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A questão da literatura engajada nas filosofias de Sartre e ... - Cebela

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Literatura<br />

Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong><br />

<strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

Paulo Domenech Oneto *<br />

*<br />

Doutor em Filosofia pela<br />

Université <strong>de</strong> Nice (França),<br />

e doutorando em Literatura Compara<strong>da</strong><br />

pela University of Georgia (EUA).<br />

Introdução<br />

Na primeira <strong>da</strong>s coletâneas <strong>de</strong> textos avulsos <strong>de</strong> Gilles<br />

Deleuze publica<strong>da</strong>s após sua morte – intitula<strong>da</strong> L’Île<br />

déserte et autres textes (2002) –, há um artigo <strong>de</strong>dicado a<br />

Jean-Paul <strong>Sartre</strong> que merece <strong>de</strong>staque por diversas razões. Em primeiro<br />

lugar, por se tratar do único texto em que Deleuze abor<strong>da</strong><br />

diretamente as posições <strong>da</strong>quele que foi o mais influente pensador<br />

francês do século XX. Em segui<strong>da</strong>, por consistir numa gran<strong>de</strong> homenagem,<br />

justamente a alguém cuja filosofia parecia ser <strong>de</strong> importância<br />

menor para os <strong>de</strong>senvolvimentos próprios <strong>da</strong>s questões<br />

<strong>de</strong>leuzea<strong>nas</strong>. Assim, como explicar um elogio <strong>de</strong> tal magnitu<strong>de</strong> a<br />

um pensador sem maior relevo para o seu trabalho Enfim, em<br />

terceiro lugar, por um aspecto que po<strong>de</strong> talvez explicar a aparente<br />

contradição: por se tratar <strong>de</strong> um dos poucos lugares (senão o único)<br />

<strong>da</strong> obra <strong>de</strong>leuzeana em que a questão do engajamento intelectual<br />

é levanta<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo explícito.<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

213


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

O artigo homenageia <strong>Sartre</strong> por sua atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> recusa do Nobel<br />

<strong>de</strong> <strong>literatura</strong> naquele ano (1964) 1 . Uma vez que o ensaio <strong>de</strong> Deleuze<br />

é extremamente breve (ape<strong>nas</strong> cinco pági<strong>nas</strong>) e não faz referências<br />

diretas à filosofia sartreana, po<strong>de</strong>r-se-ia <strong>de</strong>scartá-lo, reduzindo-o a<br />

um mero texto <strong>de</strong> circunstância e resolvendo a contradição sugeri<strong>da</strong><br />

acima. Contudo, o problema em proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sse modo está no título<br />

do artigo: “Il a été mon maître” (“Ele foi meu mestre”). A contradição<br />

parece, portanto, aumentar <strong>de</strong> tamanho: como <strong>Sartre</strong> po<strong>de</strong>ria<br />

ser mestre <strong>de</strong> Deleuze se a filosofia (existencialista) <strong>de</strong> um está ausente<br />

<strong>da</strong> obra do outro Como reduzir um artigo com esse título a<br />

um mero texto <strong>de</strong> circunstância Será que é suficiente dizer que<br />

<strong>Sartre</strong> é mestre <strong>de</strong> Deleuze ape<strong>nas</strong> em termos <strong>de</strong> exemplo <strong>de</strong> intelectual<br />

engajado<br />

Creio que não. Creio até mesmo que, apesar <strong>de</strong> sua brevi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o<br />

artigo em questão po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> enorme valia, não ape<strong>nas</strong> para avaliarmos<br />

a distância que une e separa os dois pensadores no que tange<br />

às questões do engajamento e <strong>da</strong> <strong>literatura</strong>, como também para melhor<br />

compreen<strong>de</strong>r uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> filosofia <strong>de</strong>leuzeana.<br />

Esta é a motivação <strong>de</strong>ste meu pequeno estudo. Basicamente, pretendo<br />

construir um caminho em quatro etapas, indo do elogio <strong>de</strong><br />

Deleuze ao intelectual <strong>Sartre</strong> (1) até a posição <strong>de</strong>ste último acerca<br />

do engajamento na <strong>literatura</strong> (2); para em segui<strong>da</strong> passar a uma análise<br />

do modo quase implícito como Deleuze abor<strong>da</strong> a relação entre<br />

engajamento e <strong>literatura</strong> (3). A última etapa constitui ape<strong>nas</strong> um<br />

esboço para trabalhos futuros <strong>de</strong> maior fôlego e envolve os pressupostos<br />

filosóficos subjacentes a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s duas abor<strong>da</strong>gens (4).<br />

Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o objetivo é <strong>da</strong>r seqüência a uma pesquisa que<br />

venho <strong>de</strong>senvolvendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2002 e que já ren<strong>de</strong>u duas participações<br />

em colóquios. A primeira, nos EUA (outubro <strong>de</strong> 2002), por<br />

ocasião do 28 o encontro anual <strong>da</strong> Southern Comparative Literature<br />

Association, que teve exatamente por tema o texto <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong><br />

intitulado O que é a <strong>literatura</strong>. A segun<strong>da</strong>, no Brasil (2005), no Colóquio<br />

Internacional Jean-Paul <strong>Sartre</strong> – 100 anos, realizado na UERJ<br />

(Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro). Da primeira vez em<br />

1 Vi<strong>de</strong> C&p vol. 23, nº 3, set-<strong>de</strong>z 2005 (n. do e.)<br />

214


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

que apresentei as idéias centrais que aqui volto a expor, procurei<br />

manter o foco sobre a questão literária vista sob as duas perspectivas<br />

(<strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e <strong>de</strong> Deleuze), uma vez que se tratava <strong>de</strong> um encontro<br />

<strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> compara<strong>da</strong>. Na segun<strong>da</strong><br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém, enfatizei a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre as duas perspectivas.<br />

A intenção agora é começar a mostrar como as diferenças<br />

<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gem acerca do engajamento e <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> se enraízam<br />

em diferenças filosóficas mais profun<strong>da</strong>s.<br />

1. <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

O primeiro passo para uma compreensão <strong>da</strong>s possíveis relações<br />

entre as duas <strong>filosofias</strong> em questão é recusar uma dupla hipótese: a<br />

<strong>de</strong> que o artigo-homenagem citado seja um mero texto <strong>de</strong> circunstância<br />

ou <strong>de</strong> que, mesmo que o pensamento sartreano tenha exercido<br />

algum tipo <strong>de</strong> influência sobre Deleuze, ela ten<strong>de</strong>u a<br />

<strong>de</strong>saparecer nos anos subseqüentes. Contra tais hipóteses po<strong>de</strong>mos,<br />

antes <strong>de</strong> qualquer coisa, voltar a <strong>de</strong>stacar o título do artigo,<br />

que fala em “mestre”. To<strong>da</strong>via, se isso não for suficiente, há ain<strong>da</strong><br />

uma passagem capital dos diálogos entre Deleuze e Claire Parnet<br />

(<strong>de</strong> 1977), em que o filósofo volta a <strong>de</strong>stacar o papel <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> na<br />

sua formação:<br />

“<strong>Sartre</strong> era o nosso Fora, (...) a lufa<strong>da</strong> <strong>de</strong> ar que vinha do fundo do<br />

pátio (...) Entre to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Sorbonne, ele era a combinação<br />

única que nos <strong>da</strong>va força para suportar a restauração <strong>da</strong><br />

or<strong>de</strong>m. E <strong>Sartre</strong> nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser isto: não um mo<strong>de</strong>lo, um método<br />

ou um exemplo, mas um pouco <strong>de</strong> ar puro (...), um intelectual<br />

que mu<strong>da</strong>va <strong>de</strong> maneira singular a situação do intelectual.”<br />

