teresa & teresa de castro e bandeira - FIA
teresa & teresa de castro e bandeira - FIA
teresa & teresa de castro e bandeira - FIA
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
TERESA & TERESA<br />
DE CASTRO E BANDEIRA<br />
Genize Molina Zilio Barros* 1<br />
RESUMO: Este artigo tem por objetivo comparar as poesias “O ‘a<strong>de</strong>us’ <strong>de</strong> Teresa” <strong>de</strong><br />
Castro Alves e “Teresa” <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira.<br />
Palavras-chave: poema – análise - intertextualida<strong>de</strong><br />
ABSTRACT: This paper aims to compare Castro Alves poem “O ‘a<strong>de</strong>us’ <strong>de</strong> Teresa”<br />
to Manuel Ban<strong>de</strong>ira poem “Teresa” .<br />
Key- words: poem - analisys – intertextuality<br />
Consi<strong>de</strong>rações Iniciais<br />
Um “mosaico <strong>de</strong> citações” é como todo texto se constrói, afirma Júlia Kristeva ao<br />
tratar da intertextualida<strong>de</strong>, isso porque ele absorve e transforma outros textos (Apud<br />
RIOS, 2001, p.140).<br />
Os poemas, “O ‘a<strong>de</strong>us’ <strong>de</strong> Teresa”, <strong>de</strong> Castro Alves e “Teresa”, <strong>de</strong> Manuel<br />
Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ixam patente a questão da intertextualida<strong>de</strong>. Na primeira leitura dos textos,<br />
o leitor <strong>de</strong>tecta <strong>de</strong> imediato, já no título, a semelhança entre os nomes femininos,<br />
Teresa, além <strong>de</strong> apresentarem a mesma estrutura sintática e a mesma expressão<br />
adverbial <strong>de</strong> tempo, introduzindo o primeiro verso da primeira estrofe. No entanto, há<br />
um sentimento <strong>de</strong> estranheza por parte do leitor, diante do segundo texto, visto que<br />
Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>sconstrói o lirismo convencional, provocando uma <strong>de</strong>sestabilização, já que<br />
se espera uma Teresa parecida com a <strong>de</strong> Castro Alves.<br />
Alfredo Bosi afirma que<br />
*Mestre em Língua Portuguesa pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.Docente <strong>de</strong> Língua Portuguesa e Literatura da<br />
Faculda<strong>de</strong> Interação Americana.
1. Corpus<br />
De fato , a memória letrada, avolumando-se fatalmente com o passar do tempo,<br />
parece dar boas razões e velhas armas à metáfora do tesouro. Tudo já foi dito,<br />
inclusive esta mesma sentença. Nihil novum sub sole. Assim sendo, é tarefa do<br />
crítico <strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong> qual poema antigo ou mo<strong>de</strong>rno o poema novo é refacção,<br />
glosa ou paráfrase. (...) Quando o tom muda mas o velho fraseio se mantém, dizse<br />
que o poema é paródia ou carnavalização <strong>de</strong> outro poema (BOSI, 1999, p.41).<br />
Os poemas, a seguir, serão a base <strong>de</strong> nossa análise comparativa. Eles<br />
representam a produção literária <strong>de</strong> dois autores consagrados <strong>de</strong> nossa<br />
literatura: Castro Alves e Manuel Ban<strong>de</strong>ira.<br />
I. O “a<strong>de</strong>us” <strong>de</strong> Teresa<br />
A vez primeira que eu fitei Teresa,<br />
Como as plantas que arrasta a correnteza,<br />
A valsa nos levou nos giros seus...<br />
E amamos juntos ... E <strong>de</strong>pois na sala<br />
“A<strong>de</strong>us” eu disse-lhe a tremer co’a fala ...<br />
E ela, corando, murmurou-me: “a<strong>de</strong>us”.<br />
Uma noite ... entreabriu-se um reposteiro ...<br />
E da alcova saía um cavalheiro<br />
Inda beijando uma mulher sem véus ...<br />
Era eu ... Era a pálida Teresa!<br />
“A<strong>de</strong>us”lhe disse conservando-a presa ...<br />
E ela entre beijos murmurou-me: “a<strong>de</strong>us”!<br />
Passaram tempos ... séc’los <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio<br />
Prazeres divinais ... gozos do Empíreo ...<br />
... Mas um dia volvi aos lares meus.<br />
Partindo eu disse —Voltarei! ... <strong>de</strong>scansa! ...<br />
Ela, chorando mais que uma criança,
2. Análise comparativa<br />
Ela em soluços murmurou-me: “ a<strong>de</strong>us”!<br />
Quando voltei ... era o palácio em festa! …<br />
E a voz d’Ela e <strong>de</strong> um homem lá na orquestra<br />
Preenchiam <strong>de</strong> amor o azul dos céus.<br />
Entrei! … Ela me olhou branca … surpresa!<br />
Foi a última vez que eu vi Tereza! …<br />
E ela arquejando murmurou-me: “a<strong>de</strong>us”!<br />
II. Teresa<br />
A primeira vez que eu vi Teresa<br />
Achei que ela tinha pernas estúpidas<br />
Achei também que a cara parecia uma perna<br />
Quando vi Teresa <strong>de</strong> novo<br />
Achei que os olhos eram muito mais velhos<br />
[que o resto do corpo<br />
Castro Alves<br />
(Os olhos nasceram e ficaram <strong>de</strong>z anos esperando<br />
Da terceira vez não vi mais nada<br />
Os céus se misturaram com a terra<br />
[que o resto do corpo nascesse)<br />
E o espírito <strong>de</strong> Deus voltou a se mover sobre a<br />
[face das águas<br />
Manuel Ban<strong>de</strong>ira
Affonso Romano (1999) afirma que a relação que Ban<strong>de</strong>ira estabelece com os<br />
mo<strong>de</strong>los poéticos da tradição po<strong>de</strong>ria chamar-se tradição reinventada, ele é um<br />
refazedor da tradição, um leitor dos clássicos e um reescrevedor <strong>de</strong> poesia, além <strong>de</strong><br />
um reescrevedor da própria poesia. Sua retomada <strong>de</strong> dicções poéticas anteriores é feita<br />
