mim, só que eu tenho que esperar um pouco, até resolver outros problemas”.<br />

Com o aparecimento dos novos protagonistas, a primeira atitu<strong>de</strong> das empresas foi a<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>squalificá-los, não os reconhecendo politicamente como interlocutores no processo.<br />

Concomitantemente, voltaram a fortalecer a equipe social <strong>de</strong> campo, <strong>de</strong>mitindo o<br />

pessoal anterior e efetuando novas contratações, além <strong>de</strong> saldarem dívidas e cumprirem<br />

promessas sempre adiadas. Inabalável, perdurou a estratégia <strong>de</strong> cooptação. Várias foram<br />

as tentativas <strong>de</strong> esvaziar o movimento, radicalizando as negociações tanto no varejo, com<br />

repercussões no tempo (respostas rápidas, tentando neutralizar ou evitar a<strong>de</strong>sões ao<br />

movimento) e nos valores (uma súbita generosida<strong>de</strong> se verificou), quanto no atacado,<br />

por meio da distribuição <strong>de</strong> comunicados impressos, casa a casa, e busca <strong>de</strong> apoio junto<br />

às prefeituras em troca do repasse a estas <strong>de</strong> recursos para obras e ações extraordinárias<br />

(iluminação <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> futebol e financiamento <strong>de</strong> exames médicos, <strong>de</strong>ntre outras).<br />

Travou-se, assim, uma guerra <strong>de</strong> comunicação, durante a qual o Consórcio era assessorado<br />

por um consultor <strong>de</strong> outro Estado. Sintomaticamente, substituiu-se, na gerência<br />

ambiental, um psicólogo por um veterinário, mais talhado para “jogar duro”, nas palavras<br />

<strong>de</strong> um funcionário. Agora, não se fazia mais necessário carinho, mas jogo bruto.<br />

Integrantes do que diziam ser a “inteligência” da CVRD também passaram a freqüentar a<br />

região. A principal tática passou a ser a <strong>de</strong> tentar neutralizar o <strong>de</strong>scontentamento geral<br />

por meio do chamado efeito multiplicador, utilizando aquelas pessoas que, supunha-se,<br />

tinham maior capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> influir sobre um <strong>de</strong>terminado grupo <strong>de</strong> pessoas atingidas.<br />

Parecia que o importante era não ce<strong>de</strong>r, não abrir prece<strong>de</strong>ntes, muito mais do que evitar<br />

gastos. Per<strong>de</strong>r o controle equivaleria à pior das hipóteses.<br />

Os atingidos respon<strong>de</strong>ram com pressões diretas sobre o pessoal <strong>de</strong> campo do<br />

Consórcio, intensa mobilização, por meio da organização <strong>de</strong> assembléias, e montagem<br />

<strong>de</strong> uma pauta <strong>de</strong> reivindicações. Certa ocasião, em Soberbo, funcionários do<br />

Consórcio foram cercados por <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> atingidos e instados a transmitir um recado<br />

(pois não eram, afinal, “meninos <strong>de</strong> recado”?) aos dirigentes: “<strong>de</strong>veriam começar<br />

a negociar do contrário, haveria a ocupação da obra”. E assim foi feito: os atingidos<br />

ocuparam o canteiro <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Candonga, <strong>de</strong>monstrando capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> luta,<br />

mobilização e organização surpreen<strong>de</strong>ntes. Vale registrar que tal ocupação gerou<br />

processos contra três dos lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> apoio à luta dos atingidos, entre eles um <strong>de</strong>putado<br />

estadual <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais: “quatro a dois”<br />

Esse jogo <strong>de</strong>sigual ainda não terminou, e provavelmente longe está seu encerramento.<br />

Certamente ele expressa apenas uma batalha <strong>de</strong>ntre as inúmeras em disputa no cenário<br />

brasileiro e mundial pelo controle e uso 19 do território. Guardadas as <strong>de</strong>vidas proporções,<br />

as experiências <strong>de</strong> resistência dos iraquianos e a dos atingidos <strong>de</strong> Candonga têm algo em<br />

comum: quem escon<strong>de</strong> o que <strong>de</strong> quem?<br />

82<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Conflitos socioambientais e resistências no/do projeto hidrelétrico <strong>de</strong> Candonga


Em Candonga, foi admirável a quase virada que a luta dos atingidos conquistou já no<br />

final do segundo tempo. Mas foram muitas as vitórias: casas distribuídas em lotes padronizados<br />

por quadras; casas com colunas; casas em terrenos planos, no nível da rua;<br />

casas com cores variadas e mo<strong>de</strong>rnas; quintais um pouco maiores; terreno para “simular”<br />

um quintal, porque não contíguo à residência, com inclinação <strong>de</strong> quase 45º (dificultando<br />

a irrigação) e <strong>de</strong> solo nu ou pedregoso; ajudas <strong>de</strong> custo em espécie, calculadas com base<br />

no valor do salário mínimo, e uma cesta básica durante período <strong>de</strong>terminado (reivindicações<br />

sugeridas pelo MAB); reconhecimento da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se ampliarem o direito e<br />

o número <strong>de</strong> atingidos sob a condição <strong>de</strong> garimpeiros e meeiros; mudança na localização<br />

do assentamento dos atingidos <strong>de</strong> Marimbondo, que pu<strong>de</strong>ram ficar juntos, numa<br />

mesma fazenda, ainda que “mais acima e sem o rio”.<br />

Aqueles que reclamaram conquistaram o direito à fala e o <strong>de</strong> serem ouvidos, contribuindo,<br />

ainda, para a revisão dos procedimentos no licenciamento ambiental, 20 com o<br />

<strong>de</strong>snudamento da falácia dos programas ambientais socioeconômicos, da “comunicação<br />

social” e dos rituais <strong>de</strong> participação, como a audiência pública. Os atingidos <strong>de</strong><br />

Candonga constituem-se no exemplo cabal, especialmente para outros ribeirinhos ameaçados<br />

pela construção <strong>de</strong> barragens, da importância da luta, <strong>de</strong> como ela po<strong>de</strong> provocar<br />

mudanças nas opiniões e mentalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> outros indivíduos. Na verda<strong>de</strong>, foi uma<br />

lição para eles próprios, a respeito <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir resultados, o que<br />

resultou até numa elevação da auto-estima daquele povo.<br />

A luta dos atingidos <strong>de</strong> Candonga ofereceu ainda mais visibilida<strong>de</strong> à questão<br />

socioambiental que envolve a construção <strong>de</strong> hidrelétricas, colocando-a <strong>de</strong>finitivamente<br />

na agenda política e acadêmica. Que outras retóricas adotarão os doutores para repartir e<br />

justificar a distribuição <strong>de</strong>sigual das benesses? Quais outras táticas e estratagemas serão<br />

aplicados nos próximos projetos, consi<strong>de</strong>rando que a concepção <strong>de</strong>senvolvimentista<br />

ainda perdura para diversos segmentos econômicos, sociais, políticos?<br />

De acordo com informações do Movimento dos Atingidos por Barragens, (MAB,<br />

2005), a luta continua em Candonga:<br />

A virada do ano novo foi festejada pelos atingidos acampados em área prevista pelo Consórcio<br />

Candonga – sem consulta aos atingidos – para ser local <strong>de</strong> reativação econômica das famílias <strong>de</strong><br />

Nova Soberbo. As famílias, que somam mais <strong>de</strong> 100 pessoas, estão se revezando, acampadas no<br />

local <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia 13.12.04, completando hoje 24 dias. Elas aguardam solução para o impasse<br />

criado pela prepotência das empresas Vale e Alcan e querem o direito, garantido pela Lei 12.812 <strong>de</strong><br />

escolha <strong>de</strong> terra fértil para a sobrevivência e reativação econômica. O Conselho Estadual <strong>de</strong> Assistência<br />

Social (CEAS) confirmou vistoria no local para o dia 07.01, e no dia 08.01.05, sábado, a partir <strong>de</strong><br />

09hs, no Centro Comunitário <strong>de</strong> Rio Doce, haverá novo lançamento do livro Atingidos e barrados<br />

- As violações dos direitos humanos na hidrelétrica <strong>de</strong> Candonga, com <strong>de</strong>bate e presença <strong>de</strong> várias<br />

autorida<strong>de</strong>s, entre elas o Deputado Pe. João Carlos (PT) e representantes da Justiça Global (RJ).<br />

A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em seus diversos movimentos, já liberou a negociação do cotidiano,<br />

dos laços, das práticas sociais, enfim, da realida<strong>de</strong> vivida <strong>de</strong> cada um e <strong>de</strong> todos, sem<br />

esbarrar em permanências, recusas e resistências?<br />

20<br />

“O que <strong>de</strong>sestabiliza consensos estabelecidos<br />

e instaura o litígio é quando esses personagens<br />

comparecem na cena política como<br />

sujeitos portadores <strong>de</strong> uma palavra que exige<br />

o seu reconhecimento[...]”(TELLES, 1999,<br />

p.180). contra a soberba: conflitos socioambientais<br />

na hidrelétrica <strong>de</strong> Candonga<br />

artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado agosto/2005<br />

Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto Doralice Barros Pereira<br />

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VASCONCELLOS,<br />

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Biomassa: a eterna<br />

energia do futuro. São<br />

Paulo: SENAC, 2002.<br />

ZHOURI, Andréa e<br />

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Desterritorialização <strong>de</strong><br />

Populações Locais:<br />

conflitos<br />

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In: ZHOURI, Andréa<br />

(Org.); LASCHEFSKI,<br />

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social do setor elétrico<br />

brasileiro e da<br />

legislação ambiental:<br />

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Belo Horizonte 01(1) 70-85 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto Doralice Barros Pereira<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

85


Adriana Miranda-Ribeiro<br />

Doutoranda em Demografia - Ce<strong>de</strong>plar/UFMG<br />

Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Bolsista PRODOC do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Geografia/UFMG<br />

Doutor em Demografia - Ce<strong>de</strong>plar/UFMG<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte:<br />

uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos 1<br />

1<br />

Este artigo é uma versão atualizada do trabalho<br />

apresentado na Sessão <strong>de</strong> Demografia<br />

Brasileira da Conferência Internacional da<br />

IUSSP, 2001.<br />

Resumo<br />

O artigo investiga a relação entre segregação<br />

social e segregação espacial em Belo Horizonte,<br />

a partir da aplicação do método FANNY – Fuzzy<br />

Analysis – aos dados da Contagem Populacional<br />

<strong>de</strong> 1996, e da utilização da cartografia temática.<br />

O método FANNY gerou um indicador <strong>de</strong><br />

segregação social, a partir da criação <strong>de</strong> dois<br />

clusters, representando os dois extremos da<br />

condição social. O indicador <strong>de</strong> segregação social<br />

foi <strong>de</strong>finido como grau <strong>de</strong> associação do setor<br />

censitário ao cluster <strong>de</strong> condições sociais menos<br />

favoráveis. A segregação espacial foi <strong>de</strong>finida pela<br />

característica <strong>de</strong> ocupação do setor censitário. Os<br />

resultados confirmaram a hipótese <strong>de</strong> forte<br />

relação entre as duas formas <strong>de</strong> segregação em<br />

Belo Horizonte. Além disso, verificou-se a<br />

utilida<strong>de</strong> do método utilizado para a construção<br />

<strong>de</strong> indicadores sociais para pequenas áreas.<br />

Abstract<br />

The paper investigates the relationship between social<br />

segregation and spatial segregation in Belo Horizonte,<br />

state capital of <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brazil, based on the<br />

application of fuzzy analysis (FANNY), as well as<br />

on the use of thematic cartography. The FANNY<br />

method produced a social segregation in<strong>de</strong>x through<br />

the creation of two clusters, representing the two<br />

extremes of the social condition. The social segregation<br />

indicator was <strong>de</strong>fined as the association <strong>de</strong>gree of the<br />

census tract to the cluster of less favorable social<br />

conditions. The spatial segregation was <strong>de</strong>fined by the<br />

census tracts characteristics of occupation. The results<br />

confirmed the hypothesis of strong relationship<br />

between the social and spatial segregation in Belo<br />

Horizonte. In addition, the method was useful in the<br />

construction of social indicators for small areas.<br />

ricaadri@gmail.com<br />

Palavras-chave segregação social; segregação<br />

espacial; indicadores sociais; análise <strong>de</strong> cluster.<br />

Keywords social segregation; spatial segregation;<br />

social in<strong>de</strong>x; cluster analysis.<br />

86<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte: uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos


Introdução<br />

O processo <strong>de</strong> urbanização no Brasil teve início em 1930, com a quebra da hegemonia<br />

agrícola, mas foi entre 1940 e 1980 que se <strong>de</strong>u a verda<strong>de</strong>ira inversão quanto ao local <strong>de</strong><br />

residência da população brasileira, com a população urbana superando em tamanho a<br />

população rural (SANTOS, 1996). Aliado ao processo <strong>de</strong> urbanização, o processo <strong>de</strong><br />

industrialização gerou a expansão do mercado <strong>de</strong> trabalho, criando um enorme número<br />

<strong>de</strong> empregos urbanos, e permitiu a integração <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da população à socieda<strong>de</strong><br />

urbano-industrial. Esse dinamismo atraiu gran<strong>de</strong>s parcelas da população, que passaram a<br />

se concentrar nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, principalmente nas metrópoles.<br />

No Brasil, como nos <strong>de</strong>mais países em <strong>de</strong>senvolvimento, a distribuição <strong>de</strong> benefícios<br />

e custos tem sido <strong>de</strong>sigual, com nítido favorecimento das classes <strong>de</strong> renda mais alta. Isso<br />

acontece porque os maiores ganhos, que são incorporados ao preço da terra urbana, ao<br />

capital e ao salário, beneficiam predominantemente os proprietários <strong>de</strong> terras, os donos<br />

do capital e os trabalhadores com qualificações valorizadas, enfim, <strong>de</strong>vido a todos aqueles<br />

fatores que não contemplam os segmentos inferiores da distribuição <strong>de</strong> renda ou <strong>de</strong><br />

riqueza (FAVA, 1984).<br />

Isso mostra o quanto o mo<strong>de</strong>lo econômico que tem sido adotado no país é concentrador<br />

e exclu<strong>de</strong>nte. Desse modo, a expansão urbana tem se apoiado numa socieda<strong>de</strong> com<br />

distribuição <strong>de</strong> renda bastante <strong>de</strong>sigual. A pobreza aparece, então, como um fenômeno<br />

generalizado, principalmente nas regiões metropolitanas – ainda que <strong>de</strong> forma diferenciada<br />

entre o nor<strong>de</strong>ste e o sul do país –, revelando <strong>de</strong> maneira indiscutível as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

sociais (SANTOS, 1996). Esse contexto <strong>de</strong> pobreza e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s faz surgir segmentos<br />

excluídos da or<strong>de</strong>m social, os socialmente segregados, sem acesso aos serviços básicos<br />

<strong>de</strong> infra-estrutura urbana e com acesso limitado aos serviços sociais, como saú<strong>de</strong> e educação,<br />

e acesso marginal ao mercado <strong>de</strong> trabalho (CAIADO, 1998).<br />

De acordo com Vainer (1998), essas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s acarretam uma forma <strong>de</strong> ocupação<br />

em que os habitantes se fecham em <strong>de</strong>terminadas áreas segundo o po<strong>de</strong>r, o status ou a<br />

riqueza que <strong>de</strong>têm. Condomínios fechados <strong>de</strong> luxo, conjuntos habitacionais populares e<br />

favelas vizinhas a bairros <strong>de</strong> classe alta são exemplos claros e freqüentes nas gran<strong>de</strong>s<br />

metrópoles. Visíveis ou não, as barreiras que separam os habitantes <strong>de</strong> uma mesma cida<strong>de</strong><br />

fragmentam o espaço construído e <strong>de</strong>finem o que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> segregação espacial.<br />

Em Belo Horizonte, as barreiras são bastante claras. Planejada e concebida, ao final do<br />

século XIX, durante a recém proclamada República, para ser a nova capital <strong>de</strong> <strong>Minas</strong><br />

<strong>Gerais</strong>, a cida<strong>de</strong> representava a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se ter uma capital mo<strong>de</strong>rna e mostrar a<br />

emergência <strong>de</strong> novas idéias e influências, o que se refletiu no traçado regular, nas gran<strong>de</strong>s<br />

avenidas e nas construções imponentes.<br />

A princípio, a ocupação <strong>de</strong>veria acontecer da seguinte maneira: a área interna ao<br />

perímetro da atual Av. do Contorno seria ocupada pela população mais favorecida<br />

economicamente (funcionários públicos, comerciantes etc.); às classes menos favorecidas<br />

(operários, empregados etc.) <strong>de</strong>stinar-se-ia a área suburbana, ou seja, fora do perímetro<br />

central. Assim, a ocupação <strong>de</strong>u-se <strong>de</strong> fora em direção ao centro, <strong>de</strong> forma não<br />

Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Adriana Miranda-Ribeiro Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

87


planejada ou, pior, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada. Aliados a isso, o crescimento da cida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

das ativida<strong>de</strong>s econômicas, o que certamente atraiu trabalhadores <strong>de</strong> outras<br />

localida<strong>de</strong>s, fizeram com que populações <strong>de</strong> classe mais baixa fossem ocupando vazios<br />

urbanos, <strong>de</strong> forma irregular, na busca <strong>de</strong> um lugar para morar e da proximida<strong>de</strong><br />

do local <strong>de</strong> trabalho. Com o passar do tempo, o crescimento e o empobrecimento da<br />

população consolidaram esse tipo <strong>de</strong> ocupação. Belo Horizonte teve e tem seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />

marcado pelo crescimento da pobreza e da violência urbana, pela queda<br />

na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e pela <strong>de</strong>gradação do espaço construído. Além disso, o padrão<br />

<strong>de</strong> segregação surgido nos anos 90 caracteriza-se pela diminuição das distâncias físicas<br />

entre ricos e pobres. (SOUZA e TEIXEIRA, 1999). Em outras palavras, po<strong>de</strong>-se dizer<br />

que seu <strong>de</strong>senvolvimento é marcado pelas duas formas <strong>de</strong> segregação, a social e a espacial,<br />

citadas anteriormente.<br />

O objetivo principal <strong>de</strong>ste artigo é o mapeamento e a análise da distribuição espacial<br />

das duas formas <strong>de</strong> segregação. A hipótese investigada é a <strong>de</strong> que, em Belo Horizonte,<br />

haja uma forte relação entre segregação social e segregação espacial. Além disso, o estudo tem<br />

por objetivo específico testar a metodologia <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos (fuzzy sets) na composição<br />

<strong>de</strong> perfis para pequenas áreas.<br />

Para tanto, são utilizados dados da Contagem Populacional <strong>de</strong> 1996, do IBGE, e mapa<br />

do município, <strong>de</strong>sagregados por setores censitários. A opção <strong>de</strong> se utilizarem dados<br />

<strong>de</strong>sagregados por setores censitários <strong>de</strong>ve-se ao fato <strong>de</strong> estes serem as menores unida<strong>de</strong>s<br />

espaciais para as quais os dados estão disponíveis e baseia-se no fato <strong>de</strong> que Belo Horizonte<br />

apresenta, mesmo em áreas próximas, diferenças significativas.<br />

Cabe ressaltar que, <strong>de</strong>vido ao caráter <strong>de</strong> contagem populacional da pesquisa <strong>de</strong><br />

1996, foram levantados apenas dados referentes a sexo, ida<strong>de</strong>, escolarida<strong>de</strong>, posição<br />

na família, migração interestadual, município <strong>de</strong> residência, situação <strong>de</strong> domicílio e<br />

tipo <strong>de</strong> setor. Desse modo, a análise das características dos setores censitários esteve<br />

restrita a essas variáveis. Tal fato, no entanto, não impediu que se construísse indicador<br />

<strong>de</strong> segregação social, através da utilização do método <strong>de</strong> Fuzzy Analysis – FANNY<br />

(KAUFMAN e ROUSSEEUW, 1990). Já a forma <strong>de</strong> ocupação dos setores <strong>de</strong>fine a<br />

segregação espacial, e a cartografia temática torna possível o mapeamento, a visualização<br />

e a análise dos resultados.<br />

O indicador <strong>de</strong> segregação social<br />

Um indicador po<strong>de</strong> ser entendido como uma medida sintética, uma forma <strong>de</strong> se reduzirem<br />

informações, preservando-se, no entanto, a variabilida<strong>de</strong> das informações originais. Neste<br />

trabalho, procurou-se chegar, a partir das variáveis disponíveis, a uma medida em que a<br />

segregação social fosse reproduzida, da melhor maneira, a partir da sua <strong>de</strong>finição.<br />

De acordo com o que foi visto anteriormente, po<strong>de</strong>-se dizer que a segregação social está<br />

ancorada em dois fatores: “<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>” e “pobreza”. Diante disso e das variáveis<br />

disponíveis, foi possível trabalhar alguns aspectos que, direta ou indiretamente, traduzem<br />

a base da <strong>de</strong>finição. Além disso, outras variáveis também foram utilizadas, para efeito <strong>de</strong><br />

melhor caracterização e diferenciação dos setores por parte do método empregado.<br />

