Revista edicao #2. - IGC - Universidade Federal de Minas Gerais
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<strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia e do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia <strong>IGC</strong>-UFMG janeiro_junho vol.2 nº1 2006 ISSN 1808-8058
<strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia e do<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia <strong>IGC</strong>-UFMG<br />
Comissão Editorial<br />
Antônio Pereira Magalhães Júnior (editor responsável)<br />
Célio da Cunha Horta<br />
Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />
Márcia Maria Duarte dos Santos<br />
A imagem em relevo seco da capa<br />
foi baseada nesta plaqueta <strong>de</strong> barro<br />
da Baixa Mesopotâmia, gravada no<br />
quarto milênio a.C.. Simboliza aqui<br />
a relação homem/espaço. Já naquela<br />
época, o homem, representado<br />
pelo <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma mão,<br />
<strong>de</strong>marcava o seu território e suas<br />
posses, retratados nesse documento<br />
<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> por árvores, sacos<br />
<strong>de</strong> grãos e instrumentos agrícolas.<br />
JEAN, Georges. A escrita: memória dos homens.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2002. p. 16. Pequena placa<br />
pictográfica. Sumer. Museu do Louvre. Crédito<br />
fotográfico: Reunião dos Museus Nacionais.<br />
Conselho Editorial<br />
Allaoua Saadi (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Antônio Paula <strong>de</strong> Faria (UFRJ)<br />
Beatriz Ribeiro Soares (UFU)<br />
Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF)<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Cristina Helena Ribeiro Rocha Augustin (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Geraldo Magela Costa (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
João Antonio <strong>de</strong> Paula (Ce<strong>de</strong>plar/UFMG)<br />
Josilda Rodrigues da Silva Moura (UFRJ)<br />
Junia Ferreira Furtado (FAFICH/UFMG)<br />
Lúcia Helena <strong>de</strong> Oliveira Gerardi (UNESP)<br />
Luis Alberto F. Brandão Santos (FALE/UFMG)<br />
Marcel Bursztyn (UnB)<br />
Maria Adélia A. <strong>de</strong> Souza (TERRITORIAL)<br />
Maria Encarnação Beltrão Spósito (UNESP)<br />
Maurício <strong>de</strong> Almeida Abreu (UFRJ)<br />
Ralfo Edmundo da Silva Matos (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Roberto Célio Valadão (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Roberto Luiz Melo Monte-Mór (Ce<strong>de</strong>plar/UFMG)<br />
Selma Simões <strong>de</strong> Castro (UFG)<br />
Sérgio Manuel Merêncio Martins (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Telma Men<strong>de</strong>s da Silva (UFRJ)<br />
Colaboradores <strong>de</strong>ste número<br />
Ana Clara Mourão Moura (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Ana Maria Simões Coelho (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Alexandre Magno A. Diniz (Puc/<strong>Minas</strong>)<br />
Anselmo Alfredo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Bernardo Machado Gontijo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Claudinei Lourenço (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Doralice Barros Pereira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Fernanda Borges <strong>de</strong> Moraes (EA/UFMG)<br />
Klemens Augustinus Laschefski (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
José Antônio Souza <strong>de</strong> Deus (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Maria <strong>de</strong> Fátima Almeida Martins (FAE/UFMG)<br />
Maria Luiza Grossi Araújo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Marly Nogueira (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Ricardo Alexandrino Garcia (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Valéria Amorim do Carmo (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Vilma Lúcia Macagnan Carvalho (<strong>IGC</strong>/UFMG)<br />
Weber Soares (<strong>IGC</strong>/UFMG)
Editorial 5 Editorial<br />
Antônio Pereira Magalhães Jr<br />
Sumário<br />
Artigos 7 Recortes <strong>de</strong> lugar<br />
científicos<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa<br />
Rosana Rios Corgosinho<br />
22 Agricultura familiar na<br />
Amazônia: o contexto<br />
da cafeicultura no centro<br />
<strong>de</strong> Rondônia<br />
Jacob Binsztok<br />
34 Impactos ambientais<br />
<strong>de</strong>correntes da ocupação<br />
antrópica no pontal do Capri,<br />
ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul,<br />
SC, Brasil<br />
Cláudia Regina dos Santos<br />
Norberto Olmiro Horn Filho<br />
47 Impactos da silvicultura <strong>de</strong><br />
eucalipto no aumento das<br />
taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas<br />
fluviais: o caso <strong>de</strong> mananciais<br />
<strong>de</strong> abastecimento público<br />
<strong>de</strong> Caeté/MG<br />
André Augusto Rodrigues Salgado<br />
Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
58 Brejo dos Crioulos:<br />
saberes tradicionais e<br />
afirmação do território<br />
Simone Raquel Batista Ferreira<br />
78 Reciclando vidas ou<br />
reutilizando sua sujeição?:<br />
reflexões sobre produção<br />
do espaço, cidadania e<br />
inclusão social na ASMARE<br />
Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
93 A importância das escalas<br />
espaciais para compreensão<br />
do processo <strong>de</strong> globalização<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Resenha 109 O espaço da pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
em Código 46<br />
Tânia Bittencourt Bloomfield<br />
Notas <strong>de</strong> 115 A expansão metropolitana<br />
pesquisa<br />
<strong>de</strong> Belo Horizonte: dinâmica<br />
e especificida<strong>de</strong>s no eixo-sul<br />
Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />
Eventos 119 Dia Meteorológico Mundial<br />
Dissertações 123 Dissertações <strong>de</strong>fendidas no<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />
em Geografia/UFMG no<br />
primeiro semestre <strong>de</strong> 2006
Geografias: <strong>Revista</strong> do Departamento <strong>de</strong> Geografia / Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em Geografia, Departamento <strong>de</strong> Geografia do Instituto<br />
<strong>de</strong> Geociências, UFMG. – v. 2, n. 1 (jan./jun.) 2006- – Belo<br />
Horizonte: UFMG, Departamento <strong>de</strong> Geografia, 2005- .<br />
v. : il.; 25 x 20 cm.<br />
Semestral<br />
ISSN 1808-8058<br />
1. Geografia – Periódicos. I. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />
Departamento <strong>de</strong> Geografia. II. <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia.<br />
Catalogação na publicação: Biblioteca do Instituto <strong>de</strong> Geociências - UFMG<br />
Reitora da UFMG<br />
Ronaldo Tadêu Pena<br />
Diretor do Instituto <strong>de</strong> Geociências<br />
Cristina Helena Ribeiro Rocha Augustin<br />
Chefe do Departamento <strong>de</strong> Geografia<br />
Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />
Coor<strong>de</strong>nadora do Programa<br />
<strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />
Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />
Projeto Gráfico e Capa<br />
Glória Campos, Clô Paoliello (Mangá)<br />
Secretaria da Redação<br />
Rose A. Botelho Rodrigues Acácio<br />
Revisão<br />
Darlene Ávila Figueiredo<br />
Diagramação e Formatação dos originais<br />
Mangá Ilustração e Design Gráfico<br />
Fotografia da página 6<br />
Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />
Apoio<br />
Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pós-graduação/UFMG<br />
<strong>Revista</strong> Geografias<br />
Departamento <strong>de</strong> Geografia - <strong>IGC</strong>/UFMG<br />
Av. Antônio Carlos 6627, Pampulha, CEP 31270-901<br />
Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brasil<br />
Fone: 5531 3499.5421 Fax: 5531 3499.5410<br />
geografias@igc.ufmg.br<br />
www.igc.ufmg.br/geografias<br />
As opiniões contidas nos artigos são <strong>de</strong> inteira<br />
responsabilida<strong>de</strong> dos autores
Neste número a <strong>Revista</strong> Geografias reforça sua função <strong>de</strong> veículo divulgador das múltiplas<br />
temáticas do “saber” e do “fazer” geográficos. Os artigos trazem diversas questões para<br />
reflexão sobre as relações entre socieda<strong>de</strong>-natureza em diferentes regiões do Brasil.<br />
Po<strong>de</strong>mos transitar por estudos <strong>de</strong> caso que ilustram os conflitos e os impactos existentes<br />
nos processos <strong>de</strong> apropriação dos recursos naturais <strong>de</strong>rivados dos usos e das ativida<strong>de</strong>s<br />
humanas, como em “Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal<br />
do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil” e em “Impactos da silvicultura <strong>de</strong><br />
eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais: o caso <strong>de</strong> mananciais <strong>de</strong><br />
abastecimento público <strong>de</strong> Caeté/MG”. Reflexões sobre os processos <strong>de</strong> ocupação,<br />
construção e diferenciação do espaço também são instigadas pelo trabalho “Agricultura<br />
familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia”. Abordando<br />
uma região cuja ocupação foi marcada por conflitos e profundas transformações<br />
ambientais, o artigo ilustra, por meio da agricultura familiar, a diversida<strong>de</strong> dos complexos<br />
socioespaciais resultantes das ativida<strong>de</strong>s humanas. Associando aspectos históricos, culturais<br />
e naturais, o artigo “Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território”<br />
resgata as transformações nas relações entre práticas tradicionais <strong>de</strong> populações<br />
remanescentes <strong>de</strong> quilombos e a natureza no sertão norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Dois outros<br />
artigos suscitam reflexões sobre as escalas geográficas e os seus significados em relação<br />
às vivências humanas. Em “Recortes <strong>de</strong> lugar” os autores enfatizam que “os lugares são<br />
a manifestação <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que, sobretudo, lhes conce<strong>de</strong>m a existência”. No<br />
trabalho “A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong><br />
globalização” somos chamados a consi<strong>de</strong>rar a relevância da análise do espaço em diferentes<br />
escalas: a global, a do lugar e a do território. Completando o rol <strong>de</strong> artigos científicos<br />
<strong>de</strong>ste número, o trabalho “Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre<br />
produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE” reflete, sob o foco das<br />
políticas e práticas sociais, os conteúdos das ativida<strong>de</strong>s da nacionalmente reconhecida<br />
Associação dos Catadores <strong>de</strong> Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis <strong>de</strong> Belo<br />
Horizonte. Por meio <strong>de</strong>ssa varieda<strong>de</strong> temática, a <strong>Revista</strong> Geografias continua buscando<br />
conduzir os leitores por diferentes caminhos e possibilida<strong>de</strong>s do conhecimento geográfico.<br />
Editorial<br />
Antônio Pereira Magalhães Jr<br />
Coor<strong>de</strong>nador da Comissão Editorial
Artigos<br />
científicos<br />
6<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
Recortes <strong>de</strong> lugar 1<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa<br />
Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia da<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>; Doutor em Geografia pela<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> Estadual Paulista, campus <strong>de</strong> Rio Claro<br />
Rosana Rios Corgosinho<br />
Professora da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> do Estado <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>,<br />
campus <strong>de</strong> Divinópolis; Mestre em Geografia pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />
Resumo<br />
Os lugares são o seu movimento. Vivos, movem-se,<br />
metamorfoseiam-se. Na contemporaneida<strong>de</strong>,<br />
a <strong>de</strong>speito das velozes transformações,<br />
apesar das interpretações que encaminham leituras<br />
que compreen<strong>de</strong>m a compressão e a padronização<br />
dos lugares por uma globalização unificadora,<br />
os lugares são a manifestação <strong>de</strong> suas<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que, sobretudo, lhes conce<strong>de</strong>m a<br />
existência. A vida é feita dos lugares, plenos do<br />
ser, tal como o mundo é realizado nos lugares.<br />
Eles são a vivência cotidiana nesses pequenos<br />
universos que, cada qual com a sua particularida<strong>de</strong>,<br />
carregam um pedaço <strong>de</strong> mundo.<br />
Abstract<br />
Places are <strong>de</strong>fined by their movement. They are alive,<br />
they move, and transform themselves. Today, <strong>de</strong>spite<br />
the rapid changes and the standardization of places<br />
by a unifying globalization, places are the manifestation<br />
of their i<strong>de</strong>ntities, which above all grant them<br />
their existence. Life is ma<strong>de</strong> of places, just as the<br />
world happens in places. The everyday life in these<br />
small universes, each one with its own characteristics,<br />
carries a piece of the world.<br />
1<br />
O presente ensaio é resultado da reescrita,<br />
pelos autores, <strong>de</strong> trecho <strong>de</strong> pesquisa originária<br />
da dissertação <strong>de</strong> mestrado intitulada O<br />
lugar no mundo contemporâneo, <strong>de</strong>fendida,<br />
em 2004, por Rosana Rios Corgosinho, sob a<br />
orientação <strong>de</strong> Cássio Eduardo Viana Hissa,<br />
no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />
da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>.<br />
Palavras-chave lugar, mundo; contemporaneida<strong>de</strong>;<br />
mobilida<strong>de</strong>s, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e cotidianos.<br />
Keywords place and world; contemporaneity;<br />
mobility; i<strong>de</strong>ntity and everyday life.<br />
cassioevhissa@terra.com.br<br />
rosanarios@uol.com.br<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
7
2<br />
Os adjetivos que aqui se ajuntam <strong>de</strong>monstram<br />
e refletem, <strong>de</strong> um lado, o seu pequeno<br />
po<strong>de</strong>r para qualificar os conceitos e, <strong>de</strong> outro,<br />
as dificulda<strong>de</strong>s postas para uma <strong>de</strong>finição<br />
precisa acerca <strong>de</strong> categorias que, <strong>de</strong> fato,<br />
são transdisciplinares. Des<strong>de</strong> já, portanto,<br />
anuncia-se o caráter <strong>de</strong>sses conceitos que,<br />
progressivamente, assumem, na contemporaneida<strong>de</strong>,<br />
o significado <strong>de</strong> metacategorias<br />
(HISSA, 2001).<br />
3<br />
Não se po<strong>de</strong> afirmar a existência da categoria<br />
mundo. Entretanto, no contexto das reflexões<br />
teóricas sobre o lugar, a idéia <strong>de</strong><br />
mundo emerge como um conceito importante,<br />
sem o qual a própria noção <strong>de</strong> lugar é<br />
<strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> significado contemporâneo. A<br />
idéia <strong>de</strong> mundo, tão abstrata na dimensão<br />
das vivências e dos cotidianos, adquire significado<br />
quando os olhos se voltam para os lugares:<br />
recortes <strong>de</strong> mundo estão em todos os<br />
lugares; representações <strong>de</strong> mundo estão presentes<br />
em todos os lugares.<br />
4<br />
Em algumas circunstâncias é possível perceber<br />
a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados conceitos<br />
ou categorias em relação aos <strong>de</strong>mais. Assim,<br />
em algumas reflexões, discutir o conceito <strong>de</strong><br />
lugar é pensar o mundo. O mesmo po<strong>de</strong> ser<br />
dito das relações <strong>de</strong> aproximação entre os<br />
conceitos <strong>de</strong> território e <strong>de</strong> fronteira. A utilização<br />
dos conceitos como categorias analíticas<br />
faz com que cada um assuma a <strong>de</strong>finição<br />
teórica que lhe diz respeito. Além disso, como<br />
já se observou, para que possam cumprir os<br />
seus papéis, não po<strong>de</strong>m ser compreendidos a<br />
partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>finições estanques. São conceitos<br />
moventes, flexíveis, prontos para acompanhar<br />
os movimentos do que se acostumou a<br />
receber a <strong>de</strong>nominação realida<strong>de</strong>.<br />
5<br />
Determinadas pesquisas teóricas constituem-se<br />
<strong>de</strong> reflexões analíticas que, apenas<br />
aparentemente, dispensam as abordagens<br />
empíricas que se referem aos problemas <strong>de</strong><br />
que se ocupam.<br />
6<br />
Interpretações acerca dos significados e do<br />
percurso histórico da ciência mo<strong>de</strong>rna são<br />
fornecidas por Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos<br />
(1987, 1989, 1994). Interpretações complementares,<br />
especialmente referentes aos processos<br />
<strong>de</strong> estruturação da ciência mo<strong>de</strong>rna na<br />
Europa, estão presentes na obra <strong>de</strong> Paolo<br />
Rossi (2001).<br />
Uma discussão teórica que se refere aos significados dos lugares encaminha, sempre, uma<br />
reflexão provisória sobre a sua natureza. Além disso, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações<br />
teóricas sobre o caráter dos lugares também po<strong>de</strong>, antecipadamente, provocar expectativas<br />
acerca das suas proximida<strong>de</strong>s com outras categorias socioambientais, socioespaciais 2 .<br />
Assim, estariam envolvidos também, menos ou mais intensamente, os conceitos <strong>de</strong><br />
paisagem, território, fronteira, re<strong>de</strong>, região, mundo. 3 Isso significa que as possíveis e sempre<br />
necessárias reflexões teóricas acerca da natureza dos lugares envolvem também, direta<br />
e/ou indiretamente, reflexões que dizem respeito aos <strong>de</strong>mais conceitos dos quais se<br />
servem diversas disciplinas para a construção dos saberes que lhes dizem respeito. 4<br />
Os <strong>de</strong>bates sobre o conceito <strong>de</strong> lugar são sempre necessários por conta da evolução<br />
<strong>de</strong> processos que, direta e intensamente, envolvem os próprios lugares, as relações <strong>de</strong><br />
que são feitos, além das conexões que estabelecem com o seu mundo exterior — tão presente,<br />
cada vez mais, em diversas circunstâncias, na sua interiorida<strong>de</strong>: o mundo está um pouco<br />
no interior <strong>de</strong> todos os lugares. Assim, se o mundo se transformou, os lugares também<br />
o fizeram através <strong>de</strong> processos quase simultâneos que evocam a imagem — mesmo que<br />
incompleta, ainda que <strong>de</strong>sigual — da reciprocida<strong>de</strong>. O mesmo <strong>de</strong>ve ser dito sobre as<br />
transformações ocorridas com os territórios — e com todos os po<strong>de</strong>res que <strong>de</strong>les emanam<br />
ou para eles se dirigem —, com as fronteiras, com as regiões, com as paisagens. As<br />
transformações constantes, muitas vezes ocorridas através <strong>de</strong> ritmos intensos, <strong>de</strong>mandam<br />
um permanente acompanhamento da ciência, da filosofia e <strong>de</strong> todos os saberes.<br />
Em muitas circunstâncias, as pesquisas teóricas são confundidas com estudos vazios <strong>de</strong><br />
experiência empírica e analítica. Não se po<strong>de</strong> afirmar que elas sejam assim: os investimentos<br />
teóricos resultam também da experiência empírica e das construções abstratas<br />
que envolvem o que, freqüentemente, se compreen<strong>de</strong> como realida<strong>de</strong>. 5 Além disso, o que<br />
se <strong>de</strong>nomina realida<strong>de</strong>, por sua vez, experimenta transformações que, em última instância,<br />
são produzidas pelas próprias interpretações reflexivas <strong>de</strong> natureza teórica: a realida<strong>de</strong> é,<br />
também, feita <strong>de</strong> olhos teóricos. Entretanto, as avaliações provenientes dos paradigmas mais<br />
conservadores da ciência, na extremida<strong>de</strong> do pragmatismo, procuram en<strong>de</strong>reçar aos<br />
trabalhos reflexivos, filosóficos, um conteúdo estéril e distante da realida<strong>de</strong>. O engano é<br />
feito da própria condição da qual são constituídas a ciência mais disciplinar — feita do<br />
mais frágil e estéril fragmento <strong>de</strong> saber — e a mais conservadora das abordagens.<br />
Algumas disciplinas científicas chamam para si a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o<br />
que <strong>de</strong>nominam real. Em muitas situações, várias <strong>de</strong>ssas disciplinas científicas se autointitulam<br />
ciências do real, supostamente feitas da realida<strong>de</strong> — porque <strong>de</strong>la se serviriam para<br />
se tornarem o que estudam. Mas o que é a realida<strong>de</strong>? Há quem possa afirmar que a<br />
realida<strong>de</strong> é o que se torna concreto através do dinamismo da vida; é a própria materialização<br />
das coisas que existem, visíveis, palpáveis, passíveis <strong>de</strong> tocar com os sentidos.<br />
Destes, os olhos e o olhar retínico são os mais solicitados para, quem sabe, presos às<br />
armadilhas da socieda<strong>de</strong> do espetáculo (DEBORD, 1997), <strong>de</strong>finir provisoriamente o significado<br />
do que é real e do que é realida<strong>de</strong>. Nesses termos, convencionais, po<strong>de</strong>r-se-ia<br />
pensar sobre o significado <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, tal como concebida pela ciência mo<strong>de</strong>rna: 6 a<br />
realida<strong>de</strong> seria, em princípio, feita do que é concreto, daquilo que é tomado como real-<br />
8<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
mente existente, tido como verda<strong>de</strong>iro. Busca-se, assim, a compreensão da realida<strong>de</strong> tal<br />
como se procura <strong>de</strong>scobrir a verda<strong>de</strong>. A realida<strong>de</strong> e o real seriam feitos, portanto, das coisas<br />
e dos objetos como realmente são, e à ciência caberia o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar o que encobre<br />
a verda<strong>de</strong>. 7 Recorre-se a José Saramago (2001), que surpreen<strong>de</strong> com a sabedoria <strong>de</strong> poucas<br />
palavras repletas <strong>de</strong> vastos conteúdos: “Se eu acreditar que Deus fez os meus olhos<br />
para que eu visse a realida<strong>de</strong> tal como ela [é], então, estupendo. Mas como nós sabemos<br />
que não é assim, não vale a pena estarmos a per<strong>de</strong>r tempo com isso”.<br />
Já não são poucos os estudos teóricos sobre a condição dos lugares, sobre a sua<br />
natureza, especialmente em função da vasta literatura voltada para a compreensão dos<br />
processos associados à globalização. Assim, sobretudo a partir dos últimos instantes do<br />
século XX, uma profusão <strong>de</strong> estudos — entre os quais também vários empíricos —<br />
assinalava os esforços e as possibilida<strong>de</strong>s analíticas <strong>de</strong> todos os saberes ocupados com a<br />
problemática espacial. O lugar, por razões compreensíveis, emerge como um conceito<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque central na discussão sobre a globalização. Pouco restou do que se imaginou<br />
como resultado <strong>de</strong>sse manto abstrato que, em princípio, foi tomado como o que veio,<br />
sob o nome <strong>de</strong> globalização, para neutralizar o espaço, homogeneizar as diferenças e as<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, suprimir os lugares, os valores e as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Esse manto feito <strong>de</strong> fluxos,<br />
especialmente <strong>de</strong> caráter econômico, assume o significado <strong>de</strong> uma superfície eletrônica<br />
mercantil que, em princípio, foi tomada como capaz <strong>de</strong> suprimir as superfícies do passado,<br />
os lugares, a vida cotidiana, as diferenças e, quem sabe, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Tudo sucumbiria<br />
à globalização: a partir <strong>de</strong> então, não haveria como pensar noutra cultura originária<br />
<strong>de</strong> outras concepções <strong>de</strong> mundo, <strong>de</strong> outros fluxos. O passado não mais existiria para as<br />
culturas alternativas: restaria um futuro comum, <strong>de</strong> contornos nitidamente mercantis,<br />
como se fosse esse um <strong>de</strong>stino inevitável para todos. Mas a história e o pensamento<br />
crítico fizeram com que a discussão sobre a questão espacial readquirisse a relevância:<br />
não há como receber o mundo, em sua abstração digital, sem que os olhos estejam voltados<br />
para os lugares, para as mobilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que são feitos, para as relações i<strong>de</strong>ntitárias que os<br />
caracterizam, para a sua vida cotidiana.<br />
Um estudo reflexivo, teórico, sobre os lugares, contudo, po<strong>de</strong> não se restringir à discussão<br />
acerca <strong>de</strong> sua natureza movente, que correspon<strong>de</strong>, em parte, aos movimentos do<br />
mundo. Do mesmo modo, um estudo teórico sobre os lugares po<strong>de</strong>, assim, ultrapassar<br />
a própria interpretação acerca <strong>de</strong> suas relações com o seu universo aparentemente exterior.<br />
Um estudo reflexivo sobre os lugares po<strong>de</strong> também, pensando sobre o seu caráter,<br />
fazer referência às relações que se <strong>de</strong>senvolvem nos seus interiores, entre elementos <strong>de</strong>finidores<br />
<strong>de</strong> suas características e através <strong>de</strong> situações que fazem <strong>de</strong>les o que são. Assim,<br />
portanto, neste breve ensaio são abordadas as relações entre os lugares e as mobilida<strong>de</strong>s,<br />
entre os lugares e as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, entre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e a vida cotidiana.<br />
Mobilida<strong>de</strong>s e lugares<br />
A discussão sobre o fenômeno da mobilida<strong>de</strong> assume a centralida<strong>de</strong>, sob a referência<br />
dos fortes ritmos da vida contemporânea. Para que se refira à dinâmica espacial,<br />
compreen<strong>de</strong>-se que os lugares sejam feitos também, como observava Milton Santos<br />
7<br />
Como conceber as coisas e os objetos como<br />
realmente são? Tal concepção nos faz pensar<br />
na existência <strong>de</strong> coisas e <strong>de</strong> objetos ensimesmados,<br />
presentes no mundo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
dos significados advindos da interpretação,<br />
da leitura que se faz <strong>de</strong>les.<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
9
8<br />
Milton Santos (1988) procura caracterizar os<br />
fluxos como originários dos fixos. Os lugares<br />
seriam feitos <strong>de</strong>ssas relações envolvendo fixos<br />
e fluxos. Os fixos seriam constituídos por<br />
um conjunto <strong>de</strong> objetos que encontram a sua<br />
localização no espaço, como agências <strong>de</strong> correio,<br />
bancos, escolas etc. Milton Santos (1988,<br />
p. 77) procura esclarecer o significado que<br />
conce<strong>de</strong> aos fluxos: “Os fluxos são o movimento,<br />
a circulação e assim eles nos dão, também,<br />
a explicação dos fenômenos da distribuição<br />
e do consumo”. Entretanto, alguns<br />
questionamentos são importantes para o que<br />
interessa à reflexão presente. A mais importante<br />
diz respeito aos diversos fluxos originários<br />
da própria natureza humana, dos interiores<br />
do homem, dos que conce<strong>de</strong>m<br />
significados aos próprios fixos e, conseqüentemente,<br />
aos fluxos. Os lugares são feitos da<br />
experiência, dos movimentos originários dos<br />
interiores do homem, da sua natureza, dos<br />
seus sentimentos, dos laços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que<br />
estabelece com o mundo feito nos lugares.<br />
Ainda po<strong>de</strong>r-se-ia argumentar: pois os fixos,<br />
também eles, não seriam feitos dos olhos do<br />
homem? Nessa sua condição, <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong><br />
ser menos fixos, posto que, simultaneamente,<br />
estariam nos interiores do homem feito<br />
<strong>de</strong> cultura, <strong>de</strong> imagens teóricas plenas <strong>de</strong> significados,<br />
<strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> vivências.<br />
9<br />
A frase parece ser portadora <strong>de</strong> redundâncias:<br />
homem e espaço são apresentados como<br />
se não fizessem parte <strong>de</strong> um todo. Os homens<br />
e a socieda<strong>de</strong> são o espaço que produzem. Os<br />
lugares são, também, a manifestação <strong>de</strong>sse<br />
processo. Entretanto, nas abordagens clássicas,<br />
originárias <strong>de</strong> diversos campos do saber,<br />
ainda são fortes os apelos teóricos que procuram<br />
interpretar o homem e o espaço a partir<br />
<strong>de</strong> abordagens que não os integram, que não<br />
os percebem como um todo indivisível. O espaço,<br />
mais do que um produto do trabalho dos<br />
homens, po<strong>de</strong> ainda ser assim interpretado: o<br />
espaço é feito dos olhos do homem, que o trabalham<br />
e recobrem-no <strong>de</strong> significados.<br />
10<br />
O que se <strong>de</strong>nomina interpretação — que<br />
também po<strong>de</strong> assumir os significados <strong>de</strong> leitura,<br />
<strong>de</strong> avaliação, <strong>de</strong> tradução, ou <strong>de</strong> análise<br />
(como preferem os paradigmas mais clássicos<br />
da ciência mo<strong>de</strong>rna) — resulta do<br />
encontro entre sujeito (que é sujeito do conhecimento)<br />
e objeto (no qual o próprio sujeito<br />
está inserido). Sobre tais relações, alguns<br />
estudos, originários da vanguarda da<br />
neurociência, são bastante esclarecedores.<br />
António Damásio (2004, p. 99), a partir <strong>de</strong><br />
estudos sistemáticos sobre as relações entre<br />
cérebro e mente, organiza idéias que ratificam<br />
interrogações seculares acerca da objetivida<strong>de</strong><br />
da leitura dos objetos e das coisas<br />
(1978, 1988, 2002), <strong>de</strong> fixos e <strong>de</strong> fluxos. Não há espaço — e tampouco lugares — na<br />
ausência <strong>de</strong> objetos aparentemente fixos, <strong>de</strong> fluxos e, portanto, dos movimentos. Os<br />
lugares são feitos <strong>de</strong> objetos fixos e, especialmente, <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>s. Muitos<br />
<strong>de</strong>sses movimentos, entretanto, não se referem aos fluxos convencionais — da forma<br />
como <strong>de</strong>scritos por Milton Santos. 8 Vários <strong>de</strong>sses movimentos que fazem os lugares são<br />
feitos das relações entre os indivíduos e os seus próprios lugares. Entretanto, ainda há o<br />
que dizer sobre os movimentos. Todos eles são originários do homem, dos seus olhos<br />
que emprestam significado às coisas, aos objetos e aos próprios fixos que, assim, já<br />
assumiriam um caráter originário dos interiores dos indivíduos.<br />
As revoluções tecnológicas, como sempre, provocam mudanças qualitativas no comportamento<br />
do homem e no seu espaço. 9 Entretanto, tem-se superestimado a tecnologia<br />
como recurso explicativo da realida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, mas, sobretudo, da contemporânea. No<br />
que se refere ao tempo e ao espaço percebe-se, na literatura que trata da questão, um congestionamento<br />
teórico que resulta em <strong>de</strong>vaneios, em fantasia <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> conexões próximas<br />
com as imagens <strong>de</strong>rivadas do encontro entre sujeito e objeto. 10 Doreen Massey (2000)<br />
observa que <strong>de</strong>terminadas expressões criadas para enfatizar essa nova fase — como<br />
aniquilação do espaço pelo tempo, compressão do tempo-espaço, al<strong>de</strong>ia global, aceleração, superação <strong>de</strong><br />
barreiras espaciais etc. — criam mais incertezas do que explicam a realida<strong>de</strong> do mundo. Em<br />
relação ao lugar, a autora afirma que “um dos resultados <strong>de</strong>ssa situação é a crescente incerteza<br />
sobre o que queremos dizer com ‘lugares’ e como nos relacionamos com eles” (MAS-<br />
SEY, 2000, p. 177). A generalização da idéia <strong>de</strong> simultaneida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> instantaneida<strong>de</strong> no<br />
mundo digital globalizado po<strong>de</strong> apontar para uma esquizofrenia tanto teórica (originária<br />
dos saberes científicos) como do senso comum (produzida e disseminada, especialmente,<br />
pelos meios <strong>de</strong> comunicação). Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2000, p. 194) observa:<br />
Quando hoje se fala <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>, como forma <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> emergente [...], ou da compressão<br />
do tempo-espaço para expressar as alterações drásticas na or<strong>de</strong>nação dos espaços e dos tempos<br />
[...], os espaços são concebidos como estando à beira do colapso e na aurora da infinitu<strong>de</strong>: só há<br />
mobilida<strong>de</strong> entre espaços e, por isso, só se acelera a primeira multiplicando os segundos; a<br />
necessida<strong>de</strong> da compressão do tempo-espaço é tanto maior quanto mais vasto é o espaço.<br />
A força com que é introduzido o sentido <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> leva a se imaginar o mundo<br />
capturado pela experiência eletrônica: espaços superpostos e tempo infinito. A certeza<br />
<strong>de</strong>ssa viagem virtual aparentemente rouba o sentido dos lugares, juntamente com a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> do mundo. Assim como a expressão compressão do<br />
tempo-espaço, a expressão superabundância <strong>de</strong> tempo e espaço (AUGÉ, 1994) traduz o resultado<br />
<strong>de</strong> um mundo homogêneo a partir da diversida<strong>de</strong>, roubada pela informação da qual<br />
não se sabe a origem. Assimila-se com naturalida<strong>de</strong> que a informação vence a comunicação.<br />
Conclui-se freqüentemente, a partir daí, que os indivíduos se tornam aparentemente<br />
mais solitários, pois estão em constante movimento, não se encontram. 11<br />
Doreen Massey (2000) parece convidar os teóricos da globalização e os <strong>de</strong>fensores da<br />
imagem da compressão do espaço a refletir sobre o vigor da seletivida<strong>de</strong> no mundo da<br />
permanente exclusão. A seletivida<strong>de</strong> do mundo e a particularização das experiências não<br />
10<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
se dão fora dos lugares. Pelo contrário, é nos lugares que a vida, em todos os seus<br />
significados, emerge como um recorte <strong>de</strong> mundo. Não é a ampliação do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
tecnológico e tampouco a propagação do capitalismo que farão a supressão dos lugares<br />
e da vida que os homens experimentam. A seletivida<strong>de</strong> do mundo — compreendida<br />
como ambiências <strong>de</strong> fluxos globais, como movimento — reforça a condição dos lugares<br />
e da sua própria natureza.<br />
A interpretação dos lugares a partir dos diversos fluxos que estes experimentam, através<br />
<strong>de</strong>sse conjunto movente feito também <strong>de</strong> uma natureza abstrata, virtual, ainda conduz<br />
o pensamento para um espaço <strong>de</strong> caráter geométrico. A imagem do espaço geométrico<br />
adquire visibilida<strong>de</strong> eletrônica, quando pontos, linhas e feixes <strong>de</strong> fluxos fornecem<br />
um conceito <strong>de</strong> mundo grafado pelas conexões entre os lugares.<br />
Ainda se observa, contudo, o que po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado como a geometria do po<strong>de</strong>r da<br />
mobilida<strong>de</strong>: “[...] diferentes grupos sociais e diferentes indivíduos posicionam-se <strong>de</strong> formas<br />
muito distintas em relação a esses fluxos e interconexões” (MASSEY, 2000, p. 179).<br />
Nessa geometria estão presentes <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e diferenças, tanto entre os que produzem<br />
como entre os que sustentam o movimento. Ainda é preciso distinguir, aqui, espaço<br />
<strong>de</strong> espaço geométrico: não são a mesma coisa. A geometria do espaço está no espaço, mas<br />
não é o espaço. A geometria dos lugares e a posição cartesiana dos lugares na geometria<br />
planetária não são, <strong>de</strong> modo algum, os indicadores mais preciosos para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
teórico do significado dos lugares. Os lugares são a vida dos homens no mundo,<br />
por mais subjetivida<strong>de</strong> que a imagem possa evocar: é sobre isso que se <strong>de</strong>ve refletir,<br />
quando se <strong>de</strong>seja pensar o lugar no mundo contemporâneo, recortes <strong>de</strong> lugar, sob as referências<br />
das mobilida<strong>de</strong>s, dos fluxos e dos objetos.<br />
Doreen Massey (2000) sublinha que a mobilida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>sigualmente distribuída, como<br />
<strong>de</strong>corrência também do po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>la emana: com isso, po<strong>de</strong> reforçar o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
alguns, em <strong>de</strong>trimento do <strong>de</strong> outros. As suas reflexões estão fundamentadas na observação<br />
<strong>de</strong> diferentes situações do movimento, <strong>de</strong>ntre elas, os investimentos na aceleração<br />
do movimento <strong>de</strong> alguns fluxos particularizados e particulares (aviões e automóveis, por<br />
exemplo) e o relativo abandono do transporte público. O privilégio da mobilida<strong>de</strong> também<br />
influencia outros processos econômicos, sociais e espaciais: “Toda vez que se vai <strong>de</strong><br />
carro a um shopping center, contribui-se para o aumento dos preços da loja da esquina e até<br />
se acelera sua falência” (MASSEY, 2000, p. 181). 12 Mas não estão apenas nesses movimentos<br />
os conteúdos que fornecem multiplicida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significados aos lugares.<br />
Observa-se, ainda com Doreen Massey (2000, p. 179), que os novos rumos tomados<br />
pelo capitalismo — cuja lógica po<strong>de</strong> ser interpretada como predominante — não são os<br />
únicos e tampouco os <strong>de</strong>terminantes na experiência <strong>de</strong> vida do homem: “[...] há muito<br />
mais coisas <strong>de</strong>terminando nossa vivência do espaço do que o ‘capital’”. Muito dos movimentos<br />
do capital interfere nos movimentos dos homens. Contudo, isso não lhes retira<br />
a condição <strong>de</strong> estar em um lugar, <strong>de</strong> experimentá-lo, <strong>de</strong> vivenciá-lo a partir <strong>de</strong> outras<br />
referências. A globalização do capital é hegemônica. Entretanto, há outros movimentos,<br />
<strong>de</strong> âmbito global, com origens e com repercussões na escala local, reunidos sob a <strong>de</strong>nominação<br />
<strong>de</strong> globalização contra-hegemônica. Todos esses movimentos são focalizados por<br />
visíveis, ditas empíricas: “O cérebro po<strong>de</strong> atuar<br />
diretamente sobre a estrutura do objeto<br />
que está em vias <strong>de</strong> perceber. Por exemplo,<br />
po<strong>de</strong> modificar o estado do objeto, ou seja,<br />
alterar o estado do corpo, ou modificar a transmissão<br />
dos sinais que lhe chegam ao corpo. O<br />
objeto imediato do sentimento e o mapa <strong>de</strong>sse<br />
objeto po<strong>de</strong>m influenciar-se mutuamente<br />
numa espécie <strong>de</strong> processo reverberativo que<br />
não é possível encontrar na percepção <strong>de</strong> um<br />
objeto exterior ao corpo”.<br />
11<br />
Questiona-se, aqui, o significado adquirido<br />
pela solidão contemporânea. Ela parece ter<br />
recebido qualificações que conduzem à reflexão<br />
sobre a dificulda<strong>de</strong> do encontro no âmbito<br />
do próprio encontro. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação<br />
não é contemporânea. Ela po<strong>de</strong><br />
ter sido posta à mostra, dadas as circunstâncias<br />
históricas contemporâneas. Entretanto,<br />
pensar a solidão como originária dos tempos<br />
contemporâneos, como originária da ausência<br />
ou da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro, inerente à<br />
lógica dos ritmos velozes da contemporaneida<strong>de</strong>,<br />
não parece ser o caminho teórico mais<br />
apropriado ou mais consistente. Tais questões<br />
mereceriam estudos mais aprofundados.<br />
12<br />
Doreen Massey (2000, p. 181) ainda evi<strong>de</strong>ncia<br />
que os privilégios da mobilida<strong>de</strong> promovem a<br />
<strong>de</strong>gradação ambiental e restringem as possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> uso <strong>de</strong> recursos: “[...] a compressão<br />
<strong>de</strong> tempo-espaço envolvida na produção<br />
e na reprodução das vidas cotidianas dos abastados<br />
das socieda<strong>de</strong>s do primeiro mundo —<br />
não apenas suas próprias viagens, mas os recursos<br />
que trazem consigo, <strong>de</strong> todas as partes<br />
do mundo, para abastecer suas vidas —<br />
po<strong>de</strong> acarretar conseqüências ambientais<br />
ou promover restrições que limitarão a vida<br />
dos outros antes <strong>de</strong> afetar suas próprias<br />
existências”.<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
11
13<br />
Observa Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2002,<br />
p. 75): “[...] no campo das práticas sociais e<br />
culturais transnacionais, a transformação<br />
contra-hegemônica consiste na construção do<br />
multiculturalismo emancipatório, ou seja, na<br />
construção <strong>de</strong>mocrática das regras <strong>de</strong> reconhecimento<br />
recíproco entre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e<br />
entre culturas distintas. Este reconhecimento<br />
po<strong>de</strong> resultar em múltiplas formas <strong>de</strong> partilha<br />
— tais como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s duais, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
híbridas, interi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e transi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
—, mas todas <strong>de</strong>vem orientar-se pela<br />
seguinte pauta transi<strong>de</strong>ntitária e transcultural:<br />
temos o direito <strong>de</strong> ser iguais quando a<br />
diferença nos inferioriza e a ser diferentes<br />
quando a igualda<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>scaracteriza”. As<br />
referidas transformações contra-hegemônicas<br />
no âmbito das localida<strong>de</strong>s necessitam,<br />
contudo, <strong>de</strong> fortalecimento, a fim <strong>de</strong> permitir,<br />
<strong>de</strong> modo ainda mais expressivo, o seu alcance<br />
global.<br />
14<br />
Milton Santos (2002, p. 328) também contribui<br />
para a compreensão dos novos cenários:<br />
“[...] num mundo do movimento, a realida<strong>de</strong><br />
e a noção <strong>de</strong> residência [...] do homem não se<br />
esvaem. O homem mora talvez menos, ou<br />
mora muito menos tempo, mas ele mora:<br />
mesmo que ele seja <strong>de</strong>sempregado ou<br />
migrante. A ‘residência’, o lugar <strong>de</strong> trabalho,<br />
por mais breve que sejam, são quadros da<br />
vida que têm peso na produção do homem”.<br />
Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2002) e são alternativos à globalização hegemônica. 13 Todos<br />
eles vivificam os lugares.<br />
Mesmo movimentando-se, a maioria dos homens encontra-se em um lugar. 14 Ali, no<br />
lugar, a existência dos homens adquire o sentido da vida. Não é o trânsito, não são os<br />
ritmos e os fluxos que retiram a condição <strong>de</strong> existência dos lugares, recortados pelas<br />
estruturas moventes, vivos. A mobilida<strong>de</strong> dos homens, a propósito, dá-se a partir <strong>de</strong><br />
lugares cuja diversida<strong>de</strong> emerge do próprio trânsito. Po<strong>de</strong>-se pensar o mesmo dos fluxos<br />
que se entrecruzam, que se atravessam, constituindo trilhas e <strong>de</strong>senhando, em uma<br />
complexa grafia, mapas que, <strong>de</strong> modo algum, po<strong>de</strong>m ser compreendidos como cartografias<br />
<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> lugares e <strong>de</strong> significados. O espaço é, também, feito <strong>de</strong> fluxos<br />
originários <strong>de</strong> objetos fixos: a sua representação geométrica não negligencia os pontos e<br />
os sinais emitidos pelos lugares <strong>de</strong> origem e <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino. O espaço é grafado e <strong>de</strong>senhado<br />
pelos fluxos, pelos sinais e pelas linhas virtuais, exigindo, da ciência, uma nova representação,<br />
uma nova interpretação, uma nova inteligência, uma nova razão.<br />
Portanto, não há quem não seja convidado a pensar no movimento, nas mobilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> todas as naturezas, quando se está a refletir sobre o mundo mo<strong>de</strong>rno e sobre as<br />
rápidas transformações contemporâneas. A idéia <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> faz com que o pensamento<br />
seja conduzido para o que acontece nas cida<strong>de</strong>s, nas metrópoles, conectadas eletronicamente<br />
com o mundo. Mais adiante, o pensamento sobre o movimento conduz as<br />
idéias na direção dos pequenos lugares. Em todos eles, a idéia <strong>de</strong> movimento está mais<br />
presente do que esteve no passado — ainda que se tenha a sensação <strong>de</strong> que sempre se<br />
esteve caminhando na mesma direção, mesmo diante dos impactos ocasionados, no<br />
presente, pelos processos po<strong>de</strong>rosos da globalização conservadora mais radical:<br />
Recorreu-se a uma palavra, que adquiriu importância no final do século, para caracterizar os<br />
movimentos da contemporaneida<strong>de</strong>: globalização. Trata-se <strong>de</strong> uma projeção do passado que<br />
assumiu novos formatos, proporcionais ao <strong>de</strong>senvolvimento da técnica [...]. Os espaços <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s consumos tornaram-se disponíveis para diversas nações e vários territórios: cresceu o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> consumo e ampliou-se a produção. [...] Mesmo no discurso da integração global,<br />
contraditoriamente, o eu agiganta-se diante do nós. E, também por isso, posto que os gran<strong>de</strong>s<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento permanecem inalterados em sua concepção, a integração po<strong>de</strong><br />
implicar a ampliação da periferização, da marginalida<strong>de</strong>, do empobrecimento (HISSA, 2002, p. 313).<br />
Os movimentos contemporâneos que se associam aos processos reunidos pela palavraconceito<br />
globalização não apenas recusam a padronização como, ainda, ressaltam as diferenças<br />
e as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Por que seria diferente? Os lugares são feitos dos olhos <strong>de</strong><br />
quem percebe o mundo (sempre presente nos lugares, menos ou mais intensa ou <strong>de</strong>nsamente),<br />
também feito <strong>de</strong> lugares que emergem e rasgam a superfície econômica global<br />
<strong>de</strong> tendência homogeneizante. No interior dos lugares, ainda, os movimentos repercutem<br />
no âmbito da socieda<strong>de</strong>. A violência, a periferização, a marginalida<strong>de</strong> e o empobrecimento<br />
são postos aos olhos da interpretação: eles estão mais presentes e mais visíveis<br />
nos lugares feitos do mundo. Com os movimentos e com as mobilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> todos os<br />
tipos, os lugares parecem existir <strong>de</strong> uma outra forma mas, surpreen<strong>de</strong>ntemente, emer-<br />
12<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
gem com maior vigor. A mobilida<strong>de</strong> intensa não extrai o significado dos lugares e a sua<br />
condição que, surpreen<strong>de</strong>ntemente, é negligenciada: o mundo existe nos lugares.<br />
Lugar e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
Embora no cotidiano das cida<strong>de</strong>s o movimento (interno e externo) — <strong>de</strong> pessoas, idéias<br />
e mercadorias — tenha alcançado relativa aceleração nas últimas décadas, as noções <strong>de</strong><br />
cultura e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser encontradas para além das relações econômicas: “Não<br />
são apenas as relações econômicas que <strong>de</strong>vem ser apreendidas numa análise da situação<br />
<strong>de</strong> vizinhança, mas a totalida<strong>de</strong> das relações. É assim que a proximida<strong>de</strong> [...] ‘po<strong>de</strong> criar<br />
a solidarieda<strong>de</strong>, laços culturais e <strong>de</strong>sse modo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>’” (SANTOS, M., 2002, p. 318).<br />
Essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> manifesta-se através da afetivida<strong>de</strong> que surge da relação entre pessoas<br />
convivendo em um mesmo espaço. Tal noção, segundo Milton Santos, seria inapreensível<br />
sem a consi<strong>de</strong>ração da relação espacial ou da contigüida<strong>de</strong> física entre as pessoas.<br />
Entretanto, não há como negligenciar a importância dos próprios lugares como elementos<br />
simbólicos e mediadores na construção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Portanto, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre<br />
indivíduos, entre grupos, é também a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que eles estabelecem com os lugares. 15<br />
James Clifford (2000) enten<strong>de</strong> o cenário da cultura tanto como um local <strong>de</strong> encontro<br />
<strong>de</strong> viagens quanto como um local <strong>de</strong> moradia. Segundo o autor, para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> avaliações consistentes, não é conveniente que sejam negligenciadas as forças culturais,<br />
econômicas e políticas que atravessam os lugares. Para além <strong>de</strong>ssa interpretação, tais<br />
forças não apenas atravessam como, especial e particularmente, fabricam os lugares e sua<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O autor, na construção <strong>de</strong> sua noção <strong>de</strong> cultura, procura incorporar a relação<br />
entre local e global: “Nessa ênfase, evitamos ao menos o localismo excessivo do relativismo<br />
cultural particularista, bem como a visão excessivamente global <strong>de</strong> uma monocultura<br />
capitalista ou tecnocrática” (CLIFFORD, 2000, p. 68).<br />
James Clifford (2000) e Akhil Gupta e James Ferguson (2000) contribuem também para<br />
o entendimento do que caracteriza o lugar contemporâneo. Para James Clifford (2000, p.<br />
68), po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>finir o lugar através da imagem feita <strong>de</strong> “[...] histórias cercadas, com um<br />
‘<strong>de</strong>ntro’ comunitário crucial, e um ‘fora’ viajante controlado”. O importante para a compreensão<br />
do lugar e da cultura, assim como para a construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares<br />
e dos indivíduos, não é a sua origem, o <strong>de</strong> on<strong>de</strong> você é, mas sim as suas experiências, o on<strong>de</strong><br />
você está (CLIFFORD, 2000, p. 69). Akhil Gupta e James Ferguson (2000, p. 34) observam que<br />
“[...] a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um lugar surge da interseção entre seu envolvimento específico em<br />
um sistema <strong>de</strong> espaços hierarquicamente organizados e sua construção cultural como<br />
comunida<strong>de</strong> ou localida<strong>de</strong>” 16 . Todas essas leituras são merecedoras <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração<br />
para uma leitura mais aprofundada acerca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares.<br />
Milton Santos (2002, p. 328) anota que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se forma, constantemente, a partir<br />
das ações presentes: “[...] o passado é um outro lugar ou, ainda melhor, num outro<br />
lugar”. A idéia é feita <strong>de</strong> uma forte imagem: o passado é um outro lugar e vive, quem<br />
sabe, distante dos lugares do presente. Não importa, nesse sentido, para que direção<br />
foram os lugares do passado 17 . O que interessa para a interpretação que se encaminha é que<br />
os lugares do presente ten<strong>de</strong>m a abraçar os do passado. A memória, nesses termos,<br />
15<br />
Entretanto, na concepção antropológica <strong>de</strong><br />
James Clifford (2000, p. 58), não se po<strong>de</strong> imaginar<br />
a cultura como algo específico <strong>de</strong> um lugar,<br />
que traduz homogeneida<strong>de</strong>: “A ‘cultura’<br />
antropológica não é mais o que costumava<br />
ser. E, uma vez que o <strong>de</strong>safio da representação<br />
é visto como sendo a <strong>de</strong>scrição e a compreensão<br />
<strong>de</strong> encontros, co-produções, dominações<br />
e resistências históricas locais/globais,<br />
então, é preciso voltar a atenção para as<br />
experiências cosmopolitas híbridas tanto<br />
quanto para as enraizadas e nativas. Em minha<br />
questão atual, o objetivo não é substituir<br />
a figura cultural ‘nativo’ pela figura<br />
‘intercultural’ viajante. Em vez disso, a tarefa<br />
concentra-se nas mediações concretas entre<br />
as duas, em casos específicos <strong>de</strong> tensão e<br />
relação histórica. Em graus variados, ambas<br />
são constitutivas do que contaremos como<br />
experiência cultural”.<br />
16<br />
Quanto às relações entre espaço e cultura,<br />
Akhil Gupta e James Ferguson (2000, p. 33)<br />
observam: “A suposição <strong>de</strong> que os espaços<br />
são autônomos permitiu que o po<strong>de</strong>r da topografia<br />
ocultasse a topografia do po<strong>de</strong>r. O<br />
espaço inerentemente fragmentado implícito<br />
na <strong>de</strong>finição da antropologia como estudo <strong>de</strong><br />
culturas (no plural) po<strong>de</strong> ter sido um dos motivos<br />
por trás da antiga e persistente omissão<br />
<strong>de</strong> escrever a história da antropologia como<br />
uma biografia do imperialismo. Pois, se partirmos<br />
da premissa <strong>de</strong> que os espaços sempre<br />
estiveram interligados hierarquicamente, em<br />
vez <strong>de</strong> naturalmente <strong>de</strong>sconectados, então,<br />
a mudança cultural e social não se torna mais<br />
uma questão <strong>de</strong> contato e <strong>de</strong> articulação cultural,<br />
mas <strong>de</strong> repensar a diferença por meio<br />
da conexão”.<br />
17<br />
Observa-se que, em gran<strong>de</strong> medida, os lugares<br />
do passado se encontram no presente, na<br />
memória do agora ou, mais precisamente, em<br />
algumas circunstâncias, nas grafias passadas<br />
que sobreviveram ao tempo. Os lugares que<br />
se mostram como os lugares do presente são<br />
também lugares <strong>de</strong> todos os tempos. Cida<strong>de</strong>s<br />
antigas são bons exemplos para compreen<strong>de</strong>r<br />
como essas camadas <strong>de</strong> espaço-tempo<br />
po<strong>de</strong>m, na superposição <strong>de</strong> superfícies — que<br />
sempre se rasgam —, evocar, no presente,<br />
imagens dos lugares do passado. Entretanto,<br />
a interpretação da história dá-se sempre no<br />
presente — ainda que a ciência da história<br />
insista em dar as costas para o futuro e negligenciar,<br />
em gran<strong>de</strong> medida, o tempo do agora.<br />
A história dos lugares passados, por tais<br />
razões, acontece também no presente.<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
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13
18<br />
Entretanto, há outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação<br />
da questão. Stuart Hall (1997, p.<br />
95-96), por exemplo, observa que, enquanto<br />
algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s buscam segurança na<br />
tradição, “[...] há uma outra possibilida<strong>de</strong>: a<br />
da Tradução. Este conceito <strong>de</strong>screve aquelas<br />
formações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que atravessam e<br />
intersectam as fronteiras naturais, compostas<br />
por pessoas que foram dispersadas para sempre<br />
<strong>de</strong> sua terra natal. Essas pessoas retêm<br />
fortes vínculos com seus lugares <strong>de</strong> origem e<br />
suas tradições, mas sem a ilusão <strong>de</strong> um retorno<br />
ao passado. Elas são obrigadas a negociar<br />
com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente<br />
serem assimiladas por elas e sem<br />
per<strong>de</strong>r completamente suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s”.<br />
19<br />
A imagem da homogeneização cultural —<br />
como um produto das relações entre o global<br />
e o local — é tratada por Stuart Hall (1997)<br />
como um resultado da simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversas<br />
abordagens. Entretanto, po<strong>de</strong>-se pensar<br />
muito mais em banalização do que propriamente<br />
em simplificação, ao se refletir sobre<br />
as referidas abordagens.<br />
grafada no espaço pelo tempo e pelos movimentos que se referem a um conjunto <strong>de</strong><br />
fluxos, faz com que se fortaleça a referida imagem. Existem o hoje, o agora, sempre.<br />
Mesmo que seja também feito do ontem e que ainda incorporará o amanhã, ele, o agora,<br />
existe sempre. O presente é o lugar do tempo da ação e <strong>de</strong> todos os movimentos. 18 O<br />
futuro: que cui<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>le, no presente, para que se aproxime dos nossos <strong>de</strong>sejos e<br />
sonhos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />
É necessário esclarecer que, nos dias atuais, marcados por inúmeros e inéditos eventos,<br />
a ação exige novos saberes, transformando-se em contínua <strong>de</strong>scoberta. A ação contemporânea<br />
<strong>de</strong>manda, sempre, um novo saber: novos mapeamentos, novas interpretações,<br />
novas razões. “O mundo não é o <strong>de</strong> antes. [...] A transformação [...] é também movida pela<br />
ciência e pela tecnologia. [...] a ciência construiu um mundo que pe<strong>de</strong> uma nova ciência”<br />
(HISSA, 2002, p. 307). Segundo Milton Santos (2002, p. 330) — para quem a memória<br />
construída coletivamente não se sobrepõe à ação, pois a re<strong>de</strong>scoberta é individual e<br />
resultado <strong>de</strong> relações interpessoais e comunicativas —, “[...] quanto menos inserido o<br />
indivíduo (pobre, minoritário, migrante...), mais facilmente o choque da novida<strong>de</strong> o atinge<br />
e a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um novo saber lhe é mais fácil”. O autor não nega a influência do<br />
passado, mas conce<strong>de</strong> maior importância às condições do novo espaço <strong>de</strong> experiência:<br />
“O passado comparece como uma das condições para a realização do evento, mas o<br />
dado dinâmico na produção da nova história é o próprio presente, isto é, a conjunção<br />
seletiva <strong>de</strong> forças existentes em um dado momento” (SANTOS, M., 2002, p. 330). Po<strong>de</strong>-se,<br />
a partir das referidas interpretações, retomar a idéia <strong>de</strong> que toda ação tem o presente<br />
como paradigma. Observado <strong>de</strong> uma outra maneira, po<strong>de</strong>-se refletir: toda ação toma<br />
os lugares do agora como referência.<br />
A relação local/global também leva Stuart Hall (1997) a discutir a questão cultural. O<br />
autor, referindo-se à angustiante idéia da homogeneização cultural, ressalta a simplicida<strong>de</strong><br />
com que é tratada essa possibilida<strong>de</strong> e apresenta argumentos contrários à tendência<br />
<strong>de</strong> padronização. 19 O primeiro argumento: a globalização, entendida como uma especialização<br />
flexível, constitui-se estrategicamente através da criação <strong>de</strong> nichos <strong>de</strong> mercado,<br />
explorando, assim, a diferenciação local. Ou seja, antes <strong>de</strong> se pensar no global substituindo<br />
o local, <strong>de</strong>ve-se pensar numa nova articulação entre o global e o local. Como imaginar<br />
a substituição do local pelo global? Como imaginar a supressão do local, dos lugares<br />
do agora, das próprias referências da ação dos homens — in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da sua<br />
posição (se incluídos, se excluídos)? Numa visão <strong>de</strong> futuro, Stuart Hall (1997) sugere a<br />
maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma globalização produtora <strong>de</strong> novas i<strong>de</strong>ntificações globais e<br />
novas i<strong>de</strong>ntificações locais.<br />
O segundo argumento, por sua vez, refere-se à interpretação <strong>de</strong> que a globalização não<br />
seja exclusivamente global, por conta <strong>de</strong> seus impactos locais. Dessa forma, contraditoriamente,<br />
torna-se ina<strong>de</strong>quado pensar em homogeneização, já que a própria globalização<br />
é <strong>de</strong>sigualmente distribuída em todas as dimensões do espaço. Existiriam, portanto, recortes,<br />
lugares <strong>de</strong> resistência à globalização hegemônica.<br />
Finalmente, um terceiro argumento consi<strong>de</strong>ra que o <strong>de</strong>sequilíbrio do fluxo global parece<br />
sugerir que esse movimento seja apenas um processo <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalização. Porém,<br />
14<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
<strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar o fluxo global também a partir do encontro feito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencontros e<br />
<strong>de</strong> estranhamentos: “[...] à medida que dissolve as barreiras da distância, torna o encontro<br />
entre o centro colonial e a periferia colonizada imediato e intenso” (ROBINS apud<br />
HALL, 1997, p. 85). Assim, o jogo do período colonial inverte-se, e o Oci<strong>de</strong>nte vê-se<br />
invadido pelo movimento <strong>de</strong> pessoas dos países excluídos, em busca do estilo imposto<br />
— e agora negado — pelos colonizadores.<br />
Stuart Hall (1997) dispensa atenção também às transformações <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas nos indivíduos<br />
do lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, submetidos à presença <strong>de</strong> outros indivíduos com formações<br />
culturais diferentes. Referindo-se à posição da Inglaterra, o autor <strong>de</strong>tecta o surgimento<br />
<strong>de</strong> reações <strong>de</strong>monstrativas <strong>de</strong> uma não receptivida<strong>de</strong> aos imigrantes, criando<br />
barreiras a uma total integração. O autor afirma: “O fortalecimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais<br />
po<strong>de</strong> ser visto na forte reação <strong>de</strong>fensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes<br />
que se sentem ameaçados pela presença <strong>de</strong> outras culturas” (HALL, 1997, p. 91).<br />
Stuart Hall (1997, p. 95) chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que “po<strong>de</strong> ser tentador pensar<br />
na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, na era da globalização, como estando <strong>de</strong>stinada a acabar num lugar ou<br />
noutro: ou retornando a suas ‘raízes’ ou <strong>de</strong>saparecendo através da assimilação e da homogeneização.<br />
Mas esse po<strong>de</strong> ser um falso dilema”. Ao refletirem sobre a questão da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, Akhil Gupta e James Ferguson (2000) sugerem a consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> novos fatores.<br />
Não se po<strong>de</strong> pensar o lugar como autônomo nem uma cultura como específica <strong>de</strong><br />
um lugar. Na contemporaneida<strong>de</strong>, a possibilida<strong>de</strong> do hibridismo é sempre algo a ser<br />
avaliado como integrante das relações que se ampliam. 20 Mas ainda há o que pensar<br />
sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nos lugares, diante das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intercâmbio. Frente às transformações<br />
operadas no nível global, po<strong>de</strong>-se refletir sobre possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alterações<br />
i<strong>de</strong>ntitárias. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m se mesclar. Algumas funções e <strong>de</strong>terminados papéis locais<br />
po<strong>de</strong>m, inclusive, fornecer novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s aos lugares. Isso significa que, nos<br />
lugares, em função do seu dinamismo — que também é reflexo do dinamismo do mundo<br />
contemporâneo —, algumas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m se sobrepor às outras; além disso,<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m, inclusive, per<strong>de</strong>r significado. Isso não resulta, entretanto, em perda<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares. Eles sempre carregam, em si, a sua natureza, a sua história <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que se adaptam ao movimento do mundo.<br />
Finalmente, uma outra questão <strong>de</strong>ve ser focalizada ao se refletir sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nos<br />
lugares e, simultaneamente, sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares. Trata-se <strong>de</strong> uma questão fundamental<br />
para que, na contemporaneida<strong>de</strong>, os homens, as socieda<strong>de</strong>s, assim como os lugares<br />
possam ser compreendidos. Se po<strong>de</strong>m ser vistos a partir <strong>de</strong> traços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> —<br />
que se <strong>de</strong>smancham, se metamorfoseiam, se fortalecem ou se enfraquecem —, os lugares<br />
também <strong>de</strong>vem ser avaliados a partir da consi<strong>de</strong>ração das mobilida<strong>de</strong>s no seu interior,<br />
sob a consi<strong>de</strong>ração da alterida<strong>de</strong>:<br />
Se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pressupõe as relações <strong>de</strong> aproximação, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>ssemelhança marcam<br />
o seu princípio oposto. Portanto, se há um princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a alterida<strong>de</strong> é o seu contrário.<br />
Se o primeiro é construído pela aproximação e pela natureza equivalente dos seres, <strong>de</strong>senvolve-se<br />
um grupo, por oposto, com base na repulsão ou na contraposição. Isso significa que nas relações<br />
20<br />
Deve-se avaliar ainda que, no mundo contemporâneo,<br />
o pensamento po<strong>de</strong> facilmente<br />
ser conduzido à tentação <strong>de</strong> redução da cultura<br />
e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a mercadorias. Embora a cultura<br />
possa se manifestar como mercadoria,<br />
esta é privilégio <strong>de</strong> quem po<strong>de</strong> pagar. Alguns<br />
lugares são planejados para o consumo. Citam-se<br />
o Disney World e outros que são representativos<br />
da homogeneida<strong>de</strong> das condições<br />
econômicas e sociais <strong>de</strong> um grupo (ZUKIN, 2000).<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
15
<strong>de</strong> contraste e <strong>de</strong> diferença po<strong>de</strong>m ser estimulados a exclusão e o “sentimento estrangeiro”.<br />
Nesses termos, a alterida<strong>de</strong> se contrapõe à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, ao evi<strong>de</strong>nciar a condição <strong>de</strong> “outrida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong><br />
estranhamento (HISSA; GUERRA, 2002, p. 68).<br />
As i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser interpretadas como i<strong>de</strong>ntificações em processo <strong>de</strong> transformação.<br />
Portanto, ao se refletir sobre os processos <strong>de</strong> transformação experimentados<br />
pelos lugares, também movimentados pelas dinâmicas contemporâneas que evocam a<br />
imagem <strong>de</strong> mundo, há <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar o curso assumido pelas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Isso significa que<br />
a maximização dos sentimentos <strong>de</strong> pertencimento e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ocasionar “[...]<br />
formas <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>s exclusivas e conflitivas” (HISSA; GUERRA, 2002, p. 68). Assim,<br />
pensar o lugar a partir das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é também, necessariamente, refletir sobre a alterida<strong>de</strong><br />
nos lugares.<br />
21<br />
Milton Santos (2005, p. 170) faz referência às<br />
distinções entre as or<strong>de</strong>ns global e local: “A<br />
or<strong>de</strong>m global funda as escalas superiores ou<br />
externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros<br />
são a razão técnica e operacional, o cálculo<br />
<strong>de</strong> função, a linguagem matemática. A or<strong>de</strong>m<br />
local funda a escala do cotidiano, e seus<br />
parâmetros são a co-presença, a vizinhança,<br />
a intimida<strong>de</strong>, a emoção, a cooperação e a socialização<br />
com base na contigüida<strong>de</strong>”.<br />
Lugar e cotidiano<br />
Uma discussão sobre o conceito <strong>de</strong> lugar implica a percepção da localização significante<br />
<strong>de</strong> todos os lugares: eles estão em toda parte, feitos <strong>de</strong> espaço e <strong>de</strong> tempo, recobertos <strong>de</strong><br />
valores e <strong>de</strong> ética prática; eles <strong>de</strong>senvolvem dimensões espaciais variadas, o que po<strong>de</strong> ser<br />
importante para a leitura da contigüida<strong>de</strong>, da magnitu<strong>de</strong> das aproximações e das<br />
<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>s, do <strong>de</strong>senvolvimento das diversas formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> socialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
alterida<strong>de</strong>. A vida nos lugares é feita <strong>de</strong> cotidianos. A cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, nos seus interiores,<br />
nos seus subterrâneos e meandros, é uma gran<strong>de</strong> fábrica <strong>de</strong> comunicação — manufatura <strong>de</strong><br />
contatos e <strong>de</strong> intercâmbios — que põe em comum o que estaria, em princípio, restrito;<br />
pôr em comum é, no mínimo, aparentemente, dar a todos as condições mínimas para a<br />
participação na vida: viver na cida<strong>de</strong>, viver a cida<strong>de</strong>. Mas o que ela fornece, contraditoriamente,<br />
é o que também subtrai. A vida na cida<strong>de</strong>, feita <strong>de</strong> diversos significados, é a<br />
vida carregada <strong>de</strong>nsamente através das experiências práticas, das vivências dos diversos<br />
sujeitos da vida realizada a partir <strong>de</strong> coisas comuns. Nada disso po<strong>de</strong> ser dispensado para<br />
uma leitura dos lugares.<br />
Compreen<strong>de</strong>r os lugares é, especialmente, consi<strong>de</strong>rar as possíveis e necessárias leituras<br />
da vida cotidiana. Se são feitos da vida dos indivíduos, os lugares <strong>de</strong>vem, ainda, ser<br />
interpretados como plenos <strong>de</strong> hábitos, <strong>de</strong> comportamentos que se referem a uma ética<br />
cotidiana que, por sua vez, encaminha o pensamento para o universo das repetições, das<br />
rotinas que libertam e que escravizam.<br />
O cotidiano refere-se ao que se <strong>de</strong>senvolve através do hábito comum, rotineiro. Tratase<br />
do chão rotineiro dos lugares, formado do que é corrente e costumeiro. O cotidiano,<br />
assim, é abundante nos lugares e faz com que eles sejam, por isso, fartos, ricos, abastados<br />
em experiências. Refere-se à vida cotidiana dos lugares ao se pensar na fertilida<strong>de</strong> da<br />
experiência comum que não se interrompe, que expan<strong>de</strong> os saberes comuns feitos <strong>de</strong><br />
praticida<strong>de</strong>. O cotidiano é feito <strong>de</strong> freqüências e <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong>s que referenciam as trilhas<br />
dos indivíduos e das coletivida<strong>de</strong>s. Mas também é feito <strong>de</strong> freqüências e <strong>de</strong> vazios, ou <strong>de</strong><br />
incompletu<strong>de</strong>s que traduzem a experiência humana. 21<br />
O cotidiano: as reflexões sobre o significado <strong>de</strong>ssa categoria da existência, tal como a trata<br />
Milton Santos (2002), fortalecem a sua importância para discutir a questão do lugar no<br />
16<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
mundo contemporâneo. O global está em todos os lugares: tal condição atual apresenta-se<br />
como uma dificulda<strong>de</strong> para a compreensão dos lugares e, simultaneamente, um referencial<br />
para a leitura <strong>de</strong> todos os pontos que representam, nas possíveis cartografias, o universo <strong>de</strong><br />
todos os lugares que povoam o mundo. O mundo existe nos lugares porque a vida existe nos<br />
lugares. Vida cotidiana: o seu significado conduz o pensamento para a vivência dos lugares.<br />
Pensar o cotidiano dos lugares é também esten<strong>de</strong>r as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reflexão sobre<br />
a importância da comunicação no universo dos lugares. O mundo mo<strong>de</strong>rno é feito <strong>de</strong><br />
movimentos e fluxos intensos, instantâneos. Ele parece sugerir comunicação, a <strong>de</strong>speito<br />
<strong>de</strong> fazer com que a informação se sobreponha ao próprio intercâmbio. Nos lugares, nas<br />
relações feitas <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong>, a comunicação po<strong>de</strong> ser mais intensa e ampliar as possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> vida social. A comunicação, no entanto, po<strong>de</strong> se realizar mesmo sem a informação,<br />
como nos lembra Milton Santos (2002). As origens etimológicas da palavra são<br />
ainda mais esclarecedoras e mais úteis à reflexão sobre a importância da vida cotidiana<br />
como instrumento reconhecedor dos lugares: comunicar significa pôr em comum, dividir,<br />
partilhar. É certo que, daí, emergem outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação dos lugares:<br />
disponibilizar para muitos ou para todos e, conseqüentemente, pôr em comum é também<br />
pensar na força política e social dos lugares. A socialida<strong>de</strong> é tanto mais presente<br />
entre os indivíduos quanto maior é a sua proximida<strong>de</strong>. As possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong><br />
são mais evi<strong>de</strong>ntes nos lugares, o que fortalece as relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>.<br />
A força política, latente nos lugares, é um importante instrumento para pensar<br />
as ações, as práticas que se relacionam com as referências <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> que se materializam,<br />
<strong>de</strong> algum modo, na construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s entre os sujeitos da vida, que também<br />
marcam o caráter dos lugares.<br />
Algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> simplificação, no entanto, <strong>de</strong>vem ser sublinhadas. Nos lugares,<br />
especialmente nas cida<strong>de</strong>s, a ocorrência <strong>de</strong> encontros é muito maior. Se, por um lado,<br />
o encontro é uma manifestação da socialida<strong>de</strong>, assim como uma expressão <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> fortalecimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> ambiências <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, por outro<br />
lado, po<strong>de</strong> ser visto e interpretado a partir <strong>de</strong> processos contrários que parecem dotar o<br />
quadro <strong>de</strong> maior complexida<strong>de</strong>: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro é também a do <strong>de</strong>sencontro<br />
e da alterida<strong>de</strong>. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da interpretação, os lugares são a expressão do<br />
mundo feito da vida <strong>de</strong> aproximações e <strong>de</strong> estranhamentos. Tais observações po<strong>de</strong>m ser<br />
vistas, ainda, como uma indicação da natureza híbrida dos conceitos i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e cotidiano.<br />
Na vida cotidiana dos lugares, o partilhar e o dividir estão mais presentes como<br />
possibilida<strong>de</strong>, assim como a própria alterida<strong>de</strong>.<br />
A vida cotidiana dos lugares é uma fábrica <strong>de</strong> aproximações, estranhamentos, emoções,<br />
afetivida<strong>de</strong>s, subjetivida<strong>de</strong>s. A vida cotidiana nos lugares, por sua vez, faz emergir<br />
o que é comum, <strong>de</strong>senvolvido pela comunicação entre os sujeitos da vida, fortalecido pelos<br />
laços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A dimensão espacial do cotidiano, tal como a ela se referiu Milton<br />
Santos (2002), está repleta <strong>de</strong>sses laços <strong>de</strong> coexistência e, especialmente, do que po<strong>de</strong> ser<br />
compreendido como cooperação e conflito. Os lugares contêm o mundo e, por isso,<br />
são a sua expressão. A rua da cida<strong>de</strong> é a rua do mundo. 22 Nela os indivíduos po<strong>de</strong>m se<br />
encontrar, mas também po<strong>de</strong>m não se reconhecer.<br />
22<br />
Milton Santos (2005, p. 170) fala-nos das possíveis<br />
respostas dos lugares, en<strong>de</strong>reçadas ao<br />
mundo: “A or<strong>de</strong>m global busca impor, a todos<br />
os lugares, uma única racionalida<strong>de</strong>. E os lugares<br />
respon<strong>de</strong>m ao mundo segundo os diversos<br />
modos <strong>de</strong> sua própria racionalida<strong>de</strong>”.<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
17
23<br />
Milton Santos (2005, p. 163) esclarece: “O<br />
lugar é a oportunida<strong>de</strong> do evento. E este, ao<br />
se tornar espaço, ainda que não perca as suas<br />
marcas <strong>de</strong> origem, ganha características locais.<br />
O evento é, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>formante<br />
e <strong>de</strong>formado. Por isso fala-se na imprevisibilida<strong>de</strong><br />
do evento, a que Ricoeur chama <strong>de</strong><br />
autonomia: a possibilida<strong>de</strong>, no lugar, <strong>de</strong> construir<br />
uma história das ações que seja diferente<br />
do projeto dos atores hegemônicos”.<br />
Henri Lefebvre (1999) focaliza a rua e apresenta algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura contraditória<br />
do cotidiano das cida<strong>de</strong>s e dos lugares. A rua é, simultaneamente, o lugar do<br />
encontro fértil, da comunicação — que se faz comum a todos que <strong>de</strong>la participam —, e<br />
o lugar do <strong>de</strong>sencontro, do <strong>de</strong>sencanto e da superficialida<strong>de</strong>. A rua, a esquina, a praça<br />
são lugares <strong>de</strong> encontro sem os quais “[...] não existem outros encontros possíveis nos<br />
lugares <strong>de</strong>terminados (cafés, teatros, salas diversas)” (LEFEBVRE, 1999, p. 29). A imagem<br />
da supressão da rua é equivalente à da supressão da vida nos lugares. Entretanto, a rua do<br />
encontro é, ao mesmo tempo, a rua da ausência: “Na rua, caminha-se lado a lado, não se<br />
encontra” (LEFEBVRE, 1999, p. 30). Por isso, diz-se que “a passagem na rua, espaço <strong>de</strong><br />
comunicação, é a uma só vez obrigatória e reprimida” (LEFEBVRE, 1999, p. 31). As anotações,<br />
feitas <strong>de</strong> reflexões, conduzem o pensamento para as coisas comuns, para as coisas em<br />
comum, para os <strong>de</strong>sencontros e para a conjunção <strong>de</strong> todos os elos que fazem a vida dos<br />
lugares. A sua compreensão implica a aproximação com o conceito <strong>de</strong> lugar e, conseqüentemente,<br />
com o <strong>de</strong> vida no mundo.<br />
A reflexão sobre a vida cotidiana nos lugares é também um importante instrumento <strong>de</strong><br />
interpretações acerca da suposta supressão dos lugares, da sua pasteurização pela vida<br />
econômica global. A contemporaneida<strong>de</strong>, longe <strong>de</strong> apontar para o fim do lugar, indicao<br />
para uma posição central (SANTOS, M., 2002). A suposta compressão do espaço, produto<br />
da imaginação e da concepção dos efeitos dos fluxos sobre o espaço geométrico,<br />
eliminaria a possibilida<strong>de</strong> da vida cotidiana. Como conceber a supressão da vida cotidiana,<br />
tão essencial para a interpretação dos processos <strong>de</strong> formação dos guetos urbanos,<br />
dos territórios urbanos (SILVA, 2001)? Como conceber a supressão da vida nos lugares,<br />
que, em última instância, assumiria o significado equivalente à supressão das vivências <strong>de</strong><br />
mundo? Os lugares reúnem as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção das ações que, contra-hegemônicas,<br />
são alternativas aos movimentos globais hegemônicos. 23<br />
Milton Santos (2002), <strong>de</strong>ntre tantas alternativas encaminhadas, sugere a interpretação<br />
do lugar também a partir do cotidiano, do mundo vivido. A abordagem, ao contrário do<br />
que po<strong>de</strong> parecer, reduz bastante a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um tratamento localista assim como<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encaminhamento <strong>de</strong> generalizações simplistas. O autor ainda lembra<br />
que o processo <strong>de</strong> construção do lugar envolve o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> espaços simbólicos,<br />
singulares, resultados <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> cooperação em espaços contíguos, <strong>de</strong><br />
relações intensas entre os sujeitos da vida social. Nos lugares — feitos <strong>de</strong> espaços carregados<br />
do simbólico — encontra-se o sentido do mundo, compreendido como o espaço<br />
comum que se estrutura, simultaneamente, a partir do encontro e da alterida<strong>de</strong>. A comunicação,<br />
carregada <strong>de</strong>sse pôr em comum, é indispensável para a compreensão <strong>de</strong> todos os<br />
processos que constituem as relações entre o local e o global, entre o sujeito e a vida,<br />
entre os indivíduos e o mundo exterior.<br />
Portanto, o caráter do conceito <strong>de</strong> lugar — assim como a própria natureza dos<br />
lugares — não po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo algum, estar circunscrito às pequenas comunida<strong>de</strong>s, aos<br />
lugares <strong>de</strong> pequena conexão no interior da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> fluxos <strong>de</strong> todos os tipos. As gran<strong>de</strong>s<br />
metrópoles são o abrigo <strong>de</strong> infinitas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> arranjos sociais, <strong>de</strong> uma<br />
diversida<strong>de</strong> riquíssima <strong>de</strong> estruturação <strong>de</strong> simbolismos, nos quais os indivíduos e os<br />
18<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Recortes <strong>de</strong> lugar
grupos — sujeitos da ação — estão organizados <strong>de</strong> modo a experimentar a vida cotidiana<br />
na plenitu<strong>de</strong> do seu vigor prático, comum: feita <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>s, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,<br />
conflitos, exclusões, alterida<strong>de</strong>s.<br />
Finalmente, é ainda importante retomar algumas questões que caracterizam o mundo<br />
na contemporaneida<strong>de</strong>, feito também das influências exercidas pelas mais sofisticadas<br />
tecnologias <strong>de</strong> comunicação. Parece bastante nítida a importância <strong>de</strong>ssas tecnologias na<br />
organização dos lugares. De outra parte, tal situação parece sugerir interpretações que<br />
minimizam o <strong>de</strong>clínio na intensida<strong>de</strong> das relações entre os sujeitos da vida na cida<strong>de</strong> e<br />
nos lugares. Importantes transformações ocorreram. Entretanto, não se po<strong>de</strong> afirmar,<br />
<strong>de</strong> modo algum, que elas <strong>de</strong>stituíram <strong>de</strong> significado as características que encaminham a<br />
leitura conceitual dos lugares. Manuel Castells (2002), por exemplo, observa que a ampliação<br />
da veiculação <strong>de</strong> informações — que, hipoteticamente, po<strong>de</strong>riam até multiplicar as<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação, o que, <strong>de</strong> fato, não acontece — po<strong>de</strong> acarretar a <strong>de</strong>scentralização<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas ativida<strong>de</strong>s. Contudo, as facilida<strong>de</strong>s oferecidas pelo <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das comunicações eletrônicas em nada <strong>de</strong>scaracterizam a natureza do<br />
lugar, no âmbito das vivências, sob a ótica do <strong>de</strong>senvolvimento das práticas sociais. O<br />
que se dá, acompanhando as reflexões <strong>de</strong> Boaventura <strong>de</strong> Sousa Santos (2000), é uma<br />
extensão do nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> nas relações que fazem a vida dos lugares e do<br />
mundo contemporâneo.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Pensar o lugar, na contemporaneida<strong>de</strong>, é refletir sobre o mundo. Trata-se <strong>de</strong> um empreendimento<br />
teórico complexo, pois pensar o mundo é refletir sobre os homens. Nunca<br />
a observação foi tão representativa da história. Os homens estão, nos lugares, repletos<br />
do mundo. O mundo nunca esteve tão presente na vida dos lugares, na vida dos homens.<br />
Po<strong>de</strong>-se, entretanto, interrogar: quais são os níveis <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong>ssa presença? Quais<br />
são as formas através das quais o mundo está presente na vida das pessoas? Mas não se<br />
po<strong>de</strong> negar a emergência dos lugares no mundo contemporâneo, feito <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong>s,<br />
<strong>de</strong> exclusões, <strong>de</strong> recortes, da ampliação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, da comunicação do conflito.<br />
Pensar o lugar é movimentar as idéias na direção dos fluxos que fazem a vida contemporânea.<br />
São movimentos <strong>de</strong> todos os tipos. Alguns <strong>de</strong>les são, há muito, familiares. Outros,<br />
contudo, emergem no cotidiano dos indivíduos como uma temerida<strong>de</strong>, como algo<br />
avassalador, novo, originário <strong>de</strong> uma outra vida. Entretanto, assim como o movimento<br />
que se refere à invasão domiciliar dos micro-computadores, que transformaram a vida<br />
das pessoas e dos lugares, vários outros movimentos — feitos <strong>de</strong> fluxos <strong>de</strong> todos os<br />
tipos — dizem respeito à mesma cultura <strong>de</strong> origem. Trata-se mais, em diversas circunstâncias,<br />
<strong>de</strong> refletir não apenas sobre a natureza dos movimentos, mas, especialmente,<br />
sobre a velocida<strong>de</strong> dos movimentos.<br />
Pensar o lugar é, <strong>de</strong>finitivamente, refletir sobre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que, menos ou mais<br />
intensamente, são afetadas pelos movimentos da vida contemporânea. Se as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
são fortalecidas — entre lugares e pessoas, entre indivíduos do lugar —, observa-se,<br />
sobretudo a partir da expectativa equivocada da padronização do espaço, a emergência<br />
Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
19
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
dos ambientes locais. Mas nem sempre os lugares foram fortalecidos, e também não se<br />
<strong>de</strong>seja adotar um mo<strong>de</strong>lo para a compreensão dos lugares a partir do fortalecimento<br />
das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais. Lugares foram abandonados, mesmo no contexto <strong>de</strong> ritmos menos<br />
acelerados <strong>de</strong> tempos passados. Outros emergiram. Mas, sempre, pensar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
dos lugares é conduzir a reflexão para a localização do outro no mundo em transformação.<br />
Isso significa que pensar o lugar a partir das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s é, também, refletir sobre a<br />
questão da alterida<strong>de</strong>.<br />
Pensar o lugar a partir da vida cotidiana nos lugares é encaminhar a reflexão para o<br />
dinamismo e a importância do mundo vivido. Vive-se nesse mundo feito <strong>de</strong> lugares.<br />
Dizer isso é reafirmar a importância dos lugares como o locus da existência. Vive-se nos<br />
lugares, on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>cisões são tomadas, on<strong>de</strong> as escolhas são feitas, on<strong>de</strong> são construídas<br />
as esperanças e as frustrações. As transformações experimentadas pelo mundo contemporâneo<br />
conduzem o pensamento, ainda, para os lugares, para que sejam revisitados<br />
teoricamente, para que permitam o encontro com novos significados que lhes dizem<br />
respeito. Pensar os lugares a partir do cotidiano: como observou Milton Santos (2002),<br />
essa categoria da existência é bastante útil para um tratamento espacial do mundo vivido<br />
e, portanto, para uma leitura dos lugares feitos <strong>de</strong> vida cultural.<br />
As transformações experimentadas pelo mundo na contemporaneida<strong>de</strong> parecem ainda<br />
sublinhar a importância das discussões teóricas acerca do lugar. De todas as categorias<br />
socioespaciais, a <strong>de</strong> lugar emerge, no mundo contemporâneo, como a mais visitada<br />
pelos estudiosos das questões relativas ao homem em sua condição espacial. Nele, no<br />
lugar, o homem escreve a sua história, marca a sua presença, <strong>de</strong>senvolve as suas relações,<br />
experimenta e vivencia o mundo.<br />
Além disso, na contemporaneida<strong>de</strong>, também se mostram <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância os<br />
estudos empíricos — sempre teóricos — voltados para a interpretação da vida nos<br />
lugares, na rua do mundo. Tais investimentos são cruciais para a compreensão da imagem<br />
<strong>de</strong> caos, da imagem <strong>de</strong> acaso — tão próximas da vida cotidiana —, que tão bem refletem<br />
a imagem <strong>de</strong> mundo que se projeta para os lugares. Tais investimentos são essenciais<br />
para a compreensão do homem, <strong>de</strong> sua vida feita <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong> negações do que<br />
insiste em existir no seu próprio interior.<br />
20<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 7-21 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
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Cássio Eduardo Viana Hissa Rosana Rios Corgosinho<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
21
Jacob Binsztok<br />
Professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia<br />
da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense; Doutor em<br />
Geografia Humana pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />
Agricultura familiar na Amazônia:<br />
o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia 1<br />
1<br />
Este artigo é parte do projeto “Implantação<br />
<strong>de</strong> Associação <strong>de</strong> Agricultores Familiares no<br />
Estado <strong>de</strong> Rondônia”, apoiado pelo Programa<br />
<strong>de</strong> Pesquisa em Agropecuária e do Agronegócio<br />
– COAGR (processo n° 504325/2004-0),<br />
e sua elaboração contou com a participação<br />
<strong>de</strong> Eduardo Alves Menezes dos Santos, bolsista<br />
do Departamento <strong>de</strong> Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> Fluminense.<br />
Resumo<br />
Investigamos a agricultura familiar e a<br />
produção <strong>de</strong> café na Amazônia Meridional,<br />
principalmente no centro-leste do estado <strong>de</strong><br />
Rondônia. Nesse sentido foram pesquisados os<br />
espaços produzidos por colonos provenientes<br />
dos estados do Espírito Santo e do Paraná.<br />
Verificamos que toda a comercialização é<br />
estruturada no estado do Espírito Santo,<br />
obrigando o produto a percorrer gran<strong>de</strong>s<br />
distâncias até os portos <strong>de</strong> Vitória ou Paranaguá,<br />
não se escoando a produção por Porto Velho, o<br />
que reduziria significativamente os custos <strong>de</strong><br />
transporte. Tal fato não se vincula a uma<br />
racionalida<strong>de</strong>, mas sim, a uma relação <strong>de</strong><br />
confiança entre produtores e intermediários. As<br />
relações <strong>de</strong> trabalho, principalmente o sistema<br />
<strong>de</strong> meeiros, constituem-se em importante agente<br />
da cafeicultura, ativida<strong>de</strong> que, apesar dos<br />
obstáculos, assume relevância na geração <strong>de</strong><br />
trabalho e renda na Amazônia Meridional.<br />
Abstract<br />
We investigate family agriculture and the production<br />
of coffee in the Southern Amazônia, mainly in the<br />
center-east of the State of Rondônia. In this direction<br />
the spaces produced by colonists proceeding from the<br />
States of Espírito Santo and Paraná had been<br />
researched. We verify that all the commercialization<br />
structure <strong>de</strong>rives from the State of Espírito Santo,<br />
compelling the product to cover great distances until<br />
the ports of Vitória or Paranaguá, instead of<br />
dropping the production off at Porto Velho, a<br />
procedure that would reduce the transport costs<br />
significantly. Rather than upon a rationality such<br />
fact is based on a reliable relation between producers<br />
and intermediaries. The working relations, mainly the<br />
system of share-croppers, are an important agent for<br />
the coffee culture, an activity that <strong>de</strong>spite the obstacles<br />
is relevant to the generation of work and income in<br />
the Southern Amazônia.<br />
jacob.binsztok@terra.com.br<br />
Palavras-chave Amazônia Meridional; Rondônia;<br />
café; agricultura familiar; meeiros.<br />
Keywords Southern Amazônia; State of Rondônia;<br />
coffee; family agriculture; share-croppers.<br />
22<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia
Contextualização<br />
O trabalho investiga o processo <strong>de</strong> consolidação da fronteira agrícola na Amazônia<br />
Meridional, representada pelo município <strong>de</strong> Cacoal, localizado à margem da rodovia<br />
364, distante cerca <strong>de</strong> 470 km <strong>de</strong> Porto Velho e inserido no <strong>de</strong>nominado Centro-Leste<br />
<strong>de</strong> Rondônia. Trata-se do terceiro município mais populoso do Estado, segundo dados<br />
do Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatística referentes ao ano <strong>de</strong> 2003, que revelaram<br />
um efetivo <strong>de</strong> 78.525 habitantes, 60.358 (77%) dos quais concentrados na área urbana e<br />
18.167 (23%) distribuídos pela zona rural.<br />
Com relação aos espaços ocupados pela produção agropecuária em Cacoal, <strong>de</strong>stacamos<br />
a presença <strong>de</strong> uma forte concentração <strong>de</strong> pequenos produtores provenientes, em<br />
gran<strong>de</strong> parte, do norte do Espírito Santo. Descen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> italianos e alemães, esses<br />
produtores <strong>de</strong>dicaram-se, a partir da década <strong>de</strong> 70, ao cultivo do café robusta (conillon) e<br />
a uma significativa policultura responsável pela ampla varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> produtos consumidos<br />
na cida<strong>de</strong>.<br />
Com respeito às relações <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>stacamos a existência <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
meeiros oriundos <strong>de</strong> diversos Estados. Ocupados principalmente com o cultivo do café e<br />
com a pecuária <strong>de</strong> corte e <strong>de</strong> leite e trabalhando ao lado dos pequenos proprietários, os<br />
meeiros constituíram-se em um dos importantes atores para a consolidação da fronteira<br />
agrícola do centro-leste <strong>de</strong> Rondônia e, conseqüentemente, da Amazônia Meridional.<br />
No que se refere ao processo <strong>de</strong> ocupação e povoamento <strong>de</strong> Cacoal, o município<br />
encontra-se inserido nos ciclos que atingiram Rondônia e que po<strong>de</strong>m ser resumidos da<br />
seguinte forma:<br />
1º. A partir do século XVII, no período colonial, pela penetração <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>iras dirigidas<br />
pelos portugueses. O objetivo principal <strong>de</strong>sses movimentos era a exploração <strong>de</strong><br />
ouro e outros minerais nos rios Guaporé e Mamoré. No século XVIII, esse processo<br />
originou os núcleos populacionais <strong>de</strong> Pouso Alegre e Casa Redonda.<br />
2º. No fim do século XIX a região atravessou o primeiro ciclo da borracha com<br />
migrantes nor<strong>de</strong>stinos ocupando as bacias hidrográficas e avançando em terras<br />
bolivianas. Tal movimentação gerou um conflito territorial entre Brasil e Bolívia,<br />
solucionado pelo Tratado <strong>de</strong> Petrópolis, assinado em 1903, que garantiu ao Brasil<br />
as terras que <strong>de</strong>ram origem ao estado do Acre. No início do século XX a construção<br />
da Estrada <strong>de</strong> Ferro Ma<strong>de</strong>ira-Mamoré, no período <strong>de</strong> 1904 a 1912, favoreceu a<br />
imigração <strong>de</strong> trabalhadores europeus, centro-americanos e nor<strong>de</strong>stinos, e <strong>de</strong>la se<br />
originaram os núcleos urbanos <strong>de</strong> Porto Velho, Jaci-Paraná, Mutum-Paraná, Abunã<br />
e Guajará-Mirim.<br />
3º. No século passado, entre 1920/40, a Comissão Rondon, responsável pela implantação<br />
da linha telegráfica Cuiabá-Porto Velho, instalou postos em Vilhena, Marco Rondon,<br />
Pimenta Bueno, Ji-Paraná, Ariquemes e Porto Velho, po<strong>de</strong>ndo ser consi<strong>de</strong>rada o<br />
embrião do município <strong>de</strong> Cacoal, por ter permitido que um dos seus integrantes, o<br />
Sr. Anésio Sena <strong>de</strong> Carvalho, proveniente da Paraíba, solicitasse terras para a<br />
implantação <strong>de</strong> um seringal às margens do igarapé Pirarara. Em virtu<strong>de</strong> da gran<strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seringueiras e <strong>de</strong> cacaueiros nativos encontrados na área, o<br />
Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Jacob Binsztok<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
23
empreendimento foi <strong>de</strong>nominado Seringal Cacoal, passando a se <strong>de</strong>signar Fazenda<br />
Cacoal após o <strong>de</strong>clínio da borracha.<br />
4º. No período <strong>de</strong> 1941/1945, durante a 2ª Guerra Mundial, o Governo Vargas criou<br />
o SEMTA (Serviço Especial <strong>de</strong> Mobilização <strong>de</strong> Trabalhadores para a Amazônia),<br />
dirigido pelo engenheiro Paulo <strong>de</strong> Assis Ribeiro, com a participação do então padre<br />
Hel<strong>de</strong>r Câmara na coor<strong>de</strong>nação dos trabalhos <strong>de</strong> orientação religiosa dos “soldados”<br />
da borracha. Na época foram recrutados cerca <strong>de</strong> 50.000 trabalhadores nor<strong>de</strong>stinos,<br />
com o objetivo <strong>de</strong> reativar a produção dos seringais na Amazônia e em gran<strong>de</strong><br />
parte das bacias hidrográficas <strong>de</strong> Rondônia. Financiado pela agência governamental<br />
norte-americana Rabber Development Corporation, o SEMTA jamais cumpriu sua<br />
meta <strong>de</strong> produzir sessenta mil toneladas do produto por ano, e, por conseguinte,<br />
os soldados da borracha foram abandonados à própria sorte na região.<br />
5º. Na década <strong>de</strong> 60, a extração <strong>de</strong> cassiterita (estanho), dirigida pelo conglomerado<br />
cana<strong>de</strong>nse Brascan, atraiu um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> garimpeiros para Ariquemes e<br />
Porto Velho. Nessa década também ocorreu a abertura da BR-364, ligando Porto<br />
Velho a Cuiabá. Na década <strong>de</strong> 70, a colonização oficial do INCRA transformou os<br />
antigos postos telegráficos <strong>de</strong> Vilhena, Pimenta Bueno, Ji-Paraná e Ariquemes em<br />
núcleos <strong>de</strong> projetos e <strong>de</strong> recepção <strong>de</strong> um dos movimentos migratórios mais<br />
expressivos da Amazônia.<br />
2<br />
O autor <strong>de</strong>staca a presença das seguintes<br />
famílias: Amandio Rodrigues d’Ávila, Olívio<br />
<strong>de</strong> Tal, Siriaco do Nascimento, Manoel Gomes<br />
dos Santos, Pedro Alves Corrêa, Jesuíno<br />
Rodrigues d’Ávila, Colares Pinto Rabelo,<br />
Antônio Petroni, Antenor Nunes <strong>de</strong> Oliveira<br />
(Orlando) e Francisco Nominato Fritz.<br />
O processo <strong>de</strong> povoamento e ocupação <strong>de</strong> Rondônia<br />
Pesquisando as origens das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Rondônia, Silva Filho (1995, p. 15) relata o<br />
recente processo <strong>de</strong> ocupação e povoamento na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cacoal, mostrando que, em<br />
1972, à margem da atual BR-364, perto do barracão <strong>de</strong> uma antiga fazenda, um gran<strong>de</strong><br />
número <strong>de</strong> pioneiros provenientes <strong>de</strong> vários cantos do país acamparam e ficaram<br />
aguardando a <strong>de</strong>marcação e distribuição <strong>de</strong> lotes, pelo INCRA, do Projeto Integrado<br />
<strong>de</strong> Colonização Ji-Paraná, com uma área prevista <strong>de</strong> 486.137 ha <strong>de</strong>stinados ao<br />
assentamento <strong>de</strong> 5.000 famílias. 2<br />
O trabalho <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Kemper (2002) mostra que gran<strong>de</strong> parte dos seringalistas<br />
precursores da cida<strong>de</strong>, por não possuírem títulos <strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>ram<br />
parte <strong>de</strong> suas terras <strong>de</strong>vido a invasões ou mesmo a <strong>de</strong>sapropriações realizadas<br />
pelo próprio INCRA durante o Regime Militar, não sendo raro terminarem seus dias em<br />
dificulda<strong>de</strong>s financeiras e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> familiares para prover suas necessida<strong>de</strong>s, como<br />
<strong>de</strong>monstraram as entrevistas realizadas pela autora com amigos e familiares <strong>de</strong> Anísio<br />
Serrão, Manoel do Carmo, João Faustino da Silva, Luiz Caetano <strong>de</strong> Azevedo, Leônidas<br />
Leonel <strong>de</strong> Oliveira e Clodoaldo Nunes <strong>de</strong> Almeida, este responsável pela introdução do<br />
café em Rondônia. Não conseguindo obter gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político, esses proprietários <strong>de</strong><br />
terras não se transformaram em oligarquias rurais, diferentemente do ocorrido em outras<br />
áreas do país.<br />
A publicida<strong>de</strong> oficial sobre a distribuição <strong>de</strong> lotes atraiu um notável fluxo <strong>de</strong> migrantes<br />
para as imediações do Projeto Ji-Paraná, fazendo com que o INCRA também atuasse na<br />
distribuição <strong>de</strong> lotes urbanos, ao construir uma vila no cruzamento da linha 07 com a<br />
24<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia
BR-364, lançando os marcos urbanos <strong>de</strong> Cacoal. A expansão da vila e o aumento do<br />
tráfego pela rodovia motivaram alguns pioneiros para iniciativas inovadoras, como a<br />
construção <strong>de</strong> pequenos estabelecimentos comerciais <strong>de</strong>stinados ao atendimento do fluxo<br />
rodoviário: restaurantes, postos <strong>de</strong> gasolina, oficinas <strong>de</strong> reparos <strong>de</strong> veículos, hotéis etc.<br />
A importância <strong>de</strong>sses núcleos foi assinalada em vários estudos realizados, na década<br />
<strong>de</strong> 60, por Orlando Valver<strong>de</strong> (1964) ao longo das rodovias Belém-Brasília (antiga BR-<br />
14) e Brasília-Acre (antiga BR-29). Seguindo a tradição da escola geográfica alemã, o<br />
geógrafo chamou esses núcleos <strong>de</strong> strassendorf, <strong>de</strong>stacando as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu incipiente<br />
traçado urbano, que evoluía na forma <strong>de</strong> um tabuleiro <strong>de</strong> xadrez, além das funções<br />
<strong>de</strong>sempenhadas pelos estabelecimentos comerciais pioneiros. Essa é a gênese <strong>de</strong><br />
um gran<strong>de</strong> número dos atuais núcleos urbanos formados ao longo da BR-364 e, particularmente,<br />
dos municípios <strong>de</strong> Cacoal, Pimenta Bueno e Ji-Paraná, entre outros.<br />
Os procedimentos do INCRA, em consonância com o or<strong>de</strong>namento proposto pelo<br />
Regime Militar, rapidamente elevaram Cacoal à categoria <strong>de</strong> município. Assim, o município<br />
foi criado pela Lei n° 6.448, <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1977, e seus limites, <strong>de</strong>finidos<br />
pelo Decreto n° 81.272, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1978, <strong>de</strong>marcados em 1° <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />
1982, exatamente <strong>de</strong>z anos após a chegada dos pioneiros à Fazenda Cacoal. Os limites<br />
do município foram estabelecidos da seguinte forma: ao norte, com o estado <strong>de</strong> Mato<br />
Grosso; a oeste, com o município <strong>de</strong> Ministro Andreazza; ao sul, com o município <strong>de</strong><br />
Rolim <strong>de</strong> Moura; a leste/su<strong>de</strong>ste, com o município <strong>de</strong> Pimenta Bueno; e a leste/norte,<br />
com o município <strong>de</strong> Espigão d’Oeste. O Mapa 1 mostra a atual malha municipal <strong>de</strong><br />
Rondônia, <strong>de</strong>stacando o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> municípios constituídos a partir da década<br />
<strong>de</strong> 90 e respectivo fracionamento das unida<strong>de</strong>s administrativas representativas do po<strong>de</strong>r<br />
local, fato comum em outras áreas do país.<br />
Analisando o processo <strong>de</strong> colonização implantado pelo INCRA, nos anos 70, na Amazônia<br />
Meridional, Ariovaldo Umbelino <strong>de</strong> Oliveira (1990) e Bertha Becker (1991) <strong>de</strong>stacaram<br />
a importância <strong>de</strong> dois instrumentos utilizados pelo Regime Militar para viabilizar<br />
a ocupação dos “vazios <strong>de</strong>mográficos” <strong>de</strong> Rondônia:<br />
a. Consolidação da BR-364: realizada no final dos anos 70/80, principalmente no<br />
trecho Cuiabá-Vilhena-Porto Velho, contou com recursos do Pólo-noroeste e<br />
financiamento do Banco Mundial para or<strong>de</strong>nar o fluxo <strong>de</strong> camponeses expropriados<br />
pela mo<strong>de</strong>rnização agrícola ocorrida no sul e no su<strong>de</strong>ste do país;<br />
b. Projetos Integrados <strong>de</strong> Colonização (PIC): concebidos pelo Programa <strong>de</strong> Integração<br />
Nacional (PIN), ocuparam uma faixa <strong>de</strong> 100 km <strong>de</strong> cada lado da BR-364, repartida<br />
em lotes <strong>de</strong> aproximadamente 100 ha, distribuídos pelo INCRA. O referido processo<br />
foi chamado por alguns autores <strong>de</strong> “contra-reforma agrária”, pois o Regime Militar<br />
pretendia esvaziar as reivindicações dos movimentos sociais rurais que mobilizavam<br />
os excluídos do processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização do campo, mediante o oferecimento<br />
<strong>de</strong> lotes no estado <strong>de</strong> Rondônia.<br />
Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Jacob Binsztok<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Mapa 1<br />
Malha municipal atual do estado <strong>de</strong> Rondônia<br />
Fonte: RONDÔNIA, 2006.<br />
A leitura das informações contidas no Quadro 1 mostra Ouro Preto e Ji-Paraná como<br />
os maiores projetos <strong>de</strong> colonização do estado <strong>de</strong> Rondônia; no entanto, apesar <strong>de</strong> relativamente<br />
próximos, verificamos que Ji-Paraná se <strong>de</strong>stacou pelo seu <strong>de</strong>smembramento,<br />
dando origem a um número significativo <strong>de</strong> municípios. Logo, os projetos <strong>de</strong> colonização<br />
foram fundamentais para a constituição dos novos municípios, que, embora possuindo<br />
reduzidas estruturas <strong>de</strong> serviços, mobilizaram li<strong>de</strong>ranças para exercer o po<strong>de</strong>r local<br />
e substituir as funções <strong>de</strong>sempenhadas pelo INCRA.<br />
Quadro 1<br />
Projetos Integrados <strong>de</strong> Colonização no estado <strong>de</strong> Rondônia<br />
Projetos Área (ha) N o <strong>de</strong> famílias Localização<br />
Ouro Preto 512.585 5.000 Ouro Preto d’Oeste e Ji-Paraná<br />
Ji-Paraná 486.137 5.000 Cacoal, Pres. Médici, Rolim <strong>de</strong> Moura,<br />
Pimenta Bueno e Espigão d’Oeste<br />
Adolfo Rohl 407.210 3.500 Jaru<br />
Paulo <strong>de</strong> Assis Ribeiro 293.580 3.500 Colorado d’Oeste<br />
Sidney Girão 60.000 600 Guajará-Mirim<br />
Fonte: INCRA, 1983.<br />
Nota: Dados organizados por Oliveira (1990) e Becker (1991) e reorganizados por Binsztok (2002).<br />
26<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia
Nessa perspectiva po<strong>de</strong>mos afirmar que tanto a BR-364 quanto os Projetos Integrados<br />
<strong>de</strong> Colonização cumpriram as finalida<strong>de</strong>s geopolíticas estipuladas pelo Regime Militar,<br />
criando novas esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local e contribuindo <strong>de</strong>cisivamente para a construção<br />
<strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m territorial no estado <strong>de</strong> Rondônia e na Amazônia Meridional<br />
(vi<strong>de</strong> Mapa 1).<br />
Agricultura familiar e a cafeicultura no estado <strong>de</strong> Rondônia<br />
Com o objetivo <strong>de</strong> investigar a agricultura familiar no estado <strong>de</strong> Rondônia, realizamos<br />
estudos exploratórios no município <strong>de</strong> Cacoal, em 2001 e em 2004, procurando conhecer<br />
a participação dos produtores no referido processo. Para tanto, entrevistamos pequenos<br />
proprietários, meeiros, comerciantes, feirantes, professores, estudantes, técnicos <strong>de</strong><br />
instituições públicas, enfim, todos aqueles que pu<strong>de</strong>ssem nos ajudar a melhor compreen<strong>de</strong>r<br />
a construção <strong>de</strong>sse novo or<strong>de</strong>namento territorial na Amazônia Meridional.<br />
Ao percorrermos as linhas <strong>de</strong> produção on<strong>de</strong> se concentra a ativida<strong>de</strong> agropecuária<br />
<strong>de</strong> Cacoal, <strong>de</strong>paramo-nos com uma população proveniente, em gran<strong>de</strong> parte, do norte<br />
do Espírito Santo, <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s como São Gabriel da Palha, Linhares, Colatina, Mantena,<br />
Vila Pavão e Nova Venécia. Esses produtores, que adquiriram suas terras na década <strong>de</strong><br />
70/80, organizaram-se em uma estrutura tipicamente familiar e <strong>de</strong>dicaram-se ao cultivo<br />
<strong>de</strong> café, mais especificamente da varieda<strong>de</strong> conillon, caracterizada por maior porte vegetativo<br />
e tolerância a temperaturas elevadas.<br />
O café do tipo conillon, diferente da varieda<strong>de</strong> arábica, não é apropriado ao consumo<br />
direto, sendo utilizado na fabricação <strong>de</strong> tintas, na indústria <strong>de</strong> café solúvel e na composição<br />
<strong>de</strong> blends <strong>de</strong> café torrado, porque otimiza a cor e a consistência da bebida.<br />
A importância <strong>de</strong> Cacoal na economia cafeeira <strong>de</strong> Rondônia po<strong>de</strong> ser verificada pela<br />
leitura dos dados contidos no Quadro 2.<br />
Quadro 2<br />
Maiores produtores <strong>de</strong> café conillon <strong>de</strong> Rondônia<br />
Municípios Área (ha) Produção (saca) Rendimento (ha)<br />
Cacoal 22.037 308.520 14,0<br />
São Miguel <strong>de</strong> Guaporé 16.620 177.060 10,5<br />
Alto Paraíso 10.700 128.400 12,0<br />
Machadinho do Oeste 9.903 52.420 6,0<br />
Ministro Andreazza 9.121 127.690 14,0<br />
Nova Brasilândia do Oeste 8.904 106.850 12,0<br />
Alta Floresta do Oeste 8.433 118.060 14,0<br />
Novo Horizonte do Oeste 7.853 109.940 14,0<br />
Rolim <strong>de</strong> Moura 7.597 100.280 13,0<br />
Jaru 7.361 95.690 13,0<br />
Subtotal 108.529 1.331.910 12,0<br />
Outros municípios 104.590 1.060.470 10,0<br />
Total 203.128 2.392.380 11,0<br />
Fonte: IBGE, 2001.<br />
Nota: Dados organizados por Agenor Luiz Delazari e reorganizados por Jacob Binsztok.<br />
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Analisando as informações do Quadro 2 observamos que a cafeicultura <strong>de</strong> Rondônia<br />
está distribuída por um razoável número <strong>de</strong> municípios. Cacoal <strong>de</strong>staca-se pela li<strong>de</strong>rança<br />
da produção, em área ocupada e em rendimento. Com relação ao rendimento, é importante<br />
ressaltar que Cacoal acompanha a média nacional (14,0), significativa para Rondônia,<br />
porém baixa se comparada com os resultados obtidos por <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> (25,0) e<br />
São Paulo (23,0).<br />
As abordagens comparativas são relevantes, não <strong>de</strong>vendo entretanto servir como <strong>de</strong>sestímulo<br />
para a cafeicultura <strong>de</strong> Cacoal, pois as cultivares <strong>de</strong> São Paulo e <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />
são da varieda<strong>de</strong> arábica, adaptada a condições morfológicas e climáticas e padrões tecnológicos<br />
diferentes dos <strong>de</strong> Rondônia.<br />
Segundo informações divulgadas pela EMATER-RO e da CEPLAC-RO, o café <strong>de</strong> Cacoal<br />
é colhido sem estar plenamente maduro, acarretando uma perda <strong>de</strong> 40%. O melhoramento<br />
da qualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser obtido mediante o aumento do tempo nos secadores<br />
para cerca <strong>de</strong> 36 horas, em lugar das 12-14 horas atualmente utilizadas para a<br />
maturação do produto.<br />
Na área rural <strong>de</strong> Cacoal encontramos atores marcantes da diferenciação socioespacial<br />
que caracteriza a fronteira agrícola consolidada <strong>de</strong> Rondônia. Assim, entramos em contato<br />
com uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produtores capixabas <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> pomeranos, provenientes<br />
em gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> São Gabriel da Palha, Vila Pavão, Afonso Cláudio e Barra<br />
do São Francisco. Em suas residências ainda falam o baixo alemão, e do ponto <strong>de</strong> vista<br />
religioso a comunida<strong>de</strong> apresenta-se dividida entre a<strong>de</strong>ptos das Igrejas Católica, Evangélica<br />
e Luterana. Em relação aos luteranos, há ainda uma subdivisão, envolvendo os <strong>de</strong><br />
confissão luterana do Brasil e no Brasil. A comunida<strong>de</strong> possui também uma escola <strong>de</strong><br />
nível médio, localizada na área urbana <strong>de</strong> Cacoal.<br />
Os pomeranos da linha 21 possuem certa similitu<strong>de</strong> com os produtores <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência<br />
italiana em relação ao cultivo do café, <strong>de</strong>dicando-se porém com mais empenho à<br />
produção <strong>de</strong> leite, em proprieda<strong>de</strong>s situadas na faixa <strong>de</strong> 5 a 10 alqueires. A média <strong>de</strong><br />
produção <strong>de</strong> leite é <strong>de</strong> 30 litros diários, comercializados com maquinistas locais e com<br />
representantes dos laticínios Vale d’Oeste (Espigão d’Oeste), Nova Esperança (Espigão<br />
d’Oeste) e Tradição (Ji-Paraná).<br />
Segundo informações locais, os produtores <strong>de</strong> origem pomerana adquiriram suas terras<br />
da empresa loteadora Companhia Itaporanga. Os migrantes paranaenses, originários<br />
em gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> Vera Cruz, Cruzeiro do Oeste, Céu Azul e Toledo, geralmente chegaram<br />
na região como meeiros, só comprando terras após um período <strong>de</strong> permanência<br />
em Cacoal.<br />
Nas entrevistas, fomos informados <strong>de</strong> que alguns produtores estão ven<strong>de</strong>ndo suas<br />
proprieda<strong>de</strong>s e comprando terras <strong>de</strong> menor valor em locais distantes, como Conízia<br />
(Mato Grosso), Buritis (Rondônia) e São Francisco (Rondônia), aproveitando-se <strong>de</strong> estradas<br />
vicinais pioneiras existentes na região. De acordo com dados do IBGE, o município<br />
<strong>de</strong> Buritis apresentou a maior taxa <strong>de</strong> crescimento populacional do país, atingindo<br />
cerca <strong>de</strong> 30% durante o ano <strong>de</strong> 2003, mostrando que a fronteira agrícola ainda não se<br />
esgotou em Rondônia e que os movimentos migratórios na atualida<strong>de</strong> estão obe<strong>de</strong>cen-<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
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Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia
do a uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> caráter inter-regional. Existem casos ainda <strong>de</strong> produtores que mantiveram<br />
suas proprieda<strong>de</strong>s em Cacoal e continuaram ali residindo, mas adquiriram novas<br />
terras nos locais mencionados, alguns inclusive nelas atuando como maquinistas da produção<br />
<strong>de</strong> café.<br />
A contribuição do geógrafo Jean Roche (1968), com sua obra A colonização alemã no<br />
Espírito Santo, na qual a fração do campesinato envolvida na aquisição <strong>de</strong> terras na fronteira<br />
agrícola do norte capixaba foi <strong>de</strong>nominada “fazedores <strong>de</strong> solo”, ajudou a compreen<strong>de</strong>r<br />
o processo <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> terras na fronteira agrícola <strong>de</strong> Rondônia. Verifica-se na<br />
referida obra que as práticas <strong>de</strong>stinadas ao assentamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes do sexo masculino,<br />
no caso da colonização pomerana, já eram organizadas nos locais <strong>de</strong> origem dos<br />
migrantes, não <strong>de</strong>vendo ser consi<strong>de</strong>radas, portanto, apenas como uma especificida<strong>de</strong> da<br />
disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> terra na fronteira agrícola <strong>de</strong> Rondônia.<br />
A policultura típica da produção camponesa é facilmente constatada em gran<strong>de</strong> parte<br />
das proprieda<strong>de</strong>s rurais <strong>de</strong> Cacoal. Nesse sentido, encontramos a horticultura, com produção<br />
<strong>de</strong> alface, agrião, repolho, abobrinha, brócolis, tomate e cenoura, a fruticultura,<br />
com produção <strong>de</strong> manga, coco, araçá, abacaxi, melancia, banana-da-terra, banana-prata,<br />
melão, laranja, fruta-<strong>de</strong>-con<strong>de</strong>, acerola, poncã, pupunha, jaca e cupuaçu, e o cultivo <strong>de</strong><br />
cereais, como feijão, arroz e milho, além da criação <strong>de</strong> galinhas caipiras, perus e porcos.<br />
Segundo informações da EMATER-RO, essa policultura é responsável pelo abastecimento<br />
<strong>de</strong> supermercados (Lusitana e Irmãos Gonçalves) e <strong>de</strong> pelo menos quatro feiras<br />
semanais realizadas na cida<strong>de</strong>. Alguns produtores, mais capitalizados, cultivam seus produtos<br />
utilizando técnicas hidropônicas, outros aten<strong>de</strong>m intermediários <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s vizinhas,<br />
como Ji-Paraná e Porto Velho, tendo somente um <strong>de</strong>les conseguido atingir o mercado<br />
<strong>de</strong> Manaus.<br />
A principal feira realizada no centro da cida<strong>de</strong> não possui características específicas,<br />
apresentando certa similitu<strong>de</strong> com as congêneres da área periférica da Região Metropolitana<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Os feirantes informaram-nos que pagam mensalmente um<br />
aluguel simbólico <strong>de</strong> R$1,00 à Prefeitura para adquirirem a licença <strong>de</strong> instalação da barraca,<br />
visando à comercialização <strong>de</strong> seus produtos.<br />
Com o objetivo <strong>de</strong> melhor compreen<strong>de</strong>r a importância das linhas <strong>de</strong> produção para o<br />
abastecimento da cida<strong>de</strong>, que executam a função <strong>de</strong> um “cinturão ver<strong>de</strong>”, elaboramos o<br />
Quadro 3, a seguir apresentado.<br />
As informações do Quadro 3 mostram que as linhas 08, 10 e 208 concentram a produção<br />
<strong>de</strong> hortifrutigranjeiros para o abastecimento <strong>de</strong> Cacoal. No caso, confirmamos as<br />
observações <strong>de</strong> Martin Coy (1995, p. 121) <strong>de</strong> que o acelerado crescimento urbano das<br />
cida<strong>de</strong>s pioneiras está contribuindo para a diversificação dos circuitos econômicos e<br />
melhorando a renda <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados segmentos rurais. Nas entrevistas, verificamos que<br />