muitas vezes <strong>de</strong> modo direto, remetendo a textos <strong>de</strong> autores conhecidos - neste caso,<br />
Castro Alves - preservando e ampliando a memória literária através da paródia, que se<br />
<strong>de</strong>fine mo<strong>de</strong>rnamente através <strong>de</strong> um jogo intertextual. Esse é um lado brincalhão e<br />
muito curioso do poeta.<br />
De início, dois aspectos se <strong>de</strong>stacam em nossa leitura: a temática amorosa e a<br />
contraposição da estética mo<strong>de</strong>rnista à estética romântica. O primeiro se configura por<br />
meio <strong>de</strong> diferenças que assinalam os encontros, a concepção amorosa e as<br />
características da figura feminina; o segundo pelos “modos <strong>de</strong> arranjo” do signo<br />
linguístico, seleção e combinação ganham especial relevância, porque constituem um<br />
dos recursos mais utilizados pelo movimento mo<strong>de</strong>rnista em seu fazer poético.<br />
Os textos apresentam a enunciação do eu lírico, que se expressa na primeira<br />
pessoa, uma das características da função emotiva da linguagem. Expressam<br />
sentimentos pessoais, buscando causar um efeito <strong>de</strong> emoção, encantamento e,<br />
especificamente, no segundo texto, estranhamento provocado pelas imagens oníricas<br />
sugeridas pelo sujeito lírico. Além disso, a musicalida<strong>de</strong>, o ritmo e as rimas, essas<br />
predominantemente no primeiro texto, já que temos versos polimétricos com rimas<br />
irregulares no texto <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, caracterizam-nos também como líricos. Os verbos no<br />
pretérito perfeito do indicativo e a presença <strong>de</strong> tempos, espaços e personagens dão-<br />
lhes um caráter narrativo. Cabe notar a presença do futuro do presente “voltarei”, no 3 o<br />
quinteto do texto <strong>de</strong> Castro Alves, indicando uma promessa a ser cumprida e o<br />
imperativo “<strong>de</strong>scansa”, acentuando-a.<br />
Para analisarmos esses e outros aspectos e interpretarmos os poemas, é<br />
relevante situarmos os dois textos <strong>de</strong>ntro da história literária, pois cada um traz consigo<br />
uma bagagem <strong>de</strong> informações pertinentes ao período a que pertencem, como também<br />
características pessoais <strong>de</strong> cada poeta. “Lembrando que a interpretação – quando é<br />
feita por uma só pessoa – é necessariamente incompleta, isto é, aberta à
complementação <strong>de</strong> novas e enriquecedoras leituras do texto” ( GOLDSTEIN, 1999,<br />
p.68).<br />
O texto <strong>de</strong> Castro Alves, escrito em 1868, ao contrário <strong>de</strong> outros textos do<br />
período, reflete um sentimento amoroso adulto, numa poesia sensual e erótica por<br />
pertencer à terceira geração romântica em que se <strong>de</strong>stacam o sensualismo; uma<br />
mulher dotada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> beleza física, que arrebata o coração do eu lírico, vista como<br />
objeto <strong>de</strong> satisfação erótica; sentimentalismo exagerado da alma feminina, no caso<br />
<strong>de</strong>sse texto, caracterizado pelos gerúndios que traduzem as reações emotivas em<br />
gradação: “corando”, “entre beijos” (beijando), “em soluços” (soluçando) e<br />
“arquejando”, como também pela oração subordinada adverbial comparativa “chorando<br />
mais que uma criança”; emoções realçadas pelo emprego dos pontos <strong>de</strong> exclamação;<br />
uma atmosfera <strong>de</strong> mistério, efeito criado pelo uso <strong>de</strong> reticências que contribuem,<br />
também, para a suspensão da frase e para o alongamento da narrativa; a utilização <strong>de</strong><br />
palavras e expressões típicas do universo romântico como “valsa”, “cavalheiro”,<br />
“orquestra”, outras que procuram enfatizar as sensações: “prazeres, “<strong>de</strong>lírios”; a<br />
<strong>de</strong>scrição da mulher, “pálida” e “branca”, bem ao gosto romântico e o subjetivismo,<br />
marcado pelo uso da primeira pessoa.<br />
Po<strong>de</strong>mos dividir o poema em quatro segmentos, correspon<strong>de</strong>ntes a cada uma<br />
das estrofes que marcam os encontros e as <strong>de</strong>spedidas entre os amantes. As<br />
expressões adverbiais <strong>de</strong> tempo que iniciam os quintetos: “a vez primeira”, “uma noite”,<br />
“Passaram-se tempos” e “Quando voltei” marcam esses momentos. Na primeira estrofe,<br />
o eu lírico narra seu primeiro encontro com Teresa, a atmosfera <strong>de</strong> paixão e arroubo<br />
que os envolveu e o início da relação amorosa. Na segunda, o eu lírico revela a<br />
concretização do amor entre os dois. Na terceira, temos a reafirmação do romance<br />
intenso e a partida do amante, <strong>de</strong>sta vez por um período mais longo. Na última estrofe,<br />
o eu lírico narra seu retorno e a surpresa <strong>de</strong> encontrar Teresa com um novo amor.<br />
“A<strong>de</strong>us” é a palavra que mais se <strong>de</strong>staca. Já no título, “O ‘a<strong>de</strong>us’ <strong>de</strong> Teresa”, o<br />
uso <strong>de</strong> aspas e do artigo <strong>de</strong>finido dá à expressão um valor particular. Ela é repetida<br />
diversas vezes, ao longo do poema, sempre com aspas para marcar o discurso direto.<br />
Essa repetição morfológica encontra justificativa, uma vez que “a repetição intensifica o
grau <strong>de</strong> tensão que parte do poeta para o leitor, criando uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significações”<br />