88<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte: uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos


As variáveis foram divididas em três grupos, como mostra o esquema a seguir. 2<br />

Segregação Social<br />

Aspectos Sociais<br />

percentual <strong>de</strong> empregados domésticos por domicílio<br />

razão <strong>de</strong> sexo <strong>de</strong> chefia <strong>de</strong> domicílio<br />

Aspectos Demográficos<br />

população total do setor<br />

razão <strong>de</strong> sexo<br />

percentual <strong>de</strong> migrantes masculinos<br />

percentual <strong>de</strong> migrantes femininos<br />

Aspectos Educacionais<br />

porcentagem da população que freqüenta escola, por grupo etário (17 grupos)<br />

média <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> estudo da população masculina, por grupo etário (17 grupos)<br />

média <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> estudo da população feminina, por grupo etário (17 grupos)<br />

O primeiro grupo, ‘aspectos sociais’, é composto por duas variáveis. A primeira,<br />

‘percentual <strong>de</strong> empregados domésticos por domicílio’, é a razão entre o número total <strong>de</strong><br />

empregados domésticos 3 e o número <strong>de</strong> domicílios do setor. A variável ‘razão <strong>de</strong> sexo<br />

<strong>de</strong> chefia <strong>de</strong> domicílio’ é a razão entre homens e mulheres chefes <strong>de</strong> domicílio. Sem<br />

querer entrar em discussões teóricas, normalmente a <strong>de</strong>nominação chefe <strong>de</strong> domicílio<br />

está relacionada à renda e à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prover os habitantes do domicílio, ou seja,<br />

geralmente é dito ‘chefe do domicílio’ aquele ou aquela que contribui com maior parcela<br />

da renda familiar.<br />

O segundo grupo, ‘aspectos <strong>de</strong>mográficos’, é composto por variáveis que dizem respeito<br />

a fenômenos <strong>de</strong>mográficos, que po<strong>de</strong>m ter comportamentos bastante específicos, <strong>de</strong><br />

acordo com o nível socioeconômico da população. A variável ‘população total do setor’ é<br />

a porcentagem da população do setor em relação à população total do município. Dado<br />

que o setor é <strong>de</strong>finido com base no número <strong>de</strong> domicílios, em torno <strong>de</strong> 300, uma gran<strong>de</strong><br />

diferença nessa variável po<strong>de</strong> representar diferenciais significativos <strong>de</strong> habitantes por domicílio.<br />

As variáveis ‘percentual <strong>de</strong> migrantes masculinos’ e ‘percentual <strong>de</strong> migrantes femininos’<br />

dizem respeito apenas às migrações interestaduais ocorridas no período 91-96 e<br />

compreen<strong>de</strong>m aqueles que não moravam em Belo Horizonte e que moravam fora <strong>de</strong><br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> em 01/09/1991. Isso significa, na maioria das vezes, que o migrante percorreu<br />

uma distância consi<strong>de</strong>rável, o que representa custos mais elevados e maiores riscos.<br />

Os ‘aspectos educacionais’ estão representados no terceiro grupo. A freqüência à escola<br />

a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada ida<strong>de</strong> e, principalmente, os anos médios <strong>de</strong> estudo são características<br />

fundamentais na <strong>de</strong>terminação do nível <strong>de</strong> qualificação, da ocupação e da renda<br />

dos indivíduos. Em outras palavras, nível educacional diferenciado provoca níveis<br />

socioeconômicos diferenciados.<br />

2<br />

A divisão não altera os resultados, servindo<br />

apenas como um instrumento <strong>de</strong> exposição.<br />

3<br />

Empregados domésticos que resi<strong>de</strong>m no<br />

domicílio.<br />

Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Adriana Miranda-Ribeiro Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

89


O indicador <strong>de</strong> segregação espacial<br />

Levando-se em conta a <strong>de</strong>finição anterior <strong>de</strong> segregação espacial, buscou-se, <strong>de</strong>ntro das<br />

variáveis disponíveis, aquela que pu<strong>de</strong>sse melhor representar a ‘fragmentação do espaço<br />

construído’. A variável ‘tipo do setor’ caracteriza os setores urbanos em setor urbano<br />

não especial, setor urbano subnormal (favela, aglomerado) e setor urbano especial (quartel,<br />

asilo, orfanato, presídio etc.). A criação <strong>de</strong> uma variável dummy <strong>de</strong>terminou o indicador<br />

<strong>de</strong> segregação espacial. A cartografia temática <strong>de</strong>ssa variável tornou possível a análise.<br />

Segregação Espacial<br />

Característica Da Ocupação<br />

tipo do setor - cartografia temática dos setores subnormais<br />

Metodologia<br />

O método FANNY – Fuzzy Analysis – presta-se à mo<strong>de</strong>lagem multidimensional <strong>de</strong> dados<br />

contínuos, tendo sido <strong>de</strong>senvolvido a partir da teoria dos conjuntos nebulosos, <strong>de</strong> Za<strong>de</strong>h<br />

(1965). De um modo geral, a teoria dos conjuntos nebulosos permite que elementos<br />

distintos possuam graus <strong>de</strong> pertinência a vários conjuntos, <strong>de</strong> modo a tornar possível a<br />

representação matemática <strong>de</strong> conceitos vagos e imprecisos. O grau <strong>de</strong> pertinência <strong>de</strong> um<br />

elemento <strong>de</strong> um universo a um <strong>de</strong>terminado conjunto ou partição nebulosa é representado<br />

por um número real no intervalo [0,1], que representa o quão verda<strong>de</strong>ira é a afirmação<br />

<strong>de</strong> que esse elemento pertence àquela partição (GARCIA, 2000). Enquanto em <strong>de</strong>terminados<br />

métodos <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> cluster (crisp sets) cada elemento analisado pertence a um<br />

único cluster, gerando uma divisão clara dos elementos, o método FANNY permite que se<br />

estime o grau <strong>de</strong> associação entre cada elemento e os diversos clusters. Em outras palavras,<br />

o método FANNY associa um objeto a diversos clusters. Assim, para cada objeto i e cada<br />

cluster v, existe uma associação, a qual indica o grau <strong>de</strong> pertinência do objeto ao cluster. As<br />

associações são <strong>de</strong>finidas através <strong>de</strong> processos iterativos, buscando-se a minimização da<br />

função f:<br />

(1),<br />

on<strong>de</strong> d(i, j) representa as distâncias (ou dissimilarida<strong>de</strong>s) conhecidas entre os objetos i e j<br />

e é a associação <strong>de</strong>sconhecida dos objetos i ao cluster v. As funções <strong>de</strong> associação estão<br />

sujeitas às condições:<br />

90<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte: uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos


as quais mostram que as associações entre cada objeto e os diversos clusters têm necessariamente<br />

<strong>de</strong> ser nulas ou positivas e que a soma das associações entre cada objeto e os<br />

diversos clusters é constante e igual a 1.<br />

A partir da <strong>de</strong>terminação do número <strong>de</strong> clusters, são criados ‘perfis i<strong>de</strong>ais’. Assim, para<br />

cada cluster, cada variável passa a ter um ‘valor i<strong>de</strong>al’. Um objeto terá grau <strong>de</strong> associação<br />

a um cluster tanto mais próximo <strong>de</strong> 1, quanto mais próximos estiverem os valores <strong>de</strong> suas<br />

variáveis dos valores estabelecidos para o “perfil i<strong>de</strong>al”. Po<strong>de</strong> ocorrer, mas não necessariamente,<br />

que, <strong>de</strong>ntre os objetos, haja tipos puros, ou seja, objetos que pertençam totalmente<br />

a um único cluster.<br />

Neste trabalho, foram <strong>de</strong>terminados dois clusters, representando os dois extremos da<br />

condição social, que, a partir <strong>de</strong> agora, passam a ser <strong>de</strong>nominados cluster <strong>de</strong> nível alto e<br />

cluster <strong>de</strong> nível baixo. 4 Para cada setor censitário, há um grau <strong>de</strong> associação a cada um dos<br />

dois clusters. Uma maior associação ao ‘nível alto’ significa uma menor associação ao<br />

‘nível baixo’ e traduz-se em melhores condições sociais. Uma menor associação ao ‘nível<br />

alto’ traduz-se em condições sociais menos favoráveis.<br />

Resultados<br />

Os resultados encontrados serão analisados em função do grau <strong>de</strong> associação ao cluster <strong>de</strong><br />

nível baixo, que passa, então, a ser <strong>de</strong>nominado ‘indicador <strong>de</strong> segregação social’ (ISS).<br />

Desse modo, quanto mais próximo <strong>de</strong> 1 estiver o ISS <strong>de</strong> um setor, piores as condições<br />

socioeconômicas do mesmo, e vice-versa. A Tabela 1 mostra os dois setores extremos<br />

encontrados em Belo Horizonte, com maior e menor valores <strong>de</strong> ISS, além dos valores <strong>de</strong><br />

algumas das variáveis utilizadas na sua composição.<br />

4<br />

A <strong>de</strong>nominação foi atribuída apenas por<br />

questões operacionais, sem a pretensão <strong>de</strong> se<br />

entrar em discussões teóricas sobre o tema.<br />

Tabela 1<br />

Setores Extremos Setor A Setor B<br />

Indicador <strong>de</strong> segregação social 0,823 0,218<br />

População Total 0,001062 0,000715<br />

Razão <strong>de</strong> Chefe <strong>de</strong> Domicílio 3,369565 1,437186<br />

empregados domésticos por domicílio 0,004975 0,012371<br />

Razão <strong>de</strong> Sexo 0,980198 0,769912<br />

Homens Migrantes 0,042000 0,077000<br />

Mulheres Migrantes 0,035000 0,068000<br />

prop. população 0-4 freqüenta escola 0,115 0,219<br />

prop. população 5-9 freqüenta escola 0,918 0,992<br />

prop. população 10-14 freqüenta escola 0,946 1,000<br />

prop. população 15-19 freqüenta escola 0,618 0,867<br />

prop. população 20-24 freqüenta escola 0,138 0,533<br />

média anos estudo fem. 10-14 3,57 4,45<br />

média anos estudo fem. 15-19 5,62 8,02<br />

média anos estudo fem. 20-24 6,59 10,80<br />

média anos estudo fem. 25-29 6,42 11,98<br />

média anos estudo fem. 30-34 6,08 11,76<br />

média anos estudo fem. 35-39 5,47 12,07<br />

média anos estudo fem. 40-44 5,47 12,19<br />

média anos estudo fem. 45-49 4,82 11,20<br />

média anos estudo fem. 50-54 4,35 9,92<br />

média anos estudo fem. 55-59 3,86 9,23<br />

Setores Extremos Setor A Setor B<br />

média anos estudo fem. 60-64 3,27 9,53<br />

média anos estudo fem. 65-69 3,00 9,41<br />

média anos estudo fem. 70-74 1,29 9,60<br />

média anos estudo fem. 75-79 2,00 6,50<br />

média anos estudo fem. 80-85 1,00 6,00<br />

média anos estudo fem. 85 + 0,00 6,33<br />

média anos estudo masc. 10-14 3,63 4,39<br />

média anos estudo masc. 15-19 6,97 8,39<br />

média anos estudo masc. 20-24 7,40 10,68<br />

média anos estudo masc. 25-29 7,15 11,86<br />

média anos estudo masc. 30-34 6,80 12,28<br />

média anos estudo masc. 35-39 5,39 12,03<br />

média anos estudo masc. 40-44 4,96 12,02<br />

média anos estudo masc. 45-49 4,21 10,94<br />

média anos estudo masc. 50-54 3,77 10,11<br />

média anos estudo masc. 55-59 2,56 9,17<br />

média anos estudo masc. 60-64 2,68 8,33<br />

média anos estudo masc. 65-69 1,85 6,90<br />

média anos estudo masc. 70-74 1,05 6,15<br />

média anos estudo masc. 75-79 1,67 5,80<br />

média anos estudo masc. 80-85 0,20 7,00<br />

média anos estudo masc. 85 + 1,10 3,57<br />

Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Adriana Miranda-Ribeiro Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

91


O setor A é aquele que tem maior valor <strong>de</strong> ISS, ou, em outras palavras, é o setor mais<br />

segregado socialmente e com níveis socioeconômicos mais baixos; o setor B é aquele<br />

que tem o menor valor <strong>de</strong> ISS, ou seja, é o menos segregado socialmente e com níveis<br />

socioeconômicos mais altos <strong>de</strong>ntre todos os setores censitários <strong>de</strong> Belo Horizonte, <strong>de</strong><br />

acordo com a técnica aplicada.<br />

Os valores do ISS variam <strong>de</strong> 0,218 a 0,823, mostrando que não há, <strong>de</strong> acordo com os<br />

dados e a técnica aplicada, setor que pertença totalmente a algum cluster. É importante<br />

colocar que, embora os indicadores apresentem valores extremos, as diversas variáveis<br />

utilizadas na sua composição não se comportam necessariamente da mesma forma. No<br />

entanto, o diferencial entre as mesmas, nos setores extremos, é importante para explicação<br />

dos resultados.<br />

A variável ‘população total do setor’ mostra um maior percentual <strong>de</strong> moradores no<br />

setor A (0,001062, contra 0,000715 no setor B). Esse resultado, se analisado sob o ponto<br />

<strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> representar um número maior <strong>de</strong> habitantes por domicílio, está <strong>de</strong><br />

acordo com o que se espera, ou seja, que um setor <strong>de</strong> nível socioeconômico mais baixo<br />

apresente uma concentração maior <strong>de</strong> habitantes por domicílio.<br />

A variável ‘razão <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong> domicílio’ apresenta um resultado interessante. O diferencial<br />

entre os dois setores é gran<strong>de</strong> e varia <strong>de</strong> 3,37, no setor A, a 1,44, no setor B. Isso<br />

po<strong>de</strong> ter explicações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m cultural, mostrando que em setores <strong>de</strong> nível socioeconômico<br />

mais baixo as pessoas consi<strong>de</strong>ram que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> fatores, o homem<br />

seja o chefe do domicílio; po<strong>de</strong> ter explicações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social, evi<strong>de</strong>nciando que em<br />

níveis socioeconômicos mais altos há mais mulheres morando sozinhas e se sustentando;<br />

po<strong>de</strong> ter explicações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômica, mostrando que em setores <strong>de</strong> nível<br />

socioeconômico mais baixo há menos mulheres trabalhando etc.<br />

Outra explicação para o resultado da variável ‘razão <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong> domicílio’ po<strong>de</strong> estar<br />

associada ao resultado <strong>de</strong> outra variável, ‘razão <strong>de</strong> sexo’. Em ambos os setores, essa<br />

razão é menor que 1, mostrando que há mais mulheres que homens. No entanto, a proporção<br />

<strong>de</strong> mulheres em relação a homens no setor B é maior do que no setor A. Essa<br />

maior proporção <strong>de</strong> mulheres po<strong>de</strong> ajudar a explicar o diferencial da ‘razão <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong><br />

domicílio’, caso se entenda que, no setor B, haja mais mulheres ‘expostas’ à chance <strong>de</strong><br />

serem chefes <strong>de</strong> domicílio.<br />

O percentual <strong>de</strong> ‘empregados domésticos por domicílio’ apresenta resultados bem<br />

interessantes, com um valor maior no setor B. A explicação para tal é que ter um empregado<br />

doméstico residindo no domicílio po<strong>de</strong> significar maior po<strong>de</strong>r aquisitivo, maior<br />

renda ou melhores condições sociais, em suma, status social mais elevado.<br />

As variáveis ‘homens migrantes’ e ‘mulheres migrantes’ mostram que, em ambos os<br />

setores, é maior o percentual <strong>de</strong> homens migrantes. Comparando-se os dois setores,<br />

encontra-se que, no setor B, é maior o percentual <strong>de</strong> migrantes, sejam eles homens ou<br />

mulheres. Mais uma vez, o resultado faz sentido, partindo-se do pressuposto <strong>de</strong> que a<br />

migração interestadual envolve maiores custos, já que se dá entre distâncias maiores.<br />

Nesse sentido, o esperado é que os migrantes tenham melhores condições socioeconômicas<br />

e que, portanto, tenham se estabelecido em setores com melhores condições.<br />

92<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte: uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos


As variáveis que me<strong>de</strong>m níveis <strong>de</strong> atendimento escolar e <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> apresentam resultados<br />

esperados e mostram que há, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s mais jovens, um diferencial entre os dois<br />

setores, sempre a favor do setor B. Na questão do atendimento escolar, a proporção <strong>de</strong><br />

crianças <strong>de</strong> 0 a 4 anos no setor B é praticamente o dobro da proporção do setor A. Isso po<strong>de</strong><br />

mostrar que não há creches suficientes para aten<strong>de</strong>r as populações <strong>de</strong>ste setor. Essa diferença<br />

cai na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 5 a 9 anos, ficando em 7,3 pontos percentuais, mas continua significativa,<br />

mostrando que o atendimento escolar ainda é insuficiente no setor A. A diferença cai para 5,4<br />

pontos percentuais na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 10 a 14 anos e, a partir daí, cresce bastante, chegando a 25<br />

pontos percentuais na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 15 a 19 anos e a 39,5 pontos percentuais na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 20 a 24<br />

anos. Uma explicação para o crescimento do percentual entre 15 e 19 anos é que, a partir dos<br />

14 anos, muitos jovens <strong>de</strong> condições socioeconômicas mais baixas <strong>de</strong>ixam os estudos<br />

para trabalhar. Já na ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 20 a 24 anos, além do fator trabalho, que po<strong>de</strong> explicar a<br />

saída da escola do jovem <strong>de</strong> nível mais baixo, há o fator ‘universida<strong>de</strong>’, que funciona<br />

como um funil, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> fora mais uma boa parcela das pessoas <strong>de</strong> nível mais baixo que<br />

terminaram o 2o grau. A média <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> estudo mostra que, na maioria dos grupos<br />

etários, as mulheres são mais escolarizadas que os homens. Além disso, há um nítido<br />

diferencial a favor dos habitantes do setor B, ou seja, <strong>de</strong> nível socioeconômico mais alto.<br />

Os mapas a seguir ilustram a distribuição espacial <strong>de</strong> três variáveis utilizadas na composição<br />

do indicador, além da distribuição espacial do indicador <strong>de</strong> segregação espacial,<br />

em Belo Horizonte. Alguns resultados interessantes merecem ser <strong>de</strong>stacados. A forte<br />

concentração <strong>de</strong> altos percentuais <strong>de</strong> empregados domésticos por domicílio encontra-se<br />

em regiões on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m pessoas com alto po<strong>de</strong>r aquisitivo: Pampulha, Belve<strong>de</strong>re,<br />

Mangabeiras, Serra, Sion, São Bento e Santa Lúcia, <strong>de</strong>ntre outras. Nota-se que essas áreas<br />

coinci<strong>de</strong>m com aquelas que apresentam menor proporção da população e menores<br />

valores do indicador <strong>de</strong> segregação social.<br />

Em seguida, é apresentado o mapa da exclusão socioespacial, on<strong>de</strong> estão representados<br />

os indicadores <strong>de</strong> segregação espacial e os setores subnormais <strong>de</strong> Belo Horizonte. As áreas<br />

mais claras correspon<strong>de</strong>m aos setores cujos indicadores apresentam valor mais elevado; as<br />

áreas mais escuras, aos setores cujos indicadores apresentam valor mais baixo.<br />

O IBGE classificou, em 1996, 253 setores censitários em Belo Horizonte como<br />

‘subnormais’, com maior concentração nas regiões centro-sul, leste e oeste, menor concentração<br />

na região norte, e em pontos isolados no restante da capital.<br />

O mapa mostra claramente uma forte relação entre segregação social e espacial. Há<br />

praticamente a sobreposição <strong>de</strong> setores subnormais e setores com baixos indicadores <strong>de</strong><br />

segregação social. 5 O contrário, no entanto, não ocorre, ou seja, o fato <strong>de</strong> um setor ser<br />

segregado socialmente não significa que ele seja segregado espacialmente.<br />

A região centro-sul <strong>de</strong> Belo Horizonte apresenta forte concentração <strong>de</strong> baixos índices<br />

<strong>de</strong> segregação espacial, quebrada pela presença das favelas, que praticamente ‘envolvem’<br />

parte <strong>de</strong>ssa região. Já na região leste, uma gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> setores subnormais é<br />

cercada por áreas com baixos indicadores. A região norte da cida<strong>de</strong> apresenta um quadro<br />

intermediário, on<strong>de</strong> setores subnormais estão próximos ora <strong>de</strong> altos indicadores,<br />

ora <strong>de</strong> baixos indicadores <strong>de</strong> segregação social.<br />

5<br />

É importante lembrar que o indicador <strong>de</strong> segregação<br />

social é o grau <strong>de</strong> associação ao cluster<br />

<strong>de</strong> nível socioeconômico mais baixo. Valores<br />

altos do indicador mostram alta segregação<br />

espacial. Algumas poucas exceções são percebidas,<br />

on<strong>de</strong> setores subnormais apresentam<br />

menores índices <strong>de</strong> segregação social, mas não<br />

comprometem os resultados encontrados.<br />

Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Adriana Miranda-Ribeiro Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