uma significativa parcela <strong>de</strong> feirantes é constituída <strong>de</strong> produtores rurais que reclamam<br />
das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transporte, principalmente nos fins <strong>de</strong> semana, pois, muitas vezes, se<br />
vêem obrigados a pernoitar na cida<strong>de</strong>, em condições adversas, para evitar <strong>de</strong>slocamentos<br />
onerosos entre o sítio e a feira.<br />
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Produtos<br />
Quadro 3<br />
Produtos comercializados nas feiras <strong>de</strong> Cacoal<br />
Origem<br />
Espinafre, hortelã, mandioca e repolho. Linha* 06<br />
Alface, almeirão, abóbora, berinjela, cebolinha, coentro, cenoura, frango,<br />
jiló, maxixe, pepino, quiabo, rúcula, pimenta doce, pimenta-<strong>de</strong>-cheiro e tomate. Linha* 08<br />
Abacaxi, abóbora, banana-da-terra, melão nativo, limão e vagem. Linha* 208<br />
Feijão-ver<strong>de</strong>, jiló, pepino, galinha (engradada),<br />
ovos, amendoim, feijão, repolho e farinha.<br />
Carne <strong>de</strong> porco.<br />
Linha*10<br />
Feijão, arroz, mandioca, farinha e banana-maçã. Linha* 13<br />
Galinha (engradada)<br />
Manga, abacaxi.<br />
Alho<br />
Condimentos<br />
Cenoura, cebola, beterraba.<br />
Linhas* 05, 09, 10, Espigão d’Oeste,<br />
Alvorada e Rolim <strong>de</strong> Moura.<br />
Linha* 11, Alto Alegre e Pimenta Bueno.<br />
Linha União<br />
Goiânia<br />
São Paulo e Rondônia<br />
Paraná<br />
* = Linha/linhas: estradas vicinais<br />
abertas pelo INCRA para a implantação<br />
<strong>de</strong> lotes <strong>de</strong>stinados à produção<br />
agropecuária dos antigos Projetos<br />
Integrados <strong>de</strong> Colonização (PIC).<br />
Fonte: Pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />
Nota: Dados elaborados por Maria Selme Santana, em novembro <strong>de</strong> 2001, e organizados por Jacob Binsztok, em fevereiro <strong>de</strong> 2002.<br />
Alguns segmentos urbanos, representados por comerciantes, profissionais liberais e funcionários<br />
públicos fiéis às raízes patrimonialistas do país, também estão adquirindo pequenos<br />
lotes na zona rural (1 a 5 alqueires) e transformando-os em sítios <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> semana,<br />
estimulando, <strong>de</strong>ssa forma, a existência <strong>de</strong> um razoável mercado <strong>de</strong> terras em Cacoal.<br />
A presença <strong>de</strong>sses movimentos mostra a importância dos estudos realizados por Otávio<br />
Guilherme Velho (1979, p. 70) sobre a gran<strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> espacial do campesinato,<br />
<strong>de</strong> Oliveira (1990, p. 40), referente à <strong>de</strong>sterritorialização do campesinato, e <strong>de</strong> Martin<br />
Coy (1995, p. 121), advertindo para o gradual fechamento da fronteira agrícola e sua<br />
insustentabilida<strong>de</strong> ambiental. Em linhas gerais, esses pesquisadores <strong>de</strong>stacam a incapacida<strong>de</strong><br />
da fronteira agrícola na solução da geração <strong>de</strong> trabalho e renda e admitem que o<br />
campesinato está longe <strong>de</strong> esgotar suas possibilida<strong>de</strong>s para a construção <strong>de</strong> uma nova<br />
or<strong>de</strong>m territorial-ambiental no país.<br />
Os espaços ocupados pelos meeiros e pelos trabalhadores rurais<br />
Analisando as especificida<strong>de</strong>s da colonização implantada pelo INCRA em Rondônia,<br />
Ariovaldo Umbelino Oliveira (1990, p. 29), influenciado por Carlos Minc (1985), aponta<br />
a importância da meação e do compadrio como procedimentos iniciais para a fixação<br />
dos pequenos proprietários, ressaltando:<br />
A maior parte dos migrantes que chegaram a Rondônia não conseguiram lotes nem no primeiro,<br />
nem no segundo ano. Outros ganharam lotes em áreas sem qualquer tipo <strong>de</strong> acesso, com distâncias<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
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Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia
<strong>de</strong> 100km das estradas. Tanto num caso como no outro, estes camponeses se instalaram nos<br />
lotes já produtivos <strong>de</strong> parentes ou amigos, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agregados ou meeiros.<br />
O sistema <strong>de</strong> meeiros é importante porque está na base das diferenças sócio-espaciais que ali se<br />
estabeleceram. O meeiro instala-se com sua família no lote <strong>de</strong> um colono, enquanto aguarda<br />
receber o seu, ou então que o seu lote se torne acessível. Neste período trabalha seu roçado com<br />
a família e ainda ajuda o proprietário na implantação da cultura <strong>de</strong> café ou cacau. Esta relação não<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um tipo <strong>de</strong> exploração, mas é a única forma que a família recém chegada encontra para<br />
sobreviver e conseguir economizar para investir no seu próprio lote. Geralmente as famílias,<br />
quando <strong>de</strong>ixam seus locais <strong>de</strong> origem, já têm o en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> conhecidos, que se dispõem a receber<br />
novos meeiros. Esta relação tornou-se assim a porta <strong>de</strong> entrada para a fixação <strong>de</strong> novos migrantes<br />
na região.<br />
A presença <strong>de</strong> meeiros trabalhando ao lado <strong>de</strong> pequenos proprietários é uma constante<br />
no espaço agrário <strong>de</strong> Cacoal. Segundo informações da EMATER-RO, cerca <strong>de</strong> 60%<br />
dos acertos realizados entre meeiros e proprietários são verbais e por vezes conflituosos,<br />
não se pautando nos Contratos <strong>de</strong> Parceria Agrícola previstos no art. 92 do Estatuto<br />
da Terra (Lei 4.504, <strong>de</strong> 30/11/1964). O instrumento legal estipula que 50% da produção<br />
<strong>de</strong> café ou <strong>de</strong> cacau sejam divididos com o proprietário e que toda a “lavoura<br />
branca” – como a <strong>de</strong> mandioca, milho, feijão e frutas – seja proprieda<strong>de</strong> do meeiro.<br />
Alguns produtores adotam o Contrato <strong>de</strong> Parceria Agrícola como garantia contra<br />
futuras reivindicações judiciais. Atualmente os proprietários possuem <strong>de</strong> um a dois meeiros;<br />
em outras ocasiões, proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 42 alqueires chegaram a contar com o trabalho<br />
<strong>de</strong> três meeiros.<br />
Na pecuária registramos a presença <strong>de</strong> dois tipos <strong>de</strong> meeiro: o primeiro, representado<br />
pelo meeiro sem terra, é remunerado pelo peso adicional da engorda sob a sua responsabilida<strong>de</strong>;<br />
o segundo, caracterizado pelo meeiro com terra, recebe o novilho do fazen<strong>de</strong>iro<br />
e com este reparte igualmente o lucro. Em ambos os casos, a produção do leite<br />
pertence ao meeiro.<br />
As linhas <strong>de</strong> crédito para os meeiros são concedidas pelo Fundo <strong>de</strong> Amparo ao Trabalhador<br />
(FAT), e as para os pequenos produtores, pelo Programa Nacional <strong>de</strong> Agricultura<br />
Familiar (PRONAF) e pelo Rural-Rápido, as quais se situam na faixa <strong>de</strong> R$1.000,00 a<br />
R$5.000,00 e são operadas, respectivamente, pelo Banco do Brasil e pelo Banco da<br />
Amazônia Socieda<strong>de</strong> Anônima (BASA). No momento os pequenos produtores só per<strong>de</strong>m<br />
suas terras por dívidas no banco, se as tiverem ofertado como garantias hipotecárias.<br />
Esse procedimento confirma os estudos <strong>de</strong> Oliveira (1990, p. 30), mostrando que a<br />
atual fase do <strong>de</strong>senvolvimento capitalista não está interessada em expropriar terras e<br />
sim, em apropriar-se da renda da terra por intermédio da exploração do sobretrabalho<br />
dos pequenos proprietários e meeiros.<br />
O trabalho temporário é utilizado por proprietários e meeiros nos meses <strong>de</strong> abril,<br />
maio, junho e julho, durante a safra do café, através do recrutamento <strong>de</strong> diaristas para a<br />
colheita do produto. Assim, são mobilizados trabalhadores do município limítrofe <strong>de</strong><br />
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Geografias<br />
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Espigão d’Oeste, empregadas domésticas, menores, enfim, há uma verda<strong>de</strong>ira corrida<br />
pela safra <strong>de</strong> café em Cacoal. Em 2001, esses trabalhadores foram remunerados em<br />
R$1,50/latão, tendo a diária da mão-<strong>de</strong>-obra temporária atingido cerca <strong>de</strong> R$15,00.<br />
A incorporação do trabalho infantil na cafeicultura <strong>de</strong> Cacoal, típica da organização<br />
camponesa, foi observada em entrevistas com os alunos da Escola Cruzeiro do Norte,<br />
na linha 21. Além <strong>de</strong> trabalhar diretamente na produção cafeeira, capinando os lotes,<br />
<strong>de</strong>sbastando e colhendo o café e enchendo os latões, essas crianças colaboram nas tarefas<br />
familiares, cuidando <strong>de</strong> irmãos, limpando a casa e fervendo o leite para a produção<br />
<strong>de</strong> leite-<strong>de</strong>-coco. Não parece aqui se tratar da exploração ou do sobretrabalho infantil<br />
comumente utilizados em outros setores da ativida<strong>de</strong> agrícola, mas da inserção <strong>de</strong>sses<br />
jovens na lógica <strong>de</strong> produção da unida<strong>de</strong> familiar camponesa.<br />
Os jovens das áreas rurais são atendidos por 19 escolas municipais responsáveis pelo<br />
Ensino Fundamental e pelo Projeto Pró-Campo, que, inspirado no método <strong>de</strong>senvolvido<br />
por Paulo Freire, compatibiliza o trabalho agrícola com as ativida<strong>de</strong>s escolares. O<br />
Projeto ministra o conteúdo curricular <strong>de</strong> 5ª a 8ª série para cerca <strong>de</strong> 1.000 estudantes,<br />
mediante a utilização <strong>de</strong> um sistema alternativo envolvendo presença e ativida<strong>de</strong>s complementares.<br />
A etapa presencial é realizada com os docentes que, uma vez por semana, se<br />
<strong>de</strong>slocam para as unida<strong>de</strong>s escolares e ali permanecem à disposição dos alunos, durante<br />
8 horas; os <strong>de</strong>mais dias <strong>de</strong>stinam-se às ativida<strong>de</strong>s complementares.<br />
A recente saída <strong>de</strong> produtores <strong>de</strong> áreas rurais <strong>de</strong> Cacoal contribuiu para uma reestruturação<br />
do Pró-Campo. Embora não tenha ocorrido o fechamento <strong>de</strong> escolas, como o<br />
verificado em Ji-Paraná e relatado por Martin Coy (1995, p.121), foram realizadas fusões<br />
<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s escolares. Essas fusões não chegaram, entretanto, a interferir na capilarida<strong>de</strong><br />
do sistema e, conseqüentemente, no acesso às ativida<strong>de</strong>s do Projeto, pois a Prefeitura<br />
disponibilizou um serviço <strong>de</strong> ônibus para o transporte dos alunos.<br />
É importante ressaltar que o município vem per<strong>de</strong>ndo sua população no campo, registrando-se,<br />
nos primórdios da década <strong>de</strong> 2000, um êxodo <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 5.000 habitantes,<br />
os quais passaram a residir na área urbana, estimulados inclusive pelas políticas públicas<br />
adotadas pela municipalida<strong>de</strong>. A continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse movimento po<strong>de</strong>rá acarretar<br />
futuros riscos para a manutenção do Projeto Pró-Campo nas áreas rurais <strong>de</strong> Cacoal.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
A pesquisa mostrou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um estudo visando a organizar uma estrutura <strong>de</strong><br />
escoamento da produção cafeeira em direção à Hidrovia do Ma<strong>de</strong>ira, semelhante ao<br />
executado pelo Grupo Maggi e pela Cargill em relação à produção <strong>de</strong> soja e milho do<br />
Mato Grosso e do sul <strong>de</strong> Rondônia, evitando, <strong>de</strong>ssa forma, os onerosos custos <strong>de</strong> frete<br />
para os portos do Su<strong>de</strong>ste do país. Caso persista o atual quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, a<br />
produção cafeeira rondoniense po<strong>de</strong> se transformar em uma periferia expandida dos<br />
interesses do Espírito Santo e do Paraná na Amazônia Meridional. As mudanças no setor<br />
cafeeiro <strong>de</strong>verão ser paulatinamente negociadas, pois são conhecidas as relações <strong>de</strong><br />
confiança existentes entre produtores e intermediários capixabas e paranaenses.<br />
32<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Agricultura familiar na Amazônia: o contexto da cafeicultura no centro <strong>de</strong> Rondônia
Verificamos ainda que os meeiros se constituem em um dos mais importantes agentes<br />
da cafeicultura na região central <strong>de</strong> Rondônia, pois conseguem enfrentar as sucessivas<br />
crises sofridas pelo produto, viabilizando a agricultura familiar no estado. Caso predominassem<br />
as relações <strong>de</strong> trabalho assalariado, tal prática tornar-se-ia inviável, assim como<br />
– e conseqüentemente – a produção cafeeira na região.<br />
O trabalho <strong>de</strong>monstrou também a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estímulo a formas <strong>de</strong> intercâmbio<br />
com entida<strong>de</strong>s ambientalistas e <strong>de</strong> comércio justo em âmbitos nacional e internacional,<br />
visando à obtenção <strong>de</strong> uma certificação principalmente para a produção <strong>de</strong> café que<br />
privilegie o cultivo orgânico. Nesse sentido são promissoras as articulações feitas por<br />
cooperativas do centro <strong>de</strong> Rondônia com países europeus, objetivando a exportação <strong>de</strong><br />
café cultivado sem agrotóxicos.<br />
A pesquisa igualmente <strong>de</strong>monstrou que os movimentos migratórios no estado <strong>de</strong> Rondônia<br />
não são mais realizados na rota dos fluxos regionais e sim, na direção <strong>de</strong> movimentos<br />
intra-regionais, o que explicaria os <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> populações localizadas no<br />
centro <strong>de</strong> Rondônia para outras áreas do próprio estado ou para Mato Grosso, comprovando<br />
assim a tese <strong>de</strong> que a fronteira ainda não esgotou suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abrigar<br />
novos contingentes populacionais.<br />
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
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Belo Horizonte 02(1) 22-33 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Jacob Binsztok<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
33
Cláudia Regina dos Santos<br />
Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas – UFSC;<br />
Doutora em Ciências Humanas pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />
<strong>de</strong> Santa Catarina<br />
Norberto Olmiro Horn Filho<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia – UFSC;<br />
Doutor em Geociências pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong><br />
do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da<br />
ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong><br />
São Francisco do Sul, SC, Brasil<br />
Resumo<br />
Neste trabalho são apresentados os aspectos<br />
geológicos, geomorfológicos, evolutivos e <strong>de</strong><br />
cobertura vegetal do pontal do Capri, localizado<br />
na ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, estado <strong>de</strong> Santa<br />
Catarina, Brasil. O pontal é formado por<br />
<strong>de</strong>pósitos holocênicos dos ambientes marinho<br />
praial, lagunar, paludial e eólico e recoberto por<br />
vegetação <strong>de</strong> restinga, manguezal e marisma.<br />
Dois tipos <strong>de</strong> ação antrópica têm sido<br />
observados no pontal: ocupação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong><br />
preservação permanente e dragagem na laguna<br />
<strong>de</strong> Capri. Um projeto <strong>de</strong> recuperação ambiental<br />
do pontal do Capri <strong>de</strong>verá incluir a paralisação<br />
da dragagem na laguna, a retirada <strong>de</strong> todas as<br />
estruturas fixas e o plantio <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> restinga<br />
e manguezal fixadoras <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósitos marinho<br />
praial, lagunar, eólico e paludial.<br />
Abstract<br />
In this paper are presented geological,<br />
geomorphological, evolutive and environmental aspects<br />
of the Capri spit, at São Francisco do Sul island,<br />
northeast of Santa Catarina State, Brazil. The spit<br />
is constituted by holocenic <strong>de</strong>posits of marine, lagoonal,<br />
marshy and aeolic environments, and covered by<br />
restinga, marisma and mangrove vegetation. Two<br />
kinds of anthropical action have been observed in the<br />
spit: occupation of the permanent preservation areas<br />
and dredging of the bottom sediments of Capri<br />
lagoon. Environmental recuperation project of the<br />
Capri spit must contemplate interruption of the lagoon<br />
dredging, retreat of anthropical structures, and<br />
planting of restinga and mangrove species fixative<br />
of sedimentary <strong>de</strong>posits of the coastal plain.<br />
claudia@prsc.mpf.gov.br<br />
horn@cfh.ufsc.br<br />
Palavras-chave pontal arenoso; Holoceno;<br />
ação antropogênica; <strong>de</strong>gradação ambiental.<br />
Keywords sandy spit; Holocene; anthropogenic<br />
action; environmental <strong>de</strong>gradation.<br />
34<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
Introdução<br />
Suguio (1992, p. 86) e Diehl (1997, p. 38) caracterizaram pontais arenosos como uma<br />
feição geomorfológica <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>posicional. Os autores utilizaram-se da <strong>de</strong>nominação<br />
“esporão” ou “flecha arenosa” para <strong>de</strong>finir essa feição <strong>de</strong> relevo, em geral arenosa,<br />
formada por uma série <strong>de</strong> cristas <strong>de</strong> cordões litorâneos conectados ao continente ou a<br />
uma ilha por uma das extremida<strong>de</strong>s. Essa <strong>de</strong>finição a<strong>de</strong>qua-se perfeitamente ao pontal<br />
do Capri, que apresenta na sua cobertura espécies vegetais adaptadas ao meio, <strong>de</strong>stacandose<br />
as <strong>de</strong> restinga, manguezal e marisma.<br />
As áreas <strong>de</strong> preservação permanente (APP) incorporando a vegetação às margens <strong>de</strong><br />
rios, entorno <strong>de</strong> lagoas, dunas e planícies <strong>de</strong> maré foram estabelecidas através do Código<br />
Florestal (Lei 4.771/65) (BRASIL, 1965), com objetivo <strong>de</strong> evitar a sua <strong>de</strong>scaracterização<br />
através da ação antrópica, já que apresentam importante função ecológica na manutenção<br />
dos diversos biomas, bem como protegem e mantêm a integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong><br />
maior fragilida<strong>de</strong>.<br />
Dentre os diversos tipos <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> preservação permanente, a restinga fixadora <strong>de</strong><br />
dunas vem sendo intensamente ocupada. Esse tipo <strong>de</strong> ocupação é viabilizado, muitas<br />
vezes, com a anuência dos órgãos ambientais, que autorizam a implantação <strong>de</strong> loteamentos,<br />
residências e hotéis.<br />
De acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica (1998, p. 45), o ecossistema da restinga<br />
foi o mais agredido entre os anos <strong>de</strong> 1990 e 1995 no estado <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />
superando até mesmo a vegetação da floresta ombrófila <strong>de</strong>nsa.<br />
No pontal do Capri, localizado no município <strong>de</strong> São Francisco do Sul, a ocupação das<br />
áreas <strong>de</strong> preservação permanente é uma prática constante, em claro conflito com os<br />
ditames da Lei 4.771/65 (BRASIL, 1965). O processo <strong>de</strong> ocupação, acelerado nos últimos<br />
anos pela indústria do turismo, tem contribuído para a <strong>de</strong>scaracterização das áreas<br />
<strong>de</strong> preservação permanente.<br />
Este trabalho tem como objetivo principal a <strong>de</strong>scrição física e biológica do pontal do<br />
Capri e das conseqüências ambientais <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> sua ocupação antrópica.<br />
O pontal do Capri localiza-se no extremo noroeste da ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul<br />
(Fig. 1), cujo acesso é realizado através da rodovia pavimentada BR 280 e <strong>de</strong> estrada<br />
vicinal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Francisco do Sul, por uma distância <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 8 km.<br />
O pontal po<strong>de</strong> também ser acessado por meio hidroviário junto à baía da Babitonga,<br />
sendo esta atravessada transversalmente pelo duto da Petróleo Brasileiro S/A (PETRO-<br />
BRÁS). Destaca-se no extremo sudoeste do pontal a presença <strong>de</strong> uma marina bem estabelecida<br />
(Capri Iate Clube). A população resi<strong>de</strong>nte está assentada ao longo do pontal e<br />
aumenta sobremaneira durante os períodos <strong>de</strong> verão.<br />
Metodologia<br />
Inicialmente foi realizado o levantamento bibliográfico da área <strong>de</strong> estudo através da<br />
leitura <strong>de</strong> informações <strong>de</strong> caráter geológico, geomorfológico, da cobertura vegetal,<br />
ocupação antrópica, legislação ambiental e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gabinete em geral.<br />
Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
35
Figura 1<br />
Localização do pontal do Capri na ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul<br />
Em seguida passou-se à fotointerpretação do pontal do Capri, utilizando-se para tanto<br />
fotografias aéreas pancromáticas, na escala 1:25.000, do ano <strong>de</strong> 1956. A partir <strong>de</strong>ssa<br />
fotointerpretação foram <strong>de</strong>finidas as principais unida<strong>de</strong>s geológicas e geomorfológicas<br />
do pontal, os contatos geológicos entre as unida<strong>de</strong>s, bem como as áreas com vegetação<br />
fixadora <strong>de</strong> restinga, manguezal e marisma e a ocupação urbana.<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento da pesquisa em campo <strong>de</strong>u-se em dois momentos distintos, envolvendo<br />
primeiramente o mapeamento geológico e em seguida a realização <strong>de</strong> uma<br />
vistoria, solicitada pela Procuradoria da República em Joinville, com objetivo <strong>de</strong> constatar<br />
ocupações irregulares em área <strong>de</strong> preservação permanente e seus impactos no Balneário<br />
do Capri, assentado no pontal homônimo.<br />
A vistoria foi realizada em agosto <strong>de</strong> 2003 e teve a participação do 4º Pelotão da<br />
Polícia Militar <strong>de</strong> Proteção Ambiental <strong>de</strong> Joinville, do IBAMA, dos advogados das partes<br />
envolvidas e da Associação <strong>de</strong> Moradores da Ponta do Capri. Realizaram-se também<br />
um sobrevôo da área <strong>de</strong> estudo, com apoio da Polícia Militar <strong>de</strong> Joinville, e uma vistoria<br />
terrestre ao longo do pontal, com início nos dutos da PETROBRÁS e término no Capri<br />
Iate Clube. Foram i<strong>de</strong>ntificados e fotografados os diferentes tipos <strong>de</strong> ocupação, a cobertura<br />
vegetal e seus respectivos impactos ambientais.<br />
36<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
A situação atual da área foi comparada com as fotografias aéreas realizadas em 2000,<br />
possibilitando assim a i<strong>de</strong>ntificação dos impactos ambientais causados ao longo do tempo.<br />
A metodologia utilizada possibilitou ainda a apresentação do mapa geológico da planície<br />
costeira do pontal do Capri, complementado pela aquisição <strong>de</strong> fotografias oblíquas<br />
da área <strong>de</strong> estudo.<br />
Resultados e discussão<br />
O pontal do Capri constitui um típico esporão sedimentar formado <strong>de</strong> cordões arenosos<br />
conectados ao morro João Dias ou do Forte, localizado no extremo noroeste da ilha <strong>de</strong><br />
São Francisco do Sul.<br />
No que diz respeito à caracterização geológica, Horn Filho (1997, p. 235) constatou<br />
que o pontal do Capri é formado por <strong>de</strong>pósitos holocênicos dos ambientes marinho<br />
praial, lagunar, paludial e eólico (Foto 1 e Fig. 2).<br />
A área do pontal caracteriza-se por ser <strong>de</strong> origem holocênica (5,1kA), apresentando<br />
terrenos bastante instáveis, facilmente movimentados pela ação das águas pluviais, dos<br />
ventos e das marés. Encontra-se constituído, basicamente, por sedimentos arenosos, existindo,<br />
ainda, sedimentos areno-lamosos nas faixas marginais da face noroeste, que constituem<br />
<strong>de</strong>lgadas faixas <strong>de</strong> sedimentos finos <strong>de</strong> origem lagunar.<br />
Observa-se ainda que a parte interna do pontal, on<strong>de</strong> a ação energética das ondas é<br />
bastante reduzida, constitui-se num ambiente favorável para a <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> sedimentos<br />
finos, bem como para a formação <strong>de</strong> pequenas lagunas, <strong>de</strong>vido ao arqueamento da<br />
porção terminal. Tal padrão favoreceu o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> extensos <strong>de</strong>pósitos paludiais,<br />
on<strong>de</strong> estão fixadas as espécies típicas dos marismas e manguezais.<br />
Foto 1 Vista para sudoeste do pontal do Capri (agosto <strong>de</strong> 2003)<br />
Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Figura 2<br />
Mapa geológico-geomorfológico da<br />
planície costeira do pontal do Capri<br />
Geomorfologicamente, o pontal é constituído por uma série <strong>de</strong> cordões litorâneos,<br />
intercalados com terrenos elevados e <strong>de</strong>pressivos que representam sucessivas cristas e<br />
cavas, respectivamente. Ao longo do pontal ocorre a presença <strong>de</strong> lagunas situadas entre<br />
cordões arenosos, além da extensa área <strong>de</strong> terraços lagunares e planícies <strong>de</strong> maré, típicos<br />
<strong>de</strong> marisma e manguezal.<br />
Segundo Horn Filho (1997, p. 238), a evolução do pontal do Capri está vinculada a<br />
cinco fatores principais:<br />
38<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
Foto 2<br />
Vista para nor<strong>de</strong>ste do pontal do Capri, evi<strong>de</strong>nciando a vegetação <strong>de</strong><br />
restinga e a <strong>de</strong> manguezal voltadas, respectivamente, para a baía da<br />
Babitonga e o canal lagunar (agosto <strong>de</strong> 2003)<br />
1. o expressivo suprimento <strong>de</strong> sedimentos arenosos finos;<br />
2. o sentido constante <strong>de</strong> transporte litorâneo, no caso, <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>ste para su<strong>de</strong>ste;<br />
3. a influência da topografia, especificamente do ponto <strong>de</strong> amarração rochoso que<br />
coinci<strong>de</strong> com o extremo noroeste do morro João Dias;<br />
4. a presença <strong>de</strong> águas <strong>de</strong> pequena profundida<strong>de</strong>, comprovada pelo fundo raso e<br />
protegido <strong>de</strong>sse local;<br />
5. a incidência oblíqua das ondas à costa, <strong>de</strong> direção nor<strong>de</strong>ste, transportando os sedimentos<br />
e posteriormente redistribuindo-os para oeste pela ação da <strong>de</strong>riva litorânea.<br />
O pontal apresenta sua extremida<strong>de</strong> sob forma arqueada, o que se explica pela sobreposição<br />
<strong>de</strong> trens <strong>de</strong> ondas provindas <strong>de</strong> diferentes direções ou, então, pela refração<br />
<strong>de</strong>stas em torno do pontal. A praia <strong>de</strong> Capri localizada no setor externo do pontal,<br />
voltada para a baía da Babitonga, a norte, e para o saco <strong>de</strong> Iriri, a sul, exibe dominantemente<br />
sedimentos praiais, litoclásticos e bioclásticos, <strong>de</strong> granulometria arenosa fina a grossa.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista ecossistêmico, o pontal do Capri encontra-se constituído por duas<br />
importantes formações vegetais: restinga e manguezal. Essas formações, que apresentam<br />
gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> específica, além <strong>de</strong> funções ecológicas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> significado<br />
para a proteção das áreas litorâneas, constituem importantes elementos da paisagem da<br />
zona costeira (Foto 2).<br />
Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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A vegetação <strong>de</strong> restinga localiza-se no setor voltado para a baía da Babitonga e é<br />
formada por espécies <strong>de</strong> porte herbáceo e arbustivo, típicas <strong>de</strong> restinga fixadora <strong>de</strong><br />
dunas caracterizadas por sedimentos arenosos (CONAMA, 1999). Compreen<strong>de</strong> formações<br />
originalmente herbáceas, subarbustivas, arbustivas ou arbóreas, que po<strong>de</strong>m ocorrer<br />
em mosaicos, e também áreas ainda naturalmente <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> vegetação; tais formações<br />
po<strong>de</strong>m ter se mantido primárias ou passado a secundárias, como resultado <strong>de</strong><br />
processos naturais ou <strong>de</strong> intervenções humanas. Em função da fragilida<strong>de</strong> dos ecossistemas<br />
<strong>de</strong> restinga, sua vegetação exerce papel fundamental para a estabilização dos sedimentos<br />
e a manutenção da drenagem natural, bem como para a preservação da fauna<br />
resi<strong>de</strong>nte e migratória associada à restinga e que encontra nesse ambiente disponibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> alimentos e locais seguros para nidificar e proteger-se dos predadores.<br />
A vegetação <strong>de</strong> manguezal localiza-se na face interna do pontal e caracteriza-se pela<br />
presença das espécies Laguncularia racemosa (mangue branco) e Spartina ciliata (gramínea),<br />
características dos sedimentos paludiais.<br />
Constituem os manguezais parte típica da vegetação litorânea intertropical, situados<br />
em planícies planas, inundáveis na preamar e emersas na baixa-mar, acompanhando as<br />
margens das baías ou as <strong>de</strong>sembocaduras dos rios. Nos manguezais, encontra-se pouca<br />
varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> árvores, mas expressivo número <strong>de</strong> indivíduos por espécie. São<br />
formados por vegetação halófita (adaptada à salinida<strong>de</strong>) muito típica <strong>de</strong> arbustos e pequenas<br />
árvores encontradas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Amapá, ao norte, até Santa Catarina, ao sul do<br />
Brasil (LACERDA, 1984, p. 64).<br />
O bom funcionamento do ecossistema <strong>de</strong> manguezal <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns fatores <strong>de</strong><br />
importância vital, entre os quais se incluem a estabilida<strong>de</strong> do solo e um suprimento<br />
a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> água doce e <strong>de</strong> nutrientes (PANITZ; PORTO FILHO, 1995, p. 544).<br />
Devido à sua localização fronteiriça entre os ambientes marinho, terrestre e dulcícola e<br />
à estrutura arquitetônica <strong>de</strong> suas árvores, os manguezais funcionam como verda<strong>de</strong>iros<br />
quebra-mares contra as intempéries oceânicas, protegendo tanto a região costeira quanto<br />
a bacia <strong>de</strong> drenagem adjacente contra a erosão. Da mesma forma, ao longo dos rios, os<br />
manguezais fornecem proteção contra enchentes às áreas ribeirinhas, diminuindo a força<br />
da inundação e preservando os campos agrícolas adjacentes (LACERDA, 1984, p. 64).<br />
A vegetação <strong>de</strong> restinga e manguezal está protegida pela Constituição <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> 1988,<br />
cujo art. 225 <strong>de</strong>termina que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,<br />
bem <strong>de</strong> uso comum do povo e essencial à sadia qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, impondo-se<br />
ao Po<strong>de</strong>r Público e à coletivida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> <strong>de</strong>fendê-lo e preservá-lo para as presentes<br />
e futuras gerações” (BRASIL, 1988a). Essa proteção é complementarmente assegurada<br />
pela Lei 4.771/65 (BRASIL, 1965), que <strong>de</strong>fine a vegetação <strong>de</strong> restinga fixadora <strong>de</strong> dunas<br />
e <strong>de</strong> manguezal como <strong>de</strong> preservação permanente; pela Lei 6.938/81, que institui a<br />
Política Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1981); e pela Lei 7.661/88, instituidora do<br />
Plano Nacional <strong>de</strong> Gerenciamento Costeiro – PNGC (BRASIL, 1988b), que se preocupou<br />
com a preservação dos recursos naturais e dos principais atributos do litoral brasileiro.<br />
O CONAMA também inseriu instrumentos para proteção legal da restinga, através da<br />
Resolução 261/99 (CONAMA, 1999), e do manguezal, através da Resolução 303/02<br />
40<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
Foto 3<br />
Detalhe da ocupação antrópica da<br />
margem oeste do pontal do Capri (agosto 2003)<br />
(CONAMA, 2002). A legislação estadual, através do Decreto 14.250/81, que regulamentou<br />
a Lei 5.793 (SANTA CATARINA, 1980), também estabeleceu vedações em relação<br />
ao corte <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> vegetação natural em restingas.<br />
O pontal do Capri vem sendo <strong>de</strong>scaracterizado por dois tipos <strong>de</strong> ação antrópica:<br />
ocupação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> preservação permanente e <strong>de</strong> terras <strong>de</strong> marinha e <strong>de</strong> uso comum<br />
e realização <strong>de</strong> dragagem na laguna <strong>de</strong> Capri (Foto 3).<br />
Quanto à ocupação antrópica, constatou-se intensa urbanização sobre os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong><br />
origem praial e eólica, com presença <strong>de</strong> diversas residências pertencentes ao loteamento<br />
Balneário Capri. Junto à laguna, no setor oci<strong>de</strong>ntal do pontal, foram observados trapiches,<br />
rampas para atracação <strong>de</strong> meios flutuantes (Foto 4), jardins, cercas, muros <strong>de</strong> contenção,<br />
aterros e plantio <strong>de</strong> espécies exóticas.<br />
Próximo ao duto da PETROBRÁS, isolado no pontal, as áreas receberam tratamento<br />
paisagístico, e a vegetação <strong>de</strong> manguezal existente no local ainda está preservada.<br />
No entanto, em direção a sudoeste, constata-se que o <strong>de</strong>pósito paludial foi <strong>de</strong>scaracterizado<br />
para implantação <strong>de</strong> estruturas, com objetivo <strong>de</strong> facilitar o atracamento das embarcações.<br />
Foi causada a supressão <strong>de</strong> vegetação da área <strong>de</strong> preservação permanente (manguezal),<br />
seguida <strong>de</strong> aterro e construção <strong>de</strong> muros <strong>de</strong> arrimo. A presença <strong>de</strong>ssas estruturas<br />
impe<strong>de</strong> a regeneração <strong>de</strong>ssa vegetação e intensifica os impactos ambientais no local.<br />
Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Foto 4 Vista do atracadouro <strong>de</strong> meios flutuantes no interior da<br />
laguna <strong>de</strong> Capri (agosto 2003)<br />
A laguna <strong>de</strong> Capri vem sendo freqüentemente dragada com o objetivo <strong>de</strong> manter a<br />
profundida<strong>de</strong> do canal para uso como fun<strong>de</strong>adouro e acesso náutico. Entre 2000 e<br />
2003, foi aberto um pequeno canal no setor central do pontal, contíguo à baía da Babitonga<br />
(Foto 5). Devido às correntes <strong>de</strong> maré existentes na laguna, esse canal foi erodido,<br />
ocorrendo a conseqüente remoção do sedimento praial e eólico e a modificação da<br />
dinâmica costeira imposta pelos agentes naturais (ondas, correntes e marés).<br />
Os sedimentos provenientes da dragagem estão sendo <strong>de</strong>positados sobre áreas <strong>de</strong><br />
preservação permanente localizadas na barra da praia, entre a laguna <strong>de</strong> Capri e a baía da<br />
Babitonga, soterrando a vegetação <strong>de</strong> restinga e manguezal.<br />
Devido ao processo <strong>de</strong> erosão instalado no local e à ocupação das margens da laguna,<br />
as proprieda<strong>de</strong>s privadas po<strong>de</strong>rão sofrer com tal processo, correndo o risco do seu<br />
comprometimento.<br />
A preocupação com a integrida<strong>de</strong> e o equilíbrio ambiental das regiões costeiras <strong>de</strong>corre<br />
do fato <strong>de</strong> serem elas as mais ameaçadas do planeta. Essas regiões são alvo privilegiado<br />
da exploração <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada e predatória <strong>de</strong> recursos naturais e constituem o principal<br />
local <strong>de</strong> lazer, turismo ou moradia <strong>de</strong> massas populacionais urbanas.<br />
A população do planeta é totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos seus ecossistemas e dos serviços<br />
que eles oferecem, incluindo alimentos, água, gestão <strong>de</strong> doenças, regulação climática,<br />
satisfação espiritual e apreciação estética (MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2005).<br />
Os sistemas naturais <strong>de</strong>sempenham funções vitais e fornecem bens e serviços ao ser<br />
humano, possibilitando a continuida<strong>de</strong> e manutenção <strong>de</strong> outras espécies (CONSTANZA et<br />
al., 1997, p. 255).<br />
42<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
Foto 5<br />
Vista para sudoeste do canal aberto com intuito<br />
<strong>de</strong> facilitar o acesso e a navegação canal-baía da Babitonga,<br />
erodido pela ação antrópica (agosto <strong>de</strong> 2003)<br />
Cerca <strong>de</strong> 60% dos serviços dos ecossistemas examinados durante a Avaliação Ecossistêmica<br />
do Milênio têm sido <strong>de</strong>gradados ou utilizados <strong>de</strong> forma não sustentável, incluindo<br />
água pura, pesca <strong>de</strong> captura, purificação do ar e da água, regulação climática local e<br />
regional, ameaças naturais e epi<strong>de</strong>mias. Muitos <strong>de</strong>sses serviços <strong>de</strong>terioraram-se em conseqüência<br />
<strong>de</strong> ações voltadas para intensificar o fornecimento <strong>de</strong> outros serviços, como<br />
alimentos. Em geral, essas mediações transferem os custos da <strong>de</strong>gradação <strong>de</strong> um grupo<br />
<strong>de</strong> pessoas para outro ou repassam-nos para gerações futuras (MILLENNIUM ECOSYS-<br />
TEM ASSESSMENT, 2005).<br />
A expansão urbana, a extração <strong>de</strong> sedimentos arenosos dos <strong>de</strong>pósitos costeiros, a<br />
realização <strong>de</strong> dragagens, a disposição do lixo, o lançamento <strong>de</strong> esgotos domésticos sem<br />
tratamento e o crescimento explosivo, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado e sem planejamento ambiental do<br />
turismo têm sido apontados como os principais agentes da <strong>de</strong>scaracterização física e<br />
biológica dos ecossistemas costeiros.<br />
Conclusões<br />
A zona costeira, interface entre os ecossistemas terrestre e marinho, é responsável por<br />
ampla gama <strong>de</strong> funções ecológicas. A preservação dos ambientes <strong>de</strong>ssa zona é fundamental<br />
para a manutenção da integrida<strong>de</strong> da morfologia da costa.<br />
A situação dos ecossistemas <strong>de</strong> restinga e manguezal no estado <strong>de</strong> Santa Catarina é<br />
precária. Os referidos ecossistemas, que se distinguem como áreas <strong>de</strong> preservação per-<br />
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Geografias<br />
Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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manente e cujo uso é expressamente proibido pela legislação vigente, vêm sofrendo uma<br />
crescente <strong>de</strong>scaracterização em função da ocupação <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada.<br />
Para reverter esse processo, os municípios costeiros <strong>de</strong>vem elaborar, <strong>de</strong>ntro do seu<br />
plano diretor, um plano <strong>de</strong> uso da região litorânea que contemple a preservação <strong>de</strong>ssas<br />
áreas. Caso contrário estar-se-á correndo o risco <strong>de</strong> comprometer a própria economia<br />
dos municípios, especialmente daqueles que sobrevivem do turismo.<br />
Alguns municípios catarinenses, como Piçarras, Barra Velha e Balneário Camboriú,<br />
além do comprometimento da paisagem cênica, já apresentam sérios problemas <strong>de</strong> erosão<br />
costeira nas áreas mais urbanizadas (SANTOS, 2005, p. 319). No município <strong>de</strong> São<br />
Francisco do Sul e especialmente no pontal do Capri, esse processo ainda po<strong>de</strong> ser<br />
revertido, mediante a realização <strong>de</strong> um planejamento ambiental da área, objetivando a<br />
recuperação da área afetada.<br />
No Balneário <strong>de</strong> Capri, os impactos ambientais atuais são, em parte, resultantes do<br />
processo <strong>de</strong> ocupação recente. As áreas <strong>de</strong> restinga ora assentadas nos cordões litorâneos<br />
e parte da vegetação <strong>de</strong> manguezal localizada próximo à laguna foram os ambientes<br />
mais afetados (Tab. 1). Essa ocupação, somada às constantes dragagens da área, po<strong>de</strong>rá<br />
comprometer a evolução do pontal.<br />
As dragagens realizadas no local não passaram por um estudo técnico preliminar. O<br />
manguezal está sendo assoreado por sedimentos arenosos, favorecendo assim o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da vegetação <strong>de</strong> restinga. Esse padrão <strong>de</strong> sucessão está ocorrendo no setor<br />
voltado para a baía da Babitonga, on<strong>de</strong> parte do cordão dunário foi erodida.<br />
Tabela 1 Impactos ambientais <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m física e biológica observados no pontal do Capri<br />
Depósito/vegetação<br />
Impacto ambiental<br />
Recuperação ambiental<br />
Depósito marinho praial<br />
recoberto por vegetação <strong>de</strong><br />
restinga<br />
Depósito eólico recoberto<br />
por vegetação <strong>de</strong> restinga<br />
Depósito lagunar recoberto<br />
por vegetação <strong>de</strong> restinga e<br />
marisma<br />
Depósito paludial recoberto<br />
por vegetação <strong>de</strong> marisma e<br />
manguezal<br />
Descaracterização geológica,<br />
geomorfológica e biológica, <strong>de</strong>vido<br />
à ocupação irregular<br />
Extração <strong>de</strong> sedimentos arenosos e<br />
vegetação, <strong>de</strong>vido à dragagem do<br />
canal da laguna <strong>de</strong> Capri<br />
Assoreamento da planície lagunar,<br />
<strong>de</strong>vido à acumulação <strong>de</strong> sedimentos<br />
<strong>de</strong> origem tecnogênica<br />
Descaracterização geológica e<br />
biológica da planície <strong>de</strong> maré,<br />
<strong>de</strong>vido à <strong>de</strong>posição arenosa advinda<br />
dos sedimentos eólicos e marinhos<br />
Reor<strong>de</strong>nação do espaço e<br />
controle quanto à ocupação<br />
urbana<br />
Paralisação imediata da<br />
dragagem dos sedimentos da<br />
laguna e praia <strong>de</strong> Capri<br />
Controle da <strong>de</strong>posição <strong>de</strong><br />
aterros mecânicos sobre os<br />
sedimentos lagunares<br />
Paralisação imediata da<br />
exploração <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada dos<br />
sedimentos praiais e eólicos<br />
Como as vegetações <strong>de</strong> manguezal e <strong>de</strong> restinga não se regeneram em face da presença<br />
das ocupações, os referidos ecossistemas não conseguem se manter como valioso patrimônio<br />
genético nem cumprir sua função <strong>de</strong> servir como verda<strong>de</strong>iros quebra-mares contra<br />
as intempéries oceânicas, protegendo tanto a região costeira quanto a bacia <strong>de</strong> drenagem<br />
adjacente contra a erosão.<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
Outro fato a ser consi<strong>de</strong>rado é que na laguna <strong>de</strong> Capri aportam barcos <strong>de</strong> pescadores<br />
e velejadores <strong>de</strong> outras localida<strong>de</strong>s, que utilizam a área como atracadouro e proteção das<br />
tempesta<strong>de</strong>s. Com a retirada dos trapiches particulares, <strong>de</strong>ve ser planejado um local que<br />
cumpra essa função.<br />
Ao persistir o processo erosivo no setor central do pontal, po<strong>de</strong>rá a laguna <strong>de</strong> Capri<br />
sofrer sérias alterações na sua morfologia, granulometria e comportamento hidrodinâmico,<br />
po<strong>de</strong>ndo ela até se <strong>de</strong>sconfigurar do ponto <strong>de</strong> vista geomorfológico.<br />
Para recuperação ambiental do pontal do Capri, faz-se necessária a implementação <strong>de</strong><br />
um projeto que <strong>de</strong>termine, entre outras medidas, a paralisação da dragagem na laguna, a<br />
retirada <strong>de</strong> todas as estruturas fixas e o plantio <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> restinga e manguezal<br />
fixadoras <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósitos marinho praial, lagunar, eólico e paludial.<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
Os autores agra<strong>de</strong>cem à Procuradoria da República em Joinville (SC) a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
realização do trabalho no pontal do Capri; à Polícia Militar o sobrevôo na região; ao<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia e ao Departamento <strong>de</strong> Geociências da<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina o apoio recebido; à Secretaria <strong>de</strong> Planejamento<br />
do Governo do Estado <strong>de</strong> Santa Catarina o empréstimo das fotografias aéreas; e a Jasiel<br />
Neves, mestrando em Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina, a arte final<br />
das ilustrações.<br />
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
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Geografias<br />
Cláudia Regina dos Santos Norberto Olmiro Horn Filho ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 34-46 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos ambientais <strong>de</strong>correntes da ocupação antrópica no pontal do Capri, ilha <strong>de</strong> São Francisco do Sul, SC, Brasil
Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento<br />
das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais:<br />
o caso <strong>de</strong> mananciais <strong>de</strong> abastecimento público <strong>de</strong> Caeté/MG<br />
André Augusto Rodrigues Salgado<br />
Doutorando em Geologia – DEGEO/UFOP<br />
Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Professor Adjunto do Departamento <strong>de</strong><br />
Geografia – <strong>IGC</strong>/UFMG<br />
Resumo<br />
O presente trabalho investiga a relação entre a<br />
silvicultura <strong>de</strong> eucalipto, a intensificação <strong>de</strong><br />
processos erosivos superficiais e o aumento nas<br />
taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais em duas<br />
bacias hidrográficas no município <strong>de</strong> Caeté/MG<br />
que são ocupadas basicamente por esse tipo <strong>de</strong><br />
ativida<strong>de</strong> florestal. Para tanto, o estudo compara<br />
a qualida<strong>de</strong> das águas superficiais <strong>de</strong>ssas bacias,<br />
notadamente no que se refere às taxas <strong>de</strong><br />
turbi<strong>de</strong>z, com períodos distintos da ativida<strong>de</strong><br />
florestal – plantio, crescimento e corte da floresta<br />
– ao longo <strong>de</strong> um período <strong>de</strong> cinco anos. Os<br />
resultados obtidos indicam que, na área investigada,<br />
durante o período <strong>de</strong> corte das árvores e<br />
o período imediatamente posterior a esse corte,<br />
as taxas médias <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas monitoradas<br />
ten<strong>de</strong>m a aumentar significativamente.<br />
Tal fato <strong>de</strong>monstra que essa ativida<strong>de</strong>, da<br />
maneira como vem sendo <strong>de</strong>senvolvida na área<br />
investigada, tem contribuído para o assoreamento<br />
dos cursos fluviais locais.<br />
Abstract<br />
This paper investigates the relationship between the<br />
eucalyptus forestry and superficial erosive processes in<br />
two rivers basins in Caeté/MG. The basic methodology<br />
is the comparison between the quality of the superficial<br />
waters of these basins, especially in regard to the rates<br />
of clay transport in the rivers waters, with different<br />
periods of the forestry activity – planting, growth<br />
and cut of the forest – along a period of five years.<br />
The obtained results indicate that, in the investigated<br />
area, during the period of cut of the trees and the<br />
period immediately subsequent to this cut, the medium<br />
rates of the clay transport in the monitored waters<br />
tend to increase significantly. Such fact <strong>de</strong>monstrates<br />
that this activity, in the way it has been <strong>de</strong>veloped in<br />
the investigated area, has been contributing to the<br />
growth of sediments of the local fluvial courses.<br />
Palavras-chave eucalipto; erosão; turbi<strong>de</strong>z<br />
fluvial; Caeté.<br />
Keywords eucalyptus; erosion; fluvial<br />
turbidity; Caeté.<br />
geosalgado@yahoo.com.br<br />
magalhaesufmg@yahoo.com.br<br />
Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Geografias<br />
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Introdução<br />
Nas últimas décadas as águas ou os recursos hídricos têm atraído a atenção <strong>de</strong> políticos,<br />
especialistas e da socieda<strong>de</strong> civil em nível global, <strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>sequilíbrio na relação entre<br />
oferta e <strong>de</strong>mandas para o atendimento aos diversos usos. A noção <strong>de</strong> escassez tornou-se<br />
globalizada, mesmo em países com abundância hídrica. A disponibilida<strong>de</strong> quantitativa<br />
não significa disponibilida<strong>de</strong> qualitativa <strong>de</strong> água (escassez relativa). Alguns pesquisadores<br />
consi<strong>de</strong>ram os recursos hídricos como os recursos estratégicos do século XXI (PÔSSA,<br />
1994), já que a água é um recurso vital, insubstituível e necessário para as ativida<strong>de</strong>s<br />
econômicas e, por conseqüência, para a sustentação dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e<br />
modos <strong>de</strong> produção.<br />
No entanto, a socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna tem elevado <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scontrolada suas <strong>de</strong>mandas<br />
hídricas, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>grada rápida e intensamente a qualida<strong>de</strong> das<br />
águas superficiais e subterrâneas. Como conseqüência, não são raros os locais, regiões e<br />
países em que as necessida<strong>de</strong>s humanas superam a oferta e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renovação<br />
dos estoques hídricos (LAMBERT, 1996). A noção da água como um bem renovável e<br />
infinito tem sido, nesse contexto, substituída pela noção da água como um bem finito<br />
em quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong>, ainda que os volumes <strong>de</strong> água do ciclo hidrológico não<br />
sejam alterados em nível global.<br />
Mesmo consi<strong>de</strong>rando as diferenças no tratamento da questão hídrica em níveis político,<br />
econômico e social no planeta, bem como as diferenças <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> hídrica, as<br />
águas constituem-se em uma preocupação global, até em áreas caracterizadas por condições<br />
climáticas tropicais úmidas, como <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Mesmo sob clima tropical úmido,<br />
séculos <strong>de</strong> apropriação in<strong>de</strong>vida dos recursos hídricos refletiram-se em <strong>de</strong>gradação e<br />
rarefação <strong>de</strong> água para o atendimento das <strong>de</strong>mandas crescentes. Na atual realida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
busca <strong>de</strong> soluções preventivas para os problemas <strong>de</strong> poluição hídrica e utilização racional<br />
da água torna-se importante o planejamento do uso e da ocupação do solo, bem<br />
como o estudo dos impactos das ativida<strong>de</strong>s humanas sobre o meio.<br />
Entre as ativida<strong>de</strong>s potencialmente <strong>de</strong>gradadoras dos recursos hídricos está a silvicultura<br />
<strong>de</strong> eucalipto. O Brasil é um dos países com maiores extensões <strong>de</strong> eucalipto plantado.<br />
O eucalipto possui a peculiarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> provocar calorosos <strong>de</strong>bates e discussões a respeito<br />
<strong>de</strong> seus impactos sobre a biodiversida<strong>de</strong> e a disponibilida<strong>de</strong> hídrica (consumo <strong>de</strong> água<br />
durante o processo <strong>de</strong> crescimento). Porém, os questionamentos sobre os seus impactos<br />
na qualida<strong>de</strong> das águas são menos freqüentes, e suas relações com taxas <strong>de</strong> erosão acelerada,<br />
subestimadas.<br />
Este trabalho objetivou analisar as relações entre a silvicultura do eucalipto e seus impactos<br />
na alteração dos processos erosivos superficiais e nos níveis <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas<br />
<strong>de</strong> trechos fluviais, adotando o estudo <strong>de</strong> caso <strong>de</strong> dois mananciais para abastecimento<br />
público <strong>de</strong> água da se<strong>de</strong> do município <strong>de</strong> Caeté, Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Foram enfocadas as áreas <strong>de</strong> contribuição hídrica <strong>de</strong>sses mananciais,<br />
correspon<strong>de</strong>ndo às microbacias dos altos cursos do ribeirão Bonito e do córrego Santo<br />
Antônio. O parâmetro adotado para a verificação <strong>de</strong>ssas relações, a turbi<strong>de</strong>z das águas,<br />
tem relação direta com o processo <strong>de</strong> erosão superficial nas encostas e o conseqüente<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais
assoreamento dos cursos d’água. Foi analisado o período entre 1995 e 1999. Os estudos locais<br />
iniciaram-se em 1998, por meio <strong>de</strong> convênios entre o Serviço Autônomo <strong>de</strong> Água e Esgoto<br />
(SAAE) <strong>de</strong> Caeté e o Instituto <strong>de</strong> Geociências (<strong>IGC</strong>) da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong><br />
(UFMG). As pesquisas po<strong>de</strong>m fornecer subsídios para ações dos órgãos públicos do<br />
município no que se refere à proteção dos recursos hídricos superficiais locais, visto<br />
terem estes se tornado escassos em quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> nas últimas décadas.<br />
Caracterização ambiental do município <strong>de</strong> Caeté/MG<br />
Caeté é um dos municípios que compõem a Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte/<br />
MG (Fig. 1). Localiza-se no extremo leste <strong>de</strong>ssa região, a 56 km da capital, a esta ligandose<br />
por rodovia pavimentada. Situa-se na borda norte do Quadrilátero Ferrífero,<br />
apresentando as três principais séries litológicas do domínio: (i) embasamento granítico<br />
gnáissico; (ii) série Rio das Velhas (predomínio <strong>de</strong> xistos); e (iii) série <strong>Minas</strong> (predomínio<br />
<strong>de</strong> quartzitos, itabiritos e filitos). Seu relevo é extremamente movimentado, constituindo<br />
basicamente uma <strong>de</strong>pressão <strong>de</strong> relevo ondulado com altitu<strong>de</strong>s médias <strong>de</strong> 900 metros,<br />
cercada por duas serras alongadas no sentido leste/oeste: (i) Serra do Gandarela, ao sul,<br />
localmente <strong>de</strong>nominada Serra do Gongo Soco, com cristas alcançando mais <strong>de</strong> 1.500<br />
metros; e (ii) Serra da Pieda<strong>de</strong>, ao norte, on<strong>de</strong> se localiza o ponto culminante do município<br />
– Pico da Serra da Pieda<strong>de</strong>, com 1.746 metros <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>. As zonas mais elevadas do<br />
município estão moldadas sobre as rochas da série <strong>Minas</strong>, enquanto o embasamento<br />
cristalino aflora nas áreas rebaixadas, notadamente na porção central do município, on<strong>de</strong><br />
se localiza sua se<strong>de</strong>.<br />
O clima local po<strong>de</strong> ser caracterizado como tropical semi-úmido afetado pela altitu<strong>de</strong>,<br />
com verões úmidos e invernos secos. As temperaturas médias anuais ficam em torno <strong>de</strong><br />
20°C nas partes menos elevadas do município, sendo que, nessas mesmas áreas, as médias<br />
mensais nunca são inferiores a 12°C. A pluviosida<strong>de</strong> média anual é <strong>de</strong> 1.287 mm (SAAE,<br />
1997), e a insolação é <strong>de</strong> 2.400 horas anuais junto à Serra da Pieda<strong>de</strong>, limite norte do<br />
município (BUENO, 1992).<br />
Caeté/MG está completamente inserida na alta bacia do Rio das Velhas. De modo<br />
geral, seus cursos fluviais possuem suas cabeceiras nas serras do Gandarela ou da Pieda<strong>de</strong><br />
e escoam em direção ao interior da <strong>de</strong>pressão localizada na porção central do município.<br />
Dentre esses cursos fluviais dois se <strong>de</strong>stacam: o ribeirão Vermelho, a leste, e o rio<br />
Caeté, a oeste. O primeiro nasce na Serra do Gandarela e tem por afluente principal o<br />
ribeirão Bonito. Segue na direção noroeste, contornando a Serra da Pieda<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>ságua<br />
no Rio das Velhas, em área externa ao Quadrilátero Ferrífero. Já o rio Caeté, que também<br />
nasce na Serra do Gandarela, segue na direção oeste. Esse curso fluvial, ao <strong>de</strong>ixar o<br />
município <strong>de</strong> Caeté, é rebatizado com o nome <strong>de</strong> rio Sabará e constitui-se como o<br />
principal afluente do Rio das Velhas no interior do Quadrilátero Ferrífero.<br />
A vegetação local original varia <strong>de</strong> acordo com a altitu<strong>de</strong>, sendo possível <strong>de</strong>limitar na<br />
área investigada três compartimentos fitogeográficos: (i) ambiente florestal nas áreas<br />
<strong>de</strong>primidas; (ii) ambiente <strong>de</strong> transição <strong>de</strong> médias altitu<strong>de</strong>s, caracterizado por florestas <strong>de</strong><br />
can<strong>de</strong>ias; e (iii) campo rupestre do topo da serra, especialmente junto às crostas lateríticas<br />
Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Figura 1<br />
Mapa <strong>de</strong> localização <strong>de</strong> Caeté/MG<br />
que constituem o substrato da Serra da Pieda<strong>de</strong> (BRAGA; GRANDI, 1992). A fauna é<br />
composta por animais típicos da mata tropical úmida e do cerrado, como tatus, pacas,<br />
tamanduás e, embora raros, até queixadas, lobos-guarás, suçuaranas e onças-pintadas.<br />
Entretanto, a ativida<strong>de</strong> antrópica alterou e removeu <strong>de</strong> forma significativa a vegetação<br />
original. Caeté constitui um dos municípios mais antigos <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> – foi <strong>de</strong>clarada<br />
vila em 1714 – e é uma das cida<strong>de</strong>s do ciclo histórico do ouro. Essa ocupação antiga fez<br />
com que, principalmente na área <strong>de</strong>primida do município, a vegetação florestal fosse<br />
<strong>de</strong>smatada para a ocupação do núcleo urbano e para as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mineração e agropecuária.<br />
Mais recentemente, a partir dos anos 70, a silvicultura <strong>de</strong> eucalipto proliferou<br />
no município.<br />
Caracterização das bacias hidrográficas investigadas<br />
A presente pesquisa investigou trechos <strong>de</strong> duas bacias hidrográficas que, juntas, são<br />
responsáveis, segundo o SAAE (1997), por cerca <strong>de</strong> 75% do sistema público <strong>de</strong><br />
abastecimento <strong>de</strong> água <strong>de</strong> Caeté (Fig. 2): (i) alta bacia do ribeirão Ribeiro Bonito; e (ii)<br />
alta bacia do córrego Santo Antônio. Essas duas bacias têm a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas águas<br />
monitorada pelo SAAE e possuem a silvicultura <strong>de</strong> eucalipto como um dos principais<br />