(MICHELETTI, 1997, p.155), “a redundância é a lei constitutiva do discurso poético”<br />
(COHEN, 1982, p.56) e ,além disso, essa “unida<strong>de</strong> repetida já não é mais a mesma,<br />
uma vez repetida passa a ser outra” (KRISTEVA, J. apud COHEN, 1982, p.57).<br />
Notamos que o a<strong>de</strong>us do eu lírico está incorporado aos quintetos e se repete em<br />
menor número <strong>de</strong> vezes do que o “a<strong>de</strong>us” <strong>de</strong> Teresa. Sendo o a<strong>de</strong>us o tema do<br />
poema, a própria construção do texto, dividido em quatro quintetos intercalados por um<br />
monóstico, coloca em evidência os momentos <strong>de</strong> separação dos amantes.<br />
Relevante dizer que é o sujeito lírico quem dá, na verda<strong>de</strong>, os a<strong>de</strong>uses. É ele, o<br />
dono da situação amorosa, quem <strong>de</strong>fine quando começa e quando acaba o encontro, a<br />
ela, só cabe respon<strong>de</strong>r-lhe o a<strong>de</strong>us, murmurar, chorar e soluçar. Po<strong>de</strong>mos confirmar<br />
essa atitu<strong>de</strong> através da ambigüida<strong>de</strong> da palavra “presa”, no verso “A<strong>de</strong>us lhe disse<br />
conservando-a presa ”, que possui valor <strong>de</strong> acorrentada, amarrada e, também, como<br />
resultado da caça; <strong>de</strong>monstrando o elemento dominante, masculino e o elemento<br />
dominado, submisso, feminino. Apesar <strong>de</strong> todos esses índices, tem-se a falsa<br />
impressão <strong>de</strong> que ela é responsável pelas <strong>de</strong>spedidas – “O ‘a<strong>de</strong>us’ <strong>de</strong> Teresa” - e, até<br />
mesmo, pela traição, afinal, no momento social em que o texto foi escrito, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
seduzir, <strong>de</strong> fazer o homem sofrer é sempre da mulher.<br />
Reforçamos essa análise, por termos, na última estrofe, uso da maiúscula no<br />
pronome pessoal ela ( “E a voz d’Ela e <strong>de</strong> um homem lá na orquestra”), que realça a<br />
personagem feminina, <strong>de</strong>stacando-a no cenário da festa, <strong>de</strong>monstrando o espanto do<br />
eu lírico em presenciar uma cena inimaginável para ele, como também para inverter a<br />
posição <strong>de</strong> dominador e presa no relacionamento amoroso.<br />
Neste poema, os recursos sonoros são muito utilizados e essas recorrências<br />
sonoras promovem uma série <strong>de</strong> correlações que criam elos entre o escritor e o leitor,<br />
seduzindo-o. O ritmo cria “um campo encantatório que enreda o leitor em sua teia<br />
sonora do significante” (MICHELETTI, 1997, p.155).<br />
O poema é composto por versos <strong>de</strong>cassílabos com ritmo irregular, temos, por<br />
exemplo, o primeiro verso <strong>de</strong>cassílabo heróico com acentuação na 4 a , 8 a e 10 a sílabas,<br />
enquanto o segundo apresenta acentuação na 3 a , 6 a , e 10 a .
A/ vez/ pri/ mei/ ra/ que eu/ fi/ tei/ Te/ re/ sa<br />
Co/ mo as/ plan/ tas/ que a/ rras/ ta a / co/ rren/ te/ za<br />
Buscando manter a métrica estabelecida, o poeta utiliza <strong>de</strong> uma característica<br />
muito comum em sua poesia: o uso da ectlipse (elisão ou sinalefa da vogal nasal) em<br />
“co’a fala” e a supressão <strong>de</strong> vogal marcada pelo uso do apóstrofe em “séc’los. Técnica<br />
muito comum nos poetas românticos, cuja versificação reproduzia por vezes a<br />
pronúncia popular (Cf. MARTINS, 2000, p.55).<br />
O esquema <strong>de</strong> rima é AABCCB, incorporando o verso solto <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cada<br />
quinteto. As rimas são perfeitas ( apresentam i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta <strong>de</strong> sons): “Teresa”,<br />
“correnteza “; “seus”, “a<strong>de</strong>us”; “sala “, “fala” , “e ricas ( entre palavras <strong>de</strong> classes<br />
gramaticais diferentes): “seus” (pronome) e “a<strong>de</strong>us” (substantivo); “surpresa” (adjetivo)<br />
e “Teresa”( substantivo). A palavra “a<strong>de</strong>us” e o nome Teresa são <strong>de</strong>stacados através<br />
das rimas.<br />
Além da rima, outros elementos sonoros se <strong>de</strong>stacam, sugestionando,<br />
enredando o leitor através <strong>de</strong> seu valor expressivo:<br />
a) Aliterações :<br />
• /r/ , vibrante dupla, no 2 o verso da 1 a estrofe, em “arrasta a correnteza”,<br />
sugerindo o ruído da dança;<br />
• /s/ , sibilante, no terceiro verso da 1 a estrofe, em “valsa nos ... nos giros<br />
seus”, sugerindo ruído, provavelmente, da dança e do farfalhar das sedas das<br />
vestes <strong>de</strong> Teresa;<br />
• /s/ , sibilante, no último verso da 2 a estrofe, em “A<strong>de</strong>us lhe disse<br />
conservando-a presa ...”, sugerindo ruído <strong>de</strong> sussurros.<br />
• /d/, /b/, fonemas oclusivos no 3 o verso do 2 o quinteto, “inda beijando”,<br />
sugerindo o ruído do beijo.<br />
• /p/, /t/, /d/ , oclusivas, no 3 o quinteto, em “Passaram tempos ... <strong>de</strong>lírio”, “<br />
prazeres divinais ... Empíreo”, contribuem para o ritmo e a sonorida<strong>de</strong> da
estrofe, sugerindo a explosão dos sentimentos dos amantes, o arroubo da<br />
paixão.<br />
b) Assonância :<br />
• /a/ e /e/ ,fonemas vocálicos orais, na última estrofe, em “era o palácio<br />
em festa” sugere a atmosfera festiva e musical em que se encontra Teresa, o<br />
que é realçado ainda mais pelos encontros consonantais “tr”, “pr” e ”br” e pelo<br />
fonema /r/ em “orquestra”/ “Preenchiam <strong>de</strong> amor ...”/ Entrei ... branca ...<br />
