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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA<br />
SEBASTIANA GENY DOS SANTOS<br />
A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA<br />
COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE<br />
ALFABETIZAÇÃO<br />
Tubarão<br />
2010
1<br />
SEBASTIANA GENY DOS SANTOS<br />
A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA<br />
COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO<br />
DE ALFABETIZAÇÃO<br />
Dissertação apresentada ao Curso <strong>de</strong> Mestrado em<br />
Ciências da Linguagem da Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong><br />
Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do<br />
título <strong>de</strong> Mestre em Ciências da Linguagem.<br />
Orientador: Prof. Dr. Sandro Braga.<br />
Co-orientador: Prof. Dra. Maria Ester W. Moritz.<br />
Tubarão<br />
2010
2<br />
SEBASTIANA GENY DOS SANTOS<br />
A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA<br />
COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE<br />
ALFABETIZAÇÃO<br />
Esta dissertação foi julgada a<strong>de</strong>quada à obtenção do<br />
título <strong>de</strong> Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada<br />
em sua forma final pelo Curso <strong>de</strong> Mestrado em Ciências<br />
da Linguagem da Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> Santa<br />
Catarina.<br />
Palhoça, 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2010.<br />
______________________________________________________<br />
Professor e orientador, Sandro Braga, Dr.<br />
Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> Santa Catarina<br />
______________________________________________________<br />
Professora Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti, Dra<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina<br />
______________________________________________________<br />
Professora Maria Marta Furlanetto, Dra<br />
Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> Santa Catarina
3<br />
Ao meu pai, Afonso Celestino (in memoriam),<br />
pelo seu esforço e pela sua <strong>de</strong>terminação; à<br />
minha filha, Joanne, amor da minha vida; e à<br />
minha neta, Maria Cecília, pelas belas histórias<br />
contadas ao telefone.
4<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Agra<strong>de</strong>ço:<br />
A Deus que me conduziu, passo a passo, nesta longa caminhada. A minha família<br />
que, mesmo <strong>de</strong> longe, nos momentos <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> soube estar “presente”. Especialmente, a<br />
minha mãe, pelo incentivo e seu eterno amor. Ao Governo do Distrito Fe<strong>de</strong>ral e à Secretaria<br />
<strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Educação do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, pela liberação e investimento em meu potencial<br />
acadêmico. À professora Dra. Maria Ester W. Moritz (UFSC), minha orientadora, que,<br />
corajosamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, acreditou na realização <strong>de</strong>ste trabalho e prontamente aceitou o<br />
<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> estudar uma nova teoria. Especialmente, pela amiza<strong>de</strong>, carinho e competência com<br />
que me introduziu no campo da pesquisa. Ao professor Dr. Sandro Braga, por ter aceitado,<br />
gentilmente, o compromisso <strong>de</strong> terminar a orientação <strong>de</strong>ste trabalho. À professora Dra. Maria<br />
do Carmo Pereira Coelho (UDF), pela sua amiza<strong>de</strong>, carinho e pelo suporte teórico em todos<br />
os momentos <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. À professora Dra. Maria Marta Furlanetto (UNISUL), pelas<br />
revisões e pela leitura criteriosa. À professora Dra. Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti (UFSC),<br />
pela atenção dispensada às nossas solicitações e pelas valiosas contribuições na finalização<br />
<strong>de</strong>sta pesquisa. Ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universida<strong>de</strong><br />
do Sul <strong>de</strong> Santa Catarina, pela oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização <strong>de</strong>sta pesquisa. Especialmente, ao<br />
professor Dr. Sandro Braga, à professora Dra. Jussara Bittencourt e à professora Dra. Maria<br />
Ester W. Moritz, pela receptivida<strong>de</strong> e competência com que conduziram as disciplinas. Aos<br />
colegas professores que, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, fizeram parte <strong>de</strong>sta jornada e sempre<br />
enfatizaram as minhas habilida<strong>de</strong>s. Aos colegas <strong>de</strong> Mestrado, pelo acolhimento durante os<br />
vinte e quatro meses <strong>de</strong> estudo. Em especial, a minha amiga Simone, pelas madrugadas <strong>de</strong><br />
estudos, conversas e <strong>de</strong>scontração. Aos pequenos aprendizes, meus alunos, que ao longo <strong>de</strong><br />
vinte e cinco anos <strong>de</strong> magistério, têm tornado minha caminhada mais suave, com certeza, sem<br />
eles seria impossível chegar até aqui. Finalmente, agra<strong>de</strong>ço a minha filha, Joanne, pelo seu<br />
amor incondicional e pela confiança <strong>de</strong>positada em meu trabalho diariamente. Obrigada!
5<br />
“Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa <strong>de</strong>baixo do céu; tempo <strong>de</strong><br />
nascer e tempo <strong>de</strong> morrer; tempo <strong>de</strong> plantar e tempo <strong>de</strong> arrancar o que se plantou; tempo <strong>de</strong><br />
matar e tempo <strong>de</strong> curar; tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir e tempo <strong>de</strong> construir; tempo <strong>de</strong> chorar e tempo <strong>de</strong><br />
rir; tempo <strong>de</strong> lamentar e tempo <strong>de</strong> dançar; tempo <strong>de</strong> espalhar pedras e tempo <strong>de</strong> as ajuntar;<br />
tempo <strong>de</strong> abraçar e tempo <strong>de</strong> afastar dos abraços; tempo <strong>de</strong> procurar e tempo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r; tempo<br />
<strong>de</strong> guardar e tempo <strong>de</strong> jogar fora; tempo <strong>de</strong> rasgar e tempo <strong>de</strong> costurar; tempo <strong>de</strong> calar e<br />
tempo <strong>de</strong> falar; tempo <strong>de</strong> amor e tempo <strong>de</strong> ódio; tempo <strong>de</strong> guerra e tempo <strong>de</strong> paz” (Eclesiástes<br />
3).
6<br />
RESUMO<br />
Este estudo tem o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver os processos <strong>de</strong> apropriação da língua escrita<br />
por crianças em fase <strong>de</strong> alfabetização, partindo do pressuposto que a língua é usada<br />
socialmente como forma <strong>de</strong> ação e interação social, fundamentada no universo sóciohistórico-cultural<br />
da criança (VYGOTSKY, 1999). A pesquisa se <strong>de</strong>senvolveu em sala<br />
<strong>de</strong> aula com trinta e uma crianças <strong>de</strong> uma turma da primeira série do Ensino<br />
Fundamental do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Para explicar o percurso metodológico e analisar o<br />
processo <strong>de</strong> apropriação da língua escrita, foi coletada a produção textual em três<br />
momentos diferentes. Em 2005, a coleta da primeira amostra ocorreu em março; a<br />
segunda amostra ocorreu em junho e, por último, coletamos a terceira amostra em<br />
novembro. Com base na perspectiva do <strong>de</strong>senvolvimento da escrita (VYGOTSKY,<br />
1999, 1998; LURIA, 1998) e na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />
NOVERRAZ, 2004), foram <strong>de</strong>talhadamente preparadas ativida<strong>de</strong>s específicas <strong>de</strong><br />
língua materna e colocadas à disposição das crianças. Dessas escolhas teóricometodológicas,<br />
foi organizada e preparada cada etapa <strong>de</strong> aprendizagem, na certeza <strong>de</strong><br />
que as intervenções <strong>de</strong>terminam o modo como as crianças escrevem. Foi utilizada a<br />
lenda como gênero <strong>de</strong> ação didático-pedagógica para criar situações <strong>de</strong> ensinoaprendizagem<br />
em que as crianças pu<strong>de</strong>ssem estabelecer contato com situações <strong>de</strong><br />
escrita. Os resultados apontam que inicialmente as crianças não percebem a<br />
funcionalida<strong>de</strong> da linguagem escrita e ainda não sabem a função das letras no<br />
aprendizado da leitura e da escrita. E que a aplicação das ativida<strong>de</strong>s contribuíram para<br />
<strong>de</strong>senvolver capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita combinadas à produção <strong>de</strong> texto. A análise dos<br />
dados apontou sobretudo que as estratégias e as intervenções adotadas colaboraram<br />
para um trabalho mais organizado e sistematizado, estabelecendo vínculos entre as<br />
práticas sociais e as práticas escolares mediadas pela ação da linguagem.<br />
Palavras-chave: Alfabetização. Gênero lenda. Apropriação da língua escrita.
7<br />
ABSTRACT<br />
This study aims at <strong>de</strong>scribing written language acquisition processes by children going<br />
through literacy process, based on the premisse that language is socially used as a form of<br />
action and social interaction and on the sociohistorical and cultural environment of the<br />
children (VYGOTSKY, 1999). The research was carried out in a first gra<strong>de</strong> classroom of an<br />
Elementary school in the Fe<strong>de</strong>ral District with 30 children. In or<strong>de</strong>r to explain the<br />
methodological steps and to analyse the process of written language acquisition, texts<br />
produced by the children were collected in three different moments. In 2005, the first sample<br />
was collected in March; the second sample was collected in June and the third and final<br />
sample in November. Based on the writing <strong>de</strong>velopment perpective (VYGOTSKY, 1999,<br />
1998; LURIA, 1998) and on the didactic sequence (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ,<br />
2004), mother tongue activities were <strong>de</strong>tailed <strong>de</strong>velopted and displayed for the children.From<br />
these theoretical-methodological choices, each learning stage was organized and prepared<br />
having in mind that these interventions <strong>de</strong>termine the way in which children write. The<br />
childrens’legend was used as genre of the didactic-pedagogic action in or<strong>de</strong>r to create<br />
teaching-learning situations involving contact with the written language. Results <strong>de</strong>monstrate<br />
that initially children did not notice the function of the written language and they still did not<br />
perceive the function of the letters in the literacy process. It was noticed that the application of<br />
the activities contributed to the <strong>de</strong>velopment of writing skills combined with text<br />
production. Data analysis <strong>de</strong>monstrated that the strategies and the interventions<br />
adopted contributed to a more organized and sytematized work, establishing links between<br />
social practices and school practices mediated by language actions.<br />
Key-words: Literacy, written language acquisition, childrens’legend as a genre.
8<br />
LISTA DE ILUSTRAÇÕES<br />
Figura 1- Coor<strong>de</strong>nadas gerais dos mundos discursivos...................................................28<br />
Figura 2 - Esquema da sequência didática .............................................................................32<br />
Figura 3 - Quadro <strong>de</strong> agrupamento <strong>de</strong> gênero..........................................................................31<br />
Figura 4 - Reconto coletivo......................................................................................................81<br />
Figura 5- Reconto coletivo: Fases da narrativa.....................................................................83<br />
Figura 6 - Produção B. Realizada em março.............................................................................85<br />
Figura 7 - Produção F. Realizada em junho..............................................................................86<br />
Figura 8 - Produção A. Realizada em março............................................................................88<br />
Figura 9 - Produção E. Realizada em junho ............................................................................................90<br />
Figura 10 - Produção U. Realizada em novembro...................................................................92<br />
Figura 11- Produção M. Realizada em novembro..................................................................94<br />
Figura 12 - Produção P. Realizada em novembro.....................................................................95<br />
Figura 13 - Produção J. Realizada em novembro.....................................................................98<br />
Figura 14 - Produção H. Realizada em novembro..................................................................102<br />
Figura 15 - Produção C. Realizada em março........................................................................109<br />
Figura 16 - Produção L. Realizada em junho.........................................................................112<br />
Figura 17 - Produção B. Realizada em março........................................................................117<br />
Figura 18 - Produção G. Realizada em junho........................................................................................116<br />
Figura 19 - Produção T. Realizada em novembro..................................................................120<br />
Figura 20 - Produção O. Realizada em junho.........................................................................122<br />
Figura 21- Produção K. Realizada em junho..........................................................................124<br />
Figura 22 - Produção N. Realizada em junho.........................................................................126
9<br />
LISTA DE TABELAS<br />
Tabela 1. Conversão aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto...................................................... 45<br />
Tabela 2. Conversão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da posição no início do vocábulo a <strong>de</strong> antes <strong>de</strong> vogal ou em<br />
início <strong>de</strong> sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal........................46<br />
Tabela 3. Conversão dos fonemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> vogal posterior ou não posterior.................47<br />
Tabela 4. Conversão <strong>de</strong> /j/ e |R| em início <strong>de</strong> sílaba, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal nasalizada, |S|, |W| e <strong>de</strong><br />
/ej/, /ow/, /aj/; conversão <strong>de</strong> /z/ <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo e <strong>de</strong> /w/ entre /k/ ou /g/ e<br />
vogal não posterior....................................................................................................................48<br />
Tabela 5. Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final <strong>de</strong> vocábulo.............................49<br />
Tabela 6. Conversão dos fonemas em final <strong>de</strong> sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo............................50<br />
Tabela 7. Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba..........................................50
10<br />
SUMÁRIO<br />
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................13<br />
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................... 18<br />
2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTO<br />
DE SENTIDO.......................................................................................................................... 18<br />
2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos<br />
norteadores <strong>de</strong> apropriação da língua escrita............................................................................19<br />
2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao<br />
pensamento <strong>de</strong> Genebra............................................................................................................23<br />
2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo...........................................26<br />
2.1.1.2 Proposta <strong>de</strong> intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo..................29<br />
2.1.3 Gênero lenda: especificida<strong>de</strong>s teóricas e possibilida<strong>de</strong>s didático-pedagógicas...............33<br />
2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO<br />
DO CÓDIGO............................................................................................................................37<br />
2.2.1 Similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita........................................................38<br />
2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong><br />
palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.................................................40<br />
2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita..........................44<br />
2.3. O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM:<br />
RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NO PROCESSO DE<br />
ALFABETIZAÇÃO.................................................................................................................52<br />
2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo <strong>de</strong> aprendizagem.......................................53<br />
2.3.2 Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal................................................................................55<br />
2.3.3 A pré-história da linguagem escrita.................................................................................57<br />
3.PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS....................................................................61<br />
3.1 TIPO DE ESTUDO.............................................................................................................61<br />
3. 1.2 CONTEXTO DA PESQUISA........................................................................................62<br />
3.2.1 A escola............................................................................................................................63<br />
3.2.2 A turma............................................................................................................................64<br />
3.2.3 A sala <strong>de</strong> aula...................................................................................................................65<br />
3.2. 4 Organização dos dados...................................................................................................66
11<br />
3.2.5 A forma <strong>de</strong> Análise dos dados........................................................................................68<br />
4 ANÁLISE DOS DADOS ....................................................................................................70<br />
4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM<br />
CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA...................70<br />
4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos <strong>de</strong> uso social da<br />
língua e com base em sequências didáticas...............................................................................71<br />
4.1.2 Aprendizagem da lenda.......................................................................................80<br />
4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda...............................................................82<br />
4.1.4 Aprendizagem das categorias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na lenda.......................................99<br />
4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento.........................103<br />
4.2.1. A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que a fala po<strong>de</strong> ser escrita.................................................................108<br />
4.2.2 A construção da noção <strong>de</strong> palavra no texto escrito.......................................................113<br />
4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas..................................................118<br />
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. ...............128<br />
REFERÊNCIAS....................................................................................................................132<br />
ANEXOS................................................................................................................................136<br />
ANEXO 1 - Produção A.........................................................................................................137<br />
ANEXO 2 - Produção B..........................................................................................................138<br />
ANEXO 3 - Produção C............................................................................................... .........139<br />
ANEXO 4 - Produção D.........................................................................................................140<br />
ANEXO 5 - Produção E......................................................................................................... 141<br />
ANEXO 6 - Produção F..........................................................................................................142<br />
ANEXO 7 - Produção G.........................................................................................................143<br />
ANEXO 8 - Produção H.........................................................................................................144<br />
ANEXO 9 - Produção I...........................................................................................................145<br />
ANEXO 10 - Produção J........................................................................................................146<br />
ANEXO 11 - Produção K.......................................................................................................148<br />
ANEXO 12 - Produção L.......................................................................................................149<br />
ANEXO 13 - Produção M......................................................................................................150<br />
ANEXO 14 - Produção N.......................................................................................................151<br />
ANEXO 15 - Produção O......................................................................................................152<br />
ANEXO 16 - Produção P.......................................................................................................153<br />
ANEXO 17 - Produção Q......................................................................................................154<br />
ANEXO 18 - Produção R.......................................................................................................155
12<br />
ANEXO 19 - Produção S.....................................................................................................156<br />
ANEXO 20 - Produção T.....................................................................................................157<br />
ANEXO 21 - Produção U.....................................................................................................158<br />
ANEXO 22 - Coacyaba- O primeiro beija-flor...............................................................159<br />
ANEXO 23 – As lágrimas da Potira.....................................................................................160<br />
ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada............................................................................161<br />
ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo........................162<br />
ANEXO 26 – Arutsãn – O sapo astucioso..............................................................................164<br />
1 INTRODUÇÃO
13<br />
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), que propõem o ensino da língua<br />
materna por meio <strong>de</strong> gêneros, concentram-se na linguagem em uso e na competência humana<br />
<strong>de</strong> interagir com a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros presentes no cotidiano. De fato, do estudo <strong>de</strong>sses<br />
documentos po<strong>de</strong>mos inferir que na escola havia ou há um distanciamento entre as ativida<strong>de</strong>s<br />
estruturais que vinham sendo <strong>de</strong>senvolvidas; como proposta, esses mesmos documentos<br />
recomendam o uso <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s mediadas pelas ações <strong>de</strong> linguagem relacionadas às ações<br />
efetivas do cotidiano, à informação, ao exercício da reflexão. Ao propor os gêneros como<br />
objeto <strong>de</strong> ensino, esse documento, em vigor, fornece aos educadores um instrumento<br />
necessário para <strong>de</strong>senvolver a compreensão da leitura e da escrita, estimulando a prática <strong>de</strong><br />
produção escrita, foco <strong>de</strong>ste estudo.<br />
Na proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (daqui para a frente PCNs,<br />
1997), os gêneros são entendidos como formas relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados que<br />
apresentam três elementos em sua estrutura: conteúdo temático, estilo e construção<br />
composicional (BAKHTIN 1 , 1990, 1992). O documento acolhe, também, o interacionismo<br />
sociodiscursivo (BRONCKART, 1985) quanto às suas intenções comunicativas, e a noção <strong>de</strong><br />
gêneros como (mega) instrumentos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem (SCHNEUWLY, 1993). Desse<br />
modo, é a partir da proposição segundo a qual “todo texto se organiza <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>terminado gênero” (PCNs, 1997, p. 26) que muitas pesquisas estão sendo realizadas no<br />
Brasil (MARCUSCHI, 2002; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2000; GUIMARÃES,<br />
CAMPANI-CASTILHOS, DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2003;<br />
COELHO, 2003, 2004; BRAIT, 2007; CRISTOVÃO, 2005; LIBERALLI, 1999 entre outras).<br />
Nessa abordagem, os gêneros promovem maior contato entre o aluno e a linguagem em uso e,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, incentiva-se a produção <strong>de</strong> texto oral ou escrito nas diferentes práticas sociais.<br />
Então, é pertinente inserir os gêneros textuais, em classes <strong>de</strong> alfabetização, por aten<strong>de</strong>r à<br />
<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> diversos textos e porque estão presentes em nossas práticas sociais.<br />
Seguindo essa linha <strong>de</strong> entendimento, aos poucos o ensino-aprendizagem vem se<br />
modificando com a introdução da noção dos gêneros sendo aplicada ao processo <strong>de</strong><br />
apropriação da leitura e da escrita. O trabalho com gêneros em sala <strong>de</strong> aula favorece as<br />
interações verbais orais e escritas, concebendo-se o indivíduo como produtor <strong>de</strong> texto; a parte<br />
estrutural da língua passa a ser vista não mais como centro da aprendizagem. O estudo focado<br />
em gêneros parece oferecer uma aproximação da língua em uso com as práticas pedagógicas,<br />
1 Aqui foi usada a tradução <strong>de</strong> 2006 <strong>de</strong> Estética da criação verbal, <strong>de</strong> Mikhail Bakhtin.
14<br />
e ter a noção sobre como os gêneros se organizam po<strong>de</strong> ajudar a internalizar ou incorporar<br />
essa organização, cujo resultado é a produção textual oral e escrita com sucesso.<br />
Este trabalho assume o pressuposto <strong>de</strong> que a língua é usada socialmente como<br />
forma <strong>de</strong> ação e <strong>de</strong> interação, levando-se em consi<strong>de</strong>ração o universo sócio-histórico-cultural<br />
da criança (VYGOTSKY, 1999) e a perspectiva do <strong>de</strong>senvolvimento da escrita<br />
(VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998). A pesquisa tem como base, também, o<br />
interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003), que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> os gêneros em qualquer<br />
ativida<strong>de</strong> humana em forma <strong>de</strong> textos, que são articulados <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s, os<br />
interesses e as condições <strong>de</strong> funcionamento das formações sociais que os produzem. Baseia-se<br />
ainda na noção <strong>de</strong> gênero para o ensino (SCHNEUWLY, 2004) e na sequência didática como<br />
intervenção metodológica (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).<br />
Embora tenham sido publicados no Brasil trabalhos usando como suporte teórico<br />
a perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY,<br />
2004; COELHO, 2003, 2004; SOUZA, 2003; MACHADO, 2005; MATÊNCIO, 1994 entre<br />
outros), <strong>de</strong>sconhecemos estudos colocando o gênero lenda como eixo norteador do processo<br />
<strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. Constatada a escassa publicação <strong>de</strong> literatura<br />
especializada sobre a escrita focando os gêneros na alfabetização, principalmente na<br />
concepção interacionista sociodiscursiva, o nosso interesse é contribuir com as pesquisas na<br />
área <strong>de</strong> alfabetização e oferecer aos alfabetizadores uma nova possibilida<strong>de</strong> para trabalhar o<br />
gênero lenda em sala <strong>de</strong> aula.<br />
Nessa perspectiva, a construção <strong>de</strong>sta pesquisa levou em consi<strong>de</strong>ração a produção<br />
<strong>de</strong> texto com foco no gênero textual lenda numa classe <strong>de</strong> alfabetização no Distrito Fe<strong>de</strong>ral.<br />
Na alfabetização, a escolha <strong>de</strong>sse gênero como objeto <strong>de</strong> ensino-aprendizagem está centrada<br />
em quatro pilares: i) oferecer à criança o cenário <strong>de</strong> encantamento necessário à sua faixa etária<br />
e também possibilitar diversas interações necessárias para a aprendizagem; ii) proporcionar<br />
aos alunos o acesso a uma cultura diferente, objetivando a valorização e o respeito às<br />
múltiplas culturas e aos diversos gêneros; iii) promover momentos <strong>de</strong> aprendizagem por<br />
meio <strong>de</strong> histórias que serão lidas ou contadas em sala <strong>de</strong> aula; e iv) colaborar com publicações<br />
na área <strong>de</strong> alfabetização, tendo o gênero como objeto <strong>de</strong> ensino.<br />
Nesta dissertação se <strong>de</strong>screvem as ativida<strong>de</strong>s baseadas na sequência didática<br />
(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) aplicada numa escola pública do Distrito<br />
Fe<strong>de</strong>ral e também se analisam as produções textuais recolhidas nos meses <strong>de</strong> março, junho e<br />
novembro do ano <strong>de</strong> 2005. O presente estudo po<strong>de</strong> interessar a futuros alfabetizadores que<br />
pretendam <strong>de</strong>senvolver ativida<strong>de</strong>s baseadas no gênero (BAKHTIN, 2006; BRONCKART,
15<br />
2003; SCHNEUWLY, 2004) englobando o sistema alfabético na aprendizagem da língua<br />
escrita (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b, 2009).<br />
As produções escritas foram recolhidas em três momentos: i) a primeira amostra foi<br />
recolhida em março, com objetivo <strong>de</strong> diagnosticar como as crianças chegaram à primeira série;<br />
ii) a segunda amostra foi recolhida em junho, após a aplicação das ativida<strong>de</strong>s, com objetivo <strong>de</strong><br />
acompanhar e analisar o andamento do processo; e iii) a terceira amostra foi recolhida em<br />
novembro, com objetivo <strong>de</strong> analisar o percurso metodológico do processo <strong>de</strong> apropriação da<br />
língua. Os dados foram analisados sob duas perspectivas: o uso social da escrita e o sistema<br />
alfabético. Na primeira etapa, a ênfase recaiu inicialmente sobre o encaminhamento do<br />
processo metodológico para <strong>de</strong>senvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o<br />
processo <strong>de</strong> aplicação das ativida<strong>de</strong>s baseada na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />
NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Na segunda<br />
etapa, explicamos as ativida<strong>de</strong>s aplicadas para apropriação do sistema alfabético e analisamos,<br />
através dos dados, o percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética. Assim,<br />
concentramo-nos na observação das capacida<strong>de</strong>s individuais dos alunos e na <strong>de</strong>scrição das<br />
ativida<strong>de</strong>s aplicadas.<br />
Em relação ao gênero adotamos a proposta do interacionismo sociodiscursivo<br />
(BRONCKART, 2003), teoria na qual o gênero <strong>de</strong>ve ser visto como (mega) instrumento <strong>de</strong><br />
ensino-aprendizagem, e sua elaboração didática acontece por meio <strong>de</strong> sequências didáticas<br />
(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004), que são ativida<strong>de</strong>s organizadas <strong>de</strong> forma<br />
sistemática e aplicadas gradativamente. Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 97), “uma<br />
sequência didática tem, precisamente, a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar o aluno a dominar melhor um<br />
gênero <strong>de</strong> texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar <strong>de</strong> uma maneira mais a<strong>de</strong>quada<br />
numa dada situação <strong>de</strong> comunicação”. Para aplicar a sequência didática, <strong>de</strong>vemos realizar o<br />
planejamento pedagógico <strong>de</strong> acordo com as características do gênero a ser estudado e, no<br />
nosso caso, dirigir as ativida<strong>de</strong>s para as situações <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />
Os autores recomendam que, ao elaborar uma sequência didática, os professores<br />
obe<strong>de</strong>çam a cinco passos: no primeiro momento, apresentar a situação e esclarecer aos alunos<br />
os procedimentos que serão adotados. Em seguida, a primeira produção será <strong>de</strong>dicada a tomar<br />
conhecimento do que o aluno já sabe a respeito do gênero em estudo. Em outro momento,<br />
após a avaliação da primeira produção, a partir do diagnóstico <strong>de</strong>ssas produções, o professor<br />
seleciona as ativida<strong>de</strong>s necessárias para apropriação do gênero e <strong>de</strong> que forma serão<br />
organizadas. Na produção final, o processo <strong>de</strong> aplicação da sequência didática será avaliado<br />
como um todo, observando-se as produções dos alunos. Após a aplicação da sequência
16<br />
didática, o professor <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>bruçar-se sobre as produções e analisar o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> cada<br />
aluno, com o intuito <strong>de</strong> obter o perfil não somente do aluno, mas também da turma como um<br />
todo.<br />
Em relação ao sistema alfabético adotamos como pressupostos teóricometodológicos<br />
os estudos <strong>de</strong> Scliar-Cabral (2003a; b, 2009). Na obra Princípios do sistema<br />
alfabético do português do Brasil, a autora especifica o que ela consi<strong>de</strong>ra princípios-chave<br />
para <strong>de</strong>senvolver o processo da leitura e da escrita e também como aplicá-los<br />
metodologicamente ao português brasileiro. Scliar-Cabral aponta a falta da fundamentação<br />
teórica por parte dos profissionais como uma das principais causas para o frágil <strong>de</strong>sempenho<br />
no ensino-aprendizagem, sobretudo quanto à apropriação dos conceitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação e<br />
codificação. Segundo ela, se aplicados corretamente, esses conceitos garantem o acesso aos<br />
processos complexos <strong>de</strong> compreensão e <strong>de</strong> produção dos textos escritos, daí a importância<br />
<strong>de</strong>ste trabalho que preten<strong>de</strong> preencher tal lacuna.<br />
Enten<strong>de</strong>mos que, <strong>de</strong> maneira geral, o aluno iniciante <strong>de</strong>senvolve a habilida<strong>de</strong> da<br />
leitura e, em um segundo momento, apropria-se da escrita, ou seja, a leitura prece<strong>de</strong> a escrita<br />
e é primordial no processo <strong>de</strong> alfabetização. Este trabalho apresenta a escrita como foco <strong>de</strong><br />
investigação utilizando os gêneros textuais como metodologia <strong>de</strong> ensino-aprendizagem, e,<br />
principalmente, acolhe o gênero lenda como estratégia para apropriação do sistema alfabético.<br />
Consi<strong>de</strong>rando a alfabetização ainda um problema enfrentado por escolas e professores do<br />
nosso país, e que as abordagens predominantes atuais ainda não incorporaram plenamente a<br />
i<strong>de</strong>ia do gênero textual às práticas da leitura e da escrita, preten<strong>de</strong>-se aqui <strong>de</strong>screver a<br />
proposição <strong>de</strong> encaminhamento metodológico para o processo <strong>de</strong> apropriação da língua<br />
escrita numa classe <strong>de</strong> alfabetização, tendo a lenda como gênero-instrumento na ação<br />
didático-pedagógica. Desse objetivo geral, <strong>de</strong>sdobraram-se três objetivos específicos:<br />
i) i<strong>de</strong>ntificar características do gênero textual lenda que justificam seu uso com<br />
esse público;<br />
ii) <strong>de</strong>screver o encaminhamento procedimental das ativida<strong>de</strong>s com o gênero lenda<br />
no dia a dia da alfabetização, consi<strong>de</strong>rando a dupla via – sistêmica e textual – <strong>de</strong>sse processo;<br />
iii) i<strong>de</strong>ntificar as implicações <strong>de</strong> um encaminhamento metodológico do processo<br />
<strong>de</strong> alfabetização por meio <strong>de</strong> lendas na produção <strong>de</strong> textos.<br />
Pelo exposto, <strong>de</strong>screvemos a metodologia adotada para a apropriação da<br />
linguagem escrita, utilizando o gênero lenda numa turma <strong>de</strong> alfabetização. As aulas passaram<br />
por uma série <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> textos do gênero lenda para a apropriação da
17<br />
linguagem escrita. Isso não quer dizer que somente esse gênero foi trabalhado, mas que esse<br />
gênero serviu como ponto <strong>de</strong> partida para realizar ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula.<br />
O presente estudo divi<strong>de</strong>-se em três capítulos para apresentar as especificida<strong>de</strong>s da<br />
pesquisa: na primeira parte, a introdução. No primeiro capítulo, uma revisão teórica, iniciando<br />
com a alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos<br />
norteadores da apropriação da língua escrita na escola. Logo após essa etapa, enfatizamos os<br />
usos sociais da escrita e o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento<br />
da Escola <strong>de</strong> Genebra. Em seguida, a base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo e<br />
a sequência didática <strong>de</strong> Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) como intervenção pedagógica<br />
proposta pelo interacionismo sociodiscursivo. Revisamos ainda o gênero lenda especificando<br />
as bases teóricas. Também contemplamos a apropriação da escrita na escola: particularida<strong>de</strong>s<br />
do domínio do código, passando para similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita com<br />
base em Scliar-Cabral (2003a, 2003b) e Marcuschi (2008). A seguir esclarecemos a relação<br />
entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong> palavra, sílaba e<br />
fonema e suas implicações na alfabetização. Logo em seguida, passamos a <strong>de</strong>scrição do<br />
sistema alfabético do português no que respeita à escrita com base em Scliar-Cabral (2003a;<br />
b, 2009). Terminamos o capítulo discutindo a relação entre aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
(VYGOTSKY ,1998,1999) no processo <strong>de</strong> alfabetização. Assim sendo, revisamos o conceito<br />
<strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 1998,1999) e linguagem escrita<br />
(VYGOTSKY, 1998,1999; LURIA, 1998).<br />
No segundo capítulo, apresentamos os procedimentos metodológicos: o tipo <strong>de</strong><br />
estudo, o contexto da pesquisa: a escola; a turma; a sala <strong>de</strong> aula on<strong>de</strong> foi realizada a pesquisa.<br />
Em seguida, <strong>de</strong>stacamos a organização dos dados e, finalmente, a forma <strong>de</strong> analisá-los. No<br />
terceiro capítulo, apresentamos a análise e colocamos à disposição do leitor a reprodução e a<br />
transcrição da produção textual dos alunos para facilitar a visualização e o acompanhamento<br />
dos dados. A última parte <strong>de</strong>sta pesquisa constitui-se das consi<strong>de</strong>rações finais.<br />
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
18<br />
Como mencionado na introdução <strong>de</strong>ste estudo, a perspectiva <strong>de</strong> trabalhar os<br />
gêneros enquanto objeto <strong>de</strong> ensino foi legitimada no Brasil após a publicação dos Parâmetros<br />
Curriculares Nacionais em 1997. A partir <strong>de</strong>sse documento, novas orientações foram<br />
formuladas sobre os usos e as funções sociais da escrita. Nesse direcionamento, quanto ao uso<br />
<strong>de</strong> gêneros textuais nas práticas educativas, o gênero lenda nos parece a<strong>de</strong>quado para<br />
organizar o processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita na alfabetização. Neste trabalho a<br />
alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da escrita, visando às práticas<br />
sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma receita culinária; e além das<br />
práticas cotidianas, existem ainda as práticas acadêmicas: artigos científicos, monografias,<br />
dissertações e outros, don<strong>de</strong> se conlui que as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita serão requisitadas em<br />
maior ou menor grau <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do ambiente em que o sujeito vive e das<br />
ativida<strong>de</strong>s que exerce.<br />
Neste capítulo, apresentamos a revisão das teorias que serviram <strong>de</strong> base para a<br />
sustentação da pesquisa.<br />
2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTOS<br />
DE SENTIDO<br />
Durante o processo <strong>de</strong> alfabetização, apresentar gêneros diversificados à criança<br />
po<strong>de</strong> constituir-se numa excelente estratégia <strong>de</strong> ensino. Essa varieda<strong>de</strong> é fundamental para<br />
que a criança entenda os diferentes objetivos <strong>de</strong> um texto escrito e seu uso nas práticas<br />
sociais. Enten<strong>de</strong>mos que, a criança em processo <strong>de</strong> alfabetização <strong>de</strong>ve ter acesso aos dois<br />
processos - leitura e escrita - pois sem harmonizá-los, a alfabetização po<strong>de</strong> ficar seriamente<br />
comprometida, porque eles estão interligados: um complementa o outro. Como já se viu<br />
aqui, o processo <strong>de</strong> aprendizagem da leitura não faz parte <strong>de</strong>sta pesquisa, mas reconhecemos<br />
a sua importância em turmas <strong>de</strong> alfabetização.<br />
2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos<br />
norteadores da apropriação da língua escrita na escola
19<br />
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1997) têm sido frequentemente o<br />
tema <strong>de</strong> discussões sobre as práticas <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. O foco <strong>de</strong> interesse é a<br />
concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs <strong>de</strong> Língua Portuguesa do<br />
Ensino Fundamental. O nosso trabalho se refere ao ensino-aprendizagem da escrita,<br />
adaptando ativida<strong>de</strong>s linguísticas fundamentadas na teoria dos gêneros textuais para orientar<br />
as práticas <strong>de</strong> ensino. Na primeira parte <strong>de</strong>sta seção se discute o que esse documento traz<br />
sobre gêneros textuais e suas implicações para o processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. Na<br />
sequência, discute-se o Pró-letramento, outro documento que contribui com as relações entre<br />
a teoria dos gêneros textuais e o sistema alfabético.<br />
Um dos objetivos do ensino <strong>de</strong> Língua Portuguesa é promover a análise e a reflexão<br />
sobre a língua em uso, introduzindo progressivamente os elementos <strong>de</strong> natureza<br />
metalinguística (PCNs, 1997, p. 38-39). Aqui se propõe discutir a linguagem sob dois<br />
enfoques: a reflexão sobre o seu uso e a <strong>de</strong>scrição dos seus elementos linguísticos numa classe<br />
<strong>de</strong> alfabetização. Na primeira, as ativida<strong>de</strong>s estão baseadas em situações didáticas que<br />
possibilitem a reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelo produtor/autor do texto, e<br />
sua realização exige um planejamento especializado nas especificida<strong>de</strong>s do gênero a ser<br />
trabalhado. Na segunda, as ativida<strong>de</strong>s se <strong>de</strong>senvolvem com vistas a possibilitar ao aluno o<br />
levantamento <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aspectos da língua e a sistematização e a classificação <strong>de</strong><br />
suas características, abordagem na qual a produção textual assume a posição <strong>de</strong> reflexão sobre<br />
a língua. Os professores <strong>de</strong>vem apresentar ativida<strong>de</strong>s que possibilitem a aproximação da<br />
criança com diferentes formas <strong>de</strong> realização da linguagem na socieda<strong>de</strong>, reconhecendo a sua<br />
singularida<strong>de</strong> e sua composição.<br />
Basicamente, os PCNs (1997) se fundamentam na teoria <strong>de</strong> Bakhtin (1992, 1997),<br />
no que se refere aos elementos que constituem o enunciado: conteúdo temático, construção<br />
composicional e estilo; e em Bronckart (1996) e seus colaboradores da Escola <strong>de</strong> Genebra, em<br />
relação à ativida<strong>de</strong> social, especialmente sobre o comportamento dos gêneros nas diversas<br />
situações <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> linguagem, correlacionando-os às práticas <strong>de</strong> ensino em sala <strong>de</strong> aula.<br />
Esse documento também toma como ponto <strong>de</strong> partida o entendimento <strong>de</strong> texto e contexto com<br />
vista ao funcionamento da linguagem em situação <strong>de</strong> uso, consi<strong>de</strong>rando a interação professoraluno<br />
em sala <strong>de</strong> aula como indispensável ao <strong>de</strong>senvolvimento da aprendizagem<br />
(VYGOTSKY, 1999).<br />
A proposta dos PCNs (1997) é que o aluno aprenda a produzir e a interpretar textos,<br />
proporcionando-lhe o conhecimento necessário para interagir produtivamente com seus pares<br />
em diferentes ativida<strong>de</strong>s discursivas. Essas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas processos
20<br />
ativos, e a concepção <strong>de</strong> linguagem como uma ação dirigida com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> facilitar a<br />
comunicação que se realiza em diferentes grupos sociais. Assim, as intenções comunicativas<br />
surgem do entendimento <strong>de</strong> que os indivíduos se organizam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado gênero<br />
movidos pela ativida<strong>de</strong> social; no presente caso, em sala <strong>de</strong> aula, a interação professor-aluno<br />
se efetiva concretamente pelo uso dos gêneros textuais nas práticas escolares.<br />
Nesse sentido, apren<strong>de</strong>r a refletir sobre a língua é ter em conta o contexto <strong>de</strong> uso e<br />
as condições <strong>de</strong> produção, planejando situações didáticas que possibilitem a reflexão sob os<br />
diferentes enfoques <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. O documento sugere ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
metalinguagem que possibilitem ao aluno o levantamento <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>s, a reflexão das<br />
condições <strong>de</strong> produção do discurso e as limitações estabelecidas pelo gênero e pelo suporte 2 .<br />
Dessa maneira, recomenda o planejamento englobando situações didáticas que possibilitem o<br />
entendimento do texto construído socialmente e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> análise linguística, isto é, o<br />
ensino <strong>de</strong> produção textual com base nos diversos gêneros textuais que estão presentes na<br />
vida cotidiana do aluno.<br />
Outro documento disponível é o Pró-letramento, emerso da análise dos dados 3 do<br />
Sistema Nacional <strong>de</strong> Educação Básica (SAEB), que <strong>de</strong>monstrou o baixo <strong>de</strong>sempenho das<br />
escolas em relação ao ensino <strong>de</strong> Língua Portuguesa e Matemática nas séries iniciais. Pelos<br />
dados apresentados, observa-se que apenas 4,8% dos alunos que cursavam a 4ª série no ano <strong>de</strong><br />
2003 foram consi<strong>de</strong>rados leitores com habilida<strong>de</strong>s consolidadas; estabeleceram a relação <strong>de</strong><br />
causa e consequência em textos narrativos mais longos; reconheceram o efeito <strong>de</strong> sentido<br />
<strong>de</strong>corrente do uso da pontuação; distinguiram efeitos <strong>de</strong> humor mais sutis; i<strong>de</strong>ntificaram a<br />
finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um texto com base em pistas textuais mais elaboradas e <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>ram relação<br />
<strong>de</strong> causa e conseqüência implícita no texto, além <strong>de</strong> outras habilida<strong>de</strong>s. Em relação à<br />
matemática o resultado não foi diferente: embora na nossa prática essa disciplina seja olhada<br />
com muito cuidado, aqui foge ao nosso objetivo. O Programa se constitui <strong>de</strong> dois módulos:<br />
um <strong>de</strong>dicado à alfabetização e linguagem e o outro à matemática.<br />
Esse documento parte da concepção <strong>de</strong> que a língua é um sistema situado na<br />
interação verbal e se realiza através <strong>de</strong> textos, ou discursos, falados ou escritos, privilegiando<br />
um trabalho organizado em torno do uso da língua que possibilite a reflexão sobre as<br />
2<br />
Enten<strong>de</strong>mos aqui que suporte <strong>de</strong> um gênero é uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e<br />
mostra um texto, <strong>de</strong> acordo com Marcuschi (2008, p. 174).<br />
3 Disponível em: . Acesso em 16 jun.<br />
2010.
