Prisão civil por dÃvida - BuscaLegis
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Prisão <strong>civil</strong> <strong>por</strong> dívida<br />
Gustavo Portela Ladosky*<br />
1. Introdução<br />
Em face do agravamento da situação econômica brasileira, multiplicam-se os casos de<br />
inadimplência dos devedores, que não conseguem su<strong>por</strong>tar os crescentes e pesados<br />
encargos de suas dívidas, face à estagnação ou até decréscimo de seus ganhos.<br />
A situação hodierna traz à tona a questão da prisão <strong>civil</strong> <strong>por</strong> dívida, especialmente<br />
quanto as exceções à sua vedação pela Constituição Federal, até hoje objeto de divergência<br />
dos Tribunais pátrios.<br />
Observar-se-ão, neste breve estudo, a gravidade da pena privativa de liberdade e a<br />
inadmissibilidade de sua aplicação ao devedor fiduciante, <strong>por</strong> falta de amparo<br />
constitucional.<br />
2. Da pena privativa de liberdade<br />
O Estado, no exercício de suas funções, estabelece regras de conduta a fim de manter<br />
a convivência harmoniosa entre as pessoas e entre elas e o próprio Estado. São deveres<br />
impostos em prol do “Bem Comum”. Tais normas são dotadas da coercitividade essencial à<br />
sua efetividade, i.e., aquele que as desrespeita fica sujeito à coação do Estado, que se<br />
manifesta através das sanções previamente estabelecidas em lei. Essas sanções, em<br />
princípio, constituem-se de indenizações pecuniárias pelos danos causados pela<br />
transgressão, chamada de ilícito jurídico. Muitas vezes, <strong>por</strong>ém, esta espécie de sanção é<br />
insuficiente para prevenir e reprimir os atos ilícitos, cominando a lei, <strong>por</strong> isso, sanções mais<br />
severas como as penas privativas de liberdade e restritivas de direitos.<br />
Para o homem, animal social <strong>por</strong> natureza, o isolamento e a perda da liberdade,<br />
caracterizadores da pena de prisão, tornam-na a mais severa dentre as penas previstas pela<br />
legislação pátria. Nos dizeres de Mirabete , a “prisão, em sentido jurídico, é a privação da<br />
liberdade de locomoção, ou seja, do direito de ir e vir, <strong>por</strong> motivo ilícito ou <strong>por</strong> ordem<br />
legal.”
A pena de prisão, dada a sua severidade, deve ser utilizada como último recurso para<br />
a punição do condenado. É o que preconiza a teoria do “Direito Penal Mínimo”, também<br />
denominada de Teoria da Intervenção Mínima, o qual substitui a prisão <strong>por</strong> penas<br />
alternativas ou administrativas em crimes tidos como de menor ofensividade, reservando-se<br />
o cárcere somente aos indivíduos de alta periculosidade e que representam uma ameaça à<br />
paz pública e à integridade física dos cidadãos.<br />
A pena privativa de liberdade é e continuará sendo a espinha dorsal do sistema penal<br />
brasileiro. Em casos de grave criminalidade e de multirreincidência, não se encontrou,<br />
ainda, uma outra solução melhor. A teoria do Direito Penal Mínimo apenas preconiza a<br />
aplicação da prisão com um caráter mais excepcional , até <strong>por</strong>que ela não se enquadra no<br />
Estado Democrático de Direito, nem no objetivo ressocializador da pena, cujo elemento<br />
nuclear é o desenvolvimento da personalidade e dignidade da pessoa.<br />
A tendência da legislação pátria, assim como se sente em outros Estados, é no sentido<br />
de seguir a supramencionada teoria, como demonstra a Lei dos Juizados Especiais (lei<br />
9.099/95), que previu os juizados especiais criminais, competentes para a conciliação, o<br />
julgamento e a execução de "... infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os<br />
procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e<br />
o julgamento de recursos <strong>por</strong> turmas de juízes de primeiro grau" e a Lei nº 10.259/01, que<br />
instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal e trouxe<br />
novo conceito de infração de menor potencial ofensivo, em seu artigo 2.º, parágrafo único:<br />
“Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes<br />
que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.”<br />
A prisão, consoante a Doutrina, caracteriza-se <strong>por</strong> ser retributiva - é ameaça de um<br />
mal contra aquele que causou um mal, e preventiva, <strong>por</strong> ter <strong>por</strong> escopo evitar a prática de<br />
novas infrações: intimida os demais destinatários da norma penal, que ao verem os<br />
encarcerados, sintam-se desestimulados a praticar delitos (prevenção geral); e retira o autor<br />
do ilícito do convívio social, impedindo-o de delinqüir e procurando corrigi-lo,<br />