(DELEUZE & PARNET, 1977:18-19)<br />

Cabe, porém, observar que Deleuze volta aqui a ressaltar a diferença<br />

na atitu<strong>de</strong> do intelectual <strong>Sartre</strong> sem discutir <strong>literatura</strong> ou<br />

quaisquer conceitos oriundos do existencialismo. E se observarmos<br />

ain<strong>da</strong> que, no artigo-homenagem <strong>de</strong> 1964, as únicas citações<br />

extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> são trechos do seu ensaio intitulado<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

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Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

Qu’est-ce que la littérature (1948), sem que, em nenhum momento,<br />

Deleuze trate propriamente do fazer literário, po<strong>de</strong>mos talvez ten<strong>de</strong>r<br />

para a tese <strong>de</strong> uma influência restrita ao domínio do engajamento.<br />

O ensaio <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> é, acima <strong>de</strong> tudo, um texto em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma<br />

<strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong>. Entretanto, o mais interessante é ver que, em<br />

sua leitura, Deleuze parece se esforçar para ampliar o escopo do<br />

problema na direção do engajamento em geral. E, mais interessante<br />

ain<strong>da</strong>, é notar que ele procura fazê-lo <strong>de</strong> uma maneira que permite<br />

vincular essa questão, aparentemente pontual, com uma <strong>da</strong>s<br />

intuições essenciais <strong>de</strong> seu pensamento, que diz respeito ao próprio<br />

exercício do pensamento.<br />

Assim, por meio <strong>de</strong> um contraste entre “pensadores privados”<br />

e “professores públicos”, Deleuze aponta para uma noção que perpassa<br />

to<strong>da</strong> a sua obra: a afirmação do pensamento como enraizado<br />

na vi<strong>da</strong>, vinculado a uma esfera que escapa ao domínio <strong>da</strong> representação<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aqui, no artigo sobre <strong>Sartre</strong>, essa esfera é<br />

<strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> “sub-representativa”:<br />

“Des<strong>de</strong> o início <strong>Sartre</strong> concebeu o escritor sob a forma <strong>de</strong> um homem<br />

como os outros, se dirigindo aos outros do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> sua<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. To<strong>da</strong> a sua filosofia se inseria num momento especulativo<br />

que contestava a noção <strong>de</strong> representação; a própria or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />

representação: a filosofia mu<strong>da</strong>va <strong>de</strong> lugar, <strong>de</strong>ixava a or<strong>de</strong>m do<br />

juízo para se instalar no mundo mais colorido do ‘pré-judicativo’,<br />

do ‘sub-representativo’.” (DELEUZE, 2002, pp. 110-111)<br />

Dentro <strong>da</strong> filosofia <strong>de</strong> Deleuze, tal como se <strong>de</strong>senvolve <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

pelo menos Diferença e repetição (1968), o “mundo do sub-representativo”<br />

na<strong>da</strong> mais é do que o domínio <strong>de</strong> um pensamento sem<br />

imagem; pensamento que não preten<strong>de</strong> começar pelos “fatos que<br />

todos <strong>de</strong>vemos reconhecer”, mas que se volta para o seu solo impensado<br />

– este solo em que ain<strong>da</strong> não sabemos bem o que é e nem<br />

como pensar. Esse ‘solo’ será chamado mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> ‘plano’ e consiste<br />

basicamente num tipo <strong>de</strong> disposição que nos permite pensar<br />

o que pensamos. A filosofia, por exemplo, consiste na criação <strong>de</strong><br />

216


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

conceitos, mas estes são motivados por questões que <strong>de</strong>vem ser<br />

coloca<strong>da</strong>s segundo um contexto e que não existem antes do ato <strong>de</strong><br />

pensar (DELEUZE & GUATTARI, 1991:40-43). No campo <strong>da</strong> <strong>literatura</strong><br />

e <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais artes, traça-se um plano próprio, algo distinto<br />

do plano filosófico. Deleuze-Guattari o chamam <strong>de</strong> “plano <strong>de</strong> composição<br />

<strong>de</strong> sensações” (cf. Ibid.:186). Contudo, <strong>de</strong> um modo ou <strong>de</strong><br />

outro, o pensamento se faz sempre a partir <strong>de</strong> forças “pré-lógicas”<br />

que nos tomam e forçam a pensar. Essas forças que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam o<br />

pensamento po<strong>de</strong>m ser vistas como algo a ser afirmado ou exorcizado<br />

(DELEUZE, 1968:182 e 192-193).<br />

Nos termos do artigo sobre <strong>Sartre</strong>: po<strong>de</strong>mos mergulhar no<br />

mundo mais colorido <strong>da</strong> sub-representação e do impensado ou<br />

então escamoteá-lo através <strong>de</strong> uma naturalização <strong>de</strong> certos mecanismos<br />

que envolvem o ato <strong>de</strong> pensar, mas que estão bem longe <strong>de</strong><br />

caracterizá-lo. “Pensadores privados” – não obviamente no sentido<br />

<strong>de</strong> isolados do mundo que os cerca, mas sim como aqueles que<br />

conseguem pensar fora ou no limite do senso comum em que “todos<br />

sabem muito bem que...”, “todos <strong>de</strong>vemos reconhecer que...”<br />

etc... – são aqueles que sabem questionar a or<strong>de</strong>m representativa,<br />

mantendo com isso “o grão <strong>da</strong> revolução permanente” (DELEUZE,<br />

2002:111). “Pensadores públicos” – cuja proliferação nos dias <strong>de</strong><br />

hoje parece inegável por razões as mais diversas – ten<strong>de</strong>m por sua<br />

vez a se confinar à esfera do juízo e aceitar suas convenções com<br />

vistas a ocupar um lugar e, então, justificá-lo e legitimá-lo.<br />

Dessa forma, a in<strong>da</strong>gação sartreana em torno do que <strong>de</strong>vemos<br />

esperar do escritor é reconduzi<strong>da</strong> por Deleuze: a rigor, só no primeiro<br />

caso po<strong>de</strong>mos falar em engajamento, pois só ali ocorre uma<br />

completa afirmação do pensamento como “subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> em construção”.<br />

O pensamento (filosofia, <strong>literatura</strong> ou o que for) se engaja<br />

quando se volta para aquilo que o anima ‘<strong>de</strong> fora’, isto é, para as<br />

forças que nos fazem pensar além <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m naturaliza<strong>da</strong> dos fatos.<br />

É provavelmente nisso que resi<strong>de</strong> a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o ‘mestre’<br />

<strong>Sartre</strong> e o ‘discípulo’ Deleuze. É, aliás, revelador notar que a<br />

segun<strong>da</strong> passagem <strong>de</strong> Qu’est-ce que la littérature, cita<strong>da</strong> por Deleuze,<br />

remete a Kafka, um escritor que <strong>de</strong>sempenhará um papel fun<strong>da</strong>mental<br />

na sua abor<strong>da</strong>gem sobre a <strong>literatura</strong>, precisamente por sua<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

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Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

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vocação política: “a obra <strong>de</strong> Kafka é uma reação livre e unitária ao<br />

mundo ju<strong>da</strong>ico-cristão <strong>da</strong> Europa. Seus romances são a ultrapassagem<br />

sintética <strong>de</strong> sua situação <strong>de</strong> homem, <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u, <strong>de</strong> tcheco, <strong>de</strong><br />

noivo recalcitrante, <strong>de</strong> tuberculoso etc.” (SARTRE, 1948:293).<br />

Deleuze utiliza o trecho para falar <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>, o que mostra o quão<br />

próximas estariam as duas concepções <strong>de</strong> engajamento <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um<br />

dos filósofos. Kafka é um escritor engajado para <strong>Sartre</strong>, assim como<br />

