Teologia e arte - Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil
Teologia e arte - Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil
Teologia e arte - Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
SEMINÁRIO TEOLÓGICO DO RIO DE JANEIRO<br />
FACULDADE BATISTA DO RIO DE JANEIRO<br />
CURSO DE BACHAREL EM TEOLOGIA<br />
TEOLOGIA E ARTE<br />
A TERMINANTE PROIBIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE IMAGENS<br />
NAS IGREJAS PÓS-REFORMA<br />
RIO DE JANEIRO<br />
2008
2<br />
TEOLOGIA E ARTE:<br />
A TERMINANTE PROIBIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE IMAGENS<br />
NAS IGREJAS PÓS-REFORMA<br />
SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA DO SUL DO BRASIL<br />
2008
3<br />
TEOLOGIA E ARTE:<br />
A TERMINANTE PROIBIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE IMAGENS<br />
NAS IGREJAS PÓS-REFORMA<br />
_______________________________________________<br />
Autor: Hudson Pereira da Silva<br />
_______________________________________________<br />
Orienta<strong>do</strong>r de Conteú<strong>do</strong>: Profa. Dra. Naara Lúcia de Albuquerque Luna<br />
_______________________________________________<br />
Orienta<strong>do</strong>ra de Forma: Profª. Maria Celeste de Castro Macha<strong>do</strong><br />
Rio de Janeiro – 2008
4<br />
Aos Mestres<br />
Naara Lúcia de Albuquerque Luna<br />
Maria Celeste de Castro Macha<strong>do</strong><br />
Reconhecimento Especial<br />
Ao pastor Carlos César Peff Novaes, escultor<br />
de mensagens, garimpa<strong>do</strong>r de palavras e forte<br />
referência na busca de diálogo entre <strong>Teologia</strong><br />
e Cultura<br />
À Marília, mais <strong>do</strong> que esposa. Companheira,<br />
amiga e parceira.<br />
Ao meu filho Matheus que é a denúncia<br />
constante da Graça de Deus sobre mim.
5<br />
A Arte é necessária para que o homem se torne<br />
capaz de conhecer e mudar o mun<strong>do</strong>. Mas a<br />
<strong>arte</strong> também é necessária<br />
em virtude da magia que lhe é inerente.<br />
(ERNST FISCHER)<br />
Sabemos que a música é odiada pelos diabos,<br />
que a não podem suportar e, segun<strong>do</strong> a<br />
<strong>Teologia</strong>, não há outra <strong>arte</strong> que se lhe possa<br />
igualar. E tanto assim é, que a música pode,<br />
como a <strong>Teologia</strong>, sossegar o ânimo e alegrá-lo.<br />
Por isso, o diabo, causa<strong>do</strong>r de tristes cuida<strong>do</strong>s<br />
e pensamentos inquietos, foge tanto da música<br />
como das palavras da <strong>Teologia</strong>.<br />
(MARTINHO LUTERO)<br />
Para fazer uma obra de <strong>arte</strong> não basta ter<br />
talento, não basta ter força, é preciso também<br />
viver<br />
um grande amor.<br />
(WOLFGANG AMADEUS MOZART)
6<br />
SUMÁRIO<br />
1 INTRODUÇÃO...............................................................................................7<br />
2 O CONTEXTO HISTÓRICO, POLÍTICO E SOCIAL DO SÉCULO<br />
XVI................................................................................................................15<br />
2.1 O HUMANISMO E O NATURALISMO.......................................................15<br />
2.2 O RENACIMENTO NA ITÁLIA...................................................................17<br />
2.3 O RENACIMENTO NA ALEMANHA E NO RESTANTE DA<br />
EUROPA......................................................................................................20<br />
3 A INFLUÊNCIA DO CONCEITO DE IMAGEM SAGRADA........................23<br />
3.1 ARTE E RELIGIÃO....................................................................................24<br />
3.2 ÍDOLO OU IMAGEM?.................................................................................26<br />
3.3 OS ICONOCLASTAS..................................................................................28<br />
4 A REFORMA E AS ARTES NA ALEMANHA NO SÉCULO XVI E<br />
XVII..............................................................................................................31<br />
4.1 AS ARTES VISUAIS SE DESLOCAM.........................................................33<br />
4.2 A PINTURA VOLTA SOB UM NOVO CONCEITO.....................................36<br />
4.3 AS ARTES MUSICAIS SE DESENVOLVEM MAIS DO QUE AS ARTES<br />
PLÁSTICAS.................................................................................................39<br />
5 CONCLUSÃO ............................................................................................43<br />
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................45<br />
RESUMO.....................................................................................................46
7<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
<strong>Teologia</strong> e Arte<br />
O tema escolhi<strong>do</strong> para esta pesquisa tem acompanha<strong>do</strong> as raízes da história<br />
<strong>do</strong> ser humano e, em especial, de to<strong>do</strong> estudante de <strong>Teologia</strong>, ainda que esse não<br />
se dê conta disso.<br />
O ser humano pensa. Pensa para dentro de si, quan<strong>do</strong> deseja responder suas<br />
mais íntimas questões existenciais. Pensa também para fora de si, quan<strong>do</strong> procura<br />
encontrar senti<strong>do</strong> nos elementos da natureza. E ainda pensa para além de si,<br />
quan<strong>do</strong> se dedica a desvendar os misteriosos fenômenos que transcendem ao<br />
palpável e ao inteligível. É para <strong>do</strong>mar o transcendental e confortar a mente<br />
especulativa e fértil que nós precisamos da <strong>Teologia</strong> e das Artes.<br />
Entendemos ser imprescindível numa sociedade caracteristicamente pósmoderna,<br />
mergulhada que vive num mun<strong>do</strong> de imagens, e repleta de estímulos<br />
sensitivos, desvendarmos a trajetória histórica de nossas igrejas no que diz respeito<br />
às leituras artísticas, especialmente, nessa pesquisa, a pictórica.<br />
Para a academia, o valor desse estu<strong>do</strong> se alicerça na interdisciplinaridade das<br />
áreas selecionadas e na valorização <strong>do</strong> indivíduo como um ser multifaceta<strong>do</strong> e ao<br />
mesmo tempo integral.<br />
Em virtude de ter uma área de abrangência tão grande, encontramos certa<br />
dificuldade em delimitar o espaço a ser vasculha<strong>do</strong> academicamente. Isso porque,<br />
em certo senti<strong>do</strong>, o tema se confunde com outras áreas <strong>do</strong> conhecimento humano.<br />
Assim, depois de razoável esforço intelectual, selecionamos o perío<strong>do</strong> histórico<br />
imediatamente posterior à Reforma Protestante, nos mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVI. Com as<br />
teses sugeridas por Lutero e, mais tarde fundamentadas por Calvino,<br />
implementan<strong>do</strong> a não utilização das imagens através <strong>do</strong>s neo-iconoclastas nas<br />
igrejas reformadas houve conseqüências para subjetivação <strong>do</strong> discurso religioso.<br />
Neste trabalho, observamos o gradativo crescimento e investimento artístico<br />
canaliza<strong>do</strong> principalmente para área musical nas igrejas da Alemanha daquele<br />
perío<strong>do</strong>.<br />
O protestantismo, apesar <strong>do</strong> seu caráter de contestação <strong>do</strong> catolicismo e de<br />
suas ocasionais tendências iconoclastas, também apresentou em sua fase inicial,<br />
extraordinárias manifestações de <strong>arte</strong> religiosa que encontraram sua expressão<br />
suprema na pintura. Alguns nomes famosos são os <strong>do</strong>s pintores alemães Albrecht
8<br />
Dürer 1 , Lucas Cranach 2 e Hans Holbein 3 , e o holandês Rembrandt van Rijn 4 . Este<br />
último foi o grande artista <strong>do</strong> discipula<strong>do</strong> cristão diário, fora da Itália que era o centro<br />
das <strong>arte</strong>s. Rembrandt representa a vida de Jesus de um mo<strong>do</strong> que atrai o<br />
especta<strong>do</strong>r para uma auto-identificação com o Cristo. Um exemplo é o seu “A ceia<br />
em Emaús 5 ”. Assim, esses artistas davam expressão às suas novas convicções,<br />
“pregan<strong>do</strong>” com a sua <strong>arte</strong>.<br />
Durante os séculos, nas catacumbas, pequenas capelas ou grandiosas<br />
catedrais, utilizan<strong>do</strong>-se de murais, afrescos, mosaicos, vitrais, telas, marfim,<br />
mármore, metal, teci<strong>do</strong> ou esculturas, o ser humano tem expressa<strong>do</strong> as suas<br />
convicções a respeito <strong>do</strong> ser divino e a sua devoção a Ele.<br />
Pretendemos investigar o processo histórico que resultou na exploração<br />
somente de um <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ser humano – a audição – quan<strong>do</strong> vivemos num<br />
mun<strong>do</strong> onde a visão é supervalorizada e a imagem é <strong>do</strong>tada de enorme potencial<br />
sedutor para comunicar e ensinar o evangelho.<br />
Pretendemos investigar o processo pelo qual a expressividade artística,<br />
durante a Reforma, teve que ser desviada <strong>do</strong> elemento visual para o sonoro. Haveria<br />
uma relação entre banir imagens religiosas e estimular a ilusão, a contextualização e<br />
a poesia <strong>do</strong>s textos canônicos?<br />
Desejamos também verificar se a retirada das imagens das igrejas valorizou o<br />
ser humano e ainda averiguar se existe relação entre a formação da burguesia e a<br />
nova postura em relação às imagens.<br />
Escolhemos esta proposta de pesquisa pela proximidade que temos com a<br />
cadeira de <strong>arte</strong>s visuais. Razoável conhecimento foi acrescenta<strong>do</strong> na formação<br />
acadêmica nesta área. Também catalogamos, ao longo <strong>do</strong> espaço de tempo<br />
dedica<strong>do</strong> a este estu<strong>do</strong>, rico material de História da Arte que pode ser analisa<strong>do</strong> em<br />
paralelo com as informações colhidas nesse curso de <strong>Teologia</strong>, especialmente nas<br />
matérias de História da Igreja, Filosofia e Antropologia.<br />
Nossa intenção primária é fazer uma varredura <strong>do</strong> momento político-histórico<br />
cruzan<strong>do</strong> estas informações com a produção artística da época e <strong>do</strong> local indica<strong>do</strong>s,<br />
a fim de que esses subsídios emitam luz sobre o problema que se instalou com a<br />
proibição da utilização das obras de <strong>arte</strong> nas igrejas da Reforma.<br />
Gostaríamos muitíssimo de ter espaço para aprofundar o estu<strong>do</strong> das técnicas<br />
e <strong>do</strong> êxo<strong>do</strong> de alguns outros artistas europeus influencia<strong>do</strong>s pelas idéias<br />
implantadas na Reforma. No entanto, este desvio de foco, ainda que enriqueça as
9<br />
informações em torno <strong>do</strong> assunto, poderia nos seduzir a pender mais para o ramo<br />
das <strong>arte</strong>s plásticas <strong>do</strong> que para o da <strong>Teologia</strong>. Fica aberto, portanto, esse caminho,<br />
entenden<strong>do</strong> que a pesquisa é deveras importante, mas pode, pela sua profundidade<br />
e riqueza de elementos, desviarem nosso foco de estu<strong>do</strong>.<br />
1. Albrecht Dürer (1471-1528).<br />
Impera<strong>do</strong>r Maximilianus (1518) por Dürer
10<br />
2. Lucas Cranach (1472-1553).<br />
Martinho Lutero e sua esposa (1472-1553) por Lucas Cranach<br />
3. Hans Holbein, o jovem (1497 – 1543).<br />
Retrato de Henry VIII (1540) por Hans Holbein, o Jovem
11<br />
4. Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669).<br />
A Ceia em Emaús (1648) por Rembrandt.<br />
2. O CONTEXTO HISTÓRICO, POLÍTICO E SOCIAL DO SÉCULO XVI<br />
Neste capítulo procuramos descrever a fundamentação filosófica, as tensões<br />
naturais de uma gradativa adaptação aos novos tempos e diferença de<br />
implementação desses novos conceitos em cada grupo social.<br />
O objetivo é reconstruir, ainda que de forma sintetizada, o ambiente e as<br />
relações sociais que serviram de base para as mudanças tão difundidas desse que é<br />
chama<strong>do</strong> de perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Renascimento cultural. Uma ebulição de descobertas, de<br />
novos conhecimentos de adaptações e influências que, sem dúvida, estimulam o<br />
surgimento de grandes ícones da história.<br />
Procuramos separar para efeitos didáticos o Renascimento que ocorre na<br />
Itália o grande centro <strong>do</strong> poder e o restante <strong>do</strong> antigo império que está de<br />
