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2 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS<br />
FUNDAMENTAIS - SUA VINCULAÇÃO ÀS<br />
RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES<br />
FORTALEZA/2009
A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS<br />
FUNDAMENTAIS - SUA VINCULAÇÃO ÀS<br />
RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES<br />
FORTALEZA/2009
Copyright© 2009 – Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Conselho editorial: Eduardo Porto Soares / Alice Maria Pinto Soares /<br />
Raimundo Carneiro Leite / Francisco Dirceu Barros / Prf. Valdeci Cunha<br />
Edição: 2009<br />
DINCE - Edições Técnicas<br />
Central de atendimento: Tel.: 85 3231.6298 / 3254.7701<br />
Rua Barão do Rio Branco, 1.620 – Centro – Fortaleza/CE<br />
Revisão: Autor<br />
Capa e Diagramação: Irissena Gomes (85) 8833.6429<br />
GONÇALVES FILHO, Edilson Santana<br />
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às<br />
relações entre particulares / Edílson Santana Gonçalves Filho –<br />
Fortaleza/CE<br />
DIN.CE EDIÇÕES TÉCNICAS 2009 – 111p<br />
ISBN: 978-85-7872-059-9<br />
CDD:<br />
1. Direito I. Direitos Fundamentais<br />
To<strong>dos</strong> os <strong>direitos</strong> reserva<strong>dos</strong>. Nenhum excerto desta obra pode ser<br />
reproduzido ou transmitido, por qualquer forma ou meio, ou arquivado em<br />
sistema ou banco de da<strong>dos</strong>, sem a autorização <strong>dos</strong> autores.<br />
NOTA DA EDITORA<br />
As ideias e opiniões apresentadas nesta obra são de inteira<br />
responsabilidade <strong>dos</strong> seus autores.<br />
A Editora DIN.CE responsabiliza-se apenas pelos vícios do produto no que<br />
se refere à sua edição, considerando a impressão e apresentação. Vícios de<br />
atualização, opiniões, revisão, citações, referências ou textos compila<strong>dos</strong><br />
são de responsabilidade de seus idealizadores.<br />
Impresso no Brasil<br />
Impressão gráfica: DIN.CE
SOBRE O AUTOR E A OBRA<br />
O presente livro é resultado de monografia apresentada<br />
pelo autor – Edílson Santana G. Filho - na Universidade de<br />
Fortaleza – UNIFOR, sob o título “A Eficácia Horizontal <strong>dos</strong> Direitos<br />
Fundamentais – sua vinculação às relações privadas”, obtendo<br />
aprovação com louvor e alcançando nota máxima, sob orientação do<br />
professor doutor Francisco Lisboa Rodrigues, a quem se presta<br />
justa homenagem.<br />
O autor é advogado com atuação nas áreas de direito<br />
público e privado. É também co-autor da obra “Dicionário de<br />
Ministério Público”, no prelo da editora Juspodivm.
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO ................................................................................. 10<br />
Capítulo I<br />
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................... 14<br />
1.1 Conceito ................................................................................ 14<br />
1.2 Histórico ................................................................................. 16<br />
1.3 Natureza e Características .................................................... 21<br />
1.4 Classificação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> ............................... 23<br />
1.5 A distinção entre princípios e regras ..................................... 24<br />
1.6 Terminologia .......................................................................... 27<br />
Capitulo II<br />
2 EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................. 30<br />
2.1 A constitucionalização do direito ........................................... 30<br />
2.2 Negação <strong>dos</strong> efeitos – “state action” ..................................... 34<br />
2.2.1 Autonomia privada ......................................................... 36<br />
2.3 Eficácia mediata .................................................................... 40<br />
2.4 Eficácia Imediata ................................................................... 42<br />
2.5 Outras teorias ........................................................................ 46<br />
Capítulo II<br />
3 PREVISÃO DA VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES NO<br />
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .................................................. 50<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................. 58<br />
REFERÊNCIAS ............................................................................... 62<br />
ANEXO – RECAPITULAÇÃO SUGESTIVA .................................... 66
INTRODUÇÃO<br />
O debate referente à eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> no âmbito das relações jurídico-privadas teve início<br />
nos anos cinqüenta e primórdios da década de sessenta, na<br />
Alemanaha. Também nos Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> o tema foi enfrentado,<br />
tempos após, marcando o debate doutrinário daquele país, sob o<br />
título de State Action.<br />
Quando se trata da incidência <strong>horizontal</strong> das normas<br />
essenciais, se pretende demonstrar que a vinculação de tais<br />
garantias não se dá apenas nas relações de poder que se<br />
estabelecem entre o Estado e o cidadão (o que constitui relação do<br />
tipo vertical), mas igualmente, naquelas estabelecidas entre<br />
pessoas, e entidades, que se encontram em posições, pelo menos<br />
teóricas, de igualdade, ou seja, entre particulares somente.<br />
A doutrina tradicional entende os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
como normas destinadas a proteger o indivíduo contra eventuais<br />
violações causadas pelo Estado, quando abusa de seu poder, não<br />
possuindo maior relevância no que se refere às relações<br />
particulares.<br />
Referido entendimento, segundo o qual as normas de cunho<br />
essencial atuam exclusivamente na relação entre o cidadão e o<br />
Estado, vem se apresentando ultrapassada. Esse pensamento, na<br />
realidade, acaba por legitimar a idéia de que haveria, para a pessoa<br />
civil, sempre um espaço imune a qualquer ingerência estatal, o que<br />
suscita uma problemática de difícil solução, tanto no plano teórico,<br />
como no campo prático.<br />
Sem embargo, a existência de forças sociais, como os<br />
conglomera<strong>dos</strong> econômicos, sindicatos, grandes empresas<br />
multinacionais, associações patronais, entre outras, exige que se<br />
reconheça a aplicação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, também, em face<br />
de pessoas e entes priva<strong>dos</strong>, tendo em vista o poder que<br />
concentram em suas mãos, os quais, incontáveis vezes, oprimem e<br />
abusam do cidadão, parte mais frágil, desvirtuando o interesse<br />
social na consecução de interesses particulares.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 11<br />
É deste modo que a própria idéia de poder, anteriormente<br />
ligada unicamente ao Estado, sofre rupturas, quando se passa a<br />
perceber a desigualdade material existente entre os indivíduos,<br />
admitindo-se que o poder exercido nas esferas privadas também<br />
pode causar danos irreparáveis, mediante a imposição da vontade<br />
de um particular sobre o outro.<br />
Com efeito, desde a concepção do Estado o ser humano já<br />
prescindia de proteção a <strong>direitos</strong> considera<strong>dos</strong> <strong>fundamentais</strong>,<br />
inicialmente aqueles referentes à liberdade e a igualdade, logo após<br />
as normas sociais. Se em seus primórdios as regras essenciais<br />
funcionavam como barreiras limitadoras da atuação estatal,<br />
hodiernamente, mais que isso, exigem por muitas vezes uma<br />
intervenção positiva daquele.<br />
Destarte, na aplicação tradicional <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em questão,<br />
existe uma relação do tipo “Estado-cidadão”, em que apenas o<br />
último é detentor de tais garantias. Em contrapartida, nas relações<br />
entre priva<strong>dos</strong> (com interesses antagônicos) existe a detenção das<br />
prerrogativas em apreço por ambos os pólos, que se encontram em<br />
posições de igualdade de poder, daí a expressão “aplicação<br />
<strong>horizontal</strong>”.<br />
O fato é que no mundo contemporâneo a discussão em<br />
torno da dimensão e do sentido <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> humanos é cada vez<br />
mais acentuada. Surge, daí, o paradoxo que envolve os limites da<br />
autonomia privada em um Estado que, mesmo evidentemente<br />
capitalista e neoliberal, deve garantir o imperativo constitucional de<br />
uma sociedade justa, livre e igualitária.<br />
Imprescindível, portanto, hodiernamente, um estudo sobre a<br />
aplicação das normas de cunho fundamental nas relações privadas,<br />
especialmente no que diz respeito à maneira em que se dará sua<br />
incidência. A dificuldade surge, exatamente, quando se leva em<br />
conta, como já dito alhures, que em uma relação do tipo “particularparticular”<br />
os dois pólos são detentores <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em comento,<br />
diferente do que ocorre nas relações “Estado-cidadão”. Ademais,<br />
não se pode negar que, mesmo admitindo a irradiação <strong>dos</strong> efeitos<br />
nas relações particulares, a mesma possui peculiaridades que<br />
devem ser analisadas com particular relevância.<br />
No que tange a abordagem teórica, o tema acerca da<br />
aplicação <strong>horizontal</strong> vem ganhando cada vez mais espaço na
12 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
doutrina constitucional nacional, apesar de serem ainda poucas as<br />
obras escritas por brasileiros que tratam com profundidade o tema.<br />
No geral, encontramos em publicações estrangeiras explanações<br />
com maior substância, em especial no que se refere a estu<strong>dos</strong><br />
alemães, tendo em vista a forma precursora com que esses trataram<br />
a questão, reconhecendo sua real importância dentro do mundo<br />
jurídico.<br />
Em desfavor da irradiação <strong>dos</strong> efeitos horizontais surge o<br />
princípio da autonomia das relações privadas como principal<br />
argumento, o qual se aplica precisamente para indicar a faculdade<br />
que possui determinada pessoa ou instituição, em traçar as normas<br />
de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem<br />
estranha.” (SILVA, 1993, p.251). Significa, assim, a possibilidade de<br />
regência independente, expressando a capacidade de “autogoverno<br />
de sua esfera jurídica”, conforme expressão formulada por Carlos<br />
Alberto Mota Pinto, representando componente essencial a<br />
liberdade.<br />
Contudo, aquela não é absoluta, pois deve conviver com o<br />
direito de outras pessoas e com valores igualmente importantes,<br />
sendo, portanto, inevitável que o Estado intervenha em certos<br />
casos, em face de abusos a liberdade <strong>dos</strong> outros ou ao bem<br />
comum, o que acaba por reconciliar a idéia de liberdade, agora em<br />
um sentido mais amplo. Desta feita, poderia ser necessária uma<br />
ponderação, de acordo com as especificidades de cada caso,<br />
sopesando a autonomia com o direito possivelmente violado pela<br />
conduta particular.<br />
Desta maneira é que sob uma análise à luz do direito<br />
constitucional, levando em consideração, sempre que possível, o<br />
direito comparado e demais referenciais 1 pertinentes à matéria,<br />
buscou-se, neste estudo, analisar a possibilidade da aplicação <strong>dos</strong><br />
Direitos Fundamentais nas relações privadas, mais especificamente<br />
naquelas em que figuram particulares nos dois pólos da relação,<br />
averiguando de que maneira poderia se dar a irradiação das<br />
Garantias Essenciais nas relações privadas, e investigando até que<br />
ponto a autonomia privada prevalece sobre os <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>, na busca do significado hodierno dessas normas,<br />
1 Leis ordinárias, Jurisprudência, Artigos, etc.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 13<br />
tendo em vista a possibilidade de sua incidência nas relações entre<br />
particulares.<br />
No capítulo inicial objetivou-se estudar de maneira preliminar<br />
os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, definindo seu conceito, desenvolvimento e<br />
características peculiares. Ademais, distinguiu-se princípio de regra,<br />
o que se faz sobremaneira relevante para o desenvolvimento da<br />
idéia defendida.<br />
Em seguida, no capítulo subseqüente, superada a fase inicial,<br />
procurou-se demonstrar de que forma, e por que, as normas<br />
essenciais incidem nas relações inter-priva<strong>dos</strong>. Enquanto no terceiro<br />
capítulo, trouxemos à baila decisões do Supremo Tribunal Federal<br />
referentes à matéria, comentando-as.<br />
Na conclusão tecemos considerações finais sobre o estudo<br />
ora em desenvolvimento, com supedâneo em tudo explanado<br />
anteriormente no desenvolvimento.<br />
Quanto à metodologia, a pesquisa utilizou-se de estudo<br />
descritivo-analítico, bibliográfica: através de livros, revistas,<br />
publicações especializadas, artigos e da<strong>dos</strong> oficiais publica<strong>dos</strong> na<br />
Internet, utilizando os resulta<strong>dos</strong> de forma pura, à medida que<br />
possuiu como único fim a ampliação <strong>dos</strong> conhecimentos. Abordouse<br />
o tema de maneira qualitativa, à medida que se aprofundou na<br />
compreensão das ações e relações humanas e nas condições e<br />
freqüências de determinadas situações sociais.<br />
Foi, ainda, Descritiva quanto aos objetivos, posto que se<br />
buscou descrever, explicar, classificar, esclarecer e interpretar o<br />
fenômeno observado e exploratória, objetivando aprimorar as idéias<br />
através de informações sobre o tema em foco.
CAPÍTULO I<br />
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS<br />
É imprescindível, antes de adentrar no tema central do<br />
presente trabalho , tecer algumas considerações preliminares acerca<br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, com o intuito de facilitar o entendimento<br />
do estudo atual, o que se dará nos tópicos subseqüentes.<br />
1.1 Conceito<br />
A expressão Direitos Fundamentais surgiu na França, por<br />
volta de 1770, como fruto do movimento deflagrador da Declaração<br />
<strong>dos</strong> Direitos do Homem e do Cidadão, vindo a alcançar, tempos<br />
após, lugar imprescindível nas Cartas Constitucionais de todo o<br />
mundo.<br />
Formular um conceito fechado, sintético, e preciso definindo<br />
o que são <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> não é tarefa das mais simples.<br />
Antes de tudo, em virtude de sua transformação ao longo da<br />
evolução histórica. Aumenta essa dificuldade o fato de se utilizarem<br />
várias expressões quando nos referimos aos mesmos, como <strong>direitos</strong><br />
humanos, <strong>direitos</strong> naturais, <strong>direitos</strong> individuais do homem e do<br />
cidadão etc., o que acaba por gerar uma confusão entre tais<br />
institutos, que, em verdade, encontram-se entrelaça<strong>dos</strong> de forma<br />
quase que indissociável.<br />
Oscar Vilhena Vieira (1999, p.36) conceitua, de maneira<br />
bastante didática, “Direitos Fundamentais” como sendo “a<br />
denominação comumente empregada por constitucionalistas para<br />
designar o conjunto de <strong>direitos</strong> da pessoa humana expressa ou<br />
implicitamente 2 reconheci<strong>dos</strong> por uma determinada ordem<br />
constitucional.” Chama atenção para o fato de que estes encontram-<br />
2 Os §§ 2° e 3° do art. 5° da CF/88 apontam claramente para uma abertura do texto<br />
em relação a outros <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> não reconheci<strong>dos</strong> explicitamente pelo seu<br />
texto.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 15<br />
se positiva<strong>dos</strong> e servem de veículo para a incorporação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
da pessoa humana pelo Direito.<br />
Destarte, Direitos, ou Princípios Constitucionais,<br />
Fundamentais são normas essenciais, as quais conferem<br />
sistematicidade à Constituição, servindo de parâmetros para todas<br />
as demais regras trazidas à baila pelo ordenamento jurídico,<br />
minimizando possíveis conflitos de leis, através de uma<br />
interpretação conforme os preceitos <strong>fundamentais</strong>, e garantindo o<br />
mínimo necessário ao homem-cidadão. Augusto Zimmermann<br />
(2002, p. 188) bem expõe essa idéia:<br />
Porque, para a verificação da lógica inteireza do<br />
ordenamento jurídico, estes princípios atuam<br />
como autêntica força catalisadora, servindo<br />
como critério de interpretação das normas<br />
constitucionais, na medida em que dispõem<br />
acerca de valores considera<strong>dos</strong> como<br />
<strong>fundamentais</strong> pelo legislador constituinte.<br />
Ocupam, assim, o mais alto grau na escala normativa,<br />
identificando-se com os mais supremos valores humanos, culturais,<br />
filosóficos, políticos, traduzindo o melhor da vontade de toda a<br />
humanidade para o desenvolvimento de uma sociedade justa.<br />
Possuem em seu âmago ligação direta com o universo moral <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> da pessoa humana.<br />
São, deste modo, um parâmetro estabelecido do que se<br />
busca pela sociedade, de modo que o interesse por ele protegido<br />
deve prevalecer sobre outros de cunho não fundamental. Por sua<br />
importância, possuem aplicação imediata, ou seja, não podem ter<br />
sua aplicabilidade retardada pela inexistência de leis<br />
regulamentadoras.<br />
Por fim, vale recitar a conceituação formulada pela<br />
professora Ana Maria D´Ávila Lopes (2001; p.35): Os <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> podem ser defini<strong>dos</strong> como os princípios jurídica e<br />
positivamente vigentes em uma ordem constitucional que traduzem<br />
a concepção de dignidade humana de uma sociedade e legitimam o<br />
sistema jurídico estatal.