<strong>Sartre</strong> é um filósofo engajado para Deleuze. Mas é possível utilizar<br />

o mesmo trecho para irmos mais além. Po<strong>de</strong>mos in<strong>da</strong>gar ain<strong>da</strong> o<br />

quanto o modo <strong>de</strong> engajamento literário proposto por <strong>Sartre</strong> efetivamente<br />

converge com o modo <strong>de</strong> engajamento que estaria <strong>nas</strong><br />

entrelinhas <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong>leuzeana. Po<strong>de</strong>mos supor um ponto<br />

quase pacífico para a questão do engajamento tout court. Mas existiria<br />

um modo especificamente literário <strong>de</strong> engajamento para ca<strong>da</strong><br />

um dos filósofos Em caso afirmativo, quais seriam esses modos E<br />

mais: que diferenças importantes na própria noção <strong>de</strong> engajamento<br />

po<strong>de</strong>riam ser revela<strong>da</strong>s a partir <strong>de</strong>ssa diferença primeira, entre os<br />

modos <strong>de</strong> engajamento literário<br />

2. <strong>Sartre</strong>: uma <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> situações<br />

Analisemos inicialmente o célebre ensaio <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>. Qu’est-ce que la<br />

littérature começa com uma discussão sobre a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>literatura</strong><br />

diante <strong>de</strong> outras formas artísticas, como a pintura, a escultura<br />

ou a música. Segundo o filósofo, praticamente nenhum<br />

paralelismo po<strong>de</strong> ser traçado entre a arte literária e outros meios<br />

artísticos. Eles diferem tanto em termos <strong>de</strong> forma como em termos<br />

<strong>de</strong> matéria. Os elementos constituintes <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> são signos que<br />

sempre se referem a algo <strong>de</strong> exterior a eles. Por outro lado, cores,<br />

formas e sons são coisas que existem por si mesmos. Ain<strong>da</strong> que<br />

reconheçamos uma certa significação em uma melodia ou em uma<br />

pintura, o fato principal é que ela não po<strong>de</strong> existir fora <strong>da</strong> melodia<br />

ou <strong>da</strong> tela. A fim <strong>de</strong> melhor esclarecer seu argumento, <strong>Sartre</strong> emprega<br />

o vocabulário existencialista. Em uma canção <strong>de</strong> lamento,<br />

por exemplo, a lamentação já não existe, ela é. O que <strong>Sartre</strong> está<br />

dizendo é que a idéia original que anima a obra se encontra com-


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

Foto: Comunicação&política, Bruno Barbez v.25, nº2, p.213-234<br />

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Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

pletamente absorvi<strong>da</strong> na obra. O pesar tornou-se uma coisa musical,<br />

ele já não existe enquanto tal. É a mesma situação do Gólgota<br />

pintado por Tintoretto. O amarelo no rasgo do céu, acima do<br />

Gólgota, não teria sido escolhido para significar angústia ou mesmo<br />

para provocá-la, mas seria a angústia torna<strong>da</strong> coisa, a angústia<br />

como rasgo amarelo no firmamento (cf. Ibid., 15)<br />

Em contraste com isso, <strong>Sartre</strong> afirma que o escritor li<strong>da</strong> primordialmente<br />

com significados. Eis porque ele <strong>de</strong>verá se engajar. Nesta<br />

altura <strong>da</strong> sua argumentação, a reivindicação sartreana <strong>de</strong><br />

engajamento surge como uma exigência <strong>de</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição diante<br />

dos significados sugeridos (ou situações <strong>de</strong>scritas) na obra.<br />

Entretanto, mais adiante no ensaio, <strong>Sartre</strong> tenta mostrar que o<br />

engajamento <strong>de</strong>ve ir muito além disso. Trata-se, sobretudo, <strong>de</strong> visar<br />

às próprias condições <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> significação, isto é, <strong>de</strong><br />

afirmar e se engajar pela liber<strong>da</strong><strong>de</strong> que é o próprio requisito do ato<br />

criador. Mas, antes <strong>de</strong> chegar a isso, o filósofo enfatiza a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se distinguir prosa <strong>de</strong> poesia. O ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro império dos signos<br />

é a prosa, já que a poesia no fundo não se serve <strong>da</strong>s palavras.<br />

Ao contrário, segundo a fórmula sartreana, a poesia serve as palavras<br />

(cf. Ibid., 18):<br />

“Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o poeta se retirou <strong>de</strong> uma só vez <strong>da</strong> linguageminstrumento;<br />

ele escolheu <strong>de</strong> uma vez por to<strong>da</strong>s a atitu<strong>de</strong> poética<br />

que consi<strong>de</strong>ra as palavras como coisas e não como signos. Pois a<br />

ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> do signo implica que se possa atravessá-lo à vonta<strong>de</strong>,<br />

como uma vidraça, e perseguir através <strong>de</strong>le a coisa significa<strong>da</strong>; ou<br />

virar seu olhar em direção à sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rando-o como<br />

objeto. O homem que fala está além <strong>da</strong>s palavras, próximo do objeto;<br />

o poeta está aquém (...). Para o primeiro, as palavras são convenções<br />

úteis, ferramentas que se <strong>de</strong>sgastam pouco a pouco e que<br />

jogamos fora quando já não servem; para o segundo, elas são coisas<br />

naturais que crescem naturalmente sobre a terra, como a grama e<br />

as árvores.” (Ibid., 18-19).<br />

Embora reconheça que em to<strong>da</strong> poesia po<strong>de</strong>mos encontrar elementos<br />

<strong>de</strong> prosa e que, mesmo a mais ári<strong>da</strong> prosa, contém um<br />

220


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

pouco <strong>de</strong> poesia, <strong>Sartre</strong> parece oferecer aqui uma linha <strong>de</strong>marcatória<br />

bastante clara que permite <strong>de</strong>senvolver sua argumentação ao mesmo<br />

tempo em que esclarece a distinção prece<strong>de</strong>nte, estabeleci<strong>da</strong><br />

entre as diferentes formas artísticas. A partir <strong>da</strong>í, o filósofo insistirá<br />

na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> algum grau <strong>de</strong> conceptualização como condição<br />

para a criação literária, <strong>de</strong>stacando um conteúdo que estaria em busca<br />

<strong>de</strong> sua melhor forma <strong>de</strong> expressão.<br />

Não é tanto a metáfora do vidro que se faz problemática na<br />

medi<strong>da</strong> em que supõe uma certa transparência <strong>da</strong> linguagem, mas<br />

a observação complementar segundo a qual a prosa é “essencialmente<br />

utilitária” (Ibid., 25). Pois mesmo que admitamos alguma<br />

utili<strong>da</strong><strong>de</strong> para a linguagem fala<strong>da</strong> do dia-a-dia, po<strong>de</strong>mos ain<strong>da</strong> duvi<strong>da</strong>r<br />

que este seja o objetivo <strong>da</strong> prosa literária. Ao menos po<strong>de</strong>mos<br />

duvi<strong>da</strong>r que o efeito procurado pelo escritor seja efetivamente<br />

a comunicação direta <strong>de</strong> idéias. Seria a função primeira <strong>da</strong> língua<br />

informar e comunicar<br />

Não obstante, este parece ser um dos argumentos centrais do<br />

ensaio <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>. Nele jaz uma concepção <strong>de</strong> linguagem como meio<br />

originalmente transparente. A substância <strong>da</strong> prosa é apresenta<strong>da</strong> como<br />

significativa e o processo <strong>de</strong> significação é quase reduzido à <strong>de</strong>signação<br />

(cf. Ibid). O problema central <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> é saber como o<br />

escritor po<strong>de</strong> encontrar os melhores meios para exprimir idéias já<br />

elabora<strong>da</strong>s.<br />

Para abran<strong>da</strong>r esse primeiro veredicto <strong>de</strong> que <strong>Sartre</strong> acaba por<br />

separar pensamento e expressão <strong>de</strong> maneira quase irreversível,<br />

po<strong>de</strong>ríamos observar que Qu’est-ce que la littérature foi escrito como<br />

uma espécie <strong>de</strong> panfleto contra a famosa e renitente tese <strong>da</strong> ‘arte<br />

pela arte’. Aos puros estilistas que vêem na palavra uma brisa suave<br />

“que corre sobre a superfície <strong>da</strong>s coisas, aflorando-as sem alterálas”<br />