pulverizan<strong>do</strong> e estruturan<strong>do</strong> no que virá a ser os países. Dedicarmos-nos a
12<br />
investigar esse perío<strong>do</strong> nos capacita a ampliar os limites da curiosidade e<br />
fundamentar a certeza de que cada perío<strong>do</strong> histórico tem em si mesmo uma<br />
multifacetada riqueza de detalhes. Essas informações são tão ricas e tão múltiplas<br />
que é imprescindível selecionar a área e a dimensão desse estu<strong>do</strong> monográfico a<br />
fim de atingirmos o foco desta pesquisa.<br />
A divisão de perío<strong>do</strong>s históricos não são tão bem pontua<strong>do</strong>s como os gráficos<br />
de linha histórica apresentam. Não há como definir, mesmo numa leitura superficial,<br />
que a partir de determina<strong>do</strong> episódio se inicia um novo perío<strong>do</strong> que dura até que<br />
ocorre um novo momento. A História é o estu<strong>do</strong> da ação humana ao longo <strong>do</strong> tempo<br />
e esta ação nunca é uni linear. É na superposição e conflitos de conceitos, nas<br />
ações e questionamentos dessas práticas <strong>do</strong> dia a dia que são preserva<strong>do</strong>s alguns<br />
valores, adapta<strong>do</strong>s outros e apresentadas novas propostas de construção de<br />
estruturas sociais. É exatamente nessa dialética e pluralidade que os perío<strong>do</strong>s<br />
históricos se desenvolvem.<br />
A história passaria a ter um caráter muito místico se os 'acasos' não<br />
desempenhassem nenhum papel. Como é natural, os acasos tomam p<strong>arte</strong><br />
<strong>do</strong> curso geral <strong>do</strong> desenvolvimento e são compensa<strong>do</strong>s por outros acasos.<br />
Mas a aceleração ou o retardamento <strong>do</strong> desenvolvimento dependem em<br />
grau considerável, desses acasos, entre os quais figura o 'acaso' relativo ao<br />
caráter <strong>do</strong>s homens que dirigem o movimento em sua fase inicial” (MARX e<br />
ENGELS,1963, p.264)<br />
Assim também acontece com o conceito de Renascença. Arnold Hauser, ao<br />
tratar <strong>do</strong> assunto registra que:<br />
Talvez seja preferível situar a linha divisória crucial entre a primeira e a<br />
segunda metade da Idade Média, ou seja, no final <strong>do</strong> século XII, quan<strong>do</strong> a<br />
economia monetária é ressuscitada, novas cidades surgem e a moderna<br />
classe média adquire pela primeira vez características que a distinguem;<br />
seria inteiramente erra<strong>do</strong> situá-la no século XV, no qual, é verdade, ocorreu<br />
a realização de muitas coisas, mas absolutamente nada começou.<br />
(HAUSER, 1995, p.273).<br />
Segun<strong>do</strong> Hauser, podemos afirmar que foi o nominalismo medieval que<br />
primeiro inspirou a nova direção <strong>do</strong> pensamento chama<strong>do</strong> Renascentista 1 .<br />
São vários os pensa<strong>do</strong>res, rotula<strong>do</strong>s de medievais, que contribuem para a<br />
construção <strong>do</strong> pensamento Renascentista. Santo Anselmo usa a lógica das escolas<br />
1 “Nossa concepção naturalista científica de mun<strong>do</strong> é, por certo, em seus aspectos essenciais, uma<br />
criação da Renascença, mas foi o nominalismo medieval que primeiro inspirou a nova concepção <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> tem origem”. (273)
13<br />
filosóficas para o enfrentamento da especulação teológica no escolasticismo 2 . São<br />
Tomás de Aquino faz a exposição sistemática da fé, apresentada em sua Suma<br />
Teológica, fundamentada na filosofia aristotélica 3 procuran<strong>do</strong> através dessa<br />
sistematização um diálogo com o pensamento científico.<br />
O conhecimento geográfico medieval foi inflaciona<strong>do</strong> de forma marcante em<br />
função das descobertas de Colombo e de outros explora<strong>do</strong>res que ao<br />
desenvolverem novas técnicas de navegação transformaram os oceanos nas novas<br />
estradas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Os horizontes também foram amplia<strong>do</strong>s no campo político. O conceito<br />
medieval de um esta<strong>do</strong> universal dava dan<strong>do</strong> lugar ao novo conceito de nação. Os<br />
esta<strong>do</strong>s logo passaram a se organizar em bases nacionais.<br />
Mesmo hoje, a Renascença ainda é celebrada por ambos os campos como<br />
a grande guerra de libertação da Razão e como trunfo <strong>do</strong> individualismo, ao<br />
passo que, na realidade, a idéia de “livre pesquisa” não foi uma realização<br />
da Renascença, nem a idéia de personalidade absolutamente estranha à<br />
Idade Média; o individualismo da Renascença era novo somente como<br />
programa consciente, como uma arma e um grito de guerra, não como um<br />
fenômeno em si. (HAUSER, 1995, p.275).<br />
“Estas nações-esta<strong>do</strong>s, com poder central e governos fortes, servidas por<br />
uma força militar e civil, eram nacionalistas, opon<strong>do</strong>-se ao <strong>do</strong>mínio de um<br />
governo religioso universal” (CAIRNS, 1995, p.222).<br />
Estabeleceu-se o poder central dessas nações-esta<strong>do</strong> que equipadas de uma<br />
força militar e civil, eram nacionalistas e opunham-se ao <strong>do</strong>mínio de um governo<br />
religioso universal.<br />
A descentralização feudal <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> medieval foi paulatinamente sen<strong>do</strong><br />
substituída por uma Europa fundada sobre esta<strong>do</strong>s-nações centraliza<strong>do</strong>s.<br />
A área econômica é também influenciada pela ebulição desses conceitos<br />
filosóficos e de maneira muito direta pelas novas descobertas. Durante um longo<br />
perío<strong>do</strong> da Idade Média, o grande lega<strong>do</strong> estava na terra e o que se fazia dela,<br />
sen<strong>do</strong>, portanto, o produto <strong>do</strong> solo, a base da riqueza. Com o ressurgimento das<br />
cidades, a abertura de novos merca<strong>do</strong>s e o potencial observa<strong>do</strong> de novas matériasprimas<br />
surgidas das recentes descobertas, o comércio passou a ser a nova<br />
2 O Escolasticismo ou Escolástica é uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente<br />
cristãos. Ela surgiu da necessidade de responder às questões da fé, ensinadas pela Igreja<br />
3 São basicamente três fundamentos <strong>do</strong> sistema da filosofia aristotélica: observação fiel da natureza ,<br />
rigor no méto<strong>do</strong> e unidade <strong>do</strong> conjunto.
14<br />
referência econômica. Uma nova categoria social passa a ser observada. Em<br />
conseqüência disso, a estrutura social se flexibiliza e, em contexto no qual a<br />
expectativa era praticamente nula de ascensão social, surge a possibilidade de subir<br />
de uma classe para outra. Isso poderia ocorrer quase que naturalmente pela força<br />
<strong>do</strong>s negócios e da comercialização, formada especialmente por proprietários livres,<br />
da pequena nobreza da cidade. Renascimento é, portanto, o rótulo desse rico e<br />
vasto movimento de mudanças que tem início na Idade Média. Movimento esse, que<br />
atingiu as camadas urbanas da Europa Ocidental, mais especificamente entre os<br />
séculos XIV e XVI. Essa ebulição cultural caracterizou-se pela tentativa de fazer<br />
ressurgir valores, propostos na cultura greco-romana<br />
O movimento chama<strong>do</strong> Renascentista é um título dessa nova concepção de<br />
vida a<strong>do</strong>tada por uma parcela da sociedade extremamente interessada na<br />
descentralização <strong>do</strong> poder e no questionamento de conceitos místicos impostos sem<br />
a utilização da chamada lógica científica. A concepção de que Deus é o centro <strong>do</strong><br />
universo, teocentrismo, é gradativamente substituída pelo pensamento que<br />
considera que tu<strong>do</strong> deve ser avalia<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> ser humano, antropocentrismo. E o<br />
poder incondicional <strong>do</strong> clero, clericalismo, é substituí<strong>do</strong> paulatinamente pelo<br />
secularismo que é atitude de se afastar <strong>do</strong>s conceitos puramente religiosos.<br />
Apesar de recuperar os valores da cultura clássica, o Renascimento não foi<br />
uma mera reprodução. Embora tenha se utiliza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mesmos conceitos, estes<br />
foram aplica<strong>do</strong>s de uma nova maneira a uma nova realidade. O homem é a medida<br />
de todas as coisas 4 , mas o conceito de ser humano é diferente <strong>do</strong> que se entendia<br />
na Grécia antiga.<br />
Acentua-se igualmente o racionalismo, com a convicção de que tu<strong>do</strong> pode ser<br />
explica<strong>do</strong> pela razão humana e pela ciência. Há recusa, portanto, em acreditar em<br />
qualquer coisa que não tenha si<strong>do</strong> provada. Essa premissa estimula o<br />
experimentalismo e a ciência tão defendi<strong>do</strong>s na Renascença.<br />
4 Protágoras de Abdera (Abdera, 480 a.C. - Sicília, 410 a.C.) foi quem cunhou a frase o homem é a<br />
medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não<br />
são.
15<br />
2.1 O HUMANISMO E O NATURALISMO<br />
O Humanismo 5 se caracteriza pela produção literária no final da Idade Média e<br />
início da Idade Moderna. Essa produção literária é marcada por uma nova visão que<br />
o homem tem de Deus e de si mesmo. Essa nova visão é fruto de uma busca das<br />
chamadas “belas <strong>arte</strong>s”, em particular da literatura. Alia<strong>do</strong> a isso, uma forte mudança<br />
estava ocorren<strong>do</strong> no contexto social com o enfraquecimento da estrutura feudal –<br />
nobres, clero e povo. É justamente nessa época que surge uma nova classe social<br />
fundamentada nos valores <strong>do</strong> burgo 6 , a burguesia. Esses, assim rotula<strong>do</strong>s,<br />
burgueses, não se encaixavam nem na categoria de povo, nem <strong>do</strong>s nobres e nem,<br />
muito menos, <strong>do</strong> clero. Com o surgimento dessa nova classe social foram<br />
aparecen<strong>do</strong> as cidades e muitos homens que moravam no campo se transferiram<br />
para os novos centros comerciais, como conseqüência <strong>do</strong> enfraquecimento <strong>do</strong><br />
regime feudal. Essa nova perspectiva social e econômica estimulou o surgimento de<br />
novas leis, novos costumes, novas referências. Assim, gradativamente foram se<br />
esvazian<strong>do</strong> o “status” e os títulos de nobreza adquiri<strong>do</strong>s em função <strong>do</strong> “status”<br />
econômico.<br />
É também nesse perío<strong>do</strong> que surgem as Grandes Navegações. A invenção da<br />
bússola 7 deu segurança a essas expedições marítimas e incrementou o<br />
desenvolvimento da indústria naval. Assim com o desenvolvimento <strong>do</strong> comércio e a<br />
substituição da economia de subsistência, levan<strong>do</strong> a agricultura a se tornar mais<br />
intensiva e regular, estimulou-se o crescimento urbano, especialmente das cidades<br />
portuárias e o florescimento de pequenas indústrias valorizan<strong>do</strong> o Mercantilismo 8 e<br />
dan<strong>do</strong> ainda mais força à nova burguesia.<br />
Essas novas descobertas unidas ao pensamento humanista, e ao<br />
desenvolvimento econômico acelera<strong>do</strong> trouxeram ao ser humano uma confiança em<br />
sua capacidade, sua vontade de conhecer, de descobrir e <strong>do</strong>minar o mun<strong>do</strong>.<br />
5<br />
Humanismo é o nome que se dá à produção escrita histórica literária <strong>do</strong> final da Idade Média e<br />
início da Moderna , ou seja , p<strong>arte</strong> <strong>do</strong> século XV e início <strong>do</strong> XVI , mais precisamente , de 1434 a 1527<br />
.<br />
6 O termo Burgo remonta à Idade Média, em que era o nome da<strong>do</strong> a cidades que eram protegidas por<br />
fortalezas. Dessa palavra procede o adjetivo "burguês", também usa<strong>do</strong> como substantivo e que<br />
designava o habitante <strong>do</strong> burgo.<br />
7 A Bússola foi introduzida na Europa pelos árabes, e foi Flávio Gioia que introduziu também o<br />
desenho da rosa-<strong>do</strong>s-ventos na bússola.<br />
8 O Mercantilismo é uma etapa inicial <strong>do</strong> que vem a se consolidar como mo<strong>do</strong> de produção capitalista.<br />
A ênfase naquela fase é no aumento da circulação de merca<strong>do</strong>rias, isto é, no comércio.
