Revista Portfolium #2
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| CONTOS E CRÔNICAS |<br />
Écio Diniz.<br />
O Desconhecido<br />
Caros amigos, como podem ver ao ler este texto, mostro-me<br />
inteiramente vivo com as faculdades mentais em plena obra. Não<br />
divagarei aqui acerca de como vai minha vida, pois ela não mais<br />
interessa, visto que eu não faço parte de um conglomerado digital<br />
que tanto os agrada. Percebo não só isso mas também que não sou<br />
mais convidado para o churrasco de sábado por não ter visto e clicado<br />
“irá comparecer” numa página de internet. Lembro-me vagamente<br />
quando um amigo me ligou e conversamos 30 minutos sobre como<br />
estavam as coisas e, para minha surpresa, recebo a notícia que<br />
ele agora é um cidadão digitalmente incluído. Chocado ao ouvir que<br />
eu não tinha criado nenhum “perfil” para mim, desligou e nunca<br />
mais me ligou. No curso da faculdade, as pessoas me olham de forma<br />
estranha. Na sala de aula, o mais corajoso se aproximou de mim<br />
e disse: “Ei, dizem que você é aquele que não tem conta no...” - antes<br />
de terminar eu já balançava a cabeça negativamente, o rapaz,<br />
levando a mão à boca com um olhar aterrorizado e incrédulo, pôsse<br />
a correr. Dias depois não só minha sala como toda a faculdade se<br />
desviava de mim no corredor, na biblioteca e até mesmo no refeitório.<br />
A coisa começou a ficar feia quando fui chamado à reitoria e<br />
todo o corpo docente estava reunido, juntamente com alguns agentes<br />
do governo, que me fizeram duas perguntas: -“Qual é seu nome<br />
de usuário?”, “Quantos megas tem sua banda larga?”- inconformados<br />
com minha resposta, julgaram-me louco e por isso vos escrevo.<br />
Depois de uma série de exame,s comprovadamente fui absolvido de<br />
loucura, porém, já não sou mais bem visto por vocês, afinal não possuo<br />
contas na internet e, se não estou on-line, quer dizer que também<br />
não estou em casa, ou estudando ou qualquer que seja a ocupação...<br />
apenas não mais existo. Minha história se espalhou e as<br />
crianças do meu bairro não se aproximam de mim. Ouvi uma mãe<br />
dizer ao filho: -“Compartilha logo isso, se não o homem sem Facebook<br />
vem te pegar e te levar para um mundo onde só existem livros<br />
e interação com pessoas de verdade”- O garoto chorou muito e<br />
“compartilhou” e “curtiu” muitas coisas. Mas eu não me importo<br />
mais. Hoje converso com alguns vizinhos mais velhos que também<br />
não tem um “perfil” e eles gostam de saber meu nome e convidamme<br />
para jantar às vezes. O engraçado é que, depois de jantar, lemos<br />
um livro ou dividimos o que fazemos no nosso dia-a-dia. Os vizinhos<br />
já ligaram para a polícia pensando se tratar de uma seita nova, na<br />
qual pessoas de verdade juntam-se para conversar, o que é uma<br />
coisa totalmente incomum. Em todo caso, hoje meu vizinho vai tocar<br />
violão e vamos cantar ao redor de uma fogueira no seu jardim, mas<br />
estou preocupado, pois sei que não vou conseguir “curtir” ou<br />
“compartilhar” isso por muito tempo.<br />
Onde entra um<br />
entra todos.<br />
Alan Mendes<br />
Não é novidade pra ninguém<br />
dizer que a cidade de São<br />
Paulo está entrando em colapso.<br />
Poluição, falta d'água, criminalidade<br />
e... transporte público, de<br />
péssima qualidade, por sinal. Ah,<br />
o transporte público! Andar de<br />
ônibus ou trem em São Paulo me<br />
faz lembrar, com nostalgia, de<br />
uma longa caminhada. Os passos<br />
largos e a brisa no rosto dão<br />
a sensação de liberdade, se<br />
comparados à superpopulação<br />
sobre trilhos que o trem nos proporciona.<br />
Pessoas aglomeradas<br />
no abismo da plataforma, olhares<br />
aflitos, tensão no ar... Uma<br />
senhora segura sua bolsa com<br />
força, enquanto uma gota de<br />
suor escorre por sua testa. O<br />
trem está chegando! A luz da<br />
composição anuncia o inevitável.<br />
O maquinista desacelera, junto<br />
com o tempo. Assim que estaciona,<br />
o punhado de gente se prepara,<br />
todas em posição e<br />
"paaaaaaaaaaannnnnn", é dada<br />
a largada! A avalanche humana,<br />
que mais me remete a um estouro<br />
de bois, recheia todos os assentos<br />
e espaços disponíveis,<br />
indisponíveis, proibidos e impossíveis.<br />
O “tsunami humano” levou<br />
aquela senhora sabe-se lá<br />
para onde. Sabemos que está lá<br />
dentro, em algum cantinho, espremida<br />
por centenas de desesperados<br />
pela volta pra casa. Idade,<br />
tamanho, peso, cor... Nada<br />
disso tem importância agora. As<br />
únicas preocupações são respirar<br />
e torcer para que o amigo do<br />
lado desça na próxima estação.<br />
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