(Ibid., 27), <strong>Sartre</strong> tentaria opor uma visão segundo a qual nossos<br />

modos <strong>de</strong> falar e escrever são atos expressivos capazes <strong>de</strong> alterar o<br />

meio em que se inserem. A manobra é, <strong>de</strong> fato, importantíssima.<br />

Ao enfatizar a <strong>literatura</strong> como forma <strong>de</strong> ação, o filósofo consegue<br />

refinar seu argumento sobre a preeminência do conteúdo sobre a<br />

expressão. Mas é novamente a obsessão pela transparência que<br />

ameaça comprometer sua argumentação:<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

221


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

“Não se é escritor por se ter escolhido dizer certas coisas, mas sim por<br />

se ter escolhido dizê-las <strong>de</strong> uma certa maneira. É claro que é o estilo<br />

que dá valor à prosa. Mas ele <strong>de</strong>ve passar <strong>de</strong>sapercebido. Uma<br />

vez que as palavras são transparentes e o olhar as atravessa, seria<br />

absurdo fazer <strong>de</strong>slizar entre elas vidros foscos. A beleza não é aqui<br />

senão uma força doce e insensível [itálicos meus].” (Ibid., p. 30)<br />

Uma vez mais, o que temos aqui é a idéia <strong>de</strong> que o estilo é um<br />

meio para se chegar ao significado, um mero instrumento ou, segundo<br />

a metáfora que <strong>Sartre</strong> toma empresta<strong>da</strong> a Brice Parain, “pistolas<br />

carrega<strong>da</strong>s” que <strong>de</strong>vem ser usa<strong>da</strong>s com responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto<br />

é, em alvos específicos e não aleatoriamente (cf. Ibid., 29) Estes<br />

alvos estão relacionados à luta <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um pela liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas,<br />

para <strong>Sartre</strong>, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> não é um fim abstrato, como o escritor<br />

Julien Ben<strong>da</strong> parece <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r em sua obra La Trahison <strong>de</strong>s clercs<br />

(1927) ou mesmo Gyorgy Lukacs em seus ensaios sobre <strong>literatura</strong>.<br />

Nos termos do existencialismo, só há liber<strong>da</strong><strong>de</strong> em situação. Nesse<br />

sentido, engajar-se é sempre engajar-se diante do estado <strong>de</strong> coisas<br />

atual, não exatamente pela liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas a partir <strong>de</strong>la.<br />

Com isso, <strong>Sartre</strong> respon<strong>de</strong> a pergunta que propõe logo no título<br />

<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> seção <strong>de</strong> seu ensaio (“Por que escrever”). Basicamente,<br />

escrevemos para nos posicionarmos em face <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, para exercermos<br />

nossa liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. O erro dos estilistas <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> <strong>de</strong>riva<br />

precisamente <strong>de</strong> sua má fé (conceito-chave do existencialismo), ou<br />

seja, <strong>de</strong> sua recusa em assumir a condição livre <strong>de</strong> consciência<br />

<strong>de</strong>sveladora do mundo. Pois, afinal <strong>de</strong> contas, escrever é um modo<br />

<strong>de</strong> reivindicar liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Além disso, como ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelamento<br />

do mundo, o ato criador <strong>de</strong> significados necessariamente inclui os<br />

leitores. Daí a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma terceira seção para o ensaio,<br />

intitula<strong>da</strong> “Para quem escrevemos”.<br />

O veredicto final <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> a respeito <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> está quase<br />

pronto. O escritor <strong>de</strong>ve se engajar pela liber<strong>da</strong><strong>de</strong> que é condição<br />

<strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do próprio ato criador (1). Essa liber<strong>da</strong><strong>de</strong> inclui,<br />

porém, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> dos leitores, aqui e agora, em situação (2): “quanto<br />

mais experimentamos nossa liber<strong>da</strong><strong>de</strong> mais reconhecemos a liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do outro” (Ibid., 58).<br />

222


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, segundo <strong>Sartre</strong>, é a escolha do leitor que <strong>de</strong>termina<br />

a escolha do tema (e <strong>da</strong> situação) sobre o qual se <strong>de</strong>ve escrever.<br />

O engajamento é, assim, engajamento pela situação retrata<strong>da</strong>,<br />

dirigi<strong>da</strong> a seus contemporâneos e irmãos <strong>de</strong> classe ou <strong>de</strong> raça, no<br />

sentido <strong>de</strong> sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pôr o foco do texto <strong>nas</strong> palavras (caso <strong>de</strong><br />

Flaubert) ou escrever para que não se experimente a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> (caso<br />

<strong>de</strong> Drieu la Rochelle em seu apoio ao fascismo do regime <strong>de</strong> Vichy)<br />

é se <strong>de</strong>sengajar, e com isso, trair a própria arte <strong>de</strong> escrever.<br />

Apesar <strong>da</strong> revisão <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sses argumentos – em ensaios<br />

posteriores e, sobretudo, nos livros escritos sobre Genet e Flaubert<br />

–, a base a partir <strong>da</strong> qual eles se articulam permaneceria a mesma<br />

no pensamento <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>. Trata-se <strong>de</strong> uma base existencialista. O<br />

engajamento é engajamento por uma liber<strong>da</strong><strong>de</strong> que é a própria<br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> no ato criador. A liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve atualizar-se nos temas<br />

significados no interior <strong>da</strong> obra literária. A língua é vista como<br />

transparente, sendo-lhe reservado um papel secundário como língua.<br />

Eis por que o estilo <strong>de</strong>ve passar <strong>de</strong>sapercebido: precisamente<br />

para permitir que as idéias associa<strong>da</strong>s à situação <strong>de</strong>scrita possam<br />

ser transmiti<strong>da</strong>s. Em semelhante contexto, a única possível<br />

especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> conferi<strong>da</strong> ao engajamento em <strong>literatura</strong> resi<strong>de</strong> na<br />

sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conduzir o leitor na trilha que o levará a tomar<br />

consciência <strong>de</strong> sua situação, e que irá prepará-lo para lutar por sua<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. Afora isso, a <strong>literatura</strong> parece compartilhar com a história<br />

ou a filosofia a mesma meta <strong>de</strong> veicular uma mensagem, <strong>de</strong>vendo<br />

manter-se fiel a um tal objetivo. Para parafrasear <strong>Sartre</strong>, o escritor<br />

<strong>de</strong>ve praticar uma <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> situações, iniciando por um processo<br />

<strong>de</strong> conceptualização que se dirige a grupos específicos. O estilo é<br />

um meio para <strong>de</strong>screver as situações <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> dos grupos em<br />

questão, sem possuir em si mesmo o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformá-las.<br />

Mas como Kafka correspon<strong>de</strong>ria a essa visão Numa obra como<br />

a Metamorfose, por exemplo, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>tectar o tipo <strong>de</strong><br />

engajamento sugerido por <strong>Sartre</strong> O autor tcheco é um escritor <strong>de</strong><br />

situações O que o motiva a escrever A quem ele se dirige Como<br />

funciona o seu estilo<br />

Como sugeri, a resposta a essas perguntas autoriza avançar um<br />

pouco mais na comparação entre as concepções <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

223


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

acerca do engajamento na <strong>literatura</strong>. Afinal <strong>de</strong> contas, o mais importante<br />

trabalho sobre <strong>literatura</strong> escrito por este último, ao lado<br />

<strong>de</strong> Félix Guattari, é <strong>de</strong>dicado precisamente a Kafka (Kafka, por uma<br />