21<br />
diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego da língua em vários contextos (BRASIL, PRÓ-<br />
LETRAMENTO, 2007, p.11. FASCÍCULO 1).<br />
Em tal sentido, a proposta visa a trabalhar conhecimentos, capacida<strong>de</strong>s e atitu<strong>de</strong>s<br />
envolvidas na compreensão dos usos e funções sociais da escrita, envolvendo conhecimentos<br />
específicos sobre o sistema alfabético em relação aos elementos do sistema fonológico e às<br />
suas inter-relações, implicando o manuseio <strong>de</strong> diversos gêneros presentes em diferentes<br />
suportes (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />
De acordo com o documento, para <strong>de</strong>senvolver a apropriação do sistema <strong>de</strong> escrita,<br />
<strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>senvolver as capacida<strong>de</strong>s, os conhecimentos e as atitu<strong>de</strong>s previstas para o primeiro,<br />
o segundo e o terceiro ano do ensino fundamental. No primeiro fascículo a discussão recai<br />
sobre a escrita e a leitura. Em relação à escrita, que nos interessa nesta dissertação, esse<br />
fascículo se organiza em torno <strong>de</strong> doze capacida<strong>de</strong>s linguísticas para <strong>de</strong>senvolver a<br />
apropriação da escrita nos três primeiros anos do ensino fundamental. Resumimos a seguir<br />
essas capacida<strong>de</strong>s.<br />
A primeira capacida<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong> a diferenciação entre a escrita alfabética e<br />
outras formas gráficas, cujo reconhecimento implica distinguir letras <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos, letras <strong>de</strong><br />
rabiscos, letras <strong>de</strong> números e letras <strong>de</strong> símbolos gráficos, como setas, asteriscos, sinais<br />
matemáticos etc. A segunda capacida<strong>de</strong> diz respeito ao domínio das conversões gráficas da<br />
nossa escrita que se realiza <strong>de</strong> cima para baixo e da esquerda para direita, indicando a<br />
<strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> palavras (espaço em branco) e frases (pontuação). A terceira capacida<strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orientar e alinhar a escrita da língua portuguesa, capacida<strong>de</strong> que<br />
<strong>de</strong>ve ser iniciada no primeiro ano do ensino fundamental, ajudando o aluno a diferenciar letras<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos.<br />
A quarta capacida<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong> a função <strong>de</strong> segmentação dos espaços em branco<br />
e da pontuação <strong>de</strong> final <strong>de</strong> frase para compreen<strong>de</strong>r que fala e escrita acontecem <strong>de</strong> maneiras<br />
diferentes, uma vez que fala e escrita são produzidas em sequência linear. A quinta<br />
capacida<strong>de</strong> reconhece que uma forma <strong>de</strong> introduzir as unida<strong>de</strong>s fonoaudiológicas como<br />
sílabas, rimas e terminações <strong>de</strong> palavra em sala <strong>de</strong> aula é por meio <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras como<br />
adivinhações, travalínguas e cantigas <strong>de</strong> roda, entre outras, focalizando primeiramente as<br />
unida<strong>de</strong>s fonológicas com as quais os alunos já são capazes <strong>de</strong> lidar. A finalida<strong>de</strong> da sexta<br />
capacida<strong>de</strong> é conhecer o alfabeto, o que se faz apresentando-o aos alunos e promovendo<br />
situações que os levem a <strong>de</strong>scobrir que se trata <strong>de</strong> um conjunto estável <strong>de</strong> símbolos; sugerem<br />
ainda que se comece a familiarizá-los com a sua natureza e o seu funcionamento logo no<br />
primeiro ano, aos seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. O propósito da sétima capacida<strong>de</strong> é compreen<strong>de</strong>r a
22<br />
categorização gráfica e funcional das letras e implica compreen<strong>de</strong>r que elas variam na forma<br />
gráfica e no valor funcional, levando o aluno a perceber que apesar das diferentes formas<br />
gráficas (maiúsculas, minúsculas, imprensa, cursiva) a letra permanece a mesma e exerce a<br />
mesma função na escrita.<br />
O objetivo da oitava capacida<strong>de</strong> é promover o conhecimento e a utilização <strong>de</strong><br />
diferentes tipos <strong>de</strong> letras (<strong>de</strong> fôrma e cursiva), levando o aluno a traçar e a dominar as<br />
diferentes formas <strong>de</strong> registro alfabético. A intenção da nona capacida<strong>de</strong> é compreen<strong>de</strong>r a<br />
natureza alfabética do sistema <strong>de</strong> escrita, ou seja, diz respeito à natureza da relação entre a<br />
escrita e a ca<strong>de</strong>ia sonora das palavras que as crianças tentam escrever ou ler. A décima<br />
capacida<strong>de</strong> nos chama a atenção para o domínio das relações entre grafemas e fonemas como<br />
fundamental para apropriar-se do sistema alfabético. Essas regras <strong>de</strong> correspondência são<br />
variadas. Há poucos casos <strong>de</strong> relação entre fonemas e grafemas que não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do<br />
contexto fonético, e nem sempre a relação entre fonema e grafema é biunívoca.<br />
A décima primeira capacida<strong>de</strong> diz respeito ao domínio das regularida<strong>de</strong>s<br />
ortográficas sistematizadas em sala <strong>de</strong> aula e recomenda o uso do critério <strong>de</strong> progressão,<br />
partindo do mais simples para o mais complexo, isto é, iniciando com os casos em que os<br />
valores atribuídos aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do contexto para os casos em que os valores<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do contexto. Enfim, a décima segunda refere-se às dificulda<strong>de</strong>s do domínio do<br />
sistema ortográfico em relação aos casos em que os valores <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da posição e do<br />
contexto fonético. Aliás, nesta dissertação as três últimas capacida<strong>de</strong>s foram explanadas<br />
extensivamente na seção <strong>de</strong> apropriação da escrita na escola: particularida<strong>de</strong>s do domínio do<br />
código.<br />
Esses documentos sugerem ativida<strong>de</strong>s que possibilitem ao aluno apren<strong>de</strong>r a<br />
refletir sobre a língua, tendo em conta o contexto <strong>de</strong> uso e as condições <strong>de</strong> produção. As<br />
produções textuais nessas abordagens assumem a posição <strong>de</strong> reflexão sobre a língua. Cabe aos<br />
professores apresentar ativida<strong>de</strong>s que possibilitem a aproximação da criança com diferentes<br />
formas <strong>de</strong> realizar a linguagem na socieda<strong>de</strong>, reconhecendo a sua singularida<strong>de</strong> e as suas<br />
proprieda<strong>de</strong>s compositivas. A nosso ver, os textos produzidos pelos alunos <strong>de</strong>vem funcionar<br />
como ponto <strong>de</strong> partida para trabalhar a linguagem em uso e os elementos metalinguísticos,<br />
proporcionando-lhes o domínio da escrita da língua.
23<br />
2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao<br />
pensamento da Escola <strong>de</strong> Genebra<br />
Os Parâmetros Curriculares Nacionais têm como ponto <strong>de</strong> partida a concepção do<br />
gênero. O documento traz como proposta <strong>de</strong> Língua Portuguesa do Ensino Fundamental a<br />
apresentação <strong>de</strong> gêneros diversificados como estratégia <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. A<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa varieda<strong>de</strong> é fundamental para que a criança entenda os diferentes objetivos<br />
<strong>de</strong> um texto escrito e seu uso nas práticas sociais. Na escola, especificamente na alfabetização,<br />
encontramos o conto <strong>de</strong> fada, a fábula, a anedota, a piada, o poema, a cruzadinha, a parlenda,<br />
o provérbio, a crônica, a receita, a história em quadrinho, a poesia, a lenda, o relatório etc.<br />
Os gêneros são usados e produzidos <strong>de</strong> acordo com a situação. Baseando-nos em<br />
autores (BAKHTIN, 2006; BRONCKART, 2003; MARCUSCHI, 2002; SCHENEUWLY,<br />
2004; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS,<br />
DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2002; COELHO, 2003, 2004 entre<br />
outros) que conceituam os gêneros e esclarecem sobre suas especificida<strong>de</strong>s, levamos os<br />
gêneros para uma classe <strong>de</strong> alfabetização por enten<strong>de</strong>r que eles estão presentes em nossas<br />
práticas escolares in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do tratamento que se lhes dê. A respeito da<br />
alfabetização, po<strong>de</strong>mos dizer que a compreensão da língua <strong>de</strong>corre não somente das regras<br />
gramaticais, mas <strong>de</strong> diversos contextos linguísticos que compõem o ambiente escolar. Em<br />
outras palavras, o trabalho baseado em gêneros po<strong>de</strong> levar o aluno a compreen<strong>de</strong>r e a<br />
reconhecer as práticas <strong>de</strong> linguagem em uso no seu cotidiano.<br />
A teoria <strong>de</strong> Bakhtin (2006) sustenta que todos os campos da ativida<strong>de</strong> humana em<br />
situação <strong>de</strong> interação estão ligados ao uso da linguagem. Nessa perspectiva, tais situações <strong>de</strong><br />
interação entre os falantes são construídas historicamente; organizam-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certo<br />
domínio social e efetivam-se no centro <strong>de</strong>sses domínios pela necessida<strong>de</strong> do uso da<br />
linguagem, <strong>de</strong> forma que cada enunciado é individual, mas cada campo <strong>de</strong> utilização da<br />
língua elabora seus tipos relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados, os gêneros do discurso<br />
(BAKHTIN, 2006).<br />
Em Os gêneros do discurso, Bakthin (2006) se <strong>de</strong>bruça sobre a questão dos<br />
gêneros. Na sua teoria, os gêneros referem-se à diversida<strong>de</strong> e à heterogeneida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>correm<br />
das práticas sociais nas diferentes esferas sociais e se situam como tipos relativamente<br />
estáveis <strong>de</strong> enunciados, constituídos nos domínios: social, discursivo e dialógico. Para o autor,
24<br />
há uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros circulando na socieda<strong>de</strong>: no trabalho, nas ações cotidianas, na<br />
arte etc. Em seu domínio <strong>de</strong> circulação, po<strong>de</strong>-se dizer que o gênero é insubstituível e alguns<br />
casos são exclusivos, como fichas <strong>de</strong> matrículas <strong>de</strong> aluno, boletim, <strong>de</strong>claração provisória <strong>de</strong><br />
matrícula etc., gêneros que circulam exclusivamente em secretarias <strong>de</strong> escolas. Dessa forma,<br />
os gêneros foram historicamente construídos para aten<strong>de</strong>r necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />
socioculturais e <strong>de</strong> inovações tecnológicas num domínio específico. Já no campo acadêmico,<br />
uma tese <strong>de</strong> doutorado, um artigo científico, por exemplo, exige do produtor e do leitor certo<br />
grau <strong>de</strong> conhecimento sobre o assunto que será tratado. Cotidianamente circulam por nossas<br />
mãos diversos gêneros, como receita culinária, conta <strong>de</strong> luz, <strong>de</strong> água, <strong>de</strong> telefone; bilhete <strong>de</strong><br />
loteria, bilhetes em geral, convites os mais diversos, cartas pessoais etc.<br />
Para Bakhtin (2006) esses gêneros circulam socialmente e se organizam em<br />
primários e secundários. Os gêneros primários se estabelecem no campo da comunicação<br />
imediata, no cotidiano (conversas, bilhetes, relatos, cartas). Os gêneros secundários <strong>de</strong>correm<br />
da comunicação cultural mais elaborada (romances, teses, livros), e são organizados e<br />
mediados pela escrita. Para o autor, os gêneros secundários <strong>de</strong>rivam dos gêneros primários,<br />
transformam-se e incorporam a sua estrutura e, ao adquirir um caráter especial, per<strong>de</strong>m sua<br />
ligação imediata com a realida<strong>de</strong> concreta e os enunciados reais alheios. Por exemplo: o<br />
romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta conservam sua forma e seu significado<br />
cotidiano apenas no plano do conteúdo, isto é, o romance integrado à realida<strong>de</strong> é concebido<br />
como evento literário-artístico e não como evento da vida cotidiana (BAKHTIN, 2006, p.<br />
263).<br />
O conceito <strong>de</strong> interação social é basilar nessa concepção, sustentando que a<br />
linguagem se situa nas relações sociais estabelecidas e mantidas por uso dos gêneros do<br />
discurso. Ou seja, a língua nos diferentes domínios da ativida<strong>de</strong> social, postura que coloca<br />
Bakhtin e colaboradores em oposição ao subjetivismo i<strong>de</strong>alista e ao objetivismo abstrato,<br />
tendências amparadas no início do século XX pela filosofia e pela linguística da época. Na<br />
concepção bakhtiniana, a interação verbal se constrói entre os indivíduos <strong>de</strong> acordo com a<br />
posição social que ocupam e é organizada pelos meios sociais. Dessas interações serão<br />
consi<strong>de</strong>radas as respostas (orais ou escritas) geradas tanto por parte do locutor quanto por<br />
parte do interlocutor, daí ser imprescindível estabelecer uma sequência lógica entre os<br />
enunciados para que se possa produzir sentido e compreensão do papel social <strong>de</strong> cada sujeito.<br />
De acordo com o autor, a linguagem se constitui nas práticas sociais e não por orações<br />
isoladas nem por palavras soltas; falar por meio <strong>de</strong> enunciado é compreen<strong>de</strong>r aquilo que foi
25<br />
dito ou escrito, e, portanto, não basta obe<strong>de</strong>cer a um padrão gramatical correto, é preciso<br />
produzir sentido entre locutor e interlocutor.<br />
Tal como Bakhtin, Bronckart (2003) rejeita as teorias que resultam das teorias<br />
subjetivistas, concebendo a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> textualização como essencial em sua teoria ao<br />
<strong>de</strong>clarar as condições <strong>de</strong> produção textual e classificação dos gêneros como parte do<br />
funcionamento sócio-histórico. Para o autor, toda produção linguística é uma “ação situada”<br />
particular movida por indivíduos socialmente envolvidos, assumindo que as únicas<br />
“manifestações empiricamente observáveis das ações <strong>de</strong> linguagem humanas” são os textos<br />
ou discursos que se apresentam como formas <strong>de</strong> ação social (BRONCKART, 2003, p. 13-14).<br />
E complementa:<br />
Os gêneros não têm o mesmo estatuto dos textos. Estes são um produto da<br />
ação <strong>de</strong> linguagem, enquanto os primeiros são ferramentas para sua<br />
realização, em processo <strong>de</strong> transformação contínua, por meio <strong>de</strong>ssas mesmas<br />
ações. O texto é produto da dialética que se instaura entre representações<br />
sobre os contextos <strong>de</strong> ação e representações relativas às línguas e aos gêneros<br />
<strong>de</strong> texto. Todo texto pertence a um gênero, isto é, seu exemplar<br />
(BRONCKART, 2003, p.108).<br />
Bronckart (2003, p.103) afirma ainda que "a apropriação dos gêneros é um<br />
mecanismo fundamental <strong>de</strong> socialização, <strong>de</strong> inserção prática nas ativida<strong>de</strong>s comunicativas<br />
humanas". Nesse sentido, conhecer um gênero <strong>de</strong> texto também é conhecer suas condições <strong>de</strong><br />
uso, sua pertinência, sua eficácia ou, <strong>de</strong> maneira mais geral, sua a<strong>de</strong>quação em relação às<br />
características <strong>de</strong>sse contexto social (BRONCKART, 2003, grifo do autor), reforçando a i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> que a interação social <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do uso <strong>de</strong>sses gêneros; assim, eles se fundam em ações<br />
coletivas e se realizam nas ativida<strong>de</strong>s comunicativas do dia a dia.<br />
Bronckart <strong>de</strong>clara:<br />
Ao consi<strong>de</strong>rar os gêneros nas diversas situações <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> linguagem,<br />
[...] a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem é, ao mesmo tempo, o lugar e o meio das interações<br />
sociais constitutivas <strong>de</strong> qualquer conhecimento humano; é nessa prática que se<br />
elaboram os mundos discursivos que organizam e semiotizam as representações<br />
sociais do mundo; é na intertextualida<strong>de</strong> resultante <strong>de</strong>ssa prática que se conservam e<br />
se reproduzem os conhecimentos coletivos e é na confrontação com essa<br />
intertextualida<strong>de</strong> sócio-histórica que se elaboram, por apropriação e interiorização, as<br />
representações <strong>de</strong> que dispõe todo agente humano, representações in fine individuais,<br />
no sentido <strong>de</strong> que se organizam em função das características específicas do percurso<br />
experiencial <strong>de</strong> cada agente, erigindo-o, <strong>de</strong>sse modo, em uma pessoa irredutivelmente<br />
singular (BRONCKART, 2003, p. 338).<br />
Com base nesses autores po<strong>de</strong>mos dizer que o texto expressa sentimentos e i<strong>de</strong>ias,<br />
sendo um espaço para a reflexão <strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias mediado pela ação <strong>de</strong> linguagem<br />
oral ou escrita e são concretizadas em forma <strong>de</strong> textos correlacionados às práticas escolares.
26<br />
Rompe-se o paradigma que tomava como unida<strong>de</strong>s básicas o processo <strong>de</strong> ensino com<br />
ativida<strong>de</strong>s para analisar letras, fonemas, sílabas, palavras e frases, que, <strong>de</strong>scontextualizados,<br />
são <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> compreensão. Mais <strong>de</strong>talhes da teoria interacionista<br />
sociodiscursiva encontram-se na próxima seção.<br />
2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo<br />
A teoria do interacionismo sociodiscursivo <strong>de</strong> Bronckart (2003), Schneuwly, Dolz<br />
e Noverraz (2004), da Escola <strong>de</strong> Genebra, tem centralizado seus estudos nas interações sociais<br />
e nas formas linguísticas pelas quais a língua materna se organiza. O tema em questão tem<br />
<strong>de</strong>spertado o interesse <strong>de</strong> muitos pesquisadores brasileiros (ROJO, 2006; GUIMARÃES,<br />
2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS, DREY 2008; BRAIT, 2007; MATÊNCIO,<br />
1994; MACHADO, 2005; SOUZA, 2003; COELHO, 2003, 2004; BALTAR, 2007 entre<br />
outros).<br />
Muitas contribuições no campo da linguagem têm sido produzidas em parcerias,<br />
como grupos <strong>de</strong> pesquisa, teses, dissertações, artigos, livros, monografias, e, sobretudo,<br />
materiais didáticos com a intenção <strong>de</strong> intervir metodologicamente no ensino da língua<br />
materna e das estrangeiras, proporcionando formação aos professores fundamentada no<br />
interacionismo sociodiscursivo.<br />
Consi<strong>de</strong>rando o exposto, po<strong>de</strong>mos dizer que o interacionismo sociodiscursivo<br />
vem expandindo-se ao longo da última década. Neste trabalho, essa corrente teórica está<br />
sendo privilegiada. Ela concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo e que é<br />
constantemente modificado pela ação dos sujeitos, além <strong>de</strong> manifestar o respeito pelo diversos<br />
falares existentes em uma comunida<strong>de</strong> e conceber a escola como lugar <strong>de</strong> excelência para<br />
<strong>de</strong>senvolver as competências da leitura e da escrita.<br />
O interacionismo sociodiscursivo, proposta teórica e metodológica <strong>de</strong>fendida por<br />
Bronckart (2003) em associação com Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) para o ensino <strong>de</strong><br />
gênero congrega diferentes abordagens teóricas: Vygotsky (1972, 1999) no que diz respeito à<br />
abordagem psicológica; em Habermas (1987) na questão do agir comunicativo; por Bakhtin<br />
(1978; 1984), em relação à interação verbal, sobretudo à análise dos gêneros e tipos textuais.
27<br />
Apoia-se ainda nas bases filosóficas <strong>de</strong> Spinoza (1964, 1965) em relação ao agir humano; em<br />
Foucault (1969) na análise das formações sociais, e em Wittgenstein (1961, 1975) quanto ao<br />
jogo <strong>de</strong> linguagem como produto da interação social. Convém salientar que não é objetivo<br />
<strong>de</strong>ste trabalho <strong>de</strong>talhar tais influências, mas buscar apoio nas premissas do interacionismo<br />
sociodiscursivo em relação à ação comunicativa dos indivíduos em interação dialógica.<br />
Bronckart (2003) ensina que interagimos socialmente mediados pela ação da<br />
linguagem. A tese central que norteia o interacionismo sociodiscursivo é que “[...] a ação<br />
constitui o resultado da apropriação, pelo organismo humano, das proprieda<strong>de</strong>s da ativida<strong>de</strong><br />
social mediada pela linguagem” (p. 42). Bronckart sustenta, ainda, que toda língua faz parte<br />
<strong>de</strong> um sistema relativamente estável; <strong>de</strong>ssa forma, essa corrente estimula o estudo do sistema<br />
da língua como um procedimento legítimo e essencial para compreen<strong>de</strong>r o contexto <strong>de</strong><br />
utilização. Ao mesmo tempo, essa concepção concentra-se na análise da organização e do<br />
funcionamento dos textos usados e produzidos numa comunida<strong>de</strong> em ação <strong>de</strong> linguagem.<br />
Para o autor, o texto é entendido como qualquer produção <strong>de</strong> linguagem situada,<br />
acabada e autossuficiente, e obe<strong>de</strong>ce a duas condições: condição interna e condição externa.<br />
Pela condição interna, o autor examina a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> combinação <strong>de</strong> frases mais ou menos<br />
reguladas pelos mecanismos <strong>de</strong> textualização e mecanismos enunciativos, cuja função é<br />
assegurar ao texto produzido um efeito <strong>de</strong> coerência sobre o <strong>de</strong>stinatário. Já pela na condição<br />
externa <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> texto, o autor adota as concepções <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> texto e tipo <strong>de</strong><br />
discurso. Os textos são produzidos <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s e as condições sociais do<br />
meio dos quais são produzidos (BRONCKART, 2003, p.71). Mesmo que não <strong>de</strong>talhemos as<br />
condições internas dos textos, nós as reconhecemos como parte das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apropriação<br />
do código escrito. Neste trabalho, interessa-nos a segunda condição proposta por Bronckart<br />
(2003): especificamente, as concepções <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> texto.<br />
Por essa concepção todo exemplar <strong>de</strong> texto observável po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como<br />
pertencente a <strong>de</strong>terminado gênero. Além disso, o autor aponta alguns problemas que surgem<br />
da dilatação <strong>de</strong>sse conceito: primeiramente, a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> critérios utilizados para <strong>de</strong>finir<br />
um gênero. Outra dificulda<strong>de</strong> indicada pelo autor remete a Bakhtin (2006): alguns gêneros se<br />
modificam, gêneros novos aparecem e ainda há alguns gêneros que <strong>de</strong>saparecem com o<br />
tempo. Devido a tal magnitu<strong>de</strong>, existem espécies <strong>de</strong> textos que sequer foram nomeadas, em<br />
termos <strong>de</strong> gênero, levando-nos a inferir que a ampla capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> circulação dos gêneros<br />
dificulta a <strong>de</strong>marcação do seu limite. Po<strong>de</strong>mos dizer que, <strong>de</strong>vido à complexida<strong>de</strong> do conceito,<br />
os gêneros são correlacionados com as ações <strong>de</strong> linguagem e as formas linguísticas. Dessa<br />
correspondência entre a linguagem e as formas linguísticas fundam-se os chamados tipos <strong>de</strong>
28<br />
discurso. Para <strong>de</strong>linear o conceito <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> discurso, Bronckart (2003) apoia-se em<br />
Benveniste (1966), Weinrich (1973) e Simonin-Grumbach (1975).<br />
Os tipos <strong>de</strong> discurso são os segmentos que compõem um texto e realizam-se na<br />
arquitetura interna, nas interações verbais orais e/ou nas interações verbais escritas, e<br />
materializam-se linguisticamente em mundos discursivos que, articulados aos mecanismos <strong>de</strong><br />
textualização e <strong>de</strong> enunciação, asseguram a unicida<strong>de</strong> textual.<br />
A concepção interacionista sociodiscursiva (BRONCKART, 2003, p. 151)<br />
sustenta a construção <strong>de</strong> dois mundos: o mundo ordinário, representado pelos agentes<br />
humanos, e os mundos virtuais, criados para dar conta da complexida<strong>de</strong> das ações <strong>de</strong><br />
linguagem, chamados <strong>de</strong> “mundos discursivos”. Os mundos discursivos operam em dois<br />
gran<strong>de</strong>s eixos: na or<strong>de</strong>m do expor e na or<strong>de</strong>m do narrar. Na or<strong>de</strong>m do expor, temos o “mundo<br />
do expor implicado” (discurso interativo) e o “mundo <strong>de</strong> expor autônomo” (discurso teórico),<br />
enquanto no mundo do narrar encontramos: “o mundo do narrar implicado” (relato interativo)<br />
e o mundo do narrar autônomo (narração). A configuração e a organização <strong>de</strong>sses mundos<br />
discursivos passam do nível psicológico para as operações concretas que são <strong>de</strong>terminadas<br />
pelo conteúdo temático e pelas ações <strong>de</strong> linguagem. Além disso, Bronckart (2003) i<strong>de</strong>ntifica o<br />
tipo misto interativo teórico, que aparece nas exposições orais, e o tipo misto narrativoteórico,<br />
encontrado normalmente nas obras históricas e em monografias científicas. O autor<br />
organiza o mundo discursivo da seguinte maneira:<br />
Coor<strong>de</strong>nadas gerais dos mundos<br />
Relação ao ato<br />
<strong>de</strong> produção<br />
Implicação<br />
Conjunção<br />
EXPOR<br />
Disjunção<br />
NARRAR<br />
Discurso interativo Relato interativo<br />
Autonomia Discurso teórico Narração<br />
Figura 1- Coor<strong>de</strong>nadas gerais dos mundos discursivos.<br />
Fonte: BRONCKART, Jean Paul. Ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Linguagem, textos e discursos: por um Interacionismo<br />
sóciodiscursivo. São Paulo: Educ, 2003, p. 157.<br />
Para Bronckart (2003), o mundo discursivo da or<strong>de</strong>m do narrar é situado num<br />
“outro lugar”, no qual distingue dois polos: o narrar realista e o narrar ficcional. No primeiro,<br />
o conteúdo po<strong>de</strong> ser avaliado e interpretado <strong>de</strong> acordo com os critérios <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> do mundo<br />
real. Por outro lado, no narrar ficcional, o conteúdo po<strong>de</strong> ser avaliado parcialmente. Além<br />
disso, a or<strong>de</strong>m do narrar, como visualizado na figura acima, opera em duas frentes, a saber:<br />
mundo do narrar implicado e mundo do narrar autônomo. No mundo do narrar implicado<br />
predomina o relato interativo, e no mundo do narrar autônomo, a ênfase recai sobre a
29<br />
narração. De acordo com a proposta do autor, o gênero lenda se encaixa no mundo discursivo<br />
da or<strong>de</strong>m do narrar ficcional.<br />
2.1.2.2 Proposta <strong>de</strong> intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo<br />
O grupo <strong>de</strong> Genebra <strong>de</strong>senvolve estudos sobre ensino e aprendizagem da língua:<br />
discute temas centrais sobre textos, discursos e traz como proposta a sequência didática como<br />
estratégia para <strong>de</strong>senvolver os gêneros no ensino-aprendizagem.<br />
Para Schneuwly (2004), o gênero é entendido, em relação à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
linguagem, como uma ferramenta semiótica complexa em forma <strong>de</strong> linguagem oral ou escrita,<br />
que nos permite produzir e compreen<strong>de</strong>r textos. Dessa maneira, para Schneuwly e Dolz<br />
(2004), os gêneros são (mega) instrumentos elaborados e construídos a partir <strong>de</strong> um contexto<br />
sócio-histórico para aten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>terminada situação, e à medida que esses instrumentos são<br />
reinventados, refletem diretamente no comportamento humano. O uso a<strong>de</strong>quado do<br />
instrumento está no domínio humano, e à medida que o homem ressignifica a sua utilização,<br />
torna-se mediador <strong>de</strong>ssa prática.<br />
Schneuwly (2004), como outros autores que se apoiam na concepção <strong>de</strong> Bakhtin,<br />
consi<strong>de</strong>ra os gêneros como enunciados relativamente estáveis, com conteúdo temático, estilo<br />
e construção composicional. Para i<strong>de</strong>ntificar um gênero, o autor consi<strong>de</strong>ra três dimensões: a)<br />
o reconhecimento do que foi dito e o que foi feito implica a escolha do gênero; b) a sua<br />
estrutura será <strong>de</strong>finida pelo plano comunicacional; c) as marcas da posição enunciativa do<br />
enunciador, sequência textual, tipos <strong>de</strong> discursos, marcas linguísticas do texto e a estrutura<br />
colaboram para alcançar um nível <strong>de</strong> entendimento entre os interlocutores, mas é preciso que<br />
eles partilhem da mesma estrutura do gênero em uso.<br />
Schneuwly e Dolz (2004, p.76) alertam para o fato <strong>de</strong> a escola sempre ter<br />
trabalhado com os gêneros, embora para eles os gêneros não sejam instrumento <strong>de</strong><br />
comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. Ou seja: a<br />
maioria dos professores usa os gêneros há bastante tempo em sala <strong>de</strong> aula, mas sem trabalhálos<br />
como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem voltada para as práticas sociais.
30<br />
Os autores observam, ainda, três maneiras para abordar o ensino da escrita e da<br />
fala: o <strong>de</strong>saparecimento da comunicação; a escola como lugar <strong>de</strong> comunicação e, por último, a<br />
negação da escola como lugar específico <strong>de</strong> comunicação. Pela primeira, os gêneros <strong>de</strong>ixam<br />
<strong>de</strong> fazer parte do contexto da comunicação da escola e passam a significar somente uma<br />
forma linguística, sendo abordados sem nenhuma “[...] relação com uma situação <strong>de</strong><br />
comunicação autêntica” (p.76) e são elaborados “[...] como instrumentos para <strong>de</strong>senvolver e<br />
avaliar, progressiva e sistematicamente, as capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita dos alunos” (p. 77).<br />
Pela segunda concepção, a escola é tratada como um lugar <strong>de</strong> comunicação e “[...]<br />
os gêneros são aprendidos pela prática da linguagem escolar, por meio dos parâmetros<br />
próprios à situação e das interações com os outros” (p.78).<br />
Pela terceira concepção, os gêneros saíram da condição <strong>de</strong> obscurida<strong>de</strong> da<br />
primeira abordagem, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser vistos apenas como parte da comunicação escolar<br />
conforme a segunda abordagem e passaram a fazer parte das práticas cotidianas da escola<br />
“[...] como se houvesse continuida<strong>de</strong> absoluta entre o que é externo e interno à escola” (p.79).<br />
Dessa forma, quando <strong>de</strong>senvolveram as sequências didáticas, Schneuwly, Dolz e<br />
Noverraz (2004) pretendiam preencher a lacuna <strong>de</strong> procedimentos metodológicos para ensinar<br />
a escrever textos e a exprimir-se oralmente em situações públicas escolares e extraescolares.<br />
As sequências didáticas são elaboradas em torno <strong>de</strong> um gênero textual, realizadas<br />
sistematicamente e <strong>de</strong> forma gradativa as dificulda<strong>de</strong>s das ativida<strong>de</strong>s vão sendo propostas.<br />
Por isso, a sequência didática é valioso recurso pedagógico para a compreensão <strong>de</strong> um gênero:<br />
“uma seqüência didática tem, precisamente, a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar o aluno a dominar melhor<br />
um gênero <strong>de</strong> texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar <strong>de</strong> maneira mais a<strong>de</strong>quada numa<br />
dada situação <strong>de</strong> comunicação.” (p. 97). É o que se <strong>de</strong>talha a seguir.<br />
Apresentação da situação (p. 99): “[...] o momento em que a turma constrói uma<br />
representação da situação <strong>de</strong> comunicação e da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem a ser executada.”<br />
Nessa etapa, duas dimensões <strong>de</strong>verão ser trabalhadas: na primeira, é preciso que os alunos<br />
tomem ciência do projeto coletivo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um gênero oral ou escrito que será<br />
<strong>de</strong>senvolvido, e, também, o professor <strong>de</strong>verá explanar para o aluno os problemas a serem<br />
trabalhados. Na segunda dimensão os conteúdos serão evi<strong>de</strong>nciados, e os alunos <strong>de</strong>verão<br />
saber quais conteúdos serão trabalhados pelo professor.<br />
A primeira produção (p.101): “no momento <strong>de</strong> produção inicial, os alunos tentam<br />
elaborar um primeiro texto oral ou escrito e, assim, revelam para si mesmos e para o professor<br />
as representações que têm da ativida<strong>de</strong>.” Nesse primeiro momento, o professor conduzirá a<br />
turma à produção do gênero <strong>de</strong>sejado, sem interferir no processo <strong>de</strong> produção do aluno. É um
31<br />
momento importante porque é a partir da primeira produção que o professor traçará os<br />
caminhos para solucionar os problemas <strong>de</strong>tectados. Além disso, permite ao professor tomar<br />
conhecimento e consciência dos problemas em relação à produção do gênero, servindo para<br />
diagnosticar o <strong>de</strong>senvolvimento real (VYGOTSKY, 1999) do aluno.<br />
Os módulos são as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas pelo professor e as intervenções são<br />
necessárias para resolver “[...] os problemas que aparecem na primeira produção e dar aos<br />
alunos os instrumentos necessários para superá-los” (p. 103). São as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas pelo<br />
professor para realizar as intervenções necessárias para resolver os problemas diagnosticados<br />
na produção inicial. Essas intervenções po<strong>de</strong>m ser feitas em três níveis: primeiramente, ao<br />
trabalhar problemas <strong>de</strong> níveis diferentes, o aluno se <strong>de</strong>para com as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada<br />
gênero e <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> solucionar os possíveis problemas encontrados e, em seguida, o<br />
professor proporciona uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e exercícios; além <strong>de</strong> diversificar as<br />
ativida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ve-se também diversificar os modos <strong>de</strong> trabalhos; por último, ao terminar os<br />
módulos, o aluno apren<strong>de</strong> a capitalizar as aquisições, somando ao seu conhecimento o<br />
aprendizado sobre o gênero abordado.<br />
Produção final (p.106): “[...] a sequência é finalizada com uma produção que dá<br />
ao aluno a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados<br />
separadamente nos módulos”. A finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa produção é investigar a aprendizagem e<br />
também verificar se as estratégias adotadas foram suficientes, o professor <strong>de</strong>verá confrontar a<br />
primeira e a última produção, e, então, elaborar um diagnóstico conciso do <strong>de</strong>sempenho do<br />
aluno. Abaixo, po<strong>de</strong>mos visualizar o esquema da sequência didática como proposto pelos<br />
autores para trabalhar o gênero em sala <strong>de</strong> aula.<br />
ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA<br />
Apresentação<br />
da situação<br />
PRODUÇÃO<br />
INICIAL<br />
Módulo<br />
1<br />
Módulo<br />
2<br />
Módulo<br />
n<br />
PRODUÇÃO<br />
FINAL<br />
Figura 2 - Esquema da sequência didática.<br />
Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e<br />
organização: Roxane Rojo; Glaís Cor<strong>de</strong>iro. Campinas, SP: Mercado <strong>de</strong> Letras, 2004, p. 98.<br />
Consi<strong>de</strong>rando que cada gênero <strong>de</strong> texto necessita <strong>de</strong> uma situação adaptada para<br />
ser <strong>de</strong>senvolvido em sala <strong>de</strong> aula, e que cada gênero oferece características distintas, os<br />
autores propõem que os gêneros sejam agrupados em função <strong>de</strong> certo número <strong>de</strong><br />
regularida<strong>de</strong>s linguísticas e <strong>de</strong> transferências possíveis. Os autores estabelecem três critérios<br />
para o agrupamento: primeiramente, <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas as finalida<strong>de</strong>s sociais atribuídas
32<br />
ao ensino nos domínios essenciais <strong>de</strong> comunicação escrita e oral em nossa socieda<strong>de</strong>; em<br />
segundo, os gêneros <strong>de</strong>vem ser retomados como já funcionam em vários manuais,<br />
planejamentos e currículos e, por fim, que sejam relativamente homogêneos quanto às<br />
capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> linguagem implicadas no domínio dos gêneros agrupados.<br />
Em função <strong>de</strong>sses três critérios, os autores propõem cinco agrupamentos: da<br />
or<strong>de</strong>m do narrar, do relatar, do argumentar, do expor e do <strong>de</strong>screver ações. Schneuwly, Dolz e<br />
Noverraz (2004) enfatizam que seria impossível classificar um gênero <strong>de</strong> maneira absoluta<br />
num dos agrupamentos propostos. Ao elaborar uma sequência didática, <strong>de</strong>ve-se equilibrar a<br />
distribuição das ativida<strong>de</strong>s entre orais e escritas e levar em conta a dificulda<strong>de</strong> em conduzir as<br />
sequências orais e evitar o <strong>de</strong>sgaste tanto por parte dos alunos quanto por parte do professor.<br />
Embora seja difícil <strong>de</strong>senvolvê-los <strong>de</strong> forma sistemática e não façam parte com frequência do<br />
planejamento do professor, os gêneros orais sempre estão presentes em sala <strong>de</strong> aula: são<br />
conversas informais, rodinhas, interações por meio <strong>de</strong> jogos, brinca<strong>de</strong>iras, <strong>de</strong>bates, leituras e<br />
correção das ativida<strong>de</strong>s, entre outras. No quadro <strong>de</strong> agrupamento <strong>de</strong> gêneros abaixo,<br />
ilustramos a sugestão dos autores para agrupar os gêneros.<br />
ASPECTOS TIPOLÓGIGOS<br />
DOMÍNIOS SOCIAIS DE CAPACIDADES<br />
DE EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E<br />
CONSIDERAÇÃO<br />
LINGUAGENS DOMINANTES ESCRITOS<br />
Cultura literária ficcional NARRAR<br />
Conto maravilhoso; fábula; lenda;<br />
Mimeses <strong>de</strong> ação através da<br />
criação <strong>de</strong> intrigas<br />
narrativa <strong>de</strong> aventura; narrativa <strong>de</strong><br />
ficção cientifica; narrativa <strong>de</strong> enigma;<br />
novela fantástica e conto parodiado.<br />
Documentação e memorização<br />
<strong>de</strong> ações humanas<br />
RELATAR<br />
Representação pelo discurso <strong>de</strong><br />
experiências vividas, situadas no<br />
tempo<br />
Relato <strong>de</strong> experiência vivida; relato <strong>de</strong><br />
viagem; testemunho; curriculum vitae;<br />
notícia; reportagem; crônica esportiva e<br />
ensaio bibliográfico.<br />
Discussão <strong>de</strong> problemas sociais ARGUMENTAR<br />
Texto <strong>de</strong> opinião; diálogo<br />
controversos<br />
Sustentação, refutação e argumentativo; carta do leitor; carta <strong>de</strong><br />
negociação <strong>de</strong> tomadas <strong>de</strong> reclamação; <strong>de</strong>liberação informal;<br />
posição<br />
<strong>de</strong>bate regrado; discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />
(adv.) e discurso <strong>de</strong> acusação (adv.)<br />
Transmissão e construção <strong>de</strong> EXPOR<br />
Seminário; conferência; artigo ou<br />
saberes<br />
Apresentação textual <strong>de</strong> verbete <strong>de</strong> enciclopédia; entrevista <strong>de</strong><br />
diferentes formas <strong>de</strong> saberes especialista; tomada <strong>de</strong> rodas; resumo<br />
<strong>de</strong> textos “expositivos” ou explicativos;<br />
relatório científico e relato <strong>de</strong><br />
experiência científica.
33<br />
Instruções e prescrições<br />
DESCREVER AÇÕES<br />
Regulação mútua <strong>de</strong><br />
comportamentos<br />
Instruções <strong>de</strong> montagem; receita;<br />
regulamento; regras <strong>de</strong> jogo; instruções<br />
<strong>de</strong> uso e instruções.<br />
Figura 3 - Quadro <strong>de</strong> Agrupamento <strong>de</strong> gêneros<br />
Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e organização:<br />
Roxane Rojo; Glaís Cor<strong>de</strong>iro. Campinas, SP: Mercado <strong>de</strong> Letras, 2004, p. 121.<br />
No agrupamento proposto pelos autores, o gênero lenda se insere no domínio da<br />
cultura literária ficcional, e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem é da or<strong>de</strong>m do narrar. Assim sendo, há<br />
muito tempo as lendas vêm <strong>de</strong>sempenhando o papel <strong>de</strong> transmitir a cultura popular por meio<br />
da tradição oral; entretanto, além disso, neste estudo, as lendas assumem a tarefa <strong>de</strong> (mega)<br />
instrumento para as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />
2.1.3 Gênero lenda: especificida<strong>de</strong>s teóricas e possibilida<strong>de</strong>s didático-pedagógicas<br />
O folclore brasileiro guarda um vasto acervo cultural do universo popular. Para<br />
Inocenti (2005, p. 15), o folclore po<strong>de</strong> ser classificado, para efeitos <strong>de</strong> catalogação, em oito<br />
formas: em primeiro lugar, a literatura oral, que são as trovas, travalínguas, literatura <strong>de</strong><br />
cor<strong>de</strong>l, provérbios, adivinhações, estórias, lendas, fábulas, mitos, parlendas e as mnemônias.<br />
Em seguida, a forma lúdica, que são as danças, autos, teatro popular, festas tradicionais, jogos<br />
recreativos <strong>de</strong> azar e os folguedos. O autor comprova, também, a forma espiritual que são as<br />
crendices e superstições, cortejos e procissões. Já nas artes <strong>de</strong>stacam-se a música, o artesanato<br />
(cerâmica, tecido, ma<strong>de</strong>ira, metal etc.) e os manufaturados. Também <strong>de</strong>staca a linguagem<br />
popular, a medicina popular e a alimentação, com a apresentação <strong>de</strong> comidas e bebidas e, por<br />
último, seriam outras formas como o mutirão, o dísticos <strong>de</strong> caminhão, os tipos típicos e a<br />
cultura <strong>de</strong> banheiro. Todo esse contexto folclórico, levantado por Inocenti (2005), reforça a<br />
importância da inserção da criança nas práticas sociais da sua comunida<strong>de</strong> e nas práticas<br />
pedagógicas da sua escola.<br />
Ampliando nosso olhar sobre o assunto, Machado (2003, p.7) escreve que os<br />
filósofos, dramaturgos, historiadores e poetas da Antiguida<strong>de</strong> Clássica nos <strong>de</strong>ixaram um<br />
tesouro valiosíssimo <strong>de</strong> histórias, mitos, lendas, fábulas, tragédias e comédias, cujas marcas
34<br />
nos acompanham até hoje. Em outras palavras, as lendas que hoje nos são apresentadas foram<br />
herdadas por nossos antepassados que as transmitiam basicamente pela oralida<strong>de</strong>; e, muito<br />
tempo <strong>de</strong>pois, pela escrita. Assim, como as crianças <strong>de</strong>senvolvem a linguagem por meio das<br />
interações sociais, o conhecimento popular das lendas <strong>de</strong>u-se igualmente por meio das<br />
interações sociais, enquanto a contação <strong>de</strong>ssas narrativas acontecia <strong>de</strong> forma oral, inicialmente<br />
no contexto familiar, em al<strong>de</strong>ias e em comunida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> havia um contador <strong>de</strong> história.<br />
Para Góes (1991), o narrar artístico nasceu no momento em que o homem sentiu<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> procurar uma explicação qualquer para os fatos que aconteciam a seu redor.<br />
Assim, na falta da escrita para dar continuida<strong>de</strong> à memória, na Antiguida<strong>de</strong> as lembranças<br />
eram preservadas na tradição oral. Portanto, essas narrações são transmitidas <strong>de</strong> geração em<br />
geração e são modificadas à medida que vão sendo contadas. Nelas aparecem figuras criadas<br />
pelo imaginário popular que não existem na realida<strong>de</strong>, e que, na maioria das vezes, são usadas<br />
para explicar uma situação ou aparição <strong>de</strong> algum “ente” fictício da natureza. De acordo com<br />
Góes (1991, p. 65):<br />
A lenda, pois, nasce da propensão do espírito humano <strong>de</strong> explicar os fatos naturais que<br />
<strong>de</strong>sconhece. Por isso, a lenda, nos começos, não é senão a história das primeiras lutas<br />
do homem, <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sconhecimento e <strong>de</strong> sua preocupação por enten<strong>de</strong>r o mistério que<br />
o circunda. Naquela época tudo era causa <strong>de</strong> lenda para ele: o movimento dos astros,<br />
as migrações dos povos e animais, os fenômenos do céu, do mar e da terra ou fatos do<br />
seu quotidiano.<br />
Góes (1991) busca, nessa obra, uma tipologia para as histórias infantis e as<br />
classifica assim: mito e lenda, contos <strong>de</strong> fada, contos maravilhosos, fábulas, histórias – <strong>de</strong><br />
animais, <strong>de</strong> família, policiais, sentimentais, <strong>de</strong> ficção científica, maravilhosas mo<strong>de</strong>rnas –<br />
folclore infantil, aventura, poesia e, por último, o teatro infantil. Aqui <strong>de</strong>stacaremos o mito e a<br />
lenda por ser necessário distinguir os dois termos, tendo em vista a nebulosida<strong>de</strong> em que estão<br />
envoltos, segundo vários autores.<br />
Conforme Góes (1991, p. 107), o mito “[...] nasce do trabalho da imaginação pura<br />
entregue a si mesma e não adulterada pela intromissão [nem pela] tirania dos elementos<br />
racionais”, e po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido como “uma lenda relacionada com o mundo sobrenatural e que<br />
se traduz através dos ritos”, enquanto a lenda “[...] é uma narrativa localizada,<br />
individualizada, objeto <strong>de</strong> fé”. Po<strong>de</strong>mos dizer que lendas são narrações nas quais aparecem<br />
figuras criadas pelo imaginário popular que não existem na realida<strong>de</strong> e, na maioria das vezes,<br />
são usadas para explicar uma situação ou aparecimento <strong>de</strong> algum “ente” da natureza que<br />
dispensa comprovação científica.