16<br />
Alguns desses humanistas eram diretamente liga<strong>do</strong>s à igreja, outros eram<br />
artistas ou historia<strong>do</strong>res independentes protegi<strong>do</strong>s por mecenas 9 . Esses estudiosos<br />
desempenharam um grande papel ao divulgarem de forma sistematizada os antigos<br />
filósofos e historia<strong>do</strong>res, ten<strong>do</strong> como referência, especialmente, os clássicos da<br />
Roma antiga e da Grécia. O conceito comum difundi<strong>do</strong> era que o homem deveria ser<br />
o senhor <strong>do</strong> seu próprio destino e, sobretu<strong>do</strong> o homem percebe-se capaz,<br />
importante e agente. A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> “livre arbítrio” passa a ter força e é vista como a<br />
capacidade <strong>do</strong> ser humano decidir sobre sua própria existência e não mais ser<br />
“controla<strong>do</strong>” pela Igreja. É o início de uma transferência conceitual de uma postura<br />
religiosa e mística para uma posição mais próxima <strong>do</strong> racionalismo. To<strong>do</strong> esse<br />
desabrochar cultural e essa ebulição de novas idéias tiveram seu apogeu no<br />
Renascimento. O Humanismo se apresenta como um veículo de transição entre<br />
duas posturas uma mais espiritualista (teocêntrica) e outra mais terrena<br />
(antropocêntrica).<br />
O poder religioso começou a enfraquecer e o Teocentrismo começou<br />
gradativamente a ceder espaço ao Antropocentrismo. O ser humano tomou o lugar<br />
como centro de todas as coisas, antes ocupa<strong>do</strong> por Deus. Ele se vê agora como um<br />
indivíduo completo e não apenas como a “imagem e semelhança” de Deus. Os<br />
artistas começaram a produzir suas obras musicais, poéticas e teatrais<br />
fundamentadas nesses valores. Isso não significa que os conceitos religiosos<br />
estavam acaban<strong>do</strong>, mas o que ocorre é que eles deixam de ser o centro da<br />
produção intelectual e artística. Além disso, os artistas passam a se aproximar mais<br />
da ciência em seu exercício de fazer. Ao se aproximar mais de um diálogo com as<br />
ciências exatas e mergulhar no <strong>do</strong>mínio da perspectiva e da anatomia, a fim de<br />
apreenderem e controlarem as reproduções feitas a ponto de idealizarem e<br />
“divinizarem” suas obras os artistas estavam tornan<strong>do</strong> concreto o desejo de<br />
atingirem um “status” acima <strong>do</strong> ofício de <strong>arte</strong>sãos. Esse interesse pelo conhecimento<br />
clássico antigo estimula os pintores, escultores e arquitetos a buscarem inspiração<br />
na <strong>arte</strong> rotulada de “pagã” da antiguidade.<br />
H. W. Janson afirma que “os humanistas, por grande que fosse o seu<br />
entusiasmo pela filosófica greco-romana, não se tornaram pagãos, antes se<br />
9 Patrocina<strong>do</strong>r generoso, protetor das letras, ciências e <strong>arte</strong>s, ou <strong>do</strong>s artistas e sábios. (Dicionário<br />
Aurélio)
17<br />
esforçavam, de to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s, por harmonizar o lega<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>res antigos<br />
com a mensagem <strong>do</strong> Cristianismo” (1977, p350).<br />
A invenção da imprensa foi outra aliada na difusão dessas novas idéias de<br />
resgate <strong>do</strong>s textos clássicos a ponto <strong>do</strong> grande volume de produção impressa serem<br />
reedições de obras da antiguidade compostas em latim ou em grego. Em um<br />
primeiro momento essas idéias estavam confinadas à aristocracia intelectual. Foi<br />
somente com o advento da Reforma Protestante que a imprensa começou a ser<br />
usada como um meio de comunicação com as massas para divulgar as idéias<br />
teológicas e filosóficas nascidas nesse novo cenário.<br />
O Naturalismo teve seu crescimento em várias áreas <strong>do</strong> conhecimento<br />
humano. Nas <strong>arte</strong>s plásticas ele diz respeito à representação realista da natureza.<br />
Na Filosofia ela é uma “<strong>do</strong>utrina segun<strong>do</strong> a qual to<strong>do</strong> conjunto de fenômenos pode<br />
ser reduzi<strong>do</strong>, por um encadeamento mecânico, a fatos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> concreto material<br />
sem a intervenção de nenhuma causa transcendente.” Como afirma Hauser, citan<strong>do</strong><br />
Burckhardt 10 ao comentar o naturalismo Renascentista afirma: o fato<br />
verdadeiramente notável a respeito da Renascença não era o artista ter se torna<strong>do</strong><br />
um observa<strong>do</strong>r da natureza, mas o de ter-se a obra de <strong>arte</strong> converti<strong>do</strong> num “estu<strong>do</strong><br />
da natureza”. (Burckhardt, apud Hauser, 1996, p. 274).<br />
Arnold Hauser ainda afirma que “toda realidade se converteu num substrato de<br />
uma experiência artística, e a própria vida numa obra de <strong>arte</strong>, na qual to<strong>do</strong> e<br />
qualquer elemento era meramente um estímulo <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s” (1994, p.284).<br />
2.2 O RENASCIMENTO NA ITÁLIA<br />
Florença, na Itália, é sem dúvida “o berço <strong>do</strong> Renascimento artístico”. O<br />
orgulho patriótico e o apelo à grandeza implícitos na imagem de Florença como a<br />
“Nova Atenas” é notório. Isso fruto de uma forte ameaça à independência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />
florentino promovida pelo Duque de Milão que tentava <strong>do</strong>minar toda Itália. Florença<br />
venceu a batalha e proclamou-se a “defensora da liberdade contra a tirania sem<br />
10 Jacob Burckhardt foi historia<strong>do</strong>r e crítico de <strong>arte</strong> suíço. A partir de 1844 é professor de História<br />
Geral e de História de Arte da Universidade de Basileia, posto que aban<strong>do</strong>na entre 1855 e 1858 para<br />
ensinar História de Arte na Escola Politécnica de Zurique e, em algumas épocas, para visitar a Itália.
18<br />
freios”. Novamente os humanistas aparecem em cena, com escritos tais como<br />
“Louvor da cidade de Florença”(1420-3) de Leonar<strong>do</strong> Bruni, Eles vieram pôr de novo<br />
em foco o ideal de um renascimento clássico de uma república livre. E, como afirma<br />
Janson “as <strong>arte</strong>s foram tidas por essenciais para o ressurgimento da alma florentina”<br />
(1977, p.379). Não foi por acaso que a primeira declaração explícita a reclamar para<br />
as <strong>arte</strong>s visuais a honra de serem incluídas entre as chamadas <strong>arte</strong>s liberais se deu<br />
justamente em Florença, através de Filipo Villani 11 (c.1400). Era fundamental que<br />
isso fosse feito, porque desde Platão as “<strong>arte</strong>s liberais” eram compostas das<br />
disciplinas relacionadas entre as necessárias à formação de um homem culto.<br />
Fazem p<strong>arte</strong> da relação de matérias científicas a Matemática, incluin<strong>do</strong> a teoria<br />
musical, a Dialética, a Gramática, a Retórica e a Filosofia. As belas <strong>arte</strong>s estavam<br />
inseridas nos trabalhos manuais e lhes faltava uma base teórica, tornan<strong>do</strong>-se assim<br />
inferiores dentro desse conceito. Desde que o artista passou a ser incluí<strong>do</strong> nesse clã<br />
de intelectuais, tornou-se fundamental definir seu vocabulário artístico e as matérias<br />
de seu estu<strong>do</strong>, agora eleva<strong>do</strong> a categoria acadêmica.<br />
Escultores como Donatello, Ghiberti, Andrés Del Verrocchio, e pintores como<br />
Masaccio, Fra Angélico, Giovanni Bellini, além <strong>do</strong>s arquitetos Filippo Brunelleschi,<br />
Michelozzo e Leone Battista Alberti, sem dúvida, prepararam o terreno para o áureo<br />
perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Renascimento pleno da Itália. O trabalho deles e a fundamentação<br />
humanista asseguraram ao artista a visão social de um gênio soberano, um<br />
intelectual, um cientista experimentan<strong>do</strong> a natureza e o <strong>do</strong>mínio das técnicas de<br />
representação e não apenas a de um artífice dedica<strong>do</strong>. O conceito planta<strong>do</strong> nessa<br />
época foi extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s escritos <strong>do</strong> próprio Platão – “o espírito assenhoran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />
poeta e levan<strong>do</strong>-o a compor um delírio divino”.<br />
A Itália vivia esse momento exuberante nas <strong>arte</strong>s em função <strong>do</strong>s<br />
extraordinários recursos financeiros. Justo Gonzáles registra que “os nobres e os<br />
grandes burgueses tinham meios para suprir o custo de uma <strong>arte</strong> tão dedicada, não<br />
para glória <strong>do</strong> céu, mas <strong>do</strong> mecenas, que custeava o empreendimento. A <strong>arte</strong>,<br />
portanto, até então produzida quase exclusivamente para o ensino religioso e para a<br />
glória de Deus, passou a se ocupar <strong>do</strong> esplen<strong>do</strong>r humano.”(1978, p. 146).<br />
Personagens com Miguel Ângelo e Leonar<strong>do</strong> da Vinci, ilustram com muita<br />
clareza e maestria essa busca <strong>do</strong> ideal renascentista <strong>do</strong> “homem universal”. Obras<br />
11 Filippo Villani humanista florentino (1325-1405)
19<br />
como a p<strong>arte</strong> <strong>do</strong> afresco 12 da Capela Sistina que retrata a criação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
produzidas por Miguel Ângelo, e esculturas como as de Moisés 13 e David 14 não<br />
deixam dúvida <strong>do</strong> conceito de genialidade mascarada como inspiração divina que na<br />
realidade enche de poder a idéia desse novo homem que <strong>do</strong>mina a técnica da<br />
representação e a ciência em prol <strong>do</strong> seu próprio desejo. Essa visão <strong>do</strong> ser humano<br />
e da sua capacidade sem limites é encarnada e exemplificada na figura de Leonar<strong>do</strong><br />
da Vinci. “Poucas são as atividades humanas em que esse gênio da Renascença<br />
não interveio ou tentou mostrar sua maestria”, diz Gonzáles. Leonar<strong>do</strong> pode ser<br />
cataloga<strong>do</strong> como pesquisa<strong>do</strong>r nas áreas que se relacionam à Matemática,<br />
Engenharia, Botânica, Química, Anatomia, Escultura, Pintura entre outras. Sobre a<br />
aglutinação entre <strong>arte</strong> e ciência em Leonar<strong>do</strong> da Vinci Janson, diz o seguinte:<br />
Na idade avançada, Leonar<strong>do</strong> dedicou-se cada vez mais aos seus<br />
interesses científicos. A <strong>arte</strong> e a ciência, recordemo-lo, foram unidas pela<br />
primeira vez na descoberta feita por Brunelleschi, da perspectiva<br />
sistemática; a obra de Leonar<strong>do</strong> representa o auge desta tendência. O<br />
artista em seu entender, não só devia conhecer as regras da perspectiva,<br />
mas também todas as leis da Natureza, sen<strong>do</strong> os olhos o instrumento<br />
perfeito para adquirir tal conhecimento. (JANSON, 1977, P.422)<br />
As <strong>arte</strong>s produzidas obtinham prestígio e patrocínio junto aos mecenas. O<br />
papa Julio II foi, como a maioria <strong>do</strong>s outros papas da época, um grande patrocina<strong>do</strong>r<br />
das <strong>arte</strong>s. Foi durante seu pontifica<strong>do</strong> que Miguel Ângelo terminou de pintar o teto<br />
da Capela Sistina, e Rafael decorou o Vaticano com seus afrescos. Julio II se<br />
ocupava também da guerra e de habilidade política. Ele, além de reorganizar a<br />
guarda papal, assumiu o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> exército lançan<strong>do</strong>-se ao campo de batalha<br />
com o propósito de conquistar a unidade italiana. Por fim, com sua morte em 1513,<br />
recebeu o título de “O Terrível”. Seu sucessor foi igualmente um apaixona<strong>do</strong> pelas<br />
<strong>arte</strong>s, que procurou consolidar as conquistas de Julio II. João de Médicis, ou Leão X,<br />
como decidiu ser nomea<strong>do</strong>, era filho de Lourenço, o Magnífico, de Florença. A<br />
paixão pelas <strong>arte</strong>s se sobrepôs a to<strong>do</strong> interesse religioso ou sacer<strong>do</strong>tal. Em nome da<br />
realização de seu sonho de completar a Basílica de São Pedro estava disposto a<br />
qualquer coisa.<br />
12 Afresco é a técnica de pintura aplicada em paredes e tetos que consiste em pintar sobre camada<br />
de revestimento recente, fresco, de nata de cal, gesso ou outro material apropria<strong>do</strong> ainda úmi<strong>do</strong>, de<br />
mo<strong>do</strong> que possibilite o embebimento da tinta.<br />
13 Miguel Ângelo. Moisés. 1513-5. Mármore: altura <strong>do</strong> corpo 2.35m. Pietro in Vincoli, Roma<br />
14 Miguel Ângelo. Davi
20<br />
2.3 O RENASCIMENTO NA ALEMANHA E NO RESTANTE DA EUROPA<br />
As concepções estéticas Italianas de valorização da cultura greco-romana<br />
começaram a atingir outros países europeus. Foi comum o conflito, também nas<br />
<strong>arte</strong>s, entre as tendências nacionais e as novas formas artísticas vindas da Itália.<br />
Esse embate se cristalizou com a “nacionalização” das idéias italianas. Essa<br />
releitura da proposta italiana pode ser observada através das <strong>arte</strong>s. O que ocorre é<br />
na realidade, o impacto <strong>do</strong> pensamento humanista. A emancipação da classe média<br />
urbana acontece primeiro ali na Itália e se espalha por toda Europa. A livre<br />
competição está em oposição clara ao ideal corporativista da Idade Média.<br />
Na Alemanha, o nacionalismo toma força junto com o ambiente da Reforma.<br />
Esse processo de nacionalização se afinou com a ideologia da Reforma, que<br />
influenciou até a força tradicional encontrada na região. Numa Alemanha carente de<br />
organização política o nacionalismo se estabeleceu com o fim de criar e intensificar<br />
o poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Nas expressões visuais Albercht Dürer, de origem húngara,<br />
estu<strong>do</strong>u na Itália e chegou a ser nomea<strong>do</strong> pintor oficial da corte de Maximiliano I da<br />
Germânia. Vale pontuar o espírito humanista de Dürer e seus estu<strong>do</strong>s nas áreas da<br />
matemática, geografia, arquitetura e geometriase destaca como o primeiro artista<br />
alemão produzir <strong>arte</strong> como uma representação fiel da realidade. Ele ficou conheci<strong>do</strong><br />
na história da pintura como retratista de personalidades políticas financeiras e<br />
intelectuais da Inglaterra e <strong>do</strong>s países baixos. Dentre as figuras retratadas por Dürer<br />
é bastante conheci<strong>do</strong> o de Erasmo de Rotterdam. Dürer considerava que “<strong>arte</strong><br />
deverá basear-se na ciência - em particular na matemática, como a mais exacta,<br />
lógica e impressionantemente construtiva das ciências” 15<br />
Erasmo de Rotterdã 16 encarnou a erudição humanista na Literatura. Encontrou<br />
e publicou em 1505 as Adnotationes in Novum Testamentum (Notas sobre o Novo<br />
Testamento) de Lorenzo Valla, começan<strong>do</strong> assim a ciência da crítica <strong>do</strong>s textos<br />
15 Albrecht Dürer, expressou as suas teorias da proporção no livro "The Four Books on Human<br />
Proportions", publica<strong>do</strong> em 1528.<br />
16 Desiderius Erasmus Roterodamus, conheci<strong>do</strong> como Erasmo de Rotterdam, teólogo e um<br />
humanista holandês.
