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O PESADELO DO MINISTRO<br />
FERNANDO MORAIS<br />
Quinze anos atrás a cubana Haydée Santamaría decidiu convidar pela primeira vez um<br />
grupo de brasileiros para participar do júri do prêmio literário anual da Casa de las Américas. O<br />
prêmio, assim como a Casa, já existia desde o começo dos anos 60. E era uma tentativa dos<br />
cubanos de integrar através da literatura uma América Latina desunida pela política e pelas<br />
desavenças ideológicas. Com a presença de brasileiros em um júri que iria ler poemas,<br />
romances e ensaios escritos em castelhano, os cubanos queriam provar que, se o Brasil passara<br />
séculos de costas para a América Latina, era a Cordilheira dos Andes, e não o idioma, o que nos<br />
separava de nossos vizinhos hispânicos.<br />
Aqui no Brasil ainda vivíamos sob o penúltimo general da ditadura militar, o que custou aos<br />
viajantes — Antonio Callado, Chico Buarque, Ignácio de Loy ola e eu — tediosos interrogatórios<br />
policiais quando pusemos de volta os pés em solo pátrio. Durante trinta dias, em Cuba, lemos<br />
caixas e caixas de manuscritos, festejamos o aniversário de Callado e bebemos o melhor rum e<br />
fumamos o melhor charuto do mundo. No final o prêmio maior seria atribuído a Eduardo<br />
Galeano, com o seu Dias y Noches de Amor y de Guerra. E foi na festa de anúncio do resultado<br />
que Chico Buarque decidiu defender, com admirável segurança (até hoje não sei se ele falava a<br />
sério ou se debochava), que o castelhano nada mais era que uma corruptela do português. "Mais<br />
do que isso", insistia, "o castelhano é apenas um português mal falado, um português pronunciado<br />
erradamente." Apesar de acuado por um enxame de iracundos guatemaltecos, salvadorenhos,<br />
nicaragüenses, argentinos, peruanos, uruguaios, Chico sustentava sua teoria e dava exemplos<br />
concretos:— Incapazes de pronunciar o nosso ão, os hispanófonos inventaram o ón, e assim por<br />
diante. Tomem um texto em português e troquem todos os ão por ón, os f iniciais por h,<br />
substituam por ue alguns o precedidos de consoantes e vocês terão um texto em escorreito<br />
castelhano.<br />
Acalmados os ânimos, a tese não chegou a estragar a festa nem produziu qualquer<br />
incidente diplomático entre Cuba e o Brasil (até porque durante o regime militar Brasil e Cuba<br />
não tinham relações diplomáticas que pudessem ser afetadas). Mas foi esse episódio que me veio<br />
à cabeça ao final da leitura deste delicioso Schifaizfavoire concebido durante os dois anos de<br />
solidão de Mario Prata em Portugal. Se continua convencido de sua tese até hoje, Chico Buarque<br />
terá razão ao afirmar, depois de ler este dicionário, que a língua falada no Brasil talvez esteja<br />
mais próxima do castelhano que do português de Portugal.<br />
Ainda que esta conversa não sobreviva ao peteleco de um filólogo, não custa nada lembrar<br />
que se pode encontrar rastros da língua portuguesa nos mais remotos cantos do mundo. A<br />
passagem dos jesuítas portugueses pela Ásia, por exemplo, teria deixado suas marcas do outro<br />
lado do planeta. Daí, talvez, a explicação para o fato de que a fonética da palavra pão, em<br />
japonês, seja exatamente igual à do português (se você pedir um pão em qualquer bar do Japão,<br />
vai receber do garçom o mesmo alimento feito de farinha de trigo produzido nas padarias<br />
portuguesas, do Rio ou de São Paulo). Em Tóquio me garantiram que até o arigatô não é senão a<br />
corruptela de um obrigado deixado lá pelos religiosos lusitanos. O próprio Prata suspeita, por<br />
exemplo, que o nome do molho curry vem do luso caril (e não o contrário, como pretendem os<br />
ingleses).<br />
A idéia de produzir este dicionário foi sugerida a Mario Prata pelo meu falecido compadre<br />
Caio Graco, quando o autor traduzia para a Editora Brasiliense O Testamento do Sr. Napumoceno