surpresa”.Estes empregos sugerem o ruído da festa<br />
O poema é rico em figuras <strong>de</strong> linguagem, a começar pelo hipérbato do 1 º verso,<br />
que serve para realçar a noção <strong>de</strong> tempo, marcando o início dos fatos e o nome<br />
Teresa, que, como vimos, sobressai por vir rimado no final do verso. No segundo verso,<br />
o hipérbato, causado pelo <strong>de</strong>slocamento do sujeito “correnteza” para <strong>de</strong>pois do verbo,<br />
<strong>de</strong>staca a idéia do arrebatamento do primeiro encontro, além da própria valsa, seu ritmo<br />
e passos, intensificados pela comparação. Outro hipérbato é utilizado, na segunda<br />
estrofe, “E da alcova saía um cavalheiro”, criando um clima <strong>de</strong> mistério, disfarçando, na<br />
3 a pessoa, a personagem que sabemos, no verso seguinte, ser o próprio eu lírico, que<br />
“beija uma mulher sem véus”, Teresa. Estes “disfarces”, ainda que por alguns instantes,<br />
<strong>de</strong>spertam a curiosida<strong>de</strong> do leitor para a continuida<strong>de</strong> da narrativa.<br />
A terceira estrofe é rica em hipérboles: “séc’los <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios”, “prazeres divinais”,<br />
“gozos do Empíreo”, intensificando a relação amorosa havida entre os dois e mantendo<br />
a idéia <strong>de</strong> arrebatamento da primeira estrofe. Algumas metonímias também são<br />
utilizadas, como em “A valsa nos levou nos giros seus”, que na verda<strong>de</strong> significa que<br />
os amantes <strong>de</strong>ixaram-se levar pela valsa. Na quarta estrofe, “lares” significa, também,<br />
espaço geográfico on<strong>de</strong> mora o eu lírico, o que <strong>de</strong>ixa claro que as personagens<br />
pertencem a espaços diferentes.<br />
Finalmente, <strong>de</strong>vemos ressaltar a repetição da conjunção coor<strong>de</strong>nada aditiva “e”<br />
que vai levando a narrativa , costurando a sucessão dos fatos, pren<strong>de</strong>ndo a atenção do<br />
leitor, estabelecendo uma relação <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> entre ele e o eu lírico, como se fosse<br />
uma história contada por ele a um amigo.
Já o poema “Teresa” <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira faz parte do livro “Libertinagem,<br />
composto por textos escritos entre 1924 e 1930, anos <strong>de</strong> força e calor do movimento<br />
mo<strong>de</strong>rnista.<br />
Com relação a esse movimento literário brasileiro do qual o poeta faz parte,<br />
lembramos o professor Bosi: “Falando <strong>de</strong> um modo genérico, é a sedução do<br />
irracionalismo, como atitu<strong>de</strong> existencial e estética, que dá o tom aos novos grupos, ditos<br />
mo<strong>de</strong>rnistas, e lhes infun<strong>de</strong> aquele tom agressivo com que se põem em campo para<br />
<strong>de</strong>molir as colunas parnasianas e o aca<strong>de</strong>micismo em geral” ( BOSI, 1985, p.340).<br />
Esse clima vivido pelos poetas, na segunda década do século XX, fica claro em<br />
“Libertinagem”. Ela é a primeira obra totalmente mo<strong>de</strong>rnista do autor, confirmando pleno<br />
amadurecimento das formas mo<strong>de</strong>rnas do poeta e o pleno domínio da liberda<strong>de</strong><br />
estética. Nela, os sonetos metrificados do poeta parnasiano dão lugar a poemas <strong>de</strong><br />
dimensões e formas variadas, empregando versos livres e brancos, ausência <strong>de</strong><br />
pontuação, coloquialismos, oralida<strong>de</strong> e paródias, <strong>de</strong>monstrando sua associação aos<br />
movimentos <strong>de</strong> Vanguarda Européia. O conteúdo <strong>de</strong>ssa obra mantém a tendência<br />
intimista e pessoal do poeta, mas liberta-se da serieda<strong>de</strong> e da melancolia, mantida<br />
apenas em alguns poemas, para mostrar seu lado menino em textos marcados pela<br />
irreverência, pelo humorismo, pela ironia e pelo lirismo inocente. Todos esses fatores<br />
serão encontrados no poema ora analisado, com veremos a seguir.<br />
Composto por três estrofes <strong>de</strong> três versos cada (terceto), verificamos a<br />
irregularida<strong>de</strong> dos versos, são versos livres e polimétricos <strong>de</strong> quem Ban<strong>de</strong>ira é senhor<br />
absoluto, com <strong>de</strong>staque para o seu caráter prosaico, acentuado pelo contraste <strong>de</strong><br />
tamanho do 2 o e 3 o versos da segunda estrofe e o último verso da terceira estrofe.<br />
Observe:<br />
“Achei também que a cara parecia uma perna”<br />
“(Os olhos nasceram e ficaram <strong>de</strong>z anos esperando que o resto do corpo<br />
/ nascesse)”<br />
“E o espírito <strong>de</strong> Deus voltou a se mover sobre a face das águas”
Notemos que o número <strong>de</strong> sílabas poéticas dos versos vai aumentando<br />
gradualmente: na 1 a estrofe, temos 9, 10 e 12 sílabas poéticas; na 2 a, 8, 17 e 25 e na<br />
3 a, 9, 10 e 19, como se o poeta fosse aumentando o grau <strong>de</strong> tensão dos encontros. O<br />
verso mais longo do poema dá uma explicação do eu lírico sobre o amadurecimento<br />
da personagem, o seu comprimento reforça a surpresa <strong>de</strong>le diante <strong>de</strong>ssa constatação,<br />
dá-nos a impressão <strong>de</strong> que a explicação é para ele mesmo, que parece não acreditar<br />
no que vê. Eis o <strong>de</strong>senho do poema:<br />