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Mapa 1 Proporção <strong>de</strong> Empregados Domésticos por Domicílio –<br />

Belo Horizonte 1996 (por mil)<br />

0 a 1<br />

1 a 26<br />

26 a 72<br />

72 a 155<br />

155 a 482<br />

Mapa 2 Razão <strong>de</strong> Chefia <strong>de</strong> Domicílio – Belo Horizonte 1996 (por cem)<br />

0 a 200<br />

200 a 290<br />

290 a 390<br />

390 a 670<br />

670 a 1.900<br />

94<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte: uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos


Mapa 3<br />

Proporção da População sobre o total – Belo Horizonte - 1996 (por milhão)<br />

0 a 240<br />

240 a 380<br />

380 a 530<br />

530 a 760<br />

760 a 1.980<br />

Mapa 4 Indicador <strong>de</strong> Segregação Social – Belo Horizonte 1996<br />

0,22 a 0,36<br />

0,36 a 0,52<br />

0,52 a 0,66<br />

0,66 a 0,75<br />

0,75 a 0,82<br />

Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Adriana Miranda-Ribeiro Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

95


Mapa 5 Segregação socioespacial – Belo Horizonte 1996<br />

Setores Subnormais –<br />

Belo Horizonte 1996<br />

Setor Subnormal<br />

Indicador <strong>de</strong> Segregação Social –<br />

Belo Horizonte 1996<br />

0,22 a 0,36<br />

0,36 a 0,52<br />

0,52 a 0,66<br />

0,66 a 0,75<br />

0,75 a 0,82<br />

96<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Segregação socioespacial em Belo Horizonte: uma aplicação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los difusos


Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Os resultados apresentados neste primeiro estudo foram satisfatórios no tocante ao teste<br />

da hipótese inicial <strong>de</strong> que, em Belo Horizonte, segregação social e segregação espacial<br />

estão fortemente relacionadas.<br />

Além disso, o trabalho prestou-se à verificação <strong>de</strong> que o método FANNY po<strong>de</strong> ser<br />

aplicado à construção <strong>de</strong> indicadores sociais para pequenas áreas, com gran<strong>de</strong>s vantagens<br />

em relação às técnicas clássicas <strong>de</strong> clustering. Sua associação com sistemas <strong>de</strong> informação<br />

geográfica revelou-se um ferramental po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong> investigação e análise dos<br />

processos <strong>de</strong> segregação espacial e social em níveis, indubitavelmente, microscópicos.<br />

Por último, ressalta-se a importância <strong>de</strong> estudos que venham complementar, expandir<br />

e aprofundar o conhecimento sobre processos sociais e sua dinâmica em esferas<br />

menos agregadas <strong>de</strong> análise. Além <strong>de</strong> uma gama maior <strong>de</strong> informações a respeito do<br />

objeto <strong>de</strong> estudo, tais iniciativas po<strong>de</strong>m fornecer subsídios para políticas públicas mais<br />

setorizadas e específicas.<br />

artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado agosto/2005<br />

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Belo Horizonte 01(1) 86-97 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Adriana Miranda-Ribeiro Ricardo Alexandrino Garcia<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

97


Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

PUC - Campinas, USP<br />

Mestrando em Geografia Humana<br />

Por uma ciência do atrito:<br />

ensaio dialético sobre a violência urbana<br />

Resumo<br />

Uma das maiores vantagens em se adotar o<br />

método dialético nos estudos <strong>de</strong> Geografia está<br />

justamente em consi<strong>de</strong>rar a realida<strong>de</strong> em sua<br />

complexida<strong>de</strong>: não uma realida<strong>de</strong> fragmentada,<br />

mas uma realida<strong>de</strong> dialética, dinâmica, mutante.<br />

Boa parte dos geógrafos que tentaram estabelecer<br />

esse diálogo entre Geografia e Violência acabou<br />

esbarrando nas limitações do método analítico.<br />

Por esse motivo, uma teoria que entenda o espaço<br />

geográfico enquanto um todo em movimento, um<br />

híbrido <strong>de</strong> objetos e ações se faz necessária. Além<br />

disso, é impossível enten<strong>de</strong>r essa prática espacial<br />

<strong>de</strong>nominada violência se a enxergarmos, apenas,<br />

como um recorte da realida<strong>de</strong>. Assim, este trabalho<br />

não preten<strong>de</strong> ser uma geografia da violência, ou,<br />

muito menos, uma geografia do crime e sim, uma<br />

geografia dos usos do território. Tal perspectiva é<br />

fundamental para que a violência e o planejamento<br />

territorial sejam entendidos mais como questões<br />

políticas que meramente técnicas e para que<br />

Geografia seja então uma ciência do complexo, da<br />

ação e, portanto, do atrito.<br />

Abstract<br />

One of the major advantages on adopting the<br />

dialectical method on geographic studies is the<br />

possibility of consi<strong>de</strong>ring the reality on its complexity.<br />

But, instead of a sliced reality, as has been done on<br />

the analytical studies on violence, the dialectical<br />

method is able to lead with a dynamic and mutant<br />

reality. Most geographers who tried to set this dialog<br />

between Geography and Violence faced the limitation<br />

of the analytical method. This is the reason why it’s<br />

necessary to use a method that un<strong>de</strong>rstands the space<br />

as a hybrid between objects and actions. Moreover, it<br />

is impossible to comprehend this spatial practice called<br />

violence if we see it as just a fragment of the reality.<br />

That is why this article has not the aim of being a<br />

geography of violence, neither a geography of crime,<br />

but a geography of the territory uses. Such<br />

perspective is fundamental to un<strong>de</strong>rstand violence and<br />

territorial planning as more than just technical<br />

questions, but, instead of that, as political ones.<br />

Therefore, Geography must be seen as a science of<br />

the complexity, of action, and, why not, of attrition.<br />

lucasm@puc-campinas.edu.br<br />

Palavras-chave violência urbana, cotidiano, dialética,<br />

território usado, planejamento territorial.<br />

Keywords urban violence, everyday life, dialectical<br />

method, used territory, territorial planning.<br />

98<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Introdução<br />

A ciência do atrito a que se refere o título <strong>de</strong>ste artigo remete a duas idéias centrais. A<br />

primeira <strong>de</strong>las é fruto <strong>de</strong> minhas recordações enquanto ainda estudante do ensino médio.<br />

Lembro-me do professor <strong>de</strong> física ensinando-nos os segredos do “movimento”. Aquilo<br />

era simplesmente fascinante, apesar <strong>de</strong> rapidamente se transformar em frustração, bastando,<br />

para isso, que nós o questionássemos a respeito do atrito. Ele sempre respondia que,<br />

naqueles casos, <strong>de</strong>veríamos consi<strong>de</strong>rar o movimento sem atrito e que este era <strong>de</strong>masiadamente<br />

complexo para nosso nível <strong>de</strong> raciocínio. O atrito era um “outro” problema.<br />

Curiosamente, percebo, hoje, a Geografia repetindo as mesmas posturas daquele meu<br />

professor: uma ciência sem atrito, com medo do complexo, uma Geografia analítica,<br />

<strong>de</strong>scritiva e reacionária e que consi<strong>de</strong>ra a questão política como um “outro” problema.<br />

A segunda referência, até como conseqüência da primeira, conclama nós geógrafos<br />

para o exercício <strong>de</strong> uma ciência ativa, participativa e propositiva, <strong>de</strong> uma Geografia sem<br />

medo <strong>de</strong> enfrentar as contradições, <strong>de</strong> uma ciência que, cada vez mais, lembrando os<br />

dizeres do geógrafo Milton Santos, se aproxime da Política.<br />

Dessa forma, esta reflexão inicia-se com a discussão sobre alguns princípios do<br />

método dialético, passando pelo conceito <strong>de</strong> dialética espacial, para chegar ao <strong>de</strong> território<br />

usado, que permite à Geografia trabalhar com uma noção complexa <strong>de</strong> território,<br />

consi<strong>de</strong>rando <strong>de</strong> forma indissociada as materialida<strong>de</strong>s e as ações. Em seguida, o<br />

ainda complicado conceito <strong>de</strong> violência é revisto sob uma perspectiva dialética. A<br />

distinção entre violência e po<strong>de</strong>r, aliada ao conceito <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>s geográficas,<br />

permite-nos enten<strong>de</strong>r melhor as articulações cotidianas que acontecem nos lugares, e o<br />

entendimento <strong>de</strong>sstas articulações é um passo fundamental para que compreendamos<br />

os motivos pelos quais há lugares mais violentos do que outros. Essa proposição teórica<br />

faz com que a Geografia possa se atrever a elaborar compreensões sobre o fenômeno<br />

da violência urbana, mais do que simplesmente fazer constatações sobre ele.<br />

Além disso, o potencial teórico-metodológico da Geografia, aliado ao instrumental<br />

técnico do Geoprocessamento, indica que essa é a ciência, por excelência, do planejamento<br />

territorial. Surge, finalmente, uma ciência do atrito.<br />

Dialética espacial<br />

A realida<strong>de</strong> social dos homens se cria como a união dialética <strong>de</strong> sujeito e objeto (KOSIK, 1976, p. 20).<br />

O conceito <strong>de</strong> dialética vem sendo empregado, na história da filosofia, com significados<br />

diversos, partindo da noção <strong>de</strong> “arte do diálogo” na Grécia Antiga, passando pelo<br />

conceito i<strong>de</strong>alista <strong>de</strong> Hegel como síntese dos opostos e chegando à formulação da<br />

dialética por Marx (KONDER, 1981). Löwy (1985) <strong>de</strong>staca três elementos essenciais ao<br />

método dialético: o movimento perpétuo <strong>de</strong> transformação permanente das coisas, a<br />

totalida<strong>de</strong> e a contradição.<br />

O primeiro elemento da dialética chama nossa atenção para a submissão dos fatos<br />

sociais ao tempo. Tudo é historicamente <strong>de</strong>limitado e historicamente limitado, inclusive<br />

as noções e os conceitos. A própria idéia <strong>de</strong> violência e também a sua institucionalização<br />

Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

99


na forma <strong>de</strong> crime são espacial e historicamente <strong>de</strong>terminadas. Atos antigamente aceitos<br />

hoje são severamente con<strong>de</strong>nados e vice-versa. O homicídio, forma extrema <strong>de</strong> violência,<br />

já foi permitido em tempos atrás, especialmente quando a vítima era um escravo, e<br />

atualmente é con<strong>de</strong>nado, sendo essa con<strong>de</strong>nação ainda hoje geograficamente relativa,<br />

visto que em muitos territórios a pena <strong>de</strong> morte é aceita.<br />

O segundo elemento nos diz que não <strong>de</strong>vemos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, em nossas análises, o<br />

princípio da totalida<strong>de</strong>. A totalida<strong>de</strong> não é entendida aqui como totalida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong>. 1<br />

até porque issto é algo inatingível. A totalida<strong>de</strong> significa “a percepção da realida<strong>de</strong> social<br />

como um todo orgânico, estruturado, no qual não se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r um elemento, um<br />

aspecto, uma dimensão, sem per<strong>de</strong>r a sua relação com o conjunto” (LÖWY, 1985, p. 16).<br />

Dessa maneira, a violência nunca será compreendida, se não a relacionarmos com o<br />

movimento do todo. E o ponto <strong>de</strong> partida para o estudo da totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da Geografia<br />

é o conceito <strong>de</strong> território usado (SANTOS et al., 2000).<br />

O terceiro elemento diz respeito à noção <strong>de</strong> contradição presente no conceito <strong>de</strong><br />

dialética. Baseamo-nos aqui não na proposta i<strong>de</strong>alista <strong>de</strong> Hegel, mas na sua releitura, feita<br />

por Marx, enten<strong>de</strong>ndo as contradições como atributos <strong>de</strong> classes, como um embate<br />

constante entre i<strong>de</strong>ologias e utopias (MANNHEIM, 1982 2 ). Mas o embate dos contraditórios,<br />

presente no método dialético, prevê também certa coerência entre eles, conforme<br />

nos ensina Peet (1975). Esse autor mostra-nos como a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> é fator intrínseco ao<br />

capitalismo e como este <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong> classes <strong>de</strong>siguais para existir como tal.<br />

Há, portanto, uma contradição coerente: ao mesmo tempo em que é contraditório em<br />

relação aos interesses das classes que o compõem, o capitalismo é coerente, porque<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa contradição para existir; é, portanto, ao mesmo tempo <strong>de</strong>sigual e combinado<br />

(SANTOS, 1999, p. 101).<br />

Sabemos, porém, que a socieda<strong>de</strong> não paira sobre um espaço, tido como palco das<br />

ações humanas. A socieda<strong>de</strong> é espaço, um híbrido. Por isso po<strong>de</strong>mos falar em dialética<br />

espacial, visto que as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s se concretizam em paisagens, lugares, regiões, territórios<br />

<strong>de</strong>siguais e combinados.<br />

Utilizar o método dialético permite, então, que a violência seja vista não <strong>de</strong> uma forma<br />

dualista, uma discussão entre o bem e o mal, ou entre inclusão e exclusão, ou ainda,<br />

como uma associação simplista entre pobreza e violência, mas sim, como fruto <strong>de</strong> usos<br />

contraditórios e coerentes do território, da contraposição entre horizontalida<strong>de</strong>s e<br />

verticalida<strong>de</strong>s (SANTOS, 1998, 1999), entre espaços opacos e espaços luminosos (SAN-<br />

TOS; SILVEIRA, 2001).<br />

Território usado<br />

1<br />

“A totalida<strong>de</strong> é mais do que a soma das partes<br />

que a constituem” (KONDER, 1981, p. 37).<br />

“Na realida<strong>de</strong>, totalida<strong>de</strong> não significa todos<br />

os fatos. Totalida<strong>de</strong> significa: realida<strong>de</strong> como<br />

um todo estruturado, dialético, no qual ou do<br />

qual um fato qualquer (classe <strong>de</strong> fatos, conjunto<br />

<strong>de</strong> fatos) po<strong>de</strong> vir a ser racionalmente<br />

compreendido” (KOSIK, 1976, p. 35).<br />

O território é on<strong>de</strong> vivem, trabalham, sofrem e sonham todos os brasileiros (SANTOS, 2002, p. 48).<br />

Na Geografia, o método dialético torna-se mais claro com a utilização <strong>de</strong> alguns conceitos,<br />

como o <strong>de</strong> território usado. Essa noção contém em si algumas idéias fundamentais para<br />

quando o interesse é enten<strong>de</strong>r a totalida<strong>de</strong> e propor intervenções que contemplem a<br />

maior parte da população. A primeira <strong>de</strong>las é que o território usado contempla todos os<br />

100<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


agentes, tantos os hegemônicos quanto os hegemonizados. Ele conduz à idéia <strong>de</strong> espaço<br />

banal, ou seja, o espaço <strong>de</strong> todos, todo o espaço (SANTOS, 1999, retomando o conceito<br />

<strong>de</strong> François Perroux).<br />

A segunda é que o conceito dá conta da idéia <strong>de</strong> processo, vendo não um espaço estagnado,<br />

mas um espaço em constante mutação. Ele é “tanto o resultado do processo histórico<br />

quanto a base material e social das novas ações humanas” (SANTOS et al., 2000, p. 2).<br />

Por fim, é uma idéia cara à Geografia, pois trata tanto da materialida<strong>de</strong> (os objetos)<br />

quanto das ações. Daí a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> espaço geográfico <strong>de</strong> Milton Santos (1998 e 1999)<br />

como um conjunto indissociável <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> objetos e sistemas <strong>de</strong> ações.<br />

O conceito dá conta, portanto, dos três elementos da dialética anteriormente citados,<br />

pois envolve a noção <strong>de</strong> processo, <strong>de</strong> contradição coerente 2 e <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>.<br />

Quando pensamos na questão da violência, o primeiro aprendizado que o conceito <strong>de</strong><br />

território usado nos traz é o <strong>de</strong> que a violência não po<strong>de</strong> ser vista como uma totalida<strong>de</strong><br />

em si, mas como um recorte, apenas para fins analíticos, do processo. Daí não se falar <strong>de</strong><br />

uma geografia da violência e, menos ainda, <strong>de</strong> uma geografia do crime.<br />

Violência<br />

É claro que, como o homem é o animal que conseguiu meter-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, quando o homem se<br />

põe fora <strong>de</strong> si é que aspira a <strong>de</strong>scer e recai na animalida<strong>de</strong>. Tal é a cena, sempre idêntica, das épocas em<br />

que se diviniza a pura ação. O espaço se povoa <strong>de</strong> crimes. Per<strong>de</strong> valor, per<strong>de</strong> preço a vida dos homens,<br />

e se praticam todas as formas da violência e da espoliação (ORTEGA Y GASSET, 1973, p. 300).<br />

A adoção do método dialético não implica, necessariamente, a negação dos métodos<br />

analítico e hermenêutico. Eles até po<strong>de</strong>m ser usados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que subordinados ao dialético.<br />

O hermenêutico, por exemplo, mostra-se interessante na discussão sobre as variações<br />

históricas dos significados dos conceitos, o que po<strong>de</strong> ser útil para o estudo da violência.<br />

Definir violência, assim como <strong>de</strong>finir paz, fome, pobreza, é uma tarefa árdua. A violência<br />

é uma sensação e, por isso, difícil <strong>de</strong> ser reduzida a algumas linhas <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição.<br />

Além disso, ela é histórica e geograficamente <strong>de</strong>terminada. Uma ação aceita em uma<br />

época po<strong>de</strong> ser con<strong>de</strong>nada em outra, e algo consi<strong>de</strong>rado violento em uma região po<strong>de</strong><br />

ser um procedimento comum e legítimo em outra.<br />

Partindo <strong>de</strong> Aristóteles, temos que violência seria qualquer ação contrária à or<strong>de</strong>m ou<br />

à disposição da natureza. Nesse sentido, ele distinguia o movimento segundo a natureza<br />

e o movimento por violência: o primeiro leva os elementos ao seu lugar natural; o segundo<br />

afasta-os (ABBAGNANO, 2000).<br />

Sorel (1993), por sua vez, distingue os conceitos <strong>de</strong> violência e força. O primeiro<br />

termo refere-se ao processo <strong>de</strong> transformação da socieda<strong>de</strong>, e o segundo é voltado à<br />

manutenção da or<strong>de</strong>m existente, sendo próprio da socieda<strong>de</strong> e do estado burguês. Essta<br />

<strong>de</strong>finição é interessante por não trazer a violência como algo necessariamente com<br />

conotação pejorativa, po<strong>de</strong>ndo ser ela até mesmo revolucionária. Marx (1996, p. 370)<br />

também enxerga esse caráter revolucionário ao dizer que “a violência é parteira <strong>de</strong> toda<br />

velha socieda<strong>de</strong> que está prenhe <strong>de</strong> uma nova. Ela mesma é uma potência econômica”.<br />

2<br />

“O território usado constitui-se como um<br />

todo complexo on<strong>de</strong> se tece uma trama <strong>de</strong><br />

relações complementares e conflitantes”<br />

(SANTOS et al., 2000, p.3).<br />

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Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

101


3<br />

GALTUNG, J. Peace by peaceful means. Oslo,<br />

Noruega: Sage/PRIO, 1996.<br />

Galtung 3 (apud CIIP, 2002, p. 24) dá-nos talvez uma das melhores pistas para a<br />

conceituação da violência, por ele <strong>de</strong>finida em termos da diferença entre realização e<br />

potencialida<strong>de</strong>: “A violência está presente quando os seres humanos são persuadidos<br />

<strong>de</strong> tal modo, que suas realizações efetivas, somáticas e mentais ficam abaixo <strong>de</strong> suas<br />

realizações potenciais”.<br />

Outra forma comum <strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir violência é através <strong>de</strong> tipologias. O CIIP (2002), por<br />

exemplo, sugere cinco tipos <strong>de</strong> violência, <strong>de</strong> acordo com seu maior ou menor grau <strong>de</strong><br />

visibilida<strong>de</strong>. Seriam elas: as violências visíveis (dos tipos coletivo e institucional), as invisíveis<br />

(dos tipos estrutural e cultural) e a violência social como uma situação intermediária,<br />

uma violência parcialmente visível. As tipologias, porém, são sempre limitadas. Por mais<br />

que queiramos organizar o conhecimento em “tipos” ou “padrões”, sempre haverá alguma<br />

situação que não se encaixará no mo<strong>de</strong>lo que tivermos elaborado. Curiosamente,<br />

esse procedimento possui uma gran<strong>de</strong> aproximação com o método analítico.<br />