35<br />
Para alguns autores, mitos e lendas apresentam significados semelhantes. Coelho<br />
(2003) também observa essa obscurida<strong>de</strong> entre os dois termos, e, baseada em alguns<br />
estudiosos, aponta algumas características dos mitos: primeiramente, o seu aspecto <strong>de</strong><br />
permanência e <strong>de</strong> duração é uma particularida<strong>de</strong> da presença <strong>de</strong> seres sobrenaturais em um<br />
mesmo conjunto <strong>de</strong> mitos e símbolos, po<strong>de</strong>ndo aparecer em várias socieda<strong>de</strong>s. Os mitos<br />
também representam o alargamento <strong>de</strong> um “espaço sagrado” para um “universo profano” e<br />
constitui-se em histórias, usualmente a respeito <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> outros seres sobrenaturais.<br />
Essencialmente, os mitos po<strong>de</strong>m ser vistos como uma resposta ao universo e seus fenômenos,<br />
fazendo-se conhecer ao assumir “uma dimensão histórica”. Assim, possibilitam a<br />
organização/compreensão do mundo e das coisas, e, finalmente, configuram-se como uma<br />
forma privilegiada <strong>de</strong> se passarem ensinamentos para a própria cultura em que emergem ou<br />
para fora <strong>de</strong>la.<br />
Já as lendas, ainda <strong>de</strong> acordo com Coelho (2003), são narrativas, mais<br />
precisamente, são textos que ora <strong>de</strong>screvem entes sobrenaturais, ora apresentam uma história.<br />
São textos que se referem a acontecimentos do “passado distante”, enfocando feitos <strong>de</strong><br />
personagens, explicando particularida<strong>de</strong>s anatômicas <strong>de</strong> certos animais. Elas po<strong>de</strong>m ser<br />
contadas por qualquer pessoa a qualquer momento, po<strong>de</strong>m transmitir os ensinamentos e os<br />
valores da socieda<strong>de</strong> à qual estão vinculadas, apresentam regras <strong>de</strong> conduta e explicam<br />
fenômenos da natureza. Isso significa, numa linguagem simples, que as lendas permitem<br />
misturar fatos reais com fatos imaginários; transmitidas <strong>de</strong> geração em geração, vão sendo<br />
modificadas à medida que são contadas e recontadas porque não precisam <strong>de</strong> comprovação<br />
científica.<br />
No centro <strong>de</strong>ssa questão, com a intenção <strong>de</strong> submeter as lendas a uma sistemática<br />
a<strong>de</strong>quada o mais próximo possível <strong>de</strong> um critério científico <strong>de</strong> classificação, Oliveira (1951,<br />
1965) julga necessário distribuí-las da seguinte forma: lendas cosmogônicas, lendas heróicas,<br />
lendas etiológicas, lendas <strong>de</strong> encantamento, lendas ornitológicas e lendas mitológicas. As<br />
lendas cosmogônicas são aquelas que procuram explicar fenômenos <strong>de</strong> natureza astronômica<br />
ou meteorológica; enquanto as lendas heróicas se referem a um herói. Já as lendas etiológicas<br />
procuram explicar a origem <strong>de</strong> coisas e fenômenos. Diferentemente das lendas heróicas, nas<br />
lendas etiológicas a personagem age como herói civilizador. Nas lendas <strong>de</strong> encantamento, os<br />
fenômenos po<strong>de</strong>m ganhar materialida<strong>de</strong> e se transformar em algo concreto. Há, também, as<br />
lendas ornitológicas, que se referem aos pássaros que exercem <strong>de</strong>terminadas influências,<br />
algumas atribuídas à sua natureza <strong>de</strong> alma penada, outras <strong>de</strong>vidas a certas qualida<strong>de</strong>s<br />
especiais. E, por último, aparecem as lendas mitológicas, que se subdivi<strong>de</strong>m em cinco ciclos:
36<br />
da Iara, da Boiúna, do Boto, do Curupira, da Mati-taperê. As contribuições <strong>de</strong> Oliveira (1951,<br />
1965) e as discussões <strong>de</strong> Coelho (2003) foram fundamentais para compreen<strong>de</strong>r o linguajar<br />
típico <strong>de</strong>sse gênero, fornecendo-nos subsídios teóricos e uma coletânea <strong>de</strong> elementos<br />
folclóricos que po<strong>de</strong>m ser usados em sala <strong>de</strong> aula.<br />
Coelho (2000) salienta que, ao longo da vida, o ser humano passa por cinco fases<br />
<strong>de</strong> interesse pela leitura: a primeira fase é a <strong>de</strong> pré-leitor; em seguida, é a fase do leitor<br />
iniciante; na terceira fase, o leitor está em processo; na quarta fase, o leitor torna-se fluente; a<br />
última fase é a do leitor crítico, aquele que é capaz <strong>de</strong> fazer suas próprias escolhas e tirar<br />
proveito da própria leitura. Aqui interessam-nos duas fases: a do leitor iniciante e a do leitor<br />
em processo. A fase do leitor iniciante acontece por volta <strong>de</strong> seis a sete anos, perfil no qual se<br />
encaixa a turma estudada na pesquisa. Embora manifeste uma preferência pela linguagem<br />
visual, na escola a criança passa a ter contato direto com os signos linguísticos, que são<br />
escritos <strong>de</strong> maneira sistematizada nessa fase; além disso, a criança passa a se preocupar em<br />
socializar suas i<strong>de</strong>ias. Para Coelho (2000), a fase do leitor em processo, que também nos<br />
interessa, abrange a faixa <strong>de</strong> oito a nove anos, quando o aluno já domina a construção da<br />
leitura. Para a autora, nessa fase algumas particularida<strong>de</strong>s nos textos infantis <strong>de</strong>verão ser<br />
observadas: a presença <strong>de</strong> diálogo nas imagens; as narrativas <strong>de</strong>vem girar em torno <strong>de</strong> uma<br />
situação central; as frases <strong>de</strong>vem ser simples e na or<strong>de</strong>m direta, preservando os períodos<br />
simples com a introdução gradativa <strong>de</strong> períodos compostos. O gênero lenda, escolhido para<br />
ser <strong>de</strong>senvolvido em classe <strong>de</strong> primeira série, foco do presente trabalho, oferece os requisitos<br />
necessários para contemplar essas duas fases <strong>de</strong> leitura.<br />
Nessa perspectiva, ao planejarmos o trabalho <strong>de</strong> alfabetização com os gêneros é<br />
preciso atenção ao gênero escolhido para trabalhar leitura e escrita. Na verda<strong>de</strong>, um texto que<br />
não seja do interesse do leitor po<strong>de</strong> causar a sensação <strong>de</strong> que a leitura é uma prática<br />
<strong>de</strong>sagradável, daí a importância <strong>de</strong>, nesse período, a leitura ser sedutora. Também o gênero<br />
em questão, <strong>de</strong> modo geral, contribui para o entendimento referente a <strong>de</strong>terminado assunto e<br />
para a compreensão do mundo e suas representações; além disso, nessa fase, a criança<br />
manifesta sua preferência pelas narrativas.<br />
Assim, a escolha da lenda para compor o presente trabalho se <strong>de</strong>u por três razões<br />
distintas. Em primeiro lugar, a criança entra, <strong>de</strong>ste cedo, em contato com as narrativas; em<br />
segundo lugar, trata-se <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> leitores iniciantes que apresentam uma predisposição<br />
para a leitura <strong>de</strong> encantamento, com personagens mirabolantes e com finais surpreen<strong>de</strong>ntes. E,<br />
por último, como já afirmado anteriormente, o tema folclore se constitui em importante
37<br />
recurso <strong>de</strong> ensino-aprendizagem em sala <strong>de</strong> aula, porquanto esse tema está atrelado às práticas<br />
sociais.<br />
Em termos gerais, o gênero lenda foi escolhido com base no interesse da criança<br />
em ouvir histórias que envolvam muitas ações entre as personagens, favorecendo a interação<br />
entre professor e aluno. Essa predisposição <strong>de</strong> ouvir e prestar atenção às conversas das<br />
pessoas po<strong>de</strong> ser observada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo no comportamento da criança. O primeiro<br />
contato com a narrativa acontece por intermédio da voz <strong>de</strong> pais, avós, tios, enfim, <strong>de</strong> pessoas<br />
próximas da criança. De tal forma, essas interações, no início da vida, oferecem à criança<br />
momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta que aguçam a sua capacida<strong>de</strong> criativa e <strong>de</strong> interação com o<br />
imaginário, interações essas que são aprimoradas na infância. Po<strong>de</strong>mos dizer que é na infância<br />
que as interpretações sobre o mundo começam a fazer sentido para a criança por meio <strong>de</strong><br />
brinca<strong>de</strong>iras e fantasia, principalmente a imaginação. Para Kramer (2007), a criança interessase<br />
por brinquedos e bonecas atraída pelas personagens dos contos <strong>de</strong> fadas, mitos e lendas.<br />
Em suma, a cultura infantil é permeada por sonhos e brinca<strong>de</strong>iras, num mundo do “faz <strong>de</strong><br />
conta”. Portanto, <strong>de</strong>ntre as narrações preferidas pelas crianças, as lendas ocupam um lugar <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>staque por suscitar a emoção, a magia, o encantamento, o medo, o suspense. Além do mais,<br />
a criança sente muito prazer em compartilhar esses momentos com os adultos.<br />
2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO<br />
DO CÓDIGO<br />
Na introdução <strong>de</strong>ste estudo, <strong>de</strong>stacamos que o nosso objetivo é <strong>de</strong>screver a<br />
apropriação da língua escrita numa classe <strong>de</strong> alfabetização, valendo-nos da lenda como<br />
gênero-instrumento na ação didático-pedagógica, consi<strong>de</strong>rando a dupla via – sistêmica e<br />
textual – <strong>de</strong>sse processo. Sendo assim, nesta seção julgamos necessário abordar as<br />
similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita; a relação entre consciência fonológica e<br />
aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong> palavra, sílaba e fonema e suas implicações na<br />
alfabetização, e finalizamos com a <strong>de</strong>scrição do sistema alfabético do português no que<br />
respeita à escrita conforme Scliar- Cabral (2003a; b; 2009).
38<br />
2.2.1 Similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita<br />
A oralida<strong>de</strong> e a escrita constituem práticas e usos da língua. Para Marcuschi<br />
(2005, p. 34) “as relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas refletem<br />
um continuum que se manifesta entre essas duas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uso da língua”, sinalizando<br />
que as diferenças entre fala e escrita se dão no continuum tipológico das práticas sociais <strong>de</strong><br />
produção textual e não na relação dicotômica <strong>de</strong> dois polos opostos (MARCUSCHI, 2005, p.<br />
37). Koch (2007) partilha também da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a escrita formal e a fala informal<br />
constituem os polos opostos <strong>de</strong> um contínuo, ao longo do qual se situam os diversos tipos <strong>de</strong><br />
interação verbal.<br />
Dessa maneira, oralida<strong>de</strong> e escrita são eventos diferenciados, ainda que<br />
pertençam ao mesmo sistema linguístico, pois suas regras e seus meios <strong>de</strong> uso são diferentes<br />
(MARCUSCHI, 2005). Para Koch (2007), frequentemente a modalida<strong>de</strong> escrita é retratada<br />
como planejada, não-fragmentária, completa, elaborada, com o predomínio <strong>de</strong> frases<br />
complexas e com subordinação abundante, emprego frequente <strong>de</strong> passivas etc. Já a<br />
modalida<strong>de</strong> falada não é planejada, é fragmentária, incompleta, pouco elaborada, com a<br />
predominância <strong>de</strong> frases curtas, simples ou coor<strong>de</strong>nadas. Mas, para a autora, essas diferenças<br />
nem sempre distinguem as duas modalida<strong>de</strong>s, porque <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> situação<br />
comunicativa, existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se<br />
aproxima da escrita formal, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> situação comunicativa (KOCH, 2007, p.<br />
78).<br />
Uma diferença é o fato <strong>de</strong> os interlocutores estarem presentes na hora da fala,<br />
existindo uma negociação entre eles, intercalando os turnos <strong>de</strong> fala, ora um se manifesta, ora o<br />
outro, isto é, eles não só colaboram, como “co-negociam”, “co-argumentam”, um com o outro<br />
(KOCH, 2007). Scliar-Cabral (2003a) afirma que a modalida<strong>de</strong> oral permite a inserção <strong>de</strong><br />
sons inarticulados, bem como a presença da expressão facial e corporal, além da modulação<br />
da voz. A modalida<strong>de</strong> escrita permite uma reflexão do que se quer expressar no texto e é<br />
marcada pela apreensão inicial da criança em relação aos “sons” e silêncios e <strong>de</strong> sua<br />
imaginação e ainda pelas formas cristalizadas <strong>de</strong> cultura do seu grupo <strong>de</strong> convívio (SCLIAR-<br />
CABRAL, 2003a).
39<br />
Nessa mesma direção, o fascículo sete do Programa <strong>de</strong> formação continuada Próletramento<br />
(2007) discute modos <strong>de</strong> falar e modos <strong>de</strong> escrever e adverte que a principal<br />
diferença entre os textos produzidos oralmente e os textos escritos é que nos produzidos<br />
oralmente existe o apoio do contexto em que está sendo produzido. E quando escrevemos não<br />
dispomos das informações contextuais porque o leitor nem sempre está inserido no mesmo<br />
contexto <strong>de</strong> produção.<br />
De fato, na modalida<strong>de</strong> oral qualquer problema <strong>de</strong> interpretação ou compreensão<br />
po<strong>de</strong> ser imediatamente retomado e solucionado, pois locutor e interlocutor estão no mesmo<br />
espaço-tempo. E nos valemos da própria linguagem do nosso corpo, como gestos, expressões<br />
faciais e tons <strong>de</strong> voz com intuito <strong>de</strong> completar o que queremos dizer; além do mais, a<br />
oralida<strong>de</strong> admite repetições, pausas, inserções.<br />
Na modalida<strong>de</strong> escrita, estamos em espaço-tempo diferente <strong>de</strong> quem vai ler o<br />
texto que escrevemos, daí ser necessário consi<strong>de</strong>rar o objetivo ou intenção do produtor do<br />
texto. Na verda<strong>de</strong>, há uma exigência maior para o texto escrito; geralmente os modos <strong>de</strong> falar<br />
são marcados por menos atenção e menos planejamento que os modos <strong>de</strong> escrever, embora<br />
em certas circunstâncias os modos <strong>de</strong> falar requeiram quase tanta monitoração quanto os<br />
modos <strong>de</strong> escrever (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 13. FASCÍCULO 7). A esse<br />
respeito Marcuschi (2005, p. 38- 39) <strong>de</strong>clara que oralida<strong>de</strong> e escrita:<br />
“São [...] realizações <strong>de</strong> uma gramática única, mas que do ponto <strong>de</strong> vista<br />
semiológico po<strong>de</strong>m ter peculiarida<strong>de</strong>s com diferenças acentuadas, <strong>de</strong> tal modo que a<br />
escrita não representa a fala. Além disso, os textos orais têm uma realização<br />
multissistêmica (palavras, gestos, mímica etc) e os textos escritos também não se<br />
circunscrevem apenas ao alfabeto (envolvem fotos, i<strong>de</strong>ogramas, por exemplo, os<br />
ícones do computador e grafismos <strong>de</strong> todo tipo). [...] não postulamos uma simetria<br />
<strong>de</strong> representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das articulações<br />
estritamente linguísticas.<br />
Scliar-Cabral (2003a) esclarece que a fala é adquirida naturalmente, pois ao longo<br />
da história está presente on<strong>de</strong> quer que sejam encontrados traços <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e não existe<br />
nenhuma dificulda<strong>de</strong> – salvaguardando as patologias – para adquirirmos a linguagem oral<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sejamos expostos à situação linguística. A autora lembra ainda que o sistema<br />
alfabético apareceu mais tar<strong>de</strong>, é uma invenção da humanida<strong>de</strong>, e foi preciso acumular<br />
conhecimentos para se <strong>de</strong>scobrir o princípio <strong>de</strong> que as palavras eram constituídas. Assim, o<br />
sistema verbal escrito, ao contrário do sistema verbal oral, precisa ser aprendido <strong>de</strong> maneira<br />
sistemática.<br />
Para a autora, a modalida<strong>de</strong> oral e a modalida<strong>de</strong> escrita po<strong>de</strong>m ser usadas como<br />
instrumento <strong>de</strong> reflexão sobre a própria língua, fenômeno a que se dá o nome <strong>de</strong>
40<br />
metalinguagem. Essa reflexão sobre a linguagem oral é necessária porque todos os falantes <strong>de</strong><br />
uma língua, alfabetizados ou não, percebem a ca<strong>de</strong>ia da fala no seu uso cotidiano como um<br />
continuum, enquanto no início do processo da escrita, a criança não percebe a separação entre<br />
as palavras. Dessa forma, com o conhecimento do sistema alfabético, é possível perceber que<br />
a sílaba po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>smembrada em unida<strong>de</strong>s menores, os fonemas. Scliar Cabral (2003a; b)<br />
adverte ainda que a falta <strong>de</strong> reflexão metalinguística leva o aluno a eliminar a consoante<br />
inicial da vogal seguinte com a qual se coarticula e essas articulações em cada nível são<br />
representadas através da linguagem verbal, tanto oral quanto escrita. Segundo a autora, existe<br />
uma reciprocida<strong>de</strong> entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético.<br />
2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong><br />
palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.<br />
A alfabetização tem sido objeto <strong>de</strong> estudo em diferentes áreas <strong>de</strong> pesquisa<br />
(SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;<br />
COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,<br />
2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001; POERSH, 1990 entre outros). Conceber a alfabetização<br />
como um processo complexo e multifacetado implica investigar como se dá o processo <strong>de</strong><br />
ensino-aprendizagem da leitura e da escrita pela criança. Na presente pesquisa, nosso foco<br />
recai na aprendizagem da escrita. Nesta seção, procuramos esclarecer os conceitos <strong>de</strong> palavra,<br />
sílaba e fonema, por consi<strong>de</strong>rá-los fundamentais para o entendimento <strong>de</strong> nossa prática<br />
pedagógica. Abordamos também o <strong>de</strong>senvolvimento da consciência fonológica como<br />
facilitador da aprendizagem da língua escrita pela criança.<br />
Como mencionado anteriormente, para Scliar-Cabral existe uma influência<br />
recíproca entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético:<br />
A consciência fonológica insere-se na consciência metalinguística. Elas <strong>de</strong>correm da<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o ser humano po<strong>de</strong>r se <strong>de</strong>bruçar sobre um objeto, no caso, a língua, <strong>de</strong><br />
forma consciente, utilizando uma linguagem. No caso da consciência fonológica, o<br />
objeto sobre o qual você se <strong>de</strong>bruça conscientemente são os fonemas, e a linguagem<br />
utilizada é o alfabeto. Uma primeira distinção a fazer é entre conhecimento não<br />
consciente dos fonemas para o uso e o seu conhecimento consciente dos fonemas.<br />
Todo o falante-ouvinte nativo, alfabetizado ou não, tem conhecimento não
41<br />
consciente dos fonemas e os utiliza com proprieda<strong>de</strong>: quando escuta ou quando fala,<br />
sabe a diferença entre /´bala/ e /´mala/. Já o conhecimento consciente dos fonemas<br />
se <strong>de</strong>senvolve com a aprendizagem do sistema alfabético da respectiva língua.<br />
(SCLIAR-CABRAL, 2009. p.35).<br />
Baseando-nos em Scliar-Cabral (2003 a, b, 2009), po<strong>de</strong>mos dizer que a<br />
consciência fonológica po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida como uma habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento dos<br />
fonemas nas palavras, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> substituí-los até segmentá-las em unida<strong>de</strong>s menores (palavras<br />
em sílabas e sílabas em fonemas). No processo <strong>de</strong> alfabetização, analisar as palavras<br />
utilizando-se das regras <strong>de</strong> correspondência entre fonemas e grafemas 4 constitui-se em prérequisito<br />
para o ensino-aprendizagem da escrita. Portanto, a aprendizagem <strong>de</strong> palavras faz<br />
parte do processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />
Scliar-Cabral (2009) ensina que o reconhecimento da palavra ocorre por análise e<br />
síntese dos traços, letras e grafemas associados aos fonemas, morfemas 5 e frases para chegar<br />
à compreensão textual. Essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber a articulação dos traços da palavra<br />
escrita, com função <strong>de</strong> distinguir significados, os grafemas, associados ao respectivo fonema<br />
(SCLIAR-CABRAL, 2003), significa atribuir os valores fonológicos que envolvem a língua,<br />
e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as palavras e/ou entre<br />
consoantes e vogais. Dito <strong>de</strong> outra forma, o reconhecimento dos grafemas da palavra se faz<br />
associando o traçado à realização do fonema que o grafema representa, e para especificar a<br />
construção da palavra é necessário analisar seus constituintes, discriminando os fonemas e<br />
os grafemas cuja função é distinguir sentidos e significados.<br />
Segundo Scliar-Cabral (2009), a razão primordial que fundamenta a fônica são os<br />
grafemas que representam um fonema (classe <strong>de</strong> sons com função <strong>de</strong> distinguir significados).<br />
Em relação à sílaba, a autora julga importante examinar o contraste entre as unida<strong>de</strong>s que<br />
constituem a sílaba para <strong>de</strong>smembrá-la e fazer a associação <strong>de</strong> um fonema a um grafema. Para<br />
a autora, na sílaba o que <strong>de</strong>fine uma consoante e uma vogal são as pistas acústicas e também<br />
seus respectivos gestos fonoarticulatórios, em virtu<strong>de</strong> da co-articulação. A autora afirma ainda<br />
que a fala é percebida como um contínuo antes da alfabetização, sendo essa a maior<br />
dificulda<strong>de</strong> na aprendizagem da leitura e da escrita. E como solução, sugere “um trabalho<br />
sistemático [...] para que o indivíduo reconstrua <strong>de</strong> modo consciente a percepção da fala e<br />
4 O grafema é a menor unida<strong>de</strong> da escrita, constituída <strong>de</strong> uma ou duas letras para distinguir significados. Se for<br />
<strong>de</strong>smembrado, como ch, <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ser um grafema. É uma unida<strong>de</strong> abstrata (SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 11).<br />
5 Os morfemas se referem às classes, categorias e relações gramaticais. São morfemas os afixos, os pronomes, as<br />
preposições, as conjunções, os advérbios <strong>de</strong> lugar, os artigos. (SCLIAR-CABRAL, 1976).
42<br />
possa <strong>de</strong>smembrar a ca<strong>de</strong>ia da fala em palavras e a sílaba em seus constituintes”. (SCLIAR-<br />
CABRAL, 2009, p.11).<br />
Para Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 69):<br />
A aquisição e a estruturação da língua na mente infantil é toda baseada na unida<strong>de</strong><br />
silábica: as primeiras enunciações infantis, valendo por vocábulos e frases, são as<br />
sílabas, e o processo da criança, que utiliza a reduplicação <strong>de</strong>sses elementos para<br />
construir palavras (dadá, papá etc), é um modo <strong>de</strong> insistir na unida<strong>de</strong> fonética<br />
espontaneamente sentida.<br />
Esse mesmo autor (1977) consi<strong>de</strong>ra que existe nebulosida<strong>de</strong> na <strong>de</strong>finição precisa e<br />
científica da sílaba, porque os <strong>de</strong>bates a têm focalizado como realização física, sem levar em<br />
conta a sílaba funcional. E apresenta alguns conceitos <strong>de</strong> sílaba, como sílaba dinâmica ou<br />
expiratória, “enquanto se fala, o ar é emitido numa série <strong>de</strong> impulsos a cada um dos quais se<br />
po<strong>de</strong> dizer que correspon<strong>de</strong> a uma sílaba”; sílaba intensiva <strong>de</strong>staca “o acento silábico ou<br />
maior energia da emissão, durante a articulação <strong>de</strong> uma sílaba, o qual está para os fonemas<br />
componentes como o acento”; e a sílaba sonora, “emitida num único impulso <strong>de</strong> expiração,<br />
mas num só impulso também se po<strong>de</strong>m articular duas sílabas sonoras, que ficam assim<br />
reunidas numa única expiratória ou dinâmica” (MATTOSO CÂMARA JR, 1978 p.70).<br />
Mattoso traz também o conceito <strong>de</strong> sílaba funcional, que é “aquela que impõe os tipos <strong>de</strong><br />
concatenação dos fonemas <strong>de</strong> uma língua dada, conforme o tratamento crescente ou<br />
<strong>de</strong>crescente nas várias situações dos contextos”.<br />
Scliar-Cabral (2009) reafirma que <strong>de</strong>senvolver a consciência fonológica po<strong>de</strong><br />
ajudar a vencer a dificulda<strong>de</strong> em segmentar a sílaba e alerta que não se <strong>de</strong>ve confundir<br />
consciência fonológica com habilida<strong>de</strong>s para discriminar diferenças entre sons, pois o fonema<br />
é uma entida<strong>de</strong> que tem a função <strong>de</strong> distinguir as significações básicas. E assim a autora<br />
levanta uma discussão a respeito do fonema com o intuito <strong>de</strong> aclarar a compreensão <strong>de</strong><br />
consciência fonológica.<br />
O que é um fonema Muitos confun<strong>de</strong>m fonema com som. No entanto, a <strong>de</strong>finição<br />
clássica <strong>de</strong> fonema, estabelecida pelo linguista R. Jakobson, é: O fonema é um feixe<br />
<strong>de</strong> traços distintivos. O fonema tem uma função distintiva, isto é, serve para<br />
distinguir um significado básico <strong>de</strong> outro, como já no citado exemplo <strong>de</strong> /’bala/ e<br />
/’mala/. Veja bem, o fonema não tem significado: serve para distinguir significados.<br />
Quer dizer que /b/ e /m/ não significam nada, mas trocando um pelo outro no<br />
contexto /’_ala/, o significado se altera (2009, p. 35).<br />
Outro questionamento da autora:
43<br />
Por que o fonema não é som Porque o fonema é uma unida<strong>de</strong> psíquica: assim como<br />
não se po<strong>de</strong> colocar uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ntro da cabeça, as moléculas <strong>de</strong> ar que se<br />
comprimem e se rarefazem para produzir as ondas acústicas também não po<strong>de</strong>m<br />
entrar <strong>de</strong>ntro da cabeça. [...] O fonema é um feixe <strong>de</strong> traços invariantes, <strong>de</strong> natureza<br />
abstrata, que são reconhecidos por sua função <strong>de</strong> distinguir significados, permitindo<br />
que as pessoas se comuniquem através da língua verbal oral. Não importa como as<br />
pessoas pronunciem o terceiro segmento que aparece na palavra carta [r], pois o som<br />
que o carioca produz só tem <strong>de</strong> parecido com o que um gaúcho <strong>de</strong> Bagé diz no fato<br />
<strong>de</strong> ambos serem consoantes, e só! Mas o fonema é o mesmo! (2009, p. 35).<br />
Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 48-66) consi<strong>de</strong>ra o fonema como um conjunto<br />
mínimo (<strong>de</strong> efeitos acústicos ou <strong>de</strong> movimentos dos órgãos fonadores) com um papel, ou uma<br />
FUNÇÃO, na representação e na comunicação linguística. A sua troca por outro conjunto<br />
mínimo muda o valor representativo do que é enunciado: comparem-se má e pá. Para o autor,<br />
os fonemas apresentam a divisão fundamental entre consoantes e vogais, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />
sua produção oral e efeito acústico. O autor também esclarece que o fonema é produzido<br />
<strong>de</strong>ntro do som da fala por certas qualida<strong>de</strong>s articulatórias, com resultantes qualida<strong>de</strong>s<br />
acústicas que opõem cada um <strong>de</strong>les aos <strong>de</strong>mais.<br />
Scliar-Cabral (2003b, p. 248) salienta que a correspondência entre fonemas e<br />
grafemas gera <strong>de</strong>terminadas dificulda<strong>de</strong>s: primeiramente, perceber a distinção do traço<br />
fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica. Em segundo lugar, a<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber os traços gráficos. A terceira dificulda<strong>de</strong> é levar o aluno a adivinhar<br />
ou alfabetizar pelos nomes das letras, caso em que se <strong>de</strong>ve processar o sinal acústico para<br />
codificá-lo em grafemas pelas letras. A quarta dificulda<strong>de</strong> é a falta <strong>de</strong> domínio das regras <strong>de</strong><br />
codificação <strong>de</strong>terminadas pelo contexto fonético. E, por último, a dificulda<strong>de</strong> da resposta<br />
aleatória.<br />
Assim, a falta <strong>de</strong> exatidão na correspondência das qualida<strong>de</strong>s fônicas e seus<br />
respectivos valores po<strong>de</strong> gerar algumas dificulda<strong>de</strong>s, mas reconhecemos também que sem<br />
possibilitar à criança exercitar no texto essas dificulda<strong>de</strong>s é praticamente impossível que ela<br />
as supere somente com ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estrutural. Ter claros esses conceitos po<strong>de</strong><br />
significar um planejamento didático voltado para as especificida<strong>de</strong>s da língua materna, e é<br />
importante trabalhá-los para proporcionar à criança o contato com o sistema alfabético, além<br />
<strong>de</strong> proporcionar o reconhecimento e a formação <strong>de</strong> novas palavras a partir <strong>de</strong> outras préexistentes.<br />
2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita
44<br />
Na seção anterior abordamos os conceitos <strong>de</strong> palavra, sílabas e fonemas e a<br />
importância da consciência fonológica como facilitador da aprendizagem da leitura e da<br />
escrita na alfabetização. O objetivo <strong>de</strong>sta seção é <strong>de</strong>screver o processamento da escrita,<br />
segundo Scliar-Cabral (2003a; b). Uma das razões para o gran<strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> tais <strong>de</strong>scrições<br />
resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> elas explicarem quais são as dificulda<strong>de</strong>s pelas quais passam os aprendizes<br />
do sistema escrito do português do Brasil. Além do mais, encontramos no trabalho da autora<br />
os subsídios necessários para fundamentar a nossa análise em relação ao código, no nosso<br />
caso, a conversão <strong>de</strong> fonema-grafema.<br />
As pesquisas <strong>de</strong> Scliar-Cabral (2003a; b) concentram-se em dois eixos: na<br />
<strong>de</strong>codificação e na codificação. A primeira refere-se ao processo da leitura, ao<br />
reconhecimento das letras e à atribuição dos valores aos grafemas. A segunda refere-se à<br />
conversão dos fonemas em grafemas na escrita da palavra. Em nosso estudo, interessa-nos a<br />
codificação, isto é, a aprendizagem da escrita. De acordo com Scliar- Cabral (2003a; b), as<br />
regras <strong>de</strong> codificação se subdivi<strong>de</strong>m em: regras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do contexto; regras<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da posição e/ou do contexto fonético; as alternativas competitivas; as regras<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da morfossintaxe e do contexto fonético e a <strong>de</strong>rivação morfológica. Destas,<br />
abordamos as regras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do contexto: algumas ocorrências das regras <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da<br />
posição e/ou do contexto fonético intercalando com alguns casos <strong>de</strong> alternativas competitivas.<br />
Para Scliar-Cabral (2003a; b), a conversão aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto<br />
ocorre quando os fonemas correspon<strong>de</strong>m aos grafemas e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da posição e/ou do<br />
contexto fonético. Como observamos no quadro abaixo nas palavras: “pato” → /p/→ “p”;<br />
“bola”→ /b/→ “b”; “tatu” → /t/→ “t”; “dado”→ /d/ → “d”; “faca”→ /f/→ “f”; “uva”→/v/→<br />
“v”; “nata” → /n/→ “n”; “bolha” → / λ /→ “lh”; “anéis” →/ej/ →éi; “dói” → /ói/→ ói<br />
(ditongos abertos éi e ói, respectivamente). Observem na tabela, a seguir:<br />
Tabela 1 - Conversão aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto<br />
Fonema Grafema Exemplos Fonema Grafema Exemplos<br />
/p/ p pato /b/ b bola<br />
/t/ t tatu /d/ d dado<br />
/f/ f faca /v/ v uva<br />
/m/ m mato /n/ n nata<br />
/ ŋ / nh linha / λ/ lh bolha<br />
/ej/ éi anéis /ói/ ói/ dói<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 78.