tipos <strong>de</strong> uso e ocupação do solo (Fig. 3 e 4). Tal fato permite relacionar a dinâmica da<br />
ativida<strong>de</strong> florestal com as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas monitoradas.<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais
Figura 2<br />
Mapa <strong>de</strong> localização das bacias hidrográficas estudadas em Caeté/MG<br />
Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Geografias<br />
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Figura 3<br />
Uso e ocupação do solo da bacia do alto ribeirão Bonito<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais
Figura 4<br />
Uso e ocupação do solo da bacia do alto córrego Santo Antônio<br />
A alta bacia do ribeirão Bonito possui uma área <strong>de</strong> 51,57 km 2 e apresenta-se como o<br />
principal manancial do município em volume <strong>de</strong> água. Entretanto, constitui-se também<br />
no manancial com pior qualida<strong>de</strong> da água (SAAE, 1997; SALGADO; VALADÃO, 2002).<br />
Localiza-se a su<strong>de</strong>ste da se<strong>de</strong> municipal, possuindo suas nascentes junto à Serra do Gongo<br />
Soco e fluindo para o interior da área <strong>de</strong>primida. É afluente do ribeirão Vermelho<br />
que, por sua vez, <strong>de</strong>ságua no Rio das Velhas. A sua vegetação original foi quase que<br />
completamente substituída (ALVES, 2001). A bacia é marcada por florestas <strong>de</strong> eucalipto,<br />
pastagens, um pequeno núcleo urbano com 280 moradores (povoado <strong>de</strong> Rancho Novo)<br />
e áreas <strong>de</strong>dicadas à horticultura (Fig. 3).<br />
Já a alta bacia do córrego Santo Antônio possui apenas 5,31 km 2 , localizando-se inteiramente<br />
nas escarpas da Serra da Pieda<strong>de</strong> (SALGADO et al., 2004). Possui os cursos<br />
fluviais com a melhor qualida<strong>de</strong> das águas <strong>de</strong>ntre as bacias estudadas (SAAE, 1997; SAL-<br />
GADO; VALADÃO, 2003). Sua área está ocupada, na porção mais a montante, por vegetação<br />
nativa – campos rupestres, matas <strong>de</strong> can<strong>de</strong>ias e formações florestais heterogêneas<br />
– e, no baixo curso, por eucaliptais (Fig. 4).<br />
No que concerne à silvicultura <strong>de</strong> eucalipto vale ressaltar que, nas duas bacias investigadas,<br />
as florestas homogêneas a ela <strong>de</strong>dicadas se esten<strong>de</strong>m até a beira dos cursos fluviais.<br />
Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Tal fato se <strong>de</strong>ve à sua antigüida<strong>de</strong>, sendo elas anteriores às leis ambientais mais rigorosas<br />
que hoje em dia protegem a mata ciliar. Entretanto, o método <strong>de</strong> corte prevê a permanência<br />
dos eucaliptais nas áreas <strong>de</strong> mata ciliar, ou seja, atualmente, no período <strong>de</strong> corte<br />
da ma<strong>de</strong>ira, embora as vertentes tenham sua cobertura vegetal completamente retirada,<br />
as áreas <strong>de</strong> mata ciliar são preservadas, mesmo que não sejam compostas por espécies<br />
nativas e sim, por eucaliptais.<br />
Procedimentos metodológicos<br />
Os procedimentos metodológicos da presente pesquisa basearam-se na análise integrada<br />
<strong>de</strong>: (i) taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z da água dos principais canais fluviais que drenam as bacias<br />
investigadas; (ii) índices pluviométricos do período estudado; e (iii) períodos <strong>de</strong> produção<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira dos eucaliptais – plantio, crescimento e corte das árvores.<br />
As taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z foram obtidas junto ao SAAE, que possui em seus registros um<br />
histórico, com medições <strong>de</strong> hora em hora, <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> dados para cada um<br />
dos sistemas fluviais monitorados. As duas bacias foram analisadas em conjunto, visto<br />
que os dados <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z foram coletados na Estação <strong>de</strong> Tratamento <strong>de</strong> Água (ETA)<br />
Vila das Flores, que não distingue a origem das águas captadas. Essa ETA respon<strong>de</strong> por<br />
75% da produção <strong>de</strong> água tratada do município e é nela que o SAAE monitora a qualida<strong>de</strong><br />
da água bruta captada no município. Para a síntese dos dados, as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z<br />
foram apresentadas sob forma <strong>de</strong> médias mensais, as quais foram relacionadas às médias<br />
mensais <strong>de</strong> pluviosida<strong>de</strong> da Estação Meteorológica do Aeroporto da Pampulha, em Belo<br />
Horizonte, estação mais próxima da área investigada. O SAAE também forneceu informações<br />
sobre os períodos <strong>de</strong> produção dos eucaliptais presentes nas áreas estudadas.<br />
O período escolhido para a pesquisa foi janeiro <strong>de</strong> 1995 a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1999, período<br />
este em que as áreas estudadas sofreram, à exceção do corte do eucalipto, pequena<br />
interferência antrópica. Anteriormente a 1995, a bacia do ribeirão Ribeiro Bonito foi<br />
palco <strong>de</strong> obras junto à re<strong>de</strong> ferroviária que a atravessa, em seu extremo sul; e, após 1999,<br />
as bacias da Serra da Pieda<strong>de</strong> – Dantas e Enjeitado – sofreram interferência antrópica<br />
significativa em função da construção <strong>de</strong> uma nova estrada <strong>de</strong> acesso ao Santuário <strong>de</strong><br />
Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong>.<br />
Resultados<br />
Os resultados obtidos indicam uma clara relação entre a dinâmica <strong>de</strong> produção dos<br />
eucaliptais e a taxa <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas investigadas. Nas áreas em questão o período<br />
<strong>de</strong> corte da ma<strong>de</strong>ira ocorreu entre março <strong>de</strong> 1994 e outubro <strong>de</strong> 1995, período que<br />
correspon<strong>de</strong> quase inteiramente aos meses <strong>de</strong> estiagem. A quase ausência <strong>de</strong> focos <strong>de</strong><br />
erosão em sulcos na área estudada confirma o fato <strong>de</strong> a turbi<strong>de</strong>z das águas resultar <strong>de</strong><br />
erosão laminar acelerada, cuja ocorrência difusa e, muitas vezes, pouco visível não <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> ser potencialmente grave em termos <strong>de</strong> perdas <strong>de</strong> solo, <strong>de</strong>sequilíbrio da dinâmica<br />
hidrológica e assoreamento <strong>de</strong> canais fluviais.<br />
Entre 1995 e 1997, as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z apresentaram-se altas, principalmente durante<br />
os meses mais chuvosos (Fig. 5). Esse fato <strong>de</strong>monstra que, durante o período subseqüente<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais
ao corte da ma<strong>de</strong>ira, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sedimentos a alcançar os cursos fluviais permaneceu<br />
elevada. Essas taxas, que se reduziram após janeiro <strong>de</strong> 1997, permaneceram baixas<br />
no verão <strong>de</strong> 1998 e 1999, mesmo diante da alta pluviosida<strong>de</strong> dos meses mais chuvosos<br />
(Fig. 5). Logo, analisando as taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas investigadas, é possível, temporalmente,<br />
verificar dois comportamentos <strong>de</strong>nudatórios diferentes nas bacias estudadas<br />
(Fig. 5): (i) elevada erosão laminar entre janeiro <strong>de</strong> 1995 e julho <strong>de</strong> 1997; (ii) baixas taxas<br />
<strong>de</strong> erosão após julho <strong>de</strong> 1997.<br />
Os dados apresentados permitem ilustrar a forte relação entre a intensida<strong>de</strong> da pluviosida<strong>de</strong><br />
e a erosão laminar nas áreas estudadas. Focos <strong>de</strong> erosão acelerada em sulcos são<br />
raramente observados. Durante os meses úmidos do ano, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sedimentos<br />
carreados para os cursos fluviais é significativa, aumentando-lhes claramente a turbi<strong>de</strong>z<br />
(Fig. 5). Quando retirada a cobertura florestal, os solos ficam expostos aos processos<br />
erosivos, inclusive em florestas comerciais <strong>de</strong> espécies como o eucalipto. No entanto,<br />
como essa espécie é <strong>de</strong> rápido crescimento, a erosão acelerada continua tendo um papel<br />
importante na remoção <strong>de</strong> sedimentos durante cerca <strong>de</strong> dois anos após o corte da ma<strong>de</strong>ira.<br />
O período subseqüente é caracterizado por baixas taxas <strong>de</strong> erosão laminar. Porém,<br />
como os eucaliptais são cortados em períodos <strong>de</strong> seis ou sete anos, po<strong>de</strong>-se afirmar que<br />
as áreas ocupadas com silvicultura <strong>de</strong> eucalipto em Caeté possuem um ciclo <strong>de</strong> dois anos<br />
<strong>de</strong> intensa erosão laminar, seguidos por ciclos <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> quatro anos <strong>de</strong> taxas equilibradas<br />
<strong>de</strong> erosão.<br />
Naqueles dois anos <strong>de</strong> erosão intensa, os cursos d’água po<strong>de</strong>m sofrer impactos na<br />
dinâmica hidrológica <strong>de</strong>rivados do aumento da carga sedimentar que po<strong>de</strong>m tornar-se<br />
irreversíveis a partir <strong>de</strong> um certo tempo. A erosão laminar remove principalmente sedi-<br />
Figura 5<br />
Gráfico <strong>de</strong> relação entre turbi<strong>de</strong>z e pluviosida<strong>de</strong><br />
para janeiro <strong>de</strong> 1995 a <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1999<br />
Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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mentos finos (textura areia, silte e argila), os quais são transportados fundamentalmente<br />
em suspensão. Entretanto, o aumento <strong>de</strong> sólidos em suspensão aumenta também a turbulência<br />
das águas e a ruptura do equilíbrio das células hídricas convectivas que fazem<br />
parte da dinâmica própria dos canais. Por outro lado, parte da carga sedimentar em<br />
suspensão passa, sob condições <strong>de</strong> baixa energia, a ser <strong>de</strong>positada e a contribuir para a<br />
formação e o crescimento <strong>de</strong> barras <strong>de</strong> canal que marcarão o processo <strong>de</strong> assoreamento.<br />
Na realida<strong>de</strong> brasileira atual, diversos cursos d’água vêm sofrendo processos <strong>de</strong> assoreamento<br />
que têm levado a mudanças nos padrões fluviais. Canais tipicamente meandrantes<br />
passam, com a intensida<strong>de</strong> dos impactos, a apresentar padrão e comportamento<br />
hidrológicos que ten<strong>de</strong>m ao entrelaçado, inclusive na região estudada (MAGALHÃES JÚ-<br />
NIOR, 1994).<br />
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Os resultados comprovaram que o eucalipto, na forma em que é cultivado e explorado<br />
em Caeté, contribui diretamente para a aceleração <strong>de</strong> processos erosivos nas encostas<br />
(erosão laminar) e para a <strong>de</strong>gradação da qualida<strong>de</strong> da água naquele município.<br />
As florestas homogêneas <strong>de</strong> eucalipto, apesar <strong>de</strong> sua importância econômica, precisam<br />
ser monitoradas a fim <strong>de</strong> se controlar a perda <strong>de</strong> solos por erosão acelerada. Muitas<br />
vezes vistas como eficientes coberturas vegetais, fato <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> sua homogeneida<strong>de</strong> e<br />
<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cobertura, as florestas <strong>de</strong> eucalipto nem sempre apresentam a<strong>de</strong>quada proteção<br />
do solo, pois as taxas <strong>de</strong> erosão variam durante os ciclos <strong>de</strong> plantio e crescimento.<br />
A manutenção apenas da mata ciliar no período <strong>de</strong> corte da ma<strong>de</strong>ira mostra-se ineficiente<br />
para o controle dos processos erosivos na área investigada.<br />
A remoção da cobertura vegetal e da cobertura morta (liteira) tem efeitos diretos na<br />
erosão laminar e mesmo no surgimento <strong>de</strong> sulcos erosivos que po<strong>de</strong>m levar ao aumento<br />
da turbi<strong>de</strong>z e ao assoreamento <strong>de</strong> cursos d’água. Deve-se pon<strong>de</strong>rar, entretanto, que fora<br />
do período <strong>de</strong> corte do eucalipto no município, a silvicultura tem sido a ativida<strong>de</strong> econômica<br />
menos impactante sobre os cursos d’água locais, consi<strong>de</strong>rando-se os processos<br />
<strong>de</strong> poluição e assoreamento (SALGADO; VALADÃO, 2002, 2003; SALGADO; VALADÃO;<br />
NEEF, 2003). Tal fato indica que essa ativida<strong>de</strong> econômica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que feita com técnicas<br />
a<strong>de</strong>quadas como, por exemplo, a preservação parcial da floresta no período <strong>de</strong> corte,<br />
constitui, em termos <strong>de</strong> erosão <strong>de</strong> solos nas condições investigadas, uma alternativa econômica<br />
para o município.<br />
Como ficou claro nos objetivos do trabalho, não se preten<strong>de</strong>u abordar outros possíveis<br />
impactos ambientais <strong>de</strong>rivados da silvicultura do eucalipto, mas os estudos realizados<br />
po<strong>de</strong>m contribuir para a integração <strong>de</strong> informações no sentido <strong>de</strong> alertar o po<strong>de</strong>r<br />
público e a socieda<strong>de</strong> civil sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão e pon<strong>de</strong>ração no fomento e<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas, cujos impactos ambientais não po<strong>de</strong>m ser<br />
analisados isoladamente. Questões relativas aos eucaliptais, como a redução da biodiversida<strong>de</strong><br />
e o <strong>de</strong>sequilíbrio na dinâmica hidrológica <strong>de</strong> encostas, têm sido significativamente<br />
discutidas no meio acadêmico/científico, mas estudos sobre seus impactos no <strong>de</strong>sequilíbrio<br />
das taxas <strong>de</strong> erosão ainda são raros.<br />
56<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Impactos da silvicultura <strong>de</strong> eucalipto no aumento das taxas <strong>de</strong> turbi<strong>de</strong>z das águas fluviais
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
Ao SAAE <strong>de</strong> Caeté, em especial aos seus diretores Bernardo Mourão Vorcaro e Benedito<br />
Eufrásio <strong>de</strong> Castro e à técnica-química Raimunda Cecília dos Reis.<br />
À Profa. Dra. Magda Luzimar <strong>de</strong> Abreu e ao Aeroporto da Pampulha pelos dados<br />
pluviométricos.<br />
Ao mestrando Alexandre Abreu pela confecção dos mapas.<br />
Referências<br />
ALVES, E. E. Análise dos<br />
impactos ambientais gerados<br />
pelo uso e ocupação do solo na<br />
qualida<strong>de</strong> dos recursos hídricos<br />
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LAMBERT, R. Geographie du<br />
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1996. 435 p.<br />
MAGALHÃES JÚNIOR, A. P.<br />
Impactos ambientais em<br />
sistemas fluviais: a<br />
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Velhas na Região <strong>de</strong> Belo<br />
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Horizonte, n. 7, p. 5-11, 1994.<br />
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2002. 67 p.<br />
SALGADO, A. A. R;<br />
VALADÃO, R. C. Diagnóstico<br />
ambiental, zoneamento<br />
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Águas Serra da Pieda<strong>de</strong>:<br />
relatório técnico. Belo<br />
Horizonte: <strong>IGC</strong>/UFMG,<br />
2003. 38 p.<br />
SALGADO, A. A. R;<br />
VALADÃO, R. C; NEEF, H.<br />
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MG. <strong>Revista</strong> Geo UERJ, Rio<br />
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SALGADO, A. A. R. et al.<br />
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ocupação do solo e<br />
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Faces, Itabira, n. 5, 2004.<br />
No prelo.<br />
Belo Horizonte 02(1) 47-57 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
André Augusto Rodrigues Salgado Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
57
Simone Raquel Batista Ferreira<br />
Geógrafa e Doutoranda em Geografia pela UFF-Niterói<br />
Brejo dos Crioulos: saberes<br />
tradicionais e afirmação do território 1<br />
1<br />
Este artigo originou-se do Relatório <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>limitação da comunida<strong>de</strong><br />
remanescente <strong>de</strong> quilombos <strong>de</strong> Brejo dos<br />
Crioulos, produzido através <strong>de</strong> convênio<br />
entre a Fundação Cultural Palmares/MinC<br />
e o PNUD, em 2004.<br />
Resumo<br />
Este artigo tem como objetivo apresentar a<br />
comunida<strong>de</strong> negra e camponesa <strong>de</strong> Brejo dos<br />
Crioulos em seu ambiente e saberes. Situada na<br />
“Mata da Jaíba”, no sertão Norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong><br />
<strong>Gerais</strong>, espaço ritmado pelas cheias e vazantes,<br />
esta comunida<strong>de</strong> construiu saberes diversos a<br />
partir dos usos que fazia do meio. Passou a<br />
vivenciar um processo <strong>de</strong> expropriação trazido<br />
pela “Divisão <strong>de</strong> 1930” e continuado na década<br />
<strong>de</strong> 1940, com a chegada <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> gado<br />
e projetos governamentais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
No momento atual, Brejo dos Crioulos é<br />
reconhecida como “comunida<strong>de</strong> remanescente<br />
<strong>de</strong> quilombos” e adquire o direito ao território.<br />
Produzir a visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus saberes constitui<br />
mais um elemento na afirmação <strong>de</strong>ste direito.<br />
Abstract<br />
This article has as objective to present the black<br />
peasant’s community of the Brejo dos Crioulos in your<br />
environment and wisdoms. Situated in “Mata da Jaíba”,<br />
in hinterland north of <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, space in the<br />
rhythm for the floods and low damps grounds, this<br />
community constructed diverse wisdoms <strong>de</strong>rived from<br />
the uses that ma<strong>de</strong> of the environment. It started to<br />
live <strong>de</strong>eply a expropriates’ process brought for “Divisão<br />
<strong>de</strong> 1930” and continued in <strong>de</strong>ca<strong>de</strong> of 1940, with the<br />
arrival of cattle farmers and <strong>de</strong>velopment governmental<br />
projects. At the current moment, Brejo dos Crioulos is<br />
recognized as “community remaining of quilombos”<br />
and acquires the right of conquer again the territory.<br />
To produce the visibility of its wisdoms constitute<br />
plus an element in affirmation of this right.<br />
sibatista@hotmail.com<br />
Palavras-chave campesinato negro; saberes<br />
tradicionais; quilombo; território.<br />
Keywords black peasant; traditional wisdom;<br />
“quilombo”; territory.<br />
58<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
Entre histórias e causos<br />
Causo é causo; a história não é causo certo, ouviu dizer.<br />
(Seu Canuto, 78 anos, morador do núcleo <strong>de</strong> Furado Mo<strong>de</strong>sto)<br />
Brejo dos Crioulos é uma comunida<strong>de</strong> negra camponesa do sertão norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>,<br />
situada às margens do Arapuim, afluente do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, que por sua vez se encontra<br />
à margem direita do Médio São Francisco. Atualmente, a comunida<strong>de</strong> é reconhecida<br />
como “remanescente <strong>de</strong> quilombos” e, como tal, adquire o direito <strong>de</strong> reapropriação <strong>de</strong><br />
seu território. 2 Resgatar seus “causos” e saberes tradicionais, elaborados na relação direta<br />
com a natureza, torna-se fundamental para a afirmação <strong>de</strong>sse território.<br />
Segundo João Batista da Costa (1999), as matas do vale do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> abrigavam<br />
um campo negro, ou seja, um conjunto <strong>de</strong> agrupamentos negros “aquilombados”<br />
nas margens <strong>de</strong> lagoas e rios <strong>de</strong>sse vale e que ali se instalaram por meio <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />
reprodução social alternativas ao sistema escravocrata. Nesse sentido, esse espaço apropriado<br />
para a reprodução da existência material, simbólica e afetiva <strong>de</strong>sses grupos configurava<br />
um território.<br />
Regionalmente, essas matas eram <strong>de</strong>nominadas “Mata da Jaíba” e apresentavam condições<br />
propícias ao aquilombamento <strong>de</strong>ssa população negra – a “invisibilida<strong>de</strong>” permanente<br />
<strong>de</strong> um lugar marginal aos interesses econômicos da Coroa e as condições ambientais<br />
favoráveis à incidência da malária, das quais se teve notícia em fins do século XVII,<br />
com o início da <strong>de</strong>marcação territorial da Coroa Portuguesa e das repressões a essa<br />
população, juntamente com a escravização <strong>de</strong> indígenas. Essa memória <strong>de</strong> “terra dos<br />
tapuia” está presente nos relatos <strong>de</strong> alguns moradores mais antigos <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos,<br />
sendo reforçada pelas peças <strong>de</strong> barro ali encontradas.<br />
Conta-se que muitos dos que chegaram em Brejo dos Crioulos vieram da região <strong>de</strong><br />
Gorutuba, mais ao norte, à margem direita do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, fugindo dos períodos<br />
<strong>de</strong> seca e fome. Nas suas origens, a sustentação da vida girava ao redor das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
subsistência das roças, guiadas pelos períodos das águas e do rebaixamento <strong>de</strong>las –<br />
arroz, milho, feijão, cana, mandioca e algodão –, da criação extensiva <strong>de</strong> animais, da<br />
pesca nas lagoas e ribeirão, da caça nas matas, além da produção <strong>de</strong> rapadura, cachaça,<br />
farinha <strong>de</strong> milho e <strong>de</strong> mandioca e tecidos. O médio vale do Arapuim apresentava-lhes<br />
condições para ali se estabelecerem: a garantia <strong>de</strong> água do rio e lagoas, as matas, a ausência<br />
<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> privada da terra e o isolamento garantido pela malária ou “sezão”,<br />
que “o negro sentia, mas <strong>de</strong>la não morria” (Francisco Cor<strong>de</strong>iro Barbosa, 38 anos, morador<br />
do núcleo <strong>de</strong> Araruba).<br />
As famílias estabeleciam-se no entorno do vale do Arapuim, on<strong>de</strong> as terras eram mais<br />
férteis. A conformação do território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos obe<strong>de</strong>ceu a essa lógica da<br />
fertilida<strong>de</strong> da terra e produtivida<strong>de</strong>. Conta-se que a produtivida<strong>de</strong> ao redor do vale era<br />
tanta, que sobrava gran<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>nte para ser comercializado.<br />
A terra era “solta”, ou seja, não era proprieda<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> ninguém. Seu Joaquim<br />
Pereira Lima, <strong>de</strong> 70 anos, conta que, “<strong>de</strong> primeiro, tinha que respeitar a frente e o fundo da<br />
2<br />
No artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais<br />
Transitórias (ADCT), a Constituição<br />
Brasileira <strong>de</strong> 1988 reconheceu aos “remanescentes<br />
das comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> quilombos” a<br />
“proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva” das terras que estejam<br />
ocupando. Até 2003, cabia à Fundação<br />
Cultural Palmares a tarefa <strong>de</strong> reconhecimento,<br />
i<strong>de</strong>ntificação e <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong>ssas terras<br />
por meio <strong>de</strong> estudos técnicos. O Decreto 4.887,<br />
<strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2003, <strong>de</strong>terminou que<br />
a caracterização dos “remanescentes <strong>de</strong><br />
quilombos” fosse atestada mediante a<br />
auto<strong>de</strong>finição da própria comunida<strong>de</strong> e transferiu<br />
a tarefa <strong>de</strong> reconhecimento, i<strong>de</strong>ntificação,<br />
<strong>de</strong>limitação, <strong>de</strong>marcação e titulação das<br />
terras ao Instituto Nacional <strong>de</strong> Colonização e<br />
Reforma Agrária (INCRA).<br />
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Simone Raquel Batista Ferreira<br />
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terra [o ribeirão e a cabeceira]; não tinha esse negócio <strong>de</strong> comprar terra: era apossamento”.<br />
Segundo Alfredo Wagner B. Almeida (1987, p. 44), esse tipo <strong>de</strong> apropriação da terra configura<br />
a posse comum, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>lineiam domínios<br />
que não pertencem individualmente a nenhum grupo familiar e que são vitais para a sobrevivência<br />
do conjunto <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s familiares, tais como: cocais, babaçuais, fontes d’água, igarapés, pastagens<br />
naturais e reservas <strong>de</strong> mata, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os camponeses retiram palha, talos, lenha para combustível,<br />
ma<strong>de</strong>iras para construções, murtas e outras espécies vegetais utilizadas em cerimônias religiosas<br />
ou <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s medicinais reconhecidas.<br />
A partir da década <strong>de</strong> 1930, uma nova lógica <strong>de</strong> valorização da terra passou a ser imposta,<br />
sob aval e incentivo do Estado. A “Divisão <strong>de</strong> 1930” constitui um marco temporal<br />
entre os tempos da “terra solta” e os tempos da terra-mercadoria. Instituindo a mudança<br />
na forma <strong>de</strong> valorização da terra – <strong>de</strong> terra comunal, <strong>de</strong> reprodução da vida, para proprieda<strong>de</strong><br />
privada, <strong>de</strong>marcada pelas cercas particulares –, a Divisão concretizou o início do<br />
processo <strong>de</strong> expropriações que o território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos passou a sofrer.<br />
Segundo alguns moradores mais antigos, em Brejo dos Crioulos era tudo “terra <strong>de</strong><br />
ausência” e “não tinha esse negócio <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iro nem cerca”: “Era em comum, todo<br />
mundo vivia tranqüilo”. Depois, vieram os “agrimensores” <strong>de</strong> fora, que viram todas as<br />
terras sem dono e sem documento e disseram para os moradores que eles tinham <strong>de</strong><br />
comprá-las, ter um documento <strong>de</strong>las, porque senão po<strong>de</strong>riam perdê-las: “para quem<br />
não acompanhasse a Divisão, viria o tempo <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>spejado da localida<strong>de</strong>”. Assim,<br />
aqueles que eram os “donos” da terra através da apropriação e do uso passaram a ter <strong>de</strong><br />
pagar por ela aos que chegavam com o olhar <strong>de</strong> mercado.<br />
Nesse momento, iniciava-se a divisão da terra <strong>de</strong> uso comum em proprieda<strong>de</strong>s particulares:<br />
no município <strong>de</strong> Varzelândia, o agrimensor era Augusto <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, e toda a<br />
terra da comunida<strong>de</strong> ao norte do Arapuim foi <strong>de</strong>nominada Fazenda Arapuá; no município<br />
<strong>de</strong> São João da Ponte, o agrimensor era Juca Miro, e as terras ao sul do Arapuim<br />
foram <strong>de</strong>nominadas Fazenda Morro Preto. Os agrimensores punham os marcos na terra<br />
– como o Marco do Cedro, que passou a ser referência da <strong>de</strong>marcação da cabeceira das<br />
terras no município <strong>de</strong> Varzelândia, e o Marco do Vaquetão, na cabeceira das terras no<br />
município <strong>de</strong> São João da Ponte – e, no Cartório <strong>de</strong> Brasília <strong>de</strong> <strong>Minas</strong>, faziam o documento.<br />
Os moradores <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos que tinham algum recurso “acompanharam<br />
a Divisão” das terras em troca do pagamento em boi, arroz etc. A partir daí, transformaram-se<br />
em novos proprietários particulares das terras <strong>de</strong>marcadas, que chegavam<br />
a 40 alqueires (cada um medindo 80 hectares). Os que não possuíam recursos ficavam<br />
nas então “terras <strong>de</strong> ausência”, aquelas que não tinham dono.<br />
A partir da década <strong>de</strong> 1940, essa região passou a ser inserida no processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização<br />
e <strong>de</strong>senvolvimento ditado pelo Estado, através da construção da estrada <strong>de</strong><br />
ferro no vale do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, ligando o Centro-Sul ao Nor<strong>de</strong>ste, pelo sertão norte<br />
<strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> e interior da Bahia. A mata aí existente começou a ser <strong>de</strong>rrubada para<br />
fornecimento <strong>de</strong> dormentes dos trilhos, lenha para o funcionamento das marias-fumaças<br />
e comércio <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei para Montes Claros e Belo Horizonte.<br />
60<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
Em 1956, a exploração ma<strong>de</strong>ireira para a construção da ferrovia chegou em Brejo dos<br />
Crioulos (COSTA, 1999), que ainda apresentava gran<strong>de</strong>s extensões <strong>de</strong> matas nas encostas<br />
do vale do Arapuim. Com isso, quebrava-se o isolamento da comunida<strong>de</strong>, abrindo-se<br />
caminho, com picadas e estradas, para os futuros “chegantes”, os fazen<strong>de</strong>iros.<br />
Na mesma época, o Estado iniciou outra ação na região, através da SUCAM, para o<br />
extermínio do mosquito transmissor da malária e do barbeiro, causador da doença <strong>de</strong><br />
Chagas. Moradores locais relatam que na época em que as águas passavam a diminuir, com<br />
o cessar das chuvas, a maleita chegava, trazendo febre, falta <strong>de</strong> apetite, fraqueza e muitas<br />
mortes – “branco não agüentava”. A maleita só acabou <strong>de</strong>pois que a SUCAM ali chegou.<br />
Desinfectada e com acesso aberto através das estradas oriundas da exploração ma<strong>de</strong>ireira,<br />
toda a região do vale do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> passou, então, a significar possibilida<strong>de</strong>s<br />
concretas <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> capital. A ação sanitária da SUCAM para extermínio da<br />
malária foi seguida, na década <strong>de</strong> 1960, pelas ações da então criada Superintendência <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento do Nor<strong>de</strong>ste (SUDENE). A política <strong>de</strong> incentivos fiscais do governo<br />
fe<strong>de</strong>ral militar passou a liberar recursos para projetos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização da estrutura<br />
produtiva, como irrigação, industrialização <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s regionais e outros investimentos<br />
em antigos latifúndios, agora transformados em mo<strong>de</strong>rnas empresas rurais nascidas com<br />
o Estatuto da Terra (1964).<br />
Com a visibilida<strong>de</strong> adquirida pela região, as terras da comunida<strong>de</strong> passaram a ser cobiçadas<br />
por fazen<strong>de</strong>iros. A abertura da região à valorização mercantilista da terra trouxe<br />
profundas alterações ao território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos. Iniciava-se assim a segunda<br />
expropriação do antigo território comunal, através da venda <strong>de</strong> terras às classes abastadas<br />
<strong>de</strong> Montes Claros, que ali passaram a esten<strong>de</strong>r seus latifúndios <strong>de</strong> gado.<br />
Mesmo os moradores que haviam “acompanhado a Divisão”, ou seja, que haviam<br />
adquirido suas terras, passaram a sofrer ameaças <strong>de</strong> grileiros e jagunços. Muitos abandonaram<br />
suas terras após anos <strong>de</strong> perseguição. Outros sumiram silenciosamente, assassinados<br />
na calada da noite, nas trilhas e caminhos. Outros, ainda, foram forçados ou seduzidos<br />
a ven<strong>de</strong>r suas terras. Alguns relatos revelam a violência <strong>de</strong>sse processo:<br />
Caetana – [...] aí mamãe foi no curral, tirou o leite, chegou, pôs a panela <strong>de</strong> abóbora no fogo, os<br />
pedaço, pra ela dá a nóis, era tudo pequeno, pra dá a nóis o leite com a abóbora. Aí eles chegou com<br />
os cavalo na beira da cerca, tinha uma cerca <strong>de</strong> lasca assim, ó. Aí eles chegou no cavalo, perguntando<br />
por papai, e mamãe falou que papai num tava lá. Nóis saiu caçando as roupa <strong>de</strong> papai, nóis<br />
escon<strong>de</strong>u a roupa <strong>de</strong> papai. Aí foi obrigado mamãe, eles chegou tudo armado, na frente da casa,<br />
aí foi obrigado mamãe apanhar a panela <strong>de</strong> leite, a panela <strong>de</strong> abóbora e o leite, e sair correndo, pra<br />
num falar on<strong>de</strong> papai tava. Aí, chegou lá, mamãe falou: vai, os menino, pôr água pr’os porco.<br />
Quando nóis chegou cá, era tudo assim pequeno, assim, quando nóis chegou cá, num tinha uma<br />
teia em cima da casa, eles já tinha tirado as teia da casa tudo; o milho colhido, que mamãe tinha<br />
colhido e que era pra nóis comer, eles já tinha comido tudo; cozinhô ovo <strong>de</strong> galinha e comeu; lá,<br />
o que mamãe <strong>de</strong>ixô lá, que era rapadura, essas coisa, já tinha comido tudo!<br />
– E foi <strong>de</strong>pois disso que vocês saíram da terra?<br />
Dona Elizarda – Foi três anos, três anos!<br />
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Caetana – Depois disso, ainda, bataiou muito ainda! Depois que eles <strong>de</strong>smantelou essa casa,<br />
mamãe tornou a fazer outra casa, mudou <strong>de</strong> lugar e fez outra casa! Desse pedaço daqui pra cá, eles<br />
tomou, a casa aqui, eles passou a cerca aqui, a casa que eles <strong>de</strong>smantelou, ficou daqui. Mamãe veio,<br />
na beira da cerca que eles fez, mamãe tornou a fazer outra casa na beira da divisa.<br />
– Eles foram empurrando a cerca...<br />
Caetana – Foi empurrando, foi empurrando...<br />
(Dona Elizarda Pinheiro <strong>de</strong> Abreu, 83 anos, e sua filha Caetana, moradoras do núcleo <strong>de</strong> Araruba; 02/05/04)<br />
As alterações referentes à apropriação privada do território comum também po<strong>de</strong>m<br />
ser verificadas na <strong>de</strong>gradação do meio natural. Assim, a divisão das terras e a sua transformação<br />
em mercadoria combinaram-se à <strong>de</strong>rrubada das florestas, às barragens e aos<br />
projetos <strong>de</strong> irrigação, que também passaram a inviabilizar a reprodução da comunida<strong>de</strong><br />
tradicional. Sob a ótica do capital, o uso do meio tem a intenção da acumulação <strong>de</strong><br />
riquezas, e assim as largas extensões <strong>de</strong> pastagens, mais do que o rebanho, concretizam o<br />
monopólio da terra nas mãos <strong>de</strong> poucos e a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reprodução da vida<br />
para muitos.<br />
Atualmente, a reprodução material e social <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos gira em torno da<br />
escassa produção alimentar <strong>de</strong> subsistência, uma vez que as terras férteis disponíveis são<br />
poucas, acompanhada pelo fornecimento da força <strong>de</strong> trabalho para a agropecuária nacional<br />
e regional, através <strong>de</strong> migrações permanentes e temporárias. A elucidação <strong>de</strong> seus<br />
saberes tradicionais traz elementos que reforçam sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sobre o território e projetam<br />
possibilida<strong>de</strong>s outras <strong>de</strong> existência.<br />
Brejo dos Crioulos: território camponês<br />
A terra <strong>de</strong>ixada pelos mais velhos como herança constitui o patrimônio a ser transmitido<br />
às novas gerações. O trabalho da família sobre a terra tem como priorida<strong>de</strong> a reprodução<br />
da existência material, simbólica e afetiva <strong>de</strong> toda a comunida<strong>de</strong>, estabelecida sobre<br />
fortes vínculos <strong>de</strong> parentesco e valores <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong>, que constituem traços da<br />
campesinida<strong>de</strong> do grupo, nos dizeres <strong>de</strong> Klaas Woortmann (1990, p. 63):<br />
Pensar trabalho é pensar terra e família; [...] Não são pensadas separadamente porque são categorias<br />
<strong>de</strong> um universo concebido holisticamente. Por outro lado, [...] honra, reciprocida<strong>de</strong> e hierarquia<br />
também não se pensam separadamente; são conceitos teóricos que se interpenetram na constituição<br />
da or<strong>de</strong>m moral que chamo campesinida<strong>de</strong>.<br />
A comunida<strong>de</strong> negra camponesa <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos agrega cerca <strong>de</strong> 500 famílias,<br />
distribuídas territorialmente em núcleos – Araruba, Arapuim, Cabaceiros, Conrado,<br />
Furado Seco, Serra d’Água, Furado Mo<strong>de</strong>sto e Caxambu – atualmente cercados pelas<br />
gran<strong>de</strong>s fazendas <strong>de</strong> gado e localizados nos municípios <strong>de</strong> São João da Ponte, Varzelândia<br />
e Ver<strong>de</strong>lândia.<br />
Nascido da doação <strong>de</strong> terra a Santo Reis feita por Leopoldo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa e<br />
Mané Novo, o núcleo <strong>de</strong> Araruba caracteriza-se como “terra <strong>de</strong> santo” e, como tal, não<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
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Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
foi totalmente expropriado, o que permitiu que os moradores que perdiam suas terras<br />
fossem ali morar. Atualmente seus moradores somam 63 famílias, muitas das quais foram<br />
expulsas dos antigos espólios oriundos da “Divisão”, que se estendiam do vale do<br />
Arapuim aos divisores <strong>de</strong> água. Caracteriza-se como núcleo central da comunida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />
se localizam a Igreja e a Casa <strong>de</strong> Santo Reis, local <strong>de</strong> realização da Folia <strong>de</strong> Reis. Araruba<br />
possui as menores áreas para cultivo, limitando-se estas muitas vezes aos quintais e a<br />
alguns trechos às margens da Lagoa da Peroba.<br />
Caxambu foi dividido pelos po<strong>de</strong>res municipais em duas áreas, a partir do vale do rio<br />
Arapuim. Caxambu 1 localiza-se no município <strong>de</strong> Varzelândia, ao norte do rio Arapuim,<br />
on<strong>de</strong> vivem 40 famílias. Atualmente, as terras oriundas dos antigos espólios são as <strong>de</strong><br />
Santo Ferreira <strong>de</strong> Sousa e Prasti<strong>de</strong> Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, além das “terras <strong>de</strong> ausência”,<br />
ou seja, as que não foram requeridas. Gran<strong>de</strong> parte dos espólios adquiridos na “Divisão”<br />
foi tomada por fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> gado, que hoje são seus confrontantes. Um outro<br />
confrontante <strong>de</strong> Caxambu 1 é o Paraterra, um assentamento do INCRA com 135 alqueires,<br />
on<strong>de</strong> se encontram 35 famílias assentadas, <strong>de</strong>ntre elas duas oriundas da comunida<strong>de</strong>.<br />
Caxambu 2 localiza-se ao sul do rio Arapuim e do ribeirão Canabrabal ou Assa-Peixe,<br />
no município <strong>de</strong> São João da Ponte, e confronta-se com fazendas <strong>de</strong> gado e com o<br />
Paraterra. Das terras não expropriadas, restam hoje os espólios <strong>de</strong> Domingos Dias e<br />
Menegídio Barbosa <strong>de</strong> Jesus, on<strong>de</strong> vivem 28 famílias.<br />
Furado Seco conta com 80 famílias, que ainda vivem nos espólios <strong>de</strong> José Fernan<strong>de</strong>s<br />
da Silva, Bibiano Oliveira e Alexandre Antunes Pereira, atualmente cercados por fazendas<br />
<strong>de</strong> gado. Nesse núcleo, cujo padroeiro é São Benedito, está presente a memória<br />
acerca <strong>de</strong> dois antigos moradores que foram assassinados pelos grileiros e fazen<strong>de</strong>iros<br />
que ali chegaram. Seu Levino Pinheiro <strong>de</strong> Abreu morreu após tomar um suposto “remédio”<br />
dado por jagunços para acabar com uma febre. Em seguida, sua esposa e seus<br />
filhos tiveram <strong>de</strong> ir morar nas “terras <strong>de</strong> ausência” <strong>de</strong> Furado Mo<strong>de</strong>sto. Segundo relatos,<br />
Dona Lorença Ana <strong>de</strong> Jesus, esposa <strong>de</strong> Alexandre Antunes Pereira, foi assassinada após<br />
a morte <strong>de</strong> seu marido, e seu corpo, jogado na Lagoa Amarela.<br />
Conrado situa-se num único espólio, <strong>de</strong> Conrado Pereira da Silva, que possuía 15<br />
alqueires <strong>de</strong> terra (“alqueirinho”, <strong>de</strong> 4,8 hectares) e hoje conta com apenas 5 alqueires,<br />
on<strong>de</strong> vivem 22 famílias. Atualmente, é circundado por fazendas <strong>de</strong> gado, e em uma <strong>de</strong>las<br />
ainda se encontra uma antiga moradora do Conrado, dona Maria Helena, que não saiu<br />
da terra e hoje está cercada pelo pasto.<br />
Cabaceiros soma 80 famílias, distribuídas pelos espólios <strong>de</strong> Belarmino <strong>de</strong> Oliveira<br />
Neto, Santo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, Henrique Pereira da Silva, Aleixa Rodrigues <strong>de</strong> Castro<br />
e Pantaleão Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, localizados entre as margens do rio Arapuim e o córrego<br />
São Vicente, em alguns trechos, até o Marco do Cedro, em outros. No interior <strong>de</strong><br />
Cabaceiros vive a família <strong>de</strong> um fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> gado que ali grilou terras, cujo filho é<br />
vereador em Varzelândia; outros fazen<strong>de</strong>iros cercam o núcleo.<br />
Arapuim é um núcleo on<strong>de</strong> as moradias estão mais espalhadas. As 29 famílias que ali<br />
vivem estão situadas nos espólios <strong>de</strong> Ambrósio Pereira da Silva, Adriano Soares <strong>de</strong><br />
Aguiar, Calixto Ferreira <strong>de</strong> Oliveira, Firmiano <strong>de</strong> Oliveira Neto e Augusto Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
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Sousa. Vinte e duas <strong>de</strong>ssas famílias encontram-se no município <strong>de</strong> São João da Ponte; as<br />
restantes estão no município <strong>de</strong> Varzelândia. Atualmente, vivem cercadas ou divididas<br />
pelas fazendas <strong>de</strong> gado.<br />
Serra d’Água situa-se às margens do córrego São Vicente, aos fundos dos espólios <strong>de</strong><br />
João da Silva Caldas, Antônio Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa, Santo Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa e Henrique<br />
Pereira da Silva, que fronteiam o rio Arapuim. Seus moradores, distribuídos em 20<br />
famílias, são her<strong>de</strong>iros dos “véios” que “acompanharam a divisão” mas per<strong>de</strong>ram suas<br />
terras, tendo, assim, ali se estabelecido como agregados dos donos <strong>de</strong>sses espólios. Esse<br />
núcleo é bem distinto dos outros do vale do Arapuim, uma vez que está localizado numa<br />
região on<strong>de</strong> o córrego São Vicente, com fluxo intermitente, seca todos os anos. Em<br />
vista disso, os moradores possuem cisternas para captação <strong>de</strong> água da chuva (Programa<br />
“Um milhão <strong>de</strong> cisternas”, da ASA – Articulação do Semi-Árido). As cisternas – reservatórios<br />
com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 20.000 litros, construídos sob a forma <strong>de</strong> mutirão – captam a<br />
água da chuva, através <strong>de</strong> calhas nos telhados, usada para cozinhar e beber.<br />
As terras mais afastadas do vale do Arapuim não foram incluídas na “Divisão <strong>de</strong><br />
1930”. Essas “terras <strong>de</strong> ausência” passaram então, na década <strong>de</strong> 1960, a ser ocupadas<br />
pelas famílias her<strong>de</strong>iras dos antigos espólios expropriados <strong>de</strong> Inácio Cor<strong>de</strong>iro Barbosa<br />
(Furado Seco), Anastácio Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sousa (Arapuim e Lagoa da Onça), Santo<br />
Ferreira da Rocha (Caxambu), Levino Pinheiro <strong>de</strong> Abreu (Lagoa Calumbi e Conrado)<br />
e Tertuliano Pereira <strong>de</strong> Aquino (Buraco <strong>de</strong> Pedra). Dos antigos her<strong>de</strong>iros, 31 distribuemse<br />
em Furado Mo<strong>de</strong>sto – ao redor do furado que leva o mesmo nome, no município<br />
<strong>de</strong> Varzelândia – e 13 estão no Sebo – ao redor do Furado das Éguas, que já pertence<br />
ao município <strong>de</strong> Ver<strong>de</strong>lândia. As primeiras terras ocupadas ao redor do Furado Mo<strong>de</strong>sto<br />
e do Furado das Éguas tiveram <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>socupadas, frente à pressão dos fazen<strong>de</strong>iros<br />
que ali também chegavam. Dentre essas pressões, uma contou com a aliança<br />
direta entre fazen<strong>de</strong>iro e Estado: ao <strong>de</strong>scobrir focos <strong>de</strong> barbeiro nas moradias feitas<br />
<strong>de</strong> estuque na localida<strong>de</strong> do Sebo, a SUCAM afirmou ser necessária sua retirada dali; o<br />
fazen<strong>de</strong>iro que se apropriara <strong>de</strong>ssas terras consi<strong>de</strong>radas “<strong>de</strong>volutas” doou, então, uma<br />
porção <strong>de</strong> terra para a SUCAM construir as novas casas <strong>de</strong> alvenaria numa vila <strong>de</strong> aspecto<br />
urbano, próxima ao Furado Mo<strong>de</strong>sto. Esse fato constituiu a terceira expropriação vivenciada<br />
pela comunida<strong>de</strong>.<br />
On<strong>de</strong> se passam os “causos”: vivência e saberes do sertanejo<br />
– O sapo canta... E o peixe canta também?<br />
Seu A<strong>de</strong>lino – Canta! Os peixo, aqueles fio, aqueles pexinho pequeno, óia, tim tim tim tim tim<br />
tim tim tim; aquelas cumatá, có có có có có có có có; aquelas piranha, óh óh óh óh oh óh... [risos].<br />
Aí é quando eles trata <strong>de</strong>sová, né? Aí o povo: “é, vai, o peixe tá <strong>de</strong>sovando”, “é chuva”, é ciência<br />
do povo antigo, esse povo, né?<br />
(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04, grifo nosso)<br />
Brejo dos Crioulos localiza-se no vale médio do rio Arapuim, num trecho da Depressão<br />
Interplanáltica São-Franciscana. Nessa região, a Depressão São-Franciscana encon-<br />
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Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
tra-se assentada sobre as rochas do Grupo Bambuí (Paleozóico), e, por essa razão, o<br />
relevo da região é também <strong>de</strong>nominado cárstico coberto, tendo a <strong>de</strong>composição <strong>de</strong>ssas<br />
rochas dado origem a solos argilosos e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> potencial agrícola.<br />
O relevo cárstico (ou calcário) apresenta como característica a presença <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressões,<br />
sumidouros, dolinas (“furados”) e ressurgências, verificados nos interflúvios que separam<br />
os afluentes do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>. Assim, através <strong>de</strong>ssas formas cársticas, um gran<strong>de</strong><br />
volume <strong>de</strong> água superficial é infiltrado para o subsolo, provocando ora a ausência <strong>de</strong><br />
escoamento superficial, ora sua parcialida<strong>de</strong>. Esse é o caso do córrego São Vicente,<br />
intermitente, que <strong>de</strong>limita uma parte do território <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, ao norte, localizada<br />
no núcleo <strong>de</strong>nominado Serra d’Água. Os moradores afirmam ainda que, no final<br />
dos terrenos <strong>de</strong> Serra d’Água, o córrego termina num paredão ou lajedo, mergulhando<br />
por baixo da terra através <strong>de</strong> um “sumidouro”, que o leva até o rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>.<br />
Já o rio Arapuim, afluente da margem esquerda do rio Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>, é um curso<br />
d’água perene, com expressiva quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lagoas e furados. Nessa região <strong>de</strong> transição<br />
entre a caatinga e o cerrado, com chuvas concentradas e períodos pronunciados <strong>de</strong> estiagem,<br />
é gran<strong>de</strong> a importância atribuída a seus brejos e vazantes, que representam as<br />
melhores terras utilizadas para a agricultura.<br />
A presença da água é fator fundamental para a constituição <strong>de</strong> agrupamentos camponeses,<br />
refletindo-se em todas as formas <strong>de</strong> produzir e organizar a vida. Assim, o período<br />
das águas é minuciosamente observado e esperado pela comunida<strong>de</strong>, pois abre o tempo<br />
da agricultura e é anunciado pelas “cheias” ou “enchentes”. As práticas agrícolas acompanham<br />
diretamente o ritmo das águas, assim como a pecuária se baseia na localização<br />
das águas, seja por meio do rio, seja pelos furados ou lagoas. Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong><br />
Aquino, <strong>de</strong> 60 anos, revela apurado saber que i<strong>de</strong>ntifica mudanças climáticas e hídricas<br />
através do comportamento <strong>de</strong> animais e do local on<strong>de</strong> se dão as trovoadas:<br />
– Aí as águas vêm da parte alta...<br />
Seu A<strong>de</strong>lino – Da parte alta, caindo por <strong>de</strong>ntro do brejo, que nóis trata aqui brejo, cai <strong>de</strong>ntro das<br />
lagoa, cai <strong>de</strong>ntro do córrego, e aí vai juntando, a água, né? Quando é a lagoa, a água junta ali, né?<br />
E pára. E quando é no córrego, ela corre pra baixo, vai <strong>de</strong>scendo, né? Então nóis trata esse lado<br />
aqui “alto”: “a água vem do alto”, dali, “vem do alto”; se vem <strong>de</strong> acolá, nóis: “a água vem das<br />
cabeceira”. Trovejô acolá, nas cabeceira, vem enchente. Nóis trata “é enchente, a enchente vai <strong>de</strong>scê<br />
no córrego”, ocê enten<strong>de</strong>u? O costume antigo aqui, que eu nasci e conheci aqui, vai <strong>de</strong>scendo no<br />
córrego. Aí vem o sapo, cantando <strong>de</strong> baixo pra cima, né? Vai cantando e vai <strong>de</strong>scendo: “ó, vem<br />
enchente, a água, a chuva chuvô, vem enchente, que o sapo tá cantando”. E vai <strong>de</strong>scendo,<br />
acompanhando, chega o sapo e apo<strong>de</strong>ra na lagoa, on<strong>de</strong> é a bacia da água. E ali eles fica cantando,<br />
daquele jeito <strong>de</strong>les, sabe? Cê tá enten<strong>de</strong>ndo? Fica cantando lá, aí o povo lá... Quando é amanhã as<br />
lagoa amanhece cheia, naquele costume antigo, que é aqueles peixo, que canta...<br />
(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />
Embora o saber tradicional resulte <strong>de</strong> vivências outras que não as do saber acadêmico,<br />
po<strong>de</strong>-se estabelecer entre eles uma relação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong>. Nas formas <strong>de</strong> manejo<br />
dos recursos naturais efetivadas em Brejo dos Crioulos, fica clara a importância das<br />
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leituras que a comunida<strong>de</strong> faz do ambiente. Esse saber resulta <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong><br />
relações empíricas e cotidianas com o meio on<strong>de</strong> a comunida<strong>de</strong> está inserida e na construção<br />
<strong>de</strong> seu modo <strong>de</strong> vida. A leitura do espaço ecológico feita pela comunida<strong>de</strong> camponesa<br />
que ali vive remete-nos aos usos por ela praticados e que estão diretamente<br />
relacionados à reprodução da sua vida material e simbólica, como nos afirma Antônio<br />
Carlos Diegues (1998, p. 85):<br />
Um aspecto relevante na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> culturas tradicionais é a existência <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> manejo dos<br />
recursos naturais marcados pelo respeito aos ciclos naturais, à sua explotação <strong>de</strong>ntro da capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> recuperação das espécies <strong>de</strong> animais e plantas utilizadas. Esses sistemas tradicionais <strong>de</strong> manejo<br />
não são somente formas <strong>de</strong> exploração econômica dos recursos naturais, mas revelam a existência<br />
<strong>de</strong> um complexo <strong>de</strong> conhecimentos adquiridos pela tradição herdada dos mais velhos, <strong>de</strong> mitos<br />
e símbolos que levam à manutenção e ao uso sustentado dos ecossistemas naturais.<br />
No contexto ecológico local, os brejos constituem a garantia <strong>de</strong> água para a produção<br />
<strong>de</strong> alimentos da comunida<strong>de</strong>. Neles está situada a “primeira terra”, a melhor para a<br />
agricultura, por ser a mais barrenta e localizada na beira dos rios e das lagoas. Em Brejo<br />
dos Crioulos, o brejo molhado é utilizado para o cultivo do arroz.<br />
Aliadas aos brejos estão as vazantes, planícies <strong>de</strong> inundação dos cursos d’água. Com a<br />
<strong>de</strong>scida das águas, essas porções <strong>de</strong> terra passam a constituir terrenos férteis e úmidos,<br />
prontos para o plantio da maior parte dos alimentos produzidos, conforme nos conta<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira:<br />
– E on<strong>de</strong> vocês plantam essas coisas todas? Há algum terreno em que plantam sempre, perto das<br />
lagoas? É na vazante?<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s – É nas vazante. Que nem mesmo essas roça que eu tava plantando esse ano, que<br />
nóis plantamo: foi aqui nessas vazante daqui, da estrada pra baixo, até a beira do rio. Aí, quando<br />
é na época dos plantio da seca, a gente procura mais as vazante <strong>de</strong> lagoa, que tem lagoa; que nem<br />
inclusive aon<strong>de</strong> é que eu trabaio, que tem um plantio que tem lá, nóis plantamo da seca, que tem<br />
a lagoa. É na lagoa. Aí ela vai secando, a gente vai gra<strong>de</strong>ando e plantando. Aí, aproveitando o<br />
moiado daquela água da chuva, daquela época que a lagoa enche, aí a gente vem, a lagoa vai<br />
secando, a gente vai cultivando a terra e plantando.<br />
(Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, 59 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 1; 18/04/04)<br />
Adjacentes às vazantes, no sentido dos divisores <strong>de</strong> água, encontram-se as terras <strong>de</strong><br />
cultura, consi<strong>de</strong>radas como “segunda terra”, <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong> média, on<strong>de</strong> se planta a lavoura<br />
branca <strong>de</strong> milho, feijão, feijoa, abóbora e mandioca. Eram cobertas por Floresta<br />
Estacional, que secava em agosto e voltava a brotar em setembro-outubro, antes das<br />
chuvas. Quando ficam muito tempo sem ser usadas para o plantio, essas terras formam<br />
capoeira e até catanduba, que era “mata gran<strong>de</strong>, reservada, não <strong>de</strong>smatada, mato grosso”.<br />
A <strong>de</strong>rrubada da catanduba dá lugar às terras <strong>de</strong> cultura.<br />
Após as terras <strong>de</strong> cultura, está o carrasco, consi<strong>de</strong>rado como “terceira terra”, que via <strong>de</strong><br />
regra acompanha a “água vertente” ou divisor <strong>de</strong> águas. Seu solo é arenoso, propenso à<br />
formação <strong>de</strong> “murundus” <strong>de</strong> cupim, e não “guarda a chuva”: em poucos dias, a terra<br />
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Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
seca. Não é favorável aos cultivos agrícolas, sendo usado preferencialmente como “solta<br />
nativa”, com pasto formado pelo capim nativo taquari. A “solta nativa” era território <strong>de</strong><br />
uso comum, sem cercas, utilizado largamente por várias comunida<strong>de</strong>s locais, on<strong>de</strong> o<br />
gado <strong>de</strong> todos tinha seu pasto.<br />
Margeando o vale do Arapuim, alguns terrenos <strong>de</strong> maior altitu<strong>de</strong>, formados por “pedreiras”<br />
e cobertos <strong>de</strong> mata, são conhecidos como serra. Dali mina água na época das<br />
cheias, quando há subida do lençol freático. Os lajedos <strong>de</strong> pedra existentes são ambientes<br />
<strong>de</strong> procriação dos peixes, durante a piracema no rio Arapuim.<br />
A importância do rio Arapuim para a comunida<strong>de</strong> explicita-se na paisagem. O intenso<br />
uso agrícola acabou por produzir a alteração do leito do Arapuim em dois trechos. Um<br />
<strong>de</strong>les está situado entre o núcleo Arapuim e o Cabaceiros. Segundo os moradores, isso<br />
ocorreu <strong>de</strong>vido à abertura <strong>de</strong> “reguinhos” para drenar áreas bastante encharcadas pelas<br />
águas da cheia e, assim, po<strong>de</strong>r plantar nelas, numa época em que chovia mais. Com o<br />
tempo, essa prática fez com que o curso principal do rio passasse a circular por esses<br />
canais <strong>de</strong> drenagem e ali construísse seu leito principal, formando o chamado “rio Novo”.<br />
Entre o rio Arapuim – “rio Velho” – e o “rio Novo”, formou-se uma área <strong>de</strong> planície<br />
com cerca <strong>de</strong> 500 metros <strong>de</strong> largura e que só inunda na época das cheias, sendo utilizada<br />
nos outros períodos para a agricultura.<br />
O outro trecho alterado pelas práticas agrícolas está situado próximo ao encontro<br />
entre o rio Arapuim e o ribeirão Canabrabal ou Assa-Peixe. Nesse caso a alteração no<br />
leito do rio não teve por objetivo drenar áreas alagadas mas sim, aten<strong>de</strong>r a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> molhar a terra para, <strong>de</strong>pois, plantar nela o arroz. Para tanto construíam-se açu<strong>de</strong>s, ou<br />
seja, barramentos provisórios no leito do rio, que produziam a inundação temporária da<br />
terra adjacente, conforme explica Seu Gasparino Ferreira dos Santos:<br />
– Isso é um causo; quando eu cheguei por aqui, já tinha essas conversa, mas eu num alcancei isso<br />
não, né? Mas eles sempre fala assim... Que eles fazia os açu<strong>de</strong> no rio, pra mó <strong>de</strong>le represar, pro<br />
arroz dar. Conforme aguava o arroz, retornava a <strong>de</strong>rrubar o açu<strong>de</strong>, e aí baixava pra mó <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
colher o arroz. Aí a água ficava no mesmo canal. Isto nóis já fizemo muito. Nóis já fizemo.<br />
(Seu Gasparino Ferreira dos Santos, 68 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 2; 18/04/04)<br />
Margeando o rio Arapuim e o ribeirão Assa-Peixe ou Canabrabal, as lagoas também<br />
constituem corpos d’água <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância ao modo <strong>de</strong> vida local. Algumas surgem<br />
no período das águas, com a subida do lençol freático e a inundação das planícies<br />
aluviais; outras são alimentadas por minadores que surgem com as cheias.<br />
Ao redor das lagoas está o melhor solo, usado intensivamente para o cultivo agrícola,<br />
tanto no brejo molhado (arroz) como na vazante, sendo, por essa razão, ainda hoje o<br />
local on<strong>de</strong> se concentram as famílias da comunida<strong>de</strong>. As lagoas que se encontram nas<br />
terras <strong>de</strong> uso e posse da comunida<strong>de</strong> são: Aleixa e Colher <strong>de</strong> Pau, em Cabaceiros; Criminosa<br />
e Calumbi, em Conrado; Furado Seco, no núcleo <strong>de</strong> mesmo nome; Lagoa do<br />
Santo, em Caxambu; e Lagoa da Peroba, em Araruba.<br />
Além <strong>de</strong>ssas, há ainda aquelas situadas nas terras dos fazen<strong>de</strong>iros que expropriaram<br />
parte do território negro. Constituindo fontes <strong>de</strong> água margeadas por solos férteis, elas<br />
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foram cobiçadas e estrategicamente tomadas da comunida<strong>de</strong> local pelos fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong><br />
gado e grileiros. Seus nomes antigos, quando mantidos, revelam os donos dos antigos<br />
espólios da <strong>de</strong>marcação <strong>de</strong> 1930 ou os territórios <strong>de</strong> posse e uso das famílias que ali se<br />
