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Regime disciplinar diferenciado. Solução ou discurso ... - BuscaLegis

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<strong>Regime</strong> <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong>.<br />

Solução <strong>ou</strong> <strong>discurso</strong> paliativo para o problema da execução<br />

penal?<br />

Igor Raphael de Novaes Santos*<br />

Sumário: 1 Introdução – 2 As origens do <strong>Regime</strong> Disciplinar Diferenciado – 3 Da<br />

inconstitucionalidade do <strong>Regime</strong> – 4 O RDD como consectário do Direito Penal do<br />

Inimigo – 5 Da complacência do Judiciário – 6 Considerações Finais.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

A Lei nº. 10.792 de dezembro de 2003, dentre <strong>ou</strong>tras disposições, alter<strong>ou</strong> a Lei de<br />

Execução Penal – Lei nº 7.210/84 para incluir as regras gerais do que o legislador<br />

denomin<strong>ou</strong> <strong>Regime</strong> Disciplinar Diferenciado – RDD. Sem rodeios iniciais, cumpre, de<br />

logo, destacar a criação legislativa:<br />

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e,<br />

quando ocasione subversão da ordem <strong>ou</strong> disciplina internas, sujeita o preso provisório,<br />

<strong>ou</strong> condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong>, com<br />

as seguintes características:<br />

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da<br />

sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena<br />

aplicada;<br />

II - recolhimento em cela individual;<br />

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de<br />

duas horas;<br />

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.<br />

§ 1o O regime <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong> também poderá abrigar presos provisórios<br />

<strong>ou</strong> condenados, nacionais <strong>ou</strong> estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a<br />

segurança do estabelecimento penal <strong>ou</strong> da sociedade.


§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong> o preso<br />

provisório <strong>ou</strong> o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento <strong>ou</strong><br />

participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha <strong>ou</strong> bando." (NR)<br />

Art. 53. .............................................................................<br />

V - inclusão no regime <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong><br />

Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado<br />

do diretor do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho do<br />

juiz competente.<br />

§ 1o A autorização para a inclusão do preso em regime <strong>disciplinar</strong> dependerá de<br />

requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento <strong>ou</strong> <strong>ou</strong>tra<br />

autoridade administrativa.<br />

§ 2o A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime <strong>disciplinar</strong> será<br />

precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo<br />

máximo de quinze dias." (NR)<br />

Art. 58. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a<br />

trinta dias, ressalvada a hipótese do regime <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong>.<br />

Do exame atento dos dispositivos legais, dessume-se, sem maiores ilações acadêmicas,<br />

a disposição do legislador em demonstrar para a sociedade "a retomada pelo Estado do<br />

controle dentro do Sistema Penitenciário" [1], justificação divulgada pelos defensores<br />

do novo modelo de aprisionamento.<br />

Ocorre que, logo após a promulgação da lei, inici<strong>ou</strong>-se intenso debate na d<strong>ou</strong>trina. De<br />

um lado, com base na ofensa aos princípios constitucionais da presunção de inocência,<br />

dignidade da pessoa humana e legalidade, entre <strong>ou</strong>tros, busc<strong>ou</strong>-se afirmar a<br />

incompatibilidade do regime com o sistema de garantias moderno [2]; por <strong>ou</strong>tro, diante<br />

do proclamado avanço da criminalidade organizada e da imprescindível manutenção<br />

da ordem nos estabelecimentos prisionais, rest<strong>ou</strong> firmada a "necessidade do castigo"<br />

[3].<br />

O presente trabalho focaliza justamente essa problemática, <strong>ou</strong> seja, por meio de uma<br />

análise técnica, pretende aferir a adequação do novel instituto ao ordenamento jurídico<br />

nacional, bem como seu real campo de eficácia, a fim de que possa ser considerada a<br />

imprescindibilidade da manutenção de sua previsão legal.<br />

A isto, acrescente-se que os aspectos legislativos do regime serão avaliados à luz dos<br />

preceitos constitucionais vigentes, em um verdadeiro consectário lógico da<br />

investigação científica de sua capacidade instrumental. Isso porque, como é cediço, "as<br />

normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem<br />

com as normas da Constituição Federal" [4].