45<br />
Po<strong>de</strong>mos observar que ocorre correspondência biunívoca entre fonemas e<br />
grafemas em /p/ → “p”, /b/→ “b”, /t/ → “t”, /m/→ “m”, /ŋ/ → “nh”, /d/ → “d”; /v/→ “v”, /n/<br />
→ “n”, / λ/→ “lh”, um fonema correspon<strong>de</strong> a um grafema e vice-versa. Assim, os fonemas<br />
/p/, /b/, /t/, /d/, /f/, /v/, /m/, /n/, /ŋ/, /λ/, serão sempre representados pelos grafemas “p”, “b”,<br />
“t”, “d”, “f”, “v”, “m”, “n”, “nh”, “lh”, respectivamente.<br />
A conversão dos grafemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da posição e/ou do contexto fonético é<br />
subdividida pela autora em: consoantes e vogais. Primeiro, abordaremos as consoantes e em<br />
seguida as vogais. Em relação às consoantes, Scliar-Cabral (2003b) ressalta que somente o<br />
fonema /l/ tem sempre a mesma conversão em início da palavra e <strong>de</strong> sílaba interna, pois em<br />
tais posições sempre se escreve com o grafema “l”, como, por exemplo, “Lula”; os fonemas<br />
/z/ e o arquifonema |R| têm a mesma conversão em início <strong>de</strong> palavra, posição na qual sempre<br />
se escrevem com os grafemas “z” e “r”, respectivamente. O arquifonema |R| em final <strong>de</strong> sílaba<br />
e palavra, a substituição <strong>de</strong> /R/ e /r/ não altera o significado da palavra; esses dois fonemas só<br />
têm a mesma conversão no início da sílaba interna. Assim, o fonema /r/ po<strong>de</strong> vir entre<br />
semivogal e vogal, mas o fonema /R/ não po<strong>de</strong> vir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> semivogal. O fonema /s/, em<br />
início <strong>de</strong> palavra, po<strong>de</strong> ser convertido no grafema “s”, antes da vogal posterior, no início da<br />
palavra e, também em vários outros grafemas no início da palavra, antes da vogal não<br />
posterior po<strong>de</strong> se converter em “c”.<br />
Scliar-Cabral (2003b) esclarece ainda que, pela regra, a realização dos fonemas<br />
/l/, /z/, /R/, que ocorrem no início do vocábulo, se convertem nos grafemas “l”, “z” e “r”,<br />
respectivamente. Por exemplo: “lata”, “zero”, “rato”. A realização do fonema /l/ no início <strong>de</strong><br />
sílaba interna se converte no grafema “l”,como, por exemplo em “calo”, “calem”, “baile”,<br />
“caule”. O fonema /R/ também no início <strong>de</strong> sílaba interna, não <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> semivogal, se<br />
converte no grafema “rr”, como na palavra “carro”. Já o fonema /r/ no início da sílaba interna<br />
se converte no grafema em “r”. Ex: “caro”, “beira”, “doura”, “cárie”. A realização do fonema<br />
/s/ ocorre só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal posterior ou /w/, caso em que se converte no grafema “s”. Ex.:<br />
“sala”, “som”, “suave”. Vejamos na tabela:<br />
Tabela 2 - Conversão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da posição no início do vocábulo antes <strong>de</strong> vogal ou em<br />
início <strong>de</strong> sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal<br />
No início do vocábulo<br />
No início da sílaba interna<br />
Fonema Conversão Exs. Fonema Conversão Exemplos<br />
/l/ l lata /l/ l calo, calem,
46<br />
/z/ z zero<br />
|R| r rato<br />
baile, caule<br />
/R/ não <strong>de</strong>pois rr Carro, correm<br />
da semivogal<br />
/r/ r Caro, beira,<br />
doura, cárie<br />
Só antes da vogal posterior ou /w/<br />
/s/ s sala<br />
som<br />
suave<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.<br />
Scliar-Cabral (2003a) enfatiza que quando houver alternativas competitivas para o<br />
mesmo contexto fonético, é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o item que<br />
emparelhe semântica e morfossintaticamente com a forma fonológica. Para realização do<br />
fonema /S/ nos contextos competitivos a autora <strong>de</strong>fine as regras:<br />
A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> vocábulo, antes <strong>de</strong> vogal oral ou nasalizada<br />
não posterior, [...], ou antes <strong>de</strong> semivogal /j/ po<strong>de</strong> se reescrever ou com o grafema<br />
“s” ou “c” (153).<br />
As realizações do fonema /s/ po<strong>de</strong>m se reescrever “ss”, “c”, ou “sc” em início <strong>de</strong><br />
sílaba, entre vogal oral e vogal não posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não<br />
posterior [...] , e /j/ entre a vogal /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo, precedida ou não <strong>de</strong><br />
prefixos, e vogais não posteriores orais ou nasalizadas não altas, [...] e /ẽ/ ainda po<strong>de</strong><br />
se reescrever com “xc”... (p. 153-154).<br />
A realização do fonema /s/ em posição intervocálica, se a segunda vogal começar a<br />
terminação - /imu/→ “imo” ou - /imi/ → “imi” e suas reflexões po<strong>de</strong> ser grafadas<br />
com “x”, por exemplo: próximo, proximida<strong>de</strong>. (p.154).<br />
A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> sílaba, entre vogal oral e vogal posterior<br />
oral ou nasalizada que não a [+alta], posteriores, [...], po<strong>de</strong> se reescrever com os<br />
grafemas “ss”, “ç”. Dois contextos competitivos mais restritos ocorrem para o<br />
grafema “sc”, que po<strong>de</strong> ocorrer entre /e/ ou /a/ e /u/, /a/, /õ/ ou /ã/ e “xs”, que po<strong>de</strong><br />
ocorrer entre /e/ e vogal oral arredondada [...] (p. 155).<br />
A realização do fonema /s/ em posição inicial <strong>de</strong> sílaba interna, entre vogal<br />
nasalizada e vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] po<strong>de</strong> se<br />
reescrever “s”, “c”, ou “sc” (p. 156).<br />
A realização do fonema /s/ po<strong>de</strong> ser codificada seja pelo grafema “s” ou “c” em<br />
início <strong>de</strong> sílaba entre vogal nasalizada e vogal oral ou vogal nasalizada posteriores<br />
[...] ou entre / ě/ e a semivogal /w/ (p. 156).<br />
A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e<br />
vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] po<strong>de</strong> se reescrever tanto<br />
por “s” quanto por “c” (p. 157).<br />
A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e<br />
vogal oral posterior ou nasalizada ou posterior que não a [+alta], [...] e /ã/, po<strong>de</strong> se<br />
reescrever tanto “s” quanto “ç” (p. 158).<br />
Observando a tabela abaixo, verificamos que a conversão dos fonemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong> vogal posterior ou não posterior apresenta duas ocorrências: antes <strong>de</strong> vogal posterior /w/ e<br />
antes da vogal não posterior /j/. Na primeira ocorrência, o fonema /k/ antes da vogal posterior<br />
po<strong>de</strong> ser convertido no grafema “e” nos casos em que não ocorrem as vogais, isto é, /u/, /ã/,<br />
como em “conta”. Encontramos ainda o fonema /g/ que po<strong>de</strong> ser convertido no grafema “g”,
47<br />
por exemplo, “gula”, “agüenta”. A realização do fonema /z/ seguido <strong>de</strong> uma vogal posterior<br />
se transcreve “j”, como em “loja”. A realização do fonema /s/, seguido <strong>de</strong> uma vogal<br />
posterior, oral ou nasalizada, <strong>de</strong>pois do fonema /j/ se transcreve “ç”, por exemplo, “feição”.<br />
Na segunda ocorrência, antes da vogal não posterior /j/, os fonemas /k/ e /g/ po<strong>de</strong>m ser<br />
convertidos nos grafemas “qu” e “gu”, respectivamente. Por último, se a realização do fonema<br />
/s/ figurar em início <strong>de</strong> sílaba entre a semivogal /j/ e uma vogal não posterior, isto é, /i/, /e/,<br />
/i~/, /e~/, se grafa “c”, por exemplo, “foice”.<br />
Tabela 3 - Conversão dos fonemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> vogal posterior ou não posterior<br />
Antes <strong>de</strong> vogal [+post], /w/<br />
Antes da vogal [-post], /j/<br />
Fonema Conversão Exemplos Conversão Exemplos<br />
/k/<br />
e (que não as<br />
vogais /u/, /ã/)<br />
conta qu queixo<br />
/g/ g gula, agüenta gu guerra<br />
/z/ j loja<br />
/s/ ç <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /j/ feição c foice<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.<br />
Na tabela 4, conforme a regra, a realização do arquifonema |R| em início <strong>de</strong> sílaba,<br />
seguido <strong>de</strong> vogal posterior nasalizada, /w/ ou /S/ se transcreve “r”, conforme o exemplo <strong>de</strong><br />
“enruga”, “melro”, “<strong>de</strong>srespeito”, respectivamente. Se a realização do fonema /∫/ for<br />
nasalizada, /ej/, /ow/ ou /aj/, nestes casos se grafa “x”, por exemplo, “enxame”, “<strong>de</strong>ixa”,<br />
“trouxa”, “caixa”, respectivamente. Se a realização do fonema /z/ figurar em /e/ em início <strong>de</strong><br />
vocábulo, precedido ou não <strong>de</strong> prefixo, se grafa “x”, “enxame”, “reexame”. Caso a realização<br />
do fonema /w/ figurar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> / k/ ou /g/ antes <strong>de</strong> vogal não posterior, se grafa “u” como em<br />
“eqüino”, “agüentar”.<br />
Tabela 4 - Conversão <strong>de</strong> /j/ e |R| em início <strong>de</strong> sílaba, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal nasalizada, |S|, |W| e <strong>de</strong><br />
/ej/, /ow/, /aj/; conversão <strong>de</strong> /z/ <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo e <strong>de</strong> /w/ entre /k/ ou /g/ e<br />
vogal não posterior
48<br />
Fonema<br />
Conversão Depois <strong>de</strong> Exemplos<br />
|R| r Vogal nasalizada enruga<br />
/W/<br />
/S/<br />
melro<br />
<strong>de</strong>srespeito<br />
/∫/ x Vogal nasalizada enxame<br />
/ej/<br />
<strong>de</strong>ixa<br />
/ow/<br />
trouxa<br />
/aj/<br />
/z/ z /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo,<br />
precedido ou não <strong>de</strong><br />
prefixo<br />
/w/ ü /k/ ou /g/ antes <strong>de</strong> vogal<br />
não posterior<br />
caixa<br />
enxame, reexame<br />
eqüino, aguentar<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.<br />
A tabela abaixo mostra que pela regra a realização do arquifonema |R| no final<br />
da palavra po<strong>de</strong> ser convertido em “r” <strong>de</strong>pois da vogal oral, por exemplo, beber, mulher,<br />
gostar etc. Em sua realização, o arquifonema |S| po<strong>de</strong> ser convertido em “s”, em sílaba tônica<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal oral e semivogal, como em “casas”, “livros”, “bebes”, “fáceis”. Pela regra, o<br />
fonema /j/ po<strong>de</strong> ser convertido em “e” (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /ã (s)/), em “m” no ditongo nasalizado, em<br />
tônico não seguido <strong>de</strong> /s/ (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/) e “n” em ditongo nasalizado átono ou quando tônico,<br />
seguido <strong>de</strong> /S/ (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/), por exemplo, “beber”, “casas”, “mãe”, “bem”, “ele <strong>de</strong>tém”,<br />
“hífen”. O fonema /j/ realizado no final do vocábulo po<strong>de</strong> ser convertido em “i”, em ditongo<br />
<strong>de</strong>crescente, <strong>de</strong>pois da vogal oral, como nas palavras “pai”, “pais”. Por último, o fonema /w/<br />
po<strong>de</strong> ser convertido em ditongo nasalizado tônico, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /ã/, como, por exemplo, “vão”,<br />
“darão”, “salão”, “mãos”.<br />
Tabela 5 - Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final <strong>de</strong> vocábulo<br />
Arquifonema ou<br />
Fonema<br />
Conversão Depois <strong>de</strong> Exemplos
49<br />
|R| r Vogal oral beber, mulher, gostar<br />
|S| s em sílaba tônica Vogal oral, SV casas, livros, bebes,<br />
j<br />
fáceis<br />
e /ã (s)/ /õ (s)/ mãe, mães, mão, mãos<br />
m no ditongo<br />
nasalizado<br />
tônico não seguido <strong>de</strong><br />
/s/<br />
n no ditongo nasalizado<br />
átono, ou quando<br />
tônico, seguido <strong>de</strong> /S/<br />
/j/ i no ditongo<br />
/w/<br />
<strong>de</strong>crescente<br />
no ditongo nasalizado<br />
tônico<br />
/~e/<br />
/~e/<br />
Vogal oral<br />
/ã/<br />
bem, ele vem, alguém<br />
ele <strong>de</strong>tém, eles vêm, ele<br />
<strong>de</strong>tém<br />
hífen, homens, itens,<br />
bens, <strong>de</strong>téns<br />
pai, pais<br />
vão, darão, salão, mãos<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.<br />
Continuando as alternativas competitivas, Scliar-Cabral (2003b) explica:<br />
O fonema /z/ se grafa competitivamente s ou z em início <strong>de</strong> sílaba <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
qualquer vogal ou semivogal, exceto se a vogal oral no início do vocábulo for /e/,<br />
precedida ou não <strong>de</strong> prefixo, pois então se grafa obrigatoriamente x, como em<br />
“exame” [...] (p. 92).<br />
O fonema /∫/ em início <strong>de</strong> vocábulo ou posição intervocálica oral ou nasalizada se<br />
converte em ch ou x. Ex.: “cheque” e “xeque, “chá” e “xá”; “fechou” e “vexou” [...]<br />
( p. 92).<br />
O fonema /з/ em início <strong>de</strong> sílaba externa ou interna, antes <strong>de</strong> vogal não posterior oral<br />
ou nasalizada, se converte em g ou j, conforme os exemplos: “gira” e “jipe”;<br />
“<strong>de</strong>gelo” e “rejeito”; “eu gelo” e “jeca”; “ginga” e “jinga” (p. 93).<br />
O arquifonema |R| em algumas varieda<strong>de</strong>s socioliguísticas, como o chamado dialeto<br />
caipira, em sílaba travada terminada em /R/, /l/ e /R/, neste contexto, realizam-se<br />
como a retroflexa /r/. Neste caso, a homofonia se esten<strong>de</strong> a toda uma série <strong>de</strong> pares e<br />
só é <strong>de</strong>smanchada na escrita, como “pulga” (inseto)/ “purga” (laxante),<br />
“mal”/”mar”, por exemplo (p. 93). Aqui a autora adverte que “o redator, <strong>de</strong> acordo<br />
com o assunto (esquema mental) sobre o qual estiver escrevendo, <strong>de</strong>verá recordar<br />
como se escreve a palavra cuja grafia memorizou”, já que se trata <strong>de</strong> homófonos não<br />
homógrafos (p. 93).<br />
A semivogal /j/ se reescreve competitivamente i ou e nos ditongos crescentes orais<br />
(também pronunciáveis como hiatos), antes <strong>de</strong> vogal oral posterior, em final <strong>de</strong><br />
sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo, ou final <strong>de</strong> vocábulo, seguida ou não <strong>de</strong> consoante. Ex.:<br />
→ “acor<strong>de</strong>ona” e “piolho”, “veado” e “viaja”; “páreo” e “Mário”, “área” e “ária” (p.<br />
93-94).<br />
O arquifonema |W| se escreve competitivamente o ou u nos ditongos crescentes<br />
orais (também pronunciáveis como hiatos), em sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo ou em<br />
final <strong>de</strong> vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S| [...];<br />
O ditongo <strong>de</strong>crescente, em sílaba interna, reescreve-se u ou l. Aplique-se,<br />
também, a restrição da crase quando a semivogal /w/ for precedida pela vogal /u/,<br />
como em /’vutu/ → “vultu” [...];<br />
Em final <strong>de</strong> vocábulo, nos ditongos <strong>de</strong>crescentes, a semivogal /w/ po<strong>de</strong>rá ser<br />
codificada como o, u ou l; no último caso, em algumas varieda<strong>de</strong>s sociolinguísticas,<br />
ocorre a neutralização entre /l/ e /R/ que se realiza como a retroflexa [...].
50<br />
No ditongo seguido do arquifonema |S|, a semivogal /w/ só admite a conversão<br />
como o ou u. Ex.: “ateus”; “tios”; “caos”. (p. 94-95). Desse modo, trata-se, <strong>de</strong>ntre<br />
outras que foram mostradas, <strong>de</strong> uma das codificações mais complexas do português<br />
do Brasil, uma vez que “é particularmente difícil <strong>de</strong>cidir quando escrever ‘mal’ ou<br />
‘mau’, [...] dada a semelhança semântica, somente os conhecimentos <strong>de</strong> morfologia<br />
e <strong>de</strong> sintaxe po<strong>de</strong>m resolver” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 95).<br />
Pela regra, a realização do fonema |R| em final <strong>de</strong> sílaba, seguido <strong>de</strong> uma vogal<br />
posterior oral, se transcreve “r”, como em “carta”, “porta”; o fonema |S| <strong>de</strong>pois da vogal oral,<br />
menos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo precedido ou não por prefixo, isto é, /S/ se realiza<br />
surdo antes <strong>de</strong> /p/, /t/, /k/, /f/ e sonoro antes das <strong>de</strong>mais consoantes, a regra <strong>de</strong>termina que se<br />
grafe “s” como em “caspa”, “pasta”, “lesma”, “asno”. Se a realização do fonema /j/ figurar<br />
<strong>de</strong>pois da vogal oral, se grafa “i”, como em “feira”, conforme se vê na tabela 6, a seguir.<br />
Tabela 6. Conversão dos fonemas em final <strong>de</strong> sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo<br />
Final <strong>de</strong> sílaba Depois <strong>de</strong> Exemplos<br />
Fonema<br />
Conversão<br />
|R| r Vogal oral Carta, porta<br />
|S| s Menos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> Caspa, pasta, lesma,<br />
vocábulo precedido ou não por prefixo asno<br />
/j/ l Vogal oral feira<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 82.<br />
A tabela 7 mostra que /r/ e /l/ se realizam em “r” e “l” nos casos <strong>de</strong> encontros<br />
consonantais na mesma sílaba, isto é, sendo o primeiro fonema /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/, /f/, /v/<br />
se converte nos grafemas “p”, “b”, “t”, “d”, “k”, “g”, “f”,”v”, como em “prato”, “simples”,<br />
“cobra”, “blusa”, “letra”, “vidro”, “crise”, “ciclo”, “gran<strong>de</strong>”, “globo”, “fruta”, “flor”, “livro”.<br />
Tabela 7- Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba<br />
Fonema Conversão 1º fonema Conversão Exemplos<br />
/p/ p prato, simples<br />
/r/ e /l/<br />
r e l<br />
/b/ b cobra, blusa<br />
/t/ t letra<br />
/d/ d vidro<br />
/k/ k crise, ciclo
51<br />
/g/ g gran<strong>de</strong>, globo<br />
/f/ f fruta, flor<br />
/v/ v livro<br />
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 83.<br />
Por fim, Scliar-Cabral (2003b) examina a conversão das vogais nos grafemas que<br />
as representam, levando-se em consi<strong>de</strong>ração: a intensida<strong>de</strong> da sílaba; o timbre da vogal; e a<br />
caixa <strong>de</strong> ressonância, isto é, as vogais orais e nasalizadas. Para a autora, a percepção da sílaba<br />
mais forte no vocábulo ajuda a criança a i<strong>de</strong>ntificar on<strong>de</strong> cai o acento <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>.<br />
Conforme Scliar-Cabral (2003a; b), o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco<br />
letras (a, e, i, o, u) para representar as vogais, embora existam sete vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é,<br />
i) e cinco nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u).<br />
De acordo com Scliar- Cabral (2003b) o acento gráfico marca a intensida<strong>de</strong>,<br />
po<strong>de</strong>ndo grafá-lo com acento agudo ou circunflexo, conforme as regras:<br />
Nos vocábulos proparoxítonos, se as vogais forem orais, o acento circunflexo cai<br />
sempre sobre /e/ ou /o/ e o agudo sempre sobre /i/, /u/, /E/, /j/, /a/ como em “débito”,<br />
“árvore”. [...] Se as vogais forem nasalizadas, o acento circunflexo cai sobre /e/, /o/,<br />
/a/ e o agudo cai sobre /i/e /u/, como em “cúmplice”, “tímpano”. (p. 84)<br />
Os vocábulos oxítonos ou monossílabos tônicos terminados em /e/, /o/, /E/, /j/, /a/,<br />
seguidos ou não do arquifonema |S| a atribuição <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> dois critérios, ou seja,<br />
se a vogal for [+ alta] ou [+nas], <strong>de</strong>ixando a questão do timbre. Ex. “bebê”, “três”,<br />
“pé”. (p. 85)<br />
Os vocábulos paroxítonos terminados em /û/, /õ/, /ã/ ditongo oral <strong>de</strong>crescente ou<br />
crescente, [...] seguidos ou não do arquifonema |S|, como em “álbum”, “álbuns”. [...]<br />
Vogal seguida <strong>de</strong> /p (i)/ e /k (i)/ seguidas do arquifonema |S|, como em “tórax”. [...]<br />
O |R| como em “açúcar”. A regra contempla a variação sociolinguística em que<br />
houve neutralização entre /l/ e |R|, realizado como retroflexa /r/, como em<br />
“possível”. (p. 86)<br />
A intensida<strong>de</strong> nas vogais orais /i/ e /u/, em segundo lugar no hiato, sozinhas na<br />
sílaba (salvo quando seguidas <strong>de</strong> |S|) as vogais /i/ ou /u/ <strong>de</strong>vem se diferentes da<br />
vogal prece<strong>de</strong>nte, seguidas ou não <strong>de</strong> |S|na mesma sílaba como em “caí”, “país” [...]<br />
mas, rainha não tem acento gráfico, pois a segunda vogal do hiato é nasalizada. (p.<br />
86)<br />
Quanto à grafia das vogais nasalizadas, Scliar- Cabral (200b) esclarece que o til,<br />
além <strong>de</strong> assinalar a nasalização das vogais /ã/ e /õ/, marca a sua intensida<strong>de</strong> mais forte nos<br />
ditongos nasalizados em monossílabos tônicos, como em “hão”, “cães”. Já as letras m ou n<br />
marcam a nasalização das vogais em final <strong>de</strong> sílaba interna e também em final <strong>de</strong> sílaba que<br />
não esteja em final <strong>de</strong> vocábulo; antes <strong>de</strong> /p/ e /b/ que iniciem sílaba seguinte é marcada pela<br />
letra m, como em “tempo”, “tumba”. Antes das <strong>de</strong>mais consoantes, a nasalização é assinalada<br />
pela letra n, como em “longe”, “anzol”, “sons”. A nasalização das vogais /i/, /õ/ com ou sem<br />
intensida<strong>de</strong>, em final <strong>de</strong> vocábulo, é assinalada graficamente pela letra m; a nasalização da<br />
vogal /õ/, sem intensida<strong>de</strong>, é assinalada pela letra n. Antes <strong>de</strong> |S| em final <strong>de</strong> vocábulo, a
52<br />
nasalização das vogais mencionadas acima é assinalada obrigatoriamente pela letra n, por<br />
exemplo em “ruins” “fins”, “atuns” e outros. A vogal nasalizada /ã/, com ou sem acento <strong>de</strong><br />
intensida<strong>de</strong>, seguida ou não <strong>de</strong> |S|, em final <strong>de</strong> vocábulo, é marcada graficamente pelo til,<br />
como em “lã”, “maçã”, “fãs”.<br />
Nesta seção, <strong>de</strong>screvemos o sistema alfabético escrito com intuito <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />
as dificulda<strong>de</strong>s pelas quais o alfabetizando passa ao <strong>de</strong>smembrar a ca<strong>de</strong>ia da fala. A seguir,<br />
passamos a apresentar alguns aspectos da perspectiva histórico-cultural <strong>de</strong> Vygotsky,<br />
enfatizando a Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal. E por último, a apropriação da linguagem<br />
escrita pela criança e suas implicações pedagógicas.<br />
2.3 O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E<br />
APRENDIZAGEM: RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO<br />
NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO<br />
Neste trabalho, a alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da<br />
escrita visando às práticas sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma<br />
receita culinária. Mas, além <strong>de</strong>ssas práticas domésticas cotidianas, existem ainda as práticas<br />
acadêmicas: artigo científico, monografia, dissertação e outros. Para fazer isso, importa<br />
dominar o código alfabético, pois sem esse conhecimento é inviável a realização <strong>de</strong>ssas<br />
práticas sociais. Todo processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem <strong>de</strong>manda teorização <strong>de</strong> base<br />
educacional. Dessa forma, como o trabalho aborda a alfabetização, precisamos <strong>de</strong> uma teoria<br />
<strong>de</strong> aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento que fundamente esse processo. Assim sendo, elege-se a<br />
revisão <strong>de</strong> pontos pertinentes da teoria <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> Vygotsky (1999), por enten<strong>de</strong>r<br />
que a mediação, a troca <strong>de</strong> experiência e a importância da contextualização contribuem para o<br />
aprendizado.<br />
2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo <strong>de</strong> aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento
53<br />
A obra <strong>de</strong> Vygotsky, sobretudo nas décadas finais do século XX, foi largamente<br />
discutida nas áreas da Educação e da Psicologia. O estudo concentra-se em <strong>de</strong>screver e<br />
explicar as funções psicológicas superiores, principalmente o conjunto <strong>de</strong> conhecimentos e<br />
habilida<strong>de</strong>s específicas, no que se refere à importância da linguagem e da cultura como<br />
peculiarida<strong>de</strong>s do homem. Sua teoria histórico-cultural parte do pressuposto <strong>de</strong> que é na<br />
relação com o outro que nos constituímos como sujeitos, enquanto a apropriação da cultura<br />
pelo homem ocorre pela mediação social.<br />
Para Vygotsky (1999), a capacida<strong>de</strong> do ser humano <strong>de</strong> planejar ações, tomar<br />
<strong>de</strong>cisões, armazenar conhecimentos e imaginar situações que não existem constitui fenômenos<br />
complexos que implicam funções psicológicas superiores. Esse autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a mediação<br />
<strong>de</strong> um interlocutor mais experiente possibilita o acesso ao conhecimento do objeto <strong>de</strong><br />
aprendizagem; <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> ainda a linguagem como essencialmente <strong>de</strong> natureza psicológica<br />
humana. Tal mediação passa a existir na interação homem-ambiente pelo uso <strong>de</strong> instrumentos<br />
e <strong>de</strong> signos, o que exige do homem a habilida<strong>de</strong> para modificar e transformar a natureza a sua<br />
volta. Desse modo, as funções psicológicas superiores operam como mediadoras no mundo<br />
real, e as ferramentas usadas para essas mediações <strong>de</strong>terminam, fundamentalmente, o<br />
resultado do percurso escolhido, mudando a maneira <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> agir do homem. As<br />
mediações são indispensáveis para o <strong>de</strong>senvolvimento dos processos mentais superiores; as<br />
operações indiretas (ou mediadas) acontecem gradualmente como resultado <strong>de</strong> “[...] um<br />
processo prolongado e complexo, sujeito a todas as leis básicas da evolução psicológica”<br />
(VYGOTSKY, 1999, p. 60).<br />
De acordo com Vygotsky (1999), ao longo da trajetória do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
humano os processos <strong>de</strong> mediação mais aprimorados das funções psicológicas começam a se<br />
organizar quando a criança é capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a função e o uso dos signos externos,<br />
melhorando consi<strong>de</strong>ravelmente o seu <strong>de</strong>sempenho.<br />
Vygotsky constatou também que as crianças menores operam <strong>de</strong> forma direta.<br />
Para as crianças pequenas a representação por signo não faz muito sentido. Apesar <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>monstrar ser capaz <strong>de</strong> relacionar a palavra à imagem, ela não consegue relacionar a imagem<br />
à palavra. O signo (imagem) por sua vez traz à tona uma série <strong>de</strong> novas associações, e então<br />
uma imagem po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma série <strong>de</strong> lembranças. Ao adquirir a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar<br />
a correspondência entre palavra e imagem e vice-versa, a criança estabelece uma correlação<br />
por meio <strong>de</strong> signos. Vygotsky (1999) ensina que inicialmente o interesse da criança <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>
54<br />
apenas dos signos externos, mas com o passar do tempo o seu interesse começa, por meio da<br />
mediação, a operar plenamente com o processo interno. Essa internalização resulta da<br />
reconstrução <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> externa que começa a operar internamente, passando do<br />
processo interpessoal (social) para o intrapessoal (individual). E, após uma série <strong>de</strong><br />
acontecimentos, os processos externos vão sendo incorporados gradativamente ao<br />
<strong>de</strong>senvolvimento humano. Nas palavras <strong>de</strong> Oliveira (2008) é como se, ao longo <strong>de</strong> seu<br />
<strong>de</strong>senvolvimento, o indivíduo “tomasse posse” das formas <strong>de</strong> comportamento fornecidas pela<br />
cultura, num processo em que as ativida<strong>de</strong>s externas e as funções interpessoais se<br />
transformam em ativida<strong>de</strong>s internas, intrapsicológicas.<br />
Em experimentos realizados em laboratórios, Leontiev observou que as crianças<br />
<strong>de</strong> cinco a seis anos geralmente são incapazes <strong>de</strong> usar os cartões para completar a tarefa;<br />
mesmo após a explicação, não conseguiram i<strong>de</strong>ntificar sua função; os estímulos externos<br />
oferecidos não ajudaram a criança a resolver o problema apresentado. Observou também que,<br />
quando fica mais velha, a criança utiliza os cartões com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolver o problema<br />
apresentado, e o seu comportamento passa a ser mediado por uso <strong>de</strong> signo. Assim, o uso <strong>de</strong><br />
signos externos começa a operar a partir <strong>de</strong> oito anos, aproximadamente. Nessa ida<strong>de</strong>, a<br />
criança é capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a sua função e melhorar seu <strong>de</strong>sempenho por meio <strong>de</strong>ssa<br />
mediação. Des<strong>de</strong> cedo a criança apresenta a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar operações complexas, mas<br />
Leontiev constatou, em seus experimentos, que existem os sistemas psicológicos <strong>de</strong> transição<br />
<strong>de</strong>correntes do nível inicial (comportamento elementar) e dos níveis superiores (formas<br />
mediadas <strong>de</strong> comportamento), processo ao qual foi atribuído o nome <strong>de</strong> história natural do<br />
signo.<br />
Apoiando-se nessas pesquisas <strong>de</strong>senvolvidas por seus colaboradores, Vygotsky<br />
(1999) afirma que, para enten<strong>de</strong>r signo e instrumento em profundida<strong>de</strong> e confirmar a real<br />
ligação entre eles, ou pelo menos dar um indício <strong>de</strong> sua existência, são necessárias três<br />
condições: em primeiro lugar, existe similarida<strong>de</strong> entre signo e instrumento; em ambos os<br />
casos, a materialização acontece por meio da mediação, portanto po<strong>de</strong>m “ser incluídos na<br />
mesma categoria” (VYGOTSKY, 1999, p.71). A segunda condição, a diferença entre signo e<br />
instrumento, resi<strong>de</strong> na organização do comportamento humano. Se, por um lado, o<br />
instrumento se “constitui em um meio pelo qual a ativida<strong>de</strong> humana externa é dirigida para o<br />
controle e domínio da natureza” (VYGOTSKY, 1999, p.73), por outro lado, o signo é<br />
essencialmente interno e é controlado pelo próprio sujeito. E, por último, a origem <strong>de</strong> signo e<br />
instrumento, condição ancorada na filogênese e na ontogênese: ao provocar mudança na<br />
natureza, o homem muda a si próprio; ou seja, ao modificar o uso <strong>de</strong> instrumentos
55<br />
culturalmente e atribuir-lhes novas funções, o homem se vê compelido a modificar seu<br />
próprio comportamento.<br />
Finalmente, a criança <strong>de</strong>senvolve a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interagir com os adultos, que<br />
lhe proporciona o contato direto com a cultura. Como já se viu aqui, as características dos<br />
indivíduos originam-se das trocas <strong>de</strong> uns com os outros, basicamente nas interações com os<br />
signos e nas mediações com os mais velhos. Isso é, a interação social, seja diretamente com<br />
outros membros da cultura, seja através dos diversos elementos do ambiente culturalmente<br />
estruturado, fornece a matéria-prima para o <strong>de</strong>senvolvimento psicológico do indivíduo<br />
(OLIVEIRA, 2008, p. 38). Assim, é na interação entre os indivíduos, que o sujeito ao mesmo<br />
tempo valoriza e interioriza as idéias <strong>de</strong> uma outra pessoa e <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, e também po<strong>de</strong><br />
agir sobre o meio do qual faz parte e provocar constantes transformações. Ou seja, a vida<br />
social é um processo dinâmico, em que cada sujeito é ativo e acontece a interação entre o<br />
mundo cultural e o mundo subjetivo <strong>de</strong> cada um (OLIVEIRA, 2008, p. 38).<br />
2.3.2 Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal<br />
Para estudar o comportamento, é impossível excluir o fator biológico e as funções<br />
psicológicas superiores <strong>de</strong> origem sociocultural (VYGOTSKY, 1999). As <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong><br />
Vygotsky evi<strong>de</strong>nciam a importância dos instrumentos e símbolos fornecidos pelas mediações<br />
sociais na relação entre o indivíduo e o mundo: a criança vive e interage em contextos sociais<br />
diferentes; é praticamente impossível não ter nenhum contato com o mundo a sua volta por<br />
menor que seja. Ao estabelecer esses contatos, a criança inicia o aprendizado <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />
conceitos inicialmente experimentados com a ajuda <strong>de</strong> adultos ou pessoas mais experientes e<br />
que mais tar<strong>de</strong> passam a dominar e realizar sem a ajuda <strong>de</strong> terceiros. Ou seja: o que a criança<br />
po<strong>de</strong> fazer hoje com o auxílio dos adultos, po<strong>de</strong>rá fazê-lo amanhã por si só (VYGOTSKY,<br />
1998, p. 113).<br />
Portanto, aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento estão inter-relacionados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
primeiro dia <strong>de</strong> vida da criança (VYGOTSKY, 1999, p. 110), embora não coincidam. Na<br />
perspectiva <strong>de</strong>fendida por esse autor, o aprendizado é o aspecto necessário e universal, uma<br />
espécie <strong>de</strong> garantia do <strong>de</strong>senvolvimento das características psicológicas especificamente
56<br />
humanas e culturalmente organizadas (REGO, 1999, p. 71). Sobre o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
humano, Vygotsky não chegou a formular uma concepção estruturada a partir da qual<br />
pudéssemos interpretar o percurso psicológico do ser humano; em sua obra ele enfatizou a<br />
importância dos processos <strong>de</strong> aprendizagem (OLIVEIRA, 2008, p. 56).<br />
Na concepção <strong>de</strong> Vygostky (1999), para <strong>de</strong>terminar o processo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizado, <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>terminar pelo menos dois níveis<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento: o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento real correspon<strong>de</strong> ao que a criança domina e<br />
realiza sozinha sem a ajuda <strong>de</strong> adultos ou parceiros mais velhos, e o nível <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento potencial correspon<strong>de</strong> ao que a criança é capaz <strong>de</strong> fazer por intermédio das<br />
mediações com adultos ou membros mais experientes <strong>de</strong> seu grupo. O percurso realizado do<br />
nível real para o nível potencial, Vygotsky <strong>de</strong>nominou Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal.<br />
Nas palavras <strong>de</strong> Oliveira (2008, p. 60):<br />
A Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal refere-se, assim, ao caminho que o indivíduo<br />
vai percorrer para <strong>de</strong>senvolver funções que estão em processo <strong>de</strong> amadurecimento e<br />
que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas no seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
real. A Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal é, pois, um domínio psicológico em<br />
constante transformação; aquilo que uma criança é capaz <strong>de</strong> fazer com a ajuda <strong>de</strong><br />
alguém hoje, ela conseguirá fazer sozinha amanhã é como se o processo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento progredisse mais lentamente que o processo <strong>de</strong> aprendizado; o<br />
aprendizado <strong>de</strong>sperta processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que, aos poucos, vão tornar-se<br />
parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo.<br />
Esse conceito <strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal <strong>de</strong> Vygotsky (1999) auxilianos<br />
a compreen<strong>de</strong>r como acontece a aprendizagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado conhecimento. Ele serve<br />
para explicar o percurso que o indivíduo faz ao <strong>de</strong>senvolver ações <strong>de</strong> maturação <strong>de</strong> algum<br />
conceito e como em contato com <strong>de</strong>terminada situação por mediação <strong>de</strong> outro indivíduo, com<br />
mais experiência, essas ações são concretizadas, atingindo o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento real do<br />
indivíduo.<br />
Uma das implicações do conceito <strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal, pelo<br />
viés pedagógico, é consi<strong>de</strong>rar o processo <strong>de</strong> aprendizagem integralmente e não apenas a<br />
finalização das ativida<strong>de</strong>s, isto é, o produto. O percurso para resolver um problema, tanto por<br />
parte do professor quanto por parte do aluno, é muito importante: ambos <strong>de</strong>vem examinar as<br />
práticas vivenciadas em sala <strong>de</strong> aula. O <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>sse novo “mo<strong>de</strong>lo” <strong>de</strong> professor é trazer<br />
como possibilida<strong>de</strong>, novas ações para a apropriação <strong>de</strong> um conteúdo específico. Dessa forma,<br />
amadurecer ou <strong>de</strong>senvolver funções mentais é algo que <strong>de</strong>ve ser encorajado e medido pela
57<br />
colaboração, e não por ativida<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e isoladas (MOLL, 1996, p. 5). Po<strong>de</strong>mos<br />
então inferir, com o respaldo das pesquisas <strong>de</strong> Vygotsky (1999), que numa turma <strong>de</strong><br />
alfabetização é preciso consi<strong>de</strong>rar o contexto sócio-histórico-cultural em que a criança está<br />
inserida; usar o que ela já domina como ponto <strong>de</strong> partida para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o processo da<br />
aprendizagem; analisar e traçar o percurso para realização das ativida<strong>de</strong>s e, por fim, oferecer<br />
estratégias pedagógicas que a auxiliem a <strong>de</strong>senvolver suas potencialida<strong>de</strong>s.<br />
2.3.3 A pré-história da linguagem escrita<br />
Dominar a linguagem escrita significa um extraordinário avanço no<br />
<strong>de</strong>senvolvimento humano. Tal sistema complexo <strong>de</strong> signos aumenta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
registrar informações. Dessa perspectiva, as contribuições <strong>de</strong> Vygotsky (1999) nos auxiliam a<br />
compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da linguagem escrita. Segundo esse autor (1999,<br />
p. 139), “ensina-se as crianças a <strong>de</strong>senhar letras e construir palavras com elas, mas não se<br />
ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se <strong>de</strong> tal forma a mecânica <strong>de</strong> ler o que está escrito que<br />
acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal”. Afirma, ainda, em relação à linguagem<br />
falada, que a criança po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se por si mesma, enquanto o ensino da linguagem<br />
escrita <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um treinamento artificial; assim, a escrita precisa ser ensinada.<br />
Para Vygotsky (1999), a linguagem escrita é um sistema <strong>de</strong> símbolos e signos,<br />
chamado <strong>de</strong> simbolismos <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m e que gradativamente se torna um simbolismo<br />
direto. O autor i<strong>de</strong>ntifica três aspectos importantes para o <strong>de</strong>senvolvimento da escrita: os<br />
gestos e signos visuais, o brinquedo e o <strong>de</strong>senho. O gesto é o signo visual que contém a futura<br />
escrita da criança, e existem momentos em que os gestos estão ligados à origem dos signos<br />
escritos: o primeiro rabisco das crianças.<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento do simbolismo no brinquedo, o segundo aspecto, que une os<br />
gestos à linguagem escrita, diz respeito aos jogos das crianças. Para elas, alguns objetos<br />
po<strong>de</strong>m logo <strong>de</strong>notar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos: assim, um cabo <strong>de</strong><br />
vassoura po<strong>de</strong> transformar-se num cavalinho <strong>de</strong> pau. A representação simbólica no brinquedo<br />
ocorre quando a criança pega um objeto e com ele <strong>de</strong>senvolve uma ativida<strong>de</strong> imaginária;<br />
assim, um objeto adquire uma função <strong>de</strong> signo. Por fim, o <strong>de</strong>senho começa quando a
58<br />
linguagem falada já teve gran<strong>de</strong> progresso. As crianças <strong>de</strong>senham apenas <strong>de</strong> memória, não<br />
<strong>de</strong>senham o que veem, mas o que conhecem, e esses <strong>de</strong>senhos têm por base a linguagem<br />
verbal, que é o primeiro estágio do <strong>de</strong>senvolvimento da linguagem escrita. Com o passar do<br />
tempo, o que foi <strong>de</strong>senhado (escrita pictográfica) adquire a formalida<strong>de</strong> da escrita i<strong>de</strong>ográfica.<br />
Ou seja, o <strong>de</strong>senho acompanha a frase, processo essencial para o <strong>de</strong>senvolvimento da escrita e<br />
do <strong>de</strong>senho na criança (VYGOTSKY, 1999, p. 151).<br />
Dentre os pesquisadores que colaboravam com Vygotsky, Luria (1998) oferece os<br />
subsídios para compreen<strong>de</strong>rmos o processo pelo qual a criança inicia o aprendizado da<br />
linguagem escrita. Nas suas próprias palavras (1998, p. 144):<br />
Iniciamos on<strong>de</strong> pensamos encontrar as origens da escrita e [...] se formos capazes <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante<br />
instrumento para os professores, o conhecimento daquilo que a criança era capaz <strong>de</strong><br />
fazer antes <strong>de</strong> entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles po<strong>de</strong>rão fazer<br />
<strong>de</strong>duções ao ensinar seus alunos a escrever.<br />
Assim, para o estudioso, o escrever pressupõe a habilida<strong>de</strong> para usar alguma<br />
insinuação (por exemplo: uma linha, uma mancha, um ponto) como signo funcional auxiliar,<br />
sem qualquer sentido ou significado em si mesmo, mas apenas como uma operação auxiliar<br />
(LURIA, 1998, p. 145). Ou seja: antes <strong>de</strong> entrar na escola para apren<strong>de</strong>r a escrever, a criança<br />
traz consigo um conjunto <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s que foram <strong>de</strong>senvolvidas anteriormente. Portanto, se<br />
tomarmos como ponto <strong>de</strong> partida essas habilida<strong>de</strong>s que foram construídas naturalmente pela<br />
própria criança, teremos a circunstância propícia para combinar e criar novas maneiras <strong>de</strong><br />
ensinar a escrever distintas da anterior.<br />
Baseando-se em seus experimentos com crianças, Luria (1998) apresentou um<br />
percurso para a pré-história da escrita. Oliveira (2008) reconhece três fases <strong>de</strong> produção<br />
escrita <strong>de</strong> crianças não alfabetizadas na obra <strong>de</strong> Luria (1998): a primeira fase, <strong>de</strong>nominada<br />
rabiscos mecânicos, não tem nenhuma função instrumental; nessa fase, a criança é incapaz <strong>de</strong><br />
utilizar sua produção escrita como apoio para recuperar a informação a ser lembrada. Em<br />
outras palavras, a criança não faz associação entre o rabisco e a sentença ditada; assim, ela é<br />
capaz <strong>de</strong> imitar os adultos, mas é completamente incapaz <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r os atributos<br />
psicológicos específicos que qualquer ato <strong>de</strong>ve ter, caso venha a ser usado como instrumento<br />
a serviço <strong>de</strong> algum fim (LURIA, 1998, p. 149).<br />
Na segunda fase, Oliveira (2008) reconhece as marcas topográficas, nível mais<br />
avançado <strong>de</strong> escrita em que as crianças distribuem seus rabiscos pelo papel na tentativa <strong>de</strong><br />
mapear o que <strong>de</strong>ve ser lembrado e também para lembrar o conteúdo, pela posição <strong>de</strong>ssas
59<br />
marcas no papel. Em outro momento, a criança passa a diferenciar pelo conteúdo o que é dito,<br />
preocupando-se em distinguir quantida<strong>de</strong>, forma e outras características concretas das coisas<br />
ditas. Ou seja, o signo auxiliar (linhas, bolinhas, pontos, manchas) começa a servir para<br />
relacionar o que foi produzido com o que <strong>de</strong>ve ser recordado. Assim, a criança passa por um<br />
processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos<br />
povos primitivos (LURIA, 1998, p. 157).<br />
Finalmente, Oliveira (2008) i<strong>de</strong>ntifica a fase <strong>de</strong> representações pictográficas,<br />
quando os <strong>de</strong>senhos não são utilizados como forma <strong>de</strong> expressão individual, mas como<br />
instrumentos, como signos mediadores que representam <strong>de</strong>terminados conteúdos, <strong>de</strong> forma<br />
que a criança consegue expor suas i<strong>de</strong>ias por meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos ou figuras simbólicas<br />
contendo um significado pessoal. Mais tar<strong>de</strong> esses caminhos levam a criança à escrita<br />
simbólica; primeiramente, transformando o <strong>de</strong>senho num significado simbólico, e <strong>de</strong>pois num<br />
significado funcional. É oportuno lembrar que a criança aqui não sabe usar a escrita, mas já<br />
inicia seu processo <strong>de</strong> compreensão da escrita alfabética.<br />
Resumindo, este capítulo foi dividido em três seções. Na primeira seção,<br />
abordamos a apropriação da escrita na escola: alfabetização em contextos <strong>de</strong> sentido.<br />
Inicialmente priorizamos os documentos oficiais, em virtu<strong>de</strong> do nosso foco <strong>de</strong> interesse, a<br />
concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs <strong>de</strong> Língua Portuguesa do<br />
Ensino Fundamental. Em seguida, explanamos sucintamente sobre os usos sociais da escrita e<br />
o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento da Escola <strong>de</strong> Genebra,<br />
viés pelo qual a interação entre os falantes organiza-se em forma <strong>de</strong> enunciados relativamente<br />
estáveis (BAKHTIN, 2006). Escrevemos ainda sobre a base epistemológica do<br />
interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY, DOLZ,<br />
NOVERRAZ, 2004), que concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo, e<br />
constantemente modificado pela ação dos sujeitos. Essa corrente teórica apresenta a sequência<br />
didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) como proposta <strong>de</strong> intervenção<br />
metodológica para <strong>de</strong>senvolver um <strong>de</strong>terminado gênero. Finalizamos a seção discutindo o<br />
gênero lenda como possibilida<strong>de</strong>s didático-pedagógicas, com base no interesse da criança em<br />
ouvir histórias.<br />
Na segunda seção, tratamos das particularida<strong>de</strong>s do código. Primeiramente,<br />
discorremos sobre as similarida<strong>de</strong>s e as diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita, por enten<strong>de</strong>r o<br />
processo da ca<strong>de</strong>ia da fala como um contínuo que reflete diretamente na escrita. A seguir,<br />
tratamos da importância da consciência fonológica; o reconhecimento das letras que<br />
compõem as palavras, as sílabas e os fonemas-grafemas, estes dois últimos com a função <strong>de</strong>
60<br />
distinguir significados. No tema a seguir <strong>de</strong>screvemos as dificulda<strong>de</strong>s para reconhecer as<br />
letras que compõem as palavras com as quais a criança entra em contato ao iniciar o processo<br />
<strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong> escrita.<br />
Na terceira seção, apresentamos uma discussão sobre o papel do alfabetizador no<br />
processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem da alfabetização baseando-nos na teoria Vygotskiniana<br />
sobre <strong>de</strong>senvolvimento e aprendizagem. No tópico a seguir abordamos a Zona <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento Proximal. E por último, examinamos os princípios que conduzem a<br />
aprendizagem da escrita pela criança <strong>de</strong> acordo com Luria (1998). Após a apresentação da<br />