ressocializá-lo (prevenção especial). Augusto Thompson enumera essas diversas<br />
finalidades da pena de prisão em : "confinamento, ordem interna, punição, intimidação<br />
particular e geral e regeneração".<br />
Apontam-se duas modalidades de prisão: a resultante de sentença penal condenatória<br />
irrecorrível (prisão-pena) e a que não é resultante de sentença penal irrecorrível. A primeira<br />
é imposta pelo Estado ao autor de infração penal e engloba a reclusão, a detenção e a prisão<br />
simples. A segunda, chamada prisão sem pena, é prevista pelo ordenamento jurídico em<br />
situações especiai: a) prisão disciplinar prevista nos arts.35, 37,60 §1º, e 69 §§ 5º e 7º da<br />
Lei de Falências; b) a prisão cautelar de que trata o art.139,II da Constituição Federal; c) a<br />
prisão cautelar de natureza processual penal; d) a prisão <strong>civil</strong>.<br />
3. Da prisão <strong>civil</strong>
A Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LXVII, determina: ‘‘Não haverá<br />
prisão <strong>civil</strong> <strong>por</strong> dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e<br />
inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel’’. Esse dispositivo foi posto,<br />
pelo legislador constituinte, no capítulo ‘‘Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos’’,<br />
de modo a deixar clara a sua im<strong>por</strong>tância.<br />
Diante da severidade da pena de prisão, sua aplicação deve ser reservada para os<br />
casos mais graves, em que se atinjam valores superiores ao da própria liberdade do agente.<br />
A sanção imposta ao devedor inadimplente de obrigação alimentícia funda-se no valor<br />
maior da “vida”, resguardado pela Constituição, que é atendido pela prestação de<br />
alimentos. É praticamente unânime sua aceitação.<br />
O mesmo não se dá quanto à prisão do depositário infiel. Esta espécie de prisão <strong>civil</strong><br />
encontra fundamento na sobreposição dos valores “confiança” e “boa-fé” sobre o da<br />
“liberdade”. As garantias e valores constitucionais muitas vezes entram em conflito,<br />
cabendo ao legislador e ao julgador estabelecer qual deles prevalece. No caso dos<br />
alimentos, o valor “vida” é claramente superior ao “liberdade”, mas tal clarividência não<br />
ocorre quando este se confronta com os valores “confiança” e “boa-fé”, relativos à guarda<br />
de coisa alheia. Tanto é que o Estado Brasileiro é signatário de dois pactos internacionais<br />
que vedam, expressamente, a privação de liberdade como instrumento coercitivo de<br />
cumprimento de obrigação <strong>civil</strong> : o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos<br />
(decreto executivo nº 592/92) e o Pacto de San José da Costa Rica (decreto executivo<br />
nº678/92). Prevê o primeiro, em seu art. 11, que "ninguém poderá ser preso apenas <strong>por</strong> não<br />
cumprir obrigação contratual"; enquanto o segundo, em seu art. 7º, nº 7, dispõe: ‘‘Ninguém<br />
será detido <strong>por</strong> dívidas; este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária<br />
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar’’.<br />
Os tratados internacionais, uma vez aprovados e promulgados <strong>por</strong> decreto, inserem-se<br />
no ordenamento jurídico pátrio, com força de leis ordinária de caráter geral, dotada de plena<br />
vigência e eficácia, tendo o condão de revogar outras normas de caráter geral que versem<br />
sobre a mesma matéria. A despeito disso, os tribunais pátrios continuam a aplicar a sanção<br />
de prisão <strong>civil</strong> do depositário infiel, baseados no entendimento de essas normas<br />
internacionais são hierarquicamente inferiores ao dispositivo constitucional que a prevê,<br />
não podendo, pois, revogá-lo.<br />
Cabe esclarecer que o dispositivo constitucional não impõe, mas apenas permite que<br />
haja a prisão <strong>civil</strong> do depositário infiel, podendo a legislação infraconstitucional, sem ferir a<br />
CF, abolir aquela prisão. A previsão da aplicação dessa pena se encontra não na Carta<br />
Magna, mas sim na legislação infraconstitucional – Código Civil, art. 1.287 e Código de<br />
Processo Civil, arts. 902 e 904, diplomas que podem ser revogados <strong>por</strong> tratados<br />
internacionais recepcionados pelo ordenamento jurídico.<br />
Em outras palavras, tratado internacional aprovado e promulgado tem eficácia de lei<br />
ordinária, podendo revogar a lei geral. No caso em tela, os tratados revogaram a regra geral<br />
do Código Civil, da mesma hierarquia, retirando o su<strong>por</strong>te a que faz remissão a lei especial<br />
(decreto-lei nº 911/69).