estabeleciam, chegadas <strong>de</strong> outras regiões: Lagoa da Varanda, consi<strong>de</strong>rada um dos limites<br />
da comunida<strong>de</strong>, a oeste, e Lagoa da Sinhorinha, no núcleo Arapuim; Lagoa <strong>de</strong> João,<br />
entre os núcleos Arapuim e Cabaceiros; Lagoa da Água Preta, entre os núcleos Cabaceiros<br />
e Conrado; a maior área da Lagoa Calumbi, no núcleo Conrado; Lagoa do Miguel;<br />
Lagoa do Vicente Cololó, adjacente ao núcleo Furado Seco; Lagoa do Silvério; Lagoa<br />
Vargem do Pedro; e Lagoa da Onça, i<strong>de</strong>ntificada como outro limite da comunida<strong>de</strong>, no<br />
sentido leste.<br />
As lagoas são também o ambiente on<strong>de</strong> os peixes procriam, por ocasião da piracema<br />
no rio Arapuim, como bem nos explica Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino:<br />
– Porque os peixo aqui é quando a cheia é gran<strong>de</strong>. A enchente que nóis fala, época das água boa, a<br />
água vai até o rio Ver<strong>de</strong>. O rio Ver<strong>de</strong> represa a água lá, porque ele recebe a água; ele joga a água no<br />
São Francisco e joga o peixo pra cima. Aí, chega aí, o peixo vai cair naquela lagoa, primeiro assim<br />
aqui na Lagoa da Boa Vista, na lagoa ali, na Lagoa da Onça, <strong>de</strong>pois ele cai é... no Furado Seco; do<br />
Furado Seco vai pr’aquela Lagoa Varge do Pedro, igual dos Gonçalo qu’eles fala, dos Gonçalo,<br />
Varge do Pedro; <strong>de</strong>pois vem pr’aquela lagoa ali qu’eles fala... Furado Seco, eu falei; vem ali pro<br />
Calumbi, ali naquele povo lá na frente, na Lagoa Calumbi, vem na Lagoa da Peroba, vem na Lagoa<br />
Criminosa, qu’eles fala que já morreu alguém lá, qu’eles trata Lagoa Criminosa; aí eles vêm pra<br />
Lagoa da Peroba, que é lá nos fundo da Igrijinha, <strong>de</strong>sce pra essa Lagoa da Aleixa aqui, que nóis falô<br />
Lagoa... Genipapo; vem pra Colher <strong>de</strong> Pau, que é lagoa – se tratava lagoa... agora, o apelido antigo<br />
<strong>de</strong>la, <strong>de</strong>sses antigo, é Lagoa Colher <strong>de</strong> Pau. Vem jogando, e aí por diante! Chega numa serrinha ali,<br />
que fica on<strong>de</strong> é que nóis trabaia, fica numa serra, joga numa lagoinha lá, e daquela lagoa lá entra<br />
numas lapa, lapa da serra que nóis fala. Num é Lapa <strong>de</strong> Bom Jesus não, qu’eles fala; é uma lapa,<br />
umas grota <strong>de</strong> serra, que enche <strong>de</strong> peixo! Por ali, o peixo fica <strong>de</strong>ntro da serra, né? E <strong>de</strong>pois, eles sai,<br />
passeando, <strong>de</strong>ntro das lagoa. Tem outra lagoa qu’eles passa, um buracão ali, ali pros parente <strong>de</strong><br />
Joventino. Ali eles sobe pra uma lagoa <strong>de</strong>pois do Gê, que nóis falô aqui. É Lagoa <strong>de</strong> João Véio,<br />
que o povo trata; vai pr’ali, <strong>de</strong>pois vai pra outra lagoa do outro lado ali, do município São João da<br />
Ponte, a Lagoa é <strong>de</strong> Dema. Hoje quem mora lá é o Dema, mas era, <strong>de</strong> antigamente, Lagoa <strong>de</strong><br />
Sinhorinha, que é a Lagoa da Sinhorinha. E aí por diante, Lagoa da Varanda...<br />
(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />
Regionalmente, a <strong>de</strong>nominação “furado” aparece com freqüência: Furadão, Furado Seco,<br />
Furado Mo<strong>de</strong>sto, Furado Curral, Furado Pedrim, Furado Boi. Os furados ou dolinas<br />
constituem <strong>de</strong>pressões esculpidas em terrenos calcáreos e alagáveis por ocasião das chuvas.<br />
Segundo Francisco Cor<strong>de</strong>iro Barbosa, o “Ticão”, <strong>de</strong> 38 anos, o furado não é olho d’água:<br />
ele recebe água dos olhos d’água, armazena-a e solta-a para outros furados ou rios. Nessa<br />
região sazonalmente sujeita a secas, em alguns locais on<strong>de</strong> não existiam cursos d’água, os<br />
furados eram a garantia e o atrativo para o estabelecimento das famílias.<br />
Alguns <strong>de</strong>les povoam as antigas e fantásticas histórias contadas pela comunida<strong>de</strong>. Conta-se<br />
que, antigamente, a Lagoa do Furado Seco era um furado e secava todo ano. O<br />
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Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
gado vinha beber água ali. Certa vez, chegou um senhor e enterrou um vidro <strong>de</strong> azeite<br />
doce em suas margens, e o furado nunca mais secou, transformando-se em uma lagoa.<br />
Nos meses <strong>de</strong> agosto-setembro, com a diminuição das chuvas, a Lagoa do Furado Seco<br />
diminui <strong>de</strong> tamanho e divi<strong>de</strong>-se em duas partes, o que propicia mais terras <strong>de</strong> vazante<br />
para o plantio. É nessa época que, segundo os moradores, também aparecem os testemunhos<br />
<strong>de</strong> uma antiga floresta da região, como cernes <strong>de</strong> aroeira e pau-preto.<br />
Já os moradores do Furado Mo<strong>de</strong>sto, localida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> não há nenhum rio ou lagoa,<br />
contam que, antigamente, a água do furado era utilizada em ativida<strong>de</strong>s domésticas, tais<br />
como preparo da comida e lavação <strong>de</strong> roupas e louças, e para o banho. Nas secas, a água<br />
era buscada no Furado Seco e transportada em cabaças, e o gado também para lá era<br />
conduzido. Na década <strong>de</strong> 1960 o furado passou a secar, porque os fazen<strong>de</strong>iros que<br />
então começavam a chegar naquelas “terras <strong>de</strong> ausência” – com raros proprietários formais<br />
– <strong>de</strong>ram início ao gra<strong>de</strong>amento das terras ao seu redor para formar os pastos.<br />
Quando as chuvas chegavam, a enxurrada carregava terra para <strong>de</strong>ntro do furado, que<br />
começou a per<strong>de</strong>r sua profundida<strong>de</strong>.<br />
Essa e outras alterações no meio, que configuram o processo <strong>de</strong> expropriação sofrido<br />
pela comunida<strong>de</strong>, interferiram diretamente em seu modo <strong>de</strong> vida tradicional. Ainda assim,<br />
a comunida<strong>de</strong> consegue manter um calendário produtivo diversificado, por meio<br />
<strong>de</strong> práticas e saberes tradicionais.<br />
Calendário produtivo: saberes e território<br />
Segundo Antônio Cândido (1988), a alimentação constitui um recurso vital que revela a<br />
<strong>de</strong>pendência do grupo em relação ao meio e suas ações para garantir sua continuida<strong>de</strong>,<br />
bem como a organização social para obtê-la e distribuí-la. Assim, o calendário produtivo<br />
<strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> camponesa apresenta-se como<br />
[...] o centro <strong>de</strong> um dos mais vastos complexos culturais, abrangendo atos, normas, símbolos,<br />
representações. A obtenção da comida percorre, do esforço físico ao rito, uma gama vastíssima em<br />
que alguns têm querido buscar a gênese <strong>de</strong> quase todas as instituições sociais (CÂNDIDO, 1988, p. 29).<br />
O calendário produtivo <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, apresentado a seguir, revela o profundo<br />
conhecimento da comunida<strong>de</strong> em relação ao ambiente on<strong>de</strong> vive e uma ótima adaptação<br />
a sua dinâmica biofísica. A chegada das águas e a vazante são os marcos temporal e espacial<br />
para essas ativida<strong>de</strong>s produtivas, <strong>de</strong>finindo os melhores tempo e local para o plantio, para<br />
a colheita e para a pesca, bem como as técnicas que otimizam o uso do recurso. O processo<br />
produtivo dá-se pela apropriação <strong>de</strong>sse espaço, por meio <strong>de</strong> saberes que ali se <strong>de</strong>senvolvem.<br />
Nesse sentido, a produção da vida acontece no território dos saberes.<br />
A agricultura distribui-se pelo período da chegada das águas e da vazante. Gran<strong>de</strong><br />
parte dos cultivos aguarda a chegada das águas para ser realizada. Os diversos tipos <strong>de</strong><br />
arroz são cultivos das águas, feitos preferencialmente no brejo molhado. O milho, a abóbora<br />
e a mandioca são plantados na época das águas, porém em terras não alagadas, nas<br />
terras <strong>de</strong> cultura. Os feijões são cultivados, preferencialmente, na vazante. Uma característica<br />
típica <strong>de</strong>sses cultivos é o consórcio entre o milho, a mandioca e o feijão: o milho<br />
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e a mandioca são cultivados num primeiro momento; os feijões vêm <strong>de</strong>pois, quando o<br />
milho, já seco, serve <strong>de</strong> apoio para o feijão subir e, assim, produzir melhor. Em troca, o<br />
feijão, enquanto leguminosa, fixa nitrogênio no solo. Assim, potencializa-se o uso <strong>de</strong><br />
terra numa mesma área.<br />
Em relação à pecuária, o gado tem <strong>de</strong> ser transferido aos mangueiros no período <strong>de</strong><br />
estiagem, uma vez que o carrasco fica bastante árido. Quando criado no pasto, é preciso<br />
realizar o rodízio do rebanho, a cada seis meses, entre os locais <strong>de</strong> pastagem. Conta-se<br />
que antigamente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se tirar o leite pela manhã, o gado era colocado na “solta<br />
nativa”, <strong>de</strong>ixando-se os bezerros no mangueiro, na área <strong>de</strong> roça ou próximos ao quintal;<br />
à noite, o gado ficava no curral. O leite era utilizado no fabrico <strong>de</strong> queijo e requeijão.<br />
– O gado ia pra lá... pros furado, que o povo trata hoje Furado Mo<strong>de</strong>sto, né? E aí por diante, os<br />
furado assim, que tratava os furado aí <strong>de</strong> cima, né? Então, o gado era à solta, e eles prendia os<br />
bezerrinho no curral. Quando era ali pras 7, 8 hora, as vaca que atrasava chegava ali pras 8, 9 hora,<br />
berrando lá do carrasco, e os bezirrinho ia respon<strong>de</strong>ndo. Aí eles chegava com a cabaça <strong>de</strong> leite – que<br />
num tinha lata aquela época, tratava ali, que e o povo trata <strong>de</strong> cabaça, né? –, abria a boca e ia com<br />
o copão <strong>de</strong> leite. Aí tirava, encostava restelando no canto, ia qualhá; às vezes eles fazia requeijão,<br />
algumas vezes eles fazia doce...<br />
(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />
Quanto à pesca, a ocorrência da <strong>de</strong>sova é sinal <strong>de</strong> chuva e <strong>de</strong> cheia. As lagoas enchem<br />
uma a uma e recebem a piracema, e os peixes procriam. Na vazante, durante os meses<br />
<strong>de</strong> julho, agosto e setembro, a pesca intensifica-se. Se, por um lado, a pesca espera as<br />
águas, por outro lado a própria subida do peixe para a <strong>de</strong>sova é sinal das águas, como<br />
relata Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino:<br />
Seu A<strong>de</strong>lino – “Tá <strong>de</strong>sovando, peguei um peixo”. E como é que é, esse menino? Esse peixo<br />
como é que tá? “É, o peixo tá <strong>de</strong>sovando”. É enchente, já vai chovê, vai tê enchente, porque, se tá<br />
<strong>de</strong>sovando, as água é boa. Tá enten<strong>de</strong>ndo? É o que eles fala, né?<br />
– Em que época eles <strong>de</strong>sovam? É na época das águas, no final do ano?<br />
Seu A<strong>de</strong>lino – Época <strong>de</strong> enchente é quando começa. É janeiro, <strong>de</strong>zembro, assim por diante, né?<br />
E agora eles pega, cê sabe como é que é... A gente pega <strong>de</strong> tarrafa, outros faz uma tapage: pega um,<br />
vai no mato cortá umas vara, faz o jequi, assim... Alguém mostrô pr’ocês, não? Então sai, ó, pega<br />
o peixo, enfia a mão <strong>de</strong>ntro, igual aqui assim, e vai rodando o peixo, pega. É... uns enfia no<br />
enfisgo; tem mulher aí que pega o peixo, enrola aqui assim, pra mó <strong>de</strong>... né?<br />
– Em que época se pega mais peixe aqui, então?<br />
Seu A<strong>de</strong>lino – Na época da enchente eles pega; eles faz uma tapage, né? E outra, na seca, quando<br />
a água encurta nas lagoa, eles pega, pega <strong>de</strong> tarrafa.<br />
(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />
Entre os produtos das ativida<strong>de</strong>s extrativistas estão os medicamentos <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong><br />
ervas medicinais e gorduras e banhas <strong>de</strong> alguns animais <strong>de</strong> caça, que são usados para a<br />
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Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
cura <strong>de</strong> doenças como bronquite. Alguns moradores afirmam que curavam todas as<br />
suas doenças com esses remédios, inclusive a maleita, e se queixam <strong>de</strong> que nos tempos<br />
<strong>de</strong> hoje os remédios do mato – remédios da natureza – acabaram ou não fazem mais<br />
efeito, revelando o <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>de</strong>corrente da <strong>de</strong>rrubada das florestas e da chegada <strong>de</strong><br />
novos agentes patogênicos trazidos pelos implantadores do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
econômico. Esse <strong>de</strong>sequilíbrio também se reflete na baixa oferta <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, outrora<br />
extraída e utilizada na construção <strong>de</strong> moradias, utensílios e estruturas produtivas como<br />
as casas <strong>de</strong> farinha, os currais, os engenhos <strong>de</strong> rapadura, os pilões e as cercas.<br />
A extração do barro para a construção <strong>de</strong> moradias e fabricação <strong>de</strong> telhas e potes<br />
obe<strong>de</strong>ce à <strong>de</strong>marcação das estações das águas e da estiagem. Inicialmente, a construção<br />
<strong>de</strong> moradias era feita <strong>de</strong> estuque, com uma estrutura <strong>de</strong> esteios <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira on<strong>de</strong> é preso<br />
o envarinhamento <strong>de</strong> galhos finos trançados, amarrados com cipó e preenchidos com o<br />
barro. Nas casas <strong>de</strong> adobe, também com esteios <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, os tijolos são feitos <strong>de</strong><br />
barro cru em formas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e colados igualmente com barro.<br />
Para a fabricação <strong>de</strong> telhas e potes, utilizava-se um barro mais fino e macio, obtido ao<br />
redor das lagoas. Sua retirada era feita nos meses <strong>de</strong> julho e agosto, quando do ápice do<br />
período <strong>de</strong> estiagem, antes das primeiras chuvas. O uso do barro é orientado pelo saber<br />
que indica a época certa <strong>de</strong> extraí-lo: panelas e potes feitos com barro retirado <strong>de</strong>pois da<br />
primeira água quebram ao serem colocados no fogo. Assim, é necessário “<strong>de</strong>ixar o<br />
barro morrer” – isto é, secar – para po<strong>de</strong>r utilizá-lo, conforme relata Seu Aristi<strong>de</strong>s<br />
Cardoso <strong>de</strong> Oliveira:<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s – Pegava barro da lagoa...<br />
– É um barro mais fino?<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s –- Mais fino, é um barro muito macio. [...] Aí, quando eu fui rancar o barro pra ela,<br />
ela fez. Só que essa época que ela fez, quando ela foi rancar o barro, já tinha chovido, que o barro<br />
brota, né? Aqui ainda tem isso, tem essa ciência.<br />
– Como é que o barro brota?<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s – Porque, <strong>de</strong>pois da chuva, o barro parece que renova. Aí eles fala “brotá”, né? Que<br />
<strong>de</strong>pois que chove o barro brota. Ocê faz a panela, fazia o pote e a panela, cê punha no fogo, ele<br />
estourava. Quebrava tudo, num salvava um!<br />
– Desse barro novo...<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s – Sim, <strong>de</strong>sse barro novo. Agora, se rancasse o barro antes da chuva, ali pro mês <strong>de</strong><br />
agosto, setembro... Rancava o barro pra <strong>de</strong>ixar morrê, pro barro secá e ficá bem sequinho. Aí,<br />
<strong>de</strong>pois daquele barro todo sequinho, voltava. Aí ela ia pro moinho, moía aquele barro no pilão,<br />
compunha esse material [...].<br />
(Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, 59 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 1; 18/04/04)<br />
As ativida<strong>de</strong>s artesanais e agroindustriais caseiras seguem o tempo das <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>s<br />
produtivas. Assim, temos a produção <strong>de</strong> corante a partir do urucum; da mandioca<br />
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Tabela 1 Ativida<strong>de</strong>s produtivas <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />
Produto Plantio Local Manejo Colheita<br />
Feijão arranque Fevereiro-março Vazante Fogo e gra<strong>de</strong> Abril (60 dias)<br />
Feijão catador Fevereiro Vazante Plantio espalhado Maio (80 dias)<br />
Abril (40 ou 50 dias)<br />
Feijoa Novembro Cova do milho Abril (3 meses)<br />
Junho (6 meses)<br />
Milho <strong>de</strong> paiol Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas Junho (110 dias)<br />
Milho <strong>de</strong> secretaria Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas 70-80 dias (ver<strong>de</strong>)<br />
Junho (seco)<br />
Abóbora Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas Fevereiro<br />
Melancia Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas Janeiro<br />
Amendoim Outubro-novembro Terra <strong>de</strong> cultura – nas águas 90 dias<br />
Arroz gigante Outubro Brejo molhado – nas águas 4 meses<br />
6 meses<br />
Arroz gigantão Outubro Brejo molhado e mais seco 4 meses<br />
Mandioca Outubro a fevereiro Terra <strong>de</strong> cultura e 2 anos<br />
carrasco – nas águas<br />
Cana Outubro-novembro 6 meses<br />
Banana Outubro-novembro 8 meses<br />
Batata-doce Outubro-novembro 6 meses<br />
Horta Fevereiro-junho Beira do ribeirão e lagoas<br />
Pomar<br />
Terra <strong>de</strong> cultura<br />
Produto Local Manejo<br />
Gado Pasto e “solta Rodízio a<br />
nativa” (águas)<br />
cada 6 meses<br />
Galinha e porco Quintal Folhas, cascas e<br />
milho seco<br />
Produto Desova Local Manejo Pesca<br />
Pesca Dezembro-janeiro Lagoas Jequi na cheia; Junho-julho-agosto<br />
tarrafa na seca<br />
Produto Plantio Local Manejo Colheita<br />
Barro Julho-setembro Beira das lagoas Barro seco “morto” Telhas, potes,<br />
e moído<br />
tijolos e moradias<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
Gráfico 1 Calendário produtivo <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />
Legenda<br />
Chuvas<br />
Rio e lagoas<br />
Arroz<br />
Feijão<br />
Milho<br />
Milho estocado<br />
Mandioca<br />
Abóbora, batata e cana<br />
Horta<br />
Pomar<br />
Gado<br />
Pesca<br />
Barro<br />
Mel<br />
Ervas medicinais<br />
Cipó<br />
Ma<strong>de</strong>ira<br />
Caça<br />
Moradia<br />
Esta representação do calendário<br />
produtivo <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />
procura distribuir suas diversas<br />
ativida<strong>de</strong>s produtivas ao longo do<br />
tempo e do espaço. Assim, temos o<br />
tempo distribuído em 12 meses e<br />
conforme a presença da água: a cheia<br />
e vazante. Quanto ao espaço, no<br />
centro do círculo temos os vales <strong>de</strong><br />
rios e lagoas, associados aos brejos;<br />
caminhando para fora, passamos<br />
pelas terras <strong>de</strong> cultura e divisores <strong>de</strong><br />
água, on<strong>de</strong> se encontra o carrasco.<br />
Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Simone Raquel Batista Ferreira<br />
Geografias<br />
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para a produção <strong>de</strong> farinha; do milho para a produção <strong>de</strong> canjiquinha e fubá; da cana<strong>de</strong>-açúcar<br />
para a produção <strong>de</strong> rapadura; <strong>de</strong> palhas para a produção <strong>de</strong> cestos e peneiras;<br />
da cinza do fogão para a produção <strong>de</strong> sabão <strong>de</strong> coada e limpeza dos <strong>de</strong>ntes.<br />
Algumas ativida<strong>de</strong>s típicas dos habitantes <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, como a produção<br />
das próprias roupas, não existem mais. O algodão era utilizado na produção <strong>de</strong> tecidos<br />
e fios <strong>de</strong> costura. As roupas tecidas eram tingidas nas cores vermelha (barro vermelho),<br />
preta (lama do rio) e azul (anileiro). O cessar <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s produtivas está diretamente<br />
relacionado com o processo <strong>de</strong> expropriação da terra e <strong>de</strong>mais recursos.<br />
Pela reapropriação do território dos saberes quilombolas<br />
O meio fundamental para a reprodução da vida em Brejo dos Crioulos era a terra <strong>de</strong><br />
trabalho das famílias, em gran<strong>de</strong> parte utilizada <strong>de</strong> forma comum. As cercas eram, até<br />
então, instaladas apenas nas mangas e currais <strong>de</strong> gado, nos chiqueiros <strong>de</strong> porco e em<br />
algumas roças do brejo que precisavam ser protegidas dos animais. Eram <strong>de</strong> “forquilha”<br />
<strong>de</strong> cipó e ma<strong>de</strong>ira branca, não <strong>de</strong> arame. A nova lógica do cercamento das proprieda<strong>de</strong>s<br />
privadas, <strong>de</strong>marcando terras e águas, furados e vazantes, e antigos cemitérios, passou a<br />
proibir o uso dos recursos e a celebração dos ritos, base daquele modo <strong>de</strong> vida.<br />
Antes <strong>de</strong> formar os pastos, os novos proprietários passaram pelas florestas. A <strong>de</strong>rrubada<br />
das matas foi constante, enquanto as ma<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> lei eram transformadas em carvão<br />
vegetal para as si<strong>de</strong>rurgias, tornando a aquisição da terra ainda mais lucrativa. A<br />
<strong>de</strong>rrubada das florestas e do “carrasco” significou a perda <strong>de</strong> biodiversida<strong>de</strong> e a escassez<br />
<strong>de</strong> reservas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, lenha, remédios e caça para a comunida<strong>de</strong>. A perda do “carrasco”<br />
também trouxe a perda da “solta nativa”, porção do território utilizada para a<br />
pastagem do gado à solta. Assim, gran<strong>de</strong> parte do alimento que era plantado ou criado<br />
e <strong>de</strong>mais recursos que eram extraídos daquele ambiente passaram a ser adquiridos através<br />
da compra.<br />
Para a formação dos pastos, não só a vegetação arbórea foi retirada, mas também<br />
gran<strong>de</strong> parte da vegetação ciliar que protegia as lagoas, os furados e os minadores d’água<br />
que alimentam as lagoas na época das cheias. A retirada <strong>de</strong>ssa vegetação <strong>de</strong> proteção dos<br />
cursos d’água implica em impactos na sua manutenção, no fornecimento <strong>de</strong> alimentos à<br />
fauna, no sombreamento e na proteção contra a seca, a erosão e o assoreamento, como<br />
bem relata Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, ao se referir aos “córregos <strong>de</strong> vestido”:<br />
– Essas lagoas, com lama, sempre foram assim, Seu A<strong>de</strong>lino? Sempre existiram lagoas assim,<br />
mais lamacentas?<br />
Seu A<strong>de</strong>lino – É, alguma <strong>de</strong>las era lamacenta. Agora, outras, é porque esses dono <strong>de</strong> máquina, <strong>de</strong><br />
trator, eles chega num lugar <strong>de</strong>sses, que o pessoal fala, um lugar <strong>de</strong>sses, lombado, eles chega, mete<br />
o trator aqui, <strong>de</strong>pois do trator, mete a gra<strong>de</strong>a<strong>de</strong>ira pra cozinhar aquele barro. Aí, naquela terra, fica<br />
aquela pomadinha, e, quando São Pedro manda chuva, aqui no nosso chão só <strong>de</strong>sce aquele barro<br />
que vai tudo pra lagoa ou pro córrego. Qual é a tendência? Aterrar as lagoa e aterrar o córrego.<br />
Como está aí. Outra coisa: quando eu conheci – que eu nasci aqui e hoje eu tô com 60 ano, né? –,<br />
esses córrego era tudo <strong>de</strong> vestido. De vestido, que eu digo, é assim, <strong>de</strong> árvore; árvore que eu tô<br />
74<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
dizendo é assim, nóis trata “mãe dos pau”, que tem aí <strong>de</strong>ntro, né? Inclusive as lagoa, era tudo<br />
vestido <strong>de</strong> mato. Nóis, pra ir nelas, nóis já tinha as carreira estriada pra ir nas lagoa. Que que eles<br />
fez? Eles cortou esses pau!<br />
(Seu A<strong>de</strong>lino Pereira <strong>de</strong> Aquino, 60 anos, morador <strong>de</strong> Cabaceiros; 20/04/04)<br />
O intenso processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento, acentuado a partir da década <strong>de</strong> 1970, ocorreu<br />
não apenas na região da caatinga mas também no cerrado, sob a forma <strong>de</strong> chapadões. A<br />
cabeceira do rio Arapuim encontra-se na região <strong>de</strong> cerrado entre São João da Ponte e<br />
Varzelândia, atualmente ocupada por pastagens e monocultura <strong>de</strong> eucalipto para a produção<br />
<strong>de</strong> carvão. O manejo efetivado por essas duas ativida<strong>de</strong>s econômicas produziu<br />
uma perda hídrica generalizada nos cerrados, interferindo no volume <strong>de</strong> várias bacias<br />
hidrográficas da região, como a do Arapuim.<br />
O capim braquiária, usado preferencialmente pelos fazen<strong>de</strong>iros para a formação <strong>de</strong><br />
largas pastagens por ser o mais resistente à seca, produz muitas raízes e inviabiliza o<br />
cultivo <strong>de</strong> quaisquer outras plantas. O uso <strong>de</strong> inseticidas e herbicidas com o objetivo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>struir insetos ou outras plantas que possam prejudicar o <strong>de</strong>senvolvimento do capim<br />
atinge os cursos d’água e as terras <strong>de</strong> cultura.<br />
A barragem no rio Arapuim, na altura do núcleo Caxambu, construída sob a argumentação<br />
da irrigação, interceptou o processo <strong>de</strong> piracema dos peixes que para ali subiam,<br />
vindos do Ver<strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> na época das cheias, e que representavam garantia <strong>de</strong><br />
alimento farto para a comunida<strong>de</strong> a partir da <strong>de</strong>scida das águas, quando nas lagoas<br />
ficavam e se reproduziam. A barragem provocou também a inundação <strong>de</strong> terras antes<br />
utilizadas para plantios da comunida<strong>de</strong>, assim como a da estrada que liga Caxambu a<br />
Araruba, inviabilizando a travessia naquele trecho quando o Arapuim está cheio. Seu<br />
Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira lamenta não po<strong>de</strong>r mais cultivar arroz, <strong>de</strong>vido à construção<br />
da barragem:<br />
– E arroz, vocês plantam aqui?<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s – Aqui, não. Não plantamo mais, que as água rateou muito. Num dá mais pra<br />
plantar arroz. Alagou aí...<br />
– Por que a água “rateou”?<br />
Seu Aristi<strong>de</strong>s – Por causa que o riozinho aprofundou muito... Aprofundou, e, on<strong>de</strong> vem as<br />
enchente, que nem inclusive lá da barragem ali, quando vem as enchente, ela pega, ela recua lá pra<br />
trás, toma conta daquela lagoa do fundo da casa do meu irmão, lá. Ali fica um tempo. E o arroz<br />
num po<strong>de</strong> pegar água pra água esquentar. Que a água na lagoa, que nem ela tava ali, ela escoando<br />
sozinha ali, ela esquenta, e o arroz num produz, num floresce não. Que ele faz é morrer, né? Aí<br />
nóis num planta, já tem vários tempo que nóis num planta mais arroz aqui.<br />
(Seu Aristi<strong>de</strong>s Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, 59 anos, morador <strong>de</strong> Caxambu 1; 18/04/04)<br />
A situação <strong>de</strong> escassez vivida atualmente pela comunida<strong>de</strong> transforma seus moradores<br />
em reserva <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra barata, à mercê <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas situadas em loca-<br />
Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Simone Raquel Batista Ferreira<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
75
lida<strong>de</strong>s externas. No período <strong>de</strong> <strong>de</strong>scida das águas, iniciam-se as migrações em busca <strong>de</strong><br />
trabalho, seja na produção <strong>de</strong> carvão para si<strong>de</strong>rúrgicas, seja na produção <strong>de</strong> banana no<br />
vale do rio Ver<strong>de</strong>, seja na colheita do café no sul do estado.<br />
A safra do café chega a <strong>de</strong>slocar 11.000 pessoas do norte do estado. Em Brejo dos<br />
Crioulos, os trabalhadores começam a se <strong>de</strong>slocar no período da estiagem, quando a<br />
roça já foi cultivada. Costumam ir trabalhar na colheita do café várias vezes, até conseguirem<br />
acumular algum dinheiro. Segundo informações <strong>de</strong> um jovem <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos<br />
que trabalha no café, ao chegar à fazenda o empregado tem <strong>de</strong> comprar as suas<br />
coisas, como fogão, colchão, gás. Essas <strong>de</strong>spesas são <strong>de</strong>scontadas no primeiro pagamento,<br />
<strong>de</strong>ste restando pouco ao trabalhador. As condições <strong>de</strong> trabalho não são boas, e quem<br />
fica <strong>de</strong>vendo algum dinheiro tem <strong>de</strong> pagar a dívida para po<strong>de</strong>r sair da fazenda <strong>de</strong> café,<br />
o que revela um tipo <strong>de</strong> escravidão por dívida.<br />
Quanto ao carvão, conta-se que a si<strong>de</strong>rúrgica Gerdau empregava cerca <strong>de</strong> 200 pessoas<br />
em seus plantios <strong>de</strong> eucalipto na região <strong>de</strong> Curvelo e Três Marias, sendo a maioria <strong>de</strong>las<br />
<strong>de</strong> Brejo dos Crioulos. Há 10 anos, quando a comunida<strong>de</strong> passou a lidar também com a<br />
colheita do café, os trabalhadores têm alternado dois anos no plantio <strong>de</strong> eucalipto com<br />
um ano na colheita do café. Localmente, a produção <strong>de</strong> carvão oriundo das poucas<br />
matas nativas que restam vem se concretizando como uma outra alternativa <strong>de</strong> sobrevivência<br />
para alguns moradores, cujo trabalho permanece explorado pelos atravessadores<br />
da mercadoria até as si<strong>de</strong>rúrgicas.<br />
– Você trabalha com carvão, não é? Faz tempo?<br />
Roberto – É assim: um período trabalha fazendo carvão, <strong>de</strong>pois trabalha fazendo forno pro<br />
próprio carvão, né? Um período tirando lenha... É assim, né? Num tem um serviço constante.<br />
Também tem serviço provisório, né? Mas os mais serviço que aparece por aqui é esse tipo <strong>de</strong><br />
serviço, serviço <strong>de</strong> carvão, que não tem outro, né?<br />
– E vocês fazem carvão para fora, para uma firma? Para quem vocês produzem o carvão?<br />
Roberto – É, entrega pra si<strong>de</strong>rúrgica, pra fora, né?<br />
– Vocês entregam o carvão produzido aqui diretamente para a si<strong>de</strong>rúrgica?<br />
Roberto – É, a gente ven<strong>de</strong> pro caminhoneiro, e o caminhoneiro ven<strong>de</strong> pra si<strong>de</strong>rúrgica.<br />
– E <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem o caminhoneiro?<br />
Roberto – Vem <strong>de</strong>... muitas vezes vem <strong>de</strong> Montes Claros, vem <strong>de</strong> Sete Lagoas... <strong>de</strong>sses lugares, né?<br />
– E por quanto vocês ven<strong>de</strong>m o metro do carvão?<br />
Roberto – Ah, agora tá valendo uns 50 reais o metro.<br />
– Eles lhe pagam 50 reais pelo metro...<br />
Roberto – É. Bruto, né? É tudo por conta sua: o carreto, o que você gastar, você tem que tirar tudo<br />
disso mesmo. [...]<br />
76<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Brejo dos Crioulos: saberes tradicionais e afirmação do território
– E aí o caminhoneiro vem e pega o carvão aqui, na mão <strong>de</strong> vocês?<br />
Roberto – É.<br />
– Por quanto ele ven<strong>de</strong> o carvão lá? Você tem idéia?<br />
Roberto – Eu acredito... Eles não falam o preço certo não, mas acredito que é... 50%. 50% a mais<br />
eles ven<strong>de</strong>m lá. Por exemplo, se eles foram pagar 50 aqui na roça, eles vai e ven<strong>de</strong> lá por 100, cento<br />
e pouco... Eu acredito que o caminhão ganha mais que quem faz o próprio carvão.<br />
(Roberto Rodrigues <strong>de</strong> Castro, 43 anos, morador <strong>de</strong> Araruba; 19/04/04)<br />
A busca por outras ativida<strong>de</strong>s com o intuito <strong>de</strong> garantir a própria subsistência vem<br />
cerceando a autonomia camponesa <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos, traduzida na perda da liberda<strong>de</strong><br />
em <strong>de</strong>finir o tempo e o valor do próprio trabalho. Não tendo mais o controle dos<br />
meios <strong>de</strong> produção necessários à reprodução da própria existência, esse campesinato<br />
negro inicia uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência para com o capital, ao ven<strong>de</strong>r sua força <strong>de</strong><br />
trabalho e não mais controlar o processo produtivo.<br />
A expropriação passa a limitar a transmissão dos saberes seculares, nascidos da interação<br />
<strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> com o meio on<strong>de</strong> vive. Produzir a visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses saberes é<br />
buscar trazer à memória os sentidos <strong>de</strong> um tempo em que se vivia sem medo, em que a<br />
lógica do comum organizava as relações sociais e em que se liam os compassos da<br />
natureza para garantir a presença do alimento e da moradia. Reviver os saberes é reviver<br />
o território. Trazer à tona o território dos saberes <strong>de</strong> Brejo dos Crioulos vem reafirmar seu<br />
território <strong>de</strong> direito enquanto “comunida<strong>de</strong> remanescente <strong>de</strong> quilombos”.<br />
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
Referências<br />
ALMEIDA, Alfredo<br />
Wagner Berno <strong>de</strong>. Terras<br />
<strong>de</strong> preto, terras <strong>de</strong> santo,<br />
terras <strong>de</strong> índio: posse<br />
comunal e conflito.<br />
Humanida<strong>de</strong>s, Brasília, n.<br />
15, p. 42-49, 1987.<br />
CÂNDIDO, Antônio. Os<br />
parceiros do rio Bonito:<br />
estudo sobre o caipira<br />
paulista e a transformação<br />
dos seus meios <strong>de</strong> vida.<br />
8. ed. São Paulo: Duas<br />
Cida<strong>de</strong>s, 1988.<br />
COSTA, João Batista <strong>de</strong> A.<br />
Do tempo da fartura dos<br />
crioulos ao tempo <strong>de</strong> penúria<br />
dos morenos: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
através <strong>de</strong> um rito em<br />
Brejo dos Crioulos (MG).<br />
1999. Dissertação (Mestrado<br />
em Antropologia Social) –<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Brasília,<br />
Brasília, 1999.<br />
DIEGUES, Antônio<br />
Carlos. O mito mo<strong>de</strong>rno da<br />
natureza intocada. 2. ed.<br />
São Paulo: Hucitec, 1998.<br />
WOORTMANN, Klaas.<br />
Com parente não se<br />
“neguceia”: o campesinato<br />
como or<strong>de</strong>m moral.<br />
Anuário Antropológico,<br />
Brasília, n. 87, p. 11-73, 1990.<br />
Belo Horizonte 02(1) 58-77 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Simone Raquel Batista Ferreira<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Graduando em Geografia pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />
<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> – UFMG<br />
Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?:<br />
reflexões sobre produção do espaço,<br />
cidadania e inclusão social na ASMARE 1<br />
1<br />
Este ensaio é parte <strong>de</strong> um trabalho maior,<br />
referente a uma pesquisa <strong>de</strong> Iniciação Científica<br />
junto ao CNPq/PIBIC, iniciada em agosto<br />
<strong>de</strong> 2004 e com previsão <strong>de</strong> término em<br />
agosto <strong>de</strong> 2006.<br />
bhz149390@terra.com.br<br />
Resumo<br />
Partindo da constatação <strong>de</strong> que a Associação<br />
dos Catadores <strong>de</strong> Papel, Papelão e Materiais<br />
Reaproveitáveis (ASMARE) tem sido consi<strong>de</strong>rada<br />
mo<strong>de</strong>lo nacional e experiência bem sucedida<br />
tanto <strong>de</strong> política social quanto daquilo que se<br />
convencionou chamar <strong>de</strong> “empreendimento<br />
sustentável”, realizamos neste ensaio uma<br />
reflexão sucinta acerca dos conteúdos teóricos e<br />
práticos que ancoram tal empreendimento. Para<br />
tanto, procuramos i<strong>de</strong>ntificar – a partir da<br />
confrontação do discurso da “promoção social”<br />
adotado pela Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte e da<br />
percepção <strong>de</strong> como a ASMARE se mostra para a<br />
socieda<strong>de</strong>, lançando mão também das<br />
observações empíricas <strong>de</strong> uma pesquisa maior<br />
por nós realizada – que noções <strong>de</strong> cidadania,<br />
participação social e inclusão social estão contidas<br />
nas suas práticas. Articulamos então tais noções<br />
aos sentidos ocultos da produção (capitalista)<br />
do espaço, a qual se inscreve, em última instância,<br />
na produção do espaço social da ASMARE e da<br />
cotidianida<strong>de</strong> dos catadores a ela associados.<br />
Palavras-chave catadores <strong>de</strong> papel; cidadania;<br />
inclusão social; produção do espaço.<br />
Abstract<br />
The Association of Collectors of Paper, Cardboard<br />
Paper and other Recyclable Materials (Associação dos<br />
Catadores <strong>de</strong> Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis<br />
– ASMARE) has been consi<strong>de</strong>red a national mo<strong>de</strong>l<br />
and a successful experience of both social politics and<br />
what has been conventionally called “sustainable<br />
enterprise”. Based on this fact, this study attempts to<br />
promote a brief reflection about the theoretical and<br />
practical foundations of such un<strong>de</strong>rtaking.<br />
Confronting the discourse of “social promotion” used<br />
by Belo Horizonte jurisdiction, how ASMARE is<br />
viewed by the society, and some empirical observation<br />
withdrawn from a bigger research previously <strong>de</strong>veloped,<br />
this paper attempts to disclose what notions of<br />
citizenship, social participation and social inclusion<br />
lie beneath such practice. A connection between these<br />
notions and some hid<strong>de</strong>n purposes in space (capitalist)<br />
production can be traced, which could also be spotted<br />
in the space production of ASMARE and in the daily<br />
routine of its members.<br />
Keywords paper collectors; citizenship; social<br />
inclusion; space production.<br />
78<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
Introdução<br />
Não são nada mo<strong>de</strong>stas as transformações e reestruturações verificadas nos últimos<br />
trinta anos nos termos mais gerais do capitalismo avançado. 2 Ele ten<strong>de</strong> a lançar seus<br />
tentáculos a espaços-tempos da vida social ainda mais longínquos, pondo e dispondo<br />
sobre aquilo que ainda escapava a tais <strong>de</strong>terminações. Trata-se <strong>de</strong> um processo la<strong>de</strong>ado<br />
<strong>de</strong> contradições, trazendo à tona novas questões e engendrando discussões <strong>de</strong> caráter<br />
tanto local como global – situando aí a problemática ambiental, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentável e o acoplamento <strong>de</strong> suas contendas aos múltiplos cenários que se <strong>de</strong>lineiam<br />
na metrópole contemporânea. Originam-se daí as preocupações acerca da produção,<br />
coleta, transporte e <strong>de</strong>posição do lixo urbano, estando estas na or<strong>de</strong>m do dia visto que<br />
são vários os seus <strong>de</strong>sdobramentos.<br />
Na onda das “visões sistêmicas” e da “interdisciplinarida<strong>de</strong>” – termos proferidos, aos<br />
quatro cantos, em universida<strong>de</strong>s, ONG’s e outros centros <strong>de</strong> conhecimento no âmbito do<br />
aparelho <strong>de</strong> Estado –, tais preocupações têm sido associadas às discussões em torno da<br />
<strong>de</strong>nominada nova pobreza urbana no Brasil. Sobressaem-se daí a questão da reciclagem e<br />
os personagens que historicamente vêm se <strong>de</strong>votando a esse “trabalho”: os catadores <strong>de</strong><br />
materiais recicláveis.<br />
Não tem sido pouca a visibilida<strong>de</strong> auferida por esses sujeitos e sua ativida<strong>de</strong>, a qual,<br />
diga-se <strong>de</strong> passagem, atualmente também conta com as cores da cientificida<strong>de</strong>. Indagamos,<br />
pois, pelas motivações e pelo significado das várias mudanças no tratamento dado<br />
ao catador, observando o quadro belo-horizontino iniciado na década <strong>de</strong> 90, qual seja,<br />
a criação da ASMARE como primeira associação <strong>de</strong> catadores <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>. Sua<br />
existência foi viabilizada pelo intenso trabalho dos Agentes <strong>de</strong> Pastoral, então preocupados<br />
em se ocupar com a “escuta” e o “atendimento” ao catador em Belo Horizonte. 3<br />
Hodiernamente é intensa a disseminação <strong>de</strong> empreendimentos baseados na chamada<br />
“economia solidária”, sobretudo cooperativas e associações. Essas iniciativas buscam<br />
trabalhar em parcerias (sobretudo com ONG’s e associações <strong>de</strong> classe) e “cobrir” interstícios<br />
nos quais o Estado não tem comparecido ou o faz <strong>de</strong> modo precário. Em várias<br />
cida<strong>de</strong>s brasileiras, como São Paulo, Curitiba etc., elas vêm disputando lugar com os<br />
catadores e <strong>de</strong>pósitos antigos.<br />
Julgamos necessária uma primeira releitura dos eixos norteadores da consecução do<br />
projeto ASMARE que, no transcurso <strong>de</strong> seus mais <strong>de</strong> 15 anos <strong>de</strong> história, tem aparecido<br />
como apanágio <strong>de</strong> estudos em diferentes campos do saber. Embora tendo em conta que<br />
<strong>de</strong>vemos transcen<strong>de</strong>r a análise das diversas categorias <strong>de</strong> catadores, com suas vidas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
historicamente ligadas à ativida<strong>de</strong> da catação <strong>de</strong> materiais reaproveitáveis, que perambulam<br />
por Belo Horizonte, priorizaremos aqueles hoje vinculados a essa Associação.<br />
Cumpre <strong>de</strong>stacar que a ASMARE vem sendo consi<strong>de</strong>rada “mo<strong>de</strong>lo nacional” e pedra<br />
<strong>de</strong> toque das políticas sociais e ambientais da Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte. As primeiras<br />
políticas vêm primando pelo Programa <strong>de</strong> Inclusão Produtiva – que será abordado mais<br />
adiante. As últimas referem-se ao programa <strong>de</strong> coleta seletiva municipal, cujas discussões<br />
acerca <strong>de</strong> sua privatização têm causado a apreensão dos catadores associados e suscitado<br />
<strong>de</strong>bates entre o po<strong>de</strong>r público e os agentes mediadores.<br />
2<br />
Alguns autores – Harvey (2002), entre outros<br />
– po<strong>de</strong>m ajudar na reflexão acerca<br />
<strong>de</strong>sse tema.<br />
3<br />
Para <strong>de</strong>talhes sobre o trabalho <strong>de</strong> mobilização<br />
social empreendido pelos Agentes <strong>de</strong><br />
Pastoral, ver Oliveira (2001).<br />
Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
79
4<br />
Trecho transcrito do fol<strong>de</strong>r intitulado Prefeitura<br />
<strong>de</strong> Belo Horizonte e ASMARE: mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> programa social.<br />
5<br />
É preciso acatar com sérias reservas a “conquista”<br />
do direito ao trabalho pelo catador.<br />
Em que medida esse “direito” po<strong>de</strong> ser visto<br />
como conquista, uma vez que a inserção<br />
(pseudo)formalizada <strong>de</strong>ssa categoria no<br />
mundo do trabalho apenas “resignifica” os<br />
termos da sua exploração social, política e<br />
econômica?<br />
Nossa análise toma como base os termos do discurso institucional, estabelecedor dos<br />
meios pelos quais vem se promovendo o “novo olhar sobre o catador”. Preten<strong>de</strong>mos<br />
esboçar um painel inquiridor das inflexões entre o conteúdo das práticas <strong>de</strong> tais agentes e o<br />
verificado a partir da observação empírica continuamente empreendida em nossa pesquisa.<br />
Partimos da seguinte premissa: a razão <strong>de</strong> Estado, que traz tudo e todos em seu favor,<br />
trouxe os catadores para atuarem no espetáculo da catação “institucionalizada”, cujo<br />
palco é o mercado da reciclagem. Suas origens e posterior consolidação acham-se presentes<br />
nos marcos atuais do capitalismo avançado, em seu continente <strong>de</strong> transformações.<br />
Na busca do aclaramento <strong>de</strong>ssas questões, é também propósito <strong>de</strong>ste ensaio refletir<br />
acerca <strong>de</strong> algumas noções que passaram a fazer parte do discurso institucional em<br />
torno da “promoção social” em Belo Horizonte, a saber: a construção da cidadania e<br />
a inclusão social do catador <strong>de</strong> papel. Seus significados parecem ter sido vigorosamente<br />
distorcidos, acabando por ocultar as contradições e as irracionalida<strong>de</strong>s presentes na<br />
lógica reprodutiva do mercado da reciclagem no Brasil. Evita-se localizar a trajetória<br />
da ASMARE no celeiro das condicionantes estruturais orientadoras dos marcos atuais<br />
da reprodução capitalista. No discurso da administração municipal, a associação aparece<br />
como: “[...] exemplo <strong>de</strong> experiência bem-sucedida na implementação da política<br />
social do município. Des<strong>de</strong> a sua fundação [...] a ASMARE cresceu significativamente<br />
com o apoio da Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte, em uma parceira <strong>de</strong> sucesso”. 4<br />
Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> articular tais distorções às estratégias atinentes à produção<br />
capitalista do espaço, beneficiadora <strong>de</strong> alguns segmentos e interesses nem sempre evi<strong>de</strong>nciados.<br />
Numa observação mais ampla, elas se inscrevem na produção do espaço<br />
social da ASMARE, canalizando e produzindo a cotidianida<strong>de</strong> do catador <strong>de</strong> papel. São<br />
prescrições e opressões vividas <strong>de</strong> tal modo, que passam a contribuir para a fragmentação<br />
e a <strong>de</strong>sagregação das relações internas à Associação e das <strong>de</strong>sta com os catadores<br />
“autônomos” ligados aos <strong>de</strong>pósitos particulares.<br />
Somos levados a interrogar como se ancora a efetivação do “direito ao trabalho” 5 –<br />
cujo marco foi o reconhecimento dos catadores como parceiros prioritários da coleta<br />
seletiva em Belo Horizonte –, elemento caro às noções <strong>de</strong> construção da cidadania e<br />
inclusão social do catador. Para a literatura referente à temática, esse “direito” é o fulcro<br />
da sua mudança <strong>de</strong> vida. Tal entendimento abre flancos para novas reflexões sobre o<br />
mundo do trabalho, marcado na atualida<strong>de</strong> pela dramática <strong>de</strong>bilitação dos seus processos<br />
norteadores, levando ao mal-estar da “vida danificada” (ADORNO, 1993), com seus<br />
sentidos drasticamente reduzidos.<br />
A produção (capitalista) do espaço<br />
e o embotamento da cidadania plena<br />
As consi<strong>de</strong>rações que aqui trazemos à baila, embora colocadas <strong>de</strong> maneira um tanto<br />
expedita, vinculam-se àquilo que Henri Lefebvre (2003) assinala como premissa<br />
fundamental para enten<strong>de</strong>r a(s) lógica(s) que presi<strong>de</strong>(m) a produção do espaço e sua<br />
umbilical relação com o processo geral <strong>de</strong> (re)produção do capitalismo avançado: as<br />
“relações sociais <strong>de</strong> produção”. A nosso ver, esse fio condutor criaria as condições não<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
<strong>de</strong> negação, mas <strong>de</strong> superação das abordagens que ainda tomam o espaço tão-somente<br />
como “campo” funcional e instrumental da produção em sentido restrito (e restritivo). Ou<br />
seja, a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “[...] produção <strong>de</strong> coisas e seu consumo” (LEFEBVRE, 2003, p. 21)<br />
não po<strong>de</strong> se conformar como sendo uma forma pura, cujos conteúdos se põem como<br />
<strong>de</strong>finitivos e unidimensionais: <strong>de</strong>ve incorporar a (re)produção do próprio homem na<br />
sua totalida<strong>de</strong> e das relações sociais nas quais ele se insere e <strong>de</strong>las toma partido. Nesse<br />
sentido, o autor dá relevo à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse salto qualitativo na reflexão crítica acerca<br />
do espaço: “Não se po<strong>de</strong> dizer que o espaço seja um produto como um outro, objeto<br />
ou soma <strong>de</strong> objetos, coisa ou coleção <strong>de</strong> coisas, mercadoria ou conjunto <strong>de</strong> mercadorias”<br />
(LEFEBVRE, 2003, p. 21).<br />
Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> chamar a atenção para as análises promotoras <strong>de</strong> uma leitura<br />
fragmentadora e parcial do espaço e que, por isso, dão a ele apenas a “qualida<strong>de</strong>” <strong>de</strong><br />
produto, sem pensá-lo também como produtor <strong>de</strong> práticas, <strong>de</strong> vivências e (também) <strong>de</strong><br />
constrangimentos. Enfim, são construções que <strong>de</strong>finem e são <strong>de</strong>finidas no seio da reprodução<br />
das relações sociais <strong>de</strong> produção.<br />
Justifica-se então tomarmos emprestada essa noção mais alargada <strong>de</strong> produção para<br />
enten<strong>de</strong>rmos os sentidos e a finalida<strong>de</strong> daquilo que Lefebvre (2003, p. 22) assinala no<br />
que tange à reprodução das relações sociais <strong>de</strong> produção: “[...] o espaço inteiro torna-se<br />
o lugar <strong>de</strong>ssa reprodução, aí incluídos o espaço urbano, os espaços <strong>de</strong> lazeres, os espaços<br />
ditos educativos, os da cotidianida<strong>de</strong> etc.”. Sendo ele (o espaço) mobilizado numa escala<br />
sem prece<strong>de</strong>ntes, abarcado por mediações que o tornam homogêneo e ao mesmo tempo<br />
fragmentado para dar continuida<strong>de</strong> ao processo <strong>de</strong> acumulação do capital, é mister<br />
clarificar o modo pelo qual as diferentes instâncias da vida social passam a compor o<br />
cenário <strong>de</strong> suas estratégias: entre outras, visar à emergência <strong>de</strong> novos circuitos econômicos,<br />
<strong>de</strong> novos espaços e tempos do consumo.<br />
Assim sendo, nunca é <strong>de</strong>masiado dizer que o capital tem, como condição sine qua non<br />
do seu processo reprodutivo, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> garantir as bases para o impulso contínuo<br />
<strong>de</strong> sua valorização. Fazendo-se correlatas à produção do espaço levado à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
força produtiva no jogo da acumulação própria à formação econômico-social capitalista,<br />
tais características nos permitem pensar o espaço <strong>de</strong>sfigurado e aniquilado para o<br />
pleno uso e ao mesmo tempo intensivamente formalizado e mobilizado para a troca, como<br />
“mercadoria” (DAMIANI, 2001a, p. 50).<br />
Correspon<strong>de</strong>nte a esse fenômeno é a existência imediata sendo tomada <strong>de</strong> assalto por<br />
uma instrumentalização que a torna estéril, carente <strong>de</strong> fulgor. Paira sobre ela uma luz já<br />
<strong>de</strong>sfocada, implacável, porém disposta a abarcar suas dimensões mais distantes. É o<br />
torniquete da valorização capitalista, razão <strong>de</strong> ser da economia <strong>de</strong> mercado tornada<br />
razão pura <strong>de</strong> ser da vida, colonizando o <strong>de</strong>sejo. Seu vir-a-ser transmuta-se em em si, <strong>de</strong>scaracterizando-se<br />
e, por sua vez, caracterizando via simulacro seus variados cenários,<br />
numa engenharia que a faz mera “dinâmica” posta pelos agentes sociais dirigentes e<br />
inelutavelmente canalizada e subsumida ao jogo do po<strong>de</strong>r.<br />
As prescrições contidas na racionalida<strong>de</strong> global aplicadas à produção do espaço, convertidas<br />
em abstração concreta sob a sua batuta na medida em que o capitalismo efetiva-<br />
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Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
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mente se pôs <strong>de</strong> pé na história, alteraram visceralmente as formas e os conteúdos da<br />
cida<strong>de</strong>. Nesse transcurso ergueu-se a metrópole, objeto “coisal” dos reaparelhamentos<br />
materiais e simbólicos produtores da caricatura real on<strong>de</strong> as normas reinam. Acham-se<br />
nos seus marcos as representações espaciais dominantes, reivindicadoras, numa ação<br />
concomitante <strong>de</strong> dissimulação e truculência, do estatuto do real em si mesmo, fi<strong>de</strong>digno. A<br />
(re)produção <strong>de</strong> hierarquias <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m no capitalismo global justifica a apregoada<br />
intervenção cirúrgica nesse espaço, o qual, nas palavras <strong>de</strong> Lefebvre (2003, p. 26), sendo<br />
“[...] comum às ativida<strong>de</strong>s diversas e parcelares, no quadro imposto da socieda<strong>de</strong><br />
burguesa, é um esquema do qual essa socieda<strong>de</strong> se serve para tentar constituir-se em<br />
sistema, para atingir a coerência”.<br />
Aprisionados aos <strong>de</strong>sígnios hegemônicos, espaço e vida social, conjuntamente e sem<br />
prece<strong>de</strong>nte similar, tornam-se alvo <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> obsessiva <strong>de</strong> controle. Seus ritmos e ciclos<br />
sofrem intensas pressões e opressões <strong>de</strong>ssas forças sociais que simultaneamente trazem<br />
consigo o instituinte e dissimulam suas estratégias. Elas se apresentam em diversos níveis<br />
e em dimensões “indiferentemente” imersas no movimento implacável e inexorável do<br />
“real”. É na formalização do espaço, tido como “neutro”, que se negam as qualida<strong>de</strong>s<br />
sensíveis das práticas espaciais prece<strong>de</strong>ntes, forçando sua diluição ao torná-las, na “melhor”<br />
das hipóteses, signos para o consumo. Desqualificam-se o ser e o viver nas representações<br />
operantes nesse espaço, i<strong>de</strong>alizado como fútil instância da valorização do capital.<br />
Essa lógica acredita po<strong>de</strong>r produzi-los e or<strong>de</strong>ná-los, encarcerá-los na <strong>de</strong>terminação insana<br />
da autorida<strong>de</strong>, do cálculo e das sistematizações da tecnoburocracia <strong>de</strong> Estado. Ora, o<br />
humano do homem não é algo que possa ser relegado aos confins do ilusionismo <strong>de</strong>mográfico-estatístico!<br />
Por isso, tal dinâmica não se faz presente sem uma <strong>de</strong>nsa e intricada trama <strong>de</strong> tensões,<br />
<strong>de</strong> conflitos, <strong>de</strong> lutas, <strong>de</strong> (<strong>de</strong>s)encontros e <strong>de</strong> imbricações <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m nas relações<br />
sociais. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r esses elementos como resultado e condição<br />
das contradições do espaço. A esse respeito, os dizeres <strong>de</strong> Amélia Damiani (2001a, p. 50)<br />
nos dão uma importante pista:<br />
Se não examinássemos a produção do espaço sob o enfoque <strong>de</strong> suas contradições, não<br />
recuperaríamos o sentido <strong>de</strong>ste momento na história humana e, por outro lado, sua singularida<strong>de</strong>.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista das contradições, a crise e o movimento ganham existência, sob a aparência da<br />
consolidação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado modo <strong>de</strong> interferência humano, po<strong>de</strong>roso e inconteste.<br />
Nesse sentido compreen<strong>de</strong>mos a construção da cidadania, emergindo da inconstância<br />
e do movimento que povoam a vida social, do sentimento coletivo estimulado em<br />
face do questionamento das representações hegemônicas presentes na produção do<br />
espaço. Seus possíveis vêm à tona quando se reivindicam outros rumos ou, antes, as<br />
contrapartidas ao solapamento avassalador imposto às práticas espaciais ina<strong>de</strong>quadas<br />
e/ou ameaçadoras ao ritmo cego do <strong>de</strong>senvolvimentismo; em outras palavras, quando<br />
se entra em rota <strong>de</strong> colisão contra aquilo que é tido como posto e sacramentado,<br />
colocado como unicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spolitizante ratificada pela dita (e pretensa) racionalida<strong>de</strong><br />
abstrata e or<strong>de</strong>nadora do po<strong>de</strong>r.<br />
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Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
Por isso, localizamos nas tensões e conflitos que marcam o movimento da realida<strong>de</strong><br />
social as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> soerguimento no interior <strong>de</strong>sse turbilhão <strong>de</strong> outras práticas<br />
espaciais, consciente ou inconscientemente colocando em questão a redução do vivido<br />
ao concebido <strong>de</strong>finidor da vida. Seguindo essas pistas, talvez possamos nos <strong>de</strong>parar<br />
com uma noção ampliada <strong>de</strong> cidadania, a qual “envolve o sentido que se tem do lugar e<br />
do espaço, já que se trata da materialização das relações <strong>de</strong> todas as or<strong>de</strong>ns, próximas ou<br />
distantes” (DAMIANI, 2001b, p. 50). Tal concepção esbarra (e, por isso, incomoda) nas<br />
<strong>de</strong>terminações moventes das relações sociais <strong>de</strong> produção capitalistas.<br />
Outrossim, a todo momento reduzida por um estereótipo que paradoxalmente apregoa<br />
sua ampliação, a concretização da idéia abstrata <strong>de</strong> uma noção <strong>de</strong> cidadania não<br />
mais inscrita na contestação abrangente do posto e do instituído, promovendo a redução<br />
da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exigir a manutenção e a construção <strong>de</strong> novos direitos – e não <strong>de</strong><br />
meras concessões –, concorre para o embotamento da emergência <strong>de</strong> uma cidadania plena<br />
entre nós. No nosso enten<strong>de</strong>r, esse esgarçamento <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s vem se adjetivando<br />
nos processos mais amplos nos quais se inscreve o redimensionamento dado à questão<br />
da catação e do catador.<br />
Ora, não há construção <strong>de</strong> práticas cidadãs sem apropriação 6 ou resgate das possibilida<strong>de</strong>s<br />
do seu exercício, pois “um espaço realiza-se como social quando é, <strong>de</strong> fato, apropriado”<br />
(DAMIANI, 2001a, p. 51), quando o bem-viver se realiza na concretu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sejo<br />
espontâneo, sem mediações redutoras – ao contrário do espaço do po<strong>de</strong>r, reduzido à<br />
miséria espetacular da vida social diagramada pela lógica (formal), associado à menção<br />
alienante <strong>de</strong> uma suposta autonomia individual e coletiva, mas que carrega sua face brutalmente<br />
coercitiva. Contudo, vale dizer que, embora esse contraditório movimento seja<br />
expressão da produção do espaço na sua totalida<strong>de</strong> e ao mesmo tempo esteja cada vez<br />
mais a ela articulado, “a vida contraditória inva<strong>de</strong> e perturba a racionalida<strong>de</strong> redutora<br />
imposta. Nesse momento, mesmo que residualmente existe apropriação” (DAMIANI,<br />
2001a, p. 54).<br />
Não queremos a ratificação <strong>de</strong> tais mediações: o relacionar-se com o mundo, criar,<br />
mas recriar-se nele e com ele, rebaixado <strong>de</strong> vez às convenções e aos critérios do instituído<br />
e do instituinte postos pelo pensamento único. Não nos contentamos com as conquistas<br />
do gênero humano, distorcidas e reprimidas pelas relações fundamentais <strong>de</strong> produção<br />
<strong>de</strong> mercadorias, nos sendo vendidas no belo frasco da liberda<strong>de</strong> encarceradora e produtora<br />
<strong>de</strong> uma vil passivida<strong>de</strong>. O antigo discurso acerca das chamadas “<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />
sociais” sendo mitigadas e/ou eliminadas pelo movimento <strong>de</strong> “inclusão” na socieda<strong>de</strong><br />