21<br />
bíblicos. Sua grande obra foi Elogio da Loucura 17 .Quan<strong>do</strong> esteve na Inglaterra,<br />
preparou uma nova tradução <strong>do</strong> Novo Testamento para o latim e essa edição<br />
publicada por Froben de Basiléia em 1516, foi a base da maioria <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<br />
científicos da Bíblia durante o perío<strong>do</strong> da Reforma.<br />
A marca registrada <strong>do</strong>s artistas <strong>do</strong> norte da Europa era, sem dúvida, o incrível<br />
talento para retratar a natureza nos mínimos detalhes. Hubert van Eyck e a nova<br />
<strong>arte</strong> de pintar retratos.<br />
Dentre os artistas relacionamos ainda Bosch, e Brugel. O primeiro foi autor de<br />
imagens grotescas, meio humanas, meio animais denuncian<strong>do</strong> que a sociedade<br />
estava se corrompen<strong>do</strong> para o mal. Bruegel da região <strong>do</strong>s Flandres revela a visão<br />
humanista e os ideais renascentistas de fragmentação política, retratan<strong>do</strong> as<br />
pequenas aldeias que ainda conservavam a estrutura medieval.<br />
Na Suíça de Zwínglio, o humanismo e o senti<strong>do</strong> patriótico se transformaram<br />
num programa de reforma religiosa, intelectual e política. Podemos observar a<br />
construção ideológica de tamanha magnitude que o que estava ocorren<strong>do</strong> na<br />
Alemanha com Lutero era o mesmo vinha ocorren<strong>do</strong> na Suíça com a mensagem de<br />
Zwinglio. Este reforma<strong>do</strong>r também questionava o poder de Roma fundamentan<strong>do</strong>-se<br />
nas Escrituras. Mas, existia também uma grande diferença entre a proposta original<br />
de Lutero e a de Zwinglio. O alemão propunha manter todas as práticas tradicionais<br />
da igreja, exceto aquelas que divergissem das Escrituras, enquanto o suíço<br />
sustentava a idéia que tu<strong>do</strong> que não fosse encontra<strong>do</strong> de forma explícita nas<br />
escrituras deveria ser elimina<strong>do</strong> das práticas da Igreja. Exemplo disso era o discurso<br />
de eliminar o uso de órgãos musicais na igreja pois se tratava de um instrumento<br />
que não estava relaciona<strong>do</strong> na Bíblia.<br />
Observamos que os princípios <strong>do</strong> Renascimento floresceram também fora da<br />
Itália e que esse movimento que se desenvolvia na busca da cientificidade se<br />
espalhou por toda a Europa, ainda que ficassem marcadas as peculiaridades de<br />
cada contexto em que esses princípios eram implanta<strong>do</strong>s. A busca de elementos<br />
17 O Elogio da Loucura é considera<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s mais influentes livros da civilização ocidental e um <strong>do</strong>s<br />
catalisa<strong>do</strong>res da Reforma Protestante. O livro começa com um aspecto satírico <strong>do</strong>s abusos<br />
supersticiosos da <strong>do</strong>utrina e das práticas corruptas da Igreja Católica Romana.
22<br />
científicos estimulou os estudantes de teologia à leitura <strong>do</strong>s textos bíblicos sob o<br />
prisma da investigação e a gradual separação entre o que era a tradição e o que se<br />
apresentava texto bíblico.<br />
5. Jan van Eyck (1395-1441)<br />
O Casal Arnolfini, (1434) por Van Eyck
23<br />
3. A INFLUÊNCIA DO CONCEITO DE IMAGEM SAGRADA<br />
Entendemos que a busca de um conceito <strong>do</strong> que seria a imagem sagrada<br />
durante o perío<strong>do</strong> imediatamente após o estopim da Reforma pode nos ajudar a<br />
perceber as fontes e o interesse político desse conceito impregna<strong>do</strong> na estrutura<br />
social. Para que essa busca ocorresse de forma sistematizada optamos pelo<br />
caminho da definição etimológica <strong>do</strong>s termos que circulam em torno dessa chamada<br />
imagem sagrada. Procuramos marcar a diferença entre <strong>arte</strong> sacra de <strong>arte</strong> religiosa e<br />
í<strong>do</strong>lo de imagem. Igualmente desafia<strong>do</strong>r é desvendar a raiz da readaptação de uma<br />
postura avessa aos ícones. A trilha percorrida na busca da construção desse cenário<br />
que envolvia o perío<strong>do</strong> da Reforma Protestante foi retornar ao grande cisma da<br />
igreja ainda no perío<strong>do</strong> Bizantino, especificamente no início da chamada Idade<br />
Média.<br />
A definição etimológica da palavra imagem, ou representação visual de um<br />
objeto tem raiz no latim imago, no grego antigo corresponde ao termo ei<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>nde<br />
surge o conceito de idéia. A imagem pode ser vista como uma projeção da mente ou<br />
simplesmente uma valorização <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. O que se observa é que ao longo da<br />
história esse conceito de imagem vai se adaptan<strong>do</strong> à leitura que o ser humano faz<br />
de seu contexto social, político ou religioso.<br />
É necessário fazer distinção entre <strong>arte</strong> religiosa e <strong>arte</strong> sacra. Esse balizamento<br />
se faz necessário porque a diferença não está ligada ao material, à técnica utilizada<br />
ou a inspiração de cada uma delas. A <strong>arte</strong> sacra de acor<strong>do</strong> com Janson, é aquela<br />
<strong>arte</strong> que segue uma temática religiosa e tem o destino litúrgico, isto é, aquela que se<br />
ocupa com o culto, a vida ritualística <strong>do</strong>s fiéis. Já a <strong>arte</strong> religiosa é aquela que<br />
denuncia a vida devocional <strong>do</strong> artista. A virtude da religião tende a produzir no ser<br />
humano atitudes de submissão, fé, esperança e a<strong>do</strong>ração. A <strong>arte</strong> religiosa se<br />
subordina à religião. Toda <strong>arte</strong> sacra é necessariamente religiosa, mas nem toda<br />
<strong>arte</strong> religiosa é sacra.<br />
A Igreja se considerou sempre, com razão, como árbitro das<br />
mesmas, discernin<strong>do</strong>, entre as obras <strong>do</strong>s artistas aquelas que<br />
estavam de acor<strong>do</strong> com a fé, a piedade e as leis religiosas<br />
tradicionais e que eram consideradas aptas para o uso sagra<strong>do</strong><br />
(Concílio Vaticano II, Const.. Sacrosanctum Concilium, 122)
24<br />
A imagem sagrada está ligada à liturgia e por isso mesmo ela é subordinada<br />
aos responsáveis eclesiásticos que cuidam da cerimônia. A imagem sagrada está<br />
ligada ao poder e a normas eclesiásticas.<br />
3.1 ARTE E RELIGIÃO<br />
Desde os primórdios da história <strong>do</strong> ser humano a religião, a ciência e a <strong>arte</strong><br />
eram combinadas, fundidas numa forma primitiva de magia. O <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> seu<br />
entorno através da representação fez <strong>do</strong> artista um sábio. Assim também ocorre em<br />
relação ao conceito <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> que diferencia o sacer<strong>do</strong>te <strong>do</strong> ser humano comum,<br />
num saber metafísico.<br />
Já vimos que foi especialmente no perío<strong>do</strong> da Renascença, que o artista<br />
reconquista o status de cientista. Ao mesmo tempo devemos recordar que ainda<br />
vigora durante esse perío<strong>do</strong>, com muita força, o conceito teocêntrico, sob o poder<br />
inquestionável da igreja. A <strong>arte</strong> na Idade Média está a serviço da religião, enquanto<br />
instituição é paulatinamente deslocada, na Renascença, para o indivíduo. Tanto <strong>arte</strong><br />
quanto religião surgem como reflexo da estrutura de uma sociedade. Arte e religião<br />
estão historicamente condicionadas ao seu tempo, exercen<strong>do</strong> sobre os<br />
observa<strong>do</strong>res de seu tempo o fascínio como que se estivessem diante de um<br />
espelho a refletir o que já se conhece.<br />
toda <strong>arte</strong> é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em<br />
consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças<br />
de uma situação histórica peculiar (FISCHER, 1981, p.17)<br />
Nesse perío<strong>do</strong> foi acentuada a importância <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da natureza e essa<br />
busca estimulou o espírito de observação <strong>do</strong> ser humano. A idéia de que o ser<br />
humano não estava apenas numa posição passiva em relação ao mun<strong>do</strong>, mas ele<br />
era o agente, o catalisa<strong>do</strong>r das possibilidades nesse mun<strong>do</strong>. Foi mergulha<strong>do</strong> nesse<br />
contexto que os artistas, agora cientistas, elaboram os cânones, o estu<strong>do</strong> da<br />
proporção, a geometria, a iniciação nas pesquisas anatômicas e a cientificidade da<br />
busca das cores. Não raro podemos observar o artista renascentista optan<strong>do</strong> por se<br />
intitular como cientista, e se utilizan<strong>do</strong> das habilidades de seu ofício para aprofundar
25<br />
seus estu<strong>do</strong>s. Hauser inclusive afirma que a concepção científica da <strong>arte</strong> é iniciada<br />
com Leon Battista Alberti. Ele é o primeiro a expressar a idéia de que a matemática<br />
é a base comum entre a <strong>arte</strong> e as ciências. E Alberti afirma isto porque observa que<br />
a teoria das proporções e perspectivas são matérias comuns tanto à matemática<br />
quanto Às <strong>arte</strong>s. “To<strong>do</strong> desenvolvimento artístico passa a ser p<strong>arte</strong> <strong>do</strong> processo total<br />
de racionalização. O irracional deixa de causar qualquer impressão mais<br />
profunda.” 18<br />
Mas, mesmo com toda a promoção que havia recebi<strong>do</strong> como intelectuais, o<br />
artista no início <strong>do</strong> Renascimento ainda era visto como gente <strong>do</strong> povo. Eles são<br />
considera<strong>do</strong>s como <strong>arte</strong>sãos de um grau superior, e realmente suas origens sociais<br />
não os fazem em nada diferentes <strong>do</strong>s pequenos burgueses. Eles recebem os nomes<br />
das ocupações de seus pais, <strong>do</strong>s lugares onde nasceram, ou de seus mestres.<br />
Basta observar os exemplos como Leonar<strong>do</strong> que carrega a origem de usa família.<br />
Vin<strong>do</strong> de Vinci, por isso Leonar<strong>do</strong> da Vinci. Ou Dürer que é uma corruptela da<br />
palavra alemã Tür que significa porta. Este era o sobrenome original <strong>do</strong> pai de<br />
Dürer. O ateliê <strong>do</strong> artista, no começo da Renascença ainda preserva o espírito<br />
comunitário da pequena oficina. É na busca de criar uma identidade e produzir uma<br />
<strong>arte</strong> mais próxima da ciência que o individualismo humanista aparece através da<br />
obra assinada. Vale pontuar que essa ascensão <strong>do</strong> artista ocorreu durante um longo<br />
processo de consolidação <strong>do</strong>s novos valores e da aproximação dessa categoria<br />
como os humanistas, especialmente os poetas.<br />
O mecenato 19 se tornou fundamental para o desenvolvimento da produção<br />
intelectual e artística durante o Renascimento. Esse saber até então estava<br />
exclusivamente vincula<strong>do</strong> a Igreja. Esse investimento nas <strong>arte</strong>s e na ciência visava<br />
ao crescimento <strong>do</strong> prestígio social desses mecenas e contribuía quase que<br />
naturalmente, na divulgação de atividades de sua empresa ou na crescente<br />
respeitabilidade de seu nome. Figuras ligadas especialmente à burguesia se<br />
utilizavam desse artifício, mas alguns nobres e mesmo a Igreja, na figura <strong>do</strong> Papa<br />
Júlio II podem ser relaciona<strong>do</strong>s entre os financia<strong>do</strong>res dessa produção intelectual<br />
artística. A nova estrutura social sentia a pressão das altas taxas alfandegárias de<br />