Ante o exposto, então, conclui-se ser equívoco o posicionamento dos Tribunais<br />
pátrios, que continuam a aplicar a pena de prisão ao depositário infiel, quando no plano da<br />
legislação ordinária, a norma vigorante sobre a prisão <strong>civil</strong> é o decreto em que se<br />
promulgou o Pacto de San José, pois que, a despeito de permitida constitucionalmente a<br />
prisão do depositário infiel, a regra geral que a instituíra (art. 1.287 do CC) restou<br />
derrogada pelo novo diploma.<br />
4. Da prisão <strong>civil</strong> do alienante fiduciário<br />
4.1 Da alienação fiduciária<br />
A alienação fiduciária, segundo o Caio Mário , é um direito real de garantia, que se<br />
define como “a transferência ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa,<br />
independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que<br />
acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida.”<br />
As partes na alienação fiduciária são o credor ou proprietário fiduciário e o devedor<br />
ou alienante ou, ainda, devedor fiduciante. Este pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica,<br />
que, além de dotada da capacidade genérica para os atos da vida <strong>civil</strong>, tenha o domínio e a<br />
livre disposição da coisa. A lei, entretanto, admite que o não – proprietário aliene em<br />
garantia, desde que venha a sê-lo subseqüentemente, retroagindo os efeitos desta aquisição<br />
à data do contrato. O credor, todavia, deverá ser consórcio ou instituição bancária ou<br />
financeira em situação regular junto ao Banco Central do Brasil. Já houve, aliás, decisão do<br />
Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que tal negócio, feito <strong>por</strong> pessoa física, tem<br />
eficácia apenas como contrato de mútuo. (RT n 439/134 )<br />
Podem ser alienadas em garantia coisas móveis , desde que não fungíveis e<br />
consumíveis (pois são comerciáveis), como, v.g., o estoque de mercadorias de uma loja.<br />
Pode recair sobre bens já pertencentes ao devedor, não havendo a obrigatoriedade da<br />
garantia recair apenas sobre objetos a adquirir com o próprio financiamento.<br />
A alienação fiduciária se prova <strong>por</strong> documento escrito, público ou particular, o qual<br />
deverá obrigatoriamente ser arquivado no Registro de Títulos e Documentos do domicílio<br />
do credor, consoante a lei, para lhe dar publicidade e validade contra terceiros de boa - fé.<br />
Se se tratar de veículo automotor, faz-se necessário que conste do certificado de registro<br />
deste, expedido pela repartição administrativa competente (como o DETRAN-PE ).<br />
A lei assegura ao credor garantido <strong>por</strong> alienação fiduciária diversos meios para<br />
realização de seu crédito : a busca e apreensão, a ação de depósito e a ação executiva, uma<br />
vez que o contrato em tela tem eficácia de título executivo extrajudicial.<br />
A busca e apreensão é ação autônoma, de conhecimento, proposta pelo credor para<br />
tomar o bem das mãos do devedor ou de terceiro, comprovando a mora ou inadimplência
do devedor. Esta ação segue um rito processual próprio, determinado <strong>por</strong> lei, com<br />
contornos bem característicos : a limitação da defesa, a purgação da mora em casos<br />
determinados, a venda extrajudicial da coisa, etc.<br />
O art. 3 do Decreto-lei 911/69 determina que o juiz, a requerimento da parte<br />
autora (credor), concederá liminarmente a busca e apreensão do bem alienado<br />
fiduciariamente, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor , o que via<br />
de regra se faz com a juntada de notificação ou título protestado.<br />
Para Nelson Nery e Rosa M. Andrade Nery, a liminar concedida em busca e<br />
apreensão de veículo alienado fiduciariamente é antecipatória do resultado. “É como se o<br />
