58 - Fundação Cultural Palmares
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Um teatro negro para<br />
um Brasil melhor<br />
Cristiane Sobral *<br />
Um exercício indispensável de independência cultural para<br />
qualquer artista negro no Brasil é, sem dúvida, produzir<br />
um teatro que reflita sobre a experiência de ser negro<br />
numa nação multiétnica e multicultural. De um lado a<br />
platéia de um país. No meio dela, cerca de oitenta milhões de<br />
brasileiros habitantes do país com o maior número de indivíduos<br />
da etnia negra fora da África. Indivíduos cada vez mais<br />
conscientes do direito ao resgate legítimo do seu passado, da<br />
sua identidade e complexidade.<br />
Neste terceiro milênio, onde a cultura encontra cada vez<br />
mais o seu lugar como instrumento chave para o desenvolvimento<br />
sustentável do país, torna-se imprescindível refletir sobre<br />
a qualidade e a realidade do teatro nacional com as suas<br />
potencialidades e limitações. Em tempos pós-modernos, não<br />
poderia deixar de afirmar que o teatro é um espelho, não uma<br />
caricatura.<br />
Constituir um teatro nacional, diante do imperialismo estético<br />
que considera a brancura como um cânone absoluto de<br />
beleza, quando na verdade, ele é um entre outros, longe de<br />
qualquer pretexto contra a brancura, exige um entendimento<br />
multidisciplinar da história e sua evolução e, principalmente,<br />
da diversidade que caracteriza sobremaneira a expressão artística<br />
brasileira, influenciada pelas manifestações correlatas<br />
dos negros na diáspora.<br />
Arquivo Pessoal<br />
Foto: Juliana Protásio<br />
<strong>58</strong><br />
* Atriz, escritora, professora de teatro. 1ª<br />
atriz negra formada em Interpretação<br />
Teatral pela Universidade de Brasília.<br />
Da esquerda para à direita: Senhora Valdina Pinto (Makota do Terreiro Tanuri Juçara), ao lado do ex-senador Abdias do<br />
Nascimento e do diretor teatral Hilton Cobra (diretor do Grupo Teatral Companhia dos Comuns), em participação no I Fórum<br />
de Performance Negra, realizado em Salvador, Bahia, em maio último.
FOTO: Ronaldo Barroso/FCP<br />
Ator Antônio Pompeo apresentando ao público, na<br />
sede da FCP, em Brasília, em agosto de 2004, o<br />
monólogo "Todos à Noite são Pardos".<br />
Um ator negro é antes de<br />
tudo um ator e, como tal,<br />
pode interpretar qualquer<br />
papel, aliás, a possibilidade de<br />
viver diversos papéis é um<br />
dos maiores atrativos da profissão.<br />
Esta potencialidade<br />
esbarra na real dificuldade de<br />
produção e localização de<br />
uma dramaturgia onde esteja<br />
representada a diversidade<br />
cultural brasileira. A saída<br />
aponta para o exercício criativo<br />
da construção de histórias<br />
inclusivas, iniciando uma<br />
revolução, cujo primeiro passo<br />
está na direção da formação<br />
e afirmação artística.<br />
É possível afirmar, sem<br />
sombra de dúvida, que os<br />
dias de hoje traduzem um período<br />
de ausência cênica do<br />
personagem negro no teatro<br />
tradicional, mas também é<br />
verdade que este mesmo teatro<br />
tem uma fixação de uma<br />
imagem deformada do negro,<br />
elaborada pelo imaginário do<br />
branco. Este é o quadro que<br />
se pretende modificar, rompendo<br />
com os modelos tradicionais<br />
de ficcionalização e<br />
apresentação do sujeito e da<br />
cultura negros.<br />
Eis o desafio de um teatro<br />
que ouse apresentar o personagem<br />
