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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA<br />

SEBASTIANA GENY DOS SANTOS<br />

A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA<br />

COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE<br />

ALFABETIZAÇÃO<br />

Tubarão<br />

2010


1<br />

SEBASTIANA GENY DOS SANTOS<br />

A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA<br />

COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO<br />

DE ALFABETIZAÇÃO<br />

Dissertação apresentada ao Curso <strong>de</strong> Mestrado em<br />

Ciências da Linguagem da Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong><br />

Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do<br />

título <strong>de</strong> Mestre em Ciências da Linguagem.<br />

Orientador: Prof. Dr. Sandro Braga.<br />

Co-orientador: Prof. Dra. Maria Ester W. Moritz.<br />

Tubarão<br />

2010


2<br />

SEBASTIANA GENY DOS SANTOS<br />

A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA<br />

COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE<br />

ALFABETIZAÇÃO<br />

Esta dissertação foi julgada a<strong>de</strong>quada à obtenção do<br />

título <strong>de</strong> Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada<br />

em sua forma final pelo Curso <strong>de</strong> Mestrado em Ciências<br />

da Linguagem da Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> Santa<br />

Catarina.<br />

Palhoça, 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2010.<br />

______________________________________________________<br />

Professor e orientador, Sandro Braga, Dr.<br />

Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> Santa Catarina<br />

______________________________________________________<br />

Professora Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti, Dra<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina<br />

______________________________________________________<br />

Professora Maria Marta Furlanetto, Dra<br />

Universida<strong>de</strong> do Sul <strong>de</strong> Santa Catarina


3<br />

Ao meu pai, Afonso Celestino (in memoriam),<br />

pelo seu esforço e pela sua <strong>de</strong>terminação; à<br />

minha filha, Joanne, amor da minha vida; e à<br />

minha neta, Maria Cecília, pelas belas histórias<br />

contadas ao telefone.


4<br />

AGRADECIMENTOS<br />

Agra<strong>de</strong>ço:<br />

A Deus que me conduziu, passo a passo, nesta longa caminhada. A minha família<br />

que, mesmo <strong>de</strong> longe, nos momentos <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> soube estar “presente”. Especialmente, a<br />

minha mãe, pelo incentivo e seu eterno amor. Ao Governo do Distrito Fe<strong>de</strong>ral e à Secretaria<br />

<strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Educação do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, pela liberação e investimento em meu potencial<br />

acadêmico. À professora Dra. Maria Ester W. Moritz (UFSC), minha orientadora, que,<br />

corajosamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, acreditou na realização <strong>de</strong>ste trabalho e prontamente aceitou o<br />

<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> estudar uma nova teoria. Especialmente, pela amiza<strong>de</strong>, carinho e competência com<br />

que me introduziu no campo da pesquisa. Ao professor Dr. Sandro Braga, por ter aceitado,<br />

gentilmente, o compromisso <strong>de</strong> terminar a orientação <strong>de</strong>ste trabalho. À professora Dra. Maria<br />

do Carmo Pereira Coelho (UDF), pela sua amiza<strong>de</strong>, carinho e pelo suporte teórico em todos<br />

os momentos <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. À professora Dra. Maria Marta Furlanetto (UNISUL), pelas<br />

revisões e pela leitura criteriosa. À professora Dra. Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti (UFSC),<br />

pela atenção dispensada às nossas solicitações e pelas valiosas contribuições na finalização<br />

<strong>de</strong>sta pesquisa. Ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universida<strong>de</strong><br />

do Sul <strong>de</strong> Santa Catarina, pela oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização <strong>de</strong>sta pesquisa. Especialmente, ao<br />

professor Dr. Sandro Braga, à professora Dra. Jussara Bittencourt e à professora Dra. Maria<br />

Ester W. Moritz, pela receptivida<strong>de</strong> e competência com que conduziram as disciplinas. Aos<br />

colegas professores que, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, fizeram parte <strong>de</strong>sta jornada e sempre<br />

enfatizaram as minhas habilida<strong>de</strong>s. Aos colegas <strong>de</strong> Mestrado, pelo acolhimento durante os<br />

vinte e quatro meses <strong>de</strong> estudo. Em especial, a minha amiga Simone, pelas madrugadas <strong>de</strong><br />

estudos, conversas e <strong>de</strong>scontração. Aos pequenos aprendizes, meus alunos, que ao longo <strong>de</strong><br />

vinte e cinco anos <strong>de</strong> magistério, têm tornado minha caminhada mais suave, com certeza, sem<br />

eles seria impossível chegar até aqui. Finalmente, agra<strong>de</strong>ço a minha filha, Joanne, pelo seu<br />

amor incondicional e pela confiança <strong>de</strong>positada em meu trabalho diariamente. Obrigada!


5<br />

“Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa <strong>de</strong>baixo do céu; tempo <strong>de</strong><br />

nascer e tempo <strong>de</strong> morrer; tempo <strong>de</strong> plantar e tempo <strong>de</strong> arrancar o que se plantou; tempo <strong>de</strong><br />

matar e tempo <strong>de</strong> curar; tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir e tempo <strong>de</strong> construir; tempo <strong>de</strong> chorar e tempo <strong>de</strong><br />

rir; tempo <strong>de</strong> lamentar e tempo <strong>de</strong> dançar; tempo <strong>de</strong> espalhar pedras e tempo <strong>de</strong> as ajuntar;<br />

tempo <strong>de</strong> abraçar e tempo <strong>de</strong> afastar dos abraços; tempo <strong>de</strong> procurar e tempo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r; tempo<br />

<strong>de</strong> guardar e tempo <strong>de</strong> jogar fora; tempo <strong>de</strong> rasgar e tempo <strong>de</strong> costurar; tempo <strong>de</strong> calar e<br />

tempo <strong>de</strong> falar; tempo <strong>de</strong> amor e tempo <strong>de</strong> ódio; tempo <strong>de</strong> guerra e tempo <strong>de</strong> paz” (Eclesiástes<br />

3).


6<br />

RESUMO<br />

Este estudo tem o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver os processos <strong>de</strong> apropriação da língua escrita<br />

por crianças em fase <strong>de</strong> alfabetização, partindo do pressuposto que a língua é usada<br />

socialmente como forma <strong>de</strong> ação e interação social, fundamentada no universo sóciohistórico-cultural<br />

da criança (VYGOTSKY, 1999). A pesquisa se <strong>de</strong>senvolveu em sala<br />

<strong>de</strong> aula com trinta e uma crianças <strong>de</strong> uma turma da primeira série do Ensino<br />

Fundamental do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Para explicar o percurso metodológico e analisar o<br />

processo <strong>de</strong> apropriação da língua escrita, foi coletada a produção textual em três<br />

momentos diferentes. Em 2005, a coleta da primeira amostra ocorreu em março; a<br />

segunda amostra ocorreu em junho e, por último, coletamos a terceira amostra em<br />

novembro. Com base na perspectiva do <strong>de</strong>senvolvimento da escrita (VYGOTSKY,<br />

1999, 1998; LURIA, 1998) e na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />

NOVERRAZ, 2004), foram <strong>de</strong>talhadamente preparadas ativida<strong>de</strong>s específicas <strong>de</strong><br />

língua materna e colocadas à disposição das crianças. Dessas escolhas teóricometodológicas,<br />

foi organizada e preparada cada etapa <strong>de</strong> aprendizagem, na certeza <strong>de</strong><br />

que as intervenções <strong>de</strong>terminam o modo como as crianças escrevem. Foi utilizada a<br />

lenda como gênero <strong>de</strong> ação didático-pedagógica para criar situações <strong>de</strong> ensinoaprendizagem<br />

em que as crianças pu<strong>de</strong>ssem estabelecer contato com situações <strong>de</strong><br />

escrita. Os resultados apontam que inicialmente as crianças não percebem a<br />

funcionalida<strong>de</strong> da linguagem escrita e ainda não sabem a função das letras no<br />

aprendizado da leitura e da escrita. E que a aplicação das ativida<strong>de</strong>s contribuíram para<br />

<strong>de</strong>senvolver capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita combinadas à produção <strong>de</strong> texto. A análise dos<br />

dados apontou sobretudo que as estratégias e as intervenções adotadas colaboraram<br />

para um trabalho mais organizado e sistematizado, estabelecendo vínculos entre as<br />

práticas sociais e as práticas escolares mediadas pela ação da linguagem.<br />

Palavras-chave: Alfabetização. Gênero lenda. Apropriação da língua escrita.


7<br />

ABSTRACT<br />

This study aims at <strong>de</strong>scribing written language acquisition processes by children going<br />

through literacy process, based on the premisse that language is socially used as a form of<br />

action and social interaction and on the sociohistorical and cultural environment of the<br />

children (VYGOTSKY, 1999). The research was carried out in a first gra<strong>de</strong> classroom of an<br />

Elementary school in the Fe<strong>de</strong>ral District with 30 children. In or<strong>de</strong>r to explain the<br />

methodological steps and to analyse the process of written language acquisition, texts<br />

produced by the children were collected in three different moments. In 2005, the first sample<br />

was collected in March; the second sample was collected in June and the third and final<br />

sample in November. Based on the writing <strong>de</strong>velopment perpective (VYGOTSKY, 1999,<br />

1998; LURIA, 1998) and on the didactic sequence (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ,<br />

2004), mother tongue activities were <strong>de</strong>tailed <strong>de</strong>velopted and displayed for the children.From<br />

these theoretical-methodological choices, each learning stage was organized and prepared<br />

having in mind that these interventions <strong>de</strong>termine the way in which children write. The<br />

childrens’legend was used as genre of the didactic-pedagogic action in or<strong>de</strong>r to create<br />

teaching-learning situations involving contact with the written language. Results <strong>de</strong>monstrate<br />

that initially children did not notice the function of the written language and they still did not<br />

perceive the function of the letters in the literacy process. It was noticed that the application of<br />

the activities contributed to the <strong>de</strong>velopment of writing skills combined with text<br />

production. Data analysis <strong>de</strong>monstrated that the strategies and the interventions<br />

adopted contributed to a more organized and sytematized work, establishing links between<br />

social practices and school practices mediated by language actions.<br />

Key-words: Literacy, written language acquisition, childrens’legend as a genre.


8<br />

LISTA DE ILUSTRAÇÕES<br />

Figura 1- Coor<strong>de</strong>nadas gerais dos mundos discursivos...................................................28<br />

Figura 2 - Esquema da sequência didática .............................................................................32<br />

Figura 3 - Quadro <strong>de</strong> agrupamento <strong>de</strong> gênero..........................................................................31<br />

Figura 4 - Reconto coletivo......................................................................................................81<br />

Figura 5- Reconto coletivo: Fases da narrativa.....................................................................83<br />

Figura 6 - Produção B. Realizada em março.............................................................................85<br />

Figura 7 - Produção F. Realizada em junho..............................................................................86<br />

Figura 8 - Produção A. Realizada em março............................................................................88<br />

Figura 9 - Produção E. Realizada em junho ............................................................................................90<br />

Figura 10 - Produção U. Realizada em novembro...................................................................92<br />

Figura 11- Produção M. Realizada em novembro..................................................................94<br />

Figura 12 - Produção P. Realizada em novembro.....................................................................95<br />

Figura 13 - Produção J. Realizada em novembro.....................................................................98<br />

Figura 14 - Produção H. Realizada em novembro..................................................................102<br />

Figura 15 - Produção C. Realizada em março........................................................................109<br />

Figura 16 - Produção L. Realizada em junho.........................................................................112<br />

Figura 17 - Produção B. Realizada em março........................................................................117<br />

Figura 18 - Produção G. Realizada em junho........................................................................................116<br />

Figura 19 - Produção T. Realizada em novembro..................................................................120<br />

Figura 20 - Produção O. Realizada em junho.........................................................................122<br />

Figura 21- Produção K. Realizada em junho..........................................................................124<br />

Figura 22 - Produção N. Realizada em junho.........................................................................126


9<br />

LISTA DE TABELAS<br />

Tabela 1. Conversão aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto...................................................... 45<br />

Tabela 2. Conversão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da posição no início do vocábulo a <strong>de</strong> antes <strong>de</strong> vogal ou em<br />

início <strong>de</strong> sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal........................46<br />

Tabela 3. Conversão dos fonemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> vogal posterior ou não posterior.................47<br />

Tabela 4. Conversão <strong>de</strong> /j/ e |R| em início <strong>de</strong> sílaba, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal nasalizada, |S|, |W| e <strong>de</strong><br />

/ej/, /ow/, /aj/; conversão <strong>de</strong> /z/ <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo e <strong>de</strong> /w/ entre /k/ ou /g/ e<br />

vogal não posterior....................................................................................................................48<br />

Tabela 5. Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final <strong>de</strong> vocábulo.............................49<br />

Tabela 6. Conversão dos fonemas em final <strong>de</strong> sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo............................50<br />

Tabela 7. Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba..........................................50


10<br />

SUMÁRIO<br />

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................13<br />

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................... 18<br />

2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTO<br />

DE SENTIDO.......................................................................................................................... 18<br />

2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos<br />

norteadores <strong>de</strong> apropriação da língua escrita............................................................................19<br />

2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao<br />

pensamento <strong>de</strong> Genebra............................................................................................................23<br />

2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo...........................................26<br />

2.1.1.2 Proposta <strong>de</strong> intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo..................29<br />

2.1.3 Gênero lenda: especificida<strong>de</strong>s teóricas e possibilida<strong>de</strong>s didático-pedagógicas...............33<br />

2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO<br />

DO CÓDIGO............................................................................................................................37<br />

2.2.1 Similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita........................................................38<br />

2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong><br />

palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.................................................40<br />

2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita..........................44<br />

2.3. O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM:<br />

RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NO PROCESSO DE<br />

ALFABETIZAÇÃO.................................................................................................................52<br />

2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo <strong>de</strong> aprendizagem.......................................53<br />

2.3.2 Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal................................................................................55<br />

2.3.3 A pré-história da linguagem escrita.................................................................................57<br />

3.PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS....................................................................61<br />

3.1 TIPO DE ESTUDO.............................................................................................................61<br />

3. 1.2 CONTEXTO DA PESQUISA........................................................................................62<br />

3.2.1 A escola............................................................................................................................63<br />

3.2.2 A turma............................................................................................................................64<br />

3.2.3 A sala <strong>de</strong> aula...................................................................................................................65<br />

3.2. 4 Organização dos dados...................................................................................................66


11<br />

3.2.5 A forma <strong>de</strong> Análise dos dados........................................................................................68<br />

4 ANÁLISE DOS DADOS ....................................................................................................70<br />

4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM<br />

CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA...................70<br />

4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos <strong>de</strong> uso social da<br />

língua e com base em sequências didáticas...............................................................................71<br />

4.1.2 Aprendizagem da lenda.......................................................................................80<br />

4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda...............................................................82<br />

4.1.4 Aprendizagem das categorias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na lenda.......................................99<br />

4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento.........................103<br />

4.2.1. A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que a fala po<strong>de</strong> ser escrita.................................................................108<br />

4.2.2 A construção da noção <strong>de</strong> palavra no texto escrito.......................................................113<br />

4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas..................................................118<br />

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. ...............128<br />

REFERÊNCIAS....................................................................................................................132<br />

ANEXOS................................................................................................................................136<br />

ANEXO 1 - Produção A.........................................................................................................137<br />

ANEXO 2 - Produção B..........................................................................................................138<br />

ANEXO 3 - Produção C............................................................................................... .........139<br />

ANEXO 4 - Produção D.........................................................................................................140<br />

ANEXO 5 - Produção E......................................................................................................... 141<br />

ANEXO 6 - Produção F..........................................................................................................142<br />

ANEXO 7 - Produção G.........................................................................................................143<br />

ANEXO 8 - Produção H.........................................................................................................144<br />

ANEXO 9 - Produção I...........................................................................................................145<br />

ANEXO 10 - Produção J........................................................................................................146<br />

ANEXO 11 - Produção K.......................................................................................................148<br />

ANEXO 12 - Produção L.......................................................................................................149<br />

ANEXO 13 - Produção M......................................................................................................150<br />

ANEXO 14 - Produção N.......................................................................................................151<br />

ANEXO 15 - Produção O......................................................................................................152<br />

ANEXO 16 - Produção P.......................................................................................................153<br />

ANEXO 17 - Produção Q......................................................................................................154<br />

ANEXO 18 - Produção R.......................................................................................................155


12<br />

ANEXO 19 - Produção S.....................................................................................................156<br />

ANEXO 20 - Produção T.....................................................................................................157<br />

ANEXO 21 - Produção U.....................................................................................................158<br />

ANEXO 22 - Coacyaba- O primeiro beija-flor...............................................................159<br />

ANEXO 23 – As lágrimas da Potira.....................................................................................160<br />

ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada............................................................................161<br />

ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo........................162<br />

ANEXO 26 – Arutsãn – O sapo astucioso..............................................................................164<br />

1 INTRODUÇÃO


13<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), que propõem o ensino da língua<br />

materna por meio <strong>de</strong> gêneros, concentram-se na linguagem em uso e na competência humana<br />

<strong>de</strong> interagir com a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros presentes no cotidiano. De fato, do estudo <strong>de</strong>sses<br />

documentos po<strong>de</strong>mos inferir que na escola havia ou há um distanciamento entre as ativida<strong>de</strong>s<br />

estruturais que vinham sendo <strong>de</strong>senvolvidas; como proposta, esses mesmos documentos<br />

recomendam o uso <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s mediadas pelas ações <strong>de</strong> linguagem relacionadas às ações<br />

efetivas do cotidiano, à informação, ao exercício da reflexão. Ao propor os gêneros como<br />

objeto <strong>de</strong> ensino, esse documento, em vigor, fornece aos educadores um instrumento<br />

necessário para <strong>de</strong>senvolver a compreensão da leitura e da escrita, estimulando a prática <strong>de</strong><br />

produção escrita, foco <strong>de</strong>ste estudo.<br />

Na proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (daqui para a frente PCNs,<br />

1997), os gêneros são entendidos como formas relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados que<br />

apresentam três elementos em sua estrutura: conteúdo temático, estilo e construção<br />

composicional (BAKHTIN 1 , 1990, 1992). O documento acolhe, também, o interacionismo<br />

sociodiscursivo (BRONCKART, 1985) quanto às suas intenções comunicativas, e a noção <strong>de</strong><br />

gêneros como (mega) instrumentos <strong>de</strong> ensino-aprendizagem (SCHNEUWLY, 1993). Desse<br />

modo, é a partir da proposição segundo a qual “todo texto se organiza <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado gênero” (PCNs, 1997, p. 26) que muitas pesquisas estão sendo realizadas no<br />

Brasil (MARCUSCHI, 2002; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2000; GUIMARÃES,<br />

CAMPANI-CASTILHOS, DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2003;<br />

COELHO, 2003, 2004; BRAIT, 2007; CRISTOVÃO, 2005; LIBERALLI, 1999 entre outras).<br />

Nessa abordagem, os gêneros promovem maior contato entre o aluno e a linguagem em uso e,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, incentiva-se a produção <strong>de</strong> texto oral ou escrito nas diferentes práticas sociais.<br />

Então, é pertinente inserir os gêneros textuais, em classes <strong>de</strong> alfabetização, por aten<strong>de</strong>r à<br />

<strong>de</strong>manda <strong>de</strong> diversos textos e porque estão presentes em nossas práticas sociais.<br />

Seguindo essa linha <strong>de</strong> entendimento, aos poucos o ensino-aprendizagem vem se<br />

modificando com a introdução da noção dos gêneros sendo aplicada ao processo <strong>de</strong><br />

apropriação da leitura e da escrita. O trabalho com gêneros em sala <strong>de</strong> aula favorece as<br />

interações verbais orais e escritas, concebendo-se o indivíduo como produtor <strong>de</strong> texto; a parte<br />

estrutural da língua passa a ser vista não mais como centro da aprendizagem. O estudo focado<br />

em gêneros parece oferecer uma aproximação da língua em uso com as práticas pedagógicas,<br />

1 Aqui foi usada a tradução <strong>de</strong> 2006 <strong>de</strong> Estética da criação verbal, <strong>de</strong> Mikhail Bakhtin.


14<br />

e ter a noção sobre como os gêneros se organizam po<strong>de</strong> ajudar a internalizar ou incorporar<br />

essa organização, cujo resultado é a produção textual oral e escrita com sucesso.<br />

Este trabalho assume o pressuposto <strong>de</strong> que a língua é usada socialmente como<br />

forma <strong>de</strong> ação e <strong>de</strong> interação, levando-se em consi<strong>de</strong>ração o universo sócio-histórico-cultural<br />

da criança (VYGOTSKY, 1999) e a perspectiva do <strong>de</strong>senvolvimento da escrita<br />

(VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998). A pesquisa tem como base, também, o<br />

interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003), que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> os gêneros em qualquer<br />

ativida<strong>de</strong> humana em forma <strong>de</strong> textos, que são articulados <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s, os<br />

interesses e as condições <strong>de</strong> funcionamento das formações sociais que os produzem. Baseia-se<br />

ainda na noção <strong>de</strong> gênero para o ensino (SCHNEUWLY, 2004) e na sequência didática como<br />

intervenção metodológica (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).<br />

Embora tenham sido publicados no Brasil trabalhos usando como suporte teórico<br />

a perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY,<br />

2004; COELHO, 2003, 2004; SOUZA, 2003; MACHADO, 2005; MATÊNCIO, 1994 entre<br />

outros), <strong>de</strong>sconhecemos estudos colocando o gênero lenda como eixo norteador do processo<br />

<strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. Constatada a escassa publicação <strong>de</strong> literatura<br />

especializada sobre a escrita focando os gêneros na alfabetização, principalmente na<br />

concepção interacionista sociodiscursiva, o nosso interesse é contribuir com as pesquisas na<br />

área <strong>de</strong> alfabetização e oferecer aos alfabetizadores uma nova possibilida<strong>de</strong> para trabalhar o<br />

gênero lenda em sala <strong>de</strong> aula.<br />

Nessa perspectiva, a construção <strong>de</strong>sta pesquisa levou em consi<strong>de</strong>ração a produção<br />

<strong>de</strong> texto com foco no gênero textual lenda numa classe <strong>de</strong> alfabetização no Distrito Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Na alfabetização, a escolha <strong>de</strong>sse gênero como objeto <strong>de</strong> ensino-aprendizagem está centrada<br />

em quatro pilares: i) oferecer à criança o cenário <strong>de</strong> encantamento necessário à sua faixa etária<br />

e também possibilitar diversas interações necessárias para a aprendizagem; ii) proporcionar<br />

aos alunos o acesso a uma cultura diferente, objetivando a valorização e o respeito às<br />

múltiplas culturas e aos diversos gêneros; iii) promover momentos <strong>de</strong> aprendizagem por<br />

meio <strong>de</strong> histórias que serão lidas ou contadas em sala <strong>de</strong> aula; e iv) colaborar com publicações<br />

na área <strong>de</strong> alfabetização, tendo o gênero como objeto <strong>de</strong> ensino.<br />

Nesta dissertação se <strong>de</strong>screvem as ativida<strong>de</strong>s baseadas na sequência didática<br />

(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) aplicada numa escola pública do Distrito<br />

Fe<strong>de</strong>ral e também se analisam as produções textuais recolhidas nos meses <strong>de</strong> março, junho e<br />

novembro do ano <strong>de</strong> 2005. O presente estudo po<strong>de</strong> interessar a futuros alfabetizadores que<br />

pretendam <strong>de</strong>senvolver ativida<strong>de</strong>s baseadas no gênero (BAKHTIN, 2006; BRONCKART,


15<br />

2003; SCHNEUWLY, 2004) englobando o sistema alfabético na aprendizagem da língua<br />

escrita (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b, 2009).<br />

As produções escritas foram recolhidas em três momentos: i) a primeira amostra foi<br />

recolhida em março, com objetivo <strong>de</strong> diagnosticar como as crianças chegaram à primeira série;<br />

ii) a segunda amostra foi recolhida em junho, após a aplicação das ativida<strong>de</strong>s, com objetivo <strong>de</strong><br />

acompanhar e analisar o andamento do processo; e iii) a terceira amostra foi recolhida em<br />

novembro, com objetivo <strong>de</strong> analisar o percurso metodológico do processo <strong>de</strong> apropriação da<br />

língua. Os dados foram analisados sob duas perspectivas: o uso social da escrita e o sistema<br />

alfabético. Na primeira etapa, a ênfase recaiu inicialmente sobre o encaminhamento do<br />

processo metodológico para <strong>de</strong>senvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o<br />

processo <strong>de</strong> aplicação das ativida<strong>de</strong>s baseada na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />

NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Na segunda<br />

etapa, explicamos as ativida<strong>de</strong>s aplicadas para apropriação do sistema alfabético e analisamos,<br />

através dos dados, o percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética. Assim,<br />

concentramo-nos na observação das capacida<strong>de</strong>s individuais dos alunos e na <strong>de</strong>scrição das<br />

ativida<strong>de</strong>s aplicadas.<br />

Em relação ao gênero adotamos a proposta do interacionismo sociodiscursivo<br />

(BRONCKART, 2003), teoria na qual o gênero <strong>de</strong>ve ser visto como (mega) instrumento <strong>de</strong><br />

ensino-aprendizagem, e sua elaboração didática acontece por meio <strong>de</strong> sequências didáticas<br />

(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004), que são ativida<strong>de</strong>s organizadas <strong>de</strong> forma<br />

sistemática e aplicadas gradativamente. Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 97), “uma<br />

sequência didática tem, precisamente, a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar o aluno a dominar melhor um<br />

gênero <strong>de</strong> texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar <strong>de</strong> uma maneira mais a<strong>de</strong>quada<br />

numa dada situação <strong>de</strong> comunicação”. Para aplicar a sequência didática, <strong>de</strong>vemos realizar o<br />

planejamento pedagógico <strong>de</strong> acordo com as características do gênero a ser estudado e, no<br />

nosso caso, dirigir as ativida<strong>de</strong>s para as situações <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />

Os autores recomendam que, ao elaborar uma sequência didática, os professores<br />

obe<strong>de</strong>çam a cinco passos: no primeiro momento, apresentar a situação e esclarecer aos alunos<br />

os procedimentos que serão adotados. Em seguida, a primeira produção será <strong>de</strong>dicada a tomar<br />

conhecimento do que o aluno já sabe a respeito do gênero em estudo. Em outro momento,<br />

após a avaliação da primeira produção, a partir do diagnóstico <strong>de</strong>ssas produções, o professor<br />

seleciona as ativida<strong>de</strong>s necessárias para apropriação do gênero e <strong>de</strong> que forma serão<br />

organizadas. Na produção final, o processo <strong>de</strong> aplicação da sequência didática será avaliado<br />

como um todo, observando-se as produções dos alunos. Após a aplicação da sequência


16<br />

didática, o professor <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>bruçar-se sobre as produções e analisar o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> cada<br />

aluno, com o intuito <strong>de</strong> obter o perfil não somente do aluno, mas também da turma como um<br />

todo.<br />

Em relação ao sistema alfabético adotamos como pressupostos teóricometodológicos<br />

os estudos <strong>de</strong> Scliar-Cabral (2003a; b, 2009). Na obra Princípios do sistema<br />

alfabético do português do Brasil, a autora especifica o que ela consi<strong>de</strong>ra princípios-chave<br />

para <strong>de</strong>senvolver o processo da leitura e da escrita e também como aplicá-los<br />

metodologicamente ao português brasileiro. Scliar-Cabral aponta a falta da fundamentação<br />

teórica por parte dos profissionais como uma das principais causas para o frágil <strong>de</strong>sempenho<br />

no ensino-aprendizagem, sobretudo quanto à apropriação dos conceitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação e<br />

codificação. Segundo ela, se aplicados corretamente, esses conceitos garantem o acesso aos<br />

processos complexos <strong>de</strong> compreensão e <strong>de</strong> produção dos textos escritos, daí a importância<br />

<strong>de</strong>ste trabalho que preten<strong>de</strong> preencher tal lacuna.<br />

Enten<strong>de</strong>mos que, <strong>de</strong> maneira geral, o aluno iniciante <strong>de</strong>senvolve a habilida<strong>de</strong> da<br />

leitura e, em um segundo momento, apropria-se da escrita, ou seja, a leitura prece<strong>de</strong> a escrita<br />

e é primordial no processo <strong>de</strong> alfabetização. Este trabalho apresenta a escrita como foco <strong>de</strong><br />

investigação utilizando os gêneros textuais como metodologia <strong>de</strong> ensino-aprendizagem, e,<br />

principalmente, acolhe o gênero lenda como estratégia para apropriação do sistema alfabético.<br />

Consi<strong>de</strong>rando a alfabetização ainda um problema enfrentado por escolas e professores do<br />

nosso país, e que as abordagens predominantes atuais ainda não incorporaram plenamente a<br />

i<strong>de</strong>ia do gênero textual às práticas da leitura e da escrita, preten<strong>de</strong>-se aqui <strong>de</strong>screver a<br />

proposição <strong>de</strong> encaminhamento metodológico para o processo <strong>de</strong> apropriação da língua<br />

escrita numa classe <strong>de</strong> alfabetização, tendo a lenda como gênero-instrumento na ação<br />

didático-pedagógica. Desse objetivo geral, <strong>de</strong>sdobraram-se três objetivos específicos:<br />

i) i<strong>de</strong>ntificar características do gênero textual lenda que justificam seu uso com<br />

esse público;<br />

ii) <strong>de</strong>screver o encaminhamento procedimental das ativida<strong>de</strong>s com o gênero lenda<br />

no dia a dia da alfabetização, consi<strong>de</strong>rando a dupla via – sistêmica e textual – <strong>de</strong>sse processo;<br />

iii) i<strong>de</strong>ntificar as implicações <strong>de</strong> um encaminhamento metodológico do processo<br />

<strong>de</strong> alfabetização por meio <strong>de</strong> lendas na produção <strong>de</strong> textos.<br />

Pelo exposto, <strong>de</strong>screvemos a metodologia adotada para a apropriação da<br />

linguagem escrita, utilizando o gênero lenda numa turma <strong>de</strong> alfabetização. As aulas passaram<br />

por uma série <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> textos do gênero lenda para a apropriação da


17<br />

linguagem escrita. Isso não quer dizer que somente esse gênero foi trabalhado, mas que esse<br />

gênero serviu como ponto <strong>de</strong> partida para realizar ativida<strong>de</strong>s em sala <strong>de</strong> aula.<br />

O presente estudo divi<strong>de</strong>-se em três capítulos para apresentar as especificida<strong>de</strong>s da<br />

pesquisa: na primeira parte, a introdução. No primeiro capítulo, uma revisão teórica, iniciando<br />

com a alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos<br />

norteadores da apropriação da língua escrita na escola. Logo após essa etapa, enfatizamos os<br />

usos sociais da escrita e o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento<br />

da Escola <strong>de</strong> Genebra. Em seguida, a base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo e<br />

a sequência didática <strong>de</strong> Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) como intervenção pedagógica<br />

proposta pelo interacionismo sociodiscursivo. Revisamos ainda o gênero lenda especificando<br />

as bases teóricas. Também contemplamos a apropriação da escrita na escola: particularida<strong>de</strong>s<br />

do domínio do código, passando para similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita com<br />

base em Scliar-Cabral (2003a, 2003b) e Marcuschi (2008). A seguir esclarecemos a relação<br />

entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong> palavra, sílaba e<br />

fonema e suas implicações na alfabetização. Logo em seguida, passamos a <strong>de</strong>scrição do<br />

sistema alfabético do português no que respeita à escrita com base em Scliar-Cabral (2003a;<br />

b, 2009). Terminamos o capítulo discutindo a relação entre aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento<br />

(VYGOTSKY ,1998,1999) no processo <strong>de</strong> alfabetização. Assim sendo, revisamos o conceito<br />

<strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 1998,1999) e linguagem escrita<br />

(VYGOTSKY, 1998,1999; LURIA, 1998).<br />

No segundo capítulo, apresentamos os procedimentos metodológicos: o tipo <strong>de</strong><br />

estudo, o contexto da pesquisa: a escola; a turma; a sala <strong>de</strong> aula on<strong>de</strong> foi realizada a pesquisa.<br />

Em seguida, <strong>de</strong>stacamos a organização dos dados e, finalmente, a forma <strong>de</strong> analisá-los. No<br />

terceiro capítulo, apresentamos a análise e colocamos à disposição do leitor a reprodução e a<br />

transcrição da produção textual dos alunos para facilitar a visualização e o acompanhamento<br />

dos dados. A última parte <strong>de</strong>sta pesquisa constitui-se das consi<strong>de</strong>rações finais.<br />

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA


18<br />

Como mencionado na introdução <strong>de</strong>ste estudo, a perspectiva <strong>de</strong> trabalhar os<br />

gêneros enquanto objeto <strong>de</strong> ensino foi legitimada no Brasil após a publicação dos Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais em 1997. A partir <strong>de</strong>sse documento, novas orientações foram<br />

formuladas sobre os usos e as funções sociais da escrita. Nesse direcionamento, quanto ao uso<br />

<strong>de</strong> gêneros textuais nas práticas educativas, o gênero lenda nos parece a<strong>de</strong>quado para<br />

organizar o processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita na alfabetização. Neste trabalho a<br />

alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da escrita, visando às práticas<br />

sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma receita culinária; e além das<br />

práticas cotidianas, existem ainda as práticas acadêmicas: artigos científicos, monografias,<br />

dissertações e outros, don<strong>de</strong> se conlui que as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita serão requisitadas em<br />

maior ou menor grau <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do ambiente em que o sujeito vive e das<br />

ativida<strong>de</strong>s que exerce.<br />

Neste capítulo, apresentamos a revisão das teorias que serviram <strong>de</strong> base para a<br />

sustentação da pesquisa.<br />

2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTOS<br />

DE SENTIDO<br />

Durante o processo <strong>de</strong> alfabetização, apresentar gêneros diversificados à criança<br />

po<strong>de</strong> constituir-se numa excelente estratégia <strong>de</strong> ensino. Essa varieda<strong>de</strong> é fundamental para<br />

que a criança entenda os diferentes objetivos <strong>de</strong> um texto escrito e seu uso nas práticas<br />

sociais. Enten<strong>de</strong>mos que, a criança em processo <strong>de</strong> alfabetização <strong>de</strong>ve ter acesso aos dois<br />

processos - leitura e escrita - pois sem harmonizá-los, a alfabetização po<strong>de</strong> ficar seriamente<br />

comprometida, porque eles estão interligados: um complementa o outro. Como já se viu<br />

aqui, o processo <strong>de</strong> aprendizagem da leitura não faz parte <strong>de</strong>sta pesquisa, mas reconhecemos<br />

a sua importância em turmas <strong>de</strong> alfabetização.<br />

2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos<br />

norteadores da apropriação da língua escrita na escola


19<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1997) têm sido frequentemente o<br />

tema <strong>de</strong> discussões sobre as práticas <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. O foco <strong>de</strong> interesse é a<br />

concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs <strong>de</strong> Língua Portuguesa do<br />

Ensino Fundamental. O nosso trabalho se refere ao ensino-aprendizagem da escrita,<br />

adaptando ativida<strong>de</strong>s linguísticas fundamentadas na teoria dos gêneros textuais para orientar<br />

as práticas <strong>de</strong> ensino. Na primeira parte <strong>de</strong>sta seção se discute o que esse documento traz<br />

sobre gêneros textuais e suas implicações para o processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. Na<br />

sequência, discute-se o Pró-letramento, outro documento que contribui com as relações entre<br />

a teoria dos gêneros textuais e o sistema alfabético.<br />

Um dos objetivos do ensino <strong>de</strong> Língua Portuguesa é promover a análise e a reflexão<br />

sobre a língua em uso, introduzindo progressivamente os elementos <strong>de</strong> natureza<br />

metalinguística (PCNs, 1997, p. 38-39). Aqui se propõe discutir a linguagem sob dois<br />

enfoques: a reflexão sobre o seu uso e a <strong>de</strong>scrição dos seus elementos linguísticos numa classe<br />

<strong>de</strong> alfabetização. Na primeira, as ativida<strong>de</strong>s estão baseadas em situações didáticas que<br />

possibilitem a reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelo produtor/autor do texto, e<br />

sua realização exige um planejamento especializado nas especificida<strong>de</strong>s do gênero a ser<br />

trabalhado. Na segunda, as ativida<strong>de</strong>s se <strong>de</strong>senvolvem com vistas a possibilitar ao aluno o<br />

levantamento <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aspectos da língua e a sistematização e a classificação <strong>de</strong><br />

suas características, abordagem na qual a produção textual assume a posição <strong>de</strong> reflexão sobre<br />

a língua. Os professores <strong>de</strong>vem apresentar ativida<strong>de</strong>s que possibilitem a aproximação da<br />

criança com diferentes formas <strong>de</strong> realização da linguagem na socieda<strong>de</strong>, reconhecendo a sua<br />

singularida<strong>de</strong> e sua composição.<br />

Basicamente, os PCNs (1997) se fundamentam na teoria <strong>de</strong> Bakhtin (1992, 1997),<br />

no que se refere aos elementos que constituem o enunciado: conteúdo temático, construção<br />

composicional e estilo; e em Bronckart (1996) e seus colaboradores da Escola <strong>de</strong> Genebra, em<br />

relação à ativida<strong>de</strong> social, especialmente sobre o comportamento dos gêneros nas diversas<br />

situações <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> linguagem, correlacionando-os às práticas <strong>de</strong> ensino em sala <strong>de</strong> aula.<br />

Esse documento também toma como ponto <strong>de</strong> partida o entendimento <strong>de</strong> texto e contexto com<br />

vista ao funcionamento da linguagem em situação <strong>de</strong> uso, consi<strong>de</strong>rando a interação professoraluno<br />

em sala <strong>de</strong> aula como indispensável ao <strong>de</strong>senvolvimento da aprendizagem<br />

(VYGOTSKY, 1999).<br />

A proposta dos PCNs (1997) é que o aluno aprenda a produzir e a interpretar textos,<br />

proporcionando-lhe o conhecimento necessário para interagir produtivamente com seus pares<br />

em diferentes ativida<strong>de</strong>s discursivas. Essas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas processos


20<br />

ativos, e a concepção <strong>de</strong> linguagem como uma ação dirigida com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> facilitar a<br />

comunicação que se realiza em diferentes grupos sociais. Assim, as intenções comunicativas<br />

surgem do entendimento <strong>de</strong> que os indivíduos se organizam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado gênero<br />

movidos pela ativida<strong>de</strong> social; no presente caso, em sala <strong>de</strong> aula, a interação professor-aluno<br />

se efetiva concretamente pelo uso dos gêneros textuais nas práticas escolares.<br />

Nesse sentido, apren<strong>de</strong>r a refletir sobre a língua é ter em conta o contexto <strong>de</strong> uso e<br />

as condições <strong>de</strong> produção, planejando situações didáticas que possibilitem a reflexão sob os<br />

diferentes enfoques <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. O documento sugere ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

metalinguagem que possibilitem ao aluno o levantamento <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>s, a reflexão das<br />

condições <strong>de</strong> produção do discurso e as limitações estabelecidas pelo gênero e pelo suporte 2 .<br />

Dessa maneira, recomenda o planejamento englobando situações didáticas que possibilitem o<br />

entendimento do texto construído socialmente e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> análise linguística, isto é, o<br />

ensino <strong>de</strong> produção textual com base nos diversos gêneros textuais que estão presentes na<br />

vida cotidiana do aluno.<br />

Outro documento disponível é o Pró-letramento, emerso da análise dos dados 3 do<br />

Sistema Nacional <strong>de</strong> Educação Básica (SAEB), que <strong>de</strong>monstrou o baixo <strong>de</strong>sempenho das<br />

escolas em relação ao ensino <strong>de</strong> Língua Portuguesa e Matemática nas séries iniciais. Pelos<br />

dados apresentados, observa-se que apenas 4,8% dos alunos que cursavam a 4ª série no ano <strong>de</strong><br />

2003 foram consi<strong>de</strong>rados leitores com habilida<strong>de</strong>s consolidadas; estabeleceram a relação <strong>de</strong><br />

causa e consequência em textos narrativos mais longos; reconheceram o efeito <strong>de</strong> sentido<br />

<strong>de</strong>corrente do uso da pontuação; distinguiram efeitos <strong>de</strong> humor mais sutis; i<strong>de</strong>ntificaram a<br />

finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um texto com base em pistas textuais mais elaboradas e <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>ram relação<br />

<strong>de</strong> causa e conseqüência implícita no texto, além <strong>de</strong> outras habilida<strong>de</strong>s. Em relação à<br />

matemática o resultado não foi diferente: embora na nossa prática essa disciplina seja olhada<br />

com muito cuidado, aqui foge ao nosso objetivo. O Programa se constitui <strong>de</strong> dois módulos:<br />

um <strong>de</strong>dicado à alfabetização e linguagem e o outro à matemática.<br />

Esse documento parte da concepção <strong>de</strong> que a língua é um sistema situado na<br />

interação verbal e se realiza através <strong>de</strong> textos, ou discursos, falados ou escritos, privilegiando<br />

um trabalho organizado em torno do uso da língua que possibilite a reflexão sobre as<br />

2<br />

Enten<strong>de</strong>mos aqui que suporte <strong>de</strong> um gênero é uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e<br />

mostra um texto, <strong>de</strong> acordo com Marcuschi (2008, p. 174).<br />

3 Disponível em: . Acesso em 16 jun.<br />

2010.