na qual o consumo conspícuo é regra dá mostras <strong>de</strong> que já não surte mais efeito: “A nova<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> resulta do encerramento <strong>de</strong> uma longa era <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ascensão<br />
social [...]. Apesar disso, o imaginário que cimenta essa ruptura é um imaginário único,<br />
mercantilizado, enganador e manipulável” (MARTINS, 1998, p. 22).<br />
Muito do recorrente no trato com a noção <strong>de</strong> cidadania – estendido à noção <strong>de</strong> participação<br />
social, entendida como revigoradora, dando pujança às lutas pela construção<br />
daquela – sedimenta-se na forma <strong>de</strong> um preocupante “<strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> significado”<br />
(DAGNINO, 2004, p. 98). Esse processo concorre para o embotamento dos sentidos <strong>de</strong><br />
6<br />
De acordo com Lefebvre (1991, p. 30), a<br />
apropriação é o “[...] traço característico da<br />
ativida<strong>de</strong> criadora, pela qual o que vem da<br />
natureza e da necessida<strong>de</strong> se transforma em<br />
obra [...]”.<br />
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uma concepção robusta <strong>de</strong> bem público, fundada no alicerce das emancipações política<br />
e social da socieda<strong>de</strong>.<br />
Sustentamos a idéia <strong>de</strong> que os efeitos daí sobrevindos inci<strong>de</strong>m diretamente sobre as<br />
concepções que vêm norteando o projeto ASMARE, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua gênese apoiado na<br />
propalada visão inovadora das políticas <strong>de</strong> inclusão produtiva e reintegração social adotadas<br />
pela Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte. A matriz discursiva <strong>de</strong> tais políticas aparece como<br />
alvo <strong>de</strong> nossa crítica: as noções <strong>de</strong> cidadania, participação e inclusão social da população<br />
<strong>de</strong> ou em situação <strong>de</strong> rua – verticalizando nossa análise sobre o catador associado à AS-<br />
MARE. Por isso, o entendido aqui como ampla e radical <strong>de</strong>mocratização dos processos<br />
participativos com vistas ao engajamento <strong>de</strong> sujeitos sociais num campo <strong>de</strong> reconhecimento<br />
e ampliação <strong>de</strong> direitos parece per<strong>de</strong>r terreno vertiginosamente no espaço-tempo<br />
daquela Associação. É nesse flanco que ela penetra <strong>de</strong>smedidamente nas cercanias <strong>de</strong><br />
uma voraz lógica mercantil – impelida a se pintar com as tintas das organizações empresariais<br />
capitalistas –, ten<strong>de</strong>ndo a <strong>de</strong>sviar-se das supracitadas noções orientadoras <strong>de</strong> suas<br />
premissas iniciais. Desenvolveremos melhor esses argumentos mais adiante.<br />
Gênese e consolidação da ASMARE:<br />
(<strong>de</strong>s)caminhos da cidadania e da política?<br />
Tem-se a década <strong>de</strong> 90 como o locus do <strong>de</strong>senlace concomitante entre a emergência <strong>de</strong><br />
uma cultura política associada aos movimentos sociais e a chegada ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> gestões<br />
– sobretudo municipais – pautando em suas agendas <strong>de</strong> governo relações mais próximas<br />
com esses movimentos. Tal contexto viabilizou-se em Belo Horizonte a partir <strong>de</strong> 1993,<br />
quando o Partido dos Trabalhadores, na figura <strong>de</strong> Patrus Ananias, assumiu a Prefeitura,<br />
trazendo na sua pauta <strong>de</strong> gestão um processo <strong>de</strong> recondução dialógica através do incentivo<br />
à criação <strong>de</strong> espaços públicos <strong>de</strong>scentralizados <strong>de</strong> participação popular. Em tese, isso<br />
significava uma reconfiguração nos arranjos que compunham as relações entre o po<strong>de</strong>r<br />
público e a socieda<strong>de</strong> civil, caracterizando a ampliação <strong>de</strong> seu terreno com uma nova<br />
governança sob a égi<strong>de</strong> do que Sônia Maria Dias (2002, p. 62) chama <strong>de</strong> “gestões<br />
<strong>de</strong>mocráticas inovadoras”.<br />
Nesse quadro, a literatura disponível estabelece uma espécie <strong>de</strong> divisor <strong>de</strong> águas no<br />
qual as relações entre po<strong>de</strong>r público e entida<strong>de</strong>s ligadas à busca do alívio do sofrimento<br />
daqueles que vivem da rua passam a ser traçadas sob um novo prisma. Surgem vozes alar<strong>de</strong>adoras<br />
e propagadoras <strong>de</strong> um contexto sociopolítico propício, no qual se lança um<br />
“novo” olhar sobre a questão do catador. Tais gestões valer-se-iam do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “junção<br />
entre eficiência governamental, eqüida<strong>de</strong> e governança”, constituindo-se em um amplo<br />
passo para “garantir o exercício da cidadania dos grupos tradicionalmente marginalizados”<br />
(DIAS, 2002, p. 62, grifo nosso).<br />
Há <strong>de</strong> se atentar para a estratégia pendular <strong>de</strong> captura/distensão, quando conveniente,<br />
<strong>de</strong> movimentos sociais ou reivindicativos pelo po<strong>de</strong>r público. Essas estratégias transferem<br />
para a ação <strong>de</strong> Estado o caráter <strong>de</strong>miúrgico da geração e manutenção dos programas<br />
a eles <strong>de</strong>stinados – os quais ganhariam legitimida<strong>de</strong> como interlocutores junto às<br />
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esferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e à socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>monstrando sua “eficiência e habilida<strong>de</strong>” no trato<br />
com “grupos marginalizados”.<br />
Os momentos subseqüentes são marcados pela “ampliação” das relações entre a AS-<br />
MARE e o po<strong>de</strong>r público municipal. A nosso ver, sobressaem-se cinco pilares nos quais<br />
se fundaria a construção da cidadania/inclusão social entre os catadores <strong>de</strong> papel na<br />
ASMARE: a) conquista do “direito ao trabalho” pelo catador <strong>de</strong> papel e “efetivação” <strong>de</strong><br />
sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “trabalhador”; b) po<strong>de</strong>r público e suas instituições correlatas buscando<br />
abrir, aos agentes que têm se ocupado do trabalho com a população <strong>de</strong> rua e/ou<br />
catadores <strong>de</strong> papel – e mesmo para esses últimos –, canais nos quais estes pu<strong>de</strong>ssem<br />
ouvir e se fazer ouvidos; c) criação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s para um amplo e incentivador<br />
trabalho visando ao processo organizativo dos catadores; d) criação <strong>de</strong> condições objetivas<br />
(através <strong>de</strong> diversos convênios envolvendo o po<strong>de</strong>r público e entida<strong>de</strong>s parceiras)<br />
para a capacitação profissional <strong>de</strong>sses indivíduos, visando à formação e ao fortalecimento<br />
do capital social; 7 e) afirmação, por parte dos agentes <strong>de</strong> mediação envolvidos com a<br />
“causa do catador” (po<strong>de</strong>r público e entida<strong>de</strong>s diversas), <strong>de</strong> que todo o trabalho tem<br />
primado pela efetivação da melhoria das “condições <strong>de</strong> vida” e do “reconhecimento<br />
social” do catador. Sônia Maria Dias (2002, p. 69), em seu trabalho sobre o que ela<br />
consi<strong>de</strong>ra a “construção da cidadania” na Associação, corrobora tais pilares:<br />
Já vimos [...] as dificulda<strong>de</strong>s dos associados em relação à adoção do universo <strong>de</strong> regras e <strong>de</strong>veres<br />
da ASMARE e dos seus espaços <strong>de</strong> trabalho, mas vimos também como a linguagem e a prática da<br />
participação, do compartilhamento, da resolução <strong>de</strong> conflitos através da troca <strong>de</strong> idéias vêm<br />
paulatinamente criando novas sociabilida<strong>de</strong>s entre os catadores, possibilitando o exercício <strong>de</strong> uma<br />
prática cidadã, compreendida aqui no âmbito do estabelecimento <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> co-responsabilida<strong>de</strong><br />
que a gestão do projeto <strong>de</strong> coleta seletiva em parceria supõe.<br />
Em contrapartida, Jacques Rancière (1996, p. 368), em seu seminal ensaio acerca das<br />
formas entonadoras dos termos que perfazem a relação entre Estado e socieda<strong>de</strong> civil,<br />
chegando aos redutos mais triviais da vida social, faz a “crítica do discurso atualmente<br />
dominante que i<strong>de</strong>ntifica a racionalida<strong>de</strong> política ao consenso e o consenso ao princípio<br />
mesmo da <strong>de</strong>mocracia”. Segundo o autor, o discurso entremeador da racionalida<strong>de</strong><br />
política assinalada institui formas consensuais como sendo, por excelência, as condições<br />
celebradoras da razão, em oposição aos mo<strong>de</strong>los instaurados sob o “arcaísmo” e a<br />
“irracionalida<strong>de</strong>” no embate político. O dissenso como base discursiva e ebulidora dos<br />
imobilismos passa a ser entendido como <strong>de</strong>savença e, por isso, pernicioso à política, mas<br />
passível <strong>de</strong> ser superado por outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>. Nesse caso, a política seria<br />
uma prática <strong>de</strong>scolada do campo das relações sociais – movidas, entre outros aspectos,<br />
pelo <strong>de</strong>sejo e pelo conflito –, <strong>de</strong>vendo situar-se numa plataforma objetiva e sem paixões<br />
<strong>de</strong>sestruturadoras do seu curso “normal”. Rancière (1996, p. 368) alerta: “o que chamam<br />
<strong>de</strong> consenso é na verda<strong>de</strong> o esquecimento do modo <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> próprio à política”,<br />
significando, ao contrário do que se preten<strong>de</strong>, “um certo retorno do irracional”.<br />
A teoria política <strong>de</strong>mocrática que dá o tom da prática política assinalada assenta-se,<br />
assim, no seu contrário: a participação e sua aplicação propostas escamoteiam o seu<br />
7<br />
O capital social, segundo Higgins (2005, p. 3),<br />
são “todos os elementos <strong>de</strong> uma estrutura<br />
social que cumpram a função <strong>de</strong> recurso para<br />
que os indivíduos atinjam a satisfação <strong>de</strong> seus<br />
interesses [...]”.<br />
Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
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8<br />
ASMARE – Associação dos Catadores <strong>de</strong><br />
Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis.<br />
ASMARE: há <strong>de</strong>z anos reciclando vidas. Belo<br />
Horizonte, [2000?]. Edição especial comemorativa,<br />
n.p.<br />
9<br />
GONÇALVES, José Aparecido. Editorial.<br />
ASMARE: há <strong>de</strong>z anos reciclando vidas, Belo<br />
Horizonte, [2000?]. Edição especial comemorativa,<br />
n.p.<br />
José Aparecido Gonçalves foi, à época, administrador<br />
geral da ASMARE.<br />
fundamento truculento. Ela traz também o aqui e agora do cenário sociopolítico brasileiro<br />
como o ápice da construção e da manifestação da cultura política. É possível então não<br />
reconhecer a participação social e a construção da cidadania mostrando-se como horrendas<br />
caricaturas das formas, as quais, po<strong>de</strong>-se dizer, já soam como anteriores? Eis aí a chave<br />
para <strong>de</strong>cifrar os <strong>de</strong>svios contidos na cantilena enfadonha representada pelo catador que<br />
passa a perseguir a condição <strong>de</strong> “cidadão”.<br />
No interior da ASMARE, os catadores reagem <strong>de</strong> forma ambivalente à realida<strong>de</strong> ali<br />
presente, traduzida numa incipiente trajetória <strong>de</strong> mobilização esfumando-se em meio às<br />
exigências disciplinares interiorizadas no processo <strong>de</strong> trabalho. Situa-se aí o imobilismo<br />
que passa a freqüentar a vida cotidiana <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>les. São homens e mulheres<br />
revelando por meio <strong>de</strong> gestos e palavras ambíguas sua própria incerteza. Isso torna-se<br />
patente diante do misto <strong>de</strong> revolta contida e aceitação tácita dos atrasos nas gratificações<br />
ou em face da dramática intensificação da precarieda<strong>de</strong> das condições <strong>de</strong> seu trabalho –<br />
como o aumento dos casos <strong>de</strong> atropelamentos e a inexistência <strong>de</strong> condições mínimas <strong>de</strong><br />
salubrida<strong>de</strong> nos galpões. Questionado no tocante à falta <strong>de</strong> uma organização interna que<br />
leve suas diversas inquietu<strong>de</strong>s para o conhecimento da administração, um catador assim<br />
nos respon<strong>de</strong>u: “é difícil ‘ajuntar’ todo mundo; não há união, o pessoal só quer sair para a ‘panha’<br />
e ganhar dinheiro”.<br />
Deveríamos então <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> encarar com ceticismo os sentimentos aflorados entre<br />
os catadores como sendo <strong>de</strong>correntes da constatação das contradições do espaço cada<br />
vez mais avolumadas naquela Associação? Mais ainda: a iminência <strong>de</strong> emergir em meio<br />
aos associados uma consciência crítica capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma mobilização interna<br />
em prol, se não da superação, da discussão séria acerca dos processos <strong>de</strong> trabalho lá<br />
presentes é possível? Todavia, o discurso fundamentador do trabalho <strong>de</strong>senvolvido na<br />
ASMARE articula-se em torno <strong>de</strong> “uma resposta que vem das ruas”, 8 <strong>de</strong> um processo<br />
<strong>de</strong> inserção iniciado na década <strong>de</strong> 90 e que veio a se efetivar enquanto “novo mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> política pública”, 9 e apresenta para a socieda<strong>de</strong> um catador comprometido com a<br />
transformação <strong>de</strong> si mesmo e também <strong>de</strong> sua categoria através das lutas sociais. O<br />
Movimento Nacional dos Catadores <strong>de</strong> Recicláveis (MNCR) seria o movimento social<br />
a encarnar tais lutas.<br />
Quanto ao “novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> política pública”, situemos, <strong>de</strong> modo diferente das interpretações<br />
anteriormente assinaladas, os catadores em duas dimensões paradoxais, mas<br />
concomitantes e imbricadas. A primeira é o longo processo, mediado inicialmente pela<br />
Pastoral <strong>de</strong> Rua, <strong>de</strong> aproximação e mobilização social junto aos catadores, criando-se<br />
então a ASMARE. Posteriormente, tem-se a parceria com o po<strong>de</strong>r público municipal que<br />
culminaria com a política pública que dá corpo ao seu projeto. A segunda é toda essa<br />
lógica imersa nos termos do implacável ajuste estrutural aplicado ao Brasil dos tempos<br />
neoliberais – impondo novos or<strong>de</strong>namentos para as funções e <strong>de</strong>sígnios do Estado,<br />
incidindo, mormente, sobre as noções <strong>de</strong> público e privado. Tais dimensões ajudam-nos<br />
a pensar, <strong>de</strong>certo sem riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, sobre os (<strong>de</strong>s)encontros das noções <strong>de</strong> cidadania<br />
na formação social brasileira e as práticas daí <strong>de</strong>rivadas.<br />
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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
Não nos esqueçamos das ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> lutas trazidas pelos diversos movimentos sociais<br />
em fins da década <strong>de</strong> 70. Sua cena, sobressaída das periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s,<br />
vem carregada <strong>de</strong> uma promissora consciência, fadigada <strong>de</strong> carregar o pesado fardo das<br />
diferentes qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> privação <strong>de</strong> direitos, presentes, não raro, apenas na letra da lei.<br />
Sumamente atrelada à dinâmica que bafejou tais lutas está a noção <strong>de</strong> participação social, a<br />
qual ganha terreno junto aos ditos movimentos sociais que puseram acento nas relações<br />
Estado/socieda<strong>de</strong> civil então vigentes. A participação social ativa <strong>de</strong>sses setores constituiu-se<br />
na espinha dorsal do novo “projeto participativo e <strong>de</strong>mocratizante” (DAGNINO,<br />
2004, p. 102) brasileiro. Infelizmente, é sob a égi<strong>de</strong> do projeto político neoliberal pousado<br />
por aqui no início da década <strong>de</strong> 90 que as noções tanto <strong>de</strong> cidadania quanto <strong>de</strong><br />
participação experimentam novamente uma imensa redução <strong>de</strong> seus sentidos. Coinci<strong>de</strong>ntemente<br />
ou não, esse é o momento tratado como sendo <strong>de</strong> articulação e fortalecimento<br />
dos catadores <strong>de</strong> papel em Belo Horizonte, <strong>de</strong>nunciando sua histórica condição<br />
ao po<strong>de</strong>r público e requerendo sua inserção enquanto trabalhadores legítimos da catação<br />
<strong>de</strong> materiais recicláveis.<br />
O caminho que veio se abrindo trouxe o esboroamento da potência transformadora<br />
dos movimentos sociais e <strong>de</strong>mais setores da socieda<strong>de</strong> civil, bem como <strong>de</strong> sua atuação<br />
em nome do reconhecimento e da construção <strong>de</strong> novos direitos. Seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>strutivo<br />
opera através <strong>de</strong> uma feroz (mas também sutil) campanha <strong>de</strong> mascaramento dos significados<br />
vastos agregados à noção <strong>de</strong> cidadania, recaindo também nas noções <strong>de</strong> participação<br />
social e socieda<strong>de</strong> civil, o que gera conseqüências para o entendimento mais geral acerca<br />
do trabalho <strong>de</strong>senvolvido na ASMARE.<br />
Nesse esteio, o projeto neoliberal e o projeto participativo brasileiros estão imersos<br />
numa “confluência perversa” (DAGNINO, 2004, p. 97). Não obstante a essência daquele<br />
se apresentar antagônica em relação a este, verifica-se um acoplamento instrumental entre<br />
ambos. Destarte, o mais assustador seria que tais projetos “requerem uma socieda<strong>de</strong><br />
civil ativa e propositiva” (Ibi<strong>de</strong>m, p. 97) cuja “cultura política” caminharia por formas <strong>de</strong><br />
sociabilida<strong>de</strong> nas quais a construção das noções <strong>de</strong> cidadania no imaginário social estaria<br />
tomada por um processo sutil, intransparente e altamente nocivo à instauração da <strong>de</strong>mocracia<br />
radical como práxis cotidiana.<br />
Assim, a noção <strong>de</strong> cidadania então disseminada no imaginário social mostra-se por<br />
dois ângulos. De um lado, ela recobra os traços típicos da sua concepção liberal clássica,<br />
calcados numa versão que coloca os interesses individuais como sobrepostos aos <strong>de</strong>mais.<br />
Ela se vale <strong>de</strong> uma visão utilitarista e apregoa a re<strong>de</strong>nção individual a partir <strong>de</strong> uma<br />
inserção competitiva na lógica <strong>de</strong> mercado. Por outro lado, ela se mostra inovadora,<br />
trazendo “elementos novos das configurações sociais e políticas da contemporaneida<strong>de</strong>”<br />
(CARVALHO, 2002, p. 117).<br />
Nessa noção <strong>de</strong> cidadania mostra-se estarrecedora a ausência <strong>de</strong> conteúdos <strong>de</strong> politização<br />
no seio das discussões e do caráter <strong>de</strong> construção coletiva outrora vindos à tona.<br />
As energias utópicas vão sendo substituídas pelo utopismo da conquista individual, no<br />
salve-se quem pu<strong>de</strong>r do mercado. O outro, anteriormente visto sob a intersubjetivida<strong>de</strong> construída<br />
nas árduas lutas coletivas, torna-se “parceiro” no jogo <strong>de</strong> soma zero da agressivi-<br />
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A <strong>de</strong>generescência do tempo livre entre os<br />
catadores da ASMARE – on<strong>de</strong> a construção<br />
<strong>de</strong> si mesmos como agentes políticos <strong>de</strong> transformação<br />
social po<strong>de</strong>ria se dar – remete à<br />
alusão feita por Marx em “Salário, preço e<br />
lucro” (1998, p. 121), na qual “o tempo é o<br />
campo do <strong>de</strong>senvolvimento humano. O homem<br />
que não dispõe <strong>de</strong> nenhum tempo livre,<br />
cuja vida [...] está toda ela absorvida pelo seu<br />
trabalho para o capitalista [...], é uma simples<br />
máquina, fisicamente <strong>de</strong>stroçada e espiritualmente<br />
animalizada, para produzir riqueza<br />
alheia”.<br />
11<br />
“O novo perfil da classe trabalhadora é o <strong>de</strong><br />
exclusões cíclicas cada vez mais <strong>de</strong>moradas,<br />
mais espaçadas, do mercado <strong>de</strong> trabalho”<br />
(MARTINS, 2002, p. 29).<br />
da<strong>de</strong> utilitarista do vale tudo, buscando a todo custo sua entrada no mercado – e reduzido<br />
à condição coisificante <strong>de</strong> mero produtor e consumidor.<br />
A ASMARE, conforme temos notado, não está a salvo <strong>de</strong>sse círculo vicioso. Ao contrário,<br />
a instauração em altas doses das práticas competitivas, calcadas numa matriz<br />
discursiva exortadora do aumento da produtivida<strong>de</strong>, leva à dissipação das solidarieda<strong>de</strong>s<br />
orgânicas e do possível soerguimento das coesões políticas. Afinal, como pensar em<br />
articulação política e estratégias <strong>de</strong> luta após 12 horas <strong>de</strong> trabalho por dia? 10 Tal sujeição<br />
contribui para o obscurecimento da percepção, pelo catador, dos sentidos socialmente<br />
construídos das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s diversas, que acabam sendo interpretadas como fruto da<br />
diferenciação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhos e competências individuais.<br />
Outra dimensão da noção <strong>de</strong> cidadania disseminada é a da socieda<strong>de</strong> sendo exortada<br />
à benemerência instituída e estreita <strong>de</strong> cunho assistencialista e pela “responsabilida<strong>de</strong><br />
moral” (DAGNINO, 2004, p. 106). Tal dimensão configura-se no caminho da “sustentabilida<strong>de</strong>”,<br />
cujo calçamento se <strong>de</strong>ve construir, entre outras formas, pela revisão <strong>de</strong> seus<br />
hábitos <strong>de</strong> consumo, com sua solução passando pelos produtos “ecoeficientes”. Há também<br />
a pirotecnia em torno da “benfazeja” responsabilida<strong>de</strong> social empresarial – que<br />
aparece sendo muito bem executada pela re<strong>de</strong> <strong>de</strong> parceiros da ASMARE.<br />
Na esfera do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Estado, enten<strong>de</strong>-se (e resume-se) como cidadania jogar o<br />
fardo da dívida social para a socieda<strong>de</strong>. Veja-se a implementação <strong>de</strong> diversos e mirabolantes<br />
programas governamentais <strong>de</strong> “geração <strong>de</strong> emprego e renda” e <strong>de</strong> incentivo ao<br />
empreen<strong>de</strong>dorismo e à qualificação profissional. Eles nos aproximam do que vem sendo<br />
entendido como inclusão social.<br />
Po<strong>de</strong>-se dizer rapidamente que o arcabouço teórico e conceitual orientador das intervenções<br />
do po<strong>de</strong>r público parte <strong>de</strong> uma constatação puramente objetiva, tanto em<br />
relação ao que seria a chamada exclusão quanto a seu suposto movimento <strong>de</strong> inclusão<br />
<strong>de</strong> grupos sociais. Sem tocar nos mecanismos e processos geradores até mesmo do<br />
porquê <strong>de</strong> se falar em exclusão em nossa socieda<strong>de</strong>, incluir, então, seria oferecer aos<br />
indivíduos receptores dos “programas inclu<strong>de</strong>ntes” um maior alcance, ainda que precário,<br />
no âmbito do existente, proporcionando-lhes novas expectativas por <strong>de</strong>ntro da<br />
“socieda<strong>de</strong> que os exclui” (MARTINS, 2002, p. 38), realida<strong>de</strong> a qual eles não raro vêm<br />
enxergando como representação máxima do bem-estar. Tudo isso, vale lembrar, numa<br />
forma econômico-social na qual as oportunida<strong>de</strong>s, ao contrário <strong>de</strong> outrora, dispõem-se<br />
a um número cada vez mais reduzido <strong>de</strong> “privilegiados”. O excluído, o privado <strong>de</strong> si<br />
mesmo e das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> traçar seus próprios caminhos, dificilmente encontra<br />
brechas para se “incluir” naquilo que, paradoxalmente, se impõe <strong>de</strong>terministicamente<br />
diante <strong>de</strong>le. 11<br />
Efetiva-se a cegueira: o trabalho (abstrato) como direito civil básico transfigura-se em<br />
<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> cada um, se é que não se quer incorrer no risco <strong>de</strong> atolar-se no “fracasso”<br />
individual. Ou, ainda, os direitos sociais, “[...] consi<strong>de</strong>rado[s] no passado recente como<br />
indicador[es] <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, torna[m]-se símbolo[s] <strong>de</strong> ‘atraso’, um ‘anacronismo’<br />
que bloqueia o potencial mo<strong>de</strong>rnizante do mercado” (DAGNINO, 2004, p. 106).<br />
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Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
Percebemos um direcionamento semelhante nos programas sociais implementados<br />
pela Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte, através da Secretaria <strong>de</strong> Assistência Social, do qual o<br />
Programa <strong>de</strong> Inclusão Produtiva surge como exemplo bastante límpido. Nascido na<br />
primeira administração <strong>de</strong> Fernando Pimentel (2001-2004), ele é tido como um projeto<br />
inovador na construção da cidadania e na promoção social por meio do acesso ao<br />
mundo do trabalho. Ele parte da premissa <strong>de</strong> que a assistência social na cida<strong>de</strong> está<br />
fortemente ancorada na inclusão social e econômica, mediante a geração <strong>de</strong> trabalho e<br />
renda para os jovens e os adultos nela inseridos. Seu propósito seria:<br />
viabilizar a equiparação <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso ao mundo do trabalho e ensejar formas <strong>de</strong><br />
os usuários <strong>de</strong>senvolverem sua capacida<strong>de</strong> produtiva, tornando-se sujeitos econômicos capazes<br />
<strong>de</strong> garantir sua sobrevivência, transitando da situação <strong>de</strong> beneficiário para a <strong>de</strong> trabalhador [...]. 12<br />
No caso da ASMARE, po<strong>de</strong>mos resumir essas “políticas públicas” ao trabalho com uma<br />
noção <strong>de</strong> cidadania que traz para a cena um catador <strong>de</strong> papel em vias <strong>de</strong> se tornar<br />
“sujeito social”. Seria sob o jugo <strong>de</strong> tais políticas que se po<strong>de</strong>ria construir no catador<br />
uma personalida<strong>de</strong> reivindicativa? Haveria nele a semente fertilizada da percepção das<br />
contradições do modo <strong>de</strong> produção incidindo na sua condição social, gerando então a<br />
conscientização crescente <strong>de</strong> seus direitos, numa luta pela abertura <strong>de</strong> canais <strong>de</strong> diálogo e<br />
participação outrora débeis ou mesmo inexistentes com o po<strong>de</strong>r público? Ratifica-se uma<br />
espécie <strong>de</strong> “transcendência” quando se legitima o trabalho da ASMARE: esta parece habitar<br />
um vazio histórico e i<strong>de</strong>ológico. Esquece-se que ela tem sido, em si e para si, forma e<br />
conteúdo das próprias relações sociais que se expressam no interior da socieda<strong>de</strong>. Em<br />
suma, a cidadania converte-se no enclausuramento da política, visto que a linha que se localiza<br />
entre o seu crescente fértil e a truculência da racionalida<strong>de</strong> política fabricada pelo consenso<br />
redutor é extremamente tênue. Jacques Rancière (1996, p. 367, grifo nosso) chama<br />
isso um dos paradoxos dos <strong>de</strong>bates políticos e teóricos na contemporaneida<strong>de</strong>:<br />
[...] no momento mesmo em que essa filosofia da necessida<strong>de</strong> se impõe quase que por toda<br />
parte como a última palavra em sabedoria política, vemos por outro lado triunfar na filosofia<br />
política e nas ciências sociais um discurso que glorifica o retorno do ator, do indivíduo que<br />
discute, que contrata, que age. No momento em que nos dizem que os dados são inequívocos<br />
e que as escolhas se impõem por si mesmas, celebra-se ruidosamente o retorno do ator racional<br />
à cena social.<br />
O que se configura então como participação social revela, por sua vez, a estranha<br />
dissonância contida na lógica do “quanto menos coisas há para discutir, mais se celebra<br />
a ética da discussão, da razão comunicativa, como fundamento da política” (RANCIÈRE,<br />
1996, p. 367). Compõem tal fenômeno boas doses <strong>de</strong> sectarismo. Uma prática política<br />
ocultada sob o manto <strong>de</strong> dialogicida<strong>de</strong> impõe-se cabalmente e <strong>de</strong>termina as prerrogativas<br />
últimas do que é bom e mau para a socieda<strong>de</strong>, infligindo-as às possibilida<strong>de</strong>s do<br />
dissenso criativo.<br />
Esse retrato <strong>de</strong>sbotado insiste em não se dissolver; ao contrário, ganha força e forma pela<br />
ausência da separação entre aquilo que é público e o que é privado no Brasil (OLIVEIRA,<br />
12<br />
INCLUSÃO PRODUTIVA. Belo Horizonte:<br />
Secretaria Municipal <strong>de</strong> Assistência Social, jun.<br />
2003, n.p., grifos nossos.<br />
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1994, p. 44). A privatização das relações sociais outorga-se como prática cotidiana <strong>de</strong>ixada <strong>de</strong><br />
fora da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> questionamentos pela socieda<strong>de</strong>, ocultando assim as raízes condutoras das<br />
diferentes dimensões das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais. A indiferença entre público e privado contribui,<br />
entre outras coisas, para a legitimação do discurso da cidadania e da <strong>de</strong>mocracia nas<br />
organizações – discurso que se <strong>de</strong>sdobra e passa a prescrever as práticas e relações <strong>de</strong> trabalho<br />
no interior da ASMARE.<br />
Com o eixo das relações sociais <strong>de</strong>sviado da mobilização e da construção coletivas<br />
através dos diversos mecanismos <strong>de</strong> coerção e <strong>de</strong> imposição <strong>de</strong> condutas, per<strong>de</strong>-se o<br />
espaço público enquanto campo <strong>de</strong> possíveis. Isso significa a sacramentação da anulação<br />
do outro como interlocutor ativo e <strong>de</strong> sua palavra enquanto ingrediente essencial à política.<br />
A privatização das relações sociais institui o consenso redutor pela “projeção <strong>de</strong> critérios<br />
<strong>de</strong> valida<strong>de</strong> que não fazem referência a uma esfera compartilhada <strong>de</strong> valores e significações<br />
[...]”, on<strong>de</strong> “[...] os homens [do po<strong>de</strong>r] ten<strong>de</strong>rão, para impô-los no mundo, a fazer<br />
uso da violência” (TELLES, 1990, p. 33).<br />
Os catadores vão então (sobre)vivendo e ajudando a reiterar as contradições e o discurso<br />
apregoador do seu “reconhecimento” enquanto trabalhadores dignos. A perspicácia<br />
para “produzir” o material reciclável imprescindível aos ditames da proliferação dos<br />
capitais do mercado da reciclagem dissimula o conflito por eles vivido no cerne <strong>de</strong> sua<br />
ativida<strong>de</strong> – conflito dividido entre a euforia da relativa tranqüilida<strong>de</strong> para o exercício da<br />
catação, sem a presença das “operações limpeza” da polícia militar e contando com a<br />
permissivida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>, e a hercúlea dureza, a insalubrida<strong>de</strong>, a cobrança e a incerteza<br />
proporcionadas por seu trabalho.<br />
A impetuosida<strong>de</strong> anestesiada vivida por esses indivíduos leva-os a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista os fundamentos<br />
<strong>de</strong> sua própria condição. Com sua vida entregue nas “mãos <strong>de</strong> Deus” e nas<br />
garras diabólicas do mercado, parece restar ao catador seguir em frente numa realida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre e para sempre assim, contendo a torpeza do cotidiano da catação, mas po<strong>de</strong>ndo<br />
lhe oferecer algum tipo <strong>de</strong> saída – tanto maior quanto também seja gran<strong>de</strong> o seu mérito<br />
pessoal. Embora existam reações contra o “inevitável”, <strong>de</strong>ve-se trabalhar – e duro! –,<br />
não havendo a percepção <strong>de</strong> que as “or<strong>de</strong>nações práticas da vida, que se apresentam<br />
como se favorecessem ao homem, concorrem, na economia do lucro, para atrofiar o<br />
que é humano” (ADORNO, 1993, p. 34).<br />
São reações percebidas através da saída <strong>de</strong> catadores que não concordaram com as<br />
normatizações (entre outras, as exigências veladas <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>) presentes durante<br />
toda a existência da ASMARE. Internamente, percebemos as diferenças individuais <strong>de</strong><br />
produtivida<strong>de</strong> semanal ou mensal ligadas não somente à <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> física, ao uso <strong>de</strong><br />
drogas e/ou bebidas alcoólicas, mas também às manifestações <strong>de</strong> discordância (via <strong>de</strong><br />
regra individuais) com o ritmo <strong>de</strong> trabalho exigido – por um capitalista típico e seus<br />
“capitães do mato”, ela seria chamada <strong>de</strong> “corpo mole”, “vagabundagem” etc. O malestar<br />
do catador da ASMARE sai <strong>de</strong> sua latência e manifesta-se nos furtos <strong>de</strong> material e na<br />
<strong>de</strong>silusão com a sua própria capacida<strong>de</strong> organizativa.<br />
90<br />
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Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
Conforme se percebe, a lógica que presi<strong>de</strong> a produção do espaço num âmbito mais<br />
geral passa a circunscrever e, portanto, subsumir o espaço social da ASMARE. Os interesses<br />
mercantis batem à porta e trazem consigo suas contradições e irracionalida<strong>de</strong>s. Seus<br />
efeitos chegam, assim, ao conjunto das relações existentes na Associação, ferindo <strong>de</strong><br />
morte seu projeto inicial.<br />
Eis que as possibilida<strong>de</strong>s para a construção das alterida<strong>de</strong>s, do conflito na prática<br />
política e da reciprocida<strong>de</strong> libertadora, elementos basilares da <strong>de</strong>mocracia radical e <strong>de</strong><br />
consolidação do exercício da cidadania ativa, vêm sendo, ao que parece, <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong><br />
interesse. Já para o gran<strong>de</strong> público são apresentadas, <strong>de</strong> forma efusiva e estetizada, “a<br />
cidadania que vem das ruas” e “uma vitoriosa experiência <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>”. Esse cenário,<br />
quando transposto ao rés do chão da ASMARE, apresenta, ao contrário, a <strong>de</strong>squalificação<br />
do outro – capitaneada por relações crescentemente dicotômicas entre a administração<br />
e os <strong>de</strong>mais catadores – e uma espécie <strong>de</strong> “política do medo” cultivada pela<br />
necessária aceitação <strong>de</strong> “premissas invioláveis” – ou o caminho em direção à porta da<br />
rua! – passando a vigorar como instrumentos <strong>de</strong> controle social recorrentes nas relações<br />
internas à Associação. A construção coletiva ce<strong>de</strong> lugar à reificação <strong>de</strong> tais relações, à<br />
<strong>de</strong>spolitização, ao estranhamento e à conseqüente busca pelas saídas individuais. Estas se<br />
constituiriam enquanto “estratégias <strong>de</strong> sobrevivência” num ambiente on<strong>de</strong>, “contrariadamente”,<br />
optou-se pela premência cega e surda <strong>de</strong> índices <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong>.<br />
Começam então a se verificar os “<strong>de</strong>slizes” <strong>de</strong> alguns catadores. A título <strong>de</strong> exemplo,<br />
foi por nós presenciado o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> uma doação que chegou à ASMARE e que seria<br />
(pelo menos em tese) contabilizada como soma coletiva na Associação. A catadora que<br />
se incumbiu <strong>de</strong> recebê-la, ao invés <strong>de</strong> repassá-la para o box coletivo, <strong>de</strong>sviou o material<br />
para o seu box individual. Tal atitu<strong>de</strong> não visaria a garantir sua produtivida<strong>de</strong> semanal?<br />
Dessa forma, a anterior orientação da ASMARE como espaço público on<strong>de</strong> a politização<br />
e o estatuto reivindicativo vigorassem como linhas <strong>de</strong> força no seu interior reduz-se<br />
a práticas sociais semelhantes àquelas das organizações privadas – fazendo <strong>de</strong>la mera<br />
reprodutora e catalisadora da sanha mercadológica vigente. A privatização das relações<br />
sociais internas à Associação gera ali verda<strong>de</strong>iras ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> contradições: saem a publicização,<br />
a horizontalida<strong>de</strong> e a crescente eliminação das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, experimentando-se<br />
o retorno do discurso competente (CHAUÍ, 1981), que olha o outro <strong>de</strong> cima e por<br />
ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>. O estrago completa-se com a construção <strong>de</strong> estratégias anti-hegemônicas via<br />
articulação coletiva ce<strong>de</strong>ndo lugar às meras complementarida<strong>de</strong>s instrumentais, alimentadoras<br />
do mercado da reciclagem, e ajudando a acirrar, ao invés <strong>de</strong> extirpá-lo, o conflito entre<br />
capital e trabalho na ASMARE.<br />
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Luiz Antônio Evangelista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />
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92<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 78-92 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
Reciclando vidas ou reutilizando sua sujeição?: reflexões sobre produção do espaço, cidadania e inclusão social na ASMARE
A importância das escalas espaciais para<br />
compreensão do processo <strong>de</strong> globalização<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Mestrando em Organização do Espaço pelo Programa<br />
<strong>de</strong> Pós-graduação em Geografia – <strong>IGC</strong>/UFMG<br />
Resumo<br />
Este artigo apresenta uma reflexão e uma<br />
análise do espaço em suas diferentes escalas:<br />
global, do lugar e do território. Aborda-se o<br />
global como o espaço das transformações<br />
mundiais, da profusão das técnicas respaldadas<br />
pela ciência, da mais-valia tornada mundial e da<br />
confluência dos momentos. Quanto ao lugar, é<br />
visto como o espaço da convergência e da<br />
divergência <strong>de</strong> duas racionalida<strong>de</strong>s: uma vinda<br />
<strong>de</strong> fora, do global, que impõe uma lógica<br />
padronizada da circulação <strong>de</strong> mercadorias; outra<br />
que emerge do local, à procura <strong>de</strong> uma outra<br />
racionalida<strong>de</strong> propiciada pela proximida<strong>de</strong>, pela<br />
vizinhança e pela solidarieda<strong>de</strong>. Já o território é<br />
visto como espaço <strong>de</strong> apropriação simbólica e<br />
da dominação política e econômica, mediação<br />
necessária entre o global e o local. Por fim,<br />
<strong>de</strong>staca-se a importância <strong>de</strong> uma análise que<br />
associe essas escalas espaciais, entendidas como<br />
processos sociais, e melhor sustente teoricamente<br />
as práticas sociais.<br />
Abstract<br />
This article presents a reflection and an analysis of<br />
the space in its different scales: global, from the place<br />
and from the territory. The global one is approached<br />
as the space of the world-wi<strong>de</strong> transformations, the<br />
profusion of the techniques endorsed by science, the<br />
become world-wi<strong>de</strong> more-value and the confluence of<br />
the moments. In regard to the place, it is seen as the<br />
space of convergence and divergence of two rationalities:<br />
one which comes from outsi<strong>de</strong>, from the global scale,<br />
and imposes a standardized logic on the circulation of<br />
merchandises; another one that emerges from the place<br />
and seeks another rationality given by proximity,<br />
neighborhood and solidarity. Concerning the territory,<br />
it is seen as a space of symbolic appropriation and<br />
economic and political domination, being it a necessary<br />
mediation between the global and the place. Finally, it<br />
emphasizes the importance of an analysis that associates<br />
these spatial scales, while taken for social processes, and<br />
better theoretically supports the social practices.<br />
Palavras-chave espaço; globalização; lugar;<br />
território; escalas.<br />
Keywords space; globalization; place;<br />
territory; scales.<br />
tma<strong>de</strong>brito@gmail.com<br />
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
93
1<br />
As escalas não se resumem em formas geométricas,<br />
recortes matemáticos. Neste texto,<br />
elas são compreendidas como processos<br />
sociais <strong>de</strong> apropriação e dominação do espaço.<br />
Na seção “A perspectiva transescalar” esse<br />
tema será exposto com maior clareza.<br />
Introdução<br />
Os escritos dos marxistas “ortodoxos” e “estruturalistas” do século XX, da Escola <strong>de</strong><br />
Sociologia Urbana <strong>de</strong> Chicago e também da Geografia tradicional pautavam-se, em sua<br />
gran<strong>de</strong> maioria, por pensar o espaço como um ente “natural”, uma base – receptáculo –<br />
das relações sociais <strong>de</strong> (re)produção, uma superfície sem características próprias<br />
(GOTTDIENER, 1993). Para muitos, as mudanças no mundo do capital ocorreram e<br />
ocorrem como um processo puramente temporal, <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações espaciais,<br />
marcadas pela indiferenciação geográfica.<br />
Segundo Gottdiener (1993), o (re)surgimento do espaço na teoria social crítica é atribuído,<br />
sobretudo, a Henri Lefebvre. Conforme esse autor, o espaço aparece como um<br />
ente ontológico, com sua própria origem e formação epistemológica, como um produto<br />
e produtor das relações sociais. Desse modo, o espaço <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser apenas o espaço<br />
físico, neutro, palco das ações, para ser, também, parte das forças sociais <strong>de</strong> (re)produção.<br />
Nesse sentido, o espaço, ente político e i<strong>de</strong>ológico inserido numa estratégia consciente<br />
<strong>de</strong> perpetuação das atuais relações sociais <strong>de</strong> produção, representa algo mais que reflexo<br />
das relações socioprodutivas. Ele nos aponta para uma esfera da “produção” do mundo<br />
contemporâneo, para além do “chão das fábricas” e da relação capital/trabalho contida<br />
no processo industrial. Tal produção abarca a totalida<strong>de</strong> das relações sociais <strong>de</strong><br />
(re)produção “perpetuada” na vida cotidiana (LEFEBVRE, 1976).<br />
Explica-se, assim, a pertinência do espaço para a reflexão sobre o mundo contemporâneo.<br />
Haja vista a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conter o mediato e o imediato, uma or<strong>de</strong>m próxima<br />
e uma or<strong>de</strong>m distante, o local e o mundial (CARLOS, 1999), a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos<br />
revelar as contradições da contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
Com o objetivo <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a importância do espaço para a compreensão das transformações<br />
mundiais no final do século XX e início do século XXI, o presente ensaio<br />
propõe, portanto, estabelecer um diálogo entre algumas contribuições contemporâneas<br />
acerca <strong>de</strong>ssas mudanças, tendo como fio condutor o espaço e suas escalas. 1 Para isso,<br />
parte <strong>de</strong> idéias referentes ao processo mundial em transformação, baseando-se nos conceitos<br />
<strong>de</strong> globalização, <strong>de</strong> Milton Santos e Harvey, e na compressão tempo-espaço, <strong>de</strong><br />
Massey. A partir <strong>de</strong> então, cria-se um elo, uma ponte entre o processo <strong>de</strong> globalização e<br />
suas peculiarida<strong>de</strong>s locais. Concentra-se um esforço maior no esclarecimento do conceito<br />
<strong>de</strong> lugar, tendo em vista sua importância tanto para a reflexão sobre o fenômeno<br />
mundial quanto para a ação prática <strong>de</strong> transformação social. É do lugar que se percebe<br />
o mundo e do mundo que se retorna ao lugar para a realização prática e cotidiana das<br />
transformações sociais (SANTOS, 1997).<br />
A<strong>de</strong>mais, para o aprofundamento da reflexão proposta, não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a<br />
importância do território, espaço necessário entre a globalização – o universal – e o<br />
particular – o lugar. Para tanto, usam-se, como referência, Milton Santos (1994) e Haesbaert<br />
(2004). Por fim, consi<strong>de</strong>ra-se o texto <strong>de</strong> Vainer (2002), As escalas do po<strong>de</strong>r e o po<strong>de</strong>r das<br />
escalas: o que po<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r local?, fundamental para o entendimento da (inter)<strong>de</strong>pendência<br />
escalar (espacial) numa reflexão condizente com a atualida<strong>de</strong> e para balizar uma prática<br />
social emancipatória.<br />
94<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
Os mitos e as verda<strong>de</strong>s sobre a globalização<br />
Indubitavelmente, o capitalismo não sobrevive sem os seus ajustes espaciais. Harvey (2004)<br />
afirma que o capitalismo constrói espaços a sua maneira, produzindo paisagens distintas<br />
conforme interesses <strong>de</strong> transporte, <strong>de</strong> infra-estrutura, <strong>de</strong> informação e <strong>de</strong> produção do<br />
conhecimento, entre outros, com o intuito <strong>de</strong> acelerar o processo <strong>de</strong> acumulação.<br />
Neste atual momento histórico-espacial diferenciado, o processo capitalista <strong>de</strong> produção<br />
assume novos patamares. Embora ainda nebuloso, esse novo cenário parece marcado<br />
por uma aceleração do tempo, enraizado no que Marx <strong>de</strong>nominou “aniquilação do<br />
espaço pelo tempo”, e que hoje alcançou um novo estágio, ou seja, a compressão tanto<br />
do tempo quanto do espaço – numa palavra, a compressão “tempo-espaço” (MASSEY,<br />
2000). Nesse contexto, criaram-se expressões, mitos que são dados como regras, como<br />
fatos. Assim, termos como “al<strong>de</strong>ia global”, “morte do Estado”, “flexibilida<strong>de</strong>” e “<strong>de</strong>sterritorialização”<br />
aparecem, a todo instante, veiculados pela mídia internacional como<br />
verda<strong>de</strong>s inquestionáveis.<br />
Segundo Massey (2000, p. 178), “a compressão <strong>de</strong> tempo-espaço refere-se ao movimento<br />
e à comunicação através do espaço, à extensão geográfica das relações sociais e a<br />
nossa experiência <strong>de</strong> tudo isso”. A aceleração do tempo, via informação em re<strong>de</strong>, causa<br />
a compressão e o encurtamento do espaço (distância) para apenas poucos proprietários<br />
<strong>de</strong> multinacionais ou agentes financeiros internacionais localizados nas gran<strong>de</strong>s metrópoles.<br />
Estes transformam o encurtamento <strong>de</strong> distância em vantagens econômicas e po<strong>de</strong>r,<br />
com vistas ao aumento da circulação num período menor <strong>de</strong> tempo. A compressão<br />
tempo-espaço carece, portanto, <strong>de</strong> diferenciação social e, mais do que isso, <strong>de</strong> uma<br />
reflexão mais conceitual (MASSEY, 2000).<br />
A compressão <strong>de</strong> tempo-espaço, porém, não ocorre para todos nem em todos os<br />
lugares. Alguns grupos sociais fazem parte <strong>de</strong>sse movimento sem, entretanto, serem responsáveis<br />
por seu processo. Como exemplo po<strong>de</strong>m-se citar os migrantes ilegais que<br />
tentam passar pela fronteira entre México e E.U.A, os refugiados <strong>de</strong> El Salvador e da<br />
Guatemala, bem como os refugiados cubanos em Miami. A maioria <strong>de</strong>les percorre<br />
gran<strong>de</strong>s distâncias, num curto período <strong>de</strong> tempo, em busca <strong>de</strong> vida melhor. Na verda<strong>de</strong>,<br />
são eles alvos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> “glamourização” da socieda<strong>de</strong> norte-americana, via mídia<br />
internacional. Outros só recebem a compressão. Encontram-se nessa situação pessoas<br />
comuns que, vivendo nas periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e em países sub<strong>de</strong>senvolvidos,<br />
se alimentam num fast-food chinês ou no Mac Donald´s e, posteriormente, assistem a<br />
<strong>de</strong>senhos japoneses em sua televisão coreana, sem se dar conta da sua participação no<br />
processo <strong>de</strong> “globalização”. Existem ainda aqueles que colaboram com o processo e, ao<br />
mesmo tempo, são reféns <strong>de</strong>le, como os moradores das favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro que<br />
influenciam a cultura mundial através da música e pouco conhecem do próprio Rio.<br />
Esses exemplos trazem à tona o quão complexo é esse movimento e quão diferente é a<br />
sua dinâmica. O grau em que as pessoas são colocadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse movimento é altamente<br />
complexo e diversificado.<br />
Entretanto, não se trata somente <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong>sigual da população<br />
no espaço ou <strong>de</strong> quem controla ou regula esses movimentos. Segundo Massey (2000,<br />
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
95
p. 180), “trata-se do fato <strong>de</strong> que a mobilida<strong>de</strong> e o controle <strong>de</strong> alguns po<strong>de</strong>m ativamente<br />
enfraquecer outras pessoas. [...] A compressão <strong>de</strong> tempo-espaço <strong>de</strong> alguns po<strong>de</strong> solapar<br />
o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outros”. Isso po<strong>de</strong> ser visto por pequenas atitu<strong>de</strong>s. Assim, o simples fato <strong>de</strong><br />
uma pessoa sair <strong>de</strong> casa no seu próprio carro po<strong>de</strong> “ajudar” a diminuir o investimento<br />
em transporte público e até mesmo a aumentar o preço <strong>de</strong>ste, dada a diminuição da<br />
<strong>de</strong>manda, ou, ainda, o aumento do número <strong>de</strong> vôos que cruzam os oceanos po<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />
alguma maneira, aumentar o isolamento das pequenas ilhas localizadas entre os continentes.<br />
Exemplos que simbolizam essa lógica perversa não faltam. Por conseguinte, fica<br />
cada vez mais claro que o movimento e a comunicação <strong>de</strong> alguns afetam e, conseqüentemente,<br />
dificultam a vida da maioria da população mais <strong>de</strong>sfavorecida (MASSEY, 2000).<br />
Massey não <strong>de</strong>svenda o processo <strong>de</strong> globalização em suas nuanças, nem é essa sua<br />
intenção. Ela foca somente o fenômeno <strong>de</strong> compressão tempo-espaço, que é fundamental<br />
para <strong>de</strong>smascarar um dos mitos da contemporaneida<strong>de</strong>, mas não todos.<br />
A reflexão <strong>de</strong> Milton Santos (2003) a esse respeito aproxima-se da <strong>de</strong> Doreen Massey,<br />
quando indaga sobre a fábula da “al<strong>de</strong>ia global”. Para o autor, a difusão cada vez maior<br />
<strong>de</strong> notícias não informa realmente as pessoas. O mito do encurtamento <strong>de</strong> distâncias – o<br />
tempo-espaço contraído – só é acessível a uma parcela privilegiada da população; o<br />
mundo, na verda<strong>de</strong>, não está ao alcance <strong>de</strong> todos. O mercado dito global, homogêneo,<br />
está, na verda<strong>de</strong>, aumentando a fragmentação espacial e social entre as pessoas.<br />
Milton Santos, contudo, avança nas contradições contemporâneas, quando discute a<br />
questão do Estado. Alguns autores insistem na morte do Estado quando a regulação<br />
financeira passa a ser feita pelo próprio mercado, cabendo ao governo a austerida<strong>de</strong><br />
fiscal e a estruturação burocrática (privatização), criando-se um clima favorável para<br />
maior circulação do capital. No entanto, Milton Santos acredita que o que ocorre é o<br />
fortalecimento do Estado justamente para aten<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>mandas do mercado. Nessas<br />
circunstâncias, os meios <strong>de</strong> consumo coletivo ficam à <strong>de</strong>riva, isto é, a cargo da iniciativa<br />
privada. Harvey (2004) corrobora essa premissa, ao afirmar que o Estado tem se tornado<br />
mais intervencionista, penetrando, com maior rigor, nas questões referentes às políticas<br />
econômicas. Citam-se, como exemplo, o status e o po<strong>de</strong>r que os ministérios da fazenda<br />
adquirem nos governos, sobretudo, dos países “periféricos”.<br />
Há, também, a “crença” na “flexibilização” das relações sociais <strong>de</strong> produção, outro<br />
mito da contemporaneida<strong>de</strong>. O avanço da tecnologia fez diminuir o uso <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>obra<br />
nas indústrias <strong>de</strong> ponta, substituindo “gente por máquina” e terceirizando algumas<br />
etapas do processo produtivo. Contudo, <strong>de</strong> outro ponto <strong>de</strong> vista, a “tecnificação” do<br />
processo produtivo nunca <strong>de</strong>ixou tão “inflexíveis” as relações sociais <strong>de</strong> produção. As<br />
normas técnicas <strong>de</strong> produção exigem, cada vez mais, trabalho específico, pre<strong>de</strong>terminado,<br />
que nada tem <strong>de</strong> flexível. As normas impostas enrijecem as relações sociais <strong>de</strong> produção<br />
e impe<strong>de</strong>m a criativida<strong>de</strong> (SANTOS, 2000).<br />
Outro “mito” que se <strong>de</strong>staca na atualida<strong>de</strong> é o da <strong>de</strong>sterritorialização das pessoas e do<br />
processo produtivo. Conforme assinala Harvey (2004), o processo produtivo sofreu<br />
algumas mudanças, <strong>de</strong>ntre as quais, a dispersão e a fragmentação da produção e o aumento<br />
da divisão e da especialização do trabalho. Se, por um lado, esse fato acarretou<br />
96<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
diminuição do espaço <strong>de</strong> produção na se<strong>de</strong> da indústria, por outro, aumentou o po<strong>de</strong>r<br />
político das indústrias (multinacionais) através da centralização das <strong>de</strong>cisões. Mesmo o<br />
processo produtivo que per<strong>de</strong>u espaço in loco aumentou, em muito, sua ação pelo resto<br />
do mundo. A possível <strong>de</strong>sterritorialização no ambiente industrial se fez concomitantemente<br />
com uma (re)territorialização em outros espaços a partir da própria produção<br />
(divisão do processo produtivo), mas, sobremodo, a partir da circulação <strong>de</strong> produtos<br />
(mercadorias). Quanto ao processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização das pessoas, ele só ocorre<br />
mediante o seu par inerente, a (re)territorialização, uma vez que os seres humanos sempre<br />
vivem num processo <strong>de</strong> relação e i<strong>de</strong>ntificação com outros seres humanos e também<br />
com o espaço em que vivem. É da natureza humana reconhecer-se no território; portanto,<br />
toda <strong>de</strong>sterritorialização num lugar significa uma (re)territorialização em outro ponto.<br />
Apesar dos “mitos” criados, o capitalismo caminha para uma nova fase, muito embora<br />
não haja uma revolução transformadora no modo <strong>de</strong> produção ou nas relações sociais<br />
(HARVEY, 2004). O que há é uma mundialização do capital favorecido por uma<br />
política perversa que se apóia no progresso das técnicas, da ciência e da informação<br />
(SANTOS, 2000, 2003).<br />
Existem alguns fatores que ajudam a compreen<strong>de</strong>r a dinâmica da globalização. Milton<br />
Santos (2003, p. 24) <strong>de</strong>staca “a unicida<strong>de</strong> da técnica, a convergência dos momentos, a<br />
cognoscibilida<strong>de</strong> do planeta e a existência <strong>de</strong> um motor único da história, representado<br />
pela mais-valia universal”.<br />
No que se refere às técnicas – conjuntos <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> que o homem dispõe para a<br />
realização do trabalho, num dado momento e espaço da vida política, econômica e<br />
social –, nos dias atuais elas indicam qual o trabalho a fazer. O trabalho torna-se normatizado<br />
pela técnica: é ela que autoriza qual trabalho a fazer e como fazê-lo.<br />
A cada transformação das técnicas, novas etapas da história tornam-se possíveis. Elas<br />
são como sistemas que transportam uma história em <strong>de</strong>terminada época. O que as caracteriza<br />
no momento é a informação, a comunicação on line através dos microcomputadores<br />
conectados em re<strong>de</strong>s mundiais. A técnica da informação po<strong>de</strong>rá permitir que muitas das<br />
técnicas existentes se conheçam e comuniquem-se, propiciando uma unicida<strong>de</strong> dos tempos,<br />
uma simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acontecimentos, uma unida<strong>de</strong> do sistema técnico.<br />
A respeito da convergência dos momentos, ela não acontece apenas por uma “coincidência”<br />
<strong>de</strong> tempos, <strong>de</strong> marcação <strong>de</strong> horas, mas, sobretudo, pela convergência <strong>de</strong> mundos<br />
vividos. “A percepção do tempo real não só quer dizer que a hora dos relógios é a<br />
mesma, mas que po<strong>de</strong>mos usar esses relógios múltiplos <strong>de</strong> maneira uniforme” (SAN-<br />
TOS, 2003, p. 27-28). Neste momento, é possível conhecer o acontecer do outro em<br />
qualquer parte do globo; é essa a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, ou seja, a unicida<strong>de</strong> dos tempos.<br />
Respaldada pelo progresso da ciência e da técnica, a convergência dos momentos<br />
possibilita que os gran<strong>de</strong>s agentes financeiros permaneçam “conectados” 24 horas por<br />
dia: enquanto a bolsa <strong>de</strong> Tóquio encerra o expediente, a bolsa <strong>de</strong> Nova Iorque inicia o<br />
seu; e, assim, o mercado funciona ininterruptamente.<br />
Mas o motor único que liga o planeta, permitindo ações globais via mercado financeiro<br />
e tecnologias <strong>de</strong> informação (inovações), é a mais-valia que se tornou mundial. A<br />
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
97
produção capitalista atingiu todos os cantos do ecúmeno, privatizando praticamente todo<br />
o setor produtivo, agora nas mãos das gran<strong>de</strong>s multinacionais. O motor único acontece<br />
através da mundialização do comércio, das mercadorias, do dinheiro, do consumo, da<br />
informação, das dívidas e dos financiamentos. Esse conjunto se inter-relaciona e sustenta<br />
a prática capitalista num sistema mundial.<br />
Com efeito, a mundialização do comércio abre caminho para o conhecimento profundo<br />
do planeta. Eis a contradição do atual sistema. Somente as gran<strong>de</strong>s empresas e os<br />
agentes financeiros (bancos) se beneficiam <strong>de</strong>sse mercado dito homogêneo, pois a compressão<br />
tempo-espaço, a unida<strong>de</strong> da técnica, a convergência dos momentos e o motor<br />
único acabam reafirmando e até mesmo aumentando as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e territoriais.<br />
Na verda<strong>de</strong>, a globalização abre caminho para o monopólio da informação (Microsoft),<br />
para a guerra fiscal entre lugares, para o consumo <strong>de</strong>senfreado, para a ausência<br />
da política, para a falta <strong>de</strong> perspectiva emancipatória e para a sobreposição da competição<br />
à solidarieda<strong>de</strong> (SANTOS, 2003), além <strong>de</strong> para o agravamento dos problemas ambientais<br />
e dos conflitos étnicos e religiosos.<br />
2<br />
Ao se referir aos <strong>de</strong>senvolvimentos geográficos<br />
<strong>de</strong>siguais, Harvey propõe um conceito<br />