Uma <strong>de</strong>finição mais interessante é aquela trazida por Arendt (1994) ao fazer a distinção<br />

entre po<strong>de</strong>r e violência. Contrariamente ao que estamos acostumados, a autora propõe<br />

que po<strong>de</strong>r e violência são atributos inversamente proporcionais, ou seja, on<strong>de</strong> há<br />

mais violência há menos po<strong>de</strong>r e vice-versa.<br />

Para Hannah Arendt (ibi<strong>de</strong>m, p. 36-37), o po<strong>de</strong>r correspon<strong>de</strong> à habilida<strong>de</strong> humana não<br />

apenas para agir, mas para agir em concerto, em grupo. Po<strong>de</strong>r seria, portanto, sinônimo<br />

<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação. Dessa forma, ele nunca é proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um indivíduo,<br />

mas <strong>de</strong> um grupo, e só permanece em existência na medida em que esse grupo se conserva<br />

unido. Já a violência distingue-se por seu caráter instrumental.<br />

Para ela, “a forma extrema do po<strong>de</strong>r é o Todos contra Um e a forma extrema da<br />

violência é o Um contra Todos”. Dessa forma, a tirania seria “a forma mais violenta e<br />

menos po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong> governo” e é justamente por não conseguir apoio do povo que ela<br />

precisa ser violenta. Assim, uma das diferenças entre po<strong>de</strong>r e violência é a <strong>de</strong> que “o<br />

po<strong>de</strong>r sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dos números, enquanto a violência, até certo ponto, po<strong>de</strong> operar<br />

sem eles, porque se assenta em implementos”. Mas ela acrescenta que “a violência sempre<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o po<strong>de</strong>r; do cano <strong>de</strong> uma arma emerge o comando mais efetivo,<br />

resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o po<strong>de</strong>r.<br />

[...] Substituir o po<strong>de</strong>r pela violência po<strong>de</strong> trazer a vitória, mas o preço é muito alto,<br />

pois ele é pago não apenas pelo vencido como também pelo vencedor, em termos <strong>de</strong><br />

seu próprio po<strong>de</strong>r”. E “com a perda do po<strong>de</strong>r torna-se uma tentação substituí-lo pela<br />

violência” (ARENDT, 1994, p. 35-43).<br />

Uma outra distinção que se faz necessária é aquela entre violência e crime. Crime é<br />

qualquer infração à lei. É, portanto, um julgamento <strong>de</strong> uma ação com base em argumentos<br />

legais. Enxergar a violência como sinônima <strong>de</strong> crime é reduzir a discussão apenas<br />

àqueles atos que a lei prevê. A violência é uma noção mais ampla e mais sutil. Além disso,<br />

a confusão não se justifica também pelo fato <strong>de</strong> que nem todos os crimes são necessariamente<br />

violentos. Essa discussão remete-nos a outra, também necessária, que diz respeito<br />

à tênue fronteira entre legalida<strong>de</strong> e ilegalida<strong>de</strong> e a como esse limite é flexível quando o<br />

que está em discussão são os atos cometidos por agentes hegemônicos.<br />

102<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Também é importante <strong>de</strong>stacar que segurança pública não é necessariamente o oposto<br />

<strong>de</strong> violência. Basta lembrarmos dos inúmeros casos <strong>de</strong> violência policial no Brasil.<br />

Por fim, vale lembrar que consi<strong>de</strong>rar apenas algumas ações, tais como homicídios,<br />

roubos, furtos e estupros, como atos violentos po<strong>de</strong> ser uma perspectiva reacionária e<br />

não dialética, se não são consi<strong>de</strong>radas inúmeras outras formas <strong>de</strong> violência menos explícitas<br />

e, até por isso, mais perversas. Muitas vezes um roubo é apenas uma manifestação<br />

<strong>de</strong> resistência dos mais pobres, os quais estão sujeitos a outras formas <strong>de</strong> violência muito<br />

mais graves. Por que não falar, então, da globalização como forma <strong>de</strong> violência, ou <strong>de</strong><br />

perversida<strong>de</strong>, conforme sugere Santos (2000), e da violência das privatizações, <strong>de</strong>correntes<br />

<strong>de</strong>sse processo? E a guerra fiscal, ou guerra dos lugares, não seria também uma<br />

violência? E a violência do Estado, <strong>de</strong> que Lênin (1980) já nos alertava? Ou, ainda, por<br />

que não falar da violência do dinheiro e da informação (SANTOS, 2000)?<br />

Solidarieda<strong>de</strong>s geográficas<br />

O indivíduo isolado, normalmente, não po<strong>de</strong> fazer história: suas forças são muito limitadas. Por<br />

isso, o problema da organização capaz <strong>de</strong> levá-lo a multiplicar suas energias e ganhar eficácia é um<br />

problema crucial para todo revolucionário (KONDER, 1981, p. 76).<br />

A distinção proposta por Arendt (1994) po<strong>de</strong> trazer reflexões interessantes quando<br />

associada ao conceito <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>s geográficas. Primeiramente, é o sociólogo<br />

Durkheim (1978) quem fundamenta a noção <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social, a qual, segundo ele,<br />

seria o ponto <strong>de</strong> partida para a organização em socieda<strong>de</strong>. O seu oposto seria a anomia,<br />

a ausência <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> convivência, a <strong>de</strong>sorganização social. O seu sentido aqui é o <strong>de</strong><br />

“laço ou vínculo recíproco <strong>de</strong> pessoas ou coisas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes [...] <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência recíproca”<br />

(FERREIRA, 1995, p. 608). Portanto, não envolve uma conotação moral, mas diz<br />

respeito às relações <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência mantidas entre os indivíduos, empresas, instituições,<br />

ou seja, à “realização compulsória <strong>de</strong> tarefas comuns, mesmo que o projeto não<br />

seja comum” (SANTOS, 1999, p. 132).<br />

Durkheim (1978) i<strong>de</strong>ntifica duas formas <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>: a mecânica e a orgânica. A<br />

primeira diz respeito à i<strong>de</strong>ntificação do indivíduo com o grupo social ao qual pertence,<br />

ou seja, baseia-se nas semelhanças entre indivíduos. É <strong>de</strong>vido a ela que um indivíduo<br />

enfurecido, na maioria das vezes, não age <strong>de</strong> forma extremamente violenta, matando<br />

aquele que o <strong>de</strong>sagradou. Existe uma série <strong>de</strong> normas formais e informais que o impe<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> exercer tal ação. Não é só porque sabe que terá <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r à lei que ele não<br />

pratica o ato, mas porque existem outras maneiras informais <strong>de</strong> controle social que o<br />

coagem a não praticá-lo. Ele sabe que será julgado pela socieda<strong>de</strong> e que esta o discriminará<br />

por ter agido <strong>de</strong> forma contrária aos usos (ORTEGA Y GASSET, 1973), ou seja, por<br />

ter cometido um abuso.<br />

Já a solidarieda<strong>de</strong> orgânica fundamenta-se justamente na diferença, pois trata da<br />

complementarida<strong>de</strong> dada entre indivíduos através da divisão do trabalho. Um indivíduo,<br />

hoje, dificilmente conseguiria sobreviver isolado, fora da socieda<strong>de</strong>, visto que a divisão<br />

do trabalho é algo histórico, social, fazendo-nos cada vez mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>la. Ao<br />

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Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

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propor essas duas solidarieda<strong>de</strong>s, Durkheim está obviamente fazendo uma divisão analítica,<br />

sendo que as duas realida<strong>de</strong>s não passam <strong>de</strong> uma só.<br />

O atual período — <strong>de</strong> unicida<strong>de</strong> técnica planetária (SANTOS, 1999, p. 154), mundialização<br />

das relações e especialização dos lugares — <strong>de</strong>ixa evi<strong>de</strong>nte a existência <strong>de</strong> uma<br />

divisão do trabalho não apenas social, mas também territorial, o que justifica falarmos<br />

também em solidarieda<strong>de</strong>s não só sociais, mas, sobretudo, geográficas.<br />

Milton Santos (1998) propõe duas formas <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> geográfica: uma orgânica<br />

e outra organizacional. A solidarieda<strong>de</strong> orgânica relaciona-se com uma or<strong>de</strong>m local e<br />

baseia-se nas contigüida<strong>de</strong>s espaciais, ou seja, nas horizontalida<strong>de</strong>s. Seu surgimento é<br />

espontâneo, o que a contrapõe à organizacional, a qual tem um caráter muito mais <strong>de</strong>liberado.<br />

A solidarieda<strong>de</strong> organizacional está por sua vez atrelada à razão global, às<br />

verticalida<strong>de</strong>s, tendo como sustentação um sistema <strong>de</strong> objetos esparsos dispostos em<br />

re<strong>de</strong> e apresentando como principal característica a informação.<br />

Castillo et al. (1997) ainda sugerem uma terceira forma <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> geográfica, a<br />

institucional, a qual é dada pelas normas e ações políticas nas escalas do Município, do<br />

Estado fe<strong>de</strong>rado e do Estado-nação. Tal solidarieda<strong>de</strong> explicita a existência da guerra<br />

fiscal ou, ainda, da guerra dos lugares (SANTOS, 2002, p. 87), as quais têm implicações<br />

nas condições <strong>de</strong> vida da população, po<strong>de</strong>ndo ser fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, portanto, geradora<br />

<strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong> violência.<br />

Po<strong>de</strong>mos agora articular os conceitos <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> geográfica com o par po<strong>de</strong>r/<br />

violência proposto por Arendt (1994). Como vimos, o po<strong>de</strong>r nasce do grupo, enquanto<br />

a violência é um atributo individual, baseando-se em instrumentos. Po<strong>de</strong>r, então, é sinônimo<br />

<strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação. O conceito <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> também trabalha com<br />

essa mesma noção <strong>de</strong> articulação. Portanto, por um silogismo simples, solidarieda<strong>de</strong>s<br />

geográficas são sinônimas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

Com esse raciocínio fica mais claro enten<strong>de</strong>rmos, por exemplo, qual é a fonte <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r do narcotráfico, um dos gran<strong>de</strong>s responsáveis pela violência no Brasil. Ele não é<br />

po<strong>de</strong>roso por ser violento, mas, ao contrário, por ser capaz <strong>de</strong> se articular, ou seja, <strong>de</strong><br />

criar solidarieda<strong>de</strong>s tanto orgânicas — por exemplo, junto a alguns policiais da região,<br />

aos moradores <strong>de</strong> uma favela — quanto organizacionais — junto a gran<strong>de</strong>s empresários,<br />

políticos, autorida<strong>de</strong>s policiais, banqueiros, todos interligados em re<strong>de</strong>s pelo mundo.<br />

Nessta mesma linha po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r o po<strong>de</strong>r das organizações criminosas <strong>de</strong>ntro<br />

dos presídios. A cada dia ficamos mais impressionados com as matérias veiculadas nos<br />

jornais, mostrando a atuação <strong>de</strong> presos que continuam praticando ações criminosas mesmo<br />

estando encarcerados. Mas em que se baseia o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sses homens? Na violência?<br />

Nas poucas armas que têm? Acreditamos que não. A principal arma dos presidiários é o<br />

seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> articulação. Muitas vezes, eles se articulam com os próprios agentes<br />

carcerários ou com seus advogados particulares, os quais ficam responsáveis em levar e<br />

trazer informações, armas, dinheiro. É esse mesmo raciocínio que nos leva a crer que os<br />

bloqueadores <strong>de</strong> celulares em presídios sejam uma gran<strong>de</strong> ilusão, visto que bastam alguns<br />

acordos para que os celulares passem a funcionar livremente nesses locais. O celular,<br />

sim, é a gran<strong>de</strong> arma dos presidiários. Esse é um dos argumentos que nos permitem<br />

104<br />

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Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que não existe presídio <strong>de</strong> segurança máxima ou, pelo menos, que segurança<br />

máxima não é um atributo puramente técnico, mas também político.<br />

Tentar <strong>de</strong>sarticular a parte organizacional do crime é algo extremamente complicado e<br />

que as autorida<strong>de</strong>s policiais vêm se mostrando incapazes <strong>de</strong> fazer. Talvez uma solução<br />

mais coerente seja investir na retomada da cidadania, no fortalecimento das solidarieda<strong>de</strong>s<br />

orgânicas cidadãs, não <strong>de</strong>ixando espaço para que o crime produza suas próprias<br />

solidarieda<strong>de</strong>s.<br />

Tudo isso nos leva a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que a solução para a violência não está na repressão<br />

exagerada nem em se trancafiar em condomínios fechados ou investir em carros blindados<br />

e, muito menos, em colocar câmeras <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o pelos bairros, à moda dos reality shows.<br />

A solução vai muito mais no sentido <strong>de</strong> promover ações que gerem mais articulações e<br />

não, mais violência. É preciso, portanto, retomar as solidarieda<strong>de</strong>s orgânicas perdidas<br />

nos lugares.<br />

Lugar e cotidiano<br />

A rua arranca as pessoas do isolamento e da insociabilida<strong>de</strong>. Teatro espontâneo, terreno <strong>de</strong> jogos<br />

sem regras precisas e por isto mais interessantes, lugar <strong>de</strong> encontros e solicitu<strong>de</strong>s múltiplas —<br />

materiais, culturais, espirituais —, a rua resta indispensável (YAZIGI, 2000, p. 329).<br />

O lugar é a materialização da idéia abstrata <strong>de</strong> território usado (SOUZA, 2005). É o<br />

verda<strong>de</strong>iro espaço da ação, pois é nele que os eventos se tornam materialida<strong>de</strong>s. Ele é<br />

um misto <strong>de</strong> verticalida<strong>de</strong>s e horizontalida<strong>de</strong>s, 4 pois tanto abrange os nós das re<strong>de</strong>s, os<br />

pontos das solidarieda<strong>de</strong>s organizacionais, como também abriga as solidarieda<strong>de</strong>s<br />

orgânicas, que são a sua marca. É, segundo Santos (1999, p. 131), um espaço do acontecer<br />

solidário. E para enten<strong>de</strong>r melhor o significado <strong>de</strong>sse acontecer solidário, o conceito <strong>de</strong><br />

cotidiano mostra-se útil.<br />

O cotidiano é um conceito dialético no sentido <strong>de</strong> que ao mesmo tempo em que traz<br />

uma noção <strong>de</strong> rotina, <strong>de</strong> repetição, também carrega uma idéia <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> improvisação.<br />

O cotidiano é simultaneamente repetitivo e inventivo. 5<br />

O cotidiano é a materialização do tempo da globalização. 6 Santos (1998, p. 82) afirma<br />

que “há apenas um relógio mundial, mas não um tempo mundial”. Isso se dá porque<br />

cada lugar tem seu tempo, sua forma <strong>de</strong> transformar o relógio mundial em tempo local<br />

ou, em outras palavras, em cotidiano.<br />

O lugar e o cotidiano são as instâncias maiores da co-presença, do encontro, da espontaneida<strong>de</strong><br />

e da criativida<strong>de</strong> que só o acaso é capaz <strong>de</strong> gerar. Porém, o urbanismo recente<br />

vem criando novas formas cujas intencionalida<strong>de</strong>s vão justamente <strong>de</strong> encontro a esstas<br />

idéias. São formas que priorizam a segregação, a homogeneida<strong>de</strong> e a monotonia. Ao<br />

invés <strong>de</strong> um incentivo a um cotidiano heterogêneo e revolucionário, o que vemos é um<br />

incentivo às práticas <strong>de</strong> isolamento através das construções <strong>de</strong> enclaves fortificados (CAL-<br />

DEIRA, 2000).<br />

Não bastassem essas novas formas, vemos também o surgimento rápido <strong>de</strong> novas<br />

técnicas <strong>de</strong> vigilância, 7 sendo as câmeras o exemplo mais ilustrativo. Tais objetos <strong>de</strong>vem<br />

4<br />

“As verticalida<strong>de</strong>s são vetores <strong>de</strong> uma<br />

racionalida<strong>de</strong> superior e <strong>de</strong> seu discurso pragmático,<br />

criando um cotidiano obediente. As<br />

horizontalida<strong>de</strong>s são tanto o lugar da finalida<strong>de</strong><br />

imposta <strong>de</strong> fora, <strong>de</strong> longe e <strong>de</strong> cima,<br />

quanto o da contrafinalida<strong>de</strong>, localmente<br />

gerada, o teatro <strong>de</strong> um cotidiano conforme,<br />

mas não obrigatoriamente conformista, e,<br />

simultaneamente, o lugar da cegueira e da<br />

<strong>de</strong>scoberta, da complacência e da revolta”<br />

(SANTOS, 1998 p. 93).<br />

5<br />

“Na cida<strong>de</strong> ‘luminosa’, mo<strong>de</strong>rna, hoje, a ‘naturalida<strong>de</strong>’<br />

do objeto técnico cria uma mecânica<br />

rotineira, um sistema <strong>de</strong> gestos sem surpresa.<br />

Essa historicização da metafísica crava<br />

no organismo urbano áreas constituídas ao<br />

sabor da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e que se justapõem,<br />

superpõem-se e contrapõem-se ao resto da<br />

cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vivem os pobres, nas zonas urbanas<br />

‘opacas’. Estas são os espaços do aproximativo<br />

e da criativida<strong>de</strong>, opostos às zonas<br />

luminosas, espaços da exatidão. Os espaços<br />

inorgânicos é que são abertos, e os espaços<br />

regulares são fechados, racionalizados e<br />

racionalizadores” (SANTOS, 1999, p. 261).<br />

6<br />

“O tempo se dá pelos homens. O tempo concreto<br />

dos homens é a temporalização prática,<br />

movimento do Mundo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada qual e,<br />

por isso, interpretação particular do Tempo<br />

por cada grupo, cada classe social, cada indivíduo”<br />

(SANTOS, 1998, p. 83)<br />

7, 8, 9<br />

7<br />

“Se é verda<strong>de</strong> que por toda a parte se esten<strong>de</strong><br />

e precisa a re<strong>de</strong> da ‘vigilância’, mais<br />

urgente ainda é <strong>de</strong>scobrir como é que a socieda<strong>de</strong><br />

inteira não se reduz a ela: que procedimentos<br />

populares (também ‘minúsculos’<br />

e cotidianos) jogam com os mecanismos da<br />

disciplina e não se conformam com ela a não<br />

ser para alterá-los” (CERTEAU, 1994, p. 41).<br />

Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

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Geografias<br />

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ser analisados <strong>de</strong> forma dialética, pois, juntamente com o suposto benefício que po<strong>de</strong>m<br />

trazer, geram uma série <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> comportamento que incentivam os preconceitos,<br />

a segregação e as neuroses urbanas.<br />

Curiosamente, em um período marcado pela racionalida<strong>de</strong>, é o medo, um atributo<br />

altamente subjetivo e do âmbito da emoção e não da razão, que aparece como justificativa<br />

para a implantação <strong>de</strong>sses novos objetos técnicos. É esse mesmo medo que incentiva<br />

o “endurecimento” da polícia ou, em outras palavras, o aumento da violência policial.<br />

A dialética se faz importante ao mostrar que esstas novas ações e objetos que ameaçam<br />

as solidarieda<strong>de</strong>s orgânicas acabam sendo, na verda<strong>de</strong>, promotoras e não, redutoras <strong>de</strong><br />

violência. Retomando-se o conceito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, proposto por Arendt (1994), isso fica<br />

mais claro, pois o isolamento reduz o po<strong>de</strong>r, visto que diminui as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

existência <strong>de</strong> pactos, <strong>de</strong> ações em conjunto, <strong>de</strong>ixando espaço para a violência.<br />

O método dialético ainda sugere que consi<strong>de</strong>remos com cautela a utilização dos mapas<br />

e das estatísticas nos estudos geográficos da violência urbana.<br />

Constatar não é compreen<strong>de</strong>r: limitações do método analítico<br />

A geografia escancara o que os números escamoteiam (SOUZA, 2000, p. 5).<br />

8<br />

O Geoprocessamento é entendido aqui como<br />

um conjunto composto pelas tecnologias <strong>de</strong><br />

Sensoriamento Remoto, Cartografia Digital,<br />

Sistemas <strong>de</strong> Informações Georreferenciadas<br />

(SIG) e Sistemas <strong>de</strong> Posicionamento Global<br />

(GPS), além <strong>de</strong> outras tecnologias que lhe dão<br />

suporte, como a Geoestatística, os Bancos <strong>de</strong><br />

Dados e a Computação Gráfica.<br />

O método analítico congela a realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>screve-a, analisa-a e, por fim, faz <strong>de</strong>duções<br />

(SOUZA, 2005). Ele é portanto i<strong>de</strong>alista, no sentido em que pensa um mundo sem<br />

contradições. Ele já foi o raciocínio central da escola quantitativa da Geografia, mas<br />

acabou ce<strong>de</strong>ndo espaço às idéias marxistas da chamada Geografia Crítica. Hoje ele retoma<br />

forças, travestido pelas novas tecnologias do Geoprocessamento. 8<br />

A contribuição do Geoprocessamento como instrumento <strong>de</strong> análise geográfica é inegável.<br />

Com ele, os eventos po<strong>de</strong>m ser rapidamente mapeados e estudados. O problema surge<br />

quando os meios são confundidos com os fins. O Geoprocessamento é um instrumento<br />

<strong>de</strong> representação do espaço geográfico e, como qualquer representação, é uma redução.<br />