21<br />

diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego da língua em vários contextos (BRASIL, PRÓ-<br />

LETRAMENTO, 2007, p.11. FASCÍCULO 1).<br />

Em tal sentido, a proposta visa a trabalhar conhecimentos, capacida<strong>de</strong>s e atitu<strong>de</strong>s<br />

envolvidas na compreensão dos usos e funções sociais da escrita, envolvendo conhecimentos<br />

específicos sobre o sistema alfabético em relação aos elementos do sistema fonológico e às<br />

suas inter-relações, implicando o manuseio <strong>de</strong> diversos gêneros presentes em diferentes<br />

suportes (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />

De acordo com o documento, para <strong>de</strong>senvolver a apropriação do sistema <strong>de</strong> escrita,<br />

<strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>senvolver as capacida<strong>de</strong>s, os conhecimentos e as atitu<strong>de</strong>s previstas para o primeiro,<br />

o segundo e o terceiro ano do ensino fundamental. No primeiro fascículo a discussão recai<br />

sobre a escrita e a leitura. Em relação à escrita, que nos interessa nesta dissertação, esse<br />

fascículo se organiza em torno <strong>de</strong> doze capacida<strong>de</strong>s linguísticas para <strong>de</strong>senvolver a<br />

apropriação da escrita nos três primeiros anos do ensino fundamental. Resumimos a seguir<br />

essas capacida<strong>de</strong>s.<br />

A primeira capacida<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong> a diferenciação entre a escrita alfabética e<br />

outras formas gráficas, cujo reconhecimento implica distinguir letras <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos, letras <strong>de</strong><br />

rabiscos, letras <strong>de</strong> números e letras <strong>de</strong> símbolos gráficos, como setas, asteriscos, sinais<br />

matemáticos etc. A segunda capacida<strong>de</strong> diz respeito ao domínio das conversões gráficas da<br />

nossa escrita que se realiza <strong>de</strong> cima para baixo e da esquerda para direita, indicando a<br />

<strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> palavras (espaço em branco) e frases (pontuação). A terceira capacida<strong>de</strong><br />

compreen<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> orientar e alinhar a escrita da língua portuguesa, capacida<strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>ve ser iniciada no primeiro ano do ensino fundamental, ajudando o aluno a diferenciar letras<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos.<br />

A quarta capacida<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong> a função <strong>de</strong> segmentação dos espaços em branco<br />

e da pontuação <strong>de</strong> final <strong>de</strong> frase para compreen<strong>de</strong>r que fala e escrita acontecem <strong>de</strong> maneiras<br />

diferentes, uma vez que fala e escrita são produzidas em sequência linear. A quinta<br />

capacida<strong>de</strong> reconhece que uma forma <strong>de</strong> introduzir as unida<strong>de</strong>s fonoaudiológicas como<br />

sílabas, rimas e terminações <strong>de</strong> palavra em sala <strong>de</strong> aula é por meio <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>iras como<br />

adivinhações, travalínguas e cantigas <strong>de</strong> roda, entre outras, focalizando primeiramente as<br />

unida<strong>de</strong>s fonológicas com as quais os alunos já são capazes <strong>de</strong> lidar. A finalida<strong>de</strong> da sexta<br />

capacida<strong>de</strong> é conhecer o alfabeto, o que se faz apresentando-o aos alunos e promovendo<br />

situações que os levem a <strong>de</strong>scobrir que se trata <strong>de</strong> um conjunto estável <strong>de</strong> símbolos; sugerem<br />

ainda que se comece a familiarizá-los com a sua natureza e o seu funcionamento logo no<br />

primeiro ano, aos seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. O propósito da sétima capacida<strong>de</strong> é compreen<strong>de</strong>r a


22<br />

categorização gráfica e funcional das letras e implica compreen<strong>de</strong>r que elas variam na forma<br />

gráfica e no valor funcional, levando o aluno a perceber que apesar das diferentes formas<br />

gráficas (maiúsculas, minúsculas, imprensa, cursiva) a letra permanece a mesma e exerce a<br />

mesma função na escrita.<br />

O objetivo da oitava capacida<strong>de</strong> é promover o conhecimento e a utilização <strong>de</strong><br />

diferentes tipos <strong>de</strong> letras (<strong>de</strong> fôrma e cursiva), levando o aluno a traçar e a dominar as<br />

diferentes formas <strong>de</strong> registro alfabético. A intenção da nona capacida<strong>de</strong> é compreen<strong>de</strong>r a<br />

natureza alfabética do sistema <strong>de</strong> escrita, ou seja, diz respeito à natureza da relação entre a<br />

escrita e a ca<strong>de</strong>ia sonora das palavras que as crianças tentam escrever ou ler. A décima<br />

capacida<strong>de</strong> nos chama a atenção para o domínio das relações entre grafemas e fonemas como<br />

fundamental para apropriar-se do sistema alfabético. Essas regras <strong>de</strong> correspondência são<br />

variadas. Há poucos casos <strong>de</strong> relação entre fonemas e grafemas que não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do<br />

contexto fonético, e nem sempre a relação entre fonema e grafema é biunívoca.<br />

A décima primeira capacida<strong>de</strong> diz respeito ao domínio das regularida<strong>de</strong>s<br />

ortográficas sistematizadas em sala <strong>de</strong> aula e recomenda o uso do critério <strong>de</strong> progressão,<br />

partindo do mais simples para o mais complexo, isto é, iniciando com os casos em que os<br />

valores atribuídos aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do contexto para os casos em que os valores<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do contexto. Enfim, a décima segunda refere-se às dificulda<strong>de</strong>s do domínio do<br />

sistema ortográfico em relação aos casos em que os valores <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da posição e do<br />

contexto fonético. Aliás, nesta dissertação as três últimas capacida<strong>de</strong>s foram explanadas<br />

extensivamente na seção <strong>de</strong> apropriação da escrita na escola: particularida<strong>de</strong>s do domínio do<br />

código.<br />

Esses documentos sugerem ativida<strong>de</strong>s que possibilitem ao aluno apren<strong>de</strong>r a<br />

refletir sobre a língua, tendo em conta o contexto <strong>de</strong> uso e as condições <strong>de</strong> produção. As<br />

produções textuais nessas abordagens assumem a posição <strong>de</strong> reflexão sobre a língua. Cabe aos<br />

professores apresentar ativida<strong>de</strong>s que possibilitem a aproximação da criança com diferentes<br />

formas <strong>de</strong> realizar a linguagem na socieda<strong>de</strong>, reconhecendo a sua singularida<strong>de</strong> e as suas<br />

proprieda<strong>de</strong>s compositivas. A nosso ver, os textos produzidos pelos alunos <strong>de</strong>vem funcionar<br />

como ponto <strong>de</strong> partida para trabalhar a linguagem em uso e os elementos metalinguísticos,<br />

proporcionando-lhes o domínio da escrita da língua.


23<br />

2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao<br />

pensamento da Escola <strong>de</strong> Genebra<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais têm como ponto <strong>de</strong> partida a concepção do<br />

gênero. O documento traz como proposta <strong>de</strong> Língua Portuguesa do Ensino Fundamental a<br />

apresentação <strong>de</strong> gêneros diversificados como estratégia <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. A<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa varieda<strong>de</strong> é fundamental para que a criança entenda os diferentes objetivos<br />

<strong>de</strong> um texto escrito e seu uso nas práticas sociais. Na escola, especificamente na alfabetização,<br />

encontramos o conto <strong>de</strong> fada, a fábula, a anedota, a piada, o poema, a cruzadinha, a parlenda,<br />

o provérbio, a crônica, a receita, a história em quadrinho, a poesia, a lenda, o relatório etc.<br />

Os gêneros são usados e produzidos <strong>de</strong> acordo com a situação. Baseando-nos em<br />

autores (BAKHTIN, 2006; BRONCKART, 2003; MARCUSCHI, 2002; SCHENEUWLY,<br />

2004; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS,<br />

DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2002; COELHO, 2003, 2004 entre<br />

outros) que conceituam os gêneros e esclarecem sobre suas especificida<strong>de</strong>s, levamos os<br />

gêneros para uma classe <strong>de</strong> alfabetização por enten<strong>de</strong>r que eles estão presentes em nossas<br />

práticas escolares in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do tratamento que se lhes dê. A respeito da<br />

alfabetização, po<strong>de</strong>mos dizer que a compreensão da língua <strong>de</strong>corre não somente das regras<br />

gramaticais, mas <strong>de</strong> diversos contextos linguísticos que compõem o ambiente escolar. Em<br />

outras palavras, o trabalho baseado em gêneros po<strong>de</strong> levar o aluno a compreen<strong>de</strong>r e a<br />

reconhecer as práticas <strong>de</strong> linguagem em uso no seu cotidiano.<br />

A teoria <strong>de</strong> Bakhtin (2006) sustenta que todos os campos da ativida<strong>de</strong> humana em<br />

situação <strong>de</strong> interação estão ligados ao uso da linguagem. Nessa perspectiva, tais situações <strong>de</strong><br />

interação entre os falantes são construídas historicamente; organizam-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certo<br />

domínio social e efetivam-se no centro <strong>de</strong>sses domínios pela necessida<strong>de</strong> do uso da<br />

linguagem, <strong>de</strong> forma que cada enunciado é individual, mas cada campo <strong>de</strong> utilização da<br />

língua elabora seus tipos relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados, os gêneros do discurso<br />

(BAKHTIN, 2006).<br />

Em Os gêneros do discurso, Bakthin (2006) se <strong>de</strong>bruça sobre a questão dos<br />

gêneros. Na sua teoria, os gêneros referem-se à diversida<strong>de</strong> e à heterogeneida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>correm<br />

das práticas sociais nas diferentes esferas sociais e se situam como tipos relativamente<br />

estáveis <strong>de</strong> enunciados, constituídos nos domínios: social, discursivo e dialógico. Para o autor,


24<br />

há uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros circulando na socieda<strong>de</strong>: no trabalho, nas ações cotidianas, na<br />

arte etc. Em seu domínio <strong>de</strong> circulação, po<strong>de</strong>-se dizer que o gênero é insubstituível e alguns<br />

casos são exclusivos, como fichas <strong>de</strong> matrículas <strong>de</strong> aluno, boletim, <strong>de</strong>claração provisória <strong>de</strong><br />

matrícula etc., gêneros que circulam exclusivamente em secretarias <strong>de</strong> escolas. Dessa forma,<br />

os gêneros foram historicamente construídos para aten<strong>de</strong>r necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s<br />

socioculturais e <strong>de</strong> inovações tecnológicas num domínio específico. Já no campo acadêmico,<br />

uma tese <strong>de</strong> doutorado, um artigo científico, por exemplo, exige do produtor e do leitor certo<br />

grau <strong>de</strong> conhecimento sobre o assunto que será tratado. Cotidianamente circulam por nossas<br />

mãos diversos gêneros, como receita culinária, conta <strong>de</strong> luz, <strong>de</strong> água, <strong>de</strong> telefone; bilhete <strong>de</strong><br />

loteria, bilhetes em geral, convites os mais diversos, cartas pessoais etc.<br />

Para Bakhtin (2006) esses gêneros circulam socialmente e se organizam em<br />

primários e secundários. Os gêneros primários se estabelecem no campo da comunicação<br />

imediata, no cotidiano (conversas, bilhetes, relatos, cartas). Os gêneros secundários <strong>de</strong>correm<br />

da comunicação cultural mais elaborada (romances, teses, livros), e são organizados e<br />

mediados pela escrita. Para o autor, os gêneros secundários <strong>de</strong>rivam dos gêneros primários,<br />

transformam-se e incorporam a sua estrutura e, ao adquirir um caráter especial, per<strong>de</strong>m sua<br />

ligação imediata com a realida<strong>de</strong> concreta e os enunciados reais alheios. Por exemplo: o<br />

romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta conservam sua forma e seu significado<br />

cotidiano apenas no plano do conteúdo, isto é, o romance integrado à realida<strong>de</strong> é concebido<br />

como evento literário-artístico e não como evento da vida cotidiana (BAKHTIN, 2006, p.<br />

263).<br />

O conceito <strong>de</strong> interação social é basilar nessa concepção, sustentando que a<br />

linguagem se situa nas relações sociais estabelecidas e mantidas por uso dos gêneros do<br />

discurso. Ou seja, a língua nos diferentes domínios da ativida<strong>de</strong> social, postura que coloca<br />

Bakhtin e colaboradores em oposição ao subjetivismo i<strong>de</strong>alista e ao objetivismo abstrato,<br />

tendências amparadas no início do século XX pela filosofia e pela linguística da época. Na<br />

concepção bakhtiniana, a interação verbal se constrói entre os indivíduos <strong>de</strong> acordo com a<br />

posição social que ocupam e é organizada pelos meios sociais. Dessas interações serão<br />

consi<strong>de</strong>radas as respostas (orais ou escritas) geradas tanto por parte do locutor quanto por<br />

parte do interlocutor, daí ser imprescindível estabelecer uma sequência lógica entre os<br />

enunciados para que se possa produzir sentido e compreensão do papel social <strong>de</strong> cada sujeito.<br />

De acordo com o autor, a linguagem se constitui nas práticas sociais e não por orações<br />

isoladas nem por palavras soltas; falar por meio <strong>de</strong> enunciado é compreen<strong>de</strong>r aquilo que foi


25<br />

dito ou escrito, e, portanto, não basta obe<strong>de</strong>cer a um padrão gramatical correto, é preciso<br />

produzir sentido entre locutor e interlocutor.<br />

Tal como Bakhtin, Bronckart (2003) rejeita as teorias que resultam das teorias<br />

subjetivistas, concebendo a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> textualização como essencial em sua teoria ao<br />

<strong>de</strong>clarar as condições <strong>de</strong> produção textual e classificação dos gêneros como parte do<br />

funcionamento sócio-histórico. Para o autor, toda produção linguística é uma “ação situada”<br />

particular movida por indivíduos socialmente envolvidos, assumindo que as únicas<br />

“manifestações empiricamente observáveis das ações <strong>de</strong> linguagem humanas” são os textos<br />

ou discursos que se apresentam como formas <strong>de</strong> ação social (BRONCKART, 2003, p. 13-14).<br />

E complementa:<br />

Os gêneros não têm o mesmo estatuto dos textos. Estes são um produto da<br />

ação <strong>de</strong> linguagem, enquanto os primeiros são ferramentas para sua<br />

realização, em processo <strong>de</strong> transformação contínua, por meio <strong>de</strong>ssas mesmas<br />

ações. O texto é produto da dialética que se instaura entre representações<br />

sobre os contextos <strong>de</strong> ação e representações relativas às línguas e aos gêneros<br />

<strong>de</strong> texto. Todo texto pertence a um gênero, isto é, seu exemplar<br />

(BRONCKART, 2003, p.108).<br />

Bronckart (2003, p.103) afirma ainda que "a apropriação dos gêneros é um<br />

mecanismo fundamental <strong>de</strong> socialização, <strong>de</strong> inserção prática nas ativida<strong>de</strong>s comunicativas<br />

humanas". Nesse sentido, conhecer um gênero <strong>de</strong> texto também é conhecer suas condições <strong>de</strong><br />

uso, sua pertinência, sua eficácia ou, <strong>de</strong> maneira mais geral, sua a<strong>de</strong>quação em relação às<br />

características <strong>de</strong>sse contexto social (BRONCKART, 2003, grifo do autor), reforçando a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> que a interação social <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do uso <strong>de</strong>sses gêneros; assim, eles se fundam em ações<br />

coletivas e se realizam nas ativida<strong>de</strong>s comunicativas do dia a dia.<br />

Bronckart <strong>de</strong>clara:<br />

Ao consi<strong>de</strong>rar os gêneros nas diversas situações <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> linguagem,<br />

[...] a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem é, ao mesmo tempo, o lugar e o meio das interações<br />

sociais constitutivas <strong>de</strong> qualquer conhecimento humano; é nessa prática que se<br />

elaboram os mundos discursivos que organizam e semiotizam as representações<br />

sociais do mundo; é na intertextualida<strong>de</strong> resultante <strong>de</strong>ssa prática que se conservam e<br />

se reproduzem os conhecimentos coletivos e é na confrontação com essa<br />

intertextualida<strong>de</strong> sócio-histórica que se elaboram, por apropriação e interiorização, as<br />

representações <strong>de</strong> que dispõe todo agente humano, representações in fine individuais,<br />

no sentido <strong>de</strong> que se organizam em função das características específicas do percurso<br />

experiencial <strong>de</strong> cada agente, erigindo-o, <strong>de</strong>sse modo, em uma pessoa irredutivelmente<br />

singular (BRONCKART, 2003, p. 338).<br />

Com base nesses autores po<strong>de</strong>mos dizer que o texto expressa sentimentos e i<strong>de</strong>ias,<br />

sendo um espaço para a reflexão <strong>de</strong> valores e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias mediado pela ação <strong>de</strong> linguagem<br />

oral ou escrita e são concretizadas em forma <strong>de</strong> textos correlacionados às práticas escolares.


26<br />

Rompe-se o paradigma que tomava como unida<strong>de</strong>s básicas o processo <strong>de</strong> ensino com<br />

ativida<strong>de</strong>s para analisar letras, fonemas, sílabas, palavras e frases, que, <strong>de</strong>scontextualizados,<br />

são <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> compreensão. Mais <strong>de</strong>talhes da teoria interacionista<br />

sociodiscursiva encontram-se na próxima seção.<br />

2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo<br />

A teoria do interacionismo sociodiscursivo <strong>de</strong> Bronckart (2003), Schneuwly, Dolz<br />

e Noverraz (2004), da Escola <strong>de</strong> Genebra, tem centralizado seus estudos nas interações sociais<br />

e nas formas linguísticas pelas quais a língua materna se organiza. O tema em questão tem<br />

<strong>de</strong>spertado o interesse <strong>de</strong> muitos pesquisadores brasileiros (ROJO, 2006; GUIMARÃES,<br />

2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS, DREY 2008; BRAIT, 2007; MATÊNCIO,<br />

1994; MACHADO, 2005; SOUZA, 2003; COELHO, 2003, 2004; BALTAR, 2007 entre<br />

outros).<br />

Muitas contribuições no campo da linguagem têm sido produzidas em parcerias,<br />

como grupos <strong>de</strong> pesquisa, teses, dissertações, artigos, livros, monografias, e, sobretudo,<br />

materiais didáticos com a intenção <strong>de</strong> intervir metodologicamente no ensino da língua<br />

materna e das estrangeiras, proporcionando formação aos professores fundamentada no<br />

interacionismo sociodiscursivo.<br />

Consi<strong>de</strong>rando o exposto, po<strong>de</strong>mos dizer que o interacionismo sociodiscursivo<br />

vem expandindo-se ao longo da última década. Neste trabalho, essa corrente teórica está<br />

sendo privilegiada. Ela concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo e que é<br />

constantemente modificado pela ação dos sujeitos, além <strong>de</strong> manifestar o respeito pelo diversos<br />

falares existentes em uma comunida<strong>de</strong> e conceber a escola como lugar <strong>de</strong> excelência para<br />

<strong>de</strong>senvolver as competências da leitura e da escrita.<br />

O interacionismo sociodiscursivo, proposta teórica e metodológica <strong>de</strong>fendida por<br />

Bronckart (2003) em associação com Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) para o ensino <strong>de</strong><br />

gênero congrega diferentes abordagens teóricas: Vygotsky (1972, 1999) no que diz respeito à<br />

abordagem psicológica; em Habermas (1987) na questão do agir comunicativo; por Bakhtin<br />

(1978; 1984), em relação à interação verbal, sobretudo à análise dos gêneros e tipos textuais.


27<br />

Apoia-se ainda nas bases filosóficas <strong>de</strong> Spinoza (1964, 1965) em relação ao agir humano; em<br />

Foucault (1969) na análise das formações sociais, e em Wittgenstein (1961, 1975) quanto ao<br />

jogo <strong>de</strong> linguagem como produto da interação social. Convém salientar que não é objetivo<br />

<strong>de</strong>ste trabalho <strong>de</strong>talhar tais influências, mas buscar apoio nas premissas do interacionismo<br />

sociodiscursivo em relação à ação comunicativa dos indivíduos em interação dialógica.<br />

Bronckart (2003) ensina que interagimos socialmente mediados pela ação da<br />

linguagem. A tese central que norteia o interacionismo sociodiscursivo é que “[...] a ação<br />

constitui o resultado da apropriação, pelo organismo humano, das proprieda<strong>de</strong>s da ativida<strong>de</strong><br />

social mediada pela linguagem” (p. 42). Bronckart sustenta, ainda, que toda língua faz parte<br />

<strong>de</strong> um sistema relativamente estável; <strong>de</strong>ssa forma, essa corrente estimula o estudo do sistema<br />

da língua como um procedimento legítimo e essencial para compreen<strong>de</strong>r o contexto <strong>de</strong><br />

utilização. Ao mesmo tempo, essa concepção concentra-se na análise da organização e do<br />

funcionamento dos textos usados e produzidos numa comunida<strong>de</strong> em ação <strong>de</strong> linguagem.<br />

Para o autor, o texto é entendido como qualquer produção <strong>de</strong> linguagem situada,<br />

acabada e autossuficiente, e obe<strong>de</strong>ce a duas condições: condição interna e condição externa.<br />

Pela condição interna, o autor examina a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> combinação <strong>de</strong> frases mais ou menos<br />

reguladas pelos mecanismos <strong>de</strong> textualização e mecanismos enunciativos, cuja função é<br />

assegurar ao texto produzido um efeito <strong>de</strong> coerência sobre o <strong>de</strong>stinatário. Já pela na condição<br />

externa <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> texto, o autor adota as concepções <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> texto e tipo <strong>de</strong><br />

discurso. Os textos são produzidos <strong>de</strong> acordo com as necessida<strong>de</strong>s e as condições sociais do<br />

meio dos quais são produzidos (BRONCKART, 2003, p.71). Mesmo que não <strong>de</strong>talhemos as<br />

condições internas dos textos, nós as reconhecemos como parte das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apropriação<br />

do código escrito. Neste trabalho, interessa-nos a segunda condição proposta por Bronckart<br />

(2003): especificamente, as concepções <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> texto.<br />

Por essa concepção todo exemplar <strong>de</strong> texto observável po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como<br />

pertencente a <strong>de</strong>terminado gênero. Além disso, o autor aponta alguns problemas que surgem<br />

da dilatação <strong>de</strong>sse conceito: primeiramente, a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> critérios utilizados para <strong>de</strong>finir<br />

um gênero. Outra dificulda<strong>de</strong> indicada pelo autor remete a Bakhtin (2006): alguns gêneros se<br />

modificam, gêneros novos aparecem e ainda há alguns gêneros que <strong>de</strong>saparecem com o<br />

tempo. Devido a tal magnitu<strong>de</strong>, existem espécies <strong>de</strong> textos que sequer foram nomeadas, em<br />

termos <strong>de</strong> gênero, levando-nos a inferir que a ampla capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> circulação dos gêneros<br />

dificulta a <strong>de</strong>marcação do seu limite. Po<strong>de</strong>mos dizer que, <strong>de</strong>vido à complexida<strong>de</strong> do conceito,<br />

os gêneros são correlacionados com as ações <strong>de</strong> linguagem e as formas linguísticas. Dessa<br />

correspondência entre a linguagem e as formas linguísticas fundam-se os chamados tipos <strong>de</strong>


28<br />

discurso. Para <strong>de</strong>linear o conceito <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> discurso, Bronckart (2003) apoia-se em<br />

Benveniste (1966), Weinrich (1973) e Simonin-Grumbach (1975).<br />

Os tipos <strong>de</strong> discurso são os segmentos que compõem um texto e realizam-se na<br />

arquitetura interna, nas interações verbais orais e/ou nas interações verbais escritas, e<br />

materializam-se linguisticamente em mundos discursivos que, articulados aos mecanismos <strong>de</strong><br />

textualização e <strong>de</strong> enunciação, asseguram a unicida<strong>de</strong> textual.<br />

A concepção interacionista sociodiscursiva (BRONCKART, 2003, p. 151)<br />

sustenta a construção <strong>de</strong> dois mundos: o mundo ordinário, representado pelos agentes<br />

humanos, e os mundos virtuais, criados para dar conta da complexida<strong>de</strong> das ações <strong>de</strong><br />

linguagem, chamados <strong>de</strong> “mundos discursivos”. Os mundos discursivos operam em dois<br />

gran<strong>de</strong>s eixos: na or<strong>de</strong>m do expor e na or<strong>de</strong>m do narrar. Na or<strong>de</strong>m do expor, temos o “mundo<br />

do expor implicado” (discurso interativo) e o “mundo <strong>de</strong> expor autônomo” (discurso teórico),<br />

enquanto no mundo do narrar encontramos: “o mundo do narrar implicado” (relato interativo)<br />

e o mundo do narrar autônomo (narração). A configuração e a organização <strong>de</strong>sses mundos<br />

discursivos passam do nível psicológico para as operações concretas que são <strong>de</strong>terminadas<br />

pelo conteúdo temático e pelas ações <strong>de</strong> linguagem. Além disso, Bronckart (2003) i<strong>de</strong>ntifica o<br />

tipo misto interativo teórico, que aparece nas exposições orais, e o tipo misto narrativoteórico,<br />

encontrado normalmente nas obras históricas e em monografias científicas. O autor<br />

organiza o mundo discursivo da seguinte maneira:<br />

Coor<strong>de</strong>nadas gerais dos mundos<br />

Relação ao ato<br />

<strong>de</strong> produção<br />

Implicação<br />

Conjunção<br />

EXPOR<br />

Disjunção<br />

NARRAR<br />

Discurso interativo Relato interativo<br />

Autonomia Discurso teórico Narração<br />

Figura 1- Coor<strong>de</strong>nadas gerais dos mundos discursivos.<br />

Fonte: BRONCKART, Jean Paul. Ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Linguagem, textos e discursos: por um Interacionismo<br />

sóciodiscursivo. São Paulo: Educ, 2003, p. 157.<br />

Para Bronckart (2003), o mundo discursivo da or<strong>de</strong>m do narrar é situado num<br />

“outro lugar”, no qual distingue dois polos: o narrar realista e o narrar ficcional. No primeiro,<br />

o conteúdo po<strong>de</strong> ser avaliado e interpretado <strong>de</strong> acordo com os critérios <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> do mundo<br />

real. Por outro lado, no narrar ficcional, o conteúdo po<strong>de</strong> ser avaliado parcialmente. Além<br />

disso, a or<strong>de</strong>m do narrar, como visualizado na figura acima, opera em duas frentes, a saber:<br />

mundo do narrar implicado e mundo do narrar autônomo. No mundo do narrar implicado<br />

predomina o relato interativo, e no mundo do narrar autônomo, a ênfase recai sobre a


29<br />

narração. De acordo com a proposta do autor, o gênero lenda se encaixa no mundo discursivo<br />

da or<strong>de</strong>m do narrar ficcional.<br />

2.1.2.2 Proposta <strong>de</strong> intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo<br />

O grupo <strong>de</strong> Genebra <strong>de</strong>senvolve estudos sobre ensino e aprendizagem da língua:<br />

discute temas centrais sobre textos, discursos e traz como proposta a sequência didática como<br />

estratégia para <strong>de</strong>senvolver os gêneros no ensino-aprendizagem.<br />

Para Schneuwly (2004), o gênero é entendido, em relação à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

linguagem, como uma ferramenta semiótica complexa em forma <strong>de</strong> linguagem oral ou escrita,<br />

que nos permite produzir e compreen<strong>de</strong>r textos. Dessa maneira, para Schneuwly e Dolz<br />

(2004), os gêneros são (mega) instrumentos elaborados e construídos a partir <strong>de</strong> um contexto<br />

sócio-histórico para aten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>terminada situação, e à medida que esses instrumentos são<br />

reinventados, refletem diretamente no comportamento humano. O uso a<strong>de</strong>quado do<br />

instrumento está no domínio humano, e à medida que o homem ressignifica a sua utilização,<br />

torna-se mediador <strong>de</strong>ssa prática.<br />

Schneuwly (2004), como outros autores que se apoiam na concepção <strong>de</strong> Bakhtin,<br />

consi<strong>de</strong>ra os gêneros como enunciados relativamente estáveis, com conteúdo temático, estilo<br />

e construção composicional. Para i<strong>de</strong>ntificar um gênero, o autor consi<strong>de</strong>ra três dimensões: a)<br />

o reconhecimento do que foi dito e o que foi feito implica a escolha do gênero; b) a sua<br />

estrutura será <strong>de</strong>finida pelo plano comunicacional; c) as marcas da posição enunciativa do<br />

enunciador, sequência textual, tipos <strong>de</strong> discursos, marcas linguísticas do texto e a estrutura<br />

colaboram para alcançar um nível <strong>de</strong> entendimento entre os interlocutores, mas é preciso que<br />

eles partilhem da mesma estrutura do gênero em uso.<br />

Schneuwly e Dolz (2004, p.76) alertam para o fato <strong>de</strong> a escola sempre ter<br />

trabalhado com os gêneros, embora para eles os gêneros não sejam instrumento <strong>de</strong><br />

comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto <strong>de</strong> ensino-aprendizagem. Ou seja: a<br />

maioria dos professores usa os gêneros há bastante tempo em sala <strong>de</strong> aula, mas sem trabalhálos<br />

como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem voltada para as práticas sociais.


30<br />

Os autores observam, ainda, três maneiras para abordar o ensino da escrita e da<br />

fala: o <strong>de</strong>saparecimento da comunicação; a escola como lugar <strong>de</strong> comunicação e, por último, a<br />

negação da escola como lugar específico <strong>de</strong> comunicação. Pela primeira, os gêneros <strong>de</strong>ixam<br />

<strong>de</strong> fazer parte do contexto da comunicação da escola e passam a significar somente uma<br />

forma linguística, sendo abordados sem nenhuma “[...] relação com uma situação <strong>de</strong><br />

comunicação autêntica” (p.76) e são elaborados “[...] como instrumentos para <strong>de</strong>senvolver e<br />

avaliar, progressiva e sistematicamente, as capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita dos alunos” (p. 77).<br />

Pela segunda concepção, a escola é tratada como um lugar <strong>de</strong> comunicação e “[...]<br />

os gêneros são aprendidos pela prática da linguagem escolar, por meio dos parâmetros<br />

próprios à situação e das interações com os outros” (p.78).<br />

Pela terceira concepção, os gêneros saíram da condição <strong>de</strong> obscurida<strong>de</strong> da<br />

primeira abordagem, <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser vistos apenas como parte da comunicação escolar<br />

conforme a segunda abordagem e passaram a fazer parte das práticas cotidianas da escola<br />

“[...] como se houvesse continuida<strong>de</strong> absoluta entre o que é externo e interno à escola” (p.79).<br />

Dessa forma, quando <strong>de</strong>senvolveram as sequências didáticas, Schneuwly, Dolz e<br />

Noverraz (2004) pretendiam preencher a lacuna <strong>de</strong> procedimentos metodológicos para ensinar<br />

a escrever textos e a exprimir-se oralmente em situações públicas escolares e extraescolares.<br />

As sequências didáticas são elaboradas em torno <strong>de</strong> um gênero textual, realizadas<br />

sistematicamente e <strong>de</strong> forma gradativa as dificulda<strong>de</strong>s das ativida<strong>de</strong>s vão sendo propostas.<br />

Por isso, a sequência didática é valioso recurso pedagógico para a compreensão <strong>de</strong> um gênero:<br />

“uma seqüência didática tem, precisamente, a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajudar o aluno a dominar melhor<br />

um gênero <strong>de</strong> texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar <strong>de</strong> maneira mais a<strong>de</strong>quada numa<br />

dada situação <strong>de</strong> comunicação.” (p. 97). É o que se <strong>de</strong>talha a seguir.<br />

Apresentação da situação (p. 99): “[...] o momento em que a turma constrói uma<br />

representação da situação <strong>de</strong> comunicação e da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem a ser executada.”<br />

Nessa etapa, duas dimensões <strong>de</strong>verão ser trabalhadas: na primeira, é preciso que os alunos<br />

tomem ciência do projeto coletivo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um gênero oral ou escrito que será<br />

<strong>de</strong>senvolvido, e, também, o professor <strong>de</strong>verá explanar para o aluno os problemas a serem<br />

trabalhados. Na segunda dimensão os conteúdos serão evi<strong>de</strong>nciados, e os alunos <strong>de</strong>verão<br />

saber quais conteúdos serão trabalhados pelo professor.<br />

A primeira produção (p.101): “no momento <strong>de</strong> produção inicial, os alunos tentam<br />

elaborar um primeiro texto oral ou escrito e, assim, revelam para si mesmos e para o professor<br />

as representações que têm da ativida<strong>de</strong>.” Nesse primeiro momento, o professor conduzirá a<br />

turma à produção do gênero <strong>de</strong>sejado, sem interferir no processo <strong>de</strong> produção do aluno. É um


31<br />

momento importante porque é a partir da primeira produção que o professor traçará os<br />

caminhos para solucionar os problemas <strong>de</strong>tectados. Além disso, permite ao professor tomar<br />

conhecimento e consciência dos problemas em relação à produção do gênero, servindo para<br />

diagnosticar o <strong>de</strong>senvolvimento real (VYGOTSKY, 1999) do aluno.<br />

Os módulos são as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas pelo professor e as intervenções são<br />

necessárias para resolver “[...] os problemas que aparecem na primeira produção e dar aos<br />

alunos os instrumentos necessários para superá-los” (p. 103). São as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas pelo<br />

professor para realizar as intervenções necessárias para resolver os problemas diagnosticados<br />

na produção inicial. Essas intervenções po<strong>de</strong>m ser feitas em três níveis: primeiramente, ao<br />

trabalhar problemas <strong>de</strong> níveis diferentes, o aluno se <strong>de</strong>para com as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada<br />

gênero e <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> solucionar os possíveis problemas encontrados e, em seguida, o<br />

professor proporciona uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e exercícios; além <strong>de</strong> diversificar as<br />

ativida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ve-se também diversificar os modos <strong>de</strong> trabalhos; por último, ao terminar os<br />

módulos, o aluno apren<strong>de</strong> a capitalizar as aquisições, somando ao seu conhecimento o<br />

aprendizado sobre o gênero abordado.<br />

Produção final (p.106): “[...] a sequência é finalizada com uma produção que dá<br />

ao aluno a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados<br />

separadamente nos módulos”. A finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa produção é investigar a aprendizagem e<br />

também verificar se as estratégias adotadas foram suficientes, o professor <strong>de</strong>verá confrontar a<br />

primeira e a última produção, e, então, elaborar um diagnóstico conciso do <strong>de</strong>sempenho do<br />

aluno. Abaixo, po<strong>de</strong>mos visualizar o esquema da sequência didática como proposto pelos<br />

autores para trabalhar o gênero em sala <strong>de</strong> aula.<br />

ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA<br />

Apresentação<br />

da situação<br />

PRODUÇÃO<br />

INICIAL<br />

Módulo<br />

1<br />

Módulo<br />

2<br />

Módulo<br />

n<br />

PRODUÇÃO<br />

FINAL<br />

Figura 2 - Esquema da sequência didática.<br />

Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e<br />

organização: Roxane Rojo; Glaís Cor<strong>de</strong>iro. Campinas, SP: Mercado <strong>de</strong> Letras, 2004, p. 98.<br />

Consi<strong>de</strong>rando que cada gênero <strong>de</strong> texto necessita <strong>de</strong> uma situação adaptada para<br />

ser <strong>de</strong>senvolvido em sala <strong>de</strong> aula, e que cada gênero oferece características distintas, os<br />

autores propõem que os gêneros sejam agrupados em função <strong>de</strong> certo número <strong>de</strong><br />

regularida<strong>de</strong>s linguísticas e <strong>de</strong> transferências possíveis. Os autores estabelecem três critérios<br />

para o agrupamento: primeiramente, <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas as finalida<strong>de</strong>s sociais atribuídas


32<br />

ao ensino nos domínios essenciais <strong>de</strong> comunicação escrita e oral em nossa socieda<strong>de</strong>; em<br />

segundo, os gêneros <strong>de</strong>vem ser retomados como já funcionam em vários manuais,<br />

planejamentos e currículos e, por fim, que sejam relativamente homogêneos quanto às<br />

capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> linguagem implicadas no domínio dos gêneros agrupados.<br />

Em função <strong>de</strong>sses três critérios, os autores propõem cinco agrupamentos: da<br />

or<strong>de</strong>m do narrar, do relatar, do argumentar, do expor e do <strong>de</strong>screver ações. Schneuwly, Dolz e<br />

Noverraz (2004) enfatizam que seria impossível classificar um gênero <strong>de</strong> maneira absoluta<br />

num dos agrupamentos propostos. Ao elaborar uma sequência didática, <strong>de</strong>ve-se equilibrar a<br />

distribuição das ativida<strong>de</strong>s entre orais e escritas e levar em conta a dificulda<strong>de</strong> em conduzir as<br />

sequências orais e evitar o <strong>de</strong>sgaste tanto por parte dos alunos quanto por parte do professor.<br />

Embora seja difícil <strong>de</strong>senvolvê-los <strong>de</strong> forma sistemática e não façam parte com frequência do<br />

planejamento do professor, os gêneros orais sempre estão presentes em sala <strong>de</strong> aula: são<br />

conversas informais, rodinhas, interações por meio <strong>de</strong> jogos, brinca<strong>de</strong>iras, <strong>de</strong>bates, leituras e<br />

correção das ativida<strong>de</strong>s, entre outras. No quadro <strong>de</strong> agrupamento <strong>de</strong> gêneros abaixo,<br />

ilustramos a sugestão dos autores para agrupar os gêneros.<br />

ASPECTOS TIPOLÓGIGOS<br />

DOMÍNIOS SOCIAIS DE CAPACIDADES<br />

DE EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E<br />

CONSIDERAÇÃO<br />

LINGUAGENS DOMINANTES ESCRITOS<br />

Cultura literária ficcional NARRAR<br />

Conto maravilhoso; fábula; lenda;<br />

Mimeses <strong>de</strong> ação através da<br />

criação <strong>de</strong> intrigas<br />

narrativa <strong>de</strong> aventura; narrativa <strong>de</strong><br />

ficção cientifica; narrativa <strong>de</strong> enigma;<br />

novela fantástica e conto parodiado.<br />

Documentação e memorização<br />

<strong>de</strong> ações humanas<br />

RELATAR<br />

Representação pelo discurso <strong>de</strong><br />

experiências vividas, situadas no<br />

tempo<br />

Relato <strong>de</strong> experiência vivida; relato <strong>de</strong><br />

viagem; testemunho; curriculum vitae;<br />

notícia; reportagem; crônica esportiva e<br />

ensaio bibliográfico.<br />

Discussão <strong>de</strong> problemas sociais ARGUMENTAR<br />

Texto <strong>de</strong> opinião; diálogo<br />

controversos<br />

Sustentação, refutação e argumentativo; carta do leitor; carta <strong>de</strong><br />

negociação <strong>de</strong> tomadas <strong>de</strong> reclamação; <strong>de</strong>liberação informal;<br />

posição<br />

<strong>de</strong>bate regrado; discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

(adv.) e discurso <strong>de</strong> acusação (adv.)<br />

Transmissão e construção <strong>de</strong> EXPOR<br />

Seminário; conferência; artigo ou<br />

saberes<br />

Apresentação textual <strong>de</strong> verbete <strong>de</strong> enciclopédia; entrevista <strong>de</strong><br />

diferentes formas <strong>de</strong> saberes especialista; tomada <strong>de</strong> rodas; resumo<br />

<strong>de</strong> textos “expositivos” ou explicativos;<br />

relatório científico e relato <strong>de</strong><br />

experiência científica.


33<br />

Instruções e prescrições<br />

DESCREVER AÇÕES<br />

Regulação mútua <strong>de</strong><br />

comportamentos<br />

Instruções <strong>de</strong> montagem; receita;<br />

regulamento; regras <strong>de</strong> jogo; instruções<br />

<strong>de</strong> uso e instruções.<br />

Figura 3 - Quadro <strong>de</strong> Agrupamento <strong>de</strong> gêneros<br />

Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e organização:<br />

Roxane Rojo; Glaís Cor<strong>de</strong>iro. Campinas, SP: Mercado <strong>de</strong> Letras, 2004, p. 121.<br />

No agrupamento proposto pelos autores, o gênero lenda se insere no domínio da<br />

cultura literária ficcional, e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem é da or<strong>de</strong>m do narrar. Assim sendo, há<br />

muito tempo as lendas vêm <strong>de</strong>sempenhando o papel <strong>de</strong> transmitir a cultura popular por meio<br />

da tradição oral; entretanto, além disso, neste estudo, as lendas assumem a tarefa <strong>de</strong> (mega)<br />

instrumento para as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />

2.1.3 Gênero lenda: especificida<strong>de</strong>s teóricas e possibilida<strong>de</strong>s didático-pedagógicas<br />

O folclore brasileiro guarda um vasto acervo cultural do universo popular. Para<br />

Inocenti (2005, p. 15), o folclore po<strong>de</strong> ser classificado, para efeitos <strong>de</strong> catalogação, em oito<br />

formas: em primeiro lugar, a literatura oral, que são as trovas, travalínguas, literatura <strong>de</strong><br />

cor<strong>de</strong>l, provérbios, adivinhações, estórias, lendas, fábulas, mitos, parlendas e as mnemônias.<br />

Em seguida, a forma lúdica, que são as danças, autos, teatro popular, festas tradicionais, jogos<br />

recreativos <strong>de</strong> azar e os folguedos. O autor comprova, também, a forma espiritual que são as<br />

crendices e superstições, cortejos e procissões. Já nas artes <strong>de</strong>stacam-se a música, o artesanato<br />

(cerâmica, tecido, ma<strong>de</strong>ira, metal etc.) e os manufaturados. Também <strong>de</strong>staca a linguagem<br />

popular, a medicina popular e a alimentação, com a apresentação <strong>de</strong> comidas e bebidas e, por<br />

último, seriam outras formas como o mutirão, o dísticos <strong>de</strong> caminhão, os tipos típicos e a<br />

cultura <strong>de</strong> banheiro. Todo esse contexto folclórico, levantado por Inocenti (2005), reforça a<br />

importância da inserção da criança nas práticas sociais da sua comunida<strong>de</strong> e nas práticas<br />

pedagógicas da sua escola.<br />

Ampliando nosso olhar sobre o assunto, Machado (2003, p.7) escreve que os<br />

filósofos, dramaturgos, historiadores e poetas da Antiguida<strong>de</strong> Clássica nos <strong>de</strong>ixaram um<br />

tesouro valiosíssimo <strong>de</strong> histórias, mitos, lendas, fábulas, tragédias e comédias, cujas marcas


34<br />

nos acompanham até hoje. Em outras palavras, as lendas que hoje nos são apresentadas foram<br />

herdadas por nossos antepassados que as transmitiam basicamente pela oralida<strong>de</strong>; e, muito<br />

tempo <strong>de</strong>pois, pela escrita. Assim, como as crianças <strong>de</strong>senvolvem a linguagem por meio das<br />

interações sociais, o conhecimento popular das lendas <strong>de</strong>u-se igualmente por meio das<br />

interações sociais, enquanto a contação <strong>de</strong>ssas narrativas acontecia <strong>de</strong> forma oral, inicialmente<br />

no contexto familiar, em al<strong>de</strong>ias e em comunida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> havia um contador <strong>de</strong> história.<br />

Para Góes (1991), o narrar artístico nasceu no momento em que o homem sentiu<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> procurar uma explicação qualquer para os fatos que aconteciam a seu redor.<br />

Assim, na falta da escrita para dar continuida<strong>de</strong> à memória, na Antiguida<strong>de</strong> as lembranças<br />

eram preservadas na tradição oral. Portanto, essas narrações são transmitidas <strong>de</strong> geração em<br />

geração e são modificadas à medida que vão sendo contadas. Nelas aparecem figuras criadas<br />

pelo imaginário popular que não existem na realida<strong>de</strong>, e que, na maioria das vezes, são usadas<br />

para explicar uma situação ou aparição <strong>de</strong> algum “ente” fictício da natureza. De acordo com<br />

Góes (1991, p. 65):<br />

A lenda, pois, nasce da propensão do espírito humano <strong>de</strong> explicar os fatos naturais que<br />

<strong>de</strong>sconhece. Por isso, a lenda, nos começos, não é senão a história das primeiras lutas<br />

do homem, <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sconhecimento e <strong>de</strong> sua preocupação por enten<strong>de</strong>r o mistério que<br />

o circunda. Naquela época tudo era causa <strong>de</strong> lenda para ele: o movimento dos astros,<br />

as migrações dos povos e animais, os fenômenos do céu, do mar e da terra ou fatos do<br />

seu quotidiano.<br />

Góes (1991) busca, nessa obra, uma tipologia para as histórias infantis e as<br />

classifica assim: mito e lenda, contos <strong>de</strong> fada, contos maravilhosos, fábulas, histórias – <strong>de</strong><br />

animais, <strong>de</strong> família, policiais, sentimentais, <strong>de</strong> ficção científica, maravilhosas mo<strong>de</strong>rnas –<br />

folclore infantil, aventura, poesia e, por último, o teatro infantil. Aqui <strong>de</strong>stacaremos o mito e a<br />

lenda por ser necessário distinguir os dois termos, tendo em vista a nebulosida<strong>de</strong> em que estão<br />

envoltos, segundo vários autores.<br />

Conforme Góes (1991, p. 107), o mito “[...] nasce do trabalho da imaginação pura<br />

entregue a si mesma e não adulterada pela intromissão [nem pela] tirania dos elementos<br />

racionais”, e po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido como “uma lenda relacionada com o mundo sobrenatural e que<br />

se traduz através dos ritos”, enquanto a lenda “[...] é uma narrativa localizada,<br />

individualizada, objeto <strong>de</strong> fé”. Po<strong>de</strong>mos dizer que lendas são narrações nas quais aparecem<br />

figuras criadas pelo imaginário popular que não existem na realida<strong>de</strong> e, na maioria das vezes,<br />

são usadas para explicar uma situação ou aparecimento <strong>de</strong> algum “ente” da natureza que<br />

dispensa comprovação científica.