16 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Expostos estes conceitos, cumpre agora fazer uma breve<br />
análise histórica, buscando as raízes <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em comento,<br />
tarefa não menos árdua que a tratada no presente tópico.<br />
1.2 Histórico<br />
Modernamente os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> apresentam-se<br />
como garantias de primeira, de segunda e de terceira dimensões 3 ,<br />
segundo a evolução histórica em que passaram a ser,<br />
cronologicamente, reconheci<strong>dos</strong>. Referida divisão nos remete ao<br />
lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.<br />
Importante frisar que não existe hierarquia ou grau de<br />
importância entre referidas dimensões, motivo pelo qual alguns<br />
doutrinadores preferem a utilização do vocábulo dimensão <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> em detrimento da expressão geração, que<br />
daria uma idéia de que cada nova geração adviria em substituição à<br />
anterior. Entendo correta a utilização de ambas, deixando claro que<br />
um direito fundamental nunca surge excluindo outro que o<br />
antecedeu.<br />
Desta feita, correspondem, os <strong>direitos</strong> de primeira geração<br />
as liberdades clássicas ou formais (<strong>direitos</strong> civis e políticos), os de<br />
segunda identificam-se com as liberdades positivas ou concretas<br />
(<strong>direitos</strong> sociais, econômicos), enquanto os <strong>direitos</strong> de terceira<br />
geração materializem-se nas titularidades coletivas (atribuí<strong>dos</strong><br />
genericamente a to<strong>dos</strong> os indivíduos ou cidadãos), consagrando o<br />
princípio da solidariedade. O professor Oscar Vilhena Vieira (2006,<br />
p. 39) nos mostra de forma sintética essa evolução:<br />
Fala-se em <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> de primeira,<br />
segunda, terceira e quarta gerações, buscando<br />
repercutir a evolução <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> na história<br />
européia. Em primeiro lugar teriam surgido os<br />
<strong>direitos</strong> civis, de não sermos molesta<strong>dos</strong> pelo<br />
3 O professor Paulo Bonavides defende a existência de uma quarta geração <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, os quais se introduzem através globalização política na esfera<br />
da normatividade jurídica, o que corresponde à derradeira fase de institucionalização<br />
do Estado social.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 17<br />
Estado, direito de termos nossa integridade,<br />
nossa propriedade, além de nossa liberdade, a<br />
salvo das investidas arbitrarias do Poder<br />
Público. Esse grupo de <strong>direitos</strong> demarcaria os<br />
limites de atuação do Estado Liberal. Uma<br />
segunda geração de <strong>direitos</strong> estaria vinculada<br />
à participação política, ou <strong>direitos</strong> políticos.<br />
Partindo do pressuposto de que as pessoas<br />
são dotadas de igual valor, a to<strong>dos</strong> deve ser<br />
dado o direito de participar em igual medida do<br />
processo político. Esses <strong>direitos</strong> são<br />
constitutivos <strong>dos</strong> regimes democráticos. Uma<br />
terceira geração de <strong>direitos</strong>, decorrente da<br />
implementação <strong>dos</strong> regimes democráticos e da<br />
incorporação do povo ao processo de decisão<br />
política, seria o reconhecimento pelo Estado<br />
de responsabilidades em relação ao bem-estar<br />
das pessoas – logo, de deveres correlatos aos<br />
<strong>direitos</strong> sociais estabeleci<strong>dos</strong> pela ordem legal.<br />
São esses os <strong>direitos</strong> que caracterizam as<br />
democracias sociais. Por fim, fala-se num<br />
quarto conjunto de <strong>direitos</strong> relativos ao bemestar<br />
da comunidade como um todo, como os<br />
relativos ao meio ambiente, ou de<br />
comunidades específicas, como o direito à<br />
cultura.<br />
Já na antiguidade, o Código de Hammurabi (1690 a.C.) pode<br />
ser apontado como um <strong>dos</strong> primeiros diplomas legais a prever<br />
<strong>direitos</strong> comuns a to<strong>dos</strong> os cidadãos 4 , como o direito a vida e a<br />
propriedade, assim como a supremacia da lei em relação aos<br />
governantes.<br />
Na “Grécia filosófica” desenvolvia-se o pensamento de um<br />
direito válido, incessante, para to<strong>dos</strong> os seres humanos. O professor<br />
José Luiz Quadros de Magalhães (2000, p.10), em brilhante<br />
opúsculo intitulado “Direitos Humanos, sua história, sua garantia e a<br />
questão da indivisibilidade”, versa sobre o tema: Será, portanto,<br />
4 Definir de maneira exata o surgimento das garantias <strong>fundamentais</strong> pode ser uma<br />
armadilha, tendo em vista a falta de documentos históricos idôneos a comprovar<br />
indubitavelmente tal questão.
18 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
também no pensamento Grego, que encontraremos a idéia da<br />
existência de um Direito, baseado no mais íntimo da natureza<br />
humana, como ser individual ou coletivo.<br />
Em Roma, desenvolveu-se um mecanismo que visava<br />
tutelar <strong>direitos</strong> individuais em relação aos arbítrios estatais, os<br />
chama<strong>dos</strong> interditos. A Lei das doze Tábuas é importante referência<br />
quando se busca as origens <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> consagradores da<br />
liberdade, da propriedade e da proteção <strong>dos</strong> cidadãos.<br />
Durante a idade média podem ser encontra<strong>dos</strong> diversos<br />
documentos jurídicos que reconheciam a existência de <strong>direitos</strong><br />
humanos, limitando o poder estatal, mesmo tendo em vista a rígida<br />
separação de classes proveniente do regime feudal.<br />
Contudo, é a Inglaterra o marco mais importante quando se<br />
fala em antecedentes históricos <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>. Já no<br />
século XIII (em 15/06/1215), outorgada por João Sem-terra, surge a<br />
Magna Charta Libertatum 5 , a qual estabelecia, dentre outras<br />
garantias, a liberdade da Igreja da Inglaterra, restrições tributárias,<br />
proporcionalidade entre a gravidade do delito e a sanção, a previsão<br />
do devido processo legal, o livre acesso a justiça etc.<br />
Alguns séculos depois aparecem a Petition of Right (1628),<br />
a qual previa, entre outras coisas, que nenhum homem livre ficasse<br />
sob prisão ou detido ilegalmente; o Habeas Corpus Act (1679), onde<br />
se regulamentou tal instituto, anteriormente reconhecido apenas<br />
pela common law; dez anos mais tarde a Bill of Rights (1689),<br />
trazendo em seu bojo enorme restrição ao poder estatal, impedindo<br />
que o rei pudesse suspender leis sem o consentimento do<br />
parlamento, a convocação permanente do parlamento, a criação do<br />
direito de petição e a vedação de penas cruéis.<br />
Posteriormente, o Act of Seattlemente (12.06.1701) previu a<br />
possibilidade do impeachment, configurando-se como um ato<br />
reafirmador da legalidade e responsabilização política <strong>dos</strong><br />
governantes.<br />
Logo após, com idêntica importância, encontram-se nos<br />
Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> da América contribuições imprescindíveis ao<br />
desenvolvimento <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em questão. Podem ser cita<strong>dos</strong> como<br />
5 Tratava-se, na verdade, de imposição imposta pelos Barões proprietários de terras<br />
ao Rei João, o que acabou por gerar uma ampla garantia <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> de todo o povo.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 19<br />
de preponderante valor a Declaração de Direitos da Virginía, onde<br />
foram expressamente previstos diversos <strong>direitos</strong> humanos<br />
<strong>fundamentais</strong>, tais como o princípio da igualdade e o princípio do<br />
juiz natural e imparcial; a Declaração de Independência <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong><br />
Uni<strong>dos</strong> da América, possuindo como seu principal articulador<br />
Thomas Jefferson, e a Constituição <strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> da América<br />
e suas dez primeiras emendas (que continham o chamado “Bill of<br />
Rights”), as quais tiveram como aspecto primordial a limitação do<br />
poder estatal, estabelecendo vários <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>.<br />
Considera-se que se deu em França a consagração “jurícopositiva”<br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> de índole fundamental, com a Declaração <strong>dos</strong><br />
Direitos Fundamentais do Homem e do Cidadão (26.08.1789) e com<br />
as Constituições de 1791 e 1793, cujo preâmbulo assim exaltava:<br />
O povo francês, convencido de que o<br />
esquecimento e o desprezo <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
naturais do homem são as causas das<br />
desgraças do mundo, resolveu expor, numa<br />
declaração solene, esses <strong>direitos</strong> sagra<strong>dos</strong> e<br />
inalienáveis, a fim de que to<strong>dos</strong> os cidadãos,<br />
podendo comparar sem cessar os atos do<br />
governo com a finalidade de toda a instituição<br />
social, nunca se deixem oprimir ou aviltar pela<br />
tirania; a fim de que o povo tenha sempre<br />
perante os olhos as bases da sua liberdade e<br />
da sua felicidade, o magistrado a regra <strong>dos</strong><br />
seus deveres, o legislador o objeto da sua<br />
missão. Por conseqüência, proclama, na<br />
presença do Ser Supremo, a seguinte<br />
declaração <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> do homem e do<br />
cidadão.<br />
No século XIX a efetivação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
continuou durante o constitucionalismo liberal, fazendo nascer<br />
diplomas como a Constituição Espanhola (19.03.1812) 6 , a<br />
Constituição Portuguesa (23.09.1822), a Constituição Belga<br />
(01.02.1831) e, mais uma vez em França, a Declaração Francesa de<br />
6 A Constituição Espanhola de 1812 é comumente conhecida como Constituição de<br />
Cádis.
20 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
1848, a qual esboçou uma ampliação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> humanos<br />
<strong>fundamentais</strong>, posteriormente adota<strong>dos</strong> definitivamente pelos<br />
“Constituições” modernas.<br />
O século XX trouxe consigo um forte traço social, com<br />
diplomas comprometi<strong>dos</strong> com preocupações sociais. A Constituição<br />
mexicana (1917), por exemplo, passou a garantir <strong>direitos</strong> como<br />
trabalhistas (art. 5º) e relativos à efetivação da educação (art. 3º, VI<br />
e VII). A Constituição de Weimar previu Direitos e Deveres<br />
<strong>fundamentais</strong> <strong>dos</strong> Alemães, como a inviolabilidade das<br />
correspondências (art. 117), a liberdade de pensamento (art. 118),<br />
igualdade entre os sexos (art. 119), <strong>direitos</strong> direciona<strong>dos</strong><br />
especificamente a juventude (arts. 120 a 122), liberdade de culto<br />
(art. 135), sistema de seguridade social (art. 160) etc.<br />
A Declaração Soviética <strong>dos</strong> Direitos do Povo Trabalhador e<br />
Explorado de 1918 e, posteriormente, a Lei Fundamental Soviética<br />
do mesmo ano, não obstante em determinadas normas ter sido<br />
considerada retrógrada e ditatorial, proclamou o princípio da<br />
igualdade, independentemente de raça ou nacionalidade, aboliu o<br />
direito de propriedade privada, sendo as terras divididas entre os<br />
trabalhadores de forma igualitária em usufruto, passando a ser de<br />
propriedade estatal.<br />
Até mesmo na Itália fascista houve grande avanço em<br />
relação aos <strong>direitos</strong> sociais <strong>dos</strong> trabalhadores, quando da<br />
proclamação da Carta do Trabalho de 1927.<br />
No nosso país, a Constituição Política do Império do Brasil<br />
de 1824 previa, em título específico, extenso rol de <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> do homem. Tal característica repetiu-se em todas as<br />
constituições brasileiras, as quais sempre trouxeram em seu bojo<br />
extensa enumeração desses <strong>direitos</strong>.<br />
O professor Raul Machado Horta (1983, p. 147-148) assim<br />
dispõe acerca da evolução <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> essenciais humanos:<br />
A recepção <strong>dos</strong> diretos individuais no<br />
ordenamento jurídico pressupõe o percurso de<br />
longa trajetória, que mergulha suas raízes no<br />
pensamento e na arquitetura política do mundo<br />
helênico, trajetória que prosseguiu vacilante na<br />
Roma imperial e republicana, para retomar seu
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 21<br />
vigor nas idéias que alimentaram o<br />
cristianismo emergente, os teólogos<br />
medievais, o Protestantismo, o Renascimento<br />
e, afinal, corporificar-se na brilhante floração<br />
das idéias políticas e filosóficas das correntes<br />
do pensamento <strong>dos</strong> séculos XVII e XVIII.<br />
Nesse conjunto, temos fontes espirituais e<br />
ideológicas da concepção, que afirma a<br />
precedência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> individuais inatos,<br />
naturais, imprescritíveis e inalienáveis do<br />
homem.<br />
Assim, é que sob as influências condicionadas pelos<br />
diversos perío<strong>dos</strong> históricos através <strong>dos</strong> quais se desenvolveram, os<br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> chegaram a atualidade como preceitos<br />
imprescindíveis a um Estado Democrático de Direito, dota<strong>dos</strong> de<br />
características peculiares, conforme passa-se a expor no tópico<br />
seguinte.<br />
1.3 Natureza e características<br />
Acerca do tópico presente, vale repisar os ensinamentos do<br />
professor José Afonso da Silva, um <strong>dos</strong> mais conceitua<strong>dos</strong><br />
constitucionalistas do nosso tempo.<br />
Segundo esse renomado doutrinador (2000, p.183), “a<br />
expressão <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> do homem são situações jurídicas,<br />
objetivas ou subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da<br />
dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana.”<br />
Ainda segundo referido mestre, desde que tais garantias<br />
assumiram caráter concreto de normas positivas na Carta Magna,<br />
passou sua natureza a ser constitucional, o que já constava de<br />
maneira expressa nas Declarações <strong>dos</strong> Direitos do Homem e do<br />
Cidadão, mais especificamente em seu art. 16, o qual previa que a<br />
adoção das garantias de cunho fundamental seriam elementos<br />
essenciais ao próprio conceito de constituição.<br />
Ressalta, o mesmo, que <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> não são<br />
normas de valor supra-constitucional, ou supra-estatal, como<br />
defendem Duguit e Pontes de Miranda, embora possuam, cada vez
22 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
mais, dimensão internacional, sendo, portanto, de natureza<br />
constitucional, na medida em que se inserem no texto da Suprema<br />
Carta do ordenamento ou constam de declarações solenes,<br />
estabeleci<strong>dos</strong> pelo poder constituinte. São, portanto, <strong>direitos</strong><br />
nasci<strong>dos</strong> e fundamenta<strong>dos</strong> na vontade soberana popular.<br />
Quanto às características, traz à baila quatro elementos<br />
tipicamente inerentes aqueles <strong>direitos</strong>, afirmando serem históricos,<br />
inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis.<br />
São históricos, pois desenvolveram-se ao longo do tempo.<br />
Trazem em seu conteúdo idéias construídas durante séculos, as<br />
quais continuam em constante mudança, tendo como objetivo a<br />
busca da perfeição, ressalta<strong>dos</strong> sempre pelos traços marcantes do<br />
pensamento social de determinada época;<br />
Inalienáveis na medida em que são intransferíveis,<br />
inegociáveis, não sendo, portanto de natureza econômicopatrimonial;<br />
A imprescritibilidade refere-se ao fato de não se verificarem<br />
requisitos que importem na sua prescrição;<br />
Fala-se em irrenunciabilidade em razão de que podem até<br />
não ser exerci<strong>dos</strong>, mas jamais admite-se sejam renuncia<strong>dos</strong>.<br />
Mesmo que um direito fundamental nunca seja exercitado, não se<br />
pode inferir que houve renúncia.<br />
Imprescindível, neste ponto, tecer algumas considerações<br />
acerca dessa última característica <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em comento.<br />
Quando se fala em renúncia, tem-se em mente, num<br />
primeiro momento, a abdicação a um direito de forma definitiva e<br />
irreversível. Em certos casos, entretanto é possível observar que a<br />
irrenunciabilidade <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, e também sua<br />
imprescritibilidade e inalienabilidade, são colocadas em xeque. O<br />
professor Virgílio Afonso da Silva (2005; p. 62/63) aponta os<br />
seguintes exemplos:<br />
1. Aquele que, após a prolação da uma sentença de primeiro<br />
grau em um processo, aceita não recorrer à instância superior diante<br />
de uma proposta em dinheiro da parte contrária, negocia seu direito<br />
fundamental ao duplo grau de jurisdição.<br />
2. Aquele que, diante das câmeras de TV, exibe sua cédula<br />
na cabina de votação, renuncia ao sigilo do voto.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 23<br />
3. Quando um homem entra para um seminário na igreja<br />
católica, com o intuito de se tornar padre, ou uma mulher, com o<br />
intuito de se tornar freira, renunciam eles a seu direito de constituir<br />
família.<br />
4. Aquele que é aprovado em concurso público e aceita o<br />
cargo de juiz, renuncia a seu direito fundamental do art. 5º, XIII,<br />
referente ao livre exercício de qualquer trabalho, pois somente<br />
poderá exercer uma atividade de magistério.<br />
5. Todo aquele que celebra um contrato, renuncia a uma<br />
parcela de sua liberdade.<br />
Tais exemplos serviriam para demonstrar a falta de força<br />
explicativa da classificação acima mencionada, especialmente<br />
quando se entende ser ela absoluta, não comportando nenhuma<br />
exceção.<br />
Alguns autores fazem uma distinção entre a renúncia a um<br />
direito e a renúncia ao seu exercício. Em um <strong>dos</strong> exemplos da<strong>dos</strong><br />
acima, teria ocorrido renúncia apenas ao exercício do direito de<br />
sigilo ao voto. Isso não quer dizer que, em uma próxima eleição, não<br />
possa o mesmo indivíduo ter garantido, e exercitável, esse direito.<br />
Destarte, quando se faz menção a renúncia a <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> ou qualquer tipo de transação que os envolva, não se<br />
deve sustentar a idéia de que seja possível, por declaração de<br />
vontade, abdicar ao direito de forma geral, ou seja, a qualquer<br />
possibilidade de exercê-lo futuramente. O que pode existir é a<br />
possibilidade de renunciar, em uma dada relação, ao exercício<br />
daquele direito naquela situação, ou negociá-lo naquele caso<br />
específico. Os efeitos, desse modo, são váli<strong>dos</strong> para aquela<br />
circunstância determinada.<br />
1.4 Classificação <strong>dos</strong> Direitos Fundamentais<br />
Com base na Constituição Federal de 1988 podemos<br />
classificar os <strong>fundamentais</strong> em seis grupos:<br />
1. Direitos individuais, sendo aqueles que reconhecem<br />
autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independência<br />
aos cidadãos, diante <strong>dos</strong> demais indivíduos da sociedade e do<br />
Estado, previstos no artigo 5º daquele diploma.