<strong>literatura</strong> menor).<br />

Nas palavras <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>, o que o autor <strong>da</strong> Metamorfose promove<br />

por meio <strong>de</strong> sua <strong>literatura</strong> é uma “reação livre e unitária” aos limites<br />

do seu próprio mundo – o mundo ju<strong>da</strong>ico-cristão <strong>da</strong> Europa<br />

central. Assim, escrever é encarado como um ato sintético <strong>de</strong> projeção<br />

para além <strong>de</strong> sua situação no mundo (cf. Ibid., 293). Isso explica<br />

em que sentido Kafka po<strong>de</strong> aparecer para <strong>Sartre</strong> como um<br />

escritor engajado. Entretanto, o filósofo é, ain<strong>da</strong> aqui, bastante pru<strong>de</strong>nte<br />

em suas consi<strong>de</strong>rações. A fim <strong>de</strong> rechaçar o dualismo entre<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> conceptualiza<strong>da</strong> (pensamento) e expressão, o filósofo<br />

insiste que o realismo e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Kafka nunca são <strong>da</strong>dos como<br />

“já constituídos” ao leitor. É preciso que este último invente tudo<br />

numa perpétua ultrapassagem <strong>da</strong> coisa escrita. O autor é ape<strong>nas</strong><br />

um guia: as balizas com que ele marca o terreno “são separa<strong>da</strong>s por<br />

um vazio, é necessário uni-las” (Ibid., 52).<br />

Ora, ao utilizar semelhante terminologia, <strong>Sartre</strong> parece mais uma<br />

vez manter uma concepção em que o estilo (terreno) é um simples<br />

suporte para <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s idéias (balizas). O leitor não ultrapassa<br />

as idéias preconcebi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> seu mundo movido pelo estilo como<br />

uma força positiva. Ao contrário, o estilo <strong>de</strong>ve permanecer neutro.<br />

Sua função é auxiliar a conectar as idéias. O estilo po<strong>de</strong> eventualmente<br />

reforçá-las, mas tentar fazê-lo é um risco. O melhor é evitar<br />

exercícios <strong>de</strong> estilo.<br />

Parece, enfim, que a ênfase que <strong>Sartre</strong> dá à significação acaba<br />

por arrastá-lo para uma situação em que é preciso escolher entre<br />

ser fiel a <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s idéias associa<strong>da</strong>s à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> (engajamento)<br />

ou enfatizar os meios <strong>de</strong> expressão. Desse ponto <strong>de</strong> vista, algum<br />

engajamento (mesmo em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> ‘beleza’) é melhor<br />

do que nenhum. Uma conexão baliza<strong>da</strong> por idéias em nome<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> é melhor do que uma livre conexão (cf. Ibid., 29-30).<br />

<strong>Sartre</strong> confirma aqui o princípio que norteou sua crítica literária,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as críticas <strong>de</strong> seu Situations I. Contra o cui<strong>da</strong>do com as palavras,<br />

presente na obra <strong>de</strong> um escritor como Jules Renard, por exem-<br />

224


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

plo, ele postulava a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> certa concisão em prol <strong>da</strong>s idéias a<br />

serem exprimi<strong>da</strong>s (cf. SARTRE, 1942:273). Somente assim seríamos<br />

efetivamente engajados.<br />

Mas seria assim também para Deleuze Até que ponto as visões<br />

<strong>de</strong> <strong>literatura</strong> dos dois pensadores convergem O que há <strong>de</strong> novo na<br />

abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong>leuzeana sobre Kafka que permitiria distinguir suas<br />

idéias <strong>de</strong> engajamento <strong>da</strong>quelas <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong><br />

Deleuze e a máquina literária<br />

Curiosamente, Deleuze utiliza o termo “sobrie<strong>da</strong><strong>de</strong>”, que se aproxima<br />

muito <strong>da</strong> “concisão” sartreana. Mas é essencial <strong>de</strong>terminar o<br />

sentido próprio do termo na obra <strong>de</strong>leuzeana. À primeira vista,<br />

atingir a sobrie<strong>da</strong><strong>de</strong> é uma simples questão <strong>de</strong> ser capaz <strong>de</strong> rarefazer<br />

ou saturar por eliminação todo excesso, como na obra <strong>de</strong> Virginia<br />

Woolf (DELEUZE & GUATTARI, 1980: p. 343). To<strong>da</strong>via, um olhar<br />

mais atento revela que o método que Deleuze propõe não é propriamente<br />

aquele <strong>da</strong> concisão sartreana. Pois o objetivo não é<br />

mais abrir espaço para idéias <strong>de</strong> situação ou mesmo pôr o leitor em<br />

contato com a experiência do “vivido” (vivência fenomenológica),<br />

mas permitir que as coisas (língua, escritor e leitor) continuem a <strong>de</strong>vir.<br />

De acordo com Deleuze, esta é a tarefa <strong>de</strong> to<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> artística.<br />

A arte compõe sensações (“perceptos e afetos”) que exce<strong>de</strong>m nossa<br />

vivência ou campo perceptivo-afetivo (DELEUZE & GUATTARI,<br />

1991: pp. 154-155). A diferença entre a <strong>literatura</strong> e outras artes<br />

resi<strong>de</strong> ape<strong>nas</strong> nos materiais (meios) usados. O estilo <strong>de</strong>sempenha<br />

um papel positivo, como força propulsionadora no processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>vir. No caso <strong>da</strong> <strong>literatura</strong>, o estilo é visto como invenção <strong>de</strong> uma<br />

nova sintaxe, capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarticular formações lingüísticas canônicas<br />

e enrijeci<strong>da</strong>s:<br />

“O objetivo <strong>da</strong> arte é arrancar o percepto <strong>da</strong>s percepções <strong>de</strong> objetos<br />

e dos estados do sujeito percipiente, arrancar o afeto <strong>da</strong>s afecções<br />

(...) Em relação a isto, a posição do escritor não é diferente <strong>da</strong>quela<br />

do pintor, do músico ou do arquiteto. Os materiais específicos do<br />

escritor são as palavras e a sintaxe.” (Ibid., 198)<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

225


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

226<br />

Em sua última obra (Crítica e clínica, 1992), Deleuze é mais explícito.<br />

Ele afirma a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “esburacar” as línguas pretensamente<br />

estabeleci<strong>da</strong>s a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>las novas<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s lingüísticas que permanecem inseparáveis <strong>de</strong> novas<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> existência. Estão aí os dois aspectos que já <strong>de</strong>finiam<br />

o procedimento <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> menor <strong>de</strong>leuzo-guattariana, cujo<br />

maior representante é Kafka: <strong>de</strong>compor as conexões <strong>da</strong>s línguaspadrão<br />

(1), inventar uma nova língua <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> língua como sistema<br />

estável e homogêneo, por meio <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> uma nova<br />

sintaxe (2). Um terceiro aspecto aju<strong>da</strong> a compreen<strong>de</strong>r o que tudo<br />

isso tem a ver com engajamento. Trata-se <strong>da</strong> abertura imediata <strong>da</strong><br />

<strong>literatura</strong> sobre o universo. Quando a língua é escava<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r<br />

lugar a uma outra língua, somos confrontados com seus limites<br />

não-lingüísticos, com o seu fora. Deparamo-nos com visões e audições<br />

que, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, não pertencem a nenhuma língua (3)<br />

(DELEUZE, 1992:16). Este ‘fora’, que na<strong>da</strong> mais é do que o limite<br />

interno <strong>de</strong> qualquer forma ou o campo genético que permite que<br />

to<strong>da</strong>s formas venham a ser, é precisamente o domínio do “subrepresentativo”.<br />

O engajamento se torna então engajamento pelo<br />

limite que, justamente por ser limite <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em <strong>de</strong>vir,<br />

não po<strong>de</strong> estar <strong>da</strong>do e é irrepresentável.