35<br />

Para alguns autores, mitos e lendas apresentam significados semelhantes. Coelho<br />

(2003) também observa essa obscurida<strong>de</strong> entre os dois termos, e, baseada em alguns<br />

estudiosos, aponta algumas características dos mitos: primeiramente, o seu aspecto <strong>de</strong><br />

permanência e <strong>de</strong> duração é uma particularida<strong>de</strong> da presença <strong>de</strong> seres sobrenaturais em um<br />

mesmo conjunto <strong>de</strong> mitos e símbolos, po<strong>de</strong>ndo aparecer em várias socieda<strong>de</strong>s. Os mitos<br />

também representam o alargamento <strong>de</strong> um “espaço sagrado” para um “universo profano” e<br />

constitui-se em histórias, usualmente a respeito <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> outros seres sobrenaturais.<br />

Essencialmente, os mitos po<strong>de</strong>m ser vistos como uma resposta ao universo e seus fenômenos,<br />

fazendo-se conhecer ao assumir “uma dimensão histórica”. Assim, possibilitam a<br />

organização/compreensão do mundo e das coisas, e, finalmente, configuram-se como uma<br />

forma privilegiada <strong>de</strong> se passarem ensinamentos para a própria cultura em que emergem ou<br />

para fora <strong>de</strong>la.<br />

Já as lendas, ainda <strong>de</strong> acordo com Coelho (2003), são narrativas, mais<br />

precisamente, são textos que ora <strong>de</strong>screvem entes sobrenaturais, ora apresentam uma história.<br />

São textos que se referem a acontecimentos do “passado distante”, enfocando feitos <strong>de</strong><br />

personagens, explicando particularida<strong>de</strong>s anatômicas <strong>de</strong> certos animais. Elas po<strong>de</strong>m ser<br />

contadas por qualquer pessoa a qualquer momento, po<strong>de</strong>m transmitir os ensinamentos e os<br />

valores da socieda<strong>de</strong> à qual estão vinculadas, apresentam regras <strong>de</strong> conduta e explicam<br />

fenômenos da natureza. Isso significa, numa linguagem simples, que as lendas permitem<br />

misturar fatos reais com fatos imaginários; transmitidas <strong>de</strong> geração em geração, vão sendo<br />

modificadas à medida que são contadas e recontadas porque não precisam <strong>de</strong> comprovação<br />

científica.<br />

No centro <strong>de</strong>ssa questão, com a intenção <strong>de</strong> submeter as lendas a uma sistemática<br />

a<strong>de</strong>quada o mais próximo possível <strong>de</strong> um critério científico <strong>de</strong> classificação, Oliveira (1951,<br />

1965) julga necessário distribuí-las da seguinte forma: lendas cosmogônicas, lendas heróicas,<br />

lendas etiológicas, lendas <strong>de</strong> encantamento, lendas ornitológicas e lendas mitológicas. As<br />

lendas cosmogônicas são aquelas que procuram explicar fenômenos <strong>de</strong> natureza astronômica<br />

ou meteorológica; enquanto as lendas heróicas se referem a um herói. Já as lendas etiológicas<br />

procuram explicar a origem <strong>de</strong> coisas e fenômenos. Diferentemente das lendas heróicas, nas<br />

lendas etiológicas a personagem age como herói civilizador. Nas lendas <strong>de</strong> encantamento, os<br />

fenômenos po<strong>de</strong>m ganhar materialida<strong>de</strong> e se transformar em algo concreto. Há, também, as<br />

lendas ornitológicas, que se referem aos pássaros que exercem <strong>de</strong>terminadas influências,<br />

algumas atribuídas à sua natureza <strong>de</strong> alma penada, outras <strong>de</strong>vidas a certas qualida<strong>de</strong>s<br />

especiais. E, por último, aparecem as lendas mitológicas, que se subdivi<strong>de</strong>m em cinco ciclos:


36<br />

da Iara, da Boiúna, do Boto, do Curupira, da Mati-taperê. As contribuições <strong>de</strong> Oliveira (1951,<br />

1965) e as discussões <strong>de</strong> Coelho (2003) foram fundamentais para compreen<strong>de</strong>r o linguajar<br />

típico <strong>de</strong>sse gênero, fornecendo-nos subsídios teóricos e uma coletânea <strong>de</strong> elementos<br />

folclóricos que po<strong>de</strong>m ser usados em sala <strong>de</strong> aula.<br />

Coelho (2000) salienta que, ao longo da vida, o ser humano passa por cinco fases<br />

<strong>de</strong> interesse pela leitura: a primeira fase é a <strong>de</strong> pré-leitor; em seguida, é a fase do leitor<br />

iniciante; na terceira fase, o leitor está em processo; na quarta fase, o leitor torna-se fluente; a<br />

última fase é a do leitor crítico, aquele que é capaz <strong>de</strong> fazer suas próprias escolhas e tirar<br />

proveito da própria leitura. Aqui interessam-nos duas fases: a do leitor iniciante e a do leitor<br />

em processo. A fase do leitor iniciante acontece por volta <strong>de</strong> seis a sete anos, perfil no qual se<br />

encaixa a turma estudada na pesquisa. Embora manifeste uma preferência pela linguagem<br />

visual, na escola a criança passa a ter contato direto com os signos linguísticos, que são<br />

escritos <strong>de</strong> maneira sistematizada nessa fase; além disso, a criança passa a se preocupar em<br />

socializar suas i<strong>de</strong>ias. Para Coelho (2000), a fase do leitor em processo, que também nos<br />

interessa, abrange a faixa <strong>de</strong> oito a nove anos, quando o aluno já domina a construção da<br />

leitura. Para a autora, nessa fase algumas particularida<strong>de</strong>s nos textos infantis <strong>de</strong>verão ser<br />

observadas: a presença <strong>de</strong> diálogo nas imagens; as narrativas <strong>de</strong>vem girar em torno <strong>de</strong> uma<br />

situação central; as frases <strong>de</strong>vem ser simples e na or<strong>de</strong>m direta, preservando os períodos<br />

simples com a introdução gradativa <strong>de</strong> períodos compostos. O gênero lenda, escolhido para<br />

ser <strong>de</strong>senvolvido em classe <strong>de</strong> primeira série, foco do presente trabalho, oferece os requisitos<br />

necessários para contemplar essas duas fases <strong>de</strong> leitura.<br />

Nessa perspectiva, ao planejarmos o trabalho <strong>de</strong> alfabetização com os gêneros é<br />

preciso atenção ao gênero escolhido para trabalhar leitura e escrita. Na verda<strong>de</strong>, um texto que<br />

não seja do interesse do leitor po<strong>de</strong> causar a sensação <strong>de</strong> que a leitura é uma prática<br />

<strong>de</strong>sagradável, daí a importância <strong>de</strong>, nesse período, a leitura ser sedutora. Também o gênero<br />

em questão, <strong>de</strong> modo geral, contribui para o entendimento referente a <strong>de</strong>terminado assunto e<br />

para a compreensão do mundo e suas representações; além disso, nessa fase, a criança<br />

manifesta sua preferência pelas narrativas.<br />

Assim, a escolha da lenda para compor o presente trabalho se <strong>de</strong>u por três razões<br />

distintas. Em primeiro lugar, a criança entra, <strong>de</strong>ste cedo, em contato com as narrativas; em<br />

segundo lugar, trata-se <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> leitores iniciantes que apresentam uma predisposição<br />

para a leitura <strong>de</strong> encantamento, com personagens mirabolantes e com finais surpreen<strong>de</strong>ntes. E,<br />

por último, como já afirmado anteriormente, o tema folclore se constitui em importante


37<br />

recurso <strong>de</strong> ensino-aprendizagem em sala <strong>de</strong> aula, porquanto esse tema está atrelado às práticas<br />

sociais.<br />

Em termos gerais, o gênero lenda foi escolhido com base no interesse da criança<br />

em ouvir histórias que envolvam muitas ações entre as personagens, favorecendo a interação<br />

entre professor e aluno. Essa predisposição <strong>de</strong> ouvir e prestar atenção às conversas das<br />

pessoas po<strong>de</strong> ser observada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo no comportamento da criança. O primeiro<br />

contato com a narrativa acontece por intermédio da voz <strong>de</strong> pais, avós, tios, enfim, <strong>de</strong> pessoas<br />

próximas da criança. De tal forma, essas interações, no início da vida, oferecem à criança<br />

momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta que aguçam a sua capacida<strong>de</strong> criativa e <strong>de</strong> interação com o<br />

imaginário, interações essas que são aprimoradas na infância. Po<strong>de</strong>mos dizer que é na infância<br />

que as interpretações sobre o mundo começam a fazer sentido para a criança por meio <strong>de</strong><br />

brinca<strong>de</strong>iras e fantasia, principalmente a imaginação. Para Kramer (2007), a criança interessase<br />

por brinquedos e bonecas atraída pelas personagens dos contos <strong>de</strong> fadas, mitos e lendas.<br />

Em suma, a cultura infantil é permeada por sonhos e brinca<strong>de</strong>iras, num mundo do “faz <strong>de</strong><br />

conta”. Portanto, <strong>de</strong>ntre as narrações preferidas pelas crianças, as lendas ocupam um lugar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque por suscitar a emoção, a magia, o encantamento, o medo, o suspense. Além do mais,<br />

a criança sente muito prazer em compartilhar esses momentos com os adultos.<br />

2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO<br />

DO CÓDIGO<br />

Na introdução <strong>de</strong>ste estudo, <strong>de</strong>stacamos que o nosso objetivo é <strong>de</strong>screver a<br />

apropriação da língua escrita numa classe <strong>de</strong> alfabetização, valendo-nos da lenda como<br />

gênero-instrumento na ação didático-pedagógica, consi<strong>de</strong>rando a dupla via – sistêmica e<br />

textual – <strong>de</strong>sse processo. Sendo assim, nesta seção julgamos necessário abordar as<br />

similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita; a relação entre consciência fonológica e<br />

aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong> palavra, sílaba e fonema e suas implicações na<br />

alfabetização, e finalizamos com a <strong>de</strong>scrição do sistema alfabético do português no que<br />

respeita à escrita conforme Scliar- Cabral (2003a; b; 2009).


38<br />

2.2.1 Similarida<strong>de</strong>s e diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita<br />

A oralida<strong>de</strong> e a escrita constituem práticas e usos da língua. Para Marcuschi<br />

(2005, p. 34) “as relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas refletem<br />

um continuum que se manifesta entre essas duas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uso da língua”, sinalizando<br />

que as diferenças entre fala e escrita se dão no continuum tipológico das práticas sociais <strong>de</strong><br />

produção textual e não na relação dicotômica <strong>de</strong> dois polos opostos (MARCUSCHI, 2005, p.<br />

37). Koch (2007) partilha também da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a escrita formal e a fala informal<br />

constituem os polos opostos <strong>de</strong> um contínuo, ao longo do qual se situam os diversos tipos <strong>de</strong><br />

interação verbal.<br />

Dessa maneira, oralida<strong>de</strong> e escrita são eventos diferenciados, ainda que<br />

pertençam ao mesmo sistema linguístico, pois suas regras e seus meios <strong>de</strong> uso são diferentes<br />

(MARCUSCHI, 2005). Para Koch (2007), frequentemente a modalida<strong>de</strong> escrita é retratada<br />

como planejada, não-fragmentária, completa, elaborada, com o predomínio <strong>de</strong> frases<br />

complexas e com subordinação abundante, emprego frequente <strong>de</strong> passivas etc. Já a<br />

modalida<strong>de</strong> falada não é planejada, é fragmentária, incompleta, pouco elaborada, com a<br />

predominância <strong>de</strong> frases curtas, simples ou coor<strong>de</strong>nadas. Mas, para a autora, essas diferenças<br />

nem sempre distinguem as duas modalida<strong>de</strong>s, porque <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> situação<br />

comunicativa, existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se<br />

aproxima da escrita formal, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> situação comunicativa (KOCH, 2007, p.<br />

78).<br />

Uma diferença é o fato <strong>de</strong> os interlocutores estarem presentes na hora da fala,<br />

existindo uma negociação entre eles, intercalando os turnos <strong>de</strong> fala, ora um se manifesta, ora o<br />

outro, isto é, eles não só colaboram, como “co-negociam”, “co-argumentam”, um com o outro<br />

(KOCH, 2007). Scliar-Cabral (2003a) afirma que a modalida<strong>de</strong> oral permite a inserção <strong>de</strong><br />

sons inarticulados, bem como a presença da expressão facial e corporal, além da modulação<br />

da voz. A modalida<strong>de</strong> escrita permite uma reflexão do que se quer expressar no texto e é<br />

marcada pela apreensão inicial da criança em relação aos “sons” e silêncios e <strong>de</strong> sua<br />

imaginação e ainda pelas formas cristalizadas <strong>de</strong> cultura do seu grupo <strong>de</strong> convívio (SCLIAR-<br />

CABRAL, 2003a).


39<br />

Nessa mesma direção, o fascículo sete do Programa <strong>de</strong> formação continuada Próletramento<br />

(2007) discute modos <strong>de</strong> falar e modos <strong>de</strong> escrever e adverte que a principal<br />

diferença entre os textos produzidos oralmente e os textos escritos é que nos produzidos<br />

oralmente existe o apoio do contexto em que está sendo produzido. E quando escrevemos não<br />

dispomos das informações contextuais porque o leitor nem sempre está inserido no mesmo<br />

contexto <strong>de</strong> produção.<br />

De fato, na modalida<strong>de</strong> oral qualquer problema <strong>de</strong> interpretação ou compreensão<br />

po<strong>de</strong> ser imediatamente retomado e solucionado, pois locutor e interlocutor estão no mesmo<br />

espaço-tempo. E nos valemos da própria linguagem do nosso corpo, como gestos, expressões<br />

faciais e tons <strong>de</strong> voz com intuito <strong>de</strong> completar o que queremos dizer; além do mais, a<br />

oralida<strong>de</strong> admite repetições, pausas, inserções.<br />

Na modalida<strong>de</strong> escrita, estamos em espaço-tempo diferente <strong>de</strong> quem vai ler o<br />

texto que escrevemos, daí ser necessário consi<strong>de</strong>rar o objetivo ou intenção do produtor do<br />

texto. Na verda<strong>de</strong>, há uma exigência maior para o texto escrito; geralmente os modos <strong>de</strong> falar<br />

são marcados por menos atenção e menos planejamento que os modos <strong>de</strong> escrever, embora<br />

em certas circunstâncias os modos <strong>de</strong> falar requeiram quase tanta monitoração quanto os<br />

modos <strong>de</strong> escrever (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 13. FASCÍCULO 7). A esse<br />

respeito Marcuschi (2005, p. 38- 39) <strong>de</strong>clara que oralida<strong>de</strong> e escrita:<br />

“São [...] realizações <strong>de</strong> uma gramática única, mas que do ponto <strong>de</strong> vista<br />

semiológico po<strong>de</strong>m ter peculiarida<strong>de</strong>s com diferenças acentuadas, <strong>de</strong> tal modo que a<br />

escrita não representa a fala. Além disso, os textos orais têm uma realização<br />

multissistêmica (palavras, gestos, mímica etc) e os textos escritos também não se<br />

circunscrevem apenas ao alfabeto (envolvem fotos, i<strong>de</strong>ogramas, por exemplo, os<br />

ícones do computador e grafismos <strong>de</strong> todo tipo). [...] não postulamos uma simetria<br />

<strong>de</strong> representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das articulações<br />

estritamente linguísticas.<br />

Scliar-Cabral (2003a) esclarece que a fala é adquirida naturalmente, pois ao longo<br />

da história está presente on<strong>de</strong> quer que sejam encontrados traços <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e não existe<br />

nenhuma dificulda<strong>de</strong> – salvaguardando as patologias – para adquirirmos a linguagem oral<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sejamos expostos à situação linguística. A autora lembra ainda que o sistema<br />

alfabético apareceu mais tar<strong>de</strong>, é uma invenção da humanida<strong>de</strong>, e foi preciso acumular<br />

conhecimentos para se <strong>de</strong>scobrir o princípio <strong>de</strong> que as palavras eram constituídas. Assim, o<br />

sistema verbal escrito, ao contrário do sistema verbal oral, precisa ser aprendido <strong>de</strong> maneira<br />

sistemática.<br />

Para a autora, a modalida<strong>de</strong> oral e a modalida<strong>de</strong> escrita po<strong>de</strong>m ser usadas como<br />

instrumento <strong>de</strong> reflexão sobre a própria língua, fenômeno a que se dá o nome <strong>de</strong>


40<br />

metalinguagem. Essa reflexão sobre a linguagem oral é necessária porque todos os falantes <strong>de</strong><br />

uma língua, alfabetizados ou não, percebem a ca<strong>de</strong>ia da fala no seu uso cotidiano como um<br />

continuum, enquanto no início do processo da escrita, a criança não percebe a separação entre<br />

as palavras. Dessa forma, com o conhecimento do sistema alfabético, é possível perceber que<br />

a sílaba po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>smembrada em unida<strong>de</strong>s menores, os fonemas. Scliar Cabral (2003a; b)<br />

adverte ainda que a falta <strong>de</strong> reflexão metalinguística leva o aluno a eliminar a consoante<br />

inicial da vogal seguinte com a qual se coarticula e essas articulações em cada nível são<br />

representadas através da linguagem verbal, tanto oral quanto escrita. Segundo a autora, existe<br />

uma reciprocida<strong>de</strong> entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético.<br />

2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos <strong>de</strong><br />

palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.<br />

A alfabetização tem sido objeto <strong>de</strong> estudo em diferentes áreas <strong>de</strong> pesquisa<br />

(SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;<br />

COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,<br />

2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001; POERSH, 1990 entre outros). Conceber a alfabetização<br />

como um processo complexo e multifacetado implica investigar como se dá o processo <strong>de</strong><br />

ensino-aprendizagem da leitura e da escrita pela criança. Na presente pesquisa, nosso foco<br />

recai na aprendizagem da escrita. Nesta seção, procuramos esclarecer os conceitos <strong>de</strong> palavra,<br />

sílaba e fonema, por consi<strong>de</strong>rá-los fundamentais para o entendimento <strong>de</strong> nossa prática<br />

pedagógica. Abordamos também o <strong>de</strong>senvolvimento da consciência fonológica como<br />

facilitador da aprendizagem da língua escrita pela criança.<br />

Como mencionado anteriormente, para Scliar-Cabral existe uma influência<br />

recíproca entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético:<br />

A consciência fonológica insere-se na consciência metalinguística. Elas <strong>de</strong>correm da<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o ser humano po<strong>de</strong>r se <strong>de</strong>bruçar sobre um objeto, no caso, a língua, <strong>de</strong><br />

forma consciente, utilizando uma linguagem. No caso da consciência fonológica, o<br />

objeto sobre o qual você se <strong>de</strong>bruça conscientemente são os fonemas, e a linguagem<br />

utilizada é o alfabeto. Uma primeira distinção a fazer é entre conhecimento não<br />

consciente dos fonemas para o uso e o seu conhecimento consciente dos fonemas.<br />

Todo o falante-ouvinte nativo, alfabetizado ou não, tem conhecimento não


41<br />

consciente dos fonemas e os utiliza com proprieda<strong>de</strong>: quando escuta ou quando fala,<br />

sabe a diferença entre /´bala/ e /´mala/. Já o conhecimento consciente dos fonemas<br />

se <strong>de</strong>senvolve com a aprendizagem do sistema alfabético da respectiva língua.<br />

(SCLIAR-CABRAL, 2009. p.35).<br />

Baseando-nos em Scliar-Cabral (2003 a, b, 2009), po<strong>de</strong>mos dizer que a<br />

consciência fonológica po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida como uma habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento dos<br />

fonemas nas palavras, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> substituí-los até segmentá-las em unida<strong>de</strong>s menores (palavras<br />

em sílabas e sílabas em fonemas). No processo <strong>de</strong> alfabetização, analisar as palavras<br />

utilizando-se das regras <strong>de</strong> correspondência entre fonemas e grafemas 4 constitui-se em prérequisito<br />

para o ensino-aprendizagem da escrita. Portanto, a aprendizagem <strong>de</strong> palavras faz<br />

parte do processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />

Scliar-Cabral (2009) ensina que o reconhecimento da palavra ocorre por análise e<br />

síntese dos traços, letras e grafemas associados aos fonemas, morfemas 5 e frases para chegar<br />

à compreensão textual. Essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber a articulação dos traços da palavra<br />

escrita, com função <strong>de</strong> distinguir significados, os grafemas, associados ao respectivo fonema<br />

(SCLIAR-CABRAL, 2003), significa atribuir os valores fonológicos que envolvem a língua,<br />

e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as palavras e/ou entre<br />

consoantes e vogais. Dito <strong>de</strong> outra forma, o reconhecimento dos grafemas da palavra se faz<br />

associando o traçado à realização do fonema que o grafema representa, e para especificar a<br />

construção da palavra é necessário analisar seus constituintes, discriminando os fonemas e<br />

os grafemas cuja função é distinguir sentidos e significados.<br />

Segundo Scliar-Cabral (2009), a razão primordial que fundamenta a fônica são os<br />

grafemas que representam um fonema (classe <strong>de</strong> sons com função <strong>de</strong> distinguir significados).<br />

Em relação à sílaba, a autora julga importante examinar o contraste entre as unida<strong>de</strong>s que<br />

constituem a sílaba para <strong>de</strong>smembrá-la e fazer a associação <strong>de</strong> um fonema a um grafema. Para<br />

a autora, na sílaba o que <strong>de</strong>fine uma consoante e uma vogal são as pistas acústicas e também<br />

seus respectivos gestos fonoarticulatórios, em virtu<strong>de</strong> da co-articulação. A autora afirma ainda<br />

que a fala é percebida como um contínuo antes da alfabetização, sendo essa a maior<br />

dificulda<strong>de</strong> na aprendizagem da leitura e da escrita. E como solução, sugere “um trabalho<br />

sistemático [...] para que o indivíduo reconstrua <strong>de</strong> modo consciente a percepção da fala e<br />

4 O grafema é a menor unida<strong>de</strong> da escrita, constituída <strong>de</strong> uma ou duas letras para distinguir significados. Se for<br />

<strong>de</strong>smembrado, como ch, <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ser um grafema. É uma unida<strong>de</strong> abstrata (SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 11).<br />

5 Os morfemas se referem às classes, categorias e relações gramaticais. São morfemas os afixos, os pronomes, as<br />

preposições, as conjunções, os advérbios <strong>de</strong> lugar, os artigos. (SCLIAR-CABRAL, 1976).


42<br />

possa <strong>de</strong>smembrar a ca<strong>de</strong>ia da fala em palavras e a sílaba em seus constituintes”. (SCLIAR-<br />

CABRAL, 2009, p.11).<br />

Para Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 69):<br />

A aquisição e a estruturação da língua na mente infantil é toda baseada na unida<strong>de</strong><br />

silábica: as primeiras enunciações infantis, valendo por vocábulos e frases, são as<br />

sílabas, e o processo da criança, que utiliza a reduplicação <strong>de</strong>sses elementos para<br />

construir palavras (dadá, papá etc), é um modo <strong>de</strong> insistir na unida<strong>de</strong> fonética<br />

espontaneamente sentida.<br />

Esse mesmo autor (1977) consi<strong>de</strong>ra que existe nebulosida<strong>de</strong> na <strong>de</strong>finição precisa e<br />

científica da sílaba, porque os <strong>de</strong>bates a têm focalizado como realização física, sem levar em<br />

conta a sílaba funcional. E apresenta alguns conceitos <strong>de</strong> sílaba, como sílaba dinâmica ou<br />

expiratória, “enquanto se fala, o ar é emitido numa série <strong>de</strong> impulsos a cada um dos quais se<br />

po<strong>de</strong> dizer que correspon<strong>de</strong> a uma sílaba”; sílaba intensiva <strong>de</strong>staca “o acento silábico ou<br />

maior energia da emissão, durante a articulação <strong>de</strong> uma sílaba, o qual está para os fonemas<br />

componentes como o acento”; e a sílaba sonora, “emitida num único impulso <strong>de</strong> expiração,<br />

mas num só impulso também se po<strong>de</strong>m articular duas sílabas sonoras, que ficam assim<br />

reunidas numa única expiratória ou dinâmica” (MATTOSO CÂMARA JR, 1978 p.70).<br />

Mattoso traz também o conceito <strong>de</strong> sílaba funcional, que é “aquela que impõe os tipos <strong>de</strong><br />

concatenação dos fonemas <strong>de</strong> uma língua dada, conforme o tratamento crescente ou<br />

<strong>de</strong>crescente nas várias situações dos contextos”.<br />

Scliar-Cabral (2009) reafirma que <strong>de</strong>senvolver a consciência fonológica po<strong>de</strong><br />

ajudar a vencer a dificulda<strong>de</strong> em segmentar a sílaba e alerta que não se <strong>de</strong>ve confundir<br />

consciência fonológica com habilida<strong>de</strong>s para discriminar diferenças entre sons, pois o fonema<br />

é uma entida<strong>de</strong> que tem a função <strong>de</strong> distinguir as significações básicas. E assim a autora<br />

levanta uma discussão a respeito do fonema com o intuito <strong>de</strong> aclarar a compreensão <strong>de</strong><br />

consciência fonológica.<br />

O que é um fonema Muitos confun<strong>de</strong>m fonema com som. No entanto, a <strong>de</strong>finição<br />

clássica <strong>de</strong> fonema, estabelecida pelo linguista R. Jakobson, é: O fonema é um feixe<br />

<strong>de</strong> traços distintivos. O fonema tem uma função distintiva, isto é, serve para<br />

distinguir um significado básico <strong>de</strong> outro, como já no citado exemplo <strong>de</strong> /’bala/ e<br />

/’mala/. Veja bem, o fonema não tem significado: serve para distinguir significados.<br />

Quer dizer que /b/ e /m/ não significam nada, mas trocando um pelo outro no<br />

contexto /’_ala/, o significado se altera (2009, p. 35).<br />

Outro questionamento da autora:


43<br />

Por que o fonema não é som Porque o fonema é uma unida<strong>de</strong> psíquica: assim como<br />

não se po<strong>de</strong> colocar uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ntro da cabeça, as moléculas <strong>de</strong> ar que se<br />

comprimem e se rarefazem para produzir as ondas acústicas também não po<strong>de</strong>m<br />

entrar <strong>de</strong>ntro da cabeça. [...] O fonema é um feixe <strong>de</strong> traços invariantes, <strong>de</strong> natureza<br />

abstrata, que são reconhecidos por sua função <strong>de</strong> distinguir significados, permitindo<br />

que as pessoas se comuniquem através da língua verbal oral. Não importa como as<br />

pessoas pronunciem o terceiro segmento que aparece na palavra carta [r], pois o som<br />

que o carioca produz só tem <strong>de</strong> parecido com o que um gaúcho <strong>de</strong> Bagé diz no fato<br />

<strong>de</strong> ambos serem consoantes, e só! Mas o fonema é o mesmo! (2009, p. 35).<br />

Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 48-66) consi<strong>de</strong>ra o fonema como um conjunto<br />

mínimo (<strong>de</strong> efeitos acústicos ou <strong>de</strong> movimentos dos órgãos fonadores) com um papel, ou uma<br />

FUNÇÃO, na representação e na comunicação linguística. A sua troca por outro conjunto<br />

mínimo muda o valor representativo do que é enunciado: comparem-se má e pá. Para o autor,<br />

os fonemas apresentam a divisão fundamental entre consoantes e vogais, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />

sua produção oral e efeito acústico. O autor também esclarece que o fonema é produzido<br />

<strong>de</strong>ntro do som da fala por certas qualida<strong>de</strong>s articulatórias, com resultantes qualida<strong>de</strong>s<br />

acústicas que opõem cada um <strong>de</strong>les aos <strong>de</strong>mais.<br />

Scliar-Cabral (2003b, p. 248) salienta que a correspondência entre fonemas e<br />

grafemas gera <strong>de</strong>terminadas dificulda<strong>de</strong>s: primeiramente, perceber a distinção do traço<br />

fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica. Em segundo lugar, a<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber os traços gráficos. A terceira dificulda<strong>de</strong> é levar o aluno a adivinhar<br />

ou alfabetizar pelos nomes das letras, caso em que se <strong>de</strong>ve processar o sinal acústico para<br />

codificá-lo em grafemas pelas letras. A quarta dificulda<strong>de</strong> é a falta <strong>de</strong> domínio das regras <strong>de</strong><br />

codificação <strong>de</strong>terminadas pelo contexto fonético. E, por último, a dificulda<strong>de</strong> da resposta<br />

aleatória.<br />

Assim, a falta <strong>de</strong> exatidão na correspondência das qualida<strong>de</strong>s fônicas e seus<br />

respectivos valores po<strong>de</strong> gerar algumas dificulda<strong>de</strong>s, mas reconhecemos também que sem<br />

possibilitar à criança exercitar no texto essas dificulda<strong>de</strong>s é praticamente impossível que ela<br />

as supere somente com ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estrutural. Ter claros esses conceitos po<strong>de</strong><br />

significar um planejamento didático voltado para as especificida<strong>de</strong>s da língua materna, e é<br />

importante trabalhá-los para proporcionar à criança o contato com o sistema alfabético, além<br />

<strong>de</strong> proporcionar o reconhecimento e a formação <strong>de</strong> novas palavras a partir <strong>de</strong> outras préexistentes.<br />

2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita


44<br />

Na seção anterior abordamos os conceitos <strong>de</strong> palavra, sílabas e fonemas e a<br />

importância da consciência fonológica como facilitador da aprendizagem da leitura e da<br />

escrita na alfabetização. O objetivo <strong>de</strong>sta seção é <strong>de</strong>screver o processamento da escrita,<br />

segundo Scliar-Cabral (2003a; b). Uma das razões para o gran<strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> tais <strong>de</strong>scrições<br />

resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> elas explicarem quais são as dificulda<strong>de</strong>s pelas quais passam os aprendizes<br />

do sistema escrito do português do Brasil. Além do mais, encontramos no trabalho da autora<br />

os subsídios necessários para fundamentar a nossa análise em relação ao código, no nosso<br />

caso, a conversão <strong>de</strong> fonema-grafema.<br />

As pesquisas <strong>de</strong> Scliar-Cabral (2003a; b) concentram-se em dois eixos: na<br />

<strong>de</strong>codificação e na codificação. A primeira refere-se ao processo da leitura, ao<br />

reconhecimento das letras e à atribuição dos valores aos grafemas. A segunda refere-se à<br />

conversão dos fonemas em grafemas na escrita da palavra. Em nosso estudo, interessa-nos a<br />

codificação, isto é, a aprendizagem da escrita. De acordo com Scliar- Cabral (2003a; b), as<br />

regras <strong>de</strong> codificação se subdivi<strong>de</strong>m em: regras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do contexto; regras<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da posição e/ou do contexto fonético; as alternativas competitivas; as regras<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da morfossintaxe e do contexto fonético e a <strong>de</strong>rivação morfológica. Destas,<br />

abordamos as regras in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do contexto: algumas ocorrências das regras <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da<br />

posição e/ou do contexto fonético intercalando com alguns casos <strong>de</strong> alternativas competitivas.<br />

Para Scliar-Cabral (2003a; b), a conversão aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto<br />

ocorre quando os fonemas correspon<strong>de</strong>m aos grafemas e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da posição e/ou do<br />

contexto fonético. Como observamos no quadro abaixo nas palavras: “pato” → /p/→ “p”;<br />

“bola”→ /b/→ “b”; “tatu” → /t/→ “t”; “dado”→ /d/ → “d”; “faca”→ /f/→ “f”; “uva”→/v/→<br />

“v”; “nata” → /n/→ “n”; “bolha” → / λ /→ “lh”; “anéis” →/ej/ →éi; “dói” → /ói/→ ói<br />

(ditongos abertos éi e ói, respectivamente). Observem na tabela, a seguir:<br />

Tabela 1 - Conversão aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto<br />

Fonema Grafema Exemplos Fonema Grafema Exemplos<br />

/p/ p pato /b/ b bola<br />

/t/ t tatu /d/ d dado<br />

/f/ f faca /v/ v uva<br />

/m/ m mato /n/ n nata<br />

/ ŋ / nh linha / λ/ lh bolha<br />

/ej/ éi anéis /ói/ ói/ dói<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 78.


45<br />

Po<strong>de</strong>mos observar que ocorre correspondência biunívoca entre fonemas e<br />

grafemas em /p/ → “p”, /b/→ “b”, /t/ → “t”, /m/→ “m”, /ŋ/ → “nh”, /d/ → “d”; /v/→ “v”, /n/<br />

→ “n”, / λ/→ “lh”, um fonema correspon<strong>de</strong> a um grafema e vice-versa. Assim, os fonemas<br />

/p/, /b/, /t/, /d/, /f/, /v/, /m/, /n/, /ŋ/, /λ/, serão sempre representados pelos grafemas “p”, “b”,<br />

“t”, “d”, “f”, “v”, “m”, “n”, “nh”, “lh”, respectivamente.<br />

A conversão dos grafemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da posição e/ou do contexto fonético é<br />

subdividida pela autora em: consoantes e vogais. Primeiro, abordaremos as consoantes e em<br />

seguida as vogais. Em relação às consoantes, Scliar-Cabral (2003b) ressalta que somente o<br />

fonema /l/ tem sempre a mesma conversão em início da palavra e <strong>de</strong> sílaba interna, pois em<br />

tais posições sempre se escreve com o grafema “l”, como, por exemplo, “Lula”; os fonemas<br />

/z/ e o arquifonema |R| têm a mesma conversão em início <strong>de</strong> palavra, posição na qual sempre<br />

se escrevem com os grafemas “z” e “r”, respectivamente. O arquifonema |R| em final <strong>de</strong> sílaba<br />

e palavra, a substituição <strong>de</strong> /R/ e /r/ não altera o significado da palavra; esses dois fonemas só<br />

têm a mesma conversão no início da sílaba interna. Assim, o fonema /r/ po<strong>de</strong> vir entre<br />

semivogal e vogal, mas o fonema /R/ não po<strong>de</strong> vir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> semivogal. O fonema /s/, em<br />

início <strong>de</strong> palavra, po<strong>de</strong> ser convertido no grafema “s”, antes da vogal posterior, no início da<br />

palavra e, também em vários outros grafemas no início da palavra, antes da vogal não<br />

posterior po<strong>de</strong> se converter em “c”.<br />

Scliar-Cabral (2003b) esclarece ainda que, pela regra, a realização dos fonemas<br />

/l/, /z/, /R/, que ocorrem no início do vocábulo, se convertem nos grafemas “l”, “z” e “r”,<br />

respectivamente. Por exemplo: “lata”, “zero”, “rato”. A realização do fonema /l/ no início <strong>de</strong><br />

sílaba interna se converte no grafema “l”,como, por exemplo em “calo”, “calem”, “baile”,<br />

“caule”. O fonema /R/ também no início <strong>de</strong> sílaba interna, não <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> semivogal, se<br />

converte no grafema “rr”, como na palavra “carro”. Já o fonema /r/ no início da sílaba interna<br />

se converte no grafema em “r”. Ex: “caro”, “beira”, “doura”, “cárie”. A realização do fonema<br />

/s/ ocorre só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal posterior ou /w/, caso em que se converte no grafema “s”. Ex.:<br />

“sala”, “som”, “suave”. Vejamos na tabela:<br />

Tabela 2 - Conversão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da posição no início do vocábulo antes <strong>de</strong> vogal ou em<br />

início <strong>de</strong> sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal<br />

No início do vocábulo<br />

No início da sílaba interna<br />

Fonema Conversão Exs. Fonema Conversão Exemplos<br />

/l/ l lata /l/ l calo, calem,


46<br />

/z/ z zero<br />

|R| r rato<br />

baile, caule<br />

/R/ não <strong>de</strong>pois rr Carro, correm<br />

da semivogal<br />

/r/ r Caro, beira,<br />

doura, cárie<br />

Só antes da vogal posterior ou /w/<br />

/s/ s sala<br />

som<br />

suave<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.<br />

Scliar-Cabral (2003a) enfatiza que quando houver alternativas competitivas para o<br />

mesmo contexto fonético, é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o item que<br />

emparelhe semântica e morfossintaticamente com a forma fonológica. Para realização do<br />

fonema /S/ nos contextos competitivos a autora <strong>de</strong>fine as regras:<br />

A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> vocábulo, antes <strong>de</strong> vogal oral ou nasalizada<br />

não posterior, [...], ou antes <strong>de</strong> semivogal /j/ po<strong>de</strong> se reescrever ou com o grafema<br />

“s” ou “c” (153).<br />

As realizações do fonema /s/ po<strong>de</strong>m se reescrever “ss”, “c”, ou “sc” em início <strong>de</strong><br />

sílaba, entre vogal oral e vogal não posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não<br />

posterior [...] , e /j/ entre a vogal /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo, precedida ou não <strong>de</strong><br />

prefixos, e vogais não posteriores orais ou nasalizadas não altas, [...] e /ẽ/ ainda po<strong>de</strong><br />

se reescrever com “xc”... (p. 153-154).<br />

A realização do fonema /s/ em posição intervocálica, se a segunda vogal começar a<br />

terminação - /imu/→ “imo” ou - /imi/ → “imi” e suas reflexões po<strong>de</strong> ser grafadas<br />

com “x”, por exemplo: próximo, proximida<strong>de</strong>. (p.154).<br />

A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> sílaba, entre vogal oral e vogal posterior<br />

oral ou nasalizada que não a [+alta], posteriores, [...], po<strong>de</strong> se reescrever com os<br />

grafemas “ss”, “ç”. Dois contextos competitivos mais restritos ocorrem para o<br />

grafema “sc”, que po<strong>de</strong> ocorrer entre /e/ ou /a/ e /u/, /a/, /õ/ ou /ã/ e “xs”, que po<strong>de</strong><br />

ocorrer entre /e/ e vogal oral arredondada [...] (p. 155).<br />

A realização do fonema /s/ em posição inicial <strong>de</strong> sílaba interna, entre vogal<br />

nasalizada e vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] po<strong>de</strong> se<br />

reescrever “s”, “c”, ou “sc” (p. 156).<br />

A realização do fonema /s/ po<strong>de</strong> ser codificada seja pelo grafema “s” ou “c” em<br />

início <strong>de</strong> sílaba entre vogal nasalizada e vogal oral ou vogal nasalizada posteriores<br />

[...] ou entre / ě/ e a semivogal /w/ (p. 156).<br />

A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e<br />

vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] po<strong>de</strong> se reescrever tanto<br />

por “s” quanto por “c” (p. 157).<br />

A realização do fonema /s/ em início <strong>de</strong> sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e<br />

vogal oral posterior ou nasalizada ou posterior que não a [+alta], [...] e /ã/, po<strong>de</strong> se<br />

reescrever tanto “s” quanto “ç” (p. 158).<br />

Observando a tabela abaixo, verificamos que a conversão dos fonemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong> vogal posterior ou não posterior apresenta duas ocorrências: antes <strong>de</strong> vogal posterior /w/ e<br />

antes da vogal não posterior /j/. Na primeira ocorrência, o fonema /k/ antes da vogal posterior<br />

po<strong>de</strong> ser convertido no grafema “e” nos casos em que não ocorrem as vogais, isto é, /u/, /ã/,<br />

como em “conta”. Encontramos ainda o fonema /g/ que po<strong>de</strong> ser convertido no grafema “g”,