juiz dissesse se ‘procedente’ o pedido, provisória e liminarmente. Diferente da liminar<br />
cautelar, cujo objetivo não é antecipar o julgamento do mérito, mas assegurar o resultado<br />
do processo.”<br />
Citado, réu tem três dias para contestar ou, caso estejam pagos 40% (quarenta <strong>por</strong><br />
cento) do preço financiado, requerer a purgação da mora, na forma dos §§ 3 e<br />
4 do art. 3 da já citada lei. Purgar a mora é um direito do devedor , não<br />
podendo sofrer restrição pelo credor e mesmo pelo magistrado. Observe-se que, ainda que o<br />
bem não tenha sido apreendido, o magistrado deverá deferir o pedido de purgação da mora.<br />
A matéria de defesa da contestação é limitada pelo § 2 daquele artigo, só se<br />
podendo alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações<br />
contratuais. Intuitivo é que possa o réu também argüir matérias de ordem pública, que<br />
podem ser conhecidas ex officio pelo juiz. A melhor doutrina entende que a aplicação da<br />
citada limitação foi afastada pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo possível ao<br />
demandado alegar toda a matéria de defesa que teria contra o autor. Nelson Nery e Rosa M.<br />
Andrade Nery vão além e sustentam que tal limite é inconstitucional, <strong>por</strong> restringir o direito<br />
de defesa, ofendendo o art. 5, LV da CF/88.<br />
Caso o bem objeto do contrato não for encontrado ou não estiver na posse do devedor,<br />
a ação poderá, a pedido do autor, ser convertida em ação de depósito, <strong>por</strong> decisão<br />
interlocutória.<br />
A petição em que se pleiteia a conversão deve conter todos os requisitos da petição<br />
inicial da ação de depósito, inclusive o requerimento da citação do réu, sob pena de<br />
extinção do processo. Não caberá, todavia, ação de depósito contra o devedor fiduciante em<br />
caso de falência, pois o mesmo não se encontra mais na posse e administração da massa.<br />
Convertida a busca e apreensão em ação de depósito, o devedor fiduciante será citado<br />
para entregar a coisa, depositá-la em juízo ou consignar-lhe o equivalente em dinheiro, ou<br />
contestar a ação, no prazo de cinco dias, sob pena de prisão (art902 do CPC). A vigência<br />
desse artigo gera grande polêmica e é objeto de grandes discrepâncias na jurisprudência,<br />
inclusive nas Cortes Superiores.<br />
4.2. Da inadmissibilidade da prisão <strong>civil</strong> do devedor fiduciante
Os arts. 1º e 4º do Decreto-lei 911/69 definem o devedor alienante fiduciário como<br />
depositário, <strong>por</strong>que o domínio e a posse do bem continuam em poder do credor,<br />
proprietário fiduciário, em face da natureza do contrato. Destarte, consoante a leu, uma vez<br />
não encontrado e não devolvido o bem alienado, sem justa causa, o devedor poderá, <strong>por</strong><br />
decisão judicial, ser declarado depositário infiel e ter sua prisão decretada.<br />
A doutrina e a jurisprudência têm levantado vários e fortes argumentos contra a<br />
aplicação da pena de prisão ao devedor fiduciante:<br />
I – afronta aos princípios do Direito Consumeirista<br />
Trata-se de um reforço despro<strong>por</strong>cionado nas garantias do credor, transferir para o<br />
mesmo o domínio resolúvel e a posse do bem objeto da garantia e equiparar o devedor<br />
fiduciante ao depositário. Esse privilégio concedido ao credor, em geral instituição<br />
financeira, pela lei da alienação fiduciária, assim como as limitações à purgação da mora e<br />
à contestação previstas na mesma, não encontram mais guarida no Direito hoje vigente,<br />
especialmente quando o devedor é um consumidor, nos termos do CDC.<br />
Os princípios do Direito Consumeirista, conforme o caput do artigo 4º da Lei<br />