__________________<br />
____________________<br />
________________________<br />
________________<br />
__________________________________<br />
__________________________________________________<br />
__________________<br />
____________________<br />
______________________________________<br />
Se o transformarmos em um gráfico, seguindo o número <strong>de</strong> sílabas poéticas <strong>de</strong><br />
cada verso, teremos a seguinte estrutura, comprovando nossa análise :<br />
25-<br />
N23-<br />
ú<br />
22m<br />
e21-<br />
r<br />
o18-<br />
16d<br />
e18-<br />
S13-<br />
í 10l<br />
a 9-<br />
b<br />
a<br />
8-<br />
s13-<br />
p12-<br />
o<br />
é<br />
11t10i<br />
c<br />
a
______________________________________________________________________________<br />
1 a estrofe 2 a estrofe 3 a estrofe<br />
Para Cohen (1982, p.56) “o verso (versus), é na essência um retorno, ‘um<br />
discurso que repete total ou parcialmente a mesma figura fônica’ ”. A repetição do<br />
significante reenvia ao significado e ela faz da homofonia uma eufonia.<br />
“Sabemos que Manuel Ban<strong>de</strong>ira é um auditivo e que talvez possua o ouvido mais<br />
afinado <strong>de</strong> toda a mo<strong>de</strong>rna poesia brasileira. Ouvido para a musicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ritmo<br />
ou <strong>de</strong> um verso, para a escolha exata da sonorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma palavra” (CÂNDIDO, 1993,<br />
p. 9). Seguramente, esse é um texto repleto <strong>de</strong> assonâncias e aliterações. Vejamos:<br />
Notamos, a partir do título, “Teresa”, uma insistente repetição das vogais<br />
/a/ e /e/, que ocorre também no primeiro terceto.<br />
A primeira vez que eu vi Teresa<br />
Achei que ela tinha pernas estúpidas<br />
Achei também que a cara parecia uma perna<br />
O valor estilístico da vogal /ê/ é mais neutro, discreto, não oferecendo<br />
expressivida<strong>de</strong> marcante, associamos a isso uma Teresa sem graça e sem forma. A<br />
ocorrência da vogal /a/, no início dos versos , “A”, “Achei” e “Achei”, traduz sons fortes<br />
que reforçam essa idéia. A presença da vogal anterior /i/ e da vogal posterior /u/ , sons<br />
agudos em “primeira”, “vi”, “parecia” e “estúpidas”, sugerem que algo estranho,<br />
inusitado chama a atenção do eu lírico. Essas idéias são realçadas pela metáforas<br />
insólitas presentes nessa estrofe.<br />
A aliteração da consoante labio<strong>de</strong>ntal /v/, em “vez” e “vi”, sugerem o som da voz<br />
do eu lírico e o uso das consoantes oclusivas /p/ e /t/, em “tinha”, “ pernas”,<br />
“estúpidas”, “parecia” e “perna”, pelo seu traço explosivo, exprimem surpresa e espanto<br />
do eu lírico diante <strong>de</strong> sua visão onírica.<br />
Convém notarmos que Ban<strong>de</strong>ira, diferentemente <strong>de</strong> Castro Alves, utiliza o verbo<br />
ver ao invés <strong>de</strong> fitar. Semanticamente, fitar <strong>de</strong>manda análise cuidadosa, quem fita se<br />
encanta e procura encantar, é parcial; já, o verbo ver é imparcial, sem emoção, ver é
constatação. Outro aspecto relevante, nesta estrofe, é o fato <strong>de</strong> termos uma “cara” e<br />
não uma “face” para <strong>de</strong>finir o rosto da personagem, esse jogo o poeta termina quando,<br />
na terceira estrofe, ele traz uma Teresa perfeita, concluída, empregando a expressão<br />
“sobre a face das águas”, contrapondo, <strong>de</strong> maneira explícita essa diferença.<br />
Já, na segunda estrofe, temos a assonância da vogal posterior /0/ que exprime<br />
sons profundos, graves e sugere a idéia <strong>de</strong> fechamento, neste caso, sugerem o ato <strong>de</strong><br />
reflexão do eu lírico, <strong>de</strong> sua tentativa <strong>de</strong> compreensão diante da constatação do<br />
amadurecimento <strong>de</strong> Teresa.<br />
Quando vi Teresa <strong>de</strong> novo<br />
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo<br />
(Os olhos nasceram e ficaram <strong>de</strong>z anos esperando que o resto do corpo<br />
/ nascesse<br />
A aliteração dos sons nasais, em “ Quando”, “novo”, “eram”, “muito”,<br />
“mais”, ”nasceram”, “ficaram”, “anos”, “esperando”, “nascesse”, exprimem sons<br />
velados, sugerindo a idéia <strong>de</strong> reflexão, <strong>de</strong> análise, o que enfatiza a idéia sugerida pela<br />
assonância da vogal /o/. A presença da hipérbole “...ficaram <strong>de</strong>z anos esperando ...”, da<br />
antítese novo/ velho e da personificação dos olhos ajudam a reforçar, para o leitor, esse<br />
clima vivido pelo eu lírico.<br />
Na terceira estrofe, a assonância das vogais /a/ em “dá”, “mais”, “nada”,<br />
1 o . verso e “a”, “a”, “face”, “das”, “águas”, 3 o . verso, sugere a idéia <strong>de</strong> clarida<strong>de</strong>,<br />
iluminação, <strong>de</strong> surpresa , <strong>de</strong> estupefação do eu lírico em encontrar uma Teresa<br />
<strong>de</strong>slumbrante, celestial, divinal.<br />
Como sabemos, este é um texto escrito no momento <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são mais clara <strong>de</strong><br />
Ban<strong>de</strong>ira ao i<strong>de</strong>ário mo<strong>de</strong>rnista. A prática da ruptura da velha norma estético-literária,<br />
consistia em traduzir para o “mo<strong>de</strong>rno” a linguagem poética tradicional. Convém notar a<br />
ausência <strong>de</strong> pontuação convencional — se, em Castro Alves, há o uso exagerado <strong>de</strong><br />
sinais <strong>de</strong> pontuação, aqui temos somente o uso dos parênteses, utilizados para<br />
acrescentar uma explicação. Verificamos, também, que a redundância da conjunção