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

Eis o gran<strong>de</strong> e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro mérito <strong>de</strong> Kafka: ter <strong>de</strong>senvolvido ao<br />

longo <strong>de</strong> sua obra um método <strong>de</strong> escavação <strong>da</strong> língua alemã que<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nominado processo <strong>de</strong> ‘minorização literária’, cujo alcance<br />

é, imediatamente e em si mesmo, lingüístico e sócio-político.<br />

Deleuze e Guattari já resumiam naquela ocasião (1975) os três aspectos<br />

<strong>de</strong> uma “<strong>literatura</strong> menor”: <strong>de</strong>sterritorialização <strong>da</strong> línguapadrão<br />

(1), conexão política imediata (2) e agenciamento coletivo<br />

<strong>de</strong> enunciação (3) (DELEUZE & GUATTARI, 1975:33).<br />

O terceiro ponto mostra que a abertura para o universo passa<br />

necessariamente pelo meio social. Não há mais distinção entre<br />

posição/estilo do autor e abor<strong>da</strong>gem do tema. Os sujeitos <strong>de</strong><br />

enunciação e <strong>de</strong> enunciado se embaralham e dissolvem os papéis<br />

sociais e políticos <strong>nas</strong> conexões estabeleci<strong>da</strong>s com o não-representado.<br />

A <strong>literatura</strong> já não <strong>de</strong>ve se empenhar em exprimir idéias bem<br />

concebi<strong>da</strong>s, mas sim expressar atos coletivos <strong>de</strong> enunciação que o<br />

autor consegue extrair <strong>da</strong>s representações socialmente construí<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ao fazê-lo, a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> representação se <strong>de</strong>sarticula.<br />

A separação entre conteúdo e expressão é aboli<strong>da</strong>, assim como a<br />

distância que se supõe entre o escritor e o povo ao qual se dirige. O que<br />

efetivamente fun<strong>da</strong> conteúdo e expressão é um fluxo expressivo<br />

(Wörterflucht) movido por uma tendência à fuga dos mo<strong>de</strong>los-padrão<br />

que nunca são lingüísticos sem serem, ao mesmo tempo, sociais<br />

e políticos.<br />

Para Deleuze, o escritor está sempre em busca <strong>de</strong> uma fuga ativa,<br />

para se tornar outro com o movimento (<strong>de</strong>vir) minoritário <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>. Está claro, porém, que a fuga nunca é <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas para a vi<strong>da</strong>,<br />

rumo à vi<strong>da</strong> anônima que subjaz às nossas estratificações e naturalizações<br />

diárias – uma vi<strong>da</strong> ‘lisa’, que perpassa todos os eventuais<br />

estratos que a ocupam, vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> personagens como Bartleby<br />

(Herman Melville) ou Riobaldo (Guimarães Rosa):<br />

“Partir, escapar, é traçar uma linha. O mais elevado aspecto <strong>da</strong><br />

<strong>literatura</strong> segundo Lawrence é “partir, partir, escapar... atravessar<br />

o horizonte, penetrar noutra vi<strong>da</strong>... É assim que Melville se encontra<br />

no meio do Pacífico. Ele realmente cruzou a linha do horizonte”.<br />

A linha <strong>de</strong> fuga é uma <strong>de</strong>sterritorialização (...) O gran<strong>de</strong> e único<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

227


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

erro seria crer que a linha <strong>de</strong> fuga consiste em fugir <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; a fuga<br />

para o imaginário, fuga para <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> arte. Ao contrário, fugir é<br />

produzir o real, criar vi<strong>da</strong>, encontrar uma arma”. (DELEUZE &<br />

PARNET, 1977:36 e 49)<br />

Como Melville ou D.H. Lawrence, Kafka também é avaliado e<br />

valorizado em termos <strong>de</strong> seu engajamento diante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como<br />

<strong>de</strong>vir <strong>de</strong>smesurado (a-cronológico). E se Deleuze prefere falar <strong>de</strong><br />

fuga do que <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> é para evitar as oposições ain<strong>da</strong> abstratas<br />

que parecem dominar o existencialismo. Oposições como aquela<br />

entre real e imaginário, que mantém to<strong>da</strong> a problemática <strong>de</strong>ntro<br />

do terreno <strong>da</strong> representação (será preciso esperar o estruturalismo...).<br />

Os efeitos políticos disso são evi<strong>de</strong>ntes, através <strong>da</strong> redução<br />

<strong>da</strong> esfera micropolítica à esfera dos po<strong>de</strong>res (macro-política): o lugar<br />

do po<strong>de</strong>r, sua posse etc. (será preciso esperar Foucault...).<br />

Há duas conseqüências a tirar <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong>leuzeana. Primeiramente,<br />

a noção <strong>de</strong> ‘engajamento’ <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> remeter a um povo<br />

ou grupo específico, mesmo que em situação. O conceito <strong>de</strong>leuzeano<br />

<strong>de</strong> “menor” não se refere a nenhum grupo social situado historicamente,<br />

como era o caso no contexto <strong>da</strong> análise sartreana. Como<br />

Deleuze adverte: “uma minoria nunca existe pronta” (Ibid., 43). A<br />

rigor, há uma diferença essencial entre processo minoritário como<br />

<strong>de</strong>vir e minoria como grupo social. Um <strong>de</strong>vir-minoritário não é o<br />

estado atual <strong>de</strong> um grupo oprimido, <strong>da</strong>do em algum tempo-espaço,<br />

mas <strong>de</strong>signa a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que, <strong>de</strong> um momento a outro, irrompe<br />

em ca<strong>da</strong> grupo ou indivíduo não-ajustável a um padrão ou mo<strong>de</strong>lo,<br />

permitindo que se mergulhe na dimensão ‘sub-representativa’<br />

na qual paramos <strong>de</strong> passar <strong>de</strong> sujeitos <strong>de</strong> enunciação (objetos) a<br />

sujeitos enunciantes (sujeitos) e simplesmente enunciamos...<br />

A segun<strong>da</strong> conseqüência diz respeito ao estilo. O engajamento não<br />

se dá na <strong>literatura</strong> por uma situação <strong>de</strong>scrita e nem tampouco pelas<br />

idéias que animam a <strong>de</strong>scrição. Ele diz respeito ao estilo. Não se<br />

trata <strong>de</strong> conceptualizar primeiro para, só então, escrever e transformar.<br />

Numa <strong>literatura</strong> menor, a expressão que resulta <strong>da</strong> escavação<br />

<strong>de</strong> uma língua-padrão nunca vem após o conteúdo:<br />

228


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

“Uma língua maior ou estabeleci<strong>da</strong> segue um vetor que vai do conteúdo<br />

à expressão: <strong>da</strong>do um conteúdo, numa certa forma, trata-se<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir ou divisar a forma <strong>de</strong> expressão que lhe convém. O que<br />

se concebe bem, se enuncia... Mas uma <strong>literatura</strong> menor ou revolucionária<br />

começa por enunciar, e só vê ou concebe <strong>de</strong>pois (“A palavra,<br />

eu não a vejo, eu a invento”). A expressão <strong>de</strong>ve romper com as<br />

formas, marcar as rupturas (...) Quando uma forma se parte, trata-se<br />

<strong>de</strong> reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em ruptura<br />

com a própria or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s coisas” (DELEUZE & GUATTARI,<br />

1975:51-52).<br />

Deleuze enfatiza ain<strong>da</strong> que não há qualquer i<strong>de</strong>alismo (nenhum<br />

espaço para os estilistas, advogados <strong>da</strong> ‘arte pela arte’ criticados<br />

por <strong>Sartre</strong>) no primado <strong>da</strong> expressão sobre o conteúdo. Pois a expressão<br />

é ela própria <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> pelos “agenciamentos coletivos <strong>de</strong><br />

enunciação”, isto é, pela conexão <strong>de</strong>sejante que liga o escritor aos<br />

<strong>de</strong>vires necessariamente minoritários que o constituem: “Não há sujeito,<br />

há somente agenciamentos coletivos <strong>de</strong> enunciação” (Ibid., 33).<br />