24 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
2. Direitos coletivos, ou seja, <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> do<br />
homem-membro de uma coletividade, apostos no mesmo art. 5º, os<br />
quais são pertencentes a um grupo de pessoas, e não ao cidadão<br />
considerado individualmente.<br />
3. Direitos sociais, os quais se consubstanciam nas<br />
garantias asseguradas ao homem em suas relações sociais e<br />
culturais, encontra<strong>dos</strong> nos artigos 6º, 193 e subseqüentes da CF.<br />
4. Direitos à nacionalidade, os que possuem como substrato<br />
a nacionalidade, em seu exercício e faculdades, encontra<strong>dos</strong> no<br />
artigo. 12 da CF/88.<br />
5. Direitos políticos, chama<strong>dos</strong> também de <strong>direitos</strong><br />
democráticos ou de participação política, previstos expressamente<br />
nos arts. 14 a 17 da Carta Maior.<br />
6. Direitos Econômicos, funda<strong>dos</strong> nas relações econômicas,<br />
estabeleci<strong>dos</strong> nos arts. 170 a 192 da Constituição, quando trata da<br />
ordem econômica e financeira.<br />
Importante realçar que a classificação aqui relacionada não<br />
esgota o tema, apresentando, apenas, uma organização geral,<br />
tendo em vista a existências de diversas outras classificações,<br />
comportando subclasses, as quais não são de maior relevância ao<br />
estudo atual.<br />
1.5 A distinção entre princípios e regras<br />
A distinção entre princípios e regras faz-se de especial<br />
importância no presente estudo, tendo em vista que tal diferenciação<br />
transmuta-se indispensável à análise <strong>dos</strong> efeitos <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>.<br />
Comumente, as teorias que versam sobre a distinção <strong>dos</strong><br />
institutos em apreço dividem-se em três correntes de pensamento.<br />
Basicamente, há aqueles que defendem uma total distinção, onde<br />
princípios e regras possuiriam estruturas lógicas diversas, tendo,<br />
desse modo, forma de aplicação distinta; Outros que propõem uma<br />
distinção tênue, onde a diferença existente entre ambos não seria<br />
tão evidente, havendo, assim, apenas uma diferenciação de grau; E<br />
por fim, existem os defensores da impossibilidade de se distinguir
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 25<br />
princípios de regras, os quais afirmam ser o grau de semelhança tão<br />
forte que seria impossível diferençá-los de maneira definitiva.<br />
Imprescindível, no presente trabalho, entender o conceito de<br />
“mandamento de otimização”, formulado por Robert Alexy (1997).<br />
Os mandamentos de otimização exigem que algo seja exercitado na<br />
maior medida possível. Segundo insigne estudioso tanto as regras<br />
como os princípios são normas, motivo pelo qual ambos trazem em<br />
seu bojo mandamentos deônticos de permissão ou proibição. A<br />
diferença reside no fato de que os princípios podem variar em seu<br />
grau de aplicação, devendo, entretanto, “serem realiza<strong>dos</strong> na maior<br />
medida do possível”, ao passo que as regras ou são realizadas por<br />
completo ou não se aplicam. Princípios são, portanto, mandamentos<br />
de otimização.<br />
O grau de cumprimento <strong>dos</strong> princípios, desta forma, pode se<br />
dar de forma distinta, onde a medida imposta de execução varia<br />
conforme as condições fáticas e jurídicas específicas de cada caso.<br />
Onde se pode observar com maior nitidez a diferenciação<br />
entre regras e princípios é ao redor das possibilidades do conflito<br />
entre regras e da colisão entre princípios.<br />
No primeiro caso, tem-se a situação em que duas regras<br />
entram em conflito. Isso pode ser resolvido de duas formas.<br />
A primeira solução se desenvolve através de uma cláusula<br />
de exceção, ou seja, aquele que disponha sobre casos excepcionais<br />
em que a regra deixará de ser aplicada, em benefício do<br />
cumprimento doutra. Nesse caso, uma regra aplica-se em<br />
detrimento da outra.<br />
Exemplo é o caso em que funcionários de uma empresa são<br />
proibi<strong>dos</strong> por regra interna de se ausentarem do local de trabalho<br />
durante o expediente. Outra regra do mesmo estabelecimento,<br />
entretanto, impõe que os mesmos saiam rapidamente do local caso<br />
seja acionado o alarme de incêndio. Há aí um conflito parcial, pois o<br />
disposto nos mandamentos é incompatível. A segunda regra – sair<br />
rapidamente da sala – não é compatível com a proibição aposta na<br />
primeira norma. Nesse caso, a segunda regra será aplicada em<br />
detrimento da primeira, quando da ocorrência da situação hipotética<br />
nela presente, tendo em vista que só ocorrerá em situação<br />
específica.
26 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Contudo, nem sempre isso é possível. Pode ocorre que<br />
regras prevejam conseqüências jurídicas inconciliáveis para a<br />
mesma situação fática. Nesse caso, a única saída se dá através da<br />
verificação de invalidade de uma delas. Isso ocorre pelo seguinte<br />
motivo: no conflito entre regras a questão refere-se exclusivamente<br />
a um problema de validade, em que não há possibilidade de<br />
graduação, assim, ou uma regra é válida, ou não. Em resumo, duas<br />
regras que prevêem conseqüências jurídicas distintas para o mesmo<br />
fato não podem subsistir no mesmo sistema jurídico, sendo uma<br />
delas inválida.<br />
O professor Virgílio Afonso da Silva (2005, p.33) aponta<br />
duas máximas utilizadas na solução de antinomias: “lex posterior<br />
derogat legi priori e lex superior derogat legi inferior.”<br />
Exemplo disso é o caso de uma regra que proíbe e outra<br />
que permite o fumo em ambiente fechado. Não há, aí, possibilidade<br />
de aplicar-se cláusula de exceção, tendo em vista que as<br />
circunstâncias excluem-se totalmente entre si. De forma inevitável,<br />
terá que ser declarada a invalidade de uma das normas.<br />
Com relação aos princípios, no caso de conflito entre esses,<br />
a solução não requer a declaração de invalidade de nenhum deles,<br />
tampouco há possibilidade de aplicação por exceção de um princípio<br />
em relação a outro.<br />
Como mandamentos de otimização, conforme já citado<br />
acima, exige-se que se realizem na maior medida do possível,<br />
levando-se sempre em consideração as realidades fáticas e<br />
jurídicas do caso concreto.<br />
Dessarte, no caso em que colidam dois ou mais princípios<br />
existe a possibilidade de que estes tenham sua capacidade de<br />
incidência limitada na situação real. Pode, assim, haver realização<br />
de forma parcial ou total.<br />
Assim, se algo é vedado por um princípio, mas permitido por<br />
outro, um deles deve recuar, o que não significa que deva ser<br />
declarado nulo o princípio do qual se abdica, nem que seja utilizada<br />
uma cláusula de exceção. Em certas circunstâncias, pode um<br />
princípio ceder em favor da aplicação de outro que, em situações<br />
outras a questão prevaleceria de forma contrária.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 27<br />
Pode se dizer, a grosso modo, que os princípios tem um<br />
peso diferente em relação a cada caso concreto, predominando o de<br />
maior peso. Não existe, desta forma, princípios absolutos, ou seja,<br />
aqueles que prevalecem sobre to<strong>dos</strong> os outros em caso de colisão.<br />
Necessário se faz a ocorrência de um sopesamento entre os<br />
princípios colidentes, para que se defina qual deles prevalecerá, e<br />
em que intensidade, dentro das condições de fato e de direito<br />
peculiares da situação a ser resolvida.<br />
Princípio, portanto, deve ser entendido como mandamento<br />
nuclear ou disposição fundamental, o qual em sua aplicação<br />
obedece ao conceito de mandamento de otimização.<br />
1.6 Terminologia<br />
O problema referente à incidência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
nas relações privadas recebeu diversas definição na doutrina como<br />
“eficácia externa”, “eficácia <strong>horizontal</strong>”, “eficácia entre terceiros”,<br />
“eficácia frente aos particulares” etc.<br />
Na Alemanha, por exemplo, consagrou-se o uso da<br />
expressão “eficácia entre terceiros <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>”. No<br />
contexto anglo-saxão, tornou-se comum a expressão “privatização<br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> humanos”. Já no panorama Germânico, consolidou-se a<br />
utilização da definição “eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>”, a qual inspirou o título desde trabalho.<br />
Quando se fala em eficácia <strong>horizontal</strong>, quer-se exprimir o<br />
fato de que os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> não se aplicam apenas às<br />
relações verticais de poder, entendidas estas como as que se<br />
compõem na existência de um conflito de interesses formado entre o<br />
Estado em face do cidadão. 7 Desse modo, incide também sobre<br />
relações formadas somente por particulares, os quais se encontram<br />
hipoteticamente em igualdade.<br />
7 Nas relações do tipo Estado-Cidadão, subtende-se que o Estado, em virtude da<br />
concentração de poder que possui, encontra-se sempre em situação de vantagem em<br />
face do indivíduo. Daí a necessidade de tutela através da aplicação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>, na tentativa de equilibrar a relação.
28 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Sem embargo, na invocação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> na<br />
esfera privada, a igualdade, ou <strong>horizontal</strong>idade, é fictícia, pois, na<br />
imensa maioria <strong>dos</strong> casos, sempre haverá uma assimetria entre as<br />
partes, onde uma mais forte encontra-se em oposição à outra<br />
manifestadamente inferior, seja em maior ou menor escala.<br />
A ameaça gerada pelas grandes corporações em relação ao<br />
indivíduo-cidadão foi o primeiro passo para a superação do<br />
pensamento tradicional de que somente o Estado poderia ameaçar<br />
os <strong>direitos</strong> essenciais. Referidas corporações, ainda que privadas,<br />
encontram-se em uma situação de dominação, sobretudo em razão<br />
do poder econômico que detém, o que lhes confere um enorme<br />
poder de decisão em suas relações com os indivíduos,<br />
posicionando-se sempre em uma situação de supremacia em<br />
relação a esses, o que acaba por ameaçar os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
<strong>dos</strong> particulares.<br />
Com efeito, as normas <strong>fundamentais</strong> foram concebidas<br />
como diretos cujos efeitos repercutem na relação entre o Estado e<br />
os particulares. Esse limitada visão provou-se errônea na medida<br />
em que percebeu-se que nem sempre é o Estado que representa a<br />
ameaça ao particular, mas outro dessa mesma espécie, sobretudo<br />
quando dota<strong>dos</strong> de poder financeiro.<br />
Hodiernamente, quando se fala em vinculação do particular<br />
aos <strong>direitos</strong> de cunho fundamental, estão incluindo-se to<strong>dos</strong> os<br />
particulares em todas as relações entre si. Assim, sempre que<br />
houver desequilíbrio entre particulares, e sempre existirá, haverá<br />
ameaça, mesmo que em menor escala; e quanto maior o<br />
desequilíbrio maior deverá ser a incidência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 29<br />
Destarte, quando se fala em relação do tipo vertical,<br />
estamos nos referindo à relação formada pelo Estado, em um pólo,<br />
e o indivíduo particular, na outra face, onde apenas o segundo é<br />
titular de <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>; e quando nos referirmos a relações<br />
do tipo <strong>horizontal</strong> diz-se aquela composta por dois particulares, em<br />
ambos os la<strong>dos</strong> da demanda, sendo os dois acoberta<strong>dos</strong> pelos<br />
cita<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong>.