fundamentação teórica, passamos aos procedimentos metodológicos.<br />
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS<br />
No capítulo anterior apresentamos os aportes teóricos que orientaram a pesquisa.<br />
Este capítulo <strong>de</strong>stina-se à metodologia. Como mencionado anteriormente, o objetivo da<br />
presente pesquisa é <strong>de</strong>screver a proposição <strong>de</strong> encaminhamento metodológico para o processo<br />
<strong>de</strong> apropriação da língua escrita numa classe <strong>de</strong> alfabetização tendo a lenda como gênero-
61<br />
instrumento na ação didático-pedagógica. Por questão <strong>de</strong> ética <strong>de</strong> pesquisa, os nomes reais<br />
foram substituídos com o propósito <strong>de</strong> preservar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da criança, razão pela qual<br />
adotamos a or<strong>de</strong>m alfabética, letras maiúsculas, para nomear as produções textuais.<br />
Apresentamos o tipo <strong>de</strong> pesquisa realizada; em seguida o contexto da pesquisa e a<br />
organização dos dados, e finalmente a forma como foram analisados.<br />
Convém salientar que, para <strong>de</strong>screver a escola, a turma e a sala <strong>de</strong> aula, usamos os<br />
documentos: Plano <strong>de</strong> Ação, em forma <strong>de</strong> gra<strong>de</strong>, que se refere ao cronograma <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e<br />
<strong>de</strong>termina a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> realizá-las; o Projeto Político-Pedagógico (P P P) que aten<strong>de</strong>u o biênio<br />
<strong>de</strong> 2004-2005, cuja meta principal foi orientar o trabalho pedagógico para formação do<br />
educando na busca <strong>de</strong> uma convivência fraterna no meio social e inseri-lo no mundo da<br />
cultura e do conhecimento científico do processo ensino-aprendizagem (p. 3). Usamos ainda<br />
uma máquina fotográfica para registrar as ativida<strong>de</strong>s; e também o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento,<br />
que foi importante não somente em relação às ativida<strong>de</strong>s, mas para <strong>de</strong>screver as intervenções<br />
realizadas ao longo do processo. E por último, o diário <strong>de</strong> classe, documento que registra<br />
diariamente os conteúdos que foram trabalhados. Em alguns casos, examinamos o relatório<br />
individual do aluno, documento solicitado à secretaria da escola com antecedência. Dos<br />
documentos: Plano <strong>de</strong> Ação e Projeto Político-Pedagógico, a coor<strong>de</strong>nadora pedagógica da<br />
escola nos forneceu uma cópia em CD.<br />
3.1 TIPO DE ESTUDO<br />
Por se tratar <strong>de</strong> pesquisa na área educacional, optou-se por uma abordagem que<br />
documenta a realida<strong>de</strong>, a dinâmica e a complexida<strong>de</strong> do contexto <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula. Segundo<br />
Ludke e André (1986), à medida que avançam os estudos da educação, mais evi<strong>de</strong>nte se torna<br />
seu caráter <strong>de</strong> flui<strong>de</strong>z dinâmica e <strong>de</strong> mudança, natural a todo ser vivo. E mais claramente se<br />
nota a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver métodos <strong>de</strong> pesquisa que atentem para esse caráter<br />
dinâmico.<br />
A abordagem qualitativa foi utilizada porque envolve a obtenção <strong>de</strong> dados<br />
<strong>de</strong>scritivos, colhidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais
62<br />
o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes<br />
(LUDKE, ANDRÉ, 1986). Sendo assim, é imprescindível um contato direto com a situação<br />
pesquisada para fornecer, em sua análise, elementos necessários para compreen<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong>terminada situação a<strong>de</strong>quadamente. Estudos <strong>de</strong>ssas ocorrências específicas são essenciais<br />
para oportunizar ao pesquisador enten<strong>de</strong>r e suscitar a realida<strong>de</strong> dinâmica e complexa em que<br />
se insere <strong>de</strong>terminado objeto <strong>de</strong> estudo.<br />
Nesta pesquisa, com base no referencial teórico procurou-se compreen<strong>de</strong>r e<br />
interpretar a realida<strong>de</strong> estudada. Para tanto, estabeleceu-se uma interação entre os dados reais<br />
e suas possíveis explicações teóricas que permitem estruturar um quadro teórico <strong>de</strong>ntro do<br />
qual o fenômeno po<strong>de</strong> ser interpretado e compreendido (LUDKE, ANDRÉ, 1986).<br />
Por se tratar <strong>de</strong> uma única turma da re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> ensino do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, o<br />
estudo <strong>de</strong> caso foi escolhido como metodologia por melhor instrumentalizar o contexto da<br />
pesquisa, tomando a aplicação das ativida<strong>de</strong>s e as produções dos alunos como interesse único<br />
e respeitando sua singularida<strong>de</strong>. Assim, o princípio básico <strong>de</strong>ste estudo é que, para uma<br />
apreensão mais completa do objeto, é preciso levar em conta o contexto em que ele se situa<br />
(LUDKE, ANDRÉ, 1986).<br />
3.2 CONTEXTO DA PESQUISA<br />
Apresentamos nesta seção o contexto da pesquisa: a escola, a turma e a sala <strong>de</strong><br />
aula on<strong>de</strong> foi realizada a pesquisa. Em seguida, <strong>de</strong>stacamos a organização dos dados e,<br />
finalmente, a forma <strong>de</strong> analisá-los.<br />
3.2.1 A escola<br />
A pesquisa foi realizada numa escola pública do Distrito Fe<strong>de</strong>ral; e os dados<br />
foram coletados numa turma <strong>de</strong> primeira série no <strong>de</strong> 2005.<br />
A coleta <strong>de</strong> dados foi realizada no Centro <strong>de</strong> Ensino Fundamental 06, situado na<br />
Quadra 03, Área Especial 1/2, na cida<strong>de</strong> satélite <strong>de</strong> Sobradinho/DF. De acordo com o Projeto
63<br />
Político-Pedagógico (2004-2005), essa escola passou a existir a partir da fusão da Escola<br />
Classe 02 com a Escola Classe 08, iniciando suas ativida<strong>de</strong>s em 14 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1977. Ainda <strong>de</strong><br />
acordo com o documento, no ano <strong>de</strong> 2005, foco <strong>de</strong>sta pesquisa, o Centro <strong>de</strong> Ensino<br />
Fundamental 06 aten<strong>de</strong>u 645 alunos <strong>de</strong> 1ª a 4ª série no turno matutino, distribuídos em vinte<br />
turmas; 696 alunos <strong>de</strong> 5ª e 6ª séries no turno vespertino divididos em vinte turmas; três turmas<br />
<strong>de</strong> Educação Infantil e 950 alunos do segundo segmento da Educação <strong>de</strong> Jovens e Adultos no<br />
noturno. O Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) relata que a comunida<strong>de</strong> apresentava<br />
uma renda familiar médio-baixa, e a maioria dos pais cursara o ensino fundamental série<br />
inicial. A formação das famílias era convencional e não convencional: existiam famílias em<br />
que o sustento da casa <strong>de</strong>pendia exclusivamente do trabalho da mulher e/ou dos filhos<br />
menores; alunos que moravam com avós; pais separados que mantinham relacionamentos<br />
diversos; portanto, as famílias que representavam a escola tinham organizações variadas.<br />
Os dados coletados no Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) mostram que a<br />
renda familiar era composta pelo trabalho <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um membro da casa. Na verda<strong>de</strong>, essa<br />
realida<strong>de</strong> dificultava o acesso à vida escolar dos filhos por parte da família, pois nenhum<br />
membro da família podia assumir o compromisso <strong>de</strong> acompanhar suas ativida<strong>de</strong>s escolares.<br />
Gran<strong>de</strong> parte dos alunos morava distante e necessitava <strong>de</strong> transporte para chegar à escola.<br />
Devido a ser maior a <strong>de</strong>manda do que a oferta e à estratégia <strong>de</strong> matrícula exigida pela<br />
Secretaria <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Estado do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, as turmas eram formadas com um<br />
número excessivo <strong>de</strong> alunos, tornando o espaço físico ina<strong>de</strong>quado, o que dificultava o<br />
atendimento individualizado do professor ao aluno. A realização das ativida<strong>de</strong>s que exigiam<br />
movimentação da turma ficava extremamente comprometida. Nesse quadro, alguns fatores<br />
influenciaram diretamente a dinâmica escolar: a falta <strong>de</strong> acompanhamento dos pais, a<br />
superlotação das salas, a indisciplina, a falta <strong>de</strong> material pedagógico e <strong>de</strong>sconhecimento das<br />
regras que fazem parte do bom andamento da escola, entre outros. Essas influências<br />
interferiram na aprendizagem dos alunos, gerando um consi<strong>de</strong>rável quadro <strong>de</strong> repetência<br />
(PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2004-2005, p. 4).<br />
3.2.2 A turma
64<br />
Para registro dos dados, usamos o diário <strong>de</strong> classe da turma; cópias dos relatórios<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho dos alunos, visto que os originais já tinham sido entregue aos pais em<br />
reuniões, e o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento. Esses documentos foram requisitados à escola com<br />
antecedência <strong>de</strong> quinze dias, pois o elevado fluxo <strong>de</strong> atendimento diário da secretaria<br />
inviabilizou o recebimento imediato. Ter acesso aos documentos nos possibilitou registrar o<br />
perfil da turma, sobretudo as particularida<strong>de</strong>s das práticas <strong>de</strong> linguagem <strong>de</strong> que participam.<br />
De acordo com o Diário <strong>de</strong> Classe no início do ano letivo <strong>de</strong> 2005, a turma era<br />
composta <strong>de</strong> quarenta e dois alunos. As transferências foram concedidas por diversos<br />
motivos, entre os quais: mudança <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, para escolas mais próximas <strong>de</strong> suas residências e<br />
até mudança para outros Estados da Fe<strong>de</strong>ração. Transferências foram feitas no mês <strong>de</strong> julho,<br />
gerando uma distorção nos resultados, pois saíram alunos que já estavam adiantados no<br />
processo <strong>de</strong> escrita e, em contrapartida, chegaram alunos iniciantes no processo. Mesmo com<br />
as entradas e saídas, restavam trinta e uma crianças, don<strong>de</strong> se conclui que ocorreram onze<br />
transferências. Das trinta e uma crianças matriculadas na turma, a maioria já frequentara a<br />
pré-escola, o que significa que elas já haviam tido contato com a linguagem escrita. Dessa<br />
maneira, terminamos o ano letivo com trinta e um alunos com ida<strong>de</strong> entre oito e <strong>de</strong>z anos. Do<br />
conjunto, vinte e nove haviam frequentado a Educação Infantil em escola pública; um aluno<br />
era proce<strong>de</strong>nte do lar e um aluno era repetente da série. A maioria era do sexo feminino.<br />
Conforme o diagnóstico inicial da turma registrado no Diário <strong>de</strong> Classe, <strong>de</strong> modo<br />
geral, no início do ano alguns alunos <strong>de</strong>monstravam dificulda<strong>de</strong> em respeitar regras<br />
estabelecidas pela escola e pela turma. Eles eram inquietos e conversavam <strong>de</strong>mais. Alguns<br />
alunos apresentavam comportamento disperso, baixa concentração, falta <strong>de</strong> interesse e muita<br />
dificulda<strong>de</strong> para realizar as tarefas. Algumas crianças apresentavam traços <strong>de</strong> violência e<br />
intolerância com os colegas da sala e da escola. Na verda<strong>de</strong>, eles precisavam <strong>de</strong>senvolver as<br />
habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saber ouvir, falar, participar, colaborar e interagir uns com os outros. A maioria<br />
dos alunos gostava <strong>de</strong> programas infantis. Mas, ao contrário disso, <strong>de</strong> acordo com os<br />
<strong>de</strong>poimentos, assistiam com frequência a programas voltados para o público adulto. O Diário<br />
<strong>de</strong> Classe registra ainda que as crianças apresentavam disposição para ativida<strong>de</strong>s musicais,<br />
danças, teatros, jogos e brinca<strong>de</strong>iras livres e dirigidas. Em relação à matemática, eles<br />
apresentavam dificulda<strong>de</strong>s nos conceitos <strong>de</strong> seriação, inclusão, classificação, sequência<br />
lógica, interpretação e resolução <strong>de</strong> situação problema simples (oral). Gran<strong>de</strong> parte da turma<br />
realizava a contagem até 9, mas não era capaz <strong>de</strong> estabelecer a correspondência biunívoca,<br />
isto é, não relacionava <strong>de</strong> um para um a correspondência entre os elementos, em ambas as
65<br />
direções (LEMLE, 2003, p. 17). Em relação ao alfabeto, foi registrado que boa parte das<br />
crianças era capaz <strong>de</strong> “recitá-lo” oralmente em sequência; mas, quando solicitadas que<br />
apontassem letras <strong>de</strong> maneira alternada e aleatória, elas não conseguiam. E também não<br />
reconheciam uma letra prontamente, mas eram capazes <strong>de</strong> utilizar a memória até encontrar a<br />
letra pedida.<br />
3.2.3 A sala <strong>de</strong> aula<br />
A aplicação das ativida<strong>de</strong>s propostas para o ano letivo <strong>de</strong> 2005, <strong>de</strong>mandou<br />
algumas medidas: reorganizar a sala <strong>de</strong> aula, rever o planejamento e a execução das<br />
ativida<strong>de</strong>s; analisar e selecionar o material pedagógico, entre outras.<br />
De acordo com as anotações do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento, para aten<strong>de</strong>r às<br />
especificida<strong>de</strong>s das ativida<strong>de</strong>s aplicadas, o ambiente <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula era organizado <strong>de</strong><br />
diversas maneiras, servindo essa reorganização também para dinamizar as aulas. As carteiras<br />
da sala ora eram organizadas em dupla, ora em trio, ora em grupos maiores, ora em grupos<br />
menores; e, em <strong>de</strong>terminados momentos, os alunos também foram agrupados <strong>de</strong> acordo com<br />
suas dificulda<strong>de</strong>s individuais e coletivas. Foi registrado no ca<strong>de</strong>rno, o costume <strong>de</strong> no início <strong>de</strong><br />
ano letivo, a sala <strong>de</strong> aula ser <strong>de</strong>corada com cartazes, alfabetos com diversos tipos e tamanhos<br />
<strong>de</strong> letras, painéis, <strong>de</strong>senhos. Toda essa preparação era entendida como mais uma forma <strong>de</strong><br />
estimular o aluno, pois se acreditava que ele <strong>de</strong>veria ser exposto ao maior número possível <strong>de</strong><br />
estímulos visuais externos. Assim, logo no primeiro dia <strong>de</strong> aula e com esse excesso <strong>de</strong><br />
estímulo, a previsão era <strong>de</strong> se obter um aprendizado mais rápido e eficiente.<br />
No entanto, no ano da realização da pesquisa não aconteceu <strong>de</strong>ssa forma: a i<strong>de</strong>ia<br />
era construir todo esse aparato lúdico com as próprias crianças, e por isso o que elas<br />
encontraram foi apenas um cartaz <strong>de</strong> boas-vindas. Inicialmente, houve um estranhamento<br />
referente à quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cartazes, mas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua efetiva realização, a<br />
finalida<strong>de</strong> era provocar discussões sobre a escrita no momento da preparação dos cartazes.<br />
Nessa ocasião, os alunos também ajudaram a construir o alfabeto. Durante todo o ano letivo<br />
eles participaram da organização e da <strong>de</strong>coração da sala <strong>de</strong> aula.
66<br />
Conforme o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento, a biblioteca da sala <strong>de</strong> aula consistia em<br />
uma caixa, chamada <strong>de</strong> Caixa Mágica, com diferentes portadores <strong>de</strong> gêneros <strong>de</strong> texto:<br />
folhetos, jornais, encartes <strong>de</strong> supermercado, catálogos <strong>de</strong> viagem, gibis, revistas, livros etc.<br />
Ali os estudantes po<strong>de</strong>riam encontrar vários gêneros: receitas, poesias, história em<br />
quadrinhos, quadrinhas, piadas, fábulas, lendas, conto <strong>de</strong> fada etc. Esses materiais ficavam à<br />
disposição das crianças e foram responsáveis por interações extremamente valiosas. Alguns<br />
exemplares foram doados pelos pais, mas a gran<strong>de</strong> maioria pertencia ao meu acervo didático.<br />
Foram organizados com ajuda e cuidado das crianças, chegando ao final do ano com poucos<br />
danos. Também incentivamos as crianças a frequentarem a biblioteca da escola. Embora com<br />
poucos títulos para essa faixa etária, enten<strong>de</strong>mos que esse espaço <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>veria ser<br />
aproveitado pela criança.<br />
Ainda <strong>de</strong> acordo com o registro, a sala não era gran<strong>de</strong>, o mobiliário era velho,<br />
com carteiras e ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> diversos tamanhos; as janelas precisavam <strong>de</strong> reparos, e as pare<strong>de</strong>s<br />
eram rabiscadas e <strong>de</strong>scascadas, causando uma impressão <strong>de</strong>sagradável. Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> tal<br />
<strong>de</strong>sajuste se atribui ao gran<strong>de</strong> movimento no local: no período vespertino a escola atendia<br />
alunos maiores e, no noturno, adultos.<br />
3.2.4 Organização dos dados<br />
Como apontado anteriormente, os dados foram recolhidos e organizados em três<br />
momentos distintos, obtendo-se um total <strong>de</strong> vinte e oito produções escritas em cada amostra.<br />
Para a escrita da produção textual, procuramos propiciar um ambiente com o<br />
menor estímulo visual possível: cartazes, faixas, letras e <strong>de</strong>senhos foram retirados com o<br />
intuito <strong>de</strong> coletar o texto da criança sem interferência <strong>de</strong> estímulos externos, para que<br />
pudéssemos, <strong>de</strong> fato, ter uma amostra real do seu aprendizado. Tentou-se também controlar o<br />
barulho externo, com o intuito <strong>de</strong> proporcionar à criança um ambiente mais propício à<br />
concentração; mas a tentativa resultou infrutífera, pois a condição da escola impossibilitou o<br />
acesso a uma situação a<strong>de</strong>quada para a produção textual escrita. Infelizmente, não foi possível<br />
calcular até que ponto essas interferências externas comprometeram o <strong>de</strong>sempenho da criança.<br />
Os textos coletados no início do mês <strong>de</strong> março serviram para diagnosticar como os<br />
alunos chegaram à 1ª série. Assim, com base nas evidências existentes preparamos as crianças<br />
para o início do processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. O recolhimento <strong>de</strong>sses
67<br />
exemplares <strong>de</strong> texto se <strong>de</strong>u com vistas à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> monitorar e encaminhar<br />
metodologicamente o <strong>de</strong>sempenho dos alunos. Portanto, a proposta da ativida<strong>de</strong> se constituía<br />
em coletar uma amostra <strong>de</strong> produção textual <strong>de</strong> escrita espontânea, ou seja, naquele momento<br />
não era importante fazer intervenções nem mediações na escrita das crianças, interpelando-as<br />
com perguntas e nem questionando sobre o que foi escrito. Na verda<strong>de</strong>, a intenção era<br />
diagnosticarmos o seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento real (VYGOTSKY, 1999); saber como se<br />
sairiam na primeira produção <strong>de</strong> texto e se as crianças eram capazes <strong>de</strong> memorizar e recontar<br />
a lenda.<br />
Para a coleta <strong>de</strong>sta primeira amostra, inicialmente contamos a lenda Potyra - As<br />
lágrimas eternas, <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva (1999), e realizamos diversas ativida<strong>de</strong>s,<br />
tais como: conversas informais sobre as ações das personagens, ilustração, dramatização e<br />
reconto oral coletivo. E, após a troca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias entre as crianças, convidamo-las e as<br />
incentivamos a realizarem a primeira produção individual <strong>de</strong> texto escrito.<br />
A primeira amostra serviu para diagnosticar o que as crianças já dominavam. A<br />
partir dali, concentramos a nossa atenção na aplicação <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s selecionadas, conduzindo<br />
as crianças a <strong>de</strong>senvolverem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as características do gênero lenda e<br />
o sistema alfabético. O objetivo, ao recolher esse conjunto <strong>de</strong> exemplares <strong>de</strong> textos originais<br />
produzidos pelas crianças, era confirmar e examinar a eficiência da realização <strong>de</strong>ssas ações<br />
para a apropriação da linguagem escrita.<br />
No final do mês <strong>de</strong> junho coletamos a produção textual espontânea dos alunos<br />
logo após a aplicação <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s. Tais amostras serviram para acompanhar e observar o<br />
<strong>de</strong>sempenho das crianças na realização das tarefas, cujos resultados foram analisados com a<br />
finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliarmos se havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modificação, <strong>de</strong> melhoria ou <strong>de</strong> recuperação<br />
das ativida<strong>de</strong>s para o semestre seguinte.<br />
No final do mês <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005 concretizou-se a terceira coleta <strong>de</strong><br />
produção textual espontânea. Privilegiamos as interações verbais (VYGOTSKY, 1999) e as<br />
contribuições comunicativas no momento das discussões e chamamos a atenção para a<br />
estrutura da narrativa do gênero lenda: a situação inicial, o conflito, as ações, a resolução do<br />
problema e a situação final (BRONCKART, 2003). As produções foram recolhidas após a<br />
conclusão do texto. Em nenhum momento houve correção nem intervenção no processo <strong>de</strong><br />
escrita do aluno. Ao final das produções, fizemos anotações sobre o <strong>de</strong>sempenho dos alunos e<br />
sobre a aplicação das oficinas. Essas amostras nos forneceram dados importantes acerca da<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capacitar o aluno para diferenciar um gênero <strong>de</strong> outro e também serviram para<br />
analisarmos o <strong>de</strong>senvolvimento do processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. Convém
68<br />
ressaltar que, o objetivo <strong>de</strong> recolher tais amostras foi examinar como transcorreu o processo<br />
<strong>de</strong> apropriação da língua escrita por meio do reconto <strong>de</strong> lendas produzidas com base no<br />
conceito <strong>de</strong> sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).<br />
3.2.5 Forma <strong>de</strong> análise dos dados<br />
Os dados foram analisados sob dois enfoques: o uso social da escrita e o sistema<br />
alfabético. No uso social da escrita, primeiramente a ênfase recaiu sobre o encaminhamento do<br />
processo metodológico para <strong>de</strong>senvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o<br />
processo <strong>de</strong> aplicação das ativida<strong>de</strong>s baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />
NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Quanto ao<br />
sistema alfabético, explicamos as ativida<strong>de</strong>s aplicadas e analisamos através dos dados, o<br />
percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética.<br />
Em relação ao gênero trabalhado, atentamos para a preocupação <strong>de</strong> preservar o<br />
título original ou criar outro título. Também verificamos o contexto <strong>de</strong> ação dos personagens e<br />
as fases da sequência da narrativa. Outros aspectos <strong>de</strong>talhados foram: as superstições e<br />
crendices; a preservação das sequências dos fatos peculiares da lenda ou criação <strong>de</strong> outras<br />
sequências diferentes das oferecidas pelo autor; a capacida<strong>de</strong> para conservar as ações dos<br />
personagens ou criar novas ações; a relação imagem e texto; quanto ao tema das lendas,<br />
observamos se o aluno respeitou a sequência lógica das fases da narrativa e se <strong>de</strong>monstrou<br />
clareza ao expor suas i<strong>de</strong>ias ao produzir o texto.<br />
Em relação ao código, analisamos como os alunos se apropriaram do sistema<br />
alfabético, mostrando, através dos dados, o seu percurso no processo <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />
Em relação à estrutura linguística, examinamos a escritura convencional <strong>de</strong> palavras e frases e a<br />
separação silábica quando necessário. Não nos esquecemos <strong>de</strong> observar também o uso<br />
a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> letras maiúsculas e minúsculas, emprego do vocabulário e os mecanismos <strong>de</strong><br />
coesão e coerência.<br />
Passamos à análise <strong>de</strong> dados.
69<br />
4 ANÁLISE DOS DADOS<br />
Neste capítulo, apresentadas as consi<strong>de</strong>rações sobre os fundamentos teóricos e<br />
metodológicos que orientaram nosso estudo, a finalida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong><br />
apropriação da escrita apoiando-nos no gênero lenda como instrumento da ação didáticopedagógica.<br />
Especificamente, este estudo apresenta um recorte do trabalho realizado com o<br />
gênero lenda numa classe <strong>de</strong> alfabetização. Iniciamos <strong>de</strong>screvendo as ativida<strong>de</strong>s mediadas<br />
pela linguagem escrita no contexto da sala <strong>de</strong> aula e prosseguimos analisando a produção dos
70<br />
alunos. Colocamos à disposição do leitor a reprodução e a transcrição da produção textual,<br />
para facilitar a visualização e o acompanhamento dos dados. Na transcrição dos textos não<br />
houve correção <strong>de</strong> nenhuma espécie, respeitando-se a escrita da criança. Para registrar as<br />
ativida<strong>de</strong>s, foram usados: máquina fotográfica, ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento e o diário <strong>de</strong> classe.<br />
4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM<br />
CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA<br />
Para Schneuwly (2004, p. 24), o instrumento torna-se o lugar privilegiado da<br />
transformação dos comportamentos, explorando as suas possibilida<strong>de</strong>s para enriquecê-los,<br />
transformá-los, mantendo-os ligadas à sua utilização. Dessa forma, na prática em sala <strong>de</strong> aula<br />
as ativida<strong>de</strong>s estruturais são importantes à medida que a sua aplicação faça sentido para<br />
criança, e não a cópia pela cópia e a repetição <strong>de</strong> famílias silábicas sem nenhum significado.<br />
Por outro lado, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar também, que relações sociais são<br />
experimentadas em sala <strong>de</strong> aula e o papel que o aluno exerce enquanto sujeito constituído<br />
socialmente é construído dialogicamente na perspectiva <strong>de</strong> trabalhos com textos; isto é,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos aqui que tomar o gênero como instrumento da ação didática pedagógica serve<br />
para compor estratégias que levem a criança a vivenciar situações adaptadas à sua prática<br />
social.<br />
Neste capítulo tomamos duas direções que, a nosso ver, se complementam entre<br />
si. A primeira diz respeito à apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em<br />
contextos <strong>de</strong> uso social da língua com base em sequências didáticas; acolhemos a<br />
aprendizagem da lenda; aprendizagem da estrutura narrativa da lenda, e por último a<br />
aprendizagem das categorias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na lenda. Na segunda, admitimos a<br />
importância do código no processo <strong>de</strong> alfabetização. Abordamos a apropriação do sistema<br />
alfabético: o gênero lenda como instrumento; a representação <strong>de</strong> que a fala po<strong>de</strong> ser escrita; a<br />
construção da noção <strong>de</strong> palavra no texto escrito e finalizamos a seção com o aprendizado das<br />
relações entre fonemas e grafemas.
71<br />
4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos <strong>de</strong> uso social da<br />
língua com base em sequências didáticas<br />
O objetivo <strong>de</strong>sta seção é explanar a aplicação das ativida<strong>de</strong>s usando um trabalho<br />
com o gênero lenda. Schneuwly e Dolz (2004) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o gênero como (mega) instrumento<br />
<strong>de</strong> ensino-aprendizagem e sua elaboração didática por meio <strong>de</strong> sequências didáticas<br />
(SCHNEUWLY, DOLZ , NOVERRAZ, 2004) organizadas <strong>de</strong> forma sistemática e aplicadas<br />
gradativamente. Portanto, os gêneros como (mega) instrumentos têm a função <strong>de</strong> mediar a<br />
ativida<strong>de</strong> humana. Dessa maneira, as ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas para levar a criança a tornarse<br />
usuário competente da sua língua materna em diversas situações comunicativas: agindo,<br />
buscando soluções para os problemas, intermediando situações, modificando as<br />
representações que fazem do mundo, expressando i<strong>de</strong>ias e pensamentos em diferentes<br />
contextos sociais.<br />
As ativida<strong>de</strong>s envolvendo o gênero lenda foram planejadas seguindo-se um<br />
conjunto <strong>de</strong> recomendações com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regular a seleção do que <strong>de</strong>ve ser trabalhado<br />
com a criança, como se discrimina a seguir.<br />
Inicialmente verificamos a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> títulos, relacionando-os com as<br />
fases <strong>de</strong> interesse propostas por Coelho (2000). Fixamo-nos nas duas primeiras, que abrangem<br />
as classes <strong>de</strong> alfabetização: a fase do leitor iniciante (6/7 anos) e a do leitor em processo (7/8<br />
anos). Depois consi<strong>de</strong>ramos que o gênero lenda é o preferido da faixa etária do leitor iniciante<br />
e do leitor em processo, por se tratar <strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> cunho narrativo, que teve seu início<br />
pela oralida<strong>de</strong>. E mais: as características encontradas nesse gênero ajudam a criança a<br />
produzir linguagem em condições diferentes daquelas praticadas habitualmente no convívio<br />
familiar.<br />
O gênero em questão permite o uso <strong>de</strong> estratégias que po<strong>de</strong>m facilitar as<br />
intervenções metodológicas, possibilitando estudos relacionados a outros temas, como: a<br />
cultura indígena, a diversida<strong>de</strong> cultural, o preconceito cultural, o homem e a natureza, os<br />
valores, as regras, as normas e as leis <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. Além disso, apresenta os<br />
elementos essenciais que compõem o processo <strong>de</strong> escrita, pois os textos po<strong>de</strong>m ser<br />
construídos <strong>de</strong> maneira diferente dos mo<strong>de</strong>los apresentados pelas cartilhas, uma vez que as<br />
crianças que têm a cartilha como único mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escrita construirão uma concepção <strong>de</strong>
72<br />
“texto escrito” amarrada a esse mo<strong>de</strong>lo único (MASSINI-CAGLIARI, 2005). Da perspectiva<br />
do gênero, é possível reunir os elementos para compor a sua inter-relação com o social.<br />
Ao classificar as lendas em cosmogônicas, heróicas, etiológicas, <strong>de</strong> encantamento,<br />
ornitológicas e mitológicas, Oliveira (1951, 1965) pretendia submeter as lendas a um critério<br />
científico, além <strong>de</strong> proporcionar aos leitores subsídios apoiados em estudiosos do folclore<br />
pátrio. Para o autor, existem as lendas que explicam a origem das coisas e fenômenos do<br />
universo (nascimento da noite, do dia, criação dos rios etc.); as que expressam os sentimentos<br />
que fazem parte do humano (amor, ódio, vingança, medo); as que enaltecem os heróis etc.<br />
Enfim, <strong>de</strong> certa forma, entrar em contato com esse gênero po<strong>de</strong> ajudar a criança a interpretar a<br />
realida<strong>de</strong> a sua volta <strong>de</strong> maneira lúdica e prazerosa, expressando um pensamento, uma<br />
conduta social ou mesmo representando uma situação simbolicamente e, sobretudo,<br />
compreen<strong>de</strong>ndo os valores, as normas e as leis <strong>de</strong> uma cultura diferente da sua.<br />
Ainda no intuito <strong>de</strong> justificar a escolha do gênero, consi<strong>de</strong>ramos que a lenda, além<br />
<strong>de</strong> ser um gênero comunicacional (BRONCKART, 2003) que preserva e <strong>de</strong>sperta a<br />
curiosida<strong>de</strong> das crianças, aguçando sua imaginação. E, por fim, o trabalho com as lendas<br />
permite inúmeras pesquisas e <strong>de</strong>scobertas nas diversas áreas, como linguísticas, geográficas,<br />
filosóficas, sociológicas, antropológicas etc.<br />
Dezesseis lendas serviram <strong>de</strong> fundamento didático:<br />
1. Potyra – As lágrimas eternas<br />
2. Yara a rainha das águas<br />
3. Igaranhã – A canoa encantada<br />
4. Thainá Khan<br />
5. João-<strong>de</strong>-barro<br />
6. Lenda do café<br />
7. O Sol e a Lua<br />
8. A lenda da fogueira<br />
9. Irapuru, o canto que encanta<br />
10. Tucanã: o surgimento da noite<br />
11. Lenda do Guaraná<br />
12. Mumuru: Vitória- Régia<br />
13. O cervo Berá – O troféu do amor<br />
14. Mandioca – O pão indígena<br />
15. Guaraná – A essência dos frutos<br />
16. Negrinho do pastoreio
73<br />
Explanadas as recomendações, passamos a <strong>de</strong>screver os passos para <strong>de</strong>senvolver o<br />
reconto coletivo, ativida<strong>de</strong> que foi fundamental para o processo <strong>de</strong> escrita. Para aumentar as<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem, <strong>de</strong> recontar oralmente e escrever as lendas, foi programado<br />
um conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s obe<strong>de</strong>cendo a um roteiro. Algumas ativida<strong>de</strong>s foram realizadas em<br />
um período <strong>de</strong> tempo prolongado, outras tiveram curta duração, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do interesse das<br />
crianças. O conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s foi baseado na sequência didática proposta por Schneuwy,<br />
Dolz e Noverraz (2004). A seguir, resumimos o roteiro <strong>de</strong> realização das ativida<strong>de</strong>s:<br />
a) Primeiro passo: a escolha. A lenda ora era escolhida por nós, ora era escolhida<br />
pela turma, e normalmente era submetida a votação. Quando a escolha partia dos alunos,<br />
colocávamos uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> títulos à disposição. Naquele momento, era interessante<br />
observar o critério <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong>les. Uns escolhiam pelas personagens, outros pelas<br />
ilustrações, outros ainda pela capa do livro, e havia aqueles que se mostravam curiosos em<br />
relação ao tema. Com o avançar das aulas, eles ampliaram o leque <strong>de</strong> perguntas e queriam<br />
saber quem era o autor, e nitidamente aos poucos se consolidou a preferência pelo livro<br />
Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros, do pesquisador Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva.<br />
Atribuímos essa preferência a dois motivos: primeiramente, os textos são bem escritos e o<br />
estilo do autor prima pelo zelo e cuidado com o leitor. Em segundo lugar, as ilustrações, que<br />
são do próprio autor, são <strong>de</strong>licadas e <strong>de</strong> bom gosto, elevando a qualida<strong>de</strong> da publicação.<br />
b) Segundo passo: leitura. A maior parte da leitura foi feita por nós e por alguns<br />
convidados, como, por exemplo: um aluno <strong>de</strong> segunda série, professores e eventualmente uma<br />
contadora <strong>de</strong> história. O primeiro contato com a lenda geralmente já <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ava as<br />
ativida<strong>de</strong>s que seriam <strong>de</strong>senvolvidas. Segundo Coelho (2003), o aparecimento do termo lenda<br />
já indica uma característica do gênero, preparando o leitor/ouvinte para o mundo ficcional, o<br />
que exigia preparações específicas, tais como: leitura prévia, treino <strong>de</strong> voz (entonação), leitura<br />
fiel do texto escrito etc.<br />
c) Terceiro passo: conversa informal. Nesse momento, as crianças<br />
compartilhavam suas impressões sobre a lenda e, com a nossa mediação, diversos assuntos<br />
eram tratados focalizando o conteúdo do texto. Por exemplo: os valores sociais, morais e<br />
afetivos, a integração do homem à natureza, a diversida<strong>de</strong> cultural, as normas, as condutas e<br />
as leis, entre muitos outros. O livro do qual a antologia foi retirada foi apresentado às<br />
crianças, <strong>de</strong>stacando-se: autor, personagens, título, ilustrações. As contribuições das crianças<br />
eram sempre bem recebidas. Esse momento <strong>de</strong> interação era bastante aproveitado, com muitas<br />
reflexões sobre o comportamento humano colocadas em pauta. As crianças apreciavam as
74<br />
discussões e opinavam sobre as atitu<strong>de</strong>s das personagens, permitindo que os mais novos<br />
adquirissem experiência com os mais velhos (VYGOTSKY, 1999).<br />
d) Quarto passo: reconto oral. Era realizado <strong>de</strong> várias maneiras e se constituía em<br />
um processo muito rico <strong>de</strong>vido à participação das crianças. Nesse momento, na maioria das<br />
vezes o coletivo prevaleceu sobre o individual. Numa opção <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> realizada, as<br />
crianças sentavam no chão, em fileira, e cada uma completava o dizer da anterior. Outra<br />
opção com resultados positivos era dividir a turma em grupos variados e cada grupo<br />
contribuía para a montagem completa da lenda. Outra opção, muito apreciada, foi trabalhar<br />
em dupla; um contava a lenda para o outro. E também a opção <strong>de</strong> usar a “rodinha” para<br />
compor a lenda; <strong>de</strong>pois, a partir dos fragmentos e com a colaboração <strong>de</strong> todos, construía-se<br />
um todo. Nessa ativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolvemos a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que ao juntar os fragmentos po<strong>de</strong>mos<br />
constituir um todo e, ao contrário, também po<strong>de</strong>mos fragmentar um todo em vários pedaços.<br />
e) Quinto passo: dramatização. Ativida<strong>de</strong> muito prazerosa para as crianças,<br />
porque lhes exercitava a imaginação e criava situações para representar as personagens, os<br />
lugares, os objetos, a natureza etc. E, com intervenções sistemáticas, podia-se ativar a<br />
compreensão da lenda. A turma era dividida <strong>de</strong> diferentes formas: grupos gran<strong>de</strong>s, duplas,<br />
trios, ou cada um por si, em trabalhos individuais. Todo esse fazer <strong>de</strong>pendia da disposição do<br />
planejamento feito e do objetivo traçado para aquela ativida<strong>de</strong>. O trabalho coletivo favorecia a<br />
interação social das crianças, que se influenciavam mutuamente em busca da organização do<br />
grupo (VYGOTSKY, 1999).<br />
f) Sexto passo: lista <strong>de</strong> palavras. As listas foram construídas para esmiuçar a<br />
lenda, como, por exemplo: lista <strong>de</strong> sentimentos, <strong>de</strong> personagens, <strong>de</strong> objetos etc. Elas eram<br />
dirigidas em forma <strong>de</strong> jogos: lengalengas 6 , adivinhas, fichas, rebus 7 etc. As listas <strong>de</strong> palavras<br />
podiam ser produzidas em grupo ou individualmente; em forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, oralmente ou por<br />
escrito.<br />
g) Sétimo passo: ativida<strong>de</strong>s. Foram aplicadas do mês <strong>de</strong> março até o final do mês<br />
<strong>de</strong> novembro, época da coleta da terceira amostra <strong>de</strong> textos, e serviram para operacionalizar o<br />
encaminhamento do processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. Como <strong>de</strong>scrito<br />
anteriormente, no quarto passo era produzido o reconto escrito por meio <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s orais;<br />
essas ativida<strong>de</strong>s foram pensadas para <strong>de</strong>senvolver a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento da criança. A<br />
6 Sequência <strong>de</strong> frases curtas que normalmente rimam ou repetem <strong>de</strong>terminadas palavras ou expressões. As<br />
lengalengas estão associadas a brinca<strong>de</strong>iras e jogos folclóricos.<br />
7 Nota <strong>de</strong> rodapé do livro História concisa da escrita. Chama-se ”rebus” a tentativa <strong>de</strong> representação dos sons<br />
da língua, sobretudo sílabas, por meio <strong>de</strong> figuras cujos nomes tenham esses sons e cuja combinação possa<br />
representar uma palavra. (HIGOUNET, 2003).
75<br />
entrada do reconto escrito foi fruto da parceria professor-aluno. A princípio, coube-nos a<br />
tarefa <strong>de</strong> escriba, mas <strong>de</strong>pois os alunos assumiram a função. O reconto escrito era realizado<br />
após aplicação da série <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s relatadas no quarto passo. Na etapa da aplicação das<br />
ativida<strong>de</strong>s iniciaram-se efetivamente as primeiras experiências relativas ao processo <strong>de</strong> escrita<br />
na turma. Pelos conhecimentos que exigiam, as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>viam ser muito bem planejadas e<br />
executadas, não po<strong>de</strong>ndo ser produzidas levianamente, <strong>de</strong> qualquer maneira. Eram ativida<strong>de</strong>s<br />
importantes, porque foram elas que sustentaram todo o processo <strong>de</strong> escrita. Portanto, po<strong>de</strong>mos<br />
consi<strong>de</strong>rar essas ativida<strong>de</strong>s do reconto da lenda como base para todo o encaminhamento<br />
metodológico. E a partir da produção do reconto, outras ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas. Convém<br />
reafirmar que é necessário um cuidado especial na aplicação das ativida<strong>de</strong>s. Elas foram<br />
aplicadas após a produção do reconto coletivo. Na verda<strong>de</strong>, a intenção era apresentar esse<br />
gênero à criança e valorizar seu primeiro contato com a produção escrita.<br />
Dentre as ativida<strong>de</strong>s realizadas, <strong>de</strong>stacamos as <strong>de</strong>senvolvidas para compor os<br />
personagens. Uma <strong>de</strong>las foi <strong>de</strong>stacar e <strong>de</strong>senhar o personagem principal, relembrando suas<br />
características. Nas conversas com as crianças, foram enfatizadas as ações dos personagens.<br />
Outra ativida<strong>de</strong> foi a pesquisa na biblioteca da escola e também na internet, sobre os<br />
personagens; após conclusão, as crianças compartilharam o resultado com os colegas. Uma<br />
opção bastante apreciada era a troca <strong>de</strong> personagens entre uma história e outra. A<br />
dramatização foi uma ativida<strong>de</strong> recorrente, porque permite explorar diversos aspectos dos<br />
personagens, como sentimentos, ações, comportamentos, atitu<strong>de</strong>s etc. Outra ativida<strong>de</strong> era a<br />
leitura <strong>de</strong> um trecho da lenda, e a criança era levada a fazer um levantamento <strong>de</strong> hipóteses<br />
sobre o que aconteceria a seguir. Outra ativida<strong>de</strong> era atribuir uma qualida<strong>de</strong> aos personagens<br />
e escrevê-las. Outra ainda foi a elaboração <strong>de</strong> uma história em quadrinhos usando os<br />
personagens da lenda. Também utilizamos a brinca<strong>de</strong>ira das cores: cada personagem foi<br />
representado por uma cor e posteriormente comparamos entre os grupos as respostas; também<br />
fizemos essa ativida<strong>de</strong> em grupo e as crianças estabeleceram o significado <strong>de</strong> cada cor; e,<br />
noutro momento, foram socializadas as atribuições dadas aos personagens. Em outra<br />
ativida<strong>de</strong>, foi montado o quadro <strong>de</strong> semelhanças e diferenças entre os personagens das<br />
diversas lendas estudadas. Também realizamos ativida<strong>de</strong>s que nos auxiliaram a diferenciar e<br />
aproximar um gênero do outro. Por se tratar <strong>de</strong> primeira série, o foco foi dirigido para<br />
exemplificar e estabelecer as diferenças e semelhanças entre o conto <strong>de</strong> fadas e a lenda. Essas<br />
ativida<strong>de</strong>s serviram para promover <strong>de</strong>bates e reflexão sobre a organização do gênero, as<br />
palavras, frases, entre outras possibilida<strong>de</strong>s. Elencamos, aqui, o conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que
76<br />
permitiram subsidiar as crianças com elementos que contribuíssem para a reflexão da língua<br />
materna a partir do reconto da lenda.<br />
Após o reconto da lenda (<strong>de</strong>scrito no quarto passo), a primeira ativida<strong>de</strong> permitiu<br />
às crianças acesso ao reconto escrito. Levamos o reconto mimeografado para a sala <strong>de</strong> aula, e<br />
novamente a produção coletiva foi lida por nós. Esse primeiro contato com o texto impresso<br />
proporcionou às crianças ter em mãos um produto “materializado” a partir da sua fala. O fato<br />
<strong>de</strong> as crianças reconhecerem que po<strong>de</strong>m escrever sua própria fala enfatiza as diferenças e<br />
semelhanças entre a escrita e a fala. Esse exercício <strong>de</strong> diferenciar e aproximar fala e escrita<br />
po<strong>de</strong> facilitar a aprendizagem, uma vez que a linguagem verbal é a base para <strong>de</strong>senvolver a<br />
linguagem escrita (VYGOTSKY, 1999).<br />
Outra ativida<strong>de</strong> realizada era comparar o texto escrito no quadro-<strong>de</strong>-giz com o<br />
texto mimeografado, explorando cada parágrafo do texto e ressaltando a palavra que o<br />
começa e a palavra que o finaliza. A realização <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> favorece o exame do texto,<br />
parte a parte, provocando a verificação das palavras que formaram cada parágrafo. Agindo<br />
<strong>de</strong>ssa forma, a criança passa a perceber que o texto escrito no quadro <strong>de</strong> giz e o texto<br />
mimeografado, embora estejam em suporte diferente, permanece o mesmo, percebendo que a<br />
escrita das palavras se conserva in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do suporte. Além disso, diferencia a<br />
forma <strong>de</strong> escrita do quadro <strong>de</strong> giz e a escrita mimeografada, isto é, uma mesma palavra po<strong>de</strong><br />
ser escrita com letra cursiva, letra <strong>de</strong> fôrma, letra minúscula etc. A <strong>de</strong>speito das diferentes<br />
formas gráficas das letras em nosso alfabeto, cada letra permanece a mesma e exerce igual<br />
função no sistema escrito, ou seja, é sempre empregada obe<strong>de</strong>cendo às normas ortográficas<br />
das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 29. FASCÍCULO 1).<br />
Uma nova ativida<strong>de</strong> foi assinalar as palavras-chave do texto. Para isso, as crianças<br />
discutiam para <strong>de</strong>cidir, em conjunto, quais palavras seriam assinaladas. Em um primeiro<br />
momento, essas palavras eram sublinhadas com a nossa ajuda, no quadro <strong>de</strong> giz, e as crianças<br />
acompanhando passo a passo. Esse procedimento reforça a leitura das palavras e permite<br />
explorar as diferenças entre a segmentação da fala e a da escrita, conhecimentos que serão<br />
aplicados na ortografia das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO<br />
1). É interessante observar que a realização <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mandava um acordo entre elas<br />
para assinalar as palavras-chave; esse acordo fazia com que muitas palavras fossem citadas e<br />
examinadas, e, sem que percebessem, indiretamente, essas palavras eram trabalhadas. Num<br />
segundo momento, essas palavras passaram a ser assinaladas por elas. Isso foi um avanço,<br />
pois ao se dirigir para o quadro <strong>de</strong> giz, muitas vezes a criança era orientada por outra criança.