O escritor é um ‘inventor <strong>de</strong> agenciamentos’, um homem político<br />

na exata medi<strong>da</strong> em que se abre para experimentações lingüísticas<br />

que <strong>de</strong>sarticulam a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> representação. Ele é uma ‘máquina<br />

literária’ que consegue se ‘plugar’ ao mundo e extrair <strong>de</strong>le uma<br />

pequena variação ou diferença:<br />

“Kafka não se toma, evi<strong>de</strong>ntemente, por um partido. Sequer preten<strong>de</strong><br />

ser revolucionário, quaisquer que sejam suas simpatias socialistas.<br />

Ele sabe que todos os laços o amarram a uma máquina literária<br />

<strong>de</strong> expressão. Ele é simultaneamente suas engrenagens, o mecânico,<br />

o funcionário e a vítima. (...) Como fazer a revolução Ele agirá<br />

sobre a língua alemã tal como usa<strong>da</strong> na Tchecoslováquia: já que se<br />

encontra <strong>de</strong>sterritorializa<strong>da</strong> (...), levará mais longe esta<br />

<strong>de</strong>sterritorialização (...) A expressão varrerá o conteúdo; é preciso<br />

fazer o mesmo com a forma [itálicos meus].” (Ibid., 106)<br />

O escritor emerge, então, não como alguém engajado pela liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos povos e elaborando uma <strong>literatura</strong> capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

229


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

suas situações, mas sim como alguém que se engaja pelo <strong>de</strong>vir <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> que é também social e político, encarnando-o na <strong>literatura</strong>. O<br />

povo ao qual ele se dirige ain<strong>da</strong> não existe, está permanentemente<br />

por vir. E é porque não há nenhum povo pronto em sua luta por liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que não há idéias específicas a serem expressas. O estilo não é mais um<br />

meio passivo e transparente para transmitir idéias. Em Deleuze, o<br />

estilo é inseparável do não-estilo (DELEUZE, 1970:199). Ele é um<br />

rio que carrega todos os materiais, incluindo os leitores, varridos<br />

pela força <strong>de</strong> uma língua <strong>de</strong>sterritorializa<strong>da</strong>, aberta para todos os<br />

fluxos, como os gritos e sopros <strong>de</strong> Artaud.<br />

Esten<strong>de</strong>ndo as metáforas utiliza<strong>da</strong>s por <strong>Sartre</strong>: há sem dúvi<strong>da</strong><br />

uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ‘às margens do rio’, mas ela é imediatamente afeta<strong>da</strong><br />

pelo fluir do rio. A vidraça está racha<strong>da</strong>, os cacos estão no meio<br />

do rio. Como em <strong>Sartre</strong>, evita-se a ênfase na beleza frígi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s palavras<br />

(o lirismo oco), mas o que toma a dianteira é a conexão entre<br />

as palavras, o ritmo <strong>da</strong> língua quando já não se trata mais <strong>de</strong> representar<br />

na<strong>da</strong>, <strong>de</strong> assegurar nenhuma or<strong>de</strong>m ‘natural’ <strong>da</strong>s coisas, na<br />

vi<strong>da</strong>, na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e na política. É esse ritmo sempre <strong>de</strong>sviante com<br />

relação as nossas representações e or<strong>de</strong>ns ‘naturais’ que faz a idéia<br />

na <strong>literatura</strong>. Idéias sozinhas, por mais bem elabora<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>mocráticas<br />

que sejam, não fazem <strong>literatura</strong>.<br />

4. Quase-conclusão<br />

230<br />

“To conclu<strong>de</strong>, I announce what comes after.”<br />

Walt Whitman<br />

Na obra <strong>de</strong> Deleuze, tudo isso que foi exposto acima parece tornar<br />

possível estabelecer uma distinção entre filosofia e <strong>literatura</strong> – distinguir<br />

sim, mas em hipótese alguma estabelecer domínios estanques<br />

<strong>de</strong> pensamento, e muito menos lugares institucionais on<strong>de</strong> se<br />

po<strong>de</strong> praticar uma e outra. A <strong>literatura</strong>, por ser uma arte antes <strong>de</strong><br />

qualquer outra coisa, possui inevitavelmente um aspecto maneirista.<br />

Ou seja, nela, o estilo não po<strong>de</strong> passar <strong>de</strong>sapercebido, sob pena <strong>de</strong><br />

se per<strong>de</strong>r o próprio caráter <strong>de</strong> <strong>literatura</strong>. Entretanto, uma certa sobrie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

é necessária para que o leitor possa ‘esburacar’ a língua-


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

padrão que é também língua <strong>de</strong> representação social. O que está<br />

em jogo é um maneirismo sóbrio. Ao invés <strong>de</strong> fazer proliferar símbolos<br />

e alegorias que teoricamente seriam capazes <strong>de</strong> traduzir analogias<br />

entre situações e estados <strong>de</strong> coisas, o escritor busca uma zona<br />

<strong>de</strong> indiscernibili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre as situações e estados <strong>de</strong> coisas, uma<br />

zona a partir <strong>da</strong> qual é possível <strong>de</strong>vir-outro ou gerar algo <strong>de</strong> novo<br />

(DELEUZE & GUATTARI, 1975:143).<br />

O caso <strong>da</strong> filosofia seria ligeiramente distinto. Para utilizarmos<br />

os próprios termos <strong>de</strong> Deleuze-Guattari, o <strong>de</strong>vir conceitual ou filosófico<br />

“é o ato pelo qual o acontecimento comum esquiva o que<br />

é”, sendo este acontecimento “heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> compreendi<strong>da</strong><br />

numa forma absoluta”; ao passo que o <strong>de</strong>vir sensível é o acontecimento<br />

como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, “engajado numa matéria <strong>de</strong> expressão”<br />

(DELEUZE & GUATTARI, 1991:168). Somente no caso <strong>da</strong> filosofia<br />

a questão fun<strong>da</strong>mental envolve um processo <strong>de</strong> conceptualização<br />

em que algo é colocado sob uma forma absoluta. Isto não quer dizer<br />

que esse processo esteja à parte do <strong>de</strong>vir sensível <strong>da</strong>s artes em que<br />

são produzidos agregados materiais que valem por si próprios.<br />

Como po<strong>de</strong>mos ver por meio <strong>da</strong> análise estilística que Deleuze faz<br />

<strong>da</strong> Ética <strong>de</strong> Spinoza, o longo e tranqüilo “rio” <strong>de</strong> noções comuns<br />

correspon<strong>de</strong>ndo à formação <strong>de</strong> nossos conceitos é constantemente<br />

sacudido pelas “formações vulcânicas” <strong>de</strong> seu fundo afetivo e pelas<br />

“condições atmosféricas” perceptivas que ele próprio aju<strong>da</strong> a engendrar<br />

(DELEUZE, 1992:187). Há um só mundo do <strong>de</strong>vir, mas<br />

ele é muitos, engendrando por isso diversos modos possíveis <strong>de</strong><br />

acompanhamento (artes, filosofia, ciências).<br />

Para <strong>Sartre</strong>, porém, filosofia e <strong>literatura</strong> estão mais próximos do<br />

que po<strong>de</strong> parecer à primeira vista, justamente em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> distância<br />

que o filósofo estabelece entre as artes on<strong>de</strong> os agregados<br />

valem por si mesmos e o domínio <strong>da</strong> significação em que remetemos<br />

sempre a algo exterior por meio dos signos.<br />

Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, essas diferenças entre <strong>Sartre</strong> e Deleuze parecem<br />

residir finalmente em diferentes pressupostos filosóficos que resultam<br />

em compreensões divergentes do próprio fenômeno<br />

lingüístico. Para o primeiro (‘mestre’), o i<strong>de</strong>al <strong>da</strong> prosa, por exemplo,<br />

permanece conceitual na medi<strong>da</strong> em que a língua li<strong>da</strong> com sig-<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

231


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

nificados. Nesse sentido, <strong>literatura</strong> e filosofia caminham juntas. Para<br />