Os mapas <strong>de</strong>vem ser analisados com cuidado, pois, conforme nos mostra Monmonier<br />

(1996), eles mentem. O processo <strong>de</strong> elaboração cartográfica é carregado <strong>de</strong> generalizações<br />

e simplificações. O espaço que os mapas representam é uma das várias combinações<br />

possíveis, sem falar que eles se baseiam em estatísticas, e estas, conforme afirma<br />

Huff (1973), também mentem.<br />

No caso das estatísticas policias, tais mentiras são mais evi<strong>de</strong>ntes. Uma multiplicação<br />

<strong>de</strong> ocorrências em um distrito policial, por exemplo, po<strong>de</strong> representar tanto um real<br />

aumento da criminalida<strong>de</strong> quanto uma atuação mais eficiente da polícia. Além disso,<br />

Felix (2002) e Cal<strong>de</strong>ira (2000) mostram-nos o quanto a polícia age a partir <strong>de</strong> estereótipos<br />

na hora <strong>de</strong> abordar um suspeito, inflando, por exemplo, os números em relação à<br />

população negra.<br />

Dados como causas mortis também não fogem à regra, visto que po<strong>de</strong>m trazer informações<br />

distorcidas: uma pessoa que, tendo levado um tiro, não morreu no momento da<br />

ação po<strong>de</strong>rá vir a falecer uma ou duas semanas <strong>de</strong>pois e ter sua morte catalogada como<br />

por infecção generalizada, por exemplo. Outra distorção a ser levada em conta advém<br />

106<br />

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Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


do <strong>de</strong>spreparo dos funcionários públicos no que concerne ao preenchimento <strong>de</strong> boletins<br />

<strong>de</strong> ocorrência e <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> óbitos. Vale dizer também que a própria representação<br />

da violência a partir <strong>de</strong> um número, <strong>de</strong> uma estatística, já é uma enorme redução.<br />

Os mapas criminais são, portanto, uma dupla redução do espaço geográfico e, por<br />

isso, jamais <strong>de</strong>vem ser o ponto <strong>de</strong> partida para uma análise geográfica da violência. Não<br />

<strong>de</strong>vemos, obviamente, ignorá-los, mas utilizá-los com cautela e com o conhecimento <strong>de</strong><br />

todos os vícios que possam conter.<br />

Somente <strong>de</strong>ntro da escola analítica cabem afirmações como a <strong>de</strong> Francisco Filho (2003),<br />

para quem o Geoprocessamento é capaz <strong>de</strong> trabalhar com relações <strong>de</strong> causa e efeito, 9<br />

<strong>de</strong>ntro dos estudos sobre violência. Kosik (1976, p. 90) alerta-nos, porém, <strong>de</strong> que “querer<br />

estabelecer uma contraposição entre os efeitos e as causas significa não saber apreen<strong>de</strong>r<br />

a essência do problema”.<br />

Outro exemplo analítico <strong>de</strong>ntro dos estudos geográficos é a relação que Mendonça<br />

(2001) faz entre clima e criminalida<strong>de</strong>. A violência, porém, não po<strong>de</strong> ser compreendida<br />

apenas através <strong>de</strong> correlações: primeiro, porque as correlações se baseiam em estatísticas,<br />

e, como já foi dito, estas mentem; segundo, porque o máximo que as correlações conseguem<br />

atingir são algumas constatações, o que não significa necessariamente um passo no<br />

sentido das compreensões.<br />

O planejamento territorial comumente alimenta-se dos mapas <strong>de</strong> Geoprocessamento<br />

e dos preceitos da escola analítica, mas uma abordagem dialética para ele<br />

também se impõe.<br />

Planejamento territorial<br />

Através da ação sobre as formas, tanto novas como renovadas, o planejamento constitui muitas<br />

vezes meramente uma fachada científica para operações capitalistas (SANTOS, 2003, p. 193).<br />

Muitos cientistas sociais acreditam que a solução para a violência urbana está no planejamento<br />

territorial. Porém, é preciso <strong>de</strong>stacar que a escola analítica e a escola dialética<br />

possuem concepções diferentes sobre o planejamento. Para a primeira, este seria um<br />

conjunto <strong>de</strong> técnicas e <strong>de</strong> procedimentos. Para a analítica, os problemas do planejamento<br />

seriam resolvidos com melhores tecnologias e novas formas <strong>de</strong> fazê-lo. Ferraz (1994,<br />

p. 11), por exemplo, aponta que “as causas da violência não se situam nas áreas da<br />

sociologia, do direito e da psiquiatria, mas, sim, no âmbito da organização física da<br />

cida<strong>de</strong>, área da engenharia”.<br />

A dialética já nos permite uma visão diferente, consi<strong>de</strong>rando o planejamento como<br />

uma questão não apenas técnica, mas também política, ou seja, como um embate <strong>de</strong><br />

interesses. Ela nos permite fazer a crítica ao planejamento puramente setorial, um dos<br />

problemas do planejamento em gran<strong>de</strong> parte dos municípios brasileiros. As administrações<br />

municipais recortam os territórios setorialmente, através <strong>de</strong> um planejamento <strong>de</strong>sconexo<br />

em que cada setor enxerga e regionaliza o território à sua maneira. A Educação<br />

não conversa com a Saú<strong>de</strong>, que por sua vez não conversa com as Finanças, e estas não se<br />

enten<strong>de</strong>m com a Segurança Pública. No caso <strong>de</strong>sta última, o problema mostra-se mais<br />

9<br />

“O geoprocessamento se caracteriza como<br />

uma ferramenta <strong>de</strong> extremo valor para a<br />

análise <strong>de</strong> fenômenos com expressão territorial,<br />

pois permite sua espacialização através<br />

da quantificação, qualificação e localização,<br />

bem como o relacionamento com<br />

outras variáveis espaciais, estabelecendo<br />

uma relação <strong>de</strong> causa e efeito extremamente<br />

útil a todos aqueles que têm como função<br />

a gestão do espaço urbano” (FRANCIS-<br />

CO FILHO, 2003, p. 3).<br />

Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

107


10<br />

“A planificação urbana não é mais o produto<br />

<strong>de</strong> um código <strong>de</strong> urbanismo, mas sim o resultado<br />

<strong>de</strong> acordos mais ou menos explícitos<br />

estabelecidos entre os dirigentes do aparelho<br />

do Estado, alguns interesses econômicos<br />

e financeiros e um punhado <strong>de</strong> políticos locais...<br />

O Estado seleciona alguns grupos econômicos<br />

e sociais que transforma em parceiros<br />

privilegiados e com os quais exerce<br />

arbitragens” (LOJKINE, 1981, p. 54).<br />

11<br />

“Ao <strong>de</strong>struir a rua como espaço para a vida<br />

pública, o planejamento mo<strong>de</strong>rnista também<br />

minou a diversida<strong>de</strong> urbana e a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> coexistência <strong>de</strong> diferenças” (CALDEIRA,<br />

2000, p. 311).<br />

12<br />

“Parece claro que, se os problemas da metrópole<br />

surgiram <strong>de</strong> imposições alienantes<br />

que cercearam a participação <strong>de</strong> cidadãos na<br />

produção do seu espaço, uma primeira esperança<br />

será a <strong>de</strong> reconquistar a participação<br />

do povo” (MORAIS, 1981, p. 102).<br />

grave quando polícia militar e polícia civil trabalham <strong>de</strong>sconexas, caso comum em todos<br />

os Estados da Fe<strong>de</strong>ração.<br />

A setorização da administração pública provoca resultado semelhante ao da disciplinarização<br />

do conhecimento. Assim como a transdisciplinarida<strong>de</strong> não é apenas a soma<br />

das disciplinas, o planejamento territorial não é apenas a soma dos setores. Certeau (1994,<br />

p. 119) alertava-nos <strong>de</strong> que “é fora das fronteiras da disciplina que as práticas formam a<br />

realida<strong>de</strong> opaca <strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> nascer uma questão teórica”. Assim como é fora dos<br />

setores, é no território usado, que po<strong>de</strong> nascer um planejamento realmente justo. A dialética<br />

leva-nos a pensar, portanto, um planejamento territorial — e não, setorial —, em que<br />

sejam os lugares e o território usado — e não, os setores — quem ditem as regras.<br />

O planejamento setorial é a<strong>de</strong>rente aos interesses dos agentes hegemônicos, é favorável<br />

às verticalida<strong>de</strong>s e não, às horizontalida<strong>de</strong>s. Por ser pretensamente apolítico,<br />

neutro e técnico, ele encobre as perversida<strong>de</strong>s feitas através dos acordos entre Estado<br />

e interesses privados. 10<br />

O planejamento territorial precisa enten<strong>de</strong>r os pactos invisíveis que acontecem nos<br />

lugares; daí a importância do conceito <strong>de</strong> cotidiano. 11 Deve também levar em conta os<br />

interesses dos lugares 12 e não apenas interesses externos a estes. Precisa, por fim, ser<br />

concebido a partir do território usado e não dos setores. Planejar a cida<strong>de</strong> passa a ser,<br />

portanto, uma questão <strong>de</strong> articulações, <strong>de</strong> acordos, mas não apenas <strong>de</strong> acordos entre<br />

alguns poucos agentes hegemônicos e sim, entre todos os agentes, inclusive os hegemonizados.<br />

Os geógrafos precisam, então, estar preparados para compreen<strong>de</strong>r este novo<br />

momento. E essa compreensão não po<strong>de</strong>rá vir senão pelo método dialético.<br />

A Geografia e o planejamento que <strong>de</strong>la advém não po<strong>de</strong>m eliminar o atrito; precisam,<br />

sim, apren<strong>de</strong>r a lidar com ele. Certeau (1994, p. 172) nos ensina que “planejar a cida<strong>de</strong> é<br />

ao mesmo tempo pensar a própria pluralida<strong>de</strong> do real e dar efetivida<strong>de</strong> a este pensamento<br />

do plural: é saber e po<strong>de</strong>r articular”. Por todos esses motivos acreditamos que,<br />

enquanto for vista como uma questão simplesmente <strong>de</strong> segurança pública, a violência<br />

urbana nunca será efetivamente combatida. A violência é parte <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> complexa<br />

e só po<strong>de</strong>rá ser compreendida através <strong>de</strong> um método dialético.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

A vida não é um produto da Técnica mas da Política, a ação que dá sentido<br />

à materialida<strong>de</strong> (SANTOS, 1998, p. 39).<br />

A violência não é, por si só, objeto <strong>de</strong> estudo da Geografia. Aos geógrafos cabe estudála<br />

enquanto prática espacial, fruto <strong>de</strong> usos específicos do território.<br />

Mas para que a Geografia possa ser realmente uma ciência do atrito, ou seja, uma<br />

Geografia da ação, é necessário que consiga superar as limitações do método analítico e<br />

que se envolva profundamente com o dialético.<br />

Tal abordagem permite-nos elaborar algumas compreensões sobre a violência, como<br />

a <strong>de</strong> que ela é muito mais um problema <strong>de</strong> política do que <strong>de</strong> técnica. Possibilita-nos,<br />

também, enxergar a violência da maneira como ela realmente é: complexa. Anima-nos,<br />

108<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


por fim, a acreditar em uma Geografia revolucionária, uma geografia que consiga enten<strong>de</strong>r<br />

o período popular da história (SANTOS, 2000), momento este que não será necessariamente<br />

pacífico.<br />

Para terminar, lembrando-nos da provocação <strong>de</strong> Marx (1946, p. 54, tradução nossa)<br />

em sua décima primeira tese sobre Feuerbach — “Os filósofos têm se limitado a<br />

interpretar o mundo <strong>de</strong> diferentes maneiras; trata-se, no entanto, <strong>de</strong> transformá-lo” —<br />

po<strong>de</strong>ríamos reinterpretá-la para a Geografia: os analíticos têm se limitado a <strong>de</strong>screver<br />

a violência; trata-se, no entanto, <strong>de</strong> compreendê-la. E compreen<strong>de</strong>r é mudar, como já<br />

dizia Sartre (1966, p. 20).<br />

artigo recebido julho/2005<br />

artigo aprovado setembro/2005<br />

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Geografias Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Belo Horizonte 01(1) 98-110 julho-<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2005<br />

Lucas <strong>de</strong> Melo Melgaço<br />

Geografias<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

111


Notas <strong>de</strong><br />

pesquisa<br />

112<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Notas <strong>de</strong><br />

pesquisa<br />

Contribuição dos fluxos migratórios<br />

na expansão da re<strong>de</strong> urbana brasileira;<br />

<strong>de</strong>sconcentração espacial e diferenciais<br />

sócio-espaciais<br />

Migração e urbanização <strong>de</strong>scentralizada<br />

no Brasil contemporâneo<br />

Ralfo Matos<br />

<strong>IGC</strong>/UFMG<br />

Dando prosseguimento a uma série <strong>de</strong> estudos sobre urbanização, população, migração<br />

e re<strong>de</strong> urbana brasileira com base em dados censitários, duas pesquisas <strong>de</strong>senvolvidas<br />

no Laboratório <strong>de</strong> Estudos Territoriais (Leste) com financiamento do CNPq,<br />

coor<strong>de</strong>nadas pelo Prof. Ralfo Matos foram encerradas no segundo semestre <strong>de</strong> 2005.<br />

A primeira intitulada “Contribuição dos fluxos migratórios na expansão da re<strong>de</strong> urbana brasileira;<br />

<strong>de</strong>sconcentração espacial e diferenciais sócio-espaciais” e a segunda “Migração e urbanização<br />

<strong>de</strong>scentralizada no Brasil contemporâneo”.<br />

As pesquisas estudaram o fenômeno da crescente urbanização fora dos gran<strong>de</strong>s<br />

centros, no que se po<strong>de</strong>ria apontar como uma urbanização <strong>de</strong>scentralizada articulada<br />

por fluxos migratórios ainda pouco estudados. Outro objetivo da pesquisa procurou<br />

<strong>de</strong>talhar a contribuição dos migrantes na região metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />

assinalando a importância da gran<strong>de</strong> área <strong>de</strong> influência da Capital <strong>de</strong>ntro da<br />

re<strong>de</strong> <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s do país.<br />

Metodologicamente foi necessário adotar um conjunto <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s centrais que<br />

cobriu 165 nódulos urbanos em 1991, abrangendo 293 dos principais municípios brasileiros.<br />

As populações alvo do estudo eram os resi<strong>de</strong>ntes nos municípios nos censos <strong>de</strong><br />

1980, 1991 e 2000, com discriminação <strong>de</strong> não-migrantes e migrantes, controlados segundo<br />

diversas variáveis a exemplo <strong>de</strong> sexo, ida<strong>de</strong>, unida<strong>de</strong> da Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> nascimento,<br />

relação com o chefe do domicílio, situação domiciliar atual, nome do município em que<br />

estuda e trabalha, tempo <strong>de</strong> residência no município atual, estado conjugal, anos <strong>de</strong> estudos,<br />

ocupação atual, tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> ocupação ou cargo nos últimos 12 meses, classes<br />

<strong>de</strong> renda total e familiar, posição no estabelecimento e presença <strong>de</strong> carteira assinada.<br />

Tudo isso exigiu meses <strong>de</strong> tabulação <strong>de</strong> dados, produção <strong>de</strong> planilhas, tabelas, mapas<br />

temáticos, discussão teórica e metodológica, preparação <strong>de</strong> papers, avaliação <strong>de</strong> diferenciais<br />

relativos às populações economicamente ativa <strong>de</strong> migrantes e não migrantes, <strong>de</strong>ntro<br />

e fora da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s centrais, etc.<br />

As pesquisas permitiram avançar teórica e empiricamente sobre vários itens <strong>de</strong> interesse<br />

da Geografia Econômica e da Geografia da População. Os achados permitem afirmar<br />

que os processos econômicos e financeiros que vinculam o Brasil à chamada<br />

globalização contemporânea são insuficientes para respon<strong>de</strong>r ao potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

inscrito nas relações econômico-<strong>de</strong>mográficas que acompanham a reestruturação<br />

territorial intra e inter regional das duas últimas décadas. O país está mais complexo e há<br />

importantes fatores dinâmicos locais e regionais que não po<strong>de</strong>m ser negligenciados na<br />

agenda do <strong>de</strong>senvolvimento. A re<strong>de</strong> <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s centrais (RLC) <strong>de</strong>finida pelos pesquisadores<br />

do Leste mostrou ser um excelente recorte espacial para a discussão da<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

113


edistribuição e <strong>de</strong>sconcentração da população brasileira nas últimas décadas, bastante<br />

superior aos recortes baseados apenas em UFs, Gran<strong>de</strong>s Regiões ou municípios. A RLC<br />

permitiu estabelecer classificações <strong>de</strong> subespaços <strong>de</strong> forma didaticamente simples, cobrindo<br />

a integrida<strong>de</strong> territorial do país, com a vantagem <strong>de</strong> contrastar os municípios e as<br />

espacialida<strong>de</strong>s pertencentes ou não a re<strong>de</strong>. Importantes aperfeiçoamentos e testes <strong>de</strong><br />

consistência foram efetivados sobre os pontos obtidos nessa re<strong>de</strong>.<br />

Alguns ensaios foram dirigidos à junção <strong>de</strong> concepções teóricas e metodológicas utilizadas<br />

nos estudos <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s geográficas e re<strong>de</strong>s migratórias. A utilização <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong><br />

análise <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s sociais permitiu apontar regionalizações específicas – balisadas por fluxos<br />

migratórios – e aferir a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> diversos subespaços do país. Na<br />

verda<strong>de</strong>, a migração ainda é um vetor <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>nte se controlada a origem.<br />

Migrantes provenientes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s áreas urbanas participam do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcentração<br />

espacial <strong>de</strong>mográfica e atuam como veículos <strong>de</strong> dinamização <strong>de</strong> mercados <strong>de</strong><br />

trabalho locais. Ficou evi<strong>de</strong>nte, inclusive, que a migração campo-cida<strong>de</strong> constitui uma<br />

forma <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> social ascen<strong>de</strong>nte das mulheres em relação aos homens, no que<br />

alguns autores <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong> feminização <strong>de</strong> segmentos dos mercado <strong>de</strong> trabalho urbano.<br />

Por último, as pesquisas procuraram explorar a expressão visual que a cartografia<br />

das relações socioespaciais internaliza, com recurso didático valioso para uso em sala <strong>de</strong><br />

aula e treinamento <strong>de</strong> alunos.<br />

Alguns dos principais resultados referiram-se às: i) análises <strong>de</strong>mográfico-econômicas<br />

e socio-espaciais sobre distribuição e redistribuição da população brasileira pela re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s centrais (RLC), <strong>de</strong>stacando-se os subespaços <strong>de</strong> maior centralida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>; ii) análise da <strong>de</strong>sconcentração <strong>de</strong>mográfica a partir dos fluxos migratórios<br />

originários <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s centros urbanos enfatizando a importância da migração <strong>de</strong> retorno<br />

e da emigração das metrópoles <strong>de</strong> São Paulo e Rio <strong>de</strong> Janeiro; iii) análises e<br />

discussão teórica sobre: mudanças macroterritoriais do Brasil das últimas décadas;<br />

homogeneização e heterogeneida<strong>de</strong>; dualismos e não-dualismo, apoiada em evi<strong>de</strong>nciação<br />

empírica utilizando-se principalmente <strong>de</strong> dados censitários; iv) análises focalizando níveis<br />

<strong>de</strong> pobreza e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sócio-espaciais confrontadas com a contribuição relativa<br />

da migração interna sobre o recru<strong>de</strong>scimento ou amenização da pobreza; v) análises<br />

das matrizes <strong>de</strong> fluxos migratórios da RLC controlando territorialida<strong>de</strong>s notáveis e<br />

discriminando as características sintéticas das frações Norte, Nor<strong>de</strong>ste e Centro Sul; vi)<br />

análises da distribuição da força <strong>de</strong> trabalho migrante por setores econômicos e níveis<br />

<strong>de</strong> renda segundo subespaços <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e fora da re<strong>de</strong>. vii) análises sobre diferenciais<br />

por sexo <strong>de</strong> migrantes da RLC com <strong>de</strong>staque para localida<strong>de</strong>s notáveis; viii) análises<br />

sobre a mudança do padrão migratório envolvendo <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> e São Paulo, com<br />

<strong>de</strong>staque para os subespaços explicativos segundo características urbanas e rurais; ix)<br />

banco <strong>de</strong> dados, tabelas sínteses, gráficos, cartogramas, apresentações em Power Point,<br />

informações selecionadas em CD Rom.<br />

Várias ativida<strong>de</strong>s científicas e administrativas correlacionadas às pesquisas integraram<br />

docentes e discentes a exemplos das que foram <strong>de</strong>senvolvidas no X Encontro Nacional<br />

da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e<br />

114<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Regional (ANPUR) em Belo Horizonte, 2003; no III Encontro Nacional sobre Migrações<br />

e no Encontro Transdisciplinar sobre Espaço e População em Campinas, 2003;<br />

no XIV Encontro Nacional <strong>de</strong> Estudos Populacionais (ABEP) em Caxambu, 2004; no<br />