18 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura, p285.<br />
19 O mecenato é a prática de proteção aos escritores e artistas.
26<br />
um feu<strong>do</strong> para o outro, de um comércio crescente que se opunha a igreja que<br />
proibia a usura e o lucro e ainda da exigência de impostos e dízimos.<br />
As encomendas artísticas feitas pela classe média consistiam<br />
principalmente, de início, em presentes para igrejas e mosteiros; somente<br />
em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século foram encomendadas em maior quantidade obras<br />
seculares e obras destinadas a fins particulares. (HAUSER,1995, p.309)<br />
Esses presentes eram um méto<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> para garantir fama eterna e tentar<br />
apaziguar o conflito entre a devoção e o comércio. Essa mentalidade individualista<br />
também contribuiu para alicerçar palavras como prestígio, poder, ciência no meio<br />
eclesiástico. Hauser pontua que os humanistas e escritores foram acolhi<strong>do</strong>s na<br />
Cúria com escritores e secretários. Nicolau V (1447-1455) transformou a pequena<br />
biblioteca pontifícia em uma grande coleção de manuscritos gregos e latinos. Iniciou<br />
a reconstrução da Basílica de São Pedro, que tinha sofri<strong>do</strong> um grande incêndio. Pio<br />
II (1468-1464) foi o elegante <strong>do</strong>uto humanista e historia<strong>do</strong>r. O Papa Sixto IV (1471-<br />
1484) decidiu transformar a monarquia papal em grande potência italiana. Man<strong>do</strong>u<br />
construir a Capela Magna, que acabou levou seu nome, Sixtina, contratan<strong>do</strong> os mais<br />
proeminentes artistas de sua época. Julio II (1464-1471) contratou Bramante para o<br />
primeiro projeto da Basílica de São Pedro e ainda Leão X (1513-1521) protegeu<br />
ardentemente as <strong>arte</strong>s.<br />
3.2 ÍDOLO OU IMAGEM?<br />
Usan<strong>do</strong> a definição <strong>do</strong> dicionário Aurélio, imagem é um reflexo de algo real,<br />
como diante de um espelho. Essa representação <strong>do</strong> real pode ser obtida por meio<br />
de vários tipos de suporte, como papel no desenho, um mármore para uma escultura<br />
ou ainda um retábulo 20 de madeira para a gravura. Imagem é, portanto a reprodução<br />
física de algo concreto ou de uma idéia.<br />
Um í<strong>do</strong>lo é uma figura bi ou mesmo tridimensional que representa uma<br />
divindade e que é objeto de a<strong>do</strong>ração. Í<strong>do</strong>lo pode ainda ser encarna<strong>do</strong> em uma<br />
pessoa. Imagem então não é o mesmo que í<strong>do</strong>lo.<br />
20 Um retábulo é uma construção normalmente de madeira, mas pode ser encontra<strong>do</strong> de outro<br />
material, com lavores, que fica por trás e/ou acima <strong>do</strong> altar e que, normalmente apresenta ou mais<br />
painéis pinta<strong>do</strong>s.
27<br />
Nesse trabalho focamos atenção nas imagens. Nas representações artísticas<br />
sem o objetivo de ser objeto de a<strong>do</strong>ração. Imagens muito mais próximas ao a<strong>do</strong>rno,<br />
à função didática e ao embelezamento <strong>do</strong> lugar onde estão inseridas.<br />
Esta questão da diferença entre imagem e í<strong>do</strong>lo é amplamente discutida nos<br />
ambientes eclesiásticos. A interpretação que é apresentada denuncia com facilidade<br />
a linha <strong>do</strong>utrinária a que ela se subordina. A polêmica está na definição de imagem.<br />
To<strong>do</strong>s concordam que a i<strong>do</strong>latria consiste em apontar que determinada divindade<br />
está em uma imagem tridimensional, por exemplo: esta escultura substitui o próprio<br />
Deus. Há fácil concordância na leitura de Habacuque 2.19: “Ai daquele que diz ao<br />
pau: Acorda, e a pedra muda: Desperta”. O choque é encontra<strong>do</strong> na interpretação<br />
<strong>do</strong> que venha a ser imagem.<br />
O mesmo livro <strong>do</strong> Antigo Testamento, que proíbe que sejam feitas imagens,<br />
orienta que esculturas de querubins de ouro, portanto imagens sejam colocadas<br />
sobre a Arca da Aliança. Em vários textos observamos orientações quanto à<br />
utilização de imagens como palmas, flores, leões e entalhes artísticos 21 .<br />
Nesse contexto Renascentista em que a estrutura social era distanciada da<br />
instrução e da leitura, e que as escolas estavam sob o <strong>do</strong>mínio da igreja, o que se<br />
proliferava normalmente eram analfabetos. Dentro dessa realidade as imagens<br />
vistas pelos fieis, por dentro e por fora da igreja, é que transmitiam e repetiam as<br />
lições da teologia cristã. A <strong>arte</strong> <strong>do</strong> fim da idade média está bem próxima da<br />
propaganda e da educação. Essa produção de imagens não guardava em si mesma<br />
nenhuma realidade concreta <strong>do</strong> cotidiano daquelas pessoas. A <strong>arte</strong> assumia uma<br />
função didática, subordinada a uma política clerical, que apresentava uma<br />
perspectiva escatológica e uma esperança de solução num mun<strong>do</strong> por vir. Assim<br />
essas imagens serviam de inspiração e convite para a entrada num mun<strong>do</strong> espiritual<br />
e perfeito e uma desilusão e desligamento da realidade que cercava aquela<br />
sociedade.<br />
As representações pictóricas anteriores ao perío<strong>do</strong> renascentista não<br />
valorizavam a perspectiva o volume e a cor. De uma maneira geral além de usa<br />
temática religiosa eram figuras assumidamente bidimensionais. Essas imagens eram<br />
21 Ex 25, 17-22; 1Rs 6, 23-28; 1 Rs 6, 29s; Nm 21, 4-9; 1Rs 7, 23-26; 1 Rs 7, 28s
28<br />
construídas com grandes blocos chapa<strong>do</strong>s conta o fun<strong>do</strong>, quase suprimin<strong>do</strong> a idéia<br />
de espaço. Na última fase <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval surge o gótico, <strong>arte</strong> de raiz<br />
germânica que influencia o restante da Europa. Janson registra que o Gótico<br />
apresenta uma leveza e uma delicadeza, um reencontro com a técnica e a cor. A<br />
rigidez inicial começa a ser quebrada e estimula à implementação popular desses<br />
novos conceitos.<br />
O Renascimento é um momento rico na proliferação de imagens. Se imagem é<br />
um reflexo de algo real, se uma imagem procura ser o a representação como que<br />
diante de um espelho, e a referência da produção deste perío<strong>do</strong> é o ser humano,<br />
então o que vemos é o ser humano como o centro dessa expressão. O ser humano<br />
é o centro de todas as coisas. O antropocentrismo é o conceito que fundamenta e<br />
percorre a construção cultural daqueles tempos, imagem é um reflexo de algo real,<br />
como diante de um espelho. Mesmo que o tema das pinturas esteja se<br />
desprenden<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ensinamentos apenas da igreja, ela vai se utilizar de cânones<br />
humanos, de modelos humanos e de proporções mais próximas ao ser humano para<br />
se comunicar com essa sociedade humanista. É natural que as pinturas tenham<br />
causa<strong>do</strong> tanto espanto e tanta admiração para classe em ascensão e também para<br />
o clero. A busca de uma precisão fotográfica nas pinturas trazia os elementos<br />
bíblicos para a realidade <strong>do</strong> dia a dia, dignificava ainda mais os conceitos<br />
humanistas ao mesmo tempo em que incomodavam os mais radicais simpatizantes<br />
da iconoclastia.<br />
3.3 OS ICONOCLASTAS<br />
Iconoclastia é a junção de duas palavras derivadas <strong>do</strong> grego eikon (ícone), e<br />
klastein (quebrar). Ao longo da história é o nome assumi<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina que se<br />
opõem ao culto de ícones religiosos e outras obras, geralmente por motivos políticos<br />
ou hermenêuticos. Esses princípios de interpretação são firma<strong>do</strong>s<br />
fundamentalmente no texto de Êxo<strong>do</strong> 20. 4 e 5<br />
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma <strong>do</strong> que há<br />
em cima <strong>do</strong>s céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.<br />
Não as a<strong>do</strong>rarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor teu Deus,
29<br />
Deus zeloso, que visito a iniqüidade <strong>do</strong>s pais nos filhos até a terceira<br />
geração daqueles que me aborrecem.<br />
Mas, o princípio hermenêutico da interpretação oficial é seleciona<strong>do</strong> em<br />
consonância, ou pelo menos o mais próximo possível <strong>do</strong>s interesses defini<strong>do</strong>s pelo<br />
poder vigente.<br />
Na opinião <strong>do</strong>s primeiros tempos da Idade Média, a <strong>arte</strong> seria supérflua se<br />
to<strong>do</strong>s pudessem ler e acompanhar uma cadeira abstrata de raciocínios; a<br />
<strong>arte</strong> era vista originalmente como uma simples concessão feita às massas<br />
ignorantes que tão facilmente são influenciadas por impressões <strong>do</strong>s<br />
senti<strong>do</strong>s. (HAUSER, 1995, p.129)<br />
São vários os movimentos <strong>do</strong> iconoclasmo ao longo da história da igreja. O<br />
mais difundi<strong>do</strong> deles foi o que ocorreu durante o Império Bizantino, quan<strong>do</strong> a<br />
produção e a disseminação e o culto das imagens foram proibi<strong>do</strong>s. Nesse perío<strong>do</strong><br />
os adeptos da iconofilia e iconolatria foram persegui<strong>do</strong>s e executa<strong>do</strong>s, além de<br />
terem suas obras queimadas em praça pública.<br />
Hauser afirma que o iconolasmo não foi realmente um movimento inimigo da<br />
<strong>arte</strong>. Esse movimento não perseguia a <strong>arte</strong> como tal, mas apenas um gênero<br />
especial de <strong>arte</strong>. A luta se contornou apenas contra as imagens de conteú<strong>do</strong><br />
religioso ligadas à liturgia. A destruição e perseguição iconosclasta era portanto<br />
focada na <strong>arte</strong> sacra, e mesmo no perío<strong>do</strong> de maior perseguição a pintura<br />
decorativa ainda era tolerada. O autor ainda continua desenvolven<strong>do</strong> o raciocínio<br />
provan<strong>do</strong> que a campanha de perseguição tinha como pano de fun<strong>do</strong> não apenas as<br />
questões ligadas à religiosidade, mas a força real era política.<br />
O estilo bizantino só foi capaz de firmar-se onde havia a <strong>arte</strong> cristã, porque a<br />
igreja Católica <strong>do</strong> Ocidente desejava chamar a si o poder que o impera<strong>do</strong>r já<br />
tinha em Bizâncio. O objetivo artístico era o mesmo em ambos os casos: essa<br />
<strong>arte</strong> devia ser a expressão de uma autoridade absoluta, de grandeza sobrehumana<br />
e mística inacessibilidade. (HAUSER, 1995, p.135)
30<br />
Clemente de Alexandria 22 , no segun<strong>do</strong> século, já sublinhava que o segun<strong>do</strong><br />
mandamento é dirigi<strong>do</strong> contra as representações pictóricas de toda e qualquer<br />
espécie e que esse é o critério da Igreja primitiva e <strong>do</strong>s patriarcas. No século III<br />
Eusébio descrevia a representação pictórica de Cristo como idólatra e contrária às<br />
Escrituras.<br />
Durante o papa<strong>do</strong> de Leão III o problema da proibição <strong>do</strong> culto às imagens<br />
tomou força em função de pelo menos três frentes: Um lampejo <strong>do</strong> desejo de uma<br />
“reforma”, através de um grupo rotula<strong>do</strong> de paulicianos que questionava o controle<br />
sacramental da igreja a penetração militar <strong>do</strong>s árabes em áreas <strong>do</strong> antigo Império,<br />
esses vitoriosos guerreiros que não tinham em sua religião o culto às imagens<br />
naturalmente influenciavam os “modismos” em terras Bizantinas e finalmente a luta<br />
que os impera<strong>do</strong>res estavam travan<strong>do</strong> com o crescente poder <strong>do</strong> monasticismo. 23<br />
Os mosteiros converteram-se em locais de peregrinação aonde o povo acudia<br />
com suas dúvidas, preocupações e pedi<strong>do</strong>s, e também aonde levavam seus<br />
presentes e oferendas. A maior atração <strong>do</strong>s mosteiros eram os ícones<br />
milagrosos. Possuir uma imagem famosa de um santo tornou-se fonte<br />
inexaurível de fama e de riqueza para um mosteiro. (HAUSER, 1995, p.142)<br />
O iconoclasmo foi decreta<strong>do</strong> como <strong>do</strong>utrina oficial pelo impera<strong>do</strong>r Leão III, em<br />
730. Essa atitude retirou <strong>do</strong>s mosteiros seus meios mais eficazes de propaganda. O<br />
historia<strong>do</strong>r Hauser afirma que Leão III tinha planos de fundar um poderoso exército,<br />
mas os jovens estavam optan<strong>do</strong> por uma vida monástica. Isso não apenas<br />
enfraquecia a força militar, mas também a agricultura e o serviço civil. Reproduzin<strong>do</strong><br />
Hauser, o iconoclasmo não foi de mo<strong>do</strong> nenhum um movimento puritano, platônico<br />
ou dirigi<strong>do</strong> conta a <strong>arte</strong>, mas se utilizou da <strong>arte</strong> para deslocar ou perpetuar o poder.<br />
A aplicação tenaz ocorreu com Constantino V, Contantino VI e Leão V. A<br />
polêmica foi tão acirrada que provocou a guerra civil que só terminou em 843 com a<br />
restauração <strong>do</strong> culto aos ícones, em Constantinopla, na catedral de Santa Sofia. Os<br />
bispos orto<strong>do</strong>xos reagiram a favor das imagens até que o papa Gregório II condenou<br />
a iconoclastia de Leão III. O impera<strong>do</strong>r prosseguiu sua luta contra as imagens e<br />
22 Tito Flávio Clemente, ou Clemente de Alexandria foi um, escritor grego, teólogo. Defensor da<br />
rebelião contra a opressão, que levou ao conceito de guerra justa. Clemente é considera<strong>do</strong> o<br />
funda<strong>do</strong>r da escola de teologia de Alexandria.<br />
23 Monasticismo é a prática da abdicação da vida em sociedade em prol da prática religiosa. Esses<br />
indivíduos ascetas são classifica<strong>do</strong>s como monges, podem ser referi<strong>do</strong>s como monásticos.