8.078/90, visam ao “atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua<br />
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua<br />
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo.” Dentre<br />
esse princípios estão os da vulnerabilidade, da harmonia e do dever do Estado.<br />
O princípio da vulnerabilidade traz o pressuposto da fragilidade do consumidor. Há<br />
uma evidente despro<strong>por</strong>ção entre sua força econômica e a das empresas, ficando aquele<br />
numa situação de inferioridade maior devido à dificuldade de informações, inclusive, sobre<br />
como reivindicar seus direitos. Mesmo quando os reivindica, os meios de que dispõe são<br />
reduzidos em comparação aos dos produtores e fornecedores.<br />
Ante essa hipossuficiência do consumidor, faz-se necessária a tutela de seus direitos,<br />
a fim de que haja uma harmonização dos interesses dos participantes das relações de<br />
consumo : tratando-se desigualmente os desiguais, é possível equilibrá-los. Na verdade,<br />
essa tutela é dever do Estado, expresso no artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal:<br />
“O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.<br />
A alienação fiduciária é hodiernamente muito utilizada nas vendas de automóveis e<br />
equipamentos, através de contratos de adesão, as quais se enquadram no conceito de<br />
relação de consumo. Aplica-se-lhe, nesses casos, a Legislação Consumeirista. Desse modo,<br />
vê-se os privilégios que o dec.-lei 911 confere aos credores-fornecedores em detrimento do<br />
consumidor devem ser entendidos como revogados.<br />
II – Pacto de San José da Costa Rica
Como já foi analisado,a promulgação do Pacto de San José da Costa Rica, sem<br />
reservas, através do Decreto 678/92, leva ao entendimento de hodiernamente não mais<br />
subsiste a prisão do depositário infiel, e conseqüentemente, do devedor fiduciante. Mesmo<br />
<strong>por</strong>que a própria Constituição Federal, no § 2º do art.5º, diz que os direitos e garantias nela<br />
expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios <strong>por</strong> ela adotados, ou<br />
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.<br />
Brilhante o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, a<br />
respeito do tema, proferido no HC n° 79.010/PR (DJ 10.03.1999, seção 1, pág. 45): "Do rol<br />
das garantias constitucionais vem-nos a regra segundo a qual não haverá prisão <strong>civil</strong> <strong>por</strong><br />
dívida(...). As exceções, contempladas em preceito exaustivo da própria Carta da República<br />
– e, <strong>por</strong>tanto, imunes à atuação do legislador ordinário – correm à conta do inadimplemento<br />
voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e do depósito infiel, de modo que não<br />
abrangem a situação daquele que deixou de solver dívida concernente a contrato de compra<br />
e venda. Vale frisar que o Brasil, ao subscrever o Pacto de São José da Costa Rica, situado<br />
no mesmo patamar da legislação ordinária, veio a derrogar o Código Civil, o Código de<br />
Processo Civil e, com maior razão, o Decreto-Lei n° 911/69, alterado pelo artigo 4ª da Lei<br />
n° 6.071/74, no que disciplinam matérias estranhas à prestação alimentícia."<br />
III – descaracterização do depósito<br />
O art.66 da Lei n.4728/65, conforme o art. 1º do Decreto-lei 911/69 , dispõe que o<br />
alienante ou devedor é possuidor direto e depositário do bem, com todas as<br />
responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei <strong>civil</strong> e penal .<br />
Uma análise mais detida do instituto da alienação fiduciária em garantia, conforme<br />
disciplinada na lei, todavia, leva à conclusão de que inexiste, em essência, quer propriedade<br />