VI Encontro Nacional <strong>de</strong> Geógrafos em Goiânia, 2004; no XI Seminário sobre Economia<br />

Mineira. em Diamantina, 2004; no XI Encontro da ANPUR em Salvador, 2005. Algumas<br />

<strong>de</strong>las resultaram em contatos internacionais como o que se realizou no I Encontro<br />

da Asociación Latinoamericana <strong>de</strong> Población, e irá resultar em livro a ser editado pela Universidad<br />

<strong>de</strong> Guadalajara e Universidad Autónoma <strong>de</strong>l Estado <strong>de</strong> México.<br />

Em termos <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> recursos humanos tais pesquisa envolveram sete bolsistas<br />

<strong>de</strong> iniciação científica, seis mestrandos e dois doutorandos, quase todos co-autores <strong>de</strong><br />

artigos publicados em eventos científicos e periódicos, capítulos <strong>de</strong> livro. Os próprios<br />

títulos <strong>de</strong>ssas publicações testemunham parte do alcance das pesquisas supracitadas:<br />

FERREIRA, Rodrigo (bolsista M) e MATOS, Ralfo. A dinâmica do emprego formal no Brasil da<br />

década <strong>de</strong> 1990 e as tendências <strong>de</strong> reestruturação territorial. In: XI Encontro Nacional da Associação<br />

Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.<br />

Salvador. Maio <strong>de</strong> 2005; MATOS, Ralfo, BRAGA, Fernando (bolsista M). Urbanização no<br />

Brasil contemporâneo e a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s Centrais em Evolução. In: XI Encontro<br />

Nacional da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano<br />

e Regional. Salvador. Maio <strong>de</strong> 2005; MATOS, Ralfo, FERREIRA, Rodrigo (bolsista M).<br />

Inserção ocupacional <strong>de</strong> emigrantes das Áreas Metropolitanas <strong>de</strong> São Paulo e Rio <strong>de</strong> Janeiro. <strong>Revista</strong><br />

Brasileira <strong>de</strong> Estudos Populacionais. Campinas. V. 21, n.1, p. 83-100, 2004; MATOS, Ralfo,<br />

BRAGA, Fernando (bolsista M). Re<strong>de</strong>s Sociais, Re<strong>de</strong>s Territoriais e Migrações. In: XIV Encontro<br />

Nacional <strong>de</strong> Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu. Setembro <strong>de</strong> 2004; MATOS,<br />

Ralfo, UMBELINO, Glauco (bolsista IC). Divisões do Brasil e a sugestão da re<strong>de</strong> tripartite <strong>de</strong><br />

localida<strong>de</strong>s centrais. In: VI Congresso Brasileiros <strong>de</strong> Geógrafo. Goiânia. 2004; MATOS, Ralfo,<br />

FERREIRA, Rodrigo (bolsista M). Caracterização da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s urbanas centrais do<br />

Brasil <strong>de</strong> fins do século XX. In: VI Congresso Brasileiros <strong>de</strong> Geógrafo. Goiânia. 2004; MA-<br />

TOS, Ralfo, BRAGA, Fernando (bolsista M). Trocas migratórias na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s centrais<br />

do Brasil e os métodos <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s sociais. In: VI Congresso Brasileiros <strong>de</strong> Geógrafo.<br />

Goiânia. 2004; MATOS, Ralfo, FERREIRA, Carlos (bolsista D), STEFANI, João. Inversão<br />

nas trocas populacionais entre <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> e São Paulo. In: XIV Encontro Nacional <strong>de</strong> Estudos<br />

Populacionais. Caxambu. 2004; MATOS, Ralfo, SATLER, Douglas, UMBELINO, Glauco<br />

(bolsista IC), Urbano Influente e Rural não-agrícola em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. In: XI Seminário sobre<br />

Economia Mineira. Diamantina. Ce<strong>de</strong>plar/UFMG. 2004; MATOS, Ralfo. A produção <strong>de</strong><br />

periferias distantes e a dispersão dos emigrantes <strong>de</strong> Belo Horizonte. Anuário Estatístico <strong>de</strong> Belo<br />

Horizonte. Belo Horizonte. V. 1 n.1. p. 99-111, 2003.<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

NOTAS DE PESQUISA<br />

115


Eventos<br />

116<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

EVENTOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


A Geografia na mo<strong>de</strong>rnização do mundo<br />

Maria <strong>de</strong> Fátima Almeida Martins<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação da UFMG, AGB-BH<br />

Foi com a temática acima que o V Encontro<br />

Estadual <strong>de</strong> Geografia <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>,<br />

realizado em Belo Horizonte, em julho <strong>de</strong><br />

2005 buscou através das ativida<strong>de</strong>s como:<br />

os Diálogos e Práticas, Grupos <strong>de</strong> Trabalhos<br />

e Mesas-redondas, <strong>de</strong>bater e problematizar<br />

as questões pertinentes à mo<strong>de</strong>rnização. As<br />

Discussões estiveram distribuídas em três<br />

eixos temáticos que trataram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a relação<br />

da Geografia, Educação e o projeto<br />

mo<strong>de</strong>rno; o processo <strong>de</strong> produção do<br />

espaço e política em <strong>Minas</strong>, bem como, a<br />

construção do discurso geográfico: natureza(s),<br />

linguagem(s), tecnologia(s).<br />

Nas ativida<strong>de</strong>s como: mesas-redondas,<br />

diálogos e práticas, os <strong>de</strong>bates foram bastante<br />

interessantes e ricos, pois apresentaram,<br />

<strong>de</strong> uma certa forma, o embate que o<br />

movimento do pensamento e a prática na<br />

geografia, por vezes, conflituosa entre a<br />

a<strong>de</strong>são ao mo<strong>de</strong>rno configurado por aquilo<br />

que dispõe <strong>de</strong> tecnologias, e o pensamento<br />

reflexivo, nos vários campos <strong>de</strong> atuação<br />

profissional. É importante <strong>de</strong>stacar<br />

que, para tentar lidar com essa complexida<strong>de</strong><br />

dada pelo mundo mo<strong>de</strong>rno, a Geografia<br />

não po<strong>de</strong> ficar circunscrita a ela mesma,<br />

configurando o geografismo, muito<br />

menos, na empobrecida leitura <strong>de</strong>scritiva.<br />

Ao fazer um balanço do encontro através<br />

das questões suscitadas pelos trabalhos<br />

apresentados nos diálogos e práticas, bem<br />

como, no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />

nos grupos <strong>de</strong> trabalhos, pô<strong>de</strong>-se ter uma<br />

boa dimensão <strong>de</strong> quais preocupações estão<br />

permeando a geografia em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />

Uma <strong>de</strong>stas preocupações, por exemplo,<br />

foi o <strong>de</strong> um confronto/encontro com<br />

as diferentes concepções <strong>de</strong> práticas propiciadas<br />

pela geografia, e, ao mesmo tempo,<br />

o que se pô<strong>de</strong> observar foi que, <strong>de</strong><br />

uma certa maneira, a perspectiva dos <strong>de</strong>bates<br />

e dos discursos, foi <strong>de</strong> uma nítida<br />

intencionalida<strong>de</strong> em romper com a prática<br />

educativa, centrada na memorização <strong>de</strong><br />

dados, fatos e acontecimentos, que colocou<br />

a Geografia no rol das disciplinas consi<strong>de</strong>radas<br />

“simplórias e enfadonhas”, e levou<br />

os docentes <strong>de</strong>ssa área do conhecimento a<br />

buscarem novas mediações para o processo<br />

<strong>de</strong> ensino-apredizagem. Ressaltamos<br />

também que, a busca que se expressa nessa<br />

mudança, foi encontrar através <strong>de</strong> elementos<br />

dispostos no cotidiano, uma efetiva<br />

relação com o sentidos e significados<br />

do conhecimento acadêmico para que este<br />

dê conta <strong>de</strong> um ensino <strong>de</strong> Geografia mais<br />

próximo ao aluno e que, <strong>de</strong> certa forma,<br />

ganhe sentido às questões propiciadas pela<br />

mo<strong>de</strong>rnização. É importante <strong>de</strong>stacar que<br />

a mo<strong>de</strong>rnização na Geografia ganhou sentido<br />

como argumentação teórica, na sua<br />

prática cotidiana, quando os instrumentos<br />

mo<strong>de</strong>rnos, foram incorporados ao fazer<br />

geográfico nos vários campos <strong>de</strong> sua atuação,<br />

seja na sala <strong>de</strong> aula como é o caso,<br />

das diferentes expressões artísticas (música,<br />

fotografia, pintura, literatura, cinema,<br />

teatro etc), seja na mídia eletrônica, no<br />

geoprocessamento entre tantos outros. Um<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

EVENTOS<br />

117


outro momento <strong>de</strong> análise sobre a Geografia<br />

na mo<strong>de</strong>rnização esteve relacionado<br />

às questões imediatamente referidas ao<br />

processo <strong>de</strong> urbanização brasileiro, bem<br />

como este se expressa em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. É<br />

importante ressaltar que, a pertinência da<br />

análise <strong>de</strong>sta temática esteve mais próxima<br />

<strong>de</strong> relatos dos alcances e limites do<br />

projeto mo<strong>de</strong>rno vivido pela socieda<strong>de</strong><br />

ou frações <strong>de</strong>la, e raras foram as perguntas<br />

realizadas em direção a integralida<strong>de</strong>,<br />

por exemplo, do direito a cida<strong>de</strong>, para além<br />

do que se configurou dos chamados equipamentos<br />

coletivos.<br />

Por fim, o Encontro <strong>de</strong>ixou esboçada a<br />

tarefa <strong>de</strong> pensarmos qual geografia ou<br />

quais geografias será ou serão necessárias<br />

para tentar <strong>de</strong>svendar um processo tão<br />

amplo e complexo como é o da mo<strong>de</strong>rnização.<br />

A tarefa não será pequena, pois<br />

os <strong>de</strong>bates não se encerraram com este<br />

encontro. A continuida<strong>de</strong> das discussões<br />

<strong>de</strong> quais geografia(s) que estão e serão produzidas,<br />

tem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, um novo encontro<br />

e uma nova oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprofundarmos<br />

o <strong>de</strong>bate, até 2007 na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Viçosa – MG.<br />

118<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

EVENTOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


XI Simpósio Brasileiro <strong>de</strong> Geografia Física Aplicada<br />

Antônio Pereira Magalhães Jr<br />

Departamento <strong>de</strong> Geografia/UFMG<br />

Entre os dias 05 e 09 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2005<br />

foi realizado, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, o XI<br />

Simpósio Brasileiro <strong>de</strong> Geografia Física<br />

Aplicada (SBGFA), evento organizado pelo<br />

Departamento <strong>de</strong> Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo com o apoio da<br />

Associação dos Geógrafos Brasileiros<br />

(AGB), da União <strong>de</strong> Geomorfologia Brasileira<br />

(UGB) e da Associação Brasileira <strong>de</strong><br />

Climatologia (ABClima).<br />

Nesta edição, a temática geral “Geografia,<br />

Tecnociência, Socieda<strong>de</strong> e Natureza” refletiu<br />

a maturida<strong>de</strong> e a abrangência científica<br />

do evento no que se refere à abertura<br />

a diferentes campos do saber geográfico.<br />

Apesar do enfoque nas questões que<br />

permeiam a geografia física brasileira, o<br />

evento apresentou ricas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

diálogos sobre questões que se aglomeram<br />

em torno da essência da geografia:<br />

as relações entre a socieda<strong>de</strong> e a natureza,<br />

entre o homem e o espaço físico.<br />

Neste sentido, as diversas conferências,<br />

mesas-redondas, apresentações <strong>de</strong> artigos<br />

e trabalhos <strong>de</strong> campo difundiram conhecimentos<br />

<strong>de</strong> sub-áreas geográficas tradicionalmente<br />

presentes nos primeiros<br />

SBGFA, e também daquelas que vêm se<br />

consolidando ao longo dos últimos anos.<br />

No primeiro caso, <strong>de</strong>stacaram-se: a) trabalhos<br />

<strong>de</strong> geomorfologia aplicada envolvendo,<br />

em diferentes escalas, a dinâmica<br />

das paisagens e das formações superficiais<br />

em ambientes tropicais, a reconstituição<br />

paleogeográfica com base em registros<br />

morfológicos e sedimentares, a evolução<br />

e o controle <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> erosão acelerada<br />

e movimentos <strong>de</strong> massa, estudos <strong>de</strong><br />

geomorfologia fluvial e <strong>de</strong> geomorfologia<br />

urbana, estudos sobre a influência da<br />

neotectônica na morfologia e nos processos<br />

morfodinâmicos, geomorfologia litorânea;<br />

b) trabalhos <strong>de</strong> climatologia envolvendo<br />

a dinâmica atmosférica <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s<br />

espaciais brasileiras, principalmente estudos<br />

sobre a variabilida<strong>de</strong> espaço-temporal da<br />

temperatura, causas e conseqüências <strong>de</strong><br />

eventos extremos no tempo-espaço, clima<br />

urbano; c) trabalhos sobre pedologia enfocando<br />

a dinâmica dos solos brasileiros e<br />

as conseqüências <strong>de</strong> impactos <strong>de</strong> origem<br />

antrópica; d) trabalhos <strong>de</strong> biogeografia<br />

enfocando unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação e relações<br />

entre flora/ecossistemas e a dinâmica<br />

das paisagens; e) estudos ambientais,<br />

em seu sentido mais abrangente, envolvendo<br />

as relações entre pressões humanas (ativida<strong>de</strong>s<br />

e uso do solo) e impactos sobre o<br />

meio físico e seus recursos (<strong>de</strong>gradação<br />

ambiental), com <strong>de</strong>staque para as ativida<strong>de</strong>s<br />

agrícolas, minerárias e urbanas; f) a<br />

aplicação <strong>de</strong> geotecnologias, com <strong>de</strong>staque<br />

para o geoprocessamento e para o<br />

sensoriamento remoto.<br />

Também po<strong>de</strong>mos verificar a evolução<br />

das temáticas sobre a dinâmica e o regime<br />

hidrológicos em nível <strong>de</strong> bacias hidrográficas<br />

e estudos sobre as relações entre<br />

uso do solo e qualida<strong>de</strong> das águas fluviais,<br />

sobre as relações entre as ativida<strong>de</strong>s turísticas<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

EVENTOS<br />

119


e o espaço físico e sobre problemas e <strong>de</strong>safios<br />

no ensino da geografia física. O<br />

simpósio permitiu avanços nas discussões<br />

sobre questões transversais à temática do<br />

evento, como riscos, fragilida<strong>de</strong>, vulnerabilida<strong>de</strong>,<br />

sustentabilida<strong>de</strong> ambiental,<br />

<strong>de</strong>senvolvimento e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.<br />

Com a presença <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> quase todos<br />

os estados do Brasil, houve predomínio<br />

<strong>de</strong> artigos oriundos <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong><br />

ensino superior dos estados <strong>de</strong> São Paulo,<br />

<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Maranhão,<br />

Paraná, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Goiás, Pernambuco<br />

e Ceará. <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> <strong>de</strong>stacouse<br />

com a publicaç-ão <strong>de</strong> artigos <strong>de</strong> quase<br />

todas as instituições que possuem cursos<br />

<strong>de</strong> geografia, como as <strong>Universida<strong>de</strong></strong>s Fe<strong>de</strong>rais<br />

<strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Uberlândia, Juiz<br />

<strong>de</strong> Fora e Viçosa, a <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual<br />

<strong>de</strong> Montes Claros, a PUC-MG e o UNI-BH.<br />

No caso da UFMG, merece ser mencionado<br />

o fato do Departamento <strong>de</strong> Geografia<br />

ter sido bem representado com 16<br />

trabalhos resultantes <strong>de</strong> pesquisas em nível<br />

<strong>de</strong> pós-graduação e, principalmente, graduação.<br />

Com uma elogiada organização e<br />

elevada assistência nas ativida<strong>de</strong>s do evento,<br />

o XI SBGFA contribuiu, certamente,<br />

para dinamizar o conhecimento e a ciência<br />

no campo da geografia física aplicada<br />

no país e para levantar reflexões úteis para<br />

o atual contexto <strong>de</strong> reformas curriculares<br />

nas IES do país.<br />

120<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

EVENTOS<br />

Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana


Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Ralfo Matos<br />

Geografias<br />

EVENTOS<br />

121


Dissertações<br />

<strong>de</strong>fendidas no Programa<br />

<strong>de</strong> Pós-Graduação em<br />

Geografia/UFMG em 2005<br />

122<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


O atlas “Estado do Brasil”: um olhar<br />

português sobre a América colonial<br />

O atlas “Estado do Brasil” foi elaborado pelo cosmógrafo do reino <strong>de</strong> Portugal, João<br />

Teixeira Albernas, a mando do donatário da Capitania <strong>de</strong> Ilhéus, Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Autoguia, D.<br />

Jerônimo <strong>de</strong> Ataí<strong>de</strong>, em 1631. Essa obra foi produzida em um período <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

turbulência política, tanto para o Brasil quanto para Portugal. Insatisfeitos com a política<br />

que caracterizou a União Ibérica, fidalgos portugueses se organizaram em um movimento<br />

que culminou, em 1640, com a restauração do trono português. Ao i<strong>de</strong>alizar essa obra,<br />

D. Jerônimo pretendia atrair investimentos para sua capitania e alertar outros nobres<br />

portugueses sobre a enorme extensão <strong>de</strong> terras ameaçadas pelo <strong>de</strong>spovoamento e pelas<br />

invasões estrangeiras. Além disso, havia um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ampliação dos domínios lusitanos<br />

na América. Para expressar as preocupações e anseios <strong>de</strong> seu patrocinador, Albernas<br />

soube usar as técnicas cartográficas disponíveis, e, quando essas não foram suficientes<br />

para atingir seu intento, criou soluções para expressar o conteúdo <strong>de</strong> pensamento <strong>de</strong>sejado.<br />

Esse cosmógrafo praticava uma cartografia que buscava a exatidão na transmissão das<br />

informações geográficas, em um período no qual eram comuns representações ricas em<br />

figuras que aguçavam o imaginário. O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é fazer um estudo sobre o<br />

atlas “Estado do Brasil”, realçando as motivações políticas e econômicas <strong>de</strong> sua produção<br />

e como o autor se utilizou das técnicas cartográficas para transmitir uma organização do<br />

espaço colonial na América, <strong>de</strong> forma a aten<strong>de</strong>r os objetivos <strong>de</strong> seu patrocinador. Ele<br />

foi feito a partir <strong>de</strong> pesquisas bibliográficas versando sobre a história da cartografia,<br />

com vistas a <strong>de</strong>stacar o <strong>de</strong>senvolvimento das técnicas utilizadas na confecção dos mapas<br />

e sobre temas da história do Brasil nos séculos XVI e XVII, para realçar as questões<br />

sócio-culturais relacionadas à produção do atlas.<br />

Amanda Estela Guerra<br />

Orientadora<br />

Márcia Maria Duarte dos Santos<br />

Conflitos e rupturas em torno do transporte<br />

urbano nos EUA e Brasil no século XX<br />

Esse estudo examina a trajetória conflituosa do transporte urbano nos EUA, o abandono<br />

do “trem <strong>de</strong> ferro” e dos “bon<strong>de</strong>s” no século XX, e a conseqüente adoção generalizada<br />

do transporte rodoviário no Brasil. As dificulda<strong>de</strong>s em termos <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> nosso<br />

atual sistema <strong>de</strong> transportes, em sua associação com a urbanização, são, em boa medida,<br />

resultantes <strong>de</strong>ssas transformações. A partir <strong>de</strong> fins do século XIX, uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fatores contribuiu para que as condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento fossem alteradas e, no século<br />

Amélia Maria<br />

da Costa Silva<br />

Orientador<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

123


XX, o predomínio do automóvel e dos interesses que lhes são subjacentes ganharam<br />

projeção, po<strong>de</strong>r e alcance mundial. Nesse contexto, a cida<strong>de</strong> industrial americana se<br />

reconfigurou em favor do transporte sobre trilhos, dando prosseguimento a um gran<strong>de</strong><br />

processo <strong>de</strong> suburbanização, revigorado por significativos fluxos migratórios e por<br />

mudanças no padrão tecnológico <strong>de</strong> construção das cida<strong>de</strong>s. Transformações políticas,<br />

econômicas e sociais impactaram a situação dos transportes, particularmente, no período<br />

entre guerras, enquanto as fábricas e os bon<strong>de</strong>s funcionaram sem parar, o que ocasionou<br />