“que”, o vício <strong>de</strong> linguagem (cacófato), na expressão “ela tinha”, e o uso da palavra<br />
“cara” aproxima a linguagem poética da linguagem informal : coloquialismo.<br />
Observando com mais cuidado, notaremos que é insistente a repetição do<br />
número três na composição do poema: três estrofes com três versos cada, três versos<br />
longos, três encontros, três momentos, três fases da vida, o nome Teresa e a palavra<br />
achei aparecem três vezes, o vocábulo Teresa tem três sílabas. Seria interessante<br />
consi<strong>de</strong>rarmos as análises <strong>de</strong> Chevalier, em seu dicionário, sobre a simbologia do<br />
número três, com o objetivo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>rmos melhor o porquê <strong>de</strong>ssa repetição.<br />
Segundo Chevalier (1991, p.900 e p.902), o número três é fundamental<br />
mundialmente, ele sintetiza a trinda<strong>de</strong> do ser vivo ou resulta da conjunção <strong>de</strong> 1 e <strong>de</strong> 2,<br />
produzido, neste caso, da União do Céu e da Terra. De acordo com os chineses, é um<br />
número perfeito (tch’eng), a expressão da totalida<strong>de</strong>, da conclusão: nada lhe po<strong>de</strong> ser<br />
acrescentado. É a conclusão da manifestação: o homem, o filho do Céu e da Terra,<br />
completa a Gran<strong>de</strong> Tría<strong>de</strong>. Para os cristãos é, inclusive, a perfeição da Unida<strong>de</strong> divina:<br />
Deus é um em três pessoas. O três <strong>de</strong>signa, ainda, os níveis da vida humana: material,<br />
racional, espiritual ou divino e as três fases da existência: aparecimento, evolução e<br />
transformação. Transportando essas informações para o poema, constataremos uma<br />
Teresa que se transforma ao longo do texto, a princípio analisada em seu aspecto físico<br />
(material): cara, perna; <strong>de</strong>pois através dos olhos, seu amadurecimento (racional) e<br />
finalmente perfeita, divinizada, espiritualizada, expressão da totalida<strong>de</strong>, conclusão da<br />
obra divina.<br />
Os momentos em que o eu lírico encontrou Teresa são marcados pelas<br />
expressões adverbiais <strong>de</strong> tempo: “a primeira vez” ; “Quando vi ... <strong>de</strong> novo” e “Da<br />
terceira vez ” que iniciam as três estrofes do poema , tal qual o texto <strong>de</strong> Castro Alves,<br />
ficando, no entanto, evi<strong>de</strong>nte a ausência do quarto momento que, no texto do poeta<br />
romântico, representa o fim do relacionamento amoroso. A expressão “<strong>de</strong> novo”, no<br />
primeiro verso da segunda estrofe, “Quando vi Teresa <strong>de</strong> novo”, nos permite duas<br />
leituras: a primeira com o sentido <strong>de</strong> novamente, advérbio; a segunda é que, nesse<br />
novo encontro, uma nova Teresa se revela diante <strong>de</strong> seus olhos, adjetivo. Essas<br />
marcações temporais po<strong>de</strong>m ser associadas às três fases da vida em que ocorreram os
encontros: infância, adolescência e ida<strong>de</strong> adulta. Pressupõem-se que tanto ela quanto<br />
ele cresciam, justificamos essa suposição pela fala infantil da primeira estrofe, que faz<br />
associações inusitadas para representar seu pensamento sobre uma menina sem<br />
forma; acrescentemos a isso a associação do poeta aos movimentos <strong>de</strong> Vanguarda<br />
européia como o Surrealismo.<br />
Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o extraordinário peso que a difusão do<br />
Surrealismo, nas décadas <strong>de</strong> 20 e 30, terá exercido sobre uma atitu<strong>de</strong> como essa <strong>de</strong><br />
dizer que “ela tinha pernas estúpidas” ou que “a cara parecia uma perna”, em que o<br />
poético é lúdico e libertário, combinando-se com o onírico, com o absurdo, com o<br />
humor. A poesia do inesperado, das analogias insólitas, ao qual os surrealistas se<br />
entregaram com fervor e é ela, na verda<strong>de</strong>, uma dimensão fundamental <strong>de</strong>les diante do<br />
mundo, para o qual o conhecimento poético da realida<strong>de</strong>, por sua combinação <strong>de</strong><br />
imaginação e <strong>de</strong>sejo, é também um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transformá-lo. Por isto, reencarnam ainda<br />
o po<strong>de</strong>r infantil <strong>de</strong> mudar o mundo, pela força mágica <strong>de</strong> suas imagens<br />
transformadoras, pela sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conferir realida<strong>de</strong> ao sonho (Cf.<br />
ARRIGUCCI,1990, p.143).<br />
No poema em estudo, fica clara a transfiguração <strong>de</strong> uma percepção inicial do<br />
corpo feminino à associação do poeta aos movimentos <strong>de</strong> Vanguarda como o<br />
Surrealismo, pois a realida<strong>de</strong> e o sonho se conjugam e se interpenetram no texto,<br />
como propunha André Breton, artista surrealista.<br />
O autor mo<strong>de</strong>rnista consegue um efeito surreal, praticando o “nonsense”. Aquele<br />
verso claro <strong>de</strong> Castro Alves “como as ondas que arrasta a correnteza” <strong>de</strong>monstrando a<br />
força do amor à primeira vista, aqui se transforma em uma frase logicamente<br />
incompreensível: “ a cara parecia uma perna”, “pernas estúpidas”. Martins (2000, p.92)<br />
afirma que para Bally, lingüista suíço, “estas associações são fundadas sobre vagas<br />
analogias, por vezes muito ilógicas, mas elas revelam que o sujeito pensante extrai das<br />
suas observações da natureza exterior imagens para representar aquilo que seu<br />