que substitua o <strong>de</strong> globalização e traga, em<br />
seu conteúdo, dois elementos: a mudança <strong>de</strong><br />
escalas e a produção <strong>de</strong> diferenças geográficas.<br />
Para saber mais sobre o assunto, consultar<br />
Harvey (2004).<br />
O lugar: espaço singular <strong>de</strong> convergência e<br />
divergência <strong>de</strong> vetores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
Com a aceleração dos processos regidos e apropriados pelos atores hegemônicos e<br />
propiciados pela técnica, pela ciência e pela informação, a fragmentação do espaço tornase<br />
mais veloz. Tem-se a impressão <strong>de</strong> que, a cada momento, a totalida<strong>de</strong> se cin<strong>de</strong> para,<br />
mais à frente, aglutinar-se <strong>de</strong> novo e novamente se cindir, formando um círculo vicioso.<br />
Aliás, não se distinguem unida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong>, a não ser quando se percebe que a unida<strong>de</strong><br />
é o planeta e a diversida<strong>de</strong> é o lugar. O mundo transforma-se ao mesmo tempo que os<br />
lugares, porque é dos lugares que partem as transformações. São os eventos que operam<br />
essa ligação lugar/mundo. O lugar po<strong>de</strong> ser caracterizado por sua funcionalida<strong>de</strong> em<br />
relação ao mundo, mas, se é dos lugares que partem as mudanças, os lugares po<strong>de</strong>m ser,<br />
também, o espaço do acontecer solidário, o lugar compulsório das ativida<strong>de</strong>s humanas<br />
(SANTOS, 2005).<br />
Conforme Massey (2000), a insegurança e o impacto <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado da globalização<br />
causam uma vulnerabilida<strong>de</strong> dos sentimentos e da própria vida cotidiana, transformando<br />
o lugar em espaço <strong>de</strong> refúgio, <strong>de</strong> fixi<strong>de</strong>z e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, em resposta à flui<strong>de</strong>z do<br />
mundo contemporâneo. Esse ponto <strong>de</strong> vista, porém, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado reacionário<br />
no sentido <strong>de</strong> o lugar per<strong>de</strong>r a sua conexão com o mundo, numa evasão da vida real.<br />
“Enquanto o tempo é visto como movimento e progresso, o espaço ou o lugar é equiparado<br />
a imobilismo e reação” (MASSEY, 2000, p. 181).<br />
Posto isso, reafirma-se a importância <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o lugar, numa tentativa <strong>de</strong> escapar<br />
das visões “reacionárias”, mantendo a idéia <strong>de</strong> diferença geográfica ou <strong>de</strong>, como<br />
sugere Harvey (2004), 2 <strong>de</strong>senvolvimentos geográficos <strong>de</strong>siguais em termos <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong><br />
e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> móveis.<br />
Segundo Massey (2000), a noção “reacionária” <strong>de</strong> lugar contém duas premissas básicas.<br />
Uma <strong>de</strong>las é a <strong>de</strong> que os lugares têm i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s singulares, imóveis, e a outra é<br />
98<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
a <strong>de</strong> que eles têm uma história introvertida, voltada para <strong>de</strong>ntro, uma história coesa e<br />
homogênea, fruto <strong>de</strong> uma tradição cultural “parada” no tempo. Essa concepção levaria<br />
a um traçado limitante entre os lugares, uma distinção entre interior e exterior.<br />
Entretanto os lugares, cada vez mais, “acontecem” na sua relação com o mundo. Não<br />
importa esboçar suas fronteiras e sim, enten<strong>de</strong>r seu movimento diante do mundo.<br />
Além disso, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s nos lugares não são coesas nem estáticas: estão em constante<br />
movimento e conflito, num processo <strong>de</strong> convergência e divergência <strong>de</strong> pessoas em<br />
suas relações com os lugares.<br />
A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, por sua vez, não é fruto apenas da relação individual da pessoa com o<br />
lugar. Por mais diversificada que seja, é também uma construção social apreendida através<br />
da percepção e da apropriação simbólica e material do espaço. I<strong>de</strong>ntificar-se é sempre<br />
um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com outra pessoa em algum lugar, uma busca por<br />
relacionamentos e alterida<strong>de</strong>s que se dão no encontro ou no <strong>de</strong>sencontro; por isso a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é sempre um processo relacional entre pessoas e lugares, isto é, um processo<br />
social (HAESBAERT, 1999).<br />
Uma coisa é certa: a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não é dada <strong>de</strong> forma clara, sempre é um processo em<br />
curso. No processo <strong>de</strong> globalização, as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s são cada vez mais <strong>de</strong>scontínuas, fragmentadas<br />
e até mesmo sobrepostas a todo evento, formando, a cada instante, novas<br />
formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação propiciadas pelo confronto, gerando o conflito, ou pelo diálogo,<br />
daí ocorrendo a comunicação e a solidarieda<strong>de</strong>.<br />
A<strong>de</strong>mais, é preciso frisar que o sujeito assume várias i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s em momentos diferentes<br />
da sua trajetória <strong>de</strong> vida. I<strong>de</strong>ntificar-se é estar sempre em movimento no espaço.<br />
Segundo Hall (2004, p. 13), “<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós há i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s contraditórias, empurrando<br />
em diferentes direções, <strong>de</strong> tal modo que nossas i<strong>de</strong>ntificações estão sendo continuamente<br />
<strong>de</strong>slocadas” e colocadas em “xeque”.<br />
Afinal, a visão romântica <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> tradicional, fortemente estruturada no lugar,<br />
per<strong>de</strong> sentido à medida que os lugares, na contemporaneida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m conter várias<br />
comunida<strong>de</strong>s. Nesse sentido, o lugar é um híbrido, palco <strong>de</strong> transformação constante, <strong>de</strong><br />
convergência e divergência incessantes <strong>de</strong> múltiplas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />
Pensando-se, pois, o lugar como o espaço relacional da política, da economia, da<br />
socieda<strong>de</strong> e da cultura, po<strong>de</strong>-se aprofundar o entendimento do lugar como um espaço<br />
on<strong>de</strong> se encontra e entrelaça-se uma multiplicida<strong>de</strong> particular <strong>de</strong> relações socioespaciais.<br />
O lugar, com sua estrutura própria, estaria recebendo, constantemente, ações que partem<br />
do exterior e com elas interagindo. Segundo Santos (1997, p. 273), “cada lugar é, ao<br />
mesmo tempo, objeto <strong>de</strong> uma razão global e <strong>de</strong> uma razão local, convivendo dialeticamente”.<br />
Os lugares são, contudo, alvos <strong>de</strong> uma lógica global, funcionalida<strong>de</strong>s do todo e,<br />
ao mesmo tempo, contêm uma lógica local, uma reação à globalização.<br />
Na visão <strong>de</strong> Milton Santos (2005), os espaços da globalização ou os lugares apresentam<br />
cargas diferentes <strong>de</strong> conteúdos técnicos, <strong>de</strong> informação, <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong><br />
que se <strong>de</strong>finem por suas <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>s. A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> técnica é dada pelas diversas<br />
maneiras <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s exercidas no lugar, tendo, num extremo, uma natureza quase que<br />
intocada, quase sem presença técnica, e, no outro extremo, as tecnologias <strong>de</strong> ponta dis-<br />
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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3<br />
Segundo Milton Santos (2003), não se po<strong>de</strong><br />
confundir pobreza com miséria. A miséria é a<br />
privação total, é a entrega, a <strong>de</strong>rrota perante<br />
a vida. Já os pobres são carentes <strong>de</strong> toda<br />
or<strong>de</strong>m, mas não se entregam: lutam, tomam<br />
relativa consciência do mundo, articulam-se,<br />
buscam um futuro possível.<br />
postas a aten<strong>de</strong>r as intenções daqueles que as produzem (empresas multinacionais). Quanto<br />
à <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> informacional, é concebida por uma racionalida<strong>de</strong> externa que se choca<br />
com o local, que é objeto <strong>de</strong> apropriação por alguns atores privilegiados. A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
comunicacional, porém, po<strong>de</strong> ser vista como a práxis intersubjetiva, o tempo plural do<br />
acontecer compartilhado, da co-habitação, da solidarieda<strong>de</strong> e da proximida<strong>de</strong>. É a partir<br />
da proximida<strong>de</strong> que se enten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> social e sua intrínseca relação com a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
comunicacional.<br />
A questão da proximida<strong>de</strong> é importante para a compreensão do lugar e da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
social. A noção <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve referir-se apenas às distâncias <strong>de</strong> comércio ou<br />
<strong>de</strong> produção, mas, sobretudo, à contigüida<strong>de</strong> física entre pessoas numa mesma extensão<br />
do espaço, num mesmo conjunto <strong>de</strong> pontos contínuos, vivendo juntas, co-habitando o<br />
mesmo lugar. Por isso, a dimensão do lugar torna-se menos importante. O interessante é<br />
captar as relações não só econômicas mas culturais e sociais <strong>de</strong> vizinhança, compreen<strong>de</strong>r<br />
a totalida<strong>de</strong> das relações acontecidas no extenso contínuo, não importando o tamanho<br />
do lugar e sim, suas relações socioespaciais.<br />
Assim, o lugar da or<strong>de</strong>m precisa e da ação condicionada bem como o lugar da contigüida<strong>de</strong>,<br />
da co-habitação, da vizinhança, da proximida<strong>de</strong> e da comunicação encontram<br />
seu núcleo nas gran<strong>de</strong>s metrópoles, on<strong>de</strong> há profusão <strong>de</strong> vários vetores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
tanto os representados pela lógica hegemônica quanto os que a ela se opõem. A<br />
cida<strong>de</strong> é, portanto, o gran<strong>de</strong> lugar da mistura <strong>de</strong> interpretações e ações no mundo.<br />
A cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, local da diversida<strong>de</strong> social, palco da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os capitais e<br />
<strong>de</strong> todos os tipos <strong>de</strong> trabalho, atrai a população, em sua maioria pobre, advinda <strong>de</strong><br />
todos os cantos do mundo. Essa presença aumenta a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> socioespacial, que se<br />
manifesta na produção <strong>de</strong> bairros, <strong>de</strong> favelas, às vezes tão contrastantes em sua dinâmica<br />
local. Isso favorece a ampliação das formas <strong>de</strong> divisão do trabalho e, contraditoriamente,<br />
possibilita as vias <strong>de</strong> interação entre elas.<br />
Nesse cenário encontram-se, também, os migrantes que trazem suas heranças e suas<br />
memórias e, ao contrário do que parece, não se sentem “<strong>de</strong>sterritorializados” na cida<strong>de</strong>,<br />
novo lugar que, não contendo, necessariamente, o passado, possibilita a eles encarar o<br />
futuro. Sem os pés na rotina do passado, a alienação causada na chegada <strong>de</strong>saparece para<br />
dar lugar à integração. Nesse lugar, eles estão con<strong>de</strong>nados a conhecer o mundo pelo que<br />
ele é e, também, pelo que ele ainda não é. O futuro – e não o passado – torna-se a<br />
âncora para a mudança. “A noção <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong>sconhecido per<strong>de</strong> a conotação negativa e<br />
ganha um acento positivo que vem do seu papel na produção da nova história” (SAN-<br />
TOS, 1997, p. 330).<br />
Conforme Milton Santos (1997), a carência e a escassez do consumo material e imaterial,<br />
do consumo político e <strong>de</strong> cidadania produzem um “<strong>de</strong>sconforto criador”. Os pobres<br />
encontram novos usos para os objetos, novas normas sociais e afetivas, novas articulações,<br />
em suma, buscam um futuro melhor. 3 Nas zonas opacas – lugares on<strong>de</strong> vivem<br />
as populações pobres, lugar aon<strong>de</strong> o tempo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> chega mais <strong>de</strong>vagar –, a<br />
percepção das imagens e das fábulas da globalização é maior, o que favorece a comunicação<br />
e a solidarieda<strong>de</strong> entre as pessoas.<br />
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Geografias Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
A população carente, então, manifesta sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> através dos movimentos sociais<br />
e culturais que surgem como alternativa <strong>de</strong> resistência à homogeneização global. A mudança<br />
<strong>de</strong> uma lógica alheia e estranha ao lugar para uma lógica local permite uma ação<br />
contestadora e criativa, enraizada no lugar em que se vive, encarregada <strong>de</strong> romper com<br />
o futuro pautado pelo presente (SANTOS, 1997).<br />
Vainer (2002) compartilha da visão <strong>de</strong> Milton Santos segundo a qual a cida<strong>de</strong> constitui<br />
não só a arena possível para a construção <strong>de</strong> estratégias para a transformação, como<br />
também o espaço amplo para a mudança na vida das classes e grupos subordinados. A<br />
cida<strong>de</strong> é, assim, o espaço crível para a política, o espaço para re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> propostas<br />
ambiciosas e realistas, o caminho para uma transformação urbana permanente. Nesse<br />
contexto, rejeita-se a idéia <strong>de</strong> que não há o que fazer.<br />
Vainer prossegue dizendo que os <strong>de</strong>safios a serem enfrentados partem muito mais <strong>de</strong><br />
uma estratégia nacional e, também, <strong>de</strong> movimentos sociais, do que “apenas” da população<br />
pobre, como afirma Milton Santos. Os objetivos para uma mudança <strong>de</strong> rumo, para<br />
uma alternativa política à globalização e a seu viés político – o neoliberalismo – seriam,<br />
conforme assinala Vainer (2002), a redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, a melhoria das condições<br />
<strong>de</strong> vida dos trabalhadores e o avanço e a radicalização <strong>de</strong> dinâmicas sociais, políticas e<br />
culturais que propiciem a articulação <strong>de</strong> movimentos populares e o enfraquecimento<br />
dos grupos e coalizões dominantes. Torna-se claro que as propostas políticas apresentadas<br />
encontram-se articuladas, conectadas. Resta, porém, uma dúvida: como pôr esse<br />
discurso em prática?<br />
O território: espaço <strong>de</strong> dominação política<br />
e <strong>de</strong> apropriação simbólica da realida<strong>de</strong><br />
Seguindo os passos <strong>de</strong> Vainer (2002), tanto a proposta global <strong>de</strong> cidadania quanto a local<br />
reacionária e autogestionária recusam a escala nacional. A suposta perda <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r do<br />
Estado nacional é <strong>de</strong>stacada por essas vertentes, às vezes saudadas, outras lamentadas,<br />
porém o que parece importante é a polarida<strong>de</strong> global/local. Sem a perspectiva nacional,<br />
a própria noção <strong>de</strong> cidadania per<strong>de</strong> o sentido.<br />
Além do mais, a nação é uma escala que está em condições <strong>de</strong> viabilizar uma alternativa<br />
viável à globalização. “A estratégia escalar, pensada como estratégia <strong>de</strong> resistência,<br />
está amplamente ancorada na esfera nacional e tem por foco a construção <strong>de</strong> um projeto<br />
nacional” (VAINER, 2002, p. 22). 4<br />
Para enten<strong>de</strong>r a perspectiva nacionalista, no presente texto, partiu-se do seu ente espacial,<br />
o território, ou seja, o espaço essencial para o entendimento da perspectiva nacional.<br />
5 Segundo Milton Santos (1994), é preciso retornar ao território para enten<strong>de</strong>r a<br />
dinâmica global/local. O território é a mediação necessária entre a globalização, a universalida<strong>de</strong><br />
e o lugar, a singularida<strong>de</strong>.<br />
A análise sobre o território envolve uma abordagem <strong>de</strong> dimensão mais “concreta”,<br />
objetiva, <strong>de</strong> caráter político-econômico. Tal análise remete à questão <strong>de</strong> domínio do<br />
território, <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> fluxos e acessibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas e mercadorias, <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcações<br />
<strong>de</strong> fronteiras e <strong>de</strong> limites <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. E, concomitantemente, essa análise remete<br />
4<br />
Muitos autores questionam a importância<br />
do Estado como produtor <strong>de</strong> uma nova<br />
racionalida<strong>de</strong>. Não cabem aqui, neste texto,<br />
maiores reflexões a esse respeito. O que importa,<br />
no momento, é esclarecer que a perspectiva<br />
nacional, territorial e, conseqüentemente,<br />
política extravasa o âmbito estatal<br />
ou <strong>de</strong> governo. Contudo, uma nova reflexão<br />
e uma nova práxis estão fortemente ancoradas<br />
numa perspectiva territorial, mediação<br />
essencial entre as escalas global e local.<br />
5<br />
A análise do território a partir <strong>de</strong> um ponto<br />
<strong>de</strong> vista nacional, presente neste texto, não<br />
preten<strong>de</strong> resumir o conteúdo do território<br />
somente nesse aspecto, mas apenas indicar um<br />
dos caminhos possíveis para a compreensão<br />
<strong>de</strong>sse espaço. Outras perspectivas enriquecem<br />
esse tema e serão mostradas neste texto, a<br />
seguir. Para ver uma reflexão sobre o território<br />
que extrapola a questão nacional, consultar<br />
Haesbaert (2004) e Raffestin (1993).<br />
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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também a outra abordagem, mais “imaterial”, subjetiva, <strong>de</strong> caráter simbólico e cultural,<br />
constituída por grupos sociais, como forma <strong>de</strong> referência e representação, no processo<br />
<strong>de</strong> apropriação do espaço em que vivem. Dominação e apropriação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado<br />
espaço constituem, então, o território que, nesse sentido, é fruto <strong>de</strong> relações sociais no<br />
e com o espaço. Esses espaços são produzidos por um po<strong>de</strong>r político-econômico (dominação)<br />
e um po<strong>de</strong>r cultural-simbólico (apropriação), diferenciados no tempo e no<br />
espaço (HAESBAERT, 2004).<br />
No território associam-se e chocam-se o movimento geral da socieda<strong>de</strong> e o movimento<br />
particular do lugar. Esses movimentos acontecem simultaneamente com um processo<br />
<strong>de</strong> fragmentação do espaço, coor<strong>de</strong>nados pelos atores hegemônicos. O território<br />
rígido, coeso, fechado por suas fronteiras está, nos dias <strong>de</strong> hoje, cada vez mais fragmentado,<br />
<strong>de</strong>scontínuo, mas conectado por re<strong>de</strong>s informacionais. Uma visão, porém, não<br />
exclui a outra; ambas “convivem”, sobrepõem-se, formando um território híbrido, justaposto<br />
por tempos e espaços do passado, do presente e do futuro.<br />
Segundo Haesbaert (2004), as relações sociais no e com o espaço que constroem o<br />
território são produtos <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong>sigual <strong>de</strong> forças que envolvem o controle<br />
político-econômico e a apropriação simbólica do território por uma parte “privilegiada”<br />
da socieda<strong>de</strong>. Esses fatores apresentam-se ora conjugados e mutuamente reforçados,<br />
ora <strong>de</strong>sconectados e contraditoriamente articulados.<br />
Milton Santos (1994) <strong>de</strong>nomina essa diferença “relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> forças, <strong>de</strong> verticalida<strong>de</strong>s<br />
e horizontalida<strong>de</strong>s”. Segundo ele, as horizontalida<strong>de</strong>s são os domínios da contigüida<strong>de</strong>,<br />
da vizinhança territorial, do cotidiano e da proximida<strong>de</strong>. Já as verticalida<strong>de</strong>s<br />
são constituídas por locais distantes uns dos outros, mas conectados pela informação,<br />
por formas e processos sociais hegemônicos.<br />
As relações <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong> força e, conseqüentemente, sua segregação espacial, social,<br />
econômica e política não <strong>de</strong>vem ser compreendidas simplesmente como um processo<br />
<strong>de</strong> exclusão social, porque essa parte da população segregada está incluída no processo<br />
econômico, mesmo que <strong>de</strong> forma precária. O que ocorre, <strong>de</strong> fato, são contradições <strong>de</strong><br />
um mesmo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> produção capitalista. Essa população faz parte <strong>de</strong>sse momento<br />
histórico, seja negando ou afirmando esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento”, que não é só<br />
nacional mas, também, mundial.<br />
O território apresenta, portanto, uma condição complexa e dinâmica, na qual os “excluídos”<br />
ou precariamente incluídos tentam, a todo instante, se firmar como cidadãos. A falta<br />
<strong>de</strong> opção, a incerteza (o imóvel, “estável”) e o movimento, o fluxo (a instabilida<strong>de</strong>) <strong>de</strong>ssa<br />
população po<strong>de</strong>m aparentar <strong>de</strong>smobilização, conformismo, fruto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperança no <strong>de</strong>senvolvimento<br />
do país e <strong>de</strong> suas próprias vidas. Por outro lado, a inclusão precária que<br />
ten<strong>de</strong> a dissolver os laços territoriais po<strong>de</strong> levar, a partir <strong>de</strong> um sentimento coletivo <strong>de</strong><br />
cidadania, à organização <strong>de</strong> grupos sociais em torno <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias e esperanças <strong>de</strong> transformação<br />
<strong>de</strong> suas realida<strong>de</strong>s. Por conseguinte, assegurar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a cidadania à população<br />
menos favorecida e sua participação no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento social e econômico<br />
do país faz com que esses grupos locais se reúnam por suas necessida<strong>de</strong>s específicas,<br />
transformando-se em movimentos sociais <strong>de</strong> resistência, <strong>de</strong> contracorrentes.<br />
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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
Todavia, o mundo <strong>de</strong> hoje, dominado por re<strong>de</strong>s financeiras e pelo comércio transnacional<br />
apoiados pela ciência e pela técnica difundidas pelos sistemas <strong>de</strong> informação,<br />
procura a todo momento, através dos agentes hegemônicos, dissolver esses núcleos <strong>de</strong><br />
resistência. Os movimentos sociais <strong>de</strong> contestação ganham espaço na mídia, quase que<br />
somente por suas ações “controversas” e raramente pela questão social que eles realmente<br />
trazem. São exemplos disso o movimento dos sem-terras e as invasões <strong>de</strong> terras<br />
improdutivas, o movimento dos sem-casas e a invasão <strong>de</strong> prédios <strong>de</strong>socupados nas<br />
gran<strong>de</strong>s metrópoles, os movimentos anti-globalização e seus protestos nos encontros do<br />
comércio mundial, e o movimento dos <strong>de</strong>salojados por barragens, entre outros. Exemplos<br />
não faltam <strong>de</strong> movimentos sociais contestatórios, porém ainda existem pessoas que<br />
continuam a vê-los como questão <strong>de</strong> polícia e nunca como um problema social enraizado<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens da formação do território nacional.<br />
A perspectiva transescalar<br />
Vainer (2002) é muito perspicaz ao apontar que somente uma estratégia transescalar<br />
permitirá uma visão integrada dos fenômenos e uma transformação socioespacial. De<br />
fato, na vida cotidiana, estão expressas e impressas todas as escalas espaciais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
corpo, passando pelo lugar e percorrendo o território, até o espaço maior (no sentido <strong>de</strong><br />
global). As pessoas vivem no cotidiano do corpo, do lugar, do território e do mundo.<br />
Desse modo, uma visão apenas localista do cotidiano produz um i<strong>de</strong>alismo da esfera<br />
local, como se esta fosse constituída por comunida<strong>de</strong>s “tradicionais”, coesas e homogêneas.<br />
Feitas essas observações, os processos são, na perspectiva transescalar, analisados em<br />
sua totalida<strong>de</strong>. Nenhum recorte espacial tem primazia sobre os outros; ao contrário,<br />
todos são importantes para o entendimento do mundo contemporâneo. Destacando-se<br />
apenas um <strong>de</strong>les, po<strong>de</strong>-se correr o risco <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar levar por dogmatismos ou por<br />
“romantismos”. Deve-se compreen<strong>de</strong>r que cada escala espacial guarda um aspecto da<br />
realida<strong>de</strong>, ou uma significação do movimento <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>. Afinal é preciso enten<strong>de</strong>r<br />
que cada elemento é importante, uma vez que faz parte <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> fenômenos<br />
que se inter-relacionam.<br />
Infere-se, então, que a compreensão transescalar dos processos políticos, econômicos,<br />
sociais e culturais só é possível perante o entendimento <strong>de</strong> que a construção <strong>de</strong> escalas é<br />
fruto <strong>de</strong> um processo social, “isto é, a escala é produzida na e através da ativida<strong>de</strong><br />
societária, a qual, por seu turno, produz e é produzida pelas estruturas geográficas da<br />
interação social” (SMITH apud VAINER, 2002, p. 25).<br />
Nesses termos, as escalas são também processos e não apenas receptáculo das transformações<br />
sociais. Existem, então, processos socioespaciais em suas dimensões transescalares,<br />
porque, nos dias atuais, parecem não mais existir fenômenos <strong>de</strong> origem uniescalar,<br />
con<strong>de</strong>nados apenas a um espaço <strong>de</strong>terminado.<br />
Cumpre assinalar, ainda, que as escalas não são neutras por serem produzidas por<br />
processos heterogêneos e <strong>de</strong> conflito. Elas não estão dadas a priori nem são geometricamente<br />
<strong>de</strong>finidas. Elas são frutos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> apropriação e <strong>de</strong> dominação do<br />
espaço e, por isso, carregam consigo todo um conteúdo estratégico e político. Segundo<br />
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Geografias<br />
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Castro (1997), a escala tomada enquanto medida proporcional resume-se apenas em<br />
medida matemática, em forma abstrata.<br />
As escalas são, portanto, produtos das ações sociais ao longo <strong>de</strong> processos históricos<br />
<strong>de</strong> confrontos envolvendo disputas que perpassam por todas as escalas espaciais, na<br />
maioria das vezes acontecendo simultaneamente. Não há, assim, legitimida<strong>de</strong> em afirmar<br />
qual a mais importante. Para a abordagem transescalar, isso não importa; o que<br />
interessa é a perspectiva que inter-relacione as escalas envolvidas no processo em foco.<br />
Ora, qualquer objeto <strong>de</strong> transformação socioespacial envolve táticas e estratégias que<br />
exigem entendimento e ação em cada uma das escalas em que se configuram os conflitos.<br />
Dessa maneira, somente mudanças estruturais profundas transescalares serão capazes<br />
<strong>de</strong> possibilitar uma reviravolta no quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e miséria social que<br />
atinge o mundo hoje (VAINER, 2002).<br />
Em síntese, a análise transescalar é a que parece ser não apenas a mais capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />
as inter-relações entre os fenômenos, pois articula os diversos espaços em seu<br />
processo <strong>de</strong> análise, mas também a que possibilita uma práxis socioespacial.<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
O otimismo <strong>de</strong> Milton Santos, tendo o lugar como ponto <strong>de</strong> partida para as<br />
transformações sociais e a população carente e pobre como o principal agente <strong>de</strong>ssas<br />
transformações, parece não encontrar tanto respaldo na realida<strong>de</strong> socioespacial. As<br />
perspectivas <strong>de</strong> mudança ainda estão obscuras, bem como o próprio fenômeno da<br />
globalização. Até que ponto os movimentos <strong>de</strong> resistência assumem uma visão transescalar<br />
e emancipatória que conteste o mundo das mercadorias é uma questão que ainda não<br />
está tão nítida como sugere o professor, muito embora melhorias substantivas tenham<br />
sido conquistadas por esses movimentos sociais, como, por exemplo, maior número <strong>de</strong><br />
assentamentos rurais já concretizados, <strong>de</strong>sistência <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> barragens para<br />
hidrelétricas e, conseqüentemente, <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> pessoas, participação popular<br />
nas discussões sobre orçamentos municipais etc.<br />
É bom <strong>de</strong>stacar que Milton Santos, mesmo assumindo o lugar como ponto <strong>de</strong> partida<br />
das mudanças socioespaciais, pauta sempre sua análise por uma perspectiva transescalar<br />
que leve em conta as diversas escalas espaciais. Tal qual acontece com Vainer, que<br />
corrobora a perspectiva transescalar e vê, na cida<strong>de</strong>, o lugar ou o ponto <strong>de</strong> partida para<br />
a transformação social. O mesmo não se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> Massey, que <strong>de</strong>staca apenas a<br />
importância global/local para esse tipo <strong>de</strong> análise, e tampouco <strong>de</strong> Harvey, que vê muito<br />
mais na ação global a saída para a transformação socioespacial.<br />
Essa reflexão sobre as idéias apontadas por esses autores remete este ensaio à questão<br />
essencial para o aprofundamento e a conclusão do tema: a relação teoria e prática.<br />
Nesse sentido, algumas questões são pertinentes. Por exemplo: será que somente os<br />
discursos resolvem os problemas socioespaciais? É preciso somente agir? Ou ambos<br />
fazem parte <strong>de</strong> um mesmo processo <strong>de</strong> viver no mundo? Longe <strong>de</strong> traçar uma perspectiva<br />
ampla e coesa, preten<strong>de</strong>-se aqui, apenas brevemente, apontar um <strong>de</strong>ntre os vários<br />
possíveis caminhos para a compreensão da relação entre teoria e prática.<br />
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ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
Assim sendo, perguntar-se-ia: até que ponto teoria e prática andam junto? Dir-se-ia que<br />
a teoria e a produção do conhecimento só são possíveis através da existência e da prática<br />
cotidiana. A teoria não é um dado a priori do mundo ou, ainda, um ente distanciado <strong>de</strong>le:<br />
ela é composta pelo mundo em movimento e pelo sujeito; por isso toda teoria é carregada<br />
do momento histórico que a influencia. Nada impe<strong>de</strong>, porém, que ela ultrapasse esse momento,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tenha respaldo na própria realida<strong>de</strong> em que quer se inserir.<br />
Nota-se que, na contemporaneida<strong>de</strong>, as práticas estão se distanciando da teoria, preten<strong>de</strong>ndo<br />
ser “autônomas”. Sem o <strong>de</strong>vido cuidado ou preocupação teórica que embase<br />
as práticas, corre-se o risco <strong>de</strong> configurá-las em ações soltas, <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> sentido<br />
reflexivo, mais condizentes com o mundo em que se vive.<br />
Não se quer com isso renegar a importância da prática e tampouco compactuar com<br />
a divisão, muito comum na construção da ciência mo<strong>de</strong>rna, entre teoria e prática. Partese<br />
do pressuposto que as duas coisas se formam num só processo <strong>de</strong> existir no mundo.<br />
Todavia, num mundo contemporâneo em que a realida<strong>de</strong> socioespacial adquire gran<strong>de</strong><br />
complexida<strong>de</strong>, as práticas carecem, cada vez mais, <strong>de</strong> conteúdos teóricos, <strong>de</strong> reflexões<br />
condizentes com tal complexida<strong>de</strong>. É nesse sentido que cada reflexão teórica torna-se,<br />
também, uma forma genuína <strong>de</strong> prática, como sugere Adorno (1969).<br />
Assim, é preciso refletir sobre o espaço nas suas diversas escalas, pois ele representa<br />
muito bem essa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amalgamar prática e teoria. Segundo Gottdiener (1993,<br />
p. 127), refletindo a partir da obra <strong>de</strong> Henri Lefebvre, o espaço é “uma localida<strong>de</strong> física,<br />
uma peça <strong>de</strong> bem imóvel e ao mesmo tempo uma liberda<strong>de</strong> existencial e uma expressão<br />
mental. O espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilida<strong>de</strong> social<br />
<strong>de</strong> engajar-se na ação”.<br />
artigo recebido abril/2006<br />
artigo aprovado julho/2006<br />
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
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A importância das escalas espaciais para compreensão do processo <strong>de</strong> globalização
Belo Horizonte 02(1) 93-106 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Thiago Macedo Alves <strong>de</strong> Brito<br />
Geografias<br />
ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />
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Resenha<br />
108<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
RESENHA O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46 Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho<br />
industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996
Resenha O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46<br />
Tânia Bittencourt Bloomfield<br />
Mestranda do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em<br />
Geografia – UFPR<br />
O fim das utopias, da História, da Arte,<br />
da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, dos territórios, do<br />
Estado-nação, do encantamento, das<br />
esperanças, da civilização, do mundo.<br />
Estamos vivendo em diferentes tempos e<br />
em diferentes espaços? Na chamada pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />
há uma tendência <strong>de</strong><br />
homogeneização da socieda<strong>de</strong>, causada<br />
pelo processo <strong>de</strong> globalização?<br />
Essas e outras questões foram suscitadas<br />
pelo filme Co<strong>de</strong> 46 (Código 46), lançado<br />
no mercado em 2003. Trata-se <strong>de</strong> um filme<br />
<strong>de</strong> ficção científica, mas que pouca<br />
semelhança apresenta com outros filmes<br />
já vistos. Ele apresenta um futuro, não<br />
muito distante, que em vários aspectos se<br />
parece com a nossa realida<strong>de</strong>. Ainda que<br />
muitas coisas no filme pareçam familiares,<br />
o roteiro aponta para um <strong>de</strong>vir sombrio.<br />
Supostamente, é o que nos espera,<br />
imersos que estamos nas dimensões reificada<br />
e consensual, mediadas pelas i<strong>de</strong>ologias<br />
que nos <strong>de</strong>sumanizam.<br />
O filme po<strong>de</strong>ria ser resumido como um<br />
exercício <strong>de</strong> futurologia, uma metáfora da<br />
pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> consolidada. Nele po<strong>de</strong>m<br />
ser percebidas muitas das temáticas<br />
que são abordadas por diferentes disciplinas<br />
acadêmicas: a globalização, a genética,<br />
a <strong>de</strong>s-reterritorialização, o lugar, o não-lugar,<br />
os equipamentos e artefatos tecnológicos,<br />
a questão ambiental, a relação/<br />
percepção tempo-espaço, o multiculturalismo,<br />
a linguagem, a polarização corpo/mente,<br />
as intersubjetivida<strong>de</strong>s e suas<br />
relações com as estruturas políticas, econômicas<br />
e culturais.<br />
Antes <strong>de</strong> refletir sobre alguns aspectos<br />
do filme em questão, será necessário transcrever<br />
o Código 46, por se tratar da peça<br />
em torno da qual a narrativa está baseada.<br />
Artigo 1 – Dois seres humanos com o<br />
mesmo grupo <strong>de</strong> genes nucleares são<br />
consi<strong>de</strong>rados geneticamente idênticos. As<br />
relações <strong>de</strong> um são as relações <strong>de</strong> todos.<br />
Devido às técnicas <strong>de</strong> fecundação artificial<br />
e clonagem, é necessário prevenir qualquer<br />
reprodução geneticamente incestuosa,<br />
aci<strong>de</strong>ntal ou proposital. Portanto:<br />
a. Os futuros pais <strong>de</strong>vem ser geneticamente<br />
examinados, antes <strong>de</strong> conceberem. Se<br />
apresentarem 100%, 50% ou 25% <strong>de</strong><br />
igualda<strong>de</strong> genética, não po<strong>de</strong>rão conceber.<br />
b. Se a gravi<strong>de</strong>z não for planejada, o feto<br />
será examinado. Uma gravi<strong>de</strong>z vinda <strong>de</strong><br />
pais com 100%, 50% ou 25% <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong><br />
genética será imediatamente interrompida.<br />
c. Se os pais não sabiam da igualda<strong>de</strong><br />
genética entre eles, é permitida uma intervenção<br />
médica para prevenir o Código 46.<br />
d. Se os pais sabiam da igualda<strong>de</strong> genética<br />
antes <strong>de</strong> conceberem, trata-se <strong>de</strong> uma<br />
violação do Código 46.<br />
(CODE... 2003, n.p., tradução nossa)<br />
Apesar <strong>de</strong> aparentemente se tratar <strong>de</strong><br />
uma obra cinematográfica que põe em<br />
relevo a clonagem e <strong>de</strong>mais experiências<br />
Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães JúnioTânia Bittencourt Bloomfield RESENHA<br />
109
1<br />
É possível estabelecer, no contexto do filme,<br />
uma relação entre as palavras Sphinx e<br />
sphincter, já que a empresa supranacional<br />
Sphinx é a responsável pelo controle opressor<br />
que fecha ou abre fronteiras para os indivíduos,<br />
permitindo-lhes ou não realizarem<br />
seus trânsitos.<br />
Sphinx, do inglês, esfinge: Figura mitológica,<br />
com cabeça humana e corpo <strong>de</strong> leão. Pessoa<br />
enigmática. Na mitologia grega, a esfinge era<br />
um animal misterioso que propunha enigmas<br />
aos viajantes. Para Édipo, propôs o enigma<br />
“qual é o animal que anda sobre quatro pés<br />
<strong>de</strong> manhã, sobre dois ao meio-dia e sobre<br />
três à noite?”. Édipo, filho <strong>de</strong> Laio e Jocasta,<br />
separado <strong>de</strong> seus pais logo após o nascimento,<br />
foi criado pelo rei do Corinto, que mandou<br />
educá-lo. Já adulto, acabou matando seu pai,<br />
Laio, que lhe era <strong>de</strong>sconhecido, e casando-se<br />
com a rainha Jocasta, sua mãe biológica, sem<br />
o saber. Esses fatos ocorreram logo após ter<br />
<strong>de</strong>svendado o enigma proposto a ele pela<br />
Esfinge, monstro que atormentava o reino <strong>de</strong><br />
seus pais, feito que causou o suicídio do animal<br />
e levou Édipo, diretamente, para a relação<br />
incestuosa.<br />
Sphincter, do inglês, esfíncter: Músculo anular<br />
contrátil que serve para fechar e abrir<br />
orifícios ou ductos naturais do corpo, regulando<br />
o trânsito <strong>de</strong> matérias no interior <strong>de</strong><br />
diversos órgãos.<br />
com inseminação artificial e com DNA, não<br />
é essa, segundo seu diretor e seu roteirista,<br />
a principal discussão do filme. De acordo<br />
com seus autores, trata-se <strong>de</strong> uma história<br />
<strong>de</strong> amor, simples e mítica, apresentada<br />
como uma versão do complexo <strong>de</strong> Édipo.<br />
Todo o resto é pano <strong>de</strong> fundo. Porém,<br />
é justamente o patchwork composto<br />
pela relação entre os vários aspectos da<br />
pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, pano <strong>de</strong> fundo do filme,<br />
que interessa a esta discussão. A controvérsia<br />
sobre a oposição mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
x pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> – afinal, em qual das<br />
lógicas estamos imersos? – tem apaixonados<br />
<strong>de</strong>fensores, <strong>de</strong> um lado e <strong>de</strong> outro.<br />
Para efeito <strong>de</strong> provocação, ficaremos com<br />
Fre<strong>de</strong>ric Jameson (1997, p. 413):<br />
Eu também, como todo mundo, fico às<br />
vezes muito entediado com o slogan “pósmo<strong>de</strong>rno”,<br />
mas, quando começo a me<br />
arrepen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> minha cumplicida<strong>de</strong> com ele,<br />
a <strong>de</strong>plorar seu uso errôneo e sua<br />
notorieda<strong>de</strong> e a concluir, com alguma<br />
relutância, que ele levanta mais problemas<br />
do que os resolve, eu me vejo parando<br />
para pensar se qualquer outro conceito<br />
po<strong>de</strong>ria dramatizar essas questões <strong>de</strong><br />
forma tão eficiente e econômica.<br />
O personagem do ator Tim Robbins,<br />
William, é uma espécie <strong>de</strong> investigador <strong>de</strong><br />
uma organização supranacional que controla<br />
a vida das pessoas no planeta. William<br />
é enviado para Xangai, China, para investigar<br />
quem, na fábrica <strong>de</strong> “passes” on<strong>de</strong><br />
trabalha Maria, encarnada pela atriz Samantha<br />
Morton, está fraudando o sistema,<br />
emitindo e ven<strong>de</strong>ndo os papelles no mercado<br />
negro. Essa organização, chamada<br />
Sphinx, 1 é a responsável pela concessão <strong>de</strong><br />
autorização para mobilida<strong>de</strong> das pessoas<br />
ao redor do mundo, garantida pela emissão<br />
<strong>de</strong> papelles. Para tudo o que as pessoas<br />
precisam fazer, especialmente viajar, é necessário<br />
ter os passes. E mesmo que alguém<br />
os solicite durante anos, po<strong>de</strong>rá ver<br />
os seus reiterados pedidos <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong><br />
negados, sem que nenhuma explicação lhe<br />
seja dada. Tudo tem a ver com o conhecimento<br />
que a organização tem da vida biológica,<br />
profissional e pessoal <strong>de</strong> cada indivíduo<br />
do planeta. É a Sphinx que arbitra<br />
sobre a violação do Código 46 e que aplica<br />
as sanções cabíveis.<br />
Segundo o art. 1 do Código 46, como<br />
visto anteriormente, não é permitido a duas<br />
pessoas conceberem um bebê, caso apresentem<br />
coincidência em seu material genético<br />
acima <strong>de</strong> 25%. Caso haja violação<br />
proposital do Código 46 e ocorra uma gravi<strong>de</strong>z,<br />
esta será interrompida. O casal terá<br />
toda a memória relativa ao evento retirada<br />
<strong>de</strong> suas mentes, esquecendo-se inclusive<br />
<strong>de</strong> seus parceiros, e, se houver agravantes<br />
ou reincidência, os dois po<strong>de</strong>rão ser<br />
banidos das cida<strong>de</strong>s e entregues a um <strong>de</strong>stino<br />
cruel em zonas chamadas al fuera, on<strong>de</strong>,<br />
aliás, a organização Sphinx pune todas as<br />
violações <strong>de</strong>ssa forma.<br />
Quando chega à região metropolitana <strong>de</strong><br />
Xangai, saindo <strong>de</strong> Seattle, EUA, William<br />
tem <strong>de</strong> atravessar enormes espaços vazios,<br />
<strong>de</strong>sérticos, transitando em uma estrada<br />
larga e longa, com <strong>de</strong>stino à cida<strong>de</strong>. Na<br />
fronteira da cida<strong>de</strong>, que no filme se chama<br />
<strong>de</strong> al fuera, existe uma praça <strong>de</strong> pedágio<br />
que se configura como posto <strong>de</strong> imigração.<br />
Circulando entre os carros que abordam<br />
o posto, encontram-se <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />
pessoas andrajosas, que tentam ven<strong>de</strong>r<br />
quinquilharias. Se tiverem sorte, conseguirão<br />
driblar o inexpugnável cerco aos que<br />
não têm os papelles, para a<strong>de</strong>ntrar a cida<strong>de</strong>.<br />
A imagem dos mexicanos ou brasileiros<br />
110<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
RESENHA O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46 Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho<br />
industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996
tentando atravessar a fronteira do México<br />
com os Estados Unidos vem logo à mente.<br />
No filme, há alusões a gran<strong>de</strong>s espaços<br />
vazios, em que não ocorrem ligações <strong>de</strong><br />
afetivida<strong>de</strong>, chamados por Marc Augé<br />
(1994) <strong>de</strong> “não-lugares”. Esses espaços<br />
contrapõem-se aos espaços <strong>de</strong> significação,<br />
<strong>de</strong> conforto, <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> proteção:<br />
os “lugares”. Os não-lugares –<br />
saguões <strong>de</strong> hotéis, shoppings, supermercados,<br />
salas <strong>de</strong> embarque em aeroportos,<br />
por exemplo – são vácuos locacionais,<br />
<strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> significados para as pessoas<br />
que passam por eles. Sobre os lugares,<br />
encontraremos a conceituação <strong>de</strong> importantes<br />
e diferentes autores, tais como Henri<br />
Lefébvre, Rogério Haesbaert, Milton Santos<br />
e Yi-fu Tuan, entre outros.<br />
Espaços <strong>de</strong> trânsito, <strong>de</strong> nomadismo errante<br />
– no caso <strong>de</strong> Código 46, os não-lugares<br />
– acabam por ser o cenário dos <strong>de</strong>sterritorializados<br />
física e socialmente, como<br />
os que foram punidos e banidos para o al<br />
fuera. A idéia <strong>de</strong> território e <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>s<br />
envolve relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre grupos<br />
ou indivíduos, por via seja política,<br />
seja econômica ou cultural, como argumenta<br />
Rogério Haesbaert da Costa (2004,<br />
p. 95-96):<br />
Po<strong>de</strong>ríamos dizer que o território, enquanto<br />
relação <strong>de</strong> dominação e apropriação<br />
socieda<strong>de</strong>-espaço, <strong>de</strong>sdobra-se ao longo <strong>de</strong><br />
um continuum que vai da dominação<br />
político-econômica mais “concreta” e<br />
“funcional” à apropriação mais subjetiva<br />
e/ou “cultural-simbólica”. Embora seja<br />
completamente equivocado separar estas<br />
esferas, cada grupo social, classe ou<br />
instituição po<strong>de</strong> “territorializar-se” através<br />
<strong>de</strong> processos <strong>de</strong> caráter mais funcional<br />
(econômico-político) ou mais simbólico<br />
(político-cultural) na relação que <strong>de</strong>senvolve<br />
com os “seus” espaços, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da<br />
dinâmica <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e das estratégias que<br />
estão em jogo. Não é preciso dizer que são<br />
muitos os potenciais conflitos a se<br />
<strong>de</strong>sdobrar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse jogo <strong>de</strong><br />
territorialida<strong>de</strong>s.<br />
A impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acessar as benesses<br />
da tecnologia também implica em processos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sterritorialização. Em geral, a<br />
aparição <strong>de</strong> artefatos tecnológicos mirabolantes<br />
em filmes <strong>de</strong> ficção é recorrente<br />
e não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rada no roteiro.<br />
Curiosamente, não é o que acontece em<br />
Código 46. Nele são mostradas tecnologias<br />
que apresentam uma forte semelhança ou<br />
factibilida<strong>de</strong> em relação ao que a ciência e<br />
a indústria já po<strong>de</strong>m realizar hoje. Como<br />
exemplos, po<strong>de</strong>m ser vistos os seguintes<br />
elementos: espaços arquitetônicos hi-tech;<br />
sensores <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong> nos vidros das<br />
janelas, que substituem cortinas; telas <strong>de</strong> TV<br />
e monitores <strong>de</strong> computadores, com touchscreen,<br />
instalados em janelas ou pare<strong>de</strong>s que<br />
separam ambientes; controle <strong>de</strong> acesso aos<br />
lugares, por verificação biométrica; dispositivos<br />
“vestíveis” <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> realida<strong>de</strong><br />
virtual, para a prática <strong>de</strong> esportes; uso <strong>de</strong><br />
palavras-senha, emitidas por comando <strong>de</strong><br />
voz, para permitir o acesso a lugares, compras,<br />
pagamento <strong>de</strong> contas e registro e catalogação<br />
<strong>de</strong> dados. Da mesma forma<br />
como em nossa realida<strong>de</strong>, também em<br />
Código 46 essas tecnologias não estão disponíveis<br />
a todos os membros da socieda<strong>de</strong>.<br />
Algumas das novida<strong>de</strong>s tecnológicas<br />
mostradas no filme, que esperamos não se<br />
disponibilizem em tempo algum, são, <strong>de</strong><br />
qualquer maneira, intrigantes: procedimentos<br />
médicos que removem a memória<br />
pontual das mentes; operações que inoculam<br />
vírus <strong>de</strong> “empatia” – capacitando o<br />
indivíduo a adivinhar o pensamento alheio<br />
Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães JúnioTânia Bittencourt Bloomfield RESENHA<br />
111
2<br />
Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo foi lançado, recentemente,<br />
um empreendimento imobiliário chamado<br />
Edifício Mandarim. Trata-se <strong>de</strong> um<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> arquitetura pós-mo<strong>de</strong>rna e<br />
exemplifica uma tendência recente <strong>de</strong> valorização<br />
da cultura chinesa no mundo contemporâneo.<br />
Ver .<br />
– e vírus <strong>de</strong> repulsão a <strong>de</strong>terminada pessoa;<br />
instalação <strong>de</strong> vírus para se falar uma<br />
língua estranha, ou cantar maravilhosamente<br />
bem, instantaneamente; inserção <strong>de</strong><br />
plantas que são controladas cientificamente,<br />
por ter a radiação solar alcançado níveis<br />
perigosos, fazendo com que as temporalida<strong>de</strong>s<br />
das práticas cotidianas não<br />
sejam mais balizadas pelo dia.<br />
Outro aspecto interessante a ser notado<br />
no filme diz respeito à linguagem usada na<br />
narrativa. Como se fosse parte integrante e<br />
natural da língua universal, cuja matriz é o<br />
inglês contemporâneo, há a ocorrência <strong>de</strong><br />
vários vocábulos oriundos <strong>de</strong> outras línguas<br />
faladas no mundo real. As palavras, em sua<br />
maioria oriundas da Europa, usadas pelos<br />
personagens para se comunicar, natural e<br />
corriqueiramente, em qualquer lugar do<br />
mundo on<strong>de</strong> se encontrem, são as seguintes:<br />
palabra, porquoi, al fuera, bueno, comme ça,<br />
salam, par avion, chico, chica, coche, cosa, claro, hasta<br />
luego, papelle, un poco, lo siento, gracias, si, buenos<br />
dias, hombre, no funciona, <strong>de</strong>scontinuado, tu nombre,<br />
n’est-ce pàs, voilà, no lo se, la bas, anch io. E<br />
todos se enten<strong>de</strong>m. É como se fosse uma<br />
espécie <strong>de</strong> esperanto. Ainda que possamos<br />
ver, hoje em dia, a predominância da língua<br />
inglesa nas relações globais, em um futuro<br />
não muito distante po<strong>de</strong> ser que ela<br />
não continue a ser hegemônica. Talvez <strong>de</strong>vêssemos<br />
nos preocupar com o aprendizado<br />
<strong>de</strong> uma língua oriental.<br />
É relevante que, na maior parte do filme,<br />
o cenário seja Xangai. Os autores parecem<br />
querer enfatizar uma tendência no<br />
estreitamento das relações do Oci<strong>de</strong>nte<br />
com o Oriente, em um contexto pós-mo<strong>de</strong>rno<br />
e globalizado. A China alcançou o<br />
patamar <strong>de</strong> quarta maior economia no<br />
panorama econômico mundial, ultrapassando<br />
países europeus como a França e a<br />
Inglaterra. Dessa forma, por que não imaginar<br />
que, no futuro, estaremos falando o<br />
mandarim como segunda língua? Ou que<br />
adotaremos aspectos da cultura chinesa,<br />
como a moda e a arquitetura, 2 ao invés <strong>de</strong><br />
copiarmos mo<strong>de</strong>los europeus?<br />
Estranhamente, mesmo em um contexto<br />
configurado pelo controle do corpo,<br />
da mente, das relações e da liberda<strong>de</strong>, os<br />
personagens parecem estar conformados<br />
com o que lhes foi <strong>de</strong>terminado genética,<br />
política, econômica e culturalmente. Como<br />
um dos personagens secundários da trama<br />
diz: “Aqui, as pessoas não vivem. Elas<br />
sobrevivem” (CODE... 2003, n.p., tradução<br />
nossa). Aparentemente, somente os<br />
dois personagens principais é que burlam<br />
as regras e inserem o imprevisto, o caótico,<br />
o irracional, quando lutam contra o<br />
<strong>de</strong>stino que lhes foi imposto pela socieda<strong>de</strong><br />
em que vivem. Naquele tipo <strong>de</strong> organização,<br />
predominam o cientificismo, a racionalida<strong>de</strong>,<br />
o planejamento, o controle, a<br />
exclusão do erro. A violência a que são<br />
submetidos os personagens não é explosiva<br />
e explícita, mas difusa e sutil, nem por<br />
isso menos aterrorizante.<br />
O espaço e o tempo, na narrativa, são<br />
dimensões modificadas pela nova maneira<br />
<strong>de</strong> estar no mundo, ainda que o rompimento<br />
<strong>de</strong> algumas práticas cotidianas e<br />
institucionais do passado não tenha se dado<br />
<strong>de</strong> forma total. Já o espaço e o tempo do<br />
filme são modulados pelas gran<strong>de</strong>s panorâmicas<br />
e pelos movimentos lentos dos<br />
personagens, que atuam mais na esfera<br />
psicológica do que na física.<br />
A música é um outro elemento extremamente<br />
importante no filme, porque<br />
marca, com relações intertextuais, os lugares<br />
e os tempos psicológicos dos personagens.<br />
Dessa maneira, quando William se<br />
112<br />
Geografias Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
RESENHA O espaço da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, em Código 46 Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho<br />
industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996
apaixona por Maria e está no limiar <strong>de</strong> infringir<br />
as regras <strong>de</strong> sua profissão e da lei,<br />
o dilema do personagem é marcado pela<br />
música Should I stay or should I go? 3 (Devo<br />
ficar ou <strong>de</strong>vor ir?), do grupo The Clash. Outro<br />
<strong>de</strong>sses momentos acontece quando ele,<br />
tendo sua memória sido apagada, reencontra<br />
a família nos Estados Unidos, após<br />
voltar da China, e seu filho canta Row, row,<br />
row the boat. 4 Ou ainda quando Maria, estando<br />
al fuera e esquecida, imagem-metáfora<br />
dos excluídos, dos <strong>de</strong>sterritorializados,<br />
é acompanhada pela música Warning<br />
sign 5 (Sinal <strong>de</strong> aviso), da banda inglesa Coldplay.<br />
As músicas, conhecidas/percebidas<br />
<strong>de</strong>ntro e fora da narrativa, são aspectos<br />
do passado que permanecem no presente<br />
<strong>de</strong>scrito pelo filme. São os elementos <strong>de</strong><br />
intermediação das dimensões espaço/tempo,<br />
porque espacializam e temporalizam<br />
as nossas representações em relação à história<br />
<strong>de</strong> William e Maria.<br />
Em entrevista sobre o filme, o ator Tim<br />
Robbins <strong>de</strong>clarou: “Há um modo <strong>de</strong> sermos<br />
livres em uma socieda<strong>de</strong> terrivelmente<br />
opressora, e há um modo <strong>de</strong> sermos escravos<br />
numa socieda<strong>de</strong> livre”. 6 Sob vários<br />
pontos <strong>de</strong> vista, o mundo permanece o<br />
mesmo; por outro lado, mudou, irremediavelmente.<br />
Existe, no mundo <strong>de</strong> hoje,<br />
espaço <strong>de</strong> manobra para que todos façamos<br />
essa opção <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>?<br />
3<br />
THE CLASH. Should I stay or should I go?. In:<br />
THE CLASH. Combat rock. Londres: Sonny,<br />
2002. 1 CD, digital, estéreo, faixa n. 3.<br />
Referências<br />
AUGÉ, Marc. Não-lugares:<br />
introdução a uma<br />
antropologia da<br />
supermo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />
Campinas: Papirus, 1994.<br />
CODE 46. Direção:<br />
Michael Winterbottom.<br />
Produção: Andrew Eaton.<br />
Intérpretes: Tim Robbins;<br />
Samantha Morton e outros.<br />
Edição: Peter Christelis.<br />
Direção <strong>de</strong> fotografia:<br />
Alwin Kuchler e Marcel<br />
Zyskind. Roteiro: Frank<br />
Cottrell Boyce. Música:<br />
The Free Association.<br />
Londres: MGM; United<br />
Artists; The UK Film<br />
Council; BBC FILMS, 2003.<br />
1 DVD (93 min.), color.,<br />
drama/romance.<br />
COSTA, Rogério<br />
Haesbaert da. O mito da<br />
<strong>de</strong>sterritorialização: do “fim<br />
dos territórios” à<br />
multiterritorialida<strong>de</strong>.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand<br />
Brasil, 2004.<br />
JAMESON, Fre<strong>de</strong>ric.<br />
Pós-mo<strong>de</strong>rnismo: a lógica<br />
cultural do capitalismo<br />
tardio. São Paulo:<br />
Ática, 1997.<br />
4<br />
Row, row, row the boat... (Reme, reme, reme<br />
seu barco <strong>de</strong>scendo a corrente, alegremente,<br />
alegremente, alegremente. A vida é um sonho...)<br />
é uma música tradicional inglesa, <strong>de</strong><br />
domínio público.<br />
5<br />
COLDPLAY. Warning sign. In: COLDPLAY. A<br />
rush of blood to the head. Londres: EMI, 2002.<br />
1 CD, digital, estéreo, faixa n. 8.<br />
6<br />
ROBBINS, Tim. [Entrevista]. In: CODE 46.<br />
Direção: Michael Winterbottom. Produção:<br />
Andrew Eaton. Intérpretes: Tim Robbins;<br />
Samantha Morton e outros. Edição: Peter<br />
Christelis. Direção <strong>de</strong> fotografia: Alwin<br />
Kuchler e Marcel Zyskind. Roteiro: Frank<br />
Cottrell Boyce. Música: The Free Association.<br />
Londres: MGM; United Artists; The UK Film<br />
Council; BBC FILMS, 2003. 1 DVD (93 min.),<br />
color., drama/romance. Making off.<br />
Belo Horizonte 02(1) 109-113 janeiro-junho <strong>de</strong> 2006<br />
Geografias<br />
Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães JúnioTânia Bittencourt Bloomfield RESENHA<br />
113
Notas <strong>de</strong><br />
pesquisa<br />
114<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
NOTAS DE PESQUISA<br />
Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana
Notas <strong>de</strong><br />
pesquisa<br />
A expansão metropolitana<br />
<strong>de</strong> Belo Horizonte: dinâmica e<br />
especificida<strong>de</strong>s no eixo-sul<br />
Heloisa Soares <strong>de</strong> Moura Costa<br />
Coor<strong>de</strong>nadora do Projeto Eixo-Sul<br />
O Projeto Eixo-Sul teve início em junho <strong>de</strong> 2002 e estará concluído no segundo semestre<br />
<strong>de</strong> 2006, tendo contado com financiamentos da Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pesquisa da UFMG, do<br />
CNPq e da FAPEMIG. Em linhas gerais, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado bastante bem sucedido em<br />
dois aspectos: a) tem propiciado uma reflexão importante sobre a dinâmica metropolitana<br />
recente, em particular no que se refere tanto aos processos <strong>de</strong> expansão urbana quanto<br />
às tentativas <strong>de</strong> regulação <strong>de</strong> tais processos nos campos urbano e ambiental; b) tem<br />
possibilitado a articulação <strong>de</strong> professores, pesquisadores e alunos <strong>de</strong> pós-graduação e<br />
graduação <strong>de</strong> diferentes cursos e unida<strong>de</strong>s da UFMG e fora <strong>de</strong>la, consolidando a pesquisa<br />
em caráter interdisciplinar e permanente em torno dos estudos urbanos e regionais. O<br />
projeto <strong>de</strong> pesquisa envolve onze professores pesquisadores <strong>de</strong> Programas <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