Por fim, não se olvide que <strong>ou</strong>tra questão crucial a ser tratada, ainda que por via<br />

oblíqua, pela (re)visitação deste tema na academia, revela-se ante a escassa <strong>ou</strong><br />

nenhuma importância atribuída ao estudo da execução penal nas cadeiras das<br />

faculdades de Direito. Prática esta incompreensível, uma vez que, já há algum tempo,<br />

o problema da execução penal (altos índices de reincidência e rebeliões, entre tantos<br />

<strong>ou</strong>tros) exige um tratamento sério e coerente dos profissionais da área.<br />

2 AS ORIGENS DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO<br />

O <strong>Regime</strong> Diferenciado tem origens na Resolução SAP/SP 26 [5] e no <strong>Regime</strong><br />

Disciplinar Especial [6], disciplinas administrativas editadas nos Estados de São Paulo<br />

e do Rio de Janeiro após uma série de rebeliões comandadas por facções criminosas<br />

entre os anos de 2001 e 2002.<br />

Em um esforço histórico, informa o jurista Adeildo Nunes que foi "com base no<br />

crescimento desenfreado do poder de organização e de estrutura física e material das<br />

facções criminosas" [7] que se fez necessário o novel instituto.<br />

O professor Mirabete, por sua vez, narra que o RDD foi concebido para atender às<br />

necessidades de maior segurança nos estabelecimentos penais e de defesa da ordem<br />

pública contra criminosos que, "por serem líderes <strong>ou</strong> integrantes de facções<br />

criminosas, mesmo encarcerados, comandam <strong>ou</strong> participam de quadrilhas <strong>ou</strong><br />

organizações criminosas atuantes no interior do sistema prisional e no meio social" [8].<br />

A respeito do tema, cumpre observar, que na mesma época, partindo de dois<br />

pressupostos propositalmente delineados pela mass media, dava-se início a um<br />

processo de legitimação do <strong>discurso</strong> pela maximização da punição que perdura até<br />

hoje. O primeiro fundado em uma sensação cada vez maior de emergência<br />

caracterizada pela divulgação massiva das ondas de "terror" e o segundo, motivado<br />

pela vinculação dessa emergência às "excessivas" garantias do apenado, em uma<br />

conexão construída entre a impunidade e os dispositivos penais essencialmente<br />

"permissivos" [9].<br />

Foi a partir dessas premissas, que a população brasileira pass<strong>ou</strong> a adotar o <strong>discurso</strong><br />

pelo endurecimento das leis (<strong>ou</strong> do "hard control" como definem os norte-americanos),<br />

o que termin<strong>ou</strong> por motivar a edição da Lei nº. 10.792/03, com o fito de universalizar o<br />

<strong>Regime</strong> Especial no espaço brasileiro e de, às pressas, pôr fim às numerosas medidas<br />

judiciais interpostas no âmbito dos Estados contra as resoluções administrativas que<br />

sustentavam o regime até então.<br />

Deflui-se, assim, que a grande problemática encarada pelo Legislativo<br />

consubstanciava-se no propalado crescimento dos grupos da criminalidade organizada<br />

que iniciavam, então, a demonstração de sua força por meio de ataques às polícias<br />

militar e judiciária e de práticas incendiárias contra ônibus lotados de passageiros.<br />

Entrementes, olvid<strong>ou</strong>-se o legislador que a formação de grupos do "crime organizado"<br />