CAPÍTULO II<br />
2 EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS<br />
Uma das principais mudanças de paradigma que, no âmbito<br />
do direito constitucional, foi responsável pela constitucionalização do<br />
direito, refere-se a quebra do arcaico pensamento, ainda hoje<br />
arraigado em alguns ordenamentos, de que os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
possuem aplicação apenas nas relações do tipo “Estado-cidadão”.<br />
Sabe-se hoje que não é somente o Estado que pode<br />
ameaçar as garantias essenciais do cidadão, mas também outros<br />
particulares.<br />
2.1 A constitucionalização do direito<br />
Embora hoje nos pareça óbvio, a idéia de Constituição como<br />
norma de caráter jurídico, dotada de coercibilidade e imperatividade,<br />
demorou algum tempo para ser concebida . No panorama liberal, a<br />
Constituição não interferia no campo das relações particulares, as<br />
quais eram disciplinadas pela legislação ordinária, especialmente no<br />
Código Civil, centro das projeções <strong>dos</strong> interesses sociais da classe<br />
burguesa dominante. Apenas com o surgimento do Estado Social a<br />
Carta Magna passou a prever, de maneira geral, a economia, o<br />
mercado, e <strong>direitos</strong> oponíveis a atores priva<strong>dos</strong>, como os<br />
trabalhistas, projetando-se, assim, na ordem civil.<br />
Um <strong>dos</strong> principais obstáculos para o reconhecimento da<br />
Constituição como centro de valores de um ordenamento<br />
transmudava-se na concepção de que as normas apostas nos textos<br />
constitucionais, referentes à esfera jurídico-privada, eram<br />
meramente programáticas, desvestidas de eficácia imediata,<br />
necessitando sempre da atividade do legislador infra-constitucional<br />
para produzirem seus efeitos, isso por diversos motivos. Como<br />
ressalta Daniel Sarmento (2004, p. 72):<br />
É verdade que a negativa de eficácia a certas partes da<br />
Constituição não resulta apenas de resistência
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 31<br />
ideológica. A esta se ajuntam razões jurídicas<br />
ponderáveis, como o grau de indeterminação<br />
semântica de algumas normas, assim como o fato de<br />
que a aplicação de outras depende da utilização de<br />
recursos escassos, bem como da formulação de<br />
políticas públicas, e não de um mero comportamento<br />
absenteísta do Estado.<br />
Desta forma, a falta de efetividade das normas<br />
constitucionais contribuíam, e ainda contribuem, para gerar um<br />
enfraquecimento da credibilidade da Constituição, impedindo a<br />
formação de um sentimento patriótico-constitucional entre o povo,<br />
transformando o texto supremo em meras promessas sem nenhuma<br />
eficácia social. A Carta Maior passa a ser vista como um calhamaço<br />
de utopias de pouca, ou nenhuma, validade prática.<br />
Quando se fala em constitucionalização do direito deve-se<br />
ter em vista a idéia de irradiação <strong>dos</strong> efeitos das normas<br />
constitucionais nos demais ramos do ordenamento, através de um<br />
processo lento, o qual pode se dá de diversas maneiras, sobretudo<br />
na reforma legislativa. Gunnar Folke Schuppert e Christian Bumke<br />
apontam esta como a mais efetiva e menos problemática forma de<br />
constitucionalização, realizando-se por meio de reformas gerais ou<br />
pontuais na legislação infraconstitucional, adaptando-a às<br />
prescrições apostas na Carta Maior. Desse modo, o principal papel<br />
do poder legislativo como constitucionalizador do direito se<br />
desenvolve na sua função de adequar a legislação ordinária aos<br />
preceitos constitucionais. Ainda segundo cita<strong>dos</strong> autores, dão<br />
impulso ao processo o judiciário, na atividade de aplicar as normas<br />
<strong>fundamentais</strong>, e a doutrina, responsável pela formação<br />
imprescindível do alicerce teórico para o desenvolvimento do tema.<br />
A Constitucionalização, portanto, é um processo pelo qual<br />
as normas constitucionais penetram nos demais ramos do<br />
ordenamento, já que trazem em seu bojo o norte essencial ao<br />
desenvolvimento de um ordenamento jurídico unitário e coeso.<br />
Assim, obedecendo aos parâmetros traça<strong>dos</strong> constitucionalmente as<br />
demais leis infraconstitucionais se embebedam nas proposições de<br />
justiça apostas pelo legislador constitucional, as quais nada mais<br />
são que a vontade do povo.
32 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Daniel Sarmento (2004), um <strong>dos</strong> pioneiros no que se refere<br />
ao estudo doutrinário da aplicação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> em<br />
relações privadas no Brasil, aponta para uma Dimensão Objetiva<br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>. A idéia prende-se ao reconhecimento de<br />
que nos <strong>direitos</strong> de natureza fundamental estão conti<strong>dos</strong> os valores<br />
mais importantes da comunidade, os quais, através <strong>dos</strong> princípios<br />
constitucionais que consagram, penetram nos demais ramos<br />
ordenamento jurídico, modelando suas leis e institutos.<br />
Conforme já se afirmou em capítulo anterior, os <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> passam a exigir uma atuação do Estado em sua<br />
defesa. Ocorre que, num ponto de vista liberal, tais <strong>direitos</strong> eram<br />
visualiza<strong>dos</strong> exclusivamente nesta perspectiva, ou seja, cuidava-se<br />
apenas de identificar em que situações o indivíduo poderia exigir a<br />
atuação estatal em razão de um direito positivado na ordem jurídica.<br />
A dimensão objetiva reconhece que referi<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
consagram os valores mais importantes em uma sociedade política,<br />
além de imporem certas prestações aos poderes estatais,<br />
constituindo-se nas bases de um ordenamento jurídico da<br />
coletividade. Dessa feita, os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> passam a ser<br />
vistos do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que<br />
esta se propõe a perseguir. Assim, seus efeitos não podem se<br />
esgotar na limitação do poder estatal, de modo que se espalham por<br />
to<strong>dos</strong> os campos do ordenamento, impulsionando e ordenando a<br />
atividade <strong>dos</strong> três poderes.<br />
Sob esta ótica, não basta que o Estado se abstenha de<br />
violar os <strong>direitos</strong> em comento, sendo necessário que, através de<br />
uma formatação de seus órgãos e procedimentos, propiciem aos<br />
mesmos efetivação e proteção ativa, da forma mais ampla possível.<br />
Na mesma linha de raciocínio é que se afirma que deve existir uma<br />
expansão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> para o âmbito das relações<br />
privadas, permitindo que trespassem a linha divisória do domínio<br />
das relações entre o indivíduo e o Estado.<br />
Destarte, as normas de cunho fundamental, no mínimo,<br />
produzirão efeitos hermenêuticos, condicionando a interpretação e<br />
integração do sistema jurídico, vinculando o legislador, servindo de<br />
base para a criação de leis em conformidade com os seus preceitos<br />
e, ainda, para a decretação da inconstitucionalidade daqueles já<br />
existentes em desconformidade com suas previsões.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 33<br />
A doutrina contemporânea reconhece a existência de uma<br />
dupla dimensão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, onde são,<br />
concomitantemente, bases <strong>fundamentais</strong> da ordem jurídica, as quais<br />
se expandem através do ordenamento como um todo, e, ainda,<br />
<strong>direitos</strong> subjetivos passiveis de serem reclama<strong>dos</strong> em juízo, de<br />
modo que o reconhecimento de uma dimensão objetiva não<br />
representa uma desconsideração da existência de sua dimensão<br />
subjetiva, mas, ao inverso, seria um reforço a esta última.<br />
Parte-se, mais uma vez, da idéia de irradiação <strong>dos</strong> efeitos<br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>. A eficácia irradiante concretiza preceito<br />
fundamental dentro do processo de constitucionalização das normas<br />
infra-constitucionais. Significa que os valores imiscuí<strong>dos</strong> nas normas<br />
essenciais alastram-se por todo ordenamento, condicionando a<br />
interpretação das demais leis aos valores da dignidade da pessoa<br />
humana e da justiça social, impressas na teia constitucional, fixando<br />
diretrizes de atuação <strong>dos</strong> membros do legislativo, executivo e<br />
judiciário.<br />
Com efeito, referida irradiação possui na interpretação em<br />
conformidade com a Carta Constitucional um <strong>dos</strong> seus mais<br />
importantes instrumentos, impondo ao operador do direito que,<br />
diante de várias interpretações possíveis de determinada disposição<br />
legal, opte pela exegese compatível com o preceito previsto na<br />
Constituição. Como bem dispõe Daniel Sarmento (2004, p.158),<br />
“Trata-se do fenômeno de filtragem constitucional, que exige do<br />
aplicador do direito uma nova postura, voltada para a promoção <strong>dos</strong><br />
valores constitucionais em to<strong>dos</strong> os quadrantes do direito positivo”.<br />
Sem embargo, baseando-se na premissa de que as normas<br />
de cunho fundamental configuram o centro valorativo de um<br />
ordenamento jurídico, a eficácia irradiante propõe uma nova leitura<br />
de toda a ordem positiva. Conseqüentemente, os <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> abandonam a concepção de meros limites para o<br />
ordenamento e passam a representar o norte do direito positivo,<br />
tornando-se o epicentro no qual este se apóia.<br />
Na prática, a eficácia irradiante consubstancia-se,<br />
sobretudo, em relação à interpretação das normas gerais do direito<br />
privado e nos seus conceitos indetermina<strong>dos</strong>, tais como a definição<br />
de boa-fé, interesse público, bons costumes, dentre outros, através
34 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
da qual geram uma verdadeira constitucionalização do direito,<br />
edificada à luz <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>.<br />
É por isso que se diz tratar-se a Constitucionalização de um<br />
movimento necessário para pautar as relações privadas em<br />
parâmetros mais justos, onde se concebe a Constituição como o<br />
topo hermenêutico direcionador da interpretação do restante do<br />
ordenamento, para com isso, conformar o direito infraconstitucional<br />
nos valores da Lei Maior.<br />
2.2 Negação <strong>dos</strong> efeitos – “state action”<br />
Nos Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> a tese da não vinculação <strong>dos</strong><br />
particulares aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> é ponto quase<br />
universalmente aceito por parte <strong>dos</strong> doutrinadores daquele país. A<br />
idéia de que essas normas, previstas na Bill of Rights, impõem<br />
limitações apenas ao Estado, é quase pacífica. Os defensores da<br />
tese invocam, como argumento teórico, dentro outros, o pacto<br />
federativo 8 e, sobretudo, a autonomia privada.<br />
Entretanto, mesmo que a doutrina americana encare os<br />
Direitos Fundamentais como oponíveis somente aos Entes Públicos,<br />
não é difícil encontrar decisões em sentido contrário. Não é<br />
incomum localizar, na prática jurisprudencial daquela nação, em<br />
especial da Suprema Corte, o reconhecimento da aplicação <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> à relações inter-priva<strong>dos</strong>, baseando-se no<br />
instituto conhecido por State Action (Ação Estatal). Aconselhável,<br />
portanto, distinguir aquilo que é, em parte, defendida pela doutrina<br />
norte-americana e o que, deveras, condiz com a realidade da<br />
jurisprudência da Corte Maior.<br />
Com efeito, a doutrina da Ação Estatal visa definir quando<br />
um ato privado que fira <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> possa ser objeto de<br />
Ação Judicial, determinando, assim, quais as situações em que a<br />
conduta particular vincula-se às disposições <strong>fundamentais</strong>. Ao invés<br />
de reconhecer referida vinculação, a doutrina americana mantém a<br />
8 Nos Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> compete aos Esta<strong>dos</strong> legislar sobre Direito Privado, em<br />
detrimento da competência da União, exceto quando se tratar de matéria envolvendo<br />
comércio interestadual ou internacional. Visa-se, assim, garantir a autonomia <strong>dos</strong><br />
Esta<strong>dos</strong>, garantindo plena competência para regular o comportamento privado.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 35<br />
posição de que são os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> aplicáveis somente nas<br />
relações em que o Estado é partícipe, só podendo haver violação<br />
<strong>dos</strong> mesmos através de uma Ação Estatal.<br />
Contudo, a Suprema Corte norte-americana, em grande<br />
parte <strong>dos</strong> casos de incidência <strong>horizontal</strong>, vem encontrando alguma<br />
maneira de igualar o ato privado em questão na lide um ato estatal,<br />
podendo então, através dessa manobra jurídica, coibir a violação<br />
aos <strong>direitos</strong> essenciais. O caso shelley v. Kramer, citado<br />
anteriormente em nota introdutória deste estudo, ilustra bem o que<br />
se quer expor. Na ocasião, os proprietários de imóveis de um<br />
determinado loteamento haviam se comprometido contratualmente a<br />
não vender os imóveis a indivíduos de cor negra. Um deles,<br />
desrespeitando a cláusula, aliena seu imóvel a um comprador de<br />
raça negra, vindo os demais a ajuizarem ação em face dele, a qual<br />
foi julgada procedente na jurisdição de primeiro grau. A Suprema<br />
corte, ao contrário, decidiu pela nulidade do artigo e pela validade da<br />
venda.<br />
Tal anulação, contudo, não se baseou na violação da<br />
igualdade de <strong>direitos</strong> (emenda constitucional XIV), mas sim tratou-se<br />
de uma Ação Estatal, sendo essa a própria decisão da jurisdição<br />
inferior a favor da discriminação. Parte do pressuposto de que a<br />
discriminação infra-constitucional surge com a tutela no juízo inferior<br />
que, ao julgar daquele modo, estaria utilizando seu poder coercitivo<br />
em favor de uma discriminação contrária à Constituição. Por este<br />
artifício, reconheceu-se a presença da State Action no caso,<br />
protegendo, de maneira indireta, a incidência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>.<br />
Outro exemplo ocorreu no julgamento do caso Marsh v.<br />
Alabama, citado por Virgílio (2005), onde se discutia se uma<br />
empresa privada, a qual era possuidora de terrenos nos quais se<br />
localizavam ruas, residências, estabelecimentos comerciais etc.,<br />
poderia proibir Testemunhas de Jeová de pregarem no interior de<br />
sua propriedade. A Suprema Corte declarou inválida a referida<br />
proibição, tendo por fundamento que ao manter uma “cidade<br />
privada”, a empresa equiparava-se ao Estado e sujeitava-se a<br />
liberdade de culto, assegurada pela 1ª Emenda Constitucional norteamericana.
36 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Diante dessas, e tantas outras decisões, a jurisprudência<br />
norte-americana tem apontado para o reconhecimento de que a<br />
State Action só promove realmente a liberdade quando considera<br />
que a violação à Constituição é sempre mais grave do que os<br />
<strong>direitos</strong> individuais que são infringi<strong>dos</strong>.<br />
2.2.1 Autonomia Privada<br />
No Brasil, um <strong>dos</strong> principais óbices ao reconhecimento da<br />
aplicação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> nas relações privadas refere-se<br />
à autonomia conferida constitucionalmente ao particular no tocante a<br />
realização de seus atos. A corrente tende a desmistificar uma<br />
posição hierárquica do direito privado inferior em relação à<br />
Constituição, e, conseqüentemente, as normas essenciais.<br />
Em sentido amplo, autonomia privada é entendida como a<br />
capacidade do indivíduo determinar seu próprio comportamento.<br />
Difere da Autonomia Pública no sentido de que, nesta, os poderes<br />
públicos estão condiciona<strong>dos</strong> ao princípio da legalidade de forma<br />
que somente podem fazer o que a lei determina ou autoriza,<br />
enquanto naquela podem os cidadãos exercer to<strong>dos</strong> os atos que<br />
não estejam expressamente proibi<strong>dos</strong> por lei.<br />
Dessa maneira, a idéia central é que não cabe ao Estado,<br />
ou qualquer instituição, estabelecer os valores e crenças que cada<br />
pessoa deve seguir, o modo como orienta sua vida, os caminhos<br />
que deve percorrer. Reconhece-se, assim, a cada pessoa, o poder<br />
de auto-regulamentação sobre sua própria vida, desde que não<br />
importe lesão a <strong>direitos</strong> de terceiros.<br />
Representa, deste modo, um <strong>dos</strong> componentes essenciais<br />
da liberdade, pressuposto da democracia, estando<br />
indissociavelmente ligada à proteção da dignidade da pessoa<br />
humana.<br />
Referida autonomia, contudo, não pode se dar de maneira<br />
absoluta. Em primeiro lugar, limita-se pelo direito do outro, pois parte<br />
do pressuposto de que to<strong>dos</strong> possuem uma cota idêntica de<br />
liberdade. Destarte, os <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> cidadãos devem ser concilia<strong>dos</strong><br />
de modo que sobrevivam concomitantemente, sob pena de<br />
desaparecimento da próprio Estado de Direito, o que acarretaria em
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 37<br />
vivermos num Estado em que prevaleceria sempre a vontade do<br />
mais poderoso. É por isso que se diz que todo direito de liberdade<br />
encontra seus limites no direito de liberdade <strong>dos</strong> demais, em<br />
benefício da subsistência de uma comunidade erigida sobre um<br />
ideal de justiça.<br />
Inevitável, portanto, que o Estado intervenha em certos<br />
casos, seja para proteger a liberdade de outrem, seja para garantir o<br />
interesse social. Tal interferência, no entanto, encontra raiz na<br />
própria autonomia privada, já que possui como substrato jurídico as<br />
próprias leis 9 , as quais nada mais são que a própria vontade do<br />
povo, editada através de seus representantes.<br />
Por outro lado, existem dimensões da autonomia privada tão<br />
importantes que se torna necessário protegê-las até mesmo do<br />
legislador, representante da vontade das maiorias, como, por<br />
exemplo, as liberdades de religião, de expressão, de associação etc.<br />
Contudo, mesmo sendo de fundamental importância ao ser humano,<br />
essas liberdades não se revestem de caráter absoluto. É possível<br />
que em sua aplicação seja ferido outro direito fundamental, quando<br />
então deve haver uma ponderação de interesses, seguindo o<br />
modelo de mandamento de otimização já explicitado em tópico<br />
anterior.<br />
Para que a autonomia privada não se converta em mera<br />
liberdade incondicional, em abusividade, necessário se faz atentar<br />
sempre para a existência de condições de que assegurem o seu<br />
efetivo exercício, principalmente quando se trata de questões<br />
envolvendo partes em disparidade material de poder. É o caso da<br />
proteção dada ao consumidor, onde se reconhece sua<br />
hipossuficiência perante contratos pactua<strong>dos</strong> abusivamente; ou do<br />
trabalhador que, na celebração de seu contrato de trabalho, abriu<br />
mão de <strong>direitos</strong> inafastáveis, na ânsia por um emprego que<br />
possibilite a mantença de sua família. Assim, quando há ingerência,<br />
através da atividade estatal de criar e aplicar as normas, nestas<br />
relações de desigualdade, ditando regras de ordem pública em favor<br />
da parte mais fraca, não se está a afastar a autonomia privada <strong>dos</strong><br />