31<br />
seus fabricantes. No Concílio Romano de 731, o Papa Gregório III condenou os<br />
profana<strong>do</strong>res de imagens e confirmou seu culto.<br />
A Reforma Protestante, sobretu<strong>do</strong> a de Calvino, representa uma nova ruptura<br />
iconoclasta que combaterá a estética da imagem e a extensão <strong>do</strong> sacrilégio <strong>do</strong> culto<br />
aos santos. O iconoclasmo novamente se ocupa das destruições de estátuas e <strong>do</strong>s<br />
quadros. Este iconoclasmo, no meio protestante, no senti<strong>do</strong> de “destruição de<br />
imagens”, diminui de intensidade com o culto às Escrituras e também à música<br />
A posição de Lutero quanto às representações religiosas pode ser identificada<br />
através de um trecho de uma carta intitulada: Outra vez os profetas divinos das<br />
imagens e sacramentos diz:<br />
É melhor que se pinte nas paredes, como Deus criou o mun<strong>do</strong>, como Noé<br />
construiu a Arca, e outras belas histórias, <strong>do</strong> que quaisquer outras<br />
mundanamente vulgares. Ah, quisera Deus que soubesse convencer os<br />
senhores e ricos para que pintassem a Bíblia inteira por dentro e por fora<br />
das casas, para que to<strong>do</strong>s pudessem ver. Isso seria uma obra fielmente<br />
cristã. 24<br />
24 Obs.: Cit. por DREBES, In A educação na dimensão <strong>do</strong> Reino de Deus desvelada em obra pictórica<br />
de Lucas Cranach, p.46. Dissertação inédita de Mestra<strong>do</strong>, São Leopol<strong>do</strong>, EST, 2000.
32<br />
4. A REFORMA E AS ARTES NA ALEMANHA NOS SÉCULOS XVI E XVII<br />
A Reforma ocorreu, como já vimos, num momento de grande efervescência<br />
artística, mesmo fora da Itália que era sem dúvida o maior centro cultural desse<br />
perío<strong>do</strong>. O berço <strong>do</strong> Renascimento se fixou basicamente nas cidades italianas que<br />
viviam <strong>do</strong> comércio. Cidades como Veneza, Pisa, Gênova e principalmente<br />
Florença.<br />
Figuras indiscutivelmente marcantes em toda história Ocidental como Leonar<strong>do</strong><br />
Da Vinci, Botticeli, Michelangelo Buonarroti e Rafael circulavam pela região da Itália<br />
em alguns casos, no mesmo perío<strong>do</strong>. A <strong>arte</strong>, especialmente nessa época, podia ser<br />
vista em quase todas as igrejas, edifícios públicos, praças e até mesmo nas casas<br />
<strong>do</strong>s grandes burgueses.<br />
Nosso desafio neste capítulo é desvendar a forma que os artistas vão encontrar<br />
para adaptarem os antigos conceitos vin<strong>do</strong>s da Itália diante da proposta das noventa<br />
e cinco teses de Lutero afixadas na porta da igreja <strong>do</strong> Castelo de Wittenberg.<br />
Após a Reforma, não só deixaram de existir quaisquer bons católicos que<br />
não estivessem convenci<strong>do</strong>s da corrupção da Igreja e da necessidade de<br />
sua purificação, mas a influência das idéias originadas na Alemanha foi<br />
muito mais profunda: as pessoas adquiriram consciência da perda da<br />
natureza essencialmente espiritual, da qualidade transcendente e<br />
intransigente da fé cristã, e sentiam um desejo insaciável de que essas<br />
características fossem recuperadas. (HAUSER, 1995, p.384)<br />
A igreja católica alemã era muito rica. Seus maiores <strong>do</strong>mínios se localizavam as<br />
margens <strong>do</strong> Reno e eram chamadas de “caminho <strong>do</strong> clero”, eram estes territórios<br />
alemães que mais impostos rendiam à igreja. A igreja para o senso comum era<br />
sempre associada a tu<strong>do</strong> que estivesse liga<strong>do</strong> ao feudalismo. Por isso, a burguesia<br />
via a igreja como inimiga. Os anseios dessa burguesia eram por uma igreja que<br />
cobrasse menos impostos, que gastasse menos e principalmente, que não<br />
condenasse a prática de ganhar dinheiro.<br />
Os pobres identificavam a igreja com o sistema que os oprimia: o feudalismo.<br />
Isto porque ela representava mais um senhor feudal, a quem deviam muitos<br />
impostos.
33<br />
4.1 AS ARTES VISUAIS SE DESLOCAM<br />
Num ambiente conturba<strong>do</strong>, repleto de conflitos e lutas a <strong>arte</strong> e a ciência da<br />
Renascença ficam em segun<strong>do</strong> plano. As questões políticas e religiosas estavam<br />
em evidência sob o prisma <strong>do</strong> humanismo. Ainda não há nesse primeiro momento<br />
da Reforma resistência à utilização das obras de <strong>arte</strong> nem mesmo a <strong>arte</strong> sacra.<br />
Tanto é assim que Lutero mantinha amizade com Lucas Cranach. Esse artista que<br />
ficou conheci<strong>do</strong> como artista da Reforma, pinta o retrato de Lutero, de seus pais, da<br />
esposa e <strong>do</strong>s primeiros reforma<strong>do</strong>res da Alemanha como Filipe Melanchton. Além<br />
disso, Cranach produziu várias cenas religiosas que ilustram a primeira edição <strong>do</strong><br />
Novo Testamento traduzi<strong>do</strong> por Lutero em 1522.<br />
6. Lucas Cranach (1472-1553)<br />
As lutas religiosas e políticas poderiam ter ti<strong>do</strong> conseqüências catastróficas<br />
para a <strong>arte</strong>, mas, surpreendentemente, tal não aconteceu. É verdade que a<br />
pintura nos Países Baixos <strong>do</strong> século XVI não igualou em brilho a <strong>do</strong> século<br />
XV, nem produziu precursores <strong>do</strong> Renascimento comparáveis a Dürer e<br />
Holbein. (JANSON, 1995, p.476)<br />
Retrato de Melanchton por Lucas Cranach Lucas – Wittenberg<br />
O deslocamento das <strong>arte</strong>s, especialmente na Alemanha, vai ocorren<strong>do</strong> na<br />
direção da imprensa. Paulo Heirtlinger em seu livro Tipografia, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
primórdios da imprensa, afirma que a rápida reprodução de textos com tipos móveis<br />
leva<strong>do</strong>s ao prelo foi um acelera<strong>do</strong>r decisivo para a difusão das idéias <strong>do</strong>
34<br />
Humanismo, da Renascença, e também <strong>do</strong> Protestantismo, ajudan<strong>do</strong> a decretar o<br />
fim <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> de Idade Média e <strong>do</strong> monopólio cultural da Igreja Católica.<br />
Heirtlinger acrescenta que panfletos e bulas utiliza<strong>do</strong>s para a propaganda religiosa<br />
foram os primeiros meios de comunicação de massas que saíram <strong>do</strong>s prelos de<br />
Gutenberg e seus sócios. Essas bulas ajudaram a disceminar os princípios basilares<br />
da Reforma como somente a escritura, somente Cristo, somente a graça, somente a<br />
fé e gloria destinada somente a Deus. Mas logo apareceria a primeira obra-mestra<br />
tipográfica, o primeiro livro impresso na Europa - A Bíblia. Uma série de outros livros<br />
foi publicada como os textos de Tomás de Aquino, um manual de cirurgia, trata<strong>do</strong>s<br />
de Matemática e Geometria, além da Vulgata. Além de tu<strong>do</strong> isso, fortalecia-se o<br />
ideal da independência financeira imposta por Roma e o patriotismo caracteriza<strong>do</strong><br />
através da língua falada e agora também escrita. To<strong>do</strong> povo poderia ler em sua<br />
língua o texto que estimulou Lutero a enfrentar o poder papal.<br />
Reprodução de uma página da Bíblia de 42 linhas, o primeiro livro europeu impresso por processo<br />
industrial na oficina de Gutemberg. Este exemplar foi impresso a duas cores, negro e rubro, o que<br />
não aconteceu com to<strong>do</strong>s os exemplares (1534)
35<br />
A aproximação das <strong>arte</strong>s com a nova invenção – a imprensa de Gutemberg –<br />
estimulou o espírito científico de artistas como Dürer a desenvolverem temas<br />
geométricos e sua aplicação na construção não apenas de colunas, mas também de<br />
letras. Polêmicas começaram a se apresentar quanto a utilização desta ou daquela<br />
forma gráfica de desenho da letra.<br />
Como registra Bettenson no livro Documentos da Igreja Cristã o enfrentamento<br />
de Lutero e a segurança que ele demonstrou estavam firma<strong>do</strong>s nos textos das<br />
Escrituras.<br />
E assim, pela misericórdia de Deus, peço a Vossa Majestade Imperial e a<br />
Vossas ilustres senhorias, ou a qualquer um de qualquer posição, dar<br />
testemunho, derrubar os meus erros, derrotá-los pelos escritos <strong>do</strong>s profetas<br />
ou pelos Evangelhos, pois estarei inteiramente pronto, quan<strong>do</strong> melhor<br />
instruí<strong>do</strong>, a retratar-me de qualquer erro, e eu serei o primeiro a atirar meus<br />
escritos no fogo. (BETTENSON, 2001, p304)<br />
O texto não apenas passou a ter valor para divulgar as informações<br />
encontradas de obras antigas, mas também para propagar as novas idéias. As <strong>arte</strong>s<br />
visuais que apresentavam uma função didática e sustentavam a dependência <strong>do</strong><br />
poder da igreja na Idade média especialmente na região da Itália, na Alemanha vai<br />
sen<strong>do</strong> conduzida à categoria de ilustração.<br />
As próprias convicções de Dürer eram, no fun<strong>do</strong>, as <strong>do</strong> Humanismo Cristão,<br />
e por essa via se tornou um <strong>do</strong>s primeiros e mais entusiásticos adeptos de<br />
Martim Lutero, embora, tal como Grümewald, não deixasse de trabalhar<br />
para clientes católicos. (Janson, p464.)<br />
Avançadas técnicas de gravura começaram a ser desenvolvidas para reproduzir<br />
iluminuras 25 e ilustrações junto com as obras gráficas. As grandes obras de Dürer, o<br />
maior expoente da <strong>arte</strong> renascentista na Alemanha, são ligadas à gravura e não a<br />
pintura. As obras de Cranach mais respeitadas ilustram o Novo Testamento<br />
traduzi<strong>do</strong> por Lutero. A literatura toma a frente das <strong>arte</strong>s plásticas em função da letra<br />
escrita. As <strong>arte</strong>s gráficas se oferecem como um meio de expansão, não apenas<br />
literário, mas também artístico.<br />
25 Iluminura era um tipo de desenho decorativo, frequentemente empreendi<strong>do</strong> nas letras capitulares<br />
que iniciam capítulos em determina<strong>do</strong>s livros, especialmente os produzi<strong>do</strong>s nos conventos e abadias
36<br />
A gravura surge intimamente ligada à escrita, como forma de ilustração, na<br />
tentativa de substituir as iluminuras que apareciam nos escritos medievais. A forma<br />
característica da criação artística alemã foi à gravura sobre metal ou madeira. Dürer<br />
teve um pai ourives, era apaixona<strong>do</strong> pela <strong>arte</strong> italiana, onde foi estudar e manteve<br />
contato com Erasmo de Roterdã. Seu espírito humanista é denuncia<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong><br />
das ciências em inúmeros campos como a matemática, a geografia, a arquitetura, a<br />
tipografia, a geometria e a fortificação.<br />
7. Albrecht Dürer (1471-1528)<br />
Melancolia - gravura, (1514) por Albrecht Dürer<br />
4.2 A PINTURA VOLTA SOB UM NOVO CONCEITO<br />
A gravura passa a influenciar os grandes artistas europeus <strong>do</strong>s séculos XV a<br />
XVII com Rembrandt, Francisco Goya e Albrecht Dürer. A fama internacional desses<br />
artistas, na época em que viveram, veio principalmente de suas gravuras, que eram<br />
mais populares que suas pinturas.