(Geografia, Demografia, Economia e Arquitetura e Urbanismo da UFMG e<br />
Ciências Sociais da PUC-<strong>Minas</strong>), da FAFICH/UFMG, um professor visitante (CSU, Chico,<br />
CA), além <strong>de</strong> alunos <strong>de</strong> graduação e pós-graduação.<br />
O projeto busca produzir e aprofundar o conhecimento sobre os processos recentes<br />
<strong>de</strong> produção do espaço urbano e metropolitano na Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />
com vistas a realimentar os <strong>de</strong>bates teóricos e contribuir para se repensar a<br />
questão metropolitana, tendo em vista a estruturação <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> planejamento e<br />
gestão calcado na cooperação e solidarieda<strong>de</strong> entre os municípios e que i<strong>de</strong>ntifique possibilida<strong>de</strong>s<br />
tanto <strong>de</strong> redução dos diferenciais <strong>de</strong> segregação e exclusão sociais como <strong>de</strong><br />
preservação das especificida<strong>de</strong>s socioambientais da região.<br />
Para tanto foram i<strong>de</strong>ntificadas e discutidas questões referentes aos seguintes aspectos:<br />
formas <strong>de</strong> organização socioespacial relacionadas com a emergência <strong>de</strong> alternativas econômicas<br />
envolvendo movimentos comunitários; políticas públicas municipais e metropolitanas<br />
indutoras da ocupação do território ou <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empreendimentos<br />
econômicos, em especial os procedimentos e implicações da regulação urbanística<br />
e ambiental e o papel das instâncias colegiadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação no controle e licenciamento<br />
das ativida<strong>de</strong>s; processos <strong>de</strong> segregação socioespacial e <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>ncial,<br />
vinculando-os à investigação do significado das novas formas associadas à valoração da<br />
natureza e da segurança, implícitas na proliferação <strong>de</strong> loteamentos <strong>de</strong> acesso restrito, os<br />
chamados “condomínios”, no seu potencial alimentador <strong>de</strong> um mercado imobiliário<br />
ascen<strong>de</strong>nte e segregador; transformações e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> permanência na região <strong>de</strong><br />
outras formas <strong>de</strong> urbanização, sejam os núcleos tradicionais, sejam as áreas “populares”<br />
<strong>de</strong> residência dos empregados em serviços domésticos e pessoais; estratégias do setor<br />
privado que po<strong>de</strong>m atuar na direção da socialização dos custos e privatização dos benefícios<br />
associados tanto à valorização fundiária quanto aos impactos socioambientais ne-<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Ralfo Matos<br />
Geografias<br />
NOTAS DE PESQUISA<br />
115
gativos (recursos hídricos, sistema viário, áreas <strong>de</strong> preservação, entre outros) dos investimentos<br />
realizados na região; estratégias das administrações municipais voltadas para a<br />
competição, via atração <strong>de</strong> moradores <strong>de</strong> alta renda e ativida<strong>de</strong>s terciárias superiores;<br />
articulações socioeconômicas e territoriais visando a contribuir para outras formas <strong>de</strong><br />
construção do exercício da política no nível do conjunto da metrópole.<br />
A produção do espaço no eixo-sul foi analisada como resultado <strong>de</strong> uma dinâmica<br />
urbana/metropolitana mais geral e <strong>de</strong> especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse recorte espacial. Trata-se <strong>de</strong><br />
Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental em conflituoso processo <strong>de</strong> institucionalização, com significativos<br />
mananciais <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água <strong>de</strong> alcance metropolitano, sendo também<br />
área historicamente ocupada pela mineração <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> ferro com todas as conseqüências<br />
ambientais associadas a tais usos, entre as quais se inclui uma expressiva concentração<br />
fundiária. Nas últimas décadas vem se configurando como área preferencial <strong>de</strong> expansão<br />
habitacional das chamadas “elites”.<br />
Os resultados <strong>de</strong> tal leitura permitiram i<strong>de</strong>ntificar gran<strong>de</strong> comparabilida<strong>de</strong> com processos<br />
gerais ocorridos em outras regiões metropolitanas, particularmente no que se<br />
refere às formas <strong>de</strong> segregação socioespacial e às novas formas <strong>de</strong> moradia usual e<br />
equivocadamente (em termos legais) referidas como condomínios. Longe <strong>de</strong> serem homogêneos,<br />
os chamados “condomínios” apresentam gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />
ocupação do espaço e <strong>de</strong> valores relacionados aos modos <strong>de</strong> vida, i<strong>de</strong>ntificando-se diferentes<br />
gerações <strong>de</strong> condomínios e distintas práticas socioespaciais dos moradores, com<br />
implicações diversas em relação às perspectivas para o futuro da metrópole. Discute-se<br />
a relação entre os processos <strong>de</strong> produção do espaço e a crescente segregação socioespacial,<br />
bem como a racionalida<strong>de</strong> da ocupação <strong>de</strong> espaços pela população <strong>de</strong> baixa renda,<br />
acompanhando aquela racionalida<strong>de</strong> que presi<strong>de</strong> a localização dos estratos <strong>de</strong> renda alta<br />
comandada pelo mercado imobiliário.<br />
Discute-se também a efetivida<strong>de</strong> da institucionalização e do planejamento das várias<br />
unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação presentes na região: APAs, unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proteção integral e <strong>de</strong><br />
proteção <strong>de</strong> mananciais, parques e um crescente número <strong>de</strong> RPPNs. A mais importante<br />
<strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s é a APA-SUL, que foi estabelecida com base em preocupações <strong>de</strong> cunho<br />
metropolitano e não exclusivamente ecológico. Criada há <strong>de</strong>z anos a partir <strong>de</strong> ampla<br />
mobilização <strong>de</strong> movimentos ambientalistas e sociais, até hoje permanece em situação<br />
in<strong>de</strong>finida quanto ao zoneamento ecológico-econômico, evi<strong>de</strong>nciando os fortes conflitos<br />
<strong>de</strong> interesses entre as ativida<strong>de</strong>s imobiliárias, minerárias e <strong>de</strong> preservação. As perspectivas<br />
<strong>de</strong> esgotamento da mineração prenunciam novas formas <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> “produtos<br />
da natureza”, como a comercialização da água e os lançamentos imobiliários<br />
certificados ambientalmente, transformando o valor <strong>de</strong> uso coletivo inerente à preservação<br />
ambiental em valor <strong>de</strong> troca, materializado na elevação dos valores fundiários e na<br />
elitização do acesso à moradia.<br />
A utilização <strong>de</strong> parâmetros da regulação ambiental na expansão urbana revelou-se uma<br />
área profícua <strong>de</strong> análise, mostrando, por um lado, o ganho e a importância <strong>de</strong> tal incorporação<br />
e, por outro, o quanto os instrumentos <strong>de</strong> gestão ambiental estão pouco adaptados<br />
para regular a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> como a urbanização. Um estudo<br />
116<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
NOTAS DE PESQUISA<br />
Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana
sobre parâmetros <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong> nos condomínios <strong>de</strong>monstrou uma distância expressiva<br />
entre o discurso ambientalizado <strong>de</strong> moradores e promotores imobiliários e as<br />
poucas mudanças <strong>de</strong> valores no cotidiano dos moradores, bem como nas relações <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pendência entre tais fragmentos urbanos e áreas centrais. A questão da autonomia dos<br />
assentamentos é irreal e com poucas perspectivas <strong>de</strong> realização. Tem-se, pelo contrário, a<br />
extensão dos padrões e valores urbanos/metropolitanos a todo o território.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista do planejamento e gestão, o trabalho trouxe à tona a discussão das<br />
políticas urbanas e sua maior ou menor articulação com a discussão da gestão metropolitana.<br />
Observa-se o dilema por que vêm passando os governos municipais, face à crescente<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir alternativas que fortaleçam o po<strong>de</strong>r local, divididos entre<br />
dois paradigmas que vêm orientando a gestão urbana e ambiental contemporânea: a<br />
competição e a solidarieda<strong>de</strong>.<br />
O trabalho recuperou, <strong>de</strong> forma marcante, a centralida<strong>de</strong> da discussão das questões<br />
fundiárias para a compreensão dos processos mais amplos <strong>de</strong> produção do espaço. Em<br />
termos teóricos revisitam-se a abordagem da economia política da urbanização e sua ênfase<br />
no papel dos agentes que atuam no processo, i<strong>de</strong>ntificando-as como fundamentais, mas<br />
ainda assim insuficientes, para dar conta da complexida<strong>de</strong> contemporânea da expansão<br />
urbana. Introduz-se a discussão sobre a trajetória do pensamento ambiental, seus valores e<br />
percepções pre<strong>de</strong>terminadas em relação a processos urbanos, bem como sobre a influência<br />
<strong>de</strong> tais concepções na criação da regulação ambiental e <strong>de</strong> seus instrumentos. A partir<br />
daí busca-se a contribuição da ecologia política para a análise da urbanização contemporânea,<br />
em particular em contextos do Terceiro Mundo, como o caso brasileiro.<br />
Produção do Projeto Eixo-Sul (2002-2006)<br />
A produção do projeto po<strong>de</strong> ser assim sumarizada: um livro 1 composto por 20 capítulos,<br />
envolvendo 24 autores; dois capítulos <strong>de</strong> livros; um artigo em periódico nacional; 27<br />
trabalhos publicados em anais <strong>de</strong> diversos eventos científicos nacionais e internacionais,<br />
entre os quais se incluem encontros <strong>de</strong> associações como ANPUR, ABEP, ANPOCS, ANPPAS,<br />
WPSC e ANZAPS e congressos <strong>de</strong> cartografia, antropologia, economia, história da cida<strong>de</strong><br />
e do urbanismo, sociologia e geografia urbana; e um seminário para discutir a produção<br />
do projeto, com <strong>de</strong>batedores nacionais convidados. Foram realizadas oito dissertações<br />
<strong>de</strong> mestrado em Geografia, Ciências Sociais e Arquitetura e Urbanismo; duas monografias<br />
<strong>de</strong> especialização em Geoprocessamento; e seis <strong>de</strong> graduação em Economia e Geografia.<br />
O projeto envolveu bolsistas <strong>de</strong> apoio técnico (1), <strong>de</strong> iniciação científica (9) e <strong>de</strong> outras<br />
modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bolsas <strong>de</strong> graduação (5 PET e 1 PAD). Há ainda duas teses <strong>de</strong> doutorado<br />
e uma dissertação <strong>de</strong> mestrado em andamento.<br />
1<br />
COSTA, H. S. M.; COSTA G. M.; MENDONÇA,<br />
J. G.; MONTE-MÓR, R. L. M. (Org.). Novas<br />
periferias metropolitanas. Belo Horizonte: C/<br />
Arte, 2006.<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Ralfo Matos<br />
Geografias<br />
NOTAS DE PESQUISA<br />
117
Eventos<br />
118<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
EVENTOS<br />
Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana
Dia Meteorológico Mundial<br />
No dia 23 <strong>de</strong> março comemora-se o Dia<br />
Meteorológico Mundial, para lembrar a<br />
data, em 1950, da Convenção que criou a<br />
Organização Mundial <strong>de</strong> Meteorologia<br />
(OMM). A cada ano, o tema das comemorações<br />
é <strong>de</strong>finido pela OMM. Em 2006 o<br />
tema central é Prevenção e mitigação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres<br />
naturais. No Brasil várias comemorações<br />
foram feitas em Departamentos <strong>de</strong><br />
Meteorologia das <strong>Universida<strong>de</strong></strong>s Fe<strong>de</strong>rais<br />
e Estaduais, em Institutos <strong>de</strong> Pesquisa e<br />
no Instituto Nacional <strong>de</strong> Meteorologia<br />
(INMET). Em Belo Horizonte a comemoração<br />
ocorreu no dia 24 <strong>de</strong> março, no auditório<br />
do 6° andar do Conselho Regional<br />
<strong>de</strong> Engenharia e Arquitetura (CREA). O<br />
evento foi patrocinado pelo 5º Distrito <strong>de</strong><br />
Meteorologia (5º DISME) do INMET, pelo<br />
Núcleo Regional <strong>de</strong> Meteorologia <strong>de</strong> <strong>Minas</strong><br />
<strong>Gerais</strong> (NRMG), da Socieda<strong>de</strong> Brasileira<br />
<strong>de</strong> Meteorologia (SBMET), e pelo CREA.<br />
Inicialmente foi lida, pelo Professor Fulvio<br />
Cupolillo, diretor do 5º DISME, a<br />
mensagem da OMM sobre o tema central.<br />
A justificativa da Organização para o tema<br />
<strong>de</strong>ste ano está no fato <strong>de</strong> que mais <strong>de</strong> 90%<br />
dos <strong>de</strong>sastres naturais estão relacionados<br />
com eventos meteorológicos, climáticos e<br />
que envolvem a água. No período entre<br />
1992-2001 <strong>de</strong>sastres naturais ocasionaram<br />
mais <strong>de</strong> 622.000 mortes e afetaram aproximadamente<br />
2 bilhões <strong>de</strong> pessoas em<br />
todo o mundo. Em 2005 registraram-se<br />
prolongadas secas no norte da África e em<br />
regiões da Europa, da Ásia, da Austrália e<br />
do Brasil. A OMM, junto com outras instituições<br />
ligadas às Nações Unidas e associando-se<br />
a organismos internacionais em<br />
todos os 187 países membros, atua com<br />
ações significativas na discussão <strong>de</strong> estratégias<br />
para promover a prevenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres<br />
naturais.<br />
As palestras proferidas pelos convidados<br />
– Professor Rubens Leite Vianello, pesquisador<br />
do 5º DISME; Professora Magda<br />
Luzimar <strong>de</strong> Abreu, do Departamento <strong>de</strong><br />
Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>; Professor Luiz Cláudio Costa,<br />
da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Viçosa;<br />
Coronel Valter <strong>de</strong> Souza Lucas, da Coor<strong>de</strong>nadoria<br />
Municipal <strong>de</strong> Defesa Civil<br />
(COMDEC) da Prefeitura <strong>de</strong> Belo Horizonte<br />
(PBH); e Heloísa Moreira Torres Nunes,<br />
pesquisadora do Sistema <strong>de</strong> Meteorologia<br />
e Recursos Hídricos <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> do<br />
Instituto Mineiro <strong>de</strong> Gestão das Águas (SI-<br />
MGE/IGAM) – versaram, respectivamente,<br />
sobre os seguintes conteúdos:<br />
a. “Verão anômalo 2005/2006 em <strong>Minas</strong><br />
<strong>Gerais</strong>”, tratando <strong>de</strong> um estudo sobre<br />
as condições atmosféricas associadas à<br />
estiagem observada no último verão;<br />
b. “Aspectos climáticos da Região Metropolitana<br />
<strong>de</strong> Belo Horizonte”, abordando<br />
a dinâmica atmosférica relacionada<br />
com a climatologia da capital mineira e<br />
apresentando um estudo sobre dois casos<br />
<strong>de</strong> chuvas intensas que ocorreram,<br />
em março <strong>de</strong> 2006, na região;<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Ralfo Matos<br />
Geografias<br />
EVENTOS<br />
119
c. “Institucionalização <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong><br />
monitoramento <strong>de</strong> eventos climáticos<br />
anômalos em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>”, tratando<br />
da importância da formação <strong>de</strong> um grupo<br />
<strong>de</strong> estudos sobre mudanças climáticas<br />
em <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> e apresentando um<br />
estudo sobre a ocorrência <strong>de</strong> veranicos<br />
no Estado, aplicado à agricultura;<br />
d. “Paradigmas dos <strong>de</strong>sastres naturais e antrópicos:<br />
ações <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil em Belo<br />
Horizonte”, abordando as ações da <strong>de</strong>fesa<br />
civil na capital mineira frente a <strong>de</strong>sastres<br />
naturais, particularmente durante<br />
episódios <strong>de</strong> chuvas severas no verão;<br />
e. “Sistema <strong>de</strong> alerta <strong>de</strong> enchentes: bacias<br />
dos rios Sapucaí e Doce”, tratando das<br />
experiências do SIMGE na implementação<br />
<strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> alerta <strong>de</strong> enchentes e<br />
dos benefícios <strong>de</strong>ssas ações junto às comunida<strong>de</strong>s<br />
locais.<br />
Entre outros assuntos apresentados, <strong>de</strong>stacou-se<br />
a importância do monitoramento<br />
da distribuição espacial das chuvas na<br />
cida<strong>de</strong> e da implantação <strong>de</strong> tecnologias <strong>de</strong><br />
monitoramento <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong>s severas,<br />
como o radar meteorológico. Foi também<br />
enfatizada a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colaboração<br />
entre as várias entida<strong>de</strong>s que coletam e utilizam<br />
os dados meteorológicos, no sentido<br />
<strong>de</strong> disponibilizá-los entre si e para a<br />
comunida<strong>de</strong> acadêmica, promovendo<br />
ações que contribuam para o entendimento<br />
e o aprimoramento da previsão do tempo<br />
e clima na região.<br />
O evento contribuiu positivamente para<br />
o aprofundamento da discussão relativa<br />
aos impactos climáticos sobre a socieda<strong>de</strong>,<br />
particularmente os relacionados a extremos,<br />
<strong>de</strong>stacando-se a ocorrência <strong>de</strong> estiagens<br />
e seus impactos na agricultura e <strong>de</strong><br />
inundações tanto em regiões urbanas quanto<br />
no interior do Estado. Foi também uma<br />
excelente oportunida<strong>de</strong> para congregar<br />
especialistas <strong>de</strong> diversas áreas relacionadas<br />
à climatologia e <strong>de</strong> influência na socieda<strong>de</strong>,<br />
numa abordagem interdisciplinar.<br />
120<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
EVENTOS<br />
Por uma ciência do atrito: ensaio dialético sobre a violência urbana
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Ralfo Matos<br />
Geografias<br />
EVENTOS<br />
121
Dissertações<br />
<strong>de</strong>fendidas no Programa<br />
<strong>de</strong> Pós-graduação em<br />
Geografia/UFMG no<br />
primeiro semestre <strong>de</strong> 2006<br />
122<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005
A evolução do relevo adjacente à margem<br />
continental passiva brasileira: das “chapadas” do<br />
Jequitinhonha à planície costeira do sul da Bahia<br />
Caio Mário Leal Ferraz<br />
Orientador<br />
Roberto Célio Valadão<br />
Estudos recentes da evolução do relevo adjacente às margens continentais passivas procuram<br />
correlacionar soerguimentos, alterações ao nível da base e <strong>de</strong>posição nas bacias<br />
marginais à geomorfologia continental. Este trabalho insere-se nesse contexto e analisa<br />
área localizada no NE <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, S da Bahia e NW do Espírito Santo, configurando<br />
um “corredor” que se esten<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o flanco oriental da Serra do Espinhaço à linha <strong>de</strong><br />
costa do Atlântico Sul, com arcabouço geológico composto por unida<strong>de</strong>s litológicas<br />
arqueano-proterozóicas e malha estrutural <strong>de</strong> lineamentos <strong>de</strong> direções principais NE e<br />
NW. Nela estão presentes três gran<strong>de</strong>s unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relevo: Planalto do Jequitinhonha,<br />
caracterizado pela ocorrência <strong>de</strong> “chapadas” e elevações residuais da Serra do Espinhaço;<br />
unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> dissecação fluvial estruturalmente orientada, em sua porção central; e<br />
tabuleiros na fachada sublitorânea. Para remontar à evolução meso-cenozóica do relevo<br />
da área investigada, responsável pela configuração da paisagem atual, estabeleceu-se uma<br />
metodologia baseada em interpretação cartográfica – incluindo confecção <strong>de</strong> seções<br />
topográficas regionais –, análise <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong> sensoriamento remoto, revisão bibliográfica<br />
e trabalhos <strong>de</strong> campo. Foram i<strong>de</strong>ntificadas duas superfícies <strong>de</strong> aplanamento. A<br />
mais antiga, neste trabalho <strong>de</strong>nominada Superfície Cimeira, teve sua gênese iniciada durante<br />
o Aptiano, a partir da organização da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> drenagem ao incipiente Atlântico Sul.<br />
Sua elaboração prolongou-se até o Neógeno (Mio-Plioceno), sendo encerrada por soerguimentos<br />
crustais que afetaram a área investigada. Os remanescentes <strong>de</strong>ssa superfície<br />
estão preservados em forma <strong>de</strong> “chapadas” que caracterizam o Planalto do Jequitinhonha,<br />
com altitu<strong>de</strong>s médias na cota dos 950m. A partir dos soerguimentos durante o Mio-<br />
Plioceno, iniciou-se a elaboração da Superfície Sublitorânea, cujo <strong>de</strong>senvolvimento alcançou<br />
o Pleistoceno (Calabriano), sendo interrompido por episódios <strong>de</strong> soerguimentos<br />
crustais pleistocênicos. Seus remanescentes ocorrem na fachada sublitorânea, muito bem<br />
caracterizados por tabuleiros que configuram o relevo da porção oriental da área.<br />
Impacto das novas técnicas <strong>de</strong> geoinformação nos estudos<br />
espaciais e nas representações cartográficas <strong>de</strong>stinados ao turismo<br />
No período pós-Segunda Guerra, o mundo passa por mudanças significativas quanto à<br />
forma <strong>de</strong> percepção do espaço geográfico. Essa nova visão é acompanhada pelas revo-<br />
Christian Rezen<strong>de</strong> Freitas<br />
Orientadora<br />
Ana Clara Mourão Moura<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Geografias<br />
DISSERTAÇÕES<br />
123
luções tecnológicas que afetam todos os aspectos da vida humana e, por conseqüência,<br />
alteram as formas e os usos dados a esse mesmo espaço geográfico. Ao se propor a<br />
realizar a gestão <strong>de</strong>sse novo espaço, o planejador <strong>de</strong>fronta-se com novos e mais complexos<br />
<strong>de</strong>safios e, para enfrentar essa realida<strong>de</strong>, dispõe <strong>de</strong> um conjunto variado <strong>de</strong> técnicas<br />
e ferramentas <strong>de</strong> análise espacial. Este trabalho visa a i<strong>de</strong>ntificar essa nova visão <strong>de</strong> espaço,<br />
particularmente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma visão turística, consi<strong>de</strong>rando que os processos e os<br />
fenômenos estudados po<strong>de</strong>m condicionar essa ativida<strong>de</strong> hoje bastante difundida. Até<br />
que ponto essa nova visão, associada ao novo conjunto <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> análise e representação<br />
espacial, influencia o Planejamento Turístico e para ele contribui? Quais as vantagens<br />
da utilização dos Sistemas <strong>de</strong> Informações Geográficos, em conjunto com as novas<br />
formas <strong>de</strong> comunicação cartográficas introduzidas pela nova mídia, a internet?<br />
Cláudia Almeida Sampaio<br />
Orientadora<br />
Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />
Avaliação da recuperação <strong>de</strong> área <strong>de</strong>gradada, através <strong>de</strong> indicadores<br />
ambientais biológicos e pedológicos, na APE Mutuca, Nova Lima<br />
Na busca pela recuperação dos ambientes naturais é imperativo fazer pesquisas voltadas<br />
para a avaliação <strong>de</strong> indicadores ambientais que <strong>de</strong>monstrem o grau <strong>de</strong> recuperação do<br />
solo e da flora. Esta dissertação objetivou analisar algumas características pedológicas e<br />
biológicas como possíveis indicadores ambientais que possibilitem reconhecer e avaliar<br />
o processo <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong>gradada. A área <strong>de</strong> estudo foi dividida em<br />
zonas: impactada (estrada), não impactada (mata nativa) e em recuperação. Esta última<br />
foi subdividida em Zona <strong>de</strong> Recuperação I (ZRI, correspon<strong>de</strong>nte à borda) e Zona <strong>de</strong><br />
Recuperação II (ZRII, correspon<strong>de</strong>nte ao centro). As amostras foram coletadas nas estações<br />
seca/2004 e chuvosa/2005, na APE Mutuca, Nova Lima-MG. Para a avaliação dos<br />
pedoindicadores foram analisadas porcentagem <strong>de</strong> argila, porcentagem <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> agregados, pH e matéria orgânica. Como bioindicadores foram avaliados índice <strong>de</strong><br />
área foliar, luz inci<strong>de</strong>nte, porcentagem <strong>de</strong> recobrimento do solo e respiração microbiana.<br />
Testes <strong>de</strong> Tukey e Kruskal-Wallis foram realizados em cada indicador para conhecer<br />
as similarida<strong>de</strong>s entre as zonas. As correlações entre pH e porcentagem <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> agregados, pH e porcentagem <strong>de</strong> matéria orgânica, e índice <strong>de</strong> área foliar e luz inci<strong>de</strong>nte<br />
mostraram-se inversas e significativas. As correlações entre índice <strong>de</strong> área foliar e<br />
porcentagem <strong>de</strong> recobrimento do solo, porcentagem <strong>de</strong> recobrimento do solo e respiração<br />
microbiana, e porcentagem <strong>de</strong> matéria orgânica e respiração microbiana indicaram<br />
tendência direta e significativa. As <strong>de</strong>mais tendências <strong>de</strong> correlações não pu<strong>de</strong>ram<br />
ser confirmadas. Consi<strong>de</strong>ra-se que os pedoindicadores selecionados informaram, a<strong>de</strong>quadamente,<br />
o grau <strong>de</strong> recuperação do solo, tendo os bioindicadores por sua vez <strong>de</strong>monstrado<br />
que a recuperação do componente biótico está sendo alcançada. Por fim, ressaltase<br />
que os projetos <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong>gradadas <strong>de</strong>vem ser avaliados periodicamente,<br />
a fim <strong>de</strong> garantir que seus objetivos sejam atingidos, no menor tempo possível.<br />
124<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005
Gênese, caracterização e cronologia<br />
das tufas da Serra das Araras, Mato Grosso<br />
Na face leste da Província Serrana mato-grossense em contato com a planície do Pantanal,<br />
na região da serra das Araras, ocorrem notáveis <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> tufas ativas e fósseis. Os<br />
primeiros são <strong>de</strong>pósitos essencialmente fluviais, <strong>de</strong> pequena espessura, estratificados,<br />
bastante friáveis, e <strong>de</strong> reduzida distribuição espacial na área <strong>de</strong> estudo. Os <strong>de</strong>pósitos<br />
fósseis, <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> formação Xaraiés, são representados por tufas calcárias<br />
distribuídas em cerca <strong>de</strong> 30km <strong>de</strong> extensão, com espessura máxima i<strong>de</strong>ntificada <strong>de</strong> 20m,<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> faciológica e <strong>de</strong> evolução complexa.<br />
O objetivo principal <strong>de</strong>ste estudo foi <strong>de</strong> caracterizar os <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> tufas da serra das<br />
Araras e compreen<strong>de</strong>r sua gênese. A caracterização compreen<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>finição da área <strong>de</strong><br />
ocorrência e o limite do <strong>de</strong>pósito, sua estratigrafia interna e no contexto da geologia na<br />
qual está inserida, a discriminação faciológica dos litotipos e os processos atuantes sobre<br />
o <strong>de</strong>pósito. A fim <strong>de</strong> melhor caracterizar os <strong>de</strong>pósitos, amostras da formação Xaraiés<br />
foram datadas por meio do 230 Th/ 234 U por ICP/MS, e análises químicas por fluorescência<br />
<strong>de</strong> raios X foram aplicadas em diversas amostras.<br />
O mapeamento original existente para as rochas da formação Xaraiés foi refeito, resultando<br />
em ampliação da área do mapeamento anteriormente existente. A espessura do<br />
<strong>de</strong>pósito foi revista, indicando uma espessura confirmada <strong>de</strong> 20m, em contradição com<br />
dados existentes na literatura on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>pósito exibiria 100m <strong>de</strong> espessura.<br />
Daniel Corrêa<br />
Orientador<br />
Philippe Maillard<br />
Co-orientador<br />
Augusto Sarreiro Auler<br />
Do “pão com lingüiça” ao “hotel fazenda”: trajetória isolada ou caminho<br />
para a construção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento do espaço turístico em zona rural?<br />
O espaço rural brasileiro, há algumas décadas, era <strong>de</strong>stinado exclusivamente ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s agropecuárias. A renda proveniente <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> era responsável<br />
pela manutenção e sobrevivência das famílias rurais. Após uma forte crise agrícola, as<br />
famílias rurais introduziram no campo, como alternativa <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> renda, a prestação<br />
<strong>de</strong> serviços. Diversas ativida<strong>de</strong>s começaram a se <strong>de</strong>senvolver, reflexo da multifuncionalida<strong>de</strong><br />
rural. Entre tais ativida<strong>de</strong>s, o turismo no espaço rural vem se <strong>de</strong>senvolvendo com o<br />
objetivo <strong>de</strong> gerar renda e emprego para a comunida<strong>de</strong> local e contribuir para a qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida <strong>de</strong> sua população. A partir <strong>de</strong>ssa perspectiva, este trabalho pesquisou <strong>de</strong>zoito<br />
empreendimentos <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços aos turistas/visitantes, localizados às margens<br />
da BR-381 ou próximos a ela, no trecho <strong>de</strong> Ravena, distrito <strong>de</strong> Sabará, passando<br />
por Roças Novas, distrito <strong>de</strong> Caeté, e seguindo em direção à zona rural <strong>de</strong> Nova União<br />
e Bom Jesus do Amparo/<strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, com o objetivo <strong>de</strong> analisar os impactos socioeconômicos<br />
proporcionados por essa ativida<strong>de</strong> naquelas localida<strong>de</strong>s. Diagnosticou-se<br />
que tais empreendimentos, por serem <strong>de</strong> diversas categorias e possuírem características<br />
distintas, contribuem <strong>de</strong> forma diferenciada no <strong>de</strong>senvolvimento da região. Além disso,<br />
por se estruturarem <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sarticulada, necessitam <strong>de</strong> planejamento para or<strong>de</strong>nar as<br />
ações empreen<strong>de</strong>doras, com intuito <strong>de</strong> promover um <strong>de</strong>senvolvimento rural na área <strong>de</strong><br />
Daysa Andra<strong>de</strong> Oliveira<br />
Orientador<br />
Allaoua Saadi<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Geografias<br />
DISSERTAÇÕES<br />
125
estudo que beneficie todos os atores envolvidos: a comunida<strong>de</strong> local, os empreen<strong>de</strong>dores<br />
e o po<strong>de</strong>r público. Para alcançar os objetivos <strong>de</strong>ste trabalho, realizou-se uma pesquisa<br />
<strong>de</strong> caráter exploratório-<strong>de</strong>scritivo, com análises quantitativa e qualitativa.<br />
Evilânia Alfenas Moreira<br />
Orientadora<br />
Cristiane Valéria <strong>de</strong> Oliveira<br />
A ocupação da Bacia do Rio das Velhas<br />
relacionada aos tipos <strong>de</strong> solo e processos erosivos<br />
O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é i<strong>de</strong>ntificar e analisar as relações entre os tipos e a forma <strong>de</strong><br />
ocupação da bacia do Rio das Velhas, buscando a integração <strong>de</strong> parâmetros físicos e<br />
humanos. Para isso foi utilizada a técnica <strong>de</strong> geoprocessamento <strong>de</strong> sobreposição <strong>de</strong> níveis<br />
temáticos. A mineração, apesar <strong>de</strong> ter sido a base da ocupação da região, está concentrada<br />
em uma pequena área <strong>de</strong> Neossolos Litólicos no sul da bacia. Estes solos são<br />
rasos e favorecem, por isso, a exploração da rocha. Portanto, apesar <strong>de</strong> estar diretamente<br />
voltada para os recursos geológicos, a escolha da área a ser minerada po<strong>de</strong> ter uma<br />
influência, ainda que mínima, do tipo <strong>de</strong> solo predominante naquela região A análise dos<br />
solos e do seu uso na bacia do Rio das Velhas mostrou que, apesar <strong>de</strong> haver uma certa<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> solos na região, com predomínio <strong>de</strong> Latossolos e Cambissolos, seu uso é<br />
menos diversificado, havendo predomínio da pastagem em praticamente todos os tipos<br />
<strong>de</strong> solo. A pastagem sobre Cambissolos vem sendo a responsável pela maioria dos<br />
processos erosivos acelerados na bacia. A opção pela pastagem po<strong>de</strong> ser justificada pela<br />
pouca aptidão agrícola que caracteriza praticamente todos os solos da bacia. As áreas <strong>de</strong><br />
lavouras são pouco expressivas e estão concentradas em Latossolos, que apresentam, no<br />
geral, uma melhor aptidão agrícola. As áreas mais conservadas correspon<strong>de</strong>m àquelas<br />
nas quais as condições naturais do solo inviabilizam seu uso. Os <strong>de</strong>mais solos concentram<br />
suas áreas mais conservadas próximo à Região Metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte,<br />
sendo que neste caso sua conservação se <strong>de</strong>ve, principalmente, à criação <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Conservação, ou seja, por opção do próprio homem.<br />
Fernando Gomes Braga<br />
Orientador<br />
Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />
Sistema urbano, re<strong>de</strong>s migratórias e integração territorial:<br />
um estudo da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s Centrais do Brasil<br />
Durante a última meta<strong>de</strong> do século XX a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s brasileiras sofreu gran<strong>de</strong>s<br />
transformações. Partindo <strong>de</strong> uma estrutura frágil e rarefeita, o sistema urbano nacional<br />
ganhou forma e consistência, alimentado pela crescente industrialização e pelo expressivo<br />
êxodo rural. Atualmente, mais <strong>de</strong> 80% da população brasileira vivem em cida<strong>de</strong>s, e as<br />
re<strong>de</strong>s urbanas são, sem dúvida, o elemento sintetizador da articulação territorial do Brasil.<br />
Tendo em conta a importância do estudo das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s, esta dissertação busca<br />
reunir subsídios para uma proposta <strong>de</strong> estudo da re<strong>de</strong> urbana nacional, apoiando-se em<br />
métodos <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s. Inicialmente apresenta-se uma proposta <strong>de</strong> abordagem do<br />
sistema <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s brasileiro a partir da seleção dos municípios <strong>de</strong> maior expressão, em<br />
termos <strong>de</strong> portes populacional e urbano, reunidos na <strong>de</strong>nominada Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s<br />
126<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005
Centrais (RLC) do Brasil. Esse recorte territorial é analisado entre os anos <strong>de</strong> 1940 e 2000,<br />
ressaltando-se as principais alterações em termos do surgimento <strong>de</strong> novos vínculos entre<br />
os lugares e novas territorialida<strong>de</strong>s impregnadas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atração para novos movimentos<br />
populacionais. Consi<strong>de</strong>rando-se a alta correlação entre as direções dos fluxos<br />
migratórios internos e as tendências do processo <strong>de</strong> urbanização, realiza-se um estudo<br />
<strong>de</strong>talhado das características dos movimentos e dos migrantes, qualificando-se a contribuição<br />
<strong>de</strong>stes para as economias locais. Finalmente, valendo-se <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> análise <strong>de</strong><br />
estruturas <strong>de</strong> relações sociais em re<strong>de</strong>s representadas por matrizes, realiza-se uma abordagem<br />
das trocas populacionais entre as localida<strong>de</strong>s da RLC, <strong>de</strong>screvendo-se as mais<br />
importantes características estruturais das articulações entre os municípios, como a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong><br />
e a centralida<strong>de</strong> dos vínculos entre os lugares.<br />
A legislação urbanística e a produção do espaço:<br />
estudo do bairro Buritis em Belo Horizonte<br />
O presente trabalho discute, a partir do estudo da estruturação do bairro Buritis, a inserção<br />
do planejamento urbano na produção do espaço <strong>de</strong> Belo Horizonte. Para tanto,<br />
toma como fio condutor da pesquisa a análise das principais leis municipais <strong>de</strong> parcelamento,<br />
ocupação e uso do solo, especialmente no tocante aos seus instrumentos <strong>de</strong> controle<br />
urbanístico e às suas relações com as instâncias <strong>de</strong> participação voltadas para a<br />
<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> políticas urbanas. A hipótese norteadora é que a evolução <strong>de</strong>sses instrumentos<br />
acompanhou a crescente complexida<strong>de</strong> dos processos envolvidos na produção do<br />
espaço do município e que a capacida<strong>de</strong> da legislação urbanística em contribuir para a<br />
melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e para o aumento da justiça social é potencializada pela<br />
forma como a socieda<strong>de</strong> se manifesta nessas instâncias. O estudo <strong>de</strong>ssas leis i<strong>de</strong>ntificou<br />
um importante movimento em direção a um tratamento mais integrado das questões<br />
urbanas, especialmente nos aspectos relacionados ao meio ambiente, às áreas precariamente<br />
ocupadas pelas populações mais carentes, ao tratamento das especificida<strong>de</strong>s locais<br />
e ao reforço do princípio da função social da proprieda<strong>de</strong>. De modo semelhante,<br />
notou-se uma ampliação na capacida<strong>de</strong> das instâncias <strong>de</strong> participação em contribuir para<br />
os alcances das legislações urbanísticas, refletindo o processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização do<br />
país e a mudança nos paradigmas adotados pelo planejamento urbano nacional. O estudo<br />
da formação do bairro Buritis investigou a transposição dos dispositivos previstos<br />
nas leis para as práticas socioespaciais e buscou a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> novas tendências para<br />
o planejamento urbano municipal, que seriam propiciadas pela incorporação dos conflitos<br />
gerados pelos processos <strong>de</strong> apropriação e dominação inerentes à produção do espaço.<br />
Nesse sentido, foram i<strong>de</strong>ntificadas duas situações que po<strong>de</strong>m contribuir para a emergência<br />
<strong>de</strong> novas práticas e políticas urbanas: a inserção do cidadão no processo <strong>de</strong><br />
planejamento urbano, manifestando <strong>de</strong>mandas originadas <strong>de</strong> práticas cotidianas, e a aplicação<br />
integrada das legislações urbanísticas e <strong>de</strong> controle ambiental.<br />
Letícia Maria Resen<strong>de</strong><br />
Epaminondas<br />
Orientador<br />
Geraldo Magela Costa<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Geografias<br />
DISSERTAÇÕES<br />
127
Marília Ferreira Gomes<br />
Orientador<br />
Philippe Maillard<br />
Estimativa da estrutura do cerrado a partir <strong>de</strong><br />
dados <strong>de</strong> multisensores e <strong>de</strong> dados históricos<br />
O cerrado é uma formação savânica lenhosa <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> biodiversida<strong>de</strong>, que está sendo<br />
convertido em monocultura. Uma metodologia para sua caracterização a partir <strong>de</strong> dados<br />
<strong>de</strong> sensoriamento remoto não foi ainda <strong>de</strong>finida, sendo tema <strong>de</strong> pesquisa ativa.<br />
Dados óticos já <strong>de</strong>monstraram seu potencial e limitações, mas poucos trabalhos <strong>de</strong>dicaram-se<br />
à avaliação dos dados <strong>de</strong> radar orbitais e nenhum com dados do satélite cana<strong>de</strong>nse<br />
RADARSAT-l. Sendo formação aberta, o cerrado po<strong>de</strong> ser mo<strong>de</strong>lado como um<br />
mosaico <strong>de</strong> cobertura vegetal e <strong>de</strong> solo e a resposta <strong>de</strong> sensores radar <strong>de</strong>veria resultar <strong>de</strong><br />
combinação <strong>de</strong> retroespalhamento direto e volumétrico. Estudos sugerem que dados <strong>de</strong><br />
radar são mais eficientes quando utilizados em conjunto com dados óticos, abordagem<br />
contemplada na dissertação. Dados históricos <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradações, medidas alométricas e<br />
dados <strong>de</strong> umida<strong>de</strong> gravimétrica dos solos <strong>de</strong> 35 áreas <strong>de</strong> amostragem foram usados<br />
para caracterizar a ida<strong>de</strong> e as proprieda<strong>de</strong>s estruturais do cerrado em estado clímax e <strong>de</strong><br />
regeneração em área <strong>de</strong> proteção ambiental do norte <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, já usada como<br />
plantação <strong>de</strong> eucalipto: o Parque Estadual Veredas do Peruaçu (PEVP). A pesquisa avaliou<br />
dados RADARSAT-l a partir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> resposta <strong>de</strong> retroespalhamento em dois<br />
ângulos <strong>de</strong> incidência (26° e 45°) e duas estações fenológicas (abril e setembro), assim<br />
como o potencial <strong>de</strong> acrescentar a esses dados, um índice <strong>de</strong> vegetação (NDVI) extraído<br />
<strong>de</strong> dados óticos do satélite sino-brasileiro CBERS-2. Técnicas <strong>de</strong> correlação estatísticas e<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> regressão múltipla foram usados para mo<strong>de</strong>lar a possível contribuição <strong>de</strong>sses<br />
dados para a caracterização estrutural do cerrado. Os resultados mostraram que a<br />
umida<strong>de</strong> do solo tem um efeito dominante sobre o retroespalhamento das quatro imagens<br />
RADARSAT, especialmente nos dados <strong>de</strong> abril com 26°. A <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> das árvores<br />
foi a variável estrutural com maior contribuição no retroespalhamento da estação úmida.<br />
O histórico <strong>de</strong> incêndios <strong>de</strong>monstrou influência sobre as características das amostras.<br />
A maioria dos mo<strong>de</strong>los teve sensibilida<strong>de</strong> fraca a mo<strong>de</strong>rada às diferenças estruturais da<br />
vegetação. Os dados <strong>de</strong> NDVI do CBERS-2 reiteraram resultados anteriores <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong><br />
à composição das comunida<strong>de</strong>s vegetais e aos parâmetros que <strong>de</strong>finem a proporção<br />
solo-vegetação. A união dos dados NDVI com os dados radar não contribuiu significativamente<br />
na caracterização estrutural do cerrado. A pesquisa permitiu melhor<br />
entendimento dos mecanismos <strong>de</strong> retroespalhamento radar na sua relação com a estrutura<br />
do cerrado, especialmente nas limitações em termos <strong>de</strong> freqüência e polarização.<br />
Possibilitou nova trajetória <strong>de</strong> pesquisa utilizando dados radar <strong>de</strong> outras configurações e<br />
no aprimoramento <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> coleta <strong>de</strong> dados em campo para estudos <strong>de</strong> sensoriamento<br />
remoto sobre o cerrado.<br />
128<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005
Leituras do “lugar-mundo-vivido” e do<br />
“lugar-território” a partir da intersubjetivida<strong>de</strong><br />
Este estudo, baseado na abordagem da fenomenologia-existencialista, <strong>de</strong> Maurice Merleau-Ponty,<br />
na sociologia fenomenológica, <strong>de</strong> Alfred Schutz, e na Teoria das Representações<br />
Sociais, segundo Serge Moscovici, teve como objetivo refletir, a partir da intersubjetivida<strong>de</strong>,<br />
acerca da construção social <strong>de</strong> duas categorias espaciais geográficas: o<br />
“lugar-mundo-vivido” e o “lugar-território”. A fenomenologia-existencialista, <strong>de</strong> Merleau-Ponty,<br />
discute a sensação e a percepção para explicar a manifestação dos fenômenos<br />
ou facticida<strong>de</strong> no espaço, consi<strong>de</strong>rando a inter-relação entre os sentidos compartilhados<br />
ou as percepções dos sujeitos envolvidos, sendo então possibilitado o fazer<br />
existencial. A sociologia fenomenológica, <strong>de</strong> Alfred Schutz, parte do cotidiano e da dinâmica<br />
do mundo-vivido, associando-o ao intercâmbio entre um sistema <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas<br />
subjetivas que, organizadas e em comunicação, constroem o mundo social. Já a Teoria<br />
das Representações Sociais visa a um melhor entendimento do processo <strong>de</strong> construção<br />
intersubjetiva da realida<strong>de</strong> entendida não como soma <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s, mas como relação<br />
entre estas últimas. Ela se constitui <strong>de</strong> uma fusão <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s que passam pelo<br />
encontro do imaginário, via comunicação, proporcionando ao fazer existencial o compartilhar<br />
<strong>de</strong> significado. Consi<strong>de</strong>radas essas colocações, buscou-se i<strong>de</strong>ntificar a ponte<br />
entre a subjetivida<strong>de</strong> e a construção intersubjetiva/social da realida<strong>de</strong>, a fim <strong>de</strong> averiguar<br />
suas relações com conceitos <strong>de</strong> “espaço” na Geografia. Neste caso, foram consi<strong>de</strong>radas<br />
as categorias “lugar-mundo-vivido” e “lugar-território”, não como categorias antagônicas,<br />
mas complementares, na ampliação da leitura espacial. Além das idéias dos teóricos<br />
abordados, as críticas também foram verificadas em outros autores, apontando-se os<br />
limites e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las. Após essas incursões teóricas, foram <strong>de</strong>stacadas<br />
as convergências e as divergências entre as abordagens trabalhadas por geógrafos,<br />
nas suas diversas linhas <strong>de</strong> pesquisa, frente às reflexões referentes às categorias “lugarmundo-vivido”<br />
e “lugar-território”. Diversos estudos <strong>de</strong> caso constituíram-se nos exemplos,<br />
mediando o diálogo entre as relações feitas e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ampliação teórico-metodológica.<br />
Assim, o estudo avançou no diálogo inter/transdisciplinar, trazendo à<br />
epistemologia geográfica novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compreensão da realida<strong>de</strong> espacial numa<br />
dimensão intersubjetiva da realida<strong>de</strong>.<br />
Matusalém <strong>de</strong> Brito Duarte<br />
Orientadora<br />
Doralice Barros Pereira<br />
Regiões em movimento: um olhar sobre a geografia<br />
histórica do Sul <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> e da Zona da Mata mineira<br />
Des<strong>de</strong> o tempo dos relatos <strong>de</strong> viagem, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> atraiu o interesse <strong>de</strong> vários pesquisadores.<br />
Sua história e economia são repletas <strong>de</strong> fatores que, <strong>de</strong> certa forma, a particularizam<br />
<strong>de</strong>ntro do contexto dos <strong>de</strong>mais estados brasileiros. Como exemplos <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>,<br />
po<strong>de</strong>mos lembrar <strong>de</strong> sua ocupação inicial precocemente urbana, ao contrário do<br />
restante do então Brasil colônia. Entre os diversos temas que contribuem para a elucidação<br />
do mosaico mineiro, o estudo do século XIX tem atraído especial interesse, dada a<br />
Rafael Rangel Giovanini<br />
Orientador<br />
Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Geografias<br />
DISSERTAÇÕES<br />
129
sua importância para a formação do espaço econômico mineiro nos dias atuais. Parte<br />
importante <strong>de</strong>ssa história se dá sobre os terrenos do Sul <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> e da Zona da Mata. A<br />
opção por esses espaços <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> sua importância no contexto da <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong> do<br />
período, em que respondiam pela maior parte da arrecadação estadual e por gran<strong>de</strong><br />
parte da população. As interpretações e análises utilizadas baseiam-se no enfoque geohistórico.<br />
Trata-se do estudo das Geografias do passado, ou seja, da análise e interpretação<br />
da organização espacial das socieda<strong>de</strong>s do passado. Outro traço marcante <strong>de</strong>ssa abordagem<br />
é a inclusão <strong>de</strong> variáveis relativas à relação entre o meio natural e o homem, através<br />
do uso <strong>de</strong> trabalhos da Geografia Física. O período tratado vai <strong>de</strong> 1808 a 1897 e a<br />
regionalização utilizada é uma adaptação das Regiões <strong>de</strong> Planejamento elaboradas pela<br />
Secretaria <strong>de</strong> Estado do Planejamento e Coor<strong>de</strong>nação Geral (SEPLAN).<br />
Rodrigo Nunes Ferreira<br />
Orientador<br />
Ralfo Edmundo da Silva Matos<br />
Dinâmica do mercado <strong>de</strong> trabalho formal, migrações no emprego e o<br />
processo <strong>de</strong> reestruturação territorial no Brasil contemporâneo<br />
O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é investigar a relação entre a geração <strong>de</strong> empregos formais na<br />
década <strong>de</strong> 1990 e início do século XXI e a dinâmica das migrações no mercado formal<br />
<strong>de</strong> trabalho no período <strong>de</strong> 1995 a 2003. Esse período foi marcado por uma reestruturação<br />
da economia nacional, com impactos no or<strong>de</strong>namento territorial das ativida<strong>de</strong>s econômicas<br />
e, conseqüentemente, na configuração dos fluxos migratórios. Utilizam-se o<br />
recorte espacial da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Localida<strong>de</strong>s Centrais (RLC) e, como principal fonte dos<br />
dados secundários, a Relação Anual <strong>de</strong> Informações Sociais (RAIS). Primeiramente, apresentam-se<br />
as principais características da dinâmica espacial do mercado <strong>de</strong> trabalho formal<br />
no Brasil no período 1990-2002, precedidas <strong>de</strong> uma breve análise, fundamentada na<br />
literatura, sobre o seu funcionamento nas últimas décadas. Em seqüência, faz-se um estudo<br />
sobre a mobilida<strong>de</strong> geográfica <strong>de</strong> trabalhadores no mercado formal entre 1995 e<br />
2003, utilizando-se o recorte regional e hierárquico da RLC. Não obstante a manutenção<br />
das históricas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s espaciais, o estudo permitiu <strong>de</strong>stacar um maior dinamismo<br />
do mercado <strong>de</strong> trabalho em localida<strong>de</strong>s fora das gran<strong>de</strong>s aglomerações urbanas, o que<br />
vem possibilitando a essas territorialida<strong>de</strong>s emergentes atrair mão-<strong>de</strong>-obra migrante. Entretanto,<br />
as tradicionais regiões metropolitanas do Centro-Sul permanecem como a melhor<br />
alternativa, em termos salariais, para a mão-<strong>de</strong>-obra mais instruída. Assim, ficou evi<strong>de</strong>nte<br />
que a migração ainda é uma alternativa eficaz na manutenção ou melhoria dos rendimentos<br />
do trabalho, mas tal possibilida<strong>de</strong> mostrou-se diferenciada <strong>de</strong> acordo com o nível <strong>de</strong><br />
instrução, o tipo <strong>de</strong> inserção setorial e o local <strong>de</strong> origem ou <strong>de</strong>stino do imigrante.<br />
130<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA/UFMG EM 2005
Geografias <strong>de</strong>fine o seu perfil editorial a partir das linhas <strong>de</strong> pesquisa vigentes no Departamento<br />
<strong>de</strong> Geografia da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, incluindo as que fornecem sustentação<br />
ao seu Programa <strong>de</strong> Pós-graduação. Temáticas correlatas originárias do interior da ciência<br />
geográfica assim como outras originárias <strong>de</strong> seu contato com os <strong>de</strong>mais campos do saber são,<br />
também, <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> Geografias.<br />
Aos autores<br />
Os pesquisadores interessados em publicar na<br />
revista Geografias <strong>de</strong>vem preparar os originais dos<br />
seus trabalhos – artigos, notas ou resenhas – conforme<br />
as orientações que se seguem, exigências<br />
obrigatórias para o recebimento dos textos.<br />
Estes serão encaminhados para avaliação, conforme<br />
o previsto pelo regimento do periódico.<br />
1. Os textos enviados para esta revista <strong>de</strong>verão<br />
ser inéditos e redigidos em língua portuguesa<br />
ou em espanhol.<br />
2. Os artigos terão o máximo <strong>de</strong> 25 páginas e as<br />
resenhas o mínimo <strong>de</strong> duas páginas, em formato<br />
A4 (210 x 297 mm), impresso em uma<br />
só face, sem rasuras e/ou emendas.<br />
3. Os originais <strong>de</strong>verão ser entregues em duas<br />
vias impressas e uma via em disquete ou CD-<br />
ROM (digitados em Word for Windows), com a<br />
seguinte formatação:<br />
a. Título: centralizado, negritado e apenas com<br />
a primeira letra em maiúscula;<br />
b. Nome completo do(s) autor(es): na segunda<br />
linha, centralizado(s) e seguido(s) do<br />
nome da instituição <strong>de</strong> filiação e titulação,<br />
entre parênteses;<br />
c. Subtítulos <strong>de</strong> seções: sem recuo, sem numeração,<br />
negritados e apenas com a primeira<br />
letra em maiúscula;<br />
d. Texto digitado em fonte Times New Roman,<br />
tamanho 12;<br />
e. Espaço entre linhas <strong>de</strong> 1,5 e espaço duplo<br />
entre as seções do texto, assim como entre<br />
o texto e as citações longas, as ilustrações,<br />
as tabelas etc.;<br />
f. Margens superior e inferior <strong>de</strong> 3 cm, e margens<br />
esquerda e direita <strong>de</strong> 2,5 cm;<br />
g. Recuo <strong>de</strong> 2 cm no início do parágrafo e recuo<br />
<strong>de</strong> 4 cm nas citações longas;<br />
h. Uso <strong>de</strong> itálico para termos estrangeiros;<br />
i. Uso <strong>de</strong> itálico para títulos <strong>de</strong> livros e periódicos.<br />
4. As informações recolhidas <strong>de</strong> outros autores<br />
<strong>de</strong>vem ser apresentadas, no <strong>de</strong>correr do texto,<br />
da seguinte forma:<br />
a. quando se fizer referência ao autor no corpo<br />
do texto, seu nome <strong>de</strong>ve vir grafado somente<br />
com as iniciais em maiúsculas, seguido<br />
<strong>de</strong> data e página entre parênteses. Ex:<br />
De acordo com Milton Santos (1996, p. 23);<br />
b. quando o autor for citado sem que tenha<br />
seu nome sido mencionado no corpo do<br />
texto, <strong>de</strong>ve ser grafado apenas seu sobrenome,<br />
entre parênteses, com todas as letras<br />
em maiúsculas, seguido <strong>de</strong> data e página<br />
(SANTOS, 1996, p. 23). Essa regra <strong>de</strong>ve ser<br />
utilizada tanto para citações curtas como<br />
para citações longas.<br />
5. As citações textuais curtas, com 3 linhas ou<br />
menos, <strong>de</strong>vem ser apresentadas, no corpo do<br />
texto, entre aspas e sem itálico.<br />
6. As citações textuais longas, com mais <strong>de</strong> 3<br />
linhas, <strong>de</strong>vem ser apresentadas em fonte Times<br />
New Roman, tamanho 11, e espaço simples<br />
entre linhas. Elas <strong>de</strong>vem constituir um<br />
parágrafo próprio, separado do texto por espaço<br />
duplo, sem a necessida<strong>de</strong> da utilização<br />
das aspas.<br />
7. As notas explicativas <strong>de</strong>verão ser apresentadas<br />
em rodapé, com fonte Times New<br />
Roman, tamanho 10, e numeradas em algarismos<br />
arábicos.<br />
Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
Allaoua Saadi Antônio Pereira Magalhães Júnior<br />
Geografias<br />
MONOGRAFIAS E DISSERTAÇÕES<br />
131
8. Os artigos <strong>de</strong>verão ser precedidos por um<br />
resumo bilíngüe, em português e inglês, com<br />
200 palavras no máximo, em um só parágrafo.<br />
Deve ser adotada a fonte Times New Roman,<br />
tamanho 11, espaçamento simples. O<br />
resumo é seguido <strong>de</strong> palavras-chave do texto<br />
(no mínimo 3 e no máximo 6 palavras-chave).<br />
As palavras-chave <strong>de</strong>vem ser apresentadas<br />
também na versão em inglês.<br />
9. As referências bibliográficas <strong>de</strong>verão ser apresentadas<br />
no fim do texto, <strong>de</strong>vendo conter<br />
somente as obras citadas, em or<strong>de</strong>m alfabética,<br />
sem numeração, segundo as normas da<br />
ABNT. Algumas orientações básicas são a seguir<br />
apresentadas:<br />
a. Para livros: SOBRENOME DO AUTOR,<br />
Nome. Título da obra. Local <strong>de</strong> publicação:<br />
Editora, Ano <strong>de</strong> publicação.<br />
b. Para capítulo <strong>de</strong> livros: SOBRENOME DO<br />
AUTOR DO CAPÍTULO, Nome. Título do<br />
capítulo. In: SOBRENOME DO ORGA-<br />
NIZADOR, Nome. (Org.). Título da obra.<br />
Local <strong>de</strong> publicação: Editora, Ano <strong>de</strong> publicação.<br />
Página inicial-final do capítulo.<br />
c. Para artigos publicados em periódicos: SO-<br />
BRENOME DO AUTOR DO ARTIGO,<br />
Nome. Título do artigo. Título do periódico,<br />
Local <strong>de</strong> publicação, volume do periódico,<br />
número do fascículo, página inicial-final do<br />
artigo, mês e ano.<br />
10. As ilustrações (figuras, tabelas, <strong>de</strong>senhos,<br />
gráficos, mapas, fotografias etc.) <strong>de</strong>vem ser<br />
enviadas, preferencialmente, em arquivos digitais<br />
(formatos PCX, BMP ou TIF). Caso<br />
contrário, será adotado suporte <strong>de</strong> papel branco.<br />
Nesse caso, as fotografias <strong>de</strong>vem ter suporte<br />
brilhante, nas cores preto e branco. As<br />
dimensões máximas, incluindo legenda e título,<br />
são <strong>de</strong> 15 cm no sentido horizontal da<br />
folha e <strong>de</strong> 20,5 cm no seu sentido vertical.<br />
Deve-se indicar a disposição preferencial <strong>de</strong><br />
inserção das ilustrações no texto, utilizando,<br />
para isso, no local <strong>de</strong>sejado, a indicação da figura<br />
e o seu número. Deve-se também indicar<br />
a fonte da ilustração, conforme as normas<br />
da ABNT.<br />
11. Os autores <strong>de</strong>vem se responsabilizar pela<br />
correção ortográfica e gramatical, bem como<br />
pela digitação do texto, que será publicado<br />
exatamente conforme enviado. Recomendase<br />
aos autores que submetam seus textos à<br />
correção <strong>de</strong> um especialista.<br />
12. Todos os originais serão submetidos à apreciação<br />
da Comissão Editorial, que po<strong>de</strong>rá aceitar,<br />
recusar ou, ainda, reapresentá-los ao(s) autor(es)<br />
com sugestões <strong>de</strong> alterações na estrutura ou<br />
no conteúdo do texto. Os originais não aprovados<br />
serão <strong>de</strong>volvidos ao(s) autor(es).<br />
En<strong>de</strong>reço para remessa<br />
<strong>Revista</strong><br />
A/C Antônio Pereira Magalhães Jr.<br />
Instituto <strong>de</strong> Geociências/UFMG<br />
Av. Antônio Carlos 6627,<br />
Pampulha, CEP 31270-901<br />
Belo Horizonte, <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, Brasil<br />
geografias@igc.ufmg.br<br />
132<br />
Geografias Belo Horizonte 01(1) 13-22 maio <strong>de</strong> 2005<br />
MONOGRAFIAS E DISSERTAÇÕES Competitivida<strong>de</strong> e produtivida<strong>de</strong>: uma análise comparativa do <strong>de</strong>sempenho industrial <strong>de</strong> <strong>Minas</strong> <strong>Gerais</strong>, 1985/1996