indivíduos.<br />
9 Como dito acima, ao Estado só é permitido fazer o que a lei determina ou permite.
38 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Em verdade, o instituto jurídico em questão, pressupõe uma<br />
situação de igualdade, ou desigualdade mínima, entre os<br />
participantes da relação, onde a falta de tal pressuposto representa<br />
que a autonomia privada de um, conduz a falta de liberdade do<br />
outro. Não havendo equilíbrio de poderes, deve então ser, o mesmo,<br />
buscado por outra via, qual seja, a ingerência do Estado que<br />
conceba equidade ao relacionamento.<br />
O reconhecimento da vinculação <strong>dos</strong> particulares aos<br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> não representa que tais garantias sejam<br />
aplicadas nestas relações da mesma forma que são naquelas entre<br />
o Estado e o cidadão. Levando em conta que a autonomia privada<br />
seja um princípio, ainda que formal, deve ela também ser realizada<br />
na maior medida do possível, levando-se em conta as condições<br />
fáticas e jurídicas de cada caso concreto. Por isso, tem-se entendido<br />
que a limitação da incidência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> nas relações<br />
inter-priva<strong>dos</strong> encontra solução na ponderação desses com a<br />
autonomia privada, a qual deve se realizar, primordialmente, através<br />
da atividade legislativa, e, na falta de norma específica, pelos juízes<br />
na pacificação <strong>dos</strong> litígios. Nas palavras de Daniel Sarmento(2004,<br />
p.303):<br />
...quanto maior for a desigualdade, mais<br />
intensa será a proteção ao direito fundamental<br />
em jogo, e menor a tutela da autonomia<br />
privada. Ao inverso, numa situação de<br />
tendencial igualdade entre as partes, a<br />
autonomia privada vai receber uma proteção<br />
mais intensa, abrindo espaço para restrições<br />
mais profundas ao direito fundamental com ela<br />
em conflito.<br />
Conforme já explicitado anteriormente, a concepção liberal<br />
restringia o alcance <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> às relações verticais<br />
(Estado x cidadão), em face de ali se vislumbrar uma disparidade de<br />
poder entre as partes que sujeitava o individuo às vontades das<br />
autoridades públicas. Entendia-se que nas relações do tipo privada<br />
existia igualdade (ainda que formal), encontrando-se todas as<br />
pessoas numa situação de paridade, motivo pelo qual seria<br />
desnecessário estender a este ramo os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>. O
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 39<br />
reconhecimento de uma desigualdade material, real, ampliou o<br />
âmbito de proteção concedida pelas normas de cunho essenciais à<br />
esfera privada, por que se parte da premissa de que a assimetria<br />
entre as partes é prejudicial ao exercício da autonomia privada, pois<br />
quando o ordenamento deixa livres o forte e fraco somente o<br />
primeiro goza efetivamente de liberdade.<br />
No Brasil, diante da enorme desigualdade social aqui<br />
existente, a questão se torna ainda mais clara. A enorme<br />
vunerabilidade da grande maioria da população necessita de uma<br />
proteção reforçada <strong>dos</strong> seus <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> quando<br />
participantes das relações travadas com outros particulares mais<br />
poderosos, como empregadores ou fornecedores.<br />
Por fim, cumpre salientar que, no nosso ordenamento<br />
constitucional, a tutela da autonomia privada é muito mais intensa<br />
quando conferida a questões de caráter existencial da pessoa<br />
humana do que quando se refere a demandas de cunho econômicopatrimonial.<br />
Exemplo disso é o caso citado pelo professor Daniel<br />
Samento (2004, p. 309), onde num contrato de locação as partes<br />
ajustam “cláusula estipulando a possibilidade de rescisão do pacto<br />
com a retomada do imóvel, caso o locatário passasse a receber em<br />
sua casa pessoas negras”. Nesse caso, a autonomia contratual não<br />
deve assumir peso relevante, em face de uma colisão com o direito<br />
fundamental do inquilino de se tornar amigo de pessoa de qualquer<br />
cor.<br />
Destarte, o peso da autonomia privada varia de acordo com<br />
as especificações fáticas e jurídicas de cada caso, aí incluídas,<br />
também, a natureza da questão examinada. Quando tratar-se de<br />
natureza econômico-processual, a autonomia privada terá menor<br />
importância, sobretudo quando confronta-se com um bem inerente à<br />
vida humana.<br />
Com efeito, se admitirmos os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> como<br />
premissas que protegem os bens jurídicos mais relevantes da<br />
pessoa humana, não existe razão para recusar-se uma proteção<br />
constitucional integral a estes bens. Assim, mesmo em relações<br />
privadas paritárias e equilibradas, a livre atividade volitiva da pessoa<br />
não legitima lesões aos seus <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> e sua dignidade<br />
humana, os quais são irrenunciáveis.
40 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
2.3 Eficácia mediata<br />
Em um contexto de Estado Social, onde os poderes priva<strong>dos</strong><br />
representam enorme ameaça para a liberdade <strong>dos</strong> cidadãos, se<br />
torna imprescindível vinculá-los aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> e à<br />
Constituição. Admitida tal incidência, surge o questionamento<br />
referente à maneira que se dará tal aplicação.<br />
O aspecto fundamental para o entendimento da tese da<br />
aplicação mediata <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> consubstancia-se no<br />
reconhecimento de uma liberdade que impede que as normas<br />
essenciais tenham reflexos diretos nas relações privadas, o que<br />
resultaria em um domínio do ramo constitucional sobre o civil. Com<br />
isso, quer-se dizer que, nas relações particulares, esses <strong>direitos</strong><br />
devem ser relativiza<strong>dos</strong> em favor da autonomia privada, podendo os<br />
indivíduos decidirem livremente entre si.<br />
Contudo, segundo a idéia, a liberdade <strong>dos</strong> cidadãos e a<br />
autonomia do direito privado não seriam absolutas. Para que<br />
houvesse uma conciliação das normas <strong>fundamentais</strong> com o<br />
ordenamento privado deveria haver uma influência das primeiras no<br />
último, a qual se daria através do próprio material normativo civil.<br />
Essa harmonização, por meio da produção indireta <strong>dos</strong> efeitos,<br />
pressupõe a existência da Constituição como um sistema de<br />
valores, centrada especialmente no princípio da dignidade da<br />
pessoa humana, os quais se irradiam no âmbito das relações<br />
particulares por intermédio de suas cláusulas gerais, comumente<br />
denominadas de portas de entrada. 10<br />
Sem embargo, admitem, os defensores da corrente, a<br />
necessidade de existência de pontes que liguem o Direito Privado à<br />
Constituição, para submeter o primeiro aos valores constitucionais, o<br />
que se concretiza pelas portas de entrada referidas alhures. Cabe,<br />
assim, antes de tudo ao legislador privado a tarefa de mediar a<br />
aplicação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> sobre os particulares,<br />
estabelecendo uma ponte que torne os valores constitucionais<br />
compatíveis com às relações privadas. Ao judiciário, portanto,<br />
10 Esse sistema de valores não pode ser confundido com a idéia de mera declaração<br />
de princípios, os quais pressupõem uma simples declaração de intenções do poder<br />
constituinte em relação à atividade legislativa, sem qualquer valor vinculante.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 41<br />
restaria a função de preencher as cláusulas indeterminadas criadas<br />
pelo legislador e, apenas em casos excepcionais, quando<br />
houvessem lacunas no ordenamento privado e inexistisse cláusula<br />
geral ou de conceito indeterminado, é que se permitiria ao juiz a<br />
aplicação direta das normas essenciais nas lides entre priva<strong>dos</strong>.<br />
Trata-se, deste modo, de uma construção intermediária<br />
entre as idéias de negação total da vinculação das garantias<br />
<strong>fundamentais</strong> e de incidência direta <strong>dos</strong> mesmos. Para a teoria da<br />
eficácia de efeitos indiretos essas normas não ingressam no âmbito<br />
privado como <strong>direitos</strong> subjetivos, mas apenas através de uma ordem<br />
de valores, que penetram por meio das portas de entradas<br />
(cláusulas gerais e conceitos indetermina<strong>dos</strong>) abertas pelo próprio<br />
legislador civil.<br />
O principal elo, portando, seriam as chamadas cláusulas<br />
gerais, ou seja, conceitos abertos, cujo conteúdo deverá ser definido<br />
por uma valoração do aplicador do direito, se baseando sempre no<br />
sistema de valores consagra<strong>dos</strong> pela Carta Maior. Exemplo disso é<br />
o artigo 187 do Código Civil, quando dispõe que “ comete ato ilícito o<br />
titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os<br />
limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou<br />
pelos bons costumes”. Assim, através dessas cláusulas, os <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> se infiltram no ordenamento privado e produzem seus<br />
efeitos, mantendo a independência do sistema civil, ficando este<br />
protegido em face de uma possível dominação por parte <strong>dos</strong><br />
dispositivos constitucionais.<br />
Entretanto, uma forte crítica ao modelo baseia-se<br />
exatamente na possibilidade de ineficácia da proteção <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> nessas relações se seus efeitos puderem a elas<br />
chegar somente por meio das cláusulas gerais. O provável é que<br />
estas se mostrem insuficientes, e, diante de um grande número de<br />
situações em que seja desejável a aplicação das normas essenciais,<br />
não exista nenhuma abertura para dar vazão a essa vinculação.<br />
À guise de conclusão nota-se: os defensores da teoria em<br />
debate sustentam que os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> são protegi<strong>dos</strong> no<br />
campo privado, contudo, não através <strong>dos</strong> instrumentos do Direito<br />
Constitucional, e sim através de mecanismos do próprio Direito Civil.<br />
A eficácia vincularia apenas de forma indireta, através da atuação
42 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
do legislador privado, conforme destaca Vieira Andrade (1987, p.<br />
276-277):<br />
...quando muito, os preceitos constitucionais<br />
serviriam como princípios de interpretação das<br />
cláusulas gerais e conceitos indetermina<strong>dos</strong><br />
suscetíveis de concretização, clarificando-os<br />
(Wertverdeutlichung), acentuando ou<br />
desacentuando determina<strong>dos</strong> elementos do<br />
seu conteúdo (Wertakzentuierung,<br />
Wertverschärfung), ou, em casos extremos,<br />
colmatando as lacunas<br />
(Wetschutzlückenschliessung), mas sempre<br />
dentro do espírito do Direito Privado.<br />
Com efeito, o principal argumento utilizado pelos defensores<br />
da corrente para negar uma aplicação direta concretiza-se na idéia<br />
de que uma vinculação imediata acabaria por exterminar a<br />
autonomia da vontade, desfigurando o direito privado, convertendo-o<br />
em mera concretização Constitucional. Ademais, outorgar-se-ia um<br />
poder desmesurado ao Judiciário, tendo em vista o grau de<br />
indeterminação que caracteriza as normas constitucionais<br />
<strong>fundamentais</strong>, o que acabaria por comprometer sobremaneira a<br />
liberdade individual, que ficaria a mercê da discrição <strong>dos</strong> juízes.<br />
Assim é que sustentam a tese de que a Constituição não investe os<br />
particulares em <strong>direitos</strong> subjetivos <strong>fundamentais</strong>, mas que ela<br />
apenas contém normas objetivas, cuja os efeitos dependem de sua<br />
irradiação, impregnando as leis civis por esses valores.<br />
2.4 Eficácia imediata<br />
Quando se fala em aplicabilidade direta, ou imediata, <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> nas relações entre particulares quer-se<br />
expressar que, da mesma maneira como são aplicáveis nas<br />
relações do tipo Estado-cidadão, o são também naquelas<br />
envolvendo somente particulares, sem que seja necessária<br />
nenhuma ação intermediária. O professor Virgílio Afonso da Silva
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 43<br />
(2005, p.86) cita o seguinte exemplo para melhor explanar o<br />
conceito:<br />
Quando se fala em liberdade de reunião (CF,<br />
art. 5º, XVI) como mera liberdade pública,<br />
entende com isso que o Estado não deve<br />
restringir a liberdade de reunião <strong>dos</strong> cidadãos.<br />
Mas poderia alguém ou um grupo de pessoas<br />
perturbar uma manifestação pacífica de forma<br />
tal que essa manifestação não tenha como ser<br />
exercida de forma plena? Se a liberdade de<br />
reunião for encarada meramente como direito<br />
de defesa contra a ação ilegítima do Estado e<br />
se, ao mesmo tempo, não houver nenhum<br />
dispositivo legal que vede a perturbação de<br />
reuniões pacíficas por meio de entes priva<strong>dos</strong>,<br />
o caso seria difícil de ser solucionado sem um<br />
recurso direto ao direito fundamental garantido<br />
pelo art. 5º, XVI da Constituição.<br />
O problema, em consonância com o dito inicialmente,<br />
deveria ter o mesmo tratamento que seria dado caso o ente<br />
perturbador fosse o Estado, numa perspectiva de aplicação imediata<br />
das normas <strong>fundamentais</strong>. Assim, o direito de reunião seria<br />
considerado uma garantia do indivíduo não só em face do poder<br />
estatal, mas, também, contra outros particulares.<br />
A principal diferença entre os modelos de vinculação direta e<br />
indireta reside na desnecessidade de mediação legislativa para que<br />
as garantias essenciais produzam efeitos nas relações entre<br />