<strong>de</strong>sgastes nos trilhos, uso excessivo e danos nos veículos. Com isso surgiram as condições<br />

propícias para a instalação <strong>de</strong> um mercado novo acoplado a motorização das cida<strong>de</strong>s e<br />

a ruptura com o “trem <strong>de</strong> ferro” e os “bon<strong>de</strong>s”. Com a primazia do transporte rodoviário,<br />

explodiram as contradições. As periferias se expandiram e ficaram reféns das gran<strong>de</strong>s<br />

distâncias a serem percorridas. O automóvel tornou-se um auto-imóvel, em meio a<br />

gigantescos congestionamentos/ um sugador <strong>de</strong> energia!<br />

Eliane Ferreira Campos Vieira<br />

Orientador<br />

Roberto Célio Valadão<br />

O bloco – diagrama na representação do relevo no<br />

1º ano do ensino médio: uma análise a partir dos recursos<br />

cartográficos presentes em livros didáticos <strong>de</strong> geografia<br />

As representações cartográficas constituem importante recurso no ensino <strong>de</strong> Geografia e<br />

po<strong>de</strong>m auxiliar o processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> conceitos essenciais na exploração do espaço<br />

geográfico. Existem dificulda<strong>de</strong>s dos alunos em perceber as formas <strong>de</strong> relevo representadas<br />

através <strong>de</strong> fotografias, perfil e mapas topográficos. A pesquisa procura refletir sobre as<br />

contribuições da utilização do bloco-diagrama, um dos recursos utilizados na representação<br />

do relevo nos livros didáticos <strong>de</strong> Geografia. Os procedimentos metodológicos<br />

referenciados na abordagem qualitativa e tendo como instrumento <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> dados a<br />

técnica <strong>de</strong> grupo focal, envolvem: (i) análise <strong>de</strong> livros didáticos <strong>de</strong> Geografia <strong>de</strong> 5ª à 8ª<br />

série quanto à representação gráfica do relevo; (ii) ativida<strong>de</strong> em sala <strong>de</strong> aula para observar<br />

a utilização do bloco-diagrama pelos alunos do Ensino Médio e (iii) realização da técnica<br />

<strong>de</strong> grupo focal para verificar a contribuição do bloco-diagrama na construção das<br />

respostas. O relevo é apresentado no livro didático tendo textos como suporte básico,<br />

cujos conceitos são ilustrados por representações gráficas. Observou-se uma riqueza<br />

quantitativa dos livros didáticos <strong>de</strong> Ensino Fundamental com relação aos recursos <strong>de</strong><br />

representação do relevo. Os alunos pesquisados não tem familiarida<strong>de</strong> com tais<br />

representações: pouco conhecimento sobre as formas <strong>de</strong> relevo e <strong>de</strong>ficiências quanto à<br />

linguagem escrita e verbal. A representação gráfica <strong>de</strong>ve ser utilizada para enten<strong>de</strong>r os<br />

conceitos e não apenas como imagem ilustrativa, <strong>de</strong>vendo estar associadas aos conceitos<br />

do texto; o professor <strong>de</strong>ve aproveitar as qualida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>ficiências do livro didático em<br />

benefício do ensino e enfocar a gênese das formas <strong>de</strong> relevo e os processos condicionantes.<br />

Deve enfatizar não só o conteúdo, mas ensinar a pensar e a ler a realida<strong>de</strong> do espaço<br />

geográfico através dos conteúdos.<br />

124<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


A produção do espaço pelo turismo:<br />

a paisagem e os conflitos <strong>de</strong> gestão em Maria da Fé/MG<br />

A reflexão sobre a produção do espaço pelo turismo exige um duplo esforço: o da<br />

reflexão teórica e o da pesquisa empírica. A referida reflexão é examinada pelo estudo<br />

da experiência do turismo em Maria da Fé-MG, institucionalizado a partir <strong>de</strong> 1996, através<br />

da intervenção do SEBRAE-MG como agente externo do <strong>de</strong>senvolvimento. A proposta<br />

do turismo nesse município parte <strong>de</strong> intenções diferenciadas voltadas para uma produção<br />

<strong>de</strong> pequena escala e <strong>de</strong> base associativa e cooperada. A pesquisa compreen<strong>de</strong> as transformações<br />

da paisagem pela produção do turismo e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão adotado em<br />

Maria da Fé, levando-se em conta as percepções dos sujeitos sociais e as repercussões <strong>de</strong><br />

suas ações. O estudo da paisagem é adotado a partir <strong>de</strong> uma abordagem fenomenológica<br />

para a compreensão do espaço vivido em Maria da Fé-MG. O esforço da pesquisa resulta<br />

no entendimento da natureza do espaço e do fenômeno do turismo enquanto meio <strong>de</strong><br />

produção e prática social. Apesar das limitações que associam a complexida<strong>de</strong> dos inúmeros<br />

fatos relacionados à esfera pública e privada, é possível dirigir algumas consi<strong>de</strong>rações para<br />

a compreensão dos próprios conflitos da gestão do turismo no mundo contemporâneo.<br />

Fabiana Andra<strong>de</strong><br />

Bernar<strong>de</strong>s Almeida<br />

Orientador<br />

Marcos Roberto Moreira Ribeiro<br />

Perda <strong>de</strong> solo por erosão na agricultura:<br />

a importância das técnicas <strong>de</strong> manejo e conservação dos solos<br />

A conservação do solo é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância na manutenção e melhora das suas<br />

características físicas e químicas, buscando a preservação e utilização sustentável <strong>de</strong>ste<br />

recurso natural. O emprego <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> conservação reduz a erosão, diminuindo as<br />

perdas <strong>de</strong> nutrientes, matéria orgânica e água, minimizando os danos ambientais, sociais<br />

e econômicos causados pela <strong>de</strong>gradação do solo. Para confirmar a influência do emprego<br />

<strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> conservação do solo, foram montadas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pinos <strong>de</strong> erosão em duas<br />

áreas agrícolas localizados em Brumadinho/MG, distintas quanto ao manejo do solo e<br />

com características semelhantes quanto ao clima, solo e relevo. A primeira não apresenta<br />

adoção <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> conservação, sendo cultivada com milho em plantio morro abaixo,<br />

enquanto na segunda, também plantada com milho, foram adotadas quatro medidas <strong>de</strong><br />

conservação do solo: preparo reduzido, plantio em curvas <strong>de</strong> nível, manutenção <strong>de</strong><br />

faixas <strong>de</strong> vegetação permanente e incoporação <strong>de</strong> estrume <strong>de</strong> curral. Foram realizadas<br />

análises físicas <strong>de</strong> amostras <strong>de</strong> solo coletadas nas duas áreas no inicio e fim do<br />

monitoramento. O monitoramento das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pinos indica uma perda <strong>de</strong> 14,2 ton<br />

solo/há na área sem conservação e 8,1 ton solo/há na área com conservação <strong>de</strong> solo. A<br />

área sem conservação apresentou aumento nos teores <strong>de</strong> ADA (Argila Dispersa em Água)<br />

<strong>de</strong> 4,6% na alta e 17,6% na média vertente, enquanto que na área com conservação os<br />

teores <strong>de</strong> ADA diminuíram 30,6% e 13,7% respectivamente. O Grau <strong>de</strong> Floculação (GF)<br />

dos solos estudados diminuiu em 10,6% na alta vertente e 37,4% na média vertente na<br />

área sem conservação, enquanto que área com conservação o GF aumentou<br />

respectivamente 65,5% e 27,2% no período estudado. Os dados coletados confirmam<br />

que o emprego <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> conservação exerce influência direta na variação das taxas<br />

<strong>de</strong> perda <strong>de</strong> solo por erosão em áreas agrícolas.<br />

Fernanda Maria Belotti<br />

Orientadora<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

125


Flávia Cal<strong>de</strong>ira Mello<br />

Orientador<br />

Geraldo Magela Costa<br />

Gestão Urbana como processo integrado:<br />

o alcance sanitário da urbanização <strong>de</strong> favelas em Belo Horizonte<br />

A gestão urbana como um processo integrado implica a conjugação <strong>de</strong> políticas no<br />

espaço e no tempo, <strong>de</strong> modo a lidar com a complexida<strong>de</strong> dos problemas urbanos. As<br />

favelas constituem um <strong>de</strong>stes espaços complexos. Des<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1980, as políticas<br />

públicas voltadas para o atendimento <strong>de</strong>stas áreas pressupõem a sua permanência, como<br />

alternativa <strong>de</strong> solução habitacional. As políticas setoriais <strong>de</strong> habitação (voltadas para a<br />

redução do déficit qualitativo através da urbanização <strong>de</strong> favelas) e <strong>de</strong> saneamento, e sua<br />

possível integração, em Belo Horizonte na década <strong>de</strong> 1990, constituem a preocupação<br />

principal <strong>de</strong>sta pesquisa. Para avaliar o alcance sanitário da urbanização das favelas, é<br />

escolhido o Orçamento Participativo. Pesquisa-se as lacunas <strong>de</strong>ixadas pela atuação da<br />

política <strong>de</strong> saneamento básico, que são especialmente significativas nas favelas. Foram<br />

observados avanços importantes na política <strong>de</strong> urbanização <strong>de</strong> favelas bem como também<br />

foram percebidos alguns avanços no atendimento <strong>de</strong> favelas por saneamento básico.<br />

Contudo, não pô<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>terminada uma significativa integração entre as políticas<br />

estudadas, na medida em que as áreas que mais receberam investimentos em urbanização<br />

ainda apresentam situações <strong>de</strong> carências relevantes <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> esgotamento sanitário.<br />

Fre<strong>de</strong>rico do Valle<br />

Ferreira <strong>de</strong> Castro<br />

Orientador<br />

Britaldo Silveira Soares Filho<br />

A mo<strong>de</strong>lagem <strong>de</strong> cenários <strong>de</strong> mudanças na região <strong>de</strong> Brasiléia<br />

aplicada ao zoneamento ecológico-econômico do estado do Acre<br />

Enten<strong>de</strong>r o atual processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento ocorrente na Amazônia torna-se imperioso<br />

com vistas a uma política <strong>de</strong> gestão socioambiental para a região. Neste sentido, o<br />

Zoneamento Ecológico-Econômico vem a ser um importante instrumento para o<br />

planejamento socioambiental, pois realiza um levantamento <strong>de</strong>talhado do espaço, procura<br />

enten<strong>de</strong>r sua dinâmica e estrutura orientações quanto aos usos da terra. Diante <strong>de</strong>ste<br />

<strong>de</strong>safio, o presente trabalho foi estruturado tomando por base uma questão que norteou<br />

as fases da pesquisa: como os mo<strong>de</strong>los conceituais <strong>de</strong> paisagem po<strong>de</strong>m ser usados para<br />

mo<strong>de</strong>lar cenários <strong>de</strong> mudanças? Através da mo<strong>de</strong>lagem <strong>de</strong> dados espaciais, a partir do<br />

mapeamento participativo, os Sistemas Geográficos <strong>de</strong> Informação têm a contribuir<br />

positivamente neste processo <strong>de</strong> entendimento da atual organização do espaço. Inserido<br />

no Projeto Cenários para Amazônia – Amazon Scenarios, fruto <strong>de</strong> uma parceria entre o<br />

Centro <strong>de</strong> Sensoriamento Remoto/CSR da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Instituto<br />

<strong>de</strong> Pesquisa Ambiental da Amazônia/IPAM e The Woods Hole Research Center, esta pesquisa<br />

tem por objetivo cerne, <strong>de</strong>senvolver uma metodologia capaz <strong>de</strong> gerar cenários que possam<br />

ser utilizados para avaliar as propostas do Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado<br />

do Acre, procurando contribuir com o avanço do entendimento sobre o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smatamento amazônico, bem como com a geração <strong>de</strong> alternativas mais sustentáveis<br />

<strong>de</strong> convívio entre o homem e a natureza.<br />

126<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Transporte e regulamentação urbanística:<br />

impactos sócio-espaciais e ambientais em Belo Horizonte<br />

Nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s brasileiras e dos <strong>de</strong>mais países em <strong>de</strong>senvolvimento, duas questões<br />

estão muito presentes atualmente: a vulnerabilida<strong>de</strong> social em que vivem as populações<br />

urbanas e a <strong>de</strong>gradação ambiental do espaço urbano. O trabalho procura <strong>de</strong>monstrar,<br />

inicialmente, a gran<strong>de</strong> importância do transporte urbano para a diminuição <strong>de</strong>sses dois<br />

fatores negativos. A seguir, o sistema <strong>de</strong> transporte municipal é analisado num viés histórico<br />

e constextualizando as caracterísicas atuais. São analisadas as políticas urbanas relacionadas<br />

ao transporte, implantadas no município <strong>de</strong> Belo Horizonte ao longo da década <strong>de</strong><br />

1990, com <strong>de</strong>staque para a nova Lei <strong>de</strong> Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo (LPOUS)<br />

e o Plano <strong>de</strong> Reestruturação do Sistema <strong>de</strong> Transporte Coletivo <strong>de</strong> Belo Horizonte<br />

(BHBUS). A análise se <strong>de</strong>u a partir <strong>de</strong> três objetivos comuns a ambas as propostas: a<br />

redução da participação dos automóveis particulares no conjunto dos <strong>de</strong>slocamentos da<br />

população; a <strong>de</strong>scentralização do uso não-resi<strong>de</strong>ncial do solo urbano; e a indução <strong>de</strong><br />

novas centralida<strong>de</strong>s (e fortalecimento das já existentes) no território municipal. Entre<br />

outras consi<strong>de</strong>rações, concluiu-se que o BHBUS exerceu pouca influência na alteração da<br />

dinâmica sócio-espacial <strong>de</strong> Belo Horizonte. As transformações ocorridas aparentemente<br />

estiveram mais relacionadas a novos padrões espacias da economia mo<strong>de</strong>rna, apoiadas<br />

pela nova regulamentação urbanística advinda da LPOUS.<br />

Humberto Alvim Guimarães<br />

Orientador<br />

Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />

O trabalho <strong>de</strong> campo e o ensino da geografia<br />

O trabalho <strong>de</strong> campo é um importante instrumento do conhecimento geográfico, tanto<br />

na produção científica como recurso pedagógico. A presente pesquisa focaliza o trabalho<br />

<strong>de</strong> campo no ambiente escolar, particularmente no ensino fundamental. Através <strong>de</strong><br />

entrevistas realizadas com professores <strong>de</strong> geografia, do 3º ciclo da Re<strong>de</strong> Municipal <strong>de</strong><br />

Ensino <strong>de</strong> Belo Horizonte, objetiva-se i<strong>de</strong>ntificar os referenciais teóricos presentes na<br />

prática, as possibilida<strong>de</strong>s e limites da realização do trabalho <strong>de</strong> campo e a importância<br />

atribuída, por esses profissionais, à ativida<strong>de</strong>. A pesquisa ainda se serve <strong>de</strong> algumas<br />

referências teóricas e históricas: discute-se a presença do trabalho <strong>de</strong> campo ao longo da<br />

formação do pensamento geográfico; discute-se a relação entre a escola e o conhecimento,<br />

mediada por políticas públicas e documentos oficiais. Quanto à interpretação dos<br />

resultados, duas questões merecem <strong>de</strong>staque: 1) a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> se utilizar o trabalho <strong>de</strong><br />

campo no ensino <strong>de</strong> geografia está ligada à vivência <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> na formação acadêmica<br />

e no exercício profissional <strong>de</strong> seus realizadores; 2) verifica-se a ausência, na formação<br />

pedagógica específica, do tratamento <strong>de</strong>sse instrumento como recurso pedagógico.<br />

Constata-se que o trabalho <strong>de</strong> campo, apesar <strong>de</strong> todas as dificulda<strong>de</strong>s apontadas, mantémse<br />

como alternativa importante na viabilização do processo <strong>de</strong> ensino e aprendizagem<br />

dos conteúdos geográficos.<br />

Janete Regina <strong>de</strong> Oliveira<br />

Orientação<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

127


José Luiz <strong>de</strong> Souza<br />

Orientador<br />

Cássio Eduardo Viana Hissa<br />

A geografia entre os Kadiwéu<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma pesquisa acerca do processo <strong>de</strong> inserção da geografia entre os índios<br />

Kadiwéu, que vivem na Reserva Indígena Kadiwéu, no município <strong>de</strong> Porto Murtinho-<br />

MS, motivada por um conjunto <strong>de</strong> questionamentos. A partir <strong>de</strong> uma reflexão sobre a<br />

natureza do conhecimento científico e a natureza do saber indígena, analisam-se as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>sencontros entre a ciência e esse saber. Analisa-se a<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> geografia no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas —<br />

RCNEI. Questiona-se a existência <strong>de</strong> uma geografia indígena, originária da socieda<strong>de</strong><br />

Kadiwéu, como afirma o RCNEI. São apresentados <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> índios Kadiwéu<br />

para que se possa avaliar sua compreensão a respeito da geografia e a absorção <strong>de</strong>ssa<br />

ciência em suas vidas. Discute-se, ainda, a transformação da ciência, através <strong>de</strong> referências<br />

mais libertárias, para que as esperadas trocas entre os saberes geográfico e indígena possam<br />

se <strong>de</strong>senvolver, sob a referência da transdisciplinarida<strong>de</strong>.<br />

Mariana <strong>de</strong> Oliveira Lacerda<br />

Orientador<br />

Allaoua Saadi<br />

Paisagem e potencial turístico no Vale do Jequitinhonha<br />

Este trabalho apresenta o resultado da leitura da paisagem a partir <strong>de</strong> percursos <strong>de</strong><br />

estrada inseridos em três unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> paisagem da bacia do rio Jequitinhonha: as serras,<br />

as chapadas e os pontões <strong>de</strong> granito. Apren<strong>de</strong>r a ver e a interpretar com consciência o<br />

que se vê é a primeira tarefa <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> turismo que visa estabelecer uma relação<br />

com a paisagem. Assim, o hábito <strong>de</strong> observar nos torna mais próximos dos lugares,<br />

evita a indiferença e estimula a percepção das expressões da cultura e do meio ambiente.<br />

Através <strong>de</strong> suas dimensões estéticas, concretas e simbólicas, a paisagem assume o papel<br />

<strong>de</strong> mediadora do encontro do olhar forasteiro com o olhar regional e sua compreensão<br />

permite que estes encontros sejam carregados <strong>de</strong> valores e significados. Conclui-se que<br />

esse método é capaz <strong>de</strong> fornecer os recursos necessários para aumentar não só o nível <strong>de</strong><br />

atrativida<strong>de</strong> do Vale do Jequitinhonha como também o nível <strong>de</strong> consciência das pessoas<br />

que o percorrem.<br />

Mônica Campolina<br />

Diniz Peixoto<br />

Orientadora<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Licenciamento ambiental e expansão urbana:<br />

um estudo a partir <strong>de</strong> Nova Lima, região<br />

metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />

A história do processo <strong>de</strong> produção do espaço e do seu impacto sobre os recursos<br />

naturais, particularmente o solo e a água, e sobre a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das populações<br />

evi<strong>de</strong>ncia duas situações, aparentemente isoladas, mas que se <strong>de</strong>senvolvem, <strong>de</strong> forma<br />

convergente, no sentido da sustentabilida<strong>de</strong>: a necessida<strong>de</strong> da gestão urbana e dos<br />

instrumentos da gestão ambiental para minimizar ou evitar os impactos negativos da<br />

urbanização. Nesse sentido, são estudados os procedimentos atualmente adotados no<br />

licenciamento ambiental <strong>de</strong> loteamentos do solo urbano por parte do Estado, <strong>de</strong><br />

importância crescente diante da continuida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> urbanização.<br />

128<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Toma-se como referência dois loteamentos resi<strong>de</strong>nciais em processo <strong>de</strong> licenciamento<br />

ambiental pelo governo estadual, situados no município <strong>de</strong> Nova Lima, integrante da<br />

Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte - MG, em um dos seus principais eixos <strong>de</strong><br />

expansão urbana – o Eixo Sul. Um espaço rico em situações que ilustram os múltiplos<br />

conflitos <strong>de</strong> interesses inerentes à apropriação e produção do espaço urbano em uma<br />

unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação <strong>de</strong> uso sustentável.<br />

Trajetória da formulação e implantação da Política Habitacional<br />

<strong>de</strong> Belo Horizonte na gestão da Frente BH Popular – 1993/1996<br />

Os números relativos ao problema da moradia no Brasil continuam preocupantes e<br />

justificam por si só o aprofundamento da pesquisa acadêmica sobre as políticas públicas<br />

<strong>de</strong> habitação implementadas no país, como forma <strong>de</strong> contribuir para a reflexão acerca<br />

<strong>de</strong>ssas práticas. Este trabalho aborda a trajetória <strong>de</strong> concepção e implantação da política<br />

habitacional em Belo Horizonte durante o governo da Frente BH Popular, <strong>de</strong> 1993 a<br />

1996, primeira gestão local <strong>de</strong> caráter popular e <strong>de</strong>mocrático após a aprovação da<br />

Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> 1988. A política habitacional do Município foi enfocada neste<br />

trabalho globalmente, em todos os seus principais aspectos e dimensões, tais como: a<br />

estrutura institucional <strong>de</strong> gestão, incluindo as instâncias e os processos participativos; os<br />

conceitos, princípios, diretrizes e critérios gerais; a legislação específica; a concepção e os<br />

resultados dos programas, projetos e ações, tanto os voltados para a intervenção em<br />

favelas como para a produção <strong>de</strong> habitação <strong>de</strong> interesse social. A abordagem do tema<br />

privilegiou a investigação da relação entre o que foi concebido e implementado durante<br />

a gestão da Frente BH Popular no âmbito da política habitacional com os processos e as<br />

idéias que marcaram o contexto nacional e local neste período, entre os quais o processo<br />