do bem <strong>por</strong> parte do credor, quer depósito do bem dado em garantia.<br />
É depositário infiel aquele que, tendo recebido um bem em depósito, para guarda-lo<br />
até que a parte depositante o reclamasse, recusa-se a devolver o bem quando solicitado.<br />
Com a previsão de sua prisão, pune-se a malícia da apropriação indébita. Na alienação<br />
fiduciária, o devedor fiduciante não recebe a coisa para custodiá-la e devolvê-la, mas para<br />
dela se utilizar, não se lhe podendo exigir que a entregue, salvo se deixar de saldar o débito<br />
pela mesma garantido.<br />
No depósito, o depositante é o dono e sofre os riscos da perda, vez que res perit<br />
dominus; na alienação fiduciária, é o devedor que su<strong>por</strong>ta os riscos, apesar de não ser<br />
proprietário, segundo a lei: perdida a coisa fiduciada, sem culpa dele devedor, o credor<br />
poderá executar o contrato com as demais garantias deste constantes, como títulos de<br />
crédito. Fosse o credor realmente proprietário, deveria su<strong>por</strong>tar os riscos. Além disso, uma<br />
vez apreendida a coisa, o credor não poderá ficar com ela, devendo vendê-la. Ora, não é<br />
realmente proprietário aquele que ao retomar a posse do bem não pode ficar com a coisa<br />
para si, sendo obrigado a vende-la e cujo preço assim obtido só lhe pertence na medida do
seu crédito, devendo repassar eventual saldo remanescente ao devedor (art. 2o. do Dec. Lei<br />
911/69).<br />
Não se podem equiparar dois institutos tão diferentes . Nota-se que equiparar o<br />
devedor fiduciante ao depositário infiel é uma ficção jurídica que serve para mascarar o<br />
emprego da coerção pessoal como meio de forçar o pagamento do débito. O que a<br />
legislação fez foi placitar uma espécie de prisão <strong>por</strong> dívidas, em um verdadeiro retrocesso<br />
aos primórdios do Direito Romano.<br />
Nesse ponto, é salutar o voto proferido pelo Ministro do STF Adhemar Maciel, no<br />
RHC n° 4.288/RJ, propugnando pela descaracterização da propriedade do credor<br />
fiduciário,: "Aliás, tecnicamente, nem mesmo de ‘proprietário’ o credor fiduciário pode ser<br />
rotulado, pois nem sequer pode ficar com a coisa. Só com o produto de sua venda, com a<br />
dedução daquilo que o devedor já lhe pagou. Também transfigurada ficou a milenar regra<br />
do res perit domino suo, que remonta o Código de Hamurabi, pois, na alienação fiduciária<br />
em garantia, se a coisa perecer sem culpa do devedor o prejuízo é dele e não do credor. Na<br />
realidade, o que a legislação ordinária (LMC e DL n° 911/69) fez foi uma ‘equiparação’<br />
daquilo que não pode ser equiparado só param no fundo, ensejar a cobrança da dívida<br />
mediante a prisão. Pôs um rótulo em frasco com conteúdo diverso."<br />
IV – excepcionalidade da prisão <strong>civil</strong><br />
Observou-se, na primeira parte deste trabalho, a severidade da pena de prisão e a<br />
excepcionalidade da prisão <strong>civil</strong>, permitida pela Constituição apenas nos casos nela<br />
elencados. Não é possível, assim, ampliarem-se as exceções à vedação da prisão <strong>por</strong> dívidas<br />
, transmutando-as em verdadeira carta branca outorgada ao legislador ordinário. A<br />
legislação infraconstitucional não pode equiparar institutos diversos à dívida de alimentos<br />
ou ao depósito, sob pena de se esvaziar totalmente a garantia constitucional.<br />
É um contra-senso, diante das tendências mais modernas, alargar as hipóteses de<br />
prisão <strong>civil</strong>, ainda mais quando já houve decisão do STF no sentido de que esta prisão é<br />
incompatível com a prisão albergue e a domiciliar (HC nº 74.881/PR, 1ª turma, 26.08.97).<br />
V – a supressão da cláusula “na forma da lei” na atual Carta Magna<br />