[10], origina-se da ausência <strong>ou</strong> mesmo da presença inábil do Estado no interior dos


estabelecimentos prisionais. Afinal, seres humanos que são, os internos terminam por<br />

sujeitar-se ao <strong>discurso</strong> político dos líderes das organizações criminosas que, valendo-se<br />

das inúmeras carências ali existentes, tomam para si o controle dos mesmos a fim de<br />

angariar poder e submetê-los aos seus comandos.<br />

Oportuno o relato do professor Márcio Christino [11]:<br />

Essencialmente foi o próprio Estado que ao longo de muitos anos e por omissão<br />

cri<strong>ou</strong> as condições que mudaram o comportamento e a organização daquela amálgama<br />

de pessoas inseridas no Sistema Prisional, a percepção do Estado ausente cristaliz<strong>ou</strong>-se<br />

e foi captado por um grupo que conseguiu se sobrepor aos demais e apropri<strong>ou</strong>-se de<br />

um <strong>discurso</strong> nitidamente político.<br />

Na mesma linha, observ<strong>ou</strong> o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime<br />

Organizado – GAECO do estado de São Paulo [12]:<br />

(...) Muito embora em um primeiro momento descartássemos as condições<br />

prisionais como geradoras de tal organismo, somos forçados a reconhecer que<br />

efetivamente tal circunstância milita como elemento dos mais decisivos para que o<br />

fenômeno (leia-se: as organizações criminosas) se espalhe com rapidez e ganhe<br />

adeptos facilmente.<br />

Desse modo, a bem da verdade, vislumbra-se que as circunstâncias que fomentam os<br />

problemas da execução penal são oriundas, direta <strong>ou</strong> indiretamente, dessa insípida<br />

atuação estatal, o que nos leva à constatação de que o RDD é muito mais, senão<br />

apenas, uma resposta imediatista e supostamente firme aos grupos sociais<br />

hegemônicos [13] que, ao se apresentar como modo de "combate à criminalidade",<br />

sequer tangencia as raízes do problema.<br />

3 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME<br />

Os primeiros passos tomados em torno da inconstitucionalidade do tema sub examine<br />

advêm mesmo antes do ano de 2003, quando se busc<strong>ou</strong> delinear ofensa à Carta Magna<br />

com base na impossibilidade de o Estado dispor, em sede de resolução, sobre matéria<br />

afeta à lei ordinária, in casu, a disciplina referente à falta grave. Levada a tese ao<br />

Judiciário, espanc<strong>ou</strong>-se a pretensão sob o argumento de que os Estados Membros têm<br />

legitimidade para legislar sobre Direito Penitenciário [14].<br />

Ultrapassada a controvérsia, inclusive com a posterior atribuição de força de lei ao<br />

instituto, cumpre observar que ainda são numerosas as ofensas ao texto constitucional.<br />

De logo, no tocante aos §§ 1º e 2º do art. 52 da LEP, ressalte-se a ofensa ao princípio<br />

da taxatividade, colorário que é do princípio da legalidade.<br />

Ora, ao se falar em taxatividade, depreende-se "que as condutas típicas, merecedoras<br />

de punição, devem ser suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar<br />

dúvida por parte do destinatário da norma" [15] excluindo-se, assim, toda<br />

possibilidade de arbítrio no exercício do poder punitivo.


Todavia, ao revés do que determinam d<strong>ou</strong>trina e jurisprudência, os dispositivos<br />

aludidos prevêem como condição para o aperfeiçoamento da proclamada sanção<br />

<strong>disciplinar</strong> termos vagos e imprecisos tais como "presos (...) que apresentem alto risco<br />

para a ordem e a segurança do estabelecimento penal <strong>ou</strong> da sociedade" e "preso sob o<br />

qual recaia fundada suspeita de envolvimento <strong>ou</strong> participação, a qualquer título, em<br />

organizações criminosas, quadrilha <strong>ou</strong> bando", acabando por tornar o <strong>Regime</strong><br />

Disciplinar Diferenciado campo aberto para a prática de arbitrariedades, no que definiu<br />

o professor Cezar Bittenc<strong>ou</strong>rt como prática "intolerável" e legitimadora de uma<br />

"sanção penal cruel e desumana sem tipo penal definido correspondente" [16].<br />