77<br />
Essa troca <strong>de</strong> saberes promove uma interação (VYGOTSKY, 1999) que se consolida na<br />
aprendizagem dos conteúdos.<br />
Mais uma ativida<strong>de</strong> foi perceber e encontrar as palavras que apareciam repetidas<br />
no texto e pintá-las com lápis <strong>de</strong> cor, utilizando a mesma cor para as palavras iguais. Com<br />
essa ativida<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>u-se avançar o processo <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> palavras nas dimensões:<br />
fonológica e semântica (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), e também<br />
fazer com que a criança percebesse que a mesma palavra po<strong>de</strong> aparecer várias vezes no<br />
mesmo texto, e que algumas, embora escritas da mesma forma, são completamente diferentes<br />
no significado. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> usar a mesma cor para palavras iguais parte do princípio da<br />
conservação da escrita, como já mencionado antes.<br />
Em outra ativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>smembramos o texto. A criança <strong>de</strong>via fatiá-lo, respeitando<br />
a or<strong>de</strong>m dos parágrafos, com o objetivo <strong>de</strong> discriminá-los. A criança cortava os parágrafos e<br />
<strong>de</strong>pois remontava o texto na carteira para compará-lo com o texto escrito do quadro <strong>de</strong> giz.<br />
Com essa ativida<strong>de</strong> pretendíamos revelar à criança que um todo dividido em partes po<strong>de</strong> ser<br />
remontado novamente sem per<strong>de</strong>r o sentido, permitindo-lhes correlacionar a leitura e a escrita<br />
das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Observamos que<br />
muitas crianças tiveram dificulda<strong>de</strong> em assimilar que, apesar <strong>de</strong> o texto estar dividido em<br />
várias partes na carteira, ainda continuava a ser o mesmo texto que se encontrava exposto no<br />
quadro <strong>de</strong> giz. Portanto, essa ativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> causar aflição na criança, caso não seja bem<br />
conduzida, levando-a a <strong>de</strong>sistir. O planejamento foi feito com bastante antecedência com o<br />
intuito <strong>de</strong> prever eventuais situações que pu<strong>de</strong>ssem dificultar a sua aplicação.<br />
Na ativida<strong>de</strong> seguinte, após lermos um parágrafo <strong>de</strong> cada vez, a criança <strong>de</strong>veria<br />
tentar encaixar os parágrafos seguindo a or<strong>de</strong>m do texto, ou seja, obe<strong>de</strong>cer à sucessão natural<br />
dos fatos do reconto. Essa ativida<strong>de</strong> foi uma continuação da anterior, daí a semelhança <strong>de</strong><br />
função: <strong>de</strong>stacar os parágrafos para estabelecer a ligação entre eles seguindo a or<strong>de</strong>m do<br />
reconto da lenda. É uma ativida<strong>de</strong> cuja aplicação requer disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo.<br />
Observamos com atenção que muitas crianças ficaram apreensivas <strong>de</strong>vido à movimentação<br />
exigida pela ativida<strong>de</strong>; por isso, no início do processo permitimos que elas fizessem o encaixe<br />
dos parágrafos em grupo (duplas, trios), para só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>scontraídas e seguras o<br />
fizessem sozinhas.<br />
Na ativida<strong>de</strong> seguinte – colagem do texto numa folha <strong>de</strong> papel – a criança podia<br />
perceber a separação do todo em partes e <strong>de</strong>pois a junção <strong>de</strong>sse todo novamente, isto é, pô<strong>de</strong><br />
perceber o texto fatiado e o texto completo. Após completar a colagem, as crianças pu<strong>de</strong>ram<br />
observar o texto integralmente e retiraram as palavras-chave escolhidas anteriormente.
78<br />
Dando prosseguimento às ativida<strong>de</strong>s para <strong>de</strong>senvolver a dimensão composicional<br />
do plano <strong>de</strong> texto, realizamos uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ilustração das palavras que foram escolhidas<br />
por elas e lidas por nós. A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> palavras foi estabelecida pelas crianças (elas<br />
<strong>de</strong>terminaram quais palavras seriam retiradas do texto). Nessa ativida<strong>de</strong>, as crianças<br />
receberam o texto e as palavras-chave mimeografadas, e com as palavras escolhidas eram<br />
misturadas palavras novas. As crianças <strong>de</strong>veriam i<strong>de</strong>ntificar o lugar e a palavra certa para<br />
cada espaço e colá-las para completar o sentido do texto, nesta ocasião trabalhamos a técnica<br />
<strong>de</strong> cloze 8 . Escolhidas as palavras, os alunos exploraram o texto e fizeram o reconhecimento<br />
das letras e das palavras ou até mesmo das frases. E, finalmente, criamos novas maneiras <strong>de</strong><br />
brincar com as palavras retiradas do texto: fizemos acrósticos, quadrinhas, poesias, bilhetes,<br />
palavras cruzadas etc.<br />
Desenvolvemos também ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> caracterização da lenda, como:<br />
apresentação das personagens; presença da magia e do encantamento; características <strong>de</strong> tempo<br />
e da ambientação; nomes que representam os padrões <strong>de</strong> referência dos personagens;<br />
<strong>de</strong>terminação dos momentos da ação complicadora; importância dos títulos. O objetivo <strong>de</strong>ssas<br />
ativida<strong>de</strong>s foi enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> apropriação da língua escrita em contexto <strong>de</strong> sentido por<br />
meio da lenda, com a presença dos elementos mágicos (OLIVEIRA, 1951, 1965) e das fases<br />
da narrativa (BRONCKART, 2003).<br />
Também planejamos ativida<strong>de</strong>s que serviram para apresentar os autores, os<br />
personagens, os títulos, a qualida<strong>de</strong> dos textos, a a<strong>de</strong>quação à ida<strong>de</strong>, o interesse, a influência<br />
da ilustração sobre o texto escrito etc. Uma alternativa foi levar livros para que as crianças<br />
tomassem contato com autores diferentes e selecionassem os títulos <strong>de</strong> interesse.<br />
Invariavelmente, essas escolhas terminavam em sorteio ou votação. Outra opção <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />
era a escolha das personagens, concentrada nas especificida<strong>de</strong>s da lenda, isto é, eram dirigidas<br />
à ilustração das personagens, às caricaturas, à representação, à colagem e à montagem das<br />
personagens, entre outras.<br />
As fases da narrativa (situação inicial, complicação, ações, resolução, situação<br />
final) aparecem no gênero lenda (COELHO, 2003). A intenção era pôr em prática a contação<br />
<strong>de</strong> histórias, o que ocorreu <strong>de</strong> três maneiras: ora as lendas foram contadas por nós, ora por<br />
8 Essa técnica consiste em retirar <strong>de</strong> palavras do texto, substituindo-a por um espaço pontilhado. O objetivo é<br />
reconstituir o texto preenchendo a lacuna <strong>de</strong> acordo com o contexto. Po<strong>de</strong> ser aplicada com maior ou menor<br />
grau <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>. SANTOS, Acácia A. Angeli dos; PRIMI, Ricardo; TAXA, Fernanda <strong>de</strong> O. S;<br />
VENDRAMINI, Clau<strong>de</strong>tte M. M. O Teste <strong>de</strong> Cloze na Avaliação da Compreensão em Leitura.<br />
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2002, 15(3), p. 549-560.
79<br />
convidados ou ainda por alunos <strong>de</strong> outras séries. Nesse momento, as crianças pu<strong>de</strong>ram<br />
participar escolhendo as lendas, trazendo livros e revistas, contando as lendas que ouviram<br />
dos pais e também pu<strong>de</strong>ram interagir com os convidados. Também escolheram uma lenda<br />
para o reconto.<br />
Em uma ativida<strong>de</strong> recontamos as lendas “Igaranhã – a canoa encantada” e<br />
“Cervo Berá – o troféu do amor”, ambas do mesmo pesquisador, Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva.<br />
Após a leitura oral, <strong>de</strong>stacamos as fases da narrativa para escrever uma lenda (situação inicial,<br />
complicação, ações, resolução, situação final). Para cada lenda que foi estudada procurou-se<br />
estabelecer os traços específicos do contexto linguístico que envolve esse gênero. Enten<strong>de</strong>mos<br />
que a elaboração coletiva <strong>de</strong> qualquer produção <strong>de</strong> texto em classe <strong>de</strong> alfabetização é o<br />
momento mais importante da aula, pois os fragmentos da história vão se juntando e, passo a<br />
passo, as crianças acompanham a organização do texto.<br />
O reconto individual serviu para aperfeiçoar o procedimento <strong>de</strong> escrita.<br />
Finalizado o texto, cada aluno leu o seu para a turma. Cumpre lembrar que os textos não<br />
sofreram correção <strong>de</strong> nenhuma espécie, pois o objetivo era promover ativida<strong>de</strong>s em que as<br />
crianças pu<strong>de</strong>ssem escrever o próprio texto a partir do gênero lenda, isto é tencionávamos ter<br />
um diagnóstico real <strong>de</strong> sua aprendizagem (VYGOTSKY, 1999).<br />
Com isso, finalizamos a <strong>de</strong>scrição das ativida<strong>de</strong>s relacionadas ao gênero lenda e<br />
passamos a analisar as produções textuais dos alunos.<br />
4.1.2 Aprendizagem da lenda<br />
O trabalho com os gêneros textuais em sala <strong>de</strong> aula pressupõe endossar o texto<br />
como objeto <strong>de</strong> ensino, consi<strong>de</strong>rando a manifestação da linguagem em uso. Sem dúvida, o<br />
gênero é o ponto <strong>de</strong> partida para aulas <strong>de</strong> língua materna, uma vez que alfabetizar somente por<br />
meio <strong>de</strong> palavras, letras, sílabas e frases soltas mostra-se insuficiente para servir <strong>de</strong> base ao<br />
ensino-aprendizagem. Isso ocorre porque, na perspectiva dos PCNs (1997), todo texto se<br />
organiza <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado gênero em função das intenções comunicativas, como parte<br />
das condições <strong>de</strong> produção dos discursos, as quais geram usos sociais <strong>de</strong>terminados pelos
80<br />
gêneros em forma <strong>de</strong> textos. Portanto, os gêneros são <strong>de</strong>terminados historicamente e usados<br />
nas práticas <strong>de</strong> linguagem. Como enfatiza Bronckart (1999, p.48), “Conhecer um gênero <strong>de</strong><br />
texto também é conhecer suas condições <strong>de</strong> uso, sua pertinência, sua eficácia, ou <strong>de</strong> forma<br />
mais geral, sua a<strong>de</strong>quação em relação às características <strong>de</strong>sse contexto social”.<br />
Concordando com o exposto acima, passamos à análise das produções escritas. No<br />
mês <strong>de</strong> março, em contato inicial, observamos que a maioria das crianças, <strong>de</strong> alguma forma,<br />
teve contato com esse gênero, levando-nos a inferir que essa familiarida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ter ocorrido<br />
na Educação Infantil, pois pela discussão realizada em sala <strong>de</strong> aula, algumas características<br />
pertencentes ao gênero não eram totalmente <strong>de</strong>sconhecidas das crianças. Além do mais, esse<br />
gênero é bastante trabalhado em agosto, por ocasião do folclore.<br />
Na perspectiva do gênero, ao final da aplicação das ativida<strong>de</strong>s, a análise dos textos<br />
produzidos revelou significativo progresso das crianças, <strong>de</strong>monstrando capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utilizar<br />
as características próprias do gênero lenda (COELHO, 2003). Iniciamos nossa análise pelo<br />
reconto coletivo, por enten<strong>de</strong>r que a passagem <strong>de</strong>sse gênero em sala <strong>de</strong> aula foi recorrente, e<br />
também porque o reconto coletivo foi o eixo central da nossa prática pedagógica <strong>de</strong><br />
apropriação da linguagem escrita.<br />
O reconto coletivo da lenda: Coacyaba, primeiro beija-flor, além <strong>de</strong> iniciar o<br />
processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita, também serviu <strong>de</strong> base para orientar as<br />
produções narrativas escritas posteriormente. Com esse procedimento (reconto coletivo)<br />
observamos que uma criança mais experiente po<strong>de</strong> ajudar outra menos experiente no início do<br />
reconhecimento da escrita, comprovando que a troca <strong>de</strong> experiências é importante nas<br />
relações interpessoais (VYGOTSKY, 1999). O conhecimento obtido por meio <strong>de</strong>ssas<br />
interações sociais resultou <strong>de</strong> um esforço coletivo e individual em produzir sentido a partir<br />
das consi<strong>de</strong>rações do outro (VYGOTSKY, 1999). Essa negociação entre as crianças, para<br />
optar por uma ou por outra sentença na composição do texto escrito, <strong>de</strong>monstrou que,<br />
inconscientemente, há uma preocupação em manter a estrutura narrativa do gênero. Nossas<br />
intervenções didático-pedagógicas organizaram <strong>de</strong> maneira indireta as contribuições dos<br />
alunos <strong>de</strong> modo a formar uma história completa. Em <strong>de</strong>corrência das experiências adquiridas<br />
por meio <strong>de</strong> interações com os mais velhos ou membros mais experientes, passamos a atuar<br />
individualmente, e assim o <strong>de</strong>senvolvimento ocorreu <strong>de</strong> forma gradativa (VYGOTSKY,<br />
1999). Abaixo, o reconto.
81<br />
Coacyaba, o primeiro beija-flor<br />
Os índios acreditam que as almas viram borboletas.<br />
Coacyaba era uma índia, que ficou viúva muito cedo e sentia muitas sauda<strong>de</strong>s do marido.<br />
Seu único consolo era sua filha Guanamby.<br />
Muito tempo <strong>de</strong>pois Coacyaba, angustiada, faleceu.<br />
Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor perto<br />
do túmulo da sua mãe.<br />
A mãe, em forma <strong>de</strong> borboleta, ouviu um choro triste e logo reconheceu o choro <strong>de</strong><br />
Guanamby.<br />
Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro veloz. Deus Tupã<br />
aten<strong>de</strong>u o seu pedido e transformou Coacyaba em beija-flor. Ela pegou Guanamby e levou para o céu.<br />
Figura 4 - Reconto coletivo<br />
Para Góes (1991), a lenda explica os fatos naturais que <strong>de</strong>sconhecemos. No caso<br />
<strong>de</strong>ssa lenda, a personagem Coacyaba foi criada para explicar a origem <strong>de</strong> um pássaro. No<br />
texto recontado pelas crianças, observamos que esse fato <strong>de</strong>fine o enredo e, logo no primeiro<br />
parágrafo, o leitor, mesmo sem familiarida<strong>de</strong> com a escrita <strong>de</strong>sse gênero, reconhece a situação<br />
que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a história. À medida que o reconto coletivo era discutido e tomava a forma<br />
<strong>de</strong> escrita, notou-se a satisfação das crianças quando percebiam que a linguagem falada po<strong>de</strong><br />
transformar-se em linguagem escrita. É oportuno lembrar que estabelecer a diferença e a<br />
semelhança entre as duas modalida<strong>de</strong>s significou estabelecer um parâmetro <strong>de</strong> comparação<br />
entre elas, embora os princípios e os canais <strong>de</strong> uso <strong>de</strong>sses eventos sejam diferentes, a escrita e<br />
a fala são proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mesmo sistema linguístico (MARCUSCHI, 2005).<br />
Outro ponto que <strong>de</strong>stacamos nessa produção coletiva (FIGURA 4) é que foi<br />
preservada a mistura dos fatos reais com os fatos imaginários característicos do gênero lenda<br />
(COELHO, 2003). Na frase “A mãe, em forma <strong>de</strong> borboleta, ouviu um choro triste e logo<br />
reconheceu o choro <strong>de</strong> Guanamby,” enten<strong>de</strong>mos que essa combinação serve para criar uma<br />
expectativa <strong>de</strong>vido à verossimilhança, característica recorrente nesse gênero. Para Góes<br />
(1991), as lendas nascem da necessida<strong>de</strong> do homem <strong>de</strong> explicar os fatos que <strong>de</strong>sconhece, e<br />
nessa lenda cria-se uma situação para esclarecer a aparição do beija-flor na natureza.<br />
4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda
82<br />
Ao transcrever as produções percebemos que inicialmente as crianças<br />
<strong>de</strong>sconhecem as fases da narrativa do gênero lenda, prevalecendo apenas a noção <strong>de</strong> conflito<br />
da situação que envolve as personagens (BRONCKART, 1999). Como po<strong>de</strong> ser constatado no<br />
reconto da lenda: Potyra, as lágrimas eternas, gran<strong>de</strong> parte das crianças produziu apenas um<br />
segmento do que foi apresentado, com em “Era uma vez índio” (ANEXO 1), “Era uma vez<br />
índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu” (ANEXO 2), “Era uma vez uma índia<br />
chamada Potyra” (ANEXO 3). E também po<strong>de</strong>mos observar que tratando-se <strong>de</strong> uma primeira<br />
produção, enten<strong>de</strong>mos que, em certa medida, o tema central girou em torno da apresentação<br />
das personagens “índio”, “guerreiro”, “Potyra” como nas produções A, B e C, (ANEXOS 1,<br />
2, 3 respectivamente). E o texto produzido foi suficiente para enlaçar o drama do personagem<br />
principal.<br />
Esses exemplos <strong>de</strong> textos evi<strong>de</strong>nciam que as crianças enfrentaram dificulda<strong>de</strong> em<br />
estabelecer a diferença entre a lenda e o conto <strong>de</strong> fadas, e também que, no início do processo,<br />
o título não faz parte da construção do texto, pois apenas três crianças o escreveram; para o<br />
restante da turma, essa informação foi consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>snecessária e irrelevante, embora, no<br />
caso específico <strong>de</strong>ssa lenda, o título seja um prenúncio do que vai ser contado e instigue a<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação do leitor. Ainda sobre essas produções, convém salientar que os<br />
alunos ainda não <strong>de</strong>senvolveram a capacida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>linear as ações dos personagens,<br />
concentrando-se em sintetizar as nuances do texto, embora, numa visão ampla, possamos<br />
dizer que, em certa medida, as crianças não abandonaram o enredo, <strong>de</strong>dicando-se àquilo que<br />
mais lhes chamou atenção; no caso, o personagem principal, que se <strong>de</strong>staca na história por<br />
seus feitos morais e éticos, mas, ao mesmo tempo, acaba morrendo pelos seus valores.<br />
Bronckart (2003) aponta cinco fases necessárias para o texto narrativo e mais duas<br />
que po<strong>de</strong>m ou não aparecer no texto. Das fases apontadas pelo autor, encontramos a situação<br />
inicial e a complicação com maior número <strong>de</strong> ocorrências. O fato <strong>de</strong> reconhecer a relevância<br />
<strong>de</strong> apenas duas fases nos mostra que no início do processo <strong>de</strong> escrita a criança tem dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> organizar e or<strong>de</strong>nar cronologicamente os acontecimentos dos fatos, e também percebemos<br />
uma economia <strong>de</strong> palavras ao retratar as ações dos personagens. No reconto coletivo, a<br />
Figura 5 mostra que a primeira tentativa <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> texto realizou-se em conformida<strong>de</strong> com<br />
as fases narrativa (BRONCKART, 2003, p.220) do gênero lenda (COELHO, 2003). Vejamos:
83<br />
Coacyaba, o primeiro beija-flor<br />
TÍTULO<br />
Os índios acreditam que as almas viram borboletas.<br />
Coacyaba era uma índia, ela ficou viúva muito cedo e sentia muitas<br />
sauda<strong>de</strong>s do marido. Seu único consolo era sua filha Guanamby.<br />
SITUAÇÃO<br />
INICIAL<br />
Muito tempo <strong>de</strong>pois Coacyaba, angustiada, faleceu.<br />
Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor perto do túmulo da sua mãe.<br />
A mãe, em forma <strong>de</strong> borboleta, ouviu um choro triste e logo<br />
reconheceu o choro <strong>de</strong> Guanamby.<br />
COMPLICAÇÃO<br />
veloz.<br />
Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro<br />
AÇÃO<br />
beija-flor.<br />
Deus Tupã aten<strong>de</strong>u o seu pedido e transformou Coacyaba em<br />
RESOLUÇÃO<br />
Ela pegou Guanamby e levou para o céu.<br />
SITUAÇÃO FINAL<br />
Figura 5 - Reconto coletivo: fases da narrativa<br />
Do exposto restou comprovado que a produção coletiva é um momento rico <strong>de</strong><br />
interação; uma criança po<strong>de</strong> completar a i<strong>de</strong>ia da outra, e, além disso, a nossa intervenção<br />
conduzindo-os à reflexão sobre a composição do texto contribuiu para direcionar a sua<br />
construção, como vimos na produção acima. Portanto, traçar estratégias em que as crianças<br />
possam apren<strong>de</strong>r a estrutura da narrativa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do ano letivo, significa levar os<br />
alunos a tomarem conhecimento <strong>de</strong> que para cada gênero, oral ou escrito, elaboram-se tipos<br />
relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados (BAKHTIN, 2006, p. 262). Assim, a organização<br />
mental e cognitiva assume uma gran<strong>de</strong> importância para o individuo que domina o sistema <strong>de</strong><br />
escrita, bem como outros sistemas simbólicos, pois a apropriação do código não po<strong>de</strong> ser feita<br />
<strong>de</strong> maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer avançar, na criança, um<br />
processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> funções comportamentais complexas (VYGOTSKY, 1999).<br />
Para compreen<strong>de</strong>rmos o <strong>de</strong>senvolvimento inicial da escrita, utilizamos as<br />
pesquisas <strong>de</strong> Luria (1998). De acordo com esse autor, no momento em que a criança conhece<br />
letras isoladas e sabe como essas letras registram algum conteúdo, ela finalmente apren<strong>de</strong><br />
suas formas externas e também a fazer marcas particulares. Seguindo essa linha <strong>de</strong><br />
raciocínio, Gontijo (2008) afirma que, no momento em que as crianças começam a diferenciar
84<br />
as grafias para escrever, a ativida<strong>de</strong> gráfica passa a ser regulada, observando certos critérios<br />
que, inicialmente, são orientados pela apropriação das características externas da escrita.<br />
Dessa forma, <strong>de</strong> modo geral, as crianças <strong>de</strong>monstraram que conhecem algumas<br />
letras isoladas e sabem que esses símbolos registram os conteúdos, mas sua relação com a<br />
escrita é puramente externa, ou seja, elas apresentaram indícios <strong>de</strong> que compreen<strong>de</strong>m que a<br />
escrita serve para fazer registro, mas não foram capazes <strong>de</strong> utilizá-la. Evi<strong>de</strong>nciamos, ainda,<br />
que elas permanecem completamente ligadas à experiência inicial, como po<strong>de</strong>mos visualizar<br />
abaixo:<br />
Figura 6. Produção B. Realizada em março.
85<br />
Na produção acima, realizada no mês <strong>de</strong> março, na sentença<br />
LAPDPIREPAIOIAIO as últimas letras apresentam uma sequência repetida <strong>de</strong> vogais e<br />
apontam a presença <strong>de</strong> marcas (bolinhas) em cima <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>ssas letras, <strong>de</strong>stacando-as<br />
das <strong>de</strong>mais. Luria (1998, p. 158) nos alerta que a função <strong>de</strong>ssas marcas é ajudar a criança a<br />
lembrar e relembrar uma sentença, e também ajuda a organizar o comportamento da criança.<br />
Essas marcas indicam a presença <strong>de</strong> algum significado para a criança, embora não <strong>de</strong>termine<br />
qual seja esse significado e nem tenha um conteúdo próprio.<br />
Como foi dito, as crianças encontram-se em fases diferentes <strong>de</strong> escrita, o que<br />
po<strong>de</strong>mos verificar nas produções D, E, e G (ANEXOS 4, 5, 7) colhidas no mês <strong>de</strong> junho. Mas,<br />
em relação ao gênero lenda, observa-se nessas produções que houve um avanço em relação à<br />
apropriação das sequências narrativas. Em nosso enten<strong>de</strong>r, elas <strong>de</strong>monstram certo domínio em<br />
relação à compreensão da estrutura do gênero em relação à primeira amostra colhida no mês<br />
<strong>de</strong> março, embora os autores tenham iniciado o texto impropriamente com o termo “era uma<br />
vez”, comumente usado nos contos <strong>de</strong> fadas. Observe na transcrição da produção “F” abaixo.
86<br />
Figura 7. Produção F. Realizada em junho.<br />
A/ FESTA/ DE/ SA/ JÃO/<br />
ERA/UMA /VEZ/<br />
UMA/ FESTA/ DE/ SÃ /JOÃO/<br />
O /ÍNDIO/ ESTAVA/ ISIMA/ DA OMSA/<br />
O /USO/ ACEDEU/A/FUGEIRA/<br />
A/CHEGOU/
87<br />
A/NOITE/ E/ AI /ESTAVA/<br />
ARRUMADO/ A/ FESTA/<br />
DE/ SA/JOÃO/<br />
O /USO/ESTAVA/<br />
PEGADO/ UMA/<br />
CORDA/ AI/<br />
ELE/ESTAVA/ PERTO/DO/FOGO. Transcrição. Produção F.<br />
Acima, po<strong>de</strong>mos verificar que essa produção é um reconto da lenda intitulada O<br />
menino e a onça - Como os Kaiapós conquistaram o fogo, retirada do livro do Wal<strong>de</strong>-Mar<br />
Andra<strong>de</strong> e Silva. O texto apresenta certa clareza na exposição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, <strong>de</strong>monstrando que o<br />
aluno compreen<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> produção do gênero lenda. Percebe-se uma tentativa <strong>de</strong><br />
preservar as i<strong>de</strong>ias do texto original. O interessante é que a criança fez uma adaptação <strong>de</strong>ssa<br />
lenda para narrar uma história <strong>de</strong> São João. Nota-se que o título também foi alterado para A<br />
festa <strong>de</strong> São João, don<strong>de</strong> se infere que a proximida<strong>de</strong> entre a lenda original e a contada pela<br />
criança está focada no elemento fogueira, que fez a criança relacionar a lenda com festivida<strong>de</strong><br />
junina. Entretanto, observa-se um controle sobre a escrita dos termos usuais do gênero lenda,<br />
recontando-a sem alterar o enredo, embora não se <strong>de</strong>tenha nos <strong>de</strong>talhes. E há também<br />
sentenças que comprovam a preocupação com o enca<strong>de</strong>amento e com o sentido do texto, isto<br />
é, ao <strong>de</strong>senrolar a situação, intencionalmente mantém a sequência da lenda (COELHO, 2003).<br />
Essa produção <strong>de</strong>monstra também a perspicácia da criança em adaptar um texto para criar<br />
outro, explorando o seu enredo e preservando suas características.<br />
A aprendizagem da língua escrita percorre um longo caminho. Essa trajetória<br />
exige um acompanhamento constante dos conhecimentos e do <strong>de</strong>senvolvimento da criança.<br />
Dessa forma, comparando a primeira produção A e a segunda produção E com a terceira<br />
produção U, da mesma criança, embora na segunda produção ainda persista certa<br />
nebulosida<strong>de</strong> entre a maneira particular <strong>de</strong> escrita da lenda, no final <strong>de</strong> novembro o problema<br />
da incorporação da organização do gênero lenda parece ter sido superado, como se po<strong>de</strong> ver<br />
nas produções ( A, E e U) logo abaixo.<br />
A produção A foi realizada no mês <strong>de</strong> março. Convém ressaltar que a transcrição<br />
escrita foi feita com base no relato oral da criança. Nesse primeiro momento, vimos que as<br />
frases são curtas; são reguladas pelas ações do personagem principal “índio” e pelas suas<br />
ações “foi pra guerra e morreu”. Isso significa, que o <strong>de</strong>senvolvimento envolve não só o<br />
domínio <strong>de</strong> signos arbitrários, mas também a atenção e a memória (VYGOTSKY, 1999). Em<br />
suma, a organização mental e cognitiva tem uma gran<strong>de</strong> importância para o indivíduo que
88<br />
domina o sistema <strong>de</strong> escrita, bem como outros sistemas simbólicos, sendo assim a apropriação<br />
do código não po<strong>de</strong> ser feita <strong>de</strong> maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer<br />
avançar, na criança, o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> funções comportamentais complexas<br />
(VYGOTSKY, 1999). Além disso, vale ressaltar a importância dos momentos <strong>de</strong> produção<br />
textual, nestes momentos a escrita se concretiza em sinais gráficos, isto é, a forma como a<br />
criança se apropria do conhecimento da escrita e <strong>de</strong> outros sistemas simbólicos, estabelece a<br />
sua relação com os <strong>de</strong>mais (VYGOTSKY, 1999), expandindo e ajustando a sua conduta em<br />
relação à tomada <strong>de</strong> consciência do mundo.<br />
Figura 8. Produção A. Realizada em março.<br />
Era uma vez índio.<br />
Ele foi pra guerra e morreu.<br />
A segunda produção E foi realizada no mês <strong>de</strong> junho. Trata-se do reconto da lenda<br />
intitulada “O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo”, do pesquisador<br />
Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva. O texto não apresenta uma narrativa com elementos motivadores<br />
do gênero lenda. Não há propriamente componentes extraordinários no texto, ao contrário: a<br />
criança parece encaixar a lenda em seu cotidiano, como observamos na <strong>de</strong>nominação da<br />
personagem “JOSUA AUGUSTO”, diferentemente do nome indígena do texto original, e no
89<br />
<strong>de</strong>sfecho final “E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/”.<br />
Mas, conforme Coelho (2003), as lendas permitem misturar fatos reais com fatos imaginários.<br />
A sequência narrativa não é linear, e as personagens alternam a aparição: “JOSUA<br />
AUGUSTO”, a “ONSA” e o “RATO” <strong>de</strong> acordo com a sua importância, no andamento do<br />
texto. Há menção ao lugar em que o fato ocorreu “ANDOU/AFLO/RESTA/ TODA, mas não<br />
<strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong>talhes quanto ao cenário nem ao tempo da narrativa. Assim, o que po<strong>de</strong>mos<br />
verificar na produção, abaixo, são as a<strong>de</strong>quações que o aluno realizou em seu texto,<br />
explicitando, em nosso ver, a dificulda<strong>de</strong> em reconhecer os mo<strong>de</strong>los preexistentes <strong>de</strong>sse<br />
gênero.<br />
O /RATO/ NA /FOGEIRA/ NA TARDE/SIGINTE<br />
O /JOSUA /AU GUSTO/ A NÃO /DOUNA<br />
NA/ ONSA/ DO/PAI / DE ELE /ANDOU/AFLO/<br />
RESTA/ TODA/ VIU /MUNITO/ BICHOS/<br />
E/ COM PAROU / UM/ MUNITO/ DI FERENTE<br />
VIU /QUE – ERA- UM – RATO PERTO DA<br />
FOGEIRA/<br />
O/RATO/ COM-UMA CORDA<br />
MANDO/ A /ONSA/CORE/ E/ FOI/DIRETO<br />
NO /PAI / O/ PAI-DE-ELE/ FOI/LAVE<br />
CHE GOU / E/ VIU/O/RATO/FAZENDO<br />
FOGEIRA/ E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO<br />
FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/<br />
MAIS/ PARA/ NÃO/VE/AQUELE/RTO<br />
NÃO/I /PARA/ NUMCA/ MAIS/ VE/A/VE/O RATO<br />
FLORESTA/NUMCA/ MAIS/AVE/ RTO<br />
FINAL 1ª E.<br />
Transcrição. Produção E.
90<br />
Figura 9. Produção E. Realizada em junho.<br />
A terceira produção U, realizada no mês <strong>de</strong> novembro, foi marcada pela riqueza <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>talhes na escrita da criança. O texto apresenta uma linguagem clara; as palavras estão<br />
acessíveis e <strong>de</strong> acordo com o gênero; apresenta frases longas. O texto situa o leitor em relação
91<br />
ao lugar em que se passa a ação “Em uma tribo”. Utiliza organizadores temporais “No dia<br />
sequite” e “Um dia” para sustentar as ações das personagens, e retrata os sonhos <strong>de</strong> Mara<br />
“quer se casar”, e seu sofrimento “<strong>de</strong>scobriu que estava grávida”. O final é surpreen<strong>de</strong>nte, as<br />
dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas por Mara culminam com a doença “Mandi ficou doente” e a morte<br />
“Mandi para morre” <strong>de</strong> sua filha. A narrativa explica que Mara “sonhou com um jovem que<br />
<strong>de</strong>scia da lua e falava que amava” com a reiteração dos fatos “eo sonho serrepetiu muitas<br />
ves”, “mara se apaixonou por um jovem”, ”Mara <strong>de</strong>scobriu que estava grávida”, criando uma<br />
perspectiva no leitor para uma provável solução do problema. Como po<strong>de</strong> ser observado na<br />
transcrição da produção U, a seguir.<br />
Mandioca- O pão indígena<br />
Em uma tribo uma índia que quer<br />
se casar.<br />
No dia sequit todomundo <strong>de</strong>itou e<br />
Mara ficou cotempla a lua.<br />
Um dia mar sonhou com um jovem<br />
que <strong>de</strong>scia da lua e falava que amava e<br />
eo sonho serrepetiu muitas ves.<br />
No dia sequite mara se apaixonou por<br />
um jovem. Mara não sonhou mas o sonho.<br />
Um dia Mara <strong>de</strong>scobriu que estava gravida.<br />
Mandi ficou doente.<br />
No dia <strong>de</strong>scobriu que Mandi estava<br />
doente e Mandi para morre<br />
Um dia sequite o cacique <strong>de</strong>scobriu pra<br />
que servia a mandioca. porque fazer – pão e<br />
farinha.
Figura 10. Produção U. Realizada em novembro.<br />
92
93<br />
Para estabelecer os parâmetros <strong>de</strong> comparação entre um gênero e outro foi preciso<br />
inicialmente buscar suas similarida<strong>de</strong>s, não apenas no aspecto lexical, mas no aspecto<br />
organizacional, e num segundo momento, estabelecer também as diferenças para que<br />
pudéssemos confrontá-los. Dessa maneira, examinando simultaneamente as produções <strong>de</strong><br />
texto dos três períodos, verificamos que houve um significativo avanço na composição das<br />
produções, principalmente em relação à composição e ao conteúdo exigido pelo gênero<br />
(BAKHTIN, 2006), à influência direta do gênero na escrita das crianças, e as mediações<br />
foram fundamentais para enten<strong>de</strong>r como ocorre a escrita <strong>de</strong>sses exemplares <strong>de</strong> gênero. Assim,<br />
reafirmamos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oferecer aos alunos acesso à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> textos escritos e<br />
orais como fonte para a reflexão da linguagem. Entretanto, não po<strong>de</strong>mos esquecer que aqui<br />
estamos tratando <strong>de</strong> uma turma <strong>de</strong> primeira série.<br />
As produções <strong>de</strong>monstraram o uso das sequências narrativas (BRONCKART,<br />
2003) focando o domínio das particularida<strong>de</strong>s do gênero lenda e contemplaram a análise e a<br />
reflexão, pois tal abordagem representou significativas mudanças relacionadas às escolhas<br />
linguísticas (COELHO, 2003). É o que se po<strong>de</strong> ver abaixo, nas produções M e P.<br />
Potyra – As lagrimas eternas<br />
a muito tempo esistia um casau que queria<br />
casar mas foi que chegou a guerra mas antes da<br />
guerra eles ficarão um pouco juntos nabira do rio<br />
e quando a guerra comesou e a Potyra esperava<br />
os amigos <strong>de</strong> itajiba falou que ele tinha<br />
morrido e a Potyra chorou muito e<br />
<strong>de</strong>us Tupã transformou as lagrimas <strong>de</strong>la em<br />
diamante a perda do seu amor.<br />
Transcrição. Produção M.
94<br />
Figura 11. Produção M. Realizada em novembro.<br />
Madioca – O pão indígena<br />
Mara era filha do cassique ela tem sonhos <strong>de</strong><br />
paixão ela sonhou com um jovem loiro<br />
<strong>de</strong> pele branca ela sonhou muitas zezes e se apaixonol<br />
por ele e passou muito tempo e ela <strong>de</strong>scobril<br />
que estava grávida.<br />
Mara Del a luz a uma menina dos<br />
cabelos loiros e pele branca que <strong>de</strong>l o<br />
o nome <strong>de</strong> Mandi a menina adoesseu e morrel.<br />
Sua mãe interrol ela na oca para que
95<br />
não separe <strong>de</strong>la.<br />
O cassique <strong>de</strong>spresava a menina<br />
e aparessel uma planta que <strong>de</strong>l o nome o nome<br />
<strong>de</strong> mandioca e aparessel no sonho do cassique<br />
e inssinol a fazer a farinha.<br />
Transcrição. Produção P.<br />
Figura 12. Produção P. Realizada em novembro.
96<br />
Dessa forma, tomando os 28 textos coletados no mês <strong>de</strong> novembro, i<strong>de</strong>ntificamos,<br />
na maioria <strong>de</strong>les, as fases: situação inicial, complicação, ações e situação final, como se vê<br />
nas produções H, I, J, K, L, M, O, P, R, T e U (ANEXOS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 20 e<br />
21), o que nos garante que as estratégias utilizadas foram essenciais na construção <strong>de</strong> todo o<br />
processo ensino-aprendizagem, porquanto a criança inicia o processo <strong>de</strong> apropriação da língua<br />
escrita por meio <strong>de</strong> produções coletivas e termina escrevendo o próprio texto. Em seguida,<br />
vamos analisar a produção J representando essas fases.<br />
Madioca- O pão indigena<br />
Em uma tribo uma índia jovem cha_<br />
mada Mara ela queria se casar e ter filhos.<br />
Um dia um jovem <strong>de</strong> cabelos loiros<br />
<strong>de</strong>sia da Lua seu sonho pasava se repi_<br />
ti varias vezes Mara se apeixonou.<br />
Um dia Mara pesebeu que estava gravida<br />
Mara contou ao seu pais sea meã apoio<br />
mais seu pai começou e <strong>de</strong>stresava<br />
Mara.<br />
Mara <strong>de</strong>u a luz a uma menina.<br />
a mandi ficou doente e falheseu<br />
seu mãe ficou muito triste e ela<br />
enterrou na sea oca.<br />
um dia o jovem apareceu no sonho<br />
do cacique ele insinou aprepara o<br />
vegetal o cacique a basou seu<br />
filha.<br />
a on<strong>de</strong> mandi foi seputa se a<br />
meã removeu a terá <strong>de</strong>ro o nome<br />
<strong>de</strong> mandioca que foi enterada na<br />
oca.<br />
Transcrição. Produção J.