47<br />

por exemplo, “gula”, “agüenta”. A realização do fonema /z/ seguido <strong>de</strong> uma vogal posterior<br />

se transcreve “j”, como em “loja”. A realização do fonema /s/, seguido <strong>de</strong> uma vogal<br />

posterior, oral ou nasalizada, <strong>de</strong>pois do fonema /j/ se transcreve “ç”, por exemplo, “feição”.<br />

Na segunda ocorrência, antes da vogal não posterior /j/, os fonemas /k/ e /g/ po<strong>de</strong>m ser<br />

convertidos nos grafemas “qu” e “gu”, respectivamente. Por último, se a realização do fonema<br />

/s/ figurar em início <strong>de</strong> sílaba entre a semivogal /j/ e uma vogal não posterior, isto é, /i/, /e/,<br />

/i~/, /e~/, se grafa “c”, por exemplo, “foice”.<br />

Tabela 3 - Conversão dos fonemas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> vogal posterior ou não posterior<br />

Antes <strong>de</strong> vogal [+post], /w/<br />

Antes da vogal [-post], /j/<br />

Fonema Conversão Exemplos Conversão Exemplos<br />

/k/<br />

e (que não as<br />

vogais /u/, /ã/)<br />

conta qu queixo<br />

/g/ g gula, agüenta gu guerra<br />

/z/ j loja<br />

/s/ ç <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /j/ feição c foice<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.<br />

Na tabela 4, conforme a regra, a realização do arquifonema |R| em início <strong>de</strong> sílaba,<br />

seguido <strong>de</strong> vogal posterior nasalizada, /w/ ou /S/ se transcreve “r”, conforme o exemplo <strong>de</strong><br />

“enruga”, “melro”, “<strong>de</strong>srespeito”, respectivamente. Se a realização do fonema /∫/ for<br />

nasalizada, /ej/, /ow/ ou /aj/, nestes casos se grafa “x”, por exemplo, “enxame”, “<strong>de</strong>ixa”,<br />

“trouxa”, “caixa”, respectivamente. Se a realização do fonema /z/ figurar em /e/ em início <strong>de</strong><br />

vocábulo, precedido ou não <strong>de</strong> prefixo, se grafa “x”, “enxame”, “reexame”. Caso a realização<br />

do fonema /w/ figurar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> / k/ ou /g/ antes <strong>de</strong> vogal não posterior, se grafa “u” como em<br />

“eqüino”, “agüentar”.<br />

Tabela 4 - Conversão <strong>de</strong> /j/ e |R| em início <strong>de</strong> sílaba, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal nasalizada, |S|, |W| e <strong>de</strong><br />

/ej/, /ow/, /aj/; conversão <strong>de</strong> /z/ <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo e <strong>de</strong> /w/ entre /k/ ou /g/ e<br />

vogal não posterior


48<br />

Fonema<br />

Conversão Depois <strong>de</strong> Exemplos<br />

|R| r Vogal nasalizada enruga<br />

/W/<br />

/S/<br />

melro<br />

<strong>de</strong>srespeito<br />

/∫/ x Vogal nasalizada enxame<br />

/ej/<br />

<strong>de</strong>ixa<br />

/ow/<br />

trouxa<br />

/aj/<br />

/z/ z /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo,<br />

precedido ou não <strong>de</strong><br />

prefixo<br />

/w/ ü /k/ ou /g/ antes <strong>de</strong> vogal<br />

não posterior<br />

caixa<br />

enxame, reexame<br />

eqüino, aguentar<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.<br />

A tabela abaixo mostra que pela regra a realização do arquifonema |R| no final<br />

da palavra po<strong>de</strong> ser convertido em “r” <strong>de</strong>pois da vogal oral, por exemplo, beber, mulher,<br />

gostar etc. Em sua realização, o arquifonema |S| po<strong>de</strong> ser convertido em “s”, em sílaba tônica<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vogal oral e semivogal, como em “casas”, “livros”, “bebes”, “fáceis”. Pela regra, o<br />

fonema /j/ po<strong>de</strong> ser convertido em “e” (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /ã (s)/), em “m” no ditongo nasalizado, em<br />

tônico não seguido <strong>de</strong> /s/ (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/) e “n” em ditongo nasalizado átono ou quando tônico,<br />

seguido <strong>de</strong> /S/ (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/), por exemplo, “beber”, “casas”, “mãe”, “bem”, “ele <strong>de</strong>tém”,<br />

“hífen”. O fonema /j/ realizado no final do vocábulo po<strong>de</strong> ser convertido em “i”, em ditongo<br />

<strong>de</strong>crescente, <strong>de</strong>pois da vogal oral, como nas palavras “pai”, “pais”. Por último, o fonema /w/<br />

po<strong>de</strong> ser convertido em ditongo nasalizado tônico, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /ã/, como, por exemplo, “vão”,<br />

“darão”, “salão”, “mãos”.<br />

Tabela 5 - Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final <strong>de</strong> vocábulo<br />

Arquifonema ou<br />

Fonema<br />

Conversão Depois <strong>de</strong> Exemplos


49<br />

|R| r Vogal oral beber, mulher, gostar<br />

|S| s em sílaba tônica Vogal oral, SV casas, livros, bebes,<br />

j<br />

fáceis<br />

e /ã (s)/ /õ (s)/ mãe, mães, mão, mãos<br />

m no ditongo<br />

nasalizado<br />

tônico não seguido <strong>de</strong><br />

/s/<br />

n no ditongo nasalizado<br />

átono, ou quando<br />

tônico, seguido <strong>de</strong> /S/<br />

/j/ i no ditongo<br />

/w/<br />

<strong>de</strong>crescente<br />

no ditongo nasalizado<br />

tônico<br />

/~e/<br />

/~e/<br />

Vogal oral<br />

/ã/<br />

bem, ele vem, alguém<br />

ele <strong>de</strong>tém, eles vêm, ele<br />

<strong>de</strong>tém<br />

hífen, homens, itens,<br />

bens, <strong>de</strong>téns<br />

pai, pais<br />

vão, darão, salão, mãos<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.<br />

Continuando as alternativas competitivas, Scliar-Cabral (2003b) explica:<br />

O fonema /z/ se grafa competitivamente s ou z em início <strong>de</strong> sílaba <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

qualquer vogal ou semivogal, exceto se a vogal oral no início do vocábulo for /e/,<br />

precedida ou não <strong>de</strong> prefixo, pois então se grafa obrigatoriamente x, como em<br />

“exame” [...] (p. 92).<br />

O fonema /∫/ em início <strong>de</strong> vocábulo ou posição intervocálica oral ou nasalizada se<br />

converte em ch ou x. Ex.: “cheque” e “xeque, “chá” e “xá”; “fechou” e “vexou” [...]<br />

( p. 92).<br />

O fonema /з/ em início <strong>de</strong> sílaba externa ou interna, antes <strong>de</strong> vogal não posterior oral<br />

ou nasalizada, se converte em g ou j, conforme os exemplos: “gira” e “jipe”;<br />

“<strong>de</strong>gelo” e “rejeito”; “eu gelo” e “jeca”; “ginga” e “jinga” (p. 93).<br />

O arquifonema |R| em algumas varieda<strong>de</strong>s socioliguísticas, como o chamado dialeto<br />

caipira, em sílaba travada terminada em /R/, /l/ e /R/, neste contexto, realizam-se<br />

como a retroflexa /r/. Neste caso, a homofonia se esten<strong>de</strong> a toda uma série <strong>de</strong> pares e<br />

só é <strong>de</strong>smanchada na escrita, como “pulga” (inseto)/ “purga” (laxante),<br />

“mal”/”mar”, por exemplo (p. 93). Aqui a autora adverte que “o redator, <strong>de</strong> acordo<br />

com o assunto (esquema mental) sobre o qual estiver escrevendo, <strong>de</strong>verá recordar<br />

como se escreve a palavra cuja grafia memorizou”, já que se trata <strong>de</strong> homófonos não<br />

homógrafos (p. 93).<br />

A semivogal /j/ se reescreve competitivamente i ou e nos ditongos crescentes orais<br />

(também pronunciáveis como hiatos), antes <strong>de</strong> vogal oral posterior, em final <strong>de</strong><br />

sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo, ou final <strong>de</strong> vocábulo, seguida ou não <strong>de</strong> consoante. Ex.:<br />

→ “acor<strong>de</strong>ona” e “piolho”, “veado” e “viaja”; “páreo” e “Mário”, “área” e “ária” (p.<br />

93-94).<br />

O arquifonema |W| se escreve competitivamente o ou u nos ditongos crescentes<br />

orais (também pronunciáveis como hiatos), em sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo ou em<br />

final <strong>de</strong> vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S| [...];<br />

O ditongo <strong>de</strong>crescente, em sílaba interna, reescreve-se u ou l. Aplique-se,<br />

também, a restrição da crase quando a semivogal /w/ for precedida pela vogal /u/,<br />

como em /’vutu/ → “vultu” [...];<br />

Em final <strong>de</strong> vocábulo, nos ditongos <strong>de</strong>crescentes, a semivogal /w/ po<strong>de</strong>rá ser<br />

codificada como o, u ou l; no último caso, em algumas varieda<strong>de</strong>s sociolinguísticas,<br />

ocorre a neutralização entre /l/ e /R/ que se realiza como a retroflexa [...].


50<br />

No ditongo seguido do arquifonema |S|, a semivogal /w/ só admite a conversão<br />

como o ou u. Ex.: “ateus”; “tios”; “caos”. (p. 94-95). Desse modo, trata-se, <strong>de</strong>ntre<br />

outras que foram mostradas, <strong>de</strong> uma das codificações mais complexas do português<br />

do Brasil, uma vez que “é particularmente difícil <strong>de</strong>cidir quando escrever ‘mal’ ou<br />

‘mau’, [...] dada a semelhança semântica, somente os conhecimentos <strong>de</strong> morfologia<br />

e <strong>de</strong> sintaxe po<strong>de</strong>m resolver” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 95).<br />

Pela regra, a realização do fonema |R| em final <strong>de</strong> sílaba, seguido <strong>de</strong> uma vogal<br />

posterior oral, se transcreve “r”, como em “carta”, “porta”; o fonema |S| <strong>de</strong>pois da vogal oral,<br />

menos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> vocábulo precedido ou não por prefixo, isto é, /S/ se realiza<br />

surdo antes <strong>de</strong> /p/, /t/, /k/, /f/ e sonoro antes das <strong>de</strong>mais consoantes, a regra <strong>de</strong>termina que se<br />

grafe “s” como em “caspa”, “pasta”, “lesma”, “asno”. Se a realização do fonema /j/ figurar<br />

<strong>de</strong>pois da vogal oral, se grafa “i”, como em “feira”, conforme se vê na tabela 6, a seguir.<br />

Tabela 6. Conversão dos fonemas em final <strong>de</strong> sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo<br />

Final <strong>de</strong> sílaba Depois <strong>de</strong> Exemplos<br />

Fonema<br />

Conversão<br />

|R| r Vogal oral Carta, porta<br />

|S| s Menos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> /e/ em início <strong>de</strong> Caspa, pasta, lesma,<br />

vocábulo precedido ou não por prefixo asno<br />

/j/ l Vogal oral feira<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 82.<br />

A tabela 7 mostra que /r/ e /l/ se realizam em “r” e “l” nos casos <strong>de</strong> encontros<br />

consonantais na mesma sílaba, isto é, sendo o primeiro fonema /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/, /f/, /v/<br />

se converte nos grafemas “p”, “b”, “t”, “d”, “k”, “g”, “f”,”v”, como em “prato”, “simples”,<br />

“cobra”, “blusa”, “letra”, “vidro”, “crise”, “ciclo”, “gran<strong>de</strong>”, “globo”, “fruta”, “flor”, “livro”.<br />

Tabela 7- Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba<br />

Fonema Conversão 1º fonema Conversão Exemplos<br />

/p/ p prato, simples<br />

/r/ e /l/<br />

r e l<br />

/b/ b cobra, blusa<br />

/t/ t letra<br />

/d/ d vidro<br />

/k/ k crise, ciclo


51<br />

/g/ g gran<strong>de</strong>, globo<br />

/f/ f fruta, flor<br />

/v/ v livro<br />

Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático <strong>de</strong> alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 83.<br />

Por fim, Scliar-Cabral (2003b) examina a conversão das vogais nos grafemas que<br />

as representam, levando-se em consi<strong>de</strong>ração: a intensida<strong>de</strong> da sílaba; o timbre da vogal; e a<br />

caixa <strong>de</strong> ressonância, isto é, as vogais orais e nasalizadas. Para a autora, a percepção da sílaba<br />

mais forte no vocábulo ajuda a criança a i<strong>de</strong>ntificar on<strong>de</strong> cai o acento <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>.<br />

Conforme Scliar-Cabral (2003a; b), o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco<br />

letras (a, e, i, o, u) para representar as vogais, embora existam sete vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é,<br />

i) e cinco nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u).<br />

De acordo com Scliar- Cabral (2003b) o acento gráfico marca a intensida<strong>de</strong>,<br />

po<strong>de</strong>ndo grafá-lo com acento agudo ou circunflexo, conforme as regras:<br />

Nos vocábulos proparoxítonos, se as vogais forem orais, o acento circunflexo cai<br />

sempre sobre /e/ ou /o/ e o agudo sempre sobre /i/, /u/, /E/, /j/, /a/ como em “débito”,<br />

“árvore”. [...] Se as vogais forem nasalizadas, o acento circunflexo cai sobre /e/, /o/,<br />

/a/ e o agudo cai sobre /i/e /u/, como em “cúmplice”, “tímpano”. (p. 84)<br />

Os vocábulos oxítonos ou monossílabos tônicos terminados em /e/, /o/, /E/, /j/, /a/,<br />

seguidos ou não do arquifonema |S| a atribuição <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> dois critérios, ou seja,<br />

se a vogal for [+ alta] ou [+nas], <strong>de</strong>ixando a questão do timbre. Ex. “bebê”, “três”,<br />

“pé”. (p. 85)<br />

Os vocábulos paroxítonos terminados em /û/, /õ/, /ã/ ditongo oral <strong>de</strong>crescente ou<br />

crescente, [...] seguidos ou não do arquifonema |S|, como em “álbum”, “álbuns”. [...]<br />

Vogal seguida <strong>de</strong> /p (i)/ e /k (i)/ seguidas do arquifonema |S|, como em “tórax”. [...]<br />

O |R| como em “açúcar”. A regra contempla a variação sociolinguística em que<br />

houve neutralização entre /l/ e |R|, realizado como retroflexa /r/, como em<br />

“possível”. (p. 86)<br />

A intensida<strong>de</strong> nas vogais orais /i/ e /u/, em segundo lugar no hiato, sozinhas na<br />

sílaba (salvo quando seguidas <strong>de</strong> |S|) as vogais /i/ ou /u/ <strong>de</strong>vem se diferentes da<br />

vogal prece<strong>de</strong>nte, seguidas ou não <strong>de</strong> |S|na mesma sílaba como em “caí”, “país” [...]<br />

mas, rainha não tem acento gráfico, pois a segunda vogal do hiato é nasalizada. (p.<br />

86)<br />

Quanto à grafia das vogais nasalizadas, Scliar- Cabral (200b) esclarece que o til,<br />

além <strong>de</strong> assinalar a nasalização das vogais /ã/ e /õ/, marca a sua intensida<strong>de</strong> mais forte nos<br />

ditongos nasalizados em monossílabos tônicos, como em “hão”, “cães”. Já as letras m ou n<br />

marcam a nasalização das vogais em final <strong>de</strong> sílaba interna e também em final <strong>de</strong> sílaba que<br />

não esteja em final <strong>de</strong> vocábulo; antes <strong>de</strong> /p/ e /b/ que iniciem sílaba seguinte é marcada pela<br />

letra m, como em “tempo”, “tumba”. Antes das <strong>de</strong>mais consoantes, a nasalização é assinalada<br />

pela letra n, como em “longe”, “anzol”, “sons”. A nasalização das vogais /i/, /õ/ com ou sem<br />

intensida<strong>de</strong>, em final <strong>de</strong> vocábulo, é assinalada graficamente pela letra m; a nasalização da<br />

vogal /õ/, sem intensida<strong>de</strong>, é assinalada pela letra n. Antes <strong>de</strong> |S| em final <strong>de</strong> vocábulo, a


52<br />

nasalização das vogais mencionadas acima é assinalada obrigatoriamente pela letra n, por<br />

exemplo em “ruins” “fins”, “atuns” e outros. A vogal nasalizada /ã/, com ou sem acento <strong>de</strong><br />

intensida<strong>de</strong>, seguida ou não <strong>de</strong> |S|, em final <strong>de</strong> vocábulo, é marcada graficamente pelo til,<br />

como em “lã”, “maçã”, “fãs”.<br />

Nesta seção, <strong>de</strong>screvemos o sistema alfabético escrito com intuito <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />

as dificulda<strong>de</strong>s pelas quais o alfabetizando passa ao <strong>de</strong>smembrar a ca<strong>de</strong>ia da fala. A seguir,<br />

passamos a apresentar alguns aspectos da perspectiva histórico-cultural <strong>de</strong> Vygotsky,<br />

enfatizando a Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal. E por último, a apropriação da linguagem<br />

escrita pela criança e suas implicações pedagógicas.<br />

2.3 O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E<br />

APRENDIZAGEM: RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO<br />

NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO<br />

Neste trabalho, a alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da<br />

escrita visando às práticas sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma<br />

receita culinária. Mas, além <strong>de</strong>ssas práticas domésticas cotidianas, existem ainda as práticas<br />

acadêmicas: artigo científico, monografia, dissertação e outros. Para fazer isso, importa<br />

dominar o código alfabético, pois sem esse conhecimento é inviável a realização <strong>de</strong>ssas<br />

práticas sociais. Todo processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem <strong>de</strong>manda teorização <strong>de</strong> base<br />

educacional. Dessa forma, como o trabalho aborda a alfabetização, precisamos <strong>de</strong> uma teoria<br />

<strong>de</strong> aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento que fundamente esse processo. Assim sendo, elege-se a<br />

revisão <strong>de</strong> pontos pertinentes da teoria <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> Vygotsky (1999), por enten<strong>de</strong>r<br />

que a mediação, a troca <strong>de</strong> experiência e a importância da contextualização contribuem para o<br />

aprendizado.<br />

2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo <strong>de</strong> aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento


53<br />

A obra <strong>de</strong> Vygotsky, sobretudo nas décadas finais do século XX, foi largamente<br />

discutida nas áreas da Educação e da Psicologia. O estudo concentra-se em <strong>de</strong>screver e<br />

explicar as funções psicológicas superiores, principalmente o conjunto <strong>de</strong> conhecimentos e<br />

habilida<strong>de</strong>s específicas, no que se refere à importância da linguagem e da cultura como<br />

peculiarida<strong>de</strong>s do homem. Sua teoria histórico-cultural parte do pressuposto <strong>de</strong> que é na<br />

relação com o outro que nos constituímos como sujeitos, enquanto a apropriação da cultura<br />

pelo homem ocorre pela mediação social.<br />

Para Vygotsky (1999), a capacida<strong>de</strong> do ser humano <strong>de</strong> planejar ações, tomar<br />

<strong>de</strong>cisões, armazenar conhecimentos e imaginar situações que não existem constitui fenômenos<br />

complexos que implicam funções psicológicas superiores. Esse autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a mediação<br />

<strong>de</strong> um interlocutor mais experiente possibilita o acesso ao conhecimento do objeto <strong>de</strong><br />

aprendizagem; <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> ainda a linguagem como essencialmente <strong>de</strong> natureza psicológica<br />

humana. Tal mediação passa a existir na interação homem-ambiente pelo uso <strong>de</strong> instrumentos<br />

e <strong>de</strong> signos, o que exige do homem a habilida<strong>de</strong> para modificar e transformar a natureza a sua<br />

volta. Desse modo, as funções psicológicas superiores operam como mediadoras no mundo<br />

real, e as ferramentas usadas para essas mediações <strong>de</strong>terminam, fundamentalmente, o<br />

resultado do percurso escolhido, mudando a maneira <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> agir do homem. As<br />

mediações são indispensáveis para o <strong>de</strong>senvolvimento dos processos mentais superiores; as<br />

operações indiretas (ou mediadas) acontecem gradualmente como resultado <strong>de</strong> “[...] um<br />

processo prolongado e complexo, sujeito a todas as leis básicas da evolução psicológica”<br />

(VYGOTSKY, 1999, p. 60).<br />

De acordo com Vygotsky (1999), ao longo da trajetória do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

humano os processos <strong>de</strong> mediação mais aprimorados das funções psicológicas começam a se<br />

organizar quando a criança é capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a função e o uso dos signos externos,<br />

melhorando consi<strong>de</strong>ravelmente o seu <strong>de</strong>sempenho.<br />

Vygotsky constatou também que as crianças menores operam <strong>de</strong> forma direta.<br />

Para as crianças pequenas a representação por signo não faz muito sentido. Apesar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstrar ser capaz <strong>de</strong> relacionar a palavra à imagem, ela não consegue relacionar a imagem<br />

à palavra. O signo (imagem) por sua vez traz à tona uma série <strong>de</strong> novas associações, e então<br />

uma imagem po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma série <strong>de</strong> lembranças. Ao adquirir a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar<br />

a correspondência entre palavra e imagem e vice-versa, a criança estabelece uma correlação<br />

por meio <strong>de</strong> signos. Vygotsky (1999) ensina que inicialmente o interesse da criança <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>


54<br />

apenas dos signos externos, mas com o passar do tempo o seu interesse começa, por meio da<br />

mediação, a operar plenamente com o processo interno. Essa internalização resulta da<br />

reconstrução <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> externa que começa a operar internamente, passando do<br />

processo interpessoal (social) para o intrapessoal (individual). E, após uma série <strong>de</strong><br />

acontecimentos, os processos externos vão sendo incorporados gradativamente ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento humano. Nas palavras <strong>de</strong> Oliveira (2008) é como se, ao longo <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento, o indivíduo “tomasse posse” das formas <strong>de</strong> comportamento fornecidas pela<br />

cultura, num processo em que as ativida<strong>de</strong>s externas e as funções interpessoais se<br />

transformam em ativida<strong>de</strong>s internas, intrapsicológicas.<br />

Em experimentos realizados em laboratórios, Leontiev observou que as crianças<br />

<strong>de</strong> cinco a seis anos geralmente são incapazes <strong>de</strong> usar os cartões para completar a tarefa;<br />

mesmo após a explicação, não conseguiram i<strong>de</strong>ntificar sua função; os estímulos externos<br />

oferecidos não ajudaram a criança a resolver o problema apresentado. Observou também que,<br />

quando fica mais velha, a criança utiliza os cartões com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolver o problema<br />

apresentado, e o seu comportamento passa a ser mediado por uso <strong>de</strong> signo. Assim, o uso <strong>de</strong><br />

signos externos começa a operar a partir <strong>de</strong> oito anos, aproximadamente. Nessa ida<strong>de</strong>, a<br />

criança é capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a sua função e melhorar seu <strong>de</strong>sempenho por meio <strong>de</strong>ssa<br />

mediação. Des<strong>de</strong> cedo a criança apresenta a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar operações complexas, mas<br />

Leontiev constatou, em seus experimentos, que existem os sistemas psicológicos <strong>de</strong> transição<br />

<strong>de</strong>correntes do nível inicial (comportamento elementar) e dos níveis superiores (formas<br />

mediadas <strong>de</strong> comportamento), processo ao qual foi atribuído o nome <strong>de</strong> história natural do<br />

signo.<br />

Apoiando-se nessas pesquisas <strong>de</strong>senvolvidas por seus colaboradores, Vygotsky<br />

(1999) afirma que, para enten<strong>de</strong>r signo e instrumento em profundida<strong>de</strong> e confirmar a real<br />

ligação entre eles, ou pelo menos dar um indício <strong>de</strong> sua existência, são necessárias três<br />

condições: em primeiro lugar, existe similarida<strong>de</strong> entre signo e instrumento; em ambos os<br />

casos, a materialização acontece por meio da mediação, portanto po<strong>de</strong>m “ser incluídos na<br />

mesma categoria” (VYGOTSKY, 1999, p.71). A segunda condição, a diferença entre signo e<br />

instrumento, resi<strong>de</strong> na organização do comportamento humano. Se, por um lado, o<br />

instrumento se “constitui em um meio pelo qual a ativida<strong>de</strong> humana externa é dirigida para o<br />

controle e domínio da natureza” (VYGOTSKY, 1999, p.73), por outro lado, o signo é<br />

essencialmente interno e é controlado pelo próprio sujeito. E, por último, a origem <strong>de</strong> signo e<br />

instrumento, condição ancorada na filogênese e na ontogênese: ao provocar mudança na<br />

natureza, o homem muda a si próprio; ou seja, ao modificar o uso <strong>de</strong> instrumentos


55<br />

culturalmente e atribuir-lhes novas funções, o homem se vê compelido a modificar seu<br />

próprio comportamento.<br />

Finalmente, a criança <strong>de</strong>senvolve a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interagir com os adultos, que<br />

lhe proporciona o contato direto com a cultura. Como já se viu aqui, as características dos<br />

indivíduos originam-se das trocas <strong>de</strong> uns com os outros, basicamente nas interações com os<br />

signos e nas mediações com os mais velhos. Isso é, a interação social, seja diretamente com<br />

outros membros da cultura, seja através dos diversos elementos do ambiente culturalmente<br />

estruturado, fornece a matéria-prima para o <strong>de</strong>senvolvimento psicológico do indivíduo<br />

(OLIVEIRA, 2008, p. 38). Assim, é na interação entre os indivíduos, que o sujeito ao mesmo<br />

tempo valoriza e interioriza as idéias <strong>de</strong> uma outra pessoa e <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, e também po<strong>de</strong><br />

agir sobre o meio do qual faz parte e provocar constantes transformações. Ou seja, a vida<br />

social é um processo dinâmico, em que cada sujeito é ativo e acontece a interação entre o<br />

mundo cultural e o mundo subjetivo <strong>de</strong> cada um (OLIVEIRA, 2008, p. 38).<br />

2.3.2 Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal<br />

Para estudar o comportamento, é impossível excluir o fator biológico e as funções<br />

psicológicas superiores <strong>de</strong> origem sociocultural (VYGOTSKY, 1999). As <strong>de</strong>scobertas <strong>de</strong><br />

Vygotsky evi<strong>de</strong>nciam a importância dos instrumentos e símbolos fornecidos pelas mediações<br />

sociais na relação entre o indivíduo e o mundo: a criança vive e interage em contextos sociais<br />

diferentes; é praticamente impossível não ter nenhum contato com o mundo a sua volta por<br />

menor que seja. Ao estabelecer esses contatos, a criança inicia o aprendizado <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />

conceitos inicialmente experimentados com a ajuda <strong>de</strong> adultos ou pessoas mais experientes e<br />

que mais tar<strong>de</strong> passam a dominar e realizar sem a ajuda <strong>de</strong> terceiros. Ou seja: o que a criança<br />

po<strong>de</strong> fazer hoje com o auxílio dos adultos, po<strong>de</strong>rá fazê-lo amanhã por si só (VYGOTSKY,<br />

1998, p. 113).<br />

Portanto, aprendizagem e <strong>de</strong>senvolvimento estão inter-relacionados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

primeiro dia <strong>de</strong> vida da criança (VYGOTSKY, 1999, p. 110), embora não coincidam. Na<br />

perspectiva <strong>de</strong>fendida por esse autor, o aprendizado é o aspecto necessário e universal, uma<br />

espécie <strong>de</strong> garantia do <strong>de</strong>senvolvimento das características psicológicas especificamente


56<br />

humanas e culturalmente organizadas (REGO, 1999, p. 71). Sobre o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

humano, Vygotsky não chegou a formular uma concepção estruturada a partir da qual<br />

pudéssemos interpretar o percurso psicológico do ser humano; em sua obra ele enfatizou a<br />

importância dos processos <strong>de</strong> aprendizagem (OLIVEIRA, 2008, p. 56).<br />

Na concepção <strong>de</strong> Vygostky (1999), para <strong>de</strong>terminar o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizado, <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>terminar pelo menos dois níveis<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento: o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento real correspon<strong>de</strong> ao que a criança domina e<br />

realiza sozinha sem a ajuda <strong>de</strong> adultos ou parceiros mais velhos, e o nível <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento potencial correspon<strong>de</strong> ao que a criança é capaz <strong>de</strong> fazer por intermédio das<br />

mediações com adultos ou membros mais experientes <strong>de</strong> seu grupo. O percurso realizado do<br />

nível real para o nível potencial, Vygotsky <strong>de</strong>nominou Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal.<br />

Nas palavras <strong>de</strong> Oliveira (2008, p. 60):<br />

A Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal refere-se, assim, ao caminho que o indivíduo<br />

vai percorrer para <strong>de</strong>senvolver funções que estão em processo <strong>de</strong> amadurecimento e<br />

que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas no seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

real. A Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal é, pois, um domínio psicológico em<br />

constante transformação; aquilo que uma criança é capaz <strong>de</strong> fazer com a ajuda <strong>de</strong><br />

alguém hoje, ela conseguirá fazer sozinha amanhã é como se o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento progredisse mais lentamente que o processo <strong>de</strong> aprendizado; o<br />

aprendizado <strong>de</strong>sperta processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que, aos poucos, vão tornar-se<br />

parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo.<br />

Esse conceito <strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal <strong>de</strong> Vygotsky (1999) auxilianos<br />

a compreen<strong>de</strong>r como acontece a aprendizagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado conhecimento. Ele serve<br />

para explicar o percurso que o indivíduo faz ao <strong>de</strong>senvolver ações <strong>de</strong> maturação <strong>de</strong> algum<br />

conceito e como em contato com <strong>de</strong>terminada situação por mediação <strong>de</strong> outro indivíduo, com<br />

mais experiência, essas ações são concretizadas, atingindo o nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento real do<br />

indivíduo.<br />

Uma das implicações do conceito <strong>de</strong> Zona <strong>de</strong> Desenvolvimento Proximal, pelo<br />

viés pedagógico, é consi<strong>de</strong>rar o processo <strong>de</strong> aprendizagem integralmente e não apenas a<br />

finalização das ativida<strong>de</strong>s, isto é, o produto. O percurso para resolver um problema, tanto por<br />

parte do professor quanto por parte do aluno, é muito importante: ambos <strong>de</strong>vem examinar as<br />

práticas vivenciadas em sala <strong>de</strong> aula. O <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>sse novo “mo<strong>de</strong>lo” <strong>de</strong> professor é trazer<br />

como possibilida<strong>de</strong>, novas ações para a apropriação <strong>de</strong> um conteúdo específico. Dessa forma,<br />

amadurecer ou <strong>de</strong>senvolver funções mentais é algo que <strong>de</strong>ve ser encorajado e medido pela


57<br />

colaboração, e não por ativida<strong>de</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e isoladas (MOLL, 1996, p. 5). Po<strong>de</strong>mos<br />

então inferir, com o respaldo das pesquisas <strong>de</strong> Vygotsky (1999), que numa turma <strong>de</strong><br />

alfabetização é preciso consi<strong>de</strong>rar o contexto sócio-histórico-cultural em que a criança está<br />

inserida; usar o que ela já domina como ponto <strong>de</strong> partida para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o processo da<br />

aprendizagem; analisar e traçar o percurso para realização das ativida<strong>de</strong>s e, por fim, oferecer<br />

estratégias pedagógicas que a auxiliem a <strong>de</strong>senvolver suas potencialida<strong>de</strong>s.<br />

2.3.3 A pré-história da linguagem escrita<br />

Dominar a linguagem escrita significa um extraordinário avanço no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento humano. Tal sistema complexo <strong>de</strong> signos aumenta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

registrar informações. Dessa perspectiva, as contribuições <strong>de</strong> Vygotsky (1999) nos auxiliam a<br />

compreen<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da linguagem escrita. Segundo esse autor (1999,<br />

p. 139), “ensina-se as crianças a <strong>de</strong>senhar letras e construir palavras com elas, mas não se<br />

ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se <strong>de</strong> tal forma a mecânica <strong>de</strong> ler o que está escrito que<br />

acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal”. Afirma, ainda, em relação à linguagem<br />

falada, que a criança po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se por si mesma, enquanto o ensino da linguagem<br />

escrita <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um treinamento artificial; assim, a escrita precisa ser ensinada.<br />

Para Vygotsky (1999), a linguagem escrita é um sistema <strong>de</strong> símbolos e signos,<br />

chamado <strong>de</strong> simbolismos <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m e que gradativamente se torna um simbolismo<br />

direto. O autor i<strong>de</strong>ntifica três aspectos importantes para o <strong>de</strong>senvolvimento da escrita: os<br />

gestos e signos visuais, o brinquedo e o <strong>de</strong>senho. O gesto é o signo visual que contém a futura<br />

escrita da criança, e existem momentos em que os gestos estão ligados à origem dos signos<br />

escritos: o primeiro rabisco das crianças.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento do simbolismo no brinquedo, o segundo aspecto, que une os<br />

gestos à linguagem escrita, diz respeito aos jogos das crianças. Para elas, alguns objetos<br />

po<strong>de</strong>m logo <strong>de</strong>notar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos: assim, um cabo <strong>de</strong><br />

vassoura po<strong>de</strong> transformar-se num cavalinho <strong>de</strong> pau. A representação simbólica no brinquedo<br />

ocorre quando a criança pega um objeto e com ele <strong>de</strong>senvolve uma ativida<strong>de</strong> imaginária;<br />

assim, um objeto adquire uma função <strong>de</strong> signo. Por fim, o <strong>de</strong>senho começa quando a


58<br />

linguagem falada já teve gran<strong>de</strong> progresso. As crianças <strong>de</strong>senham apenas <strong>de</strong> memória, não<br />

<strong>de</strong>senham o que veem, mas o que conhecem, e esses <strong>de</strong>senhos têm por base a linguagem<br />

verbal, que é o primeiro estágio do <strong>de</strong>senvolvimento da linguagem escrita. Com o passar do<br />

tempo, o que foi <strong>de</strong>senhado (escrita pictográfica) adquire a formalida<strong>de</strong> da escrita i<strong>de</strong>ográfica.<br />

Ou seja, o <strong>de</strong>senho acompanha a frase, processo essencial para o <strong>de</strong>senvolvimento da escrita e<br />

do <strong>de</strong>senho na criança (VYGOTSKY, 1999, p. 151).<br />

Dentre os pesquisadores que colaboravam com Vygotsky, Luria (1998) oferece os<br />

subsídios para compreen<strong>de</strong>rmos o processo pelo qual a criança inicia o aprendizado da<br />

linguagem escrita. Nas suas próprias palavras (1998, p. 144):<br />

Iniciamos on<strong>de</strong> pensamos encontrar as origens da escrita e [...] se formos capazes <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante<br />

instrumento para os professores, o conhecimento daquilo que a criança era capaz <strong>de</strong><br />

fazer antes <strong>de</strong> entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles po<strong>de</strong>rão fazer<br />

<strong>de</strong>duções ao ensinar seus alunos a escrever.<br />

Assim, para o estudioso, o escrever pressupõe a habilida<strong>de</strong> para usar alguma<br />

insinuação (por exemplo: uma linha, uma mancha, um ponto) como signo funcional auxiliar,<br />

sem qualquer sentido ou significado em si mesmo, mas apenas como uma operação auxiliar<br />

(LURIA, 1998, p. 145). Ou seja: antes <strong>de</strong> entrar na escola para apren<strong>de</strong>r a escrever, a criança<br />

traz consigo um conjunto <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s que foram <strong>de</strong>senvolvidas anteriormente. Portanto, se<br />

tomarmos como ponto <strong>de</strong> partida essas habilida<strong>de</strong>s que foram construídas naturalmente pela<br />

própria criança, teremos a circunstância propícia para combinar e criar novas maneiras <strong>de</strong><br />

ensinar a escrever distintas da anterior.<br />

Baseando-se em seus experimentos com crianças, Luria (1998) apresentou um<br />

percurso para a pré-história da escrita. Oliveira (2008) reconhece três fases <strong>de</strong> produção<br />

escrita <strong>de</strong> crianças não alfabetizadas na obra <strong>de</strong> Luria (1998): a primeira fase, <strong>de</strong>nominada<br />

rabiscos mecânicos, não tem nenhuma função instrumental; nessa fase, a criança é incapaz <strong>de</strong><br />

utilizar sua produção escrita como apoio para recuperar a informação a ser lembrada. Em<br />

outras palavras, a criança não faz associação entre o rabisco e a sentença ditada; assim, ela é<br />

capaz <strong>de</strong> imitar os adultos, mas é completamente incapaz <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r os atributos<br />

psicológicos específicos que qualquer ato <strong>de</strong>ve ter, caso venha a ser usado como instrumento<br />

a serviço <strong>de</strong> algum fim (LURIA, 1998, p. 149).<br />

Na segunda fase, Oliveira (2008) reconhece as marcas topográficas, nível mais<br />

avançado <strong>de</strong> escrita em que as crianças distribuem seus rabiscos pelo papel na tentativa <strong>de</strong><br />

mapear o que <strong>de</strong>ve ser lembrado e também para lembrar o conteúdo, pela posição <strong>de</strong>ssas


59<br />

marcas no papel. Em outro momento, a criança passa a diferenciar pelo conteúdo o que é dito,<br />

preocupando-se em distinguir quantida<strong>de</strong>, forma e outras características concretas das coisas<br />

ditas. Ou seja, o signo auxiliar (linhas, bolinhas, pontos, manchas) começa a servir para<br />

relacionar o que foi produzido com o que <strong>de</strong>ve ser recordado. Assim, a criança passa por um<br />

processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos<br />

povos primitivos (LURIA, 1998, p. 157).<br />

Finalmente, Oliveira (2008) i<strong>de</strong>ntifica a fase <strong>de</strong> representações pictográficas,<br />

quando os <strong>de</strong>senhos não são utilizados como forma <strong>de</strong> expressão individual, mas como<br />

instrumentos, como signos mediadores que representam <strong>de</strong>terminados conteúdos, <strong>de</strong> forma<br />

que a criança consegue expor suas i<strong>de</strong>ias por meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos ou figuras simbólicas<br />

contendo um significado pessoal. Mais tar<strong>de</strong> esses caminhos levam a criança à escrita<br />

simbólica; primeiramente, transformando o <strong>de</strong>senho num significado simbólico, e <strong>de</strong>pois num<br />

significado funcional. É oportuno lembrar que a criança aqui não sabe usar a escrita, mas já<br />

inicia seu processo <strong>de</strong> compreensão da escrita alfabética.<br />

Resumindo, este capítulo foi dividido em três seções. Na primeira seção,<br />

abordamos a apropriação da escrita na escola: alfabetização em contextos <strong>de</strong> sentido.<br />

Inicialmente priorizamos os documentos oficiais, em virtu<strong>de</strong> do nosso foco <strong>de</strong> interesse, a<br />

concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs <strong>de</strong> Língua Portuguesa do<br />

Ensino Fundamental. Em seguida, explanamos sucintamente sobre os usos sociais da escrita e<br />

o conceito <strong>de</strong> gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento da Escola <strong>de</strong> Genebra,<br />

viés pelo qual a interação entre os falantes organiza-se em forma <strong>de</strong> enunciados relativamente<br />

estáveis (BAKHTIN, 2006). Escrevemos ainda sobre a base epistemológica do<br />

interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY, DOLZ,<br />

NOVERRAZ, 2004), que concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo, e<br />

constantemente modificado pela ação dos sujeitos. Essa corrente teórica apresenta a sequência<br />

didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) como proposta <strong>de</strong> intervenção<br />

metodológica para <strong>de</strong>senvolver um <strong>de</strong>terminado gênero. Finalizamos a seção discutindo o<br />

gênero lenda como possibilida<strong>de</strong>s didático-pedagógicas, com base no interesse da criança em<br />

ouvir histórias.<br />

Na segunda seção, tratamos das particularida<strong>de</strong>s do código. Primeiramente,<br />

discorremos sobre as similarida<strong>de</strong>s e as diferenças entre oralida<strong>de</strong> e escrita, por enten<strong>de</strong>r o<br />

processo da ca<strong>de</strong>ia da fala como um contínuo que reflete diretamente na escrita. A seguir,<br />

tratamos da importância da consciência fonológica; o reconhecimento das letras que<br />

compõem as palavras, as sílabas e os fonemas-grafemas, estes dois últimos com a função <strong>de</strong>


60<br />

distinguir significados. No tema a seguir <strong>de</strong>screvemos as dificulda<strong>de</strong>s para reconhecer as<br />

letras que compõem as palavras com as quais a criança entra em contato ao iniciar o processo<br />

<strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong> escrita.<br />

Na terceira seção, apresentamos uma discussão sobre o papel do alfabetizador no<br />

processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem da alfabetização baseando-nos na teoria Vygotskiniana<br />

sobre <strong>de</strong>senvolvimento e aprendizagem. No tópico a seguir abordamos a Zona <strong>de</strong><br />

Desenvolvimento Proximal. E por último, examinamos os princípios que conduzem a<br />

aprendizagem da escrita pela criança <strong>de</strong> acordo com Luria (1998). Após a apresentação da<br />

fundamentação teórica, passamos aos procedimentos metodológicos.<br />

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS<br />

No capítulo anterior apresentamos os aportes teóricos que orientaram a pesquisa.<br />

Este capítulo <strong>de</strong>stina-se à metodologia. Como mencionado anteriormente, o objetivo da<br />

presente pesquisa é <strong>de</strong>screver a proposição <strong>de</strong> encaminhamento metodológico para o processo<br />

<strong>de</strong> apropriação da língua escrita numa classe <strong>de</strong> alfabetização tendo a lenda como gênero-


61<br />

instrumento na ação didático-pedagógica. Por questão <strong>de</strong> ética <strong>de</strong> pesquisa, os nomes reais<br />

foram substituídos com o propósito <strong>de</strong> preservar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da criança, razão pela qual<br />

adotamos a or<strong>de</strong>m alfabética, letras maiúsculas, para nomear as produções textuais.<br />