Deleuze, por outro lado, o conceito é uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre outras<br />

<strong>de</strong> experimentação <strong>da</strong> língua, talvez até mesmo um esforço para<br />

prescindir <strong>de</strong>la, como atesta a idéia <strong>de</strong> ‘forma absoluta’ em contraste<br />

com a ‘matéria <strong>de</strong> expressão’ <strong>da</strong> palavra concreta. A <strong>literatura</strong> aqui<br />

vai <strong>de</strong> par com as <strong>de</strong>mais artes. O domínio do ‘sub-representativo’<br />

é afirmado em ambos os casos, mas sem passar necessariamente<br />

por significados prévios, como parece propor <strong>Sartre</strong>.<br />

Enfim, a chave do problema <strong>da</strong>s diferenças entre <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

acerca do engajamento e <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> po<strong>de</strong> talvez ser encontra<strong>da</strong><br />

por meio <strong>de</strong> uma análise <strong>da</strong>s duas diferentes concepções <strong>de</strong> ‘ser’<br />

que animam ca<strong>da</strong> um dos empreendimentos filosóficos. Assim,<br />

embora tanto <strong>Sartre</strong> quanto Deleuze tenham uma clara dívi<strong>da</strong> para<br />

com a filosofia <strong>de</strong> Bergson, a afirmação que este último filósofo faz<br />

do puro <strong>de</strong>vir ten<strong>de</strong>u a separá-lo <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>, ao mesmo tempo em<br />

que permaneceu um ponto central para Deleuze. Como ressaltou<br />

Alain Badiou, em seu ambicioso e apressado estudo sobre Deleuze,<br />

um dos méritos <strong>de</strong>leuzeanos consiste justamente em ter assumido<br />

e mo<strong>de</strong>rnizado a filiação bergsoniana, fora <strong>da</strong> influência fenomenológica<br />

encampa<strong>da</strong> pelo existencialismo sartreano (BADIOU, 1998).<br />

Ao contrário <strong>de</strong> Bergson, <strong>Sartre</strong> enfatiza o papel <strong>da</strong> consciência a<br />

fim <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r o que vê como sóli<strong>da</strong> imanência do ser. Nossa<br />

relação com o mundo é <strong>da</strong><strong>da</strong> fenomenologicamente pela consciência.<br />

Já em Bergson e Deleuze, o ato <strong>de</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> consciência é secundário.<br />

É a relação imediata entre ca<strong>da</strong> coisa como <strong>de</strong>vir que permite que<br />

uma consciência venha a se <strong>de</strong>senvolver. Eis o sentido <strong>da</strong> oposição<br />

sugeri<strong>da</strong> por Deleuze entre a tendência fenomenológica – em que “to<strong>da</strong><br />

consciência é consciência <strong>de</strong> algo” – e o bergsonismo – em que “to<strong>da</strong><br />

consciência é algo” (DELEUZE, 1986:89-90). Em vista disso, o escritor<br />

po<strong>de</strong> surgir, para <strong>Sartre</strong> como consciência <strong>de</strong>sveladora <strong>de</strong> um<br />

mundo <strong>de</strong> situações e, para Deleuze, como uma ‘máquina literária’,<br />

segundo os dois modos <strong>de</strong> engajamento discutidos.<br />

Po<strong>de</strong>-se, então, <strong>de</strong>ixar aqui uma pista para uma análise comparativa<br />

futura que serve como uma quase-conclusão. Trata-se <strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />

uma resposta mais direta às perguntas feitas ao final <strong>da</strong> seção segun<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>ste breve ensaio.<br />

232


Literatura<br />

A questão <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> engaja<strong>da</strong> <strong>nas</strong> <strong>filosofias</strong> <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong> e Deleuze<br />

As conclusões sartrea<strong>nas</strong> a respeito <strong>de</strong> certa preeminência do<br />

pensamento (consciência <strong>de</strong>sveladora) sobre a expressão (estilo)<br />

implicam talvez uma diferença <strong>de</strong> grau entre <strong>literatura</strong> e filosofia.<br />

Se este for efetivamente o caso, não <strong>de</strong>ve haver um tipo <strong>de</strong><br />

engajamento específico para o escritor. Trata-se, invariavelmente,<br />

<strong>de</strong> se manter comprometido com idéias, escrevendo para um <strong>de</strong>terminado<br />

povo <strong>de</strong> acordo com sua situação concreta. Para Deleuze,<br />

porém, há uma diferença <strong>de</strong> natureza entre conceitos, perceptos e<br />

afetos. Ain<strong>da</strong> que eles coexistam sempre, na filosofia e na <strong>literatura</strong>,<br />

o que os anima não é igual. Assim, o engajamento se dá sempre por<br />

<strong>de</strong>vires, mas po<strong>de</strong>mos nos engajar seguindo a cadência regular <strong>da</strong>s<br />

palavras-conceito ou <strong>de</strong> acordo com os movimentos mais bruscos e<br />

ocultos dos sons e feições <strong>da</strong>s palavras (DELEUZE, 1992:181-186).<br />

De um modo ou <strong>de</strong> outro, a ‘forma absoluta’ <strong>da</strong> filosofia e as ‘matérias<br />

<strong>de</strong> expressão’ literárias apontam ambas para a exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta<br />

do plano <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, anterior à consciência – ou, nos termos <strong>de</strong><br />

Crítica e clínica, para visões e audições que ultrapassam todos os possíveis<br />

modos <strong>de</strong> consciência e até mesmo as formações sociais.<br />

Eis porque o engajamento sartreano ain<strong>da</strong> não é o engajamento<br />

<strong>de</strong>leuzeano, por mais que Deleuze possa admirar o próprio<br />

engajamento <strong>de</strong> <strong>Sartre</strong>. E quem sabe essa admiração do ‘discípulo’<br />

Deleuze pelo ‘mestre’ <strong>Sartre</strong> até soasse um pouco estranha aos olhos<br />

<strong>de</strong>ste último... De um modo ou <strong>de</strong> outro, a questão do engajamento<br />

e <strong>da</strong> <strong>literatura</strong> em <strong>Sartre</strong> e em Deleuze exige, talvez, um mergulho<br />

mais profundo em ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas <strong>filosofias</strong>. O caminho po<strong>de</strong> ser<br />

o sugerido por Badiou: partir <strong>de</strong> Bergson, <strong>de</strong> sua influência um<br />

tanto quanto negativa sobre <strong>Sartre</strong> e positiva sobre Deleuze, analisar<br />

o papel <strong>da</strong> consciência e algumas <strong>de</strong> suas intuições fun<strong>da</strong>mentais<br />

sobre a matéria e a memória, as multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s qualitativas, o<br />

virtual etc... Mas isso é matéria para outro trabalho. •<br />

5. Bibliografia cita<strong>da</strong>:<br />

BADIOU, Alain. Deleuze: “la clameur <strong>de</strong> l‘être”. Paris: Hachette, 1997.<br />

DELEUZE, Gilles. Cinéma 1: L’Image-mouvement. Paris: Minuit, 1983.<br />

—. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993.<br />

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234<br />

233


Literatura<br />

Paulo Domenech Oneto<br />

—. Différence et répétition. Paris: P.U.F., 1968.<br />

—. “Il a été mon maître”, in L’Île déserte et autres textes: textes et entretiens<br />

1953-1974, édition préparée par David Lapouja<strong>de</strong>. Paris: Minuit, 2002.<br />

—. —. Proust et les signes. Paris: P.U.F., 1970.<br />

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: pour une littérature mineure.<br />

Paris: Minuit, 1975.<br />

—. Qu’est-ce que la philosophie Paris: Minuit, 1991.<br />

—. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.<br />

DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977.<br />

SARTRE, Jean-Paul. Situations 1. Paris: Gallimard, 1947.<br />

—. Qu’est-ce que la littérature. Paris: Gallimard, collection Folio Essais, 1948.<br />

234

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