98<br />
Figura 13. Produção J. Realizada em novembro.<br />
Para analisar cada fase da produção J, tomamos como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> caracterização<br />
do gênero lenda <strong>de</strong> Coelho (2003 p. 83-87). Na fase inicial, foi possível i<strong>de</strong>ntificar a presença<br />
da personagem principal explicando o seu sonho: casar e ter filhos. Na fase <strong>de</strong> complicação,<br />
aparece o personagem secundário “um jovem <strong>de</strong> cabelos loiros” e o fator complicador: “mara<br />
pesebeu que estava grávida”. Em seguida, são <strong>de</strong>scritas as ações em que Mara toma uma<br />
atitu<strong>de</strong> “mara contou al seu pais” . A postura tomada por Mara causou uma oposição entre os<br />
membros da família: “sea mea apoio” e seu pai “a <strong>de</strong>stresava”. Dando continuida<strong>de</strong>, o texto se<br />
encaminha para a resolução “Mara <strong>de</strong>u a luz a uma menina” e, logo, em seguida nos remete a
99<br />
outra situação <strong>de</strong> complicação “mandi ficou doente e falheseu”. Em seguida, aparece a<br />
solução para o primeiro conflito “o jovem apareceu no sonho do cacique” e ensina a preparar<br />
o “vegetal”. E, finalmente, há uma retomada do segundo conflito “a on<strong>de</strong> mandi” foi<br />
sepultada a mãe “removeu a terá”; esse nome, “mandioca”, é porque ela “foi enterada na oca”.<br />
Resumindo, trata-se <strong>de</strong> um enredo muito intenso, em cuja estrutura temos, a situação inicial<br />
bem <strong>de</strong>finida: duas situações complicadoras; várias ações dos personagens, tanto o principal<br />
como os secundários; duas resoluções <strong>de</strong> problemas e uma situação final. Observamos,<br />
portanto, um total controle sobre o gênero e a ausência <strong>de</strong> traços da organização do conto <strong>de</strong><br />
fadas após a aplicação das ativida<strong>de</strong>s baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />
NOVERRAZ, 2004).<br />
3.1.4 Aprendizagem das categorias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na lenda<br />
Como po<strong>de</strong> ser comprovado nas produções A, B, C, D, G, Q, S (ANEXOS 1, 2, 3,<br />
4, 7, 17, 19), outro aspecto evi<strong>de</strong>nciado na análise das produções dos alunos é que<br />
praticamente todas iniciaram o texto com o tradicional “era uma vez”. Essa incorporação da<br />
organização do conto <strong>de</strong> fadas ao gênero lenda é perfeitamente aceitável e previsível. Temos<br />
observado ao longo da nossa prática pedagógica que parece haver entre professores do ensino<br />
fundamental <strong>de</strong> séries iniciais, sobretudo na primeira série, uma predileção pelo conto <strong>de</strong><br />
fadas, e essa preferência se reflete diretamente na produção da criança. Então, para a maioria<br />
das crianças nessa fase, as histórias começam com “Era uma vez” e terminam invariavelmente<br />
com “felizes para sempre”, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do gênero. Góes (1991) explica que tanto as<br />
crianças <strong>de</strong> outrora como as <strong>de</strong> hoje e o homem primitivo se sentem presos <strong>de</strong> encantamento<br />
ao ouvir as histórias maravilhosas que começam com as palavras mágicas “antigamente”, “era<br />
uma vez”.<br />
Outro aspecto que nos chamou a atenção foi o contexto no qual esse gênero se<br />
insere. Tudo isso não foi somente apreciado enquanto literatura; os valores e os princípios<br />
revelados se sobressaíram por intermédio das ações das personagens. Essas discussões foram<br />
interessantes, pois revelavam como as crianças operavam no mundo social. Além disso, não<br />
po<strong>de</strong>mos esquecer que uma das muitas atribuições da escola é levar a criança a conhecer e
100<br />
analisar criticamente os usos da língua como veículo <strong>de</strong> valores e preconceitos <strong>de</strong> classe,<br />
credo, gênero ou etnia (BRASIL, PCNs, 1997, p. 42). Essas ações foram apresentadas no<br />
enca<strong>de</strong>amento das frases. Além disso, o uso <strong>de</strong>ssas expressões também serviu para apontar as<br />
circunstâncias psicológicas das personagens. Por exemplo, as crianças utilizaram as<br />
expressões “e falava que amava” (ANEXO 21), “Mara ficou muito triste” (ANEXO 10), “e<br />
ficou muito triste e também morreu” (ANEXO 17), “potyra ficou triste e chorando” (ANEXO<br />
9), “Potyra chorou muito” (ANEXO 13) “anhurawi um guerreiro muito corajoso se apaixonou<br />
por ela” (ANEXO 18) “sua mãe ficou muito triste” (ANEXO 10), “O cacique pai da mara<br />
<strong>de</strong>sprezava Mara” (ANEXO 8) entre tantas outras. Essas expressões contribuíram<br />
significativamente para preservar a continuação lógica e temporal do texto.<br />
Observamos, ainda, que as crianças já são capazes <strong>de</strong> relacionar os fatos no texto<br />
respeitando a or<strong>de</strong>m em que eles aconteceram. Isso quer dizer que, para a maioria <strong>de</strong>las, a<br />
temporalida<strong>de</strong> marca a or<strong>de</strong>m natural dos acontecimentos, que po<strong>de</strong> ser confirmado na frase<br />
“a muito tempo atas existia um casau que queria casar” (ANEXO 13). Esse marcador serve<br />
para ajudar a criança a situar, no texto, o rompimento entre a mãe e a filha, apresentando logo<br />
a seguir um novo acontecimento. Segundo Coelho (2003), esses organizadores temporais<br />
estão presentes no início da fase <strong>de</strong> complicação, o que assegura o <strong>de</strong>senrolar da<br />
temporalida<strong>de</strong> da narrativa.<br />
A apresentação <strong>de</strong> um elemento organizador temporal no texto narrativo<br />
transporta as crianças para um mundo <strong>de</strong> fantasia, diferente do momento da escrita da criança<br />
(COELHO, 2003). Nos textos <strong>de</strong>las, o organizador temporal inicial aparece <strong>de</strong> várias formas.<br />
Por exemplo: “um dia”, “todo dia”, “no outro dia”, “no dia seguinte”, “muito tempo atrás”,<br />
“anoiteceu”, “chegando a noite”, “certo dia”, entre outros. Constatamos que essas expressões<br />
foram usadas com bastante proprieda<strong>de</strong> e ajudaram a criança a dominar e a organizar o texto<br />
em parágrafos. Comprovamos ainda sua eficácia na construção <strong>de</strong> palavras e frases que<br />
refletiam nitidamente a intenção <strong>de</strong> colaborar com a construção <strong>de</strong> sentido na totalida<strong>de</strong> do<br />
texto, e não apenas a formulação <strong>de</strong> frases sem compromisso com o texto. Nas produções I, J,<br />
L, M, U (ANEXO 9, 10, 12, 13, 21) observamos que o uso <strong>de</strong>sses organizadores temporais<br />
ajudou as crianças a i<strong>de</strong>ntificar ações em diferentes espaços e tempos, caracterizando o lugar<br />
on<strong>de</strong> aconteceu o fato, ligando-os ao tempo cronológico. Em nosso enten<strong>de</strong>r, essas relações<br />
são importantes porque nessa fase ajudam a criança a estabelecer a or<strong>de</strong>m dos<br />
acontecimentos.<br />
Na produção H, abaixo, po<strong>de</strong>mos interpretar com clareza a importância dos<br />
organizadores temporais para o gênero. O aluno inicia o seu texto informando a localização
101<br />
dos acontecimentos com a expressão “Em uma tribo”, iniciando a partir daí a sequência da<br />
narrativa. Nesse contexto, essa expressão situa o leitor em relação ao lugar físico em que<br />
ocorrem os fatos. Na sequência, situa a história no tempo como em “até que um dia ela<br />
sonhou com um jovem”, expressão que dá pistas <strong>de</strong> existir uma or<strong>de</strong>m natural dos fatos em<br />
andamento no texto. As personagens vão aparecendo no texto à medida que a<br />
sequencialização dos acontecimentos se <strong>de</strong>senrola no enredo. Primeiramente aparece a<br />
personagem principal, cujo nome curiosamente só aparece na quarta linha (Mara). Logo<br />
<strong>de</strong>pois surge o cacique, o antagonista, que contradiz as ações da personagem principal.<br />
Depois, relata a situação complicadora atrelada ao tempo do acontecido: “Um dia mandi<br />
faleseu”. Obe<strong>de</strong>cendo a uma or<strong>de</strong>m da noção espaço-tempo, estes são utilizados para situar o<br />
leitor no enredo da história, isto é, conseguindo estabelecer a distância temporal necessária<br />
entre os eventos que se vão <strong>de</strong>senrolando ao longo da narrativa. Por fim, no fechamento da<br />
história: “o cacique pediu <strong>de</strong>sculpa e <strong>de</strong>rão o nome <strong>de</strong> mandioca em omenage o imterro da<br />
Mandi”, constatamos que os acontecimentos coinci<strong>de</strong>m com a lenda contada.<br />
Mandioca- O pão indígena<br />
En uma tribo uma índia jovem sonhava en ter<br />
filhos.<br />
Ate que um dia ela sonhou com um jovem <strong>de</strong>sedo da lua <strong>de</strong>zedo que o amava o sonho<br />
se repitiu muitas Veze Mara <strong>de</strong>scobri que estava esperando um filho.<br />
O cacique pai da Mara <strong>de</strong>sprezava Mara mas os índios da tribo amavão Mandi.<br />
Um dia mandi faleseu a sua mãe enterrou<br />
na sua oca para que separase <strong>de</strong>la.<br />
O jovem apare seu no sonho do cacique<br />
falu como prepara o vegetal o cacique<br />
pediu <strong>de</strong>scupa e <strong>de</strong>rão o nome <strong>de</strong> mandioca<br />
em omenage o imterro da Mandi.<br />
Transcrição. Produção H.
102<br />
Figura 14. Produção H. Realizada em novembro.<br />
Em relação às características do gênero textual lenda, mostramos que os subsídios<br />
teóricos <strong>de</strong>ram suporte à funcionalida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s. Nota-se que a compreensão<br />
organizacional <strong>de</strong>u à criança conceitos relevantes para a construção do gênero. E numa<br />
primeira série, elaborar uma narrativa escrita é uma tarefa complexa, pois exige uma série <strong>de</strong><br />
conhecimentos linguísticos, tais como: vocabulário a<strong>de</strong>quado ao gênero, enca<strong>de</strong>amento lógico<br />
entre os acontecimentos, domínio da temporalida<strong>de</strong> e do espaço em que ocorre a história etc.
103<br />
A análise das produções dos nossos alunos teve o objetivo <strong>de</strong> observar, em momentos<br />
distintos, como traçamos o caminho do processo <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />
4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento<br />
Durante a aplicação das ativida<strong>de</strong>s, as crianças se apropriaram <strong>de</strong> conceitos<br />
fundamentais que as levaram a <strong>de</strong>senvolver a escrita. As ativida<strong>de</strong>s foram <strong>de</strong>senvolvidas<br />
levando-se em conta a consciência fonológica, a palavra, a sílaba e o fonema, em ativida<strong>de</strong>s<br />
contextualizadas em recontos coletivos da lenda, nas quais analisamos o processo <strong>de</strong><br />
construção da escrita.<br />
As ativida<strong>de</strong>s foram distribuídas <strong>de</strong> três formas: as coletivas, em sala, ora em<br />
grupos <strong>de</strong> quatro, ora em duplas, ora em trios, ora na turma inteira. Nas ativida<strong>de</strong>s individuais,<br />
as crianças eram estimuladas a refletir e <strong>de</strong>senvolvê-las sem interferência <strong>de</strong> outros e,<br />
posteriormente, elas po<strong>de</strong>riam ser compartilhadas com os colegas. Por último, as ativida<strong>de</strong>s ao<br />
ar livre (fora da sala), com o objetivo <strong>de</strong> trazer novida<strong>de</strong>s e acrescentar novas formas <strong>de</strong><br />
trabalho, geralmente aconteciam em forma <strong>de</strong> jogos e brinca<strong>de</strong>iras.<br />
Em nosso enten<strong>de</strong>r, é impossível alfabetizar uma criança sem <strong>de</strong>senvolver o<br />
sistema alfabético do português. Admitindo isso, nesta seção <strong>de</strong>screvemos as ativida<strong>de</strong>s que<br />
habilitaram as crianças a usar esse conhecimento. Convém ressaltar que não se trata <strong>de</strong> todas<br />
as ativida<strong>de</strong>s aplicadas, mas <strong>de</strong> um recorte <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s, a partir do estudo do gênero<br />
lenda, que contribuíram com o aprendizado da língua materna.<br />
A ativida<strong>de</strong> “seleção <strong>de</strong> palavras” foi realizada com o objetivo <strong>de</strong> levar as crianças<br />
a perceberem, pela pronúncia, quais palavras iniciam da mesma maneira e quais começam <strong>de</strong><br />
forma diferente. Por exemplo: “panela”, “pequi”, “periquito”, “pajé”, “papagaio”, “Ponain”,<br />
“Potyra → /p/→ “p”; “tatu”, “tupi”, “tucunaré”, Tupã”, “tupi”, “tucunaré”, “tucumã”, → /t/→<br />
“t”; “fogo”, “filha” → /f/→ ”f”; “viúva”, “velho”, “vila”, “voar” →/v/→ “v”; “maracá”,<br />
“mata”, “Mara”, “ma<strong>de</strong>ira”→/m/ → “m”. Ora as palavras eram escritas no quadro <strong>de</strong> giz, ora<br />
em fichas coloridas, ora apresentadas oralmente, ora mimeografadas. Retirávamos as palavras<br />
das lendas que eram contadas em sala. Uma variação <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> consistia na associação<br />
entre a gravura e o som inicial das palavras retiradas do reconto. De acordo com Scliar-Cabral
104<br />
(2003b), as palavras em que os fonemas correspon<strong>de</strong>m aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da<br />
posição e do contexto fonético são i<strong>de</strong>ais para iniciar o processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />
Ativida<strong>de</strong> interessante era registrar em fichas ou quadro <strong>de</strong> giz uma sequência <strong>de</strong><br />
palavras retiradas do reconto para as crianças perceberem quais <strong>de</strong>las compartilhavam o<br />
mesmo fonema em início <strong>de</strong> sílaba, por exemplo, “roça”, “rocha”, “Lua”, “lagoa”, “lagos”,<br />
“zarabatana”, “luta”. Nessas ativida<strong>de</strong>s, procurávamos explorar a relação fonema-grafema em<br />
início <strong>de</strong> sílaba, uma vez que os fonemas /l/, /z/ e o arquifonema |R|, nesta posição, se<br />
escrevem com ‘l’, “z” e “r”, respectivamente, conforme mostrado por Scliar- Cabral (2003b).<br />
Numa outra ativida<strong>de</strong> registramos no quadro <strong>de</strong> giz palavras que apresentavam o<br />
fonema /s/, como, por exemplo, “nascimento”, “<strong>de</strong>sconsolada”, “essência”, “<strong>de</strong>sceu”,<br />
“pássaro”, “pesca”, “passear”, “assustada”, “nasceu”, e logo após solicitamos que as crianças<br />
i<strong>de</strong>ntificassem e separassem as palavras <strong>de</strong> acordo com os grafemas que representavam o<br />
fonema /s/ ou o arquifonema |S|. Nessas ativida<strong>de</strong>s, procuramos enfatizar que as realizações<br />
do fonema /s/ po<strong>de</strong>m ser grafados “ss”, “c” ou “sc” em início <strong>de</strong> sílaba, entre vogal oral e<br />
vogal posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não posterior, isto é, /i/, /e/, /E/, /ẽ/ e /j/<br />
(SCLIAR-CABRAL, 2003a). Dessa forma, não há uma regra geral que atenda todas essas<br />
ocorrências nas palavras. A autora alerta que se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o grafema como uma ou<br />
mais letras que representam um fonema, e no sistema alfabético do português do Brasil, não<br />
mais que duas letras.<br />
Outra ativida<strong>de</strong> era com palavras que em início <strong>de</strong> sílaba começavam com o<br />
fonema /s/ e as crianças i<strong>de</strong>ntificavam e separavam as palavras <strong>de</strong> acordo com o fonema. Por<br />
exemplo: “sol”, “sapé”, “sufoco”, e nesse caso, o fonema /s/, em início <strong>de</strong> sílaba, antes <strong>de</strong><br />
vogal posterior ou /w/ grafa-se com “s” (SCLIAR-CABRAL, 2003b).<br />
Em outra ativida<strong>de</strong>, apresentando palavras que começavam com o mesmo padrão<br />
silábico e palavras que começavam com outro padrão, solicitamos que as crianças<br />
i<strong>de</strong>ntificassem e separassem as palavras <strong>de</strong> acordo com o fonema inicial da sílaba e/ou final<br />
<strong>de</strong> sílaba. Em seguida, apresentamos as palavras à turma, escrevendo-as no quadro <strong>de</strong> giz, e as<br />
palavras foram lidas coletiva e individualmente, confirmando ou redirecionando as hipóteses<br />
levantadas pelas crianças. Essas ativida<strong>de</strong>s serviram para salientar a composição e a<br />
<strong>de</strong>composição da palavra, a relação fonema-grafema e os movimentos <strong>de</strong> escrita da esquerda<br />
para a direita (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />
Um jogo que as crianças apreciavam era trocar a letra inicial por outra: ora as<br />
palavras eram ditas oralmente, ora eram escritas em fichas ou no quadro <strong>de</strong> giz. Nessa<br />
ativida<strong>de</strong>, era explorado o som inicial e o significado da palavra. Por exemplo: FALA,
105<br />
BALA, CALA, MALA, RALA, SALA, TALA, VALA, que, embora mantenham as três<br />
últimas letras, com a troca do grafema/fonema o significado muda completamente. Além<br />
disso, a discriminação <strong>de</strong> sons tem a função <strong>de</strong> distinguir sentidos e significados (SCLIAR-<br />
CABRAL, 2009).<br />
O procedimento <strong>de</strong> encontrar a palavra correspon<strong>de</strong>nte à figura agradava as<br />
crianças. Outra forma <strong>de</strong> exposição da ativida<strong>de</strong> era apresentar primeiro a figura para <strong>de</strong>pois<br />
encontrar a palavra, que também servia para diferenciar as figuras das letras (BRASIL, PRÓ-<br />
LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Também apresentamos a palavra faltando a<br />
primeira letra, para a criança i<strong>de</strong>ntificar o fonema/grafema inicial da palavra e relacionar a<br />
palavra à figura correspon<strong>de</strong>nte. Nessas ativida<strong>de</strong>s trabalhamos o fonema /s/ nos contextos<br />
competitivos, especificando os grafemas usados em relação à posição realizada pelo fonema<br />
/s/ (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 153-158). A seguir, as crianças separaram e escreveram as<br />
palavras com “ss”, “c”, ou “sc”.<br />
Uma ativida<strong>de</strong> era separar em sílabas as palavras retiradas do texto, como, por<br />
exemplo: “barco”, “cabaça”, “pajé”, “Sol”, “tribo”. Essas ativida<strong>de</strong>s serviam para que o<br />
aluno percebesse que “enquanto se fala, o ar é emitido numa série <strong>de</strong> impulsos a cada um dos<br />
quais se po<strong>de</strong> dizer que correspon<strong>de</strong> uma sílaba” (MATTOSO CAMARA, 1977, p. 70.).<br />
Nessas ativida<strong>de</strong>s, separávamos as palavras em sílabas, tanto oralmente quanto por escrito;<br />
quer dizer, a i<strong>de</strong>ntificação e a percepção da representação gráfica dos fonemas favoreciam a<br />
<strong>de</strong>composição e a composição da palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007.<br />
FASCÍCULO 1).<br />
Também trabalhamos fonemas que figuram em final <strong>de</strong> sílaba como em<br />
“ariranha”, "piranha”, “lenha”, “jatobá”, “tarobá”; incentivamos a comparação entre o número<br />
<strong>de</strong> sílabas e a relação <strong>de</strong> fonemas e <strong>de</strong> grafemas na palavra. A análise fonológica po<strong>de</strong> ajudar<br />
na reflexão <strong>de</strong> como cada fonema po<strong>de</strong> ser representado por grafema na escrita (SCLIAR-<br />
CABRAL, 2003a).<br />
Algumas ativida<strong>de</strong>s eram realizadas para distinguir as consoantes, /d/ → “d” →<br />
“<strong>de</strong>do”; /b/ → “b” → “bela”, porquanto no caso <strong>de</strong>ssas consoantes a similarida<strong>de</strong> não se<br />
restringe à articulação, mas se esten<strong>de</strong> à escrita. Essas ativida<strong>de</strong>s não somente buscam<br />
familiarização com as letras, como objetivam a sistematização da correspondência entre<br />
fonemas e grafemas. Dessa forma, a escrita da palavra <strong>de</strong>ve observar o traçado <strong>de</strong> cada letra,<br />
sempre reforçando a atenção nas hastes e curvas, respeitando o movimento da direita para a<br />
esquerda (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).
106<br />
Ativida<strong>de</strong> muito interessante foi o jogo das palavras, cujo objetivo era<br />
<strong>de</strong>smembrá-las fazendo novas combinações, quer dizer, em um primeiro momento a<br />
combinação fica restrita à primeira sílaba <strong>de</strong> cada palavra. Por exemplo: a primeira sílaba da<br />
palavra “copo” com a primeira sílaba da palavra “braço” forma a palavra “cobra”; em<br />
seguida, combinavam-se as sílabas do final das palavras; por exemplo, a última sílaba da<br />
palavra “bico” com a última sílaba da palavra “bela” forma a palavra “cola”. A intenção era<br />
que as crianças reconhecessem que com a sílaba <strong>de</strong> uma palavra po<strong>de</strong>m formar novas<br />
palavras, bastando para isso examinar as unida<strong>de</strong>s que constituem a palavra para <strong>de</strong>smembrála.<br />
Em suma: o reconhecimento da palavra ocorre por análise e síntese (SCLIAR-CABRAL,<br />
2009).<br />
Colocamos as crianças sentadas em círculo e distribuímos os cartões <strong>de</strong> forma que<br />
elas não pu<strong>de</strong>ssem ver a figura. Trabalhamos <strong>de</strong>z figuras por vez, por exemplo: barco, canoa,<br />
Lua, maracá, tatu, onça, cobra, peixe, Sol, índio. Nessa ativida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>safio era relacionar o<br />
som da primeira sílaba com a figura. A palavra era lida primeiro por nós, <strong>de</strong>pois pelas<br />
crianças, e por fim era escrita no quadro <strong>de</strong> giz.<br />
Uma ativida<strong>de</strong> era <strong>de</strong>scobrir a palavra secreta. Nessa ativida<strong>de</strong>, relacionamos a<br />
palavra ao <strong>de</strong>senho e em seguida acrescentamos palavras que rimam com a palavra secreta,<br />
por coincidir o fonema no final da sílaba. Por exemplo: “panela”, “bela”, “mela”, “vela”,<br />
“gamela” e assim por diante. Exploramos também os constituintes das palavras “mela” e<br />
“gamela”, casos em que, segundo Scliar- Cabral (2003b), a realização do fonema /l/ no início<br />
<strong>de</strong> sílaba interna se converte no grafema “l”; e também ressaltamos a formação <strong>de</strong> uma<br />
palavra a partir <strong>de</strong> outra já existente.<br />
Destacamos também a primeira e a última sílaba da palavra: ora recortadas, ora<br />
pintadas com cores diferentes, ora circuladas. A finalida<strong>de</strong> era <strong>de</strong>stacar palavras polissílabas,<br />
trissílabas, dissílabas e monossílabas, além <strong>de</strong> ajudar o aluno a perceber a extensão da<br />
palavra até segmentá-la em unida<strong>de</strong>s menores, isto é, palavras em sílabas e sílabas em<br />
fonemas (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).<br />
Outra ativida<strong>de</strong> era recortar as gravuras <strong>de</strong> objetos que apareciam na lenda; a<br />
criança era convidada a i<strong>de</strong>ntificar o fonema repetindo o início e o final da palavra. Essas<br />
ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas e <strong>de</strong>senvolvidas para trabalhar a assimilação dos fonemas a partir<br />
<strong>de</strong> rimas, isolamento da primeira letra e da última sílaba. As gravuras foram selecionadas<br />
segundo o fonema a ser trabalhado.<br />
Realizamos também ativida<strong>de</strong>s que contemplassem os grafemas “o” e “u” em<br />
final <strong>de</strong> palavras. As crianças participavam da confecção da lista <strong>de</strong> palavras. Realizamos as
107<br />
ativida<strong>de</strong>s em duas etapas. No primeiro momento, ativida<strong>de</strong>s orais possibilitaram exercitar a<br />
percepção da extensão da palavra, pois a economia ao pronunciar uma palavra po<strong>de</strong> acarretar<br />
omissão/troca <strong>de</strong> letras, uma vez que nosso sistema <strong>de</strong> escrita sofre influência da oralida<strong>de</strong>,<br />
embora a escrita não seja sua representação exata (MARCUSCHI, 2005). No segundo<br />
momento, as crianças escreveram uma lista <strong>de</strong> palavras em que observassem a percepção do<br />
arquifonema |W|. Conforme Scliar-Cabral (2003b), há várias formas convencionadas <strong>de</strong><br />
representá-lo po<strong>de</strong>ndo-se escrever competitivamente O ou U em sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo<br />
ou em final <strong>de</strong> vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S|.<br />
Também foram <strong>de</strong>senvolvidas ativida<strong>de</strong>s que contemplassem o “<strong>de</strong>sdobramento”<br />
das vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a;<br />
b), na tentativa <strong>de</strong> evitar os problemas <strong>de</strong> escrita das vogais nasalizadas como nas palavras<br />
“muito”, “Mandi”, “mandioca”. No primeiro momento, essas ativida<strong>de</strong>s eram realizadas<br />
oralmente, e só após analisar e registrar esse <strong>de</strong>sdobramento é que eram propostas ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> escrita. Outra variação era reforçar a sonorida<strong>de</strong> da sílaba inicial. Por exemplo: levar o<br />
aluno a i<strong>de</strong>ntificar a diferença na pronúncia da sílaba BO nas palavras BOLO e BOLA.<br />
Levamos ativida<strong>de</strong>s em que as crianças pu<strong>de</strong>ssem observar que existem palavras<br />
com pronúncia diferente da grafia, principalmente no final <strong>de</strong> silaba, tal como em<br />
TOMATE/TOMATI. Para a realização das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> discriminação do fonema foi<br />
fundamental a percepção da sílaba como constituinte da palavra em que um grafema<br />
representava mais <strong>de</strong> um fonema, e também trabalhamos palavras em que um fonema podia<br />
representar mais <strong>de</strong> um grafema (SCLIAR-CABRAL, 2003 a; b).<br />
As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> rima e lengalenga eram frequentes: as palavras eram retiradas<br />
das produções coletivas. Essas ativida<strong>de</strong>s serviram para que as crianças percebessem e<br />
refletissem sobre como as palavras terminam e suas múltiplas combinações, isto é,<br />
<strong>de</strong>senvolver a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir sobre os sons da língua usando a linguagem escrita –<br />
metalinguagem – (SCLIAR-CABRAL, 2003a).<br />
As ativida<strong>de</strong>s orais também eram realizadas, por exemplo, com as crianças<br />
tentando <strong>de</strong>scobrir e separar pela pronúncia aquelas que começavam com o mesmo fonema<br />
das que começavam com fonemas diferentes, e em seguida faziam a leitura. Essas ativida<strong>de</strong>s<br />
serviram para <strong>de</strong>spertar a consciência <strong>de</strong> que ao escrevermos é preciso tomar consciência da<br />
estrutura sonora <strong>de</strong> cada palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />
Terminada a apresentação das ativida<strong>de</strong>s que foram aplicadas para <strong>de</strong>senvolver o sistema<br />
alfabético, passamos à análise das produções.
108<br />
4.2.1. A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que a fala po<strong>de</strong> ser escrita<br />
Nesta seção, analisamos a produção textual dos alunos a partir da proximida<strong>de</strong><br />
entre fala e escrita.<br />
Na produção A (ANEXO 1), observamos que na sua primeira produção textual a<br />
criança usou algumas letras do alfabeto (A, P, U, L, K, R, D, E, I, O, V, T) para recontar a<br />
lenda: Potyra - as lágrimas eternas. De um lado, i<strong>de</strong>ntificamos na produção cinco vogais (A,<br />
E, I, O, U) e sete consoantes (P, L, K, R, D, V, T). A predominância das letras A e I refletem,<br />
em parte, a familiarida<strong>de</strong> com a escrita do seu nome, e <strong>de</strong> outra parte a presença muito forte<br />
do ensino tradicional sistematizado e ensinado a partir das vogais. A esse respeito, com base<br />
no Pró-letramento (2007) po<strong>de</strong>mos afirmar que frequentemente as escolas têm organizado sua<br />
prática apresentando primeiro as vogais (a, e, i, o, u) adotando uma abordagem que não leva<br />
em conta que o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco letras (a, e, i, o, u),<br />
para representar as vogais, mas possui sete vogais, orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e cinco nasalizadas<br />
(ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).<br />
Por outro lado, ao fazer tentativas <strong>de</strong> escrita, como a produção C, o aluno parece<br />
perceber que é preciso usar as letras do alfabeto para registrar as suas i<strong>de</strong>ias. No momento da<br />
produção C a criança tinha seis anos, completando sete anos no mês <strong>de</strong> abril. Ao iniciar a<br />
produção, a criança construiu um bloco <strong>de</strong> quatro sentenças do mesmo tamanho. Para registrar<br />
a primeira sentença, ela usou nove letras (ACEFUOHIO), <strong>de</strong>ntre as quais percebemos que seis<br />
são vogais (A, E, U, O, I, O), algumas (O, U, I) escritas com letra cursiva; a única letra<br />
repetida é a letra O. A segunda sentença consiste <strong>de</strong> sete letras (ELIUFUO), das quais cinco<br />
são vogais; houve a inclusão da letra L, permanecendo o restante das letras da primeira<br />
sentença e as letras I, U, O novamente foram grafadas <strong>de</strong> forma cursiva e foi repetida a letra<br />
U.<br />
Na terceira sentença contamos sete letras (USUEFIH), sendo quatro vogais; a letra<br />
S foi acrescentada às existentes; as letras U e I outra vez foram grafadas <strong>de</strong> forma cursiva. A<br />
última sentença <strong>de</strong>ste bloco consistia <strong>de</strong> 11 letras (USEHERIHJSU), cinco vogais (U, E, E, I,<br />
U) e seis consoantes (S, H, R, H, J, S), <strong>de</strong>ntre estas as letras E, I, J grafadas com letra cursiva.<br />
A seguir, ela repetiu a última sentença (USEHERIHJSU), intercalando com a letra É,<br />
completando com a sentença (NAPUVRIOUELTMNA) usando quinze letras; <strong>de</strong>ntre as quais<br />
sete são vogais (A, U, I, O, U, E, A). Dessa forma, para escrever utilizou-se do repertório <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zessete letras (A, C, E, F, O, H, I, L, V, S, U, R, J, N, P, T, M), sendo doze consoantes e
109<br />
cinco vogais. Observamos que as vogais foram repetidas várias vezes na mesma sentença,<br />
mais do que as consoantes. Percebemos ainda que as letras R, I, O, J, E, N estão em letra <strong>de</strong><br />
fôrma, enquanto I, N, E, R foram escritas em minúsculas. O traçado da letra se manteve no<br />
mesmo padrão e, ao repetir a primeira parte na última sentença, conservou as mesmas letras e<br />
a mesma configuração. Observamos que no conjunto <strong>de</strong> letra da sentença (N, A, P, U, V, R, I,<br />
O, U, E, L, T, M, N, A) três letras foram repetidas (N, A, U). Abaixo, a produção C.<br />
Figura 15. Produção C. Realizada no mês <strong>de</strong> março.<br />
Ainda em referência a produção C, na última sentença a criança parece registrar<br />
os enunciados relacionando-os ao ritmo e à entonação da fala, estratégia da criança para<br />
transformar a fala em texto escrito, mas isso não significa uma correspondência entre a fala e
110<br />
a escrita fonética. A esse respeito, Scliar-Cabral (2003) afirma que os falantes <strong>de</strong> uma língua,<br />
sejam eles alfabetizados ou não, percebem a ca<strong>de</strong>ia da fala para seu uso cotidiano, mas a<br />
percebem como um continuum, tanto é que, quando começa a escrever, a criança não faz a<br />
separação entre as palavras. Isso quer dizer que, no início da alfabetização, por sua<br />
inexperiência, a criança não sabe que a escrita tem um modo próprio <strong>de</strong> representar a fala, ou<br />
seja, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a or<strong>de</strong>m: é a passagem<br />
<strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m para outra or<strong>de</strong>m (MARCUSCHI, 2005).<br />
Po<strong>de</strong>mos inferir, portanto, o predomínio da aprendizagem focado nas vogais por<br />
sua incidência no texto escrito. Além disso, as vogais foram grafadas com letra cursiva, com<br />
exceção da consoante J, que também foi grafada em cursiva, o que po<strong>de</strong> indicar que<br />
anteriormente foram apresentadas outras formas <strong>de</strong> grafar essas letras.<br />
A propósito <strong>de</strong> compararmos o dito oralmente com o escrito pela criança,<br />
po<strong>de</strong>mos inferir que ela usou da fala para narrar o escrito baseando-se na lenda que foi<br />
contada, embora não faça relação entre a sentença escrita com a produzida oralmente. Isto<br />
po<strong>de</strong> se justificar, pois os meios orais permitem a inserção <strong>de</strong> sons inarticulados, a expressão<br />
facial e corporal e também a modulação da voz, refletindo sobre o que se quer expressar no<br />
texto (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Além do mais, inicialmente<br />
há relação entre os sons e silêncios e sua imaginação (SCLIAR-CABRAL, 2003a).<br />
Foi possível observar que as crianças no início do processo <strong>de</strong> escrita apoiaram-se<br />
na oralida<strong>de</strong>, que serviu <strong>de</strong> âncora para construir e compor o texto, a palavra, a sílaba. Mas,<br />
observamos também que à medida que oferecemos contato com uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros,<br />
as crianças se sentiram mais à vonta<strong>de</strong> para usar os recursos linguísticos que apren<strong>de</strong>ram ao<br />
longo do ano. Dessa forma, o aproveitamento <strong>de</strong>sses conhecimentos po<strong>de</strong> amenizar os<br />
impactos ao acesso do funcionamento da língua escrita e, também, harmonizar o<br />
distanciamento entre escrita e oralida<strong>de</strong>.<br />
Na produção L, as sequências “fesumpidido” (fez um pedido), “eapareceu” (e<br />
apareceu), “umsenhor” (um senhor), “esivelho” (esse velho), “suairmãdisi” (sua irmã disse),<br />
“foipomato” (foi pro mato), “nomato” (no mato), “edisi” (e disse), “ esua” (e sua) na junção<br />
das palavras observa-se uma influência muito forte da oralida<strong>de</strong> na escrita da criança. Fala e<br />
escrita são produzidas em sequência linear, e compreen<strong>de</strong>r que essa linearida<strong>de</strong> acontece <strong>de</strong><br />
maneira diferente na fala e na escrita é fundamental no início da alfabetização (BRASIL,<br />
PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Isso significa que as marcas que usamos na<br />
escrita para distinguir palavras, frases e sequências <strong>de</strong> frases não são “óbvias” nem<br />
“naturais” (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), a criança precisa
111<br />
familiarizar-se com as convenções ortográficas, separando as palavras por espaço em<br />
branco, regras <strong>de</strong> escrita aprendidas na escola. Conforme Scliar-Cabral (2003), a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> perceber a articulação dos traços da palavra escrita com função <strong>de</strong> distinguir significados,<br />
os grafemas, associados ao respectivo fonema, representa atribuir os valores fonológicos que<br />
envolvem a língua, e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as<br />
palavras e/ou entre consoantes e vogais. Abaixo, apresentamos a produção L.
112<br />
Figura 16. Produção L. Realizada no mês <strong>de</strong> junho.<br />
Thaina Khan
113<br />
Uma índia fesumpidido que<br />
queria casa i pajé pidi o<br />
para o Tupã realisa o <strong>de</strong>se<br />
jo eapareseu umsenhor Danace di<br />
si minha irmã não vai casa<br />
com esi velho sua irma disi vose<br />
qui casa comigo i Thaina di<br />
si quero e Thaina foi pomato e<br />
Tupã trasformou em um jovem<br />
fote e sua molhe foipro cu<br />
r Thaina nomato edisi m<br />
eu marido e Danece dise e la<br />
não podi fica com e si<br />
gatão e Tupã tras for mo e la<br />
em passaro.<br />
Transcrição. Produção L.<br />
4.2.2 A construção da noção <strong>de</strong> palavra no texto escrito<br />
A nossa pesquisa para o ensino fundamental <strong>de</strong> Língua Portuguesa em classe <strong>de</strong><br />
alfabetização focaliza a produção <strong>de</strong> textos escritos combinados com a reflexão sobre as<br />
estruturas da língua. Essas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas como processos ativos, e a<br />
concepção <strong>de</strong> linguagem como uma ação dirigida com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> facilitar a comunicação<br />
que ocorre em diferentes grupos sociais por meio do texto oral ou escrito.<br />
Nas produções A, B e C (ANEXOS 1, 2, 3) notamos que as crianças não<br />
dominavam o alfabeto completo: conheciam algumas letras, mas não sua função. Ao contrário<br />
disso, os textos recolhidos em junho nos mostraram claramente que as crianças alcançaram a<br />
compreensão da função das letras do alfabeto. Elas estavam praticando nas palavras estudadas
114<br />
que fonemas isolados ou combinados representam um ou dois grafemas (SCLIAR-CABRAL,<br />
2009).<br />
Observamos também que, nessa fase, as crianças que inicialmente trabalham com<br />
a perspectiva do texto parecem não se preocupar com a grafia correta das palavras; suas<br />
preocupações centram-se em <strong>de</strong>senvolver a concepção geral do texto. Em nosso olhar, nesse<br />
momento inicial da alfabetização, a ortografia não é tão importante, pois a excessiva<br />
preocupação com a grafia correta das palavras po<strong>de</strong> acarretar <strong>de</strong>sinteresse pelo texto; nesse<br />
momento o importante é valorizar a criação da criança. Acreditamos que, aos poucos, ela terá<br />
acesso às regras ortográficas, mesmo porque essas regras fazem parte do currículo das séries<br />
posteriores. No entanto, não se trata <strong>de</strong> negar ao aluno o acesso a tais regras, mas <strong>de</strong><br />
encaminhar situações <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> textos criadas em sala <strong>de</strong> aula que possam oportunizar o<br />
surgimento <strong>de</strong> diferentes questões dos alunos sobre a forma correta <strong>de</strong> grafar as palavras<br />
(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO1).<br />
As crianças usam a fala para colocar no papel a mensagem do texto. Essa<br />
ansieda<strong>de</strong> se reflete nas palavras “emendadas”, porque durante a escrita do texto elas usam a<br />
fala para organizar os seus pensamentos. Dessa maneira, tomar consciência <strong>de</strong> que a<br />
articulação dos traços da palavra escrita com função <strong>de</strong> distinguir significados ajuda o aluno a<br />
fazer a separação entre as palavras e/ou entre consoantes e vogais (SCLIAR-CABRAL,<br />
2003).<br />
Apresentamos a produção B recolhida no mês <strong>de</strong> março, por apresentar algumas<br />
características da turma. Trata-se do reconto da lenda intitulada Potyra - As lágrimas eternas.<br />
Comparando a primeira produção com a segunda produção G, recolhida no mês <strong>de</strong> junho, da<br />
mesma criança, nota-se um avanço significativo nas tentativas <strong>de</strong> escrita. Abaixo, as<br />
produções B e G para melhor visualização e comparação.
115<br />
Figura 17. Produção B. Realizada no mês <strong>de</strong> março.<br />
Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu.<br />
Transcrição. Produção B.
116<br />
Figura 18. Produção G. Realizada no mês <strong>de</strong> junho.<br />
NEGRINHO DO PASTOREIO<br />
1. E AR/ UM/ VSI/ O /MENNO/ RINÃO/ LIDA /MARIDA<br />
2. COMO/ LIRASVO /DINERINHO/ COVIDOU /RA /UMMA
117<br />
3. CORIDA/ I /E LIE/ PRA /UMMA /CORIDA<br />
4. E /NOU /FINAL /DA /CORIDA /ELI /DEU /A /CORIDA<br />
5. I /CODOU /RUCUPAEPACIDAU /UMA /CARA /DE /XICODE<br />
6. COMU /EL /NÃO /XIP /ARAEDO /MARIRA/ ELE /DOMIPO<br />
7. I/ O /CAVALO /SIS OU /NERIRO / ACODOU<br />
8. I /O /MENIN/ DO /PASTOR /VOSE /E /LEVOU /UMM MA /DURA<br />
9. RA/ ELE /FOI/ ROC RA/ O/ CAVALO/ I / LEVOU/ UMMA/ VE<br />
10. LA / ADA /BIGO/ DA/ VELA /APARECEU/ UMA /LUES<br />
11. I/ CADA/ CAVALO/ A PARESIA/ CAVALO/ O/ DOUCNO<br />
12. O /ILO/ DO/ PATOP /ERO /SOU/ O /CAVALO/ I/ COREU/ CU<br />
13. PAI/ RIMÃO /SODOU/ CVLO/ NO/ FUMIGERONNE<br />
14. SIREOLO /PARA/ NOOROIDO/ A /FORMIGRU<br />
15. IEL/ CPDOOU/ NO/ ANOS /I / ELI/ POUS NO LDOCO/ SINO3O<br />
Transcrição. Produção G.<br />
Na produção acima (figura 18), po<strong>de</strong>mos observar que o traçado das letras<br />
apresenta indícios <strong>de</strong> que, ao escrever, o aluno imprimiu uma “força” adicional ao lápis, tanto<br />
no primeiro quanto no segundo texto. O texto consiste <strong>de</strong> 15 linhas. Não apresenta<br />
parágrafos. Observamos que a criança já domina todo o repertório <strong>de</strong> letras do alfabeto e faz<br />
várias tentativas <strong>de</strong> escrita para a mesma palavra (cavalo, cvl; uma, umma, ummma). Apesar<br />
da repetição da palavra “corida”, a sua escrita permaneceu a mesma em todas as ocorrências;<br />
a palavra foi grafada com a falta <strong>de</strong> um “R”, o que não implica alteração do significado da<br />
palavra, por isso supõe-se que não se trata <strong>de</strong> uma variação linguística, mas <strong>de</strong> uma<br />
dificulda<strong>de</strong> em relação à posição ocupada pelo fonema /r/ na palavra (SCLIAR-CABRAL,<br />
2003b); isso não acontece com a escrita da palavra “uma”; verifica-se um conflito, ora<br />
aparece com duplicação da letra “m”; ora aparece com triplicação <strong>de</strong> “m”, isto é, para grafar<br />
o vocábulo “uma”, a criança adotou três formas diferentes: “uma”, “umma” e “ummma”.<br />
Refletindo a representação da fala na escrita, a duplicação e triplicação da letra “m”<br />
justificam-se na medida em que a criança ainda não percebe que a sonorida<strong>de</strong> na sílaba é o<br />
que <strong>de</strong>fine uma consoante e uma vogal, isto é, a sílaba sonora “em princípio é emitida num<br />
único impulso <strong>de</strong> expiração, mas num só impulso também se po<strong>de</strong>m articular duas sílabas<br />
sonoras, que ficam assim reunidas numa única expiratória ou dinâmica”. (MATTOSO<br />
CÂMARA JR, 1978 p.218). Convém salientar que em ambos os casos não há<br />
comprometimento na estrutura textual.