Apresentamos o tipo <strong>de</strong> pesquisa realizada; em seguida o contexto da pesquisa e a<br />

organização dos dados, e finalmente a forma como foram analisados.<br />

Convém salientar que, para <strong>de</strong>screver a escola, a turma e a sala <strong>de</strong> aula, usamos os<br />

documentos: Plano <strong>de</strong> Ação, em forma <strong>de</strong> gra<strong>de</strong>, que se refere ao cronograma <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e<br />

<strong>de</strong>termina a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> realizá-las; o Projeto Político-Pedagógico (P P P) que aten<strong>de</strong>u o biênio<br />

<strong>de</strong> 2004-2005, cuja meta principal foi orientar o trabalho pedagógico para formação do<br />

educando na busca <strong>de</strong> uma convivência fraterna no meio social e inseri-lo no mundo da<br />

cultura e do conhecimento científico do processo ensino-aprendizagem (p. 3). Usamos ainda<br />

uma máquina fotográfica para registrar as ativida<strong>de</strong>s; e também o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento,<br />

que foi importante não somente em relação às ativida<strong>de</strong>s, mas para <strong>de</strong>screver as intervenções<br />

realizadas ao longo do processo. E por último, o diário <strong>de</strong> classe, documento que registra<br />

diariamente os conteúdos que foram trabalhados. Em alguns casos, examinamos o relatório<br />

individual do aluno, documento solicitado à secretaria da escola com antecedência. Dos<br />

documentos: Plano <strong>de</strong> Ação e Projeto Político-Pedagógico, a coor<strong>de</strong>nadora pedagógica da<br />

escola nos forneceu uma cópia em CD.<br />

3.1 TIPO DE ESTUDO<br />

Por se tratar <strong>de</strong> pesquisa na área educacional, optou-se por uma abordagem que<br />

documenta a realida<strong>de</strong>, a dinâmica e a complexida<strong>de</strong> do contexto <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula. Segundo<br />

Ludke e André (1986), à medida que avançam os estudos da educação, mais evi<strong>de</strong>nte se torna<br />

seu caráter <strong>de</strong> flui<strong>de</strong>z dinâmica e <strong>de</strong> mudança, natural a todo ser vivo. E mais claramente se<br />

nota a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver métodos <strong>de</strong> pesquisa que atentem para esse caráter<br />

dinâmico.<br />

A abordagem qualitativa foi utilizada porque envolve a obtenção <strong>de</strong> dados<br />

<strong>de</strong>scritivos, colhidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais


62<br />

o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes<br />

(LUDKE, ANDRÉ, 1986). Sendo assim, é imprescindível um contato direto com a situação<br />

pesquisada para fornecer, em sua análise, elementos necessários para compreen<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>terminada situação a<strong>de</strong>quadamente. Estudos <strong>de</strong>ssas ocorrências específicas são essenciais<br />

para oportunizar ao pesquisador enten<strong>de</strong>r e suscitar a realida<strong>de</strong> dinâmica e complexa em que<br />

se insere <strong>de</strong>terminado objeto <strong>de</strong> estudo.<br />

Nesta pesquisa, com base no referencial teórico procurou-se compreen<strong>de</strong>r e<br />

interpretar a realida<strong>de</strong> estudada. Para tanto, estabeleceu-se uma interação entre os dados reais<br />

e suas possíveis explicações teóricas que permitem estruturar um quadro teórico <strong>de</strong>ntro do<br />

qual o fenômeno po<strong>de</strong> ser interpretado e compreendido (LUDKE, ANDRÉ, 1986).<br />

Por se tratar <strong>de</strong> uma única turma da re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> ensino do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, o<br />

estudo <strong>de</strong> caso foi escolhido como metodologia por melhor instrumentalizar o contexto da<br />

pesquisa, tomando a aplicação das ativida<strong>de</strong>s e as produções dos alunos como interesse único<br />

e respeitando sua singularida<strong>de</strong>. Assim, o princípio básico <strong>de</strong>ste estudo é que, para uma<br />

apreensão mais completa do objeto, é preciso levar em conta o contexto em que ele se situa<br />

(LUDKE, ANDRÉ, 1986).<br />

3.2 CONTEXTO DA PESQUISA<br />

Apresentamos nesta seção o contexto da pesquisa: a escola, a turma e a sala <strong>de</strong><br />

aula on<strong>de</strong> foi realizada a pesquisa. Em seguida, <strong>de</strong>stacamos a organização dos dados e,<br />

finalmente, a forma <strong>de</strong> analisá-los.<br />

3.2.1 A escola<br />

A pesquisa foi realizada numa escola pública do Distrito Fe<strong>de</strong>ral; e os dados<br />

foram coletados numa turma <strong>de</strong> primeira série no <strong>de</strong> 2005.<br />

A coleta <strong>de</strong> dados foi realizada no Centro <strong>de</strong> Ensino Fundamental 06, situado na<br />

Quadra 03, Área Especial 1/2, na cida<strong>de</strong> satélite <strong>de</strong> Sobradinho/DF. De acordo com o Projeto


63<br />

Político-Pedagógico (2004-2005), essa escola passou a existir a partir da fusão da Escola<br />

Classe 02 com a Escola Classe 08, iniciando suas ativida<strong>de</strong>s em 14 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1977. Ainda <strong>de</strong><br />

acordo com o documento, no ano <strong>de</strong> 2005, foco <strong>de</strong>sta pesquisa, o Centro <strong>de</strong> Ensino<br />

Fundamental 06 aten<strong>de</strong>u 645 alunos <strong>de</strong> 1ª a 4ª série no turno matutino, distribuídos em vinte<br />

turmas; 696 alunos <strong>de</strong> 5ª e 6ª séries no turno vespertino divididos em vinte turmas; três turmas<br />

<strong>de</strong> Educação Infantil e 950 alunos do segundo segmento da Educação <strong>de</strong> Jovens e Adultos no<br />

noturno. O Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) relata que a comunida<strong>de</strong> apresentava<br />

uma renda familiar médio-baixa, e a maioria dos pais cursara o ensino fundamental série<br />

inicial. A formação das famílias era convencional e não convencional: existiam famílias em<br />

que o sustento da casa <strong>de</strong>pendia exclusivamente do trabalho da mulher e/ou dos filhos<br />

menores; alunos que moravam com avós; pais separados que mantinham relacionamentos<br />

diversos; portanto, as famílias que representavam a escola tinham organizações variadas.<br />

Os dados coletados no Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) mostram que a<br />

renda familiar era composta pelo trabalho <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um membro da casa. Na verda<strong>de</strong>, essa<br />

realida<strong>de</strong> dificultava o acesso à vida escolar dos filhos por parte da família, pois nenhum<br />

membro da família podia assumir o compromisso <strong>de</strong> acompanhar suas ativida<strong>de</strong>s escolares.<br />

Gran<strong>de</strong> parte dos alunos morava distante e necessitava <strong>de</strong> transporte para chegar à escola.<br />

Devido a ser maior a <strong>de</strong>manda do que a oferta e à estratégia <strong>de</strong> matrícula exigida pela<br />

Secretaria <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Estado do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, as turmas eram formadas com um<br />

número excessivo <strong>de</strong> alunos, tornando o espaço físico ina<strong>de</strong>quado, o que dificultava o<br />

atendimento individualizado do professor ao aluno. A realização das ativida<strong>de</strong>s que exigiam<br />

movimentação da turma ficava extremamente comprometida. Nesse quadro, alguns fatores<br />

influenciaram diretamente a dinâmica escolar: a falta <strong>de</strong> acompanhamento dos pais, a<br />

superlotação das salas, a indisciplina, a falta <strong>de</strong> material pedagógico e <strong>de</strong>sconhecimento das<br />

regras que fazem parte do bom andamento da escola, entre outros. Essas influências<br />

interferiram na aprendizagem dos alunos, gerando um consi<strong>de</strong>rável quadro <strong>de</strong> repetência<br />

(PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2004-2005, p. 4).<br />

3.2.2 A turma


64<br />

Para registro dos dados, usamos o diário <strong>de</strong> classe da turma; cópias dos relatórios<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho dos alunos, visto que os originais já tinham sido entregue aos pais em<br />

reuniões, e o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento. Esses documentos foram requisitados à escola com<br />

antecedência <strong>de</strong> quinze dias, pois o elevado fluxo <strong>de</strong> atendimento diário da secretaria<br />

inviabilizou o recebimento imediato. Ter acesso aos documentos nos possibilitou registrar o<br />

perfil da turma, sobretudo as particularida<strong>de</strong>s das práticas <strong>de</strong> linguagem <strong>de</strong> que participam.<br />

De acordo com o Diário <strong>de</strong> Classe no início do ano letivo <strong>de</strong> 2005, a turma era<br />

composta <strong>de</strong> quarenta e dois alunos. As transferências foram concedidas por diversos<br />

motivos, entre os quais: mudança <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, para escolas mais próximas <strong>de</strong> suas residências e<br />

até mudança para outros Estados da Fe<strong>de</strong>ração. Transferências foram feitas no mês <strong>de</strong> julho,<br />

gerando uma distorção nos resultados, pois saíram alunos que já estavam adiantados no<br />

processo <strong>de</strong> escrita e, em contrapartida, chegaram alunos iniciantes no processo. Mesmo com<br />

as entradas e saídas, restavam trinta e uma crianças, don<strong>de</strong> se conclui que ocorreram onze<br />

transferências. Das trinta e uma crianças matriculadas na turma, a maioria já frequentara a<br />

pré-escola, o que significa que elas já haviam tido contato com a linguagem escrita. Dessa<br />

maneira, terminamos o ano letivo com trinta e um alunos com ida<strong>de</strong> entre oito e <strong>de</strong>z anos. Do<br />

conjunto, vinte e nove haviam frequentado a Educação Infantil em escola pública; um aluno<br />

era proce<strong>de</strong>nte do lar e um aluno era repetente da série. A maioria era do sexo feminino.<br />

Conforme o diagnóstico inicial da turma registrado no Diário <strong>de</strong> Classe, <strong>de</strong> modo<br />

geral, no início do ano alguns alunos <strong>de</strong>monstravam dificulda<strong>de</strong> em respeitar regras<br />

estabelecidas pela escola e pela turma. Eles eram inquietos e conversavam <strong>de</strong>mais. Alguns<br />

alunos apresentavam comportamento disperso, baixa concentração, falta <strong>de</strong> interesse e muita<br />

dificulda<strong>de</strong> para realizar as tarefas. Algumas crianças apresentavam traços <strong>de</strong> violência e<br />

intolerância com os colegas da sala e da escola. Na verda<strong>de</strong>, eles precisavam <strong>de</strong>senvolver as<br />

habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saber ouvir, falar, participar, colaborar e interagir uns com os outros. A maioria<br />

dos alunos gostava <strong>de</strong> programas infantis. Mas, ao contrário disso, <strong>de</strong> acordo com os<br />

<strong>de</strong>poimentos, assistiam com frequência a programas voltados para o público adulto. O Diário<br />

<strong>de</strong> Classe registra ainda que as crianças apresentavam disposição para ativida<strong>de</strong>s musicais,<br />

danças, teatros, jogos e brinca<strong>de</strong>iras livres e dirigidas. Em relação à matemática, eles<br />

apresentavam dificulda<strong>de</strong>s nos conceitos <strong>de</strong> seriação, inclusão, classificação, sequência<br />

lógica, interpretação e resolução <strong>de</strong> situação problema simples (oral). Gran<strong>de</strong> parte da turma<br />

realizava a contagem até 9, mas não era capaz <strong>de</strong> estabelecer a correspondência biunívoca,<br />

isto é, não relacionava <strong>de</strong> um para um a correspondência entre os elementos, em ambas as


65<br />

direções (LEMLE, 2003, p. 17). Em relação ao alfabeto, foi registrado que boa parte das<br />

crianças era capaz <strong>de</strong> “recitá-lo” oralmente em sequência; mas, quando solicitadas que<br />

apontassem letras <strong>de</strong> maneira alternada e aleatória, elas não conseguiam. E também não<br />

reconheciam uma letra prontamente, mas eram capazes <strong>de</strong> utilizar a memória até encontrar a<br />

letra pedida.<br />

3.2.3 A sala <strong>de</strong> aula<br />

A aplicação das ativida<strong>de</strong>s propostas para o ano letivo <strong>de</strong> 2005, <strong>de</strong>mandou<br />

algumas medidas: reorganizar a sala <strong>de</strong> aula, rever o planejamento e a execução das<br />

ativida<strong>de</strong>s; analisar e selecionar o material pedagógico, entre outras.<br />

De acordo com as anotações do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento, para aten<strong>de</strong>r às<br />

especificida<strong>de</strong>s das ativida<strong>de</strong>s aplicadas, o ambiente <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> aula era organizado <strong>de</strong><br />

diversas maneiras, servindo essa reorganização também para dinamizar as aulas. As carteiras<br />

da sala ora eram organizadas em dupla, ora em trio, ora em grupos maiores, ora em grupos<br />

menores; e, em <strong>de</strong>terminados momentos, os alunos também foram agrupados <strong>de</strong> acordo com<br />

suas dificulda<strong>de</strong>s individuais e coletivas. Foi registrado no ca<strong>de</strong>rno, o costume <strong>de</strong> no início <strong>de</strong><br />

ano letivo, a sala <strong>de</strong> aula ser <strong>de</strong>corada com cartazes, alfabetos com diversos tipos e tamanhos<br />

<strong>de</strong> letras, painéis, <strong>de</strong>senhos. Toda essa preparação era entendida como mais uma forma <strong>de</strong><br />

estimular o aluno, pois se acreditava que ele <strong>de</strong>veria ser exposto ao maior número possível <strong>de</strong><br />

estímulos visuais externos. Assim, logo no primeiro dia <strong>de</strong> aula e com esse excesso <strong>de</strong><br />

estímulo, a previsão era <strong>de</strong> se obter um aprendizado mais rápido e eficiente.<br />

No entanto, no ano da realização da pesquisa não aconteceu <strong>de</strong>ssa forma: a i<strong>de</strong>ia<br />

era construir todo esse aparato lúdico com as próprias crianças, e por isso o que elas<br />

encontraram foi apenas um cartaz <strong>de</strong> boas-vindas. Inicialmente, houve um estranhamento<br />

referente à quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cartazes, mas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua efetiva realização, a<br />

finalida<strong>de</strong> era provocar discussões sobre a escrita no momento da preparação dos cartazes.<br />

Nessa ocasião, os alunos também ajudaram a construir o alfabeto. Durante todo o ano letivo<br />

eles participaram da organização e da <strong>de</strong>coração da sala <strong>de</strong> aula.


66<br />

Conforme o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento, a biblioteca da sala <strong>de</strong> aula consistia em<br />

uma caixa, chamada <strong>de</strong> Caixa Mágica, com diferentes portadores <strong>de</strong> gêneros <strong>de</strong> texto:<br />

folhetos, jornais, encartes <strong>de</strong> supermercado, catálogos <strong>de</strong> viagem, gibis, revistas, livros etc.<br />

Ali os estudantes po<strong>de</strong>riam encontrar vários gêneros: receitas, poesias, história em<br />

quadrinhos, quadrinhas, piadas, fábulas, lendas, conto <strong>de</strong> fada etc. Esses materiais ficavam à<br />

disposição das crianças e foram responsáveis por interações extremamente valiosas. Alguns<br />

exemplares foram doados pelos pais, mas a gran<strong>de</strong> maioria pertencia ao meu acervo didático.<br />

Foram organizados com ajuda e cuidado das crianças, chegando ao final do ano com poucos<br />

danos. Também incentivamos as crianças a frequentarem a biblioteca da escola. Embora com<br />

poucos títulos para essa faixa etária, enten<strong>de</strong>mos que esse espaço <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>veria ser<br />

aproveitado pela criança.<br />

Ainda <strong>de</strong> acordo com o registro, a sala não era gran<strong>de</strong>, o mobiliário era velho,<br />

com carteiras e ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> diversos tamanhos; as janelas precisavam <strong>de</strong> reparos, e as pare<strong>de</strong>s<br />

eram rabiscadas e <strong>de</strong>scascadas, causando uma impressão <strong>de</strong>sagradável. Gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> tal<br />

<strong>de</strong>sajuste se atribui ao gran<strong>de</strong> movimento no local: no período vespertino a escola atendia<br />

alunos maiores e, no noturno, adultos.<br />

3.2.4 Organização dos dados<br />

Como apontado anteriormente, os dados foram recolhidos e organizados em três<br />

momentos distintos, obtendo-se um total <strong>de</strong> vinte e oito produções escritas em cada amostra.<br />

Para a escrita da produção textual, procuramos propiciar um ambiente com o<br />

menor estímulo visual possível: cartazes, faixas, letras e <strong>de</strong>senhos foram retirados com o<br />

intuito <strong>de</strong> coletar o texto da criança sem interferência <strong>de</strong> estímulos externos, para que<br />

pudéssemos, <strong>de</strong> fato, ter uma amostra real do seu aprendizado. Tentou-se também controlar o<br />

barulho externo, com o intuito <strong>de</strong> proporcionar à criança um ambiente mais propício à<br />

concentração; mas a tentativa resultou infrutífera, pois a condição da escola impossibilitou o<br />

acesso a uma situação a<strong>de</strong>quada para a produção textual escrita. Infelizmente, não foi possível<br />

calcular até que ponto essas interferências externas comprometeram o <strong>de</strong>sempenho da criança.<br />

Os textos coletados no início do mês <strong>de</strong> março serviram para diagnosticar como os<br />

alunos chegaram à 1ª série. Assim, com base nas evidências existentes preparamos as crianças<br />

para o início do processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. O recolhimento <strong>de</strong>sses


67<br />

exemplares <strong>de</strong> texto se <strong>de</strong>u com vistas à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> monitorar e encaminhar<br />

metodologicamente o <strong>de</strong>sempenho dos alunos. Portanto, a proposta da ativida<strong>de</strong> se constituía<br />

em coletar uma amostra <strong>de</strong> produção textual <strong>de</strong> escrita espontânea, ou seja, naquele momento<br />

não era importante fazer intervenções nem mediações na escrita das crianças, interpelando-as<br />

com perguntas e nem questionando sobre o que foi escrito. Na verda<strong>de</strong>, a intenção era<br />

diagnosticarmos o seu nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento real (VYGOTSKY, 1999); saber como se<br />

sairiam na primeira produção <strong>de</strong> texto e se as crianças eram capazes <strong>de</strong> memorizar e recontar<br />

a lenda.<br />

Para a coleta <strong>de</strong>sta primeira amostra, inicialmente contamos a lenda Potyra - As<br />

lágrimas eternas, <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva (1999), e realizamos diversas ativida<strong>de</strong>s,<br />

tais como: conversas informais sobre as ações das personagens, ilustração, dramatização e<br />

reconto oral coletivo. E, após a troca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias entre as crianças, convidamo-las e as<br />

incentivamos a realizarem a primeira produção individual <strong>de</strong> texto escrito.<br />

A primeira amostra serviu para diagnosticar o que as crianças já dominavam. A<br />

partir dali, concentramos a nossa atenção na aplicação <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s selecionadas, conduzindo<br />

as crianças a <strong>de</strong>senvolverem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as características do gênero lenda e<br />

o sistema alfabético. O objetivo, ao recolher esse conjunto <strong>de</strong> exemplares <strong>de</strong> textos originais<br />

produzidos pelas crianças, era confirmar e examinar a eficiência da realização <strong>de</strong>ssas ações<br />

para a apropriação da linguagem escrita.<br />

No final do mês <strong>de</strong> junho coletamos a produção textual espontânea dos alunos<br />

logo após a aplicação <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s. Tais amostras serviram para acompanhar e observar o<br />

<strong>de</strong>sempenho das crianças na realização das tarefas, cujos resultados foram analisados com a<br />

finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliarmos se havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modificação, <strong>de</strong> melhoria ou <strong>de</strong> recuperação<br />

das ativida<strong>de</strong>s para o semestre seguinte.<br />

No final do mês <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2005 concretizou-se a terceira coleta <strong>de</strong><br />

produção textual espontânea. Privilegiamos as interações verbais (VYGOTSKY, 1999) e as<br />

contribuições comunicativas no momento das discussões e chamamos a atenção para a<br />

estrutura da narrativa do gênero lenda: a situação inicial, o conflito, as ações, a resolução do<br />

problema e a situação final (BRONCKART, 2003). As produções foram recolhidas após a<br />

conclusão do texto. Em nenhum momento houve correção nem intervenção no processo <strong>de</strong><br />

escrita do aluno. Ao final das produções, fizemos anotações sobre o <strong>de</strong>sempenho dos alunos e<br />

sobre a aplicação das oficinas. Essas amostras nos forneceram dados importantes acerca da<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capacitar o aluno para diferenciar um gênero <strong>de</strong> outro e também serviram para<br />

analisarmos o <strong>de</strong>senvolvimento do processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. Convém


68<br />

ressaltar que, o objetivo <strong>de</strong> recolher tais amostras foi examinar como transcorreu o processo<br />

<strong>de</strong> apropriação da língua escrita por meio do reconto <strong>de</strong> lendas produzidas com base no<br />

conceito <strong>de</strong> sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).<br />

3.2.5 Forma <strong>de</strong> análise dos dados<br />

Os dados foram analisados sob dois enfoques: o uso social da escrita e o sistema<br />

alfabético. No uso social da escrita, primeiramente a ênfase recaiu sobre o encaminhamento do<br />

processo metodológico para <strong>de</strong>senvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o<br />

processo <strong>de</strong> aplicação das ativida<strong>de</strong>s baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />

NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Quanto ao<br />

sistema alfabético, explicamos as ativida<strong>de</strong>s aplicadas e analisamos através dos dados, o<br />

percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética.<br />

Em relação ao gênero trabalhado, atentamos para a preocupação <strong>de</strong> preservar o<br />

título original ou criar outro título. Também verificamos o contexto <strong>de</strong> ação dos personagens e<br />

as fases da sequência da narrativa. Outros aspectos <strong>de</strong>talhados foram: as superstições e<br />

crendices; a preservação das sequências dos fatos peculiares da lenda ou criação <strong>de</strong> outras<br />

sequências diferentes das oferecidas pelo autor; a capacida<strong>de</strong> para conservar as ações dos<br />

personagens ou criar novas ações; a relação imagem e texto; quanto ao tema das lendas,<br />

observamos se o aluno respeitou a sequência lógica das fases da narrativa e se <strong>de</strong>monstrou<br />

clareza ao expor suas i<strong>de</strong>ias ao produzir o texto.<br />

Em relação ao código, analisamos como os alunos se apropriaram do sistema<br />

alfabético, mostrando, através dos dados, o seu percurso no processo <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />

Em relação à estrutura linguística, examinamos a escritura convencional <strong>de</strong> palavras e frases e a<br />

separação silábica quando necessário. Não nos esquecemos <strong>de</strong> observar também o uso<br />

a<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> letras maiúsculas e minúsculas, emprego do vocabulário e os mecanismos <strong>de</strong><br />

coesão e coerência.<br />

Passamos à análise <strong>de</strong> dados.


69<br />

4 ANÁLISE DOS DADOS<br />

Neste capítulo, apresentadas as consi<strong>de</strong>rações sobre os fundamentos teóricos e<br />

metodológicos que orientaram nosso estudo, a finalida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong><br />

apropriação da escrita apoiando-nos no gênero lenda como instrumento da ação didáticopedagógica.<br />

Especificamente, este estudo apresenta um recorte do trabalho realizado com o<br />

gênero lenda numa classe <strong>de</strong> alfabetização. Iniciamos <strong>de</strong>screvendo as ativida<strong>de</strong>s mediadas<br />

pela linguagem escrita no contexto da sala <strong>de</strong> aula e prosseguimos analisando a produção dos


70<br />

alunos. Colocamos à disposição do leitor a reprodução e a transcrição da produção textual,<br />

para facilitar a visualização e o acompanhamento dos dados. Na transcrição dos textos não<br />

houve correção <strong>de</strong> nenhuma espécie, respeitando-se a escrita da criança. Para registrar as<br />

ativida<strong>de</strong>s, foram usados: máquina fotográfica, ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> planejamento e o diário <strong>de</strong> classe.<br />

4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM<br />

CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA<br />

Para Schneuwly (2004, p. 24), o instrumento torna-se o lugar privilegiado da<br />

transformação dos comportamentos, explorando as suas possibilida<strong>de</strong>s para enriquecê-los,<br />

transformá-los, mantendo-os ligadas à sua utilização. Dessa forma, na prática em sala <strong>de</strong> aula<br />

as ativida<strong>de</strong>s estruturais são importantes à medida que a sua aplicação faça sentido para<br />

criança, e não a cópia pela cópia e a repetição <strong>de</strong> famílias silábicas sem nenhum significado.<br />

Por outro lado, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar também, que relações sociais são<br />

experimentadas em sala <strong>de</strong> aula e o papel que o aluno exerce enquanto sujeito constituído<br />

socialmente é construído dialogicamente na perspectiva <strong>de</strong> trabalhos com textos; isto é,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos aqui que tomar o gênero como instrumento da ação didática pedagógica serve<br />

para compor estratégias que levem a criança a vivenciar situações adaptadas à sua prática<br />

social.<br />

Neste capítulo tomamos duas direções que, a nosso ver, se complementam entre<br />

si. A primeira diz respeito à apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em<br />

contextos <strong>de</strong> uso social da língua com base em sequências didáticas; acolhemos a<br />

aprendizagem da lenda; aprendizagem da estrutura narrativa da lenda, e por último a<br />

aprendizagem das categorias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na lenda. Na segunda, admitimos a<br />

importância do código no processo <strong>de</strong> alfabetização. Abordamos a apropriação do sistema<br />

alfabético: o gênero lenda como instrumento; a representação <strong>de</strong> que a fala po<strong>de</strong> ser escrita; a<br />

construção da noção <strong>de</strong> palavra no texto escrito e finalizamos a seção com o aprendizado das<br />

relações entre fonemas e grafemas.


71<br />

4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos <strong>de</strong> uso social da<br />

língua com base em sequências didáticas<br />

O objetivo <strong>de</strong>sta seção é explanar a aplicação das ativida<strong>de</strong>s usando um trabalho<br />

com o gênero lenda. Schneuwly e Dolz (2004) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o gênero como (mega) instrumento<br />

<strong>de</strong> ensino-aprendizagem e sua elaboração didática por meio <strong>de</strong> sequências didáticas<br />

(SCHNEUWLY, DOLZ , NOVERRAZ, 2004) organizadas <strong>de</strong> forma sistemática e aplicadas<br />

gradativamente. Portanto, os gêneros como (mega) instrumentos têm a função <strong>de</strong> mediar a<br />

ativida<strong>de</strong> humana. Dessa maneira, as ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas para levar a criança a tornarse<br />

usuário competente da sua língua materna em diversas situações comunicativas: agindo,<br />

buscando soluções para os problemas, intermediando situações, modificando as<br />

representações que fazem do mundo, expressando i<strong>de</strong>ias e pensamentos em diferentes<br />

contextos sociais.<br />

As ativida<strong>de</strong>s envolvendo o gênero lenda foram planejadas seguindo-se um<br />

conjunto <strong>de</strong> recomendações com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regular a seleção do que <strong>de</strong>ve ser trabalhado<br />

com a criança, como se discrimina a seguir.<br />

Inicialmente verificamos a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> títulos, relacionando-os com as<br />

fases <strong>de</strong> interesse propostas por Coelho (2000). Fixamo-nos nas duas primeiras, que abrangem<br />

as classes <strong>de</strong> alfabetização: a fase do leitor iniciante (6/7 anos) e a do leitor em processo (7/8<br />

anos). Depois consi<strong>de</strong>ramos que o gênero lenda é o preferido da faixa etária do leitor iniciante<br />

e do leitor em processo, por se tratar <strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> cunho narrativo, que teve seu início<br />

pela oralida<strong>de</strong>. E mais: as características encontradas nesse gênero ajudam a criança a<br />

produzir linguagem em condições diferentes daquelas praticadas habitualmente no convívio<br />

familiar.<br />

O gênero em questão permite o uso <strong>de</strong> estratégias que po<strong>de</strong>m facilitar as<br />

intervenções metodológicas, possibilitando estudos relacionados a outros temas, como: a<br />

cultura indígena, a diversida<strong>de</strong> cultural, o preconceito cultural, o homem e a natureza, os<br />

valores, as regras, as normas e as leis <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. Além disso, apresenta os<br />

elementos essenciais que compõem o processo <strong>de</strong> escrita, pois os textos po<strong>de</strong>m ser<br />

construídos <strong>de</strong> maneira diferente dos mo<strong>de</strong>los apresentados pelas cartilhas, uma vez que as<br />

crianças que têm a cartilha como único mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escrita construirão uma concepção <strong>de</strong>


72<br />

“texto escrito” amarrada a esse mo<strong>de</strong>lo único (MASSINI-CAGLIARI, 2005). Da perspectiva<br />

do gênero, é possível reunir os elementos para compor a sua inter-relação com o social.<br />

Ao classificar as lendas em cosmogônicas, heróicas, etiológicas, <strong>de</strong> encantamento,<br />

ornitológicas e mitológicas, Oliveira (1951, 1965) pretendia submeter as lendas a um critério<br />

científico, além <strong>de</strong> proporcionar aos leitores subsídios apoiados em estudiosos do folclore<br />

pátrio. Para o autor, existem as lendas que explicam a origem das coisas e fenômenos do<br />

universo (nascimento da noite, do dia, criação dos rios etc.); as que expressam os sentimentos<br />

que fazem parte do humano (amor, ódio, vingança, medo); as que enaltecem os heróis etc.<br />

Enfim, <strong>de</strong> certa forma, entrar em contato com esse gênero po<strong>de</strong> ajudar a criança a interpretar a<br />

realida<strong>de</strong> a sua volta <strong>de</strong> maneira lúdica e prazerosa, expressando um pensamento, uma<br />

conduta social ou mesmo representando uma situação simbolicamente e, sobretudo,<br />

compreen<strong>de</strong>ndo os valores, as normas e as leis <strong>de</strong> uma cultura diferente da sua.<br />

Ainda no intuito <strong>de</strong> justificar a escolha do gênero, consi<strong>de</strong>ramos que a lenda, além<br />

<strong>de</strong> ser um gênero comunicacional (BRONCKART, 2003) que preserva e <strong>de</strong>sperta a<br />

curiosida<strong>de</strong> das crianças, aguçando sua imaginação. E, por fim, o trabalho com as lendas<br />

permite inúmeras pesquisas e <strong>de</strong>scobertas nas diversas áreas, como linguísticas, geográficas,<br />

filosóficas, sociológicas, antropológicas etc.<br />

Dezesseis lendas serviram <strong>de</strong> fundamento didático:<br />

1. Potyra – As lágrimas eternas<br />

2. Yara a rainha das águas<br />

3. Igaranhã – A canoa encantada<br />

4. Thainá Khan<br />

5. João-<strong>de</strong>-barro<br />

6. Lenda do café<br />

7. O Sol e a Lua<br />

8. A lenda da fogueira<br />

9. Irapuru, o canto que encanta<br />

10. Tucanã: o surgimento da noite<br />

11. Lenda do Guaraná<br />

12. Mumuru: Vitória- Régia<br />

13. O cervo Berá – O troféu do amor<br />

14. Mandioca – O pão indígena<br />

15. Guaraná – A essência dos frutos<br />

16. Negrinho do pastoreio


73<br />

Explanadas as recomendações, passamos a <strong>de</strong>screver os passos para <strong>de</strong>senvolver o<br />

reconto coletivo, ativida<strong>de</strong> que foi fundamental para o processo <strong>de</strong> escrita. Para aumentar as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem, <strong>de</strong> recontar oralmente e escrever as lendas, foi programado<br />

um conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s obe<strong>de</strong>cendo a um roteiro. Algumas ativida<strong>de</strong>s foram realizadas em<br />

um período <strong>de</strong> tempo prolongado, outras tiveram curta duração, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do interesse das<br />

crianças. O conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s foi baseado na sequência didática proposta por Schneuwy,<br />

Dolz e Noverraz (2004). A seguir, resumimos o roteiro <strong>de</strong> realização das ativida<strong>de</strong>s:<br />

a) Primeiro passo: a escolha. A lenda ora era escolhida por nós, ora era escolhida<br />

pela turma, e normalmente era submetida a votação. Quando a escolha partia dos alunos,<br />

colocávamos uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> títulos à disposição. Naquele momento, era interessante<br />

observar o critério <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong>les. Uns escolhiam pelas personagens, outros pelas<br />

ilustrações, outros ainda pela capa do livro, e havia aqueles que se mostravam curiosos em<br />

relação ao tema. Com o avançar das aulas, eles ampliaram o leque <strong>de</strong> perguntas e queriam<br />

saber quem era o autor, e nitidamente aos poucos se consolidou a preferência pelo livro<br />

Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros, do pesquisador Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva.<br />

Atribuímos essa preferência a dois motivos: primeiramente, os textos são bem escritos e o<br />

estilo do autor prima pelo zelo e cuidado com o leitor. Em segundo lugar, as ilustrações, que<br />

são do próprio autor, são <strong>de</strong>licadas e <strong>de</strong> bom gosto, elevando a qualida<strong>de</strong> da publicação.<br />

b) Segundo passo: leitura. A maior parte da leitura foi feita por nós e por alguns<br />

convidados, como, por exemplo: um aluno <strong>de</strong> segunda série, professores e eventualmente uma<br />

contadora <strong>de</strong> história. O primeiro contato com a lenda geralmente já <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ava as<br />

ativida<strong>de</strong>s que seriam <strong>de</strong>senvolvidas. Segundo Coelho (2003), o aparecimento do termo lenda<br />

já indica uma característica do gênero, preparando o leitor/ouvinte para o mundo ficcional, o<br />

que exigia preparações específicas, tais como: leitura prévia, treino <strong>de</strong> voz (entonação), leitura<br />

fiel do texto escrito etc.<br />

c) Terceiro passo: conversa informal. Nesse momento, as crianças<br />

compartilhavam suas impressões sobre a lenda e, com a nossa mediação, diversos assuntos<br />

eram tratados focalizando o conteúdo do texto. Por exemplo: os valores sociais, morais e<br />

afetivos, a integração do homem à natureza, a diversida<strong>de</strong> cultural, as normas, as condutas e<br />

as leis, entre muitos outros. O livro do qual a antologia foi retirada foi apresentado às<br />

crianças, <strong>de</strong>stacando-se: autor, personagens, título, ilustrações. As contribuições das crianças<br />

eram sempre bem recebidas. Esse momento <strong>de</strong> interação era bastante aproveitado, com muitas<br />

reflexões sobre o comportamento humano colocadas em pauta. As crianças apreciavam as


74<br />

discussões e opinavam sobre as atitu<strong>de</strong>s das personagens, permitindo que os mais novos<br />

adquirissem experiência com os mais velhos (VYGOTSKY, 1999).<br />

d) Quarto passo: reconto oral. Era realizado <strong>de</strong> várias maneiras e se constituía em<br />

um processo muito rico <strong>de</strong>vido à participação das crianças. Nesse momento, na maioria das<br />

vezes o coletivo prevaleceu sobre o individual. Numa opção <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> realizada, as<br />

crianças sentavam no chão, em fileira, e cada uma completava o dizer da anterior. Outra<br />

opção com resultados positivos era dividir a turma em grupos variados e cada grupo<br />

contribuía para a montagem completa da lenda. Outra opção, muito apreciada, foi trabalhar<br />

em dupla; um contava a lenda para o outro. E também a opção <strong>de</strong> usar a “rodinha” para<br />

compor a lenda; <strong>de</strong>pois, a partir dos fragmentos e com a colaboração <strong>de</strong> todos, construía-se<br />

um todo. Nessa ativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolvemos a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que ao juntar os fragmentos po<strong>de</strong>mos<br />

constituir um todo e, ao contrário, também po<strong>de</strong>mos fragmentar um todo em vários pedaços.<br />

e) Quinto passo: dramatização. Ativida<strong>de</strong> muito prazerosa para as crianças,<br />

porque lhes exercitava a imaginação e criava situações para representar as personagens, os<br />

lugares, os objetos, a natureza etc. E, com intervenções sistemáticas, podia-se ativar a<br />

compreensão da lenda. A turma era dividida <strong>de</strong> diferentes formas: grupos gran<strong>de</strong>s, duplas,<br />

trios, ou cada um por si, em trabalhos individuais. Todo esse fazer <strong>de</strong>pendia da disposição do<br />

planejamento feito e do objetivo traçado para aquela ativida<strong>de</strong>. O trabalho coletivo favorecia a<br />

interação social das crianças, que se influenciavam mutuamente em busca da organização do<br />

grupo (VYGOTSKY, 1999).<br />

f) Sexto passo: lista <strong>de</strong> palavras. As listas foram construídas para esmiuçar a<br />

lenda, como, por exemplo: lista <strong>de</strong> sentimentos, <strong>de</strong> personagens, <strong>de</strong> objetos etc. Elas eram<br />

dirigidas em forma <strong>de</strong> jogos: lengalengas 6 , adivinhas, fichas, rebus 7 etc. As listas <strong>de</strong> palavras<br />

podiam ser produzidas em grupo ou individualmente; em forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, oralmente ou por<br />

escrito.<br />

g) Sétimo passo: ativida<strong>de</strong>s. Foram aplicadas do mês <strong>de</strong> março até o final do mês<br />

<strong>de</strong> novembro, época da coleta da terceira amostra <strong>de</strong> textos, e serviram para operacionalizar o<br />

encaminhamento do processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita. Como <strong>de</strong>scrito<br />

anteriormente, no quarto passo era produzido o reconto escrito por meio <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s orais;<br />

essas ativida<strong>de</strong>s foram pensadas para <strong>de</strong>senvolver a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento da criança. A<br />

6 Sequência <strong>de</strong> frases curtas que normalmente rimam ou repetem <strong>de</strong>terminadas palavras ou expressões. As<br />

lengalengas estão associadas a brinca<strong>de</strong>iras e jogos folclóricos.<br />

7 Nota <strong>de</strong> rodapé do livro História concisa da escrita. Chama-se ”rebus” a tentativa <strong>de</strong> representação dos sons<br />

da língua, sobretudo sílabas, por meio <strong>de</strong> figuras cujos nomes tenham esses sons e cuja combinação possa<br />

representar uma palavra. (HIGOUNET, 2003).


75<br />

entrada do reconto escrito foi fruto da parceria professor-aluno. A princípio, coube-nos a<br />

tarefa <strong>de</strong> escriba, mas <strong>de</strong>pois os alunos assumiram a função. O reconto escrito era realizado<br />

após aplicação da série <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s relatadas no quarto passo. Na etapa da aplicação das<br />

ativida<strong>de</strong>s iniciaram-se efetivamente as primeiras experiências relativas ao processo <strong>de</strong> escrita<br />

na turma. Pelos conhecimentos que exigiam, as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>viam ser muito bem planejadas e<br />

executadas, não po<strong>de</strong>ndo ser produzidas levianamente, <strong>de</strong> qualquer maneira. Eram ativida<strong>de</strong>s<br />

importantes, porque foram elas que sustentaram todo o processo <strong>de</strong> escrita. Portanto, po<strong>de</strong>mos<br />

consi<strong>de</strong>rar essas ativida<strong>de</strong>s do reconto da lenda como base para todo o encaminhamento<br />

metodológico. E a partir da produção do reconto, outras ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas. Convém<br />

reafirmar que é necessário um cuidado especial na aplicação das ativida<strong>de</strong>s. Elas foram<br />

aplicadas após a produção do reconto coletivo. Na verda<strong>de</strong>, a intenção era apresentar esse<br />

gênero à criança e valorizar seu primeiro contato com a produção escrita.<br />

Dentre as ativida<strong>de</strong>s realizadas, <strong>de</strong>stacamos as <strong>de</strong>senvolvidas para compor os<br />

personagens. Uma <strong>de</strong>las foi <strong>de</strong>stacar e <strong>de</strong>senhar o personagem principal, relembrando suas<br />

características. Nas conversas com as crianças, foram enfatizadas as ações dos personagens.<br />

Outra ativida<strong>de</strong> foi a pesquisa na biblioteca da escola e também na internet, sobre os<br />

personagens; após conclusão, as crianças compartilharam o resultado com os colegas. Uma<br />

opção bastante apreciada era a troca <strong>de</strong> personagens entre uma história e outra. A<br />

dramatização foi uma ativida<strong>de</strong> recorrente, porque permite explorar diversos aspectos dos<br />

personagens, como sentimentos, ações, comportamentos, atitu<strong>de</strong>s etc. Outra ativida<strong>de</strong> era a<br />

leitura <strong>de</strong> um trecho da lenda, e a criança era levada a fazer um levantamento <strong>de</strong> hipóteses<br />

sobre o que aconteceria a seguir. Outra ativida<strong>de</strong> era atribuir uma qualida<strong>de</strong> aos personagens<br />

e escrevê-las. Outra ainda foi a elaboração <strong>de</strong> uma história em quadrinhos usando os<br />

personagens da lenda. Também utilizamos a brinca<strong>de</strong>ira das cores: cada personagem foi<br />

representado por uma cor e posteriormente comparamos entre os grupos as respostas; também<br />

fizemos essa ativida<strong>de</strong> em grupo e as crianças estabeleceram o significado <strong>de</strong> cada cor; e,<br />

noutro momento, foram socializadas as atribuições dadas aos personagens. Em outra<br />

ativida<strong>de</strong>, foi montado o quadro <strong>de</strong> semelhanças e diferenças entre os personagens das<br />

diversas lendas estudadas. Também realizamos ativida<strong>de</strong>s que nos auxiliaram a diferenciar e<br />

aproximar um gênero do outro. Por se tratar <strong>de</strong> primeira série, o foco foi dirigido para<br />

exemplificar e estabelecer as diferenças e semelhanças entre o conto <strong>de</strong> fadas e a lenda. Essas<br />

ativida<strong>de</strong>s serviram para promover <strong>de</strong>bates e reflexão sobre a organização do gênero, as<br />

palavras, frases, entre outras possibilida<strong>de</strong>s. Elencamos, aqui, o conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que


76<br />

permitiram subsidiar as crianças com elementos que contribuíssem para a reflexão da língua<br />

materna a partir do reconto da lenda.<br />

Após o reconto da lenda (<strong>de</strong>scrito no quarto passo), a primeira ativida<strong>de</strong> permitiu<br />

às crianças acesso ao reconto escrito. Levamos o reconto mimeografado para a sala <strong>de</strong> aula, e<br />

novamente a produção coletiva foi lida por nós. Esse primeiro contato com o texto impresso<br />

proporcionou às crianças ter em mãos um produto “materializado” a partir da sua fala. O fato<br />

<strong>de</strong> as crianças reconhecerem que po<strong>de</strong>m escrever sua própria fala enfatiza as diferenças e<br />

semelhanças entre a escrita e a fala. Esse exercício <strong>de</strong> diferenciar e aproximar fala e escrita<br />

po<strong>de</strong> facilitar a aprendizagem, uma vez que a linguagem verbal é a base para <strong>de</strong>senvolver a<br />

linguagem escrita (VYGOTSKY, 1999).<br />

Outra ativida<strong>de</strong> realizada era comparar o texto escrito no quadro-<strong>de</strong>-giz com o<br />

texto mimeografado, explorando cada parágrafo do texto e ressaltando a palavra que o<br />

começa e a palavra que o finaliza. A realização <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> favorece o exame do texto,<br />

parte a parte, provocando a verificação das palavras que formaram cada parágrafo. Agindo<br />

<strong>de</strong>ssa forma, a criança passa a perceber que o texto escrito no quadro <strong>de</strong> giz e o texto<br />

mimeografado, embora estejam em suporte diferente, permanece o mesmo, percebendo que a<br />

escrita das palavras se conserva in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do suporte. Além disso, diferencia a<br />

forma <strong>de</strong> escrita do quadro <strong>de</strong> giz e a escrita mimeografada, isto é, uma mesma palavra po<strong>de</strong><br />

ser escrita com letra cursiva, letra <strong>de</strong> fôrma, letra minúscula etc. A <strong>de</strong>speito das diferentes<br />

formas gráficas das letras em nosso alfabeto, cada letra permanece a mesma e exerce igual<br />

função no sistema escrito, ou seja, é sempre empregada obe<strong>de</strong>cendo às normas ortográficas<br />

das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 29. FASCÍCULO 1).<br />

Uma nova ativida<strong>de</strong> foi assinalar as palavras-chave do texto. Para isso, as crianças<br />

discutiam para <strong>de</strong>cidir, em conjunto, quais palavras seriam assinaladas. Em um primeiro<br />

momento, essas palavras eram sublinhadas com a nossa ajuda, no quadro <strong>de</strong> giz, e as crianças<br />

acompanhando passo a passo. Esse procedimento reforça a leitura das palavras e permite<br />

explorar as diferenças entre a segmentação da fala e a da escrita, conhecimentos que serão<br />

aplicados na ortografia das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO<br />

1). É interessante observar que a realização <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mandava um acordo entre elas<br />

para assinalar as palavras-chave; esse acordo fazia com que muitas palavras fossem citadas e<br />

examinadas, e, sem que percebessem, indiretamente, essas palavras eram trabalhadas. Num<br />

segundo momento, essas palavras passaram a ser assinaladas por elas. Isso foi um avanço,<br />

pois ao se dirigir para o quadro <strong>de</strong> giz, muitas vezes a criança era orientada por outra criança.