37<br />
Toda a questão técnica da tipografia, as discussões e pesquisas sobre a<br />
apresentação <strong>do</strong> livro impresso não escravizaram a <strong>arte</strong> e muito menos anularam as<br />
expressões <strong>do</strong> ser humano daquela época. Hauser diz que “a <strong>arte</strong> está longe de<br />
tornar-se uma serva da ciência, no senti<strong>do</strong> em que era a “serva da teologia” 26 . Os<br />
grandes artistas desse executavam trabalhos com a técnica da gravura e nem por<br />
isso deixavam de pintar seus quadros à óleo.<br />
Dentro desse cenário conturba<strong>do</strong> e rico em questionamentos, cenário em que<br />
ricos comerciantes e banqueiros estimulavam o consumo e ao mesmo tempo<br />
financiavam a produção de obras de <strong>arte</strong> e literatura o que observamos é a obra de<br />
<strong>arte</strong> começar a refletir esse contexto dramático. Exatamente nesse perío<strong>do</strong><br />
encontramos a pintura de Bruegel registra cenas da vida cotidiana, retratan<strong>do</strong> o<br />
estilo de vida da classe burguesa em ascensão.<br />
8. Bruegel (1525-1569)<br />
Bruegel foi apelida<strong>do</strong> de “camponês Bruegel”, e as pessoas caíram no erro<br />
de imaginar que uma <strong>arte</strong> que retrata a vida de gente simples destina-se<br />
também a pessoas simples, quan<strong>do</strong>, na realidade, ocorre o oposto.<br />
Usualmente, só as camadas da sociedade que pensam e sentem de mo<strong>do</strong><br />
conserva<strong>do</strong>r buscam na <strong>arte</strong> uma imagem de seu próprio mo<strong>do</strong> de vida, o<br />
retrato de seu próprio ambiente social. (HAUSER, 1995, p412)<br />
O Cego guian<strong>do</strong> os cegos. 1568)<br />
26 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura, p343.
38<br />
Ao retratar a paisagem, o cenário, a maneira de viver dessa época os artistas<br />
<strong>do</strong> renascimento são chama<strong>do</strong>s de maneiristas 27 . Hauser registra que “o maneirismo<br />
começa, portanto, como um protesto contra a <strong>arte</strong> da Renascença, e as pessoas da<br />
época estão tão perfeitamente conscientes da ruptura que desse mo<strong>do</strong> ocorre no<br />
desenvolvimento da <strong>arte</strong>.”<br />
O maneirismo está cronologicamente mais perto da Contra-Reforma, e o<br />
austero enfoque espiritualista da época tridentina expressa-se mais<br />
puramente no maneirismo <strong>do</strong> que no voluptuoso barroco. Mas o programa<br />
artístico da Contra-Reforma, a propagação <strong>do</strong> catolicismo é realizada<br />
primeiramente pelo barroco. (HAUSER, 1995, p.395)<br />
É com a ascensão da burguesia e essa valorização <strong>do</strong> ser humano que surgem<br />
os retratos, as cenas de família. Outro níti<strong>do</strong> deslocamento da <strong>arte</strong> a serviço da<br />
igreja, mas é claro que produção pictórica de caráter religioso continua sen<strong>do</strong><br />
produzida, particularmente na Itália. Nos chama<strong>do</strong>s Países Baixos o que prolifera é<br />
a <strong>arte</strong> <strong>do</strong> retrato. A reprodução da figura humana não mais idealiza<strong>do</strong> como ocorria<br />
no perío<strong>do</strong> clássico, mas o retrato. A figura realista, a personificação, a<br />
individualidade em sua expressão máxima.<br />
To<strong>do</strong>s os temas seculares que tão largamente figuram na pintura holandesa<br />
e flamenga <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> barroco – paisagem, natureza-morta e genro (cenas<br />
da vida diária) – foram defini<strong>do</strong>s pela primeira vez entre 1500 e 1600. O<br />
processo foi gradual e menos influencia<strong>do</strong> pelos talentos <strong>do</strong>s artistas que<br />
pela necessidade de satisfazer o gosto popular, pois eram cada vez mais<br />
raras as encomendas para as igrejas. O furor iconolástico <strong>do</strong>s protestantes<br />
espantou-se largamente nestas regiões. (JANSON, 1995, p.476).<br />
A pressão ideológica sofrida pelo artista <strong>do</strong>s locais <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pela Reforma<br />
Protestante, estimulou a <strong>arte</strong> da pintura a procurar outros temas uma nova visão <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> meio que o circulava. A necessidade de satisfazer os clientes cada vez<br />
mais prósperos economicamente, sem agredir os conceitos implanta<strong>do</strong>s nos círculos<br />
sociais, dessa área reformada, fez com que o tema das pinturas circulasse bem<br />
distante <strong>do</strong> tema religioso que <strong>do</strong>minava a <strong>arte</strong> durante o perío<strong>do</strong> renascentista. A<br />
27 O dicionário Aurélio define maneirismo como a tendência estética surgida no séc. XVI que se<br />
caracteriza pela interpretação requintada da maneira de certos artistas <strong>do</strong> Renascimento, com ênfase<br />
na movimentação estilizada das formas, na elegância, na dramaticidade, o que iria configurar uma<br />
<strong>arte</strong> própria de uma minoria intelectual cortesã, marcada pelo individualismo. Ainda no séc. XVI, o<br />
maneirismo já prenuncia o Barroco.
39<br />
dramaticidade <strong>do</strong> barroco, o claro-escuro, é como afirma Hauser uma denuncia<br />
desses contrastes sociais e ideológicos que procuram encontrar harmonia.<br />
4.3 AS ARTES MUSICAIS SE DESENVOLVEM MAIS DO QUE AS ARTES<br />
PLÁSTICAS<br />
As manifestações artísticas estavam se acomodan<strong>do</strong> à nova idéia de Igreja.<br />
Hauser afirma que a <strong>arte</strong> da pintura “está sumamente interessada nos bens e<br />
haveres <strong>do</strong> indivíduo, na família, na comunidade e na nação: aposentos e pátios, a<br />
cidade e seus arre<strong>do</strong>res, a paisagem local e os campos liberta<strong>do</strong>s e recupera<strong>do</strong>s”.<br />
A Reforma Protestante, como o próprio nome diz, não estava fundamentada<br />
numa proposta de outra igreja, mas na reforma da igreja que já existia. Mas o<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s questionamentos <strong>do</strong>s reforma<strong>do</strong>res foi, na realidade, uma cisão.<br />
Bettenson comenta que a Confissão de Augsburgo de 1530 surgiu como<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> colóquio de Marburgo em que Lutero tentou uma reunião de<br />
reconciliação com Zwinglio. Quan<strong>do</strong> a conferência falhou, Lutero elaborou quinze<br />
artigos que foram transforma<strong>do</strong>s na Confissão de Augsburgo, escrita por Melachton.<br />
Essa Confissão foi aceita pelos protestantes como uma declaração de fé que<br />
compreendia que a Reforma não deveria exercer outra influência além da que<br />
procede das Escrituras.<br />
Na igreja de Roma as imagens sagradas voltaram a ter força, e força ainda<br />
maior após o Concílio de Tento e a Contra-Reforma. A grande diferença litúrgica<br />
residia na forma de interpretação <strong>do</strong> texto bíblico. É justamente dessa diferença que<br />
vai brotar o marco <strong>do</strong> rito cúltico.<br />
As novas igrejas estavam se “despin<strong>do</strong>” de imagens. A liturgia era centralizada<br />
no estu<strong>do</strong> e na interpretação das Escrituras. Nesse contexto eclesiástico a música<br />
tinha um papel significativo no pensamento de diversos reforma<strong>do</strong>res. A música<br />
substituía a função didática anteriormente ocupada pela pintura.<br />
João Calvino, reforma<strong>do</strong>r no séc. XVI, nos deixou uma série de recomendações<br />
a respeito da importância da música no culto, ao escrever o prefácio <strong>do</strong> primeiro
40<br />
Saltério 28 Genebrino, publica<strong>do</strong> em 1565. A música esteve próxima da educação e<br />
fortaleciam a teologia reformada. Com a nova teologia surgia também uma nova<br />
estética de a<strong>do</strong>ração e esta nova forma irá marcar a música como instrumento de<br />
propagação <strong>do</strong>s ideais da Reforma. Tanto Calvino como Lutero afinam nessa<br />
direção de se utilizar da música para proclamação <strong>do</strong> evangelho e difundir os novos<br />
conceitos <strong>do</strong>utrinários que revolucionaram o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XVI.<br />
Figuras de expressão musical Barroca como Hendel pela igreja Anglicana e<br />
Bach, pela igreja Luterana, são expoentes dessa “centralidade <strong>do</strong> culto” e afirmação<br />
<strong>do</strong> individualismo não apenas <strong>do</strong> texto bíblico em sua própria língua como também<br />
<strong>do</strong>s hinos.<br />
Os matizes da pintura são transferi<strong>do</strong>s para expressão musical com hinos<br />
canta<strong>do</strong>s pelo coro e vez por outra acompanha<strong>do</strong>s por versos e a inserção de<br />
participações de solistas e outros instrumentos. O que se via no deslocamento da<br />
expressão pictórica final com Bruegel e a dramaticidade <strong>do</strong> Barroco, com o<br />
envolvimento não apenas no clero vê-se agora na forma e no repertório musical.<br />
Segun<strong>do</strong> o livro Obras Selecionadas de Martinho Lutero, em seu volume sobre a<br />
educação, o povo deveria aprender as <strong>do</strong>utrinas bíblicas cantan<strong>do</strong> melodias simples<br />
relacionadas ao seu dia a dia. E essa estratégia foi extremamente importante para o<br />
sucesso e popularização da Reforma. Numa carta escrita a Spalatinus, secretário de<br />
Frederick I, o grande reforma<strong>do</strong>r apresenta seu projeto educacional: o “plano é<br />
seguir o exemplo <strong>do</strong>s profetas e os pais antigos da igreja e compor salmos para as<br />
pessoas no vernáculo... de forma que a Palavra de Deus também possa estar entre<br />
as pessoas em forma de música”.<br />
Martinho Lutero prefacian<strong>do</strong> ao hinário Wittenberguense de 1524 acentua bem<br />
o valor que ele dava as <strong>arte</strong>s, especialmente a música. Ele inicia este texto<br />
fundamentan<strong>do</strong> que “o próprio S. Paulo o institui em I Co 14[26] e ordena aos<br />
colossenses que cantem com vontade ao Senhor hinos sacros e salmos.” Lutero<br />
assume, neste prefácio, o trabalho que desenvolveu reunin<strong>do</strong> “alguns hinos sacros a<br />
28 O saltério era um hinário conten<strong>do</strong> salmos em forma de poesia. Esses salmos haviam si<strong>do</strong><br />
musica<strong>do</strong>s por Claude Goudimel a pedi<strong>do</strong> de Calvino, porque ele queria que os salmos voltassem a<br />
ser usa<strong>do</strong>s nos cultos.