priva<strong>dos</strong>. Pode-se dizer, assim, que seus efeitos são imediatos e<br />
diretos, pois incidem diretamente na situação em concreto. É deste<br />
modo que, mesmo sem que haja norma de direito privado, os<br />
<strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> asseguram, de forma direta, garantias<br />
subjetivas aos participantes da relação, sem que seja necessário<br />
artimanhas interpretativas para que produzam efeitos.<br />
Destarte, não necessitam da existência de cláusulas gerais,<br />
ou qualquer outra “porta de entrada” para se irradiar no<br />
ordenamento civil. Sendo o ordenamento uma unidade, e a<br />
Constituição sua Lei Maior, todas as demais normas somente são
44 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
válidas com base nessa, e dentro <strong>dos</strong> limites por ela impostos,<br />
inclusive o Código Civil. Dessa maneira, as normas constitucionais<br />
não necessitam de “pontos de infiltração”, sendo, portanto,<br />
aplicáveis de forma direta a todas as relações, inclusive particulares,<br />
podendo os cidadãos recorrerem aos seus <strong>direitos</strong> de cunho<br />
fundamental para fazê-los valer contra to<strong>dos</strong>, seja em face do<br />
Estado, pessoas físicas ou jurídicas privadas.<br />
Isso não quer dizer, contudo, que a vinculação por meio de<br />
efeitos diretos implica que todo o direito fundamental<br />
impreterivelmente seja aplicável a tais relações. A verificação dessa<br />
aplicabilidade deve ser individualizada, estando adstrita as<br />
peculiaridades de cada norma de cunho fundamental. Ademais, não<br />
se nega a existência de especificidades nesta incidência, nem<br />
mesmo a necessidade de ponderá-los com a autonomia privada <strong>dos</strong><br />
envolvi<strong>dos</strong>. Nesse sentido, o modelo de aplicação direta defende<br />
que, quando o direito essencial for aplicável, então essa incidência<br />
se dará de forma direta.<br />
Praticamente to<strong>dos</strong> os defensores da tese em questão<br />
reconhecem o dito no parágrafo supra, sobretudo a necessidade de<br />
ponderação <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> em jogo com a autonomia privada da<br />
pessoa cujo comportamento se cogita restringir. Dentre eles<br />
podemos citar J. J. Gomes Canotilho (1992), o qual, de forma<br />
pioneira, acenou para a criação de soluções diferenciadas para<br />
harmonizar a tutela de <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> com a proteção<br />
conferida a liberdade particular. Outro defensor é Ingo Wolfgang<br />
Sarlet (1998), autor brasileiro do mais minucioso estudo publicado<br />
sobre a matéria, onde manifesta sua preferência pela eficácia direta.<br />
Referido estudioso defende que “a forma de positivação e a função<br />
exercida pelos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> se encontram umbilicalmente<br />
ligadas à sua eficácia e aplicabilidade” (1998, p. 248), e que “ a<br />
graduação da carga <strong>eficacia</strong>l <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> depende, em<br />
última análise, de sua densidade normativa, por sua vez igualmente<br />
vinculada a forma de proclamação no texto e à função precípua de<br />
cada direito fundamental” (1998, p. 248), motivo pelo qual divide os<br />
<strong>direitos</strong> essenciais em vários grupos, realizando uma análise distinta<br />
com relação a aplicação de cada um deles, tendo sempre como<br />
premissa o postulado da otimização máxima.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 45<br />
Impende salientar que, na vinculação direta, não se afasta,<br />
também, a atividade do legislador. Não se questiona o fato de que<br />
há um espaço para que esse pondere a autonomia privada com as<br />
normas <strong>fundamentais</strong>, qual seja, o momento da atividade legislativa.<br />
Por isso, a prioridade na concretização das normas essenciais<br />
acaba sendo, de fato, do legislador, o que não quer dizer que não<br />
seja possível a aplicação imediata quando não houver regra<br />
ordinária específica tratando da matéria, ou até mesmo versando em<br />
descompasso.<br />
A Constituição brasileira de 1988 favorece sobremaneira a<br />
interpretações que aprofundam a incidência direta <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> na esfera privada, com a previsão de vários <strong>direitos</strong><br />
volta<strong>dos</strong> contra o particular, como, por exemplo, to<strong>dos</strong> os <strong>direitos</strong><br />
trabalhistas esculpi<strong>dos</strong> no seu artigo 7º, além de que, caracteriza-se,<br />
evidentemente, pelo seu caráter de socialidade. Desse modo,<br />
quando o próprio constituinte originário optou por se imiscuir na<br />
esfera das relações privadas, não há qualquer razão que justifique<br />
excluir a aplicação da plena eficácia das normas <strong>fundamentais</strong>,<br />
mesmo quando seus coman<strong>dos</strong> dirigem-se ao Estado. No nosso<br />
país, inclusive, a constitucionalização do Direito Privado já foi<br />
iniciada pelo próprio constituinte, o qual disciplinou em linhas gerais<br />
diversos institutos eminentemente priva<strong>dos</strong>, como a família e a<br />
propriedade, etc.<br />
Ademais, o direito não pode ser encarado de uma forma<br />
fechada, feito de regras prontas e mecânicas, o que, diga-se de<br />
passagem, já se provou ultrapassado. Hodiernamente, preza-se por<br />
uma juridicidade <strong>dos</strong> princípios, levando-os a uma exegese e<br />
aplicação mais dinâmicas, elásticas e ricas axiologicamente. Isso<br />
não só em relação aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, mas à to<strong>dos</strong> ramos do<br />
conhecimento jurídico.<br />
Daniel Sarmento (2004, p.289) ratifica esse entendimento da<br />
seguinte forma:<br />
Ademais, a compreensão de que o princípio da<br />
dignidade da pessoa humana representa o<br />
centro de gravidade da ordem jurídica, que<br />
legitima, condiciona e modela o direito<br />
positivado, impõe, no nosso entendimento, a<br />
adoção da teoria da eficácia direta <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong>
46 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
<strong>fundamentais</strong> nas relações entre particulares.<br />
De fato, sendo os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
concretizações ou exteriorizações daquele<br />
princípio, é preciso expandir para todas as<br />
esferas da vida humana a incidência <strong>dos</strong><br />
mesmos, pois, do contrário, a proteção à<br />
dignidade da pessoa humana - principal<br />
objetivo de uma ordem constitucional<br />
democrática – permaneceria incompleta.<br />
Condicionar a garantia da dignidade do ser<br />
humano nas suas relações privadas à vontade<br />
do legislador, ou limitar o alcance das<br />
concretizações daquele princípio à<br />
interpretação das cláusulas gerais e conceitos<br />
jurídicos indetermina<strong>dos</strong> do Direito Privado,<br />
significa abrir espaço para que, diante da<br />
omissão do poder legislativo, ou da ausência<br />
de cláusulas gerais apropriadas, fique<br />
irremediavelmente comprometida uma<br />
proteção, que, de acordo com a axiologia<br />
constitucional, deveria ser completa e cabal.<br />
Outras teorias, entretanto, propõem soluções diferenciadas<br />
para a questão da incidência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>,<br />
distanciando-se, pelo menos em parte, das idéias do imediatismo e<br />
mediatismo na aplicação, o que será pormenorizado na seqüência<br />
deste opúsculo.<br />
2.5 Outras Teorias<br />
Na Alemanha, mais recentemente, uma corrente, na qual<br />
figuram autores como Joseph Isensee e Klaus Stern, vem<br />
defendendo a idéia de que a doutrina <strong>dos</strong> “Deveres de Proteção do<br />
Estado” em relação aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> é a melhor solução<br />
para a questão da incidência desses nas relações entre priva<strong>dos</strong>.<br />
Na verdade, a tese aproxima-se por demais da teoria da<br />
eficácia mediata. Assim, do mesmo modo, defendem que as normas<br />
essenciais vinculam apenas, diretamente, o Estado, mantendo a<br />
autonomia privada fora de riscos decorrentes da sujeição <strong>dos</strong><br />
particulares aquelas. Com efeito, caberia ao legislador disciplinar os
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 47<br />
comportamentos <strong>dos</strong> indivíduos através da edição de normas que<br />
evitassem lesões aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>.<br />
Dessa forma, os atos priva<strong>dos</strong> não teriam que se adaptar<br />
aos mandamentos <strong>fundamentais</strong>, mas aos parâmetros cria<strong>dos</strong> pelo<br />
legislador no exercício da função de proteção daqueles <strong>direitos</strong>, o<br />
qual poderia imiscuir nas regras de direito privado alto grau de<br />
valores <strong>fundamentais</strong>, ou optar pela criação de cláusulas gerais.<br />
A teoria <strong>dos</strong> deveres de proteção, na verdade, encontra<br />
substrato central na idéia de que a cabe ao legislador, e não ao<br />
judiciário, conciliar os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> com a autonomia<br />
privada, resguardando a intervenção do último apenas nos casos de<br />
controle de constitucionalidade das normas, quando na atividade<br />
legislativa não fossem protegidas adequadamente as garantias<br />
constitucionais em jogo.<br />
Outra teoria alternativa, a qual rejeita tanto a tese da eficácia<br />
“imediata e direta”, quando a “indireta e mediata”, é a “Teoria da<br />
Convergência Estadista”, desenvolvida por Jügen Schwabe.<br />
Segundo o mesmo, citado por Virgílio (2005), em última análise, o<br />
Estado é sempre responsável pela violação aos <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>, mesmo que tenham origem nas relações privadas.<br />
Para melhor entender imagine um particular que no<br />
exercício de um direito fundamental viole uma garantia essencial de<br />
outro, sendo que a ação praticada pelo primeiro não era disciplinada<br />
por lei infraconstitucional, sendo, portanto, permitida pelo Estado. No<br />
caso, não tendo outros meios de reparar o dano sofrido, em face da<br />
inexistência de norma para a situação, o cidadão que teve seu<br />
direito violado deverá imputar tal violação ao Poder Público, o qual<br />
será responsável, pelo fato de não ter agido,<br />
infraconstitucionalmente, no sentido de protegê-lo.<br />
Destarte, ao particular violador não poderá ser imputada<br />
nenhuma responsabilidade pelo ato que não é legalmente vedado, a<br />
qual deve ser atribuída ao Estado, em virtude de sua omissão de<br />
não criar nenhuma vedação legal contra tal comportamento.<br />
Assim, segundo a teoria de Schwabe, não existe<br />
equiparação entre ato do Estado e ato privado. O comportamento<br />
particular não deixa de ser tratado como tal, porém, a<br />
responsabilidade pelos seus efeitos é entendida como se estatal<br />
fosse. Desta feita, sempre que o Poder Público não exercer sua
48 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
função de legislar, violações de <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> por pessoas<br />
privadas serão por ele permitidas, e somente a este poderá ser<br />
imputada a responsabilidade.<br />
Por último, cumpre aqui tecer algumas consideração acerca<br />
da posição sustentada por Robert Alexy (1997), o qual propôs “Um<br />
Modelo em Três Níveis” 11 , onde tentou conciliar as teorias da<br />
eficácia direta, da aplicação indireta e a doutrina <strong>dos</strong> deveres de<br />
proteção do Estado, citada anteriormente.<br />
Parte-se do raciocínio de que as três propostas reconhecem<br />
que a gradação da eficácia do direito fundamental na relação interprivada<br />
decorre de uma ponderação de interesses.<br />
Assim, encontrar-se-ia no primeiro nível a teoria do efeito<br />
mediato. Os juízes, como órgãos do Estado, encontram-se<br />
obriga<strong>dos</strong> a considerar os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> em suas decisões,<br />
como valores objetivos, quando da interpretação e aplicação das<br />
normas de cunho privado.<br />
No segundo nível, estaria a tese <strong>dos</strong> deveres de proteção.<br />
Nada obstante, quando o judiciário não levasse em conta os <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> na solução <strong>dos</strong> conflitos, estaria assim violando um<br />
direito essencial do cidadão oponível em face do Estado. Enquanto<br />
que em um terceiro nível, posicionar-se-ia a teoria da eficácia<br />
imediata, admitindo a projeção de efeitos diretos sobre as relações<br />
privadas.<br />
Sem embargo, a teoria da eficácia imediata não seria<br />
incompatível com os efeitos emana<strong>dos</strong> pelas demais teses. Admitirse-ia,<br />
apenas, que não obstante a irradiação provenientes dessas<br />
últimas, a vinculação direita também ocorreria, independente de<br />
mediação do legislador, ou de atividade de qualquer outro poder<br />
estatal.<br />
Ademais, a teoria da vinculação direta <strong>dos</strong> efeitos, não<br />
pretenderia tornar absoluta a incidência das normas <strong>fundamentais</strong><br />
na esfera civil, admitindo sempre a necessidade de ponderação<br />
quando se deparasse com a autonomia privada.<br />
11 O nível <strong>dos</strong> deveres do Estado; o nível <strong>dos</strong> deveres frente ao Estado; e o nível da<br />
relação entre sujeitos priva<strong>dos</strong>.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 49<br />
O certo é que a opção por um outro nível depende, em<br />
especial, do material normativo disponível ou não. Dessarte, na<br />
grande maioria <strong>dos</strong> casos, a escolha por efeitos indiretos ou por<br />
uma incidência direta está sujeita à existência de mediação<br />
legislativa anterior, disciplinado a convivência de um direito de<br />
natureza fundamental e o âmbito das relações privadas.