77<br />

Essa troca <strong>de</strong> saberes promove uma interação (VYGOTSKY, 1999) que se consolida na<br />

aprendizagem dos conteúdos.<br />

Mais uma ativida<strong>de</strong> foi perceber e encontrar as palavras que apareciam repetidas<br />

no texto e pintá-las com lápis <strong>de</strong> cor, utilizando a mesma cor para as palavras iguais. Com<br />

essa ativida<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>u-se avançar o processo <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> palavras nas dimensões:<br />

fonológica e semântica (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), e também<br />

fazer com que a criança percebesse que a mesma palavra po<strong>de</strong> aparecer várias vezes no<br />

mesmo texto, e que algumas, embora escritas da mesma forma, são completamente diferentes<br />

no significado. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> usar a mesma cor para palavras iguais parte do princípio da<br />

conservação da escrita, como já mencionado antes.<br />

Em outra ativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>smembramos o texto. A criança <strong>de</strong>via fatiá-lo, respeitando<br />

a or<strong>de</strong>m dos parágrafos, com o objetivo <strong>de</strong> discriminá-los. A criança cortava os parágrafos e<br />

<strong>de</strong>pois remontava o texto na carteira para compará-lo com o texto escrito do quadro <strong>de</strong> giz.<br />

Com essa ativida<strong>de</strong> pretendíamos revelar à criança que um todo dividido em partes po<strong>de</strong> ser<br />

remontado novamente sem per<strong>de</strong>r o sentido, permitindo-lhes correlacionar a leitura e a escrita<br />

das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Observamos que<br />

muitas crianças tiveram dificulda<strong>de</strong> em assimilar que, apesar <strong>de</strong> o texto estar dividido em<br />

várias partes na carteira, ainda continuava a ser o mesmo texto que se encontrava exposto no<br />

quadro <strong>de</strong> giz. Portanto, essa ativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> causar aflição na criança, caso não seja bem<br />

conduzida, levando-a a <strong>de</strong>sistir. O planejamento foi feito com bastante antecedência com o<br />

intuito <strong>de</strong> prever eventuais situações que pu<strong>de</strong>ssem dificultar a sua aplicação.<br />

Na ativida<strong>de</strong> seguinte, após lermos um parágrafo <strong>de</strong> cada vez, a criança <strong>de</strong>veria<br />

tentar encaixar os parágrafos seguindo a or<strong>de</strong>m do texto, ou seja, obe<strong>de</strong>cer à sucessão natural<br />

dos fatos do reconto. Essa ativida<strong>de</strong> foi uma continuação da anterior, daí a semelhança <strong>de</strong><br />

função: <strong>de</strong>stacar os parágrafos para estabelecer a ligação entre eles seguindo a or<strong>de</strong>m do<br />

reconto da lenda. É uma ativida<strong>de</strong> cuja aplicação requer disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo.<br />

Observamos com atenção que muitas crianças ficaram apreensivas <strong>de</strong>vido à movimentação<br />

exigida pela ativida<strong>de</strong>; por isso, no início do processo permitimos que elas fizessem o encaixe<br />

dos parágrafos em grupo (duplas, trios), para só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>scontraídas e seguras o<br />

fizessem sozinhas.<br />

Na ativida<strong>de</strong> seguinte – colagem do texto numa folha <strong>de</strong> papel – a criança podia<br />

perceber a separação do todo em partes e <strong>de</strong>pois a junção <strong>de</strong>sse todo novamente, isto é, pô<strong>de</strong><br />

perceber o texto fatiado e o texto completo. Após completar a colagem, as crianças pu<strong>de</strong>ram<br />

observar o texto integralmente e retiraram as palavras-chave escolhidas anteriormente.


78<br />

Dando prosseguimento às ativida<strong>de</strong>s para <strong>de</strong>senvolver a dimensão composicional<br />

do plano <strong>de</strong> texto, realizamos uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ilustração das palavras que foram escolhidas<br />

por elas e lidas por nós. A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> palavras foi estabelecida pelas crianças (elas<br />

<strong>de</strong>terminaram quais palavras seriam retiradas do texto). Nessa ativida<strong>de</strong>, as crianças<br />

receberam o texto e as palavras-chave mimeografadas, e com as palavras escolhidas eram<br />

misturadas palavras novas. As crianças <strong>de</strong>veriam i<strong>de</strong>ntificar o lugar e a palavra certa para<br />

cada espaço e colá-las para completar o sentido do texto, nesta ocasião trabalhamos a técnica<br />

<strong>de</strong> cloze 8 . Escolhidas as palavras, os alunos exploraram o texto e fizeram o reconhecimento<br />

das letras e das palavras ou até mesmo das frases. E, finalmente, criamos novas maneiras <strong>de</strong><br />

brincar com as palavras retiradas do texto: fizemos acrósticos, quadrinhas, poesias, bilhetes,<br />

palavras cruzadas etc.<br />

Desenvolvemos também ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> caracterização da lenda, como:<br />

apresentação das personagens; presença da magia e do encantamento; características <strong>de</strong> tempo<br />

e da ambientação; nomes que representam os padrões <strong>de</strong> referência dos personagens;<br />

<strong>de</strong>terminação dos momentos da ação complicadora; importância dos títulos. O objetivo <strong>de</strong>ssas<br />

ativida<strong>de</strong>s foi enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> apropriação da língua escrita em contexto <strong>de</strong> sentido por<br />

meio da lenda, com a presença dos elementos mágicos (OLIVEIRA, 1951, 1965) e das fases<br />

da narrativa (BRONCKART, 2003).<br />

Também planejamos ativida<strong>de</strong>s que serviram para apresentar os autores, os<br />

personagens, os títulos, a qualida<strong>de</strong> dos textos, a a<strong>de</strong>quação à ida<strong>de</strong>, o interesse, a influência<br />

da ilustração sobre o texto escrito etc. Uma alternativa foi levar livros para que as crianças<br />

tomassem contato com autores diferentes e selecionassem os títulos <strong>de</strong> interesse.<br />

Invariavelmente, essas escolhas terminavam em sorteio ou votação. Outra opção <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />

era a escolha das personagens, concentrada nas especificida<strong>de</strong>s da lenda, isto é, eram dirigidas<br />

à ilustração das personagens, às caricaturas, à representação, à colagem e à montagem das<br />

personagens, entre outras.<br />

As fases da narrativa (situação inicial, complicação, ações, resolução, situação<br />

final) aparecem no gênero lenda (COELHO, 2003). A intenção era pôr em prática a contação<br />

<strong>de</strong> histórias, o que ocorreu <strong>de</strong> três maneiras: ora as lendas foram contadas por nós, ora por<br />

8 Essa técnica consiste em retirar <strong>de</strong> palavras do texto, substituindo-a por um espaço pontilhado. O objetivo é<br />

reconstituir o texto preenchendo a lacuna <strong>de</strong> acordo com o contexto. Po<strong>de</strong> ser aplicada com maior ou menor<br />

grau <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>. SANTOS, Acácia A. Angeli dos; PRIMI, Ricardo; TAXA, Fernanda <strong>de</strong> O. S;<br />

VENDRAMINI, Clau<strong>de</strong>tte M. M. O Teste <strong>de</strong> Cloze na Avaliação da Compreensão em Leitura.<br />

Psicologia: Reflexão e Crítica, 2002, 15(3), p. 549-560.


79<br />

convidados ou ainda por alunos <strong>de</strong> outras séries. Nesse momento, as crianças pu<strong>de</strong>ram<br />

participar escolhendo as lendas, trazendo livros e revistas, contando as lendas que ouviram<br />

dos pais e também pu<strong>de</strong>ram interagir com os convidados. Também escolheram uma lenda<br />

para o reconto.<br />

Em uma ativida<strong>de</strong> recontamos as lendas “Igaranhã – a canoa encantada” e<br />

“Cervo Berá – o troféu do amor”, ambas do mesmo pesquisador, Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva.<br />

Após a leitura oral, <strong>de</strong>stacamos as fases da narrativa para escrever uma lenda (situação inicial,<br />

complicação, ações, resolução, situação final). Para cada lenda que foi estudada procurou-se<br />

estabelecer os traços específicos do contexto linguístico que envolve esse gênero. Enten<strong>de</strong>mos<br />

que a elaboração coletiva <strong>de</strong> qualquer produção <strong>de</strong> texto em classe <strong>de</strong> alfabetização é o<br />

momento mais importante da aula, pois os fragmentos da história vão se juntando e, passo a<br />

passo, as crianças acompanham a organização do texto.<br />

O reconto individual serviu para aperfeiçoar o procedimento <strong>de</strong> escrita.<br />

Finalizado o texto, cada aluno leu o seu para a turma. Cumpre lembrar que os textos não<br />

sofreram correção <strong>de</strong> nenhuma espécie, pois o objetivo era promover ativida<strong>de</strong>s em que as<br />

crianças pu<strong>de</strong>ssem escrever o próprio texto a partir do gênero lenda, isto é tencionávamos ter<br />

um diagnóstico real <strong>de</strong> sua aprendizagem (VYGOTSKY, 1999).<br />

Com isso, finalizamos a <strong>de</strong>scrição das ativida<strong>de</strong>s relacionadas ao gênero lenda e<br />

passamos a analisar as produções textuais dos alunos.<br />

4.1.2 Aprendizagem da lenda<br />

O trabalho com os gêneros textuais em sala <strong>de</strong> aula pressupõe endossar o texto<br />

como objeto <strong>de</strong> ensino, consi<strong>de</strong>rando a manifestação da linguagem em uso. Sem dúvida, o<br />

gênero é o ponto <strong>de</strong> partida para aulas <strong>de</strong> língua materna, uma vez que alfabetizar somente por<br />

meio <strong>de</strong> palavras, letras, sílabas e frases soltas mostra-se insuficiente para servir <strong>de</strong> base ao<br />

ensino-aprendizagem. Isso ocorre porque, na perspectiva dos PCNs (1997), todo texto se<br />

organiza <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado gênero em função das intenções comunicativas, como parte<br />

das condições <strong>de</strong> produção dos discursos, as quais geram usos sociais <strong>de</strong>terminados pelos


80<br />

gêneros em forma <strong>de</strong> textos. Portanto, os gêneros são <strong>de</strong>terminados historicamente e usados<br />

nas práticas <strong>de</strong> linguagem. Como enfatiza Bronckart (1999, p.48), “Conhecer um gênero <strong>de</strong><br />

texto também é conhecer suas condições <strong>de</strong> uso, sua pertinência, sua eficácia, ou <strong>de</strong> forma<br />

mais geral, sua a<strong>de</strong>quação em relação às características <strong>de</strong>sse contexto social”.<br />

Concordando com o exposto acima, passamos à análise das produções escritas. No<br />

mês <strong>de</strong> março, em contato inicial, observamos que a maioria das crianças, <strong>de</strong> alguma forma,<br />

teve contato com esse gênero, levando-nos a inferir que essa familiarida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ter ocorrido<br />

na Educação Infantil, pois pela discussão realizada em sala <strong>de</strong> aula, algumas características<br />

pertencentes ao gênero não eram totalmente <strong>de</strong>sconhecidas das crianças. Além do mais, esse<br />

gênero é bastante trabalhado em agosto, por ocasião do folclore.<br />

Na perspectiva do gênero, ao final da aplicação das ativida<strong>de</strong>s, a análise dos textos<br />

produzidos revelou significativo progresso das crianças, <strong>de</strong>monstrando capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utilizar<br />

as características próprias do gênero lenda (COELHO, 2003). Iniciamos nossa análise pelo<br />

reconto coletivo, por enten<strong>de</strong>r que a passagem <strong>de</strong>sse gênero em sala <strong>de</strong> aula foi recorrente, e<br />

também porque o reconto coletivo foi o eixo central da nossa prática pedagógica <strong>de</strong><br />

apropriação da linguagem escrita.<br />

O reconto coletivo da lenda: Coacyaba, primeiro beija-flor, além <strong>de</strong> iniciar o<br />

processo <strong>de</strong> apropriação da linguagem escrita, também serviu <strong>de</strong> base para orientar as<br />

produções narrativas escritas posteriormente. Com esse procedimento (reconto coletivo)<br />

observamos que uma criança mais experiente po<strong>de</strong> ajudar outra menos experiente no início do<br />

reconhecimento da escrita, comprovando que a troca <strong>de</strong> experiências é importante nas<br />

relações interpessoais (VYGOTSKY, 1999). O conhecimento obtido por meio <strong>de</strong>ssas<br />

interações sociais resultou <strong>de</strong> um esforço coletivo e individual em produzir sentido a partir<br />

das consi<strong>de</strong>rações do outro (VYGOTSKY, 1999). Essa negociação entre as crianças, para<br />

optar por uma ou por outra sentença na composição do texto escrito, <strong>de</strong>monstrou que,<br />

inconscientemente, há uma preocupação em manter a estrutura narrativa do gênero. Nossas<br />

intervenções didático-pedagógicas organizaram <strong>de</strong> maneira indireta as contribuições dos<br />

alunos <strong>de</strong> modo a formar uma história completa. Em <strong>de</strong>corrência das experiências adquiridas<br />

por meio <strong>de</strong> interações com os mais velhos ou membros mais experientes, passamos a atuar<br />

individualmente, e assim o <strong>de</strong>senvolvimento ocorreu <strong>de</strong> forma gradativa (VYGOTSKY,<br />

1999). Abaixo, o reconto.


81<br />

Coacyaba, o primeiro beija-flor<br />

Os índios acreditam que as almas viram borboletas.<br />

Coacyaba era uma índia, que ficou viúva muito cedo e sentia muitas sauda<strong>de</strong>s do marido.<br />

Seu único consolo era sua filha Guanamby.<br />

Muito tempo <strong>de</strong>pois Coacyaba, angustiada, faleceu.<br />

Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor perto<br />

do túmulo da sua mãe.<br />

A mãe, em forma <strong>de</strong> borboleta, ouviu um choro triste e logo reconheceu o choro <strong>de</strong><br />

Guanamby.<br />

Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro veloz. Deus Tupã<br />

aten<strong>de</strong>u o seu pedido e transformou Coacyaba em beija-flor. Ela pegou Guanamby e levou para o céu.<br />

Figura 4 - Reconto coletivo<br />

Para Góes (1991), a lenda explica os fatos naturais que <strong>de</strong>sconhecemos. No caso<br />

<strong>de</strong>ssa lenda, a personagem Coacyaba foi criada para explicar a origem <strong>de</strong> um pássaro. No<br />

texto recontado pelas crianças, observamos que esse fato <strong>de</strong>fine o enredo e, logo no primeiro<br />

parágrafo, o leitor, mesmo sem familiarida<strong>de</strong> com a escrita <strong>de</strong>sse gênero, reconhece a situação<br />

que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a história. À medida que o reconto coletivo era discutido e tomava a forma<br />

<strong>de</strong> escrita, notou-se a satisfação das crianças quando percebiam que a linguagem falada po<strong>de</strong><br />

transformar-se em linguagem escrita. É oportuno lembrar que estabelecer a diferença e a<br />

semelhança entre as duas modalida<strong>de</strong>s significou estabelecer um parâmetro <strong>de</strong> comparação<br />

entre elas, embora os princípios e os canais <strong>de</strong> uso <strong>de</strong>sses eventos sejam diferentes, a escrita e<br />

a fala são proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mesmo sistema linguístico (MARCUSCHI, 2005).<br />

Outro ponto que <strong>de</strong>stacamos nessa produção coletiva (FIGURA 4) é que foi<br />

preservada a mistura dos fatos reais com os fatos imaginários característicos do gênero lenda<br />

(COELHO, 2003). Na frase “A mãe, em forma <strong>de</strong> borboleta, ouviu um choro triste e logo<br />

reconheceu o choro <strong>de</strong> Guanamby,” enten<strong>de</strong>mos que essa combinação serve para criar uma<br />

expectativa <strong>de</strong>vido à verossimilhança, característica recorrente nesse gênero. Para Góes<br />

(1991), as lendas nascem da necessida<strong>de</strong> do homem <strong>de</strong> explicar os fatos que <strong>de</strong>sconhece, e<br />

nessa lenda cria-se uma situação para esclarecer a aparição do beija-flor na natureza.<br />

4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda


82<br />

Ao transcrever as produções percebemos que inicialmente as crianças<br />

<strong>de</strong>sconhecem as fases da narrativa do gênero lenda, prevalecendo apenas a noção <strong>de</strong> conflito<br />

da situação que envolve as personagens (BRONCKART, 1999). Como po<strong>de</strong> ser constatado no<br />

reconto da lenda: Potyra, as lágrimas eternas, gran<strong>de</strong> parte das crianças produziu apenas um<br />

segmento do que foi apresentado, com em “Era uma vez índio” (ANEXO 1), “Era uma vez<br />

índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu” (ANEXO 2), “Era uma vez uma índia<br />

chamada Potyra” (ANEXO 3). E também po<strong>de</strong>mos observar que tratando-se <strong>de</strong> uma primeira<br />

produção, enten<strong>de</strong>mos que, em certa medida, o tema central girou em torno da apresentação<br />

das personagens “índio”, “guerreiro”, “Potyra” como nas produções A, B e C, (ANEXOS 1,<br />

2, 3 respectivamente). E o texto produzido foi suficiente para enlaçar o drama do personagem<br />

principal.<br />

Esses exemplos <strong>de</strong> textos evi<strong>de</strong>nciam que as crianças enfrentaram dificulda<strong>de</strong> em<br />

estabelecer a diferença entre a lenda e o conto <strong>de</strong> fadas, e também que, no início do processo,<br />

o título não faz parte da construção do texto, pois apenas três crianças o escreveram; para o<br />

restante da turma, essa informação foi consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>snecessária e irrelevante, embora, no<br />

caso específico <strong>de</strong>ssa lenda, o título seja um prenúncio do que vai ser contado e instigue a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação do leitor. Ainda sobre essas produções, convém salientar que os<br />

alunos ainda não <strong>de</strong>senvolveram a capacida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>linear as ações dos personagens,<br />

concentrando-se em sintetizar as nuances do texto, embora, numa visão ampla, possamos<br />

dizer que, em certa medida, as crianças não abandonaram o enredo, <strong>de</strong>dicando-se àquilo que<br />

mais lhes chamou atenção; no caso, o personagem principal, que se <strong>de</strong>staca na história por<br />

seus feitos morais e éticos, mas, ao mesmo tempo, acaba morrendo pelos seus valores.<br />

Bronckart (2003) aponta cinco fases necessárias para o texto narrativo e mais duas<br />

que po<strong>de</strong>m ou não aparecer no texto. Das fases apontadas pelo autor, encontramos a situação<br />

inicial e a complicação com maior número <strong>de</strong> ocorrências. O fato <strong>de</strong> reconhecer a relevância<br />

<strong>de</strong> apenas duas fases nos mostra que no início do processo <strong>de</strong> escrita a criança tem dificulda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> organizar e or<strong>de</strong>nar cronologicamente os acontecimentos dos fatos, e também percebemos<br />

uma economia <strong>de</strong> palavras ao retratar as ações dos personagens. No reconto coletivo, a<br />

Figura 5 mostra que a primeira tentativa <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> texto realizou-se em conformida<strong>de</strong> com<br />

as fases narrativa (BRONCKART, 2003, p.220) do gênero lenda (COELHO, 2003). Vejamos:


83<br />

Coacyaba, o primeiro beija-flor<br />

TÍTULO<br />

Os índios acreditam que as almas viram borboletas.<br />

Coacyaba era uma índia, ela ficou viúva muito cedo e sentia muitas<br />

sauda<strong>de</strong>s do marido. Seu único consolo era sua filha Guanamby.<br />

SITUAÇÃO<br />

INICIAL<br />

Muito tempo <strong>de</strong>pois Coacyaba, angustiada, faleceu.<br />

Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor perto do túmulo da sua mãe.<br />

A mãe, em forma <strong>de</strong> borboleta, ouviu um choro triste e logo<br />

reconheceu o choro <strong>de</strong> Guanamby.<br />

COMPLICAÇÃO<br />

veloz.<br />

Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro<br />

AÇÃO<br />

beija-flor.<br />

Deus Tupã aten<strong>de</strong>u o seu pedido e transformou Coacyaba em<br />

RESOLUÇÃO<br />

Ela pegou Guanamby e levou para o céu.<br />

SITUAÇÃO FINAL<br />

Figura 5 - Reconto coletivo: fases da narrativa<br />

Do exposto restou comprovado que a produção coletiva é um momento rico <strong>de</strong><br />

interação; uma criança po<strong>de</strong> completar a i<strong>de</strong>ia da outra, e, além disso, a nossa intervenção<br />

conduzindo-os à reflexão sobre a composição do texto contribuiu para direcionar a sua<br />

construção, como vimos na produção acima. Portanto, traçar estratégias em que as crianças<br />

possam apren<strong>de</strong>r a estrutura da narrativa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do ano letivo, significa levar os<br />

alunos a tomarem conhecimento <strong>de</strong> que para cada gênero, oral ou escrito, elaboram-se tipos<br />

relativamente estáveis <strong>de</strong> enunciados (BAKHTIN, 2006, p. 262). Assim, a organização<br />

mental e cognitiva assume uma gran<strong>de</strong> importância para o individuo que domina o sistema <strong>de</strong><br />

escrita, bem como outros sistemas simbólicos, pois a apropriação do código não po<strong>de</strong> ser feita<br />

<strong>de</strong> maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer avançar, na criança, um<br />

processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> funções comportamentais complexas (VYGOTSKY, 1999).<br />

Para compreen<strong>de</strong>rmos o <strong>de</strong>senvolvimento inicial da escrita, utilizamos as<br />

pesquisas <strong>de</strong> Luria (1998). De acordo com esse autor, no momento em que a criança conhece<br />

letras isoladas e sabe como essas letras registram algum conteúdo, ela finalmente apren<strong>de</strong><br />

suas formas externas e também a fazer marcas particulares. Seguindo essa linha <strong>de</strong><br />

raciocínio, Gontijo (2008) afirma que, no momento em que as crianças começam a diferenciar


84<br />

as grafias para escrever, a ativida<strong>de</strong> gráfica passa a ser regulada, observando certos critérios<br />

que, inicialmente, são orientados pela apropriação das características externas da escrita.<br />

Dessa forma, <strong>de</strong> modo geral, as crianças <strong>de</strong>monstraram que conhecem algumas<br />

letras isoladas e sabem que esses símbolos registram os conteúdos, mas sua relação com a<br />

escrita é puramente externa, ou seja, elas apresentaram indícios <strong>de</strong> que compreen<strong>de</strong>m que a<br />

escrita serve para fazer registro, mas não foram capazes <strong>de</strong> utilizá-la. Evi<strong>de</strong>nciamos, ainda,<br />

que elas permanecem completamente ligadas à experiência inicial, como po<strong>de</strong>mos visualizar<br />

abaixo:<br />

Figura 6. Produção B. Realizada em março.


85<br />

Na produção acima, realizada no mês <strong>de</strong> março, na sentença<br />

LAPDPIREPAIOIAIO as últimas letras apresentam uma sequência repetida <strong>de</strong> vogais e<br />

apontam a presença <strong>de</strong> marcas (bolinhas) em cima <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>ssas letras, <strong>de</strong>stacando-as<br />

das <strong>de</strong>mais. Luria (1998, p. 158) nos alerta que a função <strong>de</strong>ssas marcas é ajudar a criança a<br />

lembrar e relembrar uma sentença, e também ajuda a organizar o comportamento da criança.<br />

Essas marcas indicam a presença <strong>de</strong> algum significado para a criança, embora não <strong>de</strong>termine<br />

qual seja esse significado e nem tenha um conteúdo próprio.<br />

Como foi dito, as crianças encontram-se em fases diferentes <strong>de</strong> escrita, o que<br />

po<strong>de</strong>mos verificar nas produções D, E, e G (ANEXOS 4, 5, 7) colhidas no mês <strong>de</strong> junho. Mas,<br />

em relação ao gênero lenda, observa-se nessas produções que houve um avanço em relação à<br />

apropriação das sequências narrativas. Em nosso enten<strong>de</strong>r, elas <strong>de</strong>monstram certo domínio em<br />

relação à compreensão da estrutura do gênero em relação à primeira amostra colhida no mês<br />

<strong>de</strong> março, embora os autores tenham iniciado o texto impropriamente com o termo “era uma<br />

vez”, comumente usado nos contos <strong>de</strong> fadas. Observe na transcrição da produção “F” abaixo.


86<br />

Figura 7. Produção F. Realizada em junho.<br />

A/ FESTA/ DE/ SA/ JÃO/<br />

ERA/UMA /VEZ/<br />

UMA/ FESTA/ DE/ SÃ /JOÃO/<br />

O /ÍNDIO/ ESTAVA/ ISIMA/ DA OMSA/<br />

O /USO/ ACEDEU/A/FUGEIRA/<br />

A/CHEGOU/


87<br />

A/NOITE/ E/ AI /ESTAVA/<br />

ARRUMADO/ A/ FESTA/<br />

DE/ SA/JOÃO/<br />

O /USO/ESTAVA/<br />

PEGADO/ UMA/<br />

CORDA/ AI/<br />

ELE/ESTAVA/ PERTO/DO/FOGO. Transcrição. Produção F.<br />

Acima, po<strong>de</strong>mos verificar que essa produção é um reconto da lenda intitulada O<br />

menino e a onça - Como os Kaiapós conquistaram o fogo, retirada do livro do Wal<strong>de</strong>-Mar<br />

Andra<strong>de</strong> e Silva. O texto apresenta certa clareza na exposição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, <strong>de</strong>monstrando que o<br />

aluno compreen<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> produção do gênero lenda. Percebe-se uma tentativa <strong>de</strong><br />

preservar as i<strong>de</strong>ias do texto original. O interessante é que a criança fez uma adaptação <strong>de</strong>ssa<br />

lenda para narrar uma história <strong>de</strong> São João. Nota-se que o título também foi alterado para A<br />

festa <strong>de</strong> São João, don<strong>de</strong> se infere que a proximida<strong>de</strong> entre a lenda original e a contada pela<br />

criança está focada no elemento fogueira, que fez a criança relacionar a lenda com festivida<strong>de</strong><br />

junina. Entretanto, observa-se um controle sobre a escrita dos termos usuais do gênero lenda,<br />

recontando-a sem alterar o enredo, embora não se <strong>de</strong>tenha nos <strong>de</strong>talhes. E há também<br />

sentenças que comprovam a preocupação com o enca<strong>de</strong>amento e com o sentido do texto, isto<br />

é, ao <strong>de</strong>senrolar a situação, intencionalmente mantém a sequência da lenda (COELHO, 2003).<br />

Essa produção <strong>de</strong>monstra também a perspicácia da criança em adaptar um texto para criar<br />

outro, explorando o seu enredo e preservando suas características.<br />

A aprendizagem da língua escrita percorre um longo caminho. Essa trajetória<br />

exige um acompanhamento constante dos conhecimentos e do <strong>de</strong>senvolvimento da criança.<br />

Dessa forma, comparando a primeira produção A e a segunda produção E com a terceira<br />

produção U, da mesma criança, embora na segunda produção ainda persista certa<br />

nebulosida<strong>de</strong> entre a maneira particular <strong>de</strong> escrita da lenda, no final <strong>de</strong> novembro o problema<br />

da incorporação da organização do gênero lenda parece ter sido superado, como se po<strong>de</strong> ver<br />

nas produções ( A, E e U) logo abaixo.<br />

A produção A foi realizada no mês <strong>de</strong> março. Convém ressaltar que a transcrição<br />

escrita foi feita com base no relato oral da criança. Nesse primeiro momento, vimos que as<br />

frases são curtas; são reguladas pelas ações do personagem principal “índio” e pelas suas<br />

ações “foi pra guerra e morreu”. Isso significa, que o <strong>de</strong>senvolvimento envolve não só o<br />

domínio <strong>de</strong> signos arbitrários, mas também a atenção e a memória (VYGOTSKY, 1999). Em<br />

suma, a organização mental e cognitiva tem uma gran<strong>de</strong> importância para o indivíduo que


88<br />

domina o sistema <strong>de</strong> escrita, bem como outros sistemas simbólicos, sendo assim a apropriação<br />

do código não po<strong>de</strong> ser feita <strong>de</strong> maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer<br />

avançar, na criança, o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> funções comportamentais complexas<br />

(VYGOTSKY, 1999). Além disso, vale ressaltar a importância dos momentos <strong>de</strong> produção<br />

textual, nestes momentos a escrita se concretiza em sinais gráficos, isto é, a forma como a<br />

criança se apropria do conhecimento da escrita e <strong>de</strong> outros sistemas simbólicos, estabelece a<br />

sua relação com os <strong>de</strong>mais (VYGOTSKY, 1999), expandindo e ajustando a sua conduta em<br />

relação à tomada <strong>de</strong> consciência do mundo.<br />

Figura 8. Produção A. Realizada em março.<br />

Era uma vez índio.<br />

Ele foi pra guerra e morreu.<br />

A segunda produção E foi realizada no mês <strong>de</strong> junho. Trata-se do reconto da lenda<br />

intitulada “O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo”, do pesquisador<br />

Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva. O texto não apresenta uma narrativa com elementos motivadores<br />

do gênero lenda. Não há propriamente componentes extraordinários no texto, ao contrário: a<br />

criança parece encaixar a lenda em seu cotidiano, como observamos na <strong>de</strong>nominação da<br />

personagem “JOSUA AUGUSTO”, diferentemente do nome indígena do texto original, e no


89<br />

<strong>de</strong>sfecho final “E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/”.<br />

Mas, conforme Coelho (2003), as lendas permitem misturar fatos reais com fatos imaginários.<br />

A sequência narrativa não é linear, e as personagens alternam a aparição: “JOSUA<br />

AUGUSTO”, a “ONSA” e o “RATO” <strong>de</strong> acordo com a sua importância, no andamento do<br />

texto. Há menção ao lugar em que o fato ocorreu “ANDOU/AFLO/RESTA/ TODA, mas não<br />

<strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong>talhes quanto ao cenário nem ao tempo da narrativa. Assim, o que po<strong>de</strong>mos<br />

verificar na produção, abaixo, são as a<strong>de</strong>quações que o aluno realizou em seu texto,<br />

explicitando, em nosso ver, a dificulda<strong>de</strong> em reconhecer os mo<strong>de</strong>los preexistentes <strong>de</strong>sse<br />

gênero.<br />

O /RATO/ NA /FOGEIRA/ NA TARDE/SIGINTE<br />

O /JOSUA /AU GUSTO/ A NÃO /DOUNA<br />

NA/ ONSA/ DO/PAI / DE ELE /ANDOU/AFLO/<br />

RESTA/ TODA/ VIU /MUNITO/ BICHOS/<br />

E/ COM PAROU / UM/ MUNITO/ DI FERENTE<br />

VIU /QUE – ERA- UM – RATO PERTO DA<br />

FOGEIRA/<br />

O/RATO/ COM-UMA CORDA<br />

MANDO/ A /ONSA/CORE/ E/ FOI/DIRETO<br />

NO /PAI / O/ PAI-DE-ELE/ FOI/LAVE<br />

CHE GOU / E/ VIU/O/RATO/FAZENDO<br />

FOGEIRA/ E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO<br />

FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/<br />

MAIS/ PARA/ NÃO/VE/AQUELE/RTO<br />

NÃO/I /PARA/ NUMCA/ MAIS/ VE/A/VE/O RATO<br />

FLORESTA/NUMCA/ MAIS/AVE/ RTO<br />

FINAL 1ª E.<br />

Transcrição. Produção E.


90<br />

Figura 9. Produção E. Realizada em junho.<br />

A terceira produção U, realizada no mês <strong>de</strong> novembro, foi marcada pela riqueza <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>talhes na escrita da criança. O texto apresenta uma linguagem clara; as palavras estão<br />

acessíveis e <strong>de</strong> acordo com o gênero; apresenta frases longas. O texto situa o leitor em relação


91<br />

ao lugar em que se passa a ação “Em uma tribo”. Utiliza organizadores temporais “No dia<br />

sequite” e “Um dia” para sustentar as ações das personagens, e retrata os sonhos <strong>de</strong> Mara<br />

“quer se casar”, e seu sofrimento “<strong>de</strong>scobriu que estava grávida”. O final é surpreen<strong>de</strong>nte, as<br />

dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas por Mara culminam com a doença “Mandi ficou doente” e a morte<br />

“Mandi para morre” <strong>de</strong> sua filha. A narrativa explica que Mara “sonhou com um jovem que<br />

<strong>de</strong>scia da lua e falava que amava” com a reiteração dos fatos “eo sonho serrepetiu muitas<br />

ves”, “mara se apaixonou por um jovem”, ”Mara <strong>de</strong>scobriu que estava grávida”, criando uma<br />

perspectiva no leitor para uma provável solução do problema. Como po<strong>de</strong> ser observado na<br />

transcrição da produção U, a seguir.<br />

Mandioca- O pão indígena<br />

Em uma tribo uma índia que quer<br />

se casar.<br />

No dia sequit todomundo <strong>de</strong>itou e<br />

Mara ficou cotempla a lua.<br />

Um dia mar sonhou com um jovem<br />

que <strong>de</strong>scia da lua e falava que amava e<br />

eo sonho serrepetiu muitas ves.<br />

No dia sequite mara se apaixonou por<br />

um jovem. Mara não sonhou mas o sonho.<br />

Um dia Mara <strong>de</strong>scobriu que estava gravida.<br />

Mandi ficou doente.<br />

No dia <strong>de</strong>scobriu que Mandi estava<br />

doente e Mandi para morre<br />

Um dia sequite o cacique <strong>de</strong>scobriu pra<br />

que servia a mandioca. porque fazer – pão e<br />

farinha.


Figura 10. Produção U. Realizada em novembro.<br />

92


93<br />

Para estabelecer os parâmetros <strong>de</strong> comparação entre um gênero e outro foi preciso<br />

inicialmente buscar suas similarida<strong>de</strong>s, não apenas no aspecto lexical, mas no aspecto<br />

organizacional, e num segundo momento, estabelecer também as diferenças para que<br />

pudéssemos confrontá-los. Dessa maneira, examinando simultaneamente as produções <strong>de</strong><br />

texto dos três períodos, verificamos que houve um significativo avanço na composição das<br />

produções, principalmente em relação à composição e ao conteúdo exigido pelo gênero<br />

(BAKHTIN, 2006), à influência direta do gênero na escrita das crianças, e as mediações<br />

foram fundamentais para enten<strong>de</strong>r como ocorre a escrita <strong>de</strong>sses exemplares <strong>de</strong> gênero. Assim,<br />

reafirmamos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oferecer aos alunos acesso à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> textos escritos e<br />

orais como fonte para a reflexão da linguagem. Entretanto, não po<strong>de</strong>mos esquecer que aqui<br />

estamos tratando <strong>de</strong> uma turma <strong>de</strong> primeira série.<br />

As produções <strong>de</strong>monstraram o uso das sequências narrativas (BRONCKART,<br />

2003) focando o domínio das particularida<strong>de</strong>s do gênero lenda e contemplaram a análise e a<br />

reflexão, pois tal abordagem representou significativas mudanças relacionadas às escolhas<br />

linguísticas (COELHO, 2003). É o que se po<strong>de</strong> ver abaixo, nas produções M e P.<br />

Potyra – As lagrimas eternas<br />

a muito tempo esistia um casau que queria<br />

casar mas foi que chegou a guerra mas antes da<br />

guerra eles ficarão um pouco juntos nabira do rio<br />

e quando a guerra comesou e a Potyra esperava<br />

os amigos <strong>de</strong> itajiba falou que ele tinha<br />

morrido e a Potyra chorou muito e<br />

<strong>de</strong>us Tupã transformou as lagrimas <strong>de</strong>la em<br />

diamante a perda do seu amor.<br />

Transcrição. Produção M.


94<br />

Figura 11. Produção M. Realizada em novembro.<br />

Madioca – O pão indígena<br />

Mara era filha do cassique ela tem sonhos <strong>de</strong><br />

paixão ela sonhou com um jovem loiro<br />

<strong>de</strong> pele branca ela sonhou muitas zezes e se apaixonol<br />

por ele e passou muito tempo e ela <strong>de</strong>scobril<br />

que estava grávida.<br />

Mara Del a luz a uma menina dos<br />

cabelos loiros e pele branca que <strong>de</strong>l o<br />

o nome <strong>de</strong> Mandi a menina adoesseu e morrel.<br />

Sua mãe interrol ela na oca para que


95<br />

não separe <strong>de</strong>la.<br />

O cassique <strong>de</strong>spresava a menina<br />

e aparessel uma planta que <strong>de</strong>l o nome o nome<br />

<strong>de</strong> mandioca e aparessel no sonho do cassique<br />

e inssinol a fazer a farinha.<br />

Transcrição. Produção P.<br />

Figura 12. Produção P. Realizada em novembro.


96<br />

Dessa forma, tomando os 28 textos coletados no mês <strong>de</strong> novembro, i<strong>de</strong>ntificamos,<br />

na maioria <strong>de</strong>les, as fases: situação inicial, complicação, ações e situação final, como se vê<br />

nas produções H, I, J, K, L, M, O, P, R, T e U (ANEXOS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 20 e<br />

21), o que nos garante que as estratégias utilizadas foram essenciais na construção <strong>de</strong> todo o<br />

processo ensino-aprendizagem, porquanto a criança inicia o processo <strong>de</strong> apropriação da língua<br />

escrita por meio <strong>de</strong> produções coletivas e termina escrevendo o próprio texto. Em seguida,<br />

vamos analisar a produção J representando essas fases.<br />

Madioca- O pão indigena<br />

Em uma tribo uma índia jovem cha_<br />

mada Mara ela queria se casar e ter filhos.<br />

Um dia um jovem <strong>de</strong> cabelos loiros<br />

<strong>de</strong>sia da Lua seu sonho pasava se repi_<br />

ti varias vezes Mara se apeixonou.<br />

Um dia Mara pesebeu que estava gravida<br />

Mara contou ao seu pais sea meã apoio<br />

mais seu pai começou e <strong>de</strong>stresava<br />

Mara.<br />

Mara <strong>de</strong>u a luz a uma menina.<br />

a mandi ficou doente e falheseu<br />

seu mãe ficou muito triste e ela<br />

enterrou na sea oca.<br />

um dia o jovem apareceu no sonho<br />

do cacique ele insinou aprepara o<br />

vegetal o cacique a basou seu<br />

filha.<br />

a on<strong>de</strong> mandi foi seputa se a<br />

meã removeu a terá <strong>de</strong>ro o nome<br />

<strong>de</strong> mandioca que foi enterada na<br />

oca.<br />

Transcrição. Produção J.