numa perspectiva<br />
multidimensional, sujeito das<br />
suas próprias histórias e distante<br />
dos estereótipos normalmente<br />
atribuídos desde o<br />
período pós-escravidão<br />
como a "mulata gostosa", o<br />
"negro bandido", o "molequinho<br />
atrevido", o "preto velho",<br />
o "negro de alma branca", entre<br />
tantos outros.<br />
Para o encontro com a<br />
identidade brasileira, é preciso<br />
resolver os conflitos de<br />
identidade. Nesta conformidade,<br />
faz-se necessário um<br />
rompimento definitivo da ilusão<br />
do mito da democracia<br />
racial brasileira, do conceito<br />
do "dividir para melhor reinar",<br />
sistematicamente aplicado<br />
para fragmentar e provocar<br />
o conflito infértil entre<br />
os negros e mestiços pois pretos<br />
e pardos fazem parte da<br />
mesma etnia negra.<br />
O ator Haroldo Costa palestra durante a realização do I Fórum de<br />
Performance Negra, realizado em Salvador, Bahia, em maio último.<br />
Isso levanta várias questões<br />
ligadas à elaboração dos<br />
dramas, à composição dos<br />
auditórios e às influências<br />
educativas do teatro. Sem dúvida,<br />
torna-se indispensável<br />
discutir os rumos do teatro<br />
negro brasileiro e a relação<br />
que o teatro possa ter diante<br />
da experiência única de ser<br />
negro no Brasil.<br />
É impossível entender a<br />
situação atual sem conhecer<br />
alguns dos movimentos<br />
mais importantes do teatro<br />
negro brasileiro a partir da<br />
década de quarenta, como o<br />
Teatro Experimental do Negro,<br />
de Abdias do Nascimento,<br />
o Teatro Popular Brasileiro,<br />
de Solano Trindade, o<br />
Teatro Folclórico Brasileiro de<br />
Haroldo Costa, e o Teatro<br />
FOTO: Protásio/Reprodução FCP<br />
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Profissional do Negro, de<br />
Ubirajara Fidalgo. Cabe ainda<br />
destacar o vôo solo de<br />
Benjamin de Oliveira, o primeiro<br />
palhaço negro do mundo<br />
ainda no século XIX. Todos<br />
estes grupos mantiveram-se<br />
empenhados em<br />
apresentar alternativas para a<br />
restrita participação do artista<br />
negro no nosso teatro. Não<br />
devemos nos esquecer destas<br />
organizações que se articularam<br />
durante muito tempo e<br />
continuamente, atravessando<br />
os períodos de crise aguda da<br />
sociedade brasileira.<br />
Hoje, algumas iniciativas<br />
desafiam o tom tradicionalmente<br />
"monocromático" do<br />
teatro. Entre alguns dos novos<br />
grupos que estão mudando<br />
a cena da<br />
dramaturgia<br />
brasileira, com<br />
a proposta de<br />
um "teatro negro",<br />
estão as<br />
companhias de<br />
Teatro Ébanos<br />
Brilhantes, a<br />
Cia. dos Comuns,<br />
a Cia. In<br />
Black e Preto e<br />
a Cia. Étnica de<br />
Dança e Teatro,<br />
todas com sede<br />
no Rio de Janeiro,<br />
além do<br />
Arquivo Pessoal<br />
grupo Caixa Preta, de Porto<br />
Alegre, do Bando de Teatro<br />
Olodum, com raízes em Salvador,<br />
e do grupo Cabeça Feita,<br />
de Brasília.<br />
Todos esses grupos, em<br />
diferentes períodos históricos,<br />
enfrentaram desafios de<br />
constituição e manutenção<br />
das suas propostas estéticas,<br />
de construção de uma linguagem<br />
própria, desafios de sobrevivência<br />
diante da ditadura,<br />
da globalização, do capitalismo<br />
selvagem. Alguns<br />
embates de foro íntimo em<br />
confrontos subjetivos podem<br />
ser avassaladores frente à<br />
opressão constante do padrão<br />