cérebro não consegue apresentar sob forma <strong>de</strong> abstração pura”.<br />
Isso se confirma, quando buscamos os estudos <strong>de</strong> Martins (MARTINS, 2000,<br />
p.96) sobre a obra Image et metaphoré <strong>de</strong> Pierre Camina<strong>de</strong>. Segundo ela, o autor diz
que a imagem, como compreen<strong>de</strong>ram sobretudo os surrealistas, é a aproximação<br />
arbitrária <strong>de</strong> dois ou mais significantes cujos significados não têm nenhuma relação<br />
inteligível para o senso comum e a lógica aristotélica. É uma criação pura do espírito,<br />
um dado da imaginação livre, do inconsciente, do irracional.<br />
“E assim o leitor vai tropeçando em coisas insólitas, passando pelos<br />
“estranhamentos” <strong>de</strong> que falavam os formalistas russos. É uma leitura em duas vozes:<br />
uma em presença (o texto mo<strong>de</strong>rno parodístico) e outra em ausência (o texto romântico<br />
parodiado”( ROMANO, 1990, p.25).<br />
Acrescentamos a isso o fato <strong>de</strong> que, conforme a leitura vai sendo feita, a<br />
personagem vai-nos sendo apresentada por partes: primeiro as pernas, <strong>de</strong>pois o rosto,<br />
os olhos e, finalmente, na última estrofe, todo o corpo, o conjunto <strong>de</strong> todas as partes,<br />
lembrando outro movimento <strong>de</strong> Vanguarda, o Cubismo. Gilberto Mendonça Teles<br />
afirma que o termo cubista passa também a <strong>de</strong>signar um tipo <strong>de</strong> poesia, o cubismo<br />
literário, em que a realida<strong>de</strong> é fracionada, <strong>de</strong>sintegrada e expressa através <strong>de</strong> planos<br />
superpostos, uma poesia cujas características são o ilogismo, o humor e uma<br />
linguagem mais ou menos caótica. (TELES apud LEITE, p. 46).<br />
Lembramos Gilda e Antônio Cândido, na introdução do livro “Estrela da Vida<br />
Inteira”, <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira, ao dizerem que essa técnica lembra o fracionamento<br />
cubista da realida<strong>de</strong> exterior com sua visão por lados diversos (CÂNDIDO, 1993, p.10).<br />
O poema, como já dissemos, é marcado pelo tom subjetivo, caracterizado pelo<br />
pronome pessoal <strong>de</strong> primeira pessoa “eu” e pelas terminações verbais “achei” e “vi”. A<br />
escolha do verbo achar intensifica ainda mais o caráter subjetivo do texto, por ele ser<br />
muito pessoal e também parcial.<br />
Com relação a esse verbo, sua repetição constitui uma anáfora, além <strong>de</strong> marcar<br />
um paralelismo sintático entre o segundo e terceiro versos da 1 a estrofe. Temos dois<br />
períodos compostos por orações subordinadas substantivas objetiva direta. Essa<br />
atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstra que Teresa é o objeto da análise, enquanto o “eu”, que acha, é o ser<br />
agente da análise feita.
Achei / que ela tinha pernas estúpidas<br />
Achei / que a cara parecia uma perna<br />
Na segunda estrofe, Teresa continua sendo-nos apresentada. Agora, em um<br />
novo encontro, temos uma figura feminina que impressiona pelos seus olhos. Olhos que<br />
<strong>de</strong>monstram amadurecimento para a ida<strong>de</strong> que o corpo físico possui, aliás, muito<br />
próprio das meninas. A oração subordinada adverbial comparativa ”Achei que os olhos<br />
eram muito mais velhos que o resto do corpo” é intensificada pelos advérbios “muito”<br />
e “mais” e também pelo verso entre parênteses “(Os olhos nasceram e ficaram <strong>de</strong>z<br />
anos esperando que o resto do corpo nascesse)” . Se na primeira estrofe a palavra<br />
redundante é “achei”, nesta estrofe, observamos a repetição da palavra olhos ( recurso<br />
já analisado anteriormente).<br />
Ao longo da história literária, os olhos femininos sempre foram motivo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>slumbramento do eu lírico diante da amada. Basta que nos lembremos do vilancete<br />
escrito por Camões cujo mote é: “Menina dos olhos ver<strong>de</strong>s, por que não me ve<strong>de</strong>s?” e a<br />
belíssima poesia <strong>de</strong> Gonçalves Dias, “Olhos Ver<strong>de</strong>s”, entre outros; só que no caso do<br />
poema <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, esse <strong>de</strong>slumbramento masculino não ocorre. Temos, nesse<br />
momento, mais uma característica mo<strong>de</strong>rnista: o poeta rompe com a imagem do<br />
<strong>de</strong>slumbramento do eu lírico e cria um momento <strong>de</strong> atordoamento diante da<br />
constatação feita por ele. Diferentemente da Teresa, <strong>de</strong> Castro Alves, que a cada<br />
encontro mais encanta o eu lírico pela sua beleza e pelos prazeres vividos, “entre<br />
beijos”, “ séc’los <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio”, “ Prazeres divinais” , os dois encontros ocorridos não o<br />
encantaram em absolutamente nada.<br />
Quando lemos o 1 o . verso da terceira estrofe, “ Da terceira vez não vi mais nada”,<br />
temos mais uma surpresa: a Teresa que existia, não existe mais. O eu lírico ficou<br />
estupefato diante <strong>de</strong> algo inusitado. Nesse momento temos uma insólita revelação. É<br />
aqui que a poesia traz à luz o seu “alumbramento”, há um instante <strong>de</strong> iluminação. O<br />
quadro real se transforma pela força da imaginação poética, fica clara a transfiguração<br />
<strong>de</strong> uma percepção inicial do corpo feminino: <strong>de</strong> mulher real; agora temos um mito, uma<br />
visão divinal.