N<strong>ou</strong>tro enfoque, observe-se que a inconstitucionalidade não se limita ao quanto<br />

espraiado até aqui. É que o regramento legal afronta, de uma só vez, além da proibição<br />

da indeterminação do tipo penal, os princípios da presunção de inocência, do devido<br />

processo legal, da vedação de pena cruel e da dignidade da pessoa humana.<br />

A uma, porque a disciplina legal em análise autoriza que mesmo os presos provisórios<br />

(art. 52, caput e parágrafos) possam ser submetidos a este "regime integralmente<br />

fechado plus" [17] circunstância que, aliada à indeterminação típica, pulveriza a<br />

presunção de não culpabilidade ao permitir que o preso cautelar sobre o qual recaiam<br />

"fundadas suspeitas" possa ser submetido ao regime sem que nem mesmo haja sido<br />

proferido juízo meritório definitivo a respeito do ilícito autorizador da prisão.<br />

A duas, porque inobstante a previsão de um prazo de 15 dias para apresentação de<br />

defesa, o procedimento previsto nos §§ 1º e 2º do art. 54 não pode ser visualizado<br />

como contraditório, haja vista que a efetividade no exercício da ampla defesa não se<br />

concretiza em face de argumentos opostos com base em "suspeitas" <strong>ou</strong> em um "alto<br />

risco para a ordem e segurança", mas sim em torno fatos concretamente delineados e<br />

imputados, garantia que, permissa venia, rest<strong>ou</strong> mitigada no RDD.<br />

A três, porque, diante das características delineadas nos incisos do art. 52, a saber:<br />

recolhimento em "em cela individual" (inc. II), com "direito à saída da cela por 2 horas<br />

diárias para banho de sol" (inc. IV), "duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem<br />

prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave da mesma espécie", podendo se<br />

estender "até o limite de um sexto da pena aplicada" (inc. I) é inevitável vislumbrar<br />

ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e, por conseguinte,<br />

ao da vedação da pena cruel.<br />

Nessa senda, Roberto Delmanto [18], em precioso artigo alerta que manter alguém em<br />

solitária por 360 <strong>ou</strong> 720 dias, <strong>ou</strong> por até um sexto da pena - o que, na hipótese de um<br />

homicídio qualificado apenado com pena mínima, poderia chegar a quatro anos - será,<br />

"certamente, transformá-lo em um verdadeiro animal, um doente mental <strong>ou</strong> alguém<br />

muito pior do que já era", mormente porque "estudos mostram que, isolado por mais<br />

de um ano, o preso sofrerá problemas psicológicos e psiquiátricos".<br />

4 O RDD COMO CONSECTÁRIO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO


Inevitável a constatação de que o RDD em muito se aproxima do que o professor<br />

Gunther Jakobs definiu como "Direito Penal do Inimigo".<br />

Em suma, sustenta o jurista alemão que, paralelamente aos cidadãos, existem aqueles<br />

que deveriam ser chamados de inimigos, <strong>ou</strong> seja, "indivíduos cuja atitude na vida<br />

econômica, mediante sua incorporação a uma organização, reflete seu distanciamento,<br />

presumivelmente durad<strong>ou</strong>ro em relação ao Direito" [19], razão por que, em face do<br />

perigo e ameaça que proporcionariam à existência da sociedade, deveria ser instaurada<br />

uma guerra na qual o legislador pudesse se valer de instrumentos como a "otimização<br />

de bens jurídicos em detrimento da tutela à esfera da liberdade" e a formulação de<br />

tipos que se dirigem à "conservação com respeito a fatos futuros e não à sanção de<br />

fatos já perpetrados" [20], o que, permissa venia, implicaria em "uma renúncia às<br />

garantias materiais e processuais do Direito Penal da normalidade" [21].<br />

Posto isto, é de se observar que a disciplina do RDD, notadamente os §§1º e 2º do art.<br />