118<br />
Observamos, ainda, que na primeira produção B a criança não se preocupou com<br />
o título da lenda; já na segunda, embora tenha escrito o título em letra cursiva, o restante do<br />
texto foi escrito em letra <strong>de</strong> imprensa maiúscula, o que significa que a letra cursiva ainda não<br />
é do seu domínio. Outro ponto interessante é que na primeira produção necessitamos da<br />
“leitura” do aluno para compreen<strong>de</strong>r a escrita, enquanto na segunda produção é possível<br />
compreen<strong>de</strong>r a forma escrita do seu texto e sua intenção ao <strong>de</strong>senvolver suas i<strong>de</strong>ias, e também<br />
a estrutura do gênero textual.<br />
Na transcrição é possível compreen<strong>de</strong>r a produção G e também verificar como as<br />
palavras foram construindo-se à medida que o reconto avança para o final. Em algumas<br />
palavras, como “EAR” (era), “VSI” (vez), “MENNO” (menino), “LIDA” (linda), “MARIDA”<br />
(madrinha), “COVIDOU” (convidou), “ELI” foram suprimidos alguns grafemas e em outros<br />
casos, como em “RA” (para), “SVO” (escravo), “NERIRO” (negrinho) “ROCRA” (procurar),<br />
a sílaba também foi esquecida; também encontramos excesso <strong>de</strong> letras “DOUCNO” (dono);<br />
ao mesmo tempo na construção da palavra “formigueiro”, observamos que a primeira<br />
tentativa “FUMIGERO” parece basear-se na oralida<strong>de</strong>, enquanto a segunda tentativa<br />
“FORMIGRU” mostra uma evolução significativa, pois o fonema /g/ antes da vogal não<br />
posterior se converte em “gu” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), então a criança para realizar esse<br />
fonema, lança mão <strong>de</strong> um artifício sonoro “GRU”. Percebe-se ainda que a nasalização<br />
assinalada pela letra “n” ainda não é do domínio da criança, como se vê em “lida” (linda),<br />
“covidou” (convidou). Na escrita da palavra “BIGO” (pingo) parece que a criança ainda não<br />
está segura em relação à conversão do fonema /p/ no grafema “p”, pois é nítida a dificulda<strong>de</strong><br />
da criança em distinguir graficamente o grafema “B” do grafema “P”. Mas essas inúmeras<br />
tentativas <strong>de</strong> escrita são importantes para dominar as relações entre grafemas e fonemas<br />
(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />
4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas<br />
Para analisar as produções tomamos como base que os grafemas representam os<br />
fonemas, e também que fonemas são unida<strong>de</strong>s sonoras distintas mais simples da língua que<br />
entram na formação do vocábulo com a função <strong>de</strong> distinguir significados (SCLIAR-
119<br />
CABRAL, 2003a, b). Das produções coletadas no mês <strong>de</strong> novembro, tentaremos resumir um<br />
panorama <strong>de</strong>sses casos para melhor compreensão da produção final.<br />
Para Scliar-Cabral (2003b), a nasalização da vogal em final <strong>de</strong> sílaba que não<br />
esteja em final <strong>de</strong> vocábulo, antes <strong>de</strong> /p/ e /b/ é marcada pelo grafema m; antes das <strong>de</strong>mais<br />
consoantes, a nasalização é assinalada pelo grafema n; trata-se <strong>de</strong> uma das conversões mais<br />
econômicas do português, e no caso da codificação com m, a grafia também assinala a<br />
antecipação da bilabialização dos gestos bucais. A esse respeito encontramos os casos “mudo”<br />
(mundo), “sague” (sangue), “esinou” (ensinou), “plata” (planta), etc. Encontramos também a<br />
nasalização assinalada graficamente pelos grafemas m e n, como nas palavras “muimto”<br />
(muito), “anmava” (amava), “quenme” (queime), “quenmado” (queimado), etc. Encontramos<br />
em menor número <strong>de</strong> ocorrências a vogal nasalizada /ã/ com ou sem acento, seguida ou não<br />
<strong>de</strong> /S/ nas palavras “tupam” (Tupã), “maçam” (maçãs), “lam” (lã) etc.<br />
Outra situação encontrada é em relação à troca <strong>de</strong> letras com a escrita semelhante<br />
nas palavras grafadas com m e n, como em “irnã” (irmã), “con” (com), “senpre” (sempre),<br />
“comseguiu” (conseguiu), “comtou” (contou) etc. Encontramos também a nasalização da<br />
vogal /ã/ nos vocábulos marcados pela letra m e n “arrumãdo” (arrumando), “pegãdo”<br />
(pegando), “quãdo”(quando), “manham” (manhã), etc. Nesses casos, há falta <strong>de</strong> exatidão na<br />
correspondência das qualida<strong>de</strong>s fônicas e seus respectivos valores; conforme Scliar-Cabral<br />
(2003a, b), as letras m ou n marcam a nasalização das vogais em final <strong>de</strong> sílaba interna e em<br />
final <strong>de</strong> sílaba que não esteja em final <strong>de</strong> vocábulo.<br />
Na produção T abaixo, realizada no mês <strong>de</strong> novembro, a sequência<br />
“chamadajatoba” o contínuo da fala foi retratado na escrita, daí a importância <strong>de</strong> trabalhar a<br />
diferença entre fala e escrita na alfabetização, como foi mencionado na seção anterior. Nessa<br />
mesma produção, a troca do grafema u no final da palavra foi encontrada nos textos com<br />
muita frequência em situações diferentes. Por exemplo: “encontrol” (encontrou), “tomol”<br />
(tomou), “colocol” (colocou), “rolbada” (roubada), “fugio” (fugiu), “vio” (viu), “comeo”<br />
(comeu), “falol” (falou), “perguntol” (perguntou), subil” (subiu), “comeo” (comeu), “dividio”<br />
(dividiu) entre outras (ANEXOS, 16, 20). No português do Brasil na maioria das regiões, não<br />
se diferencia na fala o fonema /w/ do fonema /l/ no final <strong>de</strong> vocábulo. Nesse sentido, essas<br />
ocorrências nos levam a inferir que os ditongos /iw/ e /ow/, nessas situações, foram grafados<br />
“io”,“ol”, “il” e “eo”, refletindo a neutralização dos fonemas /u/ e /l/ em posição final <strong>de</strong><br />
sílaba.
120<br />
Figura 19. Produção T. Realizada em novembro.<br />
Igaranhã – A canoa encantada<br />
O in<strong>de</strong>o escolheo a arvore chamadajatoba<br />
para fazer canoa a o terminar não encontrol a canoa<br />
ele pen sou agun animal <strong>de</strong>storil a canoa com o<br />
roido ele tomou um susto e a canoa veio e diresão <strong>de</strong>le
121<br />
com olhos e boca e colocol o nome <strong>de</strong> Igaranhã<br />
o indio mandou na canoa e os primeiros peixes<br />
a canoa comeo e as partes maiores era para<br />
o indio não queria dividio as peixes e a<br />
canoa come ele.<br />
Transcrição. Produção T.<br />
Constatamos a maior incidência <strong>de</strong> omissão <strong>de</strong> grafemas foi encontrada na<br />
realização do fonema /R/. Por exemplo, “corida” (corrida) “enterou” (enterrou), “moreu”<br />
(morreu), “interada” (enterrada) etc. De acordo com Scliar-Cabral (2003b), pela regra, as<br />
realizações do fonema |R| entre vogal final <strong>de</strong> sílaba e vogal oral nasalizada que não a mais<br />
alta, ou semivogal no ditongo crescente, arquifonema |R| escreve-se com o dígrafo “rr”.<br />
Ao mesmo tempo verificamos que o sistema <strong>de</strong> escrita alfabética do português do<br />
Brasil apresenta como característica essencial a correspondência entre fonemas e grafemas,<br />
embora não exista a correspondência biunívoca entre alguns fonemas e grafemas. Scliar-<br />
Cabral (2003a, b), apresenta situações em que a correspondência entre fonema e grafema não<br />
é estavel, como no caso do fonema /s/ e o grafema “s”, porque o fonema /s/ po<strong>de</strong> ser<br />
representado por diversos grafemas: “s”, “ss", “c”, “ç”, “x”, “z”, “sc”, "sç” e “xc”. Por<br />
exemplo: “naseu” (nasceu), “paseava” (passeava),“pasava” (passava), “pasaro”(pássaro),<br />
“creseu” (cresceu), “espozo” (esposo), “onsa” (onça), “paciava” (passeava), “faleseu”<br />
(faleceu), “percebeu” (percebeu), “casique” (cacique), “escureseu” (escureceu), “cassique”<br />
(cacique), “pasado” (passado), “ves” (vez), “falheseu” (faleceu) etc. Essas ocorrências po<strong>de</strong>m<br />
ser comprovadas nas produções E, H, J, K, N, O, P, Q, U (ANEXOS 5, 8, 10, 11, 14, 15, 16,<br />
17, 21, respectivamente).<br />
Na produção O abaixo, observamos o uso do arquifonema |S| em várias situações.<br />
A criança oportunamente usou o grafema “s” em início <strong>de</strong> sílaba para grafar a palavra<br />
“sosinha”, na qual foi empregado o grafema “s” para representar o grafema “z”; oposto disso,<br />
na palavra “espozo” o grafema “s” foi substituído pelo grafema “z”. Em outra situação está a<br />
palavra “felois” (veloz) em que o fonema /z/ foi trocado pelo fonema /s/ no final do vocábulo.<br />
Em outra passagem a criança grafou a palavra “peçoa” substituindo o grafema “ss” pelo<br />
grafema “ç”. Usou o grafema “s” para grafar a palavra “pasaro”. Observamos ainda na<br />
palavra “fareseu” a troca do grafema “c” pelo grafema “s”. Essas ocorrências evi<strong>de</strong>nciam a<br />
falta <strong>de</strong> domínio da criança sobre as convenções ortográficas para representar o fonema /S/ em<br />
contexto competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). É interessante observar ainda nessa<br />
mesma produção, que a criança grafou três vezes a palavra “tupan”, conservando nas três
122<br />
ocorrências a mesma escrita, sempre com a nasalização do fonema /ã/ representada em final<br />
<strong>de</strong> sílaba pela letra n, situação em que, segundo Scliar-Cabral (2003a, b), as letras m e n têm o<br />
mesmo valor sonoro do til. Outra faceta que encontramos foi a troca do grafema “r” pelo<br />
grafema “l” como em “Ela” (era), e o contrário: a troca do grafema “l” pelo grafema “r” em<br />
“fareseu” (faleceu).<br />
Figura 20. Produção O. Realizada em novembro.
123<br />
Ela uma vez uma índia que a cretitiva que quando as<br />
peçoa mo ri virão em borboreta e espozo da Coacyaba<br />
mo réu guanamby fico tristi e enfaleceu e Coacyaba<br />
Morreu e Coacyaba fico sosinha e foi visitar a sua<br />
mamai. Coacyaba em fareseu com a mote da sua mamai e<br />
seu papai Guanamby pidiu pra o <strong>de</strong>us tupan istranfor<br />
ma la em um pasaro felois e fote pra leva a sua firia<br />
para o sell.<br />
Deus tupoacyaba estranfor a Coacyaba em um beja-flor<br />
Deus tupan a tenteu o <strong>de</strong>sejo da coacyaba.<br />
coacyaba asi coacyaba pote levar a sua firia pra<br />
as duas pra la o sell.<br />
Transcrição. Produção O.<br />
Na produção K, abaixo, verificamos algumas <strong>de</strong>ssas ocorrências. Comparando-a<br />
com a segunda produção N, da mesma criança, ambas realizadas em junho, po<strong>de</strong>mos verificar<br />
a escrita das palavras. Na palavra “vose” (você) houve a troca do grafema “c” pelo grafema<br />
“s”; evidências <strong>de</strong> que a criança está em processo <strong>de</strong> aprendizagem quanto ao domínio das<br />
regras <strong>de</strong> codificação <strong>de</strong>terminadas pelo contexto fonético. Percebemos a segmentação das<br />
palavras “es ta va” (estava) e “ <strong>de</strong>i cho” (<strong>de</strong>ixou) que aparece duas vezes, mas nas<br />
ocorrências permanece a mesma escrita. Nesse caso, po<strong>de</strong>mos inferir que a criança usou a fala<br />
para auxiliá-la na escrita, uma vez que a separação silábica está correta. Comprovamos isso<br />
pelas palavras “Mai” (mãe), que se repetiu quatro vezes no texto; nas quatro ocorrências,<br />
percebemos a conservação da escrita. Em nosso enten<strong>de</strong>r, isso é um indício da presença da<br />
oralida<strong>de</strong> no momento do registro. Observamos também a omissão <strong>de</strong> letras nas palavras<br />
“dise” (disse) e “gaiou” (ganhou); em ambos os casos, isso está relacionado à percepção da<br />
distinção do traço fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica.<br />
(SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). Já no caso da palavra “casique” houve a troca do grafema “c”<br />
pelo grafema “s”, o que é muito comum <strong>de</strong>vido à realização do fonema /s/ em contexto<br />
competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003b). Na palavra “fote” (forte) a letra “r” foi suprimida;<br />
pela regra, a realização do fonema |R| em final <strong>de</strong> sílaba seguido <strong>de</strong> uma vogal posterior oral se<br />
escreve com “r” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), mas ficou evi<strong>de</strong>nte que isso ainda não é do<br />
domínio da criança.
124<br />
Figura 21. Produção K. Realizada em junho.<br />
A LENDA DO GUARANÀ<br />
MINDORÊ/ ERA/ UM/ MENINO/ MU<br />
ITO/DO EM TE/.<br />
E /TODOS/ FOI/ COM MONICADO/ PARA/<br />
UMA/ LUTA/ E/ QUEIM/ PERDER/ MORRERA/ E /MINDO/<br />
RE/. PERDEU / E /CASIQUE/:<br />
- DISE/ VOSE/ MORRARA
125<br />
/ SUA /MAI / DISE/ NÃO/<br />
MATE/ MEU/ FILHO/ MEU/ MARIDO/ ERA /O /MAS/ FOTE/<br />
E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/<br />
ES TAVA/ COM/ FOME/ E/ SUA / MAI /A CHO/FRUTA/<br />
E RA /DURA / E/SUA / MAI /FEZ /UM/<br />
CHA/ E / DEU/ U /CHA / / ELE/ FOI / CRE SE NO/<br />
E /PULO NA/ OMÇA / E / EM COMTRO/ A /FILHA/<br />
DO /CASIQUE/ E /FOI / NA /TRIBO /E / EM PLRO / PARA<br />
E /O/ CASIQUE/ NÃO/ MATO/ E / IS PUÇOU/<br />
E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/<br />
A/ LUTA/ ELE / DEI CHO/ VOÇE / TEM / QUE/<br />
LUTA/ CO TRA/ OS / GERREIROS / MAIS/ FORTE/<br />
ELE / LUTOU/ E /GAIOU / E / DEI CHO/ ELE/ VOU TA<br />
Transcrição. Produção K.
126<br />
Figura 22. Produção N. Realizada em junho.<br />
A LENDA DO BOITATÁ E OS FASANDEROS<br />
UM FAZENDERO QUE SICHAMAVA FRANCISCO QUE<br />
QUE CUIDAVA DA FLORESTA E OS FAZENDEIROS PIGIGOSOS.
127<br />
QUE FICAVA DEITADOS NOBENBOM<br />
QUANDO ESCURESEU ELES FOI CON PRAR GASULINAS<br />
PARA QUENMAE A FLORESTA.<br />
-- E FALOU DETRAS DO MATO:<br />
NÃO QUENME E PER GUNTO QUEIN ESTA AI<br />
SOEU BOI TATA E SAI QUENMANDO TODO MUNDO<br />
A CA BOU A ES TORIA.<br />
Transcrição. Produção N.<br />
A análise mostra que o modo <strong>de</strong> aplicação das ativida<strong>de</strong>s relacionadas ao sistema<br />
alfabético, privilegiando a consciência fonológica, po<strong>de</strong> influenciar diretamente o resultado.<br />
Concordar com a importância dos aspectos fonológicos presentes neste estudo implica<br />
compreen<strong>de</strong>r a relação entre fonema-grafema, e também transformar o “erro” ortográfico em<br />
aprendizado, isto é, compreen<strong>de</strong>r o contexto da aprendizagem da escrita.<br />
Registramos muitas tentativas <strong>de</strong> escrita “correta” e percebemos que alguns casos<br />
são recorrentes: omissão e troca <strong>de</strong> letras, apoio na oralida<strong>de</strong> (que produz algumas distorções),<br />
segmentação ou junção <strong>de</strong> palavras ou letras, terminação das palavras e nasalida<strong>de</strong> fonética,<br />
entre outros. Consi<strong>de</strong>ramos que o trabalho com o gênero <strong>de</strong> texto po<strong>de</strong> minimizar essas<br />
dificulda<strong>de</strong>s iniciais e preparar as crianças para uma fase posterior. Dessa maneira, nesta<br />
última fase <strong>de</strong> análise, ratificamos a relevância entre a produção <strong>de</strong> texto e o sistema<br />
alfabético, sendo imprescindível que ambos façam parte das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira série.
128<br />
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
É consensual entre muitos autores (VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998;<br />
SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;<br />
COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,<br />
2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001 entre outros) que as crianças chegam à escola com uma<br />
bagagem própria <strong>de</strong> experiência e algumas já dominando uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> usos do sistema<br />
escrito, entre os quais rótulos, propagandas, panfletos, placas etc, enquanto outros alunos<br />
apresentam menos familiarida<strong>de</strong> com o sistema escrito, pois seu entorno sociocultural oferece<br />
poucas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interação com a leitura e a escrita. Desse modo, gran<strong>de</strong> é a<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saberes circulando no ambiente social da criança, inclusive na sala <strong>de</strong> aula.<br />
Esses saberes evi<strong>de</strong>nciados no cotidiano geralmente são aprendidos por experiência própria<br />
com a participação daqueles que fazem parte da vida da criança, eles estão relacionados à<br />
comunida<strong>de</strong> na qual a criança está inserida, uma socieda<strong>de</strong> urbanizada, com possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
interação em diversas situações mediadas por experiências com a linguagem escrita. Já o<br />
processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem institucionalizado ocorre na escola.<br />
Antes do aporte do texto nas práticas escolares, os professores da primeira série<br />
priorizavam os aspectos gramaticais e ortográficos das palavras e das frases; ou seja, no início<br />
da escolarização, a ênfase recaía sobre o aprendizado do código, sem a preocupação <strong>de</strong><br />
estabelecer vínculos entre as práticas sociais e as práticas escolares. Hoje, entre os professores<br />
já se percebe uma movimentação, ainda discreta, no sentido <strong>de</strong> promover intervenções com<br />
base nas características específicas do gênero que está sendo estudado na escola. Os<br />
professores começam a se conscientizar que somente os estudos sobre o ensino do sistema<br />
alfabético parecem insuficientes para aten<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s do processo da alfabetização.<br />
Nesta pesquisa, <strong>de</strong>screvemos a proposição <strong>de</strong> encaminhamento metodológico para<br />
o processo <strong>de</strong> apropriação da língua escrita em uma classe <strong>de</strong> alfabetização, tendo a lenda<br />
como gênero-instrumento na ação didático-pedagógica. Desse objetivo geral, <strong>de</strong>sdobraram-se<br />
três objetivos específicos: i<strong>de</strong>ntificar características do gênero textual lenda que justificam seu<br />
uso com esse público; <strong>de</strong>screver o encaminhamento procedimental da ativida<strong>de</strong> com o gênero<br />
lenda no dia a dia da alfabetização, consi<strong>de</strong>rando a dupla via – sistêmica e textual – <strong>de</strong>sse<br />
processo; e, por último, i<strong>de</strong>ntificar as implicações <strong>de</strong>sse encaminhamento metodológico.
129<br />
Assim sendo, <strong>de</strong>screvemos o encaminhamento metodológico adotado nesta<br />
abordagem para apropriação da língua materna. Dada a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver todas as<br />
ativida<strong>de</strong>s aplicadas, concentramo-nos em apresentar um panorama acerca do gênero lenda<br />
em sala <strong>de</strong> aula <strong>de</strong> uma primeira série, argumentando sobre a pertinência <strong>de</strong> tal escolha e<br />
apresentando ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> linguagem, tal como sugerido pelos PCNs no volume <strong>de</strong> língua<br />
portuguesa para o ensino da língua materna.<br />
Conforme já visto aqui, registramos em nosso corpus <strong>de</strong> pesquisa as ativida<strong>de</strong>s<br />
iniciais para recontar o gênero lenda. As ativida<strong>de</strong>s foram direcionadas e envolvem a<br />
linguagem escrita. As ativida<strong>de</strong>s que objetivaram o reconto da lenda coletiva e<br />
individualmente foram <strong>de</strong>scritas na análise. Consi<strong>de</strong>ramos a organização das situações <strong>de</strong><br />
escrita observadas em sala <strong>de</strong> aula, tomando como referência o gênero lenda para a aplicação<br />
das ativida<strong>de</strong>s. Essa escolha foi <strong>de</strong>finida com base nas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>senvolvidas por Vygotsky<br />
(1999, 1998, 2008) em relação à aprendizagem da linguagem escrita, e em Bronckart (2003)<br />
no que concerne ao conceito <strong>de</strong> texto e gêneros textuais nas relações comunicativas, bem<br />
como nos estudos <strong>de</strong> Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) com relação à sequência didática.<br />
Organizada a proposta <strong>de</strong> trabalho, concluímos que as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconto<br />
privilegiaram a interação professor-aluno e aluno-aluno. Enfim, com esse conjunto <strong>de</strong><br />
ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>u-se início ao processo <strong>de</strong> aprendizagem da linguagem escrita. Essas ativida<strong>de</strong>s<br />
permitiram antecipar respostas, pois frequentemente era requisitado das crianças o que já<br />
haviam aprendido sobre o gênero.<br />
As ativida<strong>de</strong>s elaboradas contemplaram a linguagem verbal e a não verbal. Por<br />
exemplo: embora à primeira vista a dramatização não envolvesse diretamente a escrita, as<br />
crianças foram levadas a discutir a organização do gênero lenda e posteriormente aplicar esse<br />
ensinamento no reconto escrito. Em relação à linguagem não verbal, procuramos focalizar os<br />
personagens e seus aspectos faciais, a caracterização, a ilustração e o cenário para a<br />
disposição da imagem, a linguagem oral, a textual, a gestual e as ilustrações dos livros.<br />
Também nos baseamos na sequência didática proposta por Dolz, Schneuwly,<br />
Noverraz (2004), que contribuiu para <strong>de</strong>senvolver as representações no contexto do gênero<br />
lenda e colaborou para a reflexão sobre os valores implícitos nessas narrativas,<br />
contextualizando-os em situações comunicativas. Convém salientar que as ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>stinadas a caracterizar esse gênero serviram para enfatizar sua função e levar os gêneros<br />
como opção para as práticas pedagógicas.<br />
Dessa maneira, na busca <strong>de</strong> como ensinar a língua materna através do gênero<br />
lenda, empreen<strong>de</strong>mos uma reflexão sobre os valores, os princípios morais e, ao mesmo
130<br />
tempo, propiciamos à criança subsídios para o registro <strong>de</strong> conhecimentos, cuja finalida<strong>de</strong> é<br />
<strong>de</strong>senvolver o complexo sistema alfabético em uma abordagem a<strong>de</strong>quada aos propósitos <strong>de</strong>ste<br />
trabalho. Descrevemos o processo tanto pelo viés do gênero quanto pelo viés do sistema<br />
alfabético. Procuramos utilizar ativida<strong>de</strong>s para estabelecer os princípios teóricos, articulandoos<br />
aos procedimentos, visando a outros domínios do ensino da língua materna. Impõem-se<br />
aqui dois esclarecimentos: a) as ativida<strong>de</strong>s não foram rigorosamente aplicadas à sequência<br />
<strong>de</strong>scrita, mesmo porque algumas se repetiram ao longo da sua aplicação e outras foram<br />
criadas; b) existiu uma preocupação com a aceitação das ativida<strong>de</strong>s, porque enten<strong>de</strong>mos que a<br />
criança participa do seu processo <strong>de</strong> aprendizagem, exigindo flexibilida<strong>de</strong> no planejamento<br />
pedagógico para contemplar as diversida<strong>de</strong>s encontradas em sala <strong>de</strong> aula.<br />
Ao examinar as produções escritas das crianças, nota-se que o processo escolhido<br />
facilitou o entendimento da organização do gênero lenda, <strong>de</strong>senvolvendo as suas<br />
características. Do ponto <strong>de</strong> vista metodológico, infere-se que inicialmente as crianças não<br />
percebem a funcionalida<strong>de</strong> da linguagem escrita e ainda ignoram a função das letras no seu<br />
aprendizado. Os dados revelam ainda que as ativida<strong>de</strong>s contribuíram para <strong>de</strong>senvolver<br />
capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita combinadas à produção <strong>de</strong> texto. Cada criança representou as suas<br />
i<strong>de</strong>ias por meio <strong>de</strong> sinais gráficos, isto é, ao final do processo percebeu-se que as crianças<br />
evoluíram <strong>de</strong> uma escrita sem significado para uma escrita mais aprimorada. As estratégias e<br />
as mediações colaboraram para organizar e sistematizar o trabalho em sala.<br />
Assim, este estudo corroborou os Parâmetros Curriculares Nacionais <strong>de</strong> Língua<br />
Portuguesa (PCNs, 1997), que têm o mérito <strong>de</strong> oferecer novas perspectivas para o ensino <strong>de</strong><br />
línguas. Além do mais, constitui-se em gran<strong>de</strong> avanço ao apresentar os gêneros como objeto<br />
<strong>de</strong> ensino-aprendizagem, relacionando-os às práticas sociais. Portanto, ao propor os gêneros<br />
textuais como objeto <strong>de</strong> ensino para <strong>de</strong>senvolver a escrita, este estudo po<strong>de</strong> fornecer aos<br />
educadores um instrumento necessário para incrementar a compreensão da leitura e da escrita,<br />
sobretudo a prática <strong>de</strong> produção textual.<br />
Limitamo-nos aqui a <strong>de</strong>screver o encaminhamento teórico-metodológico <strong>de</strong> uma<br />
classe <strong>de</strong> alfabetização, mas cabe um aprofundamento maior, através <strong>de</strong> pesquisas específicas<br />
sobre os gêneros nas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino oferecidas para que possamos <strong>de</strong>tectar e evitar os<br />
eventuais equívocos, os problemas, as necessida<strong>de</strong>s e as singularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tal prática <strong>de</strong><br />
ensino. Diante <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>, enfatizamos a importância da fundamentação teórica em nossa<br />
pesquisa, principalmente no processo ensino-aprendizagem, buscando ações que nos ajudaram<br />
a superar as dificulda<strong>de</strong>s encontradas no ambiente escolar. Sugerimos o gênero lenda como
131<br />
uma das possibilida<strong>de</strong>s nas práticas docentes, porquanto sua utilização nos levou a comprovar<br />
que ele po<strong>de</strong> facilitar a compreensão da língua portuguesa.
132<br />
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ANEXOS<br />
136
137<br />
ANEXO 1 – PRODUÇÃO A<br />
Produção A. Realizada em março.<br />
Era uma vez índio.<br />
Ele foi pra guerra e morreu.
138<br />
ANEXO 2 – PRODUÇÃO B<br />
Produção B. Realizada em março.<br />
Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu.
139<br />
ANEXO 3- PRODUÇÃO C<br />
Produção C. Realizada em março.<br />
Era uma vez uma índia chamada Potyra.<br />
Ela era apaixonada por Itagiba.<br />
Itagiba foi pra guerra e morreu.
140<br />
ANEXO 4 – PRODUÇÃO D<br />
Produção D. Realizada em junho.
141<br />
ANEXO 5 – PRODUÇÃO E<br />
Produção E. Realizada em junho.
142<br />
ANEXO 6 – PRODUÇÃO F<br />
Produção F. Realizada em junho.
143<br />
ANEXOS 7 – PRODUÇÃO G<br />
Produção G. Realizada em junho.
144<br />
ANEXO 8 – PRODUÇÃO H<br />
Produção H. Realizada em novembro.
145<br />
ANEXO 9 – PRODUÇÃO I<br />
Produção I. Realizada em novembro.
ANEXO 10 – PRODUÇÃO J<br />
146
Produção J. Realizada em novembro.<br />
147
148<br />
ANEXO 11 – PRODUÇÃO K<br />
Produção K. Realizada em novembro.
149<br />
ANEXO 12- PRODUÇÃO L<br />
Produção L. Realizada em novembro.
150<br />
ANEXO 13 – PRODUÇÃO M<br />
Produção M. Realizada em novembro.
151<br />
ANEXO 14 – PRODUÇÃO N<br />
Produção N. Realizada em novembro.
152<br />
ANEXO 15 – PRODUÇÃO O<br />
Produção O. Realizada em novembro.
153<br />
ANEXO 16 – PRODUÇÃO P<br />
Produção P. Realizada em novembro.
154<br />
ANEXO 17 – PRODUÇÃO Q<br />
Produção Q. Realizada em novembro.
155<br />
ANEXO 18 – PRODUÇÃO R<br />
Produção R. Realizada em novembro.
156<br />
ANEXO 19- PRODUÇÃO S<br />
Produção S. Realizada em junho.
157<br />
ANEXO 20 – PRODUÇÃO T<br />
Produção T. Realizada em novembro.
158<br />
ANEXO 21 – PRODUÇÃO U<br />
Produção U. Realizada em novembro.
159<br />
ANEXO 22- Coacyaba - O Primeiro Beija-Flor<br />
Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e silva<br />
Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em<br />
borboletas. É por esse motivo que elas voam <strong>de</strong> flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se<br />
com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.<br />
Coacyaba, uma bondosa índia, ficara viúva muito cedo, passando a viver<br />
exclusivamente para fazer feliz sua filhinha Guanamby. Todos os dias passeava com a menina<br />
pelas campinas <strong>de</strong> flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que<br />
o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.<br />
Guanamby ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando<br />
que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo<br />
cada vez mais e também morreu. Entretanto, sua alma não se tornou borboleta, ficando<br />
aprisionada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor próxima à sepultura da mãe, para assim permanecer ao seu<br />
lado. Enquanto isso, Coacyaba, em forma <strong>de</strong> borboleta, voava entre as flores, colhendo seu<br />
néctar. Ao aproximar-se da flor on<strong>de</strong> estava Guanamby, ouviu um choro triste, que logo<br />
reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu, então,<br />
ao Deus Tupã que fizesse <strong>de</strong>la um pássaro veloz e ágil, que pu<strong>de</strong>sse levar a filha para o céu.<br />
Tupã aten<strong>de</strong>u ao seu pedido, transformando-a<br />
num beija-flor, po<strong>de</strong>ndo, assim, realizar o seu <strong>de</strong>sejo.<br />
Des<strong>de</strong> então, quando morre uma criança índia órfã <strong>de</strong> mãe, sua alma permanece<br />
guardada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor, esperando que a mãe, em forma <strong>de</strong> beija-flor, venha buscá-la,<br />
para juntas voarem para o céu, on<strong>de</strong> estarão eternamente.
160<br />
ANEXO 23 – As lágrimas <strong>de</strong> Potira<br />
Theobaldo Miranda Santos<br />
A <strong>de</strong>scoberta das minas <strong>de</strong> diamantes, no Brasil, <strong>de</strong>u origem a diversas lendas.<br />
Vejamos uma das interessantes:<br />
Há muito tempo, vivia à beira <strong>de</strong> um rio uma tribo <strong>de</strong> índios. Dela fazia parte um<br />
casal muito feliz: Itagibá e Potira. Itagibá, que significa braço forte, era um guerreiro robusto<br />
e <strong>de</strong>stemido. Potira, cujo nome quer dizer flor era uma índia jovem e formosa.<br />
Vivia o casal tranqüilo e venturoso, quando rebentou uma guerra contra uma<br />
tribo vizinha. Itagibá teve <strong>de</strong> partir para a luta. E foi com profundo pesar que se <strong>de</strong>spediu da<br />
esposa querida e acompanhou os outros guerreiros. Potira não <strong>de</strong>rramou uma só lágrima, mas<br />
seguiu, com os olhos cheios <strong>de</strong> tristeza, a canoa que conduzia o esposo, até que a mesma<br />
<strong>de</strong>sapareceu na curva do rio.<br />
Passaram-se muitos dias sem que Itagibá voltasse à taba. Todas as tar<strong>de</strong>s a<br />
índia esperava, à margem do rio, o regresso do esposo amado. Seu coração sangrava <strong>de</strong><br />
sauda<strong>de</strong>. Mas permanecia serena e confiante, na esperança <strong>de</strong> que Itagibá voltaria à taba.<br />
Finalmente, Potira foi informada <strong>de</strong> que seu esposo jamais regressaria. Ele<br />
havia morrido como um herói, lutando contra o inimigo. Ao ter essa notícia, Potira per<strong>de</strong>u a<br />
calma que mantivera até então e <strong>de</strong>rramou lágrimas copiosas.<br />
Vencida pelo sofrimento, Potira passou o resto <strong>de</strong> sua vida, à beira do rio,<br />
chorando sem cessar. Suas lágrimas puras e brilhantes misturavam-se com as areias brancas<br />
do rio.<br />
A dor da índia impressionou Tupã, o rei dos <strong>de</strong>uses. E este, para perpetuar a<br />
lembrança do gran<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> Potira, transformou suas lágrimas em diamante. Daí a razão<br />
pela qual os diamantes são encontrados entre os cascalhos dos rios e regatos. Seu brilho e sua<br />
pureza recordam as lágrimas <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> da infeliz Potira.
161<br />
ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada<br />
Wal<strong>de</strong>-Mar <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Silva<br />
Um índio da tribo Kamaiurá iniciou a construção <strong>de</strong> uma canoa com a casca do<br />
jatobá. Ao terminá-la, retornou para junto <strong>de</strong> sua mulher, que há pouco <strong>de</strong>ra à luz, lá<br />
permanecendo por alguns dias. Algum tempo <strong>de</strong>pois, voltando à mata on<strong>de</strong> havia <strong>de</strong>ixado a<br />
canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera.<br />
Talvez a tivessem roubado ou algum animal a tivesse <strong>de</strong>struído. Como po<strong>de</strong>ria pescar agora<br />
Absorto, <strong>de</strong>spertou com um ruído. Foi gran<strong>de</strong> o seu espanto ao perceber que em<br />
sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele<br />
construíra, agora com vida e olhos na proa. Talvez houvesse se transformado em um animal,<br />
pensou. Deu-lhe, então, um nome: Igaranhã - o Jacaré.<br />
Entrou na canoa, or<strong>de</strong>nando-lhe que seguisse em direção ao lago. Assim que<br />
Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e<br />
tamanhos, que saltavam sem cessar da água para <strong>de</strong>ntro da embarcação. Os primeiros, a<br />
própria canoa <strong>de</strong>vorou, ficando, no entanto, a maior parte para o índio.<br />
À sua mulher, maravilhada, falou apenas que havia encontrado um lugar i<strong>de</strong>al<br />
para pesca.<br />
Dias <strong>de</strong>pois, retornando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore.<br />
Como por encanto, a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago, e o fenômeno<br />
repetiu-se. O índio, ambicioso, recolheu rapidamente os peixes, sem <strong>de</strong>ixar a Igaranhã sua<br />
parcela do alimento. Esta, então, muito contrariada, acabou por <strong>de</strong>vorar o seu próprio dono.
162<br />
ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo<br />
Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva<br />
Há muito tempo, muito tempo, os índios não conheciam o fogo, alimentando-se<br />
<strong>de</strong> polpa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, frutos silvestres e carne, que preparavam sobre pedras aquecidas pelo<br />
Sol.<br />
Certo dia, dois meninos Kaiapós caminhavam pela floresta, quando um <strong>de</strong>les<br />
percebeu, sobre um rochedo, um ninho <strong>de</strong> araras-vermelhas. Pediu ajuda ao companheiro para<br />
encostar um tronco na rocha, conseguindo assim alcançar o ninho. Mas, ao subir, esbarrou<br />
numa pedra, que caiu e feriu o amigo. Com raiva, o menino atingido tirou dali o tronco,<br />
<strong>de</strong>ixando o outro sem meios para <strong>de</strong>scer.<br />
Após algumas horas, apareceu no local uma onça macho. Ao ver a sombra do<br />
menino, a onça pô<strong>de</strong> localizá-lo sobre o rochedo, ao lado do nunho das araras-vermelhas,<br />
pássaros que sabiam carregar o fogo Em troca <strong>de</strong> ajuda, a onça pediu que o menino lhe<br />
jogasse os filhotes. Concordando com a proposta, o índio pô<strong>de</strong> finalmente <strong>de</strong>scer.<br />
Por haver permanecido muito tempo exposto ao calor, o menino ficou corado,<br />
fazendo a onça crer que se tratava do filho do Sol. Convidou-o para conhecer sua toca, on<strong>de</strong> a<br />
onça fêmea passava o dia assando carne ao fogo e fiando algodão. Apresentou a ela, pedindo<br />
que o tratasse muito bem, e saiu em seguida para caçar. A fêmea, entretanto pôs-se a ameaçálo,<br />
rugindo e lhe mostrando os <strong>de</strong>ntes.<br />
Ao tomar conhecimento disso, a onça macho resolveu ensinar o menino a usar o<br />
arco e flecha para que pu<strong>de</strong>sse se proteger. No dia seguinte, assim que o macho saiu, a fêmea<br />
tentou atacar o índio, que com muita habilida<strong>de</strong>, matou a inimiga à primeira flechada.<br />
Ao voltar, a onça macho soube o que ocorrera, aprovando e elogiando o menino,<br />
que facilmente tudo havia aprendido. Pediu-lhe que voltasse à sua al<strong>de</strong>ia, levando o fuso e<br />
uma tocha, e cuidasse para que a tocha não se apagasse.<br />
Regressando aos seus, o indiozinho os ensinou a usar o fogo e <strong>de</strong>pois a fiar o<br />
algodão.
163<br />
Em comemoração, fizeram uma gran<strong>de</strong> festa, na qual o biju, a mandioca, a carne e<br />
o peixe foram preparados ao fogo, que mantiveram aceso por muito tempo, alimentando-o<br />
com lenha seca.<br />
Certo dia, porém, a chuva apagou a chama, <strong>de</strong>ixando todos muito tristes. Então,<br />
Begorotire, o homem-chuva, <strong>de</strong>sceu do céu para ensinar-lhes a produzir fogo com dois<br />
pedaços <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira: segurando, com os pés, as extremida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les, que <strong>de</strong>veria Ter um<br />
orifício no centro, faria girar entre as mãos o outro, encaixando no primeiro, até o fogo surgir.<br />
Nesse dia, voltou a alegria entre os índios Kaiapós.
164<br />
ANEXO 26 - Arutsãm – o sapo astucioso<br />
Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva<br />
O sapo Arutsãm foi ao encontro <strong>de</strong> seu cunhado onça, para <strong>de</strong>le tomar<br />
emprestado um arco e uma gaita <strong>de</strong> bambu.<br />
Aproximando do seu território, foi alertado por outros animais, com ironia, do<br />
perigo que estava correndo. Mesmo assim, prosseguiu.<br />
A onça mostrou-se gentil ao recebê-lo, convidando-o para um banho no lago,<br />
cuidando, porém, para que sempre caminhasse atrás do convidado. Arutsãm, <strong>de</strong>sconfiado,<br />
manteve-se atento.<br />
Ao anoitecer, a onça esperou ansiosa que o cunhado adormecesse, aguardando<br />
o momento i<strong>de</strong>al para <strong>de</strong>vorá-lo.<br />
Arutsãm, entretando, passou, sobre seus olhos, a parte fosforescente <strong>de</strong> um<br />
vaga-lume, ludibriando assim a onça, que o julgava acordado e não ousou atacá-lo.<br />
No dia seguinte, já <strong>de</strong> posse do arco e da gaita <strong>de</strong> bambu, <strong>de</strong>spediu-se<br />
agra<strong>de</strong>cido <strong>de</strong> seu anfitrião.<br />
Esperto que era, espalhou formigas no caminho, que, atacando a onça, faziam<br />
com que ela batesse as patas no chão, acusando sua proximida<strong>de</strong>.<br />
Arutsãm seguia o seu caminho. Passava agora pelo território das serpentes, a<br />
quem seu inimigo incansável pedira que o apanhassem. O astuto sapo atraiu-as até o lago,<br />
saltando velozmente para a outra margem, escapando à sua perseguição.<br />
Alcançando a al<strong>de</strong>ia das cobras, apressaram-se em quebrar todas as panelas <strong>de</strong><br />
barro <strong>de</strong> suas fêmeas. Ao verem o estrago, estas, o perseguiram enfurecidas. Nesse momento,<br />
partiu Arutsãm para seu gran<strong>de</strong> salto: como num toque <strong>de</strong> mágico, pulou a Lua, on<strong>de</strong>,<br />
zombeteiro, está eternamente a tocar sua gaita <strong>de</strong> bambu.<br />
Ainda hoje, em noites claras, a onça contempla a Lua, lamentando o fracasso<br />
do seu traidor.