As Constituições de 1967 e 1969, traziam, ao final do dispositivo em que se previam<br />
as exceções à vedação da prisão <strong>por</strong> dívida, a cláusula “na forma da lei”. Entendia-se que<br />
esta referência viabilizava a extensão da prisão <strong>civil</strong> ao devedor fiduciante. Hoje este<br />
entendimento perdeu seu fundamento, haja a vista a supressão daquela cláusula na atual<br />
constituição, que é posterior à lei da alienação fiduciária.<br />
VI – inadmissibilidade de analogia in malan partem
O dispositivo constitucional que permite a prisão <strong>civil</strong> não permite analogia in malan<br />
partem, nem interpretação extensiva, uma vez que está em jogo o cerceamento do direito à<br />
liberdade de uma pessoa, garantido constitucionalmente.<br />
4.3 Posicionamento do STF<br />
O Supremo Tribunal Federal, <strong>por</strong> maioria, entende persistir a legalidade da prisão do<br />
devedor fiduciante. Dispõe ainda aquela Corte que o Pacto de São José da Costa Rica, além<br />
de não poder contra<strong>por</strong>-se à permissão do art. 5º, LXVII da Carta de 1988, não derrogou,<br />
<strong>por</strong> ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre<br />
prisão <strong>civil</strong> do depositário infiel.<br />
4.4 Posicionamento do STJ<br />
O Colendo Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido da<br />
inadmissibilidade da prisão <strong>civil</strong> do devedor fiduciante, a partir do julgamento dos<br />
embargos de divergência, em Recurso Especial n° 149.518/GO, da lavra do Min. Ruy<br />
Rosado de Aguiar: "EMENTA – Alienação fiduciária. Prisão <strong>civil</strong>. Não cabe a prisão <strong>civil</strong><br />
do devedor que descumpre contrato garantido <strong>por</strong> alienação fiduciária. (EREsp n°<br />
149.518/GO. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. DJ. 28.02.2000)."<br />
Diversos julgados, no mesmo sentido, se seguiram, a exemplo do RHC 9636/MS. Rel.<br />
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ 11.09.2000, pág. 250; do AGA 286300/MS. Rel.<br />
Min. Waldemar Zveiter. DJ 01.08.2000, pág. 280; do REsp. 178151/SP. Rel. Min. Aldir<br />
Passarinho Junior. DJ 17.04.2000, pág. 68 e do AGREsp. 207690/GO. Rel. Min. Nilson<br />
Naves. DJ 28.02.2000, pág. 78.<br />
5. Conclusão<br />
Foi visto que, face à severidade da pena de prisão, ela deve ser restrita aos casos mais<br />
graves. O direito de liberdade do indivíduo só deve ser cerceado quando houver violação de<br />
valor superior ao mesmo.<br />
Assim, carece de fundamento a aplicação da pena de prisão ao depositário infiel,<br />
ainda mais quando o Brasil assinou e promulgou tratados que a proíbem. Não obstante, os<br />
Tribunais pátrios continuam a aplicar os dispositivos do Código Civil e do de Processo<br />
Civil à tal prisão concernentes.<br />
Por razões ainda mais fortes, não se pode admitir a prisão do devedor fiduciante,<br />
principalmente após a promulgação da Constituição Federal atual, à qual o Decreto 911 se<br />
mostra frontalmente oposto.
Apesar de todos os fortes argumentos contra a prisão do devedor fiduciante e do<br />
entendimento, neste sentido, do Superior Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal<br />
continua se posicionando pela constitucionalidade da citada prisão.<br />
6. Bibliografia<br />
Livros:<br />
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anos. In: www.ambitojuridico.com.br
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In:www.neofito.com.br<br />
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*Estudante da graduação da Faculdade de Direito do Recife - UFPE<br />
abcs@cimentopoty.com.br<br />
Disponível em: <<br />
http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=285&idAreaSel=2&seeArt=ye<br />
s >. Acesso em: 12 set. 2007.