98<br />

Figura 13. Produção J. Realizada em novembro.<br />

Para analisar cada fase da produção J, tomamos como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> caracterização<br />

do gênero lenda <strong>de</strong> Coelho (2003 p. 83-87). Na fase inicial, foi possível i<strong>de</strong>ntificar a presença<br />

da personagem principal explicando o seu sonho: casar e ter filhos. Na fase <strong>de</strong> complicação,<br />

aparece o personagem secundário “um jovem <strong>de</strong> cabelos loiros” e o fator complicador: “mara<br />

pesebeu que estava grávida”. Em seguida, são <strong>de</strong>scritas as ações em que Mara toma uma<br />

atitu<strong>de</strong> “mara contou al seu pais” . A postura tomada por Mara causou uma oposição entre os<br />

membros da família: “sea mea apoio” e seu pai “a <strong>de</strong>stresava”. Dando continuida<strong>de</strong>, o texto se<br />

encaminha para a resolução “Mara <strong>de</strong>u a luz a uma menina” e, logo, em seguida nos remete a


99<br />

outra situação <strong>de</strong> complicação “mandi ficou doente e falheseu”. Em seguida, aparece a<br />

solução para o primeiro conflito “o jovem apareceu no sonho do cacique” e ensina a preparar<br />

o “vegetal”. E, finalmente, há uma retomada do segundo conflito “a on<strong>de</strong> mandi” foi<br />

sepultada a mãe “removeu a terá”; esse nome, “mandioca”, é porque ela “foi enterada na oca”.<br />

Resumindo, trata-se <strong>de</strong> um enredo muito intenso, em cuja estrutura temos, a situação inicial<br />

bem <strong>de</strong>finida: duas situações complicadoras; várias ações dos personagens, tanto o principal<br />

como os secundários; duas resoluções <strong>de</strong> problemas e uma situação final. Observamos,<br />

portanto, um total controle sobre o gênero e a ausência <strong>de</strong> traços da organização do conto <strong>de</strong><br />

fadas após a aplicação das ativida<strong>de</strong>s baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,<br />

NOVERRAZ, 2004).<br />

3.1.4 Aprendizagem das categorias <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> espaço na lenda<br />

Como po<strong>de</strong> ser comprovado nas produções A, B, C, D, G, Q, S (ANEXOS 1, 2, 3,<br />

4, 7, 17, 19), outro aspecto evi<strong>de</strong>nciado na análise das produções dos alunos é que<br />

praticamente todas iniciaram o texto com o tradicional “era uma vez”. Essa incorporação da<br />

organização do conto <strong>de</strong> fadas ao gênero lenda é perfeitamente aceitável e previsível. Temos<br />

observado ao longo da nossa prática pedagógica que parece haver entre professores do ensino<br />

fundamental <strong>de</strong> séries iniciais, sobretudo na primeira série, uma predileção pelo conto <strong>de</strong><br />

fadas, e essa preferência se reflete diretamente na produção da criança. Então, para a maioria<br />

das crianças nessa fase, as histórias começam com “Era uma vez” e terminam invariavelmente<br />

com “felizes para sempre”, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do gênero. Góes (1991) explica que tanto as<br />

crianças <strong>de</strong> outrora como as <strong>de</strong> hoje e o homem primitivo se sentem presos <strong>de</strong> encantamento<br />

ao ouvir as histórias maravilhosas que começam com as palavras mágicas “antigamente”, “era<br />

uma vez”.<br />

Outro aspecto que nos chamou a atenção foi o contexto no qual esse gênero se<br />

insere. Tudo isso não foi somente apreciado enquanto literatura; os valores e os princípios<br />

revelados se sobressaíram por intermédio das ações das personagens. Essas discussões foram<br />

interessantes, pois revelavam como as crianças operavam no mundo social. Além disso, não<br />

po<strong>de</strong>mos esquecer que uma das muitas atribuições da escola é levar a criança a conhecer e


100<br />

analisar criticamente os usos da língua como veículo <strong>de</strong> valores e preconceitos <strong>de</strong> classe,<br />

credo, gênero ou etnia (BRASIL, PCNs, 1997, p. 42). Essas ações foram apresentadas no<br />

enca<strong>de</strong>amento das frases. Além disso, o uso <strong>de</strong>ssas expressões também serviu para apontar as<br />

circunstâncias psicológicas das personagens. Por exemplo, as crianças utilizaram as<br />

expressões “e falava que amava” (ANEXO 21), “Mara ficou muito triste” (ANEXO 10), “e<br />

ficou muito triste e também morreu” (ANEXO 17), “potyra ficou triste e chorando” (ANEXO<br />

9), “Potyra chorou muito” (ANEXO 13) “anhurawi um guerreiro muito corajoso se apaixonou<br />

por ela” (ANEXO 18) “sua mãe ficou muito triste” (ANEXO 10), “O cacique pai da mara<br />

<strong>de</strong>sprezava Mara” (ANEXO 8) entre tantas outras. Essas expressões contribuíram<br />

significativamente para preservar a continuação lógica e temporal do texto.<br />

Observamos, ainda, que as crianças já são capazes <strong>de</strong> relacionar os fatos no texto<br />

respeitando a or<strong>de</strong>m em que eles aconteceram. Isso quer dizer que, para a maioria <strong>de</strong>las, a<br />

temporalida<strong>de</strong> marca a or<strong>de</strong>m natural dos acontecimentos, que po<strong>de</strong> ser confirmado na frase<br />

“a muito tempo atas existia um casau que queria casar” (ANEXO 13). Esse marcador serve<br />

para ajudar a criança a situar, no texto, o rompimento entre a mãe e a filha, apresentando logo<br />

a seguir um novo acontecimento. Segundo Coelho (2003), esses organizadores temporais<br />

estão presentes no início da fase <strong>de</strong> complicação, o que assegura o <strong>de</strong>senrolar da<br />

temporalida<strong>de</strong> da narrativa.<br />

A apresentação <strong>de</strong> um elemento organizador temporal no texto narrativo<br />

transporta as crianças para um mundo <strong>de</strong> fantasia, diferente do momento da escrita da criança<br />

(COELHO, 2003). Nos textos <strong>de</strong>las, o organizador temporal inicial aparece <strong>de</strong> várias formas.<br />

Por exemplo: “um dia”, “todo dia”, “no outro dia”, “no dia seguinte”, “muito tempo atrás”,<br />

“anoiteceu”, “chegando a noite”, “certo dia”, entre outros. Constatamos que essas expressões<br />

foram usadas com bastante proprieda<strong>de</strong> e ajudaram a criança a dominar e a organizar o texto<br />

em parágrafos. Comprovamos ainda sua eficácia na construção <strong>de</strong> palavras e frases que<br />

refletiam nitidamente a intenção <strong>de</strong> colaborar com a construção <strong>de</strong> sentido na totalida<strong>de</strong> do<br />

texto, e não apenas a formulação <strong>de</strong> frases sem compromisso com o texto. Nas produções I, J,<br />

L, M, U (ANEXO 9, 10, 12, 13, 21) observamos que o uso <strong>de</strong>sses organizadores temporais<br />

ajudou as crianças a i<strong>de</strong>ntificar ações em diferentes espaços e tempos, caracterizando o lugar<br />

on<strong>de</strong> aconteceu o fato, ligando-os ao tempo cronológico. Em nosso enten<strong>de</strong>r, essas relações<br />

são importantes porque nessa fase ajudam a criança a estabelecer a or<strong>de</strong>m dos<br />

acontecimentos.<br />

Na produção H, abaixo, po<strong>de</strong>mos interpretar com clareza a importância dos<br />

organizadores temporais para o gênero. O aluno inicia o seu texto informando a localização


101<br />

dos acontecimentos com a expressão “Em uma tribo”, iniciando a partir daí a sequência da<br />

narrativa. Nesse contexto, essa expressão situa o leitor em relação ao lugar físico em que<br />

ocorrem os fatos. Na sequência, situa a história no tempo como em “até que um dia ela<br />

sonhou com um jovem”, expressão que dá pistas <strong>de</strong> existir uma or<strong>de</strong>m natural dos fatos em<br />

andamento no texto. As personagens vão aparecendo no texto à medida que a<br />

sequencialização dos acontecimentos se <strong>de</strong>senrola no enredo. Primeiramente aparece a<br />

personagem principal, cujo nome curiosamente só aparece na quarta linha (Mara). Logo<br />

<strong>de</strong>pois surge o cacique, o antagonista, que contradiz as ações da personagem principal.<br />

Depois, relata a situação complicadora atrelada ao tempo do acontecido: “Um dia mandi<br />

faleseu”. Obe<strong>de</strong>cendo a uma or<strong>de</strong>m da noção espaço-tempo, estes são utilizados para situar o<br />

leitor no enredo da história, isto é, conseguindo estabelecer a distância temporal necessária<br />

entre os eventos que se vão <strong>de</strong>senrolando ao longo da narrativa. Por fim, no fechamento da<br />

história: “o cacique pediu <strong>de</strong>sculpa e <strong>de</strong>rão o nome <strong>de</strong> mandioca em omenage o imterro da<br />

Mandi”, constatamos que os acontecimentos coinci<strong>de</strong>m com a lenda contada.<br />

Mandioca- O pão indígena<br />

En uma tribo uma índia jovem sonhava en ter<br />

filhos.<br />

Ate que um dia ela sonhou com um jovem <strong>de</strong>sedo da lua <strong>de</strong>zedo que o amava o sonho<br />

se repitiu muitas Veze Mara <strong>de</strong>scobri que estava esperando um filho.<br />

O cacique pai da Mara <strong>de</strong>sprezava Mara mas os índios da tribo amavão Mandi.<br />

Um dia mandi faleseu a sua mãe enterrou<br />

na sua oca para que separase <strong>de</strong>la.<br />

O jovem apare seu no sonho do cacique<br />

falu como prepara o vegetal o cacique<br />

pediu <strong>de</strong>scupa e <strong>de</strong>rão o nome <strong>de</strong> mandioca<br />

em omenage o imterro da Mandi.<br />

Transcrição. Produção H.


102<br />

Figura 14. Produção H. Realizada em novembro.<br />

Em relação às características do gênero textual lenda, mostramos que os subsídios<br />

teóricos <strong>de</strong>ram suporte à funcionalida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s. Nota-se que a compreensão<br />

organizacional <strong>de</strong>u à criança conceitos relevantes para a construção do gênero. E numa<br />

primeira série, elaborar uma narrativa escrita é uma tarefa complexa, pois exige uma série <strong>de</strong><br />

conhecimentos linguísticos, tais como: vocabulário a<strong>de</strong>quado ao gênero, enca<strong>de</strong>amento lógico<br />

entre os acontecimentos, domínio da temporalida<strong>de</strong> e do espaço em que ocorre a história etc.


103<br />

A análise das produções dos nossos alunos teve o objetivo <strong>de</strong> observar, em momentos<br />

distintos, como traçamos o caminho do processo <strong>de</strong> apropriação da escrita.<br />

4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento<br />

Durante a aplicação das ativida<strong>de</strong>s, as crianças se apropriaram <strong>de</strong> conceitos<br />

fundamentais que as levaram a <strong>de</strong>senvolver a escrita. As ativida<strong>de</strong>s foram <strong>de</strong>senvolvidas<br />

levando-se em conta a consciência fonológica, a palavra, a sílaba e o fonema, em ativida<strong>de</strong>s<br />

contextualizadas em recontos coletivos da lenda, nas quais analisamos o processo <strong>de</strong><br />

construção da escrita.<br />

As ativida<strong>de</strong>s foram distribuídas <strong>de</strong> três formas: as coletivas, em sala, ora em<br />

grupos <strong>de</strong> quatro, ora em duplas, ora em trios, ora na turma inteira. Nas ativida<strong>de</strong>s individuais,<br />

as crianças eram estimuladas a refletir e <strong>de</strong>senvolvê-las sem interferência <strong>de</strong> outros e,<br />

posteriormente, elas po<strong>de</strong>riam ser compartilhadas com os colegas. Por último, as ativida<strong>de</strong>s ao<br />

ar livre (fora da sala), com o objetivo <strong>de</strong> trazer novida<strong>de</strong>s e acrescentar novas formas <strong>de</strong><br />

trabalho, geralmente aconteciam em forma <strong>de</strong> jogos e brinca<strong>de</strong>iras.<br />

Em nosso enten<strong>de</strong>r, é impossível alfabetizar uma criança sem <strong>de</strong>senvolver o<br />

sistema alfabético do português. Admitindo isso, nesta seção <strong>de</strong>screvemos as ativida<strong>de</strong>s que<br />

habilitaram as crianças a usar esse conhecimento. Convém ressaltar que não se trata <strong>de</strong> todas<br />

as ativida<strong>de</strong>s aplicadas, mas <strong>de</strong> um recorte <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s, a partir do estudo do gênero<br />

lenda, que contribuíram com o aprendizado da língua materna.<br />

A ativida<strong>de</strong> “seleção <strong>de</strong> palavras” foi realizada com o objetivo <strong>de</strong> levar as crianças<br />

a perceberem, pela pronúncia, quais palavras iniciam da mesma maneira e quais começam <strong>de</strong><br />

forma diferente. Por exemplo: “panela”, “pequi”, “periquito”, “pajé”, “papagaio”, “Ponain”,<br />

“Potyra → /p/→ “p”; “tatu”, “tupi”, “tucunaré”, Tupã”, “tupi”, “tucunaré”, “tucumã”, → /t/→<br />

“t”; “fogo”, “filha” → /f/→ ”f”; “viúva”, “velho”, “vila”, “voar” →/v/→ “v”; “maracá”,<br />

“mata”, “Mara”, “ma<strong>de</strong>ira”→/m/ → “m”. Ora as palavras eram escritas no quadro <strong>de</strong> giz, ora<br />

em fichas coloridas, ora apresentadas oralmente, ora mimeografadas. Retirávamos as palavras<br />

das lendas que eram contadas em sala. Uma variação <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> consistia na associação<br />

entre a gravura e o som inicial das palavras retiradas do reconto. De acordo com Scliar-Cabral


104<br />

(2003b), as palavras em que os fonemas correspon<strong>de</strong>m aos grafemas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da<br />

posição e do contexto fonético são i<strong>de</strong>ais para iniciar o processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />

Ativida<strong>de</strong> interessante era registrar em fichas ou quadro <strong>de</strong> giz uma sequência <strong>de</strong><br />

palavras retiradas do reconto para as crianças perceberem quais <strong>de</strong>las compartilhavam o<br />

mesmo fonema em início <strong>de</strong> sílaba, por exemplo, “roça”, “rocha”, “Lua”, “lagoa”, “lagos”,<br />

“zarabatana”, “luta”. Nessas ativida<strong>de</strong>s, procurávamos explorar a relação fonema-grafema em<br />

início <strong>de</strong> sílaba, uma vez que os fonemas /l/, /z/ e o arquifonema |R|, nesta posição, se<br />

escrevem com ‘l’, “z” e “r”, respectivamente, conforme mostrado por Scliar- Cabral (2003b).<br />

Numa outra ativida<strong>de</strong> registramos no quadro <strong>de</strong> giz palavras que apresentavam o<br />

fonema /s/, como, por exemplo, “nascimento”, “<strong>de</strong>sconsolada”, “essência”, “<strong>de</strong>sceu”,<br />

“pássaro”, “pesca”, “passear”, “assustada”, “nasceu”, e logo após solicitamos que as crianças<br />

i<strong>de</strong>ntificassem e separassem as palavras <strong>de</strong> acordo com os grafemas que representavam o<br />

fonema /s/ ou o arquifonema |S|. Nessas ativida<strong>de</strong>s, procuramos enfatizar que as realizações<br />

do fonema /s/ po<strong>de</strong>m ser grafados “ss”, “c” ou “sc” em início <strong>de</strong> sílaba, entre vogal oral e<br />

vogal posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não posterior, isto é, /i/, /e/, /E/, /ẽ/ e /j/<br />

(SCLIAR-CABRAL, 2003a). Dessa forma, não há uma regra geral que atenda todas essas<br />

ocorrências nas palavras. A autora alerta que se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o grafema como uma ou<br />

mais letras que representam um fonema, e no sistema alfabético do português do Brasil, não<br />

mais que duas letras.<br />

Outra ativida<strong>de</strong> era com palavras que em início <strong>de</strong> sílaba começavam com o<br />

fonema /s/ e as crianças i<strong>de</strong>ntificavam e separavam as palavras <strong>de</strong> acordo com o fonema. Por<br />

exemplo: “sol”, “sapé”, “sufoco”, e nesse caso, o fonema /s/, em início <strong>de</strong> sílaba, antes <strong>de</strong><br />

vogal posterior ou /w/ grafa-se com “s” (SCLIAR-CABRAL, 2003b).<br />

Em outra ativida<strong>de</strong>, apresentando palavras que começavam com o mesmo padrão<br />

silábico e palavras que começavam com outro padrão, solicitamos que as crianças<br />

i<strong>de</strong>ntificassem e separassem as palavras <strong>de</strong> acordo com o fonema inicial da sílaba e/ou final<br />

<strong>de</strong> sílaba. Em seguida, apresentamos as palavras à turma, escrevendo-as no quadro <strong>de</strong> giz, e as<br />

palavras foram lidas coletiva e individualmente, confirmando ou redirecionando as hipóteses<br />

levantadas pelas crianças. Essas ativida<strong>de</strong>s serviram para salientar a composição e a<br />

<strong>de</strong>composição da palavra, a relação fonema-grafema e os movimentos <strong>de</strong> escrita da esquerda<br />

para a direita (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />

Um jogo que as crianças apreciavam era trocar a letra inicial por outra: ora as<br />

palavras eram ditas oralmente, ora eram escritas em fichas ou no quadro <strong>de</strong> giz. Nessa<br />

ativida<strong>de</strong>, era explorado o som inicial e o significado da palavra. Por exemplo: FALA,


105<br />

BALA, CALA, MALA, RALA, SALA, TALA, VALA, que, embora mantenham as três<br />

últimas letras, com a troca do grafema/fonema o significado muda completamente. Além<br />

disso, a discriminação <strong>de</strong> sons tem a função <strong>de</strong> distinguir sentidos e significados (SCLIAR-<br />

CABRAL, 2009).<br />

O procedimento <strong>de</strong> encontrar a palavra correspon<strong>de</strong>nte à figura agradava as<br />

crianças. Outra forma <strong>de</strong> exposição da ativida<strong>de</strong> era apresentar primeiro a figura para <strong>de</strong>pois<br />

encontrar a palavra, que também servia para diferenciar as figuras das letras (BRASIL, PRÓ-<br />

LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Também apresentamos a palavra faltando a<br />

primeira letra, para a criança i<strong>de</strong>ntificar o fonema/grafema inicial da palavra e relacionar a<br />

palavra à figura correspon<strong>de</strong>nte. Nessas ativida<strong>de</strong>s trabalhamos o fonema /s/ nos contextos<br />

competitivos, especificando os grafemas usados em relação à posição realizada pelo fonema<br />

/s/ (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 153-158). A seguir, as crianças separaram e escreveram as<br />

palavras com “ss”, “c”, ou “sc”.<br />

Uma ativida<strong>de</strong> era separar em sílabas as palavras retiradas do texto, como, por<br />

exemplo: “barco”, “cabaça”, “pajé”, “Sol”, “tribo”. Essas ativida<strong>de</strong>s serviam para que o<br />

aluno percebesse que “enquanto se fala, o ar é emitido numa série <strong>de</strong> impulsos a cada um dos<br />

quais se po<strong>de</strong> dizer que correspon<strong>de</strong> uma sílaba” (MATTOSO CAMARA, 1977, p. 70.).<br />

Nessas ativida<strong>de</strong>s, separávamos as palavras em sílabas, tanto oralmente quanto por escrito;<br />

quer dizer, a i<strong>de</strong>ntificação e a percepção da representação gráfica dos fonemas favoreciam a<br />

<strong>de</strong>composição e a composição da palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007.<br />

FASCÍCULO 1).<br />

Também trabalhamos fonemas que figuram em final <strong>de</strong> sílaba como em<br />

“ariranha”, "piranha”, “lenha”, “jatobá”, “tarobá”; incentivamos a comparação entre o número<br />

<strong>de</strong> sílabas e a relação <strong>de</strong> fonemas e <strong>de</strong> grafemas na palavra. A análise fonológica po<strong>de</strong> ajudar<br />

na reflexão <strong>de</strong> como cada fonema po<strong>de</strong> ser representado por grafema na escrita (SCLIAR-<br />

CABRAL, 2003a).<br />

Algumas ativida<strong>de</strong>s eram realizadas para distinguir as consoantes, /d/ → “d” →<br />

“<strong>de</strong>do”; /b/ → “b” → “bela”, porquanto no caso <strong>de</strong>ssas consoantes a similarida<strong>de</strong> não se<br />

restringe à articulação, mas se esten<strong>de</strong> à escrita. Essas ativida<strong>de</strong>s não somente buscam<br />

familiarização com as letras, como objetivam a sistematização da correspondência entre<br />

fonemas e grafemas. Dessa forma, a escrita da palavra <strong>de</strong>ve observar o traçado <strong>de</strong> cada letra,<br />

sempre reforçando a atenção nas hastes e curvas, respeitando o movimento da direita para a<br />

esquerda (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).


106<br />

Ativida<strong>de</strong> muito interessante foi o jogo das palavras, cujo objetivo era<br />

<strong>de</strong>smembrá-las fazendo novas combinações, quer dizer, em um primeiro momento a<br />

combinação fica restrita à primeira sílaba <strong>de</strong> cada palavra. Por exemplo: a primeira sílaba da<br />

palavra “copo” com a primeira sílaba da palavra “braço” forma a palavra “cobra”; em<br />

seguida, combinavam-se as sílabas do final das palavras; por exemplo, a última sílaba da<br />

palavra “bico” com a última sílaba da palavra “bela” forma a palavra “cola”. A intenção era<br />

que as crianças reconhecessem que com a sílaba <strong>de</strong> uma palavra po<strong>de</strong>m formar novas<br />

palavras, bastando para isso examinar as unida<strong>de</strong>s que constituem a palavra para <strong>de</strong>smembrála.<br />

Em suma: o reconhecimento da palavra ocorre por análise e síntese (SCLIAR-CABRAL,<br />

2009).<br />

Colocamos as crianças sentadas em círculo e distribuímos os cartões <strong>de</strong> forma que<br />

elas não pu<strong>de</strong>ssem ver a figura. Trabalhamos <strong>de</strong>z figuras por vez, por exemplo: barco, canoa,<br />

Lua, maracá, tatu, onça, cobra, peixe, Sol, índio. Nessa ativida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>safio era relacionar o<br />

som da primeira sílaba com a figura. A palavra era lida primeiro por nós, <strong>de</strong>pois pelas<br />

crianças, e por fim era escrita no quadro <strong>de</strong> giz.<br />

Uma ativida<strong>de</strong> era <strong>de</strong>scobrir a palavra secreta. Nessa ativida<strong>de</strong>, relacionamos a<br />

palavra ao <strong>de</strong>senho e em seguida acrescentamos palavras que rimam com a palavra secreta,<br />

por coincidir o fonema no final da sílaba. Por exemplo: “panela”, “bela”, “mela”, “vela”,<br />

“gamela” e assim por diante. Exploramos também os constituintes das palavras “mela” e<br />

“gamela”, casos em que, segundo Scliar- Cabral (2003b), a realização do fonema /l/ no início<br />

<strong>de</strong> sílaba interna se converte no grafema “l”; e também ressaltamos a formação <strong>de</strong> uma<br />

palavra a partir <strong>de</strong> outra já existente.<br />

Destacamos também a primeira e a última sílaba da palavra: ora recortadas, ora<br />

pintadas com cores diferentes, ora circuladas. A finalida<strong>de</strong> era <strong>de</strong>stacar palavras polissílabas,<br />

trissílabas, dissílabas e monossílabas, além <strong>de</strong> ajudar o aluno a perceber a extensão da<br />

palavra até segmentá-la em unida<strong>de</strong>s menores, isto é, palavras em sílabas e sílabas em<br />

fonemas (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).<br />

Outra ativida<strong>de</strong> era recortar as gravuras <strong>de</strong> objetos que apareciam na lenda; a<br />

criança era convidada a i<strong>de</strong>ntificar o fonema repetindo o início e o final da palavra. Essas<br />

ativida<strong>de</strong>s foram aplicadas e <strong>de</strong>senvolvidas para trabalhar a assimilação dos fonemas a partir<br />

<strong>de</strong> rimas, isolamento da primeira letra e da última sílaba. As gravuras foram selecionadas<br />

segundo o fonema a ser trabalhado.<br />

Realizamos também ativida<strong>de</strong>s que contemplassem os grafemas “o” e “u” em<br />

final <strong>de</strong> palavras. As crianças participavam da confecção da lista <strong>de</strong> palavras. Realizamos as


107<br />

ativida<strong>de</strong>s em duas etapas. No primeiro momento, ativida<strong>de</strong>s orais possibilitaram exercitar a<br />

percepção da extensão da palavra, pois a economia ao pronunciar uma palavra po<strong>de</strong> acarretar<br />

omissão/troca <strong>de</strong> letras, uma vez que nosso sistema <strong>de</strong> escrita sofre influência da oralida<strong>de</strong>,<br />

embora a escrita não seja sua representação exata (MARCUSCHI, 2005). No segundo<br />

momento, as crianças escreveram uma lista <strong>de</strong> palavras em que observassem a percepção do<br />

arquifonema |W|. Conforme Scliar-Cabral (2003b), há várias formas convencionadas <strong>de</strong><br />

representá-lo po<strong>de</strong>ndo-se escrever competitivamente O ou U em sílaba não final <strong>de</strong> vocábulo<br />

ou em final <strong>de</strong> vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S|.<br />

Também foram <strong>de</strong>senvolvidas ativida<strong>de</strong>s que contemplassem o “<strong>de</strong>sdobramento”<br />

das vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a;<br />

b), na tentativa <strong>de</strong> evitar os problemas <strong>de</strong> escrita das vogais nasalizadas como nas palavras<br />

“muito”, “Mandi”, “mandioca”. No primeiro momento, essas ativida<strong>de</strong>s eram realizadas<br />

oralmente, e só após analisar e registrar esse <strong>de</strong>sdobramento é que eram propostas ativida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> escrita. Outra variação era reforçar a sonorida<strong>de</strong> da sílaba inicial. Por exemplo: levar o<br />

aluno a i<strong>de</strong>ntificar a diferença na pronúncia da sílaba BO nas palavras BOLO e BOLA.<br />

Levamos ativida<strong>de</strong>s em que as crianças pu<strong>de</strong>ssem observar que existem palavras<br />

com pronúncia diferente da grafia, principalmente no final <strong>de</strong> silaba, tal como em<br />

TOMATE/TOMATI. Para a realização das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> discriminação do fonema foi<br />

fundamental a percepção da sílaba como constituinte da palavra em que um grafema<br />

representava mais <strong>de</strong> um fonema, e também trabalhamos palavras em que um fonema podia<br />

representar mais <strong>de</strong> um grafema (SCLIAR-CABRAL, 2003 a; b).<br />

As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> rima e lengalenga eram frequentes: as palavras eram retiradas<br />

das produções coletivas. Essas ativida<strong>de</strong>s serviram para que as crianças percebessem e<br />

refletissem sobre como as palavras terminam e suas múltiplas combinações, isto é,<br />

<strong>de</strong>senvolver a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir sobre os sons da língua usando a linguagem escrita –<br />

metalinguagem – (SCLIAR-CABRAL, 2003a).<br />

As ativida<strong>de</strong>s orais também eram realizadas, por exemplo, com as crianças<br />

tentando <strong>de</strong>scobrir e separar pela pronúncia aquelas que começavam com o mesmo fonema<br />

das que começavam com fonemas diferentes, e em seguida faziam a leitura. Essas ativida<strong>de</strong>s<br />

serviram para <strong>de</strong>spertar a consciência <strong>de</strong> que ao escrevermos é preciso tomar consciência da<br />

estrutura sonora <strong>de</strong> cada palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />

Terminada a apresentação das ativida<strong>de</strong>s que foram aplicadas para <strong>de</strong>senvolver o sistema<br />

alfabético, passamos à análise das produções.


108<br />

4.2.1. A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que a fala po<strong>de</strong> ser escrita<br />

Nesta seção, analisamos a produção textual dos alunos a partir da proximida<strong>de</strong><br />

entre fala e escrita.<br />

Na produção A (ANEXO 1), observamos que na sua primeira produção textual a<br />

criança usou algumas letras do alfabeto (A, P, U, L, K, R, D, E, I, O, V, T) para recontar a<br />

lenda: Potyra - as lágrimas eternas. De um lado, i<strong>de</strong>ntificamos na produção cinco vogais (A,<br />

E, I, O, U) e sete consoantes (P, L, K, R, D, V, T). A predominância das letras A e I refletem,<br />

em parte, a familiarida<strong>de</strong> com a escrita do seu nome, e <strong>de</strong> outra parte a presença muito forte<br />

do ensino tradicional sistematizado e ensinado a partir das vogais. A esse respeito, com base<br />

no Pró-letramento (2007) po<strong>de</strong>mos afirmar que frequentemente as escolas têm organizado sua<br />

prática apresentando primeiro as vogais (a, e, i, o, u) adotando uma abordagem que não leva<br />

em conta que o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco letras (a, e, i, o, u),<br />

para representar as vogais, mas possui sete vogais, orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e cinco nasalizadas<br />

(ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).<br />

Por outro lado, ao fazer tentativas <strong>de</strong> escrita, como a produção C, o aluno parece<br />

perceber que é preciso usar as letras do alfabeto para registrar as suas i<strong>de</strong>ias. No momento da<br />

produção C a criança tinha seis anos, completando sete anos no mês <strong>de</strong> abril. Ao iniciar a<br />

produção, a criança construiu um bloco <strong>de</strong> quatro sentenças do mesmo tamanho. Para registrar<br />

a primeira sentença, ela usou nove letras (ACEFUOHIO), <strong>de</strong>ntre as quais percebemos que seis<br />

são vogais (A, E, U, O, I, O), algumas (O, U, I) escritas com letra cursiva; a única letra<br />

repetida é a letra O. A segunda sentença consiste <strong>de</strong> sete letras (ELIUFUO), das quais cinco<br />

são vogais; houve a inclusão da letra L, permanecendo o restante das letras da primeira<br />

sentença e as letras I, U, O novamente foram grafadas <strong>de</strong> forma cursiva e foi repetida a letra<br />

U.<br />

Na terceira sentença contamos sete letras (USUEFIH), sendo quatro vogais; a letra<br />

S foi acrescentada às existentes; as letras U e I outra vez foram grafadas <strong>de</strong> forma cursiva. A<br />

última sentença <strong>de</strong>ste bloco consistia <strong>de</strong> 11 letras (USEHERIHJSU), cinco vogais (U, E, E, I,<br />

U) e seis consoantes (S, H, R, H, J, S), <strong>de</strong>ntre estas as letras E, I, J grafadas com letra cursiva.<br />

A seguir, ela repetiu a última sentença (USEHERIHJSU), intercalando com a letra É,<br />

completando com a sentença (NAPUVRIOUELTMNA) usando quinze letras; <strong>de</strong>ntre as quais<br />

sete são vogais (A, U, I, O, U, E, A). Dessa forma, para escrever utilizou-se do repertório <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zessete letras (A, C, E, F, O, H, I, L, V, S, U, R, J, N, P, T, M), sendo doze consoantes e


109<br />

cinco vogais. Observamos que as vogais foram repetidas várias vezes na mesma sentença,<br />

mais do que as consoantes. Percebemos ainda que as letras R, I, O, J, E, N estão em letra <strong>de</strong><br />

fôrma, enquanto I, N, E, R foram escritas em minúsculas. O traçado da letra se manteve no<br />

mesmo padrão e, ao repetir a primeira parte na última sentença, conservou as mesmas letras e<br />

a mesma configuração. Observamos que no conjunto <strong>de</strong> letra da sentença (N, A, P, U, V, R, I,<br />

O, U, E, L, T, M, N, A) três letras foram repetidas (N, A, U). Abaixo, a produção C.<br />

Figura 15. Produção C. Realizada no mês <strong>de</strong> março.<br />

Ainda em referência a produção C, na última sentença a criança parece registrar<br />

os enunciados relacionando-os ao ritmo e à entonação da fala, estratégia da criança para<br />

transformar a fala em texto escrito, mas isso não significa uma correspondência entre a fala e


110<br />

a escrita fonética. A esse respeito, Scliar-Cabral (2003) afirma que os falantes <strong>de</strong> uma língua,<br />

sejam eles alfabetizados ou não, percebem a ca<strong>de</strong>ia da fala para seu uso cotidiano, mas a<br />

percebem como um continuum, tanto é que, quando começa a escrever, a criança não faz a<br />

separação entre as palavras. Isso quer dizer que, no início da alfabetização, por sua<br />

inexperiência, a criança não sabe que a escrita tem um modo próprio <strong>de</strong> representar a fala, ou<br />

seja, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a or<strong>de</strong>m: é a passagem<br />

<strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m para outra or<strong>de</strong>m (MARCUSCHI, 2005).<br />

Po<strong>de</strong>mos inferir, portanto, o predomínio da aprendizagem focado nas vogais por<br />

sua incidência no texto escrito. Além disso, as vogais foram grafadas com letra cursiva, com<br />

exceção da consoante J, que também foi grafada em cursiva, o que po<strong>de</strong> indicar que<br />

anteriormente foram apresentadas outras formas <strong>de</strong> grafar essas letras.<br />

A propósito <strong>de</strong> compararmos o dito oralmente com o escrito pela criança,<br />

po<strong>de</strong>mos inferir que ela usou da fala para narrar o escrito baseando-se na lenda que foi<br />

contada, embora não faça relação entre a sentença escrita com a produzida oralmente. Isto<br />

po<strong>de</strong> se justificar, pois os meios orais permitem a inserção <strong>de</strong> sons inarticulados, a expressão<br />

facial e corporal e também a modulação da voz, refletindo sobre o que se quer expressar no<br />

texto (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Além do mais, inicialmente<br />

há relação entre os sons e silêncios e sua imaginação (SCLIAR-CABRAL, 2003a).<br />

Foi possível observar que as crianças no início do processo <strong>de</strong> escrita apoiaram-se<br />

na oralida<strong>de</strong>, que serviu <strong>de</strong> âncora para construir e compor o texto, a palavra, a sílaba. Mas,<br />

observamos também que à medida que oferecemos contato com uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros,<br />

as crianças se sentiram mais à vonta<strong>de</strong> para usar os recursos linguísticos que apren<strong>de</strong>ram ao<br />

longo do ano. Dessa forma, o aproveitamento <strong>de</strong>sses conhecimentos po<strong>de</strong> amenizar os<br />

impactos ao acesso do funcionamento da língua escrita e, também, harmonizar o<br />

distanciamento entre escrita e oralida<strong>de</strong>.<br />

Na produção L, as sequências “fesumpidido” (fez um pedido), “eapareceu” (e<br />

apareceu), “umsenhor” (um senhor), “esivelho” (esse velho), “suairmãdisi” (sua irmã disse),<br />

“foipomato” (foi pro mato), “nomato” (no mato), “edisi” (e disse), “ esua” (e sua) na junção<br />

das palavras observa-se uma influência muito forte da oralida<strong>de</strong> na escrita da criança. Fala e<br />

escrita são produzidas em sequência linear, e compreen<strong>de</strong>r que essa linearida<strong>de</strong> acontece <strong>de</strong><br />

maneira diferente na fala e na escrita é fundamental no início da alfabetização (BRASIL,<br />

PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Isso significa que as marcas que usamos na<br />

escrita para distinguir palavras, frases e sequências <strong>de</strong> frases não são “óbvias” nem<br />

“naturais” (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), a criança precisa


111<br />

familiarizar-se com as convenções ortográficas, separando as palavras por espaço em<br />

branco, regras <strong>de</strong> escrita aprendidas na escola. Conforme Scliar-Cabral (2003), a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> perceber a articulação dos traços da palavra escrita com função <strong>de</strong> distinguir significados,<br />

os grafemas, associados ao respectivo fonema, representa atribuir os valores fonológicos que<br />

envolvem a língua, e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as<br />

palavras e/ou entre consoantes e vogais. Abaixo, apresentamos a produção L.


112<br />

Figura 16. Produção L. Realizada no mês <strong>de</strong> junho.<br />

Thaina Khan


113<br />

Uma índia fesumpidido que<br />

queria casa i pajé pidi o<br />

para o Tupã realisa o <strong>de</strong>se<br />

jo eapareseu umsenhor Danace di<br />

si minha irmã não vai casa<br />

com esi velho sua irma disi vose<br />

qui casa comigo i Thaina di<br />

si quero e Thaina foi pomato e<br />

Tupã trasformou em um jovem<br />

fote e sua molhe foipro cu<br />

r Thaina nomato edisi m<br />

eu marido e Danece dise e la<br />

não podi fica com e si<br />

gatão e Tupã tras for mo e la<br />

em passaro.<br />

Transcrição. Produção L.<br />

4.2.2 A construção da noção <strong>de</strong> palavra no texto escrito<br />

A nossa pesquisa para o ensino fundamental <strong>de</strong> Língua Portuguesa em classe <strong>de</strong><br />

alfabetização focaliza a produção <strong>de</strong> textos escritos combinados com a reflexão sobre as<br />

estruturas da língua. Essas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas como processos ativos, e a<br />

concepção <strong>de</strong> linguagem como uma ação dirigida com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> facilitar a comunicação<br />

que ocorre em diferentes grupos sociais por meio do texto oral ou escrito.<br />

Nas produções A, B e C (ANEXOS 1, 2, 3) notamos que as crianças não<br />

dominavam o alfabeto completo: conheciam algumas letras, mas não sua função. Ao contrário<br />

disso, os textos recolhidos em junho nos mostraram claramente que as crianças alcançaram a<br />

compreensão da função das letras do alfabeto. Elas estavam praticando nas palavras estudadas


114<br />

que fonemas isolados ou combinados representam um ou dois grafemas (SCLIAR-CABRAL,<br />

2009).<br />

Observamos também que, nessa fase, as crianças que inicialmente trabalham com<br />

a perspectiva do texto parecem não se preocupar com a grafia correta das palavras; suas<br />

preocupações centram-se em <strong>de</strong>senvolver a concepção geral do texto. Em nosso olhar, nesse<br />

momento inicial da alfabetização, a ortografia não é tão importante, pois a excessiva<br />

preocupação com a grafia correta das palavras po<strong>de</strong> acarretar <strong>de</strong>sinteresse pelo texto; nesse<br />

momento o importante é valorizar a criação da criança. Acreditamos que, aos poucos, ela terá<br />

acesso às regras ortográficas, mesmo porque essas regras fazem parte do currículo das séries<br />

posteriores. No entanto, não se trata <strong>de</strong> negar ao aluno o acesso a tais regras, mas <strong>de</strong><br />

encaminhar situações <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> textos criadas em sala <strong>de</strong> aula que possam oportunizar o<br />

surgimento <strong>de</strong> diferentes questões dos alunos sobre a forma correta <strong>de</strong> grafar as palavras<br />

(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO1).<br />

As crianças usam a fala para colocar no papel a mensagem do texto. Essa<br />

ansieda<strong>de</strong> se reflete nas palavras “emendadas”, porque durante a escrita do texto elas usam a<br />

fala para organizar os seus pensamentos. Dessa maneira, tomar consciência <strong>de</strong> que a<br />

articulação dos traços da palavra escrita com função <strong>de</strong> distinguir significados ajuda o aluno a<br />

fazer a separação entre as palavras e/ou entre consoantes e vogais (SCLIAR-CABRAL,<br />

2003).<br />

Apresentamos a produção B recolhida no mês <strong>de</strong> março, por apresentar algumas<br />

características da turma. Trata-se do reconto da lenda intitulada Potyra - As lágrimas eternas.<br />

Comparando a primeira produção com a segunda produção G, recolhida no mês <strong>de</strong> junho, da<br />

mesma criança, nota-se um avanço significativo nas tentativas <strong>de</strong> escrita. Abaixo, as<br />

produções B e G para melhor visualização e comparação.


115<br />

Figura 17. Produção B. Realizada no mês <strong>de</strong> março.<br />

Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu.<br />

Transcrição. Produção B.


116<br />

Figura 18. Produção G. Realizada no mês <strong>de</strong> junho.<br />

NEGRINHO DO PASTOREIO<br />

1. E AR/ UM/ VSI/ O /MENNO/ RINÃO/ LIDA /MARIDA<br />

2. COMO/ LIRASVO /DINERINHO/ COVIDOU /RA /UMMA


117<br />

3. CORIDA/ I /E LIE/ PRA /UMMA /CORIDA<br />

4. E /NOU /FINAL /DA /CORIDA /ELI /DEU /A /CORIDA<br />

5. I /CODOU /RUCUPAEPACIDAU /UMA /CARA /DE /XICODE<br />

6. COMU /EL /NÃO /XIP /ARAEDO /MARIRA/ ELE /DOMIPO<br />

7. I/ O /CAVALO /SIS OU /NERIRO / ACODOU<br />

8. I /O /MENIN/ DO /PASTOR /VOSE /E /LEVOU /UMM MA /DURA<br />

9. RA/ ELE /FOI/ ROC RA/ O/ CAVALO/ I / LEVOU/ UMMA/ VE<br />

10. LA / ADA /BIGO/ DA/ VELA /APARECEU/ UMA /LUES<br />

11. I/ CADA/ CAVALO/ A PARESIA/ CAVALO/ O/ DOUCNO<br />

12. O /ILO/ DO/ PATOP /ERO /SOU/ O /CAVALO/ I/ COREU/ CU<br />

13. PAI/ RIMÃO /SODOU/ CVLO/ NO/ FUMIGERONNE<br />

14. SIREOLO /PARA/ NOOROIDO/ A /FORMIGRU<br />

15. IEL/ CPDOOU/ NO/ ANOS /I / ELI/ POUS NO LDOCO/ SINO3O<br />

Transcrição. Produção G.<br />

Na produção acima (figura 18), po<strong>de</strong>mos observar que o traçado das letras<br />

apresenta indícios <strong>de</strong> que, ao escrever, o aluno imprimiu uma “força” adicional ao lápis, tanto<br />

no primeiro quanto no segundo texto. O texto consiste <strong>de</strong> 15 linhas. Não apresenta<br />

parágrafos. Observamos que a criança já domina todo o repertório <strong>de</strong> letras do alfabeto e faz<br />

várias tentativas <strong>de</strong> escrita para a mesma palavra (cavalo, cvl; uma, umma, ummma). Apesar<br />

da repetição da palavra “corida”, a sua escrita permaneceu a mesma em todas as ocorrências;<br />

a palavra foi grafada com a falta <strong>de</strong> um “R”, o que não implica alteração do significado da<br />

palavra, por isso supõe-se que não se trata <strong>de</strong> uma variação linguística, mas <strong>de</strong> uma<br />

dificulda<strong>de</strong> em relação à posição ocupada pelo fonema /r/ na palavra (SCLIAR-CABRAL,<br />

2003b); isso não acontece com a escrita da palavra “uma”; verifica-se um conflito, ora<br />

aparece com duplicação da letra “m”; ora aparece com triplicação <strong>de</strong> “m”, isto é, para grafar<br />

o vocábulo “uma”, a criança adotou três formas diferentes: “uma”, “umma” e “ummma”.<br />

Refletindo a representação da fala na escrita, a duplicação e triplicação da letra “m”<br />

justificam-se na medida em que a criança ainda não percebe que a sonorida<strong>de</strong> na sílaba é o<br />

que <strong>de</strong>fine uma consoante e uma vogal, isto é, a sílaba sonora “em princípio é emitida num<br />

único impulso <strong>de</strong> expiração, mas num só impulso também se po<strong>de</strong>m articular duas sílabas<br />

sonoras, que ficam assim reunidas numa única expiratória ou dinâmica”. (MATTOSO<br />

CÂMARA JR, 1978 p.218). Convém salientar que em ambos os casos não há<br />

comprometimento na estrutura textual.