52 da LEP, enquadra-se justamente nessa punição antecipada de atos que, em si, não<br />

constituem fato típico algum, atribuindo, como visto, aos indivíduos que "a qualquer<br />

título" participem de organizações criminosas, a presunção de culpa.<br />

Vejamos a d<strong>ou</strong>trina do professor Paulo César Busato [22]:<br />

A imposição de uma fórmula de execução da pena diferenciada segundo<br />

características do autor relacionadas com "suspeitas" de sua participação na<br />

criminalidade de massa não é mais que um "Direito Penal do Inimigo, quer dizer, (...) a<br />

adoção do <strong>Regime</strong> Disciplinar Diferenciado representa o tratamento desumano de<br />

determinado tipo de autor de delito, distinguindo evidentemente entre cidadãos e<br />

inimigos".<br />

Reforça esse mesmo entendimento a constatação de que não obstante os mencionados<br />

dispositivos figurarem de modo subsidiário no regime jurídico do RDD, estar se<br />

invertendo, na prática, a regra legal, haja vista que a grande maioria dos internos do<br />

RDD se enquadra não no caput e incisos do art. 52, mas em seus parágrafos, erigindo à<br />

regra o que era exceção, em uma clara intenção de afastar as garantias fundamentais de<br />

indivíduos cuidadosamente selecionados pela ordem legal, in casu, os integrantes das<br />

organizações criminosas.<br />

5 DA COMPLACÊNCIA DO JUDICIÁRIO<br />

À luz dos traços de inconstitucionalidade traçados, observa o professor Andrei<br />

Zenkner Schimidt [23] que estamos passando por uma crise de legalidade na execução<br />

penal, concretizando-se o que ele denomina de "deslegitimação interna". Vale dizer,<br />

inobstante o fato de estar a norma submetida a uma legitimação externa/formal (in<br />

casu, os critérios da taxatividade, presunção de inocência, devido processo legal,<br />

vedação de pena cruel e dignidade da pessoa humana), esta não vem sendo invalidada<br />

mesmo quando constatada sua desobediência, o que torna o Judiciário seu<br />

(des)legitimador.


Nessa mesma linha, observam os professores Salo de Carvalho e Christiane<br />

Russomano Freire que "se o Poder Legislativo derivado padeceu por ter produzido<br />

normas que maximizaram o sistema punitivo (...) esta culpa deve ser dividida, pois<br />

encontr<strong>ou</strong> no Judiciário conveniente cúmplice" [24].<br />

Reflexo disto pode ser encontrado nas lições dos professores Rogério Sanches Cunha e<br />

Thales Tácito [25], os quais, em que pese o reconhecimento da indeterminação típica,<br />

defendem a constitucionalidade do <strong>Regime</strong> Especial:<br />

Pensamos que a medida drástica é constitucional, desde que utilizada como<br />

sanção extrema, excepcional (...) Confessamos a dificuldade de se extrair o real<br />

significado do que seja ‘alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal<br />

<strong>ou</strong> da sociedade’, mostrando-se ampla, margeando a ambigüidade, campo fértil para<br />

arbitrariedade. (...) Tecemos, no entanto, severa crítica à expressão "fundada suspeita"<br />

utilizada pelo inciso em análise.<br />

Contudo, o que não se pode deixar de ter em vista é que, se há irregularidade <strong>ou</strong><br />

imperfeição técnica em qualquer instrumento jurídico há de ser esta combatida, seja<br />

pela atuação profissional, seja pela produção acadêmica, sob pena de, por meio dessas<br />

permissividades, restar legitimado um complexo de normas absolutamente incoerente<br />

com as funções do Direito Penal e com as premissas que a Constituição da República<br />

busc<strong>ou</strong> consolidar, em verdadeira afronta ao sistema garantista que impõe-se ao<br />