CAPÍTULO III<br />
3.PREVISÃO DA VINCULAÇÃO DOS<br />
PARTICULARES NO SUPREMO TRIBUNAL<br />
FEDERAL<br />
No Recurso Extraordinário 201.819-8-RJ 12 , a segunda turma<br />
do Supremo Tribunal, por votação majoritária, reconheceu a<br />
vinculação direta <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> em face <strong>dos</strong> poderes<br />
priva<strong>dos</strong>.<br />
A lide, cuja o julgamento data de 11 de novembro de 2005,<br />
versou sobre R.E. interposto de acórdão proferido no Tribunal de<br />
Justiça do Rio de Janeiro, pela União Brasileira de Compositores –<br />
UBC, tendo em vista que o decisum da instância de origem<br />
entendeu aplicável o direito fundamental da ampla defesa e do<br />
contraditório, previstos constitucionalmente, aos processos internos<br />
da associação de caráter privada.<br />
Com efeito, tratou-se da exclusão de sócio sem que fossem<br />
respeita<strong>dos</strong> os princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º,<br />
incisos LIV e LV, CF/88), alegando descumprimento de resoluções<br />
internas e a propositura de ações judiciais que acarretavam em<br />
prejuízos morais e financeiros para a entidade, por parte do<br />
associado. Confrontaram-se, assim, à autonomia privada da<br />
associação civil e o direito essencial ao devido processo legal, já<br />
que não foi dada oportunidade de defesa e apresentação de provas<br />
ao acusado.<br />
Melhor explicitando, a entidade associativa, através de seu<br />
órgão deliberativo, designou uma comissão especial para apurar<br />
possíveis infrações estatutárias atribuídas a um de seus sócios.<br />
Referida comissão deixou de observar os princípios constitucionais<br />
da ampla defesa e do contraditório, não ensejando ao excluído<br />
oportunidade de se defender e apresentar provas em seu benefício.<br />
12 Recomenda-se a leitura do inteiro teor <strong>dos</strong> votos <strong>dos</strong> ministros Gilmar Mendes e<br />
Ellen Gracie.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 51<br />
Em sua defesa, a associação alegou a impossibilidade de<br />
aplicação do princípio da ampla defesa ao caso vertente, tendo em<br />
vista não se tratar de órgão da administração pública, mas de<br />
entidade de direito privado, dotada de estatutos e regimentos<br />
próprios.<br />
A relatora, Ministra Ellen Grace, sustentou em seu voto a<br />
prevalência da liberdade que possuem associações privadas para<br />
se organizarem e estabelecer normas de funcionamento entre os<br />
sócios, nos seguintes termos:<br />
A controvérsia envolvendo a exclusão de um<br />
sócio de entidade privada resolve-se a partir<br />
das regras do estatuto social e da legislação<br />
civil em vigor. Não tem, portanto, o aporte<br />
constitucional atribuído pela instância de<br />
origem, sendo totalmente descabida a<br />
invocação do disposto no art. 5º, LV da<br />
Constituição para agasalhar a pretensão do<br />
recorrido de reingressar nos quadros da UBC.<br />
Obedecido o procedimento fixado no estatuto<br />
da recorrente para a exclusão do recorrido,<br />
não há ofensa ao princípio da ampla defesa,<br />
cuja aplicação à hipótese <strong>dos</strong> autos revelou-se<br />
equivocada, o que justifica o provimento do<br />
recurso. (Recurso Extraordinário nº 201.819-8-<br />
RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, Acórdão. p. 581.)<br />
De fato, o estatuto da associação previa em seu artigo 16<br />
que “a diretoria nomeará comissão de inquérito composta de três<br />
sócios, a fim de apurar indícios, atos ou fatos que tornem necessária<br />
a aplicação de penalidades aos sócios que contrariarem os deveres<br />
prescritos no capítulo IV destes Estatutos”.<br />
Sem embargo, a regra estabelecida fora obedecida,<br />
contudo, em sua aplicação afastou-se o princípio da ampla defesa e<br />
do contraditório.<br />
Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes, após se deter em<br />
minuciosas considerações acadêmicas sobre a eficácia <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong> nas relações privadas, diverge da relatora, concluindo
52 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
ser indiscutível a existência de normas essenciais que incidem sobre<br />
relações entre particulares.<br />
Para elaborar sua opinião, aquele trás à lume a necessidade<br />
de se analisar as peculiaridades do caso em questão. Chama<br />
atenção para o fato de que a vedação das garantias constitucionais<br />
de defesa pode acabar por comprometer a própria autonomia<br />
privada, no caso a liberdade de exercício da profissão, logo, a<br />
exclusão imposta como penalidade extrapolaria a liberdade da<br />
associação em definir a quem deve permanecer filiada.<br />
Ademais, conclama o caráter público da atividade<br />
desempenhada pela entidade, concluindo sua decisão desta forma:<br />
...afigura-se-me decisivo no caso em apreço,<br />
tal como destacado, a singular situação da<br />
entidade associativa, integrante do sistema<br />
ECAD, que, como se viu na ADI nº 2.054-DF,<br />
exerce uma atividade essencial na cobrança<br />
de <strong>direitos</strong> autorais, que poderia até configurar<br />
um serviço público por delegação legislativa.<br />
Esse caráter público e geral da atividade<br />
parece decisivo aqui para legitimar a aplicação<br />
direta <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> concernentes<br />
ao devido processo legal, ao contraditório e à<br />
ampla defesa... (Recurso Extraordinário nº<br />
201.819-8-RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes,<br />
Acórdão. p. 612.)<br />
Na mesma linha de raciocínio posicionaram-se os Ministros<br />
Joaquim Barbosa e Celso de Mello. Dentre os fatores levanta<strong>dos</strong> na<br />
formação de tal pensamento apontaram o “rompimento das barreiras<br />
que, até então, separavam o direito público do privado”, “a<br />
constitucionalização do direito civil” e “a necessidade de limitar-se a<br />
autonomia privada em razão das garantias <strong>fundamentais</strong> de<br />
terceiros”. Vale aqui transcrever passagem da decisão proferida pelo<br />
último:<br />
Não é por outro motivo que o novo Código Civil<br />
brasileiro, em alguns de seus preceitos (arts.<br />
57 e 1.085, parágrafo único, p. ex.),
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 53<br />
expressamente proclama a necessária<br />
submissão das entidades civis às normas que<br />
compõem o estatuto constitucional das<br />
liberdades e garantias <strong>fundamentais</strong> (o direito<br />
à plenitude de defesa, dentre eles),<br />
considerada a vinculação imediata <strong>dos</strong><br />
indivíduos, em suas relações de ordem<br />
privada, aos <strong>direitos</strong> básicos assegura<strong>dos</strong> pela<br />
Carta Política. (Recurso Extraordinário nº<br />
201.819-8-RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes,<br />
Acódão. p. 648.)<br />
Bastante expressiva, inclusive, no que se refere às relações<br />
privadas, é a regra esculpida no artigo 57 do Código Civil em<br />
vigência, a qual prevê em sua redação, dada pela Lei nº<br />
11.127/2005, claro propósito de adequar a atividade legislativa aos<br />
preceitos <strong>fundamentais</strong> previstos constitucionalmente sobre a<br />
matéria, quando dispõe que “a exclusão do associado só é<br />
admissível havendo justa causa, assim reconhecida em<br />
procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos<br />
termos previstos no estatuto.”<br />
Destarte, a Turma, por votação majoritária, conheceu e<br />
negou provimento ao recurso, reconhecendo a eficácia <strong>horizontal</strong><br />
<strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> em uma relação jurídico-privada.<br />
Impende salientar que a visão ora exposta no decisum<br />
acima em comento, apontando para uma vinculação <strong>horizontal</strong>, tem<br />
se repetido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como<br />
resta claro de decisões nas quais essa corte superior preferiu a<br />
propósito da incidência <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> essenciais em relações<br />
particulares.<br />
Uma delas refere-se ao Recurso Extraordinário nº 161.243-<br />
DF, no qual o Tribunal decidiu não poder haver discriminação entre<br />
emprega<strong>dos</strong>, com base na autonomia da empresa para conceder<br />
vantagens a nacionais, em desvantagens ao empregado<br />
estrangeiro, na percepção de benefícios constantes no seu estatuto:<br />
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO<br />
DA IGUALDADE. TRABALHADOR<br />
BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA
54 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL<br />
DESTA: APLICABILIDADE AO<br />
TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO<br />
TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967,<br />
art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao<br />
recorrente, por não ser francês, não obstante<br />
trabalhar para a empresa francesa, no Brasil,<br />
não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da<br />
Empresa, que concede vantagens aos<br />
emprega<strong>dos</strong>, cuja aplicabilidade seria restrita<br />
ao empregado de nacionalidade francesa.<br />
Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967,<br />
art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A<br />
discriminação que se baseia em atributo,<br />
qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do<br />
indivíduo, como o sexo, a raça, a<br />
nacionalidade, o credo religioso, etc., é<br />
inconstitucional. Precedente do STF: Ag<br />
110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465.<br />
III. - Fatores que autorizariam a<br />
desigualização não ocorrentes no caso. IV. -<br />
R.E. conhecido e provido." (RE n° 161.243-<br />
DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de<br />
19/12/1997)<br />
Noutro julgado, se discutiu se uma industria de “lingeries”<br />
que exige de suas empregadas que as mesmas, obrigadas por<br />
cláusula constantes nos contratos de trabalho, submetam-se a<br />
revistas intimas, sob a ameaça de dispensa, cometeria crime de<br />
constragimento ilegal:<br />
I. Recurso extraordinário: legitimação da<br />
ofendida - ainda que equivocadamente<br />
arrolada como testemunha -, não habilitada<br />
anteriormente, o que, porém, não a inibe de<br />
interpor o recurso, nos quinze dias seguintes<br />
ao término do prazo do Ministério Público,<br />
(STF, Sums. 210 e 448). II. Constrangimento<br />
ilegal: submissão das operárias de indústria de<br />
vestuário a revista íntima, sob ameaça de<br />
dispensa; sentença condenatória de primeiro<br />
grau fundada na garantia constitucional da
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 55<br />
intimidade e acórdão absolutório do Tribunal<br />
de Justica, porque o constrangimento<br />
questionado a intimidade das trabalhadoras,<br />
embora existente, fora admitido por sua<br />
adesão ao contrato de trabalho: questão que,<br />
malgrado a sua relevância constitucional, já<br />
não pode ser solvida neste processo, dada a<br />
prescrição superveniente, contada desde a<br />
sentença de primeira instância e jamais<br />
interrompida, desde então." (RE n° 160.222-<br />
RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de<br />
01/09/1995)<br />
Vale ainda, finalmente, trazer à baila julgado do STF<br />
referente ao caráter absoluto <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>:<br />
OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS<br />
NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há,<br />
no sistema constitucional brasileiro, <strong>direitos</strong><br />
ou garantias que se revistam de caráter<br />
absoluto, mesmo porque razões de<br />
relevante interesse público ou exigências<br />
derivadas do princípio de convivência das<br />
liberdades legitimam, ainda que<br />
excepcionalmente, a adoção, por parte <strong>dos</strong><br />
órgãos estatais, de medidas restritivas das<br />
prerrogativas individuais ou coletivas, desde<br />
que respeita<strong>dos</strong> os termos estabeleci<strong>dos</strong><br />
pela própria Constituição. O estatuto<br />
constitucional das liberdades públicas, ao<br />
delinear o regime jurídico a que estas estão<br />
sujeitas - e considerado o substrato ético<br />
que as informa - permite que sobre elas<br />
incidam limitações de ordem jurídica,<br />
destinadas, de um lado, a proteger a<br />
integridade do interesse social e, de outro, a<br />
assegurar a coexistência harmoniosa das<br />
liberdades, pois nenhum direito ou garantia<br />
pode ser exercido em detrimento da ordem<br />
pública ou com desrespeito aos <strong>direitos</strong> e<br />
garantias de terceiros. (Mandado de<br />
Segurança nº 23452-RJ, Rel. Min. Celso de
56 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
Mello. Diário da Justiça da União. Brasília,<br />
DF, 12 maio 1999)<br />
É possível concluir, por fim, que, mesmo sem, muitas<br />
vezes, entrar no mérito da discussão acerca da forma de incidência<br />
<strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> de natureza fundamental, o Supremo Tribunal<br />
Federal já possui um histórico capaz de identificar o reconhecimento<br />
da vinculação <strong>dos</strong> particulares àquelas normas, quando em relações<br />
privadas, apontando, inclusive, para uma eficácia direta <strong>dos</strong> efeitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Conforme foi analisado durante todo o desenvolvimento do<br />
presente estudo, o Ordenamento Jurídico compõe-se de uma<br />
unidade, sistematicamente organizada, possuindo como epicentro o<br />
princípio da dignidade da pessoa humana, concretizado nas normas<br />
de cunho fundamental.<br />
Não se pode negar a existência de fatores que exigem a<br />
extensão da proteção outorgada pelos <strong>direitos</strong> essenciais às<br />
relações entre particulares, em face da desigualdade gritante, da<br />
opressão e da injustiça que são inerentes a tais relações.<br />
Se admitirmos, como premissas, que as garantias<br />
<strong>fundamentais</strong> salvaguardam os bens jurídicos mais relevantes da<br />
pessoa humana, não há razão para recusar-se uma proteção<br />
constitucional a estes bens, independente de onde provier a ameaça<br />
ou agressão.<br />
É notável, contudo, ao amadurecer do tempo e das idéias, o<br />
desenvolvimento de uma tendência direcionada para o abandono de<br />
posições radicais, cujo o teor ou negam qualquer espécie de<br />
vinculação <strong>dos</strong> particulares aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, ou defendem<br />
uma sujeição extrema, onde os atores priva<strong>dos</strong> vinculam-se do<br />
mesmo modo que o Estado.<br />
Algumas Constituições, sobretudo aquelas editadas nas<br />
últimas décadas, trazem em seu bojo previsões expressas da<br />
vinculação <strong>dos</strong> particulares aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>. Exemplo<br />
disso é a Carta Maior definitiva da África do Sul (1997), que entrou<br />
em vigor no ano de 1997, trazendo o seguinte preceito esculpido em<br />
seu corpo: “As normas sobre <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> vinculam as<br />
pessoas físicas ou jurídicas, se, e na medida em que, ela seja<br />
aplicável, considerado a natureza do direito e a natureza da<br />
obrigação imposta por ele”.<br />
A tese da não aceitação da eficácia <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>, nas relações do tipo privadas, revela a subsistência<br />
de uma visão historicamente superada desses <strong>direitos</strong> como regras<br />
de cunho públicos subjetivos, voltadas apenas contra o Estado.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 59<br />
Ademais, a visão da Constituição como norma jurídica consagradora<br />
das mais importantes valores sociais exige a vinculação em<br />
comento.<br />
Sem embargo, os efeitos gera<strong>dos</strong> na aplicação das normas<br />
<strong>fundamentais</strong>, ao contrário do que ocorre no âmbito das relações<br />
entre o Estado e os indivíduos, não são e nem podem ser sempre<br />
diretos, ou, do mesmo modo, indiretos, apesar de que, a<br />
jurisprudência brasileira, especialmente do Supremo Tribunal<br />
Federal, vem, em um número muito grande de casos, aplicando<br />
diretamente os <strong>direitos</strong> essenciais nos litígios priva<strong>dos</strong>. Isso se<br />
explica pela tendência generalizadora e absolutizante daquele<br />
tribunal que, não raras vezes, pretende em seus julga<strong>dos</strong>, de uma<br />
só vez, resolver todas as questões referentes a determinado<br />
assunto.<br />
Com feito, não se pode negar a necessidade de delinear<br />
alguns parâmetros objetivos na aplicação de <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
nas relações privadas, com o fim de conferir maior previsibilidade e<br />
reduzir as margens de arbítrio na ponderação judicial. Entretanto,<br />
igualmente, não é recomendável afastar uma análise tópica, voltada<br />
para as peculiaridades de cada caso. A heterogeneidade existente<br />
entre os diferentes espaços priva<strong>dos</strong> impede que se formule um<br />
modelo geral de incidência destes valores em todas as relações<br />
formadas por particulares.<br />
Dentre os parâmetros, merece destaque a necessidade de<br />
sempre atentar-se para o grau de desigualdade fática entre as<br />
partes envolvidas na relação jurídica. Quanto mais a relação for<br />
assimétrica, maior o comprometimento do exercício da autonomia<br />
privada. Por isso, a vinculação aos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> é<br />
diretamente proporcional à disparidade vivente, e em sentido inverso<br />
se dará à tutela da liberdade <strong>dos</strong> particulares.<br />
Outro fator relevante refere-se à natureza questão. Naquelas<br />
onde predominam valores existenciais da pessoa, a proteção à<br />
autonomia deve ser maior. Ao inverso, em casos onde a liberdade<br />
do sujeito de direito encontra-se ligada a fatores de cunho<br />
puramente econômicos ou patrimoniais, mais intensa se exibirá a<br />
tutela ao direito fundamental em contraposição.<br />
Por fim, cumpre não olvidar, que uma democracia plena<br />
nunca será atingida enquanto se limitar à relações públicas,
60 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
encontrando seu fim nas relações formadas entre o Estado, sempre,<br />
e o cidadão. Necessário se faz estende-la para outras instâncias,<br />
onde possa equacionar os litígios priva<strong>dos</strong>, manifestando-se em<br />
demais áreas onde o poder, igualmente, também se manifesta, e<br />
isso passa, indubitavelmente, pela extensão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> de natureza<br />
fundamental a esses ramos.
REFERÊNCIAS<br />
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid:<br />
Centro de Estudios Constitucionales, 1997.<br />
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> na<br />
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ANEXO<br />
RESUMO ESTRUTURADO<br />
1 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS –<br />
sua vinculação às relações privadas.<br />
EFICÁCIA VERTICAL x EFICÁCIA HORIZONTAL (tentativa de<br />
equilibrar a relação com os Direitos Fundamentais)<br />
2 HISTÓRICO<br />
- Surgem como proteção do indivíduo contra eventuais abusos do<br />
poder estatal, tendo em vista a disparidade.<br />
- Existe uma barreira limitadora onde o Estado não pode interferir.<br />
Ex: direito à vida; à liberdade de locomoção.<br />
- Passam a exigir também uma intervenção, sobretudo, para garantir<br />
sua aplicação.<br />
- Inglaterra, século XIII (15.06.1215) – Magna Charta Libertatum,<br />
outorgada pelo rei João Sem-terra: estabelecia garantias como a<br />
liberdade da Igreja, proporcionalidade entre a gravidade do delito e a<br />
sanção e a previsão do devido processo legal.<br />
- Consagram-se jurídico-positivamente em França: Declaração <strong>dos</strong><br />
Direitos do Homem e do Cidadão (26.08.1789) e com as<br />
Constituições de 1791 e 1793.<br />
- Nos séculos seguintes: diplomas em todo o mundo com a previsão<br />
de <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>:<br />
Const. Espanhola de 1812<br />
Const. Portuguesa de 1822<br />
Const. De Weimar
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 67<br />
Até mesmo na Itália fascista houve avanço em relação<br />
aos <strong>direitos</strong> sociais <strong>dos</strong> trabalhadores, quando da<br />
proclamação da Carta do Trabalho de 1927.<br />
- Brasil: caracteriza-se por trazer sempre em suas constituições<br />
extenso rol de <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong>, desde sua primeira<br />
Constituição (Constituição Política Imperial do Brasil de<br />
1824 e subseqüentes).<br />
- Hodiernamente: representam preceitos imprescindíveis a um<br />
Estado Democrático de Direito, possuindo como<br />
características:<br />
- CARACTERÍSTICAS: Inalienáveis<br />
Imprescritíveis<br />
Irrenunciáveis<br />
Históricos<br />
- CONCEITO: “a expressão <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> do homem são<br />
situações jurídicas, objetivas ou subjetivas, definidas no<br />
direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e<br />
liberdade da pessoa humana” (José Afonso da Silva).<br />
“denominação comumente empregada por<br />
constitucionalistas para designar o conjunto de <strong>direitos</strong><br />
da pessoa humana expressa ou implicitamente<br />
reconheci<strong>dos</strong> por uma determinada ordem<br />
constitucional” (Oscar Vilhena Vieira)<br />
“princípios jurídica e positivamente vigentes em uma<br />
ordem constitucional que traduzem a concepção de<br />
dignidade humana de uma sociedade e legitimam o<br />
sistema jurídico estatal” (Ana Maria D`Ávila Lopes)
68 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
- São deste modo normas essenciais, as quais conferem<br />
sistematicidade à Constituição, servindo de parâmetros para todas<br />
as demais regras do Ordenamento jurídico, servindo para minimizar<br />
possíveis conflitos (solução de conflitos) através de uma<br />
interpretação conforme os preceitos <strong>fundamentais</strong> e garantindo o<br />
mínimo necessário ao homem-cidadão digno.<br />
3 PRINCÍPIOS x REGRAS<br />
- No estudo da incidência <strong>dos</strong> Direitos Fundamentais nas Relações<br />
Privadas faz-se necessário distinguir princípios de regras, tendo em<br />
vista a análise <strong>dos</strong> efeitos dessas normas.<br />
- Para isso adoto o conceito de MANDAMENTO DE OTIMIZAÇÃO,<br />
formulado por Robert Alexy:<br />
a diferença reside no fato<br />
de que os princípios<br />
podem variar em seu<br />
grau de aplicação,<br />
devendo ser realiza<strong>dos</strong><br />
“na maior medida do<br />
possível”. Ao passo que<br />
as regras ou são<br />
realizadas por completo<br />
ou não se aplicam. O que<br />
pode se observar através<br />
de:<br />
- CONFLITO ENTRE REGRAS<br />
2 soluções: Cláusula de exceção (ex: alarme de incêndio).<br />
Invalidade de uma das normas (ex: proibição de fumar).
