A experiência da CUF foi incomparável. Foi ali que se fez a revolução industrial portuguesa. Ali se concretizou o sonho <strong>de</strong> Alfredo da Silva, o gran<strong>de</strong> empresário português da primeira meta<strong>de</strong> do século XX, que criou um novo conceito <strong>de</strong> família, à volta das fábricas, inovadora para a época. Substituiu-se aos <strong>de</strong>veres sociais do Estado, criou a sua própria segurança social, hospitais e escolas 6 • Sexta-feira 26 Novembro 2010 • Ípsilon
<strong>Barreiro</strong>, uma ilha à espera <strong>de</strong> ser re<strong>de</strong>scoberta O que é que o <strong>Barreiro</strong> tem? Um ambiente experimental urbano, festivais, música, uma zona industrial com inúmeras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> reconversão e uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> assentes no associativismo. O que é que o <strong>Barreiro</strong> não tem? Talvez a capacida<strong>de</strong> para estimular o potencial que tem entre mãos. Vítor Belanciano (texto) e Miguel Manso (fotos) Uma cida<strong>de</strong> é feita <strong>de</strong> muitas camadas. Comecemos pela pele. O <strong>Barreiro</strong> é dormitório. Subúrbio. Viagem <strong>de</strong> barco <strong>de</strong> vinte minutos a partir <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>. Metrópole <strong>de</strong> gases poluentes expelidos por fábricas e <strong>de</strong> oficinas da CP com aspecto caduco. Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gente cansada que mal dorme e trabalha em <strong>Lisboa</strong> num escritório. A pele, o senso comum, os chavões, não falseiam. Mas não revelam tudo. A pele revela apenas um ponto <strong>de</strong> vista. Observemos melhor, como o arquitecto é capaz <strong>de</strong> perceber as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma casa mesmo se para os leigos ela parece estar em ruína. O <strong>Barreiro</strong> possui a área com mais potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconversão da zona metropolitana, bairros operários com aptidão <strong>de</strong> transfiguração e um património industrial sem igual. Tem colectivida<strong>de</strong>s em cada ruela. Modos <strong>de</strong> relacionamento que funcionam como factores <strong>de</strong> coesão social. O associativismo é uma forma <strong>de</strong> estar. É uma urbe participativa. E possui um ambiente urbano singular, assente na urgência <strong>de</strong> fazer, em festivais <strong>de</strong> música, em grupos rock, numa escola <strong>de</strong> jazz, no teatro, na boémia e numa das populações mais jovens do país. Nos anos 80, num concurso da RTP, à pergunta “que cida<strong>de</strong> é famosa pelo seu nevoeiro?”, uma senhora respon<strong>de</strong>u, confiante, “<strong>Barreiro</strong>”. Para muitos ainda será assim. Mas é possível avistar outra realida<strong>de</strong>, como o realizador e fotógrafo Anton Corbjin, que ali achou o lugar pós-industrial i<strong>de</strong>al para filmar os U2 em 2004. Nos anos 80, num concurso da RTP, à pergunta “que cida<strong>de</strong> é famosa pelo seu nevoeiro?”, uma senhora respon<strong>de</strong>u, confiante, “<strong>Barreiro</strong>”. É possível avistar outra realida<strong>de</strong> O alvoroço na música A pele revela. Mas é preciso saber ver. António Câmara, professor catedrático, director da YDreams, Prémio Pessoa em 2006, anda a olhar para o <strong>Barreiro</strong> há muito. “Fui pela primeira vez, em 1972, aos 16 anos, para ver jogar Earnest Killum, antigo jogador dos Los Angeles Lakers, que o Barreirense havia contratado”, recorda. Durante esse ano apanhava o barco <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> para a outra margem, para assistir aos jogos <strong>de</strong> basquete. Quando regressou dos EUA e foi viver para o Meco, o filho acabou no Barreirense. “Levei-o a uma sessão <strong>de</strong> treino, percebi o entusiasmo que havia naquele lugar e não hesitei.” Ainda hoje pensa que foi uma das melhores <strong>de</strong>cisões da sua vida. “Foi a melhor ‘escola’ que ele podia ter frequentado, apren<strong>de</strong>ndo valores fundamentais como a paixão, o espírito <strong>de</strong> sacrifício, a resistência, saber ganhar e per<strong>de</strong>r.” Apren<strong>de</strong>u basquete e também a “aspirar à excelência.” Durante cinco anos, quase diariamente, conduzia o filho aos treinos e <strong>de</strong>pressa apreen<strong>de</strong>u elementos fundamentais da cida<strong>de</strong>: “Percebi que havia um espaço, a Quimiparque, ou seja a ex-CUF, que é o espaço com mais potencial na área metropolitana <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, porque está à beira do rio e são quase 300 hectares on<strong>de</strong> seria possível fazer uma nova Expo, mas mais experimental.” E também que havia uma atmosfera cultural própria. “Notei que havia boas livrarias, como a Bocage, e um gran<strong>de</strong> interesse pela música – não só no <strong>Barreiro</strong>, como nas áreas adjacentes. Havia muitos grupos ligados ao rock, jazz ou hip-hop. Senti que havia ali um ambiente experimental urbano que era fora do comum. E <strong>de</strong>pois havia também um associativismo que me surpreen<strong>de</strong>u.” Os indícios <strong>de</strong>sses anos avolumaram-se. Hoje discute-se o futuro da área industrial da Quimiparque e do ponto <strong>de</strong> vista cultural vive-se um momento agitado. A companhia <strong>de</strong> teatro Arte Viva celebra 30 anos, integrando uma escola que tem hoje 100 alunos, maneira <strong>de</strong> integrar a população. Mas é sobretudo na música o alvoroço. Em Setembro, no auditório Augusto Cabrita, <strong>de</strong>correu o festival <strong>Barreiro</strong> Outras Músicas (BOM), com os americanos Anti-Pop Consortium, figuras <strong>de</strong> proa do hip-hop progressista, o alemão Oval, nome fundamental das Cartaz da exposição “Cem anos da Cuf no <strong>Barreiro</strong>” Ípsilon • Sexta-feira 26 Novembro 2010 • 7