imposto, onde o "querer-se<br />
branco" é invisível e silencioso,<br />
desde a colonização<br />
brasileira, porque a imagem<br />
padrão do espelho em questão<br />
exibe a realidade do escravizador<br />
em primeiro plano<br />
e bem ao fundo, fora de<br />
foco, eis que surge a imagem<br />
do escravizado.<br />
A ação vence o medo da<br />
mudança. As nossas histórias<br />
ainda estão invisíveis, não<br />
obstante, existem, não há dúvida,<br />
e esta crise gera uma<br />
imensa oportunidade criativa<br />
porque existe<br />
um desejo latente<br />
de mudança em<br />
toda a esfera terceiro-mundista<br />
ansiosa pelo ingresso<br />
na nova ordem<br />
mundial. A<br />
inclusão da população<br />
negra na<br />
vida pública do<br />
país produzirá<br />
uma inevitável e<br />
conseqüente explosão<br />
de crescimento<br />
à altura da<br />
dimensão continental<br />
e da riqueza do patrimônio<br />
cultural brasileiro.<br />
É preciso oferecer às pessoas<br />
a chance de assistir à<br />
transformação de um país<br />
que já resolveu os seus problemas<br />
de auto-estima e exibe-se<br />
em toda a sua pujança<br />
sem poupar nenhum ângulo<br />
de visão. O Brasil dos brasileiros<br />
pode conviver sem<br />
medos ou mágoas com a diferença<br />
e enfrentar com co-<br />
ragem a diversidade. Eis o<br />
verdadeiro papel da liberdade<br />
no espetáculo da vida.<br />
O desafio é imenso e conclama<br />
aos verdadeiros guerreiros.<br />
Pode-se ir muito mais<br />
longe conhecendo a fundo a<br />
teatralidade da cultura negra,<br />
em seus mitos, ritos e<br />
gestos. Pode-se ir mais longe<br />
ao modificar o ponto de vista<br />
e enxergar horizontes coloridos<br />
mais condizentes<br />
com a irrefutável realidade<br />
histórica da miscigenação<br />
brasileira.<br />
A vitória é certa para<br />
aqueles que considerem o<br />
teatro como o lugar privilegiado<br />
para o exercício das<br />
práticas de auto-afirmação<br />
e sobrevivência. A vitória é<br />
certa para aqueles que acreditarem<br />
no indispensável<br />
exercício de tolerância e coexistência<br />
pacífica. A sorte<br />
acompanha os destemidos.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />
BARATA, José Oliveira. Didática do teatro.<br />
Coimbra, PA; Almedina, 1979, p. 148.<br />
BRASIL, Ministério da Cultura. Munanga,<br />
Kabenguele (Org). História do Negro no<br />
Brasil. 1. ed, Brasília, <strong>Fundação</strong><br />
<strong>Cultural</strong> <strong>Palmares</strong>, 2004, p. 426.<br />
CUTI, Luiz Silva. Dois nós na noite e outras<br />
peças do teatro negro brasileiro. São<br />
Paulo; Eboh, 1991, p. 154.<br />
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido.<br />
40. ed. São Paulo; Paz e Terra, 2005,<br />
p.213.<br />
MEIRELLES, Márcio, Bando de Teatro do<br />
Olodum. Trilogia do pelô. Salvador;<br />
Olodum,<br />
MENDES, Míriam Garcia. A Personagem<br />
Negra no Teatro Brasileiro. São Paulo;<br />
Ática, 1982, p. 210.<br />
PALLOTTINI, Renata. Introdução à<br />
dramaturgia. São Paulo; Ática, 1998, p.<br />
74.<br />
PEACOCK, Ronald. Formas da literatura<br />
dramática. Rio de Janeiro; Zahar, 1968,<br />
p. 330.<br />
PRADO, Décio de Almeida. Teatro de<br />
Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo;<br />
Global, 2001, p. 279.<br />
STANISLAVSKI, Constantin. A Construção<br />
da Personagem. Rio de Janeiro;<br />
Civilização Brasileira, 1986, p. 325.<br />
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