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 69<br />
- COLISÃO ENTRE PRINCÍPIOS<br />
Pode um princípio ceder em relação à aplicação de outro, que em<br />
certas situações prevaleceria de forma inversa; Não sendo<br />
necessário que um desses seja declarado inválido; Bastando para<br />
isso que sejam aplica<strong>dos</strong> na maior medida do possível, sempre<br />
levando-se em conta a ponderação de sua aplicação, baseada nas<br />
realidades fáticas do caso.<br />
4 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO<br />
- Um <strong>dos</strong> principais motivos para o surgimento do debate acerca da<br />
eficácia <strong>horizontal</strong> refere-se à Constitucionalização do Direito.<br />
- Possui fundamento central na idéia de IRRADIAÇÃO DOS<br />
EFEITOS DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (os valores<br />
imiscuí<strong>dos</strong> nas normas essenciais alastram-se pelo ordenamento,<br />
condicionando os demais ramos do direito aos seus preceitos,<br />
sobretudo através da reforma legislativa, adaptando as normas<br />
infraconstitucionais à Constituição, e através de uma interpretação<br />
conforme a constituição.<br />
- Visa tornar a Constituição o centro do Ordenamento Jurídico.<br />
- Dão impulso ao processo o Judiciário (na atividade de aplicação<br />
<strong>dos</strong> Direitos Fundamentais) a doutrina (responsável pela formação<br />
do alicerce teórico para o desenvolvimento do tema), e, sobretudo, o<br />
Legislativo (com a função de adequar a legislação ordinária aos<br />
preceitos constitucionais.<br />
- Pretende reconhecer que nos <strong>direitos</strong> de natureza fundamental<br />
estão conti<strong>dos</strong> os valores mais importantes da comunidade, motivo<br />
pelo qual devem penetrar nos demais ramos do ordenamento<br />
jurídico, modelando suas leis e institutos.
70 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
- Assim, sendo os Direitos Fundamentais os valores mais<br />
importantes de uma sociedade (como norte do direito positivo), deve<br />
existir uma expansão <strong>dos</strong> mesmos para o campo das relações<br />
privadas.<br />
- Atualmente: Dupla Dimensão <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
*Bases <strong>fundamentais</strong> da Ordem Jurídica (orientando a<br />
interpretação e criação das leis infraconstitucionais de acordo com o<br />
previsto nos parâmetros constitucionais)<br />
*Direitos (subjetivos) passíveis de serem reclama<strong>dos</strong> em<br />
juízo.<br />
5 NEGAÇÃO DOS EFEITOS<br />
-STATE ACTION (AÇÃO ESTATAL)<br />
- Nos EUA a questão da eficácia <strong>horizontal</strong> é praticamente negada<br />
de forma incontroversa por parte da doutrina.<br />
- sendo tratado sob o rótulo de “state action”<br />
- contudo, é exatamente baseando-se nessa teoria que a Suprema<br />
Corte vem reconhecendo de alguma forma a aplicação <strong>dos</strong> Direitos<br />
Fundamentais nas relações privadas.<br />
- A doutrina americana mantém a posição de que são os Direitos<br />
Fundamentais aplicáveis somente em face do Estado (só podem ser<br />
viola<strong>dos</strong> por meio de uma Ação Estatal).<br />
- A Suprema Corte, em grande parte <strong>dos</strong> seus julga<strong>dos</strong> acerca do<br />
tema, encontra um meio para igualar o ato privado a uma ação do<br />
estado<br />
- Ex: Caso Shelley v. Kramer<br />
Os proprietários de imóveis de um determinado loteamento<br />
haviam se comprometido contratualmente a não vender seus
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 71<br />
imóveis à pessoa de cor negra. Um deles, desrespeitando a<br />
cláusula, aliena seu imóvel a um comprador de raça negra, vindo os<br />
demais ajuizarem ação em face dele, a qual foi julgada procedente<br />
na jurisdição de 1º grau. A suprema corte, contudo, decidiu pela<br />
nulidade do artigo e pela validade da venda.<br />
Porém, a decisão não se baseou no princípio da igualdade, como<br />
pode parecer em um primeiro momento. Mas, em uma ação estatal<br />
violadora, sendo esta a própria decisão da jurisdição inferior, ou<br />
seja, considerou-se que a discriminação surge com a tutela no juízo<br />
inferior, que ao julgar daquele modo, estaria utilizando seu poder<br />
contra a Constituição.<br />
- Através de manobras jurídicas como estas reconhece-se a<br />
presença da “state action” no caso, para, proteger, a incidência <strong>dos</strong><br />
Direitos Fundamentais.<br />
6 AUTONOMIA PRIVADA<br />
- No Brasil é um <strong>dos</strong> principais óbices ao reconhecimento da<br />
Eficácia Horizontal<br />
- capacidade do indivíduo de determinar seus próprios atos e<br />
comportamentos<br />
- Não caberia ao Estado interferir nas relações entre particulares, os<br />
quais devem ter o poder de auto-regulamentar suas próprias<br />
relações.<br />
- Sendo, portanto, um <strong>dos</strong> componentes essenciais da liberdade, é<br />
um Direito Fundamental.<br />
- Não pode ser exercida de maneira absoluta.<br />
- Possui limitações nos <strong>direitos</strong> <strong>dos</strong> outros.
72 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
- Deve o Estado intervir em certos casos para que esse <strong>direitos</strong><br />
sobrevivam concomitantemente, sob pena de destruição do próprio<br />
Estado Democrático de Direito. Ex: Relações consumeristas;<br />
relações de trabalho.<br />
- Para que a autonomia não se converta em mera liberdade<br />
incondicional, em abusividade, necessário ponderá-la na sua<br />
aplicação, sobretudo quando em conflito com outros <strong>direitos</strong><br />
<strong>fundamentais</strong>, levando em conta o próprio conceito de mandamento<br />
de otimização<br />
- Na verdade o instituto da autonomia privada pressupõe que existe<br />
igualdade entre as partes, as quais estão livres e em pé de<br />
igualdade para negociar. O que ocorre muitas vezes é a verificação<br />
de uma disparidade de poder entre as partes, onde deve então<br />
haver ingerência estatal para equilibrar a relação.<br />
- Quanto maior for a desigualdade, mais intensa a proteção ao<br />
direito fundamental em jogo (Daniel Sarmento).<br />
Reconhecida a necessidade de eficácia <strong>horizontal</strong>, deve-se partir<br />
para como se dará a aplicação.<br />
7 EFICÁCIA MEDIATA<br />
- A influência das normas <strong>fundamentais</strong> nas relações particulares se<br />
daria de forma indireta, através do próprio material normativo<br />
infraconstitucional.<br />
- A Constituição como um sistema de valores, os quais se irradiam<br />
pelo âmbito das relações particulares através de cláusulas gerais e<br />
conceitos indetermina<strong>dos</strong> (portas de entrada) apostos no<br />
ordenamento.<br />
Pontes que ligam o direito privado à<br />
Constituição;
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 73<br />
Estabelecidas pelo legislador, restando ao<br />
judiciário a tarefa de preencher os<br />
conceitos indetermina<strong>dos</strong> cria<strong>dos</strong> pelo<br />
legislador;<br />
Apenas quando houvesse lacunas ou<br />
inexistissem cláusulas gerais ou conceitos<br />
indetermina<strong>dos</strong> é que se permitiria ao<br />
judiciário a aplicação das Normas<br />
Fundamentais de forma direta.<br />
Quando muito, os preceitos constitucionais serviriam como<br />
princípios de interpretação das cláusulas gerais e conceitos<br />
indetermina<strong>dos</strong> suscetíveis de concretização, clarificando-os,<br />
acentuando ou desacentuando determina<strong>dos</strong> elementos do seu<br />
conteúdo, ou, em casos extremos, colmatando as lacunas, mas<br />
sempre dentro do espírito do Direito Privado (Vieira Andrade).<br />
- Trata-se de construção intermediária entre a negação total da<br />
vinculação e a teoria da vinculação direta.<br />
- As normas ingressam no ordenamento como ordem de valores, e<br />
nunca como <strong>direitos</strong> subjetivos, através das portas de entrada<br />
criadas pelo legislador. Ex: artigo 187 do Código Civil.<br />
- Principal argumento para negar a eficácia direta concretiza-se na<br />
idéia de que uma vinculação imediata acabaria por exterminar o<br />
instituto da autonomia privada.<br />
- Contudo, uma forte crítica ao modelo baseia-se na impossibilidade<br />
de existência de cláusulas gerais suficientes para o mínimo de<br />
situações em que se necessitem da aplicação de uma norma<br />
fundamental, o que geraria uma proteção por demais débil.<br />
Condicionar a garantia da dignidade do ser humano nas suas<br />
relações privadas à vontade do legislador, ou limitar o alcance das<br />
concretizações daquele princípio à intervenção das cláusulas gerais
74 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
e conceitos jurídicos indetermina<strong>dos</strong> do Direito Privado, significa<br />
abrir espaço para que, diante da omissão do poder legislativo, ou da<br />
ausência de cláusulas gerais apropriadas, fique irremediavelmente<br />
comprometida uma proteção, que, de acordo com a axiologia<br />
constitucional, deveria ser completa e cabal. (Daniel Sarmento)<br />
8 EFICÁCIA IMEDIATA<br />
- Aplicação em relações privadas da mesma forma como ocorre em<br />
face do Estado (diretamente). Ex: Quando se fala em liberdade de<br />
reunião (CF, art. 5º, XVI) como mera liberdade pública, entende-se<br />
com isso que o Estado não deve restringir a liberdade de reunião<br />
<strong>dos</strong> cidadãos. Mas poderia alguém ou um grupo de pessoas<br />
perturbar uma manifestação pacífica de forma tal que essa<br />
manifestação não tenha como ser exercida de forma plena? Se a<br />
liberdade de reunião for encarada meramente como direito de<br />
defesa contra a ação ilegítima do Estado e se, ao mesmo tempo,<br />
não houver nenhum dispositivo legal que vede a perturbação de<br />
reuniões pacíficas por meio de entes priva<strong>dos</strong>, o caso seria difícil de<br />
ser solucionado sem um recurso direto ao direito fundamental<br />
garantido pelo art. 5º, XVI da Constituição.<br />
-Principal diferença entre imediata x mediata: desnecessidade de<br />
mediação legislativa. Mesmo que não haja norma de direito privado<br />
os <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> aplicam-se ao caso concreto, como direito<br />
subjetivos, sem a necessidade de artimanhas interpretativas, ou<br />
“portas de entradas”.<br />
- Impende realçar que mesmo na aplicação direita não se pode<br />
afastar a necessidade de ponderação (com a autonomia privada), de<br />
acordo com a observância das peculiaridades do caso.<br />
- Mas uma vez o que se deve observar é o postulado da otimização<br />
máxima.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 75<br />
- Não afasta a atividade do legislador, o qual deve ter sempre como<br />
parâmetro os preceitos <strong>fundamentais</strong> na criação das leis. Contudo,<br />
os <strong>direitos</strong> são aplica<strong>dos</strong> mesmo que não tenha ocorrido atividade<br />
legisladora específica, ou até mesmo quando alguma regra<br />
infraconstitucional vá de encontro a um preceito fundamental,<br />
quando deve ser tida por inconstitucional.<br />
- A Constituição Brasileira, inclusive, favorece sobremaneira a<br />
interpretações que aprofundam a incidência direta <strong>dos</strong> Direitos<br />
Fundamentais, tendo em vista se imiscuir em diversos institutos do<br />
direito privado, como a família, a propriedade, com a previsão <strong>dos</strong><br />
<strong>direitos</strong> trabalhistas esculpi<strong>dos</strong> no seu art. 7º, além de seu caráter<br />
eminentemente social.<br />
9 OUTRAS TEORIAS<br />
Deveres de Proteção do Estado<br />
- Apontado na Alemanha como a melhor solução para o caso.<br />
- Aproxima-se por demais da Teoria da eficácia mediata.<br />
-As Normas Fundamentais vinculam diretamente<br />
apenas o Estado.<br />
- Cabe ao legislador criar normas com alto grau de<br />
valores preceitua<strong>dos</strong> pelos <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong><br />
ou cláusulas gerais, para, assim, garantir a<br />
eficácia.<br />
- Ressalvado a intervenção do judiciário apenas<br />
no controle de constitucionalidade, quando na<br />
atividade legislativa não fossem protegi<strong>dos</strong><br />
adequadamente as garantias constitucionais.<br />
TEORIA DA CONVERGÊNCIA ESTADISTA (Jügen Schwabe)<br />
- Em última análise o Estado é sempre responsável pela violação<br />
<strong>dos</strong> Direitos Fundamentais, mesmo que tenha origem em relações<br />
privadas.
76 Edílson Santana Gonçalves Filho<br />
EX: Para melhor entender imagine um particular que no<br />
exercício de um direito fundamental viole uma garantia essencial de<br />
outro, sendo que a ação praticada pelo primeiro não era disciplinada<br />
por lei infraconstitucional, sendo, portanto, permitida pelo Estado. No<br />
caso, não tendo outros meios de reparar o dano sofrido, em face da<br />
inexistência de norma para a situação, o cidadão que teve seu<br />
direito violado deverá imputar tal violação ao Poder Público, o qual<br />
será responsável, pelo fato de não ter agido,<br />
infraconstitucionalmente, no sentido de protegê-lo.<br />
- Ao particular violador não poderá ser imputada nenhuma<br />
responsabilidade, já que seu ato não era legalmente vedado, e<br />
como se sabe, ao particular, tudo que não é vedado expressamente<br />
por lei é permitido.<br />
- A responsabilidade é do Estado que não criou nenhuma (função do<br />
legislativa) vedação legal contra tal comportamento.<br />
- Não há equiparação entre o ato estatal e o privado, como na “State<br />
Action”. A responsabilidade pelo ato particular violador é entendida<br />
como estatal.<br />
- Sempre que o poder público não exercer sua função de legislar,<br />
violações cometidas a <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> por particulares serão<br />
por ele permitidas, e somente aquele poderá ser imputada a<br />
responsabilidade.<br />
UM MODELO EM TRÊS NÍVEIS (Roberty Alexy)<br />
- Tentativa de conciliar as teorias da eficácia direta, indireta e <strong>dos</strong><br />
deveres de proteção do Estado.<br />
- Parte-se do raciocínio de que as três propostas reconhecem que<br />
a gradação da eficácia decorre de uma ponderação de interesses.
A eficácia <strong>horizontal</strong> <strong>dos</strong> <strong>direitos</strong> <strong>fundamentais</strong> - sua vinculação às relações entre particulares 77<br />
- No 1º nível: Teoria do Efeito Mediato, através da aplicação <strong>dos</strong><br />
diretos <strong>fundamentais</strong>.<br />
-No 2º nível: Teoria <strong>dos</strong> Deveres de Proteção.<br />
- No 3º nível: Teoria da Eficácia Mediata.