Como já vimos, Ban<strong>de</strong>ira é um refazedor da tradição, é preciso um repertório ou<br />
memória cultural e literária para <strong>de</strong>codificar os textos superpostos, novamente temos<br />
intertextualida<strong>de</strong>. Os 2 o e 3 o versos, <strong>de</strong>sse terceto, remete o leitor à Gênesis, no<br />
capítulo 1, versículo 1 o: : “A criação do céu e da terra e <strong>de</strong> tudo que neles contém: 1.<br />
No princípio criou Deus os céus e a terra; 2. E a terra era sem forma e vazia; e havia<br />
trevas sobre a face do abismo; e o Espírito <strong>de</strong> Deus se movia sobre a face das águas.”<br />
A Teresa sem forma e vazia, como a terra no momento <strong>de</strong> sua criação, se<br />
transforma em um ser divinal, uma visão excelsa e espiritual da mulher, uma aparição<br />
celestial; on<strong>de</strong> havia o caos, agora reina a perfeição e o equilíbrio : “ E o espírito <strong>de</strong><br />
Deus voltou a se mover sobre a face das águas”. Citamos Arrigucci , quando diz :<br />
”Momento culminante <strong>de</strong> irradiação da luz, epifania radiosa, em que o corpo, até certo<br />
ponto, parece surgir sacralizado, divinizado no esplendor da visão espiritual”<br />
(ARRIGUCCI, 1990, p.158).<br />
E é por essa Teresa, mulher por quem ele se apaixona, não à primeira vista,<br />
como no Romantismo, não com forma explícita <strong>de</strong> lirismo, percebe-se que ele não se<br />
utiliza <strong>de</strong> adjetivações; <strong>de</strong> forma implícita, temos a visão <strong>de</strong> um encontro amoroso,<br />
numa visão mística <strong>de</strong> comunhão universal.<br />
A imagem resultante é uma espécie <strong>de</strong> superimagem, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> força simbólica,<br />
capaz <strong>de</strong> nos remeter a um sentido elevado, a um sublime oculto. Se o leitor insiste em<br />
<strong>de</strong>cifrar estes símbolos, repetindo a leitura e <strong>de</strong>tendo mais atenção, vai sendo minado<br />
por uma emoção distinta, que nos faz lembrar a afirmação <strong>de</strong> Schiller (Cf. ARRIGUCCi,<br />
1990): “Poesia é a força que atua <strong>de</strong> maneira divina e inapreendida, além e acima<br />
da consciência.”<br />
Consi<strong>de</strong>rações finais<br />
As análises feitas confirmam o dialogismo poético entre as obras. A<br />
intertextualida<strong>de</strong> se configura por meio <strong>de</strong> semelhanças e diferenças e se dá das mais<br />
diversas formas, a começar pelo título, pela temática amorosa, pela concepção<br />
amorosa <strong>de</strong> cada um, pelo contexto social em que os textos foram criados, pelo
movimento literário a que se filiam entre outros fatores. Confirma-se, também, a<br />
afirmação <strong>de</strong> Júlia Kristeva (Apud RIOS, 2001, p.140): um texto se constrói como “um<br />
mosaico <strong>de</strong> citações”, isso porque ele absorve e transforma outros textos. Segundo<br />
Bosi (1985, p.41) “tudo já foi dito, inclusive esta mesma sentença” e é tarefa do crítico<br />
<strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong> qual poema o poema novo é refacção, glosa, paráfrase ou paródia.
Referências<br />
ARRIGUCCI Junior, Davi. Humilda<strong>de</strong>, Paixão e Morte: a poesia <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira.<br />
São Paulo, Companhia das Letras, 1990.<br />
BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da manhã. R.J. Nova Fronteira, 2000.<br />
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 a ed. São Paulo, Cultrix, 1985.<br />
CÂNDIDO, Antônio e Gilda. Introdução In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.<br />
20 a ed. R.J. Nova Fronteira, 1993, p 3-17.<br />
CARA, Salete <strong>de</strong> Almeida. Literatura comentada, Manuel Ban<strong>de</strong>ira. São Paulo, Abril<br />
Educação,1981.<br />
CHACON, Geraldo e José Luiz Amzalak. Literatura, resumos e análises. 1993<br />
CHEVALIER, Jean; Alain Gheerbrant, com colaboração <strong>de</strong>: André Barbault ...[ et al.];<br />
coor<strong>de</strong>nação Carlos Sussekind; tradução: Vera da Costa e Silva [ et al.]. Dicionários <strong>de</strong><br />
Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 5 a . ed.<br />
R.J. José Olympio, 1991.<br />
COHEN, Jean. Poesia e redundância. In: O discurso da poesia. Coimbra [Poétique 28],<br />
Almedina, 1982.<br />
DIAS, Gonçalves. In: Presença da literatura brasileira – das origens ao Romantismo. 9 a<br />
ed. São Paulo, Cultrix, 1979, p. 263-4.<br />
GOLDSTEIN, Norma. O poema como espaço <strong>de</strong> dialogismo. In: Filologia e Língua<br />
Portuguesa, São Paulo, Humanitas FFLCH USP, 1999, nº3, p. 139-p.146.<br />
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 13 a ed. São Paulo, Editora Ática, 2003
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o Mo<strong>de</strong>rnismo. São Paulo, Duas Cida<strong>de</strong>s, 2000.<br />
MARTINS, Nilce Sant”Anna. Introdução à estilística: a expressivida<strong>de</strong> na língua portuguesa. 3 a .<br />
ed. rev.e aum. São Paulo, T. A. Queiroz, 2000.<br />
MICHELETTI, Guaraciaba. Repetição e significado poético ( o <strong>de</strong>sdobramento como fator<br />
constitutivo na poesia <strong>de</strong> F. Gullar) In: Filologia e Língua Portuguesa, São Paulo, Humanitas<br />
FFLCH USP, 1997, nº1, p.151- p. 164.<br />
RIOS, Cleusa P. passos. De quadrilha em quadrilha: Drumonnd em Chico B. <strong>de</strong> Holanda. In:<br />
Bosi, Viviana et allii. O poema: leitores e leituras. São Paulo, Ateliê Ed 2001, p. 139-p.152.<br />
ROMANO, Affonso <strong>de</strong> Sant’Anna. Paródia, paráfrase e Cia, Série Princípios. 3 a ed.São Paulo,<br />
Editora Ática, 1990.<br />
TELES, Gilberto Mendonça. In: LEITE, R. [ et all.]. Novas palavras: literatura, redação e leitura.<br />
São Paulo, FTD, 1997, p. 46 - p.52.<br />
Tynianov, Youri. Os traços flutuantes da significação no verso. In Todorov, T.(org.). O discurso<br />
da poesia [Poétique 28], Almedina, Coimbra, 1982.