41<br />
fim de propagar e dar impulso ao santo Evangelho que ora voltou a brotar pela graça<br />
de Deus” E ainda acrescenta:<br />
Além disso, foram arranja<strong>do</strong>s a quatro vozes por nenhuma outra razão<br />
senão o meu desejo de que a juventude, a qual afinal de contas deve e<br />
precisa ser educada na música e em outras <strong>arte</strong>s dignas, tenha algo com<br />
que se livre das canções de amor e <strong>do</strong>s cantos carnais para, em lugar<br />
destes, aprender algo sadio, de mo<strong>do</strong> que o bem seja assimila<strong>do</strong> com<br />
vontade pelos jovens, como lhes compete. Também não sou da opinião de<br />
que, pelo Evangelho, todas as <strong>arte</strong>s devam ser massacradas e<br />
desaparecer, como pretendem alguns pseu<strong>do</strong>-espirituais. 29 (LUTERO,<br />
2000, P.481)<br />
Ainda que houvesse divergências entre a forma de se utilizar a música entre a<br />
posição de Lutero e Calvino, ambos se utilizaram dela. Calvino mantinha sua<br />
posição mais orto<strong>do</strong>xa e afirma ele nas “As institutas da religião cristão”, volume II,<br />
que “As Escrituras nos dizem que todas as nossas obras são maculadas, e,<br />
portanto, não podem suportar o escrutínio de Deus”. Talvez por isso, diz Carpeaux,<br />
Calvino não utilizasse instrumentos para acompanhar o canto que deveria ser feito<br />
“à capela”. 30 . Lutero desenvolveu particular apreço pela música desde a sua<br />
infância. Em seu perío<strong>do</strong> de vida monástica conheceu e aprendeu o canto<br />
gregoriano, além de tocar alaúde e ser compositor. Martim Lutero registraria em<br />
carta de outubro de 1530 a Ludwig Senfl:<br />
“Pois sabemos que os demônios odeiam e não suportam a música. Dou<br />
minha opinião bem franca e não hesito em afirmar que, depois da teologia,<br />
é a música que consegue uma coisa que no mais só a teologia proporciona:<br />
um coração tranqüilo e alegre. Uma prova muito clara disto é que o diabo, o<br />
causa<strong>do</strong>r de tristes preocupações e de tumultos perturba<strong>do</strong>res, foge <strong>do</strong> som<br />
da música quase tanto como da palavra da teologia. É por isso que os<br />
profetas de nenhuma <strong>arte</strong> se serviram como da música. Sua teologia eles<br />
não a expressaram pela geometria, nem pela aritmética ou astronomia, mas<br />
pela música, ligan<strong>do</strong>, portanto, estreitamente teologia e música e dizen<strong>do</strong> a<br />
verdade em salmos e hinos.” (CARPEAUX, 2001).<br />
Essa inclinação para <strong>arte</strong> da música foi tão pontual para as igrejas reformadas,<br />
especialmente para Lutero, que o próprio reforma<strong>do</strong>r empenhou-se para requisitar<br />
que os compositores de língua alemã o ajudassem nessa tarefa. O envolvimento <strong>do</strong><br />
povo com o canto de hinos congregacionais era algo muito inova<strong>do</strong>r e “enchiam o<br />
29 Obs.: Obras selecionadas de Martinho Lutero, Sinodal, p 481 - Die Vorrade dês Wittenberg<br />
Gesangbuches von 1524 – Vorrede Martini Luther, WA 35,474s. Tradução: Ilson Kayser.<br />
30 Aurélio define como polifonia sem acompanhamento instrumental: coro a capela.
42<br />
templo” crian<strong>do</strong> um contraste com as paredes, agora limpas, <strong>do</strong>s templos da igreja<br />
reformada.
43<br />
CONCLUSÃO<br />
O tema que selecionamos para este estu<strong>do</strong> se mostrou rico em minúcias e<br />
detalhes históricos. Acumulamos uma visão panorâmica desse perío<strong>do</strong><br />
imediatamente posterior a Reforma, e por isso mesmo, distanciada <strong>do</strong>s conflitos<br />
inerentes à trama desse teci<strong>do</strong> social. Reconstruir a complexidade das relações de<br />
poder, da convivência com novas idéias, das novas descobertas, <strong>do</strong>s<br />
questionamentos e das implantações práticas de teologias e filosofias propostas<br />
anos a fio, é um exercício extraordinário para quem está tão distante <strong>do</strong>s elementos<br />
que cercam determinada convivência social.<br />
O ser humano que viveu no perío<strong>do</strong> da Reforma, das grandes descobertas<br />
renascentistas é um cidadão, ainda que não desejasse impacta<strong>do</strong> brutalmente pelos<br />
conflitos e pela turbulência <strong>do</strong> momento. O humanismo e o naturalismo formam o<br />
alicerce e referência de todas as relações daquele perío<strong>do</strong>. O Renascimento<br />
floresceu sobre este solo <strong>do</strong> humanismo, antropocentrismo e naturalismo. O<br />
deslocamento <strong>do</strong> foco central <strong>do</strong> teocentrismo para o antropocentrismo foi se<br />
estabelecen<strong>do</strong> gradualmente e se propagan<strong>do</strong> infectar os representantes<br />
sacer<strong>do</strong>tais.<br />
O contexto histórico, político e social <strong>do</strong> século XVI, tanto na Itália – centro<br />
intelectual <strong>do</strong> Renascimento – até to<strong>do</strong> restante da Europa são marca<strong>do</strong>s por essa<br />
efervescência científica, humanística que estimulam o questionamento da antiga<br />
estrutura medieval. Estas interdisciplinaridades relacionadas à política, a filosofia e a<br />
história desenham um indivíduo multifaceta<strong>do</strong>, por isso mesmo chama<strong>do</strong> de<br />
moderno. Este é o momento em que se estabelece a dicotomia entre o místico e o<br />
científico, o plural e o individual o impessoal ao personaliza<strong>do</strong>.<br />
Diante <strong>do</strong> que foi exposto, surpreendemo-nos encontrar tantos Renascimentos<br />
dentro <strong>do</strong> Renascimento. Princípios gerais que são pulveriza<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s<br />
da Europa, mas que têm cada um deles suas peculiaridades próprias.<br />
O conceito de imagem sagrada se apresentou como um elo entre princípios<br />
antigos da iconoclastia, muito anteriores ao perío<strong>do</strong> da Reforma, e as novas<br />
resistências a expressão pictórica. A diferença que nos parecia inicialmente tênue<br />
entre <strong>arte</strong> sacra e <strong>arte</strong> religiosa se houve muito mais abrangente e profunda <strong>do</strong> que<br />
imaginávamos.
44<br />
Sem dúvida, a investigação e a elaboração <strong>do</strong> capítulo quatro enriqueceram<br />
muito a reconstrução <strong>do</strong> cenário que estávamos procuran<strong>do</strong> reconstituir. O<br />
deslocamento <strong>do</strong> foco das <strong>arte</strong>s visuais para as <strong>arte</strong>s gráficas se mostrou como um<br />
tesouro de informações se abrin<strong>do</strong>. Neste momento tivemos que, fundamenta<strong>do</strong>s na<br />
disciplina, foca bem o campo de estu<strong>do</strong> dessa pesquisa para não ampliarmos ainda<br />
mais a abrangência <strong>do</strong> tema. Esta relação <strong>do</strong> desenho <strong>do</strong>s tipos móveis, sua<br />
nomenclatura e a cientificidade das <strong>arte</strong>s fora da Itália deixa aberto como um<br />
caminho para uma nova pesquisa.<br />
O retorno da pintura como retrato <strong>do</strong> ambiente e <strong>do</strong>s personagens pareceu<br />
pontuar o raciocino e o princípio anteriormente estuda<strong>do</strong> <strong>do</strong> antropocentrismo e <strong>do</strong><br />
humanismo ainda fundamenta<strong>do</strong>s somente na teoria. A concretização da idéia, ou<br />
como diz Hauser “a <strong>arte</strong> como espelho da sociedade”.<br />
Uma vez firma<strong>do</strong> o princípio da não utilização das <strong>arte</strong>s nos templos das<br />
igrejas reformadas, e não sem acirrada luta, as <strong>arte</strong>s pareciam encontrar um epílogo<br />
nos ambientes eclesiásticos da Reforma. Surpreende-nos descobrir a imediata<br />
abertura e estímulos deixa<strong>do</strong>s para as músicas. Essa boa vontade para a utilização<br />
da música como um elemento didático num primeiro momento, vai se aperfeiçoar até<br />
as grandes obras musicais barrocas.<br />
O Catolicismo mantém pintura sacra como sua expressão e identidade<br />
enquanto a nova igreja reformada assume a música como elemento de educação e<br />
envolvimento popular de seus adeptos.<br />
O que nasceu de uma intenção de adaptação de novos conceitos – as 95<br />
teses de Lutero - se revelou como um problema com a proibição da utilização das<br />
obras de <strong>arte</strong> nas igrejas da Reforma e posteriormente uma identificação de cada<br />
uma das p<strong>arte</strong>s distanciadas.<br />
Finalmente, a utilização de reproduções de quadros, neste trabalho, eluci<strong>do</strong>u a<br />
riqueza <strong>do</strong>s ambientes e personagens, em alguns momentos estimulou curiosidade<br />
e a investigação e ainda emoldurou o contexto <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> tão rico na produção de<br />
obras clássicas como a Renascença.
45<br />
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
LIVROS<br />
ALLMEN, J. J. von. O Culto Cristão : <strong>Teologia</strong> e Prática. São Paulo: Aste, 1968.<br />
BESANÇON, Alain. A imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio<br />
de Janeiro: Bertrand <strong>Brasil</strong>, 1997.<br />
BETTENSON, Henri. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2001<br />
BÍBLIA. Português. Tradução Ecumênica .Trad. Grupo Ecumênico <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. São<br />
Paulo: Edições Loyola e Paulinas, 2002.<br />
CAIRNS, Earle E. O cristianismo através <strong>do</strong>s séculos: uma história da igreja cristã.<br />
2ª ed. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1995.<br />
CALVINO, João. As institutas ou trata<strong>do</strong> da religião cristã. São Paulo: Casa editora<br />
Presbiteriana, S/C, 1985.<br />
CARPEAUX, Otto Maria. O Livro de Ouro da História da Música. Rio de janeiro:<br />
Ediouro. 2001.<br />
CUNHA, Geral<strong>do</strong> Antônio da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua<br />
Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 2001<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. 6 ed. Ver. Amp. Curitiba: Posigraf, 2004.<br />
FISCHER, Ernst. A necessidade da <strong>arte</strong>. 9 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.<br />
FREDERICO, Denise Cordeiro de Souza. Cantos para o Culto Cristão. São Paulo:<br />
Editora Sinodal. 1999.<br />
GONZÁLEZ, Justo L. Vol6. Uma História Ilustrada <strong>do</strong> Cristianismo – A era <strong>do</strong>s<br />
Reforma<strong>do</strong>res. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1981.<br />
HAUSER, Arnold. História social da <strong>arte</strong> e da literatura. São Paulo: Martins Fontes,<br />
1995<br />
HEITLINGER, Paulo. Tipografia – Origens, formas e uso das letras. Portugal:<br />
Dinalivro, 1994.<br />
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas – Vol 7- Vida em comunidade. Editora<br />
Sinodal, São Leopol<strong>do</strong> e Concórdia Editora, Porto Alegre. 2000<br />
ARTIGOS<br />
DREBES, In A educação na dimensão <strong>do</strong> Reino de Deus desvelada em obra<br />
pictórica de Lucas Cranach, p.46. Dissertação inédita de Mestra<strong>do</strong>, São Leopol<strong>do</strong>,<br />
EST, 2000.
46<br />
Protestantismo em Revista - ISSN 1678 6408 - Ano IV - Número 02, mai-ago 2005.<br />
Revista Digital Art& - ISSN 1806-2962 - Ano III - Número 03 - Abril de 2005.<br />
7. RESUMO<br />
Este trabalho circula em torno da investigação <strong>do</strong> contexto histórico, social e<br />
político <strong>do</strong> momento em que se decide retirar as pinturas <strong>do</strong>s templos da igreja<br />
reformada. Para atingir este objetivo a pesquisa reúne alguns <strong>do</strong>s princípios<br />
nortea<strong>do</strong>res da filosofia humanista e <strong>do</strong>s conceitos renascentistas que<br />
caracterizaram a época em questão.<br />
O que se revela ao longo <strong>do</strong> trabalho é a maneira progressiva como a<br />
liderança da igreja protestante vai se inclinan<strong>do</strong> para a área da música como suporte<br />
didático e deixan<strong>do</strong> a pintura, que era identificada como a propaganda da igreja<br />
católica <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval.<br />
Esta pesquisa também apresenta material ilustrativo – reprodução de obras de<br />
<strong>arte</strong> <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> – que ajudam o leitor a percorrer e se familiarizar ao<br />
caminho sugeri<strong>do</strong> de desenvolvimento <strong>do</strong> ambiente estuda<strong>do</strong>.