Direito Penal Moderno.<br />

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Ferrajoli, com a percuciência que lhe é peculiar, afirma que a história das penas "é<br />

mais horrenda e infamante que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e<br />

talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as<br />

produzidas pelas penas" [26].<br />

Sob a chancela do professor italiano, não é difícil constatar que a técnica estatal de<br />

impor penas mais graves e penosas aos autores de delitos já há algum tempo contribui<br />

para a supressão de garantias em episódios emblemáticos da história mundial. Não é<br />

diferente o caso do RDD.<br />

Como visto, a circunstâncias históricas que motivaram a edição das disciplinas<br />

administrativas e, posteriormente, a promulgação da Lei nº 10.792/2003, aliada aos<br />

traços de inconstitucionalidade demonstrados, resultaram em um instituto ineficaz<br />

quanto ao cumprimento de seu desiderato e incompatível com o que hoje se afirma<br />

como Estado Democrático de Direito.<br />

Ademais, ao proceder desta forma, reproduziu-se, tão-somente, a prática<br />

governamental de atacar os efeitos e não as causas do problema, o que termina por<br />

realçar a absoluta incapacidade de gestão do Executivo.


Entretanto, ainda poder-se-ia perguntar: "O RDD, mesmo ineficaz, não seria, a curto<br />

prazo, medida necessária para o problema que hoje se enfrenta?".<br />

Imperiosa é a resposta negativa. Isso porque, ao nos posicionarmos em sentido<br />

contrário, estaríamos legitimando o <strong>discurso</strong> pela mitigação de garantias individuais<br />

em prol de um combate à criminalidade de caráter meramente paliativo que, ressaltese,<br />

se não for suprimido, certamente resultará em institutos cada vez mais repressores,<br />

aproximando-nos, p<strong>ou</strong>co a p<strong>ou</strong>co, de um Estado Despótico, no qual não se poderá<br />

mais falar em Direito Penal, mas em "mero exercício de poder" [27].<br />

Assim é que, diante das considerações tecidas, pode-se afirmar que o <strong>Regime</strong><br />

Disciplinar Diferenciado destoa das garantias previstas constitucionalmente e se<br />

mostra como mais um [28] dos inúmeros expedientes legislativos editados na leviana<br />

pretensão de solucionar os problemas da criminalidade com atos meramente formais,<br />

resultando, assim, na formação de um corpus legal dotado de caráter paliativo evidente<br />

que, ao se apresentar como instrumento simbólico de segurança, apenas protela o<br />

enfrentamento das causas reais da criminalidade.<br />

Nessa ordem de idéias, a título de conclusão, cabe aqui deixar claro que o RDD ao<br />

buscar solucionar o problema da execução penal impõe objetivos que em muito se<br />

afastam da essência do Direito Penal, razão por que, ao ser-lhe imputada a<br />

responsabilidade pela pacificação dos problemas da execução só poderia levar às<br />

desastrosas conseqüências experimentadas.<br />

Afinal, a ciência penal tem, historicamente, a finalidade de limitar o poder punitivo,<br />

não de expandi-lo, como se vem pretendendo. Desse modo, o manejo da questão deve<br />

partir do enfrentamento de aspectos conjunturais (desemprego, distribuição irregular<br />

de renda, déficit educacional, entre <strong>ou</strong>tros), aliado a uma mudança premente do<br />

<strong>discurso</strong> jurídico, a fim de que, caso mostrem-se mais uma vez omissos o Executivo e<br />

o Legislativo, seja o Judiciário o efetivo fiscalizador dos preceitos normativos<br />

garantidores dos direitos fundamentais inerentes a todo cidadão, sob pena de se<br />

continuar confundindo Direito Penal com arbitrariedade.<br />

NOTAS<br />

1. CHRISTINO, Márcio. Sistema Penitenciário e o RDD. Disponível em:<br />

www.mj.gov.br/Depen/publicacoes/marcio_christino.pdf. p. 2<br />

2. Mencione-se, por todos: MOREIRA, Rômulo de Andrade. Este monstro chamado<br />

RDD. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 23.08.2004. Acesso em<br />

20/05/2007.<br />

3. CUNHA, Rogério Sanches; PÁDUA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. <strong>Regime</strong><br />

Disciplinar Diferenciado. Breves Comentários (RDD). IN: CUNHA, Rogério Sanches.<br />

Leituras Complementares de Execução Penal. Salvador: JusPodivm. 2006. p. 104.<br />

4. DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ed. São<br />

Paulo: Malheiros. 2006.<br />

5. Íntegra da resolução no sítio:<br />

www.mj.gov.br/depen/publicacoes/nagashi_furukawa.pdf.