118<br />

Observamos, ainda, que na primeira produção B a criança não se preocupou com<br />

o título da lenda; já na segunda, embora tenha escrito o título em letra cursiva, o restante do<br />

texto foi escrito em letra <strong>de</strong> imprensa maiúscula, o que significa que a letra cursiva ainda não<br />

é do seu domínio. Outro ponto interessante é que na primeira produção necessitamos da<br />

“leitura” do aluno para compreen<strong>de</strong>r a escrita, enquanto na segunda produção é possível<br />

compreen<strong>de</strong>r a forma escrita do seu texto e sua intenção ao <strong>de</strong>senvolver suas i<strong>de</strong>ias, e também<br />

a estrutura do gênero textual.<br />

Na transcrição é possível compreen<strong>de</strong>r a produção G e também verificar como as<br />

palavras foram construindo-se à medida que o reconto avança para o final. Em algumas<br />

palavras, como “EAR” (era), “VSI” (vez), “MENNO” (menino), “LIDA” (linda), “MARIDA”<br />

(madrinha), “COVIDOU” (convidou), “ELI” foram suprimidos alguns grafemas e em outros<br />

casos, como em “RA” (para), “SVO” (escravo), “NERIRO” (negrinho) “ROCRA” (procurar),<br />

a sílaba também foi esquecida; também encontramos excesso <strong>de</strong> letras “DOUCNO” (dono);<br />

ao mesmo tempo na construção da palavra “formigueiro”, observamos que a primeira<br />

tentativa “FUMIGERO” parece basear-se na oralida<strong>de</strong>, enquanto a segunda tentativa<br />

“FORMIGRU” mostra uma evolução significativa, pois o fonema /g/ antes da vogal não<br />

posterior se converte em “gu” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), então a criança para realizar esse<br />

fonema, lança mão <strong>de</strong> um artifício sonoro “GRU”. Percebe-se ainda que a nasalização<br />

assinalada pela letra “n” ainda não é do domínio da criança, como se vê em “lida” (linda),<br />

“covidou” (convidou). Na escrita da palavra “BIGO” (pingo) parece que a criança ainda não<br />

está segura em relação à conversão do fonema /p/ no grafema “p”, pois é nítida a dificulda<strong>de</strong><br />

da criança em distinguir graficamente o grafema “B” do grafema “P”. Mas essas inúmeras<br />

tentativas <strong>de</strong> escrita são importantes para dominar as relações entre grafemas e fonemas<br />

(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).<br />

4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas<br />

Para analisar as produções tomamos como base que os grafemas representam os<br />

fonemas, e também que fonemas são unida<strong>de</strong>s sonoras distintas mais simples da língua que<br />

entram na formação do vocábulo com a função <strong>de</strong> distinguir significados (SCLIAR-


119<br />

CABRAL, 2003a, b). Das produções coletadas no mês <strong>de</strong> novembro, tentaremos resumir um<br />

panorama <strong>de</strong>sses casos para melhor compreensão da produção final.<br />

Para Scliar-Cabral (2003b), a nasalização da vogal em final <strong>de</strong> sílaba que não<br />

esteja em final <strong>de</strong> vocábulo, antes <strong>de</strong> /p/ e /b/ é marcada pelo grafema m; antes das <strong>de</strong>mais<br />

consoantes, a nasalização é assinalada pelo grafema n; trata-se <strong>de</strong> uma das conversões mais<br />

econômicas do português, e no caso da codificação com m, a grafia também assinala a<br />

antecipação da bilabialização dos gestos bucais. A esse respeito encontramos os casos “mudo”<br />

(mundo), “sague” (sangue), “esinou” (ensinou), “plata” (planta), etc. Encontramos também a<br />

nasalização assinalada graficamente pelos grafemas m e n, como nas palavras “muimto”<br />

(muito), “anmava” (amava), “quenme” (queime), “quenmado” (queimado), etc. Encontramos<br />

em menor número <strong>de</strong> ocorrências a vogal nasalizada /ã/ com ou sem acento, seguida ou não<br />

<strong>de</strong> /S/ nas palavras “tupam” (Tupã), “maçam” (maçãs), “lam” (lã) etc.<br />

Outra situação encontrada é em relação à troca <strong>de</strong> letras com a escrita semelhante<br />

nas palavras grafadas com m e n, como em “irnã” (irmã), “con” (com), “senpre” (sempre),<br />

“comseguiu” (conseguiu), “comtou” (contou) etc. Encontramos também a nasalização da<br />

vogal /ã/ nos vocábulos marcados pela letra m e n “arrumãdo” (arrumando), “pegãdo”<br />

(pegando), “quãdo”(quando), “manham” (manhã), etc. Nesses casos, há falta <strong>de</strong> exatidão na<br />

correspondência das qualida<strong>de</strong>s fônicas e seus respectivos valores; conforme Scliar-Cabral<br />

(2003a, b), as letras m ou n marcam a nasalização das vogais em final <strong>de</strong> sílaba interna e em<br />

final <strong>de</strong> sílaba que não esteja em final <strong>de</strong> vocábulo.<br />

Na produção T abaixo, realizada no mês <strong>de</strong> novembro, a sequência<br />

“chamadajatoba” o contínuo da fala foi retratado na escrita, daí a importância <strong>de</strong> trabalhar a<br />

diferença entre fala e escrita na alfabetização, como foi mencionado na seção anterior. Nessa<br />

mesma produção, a troca do grafema u no final da palavra foi encontrada nos textos com<br />

muita frequência em situações diferentes. Por exemplo: “encontrol” (encontrou), “tomol”<br />

(tomou), “colocol” (colocou), “rolbada” (roubada), “fugio” (fugiu), “vio” (viu), “comeo”<br />

(comeu), “falol” (falou), “perguntol” (perguntou), subil” (subiu), “comeo” (comeu), “dividio”<br />

(dividiu) entre outras (ANEXOS, 16, 20). No português do Brasil na maioria das regiões, não<br />

se diferencia na fala o fonema /w/ do fonema /l/ no final <strong>de</strong> vocábulo. Nesse sentido, essas<br />

ocorrências nos levam a inferir que os ditongos /iw/ e /ow/, nessas situações, foram grafados<br />

“io”,“ol”, “il” e “eo”, refletindo a neutralização dos fonemas /u/ e /l/ em posição final <strong>de</strong><br />

sílaba.


120<br />

Figura 19. Produção T. Realizada em novembro.<br />

Igaranhã – A canoa encantada<br />

O in<strong>de</strong>o escolheo a arvore chamadajatoba<br />

para fazer canoa a o terminar não encontrol a canoa<br />

ele pen sou agun animal <strong>de</strong>storil a canoa com o<br />

roido ele tomou um susto e a canoa veio e diresão <strong>de</strong>le


121<br />

com olhos e boca e colocol o nome <strong>de</strong> Igaranhã<br />

o indio mandou na canoa e os primeiros peixes<br />

a canoa comeo e as partes maiores era para<br />

o indio não queria dividio as peixes e a<br />

canoa come ele.<br />

Transcrição. Produção T.<br />

Constatamos a maior incidência <strong>de</strong> omissão <strong>de</strong> grafemas foi encontrada na<br />

realização do fonema /R/. Por exemplo, “corida” (corrida) “enterou” (enterrou), “moreu”<br />

(morreu), “interada” (enterrada) etc. De acordo com Scliar-Cabral (2003b), pela regra, as<br />

realizações do fonema |R| entre vogal final <strong>de</strong> sílaba e vogal oral nasalizada que não a mais<br />

alta, ou semivogal no ditongo crescente, arquifonema |R| escreve-se com o dígrafo “rr”.<br />

Ao mesmo tempo verificamos que o sistema <strong>de</strong> escrita alfabética do português do<br />

Brasil apresenta como característica essencial a correspondência entre fonemas e grafemas,<br />

embora não exista a correspondência biunívoca entre alguns fonemas e grafemas. Scliar-<br />

Cabral (2003a, b), apresenta situações em que a correspondência entre fonema e grafema não<br />

é estavel, como no caso do fonema /s/ e o grafema “s”, porque o fonema /s/ po<strong>de</strong> ser<br />

representado por diversos grafemas: “s”, “ss", “c”, “ç”, “x”, “z”, “sc”, "sç” e “xc”. Por<br />

exemplo: “naseu” (nasceu), “paseava” (passeava),“pasava” (passava), “pasaro”(pássaro),<br />

“creseu” (cresceu), “espozo” (esposo), “onsa” (onça), “paciava” (passeava), “faleseu”<br />

(faleceu), “percebeu” (percebeu), “casique” (cacique), “escureseu” (escureceu), “cassique”<br />

(cacique), “pasado” (passado), “ves” (vez), “falheseu” (faleceu) etc. Essas ocorrências po<strong>de</strong>m<br />

ser comprovadas nas produções E, H, J, K, N, O, P, Q, U (ANEXOS 5, 8, 10, 11, 14, 15, 16,<br />

17, 21, respectivamente).<br />

Na produção O abaixo, observamos o uso do arquifonema |S| em várias situações.<br />

A criança oportunamente usou o grafema “s” em início <strong>de</strong> sílaba para grafar a palavra<br />

“sosinha”, na qual foi empregado o grafema “s” para representar o grafema “z”; oposto disso,<br />

na palavra “espozo” o grafema “s” foi substituído pelo grafema “z”. Em outra situação está a<br />

palavra “felois” (veloz) em que o fonema /z/ foi trocado pelo fonema /s/ no final do vocábulo.<br />

Em outra passagem a criança grafou a palavra “peçoa” substituindo o grafema “ss” pelo<br />

grafema “ç”. Usou o grafema “s” para grafar a palavra “pasaro”. Observamos ainda na<br />

palavra “fareseu” a troca do grafema “c” pelo grafema “s”. Essas ocorrências evi<strong>de</strong>nciam a<br />

falta <strong>de</strong> domínio da criança sobre as convenções ortográficas para representar o fonema /S/ em<br />

contexto competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). É interessante observar ainda nessa<br />

mesma produção, que a criança grafou três vezes a palavra “tupan”, conservando nas três


122<br />

ocorrências a mesma escrita, sempre com a nasalização do fonema /ã/ representada em final<br />

<strong>de</strong> sílaba pela letra n, situação em que, segundo Scliar-Cabral (2003a, b), as letras m e n têm o<br />

mesmo valor sonoro do til. Outra faceta que encontramos foi a troca do grafema “r” pelo<br />

grafema “l” como em “Ela” (era), e o contrário: a troca do grafema “l” pelo grafema “r” em<br />

“fareseu” (faleceu).<br />

Figura 20. Produção O. Realizada em novembro.


123<br />

Ela uma vez uma índia que a cretitiva que quando as<br />

peçoa mo ri virão em borboreta e espozo da Coacyaba<br />

mo réu guanamby fico tristi e enfaleceu e Coacyaba<br />

Morreu e Coacyaba fico sosinha e foi visitar a sua<br />

mamai. Coacyaba em fareseu com a mote da sua mamai e<br />

seu papai Guanamby pidiu pra o <strong>de</strong>us tupan istranfor<br />

ma la em um pasaro felois e fote pra leva a sua firia<br />

para o sell.<br />

Deus tupoacyaba estranfor a Coacyaba em um beja-flor<br />

Deus tupan a tenteu o <strong>de</strong>sejo da coacyaba.<br />

coacyaba asi coacyaba pote levar a sua firia pra<br />

as duas pra la o sell.<br />

Transcrição. Produção O.<br />

Na produção K, abaixo, verificamos algumas <strong>de</strong>ssas ocorrências. Comparando-a<br />

com a segunda produção N, da mesma criança, ambas realizadas em junho, po<strong>de</strong>mos verificar<br />

a escrita das palavras. Na palavra “vose” (você) houve a troca do grafema “c” pelo grafema<br />

“s”; evidências <strong>de</strong> que a criança está em processo <strong>de</strong> aprendizagem quanto ao domínio das<br />

regras <strong>de</strong> codificação <strong>de</strong>terminadas pelo contexto fonético. Percebemos a segmentação das<br />

palavras “es ta va” (estava) e “ <strong>de</strong>i cho” (<strong>de</strong>ixou) que aparece duas vezes, mas nas<br />

ocorrências permanece a mesma escrita. Nesse caso, po<strong>de</strong>mos inferir que a criança usou a fala<br />

para auxiliá-la na escrita, uma vez que a separação silábica está correta. Comprovamos isso<br />

pelas palavras “Mai” (mãe), que se repetiu quatro vezes no texto; nas quatro ocorrências,<br />

percebemos a conservação da escrita. Em nosso enten<strong>de</strong>r, isso é um indício da presença da<br />

oralida<strong>de</strong> no momento do registro. Observamos também a omissão <strong>de</strong> letras nas palavras<br />

“dise” (disse) e “gaiou” (ganhou); em ambos os casos, isso está relacionado à percepção da<br />

distinção do traço fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica.<br />

(SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). Já no caso da palavra “casique” houve a troca do grafema “c”<br />

pelo grafema “s”, o que é muito comum <strong>de</strong>vido à realização do fonema /s/ em contexto<br />

competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003b). Na palavra “fote” (forte) a letra “r” foi suprimida;<br />

pela regra, a realização do fonema |R| em final <strong>de</strong> sílaba seguido <strong>de</strong> uma vogal posterior oral se<br />

escreve com “r” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), mas ficou evi<strong>de</strong>nte que isso ainda não é do<br />

domínio da criança.


124<br />

Figura 21. Produção K. Realizada em junho.<br />

A LENDA DO GUARANÀ<br />

MINDORÊ/ ERA/ UM/ MENINO/ MU<br />

ITO/DO EM TE/.<br />

E /TODOS/ FOI/ COM MONICADO/ PARA/<br />

UMA/ LUTA/ E/ QUEIM/ PERDER/ MORRERA/ E /MINDO/<br />

RE/. PERDEU / E /CASIQUE/:<br />

- DISE/ VOSE/ MORRARA


125<br />

/ SUA /MAI / DISE/ NÃO/<br />

MATE/ MEU/ FILHO/ MEU/ MARIDO/ ERA /O /MAS/ FOTE/<br />

E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/<br />

ES TAVA/ COM/ FOME/ E/ SUA / MAI /A CHO/FRUTA/<br />

E RA /DURA / E/SUA / MAI /FEZ /UM/<br />

CHA/ E / DEU/ U /CHA / / ELE/ FOI / CRE SE NO/<br />

E /PULO NA/ OMÇA / E / EM COMTRO/ A /FILHA/<br />

DO /CASIQUE/ E /FOI / NA /TRIBO /E / EM PLRO / PARA<br />

E /O/ CASIQUE/ NÃO/ MATO/ E / IS PUÇOU/<br />

E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/<br />

A/ LUTA/ ELE / DEI CHO/ VOÇE / TEM / QUE/<br />

LUTA/ CO TRA/ OS / GERREIROS / MAIS/ FORTE/<br />

ELE / LUTOU/ E /GAIOU / E / DEI CHO/ ELE/ VOU TA<br />

Transcrição. Produção K.


126<br />

Figura 22. Produção N. Realizada em junho.<br />

A LENDA DO BOITATÁ E OS FASANDEROS<br />

UM FAZENDERO QUE SICHAMAVA FRANCISCO QUE<br />

QUE CUIDAVA DA FLORESTA E OS FAZENDEIROS PIGIGOSOS.


127<br />

QUE FICAVA DEITADOS NOBENBOM<br />

QUANDO ESCURESEU ELES FOI CON PRAR GASULINAS<br />

PARA QUENMAE A FLORESTA.<br />

-- E FALOU DETRAS DO MATO:<br />

NÃO QUENME E PER GUNTO QUEIN ESTA AI<br />

SOEU BOI TATA E SAI QUENMANDO TODO MUNDO<br />

A CA BOU A ES TORIA.<br />

Transcrição. Produção N.<br />

A análise mostra que o modo <strong>de</strong> aplicação das ativida<strong>de</strong>s relacionadas ao sistema<br />

alfabético, privilegiando a consciência fonológica, po<strong>de</strong> influenciar diretamente o resultado.<br />

Concordar com a importância dos aspectos fonológicos presentes neste estudo implica<br />

compreen<strong>de</strong>r a relação entre fonema-grafema, e também transformar o “erro” ortográfico em<br />

aprendizado, isto é, compreen<strong>de</strong>r o contexto da aprendizagem da escrita.<br />

Registramos muitas tentativas <strong>de</strong> escrita “correta” e percebemos que alguns casos<br />

são recorrentes: omissão e troca <strong>de</strong> letras, apoio na oralida<strong>de</strong> (que produz algumas distorções),<br />

segmentação ou junção <strong>de</strong> palavras ou letras, terminação das palavras e nasalida<strong>de</strong> fonética,<br />

entre outros. Consi<strong>de</strong>ramos que o trabalho com o gênero <strong>de</strong> texto po<strong>de</strong> minimizar essas<br />

dificulda<strong>de</strong>s iniciais e preparar as crianças para uma fase posterior. Dessa maneira, nesta<br />

última fase <strong>de</strong> análise, ratificamos a relevância entre a produção <strong>de</strong> texto e o sistema<br />

alfabético, sendo imprescindível que ambos façam parte das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira série.


128<br />

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

É consensual entre muitos autores (VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998;<br />

SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;<br />

COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,<br />

2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001 entre outros) que as crianças chegam à escola com uma<br />

bagagem própria <strong>de</strong> experiência e algumas já dominando uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> usos do sistema<br />

escrito, entre os quais rótulos, propagandas, panfletos, placas etc, enquanto outros alunos<br />

apresentam menos familiarida<strong>de</strong> com o sistema escrito, pois seu entorno sociocultural oferece<br />

poucas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interação com a leitura e a escrita. Desse modo, gran<strong>de</strong> é a<br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saberes circulando no ambiente social da criança, inclusive na sala <strong>de</strong> aula.<br />

Esses saberes evi<strong>de</strong>nciados no cotidiano geralmente são aprendidos por experiência própria<br />

com a participação daqueles que fazem parte da vida da criança, eles estão relacionados à<br />

comunida<strong>de</strong> na qual a criança está inserida, uma socieda<strong>de</strong> urbanizada, com possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

interação em diversas situações mediadas por experiências com a linguagem escrita. Já o<br />

processo <strong>de</strong> ensino-aprendizagem institucionalizado ocorre na escola.<br />

Antes do aporte do texto nas práticas escolares, os professores da primeira série<br />

priorizavam os aspectos gramaticais e ortográficos das palavras e das frases; ou seja, no início<br />

da escolarização, a ênfase recaía sobre o aprendizado do código, sem a preocupação <strong>de</strong><br />

estabelecer vínculos entre as práticas sociais e as práticas escolares. Hoje, entre os professores<br />

já se percebe uma movimentação, ainda discreta, no sentido <strong>de</strong> promover intervenções com<br />

base nas características específicas do gênero que está sendo estudado na escola. Os<br />

professores começam a se conscientizar que somente os estudos sobre o ensino do sistema<br />

alfabético parecem insuficientes para aten<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s do processo da alfabetização.<br />

Nesta pesquisa, <strong>de</strong>screvemos a proposição <strong>de</strong> encaminhamento metodológico para<br />

o processo <strong>de</strong> apropriação da língua escrita em uma classe <strong>de</strong> alfabetização, tendo a lenda<br />

como gênero-instrumento na ação didático-pedagógica. Desse objetivo geral, <strong>de</strong>sdobraram-se<br />

três objetivos específicos: i<strong>de</strong>ntificar características do gênero textual lenda que justificam seu<br />

uso com esse público; <strong>de</strong>screver o encaminhamento procedimental da ativida<strong>de</strong> com o gênero<br />

lenda no dia a dia da alfabetização, consi<strong>de</strong>rando a dupla via – sistêmica e textual – <strong>de</strong>sse<br />

processo; e, por último, i<strong>de</strong>ntificar as implicações <strong>de</strong>sse encaminhamento metodológico.


129<br />

Assim sendo, <strong>de</strong>screvemos o encaminhamento metodológico adotado nesta<br />

abordagem para apropriação da língua materna. Dada a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver todas as<br />

ativida<strong>de</strong>s aplicadas, concentramo-nos em apresentar um panorama acerca do gênero lenda<br />

em sala <strong>de</strong> aula <strong>de</strong> uma primeira série, argumentando sobre a pertinência <strong>de</strong> tal escolha e<br />

apresentando ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> linguagem, tal como sugerido pelos PCNs no volume <strong>de</strong> língua<br />

portuguesa para o ensino da língua materna.<br />

Conforme já visto aqui, registramos em nosso corpus <strong>de</strong> pesquisa as ativida<strong>de</strong>s<br />

iniciais para recontar o gênero lenda. As ativida<strong>de</strong>s foram direcionadas e envolvem a<br />

linguagem escrita. As ativida<strong>de</strong>s que objetivaram o reconto da lenda coletiva e<br />

individualmente foram <strong>de</strong>scritas na análise. Consi<strong>de</strong>ramos a organização das situações <strong>de</strong><br />

escrita observadas em sala <strong>de</strong> aula, tomando como referência o gênero lenda para a aplicação<br />

das ativida<strong>de</strong>s. Essa escolha foi <strong>de</strong>finida com base nas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>senvolvidas por Vygotsky<br />

(1999, 1998, 2008) em relação à aprendizagem da linguagem escrita, e em Bronckart (2003)<br />

no que concerne ao conceito <strong>de</strong> texto e gêneros textuais nas relações comunicativas, bem<br />

como nos estudos <strong>de</strong> Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) com relação à sequência didática.<br />

Organizada a proposta <strong>de</strong> trabalho, concluímos que as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconto<br />

privilegiaram a interação professor-aluno e aluno-aluno. Enfim, com esse conjunto <strong>de</strong><br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>u-se início ao processo <strong>de</strong> aprendizagem da linguagem escrita. Essas ativida<strong>de</strong>s<br />

permitiram antecipar respostas, pois frequentemente era requisitado das crianças o que já<br />

haviam aprendido sobre o gênero.<br />

As ativida<strong>de</strong>s elaboradas contemplaram a linguagem verbal e a não verbal. Por<br />

exemplo: embora à primeira vista a dramatização não envolvesse diretamente a escrita, as<br />

crianças foram levadas a discutir a organização do gênero lenda e posteriormente aplicar esse<br />

ensinamento no reconto escrito. Em relação à linguagem não verbal, procuramos focalizar os<br />

personagens e seus aspectos faciais, a caracterização, a ilustração e o cenário para a<br />

disposição da imagem, a linguagem oral, a textual, a gestual e as ilustrações dos livros.<br />

Também nos baseamos na sequência didática proposta por Dolz, Schneuwly,<br />

Noverraz (2004), que contribuiu para <strong>de</strong>senvolver as representações no contexto do gênero<br />

lenda e colaborou para a reflexão sobre os valores implícitos nessas narrativas,<br />

contextualizando-os em situações comunicativas. Convém salientar que as ativida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>stinadas a caracterizar esse gênero serviram para enfatizar sua função e levar os gêneros<br />

como opção para as práticas pedagógicas.<br />

Dessa maneira, na busca <strong>de</strong> como ensinar a língua materna através do gênero<br />

lenda, empreen<strong>de</strong>mos uma reflexão sobre os valores, os princípios morais e, ao mesmo


130<br />

tempo, propiciamos à criança subsídios para o registro <strong>de</strong> conhecimentos, cuja finalida<strong>de</strong> é<br />

<strong>de</strong>senvolver o complexo sistema alfabético em uma abordagem a<strong>de</strong>quada aos propósitos <strong>de</strong>ste<br />

trabalho. Descrevemos o processo tanto pelo viés do gênero quanto pelo viés do sistema<br />

alfabético. Procuramos utilizar ativida<strong>de</strong>s para estabelecer os princípios teóricos, articulandoos<br />

aos procedimentos, visando a outros domínios do ensino da língua materna. Impõem-se<br />

aqui dois esclarecimentos: a) as ativida<strong>de</strong>s não foram rigorosamente aplicadas à sequência<br />

<strong>de</strong>scrita, mesmo porque algumas se repetiram ao longo da sua aplicação e outras foram<br />

criadas; b) existiu uma preocupação com a aceitação das ativida<strong>de</strong>s, porque enten<strong>de</strong>mos que a<br />

criança participa do seu processo <strong>de</strong> aprendizagem, exigindo flexibilida<strong>de</strong> no planejamento<br />

pedagógico para contemplar as diversida<strong>de</strong>s encontradas em sala <strong>de</strong> aula.<br />

Ao examinar as produções escritas das crianças, nota-se que o processo escolhido<br />

facilitou o entendimento da organização do gênero lenda, <strong>de</strong>senvolvendo as suas<br />

características. Do ponto <strong>de</strong> vista metodológico, infere-se que inicialmente as crianças não<br />

percebem a funcionalida<strong>de</strong> da linguagem escrita e ainda ignoram a função das letras no seu<br />

aprendizado. Os dados revelam ainda que as ativida<strong>de</strong>s contribuíram para <strong>de</strong>senvolver<br />

capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escrita combinadas à produção <strong>de</strong> texto. Cada criança representou as suas<br />

i<strong>de</strong>ias por meio <strong>de</strong> sinais gráficos, isto é, ao final do processo percebeu-se que as crianças<br />

evoluíram <strong>de</strong> uma escrita sem significado para uma escrita mais aprimorada. As estratégias e<br />

as mediações colaboraram para organizar e sistematizar o trabalho em sala.<br />

Assim, este estudo corroborou os Parâmetros Curriculares Nacionais <strong>de</strong> Língua<br />

Portuguesa (PCNs, 1997), que têm o mérito <strong>de</strong> oferecer novas perspectivas para o ensino <strong>de</strong><br />

línguas. Além do mais, constitui-se em gran<strong>de</strong> avanço ao apresentar os gêneros como objeto<br />

<strong>de</strong> ensino-aprendizagem, relacionando-os às práticas sociais. Portanto, ao propor os gêneros<br />

textuais como objeto <strong>de</strong> ensino para <strong>de</strong>senvolver a escrita, este estudo po<strong>de</strong> fornecer aos<br />

educadores um instrumento necessário para incrementar a compreensão da leitura e da escrita,<br />

sobretudo a prática <strong>de</strong> produção textual.<br />

Limitamo-nos aqui a <strong>de</strong>screver o encaminhamento teórico-metodológico <strong>de</strong> uma<br />

classe <strong>de</strong> alfabetização, mas cabe um aprofundamento maior, através <strong>de</strong> pesquisas específicas<br />

sobre os gêneros nas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino oferecidas para que possamos <strong>de</strong>tectar e evitar os<br />

eventuais equívocos, os problemas, as necessida<strong>de</strong>s e as singularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tal prática <strong>de</strong><br />

ensino. Diante <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>, enfatizamos a importância da fundamentação teórica em nossa<br />

pesquisa, principalmente no processo ensino-aprendizagem, buscando ações que nos ajudaram<br />

a superar as dificulda<strong>de</strong>s encontradas no ambiente escolar. Sugerimos o gênero lenda como


131<br />

uma das possibilida<strong>de</strong>s nas práticas docentes, porquanto sua utilização nos levou a comprovar<br />

que ele po<strong>de</strong> facilitar a compreensão da língua portuguesa.


132<br />

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ANEXOS<br />

136


137<br />

ANEXO 1 – PRODUÇÃO A<br />

Produção A. Realizada em março.<br />

Era uma vez índio.<br />

Ele foi pra guerra e morreu.


138<br />

ANEXO 2 – PRODUÇÃO B<br />

Produção B. Realizada em março.<br />

Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu.


139<br />

ANEXO 3- PRODUÇÃO C<br />

Produção C. Realizada em março.<br />

Era uma vez uma índia chamada Potyra.<br />

Ela era apaixonada por Itagiba.<br />

Itagiba foi pra guerra e morreu.


140<br />

ANEXO 4 – PRODUÇÃO D<br />

Produção D. Realizada em junho.


141<br />

ANEXO 5 – PRODUÇÃO E<br />

Produção E. Realizada em junho.


142<br />

ANEXO 6 – PRODUÇÃO F<br />

Produção F. Realizada em junho.


143<br />

ANEXOS 7 – PRODUÇÃO G<br />

Produção G. Realizada em junho.


144<br />

ANEXO 8 – PRODUÇÃO H<br />

Produção H. Realizada em novembro.


145<br />

ANEXO 9 – PRODUÇÃO I<br />

Produção I. Realizada em novembro.


ANEXO 10 – PRODUÇÃO J<br />

146


Produção J. Realizada em novembro.<br />

147


148<br />

ANEXO 11 – PRODUÇÃO K<br />

Produção K. Realizada em novembro.


149<br />

ANEXO 12- PRODUÇÃO L<br />

Produção L. Realizada em novembro.


150<br />

ANEXO 13 – PRODUÇÃO M<br />

Produção M. Realizada em novembro.


151<br />

ANEXO 14 – PRODUÇÃO N<br />

Produção N. Realizada em novembro.


152<br />

ANEXO 15 – PRODUÇÃO O<br />

Produção O. Realizada em novembro.


153<br />

ANEXO 16 – PRODUÇÃO P<br />

Produção P. Realizada em novembro.


154<br />

ANEXO 17 – PRODUÇÃO Q<br />

Produção Q. Realizada em novembro.


155<br />

ANEXO 18 – PRODUÇÃO R<br />

Produção R. Realizada em novembro.


156<br />

ANEXO 19- PRODUÇÃO S<br />

Produção S. Realizada em junho.


157<br />

ANEXO 20 – PRODUÇÃO T<br />

Produção T. Realizada em novembro.


158<br />

ANEXO 21 – PRODUÇÃO U<br />

Produção U. Realizada em novembro.


159<br />

ANEXO 22- Coacyaba - O Primeiro Beija-Flor<br />

Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e silva<br />

Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em<br />

borboletas. É por esse motivo que elas voam <strong>de</strong> flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se<br />

com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.<br />

Coacyaba, uma bondosa índia, ficara viúva muito cedo, passando a viver<br />

exclusivamente para fazer feliz sua filhinha Guanamby. Todos os dias passeava com a menina<br />

pelas campinas <strong>de</strong> flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que<br />

o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.<br />

Guanamby ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando<br />

que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo<br />

cada vez mais e também morreu. Entretanto, sua alma não se tornou borboleta, ficando<br />

aprisionada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor próxima à sepultura da mãe, para assim permanecer ao seu<br />

lado. Enquanto isso, Coacyaba, em forma <strong>de</strong> borboleta, voava entre as flores, colhendo seu<br />

néctar. Ao aproximar-se da flor on<strong>de</strong> estava Guanamby, ouviu um choro triste, que logo<br />

reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu, então,<br />

ao Deus Tupã que fizesse <strong>de</strong>la um pássaro veloz e ágil, que pu<strong>de</strong>sse levar a filha para o céu.<br />

Tupã aten<strong>de</strong>u ao seu pedido, transformando-a<br />

num beija-flor, po<strong>de</strong>ndo, assim, realizar o seu <strong>de</strong>sejo.<br />

Des<strong>de</strong> então, quando morre uma criança índia órfã <strong>de</strong> mãe, sua alma permanece<br />

guardada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma flor, esperando que a mãe, em forma <strong>de</strong> beija-flor, venha buscá-la,<br />

para juntas voarem para o céu, on<strong>de</strong> estarão eternamente.


160<br />

ANEXO 23 – As lágrimas <strong>de</strong> Potira<br />

Theobaldo Miranda Santos<br />

A <strong>de</strong>scoberta das minas <strong>de</strong> diamantes, no Brasil, <strong>de</strong>u origem a diversas lendas.<br />

Vejamos uma das interessantes:<br />

Há muito tempo, vivia à beira <strong>de</strong> um rio uma tribo <strong>de</strong> índios. Dela fazia parte um<br />

casal muito feliz: Itagibá e Potira. Itagibá, que significa braço forte, era um guerreiro robusto<br />

e <strong>de</strong>stemido. Potira, cujo nome quer dizer flor era uma índia jovem e formosa.<br />

Vivia o casal tranqüilo e venturoso, quando rebentou uma guerra contra uma<br />

tribo vizinha. Itagibá teve <strong>de</strong> partir para a luta. E foi com profundo pesar que se <strong>de</strong>spediu da<br />

esposa querida e acompanhou os outros guerreiros. Potira não <strong>de</strong>rramou uma só lágrima, mas<br />

seguiu, com os olhos cheios <strong>de</strong> tristeza, a canoa que conduzia o esposo, até que a mesma<br />

<strong>de</strong>sapareceu na curva do rio.<br />

Passaram-se muitos dias sem que Itagibá voltasse à taba. Todas as tar<strong>de</strong>s a<br />

índia esperava, à margem do rio, o regresso do esposo amado. Seu coração sangrava <strong>de</strong><br />

sauda<strong>de</strong>. Mas permanecia serena e confiante, na esperança <strong>de</strong> que Itagibá voltaria à taba.<br />

Finalmente, Potira foi informada <strong>de</strong> que seu esposo jamais regressaria. Ele<br />

havia morrido como um herói, lutando contra o inimigo. Ao ter essa notícia, Potira per<strong>de</strong>u a<br />

calma que mantivera até então e <strong>de</strong>rramou lágrimas copiosas.<br />

Vencida pelo sofrimento, Potira passou o resto <strong>de</strong> sua vida, à beira do rio,<br />

chorando sem cessar. Suas lágrimas puras e brilhantes misturavam-se com as areias brancas<br />

do rio.<br />

A dor da índia impressionou Tupã, o rei dos <strong>de</strong>uses. E este, para perpetuar a<br />

lembrança do gran<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> Potira, transformou suas lágrimas em diamante. Daí a razão<br />

pela qual os diamantes são encontrados entre os cascalhos dos rios e regatos. Seu brilho e sua<br />

pureza recordam as lágrimas <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> da infeliz Potira.


161<br />

ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada<br />

Wal<strong>de</strong>-Mar <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Silva<br />

Um índio da tribo Kamaiurá iniciou a construção <strong>de</strong> uma canoa com a casca do<br />

jatobá. Ao terminá-la, retornou para junto <strong>de</strong> sua mulher, que há pouco <strong>de</strong>ra à luz, lá<br />

permanecendo por alguns dias. Algum tempo <strong>de</strong>pois, voltando à mata on<strong>de</strong> havia <strong>de</strong>ixado a<br />

canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera.<br />

Talvez a tivessem roubado ou algum animal a tivesse <strong>de</strong>struído. Como po<strong>de</strong>ria pescar agora<br />

Absorto, <strong>de</strong>spertou com um ruído. Foi gran<strong>de</strong> o seu espanto ao perceber que em<br />

sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele<br />

construíra, agora com vida e olhos na proa. Talvez houvesse se transformado em um animal,<br />

pensou. Deu-lhe, então, um nome: Igaranhã - o Jacaré.<br />

Entrou na canoa, or<strong>de</strong>nando-lhe que seguisse em direção ao lago. Assim que<br />

Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e<br />

tamanhos, que saltavam sem cessar da água para <strong>de</strong>ntro da embarcação. Os primeiros, a<br />

própria canoa <strong>de</strong>vorou, ficando, no entanto, a maior parte para o índio.<br />

À sua mulher, maravilhada, falou apenas que havia encontrado um lugar i<strong>de</strong>al<br />

para pesca.<br />

Dias <strong>de</strong>pois, retornando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore.<br />

Como por encanto, a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago, e o fenômeno<br />

repetiu-se. O índio, ambicioso, recolheu rapidamente os peixes, sem <strong>de</strong>ixar a Igaranhã sua<br />

parcela do alimento. Esta, então, muito contrariada, acabou por <strong>de</strong>vorar o seu próprio dono.


162<br />

ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo<br />

Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva<br />

Há muito tempo, muito tempo, os índios não conheciam o fogo, alimentando-se<br />

<strong>de</strong> polpa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, frutos silvestres e carne, que preparavam sobre pedras aquecidas pelo<br />

Sol.<br />

Certo dia, dois meninos Kaiapós caminhavam pela floresta, quando um <strong>de</strong>les<br />

percebeu, sobre um rochedo, um ninho <strong>de</strong> araras-vermelhas. Pediu ajuda ao companheiro para<br />

encostar um tronco na rocha, conseguindo assim alcançar o ninho. Mas, ao subir, esbarrou<br />

numa pedra, que caiu e feriu o amigo. Com raiva, o menino atingido tirou dali o tronco,<br />

<strong>de</strong>ixando o outro sem meios para <strong>de</strong>scer.<br />

Após algumas horas, apareceu no local uma onça macho. Ao ver a sombra do<br />

menino, a onça pô<strong>de</strong> localizá-lo sobre o rochedo, ao lado do nunho das araras-vermelhas,<br />

pássaros que sabiam carregar o fogo Em troca <strong>de</strong> ajuda, a onça pediu que o menino lhe<br />

jogasse os filhotes. Concordando com a proposta, o índio pô<strong>de</strong> finalmente <strong>de</strong>scer.<br />

Por haver permanecido muito tempo exposto ao calor, o menino ficou corado,<br />

fazendo a onça crer que se tratava do filho do Sol. Convidou-o para conhecer sua toca, on<strong>de</strong> a<br />

onça fêmea passava o dia assando carne ao fogo e fiando algodão. Apresentou a ela, pedindo<br />

que o tratasse muito bem, e saiu em seguida para caçar. A fêmea, entretanto pôs-se a ameaçálo,<br />

rugindo e lhe mostrando os <strong>de</strong>ntes.<br />

Ao tomar conhecimento disso, a onça macho resolveu ensinar o menino a usar o<br />

arco e flecha para que pu<strong>de</strong>sse se proteger. No dia seguinte, assim que o macho saiu, a fêmea<br />

tentou atacar o índio, que com muita habilida<strong>de</strong>, matou a inimiga à primeira flechada.<br />

Ao voltar, a onça macho soube o que ocorrera, aprovando e elogiando o menino,<br />

que facilmente tudo havia aprendido. Pediu-lhe que voltasse à sua al<strong>de</strong>ia, levando o fuso e<br />

uma tocha, e cuidasse para que a tocha não se apagasse.<br />

Regressando aos seus, o indiozinho os ensinou a usar o fogo e <strong>de</strong>pois a fiar o<br />

algodão.


163<br />

Em comemoração, fizeram uma gran<strong>de</strong> festa, na qual o biju, a mandioca, a carne e<br />

o peixe foram preparados ao fogo, que mantiveram aceso por muito tempo, alimentando-o<br />

com lenha seca.<br />

Certo dia, porém, a chuva apagou a chama, <strong>de</strong>ixando todos muito tristes. Então,<br />

Begorotire, o homem-chuva, <strong>de</strong>sceu do céu para ensinar-lhes a produzir fogo com dois<br />

pedaços <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira: segurando, com os pés, as extremida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les, que <strong>de</strong>veria Ter um<br />

orifício no centro, faria girar entre as mãos o outro, encaixando no primeiro, até o fogo surgir.<br />

Nesse dia, voltou a alegria entre os índios Kaiapós.


164<br />

ANEXO 26 - Arutsãm – o sapo astucioso<br />

Wal<strong>de</strong>-Mar Andra<strong>de</strong> e Silva<br />

O sapo Arutsãm foi ao encontro <strong>de</strong> seu cunhado onça, para <strong>de</strong>le tomar<br />

emprestado um arco e uma gaita <strong>de</strong> bambu.<br />

Aproximando do seu território, foi alertado por outros animais, com ironia, do<br />

perigo que estava correndo. Mesmo assim, prosseguiu.<br />

A onça mostrou-se gentil ao recebê-lo, convidando-o para um banho no lago,<br />

cuidando, porém, para que sempre caminhasse atrás do convidado. Arutsãm, <strong>de</strong>sconfiado,<br />

manteve-se atento.<br />

Ao anoitecer, a onça esperou ansiosa que o cunhado adormecesse, aguardando<br />

o momento i<strong>de</strong>al para <strong>de</strong>vorá-lo.<br />

Arutsãm, entretando, passou, sobre seus olhos, a parte fosforescente <strong>de</strong> um<br />

vaga-lume, ludibriando assim a onça, que o julgava acordado e não ousou atacá-lo.<br />

No dia seguinte, já <strong>de</strong> posse do arco e da gaita <strong>de</strong> bambu, <strong>de</strong>spediu-se<br />

agra<strong>de</strong>cido <strong>de</strong> seu anfitrião.<br />

Esperto que era, espalhou formigas no caminho, que, atacando a onça, faziam<br />

com que ela batesse as patas no chão, acusando sua proximida<strong>de</strong>.<br />

Arutsãm seguia o seu caminho. Passava agora pelo território das serpentes, a<br />

quem seu inimigo incansável pedira que o apanhassem. O astuto sapo atraiu-as até o lago,<br />

saltando velozmente para a outra margem, escapando à sua perseguição.<br />

Alcançando a al<strong>de</strong>ia das cobras, apressaram-se em quebrar todas as panelas <strong>de</strong><br />

barro <strong>de</strong> suas fêmeas. Ao verem o estrago, estas, o perseguiram enfurecidas. Nesse momento,<br />

partiu Arutsãm para seu gran<strong>de</strong> salto: como num toque <strong>de</strong> mágico, pulou a Lua, on<strong>de</strong>,<br />

zombeteiro, está eternamente a tocar sua gaita <strong>de</strong> bambu.<br />

Ainda hoje, em noites claras, a onça contempla a Lua, lamentando o fracasso<br />

do seu traidor.

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