<strong>de</strong> municipalização e o ambiente <strong>de</strong> intensa mobilização social em curso no país, com<br />

<strong>de</strong>staque para a trajetória e as idéias <strong>de</strong> movimentos como o <strong>de</strong> luta pela moradia e pela<br />

reforma urbana.<br />

Mônica Maria Cadaval Bedê<br />

Orientadora<br />

Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />

Influência do uso e da cobertura do solo na<br />

qualida<strong>de</strong> da água na Bacia do Rio das Velhas<br />

A poluição difusa tem como agente dominante do transporte o escoamento superficial e<br />

subsuperficial, o que dificulta a i<strong>de</strong>ntificação e quantificação dos agentes poluidores,<br />

sobretudo por abranger extensas áreas. A complexida<strong>de</strong> do seu manejo aumenta com a<br />

diluição dos poluentes e o distanciamento <strong>de</strong>stes em relação à fonte <strong>de</strong> origem. Assumindo<br />

o uso e a cobertura do solo – UCS como um fator prepon<strong>de</strong>rante na <strong>de</strong>gradação dos<br />

cursos d’água, busca-se avaliar a influência do UCS na Bacia Hidrográfica do Rio das<br />

Velhas como fonte <strong>de</strong> alteração dos parâmetros físico-químicos e biológicos da água. O<br />

procedimento metodológico adotado baseia-se no emprego <strong>de</strong> dados cartográficos, <strong>de</strong><br />

sensoriamento remoto e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água – QA. O uso do sistema <strong>de</strong> Informação<br />

Nádia Antônia Pinheiro Santos<br />

Orientador<br />

Philippe Maillard<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

129


Geográfica – SIG auxilia na segmentação da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas em<br />

<strong>de</strong>zesseis bacias <strong>de</strong> contribuição e cinco zonas tampão e na quantificação das áreas<br />

referentes a cada UCS. Mo<strong>de</strong>los estatísticos <strong>de</strong> Regressão Linear Múltipla foram realizados<br />

para predizer a QA a partir da caracterização espacial do UCS. A classificação do UCS<br />

obteve precisão superior a 90% e possibilitou i<strong>de</strong>ntificar as seguintes classes: cerrado,<br />

campo rupestre, mata secundária, mata seca, mata ciliar, monocultura <strong>de</strong> eucalipto, pasto,<br />

agricultura irrigada, mineração, solo exposto, afloramento rochoso e área urbana. Os<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> regressão múltipla evi<strong>de</strong>nciam o papel do escoamento superficial como<br />

veículo <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> poluentes e das alterações <strong>de</strong> parâmetros como nitrito, DBO e<br />

coliformes fecais. As análises, consi<strong>de</strong>rando a distância em relação aos cursos d’água<br />

através dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> regressão linear múltipla, não apresentaram nenhuma tendência<br />

bem <strong>de</strong>finida. Cada parâmetro <strong>de</strong> QA possui comportamento distinto em relação à<br />

influência do UCS.<br />

Paula Gonçalves Vilela<br />

Orientadora<br />

Vilma Lúcia Macagnan Carvalho<br />

Reflexo das condições sanitárias e ambientais na<br />

saú<strong>de</strong> das crianças e perspectivas <strong>de</strong> ação: um diagnóstico<br />

do bairro Petrovale / Vila Esperança – Betim/MG<br />

Esse trabalho tem como tema central, a questão sanitária ambiental e suas implicações no<br />

adoecimento das crianças <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s carentes. A área objeto <strong>de</strong> estudo é o bairro<br />

Petrovale / Vila Esperança, município <strong>de</strong> Betim, integrante da RMBH. O objetivo principal<br />

foi conhecer a realida<strong>de</strong> socioeconômica <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> e sua percepção frente aos<br />

problemas ambientais e seus reflexos na saú<strong>de</strong> das crianças. Busca-se fornecer subsídios<br />

<strong>de</strong> análise para adoção <strong>de</strong> medidas que possam melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ssa<br />

população, além <strong>de</strong> fornecer aos gestores municipais metodologias alternativas <strong>de</strong> trabalho<br />

e um diagnóstico “realista” da área, produzido a partir da análise <strong>de</strong> vários setores<br />

envolvidos: li<strong>de</strong>ranças comunitárias, equipe <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e moradores. O bairro Petrovale<br />

foi avaliado <strong>de</strong> forma generalizada e a Vila Esperança foi adotada como foco central da<br />

pesquisa <strong>de</strong> percepção ambiental ou fenomenológica, por se tratar <strong>de</strong> área <strong>de</strong> precarieda<strong>de</strong><br />

sócio-ambiental do bairro. Foram adotadas metodologias quantitativas e qualitativas<br />

procurando minimizar as distorções nos resultados provocados por uma metodologia<br />

e outra. Tal opção foi referendada pela coerência das informações obtidas ao se fazer<br />

um tratamento a<strong>de</strong>quado dos dados estatísticos e uma interpretação qualitativa a partir<br />

do auxílio <strong>de</strong> profissionais que vivenciam o dia a dia da comunida<strong>de</strong>. Revelou, ainda,<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se trazer a questão educacional ao centro das discussões em função<br />

do <strong>de</strong>spreparo e <strong>de</strong>samparo das populações das comunida<strong>de</strong>s mais carentes revelados<br />

na pesquisa.<br />

130<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Morfogênese e pedogênese em vertentes da<br />

Bacia do Córrego do Quebra – Depressão <strong>de</strong> Gouveia/MG<br />

A dissertação objetivou a caracterização da relação existente entre os processos pedológicos<br />

e geomorfológicos da área <strong>de</strong> estudo. Esta relação foi discutida a partir da caracterização<br />

das formações superficiais da área, com a realização <strong>de</strong> análises pedológicas, estratigráficas<br />

e geomorfológicas. As análises pedológicas foram orientadas pelo Código Brasileiro <strong>de</strong><br />

Classificação <strong>de</strong> Solos da EMBRAPA (1999), já as análises estratigráficas foram norteadas<br />

pelo Código Estratigráfico Norteamericano (NACSN, 1983). Por último, as análises<br />

geomorfológicas contemplaram a i<strong>de</strong>ntificação dos processos atuais e pretéritos, relativos<br />

aos vestígios pedológicos e estratigráficos então <strong>de</strong>scritos. Foram ainda realizadas análises<br />

mineralógicas e granulométricas em laboratório. O estudo permitiu a discussão dos<br />

processos pedológicos e morfológicos da área e a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> seis classes<br />

aloestratigráficas, sendo cinco <strong>de</strong> natureza coluvionar e uma <strong>de</strong> natureza aluvionar. As<br />

aloformações i<strong>de</strong>ntificadas também apresentaram relação com os atuais processos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>snudação <strong>de</strong> paisagem, que são, em parte, favorecidos pelas <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>s resultantes<br />

dos paleoprocessos <strong>de</strong> elaboração da paisagem.<br />

Simone Garabini Lages<br />

Orientadora<br />

Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />

Produção da cida<strong>de</strong> ilegal e regularização fundiária:<br />

um estudo sobre o parcelamento do solo em Belo Horizonte<br />

Esse trabalho realiza uma análise concomitante do processo <strong>de</strong> produção da cida<strong>de</strong><br />

ilegal, em Belo Horizonte, do ponto <strong>de</strong> vista dos loteamentos clan<strong>de</strong>stinos e irregulares<br />

e das iniciativas <strong>de</strong> regularização fundiária empreendidas pelo Po<strong>de</strong>r Público. Enten<strong>de</strong>-se<br />

que esses dois processos seguiram paralelos ao longo da história da cida<strong>de</strong> e, juntos, são<br />

fundamentais para o conhecimento da produção do espaço do Município. Para a<br />

compreensão <strong>de</strong>sse processo, analisam-se, principalmente, dois agentes: o Estado e o<br />

mercado imobiliário. Discute-se o papel do Estado como planejador urbano e gestor<br />

das políticas públicas e, do mercado imobiliário, através dos seus interesses na ocupação<br />

do espaço da cida<strong>de</strong>. A partir <strong>de</strong>sse enfoque, são tratadas algumas questões fundamentais<br />

que permeiam a realida<strong>de</strong> das cida<strong>de</strong>s brasileiras: a lei e a ilegalida<strong>de</strong>, a segregação espacial,<br />

a periferização, a fragmentação e a exclusão socioespacial. Diante da situação estudada,<br />

observa-se que em Belo Horizonte há avanços na concepção e gestão do planejamento<br />

urbano. Entretanto, percebe-se que ainda existem lacunas a serem preenchidas no sentido<br />

<strong>de</strong> se construir um real direito à cida<strong>de</strong>.<br />

Sofia Marta<br />

Salomão Alvarenga<br />

Orientador<br />

Geraldo Magela Costa<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

131


Van<strong>de</strong>ir Robson da Silva Matias<br />

Orientador<br />

Márcia Maria Duarte dos Santos<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> orientação espacial<br />

pela mediação pedagógica do software LOGO: possibilida<strong>de</strong>s<br />

e limites para a educação geográfica no ensino fundamental<br />

Consi<strong>de</strong>rando a importância <strong>de</strong> se incorporar recursos da tecnologia da informação,<br />

particularmente os ambientes computacionais, à praticas pedagógicas, foi realizado um<br />

estudo sobre a linguagem <strong>de</strong> programação LOGO e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> orientação espacial,<br />

tidas como fundamentais para a construção do conhecimento geográfico e cartográfico.<br />

O objetivo geral <strong>de</strong>sse estudo compreen<strong>de</strong>u a verificação da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uso do<br />

LOGO, em favorecer a emersão <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s cognitivas que propiciam a aquisição <strong>de</strong><br />

noções espaciais topológicas, projetivas e euclidianas. Nos procedimentos metodológicos<br />

incluiu-se a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> critérios para analisar as possibilida<strong>de</strong>s e limites do LOGO, com<br />

base em duas categorias: objetivos educacionais e aspectos técnicos. A realização da<br />

pesquisa <strong>de</strong>monstrou que quanto mais complexa a noção espacial, maior será a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento em ambiente LOGO. Sendo assim, constatou-se<br />

que o software é mais indicado para trabalhar com habilida<strong>de</strong>s do espaço projetivo e<br />

euclidiano. Assim, na utilização do LOGO não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o papel do professor<br />

que <strong>de</strong>verá, além <strong>de</strong> motivar os alunos com <strong>de</strong>safios possíveis e instigadores, valorizar o<br />

processo <strong>de</strong> elaboração e não o resultado final <strong>de</strong> um projeto.<br />

Vero Franklin Sardinha Pinto<br />

Orientadora<br />

Doralice Barros Pereira<br />

Conflitos socioambientais em licenciamento<br />

<strong>de</strong> hidrelétricas: o caso <strong>de</strong> Candonga<br />

A resistência socioambiental aos empreendimentos hidrelétricos é um importante elemento<br />

da crise ambiental, expressão e fator <strong>de</strong>terminante da crise do sistema energético no<br />

capitalismo. A importância <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> empreendimento no país manifesta uma divisão<br />

territorial do trabalho, on<strong>de</strong> cabe ao Brasil um papel subalterno, inclusive, na troca<br />

ecologicamente <strong>de</strong>sigual, ao interiorizar os custos socioambientais, por exemplo, do<br />

segmento <strong>de</strong> bens intermediários energointensivos. Este estudo busca contextualizar e<br />

enten<strong>de</strong>r, com ênfase nos atores sociais, os conflitos socioespaciais no licenciamento da<br />

UHE Candonga (rio Doce/<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>). Os conflitos são manifestações da irracionalida<strong>de</strong><br />

consumista e produtivista da socieda<strong>de</strong> capitalista; uma contradição fundamental diante<br />

dos limites naturais que condicionam a questão ambiental e politizam o cotidiano numa<br />

perspectiva contra-paradigmática às verticalida<strong>de</strong>s da “globalização”. A resistência<br />

(re)constitui sujeitos, novas territorialida<strong>de</strong>s, colocando em xeque a (<strong>de</strong>s)or<strong>de</strong>m do sistema<br />

<strong>de</strong> licenciamento, conversor <strong>de</strong> vida em valor.<br />

132<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005


Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Geografias<br />

DISSERTAÇÕES<br />

133


Aos autores<br />

Geografias <strong>de</strong>fine o seu perfil editorial a partir das linhas <strong>de</strong> pesquisa vigentes no Departamento <strong>de</strong><br />

Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, incluindo as que fornecem sustentação ao seu<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação. Temáticas correlatas, originárias do interior da ciência geográfica, também,<br />

são <strong>de</strong> interesse do periódico. Finalmente, outras temáticas, originárias do contato da ciência geográfica<br />

com os <strong>de</strong>mais campos do saber são, também, <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> Geografias.<br />

Os pesquisadores interessados em publicar na<br />

revista Geografia <strong>de</strong>vem preparar os originais dos<br />

seus trabalhos – artigos, notas ou resenhas –<br />

conforme as orientações que se seguem, exigências<br />

obrigatórias para o recebimento dos textos. Estes<br />

serão encaminhados para avaliação, conforme o<br />

previsto pelo regimento do periódico.<br />

1. Os textos enviados para esta revista <strong>de</strong>verão<br />

ser inéditos e redigidos em língua portuguesa<br />

ou em espanhol.<br />

2. Os artigos terão o máximo <strong>de</strong> vinte e cinco<br />

páginas e as resenhas o mínimo <strong>de</strong> duas<br />

páginas, em formato A4 (210 x 297 mm),<br />

impresso em uma só face, sem rasuras e/<br />

ou emendas.<br />

3. Os originais <strong>de</strong>verão ser entregues em duas<br />

vias impressas e uma via em disquete ou<br />

CD-ROM (digitados em Word for Windows),<br />

com a seguinte formatação:<br />

a. Título: centralizado, negritado e apenas<br />

com a primeira letra em maiúscula;<br />

b. Nome completo do(s) autor(es): na<br />

segunda linha, centralizado(s) e seguido(s)<br />

do nome da instituição <strong>de</strong> filiação e<br />

titulação, entre parênteses;<br />

c. Subtítulos <strong>de</strong> seções: sem recuo, sem<br />

numeração, negritados e apenas com a<br />

primeira letra em maiúscula;<br />

d. Texto digitado em fonte Times New<br />

Roman, tamanho 12;<br />

e. Espaço entre linhas <strong>de</strong> 1,5 e espaço duplo<br />

entre as seções do texto, assim como entre<br />

o texto e as citações longas, as ilustrações,<br />

as tabelas etc.;<br />

f. Margens superior e inferior <strong>de</strong> 3 cm, e<br />

margens esquerda e direita <strong>de</strong> 2,5 cm;<br />

g. Recuo <strong>de</strong> 2 cm no início do parágrafo e<br />

recuo <strong>de</strong> 4 cm nas citações longas;<br />

h. Uso <strong>de</strong> itálico para termos estrangeiros;<br />

i. Uso <strong>de</strong> itálico para títulos <strong>de</strong> livros e<br />

periódicos.<br />

4. As informações recolhidas <strong>de</strong> outros autores<br />

<strong>de</strong>vem ser apresentadas, no <strong>de</strong>correr do<br />

texto, da seguinte forma:<br />

a. quando se fizer referência ao autor no<br />

corpo do texto, seu nome <strong>de</strong>ve vir grafado<br />

somente com as iniciais em maiúsculas,<br />

seguido <strong>de</strong> data e página entre parênteses.<br />

Ex: De acordo com Milton Santos<br />

(1996, p. 23);<br />

b. quando o autor for citado sem que tenha<br />

seu nome mencionado no corpo do<br />

texto, <strong>de</strong>ve ser grafado apenas seu<br />

sobrenome, entre parênteses, com todas<br />

as letras em maiúsculas, seguido <strong>de</strong> data<br />

e página (SANTOS, 1996, p. 23). Essa<br />

regra <strong>de</strong>ve ser utilizada tanto para citações<br />

curtas como para citações longas.<br />

5. As citações textuais curtas, com 3 linhas ou<br />

menos, <strong>de</strong>vem ser apresentadas, no corpo<br />

do texto, entre aspas e sem itálico.<br />

6. As citações textuais longas, com mais <strong>de</strong> 3<br />

linhas, <strong>de</strong>vem ser apresentadas em fonte<br />

Times New Roman, tamanho 11 e espaço<br />

simples entre linhas. Elas <strong>de</strong>vem constituir<br />

um parágrafo próprio, separado do texto<br />

por espaço duplo, sem a necessida<strong>de</strong> da<br />

utilização das aspas.<br />

7. As notas explicativas <strong>de</strong>verão ser apresentadas<br />

em rodapé, com fonte Times New<br />

Roman, tamanho 10 e numeradas em<br />

algarismos arábicos.<br />

134<br />

Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

MONOGRAFIAS E DISSERTAÇÕES Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996


8. Os artigos <strong>de</strong>verão ser precedidos por um<br />

resumo bilíngüe, em português e inglês, com<br />

200 palavras no máximo em um só parágrafo.<br />

Deve ser adotada a fonte Times New Roman,<br />

tamanho 11, espaçamento simples. O resumo<br />

é seguido <strong>de</strong> palavras-chave do texto (no<br />

mínimo 3 e no máximo 6 palavras-chave). As<br />

palavras-chave <strong>de</strong>vem ser apresentadas,<br />

também, na versão em inglês.<br />

9. As referências bibliográficas <strong>de</strong>verão ser<br />

apresentadas no fim do texto, <strong>de</strong>vendo<br />

conter somente as obras citadas, em or<strong>de</strong>m<br />

alfabética, sem numeração, segundo as<br />

normas da ABNT. Algumas orientações<br />

básicas po<strong>de</strong>m ser apresentadas:<br />

a. Para livros: SOBRENOME DO AUTOR,<br />

Nome. Título da obra. Local <strong>de</strong> publicação:<br />

Editora, Ano <strong>de</strong> publicação.<br />

b. Para capítulo <strong>de</strong> livros: SOBRENOME DO<br />

AUTOR DO CAPÍTULO, Nome. Título do<br />

capítulo. In: SOBRENOME DO ORGA-<br />

NIZADOR, Nome. (Org.). Título da obra.<br />

Local <strong>de</strong> publicação: Editora, Ano <strong>de</strong><br />

publicação. Página inicial-final do capítulo.<br />

c. Para artigos publicados em periódicos:<br />

SOBRENOME DO AUTOR DO ARTIGO,<br />

Nome. Título do artigo. Título do periódico,<br />

Local <strong>de</strong> publicação, volume do periódico,<br />

número do fascículo, página inicial-final do<br />

artigo, mês e ano.<br />

10. As ilustrações (figuras, tabelas, <strong>de</strong>senhos,<br />

gráficos, mapas, fotografias etc.) <strong>de</strong>vem ser<br />

enviadas, preferencialmente, em arquivos<br />

digitais (formatos PCX, BMP ou TIF). Caso<br />

contrário, será adotado suporte <strong>de</strong> papel<br />

branco. Neste caso, as fotografias <strong>de</strong>vem ter<br />

suporte brilhante, nas cores preto e branco.<br />

As dimensões máximas, incluindo legenda<br />

e título, são <strong>de</strong> 15 cm, no sentido horizontal<br />

da folha e <strong>de</strong> 23 cm, no seu sentido vertical.<br />

Deve-se indicar a disposição preferencial <strong>de</strong><br />

inserção das ilustrações no texto, utilizando,<br />

para isso, no local <strong>de</strong>sejado a indicação da<br />

figura e o seu número. Deve-se, também,<br />

indicar a fonte da ilustração, conforme as<br />

normas da ABNT.<br />

11. Os autores <strong>de</strong>vem se responsabilizar pela<br />

correção ortográfica e gramatical, bem como<br />

pela digitação do texto, que será enviado<br />

exatamente conforme enviado. Recomendase<br />

aos autores que submetam seus textos à<br />

correção <strong>de</strong> um especialista.<br />

12. Todos os originais serão submetidos à<br />

apreciação da Comissão Editorial que po<strong>de</strong>rá<br />

aceitar, recusar ou, ainda, reapresenta-los ao(s)<br />

autor(es) com sugestões <strong>de</strong> alterações na<br />

estrutura ou no conteúdo do texto. Os<br />

originais não aprovados serão <strong>de</strong>volvidos<br />

ao(s) autor(es).<br />

En<strong>de</strong>reço para remessa<br />

<strong>Revista</strong><br />

A/C Antônio Pereira Magalhães Jr.<br />

Instituto <strong>de</strong> Geociências/UFMG<br />

Av. Antônio Carlos 6627,<br />

Pampulha, CEP 31270-901<br />

Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brasil<br />

geografias@igc.ufmg.br<br />

Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />

Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />

Geografias<br />

MONOGRAFIAS E DISSERTAÇÕES<br />

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