6. Maiores informações: www.seap.rj.gov.br<br />

7. NUNES, Adeildo. O regime <strong>disciplinar</strong> na prisão. Disponível na internet:<br />

www.ibcrim.org.br.<br />

8. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal. 11ed. São Paulo: Atlas. 2007. p.<br />

149.<br />

9. CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O <strong>Regime</strong> Disciplinar<br />

Diferenciado: Notas Críticas à Reforma do Sistema Punitivo Brasileiro. IN:<br />

CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.<br />

p. 275.<br />

10. Termo utilizado com ressalvas em razão da inexistência de definição do que seja<br />

uma "organização criminosa" em nosso ordenamento jurídico.<br />

11. Ibidem.<br />

12. Ibidem. p.2<br />

13. Vale-se aqui da expressão utilizada pelo professor Juarez Cirino dos Santos em<br />

sua obra.<br />

14. Art 24, I da Constituição da República.<br />

15. NUCCI, Guilherme de S<strong>ou</strong>za. Manual de Direito Penal 2ed. São Paulo: RT. 2006.<br />

p. 72<br />

16. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v1. 10ed. São Paulo:<br />

Saraiva, 2006. p. 16.<br />

17. Expressão cunhada pelo professor Salo de Carvalho.<br />

18. DELMANTO, Roberto. <strong>Regime</strong> <strong>disciplinar</strong> <strong>diferenciado</strong> <strong>ou</strong> pena cruel. Boletim<br />

IBCCRIM. São Paulo, v.11, n.134, p. 5, jan. 2004.<br />

19. JAKOBS, Gunther. Derecho Penal del ciudadano y Derecho Penal del enemigo.<br />

IN: MARTÍN, Luis Gracia. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo. São<br />

Paulo: RT. p. 84<br />

20. ibidem. p. 86<br />

21. MARTÍN, Luis Gracia. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo.<br />

São Paulo: RT. p. 87<br />

22. BUSATO, Paulo César. <strong>Regime</strong> Disciplinar Diferenciado com Produto de um<br />

Direito Penal do Inimigo. IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio<br />

de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 297.<br />

23. SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal.<br />

IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,<br />

2007. p. 31/33.<br />

24. Ibidem. p. 271.<br />

25. Ibidem.p.104<br />

26. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. p. 310<br />

27. Termo consignado por Zaffaroni em seu Manual de Direito Penal Brasileiro.<br />

28. A título exemplificativo basta relembrar a Lei nº 8.072/90, a Nova Lei de Tóxicos<br />

(Lei 11.343/06) e a recente alteração no aumento do percentual para concessão da<br />

progressão de regime as ditos crimes hediondos (Lei 11.464/2007)<br />

REFERÊNCIAS<br />

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v1. 10ed. São Paulo:<br />

Saraiva, 2006. p. 16.


BUSATO, Paulo César. <strong>Regime</strong> Disciplinar Diferenciado com Produto de um Direito<br />

Penal do Inimigo. IN: CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de<br />

Janeiro: Lumen Juris, 2007.<br />

CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O <strong>Regime</strong> Disciplinar<br />

Diferenciado: Notas Críticas à Reforma do Sistema Punitivo Brasileiro. IN:<br />

CARVALHO, Salo. Crítica à Execução Penal. 2ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.<br />

CHRISTINO, Márcio. Sistema Penitenciário e o RDD. Disponível em:<br />

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* Advogado em Salvador (BA). Pós-Graduando em Ciências Criminais pelo<br />

JusPodivm.


Disponível em: Acesso em: 11<br />

nov. 2008.

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